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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI / Alexandre Dumas
ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI

Primeira Parte

 

O poder dos reis é grande; e, entre os reis, há aqueles que maior poder detèm sobre os outros. Há outro poder, que por certo se equivale, mas que nem sempre é reconhecido. esse poder é o da arte. Nesta obra, encontramos estas duas forças intimamente relacionadas, e os homens, que tal poder possuem, aparecem-nos, ora em todo o seu poder ora submissos, quando um é mais forte, quando é o outro que predomina.

Mas, outra força está em acção. E esta, este poder, é daqueles que, porventura, algum outro poder consegue suplantar. é do amor que se está a falar. De dois jovens, Ascânio e Colomba. Ele, jovem e artista; ela, jovem e bela, os dois amando-se e amando a beleza. Há, contudo, perigos à espreita...

 

         A RUA E O ATELIER

Estava-se a 10 de Julho do ano da graça de 1540; eram quatro horas da tarde, em Paris, cerca da Universidade, à entrada da Igreja dos Agostinhos, perto da pia da água benta, junto à porta.

Um jovem alto e bem parecido, moreno, de cabelo comprido e grandes olhos negros, trajando com a mais distinta simplicidade, e trazendo por única arma um pequeno punhal de punho primorosamente cinzelado, ali estava, de pé; e, decerto por piedosa humildade, não se tinha movido em todo o tempo que durou o ofício de vésperas; de cabeça inclinada e em atitude de devota contemplação, murmurava não sei que palavras em surdina; talvez as suas orações, pois falava tão baixo que só Deus e ele podiam saber o que dizia; contudo, ao terminar o ofício divino, reergueu a cabeça, e os seus vizinhos mais próximos puderam ouvir estas palavras pronunciadas a meia voz:

— Que maneira abominável de salmodiar têm estes frades franceses! Não poderiam cantar melhor diante dela, que deve estar habituada a ouvir cantar os anjos? Ainda bem que as vésperas terminaram. Meu Deus, Meu Deus! fazei que seja hoje mais feliz que no domingo, e que ela, pelo menos, levante os olhos para mim!

Este seu desejo não é nada inconsequente, pois se aquela a quem se refere levantar de facto os olhos para ele, verá o mais sedutor dos rostos de adolescente que ela jamais idealizou, ao ler as belas fábulas mitológicas tão em moda nessa época, graças às poesias de mestre Clemente Marot, onde se descrevem os amores de Psique e a morte de Narciso. E que o jovem, no seu traje sóbrio mas belo, era, como dissemos, de uma irresistível sedução e de uma suprema elegância de maneiras; além disso, o seu sorriso tinha uma graça e uma doçura infinitas, e o seu olhar, que ainda não ousava ser audacioso, era, pelo menos, o mais apaixonado que poderiam lançar dois grandes olhos de dezoito anos.

Entretanto, ao ruído especial das cadeiras anunciando o fim da cerimónia religiosa, o nosso enamorado (naturalmente que as escassas palavras que pronunciou já obrigaram o leitor a dar-lhe também este título...) o nosso enamorado, dizia eu, pôs-se um tanto de parte para ver passar a multidão, que saía em silêncio, e se compunha, quase exclusivamente, de severos fabriqueiros, respeitáveis matronas e jovens graciosas. Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente, quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia de simpático aspecto e ainda não muito velha. Quando estas duas damas se aproximaram da pia da água benta, o nosso jovem tomou alguma nas pontas dos dedos e ofereceu-lha com ademane gentil.

Esboçou a aia o mais gracioso sorriso, fazendo a mais agradecida das reverências, ao tocar os dedos do jovem, mas causou-lhe a maior das decepções ao oferecer ela própria algumas gotas da água recebida à sua jovem ama. Esta, não obstante a fervorosa oração de que poucos minutos antes fora objecto, manteve os seus olhos constantemente abaixados, prova evidente de que bem sabia estar ali o nosso jovem enamorado. Experimentou com a contrariedade tal desgosto, que não se conteve de bater o pé, murmurando:

«E não foi ainda hoje que me olhou!»

Isto prova que o belo adolescente, tal como julgamos tê-lo dito já, ainda não tinha mais de dezoito anos.

Mas, passado o primeiro momento de despeito, o nosso desconhecido apressou-se a descer os degraus do templo, e, vendo que depois de ter baixado o véu e dado o braço à sua aia, a formosa distraída tinha voltado à direita, apressou-se a fazer o mesmo, notando aliás que era precisamente aquele o seu caminho. A jovem seguiu ao longo do cais até à Ponte de S. Miguel, que atravessou; exactamente o caminho do nosso desconhecido. Em seguida, a jovem meteu pela Rua Barillerie, atravessando a Ponte Change. Ora como tudo isto era o caminho do jovem, seguiu-a como se fora a própria sombra.

A sombra de qualquer rapariga bonita é sempre um enamorado.

Mas, pouca sorte! Por alturas do Grand-Châtelet, o belo astro, de que o nosso desconhecido se fizera satélite, eclipsou-se subitamente: o postigo da prisão real abriu-se como por si mesmo, mal a aia lhe tocou, voltando logo a cerrar-se sobre as duas.

Por momentos, o jovem ficou interdito, mas, como era moço decidido sempre que não houvesse uma jovem beldade a alterar-lhe as decisões, depressa tomou o seu partido.

Um sargento da guarnição, de lança ao ombro, passava e repassava gravemente diante da porta do Grand-Châtelet. O nosso jovem desconhecido pôs-se então a imitar aquela digna sentinela. Depois de se ter afastado o bastante para não dar nas vistas, mas sem perder a da porta, começou heroicamente o seu quarto de sentinela amorosa.

Se o leitor já algum dia montou uma guarda, reparou certamente que o melhor processo para iludir o tempo é falar de si para consigo. Ora não resta a menor dúvida que o nosso jovem estava habituado a estes quartos de sentinela, pois, mal havia encetado esta, travou logo o seguinte diálogo consigo mesmo:

«Evidentemente que não é ali que ela mora. Esta manhã, depois da missa, e nos dois últimos domingos, em que ousei apenas segui-la com os olhos — que tolo fui! —, ela nunca voltou à direita pelo cais, mas sim à esquerda e em direcção à porta de Nesle e do Pré-aux-Clercs. Que diabo virá ela fazer aqui ao Châtelet? — Vejamos — Talvez visitar um preso, quem sabe se o próprio irmão. — Pobre rapariga! Como deve sofrer, pois será tão bondosa como linda! Valha-me Deus! Como desejo falar-lhe, para lhe perguntar francamente de que é que se trata e oferecer-lhe todo o meu auxílio. — Se for o seu irmão, confiarei o caso ao mestre e pedir-lhe-ei que me aconselhe. Quem, como ele, já se evadiu uma vez do Castelo de Santo Angelo, há-de saber bem como se sai de uma prisão. Está dito, salvo-lhe o irmão. Prestando-lhe este serviço, o irmão torna-se meu amigo para a vida e para a morte. — Perguntar-me-á, por sua vez, que poderá fazer por mim, que a tanto o obriguei. — Confessar-lhe-ei que estou enamorado de sua irmã. Apresentar-ma-á, cairei a seus pés, e veremos então se não levanta os olhos para mim.»

Uma vez entregue a tais cogitações, é fácil compreender até que ponto um coração enamorado pode seguir, sem se deter, o seu pensamento predilecto.

Tão absorvido permaneceu o nosso jovem naquele seu meditar, que o súbito bater das quatro horas, seguido do render da sentinela, lhe não causaram pequena admiração.

O novo sargento começou a sua guarda, e o nosso jovem retomou a sua. Encantado com o seu processo de matar o tempo, resolveu prosseguir, desta vez, com um tema ainda mais fecundo que o primeiro:

«Como é linda! Como é graciosa! Que pudor há nos seus movimentos! Que pureza nas suas linhas! No mundo inteiro, só o grande Leonardo da Vinci ou o divino Rafael seriam dignos de reproduzir a imagem desta casta e branca criatura; e ainda assim teriam de lançar mão do melhor do seu talento. Meu Deus! porque não me fizeste a mim pintor em vez de cinzelador, estatuário, esmaltador e ourives? Em primeiro lugar, se fosse pintor, não precisava de a ter diante dos olhos para fazer o seu retrato. Veria continuamente os seus grandes olhos azuis, os seus belos cabelos loiros, todo o seu rosto tão branco, a sua cinturinha tão frágil. Fosse eu pintor, que havia de representá-la em todos os meus quadros, como fazia Sanzio com a Fornarina, e André del Sarto com Lucrécia! Mas a verdade é que nenhuma destas duas seria digna de desatar os cordões dos seus sapatos. Primeiro, a Fornarina...»

Ainda o jovem não tinha terminado estas comparações tão vantajosas para a sua amada, quando de novo bateram horas e a segunda sentinela foi também rendida.

«Seis horas. É espantoso como o tempo passa! murmurou o jovem; e se assim passa, esperando-a, como não será estando junto dela... Oh! A sua beira o tempo deixará de existir, porque é o paraíso. Estivesse eu perto dela, olhando-a, e as horas, os dias, os meses, e a vida inteira, passariam sem eu dar conta. Que vida bem-aventurada essa, meu Deus!»

E o jovem ficou em êxtase porque, diante dos seus olhos de artista perpassou, quase real, a amada ausente.

Foi rendida a terceira sentinela.

Batiam as oito horas em todas as paróquias e as sombras começavam a descer, pois tudo nos autoriza a pensar que, há trezentos anos, o crepúsculo de Julho ocorria, como agora, pelas oito da tarde; o que agora talvez já não ocorra é a fabulosa perseverança dos namorados do século dezasseis. Mas é que, então, tudo era intenso, e as almas jovens e apaixonadas nunca paravam a meio do caminho, fosse em amor, fosse em arte, ou na guerra.

Aliás, a paciência do jovem artista (conhecemos agora a sua profissão) acabou por ser bem galardoada, pois a porta do Châtelet, abrindo-se pela vigésima vez, deu passagem àquela que ele esperava. A seu lado vinha ainda a mesma matrona, mas agora, dois alabardeiros, ostentando as armas do prebostado, faziam-lhes escolta a dez passos.

O caminho percorrido algumas horas antes foi agora tomado em sentido inverso, isto é: Ponte Change, Rua Barrillerie, Ponte S. Miguel e o cais; desta vez, porém, passaram-se os Agostinhos e, andados trezentos passos, o grupo parou diante de uma enorme porta de esquina, ao lado da qual havia uma outra pequena de serviço. A aia fez soar a aldraba, e o porteiro veio abrir. Os alabardeiros, depois de saudarem profundamente, retomaram o caminho do Châtelet, e o nosso artista, pela segunda vez no mesmo dia, encontrou-se imóvel ante uma porta cerrada.

Provavelmente, ali teria permanecido até ao romper da alva, pois começara a quarta série dos seus sonhos; mas quis o acaso que um transeunte, algo tocado da bebida, viesse embater nele.

— Eh lá, amigo! — disse o transeunte — se não sou indiscreto, dizei-me se sois homem, ou algum marco da cidade. Se fordes um marco, estais no vosso pleno direito, e tereis toda a minha consideração; mas, se sois um homem, que diabo! deixai-me passar!

— Perdoai — respondeu distraidamente o jovem —, mas sou estrangeiro nesta boa cidade de Paris, e...

— Ah, mas isso então já é outra coisa; o Francês é hospitaleiro e sou eu quem vos pede perdão; sois estrangeiro, está bem. Mas, já que me dissestes o que éreis, é justo que vos diga também quem sou. Sou estudante, e o meu nome é...

— Perdoai — interrompeu o jovem artista —, mas antes de saber quem sois, gostaria de saber onde estou.

— Mas, na porta de Nesle, meu caro amigo, e este é o Palácio de Nesle — diz o estudante, mostrando com o olhar a grande porta de que o estrangeiro não havia tirado o seu.

— Excelente. E para chegar à Rua de S. Martinho, onde moro — pergunta o nosso enamorado para dizer qualquer coisa, e na esperança de se desembaraçar do seu interlocutor —, por onde devo seguir?

— Rua de S. Martinho? Ora vinde daí comigo, pois fica justamente no meu caminho; quando passarmos na Ponte S. Miguel, indicar-vos-ei por onde deveis cortar. Pois, ia eu para vos dizer que venho agora de Pré-aux-Clercs e que me chamo...

— Sabeis a quem pertence o Palácio de Nesle? — perguntou o desconhecido.

— Essa é boa! Pois não havia de conhecer o bairro da minha Universidade?! O Palácio de Nesle, jovem, pertence ao rei, nosso senhor; mas presentemente está nas mãos do preboste de Paris, Roberto d'Estourville.

— Quê?! É aqui que mora o preboste de Paris?! — exclamou o estrangeiro.

— Ninguém vos disse que o preboste de Paris morava aqui, meu rapaz! — retorquiu o estudante. — O preboste mora no Grand-Châtelet.

— Ah!... No Grand-Châtelet! Então... é isso. Mas como é que, habitando o preboste o Grand-Châtelet, o rei lhe deixa o Palácio de Nesle?

— Aí vai a história. O rei, em tempos, tinha dado este palacete ao bailio, homem extremamente venerável, que mantinha os privilégios e julgava os processos da Universidade da maneira mais paternal; soberba função! Por desgraça, este bailio era tão justo, tão justo... para connosco, que o seu cargo acabou por ser abolido, vai para dois anos, sob pretexto de que dormia nas audiências... como se bailio não derivasse de bâille(1)..} Uma vez suprimido o seu cargo, confiou-se ao preboste o cuidado de proteger a Universidade. Belo protector, palavra de honra! Se nós nos não protegêssemos a nós mesmos!... Ora o nosso preboste — estás a ouvir, jovem? — o nosso preboste é de uma monumental rapacidade e concluiu que, sucedendo-lhe no cargo, devia também herdar as propriedades do bailio, de modo que, muito sorrateiramente, e com a protecção da Sr.a d'Étampes, foi-se apoderando tanto do grande como do pequeno Palácio de Nesle.

— E contudo, não é lá que mora, não é isto?

— Exactamente; mas creio que o grande sovina tem lá uma filha, ou sobrinha: uma bela jovem chamada Colomba, ou Colombina, que, como velho cassandro, tem encerrada num canto do Petit-Nesle.

— É verdade o que me dizes?! — disse o artista, respirando a custo, pois acabava de ouvir pela primeira vez pronunciar o nome da sua amada. — Mas isso é uma usurpação! é um abuso que brada aos Céus! Como é que é preciso tão imenso palácio para alojar uma jovem

com a sua dama de companhia!?

— E donde vens tu, jovem estrangeiro, para ainda ignorares que, se é abuso, é coisa muito corrente o habitarmos, seis letrados, numas manhosas águas-furtadas, enquanto um grande senhor pode abandonar às urtigas esta propriedade imensa, com seus jardins, seus claustros e seu jogo da péla?!

 

*1. N. T. — Bâiller significa bocejar, e bailio diz-se, em francês, bailli.

 

— Quê? Tem um jogo da péla?

— E magnífico, meu caro, magnífico!

— E não há dúvida de que este palácio pertence ao rei Francisco I?

— Tão certo como estarmos aqui. Mas que querias tu que o rei fizesse deste seu domínio?

— Que o desse a outros, já que o não habita o preboste.

— Pois bem: mandai-lho então pedir para vós.

— E porque não? Gostais de jogar a péla?

— Adoro.

— Pois estais convidado para uma partida, no domingo que vem.

— E onde?

— Aqui, no palácio.

— Ena, Senhor Intendente-mor dos castelos de el-rei! Ena, ena! Será bom saberdes ao menos o meu nome; chamo-me...

A verdade, porém, é que o estrangeiro, sabendo já tudo o que queria saber, não prestou a menor atenção à história do companheiro, que todavia lhe explicou chamar-se Tiago Aubry, ser escrivão na Universidade, e regressar de Pré-aux-Clercs, onde tinha uma entrevista marcada com a mulher do seu alfaiate, a qual não tinha comparecido, por evidente impedimento do marido; para se consolar da ausência de Simone, estivera a beber vinho de Suresne, mas podia ter a certeza que deixaria de ser cliente de um alfaiate cuja indelicadeza o condenava à solidão e à embriaguez, vício este absolutamente contrário aos seus princípios.

Quando os dois jovens chegaram à Rua da Harpa, Tiago Aubry indicou o caminho ao nosso desconhecido que, pelo menos, o conhecia tão bem como ele, e, depois de combinarem encontrar-se no domingo, ao meio-dia, junto à porta de Nesle, separaram-se, cantando um e o outro sonhando.

E o nosso artista tinha bem com que sonhar: pois só naquele dia não tinha obtido mais informações que durante as três semanas precedentes? Soubera, por exemplo, que a sua amada habitava o Petit-Nesle, era filha do preboste de Paris, Sr. Roberto d'Estourville, e se chamava Colomba. Como se vê, não perdera o seu dia.

Sempre sonhando, embrenhou-se pela Rua de S. Martinho, parando defronte de uma moradia de bela aparência, sobre cuja porta se viam esculpidas as armas do cardeal de Ferrara. Bateu três vezes.

— Quem é? — perguntou do interior, e após alguns segundos de espera, uma voz fresca, juvenil e sonora.

— Sou eu, D. Catarina — respondeu o desconhecido.

— Ascânio?

— Enfim!

A porta abriu-se e Ascânio entrou.

Uma bonita rapariga de dezoito a vinte anos, pequena, trigueira e viva, mas admiravelmente bem-feita, recebeu o vagabundo com esfuziantes manifestações de alegria. «Ora aqui vem o desertor! Ora aqui vem!» gritou correndo, ou melhor, saltando na sua frente, para o ir anunciar, apagando a candeia que trouxera e deixando aberta a porta, que Ascânio, muito menos desmiolado que ela, teve o cuidado de fechar.

O jovem, apesar da obscuridade em que o deixou a precipitação de D. Catarina, atravessou a passos seguros um vasto pátio, onde cada pavimento era emoldurado por um renque de verdura, e onde avultavam as massas sombrias de uma construção grandiosa e austera. Era bem a mansão grave, senhorial e única de um cardeal, embora este a não habitasse havia muito. De um salto, Ascânio transpôs três pequenos degraus de pedra recoberta de musgo, entrando numa imensa sala, a única onde havia luz, e que era uma espécie de refeitório mona-cal, outrora escuro, triste e nu, mas agora colorido, alegre e palpitante.

Havia, de facto, dois meses que nesta célula fria e colossal se movia, trabalhava e ria um verdadeiro mundo de actividade e boa disposição. Dois meses havia que dez bancas, duas bigornas e uma forja, improvisada ao fundo, tornavam pequeno o imenso salão; pelas paredes, acinzentadas e despidas, viam-se agora desenhos, moldes, pranchas carregadas de pinças, martelos e limas: molhos de espadas de punhos maravilhosamente cinzelados e lâminas traspassadas de caprichosos recortes, troféus de capacetes, couraças e escudos adamascados, em ouro, com relevos representando amores de deuses e deusas (como se se quisesse, pelos assuntos representados, fazer esquecer o uso a que os objectos se destinavam); por grandes janelas escancaradas podia o sol entrar ali livremente; a atmosfera vibrava com as canções daqueles joviais e habilíssimos artífices.

O refeitório do cardeal havia-se, pois, transformado no atelier de um ourives. E, apesar de tudo, nesta noite calma de Julho de 1540, a religiosidade dominical havia restituído momentaneamente à sala trepidante aquela mesma tranquilidade em que permanecera um século. Mas a desordem de uma mesa, onde os restos de excelente ceia eram alumiados por um candeeiro que parecia retirado das escavações de Pompeios, tal a pureza e elegância da sua forma, atestava bem que, se os temporários moradores da mansão cardinalícia por vezes observavam o descanso, não eram de maneira nenhuma partidários do jejum.

Quando Ascânio entrou havia quatro pessoas no salão. Essas quatro pessoas eram: uma velha criada, que levantava a mesa, Catarina, que reacendia a candeia, um jovem, que desenhava a um canto e esperava pela candeia que Catarina lhe retirara, e o mestre, de pé, com os braços cruzados e apoiando à forja. Era este último que logo teria notado quem quer que entrasse no atelier. Efectivamente, era tal a vida e a possança que emanavam desta personagem, que teria atraído a atenção mesmo dos que lha quisessem recusar. Era um homem magro, alto e vigoroso, de cerca de quarenta anos; mas seria necessário o cinzel de Miguel Angelo ou o pincel de Ribera, a delinear o seu perfil, digno e enérgico, ou pintar aquele rosto bronzeado e cheio de vida interior, para fixar o seu aspecto soberano e audacioso. A sua fronte era larga e ensombrada por um sobrecenho espesso e sempre pronto a enrugar-se; o seu olhar, límpido, franco e incisivo, lançava às vezes clarões sublimes; o seu sorriso, cheio de bondade e clemência, a despeito de certa propensão zombeteira, encantava e intimidava ao mesmo tempo a mão, com que, em gesto peculiar, afagava a barba e o bigode pretos, não era precisamente pequena, mas nervosa, ágil, alongada, habilidosa, sabendo prender, e, contudo, fina, aristocrática, elegante; em suma: na sua maneira de olhar, de falar, de mover a cabeça, nos seus gestos vivos e expressivos, mas não bruscos, e até na atitude descontraída que tomou ao entrar Ascânio, se traduziu claramente uma enorme força; o leão em repouso nem por isso deixava de ser o leão.

Quanto a Catarina e ao aprendiz que desenhava, formavam entre si o contraste mais singular. Ele, sombrio, taciturno, de fronte estreita e já sulcada de rugas, olhos semicerrados; ela, alegre como um pássaro e viçosa como uma flor, deixando coar constantemente através das pálpebras uma certa malícia, e através dos lábios a alvura maravilhosa dos seus dentes. O aprendiz, encolhido a um canto, lento e langoroso, parecia economizar os movimentos; Catarina ia, vinha e rodopiava sem demorar um segundo no mesmo lugar, tal era a pujança e a vida que de si transbordavam, e tanta necessidade tinha de movimento, à falta de emoções.

Assim, era ela o duende de casa; uma autêntica cotovia, pela vivacidade e pelo pequenino grito vivo e cristalino, entregando-se de tão boa vontade, com tanto abandono e imprevidência, àquele jeito de viver, que o mestre lhe passou um dia a chamar Scozzone, palavra italiana que ainda hoje quer dizer resvaladouro. Aliás, toda graça e gentileza, com uma petulância quase infantil, Scozzone era a alma do atelier; quando Scozzone cantava, calavam-se todos; quando ria, todos gostavam de se rir com ela; e obedeciam-lhe sem réplica se ela dava qualquer ordem, se bem que não era nem muito caprichosa nem muito exigente; era, afinal, tão franca e inocentemente feliz, que, comunicando o seu bom humor aos que a rodeavam, todos se sentiam alegres só de a ver tão contente.

Provavelmente ainda teremos que nos referir mais tarde à história de Scozzone; órfã e nascida do povo, a sua infância foi votada à aventura; mas Deus protegeu-a. Destinada a ser a alegria de todos, deparou com um homem para quem veio a tornar-se a felicidade.

E, apresentadas estas novas personagens, retomemos agora o fio do nosso relato no ponto onde o interrompemos.

— Donde nos chegas tu, corredor de uma figa? — perguntou o mestre a Ascânio.

— Donde chego? Pois de grande caminhada, em vosso proveito.

— Desde a manhã?!

— Desde a manhã.

— Diz antes que te puseste à cata de qualquer aventura.

— Que aventura? — perguntou Ascânio.

— Eu é que sei!...

— E que assim fosse, vede lá que grande mal!... — disse Scozzone. — Mesmo que não corresse atrás de aventuras, é tão bonito rapaz que seriam as aventuras a correr atrás dele.

— Scozzone!... — interrompeu o mestre franzindo o sobrolho.

— Ora vá! não vos queirais mostrar tão curioso com a vida deste pobre rapaz (e com a mão levantou o queixo de Ascânio). Não faltava mais nada! Valha-me Deus... como vindes pálido! Se calhar nem sequer ceastes, senhor vagabundo...

— É verdade! não ceei! — exclamou Ascânio. — Esqueci-me.

— Ah... então, mestre, sou do vosso parecer; se se esqueceu da ceia é que está enamorado. Roberta! Roberta! Depressa: dá já de cear ao Sr. Ascânio.

A criada trouxe uns excelentes sobejos da ceia, e sobre eles se precipitou o nosso jovem, a quem as longas permanências ao ar livre tinham positivamente aberto o apetite. Scozzone e o mestre olhavam-no sorrindo; aquela com um carinho de irmã, este com uma ternura de pai. Quanto ao desenhador, aparentemente absorvido no seu trabalho, ao canto da sala, apenas levantara a cabeça quando Ascânio entrou, mas mal Scozzone lhe restituiu a candeia em que pegara para ir abrir a porta, baixou novamente a cabeça, prosseguindo no trabalho.

— Pois dizia-vos, mestre, que foi por vossa causa que não parei em todo o santo dia — recomeçou Ascânio, que percebera uma ponta de malícia na observação do mestre e de Scozzone, e desejando levar a conversa para outro campo que não o dos seus amores.

— Ora vejamos lá como é que motivei toda essa azáfama!

— Não dissestes ainda ontem que a luz aqui é má e que precisáveis de outro atelier?...

— De facto...

— Pois bem: acabo de vos descobrir um!

— Estás a ouvir, Pagolo?... — exclamou o mestre, voltando-se para o absorvido trabalhador.

— Que dizeis, mestre? — perguntou aquele, levantando pela segunda vez a cabeça.

— Vá! deixa lá agora o desenho e vem ouvir isto. Ascânio descobriu outro atelier, estás a ouvir?

— Perdoai, mestre, mas daqui posso ouvir muito bem o que o meu amigo Ascânio vos contar. Gostava de acabar este estudo; eu creio que quem cumpriu meticulosamente os deveres de cristão não peca se ocupar os seus ócios dominicais em qualquer tarefa útil: trabalhar

é rezar.

— Pagolo, meu amigo — diz o mestre, abanando a cabeça e num tom mais triste do que zangado —, melhor farias, acredita, se trabalhasses com mais coragem e assiduidade durante a semana, divertindo-te como bom companheiro ao domingo, em lugar de preguiçares durante os dias úteis, e querendo depois sobressair hipocritamente dos outros, com um ardor fingido, nos dias santificados; mas tu és o único senhor dos teus actos: procede pois como te parecer. Ascânio, meu filho — prosseguiu o mestre com uma voz onde havia uma infinita doçura e um grande carinho —, que me dizias tu?

— Dizia que vos descobri um atelier magnífico.

— Qual?

— Conheceis o Palácio de Nesle?

— Muito bem; isto é... tenho lá passado sem entrar, muitas vezes.

— E a sua aparência agrada-vos?

— Creio bem que sim! Mas...

— Mas... quê?

— Esse palácio não está entregue a ninguém?!...

— Está, ao preboste de Paris, Sr. Roberto d'Estourville, que dele se apoderou sem direito. Aliás, para que não conserveis qualquer sombra de escrúpulo, dir-vos-ei que ainda lhe deixaríamos o Petit-Nesle, onde creio que habita alguém da sua família. E ficava para nós o Grand-Nesle, com os seus pátios, os seus claustros, os seus jogos da bola e o seu jogo da péla.

— Pois há lá um jogo da péla?!

— Mais belo que o de Santa-Croce de Florença.

— Per Baccol é o meu jogo preferido, bem o sabes.

— Se sei, mestre!... E além do jogo da péla, uma situação magnífica: ar por todos os lados; e que ar! Ar do campo; não como o deste antro medonho, onde criamos bolor e onde o sol se esquece de nós; lá, teremos o Pré-aux-Clercs de um lado e o Sena do outro, e o rei, o vosso grande rei, a dois passos, no seu Palácio do Louvre.

— Mas a quem diabo pertence esse palacete?

— Ora! a quem havia de pertencer?... Ao rei.

— Ao rei?!... Ora volta a dizer isso, meu rapaz!

— Como lhe disse, o Palácio de Nesle é do rei. Só resta saber se ele consentirá em vos ceder tão soberba mansão.

— Quem?! o rei?! Ah! Ah! Ah!... Como é o seu nome, Ascânio?

— Que eu saiba, é Francisco I.

— O que significa que, daqui a oito dias, o Palácio de Nesle será meu.

— Mas... e se o preboste se irrita?

— E a mim que me importa?

— Suponha que ele não quer restituir o que lhe foi confiado...

— Se ele não quer?!... Como é o meu nome, Ascânio?

— O vosso nome é Benvenuto Cellini, mestre.

— O que significa que, se esse honrado preboste não quiser fazer a coisa às boas, far-se-lhe-á às más. E agora, toca a deitar, que amanhã, com dia, pensaremos mais e melhor sobre o assunto.

Acedendo a este convite do mestre, todos se retiraram, excepto Pagolo, que, no seu canto, ficou ainda a trabalhar mais algum tempo; mas, logo que lhe pareceu que já todos deviam estar deitados, o aprendiz levantou-se, olhou à sua volta, aproximou-se da mesa, e, enchendo um grande copo de vinho, bebeu-o de um trago, indo também deitar-se em seguida.

 

         UM OURIVES DO SÉCULO XVI

Uma vez que já aqui pronunciámos o nome de Benvenuto Cellini e que já lhe fizemos o retrato, permita-nos agora o leitor que, para melhor nos embrenharmos no assunto desta história, façamos uma pequena digressão a respeito deste homem estranho que, havia dois anos, habitava em França, e que está, como se adivinha, destinado a tornar-se um dos principais personagens deste relato.

Mas, ainda antes disso, digamos o que era um ourives em pleno século XVI.

Há uma ponte em Florença a que chamam a Ponte Velha e que, ainda hoje, está sobrecarregada de casas: naqueles recuados tempos, estas casas eram todas lojas de ourives.

Eram ourivesarias, mas não como as lojas que hoje assim designamos; a ourivesaria, hoje, é um ofício, ao passo que dantes era uma nobre arte.

Nada havia mais maravilhoso do que aquelas antigas lojas, com os seus mil objectos belíssimos: incomparáveis taças de ónix, que circundavam fantásticos dragões enfrentando-se com as asas azulinas consteladas de oiro, de fauces abertas como quimeras e ameaçando-se com os seus olhos de rubis. Havia também gomis de ágata, a cujos pés se enrolavam festões de hera, que, encurvando-se no alto, com as suas folhas de esmeraldas, formavam um gracioso ninho, onde um pássaro dos trópicos, maravilhosamente esmaltado, parecia palpitar e querer soltar o canto. Viam-se belas urnas de lápis-lazúli, onde se debruçavam, como que para beber, dois lagartos tão habilmente cinzelados, que julgaríamos ver os reflexos cambiantes das suas couraças de oiro, imaginando que, ao menor ruído, fugiriam a esconder-se numa fractura da parede. Não faltavam cálices, custódias, medalhas de bronze, prata e ouro, tudo esmaltado de pedras preciosas, como se, naquela época, para achar rubis, topázios, carbúnculos e diamantes bastasse remexer ao de leve nas areias dos rios ou levantar a poeira dos caminhos. Aqui e ali, espalhadas, viam-se graciosas ninfas, náiades formosas, deuses e deusas, um autêntico e resplandecente Olimpo, a par de crucifixos e Calvários; lado a lado, figuras da Mater Dolorosa e de Vénus, de Cristo e de Apolo, de Júpiter lançando o raio e de Jeová criando o Mundo; e tudo isto não só primorosamente executado mas poeticamente concebido, admirável não só como jóias para ornar toucadores de mulher, mas como obras-primas para imortalizar o reino de um monarca ou o génio de uma nação.

É certo que os mestres-ourives desta época se chamavam Donatello Ghiberti, Ghirlan-dajo e Benvenuto Cellini.

Ora o próprio Benvenuto Cellini deixou relatada, nas suas memórias tão curiosas, toda esta vida aventurosa dos artistas do século XVI, quando Ticiano pintava revestido da sua armadura, e Miguel Angelo esculpia sem descingir a espada, quando Masaccio e Dominiquino morriam envenenados, e Cosme I se fechava para descobrir a têmpera que daria ao aço a faculdade de cortar o pórfiro.

Para conhecermos este homem, focaremos apenas um episódio da sua vida: o que motivou a sua ida para França.

Benvenuto encontrava-se em Roma, a pedido de Clemente VII, trabalhando com afã e paixão num precioso cálice que Sua Santidade lhe havia encomendado; mas, como desejava dar o melhor da sua arte e do seu talento à execução daquela preciosa jóia, ia esta nascendo com grande lentidão. Ora Benvenuto tinha, como se compreende, grande número de invejosos, tanto por causa das importantes encomendas que lhe faziam duques, reis e papas, como pela espantosa mestria com que as executava. Sucedeu então que um dos seus émulos, chamado Pompeio, não tendo outra obra a fazer que caluniar, resolveu tirar partido da lentidão do trabalho de Cellini a fim de o colocar mal perante o papa, o que passou a fazer a toda a hora e todos os dias, ora particular, ora publicamente, assegurando a Sua Santidade que jamais teria o seu cálice acabado, até porque Cellini se ocupava noutras encomendas em detrimento da sua.

Tanto disse e fez este honrado Pompeio que, um dia, ao vê-lo entrar no seu atelier, Benvenuto percebeu imediatamente, pelo seu ar de satisfação, que era portador de uma má notícia.

— Pois meu estimadíssimo colega — disse ele —, venho desobrigar-vos de um pesado encargo; Sua Santidade, entendendo que, se tanto tardais em lhe entregar o seu cálice, não é por falta de zelo, mas de tempo, julgou por bem aliviar-vos da outra ocupação que tendes, como gravador da Casa da Moeda. Ficareis assim com menos nove ducados por mês, mas com uma hora a mais por dia para trabalhardes no seu cálice.

Benvenuto Cellini sentiu um súbito e veemente desejo de atirar o engraçado pela janela fora, mas soube-se conter de tal modo que Pompeio, não divisando a mais pequena contracção no seu rosto de bronze, imaginou que o golpe o tinha deixado indiferente. E prosseguiu:

— E além disso, apesar de quanto lhe disse sempre em vosso favor, Sua Santidade pede-vos que lhe entregueis o cálice no estado em que estiver. Receio muito, caríssimo Benvenuto, que tenha a intenção de o mandar acabar por outrem...

— Ah, isso não! — gritou o mestre ourives, endireitando-se como se tivesse sido mordido por uma serpente. — O cálice é tão meu como a Casa da Moeda é do papa. O mais que Sua Santidade me pode exigir são os quinhentos escudos que me adiantou; porque do meu trabalho disponho eu como me apetecer.

— Cautela, mestre! — disse Pompeio — olhai que essa vossa atitude vos pode abrir as portas da prisão!

— Sr. Pompeio, sois um burro chapado — respondeu Benvenuto Cellini.

Pompeio saiu furioso; e no dia seguinte, dois camerieri do Santo Padre apresentaram-se a Benvenuto Cellini.

— O papa mandou-nos vir ter convosco para que nos entregueis o cálice ou para que nos acompanheis à prisão.

— Senhores — respondeu Benvenuto —, muito folgo que sejais vós, os seus archeiros, a trazer-me a mensagem do papa, por ser essa uma honra que me era devida. Conduzam-me pois à prisão, estou pronto. Mas deixem-me preveni-los de que não será com isso que vosso amo há-de conseguir o cálice.

E Benvenuto acompanhou-os a casa do governador, que devia ter recebido ordens especiais para o convidar a jantar. Durante a refeição, o governador insistiu calorosamente com Benvenuto para que quisesse agradar ao papa, e que entregasse o seu trabalho; chegou mesmo a afirmar-lhe que, com esta sua submissão, Clemente VII, embora violento e obstinado, se apaziguaria imediatamente; mas Benvenuto respondeu que já por seis vezes tinha mostrado o cálice começado a Sua Santidade, e que isso era tudo o que Clemente VII podia exigir dele; acrescentou ainda que conhecia bem Sua Santidade, e que não podia fiar-se nele, podendo até supor que, uma vez de posse do cálice, poderia aproveitar-se da ocasião para o dar a acabar a qualquer imbecil, que logo o estragaria. No entanto, declarou novamente, estava pronto a restituir ao papa os quinhentos escudos que lhe havia adiantado.

Dito isto, Benvenuto passou a responder a todas as insistências do governador com desconcertantes elogios à sua mesa e aos seus vinhos.

Depois do jantar, todos os seus conterrâneos, e todos os seus amigos mais íntimos, todos os seus aprendizes, conduzidos por Ascânio, vieram suplicar-lhe que não corresse à sua própria ruína obstinando-se contra Clemente VII; mas Benvenuto respondeu-lhes que desejava, havia muito tempo, averiguar se um mestre-ourives ainda podia ser mais teimoso do que um papa; e já que se lhe apresentava tão bela ocasião, prosseguiu, não havia de perdê-la, com receio de que nunca mais se lhe proporcionasse tão bom ensejo.

Retiraram-se os seus conterrâneos encolhendo os ombros, os seus amigos declarando que estava doido e Ascânio chorando.

Felizmente, porém, Pompeio não se esquecia de Cellini, de modo que, durante todo este tempo, esteve dizendo ao papa:

— Mui Santo Padre, deixai agir este vosso humilde criado; vou mandar já dizer àquele teimoso que, já que assim o quer, mande a minha casa os quinhentos escudos. Como é um perdulário e um gastador, é evidente que não dispõe de tal quantia, e ver-se-á obrigado a entregar-vos o cálice.

Clemente VII aprovou este expediente, dizendo a Pompeio que agisse como entendesse. E assim, naquela mesma noite, quando Benvenuto Cellini era conduzido aos aposentos que lhe estavam destinados, veio um camariere dizer-lhe que Sua Santidade aceitava o seu ultimato, desejando receber imediatamente ou os quinhentos escudos ou o cálice.

Benvenuto pediu que o conduzissem à sua loja, o que fizeram quatro suíços além do camariere. Uma vez no seu quarto, Benvenuto tirou uma chave do bolso, com que abriu um pequeno armário de ferro embutido na parede, mergulhou a mão num grande saco e tirou os quinhentos escudos, que entregou ao camariere, depois do que o pôs na rua, bem como aos quatro suíços.

Diga-se, porém, em louvor de Benvenuto, que cada suíço recebeu um escudo do mestre-ourives, a título de gratificação, pelo que os quatro se não retiraram sem beijar as mãos de Cellini — diga-se, também, em louvor dos quatro suíços.

Voltou o camariere para junto do Santo Padre, a quem entregou os quinhentos escudos. Clemente VII ficou com isto tão desesperado que, enchendo-se de cólera, se pôs a injuriar Pompeio.

— Vai já ter com o meu grande cinzelador à sua loja, animal! — disse-lhe ele. — Diz-lhe todas as doçuras de que a tua estúpida ignorância for capaz, e acentua-lhe sobretudo que, se aceder em me acabar o cálice, terá de mim tudo o que quiser.

— Mas, Santidade — disse Pompeio —, não seria melhor deixar isso para amanhã de manhã?

— Já é demasiado tarde hoje mesmo, imbecil! e não quero que Benvenuto adormeça com o menor rancor no coração; faz já o que te mando, a ver se amanhã, ao levantar-me, já terei uma resposta favorável.

Saiu Pompeio humilhado do Vaticano, e dirigiu-se à loja de Benvenuto, que achou fechada. Bateu e, como ninguém respondesse, espreitou através do buraco da fechadura e das frinchas das portas, e passou revista a todas as janelas para ver se ainda haveria luz em alguma, mas, vendo que tudo estava mergulhado na maior escuridão, atreveu-se a bater segunda vez, mais forte que da primeira, e, depois, uma terceira vez, ainda com mais violência.

Abriu-se então uma das janelas do primeiro andar e apareceu Benvenuto, em camisa de dormir e de arcabuz em punho.

— Quem diabo está aí!? — perguntou o mestre-ourives.

— Eu — respondeu o mensageiro do papa.

— Tu quem?! — retorquiu Benvenuto que, no entanto, o reconhecera perfeitamente.

— Eu, Pompeio.

— Mentes pela gorja! — disse-lhe Benvenuto. — Conheço Pompeio lindamente: é demasiado cobarde para se atrever a andar a uma hora destas pelas ruas de Roma.

— Oh, caríssimo Cellini, juro-vos!...

— Cala-te! que tu não passas de um salteador; tomaste o nome daquele pobre diabo só para que eu te abra a porta, e tu me roubes.

— Mestre Benvenuto! eu morra...

— Se dizes mais uma só palavra — exclamou Benvenuto, baixando o arcabuz na direcção do seu interlocutor —, morrerás mesmo!

Pompeio não quis ouvir mais: deitou a correr gritando que o queriam assassinar e desapareceu na esquina da rua mais próxima.

Quando o viu desaparecer, Benvenuto voltou a fechar a janela; e, depois de ter suspendido de um prego o arcabuz, tornou a deitar-se, não sem se rir do enorme susto que pregara ao pobre Pompeio.

No dia seguinte, quando descia à sua loja, aberta já uma hora antes pelos seus aprendizes, Benvenuto Cellini avistou Pompeio que, no outro lado da rua, como sentinela, o esperava desde o romper da alva.

Ao reconhecer Cellini, acenou-lhe com a mão o cumprimento mais afectuoso que jamais dirigira a alguém.

— Ah! — disse Cellini — sois vós, meu caro Pompeio? Juro-vos que esta noite estive quase para fazer pagar bem cara a ousadia de um insolente que se queria fazer passar pela vossa pessoa.

— Ah, sim?!... — disse Pompeio num sorriso amarelo, e à medida que se aproximava da loja. — Como foi isso?

Benvenuto entregou-se então ao malicioso prazer de lhe lembrar toda a cena daquela noite. Como Benvenuto lhe tinha chamado cobarde durante a aventura nocturna, Pompeio absteve-se, naturalmente, de confessar que era ele próprio que estivera a falar com o mestre-ourives. Este, depois de o desfrutar por um bom pedaço, perguntou que feliz acaso lhe dava a honra de tão matinal visita.

Pompeio deu então o recado do papa, omitindo, é claro, as pouco lisongeiras expressões de Sua Santidade a respeito da sua infeliz pessoa.

Desanuviou-se o rosto de Benvenuto Cellini à medida que Pompeio falava. Clemente VII cedia, era evidente. O mestre-ourives tinha sido ainda mais obstinado que o papa. Quando viu que o mensageiro acabara o seu discurso:

— Respondei a Sua Santidade — disse Benvenuto — que terei a maior honra em lhe obedecer, e fazer tudo para voltar a ganhar as suas boas graças, que perdi, não por culpa minha, mas por maldade dos invejosos. Quanto a vós, Sr. Pompeio, como o papa não tem falta de criados, conjuro-vos, no vosso próprio interesse, a que façais sempre que seja outro, e não vós, a trazer-me, de futuro, as mensagens de Sua Santidade; se quereis conservar tão boa saúde, Sr. Pompeio, não vos torneis a intrometer no que me diz respeito; enfim, se tendes alguma piedade de vós mesmo, não ouseis voltar a aparecer no meu caminho.

Pompeio não quis ouvir mais, e apressou-se em ir levar a Clemente VII a resposta de Benvenuto Cellini, suprimindo, é claro, a peroração final.

Tempos depois, para se reconciliar completamente com Benvenuto Cellini, Clemente VII encomendou-lhe a sua efígie. O mestre-ourives cunhou-a em bronze, em prata e em ouro, depois do que lha levou, o papa ficou tão maravilhado que, não podendo dominar a sua admiração, exclamou que nem os Antigos haviam jamais executado uma tão bela medalha.

— Pois bem, Santidade — disse Benvenuto —, se há tempos eu não tivesse mostrado uma certa firmeza, estaríamos nós a esta hora de relações cortadas: porque eu jamais vos teria perdoado, e vós teríeis perdido o mais dedicado servidor. Bem faríeis, Santidade, de vos lembrardes, de vez em quando — prosseguiu Benvenuto — daquele velho ditado que diz que se há-de sangrar sete vezes, antes de cortar uma só que seja... E faríeis igualmente bem se vos deixásseis iludir menos facilmente pelas más-línguas, pelos invejosos e pelos caluniadores; disse-vos isto para vosso governo; e não voltemos a falar no assunto, mui Santo Padre.

Foi assim que Benvenuto perdoou a Clemente VII, coisa que decerto não teria feito se o não amasse tanto; mas, conterrâneo do papa, era-lhe muito afeiçoado.

Não admira, portanto, a sua grande desolação quando, alguns meses depois deste incidente, o papa morreu, de súbito. Este homem de ferro desfez-se em pranto quando soube a notícia, e chorou durante oito dias como uma criança.

Esta morte foi, aliás, duplamente funesta para o pobre Benvenuto, pois no próprio dia das exéquias de Clemente VII se encontrou com Pompeio, que não voltara a ver depois do solene e ameaçador convite que lhe fizera de nunca mais surgir no seu caminho.

Faltou dizer que, depois das ameaças de Cellini, Pompeio não se atrevia a sair de casa senão acompanhado por doze homens, a quem dava o mesmo soldo que o papa à sua guarda suíça, de modo que cada passeio seu pela cidade lhe vinha a custar uns dois ou três escudos; e manda a verdade que se diga que, mesmo rodeado pelos seus esbirros, Pompeio tremia à simples ideia de vir a encontrar-se com Benvenuto, até porque não ignorava que teria que se haver com Sua Santidade se numa rixa com os seus guarda-costas o mestre-ourives ficasse ferido. Mas Clemente VII acabava de falecer, como dissemos, e esta morte dava uma certa ousadia a Pompeio.

Benvenuto tinha ido a S. Pedro beijar os pés do papa defunto, e ao regressar pela Rua dei Banchi na companhia de Ascânio e Pagolo, achou-se frente a frente com Pompeio e os seus doze homens. Ante a aparição do seu inimigo, Pompeio tornou-se muito pálido; mas, olhando à sua volta, e ao ver-se bem rodeado, enquanto Benvenuto não trazia consigo mais que duas crianças, recobrou coragem e, parando, dirigiu a Benvenuto uma irónica saudação de cabeça, enquanto acariciava com a mão o cabo do seu punhal.

À vista daquela malta que ameaçava o seu mestre, Ascânio levou a mão à espada, enquanto Pagolo fingia que olhava para outro lado; mas Benvenuto, que não queria expor o seu aluno predilecto a uma luta tão desigual, segurou-lhe a mão, obrigando-o a embainhar a espada já meio saída, e continuou o seu caminho como se nada tivesse visto, ou como se o que vira o tivesse deixado indiferente. Estranhou Ascânio aquela atitude do seu mestre, mas como este se retirava, retirou-se com ele. Pompeio, triunfante, fez uma profunda saudação a Benvenuto, e continuou o seu caminho, sempre rodeado pelos seus esbirros, que imitaram as suas fanfarronadas.

Benvenuto mordeu os lábios até fazer sangue, embora os outros não pudessem perceber mais do que um sorriso. Isto era desnorteante para quem quer que conhecesse o carácter irascível do ilustre mestre-ourives.

Mas ainda não tinha dado cem passos quando, achando-se em frente da loja de um colega, entrou, a pretexto de observar um vaso antigo acabado de achar nos túmulos etruscos de Corneto, ordenando aos seus dois discípulos que continuassem a andar, pois ele depressa se lhes reuniria na sua loja.

É claro que isto não passou de um pretexto para afastar Ascânio, pois mal o viu desaparecer na esquina mais próxima com o companheiro (por quem aliás se não preocupava tanto, sabendo que a sua coragem o não levaria longe), pousou o vaso na prateleira donde o tinha tirado e apressou-se a sair daquela loja.

Em três saltos, Benvenuto achou-se novamente na rua onde tinha encontrado Pompeio; mas Pompeio já lá não estava; Benvenuto perguntou que caminho seguira, lançando-se logo no seu encalço como o melhor podengo que recobra um rasto.

Pompeio tinha parado à porta de uma botica, à esquina da Chiavica, e deliciava-se em contar ao honrado boticário a sua bravata a Benvenuto, quando, de súbito, viu surgir o seu inimigo com os olhos chamejantes e a fronte inundada de suor.

Ao avistar Pompeio, Benvenuto soltou um grito de triunfo, e aquele estacou no meio da frase.

Era evidente que algo de terrível iria passar-se.

Os doze guarda-costas rodearam rapidamente o seu senhor, desembainhando as espadas. Era algo de muito insensato um homem só atrever-se a atacar treze indivíduos bem armados, mas Benvenuto era, como dissemos, uma destas naturezas leoninas que nem se dão ao trabalho de contar os seus adversários. Contra as treze espadas que o ameaçavam, desnudou apenas um pequeno punhal que sempre o acompanhava, e lançou-se no meio do bando, arrebatando duas ou três espadas com um braço e derrubando um ou dois homens com o outro, com tal rapidez que, num abrir e fechar de olhos, se achou junto de Pompeio, que agarrou pela gola; mas logo o cerco se cerrou sobre os dois.

Não se viu então mais do que um confuso redemoinho volvendo e revolvendo sobre si próprio, donde saíam gritos, e por cima do qual se via o agitar das espadas. Por instantes, esta mó viva rolou pelo chão, informe e desordenada, mas, por fim, um homem se ergueu, soltando um brado de vitória, e, com um esforço admirável, tal como entrara no grupo saiu, ensanguentado, é certo, mas brandindo também a escorrer sangue o seu pequeno punhal: era Benvenuto Cellini.

Estendido no pavimento da rua, em convulsões de agonia, estava, agora que os esbirros se separavam, um corpo com duas punhaladas: uma abaixo da orelha, a outra acima da clavícula esquerda, entre o esterno e a espádua. Ao fim de poucos segundos expirou: era Pompeio.

Outro que não Benvenuto, depois de tal proeza, ter-se-ia logo posto a salvo, mas o mestre-ourives, segurando o punhal com a mão esquerda, desembainhou com a direita a espada e dispôs-se a enfrentar resolutamente os doze esbirros.

Mas estes já nada tinham ali a fazer, nem contra Benvenuto, por ter morrido aquele que lhes pagava para o defenderem; primeiro, já não tinham quem defender, segundo, já não tinham de quem receber o soldo. Como um amedrontado bando de lebres, deitaram a fugir, abandonando o cadáver de Pompeio.

Foi então que, surgindo, Ascânio se lançou nos braços de seu mestre; a história do vaso etrusco não conseguira iludi-lo, e por isso voltava ao encontro do mestre; mas é de crer que, por mais rápido que tivesse acorrido, chegaria sempre atrasado alguns segundos.

 

         DÉDALO

Acompanhado por Ascânio, retirou-se Benvenuto, não pouco apreensivo, e não pelos ferimentos que recebera, pois eram sem gravidade, mas pelo que iria passar-se. Seis meses antes, havia também dado morte a Guasconti, o assassino de seu irmão, valendo-lhe a protecção do papa Clemente VII; aliás, aquela morte podia considerar-se uma espécie de represália; mas, desta vez, falecido o seu protector, o caso tornava-se bem mais espinhoso para Benvenuto.

É certo que os remorsos não apoquentavam o nosso mestre-ourives, mas não vão os leitores por isso pensar mal dele; é que, tendo morto dois homens, mesmo três, os costumes do tempo obrigavam-no a recear mais a ronda policial do que a cólera de Deus. Nisto, Benvenuto era bem um homem de 1540 — um homem do seu tempo, como dizem os Alemães. Que querem? Naquela época, morrer preocupava tão pouco, que matar não afligia muito mais; se nós somos, ainda hoje, corajosos, eles eram, então, temerários; se hoje somos homens feitos, eles, então, eram jovens. A vida era tão abundante, naquela época, que trasbordava: perdia-se, dava-se, vendia-se e aceitava-se, com soberana indiferença e uma grande leviandade.

Existiu, por estes tempos, um escritor cujo nome ficou sinónimo de traição, de crueldade e de todas as infâmias; foi preciso que chegasse o século dezanove, o mais imparcial de quantos viveu a Humanidade, para reabilitar esse escritor, grande patriota e homem de coração. E contudo, a única culpa de Nicolau Maquiavel foi ter pertencido a uma época em que a força e o sucesso eram tudo; em que se dava valor aos factos e não às palavras, em que os homens iam direitos aos fins, sem se preocuparem com os meios nem com os raciocínios. Assim procederam o soberano César Bórgia, o pensador Maquiavel e o mestre-artífice Benvenuto Cellini.

Um dia, aparecera na Praça de Cesena, cortado em quatro, o cadáver de Ramiro Orço, grande personagem da Itália de então. A república florentina sentiu-se logo na necessidade de mandar investigar o caso e, para isso, os oito magistrados supremos enviaram uma carta a Maquiavel, então seu embaixador, que lhes respondeu laconicamente:

Magníficos Senhores:

Nada tenho a dizer-vos sobre a morte de Ramiro Orço, a não ser que César Bórgia é o príncipe que melhor sabe elevar ou desgraçar os homens, segundo os seus méritos.

Maquiavel.

Benvenuto seguia a teoria exposta pelo ilustre secretário da república florentina. O genial Benvenuto e o soberano César Bórgia julgavam-se ambos acima das leis, pelo direito natural que lhes dava a força do seu talento e do seu carácter. Para eles, o justo e o injusto aferiam-se apenas por aquilo de que eram ou não capazes, e ignoravam totalmente o que hoje se entende por «direito» e «dever».

Se um homem incomodava, suprimia-se esse homem.

Hoje, a Civilização dá-lhe a honra de o comprar...

Mas, naquele tempo, refervia tanto sangue nas veias das jovens nações, que derramá-lo era pura medida de saúde. Os homens batiam-se instintivamente, e muito menos pela pátria ou pelas damas, do que apenas por se baterem, nação contra nação, homem contra homem. Benvenuto fazia guerra a Pompeio, como Francisco I a Carlos V. A França e a Espanha batiam-se em duelo tanto em Marignan como em Pavia; e isto com a maior simplicidade, sem preâmbulos, sem frases nem lamentações.

Da mesma maneira, o génio exercia-se como uma faculdade inata, um poder absoluto, ou realeza de direito divino; a arte era tudo o que havia de mais natural no século XVI.

Não estranhemos pois estes dois homens que com nada se admiravam; mas, se quiséssemos explicar os seus homicídios, as suas facécias ou os seus desvios, poderíamos servir-nos de uma frase que nos nossos dias é suficiente para explicar e justificar muitas coisas: «É costume.»

Benvenuto fizera o que então era costume fazer-se: Pompeio incomodava Benvenuto Cellini, Benvenuto Cellini tinha suprimido Pompeio.

Mas a polícia inquiria às vezes a respeito destas supressões; se é certo que não protegia a vida de ninguém, tinha de vez em quando a veleidade de querer vingar algumas mortes.

Foi o que aconteceu desta vez. Benvenuto regressara a casa, e achava-se queimando alguns papéis e metendo dinheiro na algibeira, quando se lhe apresentaram os esbirros do papa, que o conduziram ao Castelo de Santo Angelo. Como este castelo era a prisão dos fidalgos, Benvenuto consolou-se.

Mas outra consolação, não menos eficaz, sentiu ao transpor o limiar do castelo, pensando que um homem dotado de tão fértil imaginação como a sua bem podia, tarde ou cedo, descobrir maneira de sair de Santo Angelo.

Chegou mesmo a confiar estes seus pensamentos ao governador, que, sentado a uma mesa coberta de pano verde, tentava pôr em ordem vários montes de papéis:

— Senhor Governador, reforçai ferrolhos, grades e sentinelas; encerrai-me na cela mais alta, ou então na mais profunda das masmorras; apertai dia e noite a vigilância, que eu vos prometo que nem assim podereis evitar que eu me evada.

O governador levantou a cabeça para ver o prisioneiro que lhe falava com tão soberba arrogância, e reconheceu Benvenuto Cellini, que, três meses antes, tivera a honra de sentar à sua mesa.

Apesar do anterior conhecimento, ou talvez por causa dele, a alocução de Benvenuto deixou o governador estupefacto. Era um florentino chamado Jorge, cavaleiro dos Ugolini, homem excelente mas de espírito débil. Refeito do primeiro espanto, mandou conduzir Benvenuto ao quarto mais elevado do castelo. O telhado deste quarto era o próprio terraço, onde uma sentinela fazia a sua guarda, havendo outra logo abaixo do nível da muralha.

O governador, depois de ter feito notar todos estes pormenores ao prisioneiro, disse-lhe:

— Meu caro Benvenuto: fechaduras podem abrir-se, portas podem forçar-se; pode minar-se o solo de uma masmorra subterrânea, furar-se uma parede; subornam-se as sentinelas, embriagam-se os carcereiros, mas, a não ser que se possuam asas, não é possível descer desta altura até à planície.

— Pois veremos se desço ou não — disse Benvenuto Cellini.

O governador olhou-o bem de frente, e principiou a acreditar que o seu prisioneiro estava doido.

— Mas quê? irá o senhor voar?!

— Porque não? Sempre pensei que o homem ainda poderá voar um dia; o que me tem faltado é tempo para estudar o problema, o que aqui não sucederá, creio. Eu provarei que a aventura de Dédalo pertence à História e não à Fábula.

— Pois então, acautelai-vos com o sol, meu caro Benvenuto — respondeu o governador, às gargalhadas —, acautelai-vos com o sol.

— Eu farei o meu voo de noite — disse Benvenuto.

O governador, que não esperava por esta resposta tão pronta, não atinou no que dizer e retirou-se furioso.

Era pois preciso fugir, custasse o que custasse. Noutra ocasião, Benvenuto não teria sido incomodado por matar um homem. Para o reconciliar com Deus, fá-lo-iam apenas seguir a procissão de Nossa Senhora, em Agosto, vestido de burel e com manto azul. Mas o novo papa, Paulo III, era vingativo como o diabo, e Benvenuto, quando ele ainda não era senão Monsenhor Farnésio, tivera uma questão com ele, por causa de um vaso de prata que se lhe recusara a entregar por falta de pagamento, e que Sua Eminência tinha querido haver à força, o que obrigara Benvenuto a entrar em vias de facto com a gente do cardeal; por outro lado, o Santo Padre estava despeitadíssimo por o Rei Francisco I lhe ter mandado pedir Benvenuto por Monsenhor Montluc, seu embaixador junto da Santa Sé. Ao saber da prisão de Benvenuto, Monsenhor, imaginando prestar um serviço ao pobre prisioneiro, tinha insistido ainda mais no seu propósito; o pior, porém, é que se enganou quanto ao carácter do novo papa, que ainda era mais teimoso que o seu predecessor, Clemente VII. Ora Paulo III tinha jurado a si mesmo que Benvenuto ainda um dia lhe havia de pagar pelo que lhe fizera, senão com a morte (nenhum papa, naquela época, se atreveria a mandar matar semelhante artista), pelo menos com o esquecimento, na cela de uma prisão. Nestas condições, urgia que o próprio Benvenuto pensasse na maneira de se libertar, e ele assim fazia, tendo já decidido fugir antes dos interrogatórios e do julgamento, que aliás podiam nem sequer chegar a realizar-se, pois o papa, irado com a intervenção de Francisco I, não consentia sequer que se pronunciasse o nome de Benvenuto Cellini na sua presença. Tudo isto soube o prisioneiro por intermédio de Ascânio, que ficara a substituí-lo na loja, e que à força de insistências obtivera autorização para visitar o seu mestre na prisão; naturalmente, estas visitas faziam-se através de grades duplas e na presença de testemunhas vigilantes, não fosse o aluno passar ao mestre alguma lima, cordas ou punhais.

A verdade é que, ainda o governador não tinha mandado fechar sobre Benvenuto a pesada porta da cela, já ele se pusera a inspeccionar minuciosamente o seu novo alojamento.

Digamos agora o que continham as quatro paredes do seu quarto prisional: um leito, um fogão de sala, que podia acender-se, uma mesa e duas cadeiras. Dois dias depois, Benvenuto conseguiu que lhe trouxessem algum barro e os apetrechos necessários para modelar. Ao princípio, o governador tinha recusado fornecer estes objectos para distracção do prisioneiro, mas reconsiderou que, ocupando assim o espírito do artista, podia muito bem desviá-lo daquele propósito tenaz de evasão de que parecia possuído; no mesmo dia, esboçou Benvenuto uma Vénus colossal.

Era ainda muito pouco, mas, com alguma imaginação, paciência e energia, podia ainda vir a ser muito.

Certo dia de Dezembro, em que havia muito frio, e que tinham acendido o fogão de Benvenuto, vieram mudar os lençóis da cama esquecendo-se porém de levar os usados; logo que a porta se fechou, Benvenuto de um salto estava junto do catre, tirando-lhe dois punhados de folhelho, e introduzindo no seu lugar o par de lençóis esquecidos; depois, voltou para junto da sua estátua, fingindo absorver-se no seu trabalho. Quase no mesmo instante, veio o criado pelos lençóis, que procurou em todos os sítios, perguntando mesmo a Benvenuto se os não teria visto; mas Benvenuto, sem levantar os olhos do seu trabalho, atirou-lhe distrai-damente que com certeza os teria levado algum camarada seu, ou ele próprio sem reparar. A manobra foi tão rápida que o criado de nada suspeitou, e, como os lençóis nunca mais se encontraram, nunca mais voltou a falar neles, com medo de que lhos obrigassem a pagar ou de que o pusessem na rua.

Ignoramos muitas vezes o que os acontecimentos supremos podem conter de peripécias terríveis e angústias pungentes. Os mais triviais incidentes tornam-se, então, circunstâncias capazes de despertar em nós a alegria ou o desespero. Mal o criado saiu, Benvenuto caiu de joelhos, agradecendo a Deus o auxílio que acabava de lhe enviar.

Como sabia por experiência que ninguém mais mexeria no seu catre até ao dia seguinte, Benvenuto deixou ficar os lençóis no interior do enxergão.

Quando veio a noite, começou então a cortá-los em tiras de três ou quatro polegadas, entrançando-as o mais solidamente possível, o que não era difícil, visto os lençóis serem novos e bastante grosseiros; abriu, por fim, o ventre da sua estátua de greda e, esvaziando-o completamente, escondeu ali o seu tesoiro, polindo e repulindo depois tão bem a cicatriz, que nem o mais hábil dos peritos notaria que acabavam de fazer à pobre Vénus uma operação cesariana.

No dia seguinte, entrou o governador, de súbito, como costumava, no quarto do prisioneiro, e, como de costume, encontrou-o calmo e entregue ao trabalho. O pobre homem todas as manhãs acordava com o receio de ir encontrar a cela vazia, e como era extremamente franco, jamais escondia o seu contentamento ao ver que o prisioneiro não cumprira as suas ameaças de evasão nocturna.

— Confesso-vos que me trazeis profundamente inquieto, Benvenuto — disse o pobre governador ao prisioneiro. — No entanto, começo a acreditar que jamais cumprireis a vossa ameaça de fuga.

— Mestre Jorge — respondeu Benvenuto —, não vos ameacei, adverti-vos.

— E tendes ainda algumas esperanças de poderdes «voar» lá para baixo?

— Não se trata, felizmente, de esperanças, mas de certeza.

— Mas... que demónio! como será então isso?! — exclamou o pobre do governador, a quem esta confiança aparente ou real do Benvenuto nos seus processos de evasão punha fora de si.

— Isso é comigo, mestre. Mas previno-vos que as minhas asas estão a crescer.

O governador, tão ingénua como maquinalmente, levantou os olhos para as espáduas do seu prisioneiro.

— Pois é como lhe digo, Senhor Governador — prosseguiu Benvenuto, continuando a modelar a sua estátua, e arredondando-lhe com tal arte as ancas, que parecia querer fazê-la rivalizar com a célebre Vénus calipígia. — Entre nós há uma luta e um desafio. Vós tendes a vosso favor torres enormes, portas espessas, ferrolhos a todas as provas, e mil guardas sempre a postos; a meu favor, não tenho mais do que esta cabeça e estas mãos que aqui vedes; e, no entanto, volto a prevenir-vos de que saireis vencido. Mas não vades por isso pensar que não sois um homem hábil ou que não tomastes todas as precauções possíveis; quando eu tiver partido, ficar-vos-á a consolação de poder pensar que não tivestes a menor culpa, Sr. Jorge, pois, em verdade, nada descuidastes para me reterdes aqui, caro Sr. Jorge. E agora, mudando de assunto: que tal vos parece esta anca, pois bem sei que sois apreciador... de arte?

Tanta segurança em si mesmo exasperava o pobre comandante. O seu prisioneiro havia-se-lhe transformado numa espécie de ideia fixa onde se confundiam todas as poucas luzes do seu entendimento; ia-se tornando triste, perdia o apetite, e a cada instante estremecia como alguém a quem acordam em sobressalto. Uma noite, Benvenuto foi despertado por um grande tumulto, que parecia vir do terraço, se foi aproximando ao longo do corredor e parou à porta da sua cela; esta abriu-se e apareceu mestre Jorge que, de roupão e barrete de dormir, seguido de quatro carcereiros e oito guardas, correu para o leito de Benvenuto com semblante apavorado. Benvenuto sentou-se na cama e começou a rir às gargalhadas. O governador, sem se ofender, respirou como o mergulhador que volta à superfície depois de prolongada imersão.

— Ah! — exclamou — Deus seja louvado! Não se me escapou!... Bem se diz que sonhos são mentiras!

— Então que temos!? — perguntou Benvenuto Cellini. — A que devo o prazer e a honra desta vossa visita a hora tão insólita?

— Santo Deus! que susto! Pois não fui sonhar esta noite que vos tinham nascido as tais asas malditas!... Eram imensas e faziam-vos pairar tranquilamente por sobre o Castelo de Santo Angelo, dizendo-me: «Adeus, meu caro governador: cá me vou! Não quis partir, porém, sem vos apresentar as mais respeitosas despedidas. Parto, e Deus queira que para onde nunca mais tenha o subido gosto de vos ver.»

— Pois quê?! eu dizia-vos isso, mestre Jorge?!...

— Sem tirar nem pôr!... Ah, Benvenuto, vós trouxestes-me desgraça!

— Mas... suponho que não me julgais tão malcriado como isso... Trata-se porém de um simples sonho, e é por isso que vos perdoo.

— Felizmente! felizmente que não passou de um sonho, e que continuais em meu poder, embora, a falar verdade, não folgue nada com a vossa companhia. Possa eu conservar-vos por muito tempo...

— Não me parece que possais... — atalhou Benvenuto com aquele sorriso confiante que exasperava o seu hospedeiro.

De facto, o governador saiu logo, furioso e encomendando-o a todos os diabos. No dia seguinte, deu ordens rigorosas para que toda a prisão fosse inspeccionada de duas em duas horas, tanto de dia como de noite. E tal inspecção efectuou-se pontualmente pelo espaço de um mês; mas como, ao fim desse tempo, já nada parecia indicar que Benvenuto ainda pensasse em se evadir, abrandou tão minuciosa vigilância.

E, no entanto, Cellini não se ocupou noutra coisa durante todo aquele mês. O seu trabalho foi extenuante.

Como dissemos, ao entrar pela primeira vez no seu quarto, o prisioneiro examinou-o atentamente, fixando desde logo os seus planos de fuga. A janela era de dupla grade, e os varões demasiado fortes para poder quebrá-los ou desalojá-los apenas com as mãos e o pequeno utensílio de modelar, único instrumento de ferro que possuía. Evadir-se pela chaminé, nem era bom pensar: em certo ponto tornava-se tão estreita, que só transformando-se em serpente, como a fada Melusina, lograria atravessá-la. Restava a porta.

Sim, a porta. Vejamos como era: de carvalho, com dois dedos de espessura, e fechadura dupla a quatro ferrolhos; era ainda reforçada por dentro com chapas de ferro pregadas.

Era por esta porta que deveria evadir-se. Até porque Benvenuto reparara que, a poucos passos dela, no corredor, se abria a escada, por onde se fazia a rendição da sentinela do terraço. De duas em duas horas, sentia Benvenuto o ruído de passos que subiam; depois, outros que desciam, e, durante duas horas, o silêncio era completo.

Teria pois que passar por aquela porta de carvalho com dois dedos de espessura, fechadura dupla a quatro ferrolhos, e, ainda por cima, reforçada, como dissemos, por grossas chapas de ferro pregadas.

Ora, para passar aquela porta, era preciso muito trabalho, e a ele se entregara Benvenuto durante todo aquele mês.

Com o pequeno utensílio de modelação, que era de ferro, tinha retirado, uma após outra, quase todas as cabeças dos pregos que fixavam as chapas de ferro, deixando, no entanto, quatro, que reservou para o último dia; depois, para que ninguém lhes desse pela falta, tinha modelado outras, de barro, que recobriu com limalha de ferro, pondo-as em seu lugar, de tal maneira que nem o olhar mais arguto e perscrutador poderia distinguir as cabeças de prego verdadeiras das falsas. Ora, como havia, ao todo, uns sessenta pregos, e como cada um demorava uma a duas horas a decapitar, facilmente se imagina a que trabalho teve de entregar-se o prisioneiro.

Depois, todas as noites, logo que supunha terem-se já deitado todos os habitantes do castelo, pois não se escutava mais do que o ruído dos passos da sentinela andando para trás e para diante mesmo por cima do seu quarto, acendia uma enorme fogueira na chaminé, dela extraindo ardentes brasas, que encostava às placas de ferro, levando-as ao rubro. Deste modo, ia, pouco a pouco, carbonizando a madeira sobre que assentavam as placas, sem que, no entanto, esta carbonização se tornasse aparente pelo lado de fora da porta.

Todo este trabalho demorou, como dissemos, um mês, findo o qual o prisioneiro não esperava mais do que uma noite favorável à evasão. Ora, teve de esperar ainda alguns dias, pois o termo do seu paciente trabalho coincidiu com o início da Lua cheia.

Não havendo já mais pregos a decapitar, Benvenuto aproveitou aqueles dias para carbonizar melhor a grossa porta de carvalho, e também para acabar de exasperar o governador, que naquele mesmo dia entrou no quarto de Benvenuto mais preocupado que nunca.

— Meu caro prisioneiro — diz-lhe o pobre homem, que não podia libertar-se da sua ideia fixa —, então ainda continuais a pensar que podereis «voar» daqui? Ora dizei-me lá francamente.

— Mais do que nunca, meu caro hospedeiro — respondeu-lhe Benvenuto.

— Vós podeis dizer o que quiserdes, mas, quanto a mim, e falando-vos com a máxima franqueza, acho a coisa impossível.

— Qual impossível, nem meio impossível, mestre Jorge! — retorquiu o artista. — Bem sabeis que essa palavra não existe para mim, que sempre me exercitei em realizar impossíveis com sucesso. Impossível, meu caro governador?!... Sabeis vós, por acaso, quantas vezes me tenho divertido a fazer ciúmes à própria Natureza, criando com ouro, esmeraldas e diamantes, flores mais belas que quantas rocia o orvalho da madrugada?... Pensais acaso que quem tem poder para tais maravilhas, não o tem para fabricar umas míseras asas?!...

— Valha-me Deus! — disse o governador — acabareis por me fazer perder a cabeça com essa vossa insolente confiança! Mas, aceitando, o que eu não creio, que essas asas vos possam aguentar nos ares, que formato pensais dar-lhes?

— Tenho pensado e repensado nesse particular importantíssimo; pois, se não sabeis, ficai sabendo que a segurança da minha pessoa depende precisamente da forma das asas que empregar.

— E então?

— Então, se eu quisesse refazer, pela arte, o que Deus concedeu aos animais que voam, creio que seria o morcego que podia imitar com mais sucesso.

— Seja — disse o governador —, admitindo que podíeis construir um par de asas, não vos faltaria a coragem no momento de as usardes?

— Dai-me só o que necessito para as confeccionar, meu caro governador, e eu vos responderei, levantando voo.

— E de que necessitais, afinal?

— Ora! de quase nada: uma forja, uma bigorna, limas, tenazes e pinças, para construir a armação e as molas, e vinte braças de tela para as membranas.

— Ora ainda bem! — disse mestre Giorgio — já estou mais descansado, pois, por maior que seja a vossa inteligência, jamais conseguireis obter tudo isso aqui por vós mesmo.

— Está tudo pronto — disse Benvenuto.

O governador deu um salto na cadeira, mas reflectiu no mesmo instante que a coisa era materialmente impossível. No entanto, nem por isso deixou um só momento de descanso àquela pobre cabeça. Daquele dia em diante nunca mais viu passar uma ave diante da sua janela que se lhe não metesse na cabeça que era Benvenuto Cellini, tamanha pode ser a influência de um pensamento poderoso sobre um pensamento medíocre.

Naquele mesmo dia, mestre Jorge mandou chamar o mecânico mais hábil de Roma e ordenou-lhe que lhe tirasse as medidas para umas asas de morcego que lhe havia de construir.

O mecânico, estupefacto, fitou o governador sem lhe dar resposta, pensando, não sem certa razão, que mestre Jorge estava doido varrido.

Mas como o governador insistiu, como era rico e, por conseguinte, tinha bem com que pagar as suas loucuras, o mecânico resolveu pôr-se logo ao trabalho que lhe fora encomendado, e ao fim de oito dias apresentou a mestre Jorge um par de magníficas asas, que se adaptavam ao corpo por meio de um colete de ferro e que se moviam por meio de molas extremamente engenhosas, num ritmo digno de inspirar a maior confiança.

Mestre Jorge, depois de pagar ao mecânico o preço estipulado, mediu o espaço ocupado pelo engenho voador, subindo logo até ao quarto de Benvenuto Cellini e, sem dizer palavra, revolucionou o quarto, remexendo por toda a parte, espreitando debaixo da cama e pela chaminé, revolvendo a palha da enxerga, e não esquecendo na sua busca o menor canto do aposento.

Saiu por fim, sempre sem dizer palavra, mas intimamente convencido de que, a não ser que Benvenuto fosse bruxo, não poderia esconder no quarto umas asas semelhantes às suas.

Era cada vez mais evidente que a cabeça do desgraçado governador ia de mal a pior.

Quando chegou às suas dependências, deparou com o mecânico, que voltara atrás para lhe dizer que os aros de ferro existentes na extremidade das asas serviam para manter as pernas do homem-voador na horizontal.

Quando o mecânico saiu, mestre Jorge fechou-se nos seus aposentos, afivelou o colete de ferro, abriu as asas, firmou as pernas e, deitando-se sobre o ventre, tentou executar o primeiro voo.

Mas todos os seus desesperados esforços se baldaram, não conseguindo elevar-se um só milímetro acima do solo.

Depois de esgotar forças e paciência, mandou novamente chamar o mecânico.

— Olha lá — disse-lhe — estas asas não funcionam!

— E como é que V. S.a as experimentou?

Mestre Jorge descreveu-lhe então as suas mal sucedidas tentativas. O mecânico escutou-o com a gravidade que pôde, e no fim disse-lhe:

— Ora! não admira... Se V. S.a se deitou no chão, como haviam as asas de ter uma massa de ar suficiente para funcionar!?... O que tendes a fazer é subirdes até ao alto do Castelo de Santo Angelo e lançarde-vos de lá, corajosamente, no espaço.

— E crês tu que me aguentarei no ar?

— Tão certo como estarmos aqui — disse o mecânico.

— Olha... não poderias ser tu a fazer a experiência?...

— As asas foram talhadas para o vosso peso, e não para o meu — respondeu o mecânico. — Para mim teriam que ter pé e meio a mais de envergadura.

E o mecânico saudou respeitosamente e saiu.

— Mas que diabo!... — exclamou mestre Giorgio. E durante todo o dia manifestou tantas e tais aberrações de espírito, que bem podia dizer-se que o seu espírito, tal como o de Rolando, pairava cada vez mais nos espaços imaginários.

A noite, antes de se deitar, mandou chamar todos os criados, carcereiros e soldados do castelo, dizendo-lhes:

— Se surpreenderdes o Benvenuto pronto a lançar-se em voo pelos ares, não tendes que vos preocupar. Vinde apenas prevenir-me, pois eu é que sou o morcego autêntico, ele não passa de um morcego imaginário; depressa o agarrarei.

A opinião unânime da criadagem e dos guardas foi que o governador estava varrido de todo, mas resolveram não prevenir o papa senão no dia seguinte, pois com a noite abominável de chuva e ventania que estava ninguém se atrevia a sair.

Ninguém... excepto Benvenuto Cellini, que, talvez por espírito de contradição, tinha escolhido precisamente aquela noite horrível para se evadir.

Quando ouviu bater as dez, e percebeu que haviam rendido a sentinela, ajoelhou, rezando devotamente a Deus, e lançou mãos à obra.

Em primeiro lugar, arrancou as quatro cabeças de pregos que ainda mantinham as chapas de ferro aplicadas à porta. Batia meia-noite quando a última saltou.

Benvenuto escutou os passos da ronda que subia ao terraço e, por instantes, colou-se à porta, sustendo a respiração; a ronda voltou a descer, os passos foram-se afastando, e tudo voltou ao silêncio.

A chuva redobrava de intensidade, e Benvenuto, com o coração em júbilo, ouvia-a fustigar violentamente as janelas.

Tentou então retirar as chapas de ferro, que já nada mantinha fixas à porta; todas cederam, e Benvenuto colocou-as de encontro à parede.

Seguidamente, estendendo-se no sobrado, começou a esfacelar a parte inferior da porta, que ele tinha a pouco e pouco reduzido a carvão; serviu-se ainda uma vez mais do seu precioso utensílio de modelar que ele tinha afiado em forma de punhal, e ao qual tinha ajustado um pequeno punho de madeira.

Ao cabo de breves instantes, Benvenuto tinha aberto na porta, rente ao solo, uma pequena chanfradura, bastante larga para que pudesse por ela sair rastejando. Então, reabriu o ventre da sua estátua, tirou de lá as entrançadas tiras dos lençóis, que enrolou à cinta, em forma de faixa, armou-se do seu utensílio, que, como referimos, transformara em punhal, e, pondo-se de novo de joelhos, rezou pela segunda vez.

Depois de breve oração, Benvenuto passou a cabeça pela abertura que praticara na porta, depois os ombros, e por fim o resto do corpo, achando-se livre em pleno corredor.

Ergueu-se do chão, mas as pernas tremiam-lhe de tal maneira que teve de apoiar-se à parede para não cair. O seu coração batia-lhe como se quisesse quebrar-lhe o tórax, e a cabeça era uma labareda. Havia uma gota de suor em cada um dos seus cabelos, e a mão crispava-se-lhe no punhal, como se alguém quisesse arrancar-lho.

No entanto, como tudo estava tranquilo e não se ouvia o menor ruído, depressa recobrou a serenidade e, tacteando com a mão, seguiu ao longo do corredor até que, faltando-lhe este, avançou um pé e deparou com o primeiro degrau da escada que levava ao terraço do castelo.

Subiu os degraus um a um, estremecendo sempre que a madeira lhe gemia sob os pés, mas depressa sentiu a impressão de ar livre, e a chuva veio bater-lhe no rosto; depois, a sua cabeça atingiu o nível do terraço e, como havia um quarto de hora que se encontrava na mais profunda escuridão, pôde distinguir todas as facilidades e todos os obstáculos que o esperavam.

A balança inclinava-se porém para o lado da esperança.

Para se livrar da chuva a sentinela tinha-se recolhido na guarita. Ora, como as sentinelas que faziam a guarda no Castelo de Santo Angelo tinham mais por missão vigiar o fosso e os campos circunvizinhos do que o terraço, a parte cega da guarita era precisamente a que ficava em frente da escada por onde Benvenuto Cellini acabava de aparecer. Este avançava em silêncio e de gatas, em direcção ao ponto mais afastado da guarita. Uma vez aí, atou uma extremidade da sua corda de pano a um tijolo antigo que, no muro, fazia um ressalto de cerca de seis polegadas, e, ajoelhando, rezou ainda uma terceira vez:

«Senhor! Senhor! secundai os meus esforços!»

Depois, deixou-se escorregar ao longo das cordas de lençol, e, sem fazer caso das esfoladuras que a muralha lhe fazia na fronte e nos joelhos, foi descendo até tocar o solo.

Logo que sentiu a terra debaixo dos pés, um sentimento misto de alegria e orgulho inundou-lhe o peito. Olhando para a imensa altura de que acabava de descer, não pôde deixar de murmurar: «Eis-me livre!» Mas este optimismo teve curta duração.

Voltou-se, e os seus joelhos fraquejaram: na sua frente levantava-se um muro recentemente construído e que ele ignorava; estava perdido. Pareceu-lhe que as forças o iam abandonar e, desesperado, deixou-se cair em terra; mas, ao tombar, embateu em algo duro: uma longa trave que não vira; soltou uma breve exclamação de surpresa e de alegria: estava salvo!

Ah! quantas alternativas de desalento e esperança podem caber num só minuto da existência humana!...

Benvenuto apoderou-se da trave como um náufrago se agarra ao mastro que o há-de suster sobre as águas. A trave era tão pesada que, noutras circunstâncias, nem dois homens a poderiam soerguer com facilidade. Benvenuto arrastou-a, e conseguiu pô-la de encontro ao muro.

Em seguida, à força de mãos, e caminhando sobre os joelhos, içou-se até à crista do muro; mas, uma vez aí, faltaram-lhe as forças para puxar a trave para si e passá-la para o lado de fora.

Por momentos sentiu vertigens, a cabeça andou-lhe à roda, fechou os olhos, parecendo-lhe que se batia num lago em chamas.

De repente lembrou-se da corda de pano por meio da qual descera do terraço.

Deixou-se escorregar ao longo da trave, e correu até ao local onde deixara pendente a corda salvadora, mas tão bem a soubera prender ao velho tijolo que, por mais esforços que fizesse, não conseguiu soltá-la.

Desesperado, Benvenuto suspendia-se nela, puxando vigorosamente, na esperança de que o pano rompesse. Por sorte, desfez-se um dos quatro nós com que atara as tiras topo a topo, caindo Benvenuto com um fragmento de corda de cerca de doze pés.

Era tudo quanto desejava; num salto, ei-lo de novo em pé e com renovadas forças.

Içou-se outra vez pela trave até à crista do muro, prendendo aí a corda de pano à extremidade da viga.

Quando atingiu o fim da corda, foi em vão que procurou tocar com os pés no solo; viu porém que este se encontrava apenas a uns seis pés; largou a corda e achou-se em terra.

Por instantes deixou-se ficar estendido. Sentia-se exausto e perdera a maior parte da pele dos braços e das pernas. Olhou desalentado para o seu corpo a cobrir-se de sangue; mas, neste momento, bateram as cinco da madrugada, e Benvenuto apercebeu-se de que as estrelas começavam a empalidecer.

Levantou-se rapidamente; mas uma sentinela que não tinha notado, e que sem dúvida assistira a todo o seu trabalho de evasão, aproximava-se de Cellini. Este reconheceu que tudo estaria perdido se não se desembaraçasse rapidamente do soldado. Agarrou no punhal que cingira e avançou para a sentinela com tal decisão que este percebeu imediatamente que tinha de haver-se não só com um homem extremamente vigoroso mas também terrivelmente desesperado. O soldado voltou-lhe as costas como se o não tivesse visto. O prisioneiro compreendeu o que isso queria dizer.

Correu então à última muralha. Esta dava para o fosso e teria doze a quinze pés de altura. Não era obstáculo que pudesse deter um homem como Benvenuto Cellini no estado em que se encontrava. Como deixara a corda de pano fragmentada no tijolo e na trave, nada lhe restava para o ajudar na descida e, como o tempo urgia agora cada vez mais, Benvenuto confiou-se mentalmente a Deus e deixou-se cair na escuridão.

Desta vez, o choque com o solo fez-lhe instantaneamente perder os sentidos. Passou perto de uma hora sem que Benvenuto os recobrasse. Então, a brisa fresca da madrugada fê-lo voltar a si. Ainda por um momento, esteve como que atordoado; depois, passando a mão pela fronte, retomou consciência.

Sentia uma dor viva na cabeça, e reparou que eram de sangue as gotas que tombavam sobre as pedras em que estava, gotas que ele sentia escorrerem-lhe pelo rosto como se fosse suor. Concluiu imediatamente que estava ferido na testa mas, levando ali a mão, pôde verificar que os ferimentos eram superficiais e não atingiam o crânio. Benvenuto sorriu e quis-se erguer; mas não pôde: tinha a perna direita partida cerca de três polegadas acima do tornozelo. Só devido ao entorpecimento de todo o membro não pudera, a princípio, sentir a dor. Sem perda de um instante, tirou a camisa e rasgou-a em tiras; depois, aconchegando o melhor que pôde os ossos da perna, atou com toda a força a improvisada ligadura, passando-a também algumas vezes sob a planta do pé a fim de melhor reunir entre si os ossos fracturados.

Por fim, arrastou-se como pôde até uma das aortas de Roma, que ficava a uns quinhentos passos. Gastou uma meia hora de tortura atroz, acabando por encontrar a porta ainda fechada. Mas, notando um enorme pedregulho entalado debaixo dela, retirou-o, passando depois pela chanfradura que tapava.

Mas ainda não tinha avançado uns trinta metros, quando uma matilha de cães vadios e esfaimados se atirou sobre ele, percebendo, pelo cheiro do sangue, que estava ferido. Puxou logo pelo seu valioso utensílio de modelar, e com uma única estocada valente num flanco matou o mais vigoroso e encarniçado dos cães. Os outros lançaram-se logo sobre o cadáver do companheiro, devorando-o.

Continuando então a arrastar-se, Benvenuto conseguiu chegar até à Igreja da Transpontina, onde encontrou um aguadeiro que acabava de carregar o seu burro com as pipas cheias; chamou-o.

— Olha — disse-lhe —, fui obrigado a saltar de uma janela da casa da minha amada e parti a perna; leva-me até aos degraus de S. Pedro e dar-te-ei um escudo de oiro.

Sem dizer palavra, o aguadeiro pôs o ferido sobre os ombros e levou-o ao local indicado. Uma vez aí, recebeu o seu escudo e seguiu à sua vida sem se quer olhar para trás.

Então, Benvenuto, sempre rastejando, não tardou a bater à porta da casa de Monsenhor de Montluc, o embaixador de França, que morava perto.

E Monsenhor de Montluc soube ser tão zeloso e prestável que, passado um mês, Benvenuto estava curado, ao fim de dois meses, obtinha a sua carta de perdão, e, quatro meses depois, partia para França, com Ascânio e Pagolo.

 

         SCOZZONE

Quando Benvenuto Cellini chegou a França, estava Francisco I no Castelo de Fontai-nebleau, com toda a sua corte; o artífice deparou assim logo com aquele que procurava, e decidiu ficar naquela cidade, mandando prevenir o cardeal de Ferrara de que tinha chegado. O cardeal, sabendo que o rei esperava Benvenuto Cellini com impaciência, mandou logo informar Sua Majestade. No mesmo dia, Benvenuto foi recebido pelo rei, que, dirigindo-se-lhe naquela língua doce e vigorosa que o mestre-ourives tão bem sabia descrever, disse-lhe:

— Benvenuto, passai alegremente alguns dias, até vos refazerdes dos desgostos e fadigas passadas; descansai, diverti-vos; e, entretanto, pensaremos em qualquer belo trabalho que venhais a efectuar.

Depois, mandando alojar o artista no castelo, Francisco I ordenou que nada lhe faltasse.

Benvenuto achou-se assim, de repente, no fulcro da civilização francesa, então ainda inferior à italiana, mas já em luta com ela, e em vésperas de a ultrapassar. Olhando à sua volta, era-lhe fácil imaginar-se ainda na sua Florença natal, pois que o rodeavam a arte e os artistas que lá conhecera. Primatício acabava de suceder a Leonardo da Vinci e a mestre Rosso.

A Benvenuto impunha-se, pois, continuar dignamente os seus ilustres predecessores e, aos olhos da corte mais galante da Europa, elevar a arte da estatuária à altura a que aqueles grandes mestres tinham elevado a pintura. Benvenuto, querendo ir plenamente ao encontro dos desejos do rei, não esperou que ele lhe encomendasse o belo trabalho que lhe prometera. Executou um da sua própria invenção e apenas com os meios de que dispunha. Tendo podido notar a especial predilecção que o rei votava à sua residência de Fontainebleau, onde o encontrara, resolveu lisonjear aquela preferência real e executou uma estátua alegórica, que intitulou a Ninfa de Fontainebleau.(1)

Belo trabalho seria sem dúvida uma tal estátua. Coroá-la-ia de folhas de carvalho, espigas e parras, pois Fontainebleau confina com a planície, desfruta da sombra de belas florestas de carvalhos e está coberta de vinhas e latadas. A ninfa idealizada por Benvenuto deveria pois representar a imagem compósita de Ceres, Diana e Erígone, três deidades maravilhosas fundidas numa só. No pedestal, colocaria cada um dos símbolos atribuídos àquelas deusas, e quem quer que tenha já admirado os ornatos e as espantosas figurinhas da estátua de Perseu não ignora até que ponto o mestre florentino sabia cinzelar maravilhosamente os mínimos pormenores.

 

*. N.T. — Esta obra maravilhosa ainda hoje pode ser admirada no Museu do Louvre, em Paris.

 

A grande dificuldade para o artista consistia, porém, em encontrar o modelo humano que reunisse a tríplice beleza daquelas deusas; porque, se Benvenuto possuía em si mesmo o sentimento ideal da beleza, carecia de um paradigma humano para a materializar nas obras de arte. Se as beldades mais famosas da época quisessem, como nos tempos de Fídias e Apeles, posar para os grandes artistas, Benvenuto teria facilmente encontrado na corte o que buscava, pois florescia então ali um verdadeiro olimpo de formosura e graça: Catarina de Médicis, que não tinha então mais de vinte anos, Margarida de Navarra, a «quarta Graça» e a «décima Musa», e, finalmente, a duquesa dÊtampes, que teremos ocasião de encontrar repetidas vezes ao longo desta narrativa, e de quem diziam que era «a mais bela das sábias e a mais sábia das belas». Mas, como não se estava já nos belos tempos de Fídias e de Apeles, Benvenuto teria que procurar noutra parte.

Foi, pois, com grande prazer que recebeu a notícia de que a corte ia partir para Paris. Desgraçadamente, porém, como deixou escrito o próprio Benvenuto, as deslocações naquela época lembravam um préstito fúnebre. Eram precedidas por doze ou quinze mil cavalos, e todas as tardes se perdia mais de quatro horas para se armarem as tendas, e quase outras tantas, de manhã, para se desarmarem, de modo que, só para cobrir as dezasseis léguas que separam Fontainebleau de Paris, foram precisos cinco dias.

Por mais de vinte vezes, durante a viagem, Benvenuto esteve tentado a passar adiante da caravana real, mas sempre o reteve o cardeal de Ferrara, dizendo-lhe que, se o rei passasse um dia sem o ver, não deixaria de perguntar por ele e, sabendo que tinha partido sem se despedir, havia de fazer mau juízo da sua cortesia e maneiras. Não lhe restava senão mostrar a sua impaciência, e matar o tempo interminável das paragens fazendo e refazendo esboços da sua Ninfa de Fontainebleau.

Enfim, chegou a Paris. A sua primeira visita foi para Primatício, que estava então encarregado de continuar em Fontainebleau a obra de Leonardo e de mestre Rosso. Primatício, que, havia muito tempo já, vivia em Paris, era a pessoa indicada para lhe dar todas as informações de que carecia, não deixando de lhe dizer onde poderia encontrar os melhores modelos.

Digamos agora rapidamente duas palavras sobre Primatício. O signor Francisco Primatício, então muito conhecido por o Bolonha por causa da sua cidade natal, fora durante seis anos aluno de Júlio Romain, e havia oito que se encontrava em França, para onde o havia chamado Francisco I a instâncias do seu intermediário artístico, o marquês de Mântua. Como pode comprovar-se em Fontainebleau, Primatício era um artista prodigiosamente fecundo, e o seu estilo era grandioso e de uma impecável pureza de linhas. Injustamente depreciado por mais de três séculos, Primatício foi, no entanto, um espírito enciclopédico, uma inteligência vasta e um talento ilimitado que abraçou todos os géneros da grande pintura. A nossa época fez-lhe justiça, vingando-o do ultrajante esquecimento a que esteve votado. Sob inspiração religiosa, pintou os quadros da Capela de Beauregard; no campo moral, pintou, para o Palácio Montmorency, figuras alegóricas das principais virtudes cristãs; as suas obras enchem a vastidão de Fontainebleau; na «porta dourada» e na sala de baile, tratou graciosamente dos mais variados temas da Mitologia e da alegoria; na galeria de Ulisses e na câmara de S. Luís, foi o épico pintor de Homero, traduzindo em cor e pelo traço, não só a Odisseia, mas também grande parte da Ilíada. Deixando as eras fabulosas, passou aos tempos históricos, e a História empolgou o seu pincel. Os episódios principais da vida de Alexandre e de Rómulo, bem como a rendição do Havre, foram então reproduzidos nos seus quadros que decoravam os aposentos contíguos ao salão de baile; a natureza mereceu-lhe o maior carinho, nas grandes paisagens do «gabinete das curiosidades». Em suma: se quiséssemos avaliar bem este grande talento, enumerando-lhe as múltiplas facetas e contando todos os seus quadros, chegaríamos à conclusão de que, em noventa e oito grandes telas e em cento e trinta mais pequenas, Primaticio tratou sucessivamente a paisagem, a marinha, a História, os assuntos religiosos, o retrato, a alegoria e a epopeia.

Era, como se vê, um homem à altura de compreender Benvenuto. Também este, mal chegou a Paris, correu a abraçar Primaticio, que o acolheu com a mesma efusão.

Depois de uma primeira e longa conversa de amigos que se avistam em solo estrangeiro, Benvenuto mostrou os seus esboços a Primaticio, confiando-lhe as suas ideias e projectos, depois do que lhe perguntou se, entre os modelos de que se servia, haveria alguns que satisfizessem as condições expostas.

Primaticio abanou a cabeça, com um sorriso pessimista.

Já se não encontravam na Itália, essa bela filha e rival da Grécia. A França era então, como hoje, o país da graciosidade, da gentileza e do coquetismo, mas a pujante beleza que, nas margens do Tibre e do Arno, havia inspirado Miguel Angelo, Rafael, João de Bolonha, André dei Sarto, não poderia achar-se nunca no solo dos Valois. Não deixou Primaticio de afirmar, como aliás também já fizemos, que, se Benvenuto pudesse ir procurar os seus modelos entre a aristocracia, depressa os achava, mas, à semelhança das almas retidas para lá do Estige, tinha que contentar-se vendo perpassar, nos inacessíveis Campos Elísios, as belas e nobres formas, que aliás constituíam o perene objecto do seu estudo e observação artística.

Aconteceu exactamente o que Primaticio havia previsto. Benvenuto mirou e remirou os mais belos e famosos modelos sem achar um só que reunisse as qualidades necessárias à obra que imaginara.

Mandou então ir ao palácio do cardeal de Ferrara todas as vénus, a um escudo a sessão, mas nenhuma logrou satisfazer as suas esperanças.

Andava, pois, Benvenuto desesperado, quando, uma noite, depois de ter ceado na companhia de três antigos companheiros, Pedro Strozzi, o conde de Anguillara, seu cunhado, e Galeotto Pico, sobrinho do famoso João Pie de La Mirandole, deparou com uma bela e graciosíssima jovem, que seguia só pela Rua de Petits-Champs. Estremeceu Benvenuto ante aquela aparição, que realizara finalmente as suas já quase perdidas esperanças; aquela bela mulher era, na verdade, tudo o que de melhor poderia achar para dar uma forma condigna ao seu sonho de artista. Seguiu, pois, pela colina de Orties, ao longo da Igreja Santo Honorato, até à Rua Pelican. Uma vez aqui, voltou-se ela para se certificar de que continuava a ser seguida, e vendo Benvenuto apenas a alguns passos, empurrou uma porta vivamente, e por ela desapareceu. Aproximou-se logo Benvenuto da mesma porta, que também empurrou, e que cedeu a tempo de lhe deixar entrever, no ângulo de uma escada onde ardia uma chama fumarenta, a ponta do vestido daquela que seguia.

Subindo ao primeiro andar, uma segunda porta cerrava-se sobre um quarto, onde avistou a sua bela desconhecida.

Sem lhe explicar a finalidade artística da sua visita, sem mesmo lhe dirigir uma simples palavra, Benvenuto, que morria por se assegurar de que as formas da jovem correspondiam bem às feições, descreveu várias órbitas em torno da pobre amedrontada e espantadíssima, que, no entanto, se prestou submissa a todas as exigências e posições pretendidas pelo artista, que, ora lhe levantava os braços acima da cabeça, na atitude que contava dar à sua Ninfa, ora lhos colava ao longo do corpo, estudando proporções e medidas.

Se havia muito pouco de Ceres, e ainda menos de Diana, no modelo que Benvenuto tinha diante de si, não podia negar-se que havia nela muito de Erígone. Assim, o mestre tomou logo ali uma decisão: já que não podia achar ninguém que reunisse as características das três deusas, resolveu limitar-se a reproduzir a bacante.

Efectivamente, para bacante acabava de achar o que havia muito tempo procurava: olhos ardentes, lábios de coral, dentes de pérolas, pescoço bem lançado, espáduas redondas e ancas pujantes; finalmente, as mãos e os pés da jovem, com seus finos ligamentos dos punhos e dos artelhos, tinham tão aristocrática distinção, que o artista decidiu-se definitivamente.

— Como vos chamais? — perguntou, por fim, Benvenuto, com seu sotaque estrangeiro, à jovem, que parecia cada vez mais espantada.

— Catarina, para vos servir — respondeu ela.

— Pois muito bem, jovem Catarina — continuou Benvenuto —, aqui tendes um escudo de ouro para tentar compensar-vos da maçada que vos causei. Vinde amanhã ter comigo a casa do Cardeal de Ferrara, na Rua de S. Martinho, e, por idêntico trabalho, recebereis a mesma quantia.

Por instantes, a jovem hesitou, cuidando que o estrangeiro gracejava. Mas o escudo de oiro que pesava nas suas mãos desmentia claramente os seus receios. Por isso, depois de um instante de reflexão:

— E a que horas — perguntou Catarina.

— As dez da manhã. Convém-vos?

— Irei.

Benvenuto cumprimentou como o teria feito a uma duquesa, e recolheu a casa com o peito dilatado de contentamento. Mal que chegou, pôs-se a queimar todos os esboços do que imaginara, fazendo depois um outro, cheio de realidade. Assim que o terminou, lançou mão de um pedaço de cera, que colocou sobre um pedestal. Num breve instante, a sua mão poderosa deu-lhe a forma da Ninfa que sonhara, e com tanto acerto que, no dia seguinte, quando Catarina se apresentou à porta do atelier, uma boa parte da tarefa estava concluída.

Como dissemos, Catarina não tinha compreendido nada das intenções de Benvenuto. Grande foi, pois, o seu espanto ao ver a estátua começada, enquanto o artista lhe explicava o motivo por que lhe pedira que viesse.

Catarina era uma jovem alegre. Desatou a rir perdidamente ao dar fé do seu engano e, em seguida, sensível ao orgulho de posar para uma deusa destinada a um rei, despiu-se totalmente e tomou com tanta graça e fidelidade a posição da estátua, que o mestre, vendo-a, não pôde reprimir um grito de prazer.

Benvenuto lançou-se ao trabalho com ardor. Era, como dissemos, uma daquelas nobres e poderosas naturezas de artista que do próprio labor recebem o melhor da sua inspiração, e a quem o próprio trabalho ilumina. Sem gibão, colarinho escancarado e mangas arregaçadas, ia do modelo à cópia, da natureza à arte, parecendo, como Júpiter, pronto a abrasar tudo em que tocasse. Catarina, que até então só conhecera criaturas vulgares e aviltadas do povo, além dos jovens senhores para quem havia sido um brinquedo, fitava com embevecido espanto aquele homem de olhar inspirado, respiração ardente, peito dilatado. Dir-se-ia que ela própria se sentia guindar às alturas do mestre; o seu olhar resplandecia, a inspiração passava do artista ao modelo.

A sessão durou duas horas; no final, Benvenuto deu a Catarina o seu escudo de ouro e, despedindo-se dela com a mesma deferência da véspera, marcou-lhe nova sessão para o dia seguinte à mesma hora.

Catarina regressou a casa, e em todo o dia não saiu. Na manhã seguinte, dez minutos antes da hora marcada, já estava no atelier.

A cena da véspera repetiu-se; Benvenuto, tal como na véspera, esteve sublime de inspiração; o barro respirava sob a acção das suas mãos como sob as de Prometeu. A cabeça da bacante estava já modelada, e parecia uma cabeça com vida saindo de uma massa informe. Catarina sorria a esta irmã celeste criada à sua imagem; nunca se tinha sentido tão feliz e, coisa estranha, não era capaz de discernir que espécie de sentimento lhe inspirava aquela felicidade.

No dia seguinte, mestre e modelo voltaram a encontrar-se à hora costumada, mas uma estranha sensação, jamais experimentada nas sessões anteriores, se apoderou de Catarina no momento de despir-se. Sentiu que corava intensamente. A pobre jovem começava a amar, e este sentimento trazia consigo o do pudor.

No dia seguinte, estes sentimentos acentuaram-se de tal maneira que Benvenuto foi forçado a observar-lhe por diversas vezes que não estava a modelar uma pudica Vénus de Médicis, mas uma erígone embriagada de voluptuosidade e de vinho. Aliás, bastava só um pouco mais de paciência, pois a maqueta estaria pronta dentro de dois dias.

Na noite do último daqueles dois dias, depois de dar os últimos retoques no seu trabalho, Benvenuto agradeceu a Catarina a sua complacência e deu-lhe quatro escudos de oiro; mas Catarina, cujas mãos tremiam, deixou-os cair ao chão. Tudo havia acabado para a pobre jovem. A partir daquele momento era forçada a retomar a sua anterior condição; e o pior é que depois que, pela primeira vez, entrara no atelier do mestre, aquela condição havia-se-lhe tornado odiosa. Benvenuto, que ignorava o que se passava no coração de Catarina, apanhou os quatro escudos do chão e entregou-lhos pela segunda vez, dizendo-lhe que, se de futuro lhe pudesse vir a ser prestável, não hesitasse em se lhe dirigir; seguidamente, passou ao atelier dos artífices, à procura de Ascânio, para lhe mostrar o trabalho acabado.

Ficando só, Catarina foi beijar, um após outro, todos os utensílios de que o mestre se tinha servido; depois, saiu chorando.

No dia seguinte, Catarina entrou no atelier quando Benvenuto ali se encontrava só. Ficou admirado por a voltar a ver ali, e ia perguntar-lhe o motivo da sua vinda quando Catarina correu para ele e, caindo de joelhos, lhe perguntou se não precisava de uma criada.

Benvenuto tinha um coração de artista e, por conseguinte, capaz de tudo pressentir e compreender; adivinhando o que se passava na alma da pobre jovem, ergueu-a do solo e beijou-a na fronte.

Daquele momento em diante, Catarina passou a fazer parte do atelier, que iluminava, como dissemos, com a sua infantil alegria, e que animava com o seu contínuo cirandar. Tornou-se de repente indispensável a todos, e a Benvenuto mais do que a nenhum. Era ela que tudo fazia e punha em ordem, repreendendo ou acariciando Ruperte, que a princípio a vira entrar com pavor, mas que logo acabou por a amar como os mais.

Erígone também lucrou com a ida de Catarina. Tendo o seu modelo constantemente junto de si, Benvenuto retocou-a e acabou-a com uma perfeição prodigiosa, que talvez ainda não tivesse comunicado a nenhuma das suas estátuas. O rei Francisco I ficou com ela tão maravilhado, que pediu a Benvenuto que lha reproduzisse em prata. Depois, em longa conversa com o mestre-ourives, perguntou-lhe onde tinha instalado o seu atelier, como se achava nele, e se ali tinha muitas e belas obras expostas. E, ao despedir-se de Benvenuto, o rei prometeu a si próprio ir uma manhã surpreendê-lo no meio do seu trabalho.

Chegamos agora ao momento em que, verdadeiramente, começa a nossa história, isto é, ao dia seguinte àquele em que Ascânio tão tarde regressara, graças às suas deambulações em torno do Palácio de Nesle.

Benvenuto trabalhava, Catarina cantava. Ascânio sonhava e Pagolo rezava.

De súbito, ouviu-se bater ruidosamente à porta da rua; Dona Ruperte levantou-se imediatamente para ir abrir, mas Scozzone (como dissemos, foi este o nome que Benvenuto tinha dado a Catarina) adiantou-se-lhe numa corrida vertiginosa.

Instantes depois, ouvia-se uma voz meio jubilosa, meio assustada, exclamar:

— Oh! meu Deus! Oh meu Deus, mestre! é o rei! O rei em pessoa que vem visitar o vosso atelier!

E a pobre Scozzone, deixando todas as portas escancaradas atrás de si, transpôs muito pálida e a tremer a do aposento onde Benvenuto trabalhava no meio dos seus discípulos e aprendizes.

 

         GÉNIO E REALEZA

Efectivamente, pouco depois, o rei Francisco I, com a sua comitiva entrava no pátio. Dava a mão à duquesa d'Étampes. Seguia-se o rei de Navarra com a delfina Catarina de Médicis. Depois vinha o delfim (que veio a ser Henrique II) com a sua tia Margarida de Valois, rainha de Navarra. Quase toda a nobreza os acompanhava.

Benvenuto adiantou-se a dar as boas-vindas, recebendo, sem embaraço nem perturbação, os reis, os príncipes, os grandes senhores e as formosas damas, tal como um amigo recebe os seus amigos. E no entanto estavam ali os nomes mais ilustres de França, e as mais resplandecentes formosuras do Mundo. Margarida encantava, a Sr.a d'Étampes arrebatava, Catarina de Médicis maravilhava, Diana de Poitiers deslumbrava. Mas quê!... se Benvenuto estava familiarizado com os tipos da beleza mais pura da Antiguidade e do século XVI italiano, se o discípulo predilecto de Miguel Angelo estava habituado ao convívio dos reis!...

— Haveis de me permitir que admire todas estas obras maravilhosas ao vosso lado, Senhora — disse Francisco I à duquesa d'Étampes, que sorriu.

Ana de Pisseleu, duquesa d'Étampes, que desde que o rei regressara do seu cativeiro em Espanha tinha sucedido, no lugar de favorita, à condessa de Châteaubriand, estava então na plena pujança de uma beleza verdadeiramente real. Direita e firme, a despeito da sua fina cintura, movia a cabeça encantadora com grande dignidade e uma certa graça felina, fazendo também lembrar a gata e a pantera, tanto em seus inesperados movimentos como em certos apetites carniceiros; não obstante, a real cortesã sabia dar-se uns ares tão cândidos que chegava a enganar os menos ingénuos. Nada mais inquieto e pérfido que a fisionomia desta mulher de lábios pálidos, ora Hermíone, ora Galateia, de sorriso às vezes sedutor, outras terrível, de olhar caridoso e prometedor agora, e logo chamejante de cólera. Tinha uma maneira de levantar as pálpebras com tanta lentidão que jamais se podia prever se os seus olhos iriam expressar doçura ou terríveis ameaças. Altiva e imperiosa, subjugava Francisco I, embriagando-o com os seus encantos; orgulhosa e ciumenta, tinha-lhe exigido que reouvesse todas as jóias por ele oferecidas à bela e melancólica condessa de Châteaubriand, que lhas restituiu, protestando menos contra o esbulho que contra a profanação dos sentimentos. Flexível e dissimulada, já mais de uma vez tinha fechado os olhos, quando, em seus caprichos, o rei requestava alguma das encantadoras jovens da corte. A verdade, porém, é que sempre acabava por abandoná-la para voltar à sua bela e poderosa sedutora.

— Ansiava por ver-vos, Benvenuto — disse o rei —, pois creio que vai para dois anos que estais no nosso reino, mas os cuidados da governação têm-me impedido de pensar nas nobres coisas da arte. Queixai-vos a meu irmão e primo, o imperador, pois me não dá um momento de descanso.

— Se quiserdes, escrever-lhe-ei, Majestade, pedindo-lhe que vos deixe agora ser o grande amigo das artes, visto que já lhe provastes bem que sois um grande capitão.

— Conheceis então Carlos V?! — perguntou o rei de Navarra.

— Há quatro anos, em Roma, tive a honra de apresentar a Sua Majestade Sagrada um missal de minha lavra, dirigindo-lhe então um pequeno discurso que, segundo creio, o não deixou indiferente.

— E que vos disse Sua Majestade Sagrada?

— Que já me conhecia através de um botão cinzelado por mim e que vira sobre a capa de Sua Santidade, três anos antes. Segundo as suas palavras, aquele trabalho honrava sobremaneira o autor.

— Oh! Vejo que estais habituado aos elogios reais... — disse Francisco I.

— É certo, Majestade; tive a felicidade de satisfazer grande número de cardeais, grão-duques, príncipes e reis.

— Mostrai-me então os vossos belos trabalhos, a ver se serei juiz mais exigente que os outros.

— Majestade, bem pouco tempo tive... ainda mas, aqui está um vaso e uma bacia que comecei, e que talvez não sejam indignos da vossa atenção.

Durante cerca de cinco minutos, o rei esteve a observar as duas peças em silêncio. Era evidente que a beleza da obra lhe fazia esquecer o autor; por fim, como as damas se haviam aproximado cheias de curiosidade, o rei exclamou:

— Vejam, minhas Senhoras: que grande maravilha! Que originalidade e que ousadia na forma deste vaso! Que finura e que perfeição de modelação, meu Deus! nestes baixos e altos-relevos. O que mais admiro ainda é a beleza destas linhas; mas vede também como todas as atitudes das figuras são variadas e cheias de verdade! Olhai esta aqui, com o braço levantado acima da cabeça: há tanta naturalidade neste gesto furtivo, que nos chegamos a admirar que o movimento principiado não continue. Francamente, creio bem que os Antigos jamais fizeram nada mais belo. Lembro-me de ter admirado as melhores colecções da Antiguidade, e as dos mais hábeis artistas contemporâneos de toda a Itália; pois nenhuma dessas obras me causou maior impressão do que este vaso ainda não concluído. Oh, Sr.a de Navarra, reparai, peço-vos, nesta linda criança perdida entre as flores, com o seu pezito a agitar-se no ar... como tudo isto é vivo, gracioso e belo!

— Oh rei grande! rei imenso! — gritou Benvenuto — os outros elogiavam-me, é certo, mas vós!... vós compreendeis-me!

— Tendes algo mais para eu ver? — perguntou o rei com uma espécie de avidez.

— Aqui tendes uma medalha, representando Leda e o seu Cisne; fi-la para o cardeal Cesarini. Isto é um sinete onde gravei as figuras de S. João e Santo Ambrósio; este relicário esmaltado...

— Com que então também cunhais medalhas?! — perguntou a Sr.a d'Etampes.

— Como Cavadone de Milão, Senhora.

— Esmaltais a ouro? — perguntou Margarida de Valois.

— Como Amerigo de Florença.

— Gravais sinetes? — disse Catarina de Médicis.

— Como Lantisco de Perúsia. Imaginais, Senhora, que o meu trabalho se limita às finas jóias de ouro e às grandes peças de prata? Sei fazer um pouco de tudo, graças a Deus. Sou um sofrível engenheiro militar: já por duas vezes evitei que Roma fosse tomada. Sei burilar um soneto, e Vossa Majestade não tem mais que encomendar-me um poema e eu vos louvarei em verso tão sublimemente como o poderia fazer Clemente Marot. Pelo que respeita à música, meu pai ensinou-ma à bastonada, mas tal método aproveitou-me, pois que o meu talento na flauta e no cornetim é tal que Clemente VII me conservou 24 anos entre os seus músicos. Descobri, além disso, um processo para fabricar pólvora de excelente qualidade, e tanto sou capaz de construir admiráveis escopetas como os mais úteis instrumentos de cirurgia. Se Vossa Majestade, estando em guerra, me quiser empregar como homem de armas, verá que também não sou desajeitado, e que sei tão bem manejar um arcabuz como apontar uma colubrina. Como caçador, já cheguei a matar vinte e cinco pavões num só dia, e como artilheiro, desembaracei o imperador do príncipe de Orange, e Vossa Majestade do condestável de Bourbon, o que também demonstra que sou sempre nefasto aos traidores.

— Na verdade... — disse o jovem delfim — e de que vos orgulhais mais, de ter matado o condestável ou de ter abatido os vinte e cinco pavões?

— Não me orgulho de uma coisa nem de outra, Alteza. A arte, como todos os outros dons, vem de Deus, e eu usei da minha arte.

— Esta agora! Mas é que eu ignorava que já me tivésseis prestado tão grande serviço — disse o rei —, serviço que, aliás, minha irmã Margarida vos não há-de certamente perdoar nunca. Fostes então vós quem matou o condestável de Bourbon? Como foi que isso se passou?

— Ora! da maneira mais simples. O exército do condestável tinha chegado inesperadamente à vista de Roma e estava a assaltar as suas muralhas. Fui ver com alguns amigos; mas, ao sair, maquinalmente, tinha posto o arcabuz ao ombro. Quando chegámos à muralha, vi que infelizmente não havia nada a fazer. «Foi então só para isto que cá vim!?» disse para comigo. Apontei então o arcabuz em direcção a um grupo de combatentes que me pareceu mais numeroso e cerrado que os outros, e visei precisamente aquele cuja cabeça sobressaía de todo o grupo. Tombou, fazendo-se de repente um grande tumulto. Tinha, de facto, matado o condestável.

Enquanto Benvenuto fazia este relato com a maior indiferença, havia-se alargado o círculo de senhoras e fidalgos que o escutavam, e todos olhavam com respeito e quase pavor aquele herói, que parecia ignorar o próprio mérito. Apenas Francisco I havia permanecido junto de Cellini.

— Vejo agora, meu caro Benvenuto — disse o rei —, que antes de me terdes consagrado o vosso génio já me tínheis servido com a vossa bravura.

— Majestade — retorquiu Benvenuto alegremente —, às vezes penso que nasci apenas para servir-vos, e isto por causa de uma curiosa aventura que me aconteceu quando era pequeno. As vossas armas são uma salamandra, não são, Majestade?

— Sim, uma salamandra, com a divisa: Nutrisco et extinguo.(1)

— Pois teria eu cinco anos quando uma tarde, encontrando-me com meu pai numa sala onde secava roupa e ardia uma boa fogueira de carvalho, sucedeu algo que jamais poderei esquecer. O tempo estava frigidíssimo. Olhando por acaso para o fogo, descobri no meio das chamas um animalzito muito semelhante a um lagarto que se divertia no mais aceso das labaredas. Mostrei-o a meu pai, e (perdoai o pormenor familiar deste costume brutal do meu país) meu pai, assentando-me um violento bofetão, disse-me com doçura: «Não te bato porque te tenhas comportado mal, meu filho, mas para que te lembres sempre de que viste uma salamandra, coisa raríssima. Sabe que nunca ninguém, antes de ti, se pôde gabar de ter visto semelhante animal.» Não vos parece que aquilo foi já uma advertência do destino?

 

*1. N. T. — Locução latina que significa: alimento e extingo.

 

Há uma autêntica predestinação na minha vida, pois estando eu para ir para Inglaterra com o cinzelador Pedro Torreggiano, contou-me este que um dia, numa discussão de atelier, esbofeteara o nosso grande Miguel Angelo. Oh! nem por um título de príncipe teria partido com um homem que levantara a mão para o grande dos grandes na escultura. E em vez de ir para Itália, já vedes... vim para França.

— Pois a França, orgulhosa de a terdes escolhido, saberá fazer com que não venhais a ter saudades da pátria.

— Oh, a minha pátria é a arte; o meu príncipe será aquele que me der a cinzelar a taça mais opulenta.

— E tendes agora em mente alguma bela composição, Cellini?

— Sim, Majestade: um Cristo. Mas não na cruz, senão em toda a sua glória e esplendor. Procurarei, na medida do possível, reproduzir aquela beleza infinita sob a qual uma vez se me apresentou.

— Pois quê?! — exclamou a céptica Margarida de Valois, rindo — então, além de todos os reis da Terra, teríeis acaso visto também o Rei dos Céus?!...

— Sim, Senhora minha — respondeu o grande Benvenuto Cellini com uma simplicidade de criança.

— Oh! Contai-nos, contai-nos então também como isso foi! — exclamou a rainha de Navarra.

— Com o maior dos gostos, Senhora — respondeu Benvenuto Cellini, com tão boa fé que não admitia cepticismos. — Não muito tempo antes — prosseguiu —, eu tinha visto Satã e todas as legiões do Diabo que um padre nigromante meu amigo evocara diante de mim no Coliseu; e nem imaginais o trabalhão que depois tivemos para nos vermos livres deles! Mas a terrível recordação destas visões infernais desapareceu para sempre do meu espírito quando, a meu ardente pedido, me apareceu, para me reconfortar das misérias da prisão, o divino Salvador dos homens, no meio do Sol e coroado por todos os seus esplêndidos raios.

— E estais verdadeiramente certo? — perguntou a rainha de Navarra. — Não tendes a mais pequena dúvida de que Cristo vos apareceu?

— Nem a mais pequena, Senhora.

— Então, Benvenuto, fazei-nos para a nossa capela um Cristo de acordo com a vossa visão — interveio Francisco I com a sua habitual bonomia.

— Se Vossa Majestade quisesse ter a bondade de me encomendar qualquer outra obra, adiaria ainda um pouco mais esse trabalho.

— Mas porquê?

— Porque prometi a Deus não o fazer para qualquer outro soberano que não fosse Ele próprio.

— Pois que seja em boa hora! — disse o rei com emoção. — E agora vamos à nossa obra, Benvenuto. Preciso de doze candelabros para a minha mesa.

— Ah, isso é outra coisa. Sereis obedecido. Majestade.

— Desejo que esses candelabros sejam doze estátuas de prata.

— Majestade, será magnífico.

— As estátuas representarão seis deuses e seis deusas, e o seu tamanho deverá ser exactamente o meu.

— Entendido, Majestade.

— Mas... é um poema o que encomendais! — disse a duquesa d'Étampes — uma maravilha de pasmar! não achais, Sr. Benvenuto?

— Nunca pasmo, Senhora.

— Pois pasmaria eu — retorquiu a duquesa com despeito — que um escultor do nosso tempo soubesse desempenhar-se brilhantemente de tal trabalho.

— Pois espero realizá-lo eu com a mesma perfeição com que os Antigos poderiam fazê-lo — respondeu Benvenuto com sangue-frio.

— Não estareis a gabar-vos demasiado, mestre Benvenuto?

— Nunca me gabo, Senhora.

Ao proferir estas palavras com a maior calma, Cellini olhou a Sr.a d'Étampes, e a altiva duquesa viu-se forçada a baixar os olhos sob o império daquele olhar firme e seguro que nem sequer estava irritado. Ana sentiu então um ódio surdo contra Cellini, por causa daquela superioridade com que, a seu pesar, a dominava, e que ela não sabia explicar. Até então sempre havia pensado que a beleza era a coisa mais poderosa do mundo. Esquecera-se do poder do génio.

— Que tesouros seriam então necessários — disse ela com azedume — para recompensar um talento como o vosso?

— Os meus certamente não bastavam — disse Francisco I — e, a propósito, Benvenuto: está-me a lembrar de que ainda não recebestes mais que os quinhentos escudos de oiro de boas-vindas. Ficareis satisfeito com os setecentos escudos anuais que dava ao meu pintor Leonardo da Vinci? Pagar-vos-ei à parte, notai, todas as obras que fizerdes para mim.

— Majestade, a vossa oferta é digna de um rei como Francisco I e, ouso dizê-lo, de um artista como Cellini. Mas atrevo-me a pedir-vos ainda mais uma mercê.

— Antecipadamente vo-la concedo, Benvenuto.

— Majestade, estas instalações que vedes são exíguas e nada próprias para o meu género de trabalho. Um dos meus dicípulos descobriu um local muito mais conforme às grandes e belas obras que o meu rei pode esperar de mim. É um edifício de Vossa Majestade, é o Grand-Nesle. Actualmente dispõe dele o preboste de Paris, mas não o habita; ocupa apenas o Petit-Nesle, que eu de boa vontade lhe deixaria.

— Pois seja — disse Francisco I — instalai-vos no Grand-Nesle e assim bastar-me-á atravessar o Sena p'ara ir conversar convosco e admirar os vossos belos trabalhos.

— Como, Majestade?! — interrompeu a Sr.a d'Étampes — mas não vedes que privais assim, sem motivo, do que lhe pertence, um dos meus homens, um fidalgo?!

Benvenuto fitou-a pela segunda vez. Ana baixou os olhos sob a força daquela mirada estranha, fixa e penetrante. Cellini prosseguiu então com a mesma e ingénua boa fé com que havia descrito as suas aparições:

— Mas é que eu também pertenço à nobreza, Senhora. A minha família procede de um fidalgo chamado Florino, que foi primeiro-capitão de Júlio César; nasceu em Cellini, perto de Montefiscone, e foi ele que deu o nome a Florença. Ora, segundo creio, nem o vosso preboste nem nenhum dos seus antepassados deu jamais o seu nome a o quer que fosse. Contudo — continuou Benvenuto, voltando-se para Francisco I e mudando simultaneamente de olhar e de tom —, talvez que eu me tenha mostrado demasiado atrevido, e fosse incitar contra mim ódios poderosos, que, apesar da protecção de Vossa Majestade, poderiam acarretar a minha perdição. O preboste tem, segundo se diz, uma espécie de exército às suas ordens.

— Contaram-me — interrompeu o rei — que, um dia, em Roma, um certo Cellini, mestre-ourives, guardou para si o vaso de prata que lhe encomendara e não quis pagar Monsenhor Farnese, então cardeal e hoje papa...

— É certo, Majestade.

— Disseram-me que a casa do cardeal foi em peso e de espada em punho cercar a loja do mestre-ourives, com o fito de levar o vaso à força...

— Também é verdade.

— E que o tal Cellini, emboscado numa porta e de escopeta em punho, se tinha defendido valorosamente, pondo em debandada a gente de Monsenhor, que no dia seguinte lhe mandou pagar o vaso.

— Tudo isso, Majestade, é rigorosamente exacto.

— Pois bem! já não sois esse mesmo Cellini?...

— Que Vossa Majestade me conserve o seu favor e não terei medo de nada.

— Então, para a frente! — disse o rei sorrindo — para a frente, pois também sois fidalgo.

A Sr.a d'Etampes não pronunciou palavra, mas no seu íntimo jurou que dali em diante votaria a Cellini um ódio mortal, um ódio de mulher ofendida.

— Majestade, ainda um favor — disse Cellini. — Não posso apresentar-vos todos os meus operários. São em número de dez, entre franceses e alemães, todos honrados e hábeis companheiros, mas aqui tendes os meus dois alunos que trouxe comigo de Itália. Pagolo e Ascânio. Avançai Pagolo, e levantai a cabeça e os olhos sem insolência, como honrado homem que não tem de envergonhar-se de nenhuma má acção. A este faltam-lhe talvez dotes de invenção e ardor, mas é um artífice exacto e consciencioso; trabalha com lentidão mas bem; compreende as minhas ideias e executa-as com fidelidade. Eis agora Ascânio, o meu nobre e animoso discípulo, o meu filho bem-amado. Eu bem sei que lhe falta aquele vigor inventivo que, num baixo-relevo, faz entrechocarem-se e dilacerarem-se com ímpeto duas hostes inimigas, ou fixar poderosamente no bordo de um vaso as garras de um leão ou os dentes de um tigre. Carece também daquela fantasia original que inventa monstruosas quimeras e impossíveis dragões. Mas a sua alma, semelhante ao seu coração, tem o instinto de um ideal, por assim dizer, divino. Pedi-lhe que vos modele um anjo ou que vos agrupe algumas ninfas, e ninguém o fará com tão suave poesia, nem com tão requintada graça. Com Pagolo, tenho quatro braços, mas com Ascânio tenho duas almas. Além disso, tem-me uma grande afeição, e eu sinto-me bem feliz por ter ao pé de mim um coração tão puro e dedicado como o seu.

Enquanto o seu mestre falava, Ascânio manteve-se de pé, perto dele, numa atitude modesta, sem embaraço, e plena de elegância. A Sr.a d'Étampes não podia tirar os olhos do jovem e encantador italiano, de olhos e cabelos negros, que parecia uma cópia viva do Apolino.

— Se Ascânio é assim tão hábil para as coisas graciosas — disse ela —, desejo que passe uma destas manhãs pelo meu palácio d'Étampes para eu lhe dar ouro e pedras preciosas para me fazer uma bela flor. Estou certa de que cinzelará algo de maravilhoso.

Ascânio inclinou-se com um doce olhar de agradecimento.

— E eu — disse o rei — estabeleço-lhe, bem como a Pagolo, um vencimento anual de cem escudos de oiro.

— E eu me encarregarei de lhes fazer merecer bem esse dinheiro, Majestade — disse Benvenuto.

— Ah!... Quem é aquela belíssima jovem de longos cílios que além se esconde? — disse Francisco I, notando, pela primeira vez, a presença de Scozzone.

— Oh, não lhe presteis tanta atenção — respondeu Benvenuto carregando o cenho. De todas as coisas belas do meu atelier é ela a única que não gosto que o visitante olhe demasiado.

— Sois ciumento, Benvenuto?

— Por Deus! Majestade... não gosto que toquem no que é meu, é só; mantidas as devidas distâncias é como se alguém se atrevesse a pensar na Sr.a d'Étampes. Tenho a certeza de que ficaríeis furioso, Majestade. Pois Scozzone é a minha duquesa.

A duquesa, interrompida assim, intempestivamente, na sua contemplação de Ascânio, mordeu os lábios. Muitos cortesãos, pelo contrário, não puderam esconder os sorrisos, e todas as damas cochicharam. Quanto ao rei, esse riu francamente, e disse:

— Vamos lá, Benvenuto, que o vosso ciúme tem razão de ser, palavra de fidalgo! e, de artista para rei, cá nos entendemos. Adeus, meu amigo, tratai das minhas estátuas. Começareis pela de Júpiter, naturalmente; e quando tiverdes acabado a maqueta, não vos esqueça mostrar-ma. Adeus; boa sorte no Palácio de Nesle.

— Mostrar-vos a maqueta? E como entrar no Louvre?

— Todos os porteiros do palácio serão avisados, e terão ordem de vos conduzir à minha presença.

Cellini inclinou-se, no que foi secundado por Pagolo e por Ascânio, acompanhando todos o rei e a corte até à porta da rua. Aqui, ajoelhando, Benvenuto Cellini beijou a mão de Francisco I e disse num tom compenetrado:

— Majestade, por intermédio de Monsenhor Monluc salvastes-me do cativeiro e talvez da morte. Cumulastes-me de riquezas, e acabais de honrar o meu atelier com a vossa real presença. Mas o que é ainda mais do que tudo isso, Majestade, e faz com que eu não saiba nunca como agradecer-vos, é que vós destes realidade a todos os meus sonhos. Habitualmente, o nosso trabalho destina-se a uma raça de elite disseminada através dos séculos, mas eu tive a suprema ventura de ser coetâneo de um apreciador sempre presente e sempre esclarecido. Até agora fui apenas um obreiro do futuro, de hoje em diante serei muito mais: serei o ourives de Vossa Majestade.

— Meu obreiro, meu ourives, meu artista e meu amigo, se este título vos não parecer menos honroso do que os outros, Benvenuto. Adeus; ou antes, até breve.

É evidente que todos os príncipes e grão senhores, à excepção da Sr.a d'Étampes, imitaram o rei, cumulando Cellini de gentilezas e elogios.

Depois de todos partirem, Benvenuto ficou só com os dois discípulos, e estes agradeceram-lhe. Ascânio fê-lo com efusão, Pagolo com relutância.

— Não me agradeçais, meus filhos, que não tendes de quê. Mas, se pensais dever-me qualquer reconhecimento, gostaria, já que o assunto se proporcionou, de pedir-vos um pequeno favor. Trata-se de alguma coisa que diz respeito ao sossego e à felicidade do meu coração. Ouvistes certamente o que disse ao rei a respeito de Catarina; foram frases tiradas do mais íntimo do meu ser. Aquela criança tornou-se necessária à minha vida, à minha vida de artista, pois bem sabeis quão alegremente se presta a servir-me de modelo; e também à minha vida de homem, pois creio que me tem amor. Pois bem! Embora saiba muito bem que é bela, e que vós sois tão jovens como ela, peço-vos que jamais ponhais o vosso pensamento em Catarina. Há no mundo muitas outras raparigas igualmente belas. Não dilacereis pois nunca o meu coração, menosprezando a minha grande amizade por vós, dirigindo qualquer olhar mais ousado sobre a minha Scozzone. Peço-vos mesmo que a vigieis, quando eu estiver ausente, aconselhando-a como irmãos. Por tudo que há de mais sagrado, lembrai-vos sempre deste meu pedido. Conheço-me bem e, por Deus vos juro! que se algum mal sucedesse, matá-la-ia a ela e ao seu cúmplice.

— Mestre — disse Ascânio —, respeito-vos como mestre e amo-vos como pai: ficai tranquilo.

— Meu bom Jesus! — exclamou Pagolo juntando as mãos. — Deus me livre de pensar sequer em tal infâmia!... Poderia esquecer-se de que tudo vos devo!? Que abominável crime não seria o meu se, abusando da santa confiança que em mim depositais, ousasse pagar a vossa bondade com perfídia tão cobarde!

— Obrigado, meus amigos — disse Benvenuto, estreitando-lhes as mãos —, mil vezes obrigado. Estou satisfeito e confio em vós. Agora, Pagolo, volta para o teu trabalho, pois sabes que prometi para amanhã o sinete do Sr. de Villeroi. Entretanto, eu e Ascânio iremos visitar o edifício com que o nosso gracioso rei acaba de honrar-nos, e onde, no próximo domingo, a bem ou a mal, nos havemos de instalar.

Depois, voltando-se para Ascânio:

- Ora vamos ver - disse - se essa famosa mansão de Nesle, que tanto te agradou por fora, também por dentro é digna do teu entusiasmo.

E sem dar tempo a Ascânio para formular a menor observação, Benvenuto, lançando um último olhar ao atelier para verificar se todos os operários estavam nos seus lugares, e fazendo uma afectuosa carícia na face rosada de Scozzone, deu o braço ao discípulo e, arrastando-o para a porta, saiu com ele.

 

         PARA QUE SERVEM, AFINAL, AS AIAS GRAVES

Teriam dado apenas uns dez passos fora da porta, quando se cruzaram com um homem dos seus cinquenta anos, miudinho, mas de fisionomia fina e expressiva.

— Ia agora mesmo a vossa casa, Benvenuto — disse o recém-chegado, que Ascânio cumprimentou com um misto de respeito e veneração, e a quem Benvenuto estendeu cordialmente a mão.

- É coisa de importância, meu caro Francisco? — disse o mestre-ourives. — Se assim for, volto já para trás convosco; mas, se íeis apenas ver-me, vinde daí connosco.

— Era para vos dar um conselho, Benvenuto.

— Sou todo ouvidos. Sempre se deve escutar um conselho quando vem de um amigo.

— Mas é que este que tenho para dar-vos só deve ser escutado por vós...

— Este jovem é um outro-eu, Francisco: podeis falar.

— Já o teria feito, se achasse que o devia fazer — respondeu o amigo de Benvenuto.

— Perdão mestre — disse Ascânio, afastando-se discretamente.

— Nesse caso, vai então, tu sozinho, meu filho, onde tencionávamos — disse Benvenuto.

— Tanto faz que sejas tu a ver o palácio como eu próprio. Examina bem todos os pormenores;

repara se o atelier tem bastante luz, se poderá instalar-se uma fundição no pátio e se haverá maneira de separar o nosso atelier do dos aprendizes. Ah, não te esqueças do jogo da péla.

E Benvenuto enfiou o braço no do seu amigo, acenou a Ascânio e voltou para o atelier, deixando o jovem mudo e imóvel em plena Rua de S. Martinho.

É que, no encargo que seu mestre acabava de lhe confiar, sobejavam motivos de perturbação para Ascânio. Já não foi pequena emoção quando Benvenuto lhe propôs irem os dois fazer aquela visita. Imagine-se o que sentiria ao ser-lhe dito que a devia efectuar sozinho.

Ele, que durante dois domingos a fio tinha visto Colomba sem ousar segui-la, e que, no terceiro, a tinha seguido sem ousar falar-lhe, ia agora apresentar-se-lhe na própria casa. E para quê? Para visitar o Palácio de Nesle, que Benvenuto contava, no domingo seguinte, tirar, a bem ou a mal, ao pai de Colomba.

Se a posição era falsa para quem quer que fosse, para um enamorado era angustiante.

Por sorte, havia uma considerável distância desde a Rua de S. Martinho até ao Palácio de Nesle. Se apenas mediassem alguns passos, Ascânio certamente não os teria dado. Tinha uma boa meia légua a percorrer; por isso, pôs-se a caminho.

Não há nada melhor para nos familiarizar com o perigo como o tempo ou a distância que dele nos separa. Para todas as almas fortes, assim como para os temperamentos bem dotados, a reflexão é sempre um auxílio poderoso. Ora Ascânio pertencia a esta última classe.

Naquele tempo ainda não estava em moda os jovens mostrarem-se desgostados da vida antes mesmo de entrarem nela.

Todas as sensações eram sinceras, exprimindo-se sem peias; a alegria pelo riso e a dor pelas lágrimas. A afectação era, naquele tempo, tão desconhecida na vida como na arte, e um jovem e belo rapaz não tinha qualquer pejo em confessar que era feliz.

Ora, no meio da perturbação de Ascânio havia uma certa felicidade. Só esperava voltar a ver Colomba no domingo seguinte e, afinal, iria vê-la ainda naquele mesmo dia. Era uma bela antecipação de seis dias, e seis dias à espera são quase seis séculos para os namorados.

Por outro lado, à medida que se aproximava, tudo ia parecendo mais simples. Se fora ele, na verdade, quem induzira Benvenuto a pedir Nesle ao rei, também não era menos verdade que Colomba lhe não poderia querer mal por ter procurado aproximar-se dela. Era mais que evidente que a entrada do mestre-ourives florentino no velho palácio de Amauri só podia fazer-se em detrimento do pai de Colomba, que o tinha por seu; mas poderia o Sr. Roberto d'Estourville sentir demasiado a perda da mansão que, de facto, não habitava?... De resto, Benvenuto tinha mil maneiras de pagar o aluguer: uma taça oferecida ao preboste, um colar para sua filha (e Ascânio se encarregaria de o cinzelar), podiam e deviam aplanar muito as coisas, numa época de arte como aquela. Quantos grão-duques, reis e papas não vira já Ascânio prontos a venderem a coroa, o ceptro ou a tiara para poderem comprar uma daquelas jóias maravilhosas que saíam das mãos do seu mestre? Se as coisas se viessem a compor por este processo, ainda seria o preboste que no fim ficaria a ganhar, pois mestre Benvenuto era tão generoso que, se o Sr. d'Estourville se houvesse nisto como um autêntico fidalgo, Cellini havia de proceder como um rei. Ao chegar ao fim da Rua de S. Martinho, Ascânio olhava-se já como um mensageiro de paz escolhido pelo Senhor para manter a harmonia entre dois potentados.

Não obstante tal convicção, e bizarro como todos os apaixonados, Ascânio sentiu súbita necessidade de alongar ainda um pouco mais a caminhada e, em lugar de atravessar o Sena de barco, foi seguindo ao longo do cais, acabando por passar o rio na Ponte dos Moinhos. Mas também é possível que tenha tomado este caminho por ser o mesmo que tomara na véspera, ao seguir Colomba. Fosse o motivo qual fosse, o certo é que vinte minutos haviam passado, e Ascânio achava-se quase defronte do Palácio de Nesle.

Ao ver a pequena porta ogival por onde teria de entrar, ao deparar com o encantador palaciozinho gótico com os seus campanários minúsculos mas ousados, ao pensar que, para lá das gelosias meio cerradas por causa do calor, estava a sua bela Colomba, todo aquele castelo de sonhos que construíra pelo caminho ruiu de repente, como esses belos amontoados de nuvens que o vento dissipa ao passar. Teve então que enfrentar a realidade, uma realidade bem pouco tranquilizadora.

Depois do compasso de espera de alguns momentos na torreira do cais, onde não se avistava vivalma, Ascânio compreendeu que se lhe tornava absolutamente necessário tomar qualquer decisão. Mas a verdade é que não podia nem devia tomar outra que não fosse a de entrar. Avançou pois até ao limiar da porta e ergueu a aldraba. Mas, se aquela não fosse aberta de súbito e como por acaso por um criado com ares de aldeão, Deus sabe se Ascânio teria deixado cair a aldraba!... O homem teria os seus trinta anos, e era o jardineiro do Sr. d'Estourville.

Ascânio e o jardineiro recuaram ao mesmo tempo.

— Que quereis? — disse o último.

Obrigado a ir por diante, Ascânio chamou a si toda a coragem disponível e respondeu intrépido:

— Pretendo visitar o palácio.

— Que dizeis? Visitar o palácio?!... — exclamou o jardineiro, estupefacto. — E em nome de quem?

— Em nome do rei.

— Em nome do rei?! — repetiu o jardineiro. — Pelas chagas de Cristo! será que o rei nos quer tirar o palácio?...

— Talvez — respondeu Ascânio.

— Mas que quer isto dizer!?

— Deveis compreender, meu amigo — disse Ascânio com aprumo —, que não me compete dar-vos qualquer explicação.

— Claro. E a quem desejais falar?

— O Senhor Preboste encontra-se em casa? — perguntou Ascânio, que sabia perfeita-mente que o Sr. d'Estourville não estava.

— Não senhor; encontra-se no Châtelet.

— Nesse caso, quem o substitui na sua ausência?

— A sua filha, a Menina Colomba. Ascânio sentiu que corava até às orelhas.

— Também podia ser Dona Perrine. Deseja V. S.a falar com ela ou com a Menina Colomba?

Esta simples e natural pergunta não provocou pequena perplexidade em Ascânio. Abriu a boca para dizer que era com Colomba que queria falar, mas foi o nome da aia que lhe saiu dos lábios.

O jardineiro longe de suspeitar o tremendo embaraço que a sua havia causado a Ascânio, inclinou a cabeça em sinal de que ia obedecer e atravessou o pátio em direcção à porta interior. Ascânio, seguiu-o.

Teve que atravessar ainda um outro pátio, depois uma segunda porta e um jardim; subiu depois uns degraus exteriores e atravessou uma longa galeria. Por fim, o jardineiro abriu uma porta, dizendo:

— Dona Perrine, é um jovem que pede para visitar o palácio em nome do rei.

E, afastando-se, deu lugar a Ascânio, que lhe sucedeu no limiar da porta. Os olhos de Ascânio turvaram-se, e teve mesmo que se apoiar à parede, pois uma coisa bem natural, mas que ele não tinha previsto, sucedera. Colomba encontrava-se ali na companhia de Dona Perrine, de modo que Ascânio achava-se agora diante das duas.

Dona Perrine, junto da roda, fiava. Colomba estava ao tear, fazendo tapeçaria.

As duas levantaram a cabeça ao mesmo tempo, olhando em direcção à porta.

Colomba reconheceu imediatamente Ascânio. Esperava-o, até sem que tivesse motivos para isso. Quando o jovem viu os olhos de Colomba levantarem-se finalmente para si, cuidou que morria traspassado de tanta doçura e tanta pureza.

Previra mil dificuldades, mil obstáculos para chegar até ao coração da sua amada; esses obstáculos e essas dificuldades deveriam porém exaltar os seus sentimentos fortalecendo-os. No entanto, nada disso sucedera, como se Deus, movido da pureza daquele amor, o tivesse bendito e encorajado.

Ali estava agora diante dela, sem achar uma frase ou uma só palavra de quanto de belo preparava para lhe dizer, e com que esperava maravilhá-la e enternecê-la.

Por seu lado, Colomba permanecia imóvel e em silêncio. Estas duas jovens e puras existências, como que unidas antecipadamente no Céu, sentiam já que se pertenciam, e que, ao aproximarem-se, deviam, como as de Sálmacis e Hermafrodite, confundir-se numa só. Era por isso que, perturbadas com este primeiro encontro, tremiam, hesitavam e não achavam que dizer uma à outra.

Foi, pois, Dona Perrine a primeira a cortar o silêncio. A digna aia soergueu-se um pouco na cadeira, tirou a roca da cintura e, apoiando-se no carretel da sua roda, exclamou:

— Que nos disse aquele asno do Rambault? Ouviste, Colomba? E como Colomba não respondia:

— Que pretendeis daqui, jovem Senhor? — continuou ela, dando alguns passos na direcção de Ascânio. — Em boa hora! — exclamou ao reconhecer o seu interlocutor — é o gentil cavaleiro que estes três últimos domingos tão garbosamente me ofereceu a água benta à porta da igreja! Em que posso ser-vos útil, meu belo cavaleiro?

— Queria falar-vos — balbuciou Ascânio.

— A sós? — perguntou Dona Perrine, num requebro mui cómico.

— Pois... sim, a sós.

E Ascânio disse logo para consigo que não podia ter sido mais néscio.

— Então vinde por aqui — disse Dona Perrine, abrindo uma porta lateral e convidando-o com um gesto a segui-la.

Seguiu-a Ascânio, mas não sem lançar a Colomba um destes longos olhares em que os namorados sabem pôr tanta eloquência e que, por mais prolixos e ininteligíveis que pareçam aos indiferentes, acabam sempre por se fazerem compreender pelos interessados. É claro que Colomba não perdeu uma só palavra da sua significação, pois que os seus olhos encontraram-se inexplicavelmente com os do jovem, o que os fez corar prodigiosamente a ambos. Colomba, sentindo o rubor que lhe tingira as faces, desceu os olhos sobre o tear, e desatou a picar uma pobre flor matizada que, evidentemente, nenhuma culpa tinha. Notando aquela adorável perturbação, estacou, e ainda chegou a dar um passo em direcção a Colomba, mas, nesse mesmo momento, Dona Perrine voltou-se e chamou o jovem, que se viu obrigado a segui-la sem mais tardança. Mal Ascânio desapareceu no limiar da porta, Colomba depôs a agulha e deixou tombar os braços ao longo do corpo; depois, inclinando a linda cabeça sobre o encosto da cadeira, soltou um longo suspiro, onde, por um destes inexplicáveis mistérios do coração, se confundia o desgosto de ver afastar-se Ascânio e um certo alívio por o não sentir já ali.

Quanto ao jovem, estava de muito mau humor; em primeiro lugar contra Benvenuto, que o encarregara de tão melindrosa tarefa; em segundo, contra si próprio, pois não soubera aproveitar-se de tão bela oportunidade; e em terceiro lugar, contra Dona Perrine, que assim o chamava no momento em que lhe parecera que os olhos de Colomba lhe diziam que ficasse.

Assim, mal se viu a sós com a respeitável dama, e esta inquiriu o objectivo da sua visita, Ascânio respondeu-lhe um tanto desabridamente, como se fosse ela culpada da sua tibieza:

— O fim da visita, minha cara Senhora, é pedir-vos que me mostreis o Palácio de Nesle de uma ponta a outra.

— Mostrar-vos o palácio?! — exclamou Dona Perrine estupefacta — e porquê?

— Para ver se nos convém, se ficaremos lá bem instalados; enfim, para ver se vale a pena mudarmo-nos para lá.

— Mudarem-se para lá?! Então o Senhor Preboste aluga-lhes o palácio?!

— Não; ofereceu-no-lo Sua Majestade.

— Ofereceu-vo-lo Sua Majestade?! — exclamou Dona Perrine no auge do espanto.

— Fez-nos dele doação absoluta — respondeu Ascânio.

— A vós?

— A mim não, excelente senhora, a meu mestre.

— E, se não sou indiscreta, quem é o vosso mestre, meu jovem? É sem dúvida algum grão senhor estrangeiro...

— Mais do que isso, Dona Perrine: é um grande artista vindo expressamente de Florença para servir Sua Majestade Cristianíssima.

— Ah!... Oh!. — exclamou a boa matrona, que não compreendia lá muito bem. — E o vosso mestre o que faz?

— Que faz?! Faz tudo: anéis para os dedos das jovens, gomis para as mesas dos reis. estátuas para os templos de Deus; e, nas suas horas de ócio, vai cercar ou defender cidades, segundo lhe dá na gana, fazer tremer um imperador ou tranquilizar um papa.

— Santo Deus! — exclamou Dona Perrine. — E como é que se chama o vosso mestre?

— Chama-se Benvenuto Cellini.

— Tem graça, nunca ouvi esse nome — murmurou a grave matrona. — Que profissão tem?

— É ourives.

Dona Perrine fitou Ascânio com uns grandes olhos de espanto.

— Ourives?!... disse ela — ourives?!... E imaginais que o Senhor Preboste vai agora ceder o seu palácio a um... a um ourives?!...

— Se ele o não ceder, nós o haveremos.

— À força?

— A força.

— Ah, mas o vosso mestre não ousará fazer frente ao Senhor Preboste, suponho!...

— Pois já enfrentou três duques e dois papas, e sempre ficou vitorioso.

— Deus do Céu! Jesus!... A dois papas!... Não será um herético?...

— Tão católico como vós e como eu, Dona Perrine. Tranquilizai-vos, pois Satã não está do nosso lado; mas, à falta do Diabo, sabei que temos o rei por nós.

— Ah, pois o Senhor Preboste ainda tem melhor que o rei.

— Quem?

— A Sr.a d'Étampes.

— Nesse caso, as forças estão equilibradas — disse Ascânio.

— E se o Sr. d'Estourville recusar?...

— Mestre Benvenuto tomará posse.

— E se o Sr. Roberto se fechar como em cidadela?...

— Mestre Cellini lhe porá cerco.

— O Senhor Preboste tem vinte e quatro sargentos de armas, pensai bem nisto.

— Mestre Benvenuto Cellini tem dez aprendizes. As forças continuam equilibradas, como vedes, Dona Perrine.

— Mas, pessoalmente, o Sr. d'Estourville é um justador temível. No torneio que se realizou por ocasião do casamento de Francisco I, foi um dos campeadores, e deitou por terra quantos se atreveram a enfrentá-lo.

— Pois bem, Dona Perrine — disse Ascânio —, aí está justamente o homem que Benvenuto procura há muito tempo, pois não achou ainda quem lhe resistisse. Tal como o Sr. d'Estourville, também o meu mestre tem sempre deitado por terra os seus adversários; apenas com esta diferença: é que, passados quinze dias, os derrotados pelo preboste estavam novamente alegres, saudáveis e bem dispostos, ao passo que todos quantos tiveram pendências com o meu mestre, ao fim de treze dias estavam mortos e enterrados.

— Ai que isto vai acabar mal! ai que isto vai acabar mal!... — exclamou Dona Perrine. — É verdade que nas cidades tomadas de assalto se passam coisas terríveis como dizem?

— Tranquilizai-vos D. Perrine — respondeu Ascânio rindo —, os vossos vencedores hão-de usar da maior clemência.

— O que eu vos digo, meu filho — respondeu Dona Perrine, a quem não desagradava, talvez, ir-se assegurando um apoio entre os assaltantes —, o que eu vos digo, é que o meu maior receio é apenas de que corra sangue. Porque, quanto a ter-vos por vizinhos, bem podereis compreender quanto isso nos havia de agradar, uma vez que sentimos muito a falta de convivência neste ermo maldito, onde o Sr. d'Estourville nos confinou, à filha e a mim como duas pobres religiosas... sem voto, graças a Deus. Ora, se a Sagrada Escritura afirma que não é bom que o homem esteja só, deverá também entender-se o mesmo da mulher; não sois da mesma opinião?

— Ah, sem dúvida!

— Pois nós sentimo-nos muito sós e, por consequência, muito tristes neste casarão imenso.

— Mas então não recebeis visitas aqui? — perguntou Ascânio.

— Oh meu Deus, estamos aqui mais enclausuradas que freiras!... Pelo menos, as monjas têm parentes e pessoas amigas que as vão ver à grade, e no refeitório podem reunir-se e conversar... o que já é alguma coisa. Quanto a nós, à nossa única recreação são as visitas do Senhor Preboste, que de vez em quando vem repreender a filha, cuja única culpa é a de se estar a tornar muito bela... Que grande crime, pobre menina!... Para mim tudo são ralhos e censuras de que não a vigio como se faz mister. Santo Deus! se ela não vê criatura viva além de mim!... Se além das palavras que me dirige, não abre a boca senão para rezar as suas orações!... Ah, a propósito, meu caro jovem: não vades dizer a ninguém que fostes aqui recebido, nem que visitastes comigo o Grand-Nesle, nem que conversámos depois os três no Petit-Nesle.

— Como?!... — exclamou Ascânio — depois de visitar o Grand-Nesle, voltarei convosco ao Petit, e...?

Ascânio não prosseguiu, com medo de denunciar toda a alegria que aquela notícia lhe causava. Mas Dona Perrine explicou:

— A mim parece que vos não ficaria muito bem se vos fôsseis embora sem apresentardes as despedidas à Senhorinha Colomba, que na ausência do pai é afinal a dona da casa. Bem vedes... apresentaste-vos diante dela e logo pedistes para me falar a sós... não seria delicado da vossa parte... Mas, é claro, se não sois da minha opinião tendes toda a liberdade de sair directamente pelo Grand-Nesle pois tem saída própria.

— Ah, mas não... não! — exclamou Ascânio. — Viva Deus que também me prezo de ser educado e cortês para com as damas! Só vos peço que visitemos o palácio o mais depressa possível, não devo perder um só instante.

Agora, que Ascânio sabia que devia voltar a passar pelo Petit-Nesle, o seu desejo era encurtar os instantes que ainda o separavam de Colomba. Como Dona Perrine andava sempre sob o terror de uma inesperada visita do Preboste, apressou-se também a desprender um pesado molho de chaves que pendia da porta, e, seguida por Ascânio, encaminhou-se para o palácio.

Aproveitemos também esta ocasião para lançar com Ascânio uma vista de olhos ao interior do Grand-Nesle, já que ali é que vão decorrer as cenas capitais da nossa narrativa.

O palácio, ou, como então se dizia, a Mansão de Nesle, ficava na margem esquerda do Sena e ocupava o terreno onde depois se edificou o Palácio de Nevers e, mais tarde, a Casa da Moeda e o Instituto. Como formava o limite sudoeste de Paris, para lá das muralhas não se via mais que o fosso da cidade e os relvados verdejantes de Pré-aux-Clercs. Foi Amaury, senhor de Nesle, na Picardia, quem o mandou construir por fins do século oitavo. Filipe, o Belo, comprou-lho em 1308, fazendo dele o seu castelo real. Em 1520, a torre de Nesle, de sangrenta e luxuriosa memória, foi separada do resto do edifício, formando o cais, a ponte sobre o fosso e a porta de Nesle; deste modo a sombria torre ficou isolada e melancólica na margem do rio, como pecadora em penitência.

Felizmente, a Mansão de Nesle era suficientemente vasta para que se notasse tal supressão: nos seus limites caberia uma aldeia. Uma larga muralha, onde se abria um alto pórtico ogival e uma pequena porta de serviço, defendia o palácio pelo lado do cais. Entrava-se primeiramente num vasto pátio quadrangular circundado por uma muralha, com uma porta à esquerda e outra ao fundo. Entrando, como Ascânio, por aquela, deparava-se com um pequeno e encantador edifício de estilo gótico do século XIV: era o Petit-Nesle, que tinha, a sul, o seu jardim privativo. Mas, se se tomasse pela porta do fundo, deparar-se-ia, à direita, com o Grand-Nesle, todo em alvenaria e flanqueado por dois torreões com os seus telhados pontiagudos orlados de balaústres, a sua fachada angulosa, as suas altas janelas, os seus vidros coloridos e os seus vinte ruidosos cataventos. Havia espaço para se instalarem ali três banqueiros do nosso tempo.

Prosseguindo, o visitante perde-se numa sucessão e variedade infinitas de jardins, com os seus jogos da péla e da argolinha, uma fundição e um arsenal; mais para diante ficavam os pátios da criação, os redis, os estábulos e as cavalariças. Havia ali espaço para três grandes lavradores do nosso tempo.

Estava tudo mais ou menos ao abandono e em mau estado, pois Rimbault e os seus auxiliares mal chegavam para cuidar do jardim do Petit-Nesle, onde Colomba cultivava flores e Dona Perrine plantava algumas hortaliças. Mas, no conjunto, o palácio era vasto, bem iluminado e solidamente construído, de modo que, com algum trabalho e não muita despesa, podia fazer-se dele o atelier mais principesco do mundo.

Mas, ainda quando as perspectivas fossem muito menos favoráveis, o entusiasmo de Ascânio seria o mesmo, pois o importante para ele era aproximar-se de Colomba.

Aliás, a visita foi curta; o ágil jovem parecia um torvelinho, percorrendo tudo, vendo tudo e tudo apreciando. Dona Perrine cedo perdeu as esperanças de o poder acompanhar em tão apressada inspecção, de maneira que achou melhor confiar-lhe o molho das chaves, que Ascânio, no final, restituiu.

— E agora — disse Ascânio —, recebo as vossas ordens.

— Pois então, jovem, uma vez que aprovais esta cortesia, voltai comigo por instantes ao Petit-Nesle.

— Ah, faltaria ao mais sagrado dos deveres se assim não procedesse!...

— Mas, a Colomba, nem uma só palavra sobre o motivo da vossa visita! ouvis?

— Mas, que hei-de então dizer-lhe?...

— Ora, meu belo jovem, não vos dê isso cuidado. Não me dissestes que éreis ourives?

— Disse, Dona Perrine.

— Pois bem: falai-lhe de jóias; é um assunto festejado por todas, até pelas mais sisudas. Quando se nasceu filha de Eva, gosta-se de tudo o que brilha. E ela então, pobre menina, que tem tanta falta de distracções... É mesmo uma obra de caridade proporcionar-lhe algum desenfado. Verdade é que o melhor desenfado que convinha à sua idade era um bom casamento. Por isso é que sempre que mestre Robert cá vem, nunca deixo de lhe segredar ao ouvido: «Casai-a, Senhor, casai esta pobre menina!»

E, sem se aperceber que a confissão de uma tal familiaridade com o preboste podia suscitar conjecturas equívocas sobre a sua posição naquela casa, Dona Perrine retomou o caminho do Petit-Nesle, entrando com Ascânio na sala onde tinham deixado Colomba.

Colomba, pensativa e sonhadora, permanecia ainda na mesma atitude em que a deixamos. No entanto, como por mais de vinte vezes o seu olhar se tinha fixado na porta por onde o belo jovem desaparecera, não era difícil inferir que esperava o seu regresso com ansiedade. Apesar disso, logo que viu a porta girar nos gonzos, Colomba retomou tão repentinamente o trabalho, que nem D. Perrine nem Ascânio puderam suspeitar que o tivesse interrompido.

Como foi que Colomba adivinhou que Ascânio acompanhava a aia é coisa que só o magnetismo poderia explicar, se naquela época já tivesse sido descoberto.

— Aqui vos trago outra vez o galante jovem que nos ofereceu a água benta; é ele em pessoa, querida Colomba, reconheci-o logo. Ia para o acompanhar à porta do Grand-Nesle, mas ele fez-me notar que não se tinha despedido de vós. E é bem de crer, pois quando há pouco aqui esteve, não dissestes uma só palavra um ao outro. E graças a Deus não sois mudos...

— Dona Perrine... — interrompeu Colomba, ruborizando-se.

— Ora vá! não devíeis corar assim. O Sr. Ascânio é um honrado jovem, tal como vós sois uma donzela sensata. Consta-me, aliás, que é um perfeito artista na confecção de jóias e outros adornos tão do gosto das jovens. Se o desejardes, ele vos virá mostrar algumas das mais belas.

— Oh, não necessito de nada — murmurou Colomba.

— Por agora, não, decerto. Mas devemos ter esperança de que não morrereis neste maldito recolhimento. Tendes só dezasseis anos, Colomba, e virá o dia em que ficareis noiva, carecendo então de toda a espécie de jóias e trajes. Porque não dar desde já a preferência às obras deste jovem tão cheio de talento?...

Colomba sentia-se supliciada, e Ascânio, a quem as previsões de Dona Perrine exasperavam, percebeu o tormento da jovem e foi em seu socorro com uma conversa directa, afinal muito menos importuna do que aquele monólogo por meio de intérprete.

— Oh, jovem Senhora — disse ele —, não me recuseis a mercê de vos trazer alguma das minhas obras. Quer-me agora parecer que não foi senão para vós que eu as fiz, e que era em vós que pensava ao fazê-las. Ah, sim, acreditai-me, Senhora, porque nós, os artistas de jóias, misturamos muitas vezes os nossos pensamentos com o ouro e a prata e as pedras preciosas com que trabalhamos. Sabei que nos diademas que coroam as vossas cabeças, nos braceletes que vos cingem os braços, nos colares que acariciam os vossos ombros, e nas flores, nas aves, nos anjos e nas quimeras que fazemos murmurar junto aos vossos ouvidos, pomos muitas vezes o respeito de mil adorações.

Às primeiras palavras de Ascânio, o coração de Colomba estremeceu de júbilo, pois o jovem, após a sua longa mudez, começava finalmente a falar, e fazia-o exactamente como ela sonhara que Ascânio devia falar. Sem levantar os olhos, a jovem sentia o raio ardente dos dele fixados em si, e tudo, até um leve sotaque exótico, punha um singular encanto naquelas palavras, até então desconhecidas para Colomba. Era algo de profundo e irresistível, naquele idioma fácil e harmonioso do amor e que as jovens entendem ainda antes de o saberem falar.

— Sei muito bem — continuou Ascânio, sempre com os olhos postos em Colomba — que a vossa beleza já não pode ser aumentada, porque é infinita. Não se aumenta o esplendor de Deus pelo facto de se paramentar o altar. Mas, pelo menos, que seja permitido rodear a vossa formosura de tudo o que é suave e gracioso como ela. Pudesse eu, pobre e humilde obreiro de pequenas preciosidades, ver-vos passar resplandecente, e na sombra da minha pequenez pensar com júbilo e emoção que a minha arte contribuíra para vos tornar ainda maior, mais bela não.

— Oh! Senhor... — respondeu Colomba muito perturbada — receio bem que nunca venha a possuir as vossas encantadoras jóias ou, pelo menos, a adornar-me com elas, pois vivo no isolamento e na obscuridade que amo, e em que, confesso, desejaria viver sempre. Mas também confesso que folgaria muito em ver os vossos adereços, não por mim, mas por eles; não para os pôr, mas para os admirar.

E temendo já ter dito demasiado, ou vir a fazê-lo, Colomba, ao acabar de proferir aquelas Palavras, saudou e saiu com tanta rapidez, que até aos olhos de um homem mais experiente tal saída poderia ter parecido uma fuga pura e simples.

— Ora ainda bem que se reconcilia com enfeites e atavios — disse D. Perrine. — Mas a verdade, meu belo jovem, é que falais como um livro aberto. Quer-me parecer que lá no vosso país tendes receitas e segredos para cativar as pessoas. A verdade é que me ganhastes de repente para a vossa causa, palavra de honra! Só desejo que o Senhor Preboste se não obstine muito contra vós. E por agora, adeus, meu gentil moço; e dizei ao vosso mestre que tenha cuidado consigo. Preveni-o de que o Sr. d'Estourvilles é teimoso como o diabo, e pode tudo na corte. Dizei-lhe que melhor faria se renunciasse à sua determinação de se instalar no Palácio de Nesle, e muito principalmente à força. Quanto a vós... ver-nos-emos, não é assim? não acrediteis em Colomba; só da legítima de sua mãe tem ela com que adquirir jóias vinte vezes mais dispendiosas do que as mais caras que possais trazer-lhe. E... olhai lá: trazei também alguns adereços menos principescos, pode ser que ela se lembre de mim. Assim como assim, ainda não estou na idade de me pôr de parte. Compreendeis?

E achando que para ser melhor compreendida convinha juntar o gesto às palavras, Dona Perrine apoiou a mão no braço do jovem. Ascânio estremeceu, como quem acorda em sobressalto. A verdade é que tudo aquilo lhe parecia um sonho. Não se convencia de que estava em casa de Colomba, nem de que a branca aparição, cuja voz melodiosa ainda ecoava aos seus ouvidos, fosse realmente a daquela por um simples olhar de quem teria dado alegremente a vida.

Assim, cumulado da sua felicidade presente e de esperança para um futuro bem próximo, Ascânio prometeu tudo o que Dona Perrine lhe pedia, e a verdade é que nem soube mesmo o que prometeu. Que lhe importava?... Não estava ele pronto a dar quanto possuía só para tornar a ver Colomba?...

Por fim, achando que seria inconveniente prolongar mais a visita, despediu-se de D. Perrine, prometendo voltar no dia seguinte.

Ao sair do Petit-Nesle, Ascânio deparou com dois homens que se preparavam para ali entrar. Um deles devia ser o próprio preboste, e isto reconheceu-o Ascânio mais pela maneira como ele o olhou do que pelo trajo que envergava.

Aliás, as suas suspeitas logo se converteram em certeza quando viu que os dois homens batiam à porta por onde acabava de sair. Arrependeu-se então de não ter saído mais cedo, pois receou que a sua imprudência acabasse por prejudicar Colomba.

Para tirar todo o carácter de importância à sua visita, Ascânio, supondo que o preboste o estava a seguir com a vista, nem uma só vez voltou a cabeça para aquele pequeno canto do mundo, que era, afinal, o único de que, naquele momento, teria desejado ser rei.

Ao chegar ao atelier, foi encontrar Benvenuto bastante preocupado. O homem que lhes havia interceptado a caminhada era Primatício, que, como bom camarada, corria a prevenir Cellini de que, durante a visita que Francisco I lhe fizera, cometera a imprudência de fazer da duquesa d'Etampes sua mortal inimiga.

 

         UM NOIVO E UM AMIGO

Um dos dois homens que entravam no Palácio de Nesle quando Ascânio saía, era efectivamente D. Roberto d'Estourville, preboste de Paris. Quanto ao outro, dentro de instantes saberemos quem era.

Cinco minutos após a saída de Ascânio, estando ainda Colomba no seu quarto, onde se refugiara de ouvido à escuta mas já com alma cheia de sonhos, entrou Dona Perrine, precipitadamente, a anunciar-lhe que seu pai havia chegado e a esperava nos aposentos contíguos.

— Meu pai?... — exclamou Colomba assustada. E acrescentou a meia voz:

— Jesus! Jesus! ter-se-iam encontrado!?...

— Sim, o senhor vosso pai, minha querida — respondeu Dona Perrine à única parte da frase que tinha chegado aos seus ouvidos. — Vem com ele um velho fidalgo que não sei quem seja.

— Um velho fidalgo?!... — disse Colomba estremecendo instintivamente. — Meu Deus! D. Perrine, que significará isto? É esta a primeira vez em três anos que meu pai não vem aqui só!...

Entretanto, como, apesar do temor que sentia, a jovem tinha de obedecer a seu pai, cujo carácter impaciente bem conhecia, chamou a si toda a coragem de que podia dispor, e voltou à sala que abandonara momentos antes. Entrou sorrindo, pois, não obstante o receio que pela primeira vez experimentava, Colomba amava o Sr. de Estourville com um amor verdadeiramente filial, podendo afirmar-se que, apesar da pouca expansividade habitual do preboste para com ela, os dias em que seu pai vinha ao Palácio de Nesle eram dias de festa para ela.

Colomba avançava estendendo os braços e entreabrindo a boca, mas o preboste não lhe deu tempo para o beijar nem para lhe falar. Tomando-a pela mão e levando-a para junto do desconhecido, que se apoiara ao mármore do fogão, disse:

— Querido amigo, apresento-te a minha filha. Depois, dirigindo-se a esta:

— Colomba — disse —, eis o conde d'Orbec, tesoureiro do rei e vosso futuro esposo. Colomba soltou um grito, logo abafado pelo seu sentido das conveniências; mas, sentindo fraquejarem-lhe os joelhos, apoiou-se ao espaldar duma cadeira.

Para compreender todo o horror daquela apresentação inesperada, mais a mais na disposição afectiva em que Colomba se encontrava, era preciso saber que espécie de homem era o conde d'Orbec.

É certo que Dom Roberto d'Estourville, pai de Colomba, não era um belo homem; havia tanta dureza nas suas sobrancelhas fartas, e carregadas ao menor obstáculo físico ou moral, tanto pesadume e tacanhez no seu corpo disforme, que dificilmente podia inspirar simpatia. E, no entanto, ao pé do conde d'Orbec, parecia S. Miguel Arcanjo junto ao dragão. Pelo menos, a cabeça quadrada e as feições acentuadas do preboste revelavam resolução e força, enquanto os seus olhos de lince pequenos, cinzentos e vivos, anunciavam inteligência; mas o conde d'Orbec, delgado e seco, com os seus longos membros de aracnídeo, sua vozinha de mosquito e lentidão de lesma, era mais do que feio: era verdadeiramente hediondo, e a sua fealdade tinha tanto de estupidez como de maldade. A cabeça, que o conde sempre mantinha encurvada e meio voltada para um dos ombros, tinha um sorriso vil e um olhar de traidor.

Assim, ao ver a pavorosa criatura que lhe apresentavam para esposo, Colomba, que ainda tinha o coração, o pensamento e os olhos cheios da beleza e juventude de Ascânio, não pôde, como dissemos, reprimir um grito; mas ficou por aí. As forças depressa a abandonaram, e ela permaneceu pálida e gelada olhando com temor para o pai.

— Meu caro amigo — prosseguiu o preboste —, peço-te perdão para o enleio de Colomba. Não passa de uma pequena selvagem que por mais de dois anos não saiu de casa, pois, como sabes, os tempos vão perigosos para todas as jovens que são belas. Além disso, vejo agora que fiz mal em não a ter prevenido dos nossos projectos. É claro que a sua aprovação não interessava para nada, visto que tudo o que eu resolvo é só o que se faz, mas, enfim, saberia que com o teu nome, as tuas grandes riquezas e a protecção da Sr.a d'Étampes, estás em posição de te elevares aos mais altos lugares. Reflectindo no que acabo de dizer, vai ela poder apreciar toda a honra que nos dás, consentindo em unires a tua alta estirpe à nossa nobreza recente. Saberá ainda que, amigos há quarenta anos...

— Basta, meu amigo, peço-te! — interrompeu o conde.

Depois, dirigindo-se a Colomba com uma familiaridade grosseira e insolente, que muito contrastava com a respeitosa timidez de Ascânio, disse:

— Ora vamos lá a sossegar e a chamar às faces aquelas lindas cores que tão bem vos ficam. Ora, ora! eu bem sei o que são moças e mulheres. Já fui casado duas vezes, minha linda: não vale a pena tanta perturbação. Suponho que vos não meto medo... hem? — prosseguiu o conde com extrema fatuidade, endireitando-se e cofiando os magros bigodes e as barbichas escorridas. — Vosso pai não devia dar-vos tão bruscamente a designação de vosso futuro marido, que sempre emociona o jovem coração que o ouve pela primeira vez. Mas haveis de vos habituar a ele, minha rica, e acabareis mesmo por o pronunciar com essa apetitosa boquinha que tendes. Olá!... voltais a empalidecer?! Esta agora!... creio que vai perder os sentidos...

O conde d'Orbec estendeu os braços para amparar Colomba, mas esta, conseguindo endireitar-se, deu um passo para trás, como se temesse o contacto de uma serpente, e pôde dizer estas palavras:

— Perdão, Senhor... Perdão, meu pai — balbuciou. — Não é nada de importância. Eu tinha imaginado... eu esperava...

— E que tinhas tu imaginado? e que esperavas tu?... Vamos! diz depressa — interpôs o preboste, fixando na filha os seus pequenos olhos, vivos e irritados.

— Que me deixaríeis ficar sempre a vosso lado, meu pai — respondeu Colomba. — Depois da morte de minha mãe que não tendes outro afecto, nem outrem que cuide de vós. Por isso, esperava...

— Calai-vos, Colomba — respondeu imperativamente o preboste. — Não estou ainda tão velho que careça de tantos cuidados; e vós... vós estais na altura de tomar estado.

— Ora aí está! — disse d'Orbec, metendo-se outra vez na conversa. — Aceitai-me sem mais contumélias, minha linda. Comigo, a vossa felicidade será enorme e invejada por todas.

Sou riquíssimo, que diabo! e quero ver-vos à altura das circunstâncias. Ireis à corte com tais jóias, que farão morder-se de inveja, já não digo a rainha, mas a própria duquesa d'Étampes.

Não sei que pensamentos estas últimas palavras suscitaram no coração de Colomba, mas as suas faces recobraram a cor, tingiram-se subitamente, e achou forças para responder ao conde, arrostando o olhar severo com que o preboste a ameaçava.

— Gostaria, ao menos, Senhor, de pedir a meu pai algum tempo para reflectir na vossa proposta.

— Que é lá isso?! — exclamou o Sr. d'Estourville com violência. — Nem uma hora, nem um minuto! Sois, a partir deste momento, a noiva do conde, e ficaríeis sendo sua esposa, a partir desta noite, se ele não tivesse de partir dentro de uma hora para o seu condado da Normandia. Sabeis há muito que as minhas vontades são ordens. Reflectir!... não está mal!... DOrbec, deixemos esta presumida. A partir deste momento, é tua, meu amigo; reclamá-la-ás quando quiseres. E agora, vou mostrar-vos a vossa futura casa.

D'Orbec ainda queria ficar mais tempo, a fim de acrescentar algumas palavras ao que dissera, mas o preboste enfiou-lhe o braço e, saudando a filha com um sorriso mau, foi arrastando Dom Roberto para a porta.

No preciso momento em que os dois homens saíam, entrava Dona Perrine, que tinha ouvido o preboste levantar a voz, e acorria, convencida de que o Sr. d'Estourville estava como de costume a afligir a pobre menina. Ela a chegar, e Colomba a cair-lhe nos braços.

— Deus tenha piedade de mim! — exclamou a inditosa jovem, levando a mão aos olhos como para não ver ainda aquele odioso d'Orbec. — Meu Jesus! Vai então tudo terminar assim!?... — prosseguiu Colomba — os meus sonhos doirados, as minhas doces esperanças?... Ah, está tudo perdido, e já não me resta senão morrer!

É evidente que semelhante exclamação, junta à fraqueza e palidez extrema de Colomba, logo aterrorizou Dona Perrine, que quis saber a causa de tudo. Também a infeliz Colomba tinha extrema necessidade de desabafar, de modo que, entre lágrimas, as mais amargas que até então havia chorado, contou à digna governanta o que acabava de se passar entre seu pai, o conde d'Orbec e ela. Dona Perrine concordou que o noivo já não era jovem, nem belo; mas como, segundo a sua opinião, a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher é ficar solteira, mais valia afinal ter um marido velho e feio, mas rico e poderoso, do que não ter nenhum. Ora, como esta teoria revoltava o coração de Colomba, a jovem retirou-se para o seu quarto, deixando Dona Perrine, a quem não faltava imaginação, arquitectar mil projectos para o dia em que, de governante da Senhorinha Colomba, passaria a dama de companhia da condessa d'Orbec.

Entretanto, o preboste e o conde começavam, por seu turno, a visita ao Grand-Nesle, que, uma hora antes, haviam efectuado D. Perrine e Ascânio. Seria bem curioso se as paredes, que, segundo se diz, têm ouvidos, possuíssem também olhos e língua, para contarem aos que entram as coisas que ouvem aos que saem.

Mas como as paredes se calavam, ou, quando muito, riam em silêncio, olhando o preboste e o tesoureiro, foi este quem cortou o mutismo, dizendo, enquanto atravessavam o pátio entre os dois palácios:

— A pequena é verdadeiramente um mimo; é exactamente a espécie de mulher que preciso, meu caro d'Estourvílle: sensata, ignorante e bem educada. Passada a primeira tormenta, virá o bom tempo, e para sempre, podeis crer. Eu percebo disto; todas as jovens sonham com um marido jovem e belo, espirituoso e rico. Pois viva Deus, que possuo, pelo menos, metade das qualidades que se me exigem. Não haverá muitos homens que possam gabar-se de tal, e já não é pouco.

Em seguida, passando da futura esposa à futura propriedade, e falando sempre no mesmo tom esganiçado e cúpido:

— Ah, este velho Nesle — continuou o conde —, palavra de honra que é uma mansão magnífica! dou-te os meus parabéns. A minha esposa e eu ficaremos aqui maravilhosamente instalados; e também a tesouraria. Aqui, ficarão os nossos aposentos privados... aqui, as minhas secretarias... além, a criadagem. Pena que tudo esteja bastante deteriorado; mas com um certo dispêndio — que acharemos maneira de endossar a Sua Majestade —, ficará tudo na ponta da unha. A propósito, meu caro d'Estourville: estais bem seguro de que podeis continuar a fruir desta propriedade? Acho que deverias mandar regularizar o teu direito à sua posse. Que eu saiba, o rei não ta deu em definitivo...

— É verdade que não ma deu — retorquiu o preboste, rindo — mas deixou-me apropriar dela, o que é mais ou menos a mesma coisa.

— De acordo, mas suponde que alguém vos pregava a partida de lha solicitar em forma?...

— Quando viesse fazer valer os seus direitos, juro-te que seria muito mal recebido. Seguro como estou do apoio da Sr.a d'Étampes e do vosso, eu o faria arrepender convenientemente das suas pretensões. Não, meu amigo: o Palácio de Nesle é tão meu como vossa é já a minha filha Colomba. Parti tranquilo, e voltai depressa.

Enquanto o preboste dizia estas palavras, de cuja veracidade nem ele nem o seu interlocutor tinham qualquer motivo para duvidar, fez a sua aparição um terceiro personagem, conduzido pelo jardineiro Raimbault. Era o visconde de Marmagne, que surgia no limiar da porta de comunicação entre o pátio quadrangular e os jardins do Grand-Nesle.

Tratava-se também dum pretendente à mão de Colomba, mas um pretendente infeliz. Era um peralvilho ocioso, louro e rosado, presumido, insolente e tagarela; sempre pretensioso ao pé das mulheres, a quem não raro servia de capa a seus verdadeiros amores, impando de orgulho com a sua posição de secretário do rei, que lhe permitia aproximar-se de Sua Majestade, da mesma forma que dele se aproximavam os seus galgos, os seus papagaios e macacos. Também o preboste se não iludia com o favor aparente e a familiaridade superficial que o visconde gozava junto do monarca, favor e familiaridade que devia apenas, segundo se afirmava, à extensão pouco moral que sabia dar ao seu cargo. Aliás, havia muito já que o visconde de Marmagne esgotara o seu património, e não possuía outra fortuna além das liberalidades de Francisco I. Ora estas liberalidades podiam muito bem terminar de um dia para o outro, e Dom Roberto d'Estourville não era tão doido que, em assuntos desta importância, se fiasse nos caprichos dum rei tão caprichoso. Assim, repelira com a maior doçura o pedido do visconde, revelando-lhe confidencialmente, e sob grandes promessas de silêncio, que a mão de sua filha havia muito já que fora destinada a outro. Graças a esta confidência, que justificava a recusa do preboste, o visconde de Marmagne e Roberto d'Estourville ficaram aparentemente os melhores amigos, se bem que, desde então, Marmagne passou a detestar o preboste, e este, por seu turno, a desconfiar do visconde. Debaixo da sua aparência afável e sorridente, Marmagne não tinha podido esconder o seu rancor a um homem tão habituado, como d'Estourville, a ler nos escaninhos da corte e na obscuridade dos corações. Cada vez que via aparecer o visconde, o preboste preparava-se imediatamente para o dissabor de uma má notícia, que o mensageiro, no entanto, tinha o hábito de transmitir com lágrimas nos olhos, e com aquela mal fingida e bem calculada dor que é o ácido lançado na chaga, gota a gota.

Quanto ao conde d'Orbec, o visconde tinha-se quase incompatibilizado com ele; era mesmo uma destas inimizades de corte visíveis a olho nu. D'Orbec desprezava Marmagne por este não ter fortuna e não poder manter convenientemente a sua posição. Marmagne desprezava d'Orbec, porque este era velho e, por conseguinte, tinha perdido o privilégio de agradar às mulheres; finalmente, os dois odiavam-se porque, sempre que se haviam encontrado num mesmo caminho, um deles tinha-se sempre apoderado do que o outro também cobiçava.

Assim, ao depararem um com o outro, os dois cortesãos saudaram-se com aquele sorriso sardónico e fino que esteve muito em voga nas antecâmaras reais e que significava: «Ah, se não fôssemos dois cobardes, há quanto tempo um de nós teria deixado de existir!»

Todavia, como o dever do historiador é referir tanto o bem como o mal, manda a justiça que se diga que os dois se limitaram àquela saudação e àquele sorriso, e que, sem ter trocado uma só palavra com o visconde de Marmagne, o conde d'Orbec, conduzido pelo preboste, saiu imediatamente pela mesma porta que acabava de dar entrada ao seu inimigo.

Apressemo-nos, no entanto, a acrescentar que, a despeito do ódio que separava aqueles dois homens, eles estariam dispostos, sempre que a ocasião se proporcionasse, a unirem-se momentaneamente para prejudicarem um terceiro.

Com a saída de d'Orbec, achou-se o preboste a sós com o seu amigo visconde de Marmagne, e, avançando para ele com alegre semblante, notou a fisionomia triste do seu interlocutor, que rompeu o silêncio dizendo:

— Meu caro preboste, pareceis-me bem satisfeito.

— E vós, meu querido visconde, pareceis-me bem triste.

— É que, meu pobre d'Estourville, como sabeis, os infortúnios dos amigos afligem-me tanto como os meus próprios...

— Oh, sim! eu conheço bem o vosso coração.

— E, vendo-vos tão satisfeito com o vosso futuro genro, o conde d'Orbec... o seu próximo casamento com vossa filha já não constitui segredo para ninguém, e felicito-vos, meu caro d'Estourville...

— Eu disse-vos em tempos... recordais?... que a mão de Colomba estava prometida, meu caro Marmagne.

— É certo, embora não possa compreender como consentis em separar-vos de tão encantadora menina.

— Oh, mas é que não me separo dela! — prosseguiu D. Roberto. — O meu genro, o conde d'Orbec, fará passar o Sena a toda a sua tesouraria para vir habitar o Grand-Nesle, e eu, nos meus momentos de ócio, virei habitar o Petit.

— Meu pobre amigo!... — disse Marmagne, abanando lenta e pesarosamente a cabeça, num tom profundo e compenetrado, enquanto pousava uma mão no braço do preboste e levava a outra aos olhos, a fim de enxugar uma lágrima que não existia.

— Pobre amigo? porquê!? — disse D. Roberto. — Essa agora!... Que tereis vós para me anunciar?...

— Serei eu então a anunciar-vos a detestável notícia?!

— Qual notícia!? Vamos, falai!

— Ah, meu caro preboste! bem sabeis que devemos levar esta vida com filosofia, e que há um provérbio que a nossa pobre raça humana deveria trazer sempre nos lábios, pois encerra em si toda a sabedoria das nações...

— E de que provérbio se trata? Acabai.

— O homem põe, meu pobre amigo... o homem põe, e Deus dispõe.

— E que foi que eu pus, para Deus dispor de outra maneira? Dizei por uma vez e acabemos com isto.

— Destinastes o Palácio do Grand-Nesle para habitação de vosso genro e vossa filha, não é assim?

— Tanto o destinei, que dentro de três meses já ali deverão estar instalados.

— Desenganai-vos, meu caro preboste, desenganai-vos; a esta hora, já o Palácio de Nesle deixou de ser propriedade vossa. Perdoai-me o desgosto que vos causo, mas pensei que com esse vosso carácter um tanto violento, mais valia que recebêsseis a notícia da boca de um amigo que sabe usar de todas as precauções e delicadezas possíveis, do que da boca de qualquer grosseirão que vo-la teria lançado brutalmente à cara. Meu pobre, meu caro amigo, o Grand-Nesle deixou de ser vosso.

— E quem foi que mo tirou!?

— Sua Majestade.

— Sua Majestade?!

— Ela própria; bem vedes que o mal é irreparável.

— Mas... quando foi isso?

— Esta manhã. Se as minhas obrigações me não tivessem retido no Louvre, teríeis sido prevenido mais cedo.

— Alguém vos enganou, Marmagne. Foi algum boato que os meus inimigos resolveram espalhar para se divertirem, e vós estais inconscientemente a fazer o que eles mais desejam, que é espalhá-lo.

— Ah, por muitas e muitas razões, quem me dera que assim fosse; mas, desgraçadamente, não me disseram: ouvi.

— Ouvistes o quê, e a quem?

— Ouvi o próprio rei dando o Vieux-Nesle a outro.

— E quem é esse outro?

— Um aventureiro italiano... um certo ourives, que talvez conheçais de nome... um intrigante chamado Benvenuto Cellini, que há dois meses chegou de Florença. O rei está tão envaidecido com a vinda dele para França, que foi hoje, com toda a corte, visitá-lo ao palácio do cardeal de Ferrara, onde o pretenso artista estabeleceu a sua loja.

— E dizeis então que estivestes presente, visconde, quando o rei fez doação do Grand-Nesle a esse miserável?

— Estive — respondeu Marmagne, pronunciando esta palavra letra a letra, com uma lentidão cheia de voluptuosidade.

— Ah! Ah! — exclamou o preboste — pois bem! Cá espero o vosso aventureiro: que venha tomar posse do presente real!

— Pois quê?! Tereis acaso a intenção de lhe opordes qualquer resistência?!

— Ainda o duvidais?...

— A uma ordem do rei?!...

— Nem que fosse do Diabo! Resistiria a todas as ordens com a pretensão de me fazerem sair daqui!

— Tende cautela, tende cautela, preboste! — continuou o visconde — além de vos expordes à cólera do rei, este Benvenuto Cellini é, por si só, muito mais de temer do que imaginais...

— Sabeis quem sou, visconde?...

— Antes de mais nada, tem todo o apoio do rei — por agora, bem sei, mas têm-no.

— Sabeis que, como preboste de Paris, represento Sua Majestade no Châtelet, onde me sento sob o pálio, de veste curta e manto de gola, espada ao lado, chapéu de plumas na cabeça e bastão de veludo azul na mão?...

— Mais vos digo que esse maldito italiano está sempre pronto para a luta com os próprios príncipes, cardeais e papas.

— Ignorais que possuo uma chancela particular que dá autenticidade às minhas actas?...

— Também se diz que esse espadachim danado fere e mata sem escrúpulos quantos se lhe opõem.

— Ignorais que uma guarda de vinte e quatro sargentos de armas está dia e noite às minhas ordens?...

— Diz que conseguiu apunhalar um ourives de quem não gostava, apesar de estar rodeado e protegido por uma guarda armada de sessenta homens.

— Esqueceis que o Palácio de Nesle está fortificado, que possui seteiras nas muralhas e sobre as portas, e que o forte da cidade, mesmo ao lado, o torna inexpugnável?...

— Assegura-se que tem tanta prática de cercos como Bayard ou António de Leyva.

— É o que veremos...

— Tenho medo de que...

— Cá o espero.

— Olhai: quereis que vos dê um conselho, caro amigo?

— Dai, contanto que seja curto.

— Não tenteis lutar com quem é mais forte do que vós.

— Mais forte do que eu? um artífice de Itália?! Visconde, exasperais-me!...

— Palavra de honra! é que podeis vir a arrepender-vos... Falo-vos com conhecimento de causa.

— Visconde, pulverizais-me a paciência!

— Pensai que esse homem tem o rei por si.

— Pois eu tenho a Sr.a d'Étampes.

— Sua Majestade pode não gostar que se resista à sua vontade...

— Já o fiz, Senhor, e com êxito.

— Eu sei, na questão da portagem da Ponte de Nantes. Mas...

— Mas quê?

— Pouco ou nada se arrisca, resistindo a um rei fraco e bom; ao passo que se arrisca tudo entrando em luta contra um homem forte e terrível como Benvenuto Cellini.

— Demónio, visconde! pretendeis pôr-me doido!?...

— Pelo contrário, desejo tornar-vos sensato.

— Basta, visconde! basta! Ah, juro-vos que o campónio vai pagar caro este mau bocado que a vossa amizade acaba de me fazer passar!

— Prouvesse a Deus, preboste, prouvesse a Deus!...

— Está bem, está bem. Nada mais tendes a dizer-me?

— Não... de que me lembre... — disse o visconde, como se procurasse qualquer outra notícia do teor da primeira.

— Então... adeus! — exclamou o preboste.

— Adeus, meu pobre amigo!...

— Adeus!

— Depois não digais que vos não preveni.

— Adeus!

— Pelo menos... fico com a consciência tranquila.

— Adeus! adeus!

— Boa sorte! Desejo vo-la... mas tenho muitas dúvidas...

— Adeus! adeus! adeus!

— Adeus!...

E o visconde de Marmagne, abafando os suspiros, com o rosto transtornado pela dor, e depois de ter apertado a mão do preboste como se fosse o último adeus, afastou-se erguendo os braços ao Céu.

O preboste seguiu-o, fechando-lhe ele mesmo a porta nas costas.

Compreende-se quanto esta conversa «amigável» teria irritado o sangue e inflamado a bílis do Sr. d'Estourville. Procurando alguém sobre quem descarregar o seu mau humor, lembrou-se de repente daquele jovem que vira sair do Grand-Nesle no momento preciso em que ali ia a entrar na companhia do conde d'Orbec. Como Raimbault andava perto, não lhe foi preciso ir muito longe para obter as informações que desejava sobre o desconhecido. Assim, chamando-o com um daqueles sinais categóricos que não admitem réplica, perguntou-lhe tudo o que sabia a respeito daquele jovem.

O jardineiro respondeu que o desconhecido se tinha apresentado em nome do rei, pretendendo visitar o Grand-Nesle, e que ele, como não queria tomar sobre si a responsabilidade de o deixar entrar, entregara o caso a Dona Perrine, que, de muito bom grado, lhe andara a mostrar o palácio.

O preboste correu para o Petit-Nesle a pedir explicações à governanta, mas, desgraçadamente, aquela acabava de sair para as habituais compras da semana.

Restava Colomba; mas como o preboste jamais poderia supor que ela se tivesse avistado com o estrangeiro, depois das proibições exorbitantes que fizera a Dona Perrine, nem sequer lhe falou no assunto.

Como, entretanto, as suas funções o chamavam ao Châtelet, saiu mas não sem primeiro intimar Raimbault, sob pena de o despedir, a que não deixasse entrar fosse quem fosse, viesse em nome de quem viesse, tanto no Grand como no Petit-Nesle; mormente o miserável aventureiro a quem tinha aberto a porta.

Deste modo, quando, no dia seguinte, Ascânio se apresentou com as suas jóias, acedendo ao convite de Dona Perrine, Raimbault não lhe abriu mais do que o pequeno postigo, dizendo-lhe através da grade que o Palácio do Grand-Nesle estava fechado para toda a gente em geral, e para ele em particular.

Como bem se imagina, Ascânio retirou-se desesperado, mas, diga-se de passagem, nem por um instante acusou Colomba de tão estranho acolhimento. A jovem não levantara mais do que uma vez os olhos, nem proferira mais do que uma frase, mas havia tanto e tão honesto amor naquele seu olhar, e tão amorosa melodia naquela frase, que desde a véspera Ascânio sentia a luz e a voz de um anjo no seu coração.

Pensou, e com razão, que, tendo sido visto pelo preboste, fora Dom Roberto d'Estourville quem tinha dado aquela ordem terrível cuja vítima era ele.

 

         PREPARATIVOS DE ATAQUE E DE DEFESA

Logo que Ascânio chegou a casa e comunicou a Benvenuto o resultado da sua visita ao Palácio de Nesle, o mestre-ourives, vendo que a ocasião era excelente, apressou-se a ir ter com o primeiro-secretário de Finanças do rei, o Sr. de Neufville, a fim de lhe pedir o acto de doação real. O Sr. de Neufville pediu o prazo de um dia para se certificar da legitimidade das pretensões de mestre Benvenuto. Este, não obstante parecer-lhe grande impertinência que duvidassem da sua palavra, compreendeu a legalidade de um tal pedido e acedeu. No íntimo, saiu firmemente decidido a, no dia seguinte, não conceder ao Sr. de Neufville nem uma meia hora a mais.

Por isso, no dia seguinte, Benvenuto foi a pontualidade em pessoa, e foi imediatamente atendido, o que lhe pareceu de muito bom augúrio.

— Então, Excelência? — disse Benvenuto — o italiano não passa de um mentiroso, ou disse-vos a verdade?

— A inteira verdade, meu caro amigo.

— Quanto folgo.

— Foi Sua Majestade que me ordenou que vos entregasse o acto de doação, em forma.

— Pois eu o receberei com o maior gosto.

— Contudo... — continuou o secretário de Finanças, hesitando.

— Essa agora! Pois que há ainda? dizei!

— Contudo, se me permitísseis um bom conselho...

— Um bom conselho? Que diabo! mas isso é coisa muito rara para que se haja de enjeitar. Dai, dai, à vontade.

— Pois bem, é o seguinte: acho que devíeis procurar para vosso atelier qualquer outro local que não o Palácio de Nesle...

— Falais sério? — atalhou Benvenuto em tom de chalaça. — Pensais que o palácio não reúne as condições necessárias?...

— Ah, de modo algum! A verdade obriga-me mesmo a dizer que dificilmente poderíeis achar melhor local.

— Então de que se trata?

— É que o palácio está confiado a uma personagem tão altamente situada, que se torna perigoso ter questões com ela.

— Também eu estou ao serviço do nobre rei de França — interrompeu Cellini —, e Jamais recuarei enquanto tenha de agir em seu nome.

— De acordo; mas no nosso país, mestre Benvenuto, qualquer grão senhor em sua casa é rei e, se tentardes pôr o preboste fora da que ocupa, correis o risco de morrer.

— Tarde ou cedo, é preciso morrer — respondeu Cellini sentenciosamente.

— Então, estais pois decidido...

— A matar o diabo, antes que ele me mate a mim. Mas deixai o caso comigo, Senhor Secretário. E o Senhor Preboste que não se acautele, e verá o que lhe sucede. A ele e a quantos ousarem opor-se à vontade do rei, quando for mestre Benvenuto o encarregado de a fazer respeitar.

Quando isto ouviu, Dom Nicolau de Neufville deu tréguas às suas observações filantrópicas mas, sob o pretexto de preencher toda a casta de formalidades, foi demorando o mais que pôde a entrega da doação. Porém, Benvenuto tinha-se sentado tranquilamente, declarando que não se iria embora enquanto o documento lhe não fosse entregue; disse até que passaria ali a noite, se tanto fosse necessário.

Vendo isto, Neufville decidiu-se e, abandonando o caso às suas consequências, fossem elas quais fossem, entregou o acto de doação a Cellini, não deixando porém de prevenir imediatamente o preboste daquilo que se vira obrigado a fazer, em parte por se tratar da vontade do rei, e em parte devido à obstinação do mestre-ourives.

Este regressou a casa e, sem confiar a ninguém o que acabava de fazer, foi esconder a doação no cofre-forte, onde guardava as pedras preciosas, pondo-se de novo ao trabalho.

Prevenido do que sucedera, Dom Roberto concluiu que Benvenuto se mantinha inalterável na sua determinação de ir habitar o Palácio de Nesle, a bem ou a mal. O preboste resolveu pôr-se imediatamente em guarda, para o que mandou seguir para o palácio os seus vinte e quatro sargentos de armas. Colocou sargentos nas muralhas, e estabeleceu ali residência, só indo ao Châtelet senão quando os deveres do cargo lhe impunham categoricamente tal dever.

Assim se passaram alguns dias, em que Cellini, tranquilamente ocupado no seu trabalho não arriscou qualquer ataque. Mas o preboste convenceu-se de que esta tranquilidade apenas aparente e envolvia uma grande astúcia dos seus inimigos para cansar a vigilância, atacando depois inesperadamente. Deste modo, D. Roberto, sempre de olhar à espreita e ouvido à escuta, não distraía o espírito um só momento das suas cogitações bélicas. Esta situação, que não era de guerra nem de paz, acabou por lhe causar uma espécie de febre expectante, uma como vertigem de ansiedade que, a prolongar-se tal situação, podia muito bem perturbar-lhe as faculdades mentais, como sucedera ao governador do Castelo de Santo Angelo. Também o preboste já mal comia ou dormia, emagrecendo a olhos vistos.

De tempos a tempos, puxava repentinamente pela espada e punha-se a batalhar con as paredes, gritando:

— Mas que venha! Porque não virá o celerado!? Que venha, que venha, que eu cá o espero!

Mas Benvenuto não ia.

Noutros momentos, porém, Dom Roberto d'Estourville, mais calmo, persuadia-se que o mestre-ourives tinha a língua mais comprida do que a espada, jamais executando seus projectos danados. Foi num destes momentos que Colomba, saindo casualmente dos seus aposentos, viu todos aqueles preparativos de combate, perguntando ao pai de que se tratava. O preboste respondeu-lhe:

— Trata-se apenas de um insolente que é preciso castigar.

Ora, como castigar era precisamente a função do preboste, Colomba nem sequer perguntou quem era o insolente cujo castigo preparavam; demais, andava tão preocupada que esta simples explicação lhe bastou.

Como não havia Colomba de andar preocupada, se Dom Roberto, com uma simples palavra, tinha operado uma terrível mudança na vida de sua filha; aquela vida tão doce, tão simples, tão obscura, e tão retirada até então, aquela vida de dias tão calmos e de noites tão tranquilas, assemelhava-se a um lago revolvido pela fúria de um tufão. Dantes, sentia por vezes, vagamente, que a sua alma estava adormecida e o seu coração vazio, mas atribuía aquela tristeza ao isolamento em que vivia, e aquele vazio ao facto de ter perdido a mãe na mais tenra idade; mas eis que, de repente, a dor viera preencher completamente a sua existência, o seu pensamento, o seu coração e a sua alma.

Oh! que saudades lhe vinham então daqueles tempos de ignorância e de tranquilidade, em que a vulgar mas vigilante afeição de Dona Perrine bastava para a tornar feliz; aqueles tempos de esperança e de fé, em que contava com o futuro como se conta com um amigo; aqueles bons tempos de confiança filial, em que ela acreditava ainda na amizade de um pai. Infeliz Aquele futuro era agora o odioso amor do conde d'Orbec, a ternura de seu pai não passava, afinal, de ambição disfarçada. Porque é que, em vez de herdeira única de um nome fidalgo e de uma grande fortuna, o destino a não fizera apenas filha de um obscuro burguês da cidade, que a teria amado e acarinhado? Teria então podido encontrar aquele jovem artista que falava com tanta emoção, aquele belo Ascânio, que parecia ter tanta felicidade e tanto amor para dar,

Mas, logo que o bater do coração e o calor da face advertiam Colomba de que a imagem do estrangeiro ocupava demasiado o seu pensamento, a jovem castigava-se a si mesma, mandando embora o doce sonho, para o que lhe bastava considerar a desoladora realidade,! De resto, depois que seu pai lhe dera parte dos seus projectos de casamento, Colomba tinha categoricamente proibido Dona Perrine de receber Ascânio, fosse sob que pretexto fosse, ameaçando-a de contar tudo ao pai se lhe desobedecesse; e como a governanta, com receio de passar por cúmplice, resolvera calar os projectos hostis do mestre de Ascânio, a pobre Colomba julgava-se bem defendida por aquele lado.

Ah, mas não se vá inferir de tudo isto que a jovem estivesse resignada a obedecer, como vítima, às ordens do pai. Não, todo o seu ser se revoltava à simples ideia daquele casamento com um homem por quem ela teria sentido ódio se a sua alma fosse susceptível deste sentimento. Sob a sua fronte pura e bela revolviam-se mil pensamentos até então desconhecidos, de desobediência e revolta, pensamentos de que logo se acusava como de outros tantos crimes, e para os quais, ajoelhada, pedia perdão a Deus. Às vezes pensava que o que tinha a fazer era ir lançar-se aos pés de Francisco I. Mas, segundo ouvira contar, também Diana de Poitiers assim procedera um dia, e em vez de achar a protecção que procurava, só encontrou! afinal, a desonra que queria evitar. A Sr.a d'Étampes, se quisesse, poderia protegê-la, salvá-la. Mas quereria ela? E se acolhesse com um sorriso as suas lamentações? Sorriso de desdém e zombaria já o vira desenhar-se nos lábios de seu pai, quando lhe suplicara que a conservasse junto de si, e tal sorriso havia-lhe causado um mal horrível.

Não restava, pois, a Colomba outro refúgio além de Deus; por isso ajoelhava mais de vinte vezes ao dia no seu oratório, rogando ao Senhor de todas as coisas que enviasse socorro à sua fraqueza, antes de passarem os três meses que ainda a separavam do abominável casamento, ou então, se nenhum socorro pudesse esperar, que a levasse para junto de sua mãe.

Quanto a Ascânio, a sua existência não estava menos perturbada que a daquela a quem amava. Vinte vezes, depois que Raimbault lhe transmitira a ordem que tinha de não abrir a porta do palácio, de manhã, antes de ninguém se levantar, e à noite, quando já todos dormiam, vinte vezes fora sonhar junto daquelas altas muralhas que o separavam da sua vida. Mas nem uma só vez, furtiva ou descobertamente, tentara penetrar naquele jardim proibido. Havia ainda nele aquele respeito virginal' dos primeiros anos que defende a mulher amada contra o próprio amor.

Mas isso não impedia que Ascânio, enquanto cinzelava o ouro, orlava de pérolas ou engastava diamantes, fosse urdindo belos sonhos insensatos além dos que acalentava nos passeios matinais e nocturnos, e dos que agitavam o seu sono. Ora todos estes sonhos se relacionavam cada vez mais com o dia, a princípio tão temido e agora tão desejado, em que Benvenuto se devia tornar senhor do Palácio de Nesle, pois Ascânio, que conhecia bem o mestre, sabia que toda aquela tranquilidade aparente era comparável à de um vulcão prestes a vomitar fogo e lava.

E isto devia acontecer no domingo seguinte, anunciara Cellini, e por isso Ascânio não tinha a menor dúvida.

No entanto, pelo que pudera observar nas suas incursões em torno do Palácio de Nesle, Ascânio sabia que o projecto de Cellini não se realizaria sem obstáculos, graças à guarda contínua que se fazia nas muralhas do palácio, onde tudo havia tomado o aspecto de uma praça de guerra: se houvesse ataque, haveria defesa; e como a fortaleza não parecia disposta a capitular, era evidente que teria de ser tomada de assalto.

Pois seria então naquele instante supremo que Ascânio daria largas ao seu espírito de cavaleiro: haveria combate, haveria brecha, e talvez incêndio. Ah, era disso mesmo que ele precisava! Sim, e principalmente de um incêndio que pusesse Colomba em perigo, para ele correr a salvá-la, através de escadarias fumegantes, muralhas esbraseadas e vigas em chamas. Já lhe parecia estar a ouvir a sua voz pedindo socorro. Ele chegaria junto dela, arrebatá-la-ia já quase sem acordo e, levando-a por sobre pavorosos abismos ardentes, apertá-la-ia contra si, sentiria bater-lhe o coração de encontro ao seu, enquanto respiraria o seu alento. Depois, arrostando toda a espécie de perigos, iria depô-la, finalmente, aos pés do pai desvairado, que, em tributo à sua coragem, daria a mão de Colomba ao seu intrépido salvador. Ou então, ao atravessarem uma viga incandescente, escorregar-lhe-ia um pé, precipitando-se os dois no imenso braseiro, onde morreriam confundindo os corações no seu pulsar derradeiro, e as suas bocas num primeiro e último beijo de amor. Enfim, se as coisas viessem a tomar este rumo funesto, sentia Ascânio que só tinha a felicitar-se, pois já de tudo o mais desesperava; e felicidade comparável à de viverem um para o outro, só a de poderem morrer juntos.

Decorriam, pois, agitados os dias e as noites de todos os nossos heróis, à excepção de Benvenuto Cellini, que parecia ter completamente esquecido os seus projectos hostis para com os habitantes do Palácio Nesle, e de Scozzone, que os ignorava.

Entretanto, sob as diversas emoções que descrevemos, passara toda aquela semana, tendo Benvenuto trabalhado conscienciosamente durante os seus seis dias úteis, quase acabando o seu modelo em barro da sua estátua de Júpiter. Cerca de cinco horas da tarde de sábado, enfiou a sua cota de malha de aço, passando depois o gibão, que abotoou, e, dizendo a Ascânio que o acompanhasse, dirigiu-se ao Palácio de Nesle. Chegados junto às muralhas, Cellini e Ascânio rodearam toda a fortaleza, observando os pontos fracos, ruminando Benvenuto num plano de cerco.

O ataque devia oferecer mais de uma dificuldade, tal como o dissera o preboste ao seu amigo de Marmagne, tal como Ascânio o afirmara ao seu mestre, e tal como Benvenuto podia verificar por si mesmo. O Palácio de Nesle possuía seteiras nas ameias, torreões, dupla niuralha e, além de tudo isto, os fossos e baluartes da cidade que ficavam contíguos ao Pré-aux-Clercs. Era, de facto, uma daquelas sólidas e imponentes mansões feudais que grandes massas de pedra tornavam inexpugnáveis, enquanto as portas se conservassem solidamente trancadas, e que, sem qualquer auxílio do exterior, podiam repelir as forças do próprio rei. Judo era de esperar, naquela divertida época, em que cada um se via muitas vezes obrigado a fazer a ronda e o policiamento das suas próprias casas e propriedades.

Terminado o reconhecimento da fortaleza, segundo todas as regras da estratégia antiga e moderna, e pensando que antes de lhe pôr o cerco devia intimar a praça a render-se, foi bater à pequena porta do palácio, por onde Ascânio entrara uma vez. Também como para Ascânio se abriu para Benvenuto o pequeno postigo gradeado. Mas desta vez, em lugar do pacífico jardineiro, foi um archeiro que mostrou o seu rosto marcial através das grades.

— Que desejais? — perguntou ele ao estrangeiro que acabava de bater à porta do Palácio de Nesle.

— Tomar posse do palácio, que me foi concedido a mim, Benvenuto Cellini — respondeu o mestre ourives.

— Está bem, esperai — retorquiu o honrado sargento de armas.

E, seguindo as ordens que tinha, apressou-se a ir prevenir o Sr. d'Estourville.

Ao cabo de breves instantes, voltou, acompanhado pelo preboste, que, sem se mostrar e sustendo a respiração, se pôs a escutar junto da porta, e rodeado por parte da sua guarnição, a fim de melhor avaliar a gravidade do caso.

— Não sabemos o que quereis dizer — declarou o archeiro a Cellini.

— Nesse caso, entregai este pergaminho ao Senhor Preboste. É a cópia autenticada do acto de doação.

E passou o pergaminho através das grades.

O sargento desapareceu novamente; mas como, desta vez, não tinha mais que estender a mão para entregar a cópia ao preboste, o postigo abriu-se quase imediatamente.

— Aqui está a resposta — disse o archeiro, passando pelo postigo o pergaminho despedaçado.

— Está bem — disse Cellini, com a maior calma.

E, encantado com o bom senso com que Ascânio o secundara na inspecção da fortaleza, emitindo as mais judiciosas observações a respeito do assalto que iam tentar, regressou ao atelier, afirmando ao discípulo que teria vindo a ser um grande capitão se não estivesse destinado a tornar-se ainda um maior artista, o que aos olhos de Cellini valia infinitamente mais.

No dia seguinte o Sol rompeu magnífico no horizonte. Benvenuto havia pedido na véspera aos seus operários que fossem no dia seguinte ao atelier, não obstante ser domingo, e nenhum faltou à chamada.

— Meus filhos, contratei-vos para trabalhardes em ourivesaria e não para combaterdes. Mas há dois meses que estamos juntos, e já nos conhecemos o bastante para que, numa necessidade, eu tenha podido contar convosco, tal como vós podeis contar com todos, e sempre comigo. Não ignorais o que se trata. Bem vedes como trabalhamos pouco à vontade neste local sem espaço e sem ar, tornando-se-nos impossível empreender aqui grandes obras ou forjar alguma coisa que valha. Como vós mesmo presenciastes, o rei teve a bondade de me conceder uma habitação mais vasta e mais cómoda. Apenas, como lhe falta o tempo para se ocupar dos pequenos pormenores, confiou-me o cuidado de me estabelecer eu próprio no edifício outorgado. Ora, sucede que me não querem entregar aquela moradia tão generosamente concedida pelo rei e, assim, há que tomá-la. O preboste, que a retém contra as ordens de Sua Majestade (parece que tais coisas são vulgares neste país), ignora com que espécie de homem terá de haver-se. Se me recusam, exijo; se me recusam, arrebato o que é meu. Estareis vós na intenção de me ajudar? Não posso esconder-vos que se trata de uma empresa perigosa: é uma batalha a travar, e uma escalada a fazer, além de outros prazeres pouco inocentes. Da parte da polícia e da ronda não há, porém, nada a temer, pois possuímos a autorização de Sua Majestade. Mas podem resultar mortes, meus rapazes; por isso, desejaria que os que não quiserem vir, não tivessem dúvida em ficar em casa. Eu só careço de corações bem decididos, e Se tiver de me contentar apenas com a ajuda de Pagolo e Ascânio, não vos dê isso cuidado.

O ataque seria diferente, mas far-se-ia de modo a garantir o êxito. Mas, em boa fé, se estais, como espero, decididos a dar-me as vossas forças e as vossas coragens, então, acautele-se o preboste e todo o seu preboste! E agora, que estais completamente elucidados do que se passa, quereis seguir-me?

Todos responderam, num só grito:

— A toda a parte, mestre! A toda a parte onde nos levardes!

— Bravo, meus filhos! Estais, portanto, todos dispostos a entrar na brincadeira?

— Todos!

— Nesse caso, com seiscentos mil diabos! vamo-nos divertir à grande! — exclamou Benvenuto, que estava cada vez mais no seu elemento. — Há já muito tempo que me sinto a criar ferrugem... Desembainhar, desembainhar já espadas e coragem! Ah! graças a Deus que vamos poder dar e receber algumas boas estocadas. Mas, vejamos, meus rapazes, é preciso armarmo-nos e estabelecer já um plano de ataque: é preciso prepararmos o golpe! Preparemo-nos para bem esgrimir, e... viva a folia! Vou dar-vos o melhor que tenho em armas ofensivas e defensivas, além das que estão dependuradas nas paredes, e onde cada um pode escolher à sua vontade. Ah, era de boas colubrinas que precisávamos... mas, ora! aqui estão mosquetes e arcabuzes, lanças, punhais e espadas que valerão tanto como elas; e também cotas de malha de aço, capacetes e couraças. Pois depressa! vistamo-nos para o baile! É o preboste quem paga a música.

— Hurra! — gritaram todos os companheiros.

Começou então no atelier um movimento, um tumulto e um rebuliço admiráveis. A verve e a animação do mestre incendiavam rostos e corações. Experimentavam-se couraças, brandiam-se espadas, atiravam-se punhais; ria-se e cantava-se de tal maneira que mais pareciam preparativos de uma festa, de uma mascarada.

Benvenuto ia, vinha, corria de um lado para outro, ensinando um bote irresistível a um, apertando o cinturão a outro, sentindo enfim um sangue quente e livre correr-lhe nas veias, como se tivesse reencontrado a sua verdadeira vida.

Quanto aos artífices, não acabavam os seus gracejos sobre os ares marciais que todos iam tomando, ou sobre as suas inépcias burguesas.

— Olhai, mestre, olhai! — gritava um — olhai Simão Canhoto, como afivela a espada do mesmo lado que nós! A direita, menino, à direita!

— E Jehan? — troçava por seu turno Simão — e Jehan, que segura a alabarda como há-de segurar o báculo quando for bispo?...

— E Pagolo? e Pagolo, que põe duas cotas de malha?...

— E porque não?! — respondia Pagolo — então não vedes como Hermann, o Alemão, se está a armar como se fosse um cavaleiro do tempo do Imperador Barba-Roxà?

E, na verdade, aquele que acabavam de designar por Hermann, o Alemão (espécie de pleonasmo, pois a consonância bem germânica da primeira palavra já o situava claramente entre os súbditos do Santo Império) Hermann, dizíamos, tinha-se coberto de ferro da cabeça até aos pés, lembrando uma daquelas estátuas gigantescas que, naqueles belos tempos de arte, os escultores colocavam sobre os túmulos de grandes guerreiros. Por isso, Benvenuto, apesar da proverbial fama de força que no atelier gozava aquele bravo rapaz de além-Reno, não deixou de lhe observar que, encerrado como estava naquela carapaça de ferro, teria grande dificuldade em fazer qualquer movimento e a sua força perdia, assim, mais do que ganhava. Mas Hermann respondeu-lhe saltando com tanta agilidade e rapidez para cima de uma banca de trabalho, que parecia vestido de veludo; e, dependurando um enorme manto, fê-lo rodopiar vertiginosamente por sobre a cabeça; finalmente, vibrou na bigorna três pancadas tão violentas que esta se foi enterrando no solo, de cada vez, três polegadas.

Tão eloquente resposta era tréplica, e por isso Benvenuto não lhe fez mais que um respeitoso cumprimento com a mão e a cabeça, em sinal de que estava mais que satisfeito.

Ascânio fora o único a fazer os seus preparativos em silêncio e à parte. Não estava absolutamente seguro das consequências do que ia fazer; Colomba podia muito bem não querer perdoar-lhe o ter atacado seu pai, principalmente se na luta sobreviesse alguma fatalidade, e, nesse caso, à aproximação, que tanto desejava, poderia corresponder um apartamento dos corações.

Quanto a Scozzone, entre alegre e inquieta, ora ria, ora chorava; a mudança de casa e a batalha agradavam-lhe, mas não assim os botes e os ferimentos, que eram de recear. Os preparativos do combate faziam saltar de alegria a criança endiabrada, as consequências da luta faziam tremer a mulher.

Benvenuto, que acabou por reparar nas suas lágrimas e risos simultâneos, aproximou-se dela dizendo:

— Tu, Scozzone, ficarás em casa com Ruperta, a fazer compressas de fios e a preparar um bom jantar para os combatentes.

— Oh, não! — exclamou Scozzone — irei convosco. Ao vosso lado, serei capaz de enfrentar o preboste e todo o prebostado, enquanto que aqui, sozinha com Ruperta, morreria de inquietação e pavor.

— Não consinto — respondeu Benvenuto — , não combateria à vontade se pensasse que poderia suceder-te alguma desgraça. Enquanto esperares, querida garota, rezarás a Deus por nós.

— Olhai Benvenuto — disse a jovem, como que iluminada por súbita ideia — deveis compreender que eu não posso suportar a ideia de ficar para aqui tranquila e pensar que podereis estar ferido, ou até moribundo. Mas há, parece-me, uma maneira de conciliar tudo; é, em vez de ficar no atelier, ir rezar para a igreja mais próxima do local do combate; desta maneira, não correrei qualquer risco e saberei logo o resultado do combate.

— Pois seja como tu queres — respondeu Benvenuto. — E, como mal parecia que fôssemos matar os outros, ou fazermo-nos matar por eles, sem primeiro assistirmos devotadamente a uma missa, está dito: entraremos todos na Igreja dos Agostinhos, que é a mais próxima do Palácio de Nesle, e aí te deixaremos, minha pequena.

Feitas estas combinações e terminados todos os preparativos, bebeu-se um trago de vinho< de Borgonha e, juntando às armas ofensivas e defensivas uma boa porção de martelos, escadas e cordas, iniciou-se a marcha, mas não em coluna cerrada, para não despertar a atenção. Dois a dois, todos se foram dirigindo ao palácio.

Não que, naqueles tempos, um assalto fosse coisa mais rara que, nos nossos dias, um tumulto ou uma mudança de ministério. Mas a verdade é que, ordinariamente, não se escolhia o dia santo de domingo, nem a hora do meio-dia, para tais recreações, e era preciso toda a audácia de Benvenuto Cellini, sustentada, de resto, pelo sentimento do seu direito, para arriscar semelhante tentativa.

Assim, uns depois dos outros, os nossos heróis chegaram à Igreja dos Agostinhos, onde, depois de terem deposto as armas e utensílios nas instalações do sacristão, que era amigo de Simão Canhoto, assistiram piedosamente ao santo sacrifício da missa, rogando a Deus a graça de darem cabo do maior número possível de archeiros do preboste.

Entretanto, temos de dizer que, apesar da grande devoção e das orações que deviam dirigir a Deus, Benvenuto, mal entrou na igreja, exteriorizou a mais singular das distracções; que, por detrás dele, mas na nave oposta, e rezando por um missal iluminado, estava um jovem de rosto tão adorável que teria distraído até a atenção de um sensato, quanto a dum homem e, mais a mais, escultor. Em tais alturascomo esta, o artista importunava estranhamente o cristão.

A admiração de Cellini foi crescendo de tal maneira que, em dado momento, sentiu imperiosa necessidade de a compartilhar com alguém e, como Catarina não deixaria de mostrar uma grande severidade pela falta de atenção de mestre Benvenuto, este voltou-se para Ascânio, que estava à sua direita, e preparou-se para lhe fazer notar a admirável perfeição daquela cabeça virginal.

Mas a verdade é que o jovem discípulo não precisava de qualquer indicação, pois desde o primeiro instante em que entrara no templo o seu olhar se fixara na jovem e ainda não se tinha desviado.

Vendo-o absorvido na mesma muda contemplação, Benvenuto contentou-se em trocar com Ascânio um olhar de inteligência.

— É ela! — disse Ascânio — , é Colomba; vedes agora como é bela?

Era efectivamente Colomba, a quem o pai, não esperando um ataque àquela hora, havia deixado ir à missa dos Agostinhos. Colomba insistira muito em ir, pois era aquela a única consolação que lhe restava. Dona Perrine estava a seu lado.

— Ora essa! Mas quem é Colomba? — perguntou naturalmente Benvenuto.

— Ah, é verdade, não a conheceis. Colomba é a filha do preboste, do próprio Dom Roberto d'Estourville. Não achais que é bela? — perguntou pela segunda vez.

— Não! — exclamou Benvenuto — não é Colomba... Não vês que é Hebe, Ascânio? Hebe, a deusa da juventude! a Hebe que o meu grande monarca Francisco I me encomendou!... A Hebe que há tanto sonho, que eu pedia a Deus, e que Ele enviou finalmente!...

E sem reparar na contradição bizarra de uma hebe assistindo à missa e elevando o seu coração para Deus, Benvenuto prosseguiu no seu louvor à beleza, simultaneamente com as suas orações a Deus e os seus planos de ataque ao palácio. O artista, o católico e o estratega dominaram sucessivamente no seu espírito.

— Pai Nosso que estais no Céu... — Olha bem, Ascânio! que recorte aquele de uma figura fina e suave!... — Santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino... — Como aquela linha docemente ondulada do corpo forma um contorno supremo!... — O pão nosso de cada dia nos dai hoje... — E dizes tu que tão encantadora jovem é a filha daquele vilão do preboste, que ainda me há-de acabar nas mãos?!... — Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. — Nem que tivesse que queimar o palácio!... — Ámen.

E Benvenuto fez o seu sinal da cruz, sem sequer duvidar de que acabava de rezar um excelente Pai-Nosso.

A missa terminou no meio daquelas preocupações diversas e que bem poderiam parecer demasiado profanas a qualquer homem de outro carácter ou de outro tempo, mas que eram absolutamente naturais num temperamento tão impulsivo como o de Cellini, e numa época em que Clemente Marot punha em versos galantes os sete Salmos Penitenciais.

Pronunciado o Ite Missa est, Benvenuto e Catarina estreitaram as mãos. Depois, enquanto a jovem, enxugando uma lágrima, ia ocupar o lugar onde esperaria o fim do combate, Cellini e Ascânio, com os olhos postos em Colomba, que ainda não tinha levantado os olhos do livro, foram, seguidos pelos companheiros, molhar os dedos na água benta. Depois, todos se separaram, para logo se reunirem num pequeno beco deserto e sem saída, a meio caminho entre a igreja e o palácio.

Quanto a Catarina, ficou, como combinado, assistindo à missa cantada, o que, aliás, também fizeram Colomba e Dona Perrine, pois que, tendo chegado à igreja antes da hora, apenas tinham assistido ao primeiro ofício como preparação para a missa solene. Estas últimas nem de longe suspeitavam que Benvenuto e os seus artífices estavam prestes a cortar-lhes todas as comunicações com o palácio que tão imprudentemente haviam deixado.

 

         ESTOCADAS

Chegara o momento decisivo. Benvenuto dividiu os seus dez homens em dois grupos. Um devia tentar, por todos os meios possíveis, forçar a porta do palácio; e o outro devia proteger as operações dos atacantes e, a tiro de arcabuz ou à espada, afastar das muralhas todos os sitiados que surgissem nas ameias ou que tentassem uma saída. Benvenuto tomou pessoalmente o comando deste segundo grupo, escolhendo para ajudante o nosso amigo Ascânio. Para chefiar o outro grupo nomeou aquele nosso velho conhecido, Hermann, aquele bom e bravo alemão, que era capaz de achatar uma barra de ferro com uma simples martelada, e um homem com um simples murro. Hermann nomeou, por sua vez, para imediato, o pequeno Jehan, divertido moço de pouco mais de quinze anos, ágil como um esquilo malicioso como um bugio e atrevido como um pajem, a quem o golias ganhara afeição talvez porque o travesso moço jamais o deixava em sossego. O pequeno Jehan colocou-se, pois, com orgulho ao lado do seu capitão com grande despeito de Pagolo que, na sua dupla couraça, e com a rigidez de movimentos que era de esperar, lembrava imediatamente a estátua do comendador, no Dom João Tenório.

Dispostas assim as coisas, e passada uma última revista a armas e combatentes, Benvenuto dirigiu mais algumas palavras àqueles bravos, que por sua causa iam tão alegremente expor-se a graves perigos, à própria morte talvez.

Em seguida, estreitou a mão a todos, persignou-se piedosamente e gritou:

— Avante!

Imediatamente, os dois grupos avançaram, costeando o Cais dos Agostinhos, àquela hora deserto, e mantendo sempre uma certa distância entre si chegaram rapidamente ao Palácio de Nesle.

Então, Benvenuto, não querendo atacar o seu inimigo sem ter cumprido com todas as formalidades da cortesia usadas em semelhantes casos, adiantou-se sozinho, com um lenço na ponta da espada, até à pequena porta do palácio onde estivera na véspera, e bateu. Como no dia anterior, perguntaram-lhe também através da grade o que queria. Benvenuto repetiu o mesmo protocolo, dizendo que vinha tomar posse do castelo que lhe havia sido outorgado pelo rei. Mas foi menos feliz que na véspera, pois, desta vez, nem sequer obteve a honra de uma resposta.

Então, com voz sonora e firme, disse, voltando-se para a porta:

— A ti, Roberto d'Estourville, Senhor de Villebon, preboste de Paris, eu, Benvenuto Cellini, ourives, estatuário, pintor, físico e engenheiro, faço saber que Sua Majestade o Rei Francisco I me deu livremente, e como era seu pleno direito, posse plena do Grand-Nesle.

Ora, como tu o reténs insolentemente, e, opondo-te ao real mandato, te recusas a entregar-mo, eu te declaro, Roberto d'Estourville, Senhor de Villebon, e preboste de Paris, que to venho tomar pela força. Portanto, defende-te; e sabe que, se da tua obstinação resultar algum mal, terás de responder por ele, tanto na Terra como no Céu, diante dos homens como diante de Deus. Ao chegar a este ponto, Benvenuto calou-se, a ver se obtinha resposta; mas, para lá das muralhas, tudo continuou em silêncio. Então Benvenuto carregou o seu arcabuz e ordenou aos seus que aprestassem as armas; em seguida, reunindo os chefes em conselho, isto é, ele, Hermann, Ascânio e Jehan, disse-lhes:

— Meus filhos, como vedes, já não é possível evitar a luta. Vejamos agora de que maneira a travaremos.

— Arrombarei a porta e vós seguir-me-eis, é tudo — disse Hermann.

— E com quê, grande Sansão? — perguntou Benvenuto Cellini.

Hermann olhou à sua volta, notando sobre o cais uma enorme viga que quatro homens normais não levantariam sem dificuldade.

— Com aquela viga — respondeu.

E indo tranquilamente apanhar a trave, pô-la debaixo do braço fixando-a como aríete na sua máquina, e regressou para junto do seu general.

Entretanto, começavam-se a apinhar no local muitos curiosos e Benvenuto, excitado, ia dar ordem de começar o ataque quando o capitão dos archeiros do rei, prevenido decerto por qualquer burguês conservador, surgiu na esquina da rua acompanhado por cinco ou seis dos seus homens a cavalo. Este capitão era amigo do preboste e, conquanto soubesse bem do que se tratava, aproximou-se de Benvenuto, sem dúvida na esperança de o intimidar, e, enquanto os seus impediam a passagem a Hermann, disse:

— Que pretendeis, e porque perturbais assim o sossego da cidade?

— Quem verdadeiramente perturba o sossego — respondeu Cellini — é quem se recusa a obedecer às ordens do rei e não quem as executa.

— Que quereis dizer?... — perguntou o capitão.

— Quero dizer que está aqui uma ordem de Sua Majestade, entregue em boa e devida forma pelo Sr. de Neufville, secretário das Finanças reais, a qual me faz doação do Palácio do Grand-Nesle. Mas as pessoas que lá se encontram recusam-se a reconhecer esta ordenação, negando-me assim o que me é devido. Ora, uma vez que a Sagrada Escritura declara que é preciso dar a César o que é de César, eu decidi que, de uma maneira ou de outra, Benvenuto Cellini tem o direito de se apropriar do que pertence a Benvenuto Cellini.

— E em vez de nos impedir a conquista do nosso palácio — gritou Pagolo — , devíeis era prestar-nos ajuda.

— Cala-te Pagolo — disse Benvenuto — , não preciso ajudas de mais ninguém, ouves?

— Tendes razão de direito — disse o capitão — , mas não de facto.

— Como é lá isso?! — perguntou Benvenuto, que já sentia o sangue começar a subir-lhe ao rosto.

— Tendes razão em quererdes entrar na posse daquilo que é vosso, mas não na tendes em o fazerdes por este processo; porque não haveis de ganhar muito, já vos digo, a esgrimir contra estas muralhas. Se quereis seguir melhor conselho, conselho de amigo, acreditai, dirigi-vos antes à justiça e apresentai, por exemplo, uma queixa contra o preboste de Paris. E, agora, adeus; felicidades.

E dando duas gargalhadas, o capitão dos archeiros do rei desapareceu com os seus homens. O povinho, vendo rir a autoridade, começou a rir também.

— O último a rir há-de rir muito melhor — disse Benvenuto Cellini. — Para a frente, Hermann, para a frente!

Hermann voltou a pegar na sua viga, enquanto Cellini, Ascânio e dois ou três dos mais hábeis atiradores preparavam os seus arcabuzes para fazer fogo sobre a muralha, e avançou como uma viva catapulta de encontro à pequena porta, que parecia mais fácil de arrombar que a grande.

Mas, quando se aproximava da muralha, começou a cair uma saraivada de pedras, sem que se visse quem as lançava. Era evidente que o preboste as tinha mandado amontoar junto à fenda superior que protegia as portas, de modo que bastava uma pequena pressão com os dedos para que elas se despenhassem sobre os assaltantes. Estes, ao verem o género de recepção que lhes faziam, deram um passo à retaguarda. Apesar de súbita e violenta, a chuva de pedregulhos apenas feriu Pagolo, que, debaixo do peso descomunal das suas duas couraças, não conseguiu retirar-se a tempo e foi atingido no calcanhar.

Quanto a Hermann, fez tanto caso daquela nuvem de calhaus como um carvalho o faz da saraiva, e continuou a avançar em direcção à porta. Uma vez ali, começou a vibrar-lhe pancadas tão violentas, que logo se tornou evidente que, por mais resistente que ela fosse, não poderia sofrer, inteira, por muito tempo, semelhantes abalos.

Por seu lado, Benvenuto e os outros conservavam-se de arcabuz em punho prontos a fazerem fogo sobre a primeira pessoa que surgisse por sobre a muralha; mas não se avistava ninguém. O Grand-Nesle parecia estar a ser defendido por uma guarnição invisível. Entretanto, Benvenuto enraivecia-se por não poder ir em auxílio do seu bravo alemão. De repente, lembrou-se da velha Torre de Nesle que, como dissemos, ficava do outro lado do cais e, solitária, emergia do Sena.

— Espera, Hermann! — gritou Cellini — espera, meu bravo, que o Palácio de Nesle é nosso, tão certo como eu me chamar Benvenuto Cellini e ser ourives de profissão.

Depois, fazendo sinal a Ascânio e a dois dos seus companheiros para que o seguissem, correu para a torre, enquanto Hermann, obedecendo às ordens do mestre, recuava quatro passos e, erguendo a sua trave como um suíço a sua alabarda, esperava fora do alcance das pedradas o resultado da empresa do general.

Tal como Benvenuto o previra, o preboste havia descurado a defesa da velha torre, pelo que se pôde apoderar dela sem resistência e, subindo os degraus quatro a quatro, num instante se achou no terraço. Este dominava todas as muralhas do Grand-Nesle, como um campanário domina em geral uma povoação, e, assim, os sitiados, que ainda agora se encontravam ao abrigo das suas fortificações, acharam-se, de súbito, completamente a descoberto.

Um tiro de arcabuz que retiniu, uma bala que assobiou e um archeiro que tombou com um gemido anunciaram ao preboste que a situação iria, segundo todas as probabilidades, mudar para si.

No mesmo instante, Hermann percebeu que ia ter o campo livre, pelo que logo aprontou a sua trave, recomeçando as suas arremetidas contra a porta, que os sitiados haviam entretanto reforçado, aproveitando aquela espécie de tréguas.

Por sua parte, a multidão, que, graças ao admirável instinto de conservação que possui, havia compreendido que o tiroteio ia começar, e que os espectadores da iminente tragédia podiam muito bem receber algumas balas perdidas, logo ao primeiro tiro do arcabuz de Ascânio e ao grito do archeiro ferido, se tinha dispersado como um bando de pombos.

Um só indivíduo não arredou pé.

Era o nosso amigo Tiago Aubry, o escolar de leis, que, na esperança do prometido desafio de péla, comparecia ao encontro que, no domingo precedente, lhe marcara Ascânio.

Bastou-lhe uma rápida olhadela ao campo de batalha para compreender imediatamente o que se tratava.

A decisão a tomar por Tiago Aubry, com o temperamento que já lhe conhecemos, não é difícil de adivinhar. Jogar a péla ou arcabuz, tudo é jogar; e como o seu amigo se encontrava do lado dos assaltantes, foi, pois, entre estes que se foi colocar.

— Com que então, os meus meninos entretêm-se a brincar aos cercos!... — disse ele, avançando para o grupo, que esperava que a porta fosse arrombada para se precipitar na praça. — Caramba! o Palácio de Nesle não é um casinhoto qualquer. Como vos atreveis a atacar tão forte reduto, sendo tão poucos?

— Não estamos sós — disse Pagolo, enquanto fazia um penso ao calcanhar e apontava para Benvenuto e os seus companheiros, que, sobre a muralha, continuavam a fazer um fogo tão cerrado, que a chuva de pedras começava a ser muito menos densa que a princípio.

— Ah, já compreendo, já compreendo, Senhor Aquiles — disse Tiago Aubry — , e se vos chamo Aquiles é porque, além de outras afinidades com o grande herói, tendes também essa de haverdes sido ferido no único ponto em que ele o foi. Agora compreendo; lá está o meu camarada Ascânio... e aquele é com certeza o mestre... Lá estão eles no alto da torre.

— Justamente — disse Pagolo.

— E aquele, além, que dá tão colossais pancadas à porta? Também é dos vossos, não?

— É Hermann — disse o pequeno Jehan com orgulho.

— Caramba! como lhe dá!! — disse o estudante. — Tenho que ir felicitá-lo.

E, de mãos nos bolsos, sem fazer caso dos projécteis que lhe assobiavam por cima da cabeça, aproximou-se do valente alemão, que prosseguia na sua tarefa com a regularidade de uma máquina de grande precisão.

— Precisais de alguma coisa, meu bravo Golias? — disse Tiago Aubry. — Venho pôr-me ao vosso serviço.

— Tenho sede — disse Hermann, sem interromper as suas poderosas investidas.

— Caramba! deveis ter, com todo esse esforço... Só queria ter aqui à mão um tonel de cerveja ou de cidra bem fresca.

— Agua! — disse Hermann — água.

— Isso vos basta? Então nada mais fácil: temos ali muita no rio. Esperai só um minuto. E Tiago Aubry correu para o Sena, encheu o barrete de água e foi apresentá-lo ao alemão,

que, erguendo a sua trave, bebeu o líquido dum só trago.

— Agradeço-te — disse ao estudante, e pôs-se logo ao trabalho novamente. Ao cabo de dez minutos, disse:

— Ide dizer ao mestre que isto está aqui está pronto; que se pode ir preparando.

Tiago Aubry correu logo para a torre e um instante depois estava entre Ascânio e Benvenuto, que com os arcabuzes apontados faziam um fogo cerradíssimo sobre os adversários; vários destes haviam já sido postos fora de combate. Os sargentos do preboste já mal se atreviam a subir à muralha.

Entretanto, tal como Hermann mandara anunciar a Benvenuto, a porta começou a ceder. O preboste, numa tentativa desesperada, incitou de tal modo os seus homens, que uma terrível saraivada de pedras começou a cair sobre Hermann. Mas dois tiros quase simultâneos de arcabuz bastaram para acalmar imediatamente o novo ardor dos sitiados, pois já não houve pragas nem promessas de Dom Roberto que os fizessem sair do esconderijo onde se imobilizaram. Vendo isto, o preboste enraivecido avançou sozinho e, agarrando uma pedra enorme com ambas as mãos, preparava-se para a fazer rolar sobre Hermann.

Mas Benvenuto estava atento. Mal notou que o imprudente se atrevia a aparecer na muralha, levou o arcabuz à cara, e Dom Roberto teria sido atingido por uma bala certeira se, no preciso instante em que Cellini disparava, Ascânio não tivesse soltado um grito, levantando com a mão a arma do mestre. O tiro partiu, mas o Sr. Ascânio tinha reconhecido o pai de Colomba.

Quando Benvenuto, furioso, ia perguntar ao discípulo o motivo por que assim agira, a pedra, vigorosamente lançada pelo preboste, foi bater em cheio sobre o capacete de Hermann. Ora, por mais fenomenal que fosse a robustez do nosso moderno Titã, a verdade é que jamais poderia resistir a este novo Pélion. Largou a viga, abriu os braços como para procurar apoio e, não o achando, deixou-se cair com grande estrépito no chão. Havia desmaiado.

Sitiantes e sitiados soltaram, ao mesmo tempo, dois gritos de significação oposta. O pequeno Jehan e os três ou quatro companheiros que estavam perto, precipitaram-se na direcção do jovem para o transportarem para longe das muralhas e poderem prestar-lhe socorro mas, no mesmo instante, abriram-se as duas portas do palácio e o preboste, à frente de quinze dos seus homens, avançou para o ferido, esgrimindo de tal maneira, que Jehan e os seus companheiros, não obstante os gritos de encorajamento de Cellini, que já se aproximava, tiveram que recuar. O preboste aproveitou-se desta retirada. Oito homens apoderaram-se do desmaiado Hermann, segurando-lhe pelos braços e pelas pernas, e sete puseram-se-lhes na frente, a fim de protegerem o movimento retrógrado que ia efectuar-se. Efectivamente, durante o pequeno espaço de tempo que Cellini, Ascânio, Tiago Aubry e os companheiros do terraço levaram a descer os quatro ou cinco pisos que os separavam da rua, Hermann e os que o transportavam entraram no Grand-Nesle, de modo que quando Cellini apareceu, de arcabuz em punho, à porta da torre, a do palácio acabava de fechar-se sobre o último homem do preboste.

Fora aquele um grave revés. É certo que Cellini, Ascânio e os companheiros, com os seus arcabuzes, já tinham posto fora de combate um razoável número de adversários, mas a perda desses archeiros do preboste estava longe de equivaler à perda de Hermann para Cellini.

Durante um momento, os atacantes permaneceram estupefactos.

De repente, Cellini e Ascânio entreolharam-se.

— Tenho uma ideia — disse Cellini olhando para os lados da cidade.

— Também eu — exclamou Ascânio, olhando para o lado dos campos.

— Descobri maneira de fazer sair a guarnição.

— Pois eu creio que achei um processo para vos abrir a porta.

— De quantos homens necessitais?

— Basta-me um.

— Escolhe.

— Tiago Aubry, queres vir comigo? — perguntou Ascânio.

— Até ao fim do mundo, meu caro! — respondeu o interpelado. — Só o que... não se me dava de levar uma arma qualquer... basta uma ponta de espada, ou umas raspas de punhal: quatro ou cinco polegadas de ferro para encaixar em qualquer parte, se for necessário.

— Pois não! — disse Ascânio — pegai nesta espada de Pagolo, que já não pode manejá-la, com a mão direita a segurar o calcanhar e a benzer-se com a esquerda.

— E aqui tendes também o meu punhal para completar o vosso armamento — disse Cellini, entregando-lhe a arma referida. — Feri com ela à vontade, meu rapaz, mas, por Deus! não o deixeis esquecido no corpo de algum dos archeiros do preboste, pois faríeis uma oferta demasiado esplêndida ao ferido. Cinzelei-o com amor, e o punho deve valer mais de cem escudos em oiro.

— E a lâmina?... — perguntou Tiago Aubry. — O punho poderá valer isso ou até muito mais, mas, de momento, é a lâmina que representa mais valor para mim.

— A lâmina não tem preço — respondeu Cellini — , foi com ela que matei o assassino de meu irmão.

— Hurra! — exclamou o estudante. — Ascânio, a caminho!

— Prontíssimo! — exclamou Ascânio, enrolando cinco ou seis braças de corda em redor do corpo e pondo uma das escadas ao ombro. — Vamos!

E os dois jovens aventureiros desceram o cais, voltando à esquerda ao fim de cem passos e desaparecendo logo num dos ângulos da muralha do Grand-Nesle, por detrás dos fossos de Paris.

Deixemos agora Ascânio tentar a execução do seu plano, e sigamos Cellini na tentativa de realização do seu.

Enquanto Ascânio, há pouco, olhara à esquerda, para os campos, Cellini, olhando à direita, em direcção à cidade, notou, entre um grupo de populares que se mantinham a distância, duas mulheres, em quem julgou reconhecer a filha do preboste e a sua dama de companhia.

Eram, de facto, Colomba e Dona Perrine, que, acabada a missa, regressavam ao Petit-Nesle, mas que, aterrorizadas com o que ouviram sobre o cerco do palácio, e com o que viam com os seus próprios olhos, se quedaram transidas entre a multidão.

Mas, logo que Colomba se apercebeu daquela espécie de tréguas momentâneas, a jovem, movida pela inquietação que lhe causava o perigo que o pai corria, avançou resolutamente para o palácio, sem atender às súplicas de Dona Perrine, que lhe pedia que não se aventurasse em semelhante desordem. Colomba concedeu inteira liberdade à governanta para a acompanhar ou para ficar a recato; mas, como Dona Perrine amava ternamente Colomba, resolveu-se a segui-la, a despeito do imenso pavor que sentia.

No momento em que Ascânio e Tiago Aubry dobravam o ângulo da muralha, deixavam elas o grupo de populares.

O plano de Cellini é fácil de compreender.

Logo que viu as duas mulheres avançarem em direcção ao palácio, correu ao seu encontro e, oferecendo donairosamente o braço a Colomba, disse:

— Senhora, peço-vos que nada temais e, se quiserdes aceitar o meu braço, eu próprio vos conduzirei até junto do Senhor vosso pai.

Colomba hesitava, mas Dona Perrine, agarrando-se ao braço que ficara do seu lado, e que Benvenuto se esquecera de lhe oferecer, disse:

— Aceitemos, minha filha! aceitemos a protecção deste nobre cavaleiro. Vede, vede além, como o Senhor Preboste se debruça na muralha, preocupado sem dúvida com as nossas pessoas.

Colomba aceitou o braço de Benvenuto, e os três avançaram até dois passos da porta. Aí, Cellini parou e, dando sempre o braço à jovem e à governanta, bradou para a muralha:

— Senhor Preboste, aqui tendes vossa filha, que deseja entrar no palácio. Espero que lhe abrais a porta, e que não queirais deixar tão encantador refém nas mãos dos vossos inimigos...

Desde as duas horas que o preboste, abrigado na sua fortaleza, pensara mais de vinte vezes na imprudência da filha, e na sua, em a ter deixado ir, sem saber como fazer para que ela regressasse ao palácio. A sua esperança era que, advertida do que se passava, fosse esperá-lo no Grand-Châtelet. Qual não foi, pois, a sua raiva ao ver Cellini deixar os companheiros e aproximar-se das duas mulheres, que logo reconheceu serem Colomba e Dona Perrine.

«Grande idiota! — resmungou para si o preboste. — A verdade é que não posso deixá-la no meio daqueles bárbaros.»

E elevando a voz:

— Está bem — disse ele, abrindo o postigo e aproximando o rosto da grade — , e que exigis?

— As minhas condições são estas — disse Benvenuto — deixarei entrar a Senhorinha Colomba e a sua governanta, mas vós haveis de sair com todos os vossos archeiros, para que nos batamos cá fora, em campo aberto. No final, os que ficarem senhores do campo de batalha terão também o palácio; e quanto aos vencidos... vae victis, como dizia o vosso antepassado Breno.

— Aceito — disse o preboste — , mas imponho também uma condição.

— Qual?

— A de que vos afasteis com o vosso grupo, para que minha filha entre e os meus sargentos saiam.

— Seja! — disse Cellini — mas saí primeiro, que a Senhorinha Colomba entrará depois. Logo que a vossa filha esteja dentro, e para evitar qualquer retirada, devereis atirar a chave por cima da muralha.

— De acordo — disse o preboste.

— Dais a vossa palavra?

— À fé de fidalgo! E vós?

— À fé de Benvenuto Cellini!

Trocados que foram estes compromissos, a porta abriu-se, saindo os homens do preboste, que foram dispor-se em duas fileiras diante da porta, com o Sr. dEstourville na dianteira.

Ao todo eram ainda dezanove, enquanto que, do lado de Benvenuto, privado de Ascânio, Hermann e Tiago Aubry, eram apenas oito combatentes; e um deles, Simão Canhoto, estava ferido (felizmente na mão direita). Mas Benvenuto, que conseguira apunhalar Pompeio, no meio dos seus doze esbirros, não era positivamente homem que olhasse ao número dos adversários. Cumpriu pois a sua promessa com a maior alegria, pois o que mais desejava era um combate generalizado e decisivo:

— Podeis agora entrar, Senhora — disse ele à sua formosa prisioneira.

Colomba atravessou aquela pequena terra-de-ninguém com a ligeireza da ave do seu nome, e foi lançar-se desvairada nos braços do preboste.

— Meu pai! Meu pai! — exclamou ela chorando — pelo amor de Deus vos peço que não vos exponhais.

— Vá! entra em casa — disse bruscamente o preboste, tomando-a pelo braço e conduzindo-a até à porta. — Foram as tuas imprudências que nos reduziram a esta situação.

Colomba entrou, seguida de Dona Perrine, a quem o medo, se não dera asas, como à sua bela companheira, pelo menos restituíra-lhe as pernas, que havia dez anos julgava perdidas. Depois de a filha e a governanta terem entrado, o preboste bateu a porta.

— A chave, a chave! — gritou Cellini.

O preboste tirou então a chave da fechadura e atirou-a por cima da muralha, ouvindo-se cair no pátio interior.

— E agora...! — exclamou Benvenuto Cellini, avançando para o preboste e os archeiros — agora, cada um por si, e Deus por todos!

Foi uma balbúrdia tremenda. Ainda antes de os archeiros terem tido tempo de baixar as suas armas e fazer fogo, Benvenuto, com os seus sete artífices, tinha caído no meio deles, golpeando para a esquerda e para a direita, com aquela terrível espada que tão bem manejava e a cuja lâmina dera tal têmpera que poucas cotas de malha ou mesmo couraças lhe podiam resistir. Os sargentos atiraram, pois, ao chão, os seus inúteis arcabuzes e, puxando pelas espadas, puseram-se por seu turno a espadeirar. Mas, apesar do seu número e fortaleza, não tardaram a ficar espalhados pelo chão; e se os mais esforçados se mantiveram de pé, estavam tão feridos que não podiam prosseguir o combate e viram-se obrigados a recuar.

O preboste viu o perigo e, como era um homem corajoso e conhecera na juventude, como dissera, alguns sucessos pelas armas, lançou-se contra aquele terrível Benvenuto Cellini, diante do qual tudo parecia ceder.

— A mim! — gritou o preboste — a mim, ladrão infame, e que tudo se resolva entre nós! Vamos a isto!

— Por vida minha, mestre Roberto! é só o que desejo. Se disserdes aos vossos que não nos interrompam, estou à vossa disposição.

— Tende-vos! — disse-lhes o preboste.

— Que nem um só se mexa! — gritou Cellini.

Os contendores permaneceram nos seus lugares, silenciosos e imóveis, como aqueles guerreiros de Homero, que interrompiam o próprio combate para não perderem um só instante da luta entre dois chefes famosos.

Então, brandindo cada um a sua espada nua, o preboste e Cellini precipitaram-se um contra o outro.

O preboste era destro no manejo, mas Cellini era de categoria superior. Havia dez ou doze anos que o preboste não tivera ocasião de puxar pela espada. Durante todo esse tempo, não se passara porém um só dia em que Benvenuto não tivesse usado a sua. Logo aos primeiros passes, o preboste apercebeu-se da superioridade do seu antagonista. Confiara demasiado nas próprias forças.

Por sua parte, Benvenuto, deparando com uma resistência com que não contava num magistrado, viu-se obrigado a usar de toda a energia, rapidez e astúcia de que era capaz. Era algo de maravilhoso observar como a sua espada, que parecia o tríplice dardo de uma serpente, ameaçava simultaneamente a cabeça e o coração, volteando de um lado para o outro sem deixar ao adversário senão o tempo necessário para aparar os golpes, sem lhe dar ocasião para vibrar um só. Assim, o preboste, medindo toda a superioridade do adversário, lançou-se a um ataque desesperado, sem deixar de se defender, mas acabou por ceder terreno. Desgraçadamente para si, tinha as costas voltadas para a parede, de modo que não tardou muito a achar-se encurralado de encontro à porta, que instintivamente havia procurado, embora sabendo bem que atirara a chave por cima do muro.

Uma vez ali, o preboste sentiu-se perdido; por isso, como javali acossado pelos cães, reuniu todas as forças e atacou com tal ímpeto, que foi a vez de Benvenuto ter que se defender, não o conseguindo todavia fazer com tanta rapidez que a espada do preboste lhe não tivesse aflorado o peito, apesar da excelente cota de malha que usava. Mas, qual leão ferido, que se enraivece na pronta vingança, Benvenuto, ao sentir a ponta de aço a perfurar-lhe a pele, recobrou tal energia e violência, que logo ali teria traspassado o preboste com terrível golpe se, no mesmo instante, a porta não tivesse cedido por detrás do Sr. dEstourville, fazendo-o cair desamparadamente, enquanto a espada ia ferir quem, abrindo tão inopinadamente a porta, acabava de o salvar.

Ao contrário do que seria de esperar, não foi o ferido mas Benvenuto quem soltou um grito tremendo. É que reconhecera o seu amado discípulo Ascânio naquele que acabava de ferir. Nem sequer viu já Hermann e Tiago Aubry, que se encontravam por trás de Ascânio; lançou-se, como doido, ao pescoço de Ascânio, procurando ansiosamente a ferida com os olhos, com as mãos, com a boca, gritando: «Morto! morto!... morto por mim! Ascânio, meu filho! fui eu quem te matou!...» E rugia, e chorava, como só os leões devem poder fazê-lo.

Entretanto, Hermann retirava o preboste são e salvo de entre as pernas de Ascânio e Cellini, sobraçando-o como a uma criança e indo depô-lo numa pequena cocheira onde mestre Raimbault arrecadava os seus apetrechos de jardinagem. Saindo depois e fechando a porta, desembainhou a espada e foi postar-se de sentinela contra quem quer que viesse disputar-lhe o prisioneiro.

Quanto a Tiago Aubry, esse, de um salto, galgou toda a escadaria até ao alto da muralha e, brandindo a sua adaga, triunfante, gritou:

— Vitória! Vitória! O Grand-Nesle já é nosso!

Como todos estes extraordinários sucessos ocorreram é o que o leitor poderá saber, lendo o capítulo seguinte.

 

         SOBRE A VANTAGEM DAS CIDADES FORTIFICADAS

O Palácio de Nesle, na parte confinante com o Pré-aux-Clercs, estava duplamente defendido pela muralha e pelos fossos da cidade; assim, por aquele lado, passava por inexpugnável. Ora Ascânio pensava, com razão, que, em geral, nunca se trata de defender aquilo que não pode ser tomado, e por isso resolveu tentar um ataque no ponto onde os sitiados tinham naturalmente descurado a resistência.

Foi com este objectivo que se afastou na companhia de seu amigo Tiago Aubry, mal imaginando que, no momento em que desaparecia por um lado, aparecia por outro a sua bem-amada Colomba, a fornecer a Benvenuto um excelente meio de constranger o preboste a sair do palácio, por mais que isso lhe desagradasse.

O projecto de Ascânio era de execução arriscada e podia ter sequências escabrosas. Consistia em transpor um fosso profundo escalar um muro de vinte e cinco pés de altura, acabando por cair no meio do bando inimigo. Foi só ao chegar à beira do fosso que Ascânio mediu toda a dificuldade da empresa que se propusera. Por instantes, duvidou da possibilidade de realizar o seu intento.

Quanto a Tiago Aubry, quedara tranquilamente dez passos atrás do seu amigo e olhava ora a muralha ora o fosso. Depois, tendo-os medido ambos a olho, disse:

— E esta!? Não farás a fineza de me dizer, meu caro, porque diabo me trouxeste até aqui? Para caçarmos rãs, não? Claro!... estás a olhar para a tua escada... mas saberás ao menos que ela não tem mais de doze pés, enquanto o muro tem vinte e cinco de alto e o fosso dez de largo?... Falta um pedacinho...

Ascânio ficou, por instantes, aturdido sob o peso daquela lógica; mas de repente, batendo na testa:

— Oh que bela ideia! — gritou — olhai só!

— Para onde?...

— Para ali — disse Ascânio.

— Não é uma ideia o que vejo — disse o estudante — , é um carvalho. Efectivamente, um enorme carvalho mergulhava as suas poderosas raízes junto ao fosso,

elevando-se ainda mais alto que os muros do Palácio de Nesle.

— Pois ainda não compreendestes?! — exclamou Ascânio.

— Sim... sim, começo a entrever... É isso mesmo; achei! O carvalho começa com o muro um arco de ponte cujo complemento pode muito bem ser essa escada. Mas olhai que há um abismo por baixo, camarada, e um abismo cheio de lodo. Que diabo! trago a fatiota melhor, e o marido de Simone começa a não me fiar.

— Ajuda-me a montar a escada — disse Ascânio — , é só o que desejo de ti.

— Pois claro! — disse o estudante — e eu fico cá em baixo... Os meus agradecimentos!

E, agarrando-se simultaneamente a um dos ramos baixos, em poucos segundos se acharam na árvore, a cujo topo chegaram não sem algum trabalho. Uma vez no cimo do carvalho, lançaram a escada como ponte levadiça e viram com alegria que, enquanto uma das extremidades estava solidamente fixada a um ramo potente, a outra atingira o cimo do muro e ultrapassara-o mesmo dois ou três pés para o interior da cerca.

— Mas... — diz Aubry — e quando atingirmos o muro?

— Ora! Quando atingirmos o muro, puxaremos a escada para nós e desceremos por ela.

— Naturalmente! Há só uma pequena dificuldade: é que o muro tem vinte e cinco pés de altura, e a escada não passa de doze...

— Tinha-o previsto — disse Ascânio, desenrolando a corda que atara à volta da cintura. Prendeu-a depois por uma extremidade ao tronco da árvore, lançando o outro extremo por cima do muro.

— Ah, grande Ascânio! já te estou a perceber... — exclamou Tiago Aubry — e sinto-me feliz e orgulhoso por poder partir o pescoço na tua companhia.

— Eh lá! que estás a fazer?!...

— Atravesso — disse Aubry, apressando-se a transpor o intervalo que o separava do muro.

— Não, não — continuou Ascânio — , o primeiro a passar hei-de ser eu.

— Tira-se à sorte! — disse Aubry, estendendo-lhe a mão com dois dedos para fora e três para dentro.

— Seja — disse Ascânio. E tocou num dos dois dedos estendidos de Aubry.

— Ganhaste — disse o estudante. — Atravessa então, mas com calma, com cuidado, ouves?

— Está descansado — respondeu Ascânio.

E começou a avançar pela ponte levadiça que Tiago Aubry fixava com todo o seu peso numa das extremidades. A escada era frágil, mas o ousado jovem não pesava muito. Por instantes, Aubry, que mal respirava, julgou ver Ascânio hesitar, mas este, em quatro passos rápidos chegou são e salvo ao muro. Uma vez aí, o perigo era se algum dos sitiados o visse; mas lançando um rápido olhar para os jardins do Palácio certificou-se de que as suas previsões haviam sido excelentes.

— Ninguém — gritou ao companheiro — , ninguém!

— Então — disse Aubry, para diante com a dança da corda!

E avançou, por seu turno, ao longo da escada estreita e oscilante que Ascânio procurava imobilizar, tal como Aubry fizera. Ora, como este não era menos jeitoso nem menos ágil que o seu companheiro, num instante chegou ao pé dele.

Puseram-se então às cavaleiras do muro e puxaram a escada para si, prendendo-a à extremidade da corda que, pelo outro extremo, haviam fixado poderosamente ao carvalho e deixaram-na deslizar ao longo da muralha. Ascânio, que conseguira o privilégio de ser o primeiro a experimentar as suas invenções, agarrou-se à corda com as duas mãos e deixou-se escorregar por ela até atingir a escada; um segundo depois estava em terra.

Tiago Aubry seguiu-o com igual êxito, e os dois amigos acharam-se no jardim.

Uma vez ali, o melhor era agir rapidamente. Todas estas manobras tinham demorado um certo tempo, e Ascânio receava que a sua ausência e a do estudante tivessem prejudicado o objectivo de Cellini. Desembainhando as espadas, os dois precipitaram-se para a porta que dava para o primeiro pátio, onde se devia achar a guarnição, caso não tivesse mudado de lugar. Chegando à porta, Ascânio espreitou pela fechadura e apercebeu-se que o pátio estava

vazio.

— Benvenuto triunfou — exclamou ele. — A guarnição saiu. O palácio é nosso.

E tentou abrir, mas a porta achava-se fechada à chave. Os dois começaram a empurrá-la com todas as forças.

— Por aqui, por aqui! — disse uma voz que fez vibrar todas as fibras do coração do jovem

— por aqui, senhor.

Ascânio voltou-se e viu Colomba a uma janela do rés-do-chão. Em dois saltos estava ao pé dela.

— Ah! Ah! — disse Tiago Aubry, seguindo-o — ao que parece, temos entendimentos com o inimigo, e nada me tínheis dito, hermético senhor!

— Oh! Salvai meu pai, Sr. Ascânio — gritou Colomba, sem se admirar por ver o jovem, e como se a sua presença ali, naquele momento, fosse a coisa mais natural deste mundo.

— Estão a bater-se lá fora, ouvis, e é por mim que se batem, é por minha culpa! Deus meu! Deus meu, não permitais que o matem!

— Tranquilizai-vos — disse Ascânio correndo para os aposentos que davam para o pequeno pátio. — Tranquilizai-vos, e tende confiança em mim.

— Tranquilizai-vos — disse também Tiago Aubry, lançando-se na mesma direcção — , tranquilizai-vos e tende confiança em nós.

Ao atingir o limiar da porta, Ascânio ouviu que o chamavam novamente mas, desta vez, por uma voz menos doce.

— Quem me chama? — disse Ascânio.

— Eu, meu xóvem amigo — repetiu a mesma voz com um acentuado sotaque germânico.

— Caspité! — exclamou Tiago Aubry — é o nosso Golias! Que diabo fazeis aí nesse galinheiro, meu gigante?

Tinha efectivamente reconhecido Hermann através do postigo da pequena cocheira.

— Ich acordar aqui; zi não zaber como fim cá ter. Levante o ferrolho para eu me ir pater. Xá, xá, xá...

— Pronto! — disse o estudante, preparando-se para prestar o serviço que Hermann lhe pedia.

Entretanto, Ascânio avançava para a porta principal, de onde chegava um terrível fragor de espadas. Quando nada mais que a madeira da porta o separava dos combatentes, pensou que, se se mostrasse subitamente, poderia tombar nas mãos dos seus inimigos, e olhou pelo pequeno postigo. Viu então, na sua frente, Cellini avançando furioso, ardente e excitadíssimo. Compreendeu imediatamente que Dom Roberto estava perdido. Apanhou a chave que estava por terra, abriu rapidamente a porta e, pensando apenas na promessa que fizera a Colomba, recebeu no ombro, como dissemos, o golpe que, se não fosse ele, teria varado completamente o preboste.

Vimos qual foi a sequência do caso. Benvenuto, desesperado, havia-se lançado nos braços de Ascânio; Hermann fechou o preboste na prisão de que ele próprio acabava de sair, e Tiago Aubry, empoleirado na muralha, batia as asas e cantava vitória.

A vitória era, na verdade, completa; os homens do preboste, vendo o seu senhor prisioneiro, nem sequer tentaram libertá-lo e baixaram armas.

Assim, os operários de Cellini puderam entrar todos no pátio do Grand-Nesle, que já era seu, e fecharam a porta aos archeiros e sargentos. Quanto a Benvenuto, parecia totalmente alheio a tudo o que se passara; segurando sempre Ascânio nos seus braços havia-lhe despido a cota de malha e rasgara-lhe o gibão, procurando estancar o sangue da ferida com o lenço.

— Ascânio, meu filho — repetia incessantemente — ferido, ferido!... E por mim! Que dirá a tua mãe, lá no Céu?... Perdão, Stefana, perdão! Sofres? Responde!... Estou a fazer-te doer com a mão? Diz! Ah, este sangue que não quer parar!... Um cirurgião, depressa!... Então ninguém vai buscar um cirurgião?

Tiago Aubry saiu a correr.

— Não é nada, meu querido mestre, não é nada — articulou Ascânio — apenas o braço foi tocado. Não vos desoleis assim, repito-vos que não é nada.

De facto, o cirurgião trazido cinco minutos depois por Tiago Aubry, declarou que a ferida, apesar de profunda, não era grave, e fez-lhe o primeiro penso.

— Oh, de que peso me aliviais o coração! — disse Benvenuto Cellini ao cirurgião — Meu querido filho, já não serei o teu assassino! Mas, que tens tu Ascânio? O teu pulso bate, o sangue sobe-te ao rosto... Ah, Sr. Cirurgião, é preciso levá-lo daqui, a febre vem!...

— Não, não, mestre — diz Ascânio — sinto-me, pelo contrário, muito melhor. Deixai-me aqui, suplico-vos que me deixeis aqui ficar.

— E meu pai? — disse de súbito, por detrás de Benvenuto uma voz que o fez estremecer. — Que fizestes de meu pai?

Benvenuto voltou-se e deparou com Colomba pálida e imóvel, procurando o preboste com o olhar, ao mesmo tempo que perguntava por ele.

— Oh, são e salvo, senhorinha! São e salvo, graças ao Céu, exclamou Ascânio.

— Graças a este pobre rapaz que recebeu o golpe que lhe era destinado — disse Benvenuto — pois bem podeis dizer que vos salvou a vida, Sr. Preboste. Mas, onde estais, Dom Roberto? — disse, por sua vez Cellini, procurando-o com o olhar e não podendo explicar o seu desaparecimento.

— Extá aqui, mextre — disse Hermann.

— Onde, onde?

— Aqui, na piquena prixão.

— Oh!... Sr. Benvenuto!... — exclamou Colomba precipitando-se para a cocheira e esboçando um gesto de súplica e de censura.

— Abri, Hermann — disse Cellini.

Hermann abriu e a figura do preboste, um tanto humilhado, desenhou-se no limiar da porta. Colomba lançou-se-lhe nos braços.

— Oh meu pai! Oh meu pai! — exclamou ela — não estais ferido? Não tendes nada? E, ao dizer isto, a jovem olhava Ascânio.

— Não — disse o preboste com a sua voz rude — , não, graças ao Céu! Não me sucedeu nada.

— E... e... — perguntou Colomba hesitante — é verdade, meu pai, que foi este jovem quem...?

— Não posso negar que não tenha chegado a tempo.

— A tempo — acrescentou Cellini — de receber a estocada que eu vos destinava Sr. Preboste. Sim, senhorinha Colomba, continuou ele voltando-se para a jovem, é a este bravo rapaz que deveis a vida do vosso pai e, se o Sr. Preboste o não proclamar bem alto, não será apenas mentiroso mas também ingrato.

— Não terá de pagá-lo demasiado caro, espero... — respondeu Colomba, ruborizando-se com o que ousara dizer.

— Tê-lo-ia pago com todo o meu sangue, senhorinha Colomba! — exclamou Ascânio.

— Vede só que abnegação conseguis inspirar, Senhor Preboste! — disse Cellini, não sem uma certa ironia. — Mas esta conversa poderá fazer mal a Ascânio; o penso está feito, creio que deveria repousar agora.

O que Benvenuto dissera ao preboste sobre o serviço que lhe prestara Ascânio era pura verdade; e, como a verdade tem, por si só, muita força, no seu íntimo o preboste não podia dissimular que devia a vida a Ascânio. Por isso sentiu-se obrigado a aproximar-se do ferido e a dizer:

— Jovem, ponho à vossa disposição um quarto do meu palácio.

— Do vosso palácio, Dom Roberto? — disse, rindo, Benvenuto que recuperava o seu bom humor à medida que deixava de recear pela vida de Ascânio. — Do vosso palácio?! Mas, quereis então que recomecemos a zaragata?

— Pois quê? — tornou-lhe o preboste — acaso pretendeis expulsar-me e à minha filha?

— Ah, mas de modo algum, senhor! Vós ocupais o Petit-Nesle não é verdade? Pois conservai-o e viveremos em boa vizinhança. Quanto a nós, achai por bem que Ascânio se instale imediatamente no Grand-Nesle para onde todos nos mudaremos esta noite mesmo. Mas... se preferis a guerra... ?

— Oh! Meu pai! — exclamou Colomba.

— Não! A paz! — disse o preboste.

— Não há paz sem condições, Sr. Preboste — declarou Benvenuto. — Concedei-me a honra de me seguirdes até ao Grand-Nesle, ou o favor de me receberdes no Petit, e nós redigiremos o contrato.

— Acompanhar-vos-ei, senhor — disse o preboste.

— Aceite — respondeu Cellini.

— Menina — disse o Sr. d'Estourville dirigindo-se à filha — faça o favor de voltar para os seus aposentos e de esperar aí o meu regresso.

Colomba, apesar do tom peremptório do pai, deu-lhe a fronte a beijar e, saudando a todos com um olhar que evidentemente incluía Ascânio, retirou-se.

Ascânio seguiu-a com os olhos até desaparecer. Em seguida, como nada mais o retinha no pátio, foi ele próprio a pedir que o recolhessem. Tomou-o então Hermann nos braços, como a uma criança, e transportou-o para o Grand-Nesle.

— À fé de quem sou, Sr. Preboste! — disse Benvenuto, pondo-se por sua vez a caminho e depois de ter também acompanhado até à porta, com os olhos maravilhados, o vulto esbelto de Colomba. — A fé de quem sou que muito bem fizestes em afastar a minha ex-prisioneira, e acreditai que vos agradeço a precaução. Afianço-vos que a permanência aqui da senhorinha Colomba poderia prejudicar os meus interesses, tornando-me demasiado fraco, pois, fazendo-me esquecer que sou um triunfador, apenas me recordava que sou também um artista, e portanto um enamorado de toda a perfeição de forma e de toda a beleza divina.

O Sr. d'Estourville agradeceu o cumprimento com uma careta que presumia de graciosa. Seguiu, no entanto, o mestre-ourives, sem mostrar abertamente o seu mau humor, mas rosnando ameaças em surdina. Cellini, para acabar de o enfurecer, pediu-lhe que o acompanhasse numa visita a todo o palácio. Mas o convite foi feito com tanta correcção que o preboste, embora furioso, não pôde recusar e seguiu o seu vizinho. Este não lhe poupou nem o mais recôndito canto do jardim, nem o mais insignificante quarto de dormir.

— Pois tudo isto é esplêndido — , disse Benvenuto quando acabaram de percorrer o palácio, aliás, com bem opostos sentimentos. — Agora, Sr. Preboste, já compreendo e desculpo a vossa relutância em perder este palácio. Mas nem preciso dizer-vos que sereis muito bem-víndo sempre que queirais, como hoje, honrar com a vossa presença a minha humilde mansão.

— Esqueceis, Senhor, que eu não venho aqui hoje senão para ouvir as vossas condições e apresentar as minhas. É isso que espero.

— Mas, Sr. Dom Roberto! Sou eu que estou às vossas ordens. No entanto, se me permitis que exprima primeiro os meus desejos, podereis, seguidamente, comunicar-me os vossos.

— Falai.

— Antes de mais nada, a clausulazinha essencial.

— Qual?

— Ei-la:

«Art. I — Dom Roberto d'Estourville, preboste de Paris, reconhece os direitos de Benvenuto Cellini à posse do Grand-Nesle, abandonando-lha livremente e renunciando para sempre a ela tanto por sua parte como pela dos seus parentes.»

— Aceite — respondeu o preboste. — Mas se o rei vos vier a tirar o que me tirou a mim, dando a outrem o que vos deu a vós, entende-se que eu não serei disso responsável.

— Olá! — disse Cellini — isto deve esconder qualquer mau pensamento reservado. Mas não importa, saberei conservar o que conquistei. Passemos adiante.

— Agora é a minha vez — disse o preboste.

— É justo — concordou Cellini.

«Art. II — Benvenuto Cellini compromete-se a não tentar penetrar no Petit-Nesle, que é moradia e propriedade de Roberto d'Estourville. Mais, não tentará entrar ali nem como vizinho ou sob aparências amigáveis.»

— Seja — disse Benvenuto — , embora a cláusula seja pouco amável. Mas devo declarar que, se me abrirem a porta, não serei tão indelicado que me recuse a entrar.

— Darei as minhas ordens para que tal não suceda — retorquiu o preboste.

— Adiante.

— Continuo:

«Art. III — O primeiro pátio situado entre o Grand e o Petit-Nesle será comum às duas propriedades.»

— É muito justo — disse Benvenuto — e vós me fareis a justiça de acreditar que, se a senhorinha Colomba quiser sair, não serei eu que lhe tolha o passo.

— Tranquilizai-vos; minha filha entrará e sairá por uma porta que eu me encarregarei de mandar abrir. Com esta clausinha, quero apenas assegurar um espaço para recolha eventual de carruagens e veículos de carga.

— É tudo? — perguntou Benvenuto.

— É tudo — respondeu Dom Roberto. — A propósito, suponho que me deixareis levar o meu mobiliário.

— É justo. Os vossos móveis pertencem-vos como o Grand-Nesle me pertence a mim... E agora, Sr. Preboste, apenas um pequeno aditamento ao nosso tratado, uma cláusula benévola.

— Dizei.

«Art. IV e último — Dom Roberto d'Estourville e Benvenuto Cellini põem de parte todo o rancor e estabelecem entre si uma paz leal e sincera.»

— Assim o desejo — disse o preboste — desde que isso me não obrigue a prestar-vos assistência e auxílio contra os que vos atacarem. Consinto em não vos prejudicar, mas não me comprometo a ser-vos agradável.

— Quanto a isso, Sr. Preboste, sabeis perfeitamente que saberei defender-me sozinho, não é verdade? Assim, se apenas tendes essa objecção a fazer — acrescentou Cellini, passando-lhe a pena — , assinai Sr. Preboste, assinai.

— Assino — disse o preboste com um suspiro.

O preboste assinou e cada um dos pactuantes ficou com cópia do tratado.

Em seguida, o Sr. d'Estourville voltou para o Petit-Nesle, pois tinha pressa de ralhar à pobre Colomba por causa da sua saída imprudente. Aquela baixou a cabeça e deixou-lhe dizer tudo, sem ouvir uma só palavra pois, enquanto o pai barafustava, a jovem tinha apenas um desejo a preocupá-la, e era o de pedir a seu pai notícias de Ascânio. Mas por mais que se esforçou, o nome do ferido não pôde chegar a sair dos seus lábios.

Enquanto estas coisas se passavam de um lado do muro, do outro, Catarina, que tinham ido chamar, fazia a sua entrada no Grand-Nesle, e na sua encantadora loucura lançava-se nos braços de Cellini, apertava a mão de Ascânio, felicitava Hermann, troçava de Pagolo, ria, chorava, cantava, interrogava, fazendo tudo isto ao mesmo tempo. É que também ela havia passado por angústias terríveis, o fragor das arcabuzadas chegara muitas vezes até ela, fazendo-a interromper as suas preces. Mas, enfim, tudo estava acabado e, tirando quatro mortos e três feridos, todos haviam saído sãos e salvos da peleja. Assim, a alegria de Scozzone coroava os vencedores e a vitória.

Quando acalmou a gritaria provocada pela chegada de Catarina, Ascânio lembrou-se do motivo que levara o estudante a aparecer por ali tão a tempo de lhes dar uma ajuda e, voltando-se para Benvenuto, disse:

— Mestre, eis o meu camarada Tiago Aubry, com quem hoje devia jogar uma partida de péla. Com franqueza, não me sinto em estado de lhe fazer frente. Mas ajudou-nos com tanta galhardia que me atrevo a pedir-vos que me substituais.

— De todo o coração — disse Benvenuto — assim vós saibais aguentar o meu jogo, Sr. Tiago Aubry.

— Far-se-á o possível, far-se-á o possível, mestre.

— No entanto, como depois iremos cear, sabei desde já que o vencedor será obrigado a beber durante a ceia duas garrafas mais que o vencido.

— O que quer dizer que terão de me levar a casa mais bêbado que um cacho. Ah, mestre Benvenuto, isto agrada-me! Viva a alegria. Ah, e Simone à minha espera!... Ora, também me fartei de esperar por ela no domingo e... nada! Hoje será a vez dela.

E, pegando nas raquetas e nas bolas, abalaram para o jardim.

 

         MOCHOS, PEGAS E ROUXINÓIS

Como naquele dia era domingo, Benvenuto não fez outra coisa além de jogar a péla, apanhar a fresca e visitar a sua nova propriedade. Mas, na manhã seguinte, começou logo a mudança que, com a ajuda dos seus nove companheiros, não demorou mais de dois dias. No terceiro, Benvenuto voltou a entregar-se ao trabalho tão tranquilamente como se nada se tivesse passado.

Quando o preboste viu que estava irreparavelmente batido, quando soube que o atelier de Benvenuto estava definitivamente instalado, com artífices e utensílios, no Grand-Nesle, toda a raiva lhe voltou e pôs-se a ruminar vingança sobre vingança. Achava-se ele no acme do rancor quando o visconde de Marmagne o foi surpreender na própria manhã do terceiro dia, isto é, quarta-feira. Marmagne não era pessoa que renunciasse a um triunfozinho de vaidade ainda que à custa das dores e dos reveses dos amigos. Aliás, todos os tolos e todos os covardes procedem deste modo.

— Eu não vos tinha dito, meu caro preboste?... — disse ele ao abordar d'Estourville.

— Ah, sois vós, visconde. Bom dia — respondeu o preboste.

— Então! Tinha ou não tinha razão?

— Tínheis, tínheis, infelizmente. Como estais?

— Pelo menos, fiz o que devia neste vosso maldito assunto. Eu bem vos preveni...

— O rei já regressou ao Louvre?

— Tretas! Dizíeis vós. «Ora! Um operário, um zé-ninguém, havia de ter graça!» Pois, agora, ride-vos, meu pobre amigo!

— Estou a perguntar-vos se Sua Majestade já veio de Fontainebleau.

— Já, e com bastante pena de não ter chegado no domingo para assistir de uma das torres do Louvre à vitória do seu ourives sobre o seu preboste.

— Que se diz pela corte?

— Ora! Diz-se que fostes completamente vencido.

— Hum! Hum! — exclamou o preboste, a quem este diálogo obstinado começava a impacientar sobremaneira.

— Com que então, ele bateu-vos bem ignominiosamente, não? — prosseguiu Marmagne.

— Mas...

— Matou-vos dois homens, não é verdade?

— Creio que sim.

— Se quiserdes preencher os seus lugares, posso indicar-vos dois bravos italianos, dois espadachins consumados; far-vos-ão pagar um pouco caro, mas são dois homens de confiança.

Se tivessem estado convosco no domingo, as coisas ter-se-iam passado de outra maneira.

— Veremos; não digo que não. Se não for para mim, será para o meu genro, o conde d'Orbec.

— No entanto, por mais que o digam, jamais poderei acreditar que esse Benvenuto vos tenha sovado.

— Quem disse tal?

— Toda a gente. Uns indignam-se, como eu, outros, como o rei, riem.

— Basta! Terminareis?

— Eu bem vos disse que não devíeis querer nada com aquele vilão. E porquê!... por um vil interesse.

— E pela honra que passarei a combater.

— Se se tratasse de uma amante, vá; não vos teria ficado tão mal puxar pela espada contra semelhante ralé... Agora por causa de uma habitação!...

— O palácio de Nesle é uma mansão de príncipe.

— De acordo, mas por causa de uma mansão de príncipe expor-se a um castigo de carroceiro!...

— Ah! Uma ideia, Marmagne — disse o preboste exasperado. — Sois-me tão dedicado que quero, por meu turno, prestar-vos também um serviço de amigo, e muito folgo por justamente se me deparar agora a ocasião. Como nobre e como secretário do rei, não devíeis morar na Rua Huchette, caro visconde. Ora, ainda não há muito que eu tinha pedido à Duquesa d'Étampes — que, como sabeis, nada me recusa — uma moradia para um amigo, à escolha deste, entre os palácios do rei. A coisa estava bem encaminhada, mas o meu amigo foi imperiosamente chamado a Espanha, de modo que tenho em meu poder a real concessão. E como não a posso usar em proveito próprio gostaria de usá-la em vosso favor, retribuindo assim as gentilezas e franca amizade que vos devo.

— Caro dEstourville, que imenso favor o vosso! É bem verdade que a minha moradia é fraca, e que já disso me queixei mais de vinte vezes ao rei.

— Ponho só uma condição.

— Qual?

— É que, uma vez que podeis escolher entre as mansões reais, vós escolhais...

— Acabai. Escuto-vos.

— O palácio de Nesle.

— Ah! Ah! Era uma armadilha.

— De modo nenhum, e a prova é que aqui vedes a concessão devidamente assinada por Sua Majestade, com os espaços em branco para os nomes do pretendente e a designação do palácio. Agora, eu escrevo Grand-Nesle e vós não tendes mais que escrever os nomes que quiserdes.

— Sim, mas Benvenuto, esse danado?

— Está completamente desprevenido, depois do tratado que assinámos entre os dois. Quem quiser entrar no palácio achará as portas abertas e, se o fizer ao domingo, encontrará todas as salas desabitadas. De resto, não se trata de pôr fora a Benvenuto mas de compartilhar com ele o Grand-Nesle, que é suficientemente vasto para albergar três ou quatro famílias. Benvenuto será razoável. Então? que decidis?

— Escrevo os meus nomes e títulos nos seus devidos lugares. Vede!

— No entanto, acautelai-vos, porque esse Benvenuto é talvez mais perigoso do que imaginais.

— Não importa. Contratarei os dois espadachins e iremos surpreendê-lo no domingo.

— Quê?! Desafiar um rústico por um vil interesse?!

— Um vencedor tem sempre razão e, além disso, vingarei um amigo.

— Então, felicidades! Mas preveni-vos, Marmagne.

— Então agradeço-vos duplamente: pelo presente e pelo conselho.

E Marmagne, rejubilando, guardou a doação régia na algibeira e apressou-se a ir contratar os dois espadachins.

«Não está mal — disse esfregando as mãos o Sr. d'Estourville, enquanto com os olhos seguia Marmagne. — Vai, visconde, e, de duas uma, ou tu me vingarás da derrota com Benvenuto, ou Benvenuto me vingará dos teus sarcasmos; em qualquer dos casos só terei que felicitar-me. Torno inimigos os meus inimigos; que se batam, que se matem; eu aplaudirei indiscriminadamente todos os golpes.»

Enquanto o ódio do preboste ameaçava os habitantes do Grand-Nesle, atravessemos o Sena e vejamos em que disposição de espírito estes se encontram. Benvenuto, confiante no seu direito e na sua força, voltara a entregar-se tranquilamente ao trabalho, sem se preocupar com os rancores do preboste. Eis aqui como passava os seus dias: levantava-se com o dia, dirigindo-se logo a um pequeno pavilhão solitário que descobrira no fundo do jardim, um pouco acima da fundição, e de cujas janelas podia ver o gracioso parque do Petit-Nesle. Ali, modelava uma pequena estátua de Hebeia. Depois do almoço, isto é, cerca de uma hora depois do meio-dia, passava pelo atelier, onde trabalhava um pouco no seu Júpiter, para o fim da tarde, por desfastio, jogava uma partida de péla ou dava um passeio. Eis agora como Catarina empregava o tempo: girava, cosia, suspirava, ria, cantava, achando-se muito mais a gosto no Grand-Nesle que no palácio do cardeal de Ferrara. Quanto a Ascânio, cujo ferimento ainda não lhe permitia trabalhar, a actividade febril do seu espírito não o deixava aborrecer-se; sonhava.

E se agora nos pudéssemos aproveitar do privilégio de saltar por sobre os muros e olhar através das vidraças, eis o que poderíamos ver no interior do Petit-Nesle. Primeiro, nos seus aposentos, Colomba sonhava, tal como Ascânio; permita-se-nos, de momento, não passar daqui. Tudo o que poderemos dizer é que os sonhos de Ascânio são cor-de-rosa, ao passo que os da pobre Colomba são sombrios como a noite. Mas eis Dona Perrine, que sai para as suas compras da semana. Se não se importam, sigamo-la por um instante.

Segundo nos parece, há já um ror de tempo que perdemos de vista a boa dama. Preciso nos é dizer que não era precisamente a bravura a sua atitude dominante; deste modo, durante as perigosas aventuras que narrámos, a honesta governanta havia-se voluntariamente mantido na sombra. Mas agora, que a paz recomeçava a florir, já refloresciam também no seu rosto as rosas e, tal como Benvenuto havia voltado à sua obra de artista, voltara ela ao seu habitual bom humor, à sua tagarelice, às suas intermináveis curiosidades de comadre; numa palavra: ao exercício de todas as más qualidades domésticas.

Ora Dona Perrine, para ir às suas compras, tinha de atravessar o pátio comum às duas propriedades, pois que a nova porta do Petit-Nesle ainda estava por fazer. Quis, porém, o maior e mais natural dos acasos que Ruperta, a velha criada de Benvenuto, saía precisamente naquele momento, a fim de ir tratar do jantar de seu amo. Estas duas estimáveis criaturas eram demasiado dignas uma da outra para que comungassem nas inimizades de seus patrões. Por isso, foi juntas e na melhor concórdia que fizeram as suas compras e, como o conversar encurta o caminho, conversaram.

Ruperta começou por se informar junto de Dona Perrine do preço dos géneros e do nome dos vendedores do bairro; depois, abordaram temas mais íntimos e mais interessantes. — Vosso amo é um homem terrível, não é? — perguntou Dona Perrine.

— Ele?! Não o ofendais, que é homem de um natural tão doce que não há outro. Mas, caramba! quando não se lhe faz o que deseja... não é fácil tratar com ele. Gosta muito, mas muito, que lhe façam as vontades. E assim: se se lhe mete alguma coisa na cabeça, nem os seiscentos mil diabos do Inferno seriam capazes de lha tirar de lá. Mas basta que a gente finja obedecer-lhe, e ei-lo mais fácil de levar que uma criança. É mesmo extremamente gentil, quando nos fala. E ouvi-lo dizer: «Dona Ruperta (ele chama-me Ruperta, por causa da sua pronúncia estrangeira, mas o meu nome é Ruperte, para vos servir) Dona Ruperta, assastes esse carneiro maravilhosamente; Dona Ruperta, as vossas favas hão-de imortalizar-vos; Dona Ruperta, para mim sois a rainha das governantas.» E diz-me tudo isto com tanta amenidade que eu fico desvanecida.

— Oh, quanto folgo! Mas, segundo se diz, mata as pessoas...

— Ah, lá isso... quando o contrariam, mata mesmo. É um costume lá da sua terra; mas só quando o atacam, e apenas para se defender. Ah, mas é muito alegre e muito afável!

— Eu cá nunca o vi. É verdade que tem os cabelos ruivos?

— Não senhora, nada disso. Tem-nos tão pretos como vós ou como eu... isto é, como eu os tinha... Ah! pois nunca o vistes?! Vinde cá a casa um dia destes pedir-me qualquer coisa emprestada, que vo-lo mostrarei. É um belo homem: e dava um archeiro estupendo.

— A propósito de belo homem, como vai aquele gentil cavaleiro... o nosso ferido... aquele jovem aprendiz tão simpático que ia morrendo para salvar a vida do Senhor Preboste?

— Ascânio? Pois conhecei-lo?

— Se o conheço!... Prometeu a minha ama que nos havia de mostrar as lindas jóias que faz. Lembrai-lho, quereis? Ah, mas com tudo isto acabo por não saber como vai o ferido. E Colomba que gostaria tanto de saber que o salvador de seu pai já estava livre de perigo.

— Oh, podeis-lho dizer. Está mesmo a passar muito bem, pois que já esta manhã se levantou. O cirurgião apenas lhe proibiu que saia do quarto. E, contudo, creio que lhe havia de fazer bem respirar um pouco de ar puro. Mas, com este sol ardente, seria na verdade um perigo. Este jardim do Grand-Nesle é um autêntico deserto. Nem um recanto com sombra. Toda a sua verdura não passa de urtigas e silvas, além de quatro ou cinco árvores sem folhas. É enorme, mas sem qualquer atractivo para passear. O nosso amo, esse ainda tem o jogo da péla para se distrair, mas o meu pobre Ascânio nem sequer pode ainda responder a uma bolada, e devia-se aborrecer de morte. Tem tanta vida, esse belo rapaz! É o meu preferido, por causa da sua delicadeza para com as pessoas de idade. Não é como aquele urso do Pagolo ou a estouvada da Catarina.

— E dizeis então que esse pobre jovem...?

— Deve morrer de pasmo, sentado dias inteiros entre as quatro paredes do seu quarto.

— Valha-me Deus! — continuou a caridosa Dona Perrine — dizei-lhe que venha até ao Petit-Nesle, que tem umas sombras tão agradáveis. Abrir-lhe-ei a porta da melhor vontade, mesmo contra as ordens expressas do Senhor Preboste. Mas... ora!... Para fazer bem ao seu salvador, até é virtude desobedecer-lhe. E falais vós de aborrecimento!... Do mesmo nos queixamos nós, ali sempre fechadas. O gentil aprendiz distrair-nos-á até; contar-nos-á belas histórias da sua Itália, mostrar-nos-á os colares e braceletes que fez e conversará com Colomba. Os jovens gostam sempre de se ver e de tagarelar; não sabem estar sós. Pronto, está combinado; dizei ao vosso benjamim que venha quando quiser passear no nosso jardim. Ah, que venha só, ou convosco, Dona Ruperte; dar-lhe-eis o braço. Batei três pancadas suaves e a quarta com força. Eu virei logo abrir-vos a porta.

— Agradeço-vos por Ascânio e por mim. Não deixarei de lhe dar parte do vosso bondoso oferecimento, e ele não deixará de o aproveitar, estou certa.

— Ah, quanto folgo, Dona Ruperta!

— Adeus, Dona Perrine! Não imagina que satisfeita vou por ter feito conhecimento com pessoa tão amável!

— O mesmo lhe digo eu, Dona Ruperta.

As duas comadres fizeram uma profunda reverência uma à outra e separaram-se encantadas uma com a outra.

Os jardins da Mansão de Nesle eram de facto, e como ela tinha dito, áridos e queimados como uma charneca, por um lado, e frescos e cheios de sombra, pelo outro. A avareza do preboste tinha deixado inculto o jardim do Grand-Nesle, o que lhe evitava consideráveis gastos de manutenção, e, além disso, não estava suficientemente seguro dos seus direitos de proprietário para renovar, a favor do próximo possuidor, as árvores que se apressara a mandar cortar mal entrou na posse do palácio. Quanto ao arvoredo e belas sombras do Petit-Nesle, deixara-os ficar porque sua filha o habitaria e, em boa verdade, não lhe restava outra diversão além dessa. Para conservar e até aformosear o jardim de Colomba, Raimbault e os seus dois ajudantes chegavam perfeitamente.

Estava lindamente dividido e plantado. Ao fundo ficava a horta, que era o reino de Dona Perrine. Ao longo dos muros do Grand-Nesle estendiam-se os canteiros onde Colomba cultivava flores, e que Dona Perrine designava por «passeio da manhã», porque recebia os primeiros raios do Sol e porque, muito cedo, Colomba costumava ir ali regar as suas margaridas e as suas rosas. Façamos agora um parêntesis para dizer que, do pavilhão do Grand-Nesle que ficava por cima da fundição, se podia, sem se ser visto, seguir perfeitamente todos os movimentos da linda jardineira. De acordo com a nomenclatura geográfica de Dona Perrine, havia ainda o «passeio da tarde», terminado por um sombrio bosquezinho, onde Colomba gostava de ler ou bordar durante o grande calor do dia. Na outra extremidade do jardim ficava o «passeio da tardinha», bordado por um tríplice renque de tílias de suave aroma e escolhido por Colomba para os seus passeios após o jantar.

Foi esta última alameda que Dona Perrine julgou mais indicada para favorecer o restabelecimento e apressar a convalescença de Ascânio. Contudo, não disse uma só palavra a Colomba acerca das suas caritativas intenções. A jovem era muito obediente às ordens paternas, e por isso havia certamente de recusar o seu apoio à iniciativa da governanta. E que pensaria então Dona Ruperta da autoridade e da influência da sua vizinha? Não; já que fora tão longe no seu propósito, mais valia levá-lo por diante, até ao fim. E a verdade é que, se pensarmos que a boa dama não tinha mais ninguém além de Colomba a quem dirigir a palavra em todo o santo dia, a sua imprudência tinha uma certa desculpa. Se a própria Colomba, absorvida nas suas reflexões, às vezes nem sequer lhe respondia!...

É fácil de imaginar a felicidade de Ascânio ao saber que o seu paraíso lhe ia ser aberto, e os agradecimentos que deu a Dona Ruperta. Quis imediatamente aproveitar da ventura que se lhe concedia, e não foi sem dificuldade que Dona Ruperta conseguiu persuadi-lo a que esperasse, pelo menos até ao meio da tarde. Tudo parecia indicar-lhe que Colomba tinha autorizado o oferecimento de Dona Perrine, e esta ideia enlouquecia-o de alegria. Por isso, foi com uma impaciência não isenta de receios que contou as longas horas seguintes. Por fim, bateram as cinco. Os artífices guardaram as ferramentas e partiam; Benvenuto desde o meio-dia que não estava no atelier; supunha-se que tivesse ido ao Louvre.

Então, Ruperta, dirigindo-se solenemente a Ascânio, que a olhava de maneira assaz original, disse:

— E agora, que a hora soou, segui-me, jovem Senhor.

E, atravessando o pátio com Ascânio, foi bater as quatro pancadas à porta do Petit-Nesle.

— Não digais nada disto ao mestre, minha boa Ruperta — disse Ascânio que, sabendo bem como Cellini era trocista e pouco crédulo a respeito do amor, não queria ver a sua casta paixão baixar profanada com as ironias do mestre.

Ruperta, a quem tal discrição não quadrava, ia perguntar-lhe qual o motivo por que teria de se calar, mas a porta abriu-se e Dona Perrine surgiu.

— Ah, belo jovem! entrai — disse ela. — Como vos sentis? Ai, que bem lhe fica a palidez... vejam só! Vinde também, Dona Ruperta. Tomai pela alameda da esquerda, jovem. Colomba vai descer ao jardim, é a hora do seu passeio; vede lá se sabeis compor as coisas para ela logo me não ralhar muito por vos ter deixado entrar.

— Quê? — exclamou Ascânio — então a Senhorinha Colomba não sabe que...?!

— Ora pois! Então ela havia de consentir numa desobediência ao pai? Não, que eu eduquei-a nos bons princípios! Eu desobedeci é certo, mas ainda mal! Não se pode viver eternamente como em convento! Raimbault nada verá, e se vir... sei bem como fazê-lo calar. Mas, ainda que o Senhor Preboste viesse a saber, não seria a primeira vez que eu lhe havia de dizer duas coisas!

E Dona Perrine encetou uma longa parlenda sobre o amo, mas apenas Ruperta lhe escutava as confidências. Ascânio, de pé, não ouvia mais que o bater do próprio coração. Todavia, não deixou de ouvir estas palavras, que Dona Perrine lhe atirou ao afastar-se:

— É esta a alameda onde Colomba vem passear todas as tardes, e não deve tardar a vir. Aqui o sol não vos pode fazer mal, meu gentil enfermo.

Ascânio esboçou um gesto de agradecimento e avançou alguns passos, recaindo num doce cismar, feito de sonhos, de ansiedade e impaciência.

Mas ainda percebeu estas palavras que Dona Perrine, ao passar, dizia a Dona Ruperta.

— O banco predilecto de Colomba.

E, deixando as duas comadres prosseguir no seu passeio e na sua conversa, sentou-se vagarosa e silenciosamente naquele banco sagrado.

Que queria ele? Onde desejaria chegar? Ele próprio não sabia. Buscava Colomba porque ela era jovem e bela, sendo ele também belo e jovem. Ambiciosos pensamentos não os acalentava. Aproximar-se dela era a única ideia que distinguia no seu espírito; o mais, era com Deus. Ou melhor: ele era incapaz de prever ou de calcular. Em amor, o amanhã não existe.

Colomba, por sua parte, mais de uma vez havia, sem querer, pensado no jovem estrangeiro que aparecera na sua solidão como Gabriel a Maria. Voltar a vê-lo foi, desde logo, o secreto desejo daquela criança até então sem desejos. Mas, abandonada por um pai imprudente à tutela do seu próprio bom senso, Colomba era demasiado generosa para não exercer sobre si mesma aquela severidade de que as almas nobres se não julgam dispensadas enquanto se lhes não tira o seu livre arbítrio. Afastava pois corajosamente de Ascânio o seu pensamento, mas este, obstinado, transpunha a tripla muralha que elevara em redor do coração, ainda mais facilmente do que o próprio Ascânio escalara as do Grand-Nesle. Assim, os últimos três ou quatro dias passara-os Colomba em estranhas alternativas; ora sentia o tremor de nunca mais voltar a ver Ascânio, ora uma espécie de terror a pensar que podia voltar a encontrar-se com ele. A sua única consolação era sonhar enquanto trabalhava ou durante os seus passeios. Durante o dia, encerrava-se nos seus aposentos, com verdadeiro desespero de Dona Perrine, que assim se via reduzida a um interminável monólogo nos profundos abismos do seu pensamento. Quando, porém, o grande calor da tarde havia passado, Colomba descia até à fresca e umbrosa alameda baptizada por Dona Perrine com o poético nome de «passeio da tardinha» e aí, sentada no banco onde se sentara Ascânio, deixava cair a noite e acenderem-se as estrelas, escutando e respondendo aos próprios pensamentos, até que Dona Perrine ia adverti-la de que era tempo de se recolher.

Foi assim que, à hora costumada, o jovem viu de repente aparecer ao fundo da alameda a figura gentilíssima e bela de Colomba com um livro na mão. Lia a Vida dos Santos, perigoso romance de fé e de amor, que, preparando para os cruéis sofrimentos da vida, não prepara, no entanto, para as frias realidades do mundo. A princípio Colomba não viu Ascânio e, avistando uma mulher desconhecida junto de Dona Perrine, teve um reflexo de surpresa. Nesse momento, a governanta, qual general em momento decisivo, lançou-se ousadamente no âmago da questão.

— Querida Colomba — disse ela —, sei-vos tão bondosa que nem julguei necessário pedir-vos autorização para este pobre convalescente, ferido para salvar vosso pai, aqui vir tomar este bom ar, que tanto pode apressar o seu restabelecimento. Sabeis que não há qualquer sombra no jardim do Grand-Nesle, não é assim? Pois o cirurgião não se responsabilizava pela vida deste jovem se ele não desse um passeio de uma hora todos os dias.

Enquanto a governanta proferia esta piedosa mas colossal mentira, Colomba tinha olhado Ascânio de longe, e um intenso rubor colorira subitamente o seu rosto. Quanto ao aprendiz, vendo Colomba avançar, mal tinha tido forças para se erguer.

— Não era da minha autorização que havíeis mister, Dona Perrine — disse por fim a jovem —, era da de meu pai.

Dizendo isto com tristeza, mas também com firmeza, Colomba havia chegado junto do gracioso banco de pedra onde Ascânio estivera sentado. Este, ouvindo-a, juntou as mãos e disse:

— Perdão, Senhora minha; eu imaginava... eu supunha que a vossa aquiescência tinha ratificado o penhorante convite de Dona Perrine. Mas, uma vez que tal não aconteceu — prosseguiu ele, num misto de doçura e altivez —, suplico-vos que me perdoeis a ousadia involuntária e retirar-me-ei.

— Oh, mas não sou eu que devo perdoar-vos — retorquiu Colomba viva e comovidamente. — Não sou eu a dona da casa. Ficai, ao menos hoje, peço-vos, ainda que a proibição de meu pai deva entender-se até para quem o salvou. Ficai, Senhor, quanto mais não seja para receberdes todos os meus agradecimentos.

— Senhora!... — murmurou Ascânio — sou eu que do fundo do coração vos agradeço. Mas... ficando, não irei perturbar o vosso passeio? E de certo que não devia ter escolhido este banco...

— De modo algum — disse Colomba, sem reparar, tal era a sua perturbação, que se sentava também na outra extremidade do banco.

Neste momento, Dona Perrine, que se mantinha de pé e não se movera depois da afectuosa censura de Colomba, sentia-se pouco à vontade e pesava-lhe o silêncio da jovem, de modo que, tomando o braço de Dona Ruperta, afastou-se vagarosamente.

Os dois jovens ficaram sós.

Colomba, que tinha os olhos postos no livro, a princípio não notou a ausência da governanta. Não porque estivesse absorvida na leitura, mas porque havia como que uma nuvem diante dos seus olhos. O seu espírito estava sob a influência de uma grande perturbação. O mais que ela podia fazer, por uma espécie de instinto, era dissimular a sua agitação e comprimir os movimentos desordenados do seu coração. Ascânio escondia também as emoções, pois, tendo experimentado um vivo sofrimento ao ver que Colomba não queria a sua presença, passara depois a uma alegria delirante ao notar a perturbação da sua amada. Mas, no estado de fraqueza em que ainda se encontrava, tão súbitas e contraditórias emoções pareciam querer aniquilá-lo. Estava quase desmaiado, e não obstante os seus pensamentos sucediam-se com um vigor e uma rapidez extraordinárias. «Ela despreza-me! Ela ama-me!» dizia alternadamente para consigo. Olhava Colomba muda e imóvel, e começaram a correr-lhe algumas lágrimas pela face, sem que ele as sentisse. Entretanto, uma ave cantava nas ramadas mesmo por cima das suas cabeças. A brisa fazia estremecer suavemente as folhas; e, da Igreja dos Agostinhos, na placidez da tarde, chegava o toque das trindades. Nunca um entardecer de Julho parecera tão calmo e tão delicioso. Era um daqueles momentos solenes em que a alma ascende a uma nova esfera, e que em uns minutos parecem conter décadas, momentos que depois toda a vida recordamos. A estes dois belos jovens, nascidos um para o outro e que já antecipadamente se pertenciam, bastava estenderem as mãos para que se unissem e, todavia, um abismo parecia existir entre eles.

Passados alguns instantes, Colomba ergueu a face.

— Chorais?!... — exclamou Colomba num ímpeto irresistível.

— Não, não choro — respondeu Ascânio, deixando-se cair sobre o banco. Mas levando as mãos ao rosto, retirou-as molhadas de lágrimas

— É certo — disse ele —, estou a chorar.

— Mas porquê? Que tendes? Vou chamar alguém. Sofreis?

— Sofro com um pensamento.

— Qual?

— Creio que mais me valia ter morrido naquele dia.

— Morrer!? Que idade tendes para assim falardes de morrer?

— Dezanove anos; mas a idade do infortúnio devia ser a idade da morte.

— E a dor de vossos pais?... — continuou Colomba, inconscientemente ansiosa de penetrar no passado daquela vida cujo porvir ela sentia confusamente haver de pertencer-lhe.

— Não tenho mãe nem pai, e, se não for o meu mestre Benvenuto, ninguém poderá chorar-me.

— Pobre órfão!

— Sim, podei-lo dizer. Meu pai nunca me teve amor e perdi minha mãe aos dez anos, quando começava a compreender e a retribuir a sua grande afeição. Meu pai... Mas... de que ia eu falar-vos!... Que poderia isto interessar-vos?

— Oh, continuai, Ascânio, peço-vos!

— Meu Deus! Ainda vos lembrais do meu nome...

— Prossegui, prossegui — murmurou Colomba, escondendo por sua vez com as mãos o rubor do seu rosto.

— Meu pai era ourives, e a minha boa mãe era também filha de um ourives de Florença, chamado Rafael dei Moro, de nobre estirpe italiana. Isto é assim porque nas nossas repúblicas de Itália o trabalho não é desonra, e podem ver-se muitos nomes ilustres gravados em muitas oficinas de arte. Por isso é que o meu mestre Cellini, por exemplo, é tão nobre como o rei de França, se o não for ainda mais. Rafael dei Moro, que era pobre, casou a sua filha Stefana, contra vontade desta, com um colega quase da mesma idade, mas rico. Mas, ai! Minha mãe e Benvenuto amavam-se, mas nenhum tinha fortuna. Benvenuto corria mundo para ganhar fama e dinheiro. Estava longe, e não pôde opor-se àquele casamento. Gismondo Gaddi (assim se chamava meu pai) nunca soube que a esposa amava outro homem, e começou a bater-lhe porque ela o não amava. Meu pai era um homem violento e cioso. Que ele me perdoe, se eu o acuso, mas a justiça dos filhos é de uma memória implacável. Quantas vezes minha mãe procurou no meu berço um refúgio contra as suas brutalidades, mas nem ali ele a respeitava. Chegava a bater-lhe — Deus lhe perdoe! — enquanto ela me tinha ao colo, e então, a cada pancada, para a não sentir tanto, dava-me um beijo. Ah, como me ficaram gravadas no coração e na alma as pancadas que minha mãe recebia e os beijos que me dava.

«Deus, que é justo, feriu meu pai no que mais amava no mundo, a sua riqueza. Uma a uma, várias bancarrotas reduziram-no totalmente à miséria. Morreu de raiva porque já não tinha dinheiro; e poucos dias depois minha mãe morria, porque cuidou que já não era amada.

«Fiquei só no mundo. Os credores de meu pai apressaram-se a ir apossar-se de tudo o que deixava e, revistando tudo de cima a baixo, não viram uma criança que chorava. Uma velha criada, que me tinha afeição, alimentou-me durante dois dias por caridade, mas a anciã vivia também de esmolas, que nem para si chegavam.

«Estava ela aflita sem saber que faria de mim, quando um homem coberto de pó entrou no seu quarto, tomou-me nos braços, beijou-me chorando e, entregando algum dinheiro à boa velha, levou-me consigo. Era Benvenuto Cellini, que tinha ido de Roma a Florença propositadamente para me procurar. Acarinhou-me, instruiu-me na sua arte, conservando-me sempre junto de si; apenas ele, volto a dizer-vos, choraria com a minha morte.»

Colomba, de pálpebras descidas e o coração confrangido, escutara a história deste órfão que, pelo isolamento, era a sua própria história, e a vida daquela pobre mãe, igual, talvez, à que lhe estava destinada. Também ela devia desposar, à força, um homem que a odiaria por ela o não amar.

— Sois injusto para com Deus — disse ela a Ascânio. — Pelo menos existe uma pessoa que vos tem afeição, o vosso bom mestre, e conhecestes vossa mãe. Eu não posso sequer lembrar-me dos afagos da minha, pois sucumbiu ao dar-me a vida. Fui educada por uma irmã de meu pai, que tinha mau génio e sempre me falava com aspereza. Mesmo assim, quando a perdi, chorei muito, pois à falta de outra afeição, a minha ternura buscava a sua protecção. Há dois anos que vivo neste palácio com Dona Perrine, e onde meu pai só raramente me visita; pois estes dois anos foram o tempo mais feliz da minha vida.

— Muito deveis ter sofrido, é certo — disse Ascânio —, mas se o passado foi doloroso, porque duvidais do futuro? Então o vosso, que será magnífico!... Sois nobre, sois rica, sois bela, e as tristezas da vossa juventude ainda hão-de tornar mais apreciável o esplendor do resto da vossa vida.

Colomba abaixou tristemente a cabeça.

— Oh! Minha mãe! minha mãe! — murmurou ela.

Quando, elevando-nos pelo pensamento acima do tempo, deixamos de preocupar-nos com as mesquinhas realidades da existência, então, à luz de relâmpagos que iluminam e resumem uma vida inteira, a alma abrange o passado e o futuro numa vertigem e num delírio que são temíveis e perigosos; e quando só temos a recordar mil amarguras e não profetizamos senão novos e talvez mais cruéis sofrimentos, o nosso coração emociona-se, sobressalta-se, e parece querer desfalecer para sempre. É preciso muita força de alma, muita coragem, para não sucumbir quando um peso tal nos oprime o peito. Estes dois jovens, que tanto haviam já sofrido em permanente solidão, não precisariam talvez mais do que pronunciar uma palavra para fazerem de dois passados cruéis um só futuro de esperança. Mas, para pronunciarem tal palavra, ela era demasiado santa e ele demasiado respeitador.

No entanto, Ascânio olhava Colomba com infinita ternura, e Colomba deixava-se olhar com doce modéstia. Foi de mãos postas e como que rezando que o aprendiz disse à jovem:

— Colomba, se haveis mister de alguma coisa, se vos ameaça qualquer perigo, e for necessário que alguém dê a vida para realizar esse desejo ou afastar esse perigo, dizei uma só palavra, Colomba, como a um irmão vosso, e eu serei o mais feliz dos homens.

— Agradecida, agradecida — disse Colomba. — Já uma vez arriscastes generosamente a vida, a uma só palavra minha. Mas desta vez só Deus me pode valer.

Colomba não teve tempo de dizer mais nada, pois Dona Ruperta e Dona Perrine paravam naquele momento diante deles.

Tal como os dois enamorados, as duas comadres não haviam perdido o tempo, tendo-se já ligado por uma íntima amizade fundada numa simpatia recíproca. Dona Perrine ensinara a Dona Ruperta um remédio contra as frieiras, e Dona Ruperta, por sua vez e para não ficar em dívida, confiara a Dona Perrine um segredo para conservar as ameixas. É fácil de concluir que se tinham tornado amigas para a vida e para a morte,^ que tinham prometido uma à outra que se voltariam a ver, custasse o que custasse.

— Então, Colomba, ainda me quereis muito mal? — disse Dona Perrine, àproximando-se do banco onde os jovens estavam sentados. — Não teria sido imperdoável recusar a entrada àquele a quem ficámos a dever a vida do dono desta casa? Não se trata, afinal, de ajudarmos a curar este jovem de uma ferida que afinal recebeu por nossa causa?... E ora vede, Dona Ruperta, se ele não tem já muito melhor aspecto, e não está menos pálido que quando chegou...

— Assim é — afirmou Dona Ruperta —, nem quando estava com saúde, nunca lhe vi tão boas cores.

— Reflecti, Colomba — prosseguiu Perrine —, que seria um enorme crime impedir uma convalescença tão bem começada. Vamos, o fim justifica os meios; Consentis, não é assim, que ele volte amanhã, à tardinha? Para vós, minha filha, até é uma distracção; distracção bem inocente — graças a Deus, pois aqui estaremos sempre, Dona Ruperta e eu. E vós tendes muita necessidade de distracção, asseguro-vo-lo eu, Colomba. Quem poderá ir dizer ao Senhor Preboste que se adoçou um pouco o rigor das suas ordens? De resto, antes da proibição de vosso pai, havíeis autorizado Ascânio a vir-vos mostrar algumas jóias que, aliás, hoje se esqueceu de trazer... É preciso trazê-las amanhã.

Colomba olhou para Ascânio, que se tornara pálido e aguardava a sua resposta com dolorosa ansiedade.

Para uma pobre rapariga tiranizada e cativa, esta humildade era docemente lisonjeira. Havia então no momento alguém que dependia dela e cuja tristeza ou felicidade ela podia fazer com uma só palavra sua! Não há ninguém que desdenhe um pouco do poder pessoal. O tom insolente do conde d'Orbec humilhara-a recentemente. A pobre prisioneira — perdoe-se-lhe! — não resistiu à tentação de ver um clarão de alegria nos olhos de Ascânio e disse sorrindo e corando:

— Dona Perrine, que me obrigais a fazer?...

Ascânio quis falar, mas apenas pôde juntar as mãos com efusão; os joelhos não lhe obedeceram.

— Como vos agradeço, minha bela Senhora — disse Ruperta com uma profunda reverência. — Agora, Ascânio, ainda estais muito fraco: é tempo de regressar. Dai-me o braço, e partamos.

O aprendiz apenas teve forças para dizer adeus e agradecer, mas o seu olhar, em que pôs a alma, não havia mister da eloquência das palavras. Com o coração cheio de alegria, acompanhou a bondosa Ruperta.

Colomba voltou a sentar-se no banco pensativa, mas penetrada duma doce embriaguez, que a si própria censurava e a que não estava habituada.

— Até amanhã! — disse Dona Perrine com ar triunfante ao despedir-se das suas visitas, que fora acompanhar até à porta. — Se quiserdes, belo jovem, podeis vir como hoje, todos os dias, durante três meses.

— E porquê durante três meses apenas? — perguntou o jovem, que já sonhava voltar ali sempre.

— Ora! — respondeu Dona Perrine — porque dentro de três meses Colomba casa-se com o conde d'Orbec.

Ascânio teve de recorrer a toda a sua energia de vontade para não soçobrar.

«Colomba casa-se com o conde d'Orbec! — murmurou Ascânio. — Meu Deus! Meu Deus! como me deixei iludir!... Colomba não me tem amor.»

Mas como, neste momento, Dona Perrine fechava a porta e Dona Ruperta ia na frente, nem uma nem outra o ouviram.

 

         A RAINHA DO REI

Tínhamos dito que Benvenuto saíra do seu atelier por volta das onze da manhã, sem dizer onde ia. A verdade é que fora ao Louvre, retribuir a visita que o rei lhe fizera no palácio do cardeal de Ferrara.

Francisco I tinha mantido a sua palavra. O nome de Benvenuto Cellini fora dado a todos os guardas do palácio real, de modo que todas as portas se abriram diante dele. Todas, não; a do Conselho permaneceu cerrada. Francisco I discutia negócios de Estado com os grandes do reino, e por mais categóricas que haviam sido as ordens do rei ninguém ousou permitir que Cellini entrasse na sala onde decorria a grave sessão do Conselho de Sua Majestade, sem lhe pedirem autorização especial.

É que era efectivamente grave a situação política de França. Até aqui, julgámos conveniente falar o menos possível de negócios de Estado, pois pensámos que os nossos leitores, e principalmente as nossas leitoras, preferem as coisas do coração às da política. Mas eis que chegamos agora a um ponto em que já nos não é possível rodear estas questões, e teremos de lançar um rápido olhar (o mais rápido que for possível) à França e à Espanha, ou melhor, a Francisco I e a Carlos V, pois que, no século dezasseis, os reis eram as nações.

Na época em que a nossa história vai decorrendo, a situação de Francisco I, depois duma série de altos e baixos, ganhara uma grande vantagem sobre a de Carlos V. As coisas haviam-se modificado muito depois do famoso Tratado de Cambraia, em que duas mulheres, Margarida de Áustria, tia de Carlos V, e a duquesa de Angoulême, mãe de Francisco I, haviam sido as contratantes. Aquele tratado, que era o complemento do de Madrid, estipulava que o rei de Espanha daria a Borgonha ao rei de França, e que o rei de França renunciaria, por seu turno, ao feudo da Flandres e de Artois. Além disso, os dois principezinhos, que estavam como reféns de seu pai, deviam ser entregues pela soma de dois milhões de escudos de oiro. Por outro lado, a boa rainha Eleonor, irmã de Carlos V, primeiro prometida ao condestável em Paga da sua traição, e dada depois em casamento a Francisco I como garantia de paz, devia voltar para a corte de França com as duas crianças a que tão carinhosamente havia servido de mãe. Tudo isto fora cumprido com a inteira lealdade por ambas as partes.

Mas, como bem se compreende, a renúncia ao ducado de Milão que foi exigida a Francisco I, durante o seu cativeiro, não podia deixar de ser uma renúncia temporária. Mal se viu livre, reintegrado no poder e senhor das suas forças, Francisco I lançou novamente olhares cobiçosos para a Itália. Fora apenas com o fito de obter na corte de Itália um apoio às suas pretensões que casara seu filho Henrique, tornado delfim por morte de seu irmão mais velho, com Catarina de Médicis, sobrinha do papa Clemente VII.

Desgraçadamente, quando já estavam terminados todos os preparativos da invasão meditada pelo rei, faleceu o papa Clemente VII, tendo-lhe sucedido Alexandre Farnésio, que subiu ao trono de S. Pedro sob o nome de Paulo III. Ora Paulo III tinha deliberado não se deixar arrastar nem para o partido do imperador, nem para o do rei de França, mantendo-se como fiel de balança entre Carlos V e Francisco I.

Deste modo, o imperador deixou de preocupar-se com os preparativos da França e preparou, por sua vez, uma expedição contra Tunes, cidade de que se tinha apoderado o famoso corsário Gair-Ed-Din, que tanto se celebrizou sob o nome de Barba-Roxa, e que, depois de expulsar Mulei Hassan, se havia apoderado de toda a região, assolando a Sicília.

A expedição redundou numa vitória absoluta, e Carlos V, depois de ter destruído vários navios ao almirante Solimão, entrara triunfante no porto de Nápoles.

Ali, recebeu uma notícia que ainda mais o tranquilizou. Carlos III, duque de Sabóia, apesar de tio materno de Francisco I e segundo os conselhos de sua nova esposa, Beatriz, filha de D. Manuel, rei de Portugal, havia-se desligado do partido do rei de França. Tanto assim, que quando Francisco I, invocando os seus antigos tratados com Carlos III, o intimou a que acolhesse as suas tropas, o duque de Sabóia respondeu-lhe com uma recusa formal, de maneira que Francisco I achava-se na necessidade de forçar a terrível passagem dos Alpes, cujas portas sempre julgara abertas para si graças à aliança e parentesco com o duque.

Mas não tardou que Carlos V fosse subitamente desenganado nas suas esperanças. Com a rapidez do raio, o monarca francês invadiu a Sabóia. O duque viu a sua província totalmente ocupada, quando nem sequer aventava a hipótese de uma invasão. Brion, encarregado de comandar o exército, apoderou-se de Chambéry, e franqueou os Alpes ameaçando o Piemonte, enquanto Francisco Sforza, aterrorizado sem dúvida ao saber a notícia de tal façanha, morria subitamente, sem deixar herdeiro que lhe sucedesse no ducado de Milão, pelo que Francisco I viu não só facilitadas mas também legalizadas as suas pretensões.

Brion desceu à Itália e apoderou-se de Turim, sustendo aí a sua marcha. Dispôs o seu acampamento nas margens do Sésia e esperou.

Carlos V havia, por seu lado, partido de Nápoles a caminho de Roma. A vitória que acabava de ganhar contra os inimigos de Cristo valeu-lhe uma entrada triunfante na capital do mundo cristão. Esta entrada inebriou de tal maneira o imperador que, contrariamente ao que lhe era habitual, excedeu-se a ponto de, em pleno consistório, acusar Francisco I de heresia, apoiando esta acusação na protecção que ele dava aos protestantes e no tratado de aliança que fizera com os Turcos. Em seguida, evocando todas as passadas disputas que entre os dois houvera, e atribuindo ao seu cunhado a responsabilidade de todas elas, jurou uma guerra de extermínio contra Francisco I.

Os reveses por que passara haviam tornado o rei de França tão prudente quanto a princípio fora inconsiderado. Deste modo, mal se viu ameaçado simultaneamente pelas forças de Espanha e do Império, deixou Annebaut e partiu em defesa de Turim, mandando regressar Brion com a ordem de defender apenas as fronteiras.

Todos os que conheciam o espírito de cavalaria e a imaginação cheia de recursos de Francisco I não entenderam esta retirada e pensaram que se recuava era porque antecipadamente se considerava vencido. Esta convicção geral ainda mais exaltou o orgulho de Carlos V, e colocando-se ele próprio à cabeça do seu exército resolveu invadir a França pelo Sul.

São bem conhecidos os resultados desta tentativa. Marselha, que já havia resistido ao condestável de Bourbon e a Pescara, os dois maiores generais daquela época, não teve grande dificuldade em resistir a Carlos V, grande político mas medíocre general. Mas o imperador não se preocupou e, deixando Marselha, preparou-se para marchar contra Avinhão; o pior é que Montmorency havia instalado entre a Durance e o Ródano um campo militar inexpugnável, contra o qual Carlos V se encarniçou em vão. Assim, o imperador, após seis semanas de tentativas inúteis, repelido na vanguarda, importunado nos flancos e ameaçado de corte na retaguarda, ordenou, por sua vez, uma retirada que mais parecia uma derrota; e depois de ter corrido o risco de cair nas mãos do inimigo, conseguiu a muito custo alcançar Barcelona, onde chegou sem homens e dinheiro.

Foi então que todos aqueles que estavam na expectativa para se declararem a favor do melhor partido, se declararam contra Carlos V. Henrique VIII repudiou sua mulher, Catarina de Aragão, para desposar Ana Bolena, sua favorita. Solimão atacou o reino de Nápoles e a Hungria. Os príncipes protestantes da Alemanha organizaram uma liga secreta contra o imperador. Finalmente, os habitantes de Gand, cansados dos constantes impostos com que os sobrecarregavam para subvencionar as despesas da guerra com a França, revoltaram-se subitamente, enviando embaixadores a Francisco I rogando-lhe que os quisesse comandar.

Mas no meio desta universal confusão que ameaçava a boa estrela de Carlos V, novas negociações se haviam entabulado entre Francisco I e ele. Os dois soberanos tinham-se avistado em Aigues-Mortes, e Francisco I, decidido a uma paz que ele sentia absolutamente necessária à França, resolvera esperar, para futuro, a realização das suas ambições não através de uma luta à mão armada, mas de negociações amigáveis.

Nesta ordem de ideias, mandou, pois, prevenir Carlos V do que os de Gand lhe haviam proposto, oferecendo-lhe ao mesmo tempo uma passagem através da França para se dirigir à Flandres.

Era precisamente a respeito deste assunto que o conselho discutia quando Benvenuto chegara e Francisco I, fiel à sua palavra, mal foi informado da presença do seu grande ourives, logo ordenou que fosse à sua presença. Assim, Benvenuto pôde ouvir o fim da discussão.

— Pois, meu Senhores — dizia Francisco I — sou da opinião do Sr. de Montmorency, e o meu sonho é fazer uma aliança duradoira com o imperador eleito, e colocar os nossos dois tronos à cabeça de toda a Cristandade. Faremos então desaparecer diante de nós todas essas corporações, todas essas comunas e assembleias populares que pretendem impor limites ao nosso poder recusando-nos ora os braços ora o dinheiro de nossos súbditos.

O meu sonho é ainda reintegrar no seio da religião e na unidade pontifical todas as heresias que desolam a nossa Santa madre Igreja. O meu sonho é, enfim, congregar todas as minhas forças contra os inimigos de Cristo, expulsar de Constantinopla o sultão dos Turcos, quanto mais não seja para demonstrar que não é, como dizem, meu aliado, e estabelecer naquela cidade um segundo império superior ao primeiro, tanto em força e esplendor como em vastidão. Este é o meu sonho, Senhores; e se assim lhe chamo é para me não deixar embalar demasiado pela esperança de o ver concretizar-se, e não ceder ao abatimento quando o futuro me vier acaso provar a sua impossibilidade. Ah, mas se se concretizasse, condestável... ah, se se concretizasse!... Se tivesse a França e a Turquia, Paris e Constantinopla, o Ocidente e o Oriente!... Concordai, Senhores que seria belo, que seria sublime!

— Com que então, Majestade — disse o duque de Guisa —, estais definitivamente resolvido a recusar a suserania que os Gandeses vos oferecem, e a renunciar assim aos antigos domínios da casa de Borgonha?

— Está resolvido; o imperador verá que sou tão leal aliado como inimigo, mas, antes de mais nada e acima de tudo, quero e exijo que me seja devolvido o ducado de Milão; pertence-me por direito hereditário e investidura dos imperadores, e à fé de quem sou que o nei-de reaver. Mas espero obtê-lo sem cortar relações com meu irmão Carlos.

— E sempre quereis conceder-lhe passagem pela França, a fim de que vá castigar os Gandeses revoltados? — acrescentou Poyete.

— Sim, Senhor Chanceler — respondeu o rei. — Enviai hoje mesmo o Sr. de Fréjus com esse meu convite ao imperador. Mostremos-lhe que estamos dispostos a tudo para conservar a paz. Mas, se ele antes quiser a guerra...

Um gesto majestoso e terrível acompanhou esta frase, por instantes interrompida, pois Francisco I acabava de notar a presença do seu artista, que se mantinha modestamente junto da porta.

— Mas, se ele antes quiser a guerra — prosseguiu o rei —, pelo meu Júpiter*. — de que Benvenuto me traz ali notícias — juro que a terá sangrenta, terrível e encarniçada. E então, Benvenuto, como vai o meu Júpiter?

— Majestade — respondeu Cellini — trago-vos o modelo do vosso Júpiter, mas sabeis acaso com que sonhava ao ver-vos e escutar-vos ainda agora? Sonhava com uma fonte para o vosso Fontainebleau; uma fonte encimada por uma colossal estátua de sessenta pés, com uma lança quebrada na mão direita e apoiando a esquerda no punho da espada. Esta estátua, Majestade, representaria Marte, isto é, vós, pois em Vossa Majestade tudo é coragem e justiça, e com estas duas qualidades conquistais a glória. Esperai, que não é tudo; nos quatro ângulos da base desta estátua, haverá quatro figuras sentadas: a poesia, a pintura, a escultura e a liberalidade. Aqui está o que eu sonhava, olhando-vos e ouvindo-vos, Majestade.

— E haveis de converter em mármore e bronze esse vosso sonho, Benvenuto. Assim o quero — disse o rei em tom imperioso, mas sorrindo com a mais amena cordialidade.

Todo o conselho aplaudiu a ideia, tanto ela pareceu digna do rei e o rei digno dela.

— Por agora — continuou o rei — vejamos o nosso Júpiter.

Benvenuto tirou a maqueta de sob a capa, e colocou-a sobre a mesa à roda da qual se acabava de traçar o destino do mundo.

Francisco I devorou-a um momento com tão emocionada expressão, que era impossível alguém enganar-se sobre o juízo que daquela obra fazia.

— Até que enfim! — exclamou — achei um homem segundo o meu coração. Depois, apoiando a mão no ombro de Benvenuto, prosseguiu:

— Meu amigo, não sei qual será a felicidade maior, se a do príncipe que encontra um artista como vós, capaz de lhe adivinhar o pensamento, se o artista que encontra um príncipe capaz de o compreender. Creio bem que o meu prazer é maior.

— Oh, não, Majestade! — exclamou Cellini — perdoai que vos contradiga...

— Não, não: a minha felicidade é maior.

— Não ouso resistir a Vossa Majestade, contudo...

— Digamos então, nesse caso, que as nossas satisfações são dignas uma da outra.

— Majestade, chamastes-me vosso amigo — disse Benvenuto —, quero que saibais que essas palavras acabam de me pagar cem vezes o valor de tudo o que já fiz para vós e de tudo o que ainda possa vir a fazer.

— Pois bem: quero-te provar que não foram palavras vãs essas que me ouviste, Benvenuto, e que, se te chamei amigo, é que como tal te considero. Termina o meu Júpiter o mais depressa possível, e vem-mo trazer, que eu te prometo, à fé de quem sou, que tudo o que um rei pode fazer, eu o farei por ti, a teu pedido. Estais ouvindo, Senhores? Se eu me esquecesse desta promessa, vós ma havíeis de recordar.

— Majestade — exclamou Benvenuto —, sois tão grande e nobre rei, que eu me envergonho de vos dar tão pouco em troca do que fazeis por mim.

Depois de beijar a mão que o rei lhe estendia, Cellini voltou a esconder sob a capa a maqueta do Júpiter e saiu da sala do conselho com o coração cheio de orgulho e alegria. Quando deixava o Louvre, encontrou Primatício que ali entrava.

— Aonde ides tão ditoso, meu caro Benvenuto? — perguntou Primatício a Cellini, que passava sem o ver.

— Ah, sois vós, Francesco! — exclamou Cellini. — Tendes razão em dizer que vou feliz, pois acabo de estar com o nosso grande, o nosso sublime e divino Francisco I...

— E estivestes também com a Sr.a d'Étampes? — perguntou Primatício.

— Que me disse coisas que eu não ouso repetir, Francisco, embora se diga por aí que a modéstia não é o meu forte.

— Mas que vos disse a Sr.a d'Etampes?

— Chamou-me «seu amigo», entendes, Francisco? Tuteou-me, como faz a todos os marechais de França. Numa palavra: disse-me que quando acabasse o meu Júpiter, podia pedir-lhe fosse o que fosse que antecipadamente mo concedia.

— E que vos prometeu a Sr.a dEtampes?

— Que homem singular vós sois Francisco!...

— Porque dizeis isso?

— Só me falais da Sr.a d'Etampes, quando eu vos falo apenas do rei.

-— É que eu conheço melhor a corte que vós, Benvenuto, e sois meu compatriota e amigo. Trouxestes-me um pouco do perfume da nossa bela Itália, e eu, em troca, desejo salvar-vos de um grande perigo. Ouvi o que vos digo, Benvenuto: a duquesa d'Étampes é vossa mortal inimiga. Já vo-lo disse, embora na altura apenas o suspeitasse. Mas hoje já não me resta qualquer dúvida. Ofendestes aquela mulher e, se a não apaziguais, há-de perder-vos. A Sr.a d'Étampes — ouvi bem o que vos digo, Benvenuto — a Sr.a d'Etampes é a rainha do rei.

— Que me estais a dizer!? — exclamou Benvenuto rindo. — Mas em que ofendi eu a Sr.a d'Êtampes?

— Oh! Conheço-vos tão bem, Benvenuto, que tinha a certeza de que não saberíeis melhor do que eu, ou ela própria, o motivo da sua aversão por vós. Que lhe havemos de fazer? As mulheres são assim mesmo, odeiam tal como amam, sem verem porquê. Mas a verdade é que a duquesa d'Etampes vos odeia.

— Que quereis que faça?

— Que quero?! Mas, apenas isto: que o cortesão salve o escultor.

— Eu, o cortesão de uma cortesã?

— Não sois razoável, Benvenuto — disse Primatício sorrindo —, não sois razoável. A Sr.a d'Etampes é muito bela, e um artista não o pode negar.

— E não serei eu que o negue.

— Pois então ide dizer-lhe isso a ela, e não a mim. Só vos peço isto, e será o bastante para que vos torneis bons amigos. Vós feriste-la, por um capricho de artista; compete-vos dar os primeiros passos para a reconciliação.

— Se a feri — disse Cellini — foi sem intenção, ou melhor, sem maldade. Ela tinha-me dito palavras desagradáveis que não mereci; fi-la cair em si, mais nada.

— Não importa, não importa! Esquecei o que ela vos disse, Benvenuto, e fazei com que ela esqueça o que lhe respondestes. Repito-vos que ela é imperiosa e vingativa, e que domina o coração do rei, do rei que ama muito as artes mas que ainda ama mais o amor. Ela fará arrepender-vos da vossa audácia, Benvenuto; suscitar-vos-á inimigos; já foi ela que encorajou o preboste a resistir-vos. E olhai, eu vou partir para Itália; vou a Roma por ordem sua. Pois bem, Benvenuto: esta viagem é dirigida contra vós, e eu próprio, que sou vosso amigo, vejo-me assim forçado a servir de instrumento ao seu rancor.

— E que ides fazer a Roma?

— Que vou fazer?... Vós prometestes ao rei que rivalizaríeis com os antigos mestres, e eu sei que sois capaz de cumprir a vossa promessa. Mas a duquesa crê que vos gabastes à toa e, imaginando sem dúvida esmagar-vos com a comparação, envia-me agora a mim para moldar, em Roma, as mais belas estátuas antigas: o Laocoonte, a Vénus, o Amolador, sei lá...

— Ora aí está um terrível requinte de rancor — disse Benvenuto que, apesar da boa opinião que fazia da sua própria arte, não deixava de recear a comparação da sua obra com a dos maiores mestres da Antiguidade. — Mas ceder a uma mulher — acrescentou sorrindo —, jamais, jamais.

— Quem fala aqui em ceder? Olhai só para este plano que vos trago. Ascânio agradou-lhe e ela quer dar-lhe algumas jóias a fazer. Encarregou-me de lhe dizer que passasse por sua casa. Pois bem: nada mais natural que acompanhardes o vosso discípulo a fim de serdes vós próprio a apresentá-lo à bela duquesa. Aproveitai a ocasião e levai convosco uma dessas maravilhosas jóias como só vós sois capaz de fazer. Mostrai-lha primeiro; e quando virdes os seus olhos brilharem ao contemplá-la, oferecei-lha então, como um tributo mais do que devido à sua beleza. Ela aceitará, agradecendo-vos gentilmente, e dando-vos, por sua vez, qualquer presente digno de vós. E, sobretudo, voltará a conceder-vos o seu favor. Se, pelo contrário, tiverdes essa mulher por inimiga, podeis desde já renunciar às belas e grandes coisas que sonhais. Também eu tive, a princípio, que me vergar um instante, para poder erguer-me depois a toda a altura. Até então, via-me preterido por esse insignificante Rosso. Chamavam-no sempre e a toda a parte, e só depois a mim. Iam nomeá-lo intendente da coroa.

— Sois injusto para com ele, Francisco — disse Cellini, incapaz de esconder o que pensava. — É um grande pintor.

— Achais?

— Tenho a certeza.

— Pois bem, também eu — disse Primatício — e é justamente por isso que mais o odeio. Ora aí está: serviam-se dele para me esmagarem; não tive mais que lisonjear as suas miseráveis vaidades, e agora sou o grande Primatício; agora servem-se de mim para vos esmagar a vós. Fazei pois como eu fiz, Benvenuto, e não vos arrependereis de ter seguido o meu conselho. Suplico-vo-lo tanto por vós como por mim; suplico-vo-lo em nome da vossa glória e do vosso futuro, que comprometereis irremediavelmente persistindo na vossa obstinação.

— É bem duro — disse Cellini, que começava visivelmente a ceder.

— Se o não quereis fazer por nós, Benvenuto, fazei-o pelo nosso grande rei. Quereis lacerar-lhe o coração, colocando-o na necessidade de ter de escolher entre uma favorita que ama e um artista que tanto admira?...

— Pois bem, seja! Fá-lo-ei pelo rei! — exclamou Cellini, feliz por achar uma desculpa que o seu amor-próprio podia aceitar.

— Ora até que enfim! — disse Primatício. — E agora, creio que não é preciso dizer-vos que se uma só palavra desta nossa conversa chegasse aos ouvidos da duquesa, eu estaria perdido.

— Oh! — disse Benvenuto — podeis ficar descansado.

— Basta-me a palavra de Benvenuto.

— Eu vo-la dou.

— Então, pronto! Adeus, irmão.

— Desejo-vos boa viagem lá por baixo!

— E eu, boa sorte aqui!

E os dois amigos, depois de terem mais uma vez estreitado as mãos, afastaram-se com um gesto que resumia a sua anterior conversa.

 

         INSTABILIDADE FEMININA

O Palácio d'Étampes não distava muito do Palácio de Nesle. Deste modo, os nossos leitores não devem estranhar que passemos de um para o outro.

Ficava situado perto do Cais dos Agostinhos, estendendo-se ao Longo da Rua Gill-ele-Gueux. A sua entrada principal dava para a Rua da Andorinha. Francisco I oferecera este palácio à sua favorita, para que ela consentisse em desposar Tiago de Brosse, conde de Pen-thièvre, tal como tinha dado o ducado d'Étampes e o governo da Bretanha a Tiago de Brosse, conde de Penthièvre, a fim de que ele consentisse em desposar a sua favorita.

O rei tinha, aliás, tornado o seu presente digno da bela Ana d'Heilly. Mandara mesmo modificar o palácio segundo o gosto mais moderno. Sobre a sua fachada sombria e severa haviam desabrochado como por encanto, e como sugestões amorosas, os delicados enfeites do Renascimento. Atentando nos cuidados com que o rei mandara restaurar todo o palácio, era fácil concluir-se que ele o devia habitar tanto como a própria duquesa. Os aposentos tinham sido mobilados com luxo real, e toda a casa estava montada como a de uma verdadeira rainha. Não se lhe podia comparar, em magnificência, o palácio da excelente e casta Eleonor, irmã de Carlos V, e legítima esposa de Francisco I, de quem, aliás, bem pouco se falava.

Entremos agora, indiscretamente, nos aposentos da duquesa. Vai nascer o dia. A duquesa d'Etampes está inclinada no leito, apoiando numa das suas lindas mãos a cabeça encantadora, é passando a outra vagarosamente pelos longos cabelos de reflexos doirados. Os seus pés parecem mais pequenos e brancos dentro dos grandes chapins de veludo negro, e a túnica vaporosa e ondulante que a cinge dá-lhe uma sedução irresistível.

O rei não está longe. De pé, junto da janela, Francisco I não olha porém a sua bela duquesa. Batendo ritmadamente com os dedos de encontro ao vidro, parece meditar profundamente. Pensa sem dúvida na grave questão da travessia da França por Carlos V.

— Que fazeis aí, Senhor, de costas voltadas? — diz-lhe por fim a duquesa, despeitada.

— Versos para vós, amada Senhora minha — respondeu Francisco I. — Creio que estão prontos.

— Oh, depressa! depressa, dizei-mos, meu belo poeta real!

— Pois não — retorquiu o rei, com toda a segurança de um vate de ceptro e coroa. — Escutai:

 

       Quando, ainda agora, da janela olhando

       Estive longamente a rósea Aurora.

       Vi-a, gentil, o caminho ensinando

       A Febo majestoso, que ela adora.

       Depois, olhando Ana no seu leito.

       De aurifulgente coma rodeada.

       O corpo esbelto, o olhar sujeito.

       Minha boca a dizer foi obrigada:

       — Olímpicas beldades divinais.

       Se a Ana vos comparo, sois mortais.

 

— Ah, que graciosos versos! — exclamou a duquesa, aplaudindo.

— Podeis contemplar a aurora quanto quiserdes, pois já não sinto ciúmes de quem assim me proporciona tão deliciosa poesia. Voltai a dizer-mos, peço-vos.

Francisco I repetiu, complacente, a sua estrofe galante, mas, no fim, foi a vez de Ana permanecer em silêncio.

— Que tendes, Senhora minha? — inquiriu o rei, que contava com novo elogio.

— Tenho que vos podia repetir agora com mais autoridade ainda o que ontem vos dizia ao anoitecer. Um poeta ainda tem menos desculpa do que um rei cavaleiro, para permitir que alguém ultraje impunemente a sua dama, pois que além de dona do seu afecto é também a sua musa inspiradora.

— Mazona, outra vez! — disse o rei, não escondendo um pequeno gesto de impaciência. — Onde ides ver um ultraje, santo Deus!... Bem implacável é o vosso rancor, minha soberana, para que os vossos ressentimentos vos façam assim esquecer os meus versos...

— Odeio e amo de uma só maneira, Senhor.

— Mas, e se eu vos pedisse que não quisésseis mal a Benvenuto, pois é um grande doido que não sabe o que diz, e que fala como se bate, às tontas?... Não teve intenção de vos ferir... A clemência é, como sabeis, o apanágio das divindades; portanto, querida deusa, perdoai àquele insensato por amor de mim!

— Insensato?! — repetiu Ana, num murmúrio.

— Oh! Insensato sim, mas sublime — disse Francisco I. — Vi-o ontem, e prometeu-me maravilhas. É um homem sem igual na sua arte, e que eternizará a minha glória, como André dei Sarto, Ticiano e Leonardo da Vinci. Bem sabeis como estimo os meus artistas, duquesa querida, portanto, sede benévola e indulgente para com Benvenuto, peço-vos. Santo Deus! Chuva de Abril, capricho de mulher e gracejo de artista não se devem tomar a sério. Vós, que eu amo, sabei perdoar àquele que me agrada.

— Obedecer-vos-ei, Senhor.

— Agradecido. E em troca desse favor que me concede a vossa bondade, pedi o que quiserdes e esteja no meu poder. Mas, eis que já nasceu o dia; tenho de deixar-vos. Hoje volta a "aver conselho — que enfado! O meu irmão Carlos V torna-me bem espinhoso o ofício de reinar. No lugar da lealdade de cavaleiro põe a astúcia, e usa a pena em vez da espada. A fé de quem sou, creio bem que será preciso inventar novas palavras para designar toda aquela ciência e aquela habilidade para governar. Adeus, minha bem amada; tratarei de ser perspicaz e prudente. Sois bem feliz por não terdes mais preocupações que as da beleza. Adeus; deixai-vos ficar onde estais, o meu pajem espera-me na antecâmara. Adeus; pensai um pouco em mim.

— Sempre, Majestade.

E acenando-lhe de longe um último adeus, Francisco I afastou o reposteiro e saiu, deixando só a bela duquesa que, pouco fiel à sua promessa, começou logo a pensar em tudo menos no rei.

É que a Sr.a d'Étampes era de um temperamento activo, ardente e ambicioso. Depois de ter ardorosa e ousadamente conquistado o amor do rei, bem depressa notou que aquele amor não bastava para preencher as aspirações do seu espírito, e entrou de se aborrecer. O almirante Brion e o conde de Longueval, que ela amou por algum tempo, bem como o ódio constante por Diana de Poitiers não na entretinham suficientemente. Mas havia talvez oito dias que aquele vácuo de alma começara a preencher-se, e ela recomeçara a viver graças a um novo ódio e a um novo amor. Odiava Cellini e amava Ascânio. E era neles que pensava enquanto as aias a iam acabando de toucar.

Quando faltava apenas o penteado, vieram anunciar o preboste de Paris e o visconde de Marmagne.

Tanto um como o outro eram dos mais devotos partidários da duquesa, na pequena guerra que ia na corte entre a favorita do delfim, Diana de Poitiers, e ela. Ora a verdade é que os amigos são sempre especialmente bem-vindos quando se está a pensar nos inimigos. Foi portanto com o mais encantador dos sorrisos que a Sr.a d'Etampes deu a mão a beijar ao desconsolado preboste e ao sorridente visconde.

— Senhor Preboste — disse ela, com uma cólera que nada tinha de fingida e com uma comiseração que não tinha nada de injurioso —, fui informada da maneira odiosa como esse campónio italiano ousou tratar o nosso melhor amigo, e a nossa indignação é ainda muito veemente.

— Senhora — respondeu d'Estourville, servindo-se do seu próprio revés para proferir uma lisonja —, sentir-me-ia vexado se a minha idade e posição tivessem merecido mais contemplação àquele infame que a vossa beleza e distinção.

— Oh! — disse Ana — penso apenas em vós, pois quanto à minha injúria pessoal, o rei, que é demasiado indulgente, pediu-me que a esquecesse, e eu esquecê-la-ei.

— Sendo assim, Senhora, não havíeis certamente de acolher bem o pedido que vínhamos formular-vos, e por isso pedimo-vos licença para nos retirarmos sem nada dizer.

— Pois quê, Sr. dEstourville?! não serei eu a vossa amiga de sempre, aconteça o que acontecer?... Falai, falai, por Deus! ou terei de zangar-me contra um tão desconfiado amigo.

— Nesse caso, Senhora, eis do que se trata. Imaginando poder dispor daquele direito de alojamento num dos palácios reais, direito que me outorgastes, dispus dele a favor do conde de Marmagne, que aqui vedes. Ora a nossa escolha foi recair, muito naturalmente, no Palácio de Nesle, que acaba de ir parar a tão odiosas mãos...

— Ah, Ah! — exclamou a duquesa. — Escuto-vos com a maior atenção.

— O visconde, Senhora, a princípio aceitou com o maior interesse, mas depois, reflectindo, começou a hesitar com receio desse terrível Benvenuto.

— Perdão, meu digno amigo! — interrompeu o visconde de Marmagne — perdão, mas estais a referir muito mal os factos. Não é Benvenuto mas a cólera do rei que causa os meus receios. Não tenho medo de ser morto por esse campónio italiano, como mui acertadamente lhe haveis chamado. Tenho medo, sim, mas é de o matar e do que poderá vir a suceder-me por privar Sua Majestade de um artista por quem mostra tanto empenho.

— Mas eu ousei, Senhora, fazer-lhe crer que, se fosse necessário, a vossa protecção não lhe havia de faltar...

— Nunca ela faltou aos meus amigos — disse a duquesa. — Mas não tendes também a vosso favor uma amiga ainda mais poderosa do que eu, a justiça?... Não estais a agir de acordo com os desejos do rei?

— Sua Majestade — respondeu Marmagne — apenas ordenou que o Palácio de Nesle fosse ocupado por Benvenuto, de modo que não poderemos dissimular intuitos de vingança ao escolhermos precisamente aquele palácio. E se, por outro lado, eu matar Cellini, pois levo comigo dois homens infalíveis?...

— Ora! Santo Deus! — exclamou a duquesa, mostrando os seus dentes muito brancos, num sorriso bem expressivo. — O rei protege facilmente os vivos, mas creio que não vai empenhar-se muito em proteger os mortos. Como a sua admiração pela arte já não terá em que se exercer, penso que a sua afeição por mim pesará muito mais. E esse homem insultou-me tão pública e insolentemente! Podeis esquecê-lo, Marmagne?!

— Mas, Senhora—disse o prudente Marmagne —, pensai bem no que tereis de defender!...

— Oh, vós falastes com extrema clareza, visconde!

.— Não, perdoai, Senhora, não falei e permiti que tudo vos diga. Pode acontecer que esse diabólico italiano escape da luta com vida. Nesse caso, confesso-vos que recorreremos a outro processo menos falível. Assim, se não morresse em combate com os dois valentes, em pleno dia e no seu palácio, aqueles encontrá-lo-iam de noite, como por acaso, em qualquer ruazinha deserta, e... eles não possuem apenas espadas, Senhora, também usam punhais...

— Já tinha compreendido — disse a duquesa, sem que o seu lindo rosto denunciasse a menor emoção ante a perspectiva de tão traiçoeiro assassinato.

— E então, Senhora?

— Então, visconde, vejo que sois homem avisado, e que não deve ser nada aconselhável ser-se o vosso inimigo...

E, dizendo isto, a duquesa sorria encantada.

— Mas, enfim, que pensais do caso, Senhora?

— O caso é grave, e valia a pena ponderá-lo melhor. Mas a verdade é que todos sabem, até o rei, que esse homem feriu profundamente o meu orgulho. Odeio-o... tanto como meu marido e a Sr.a de Poitiers. Creio que posso bem prometer-vos... Mas... que há, Isabeau? porque vens interromper-nos?

Estas últimas palavras da duquesa dirigiam-se a uma das suas aias que acabara de entrar açodadamente.

— Valha-me Deus, Senhora — disse Isabeau —, peço-vos perdão, mas é aquele artista florentino, aquele Benvenuto Cellini, que está ali com o mais belo vaso de oiro que se possa imaginar. Disse, mui cortesmente, que vinha oferecê-lo a V. S.a, e que rogava muito o obséquio de vos falar por um minuto.

— Ah sim?... — disse a duquesa com a satisfação de uma altivez adoçada — e que lhe respondeste, Isabeau?

— Que a senhora não estava ainda toucada e que vinha preveni-la.

— Fizeste bem. Ao que parece — acrescentou a duquesa, voltando-se para o consternado preboste —, o nosso inimigo enerva-se e começa a conhecer o que valemos e podemos. É o mesmo: a sua penitência não será tão simples como ele julga, pois não penso receber assim, imediatamente, as suas desculpas. Isabeau, dir-lhe-ás que me transmitiste o seu recado e que lhe ordeno que espere.

Isabeau saiu.

— Dizia-vos, pois, visconde de Marmagne — prosseguiu a duquesa, já com muito menos cólera na voz —, que a coisa de que falais me é bastante grave e eu não poderia prometer-vos qualquer ajuda ao que, afinal, é um assassinato e uma cilada.

— A injúria foi tão notória!...

— A reparação não o será menos. Esse terrível orgulhoso que até resiste aos próprios soberanos, está esperando ali, na minha antecâmara, até que o meu arbítrio, ou o meu caprino de mulher, lhe acabem com o purgatório. Creio que duas horas deste vexame bastarão

Para expiar uma palavra impertinente. Não devemos também ser impiedosos, preboste. Perdoai-lhe, como eu lhe perdoarei dentro de duas horas. Ou terei eu menos poder sobre vós.

— Permiti, nesse caso, Senhora, que nos retiremos — disse o preboste inclinando-se —, pois não desejaria fazer à minha verdadeira soberana uma promessa que não poderei cumprir.

— Retirar-vos?! Oh, não — disse a duquesa, que queria a todo o custo que o seu triunfo fosse testemunhado. — Eu desejo, Senhor Preboste, que assistais à humilhação do vosso inimigo, pois ela vos vingará aos dois. Conceder-vos-ei pois as próximas duas horas; não mas agradeçais.

E, mudando de assunto, a duquesa continuou a dirigir-se ao preboste:

— Diz-se que ides casar vossa filha com o conde d'Orbec. É verdade? É um belo partido. Disse belo, mas devia ter dito antes bom. Mas, sentai-vos, Senhor. Sabeis acaso que para que esse casamento se faça necessitais da minha autorização, e ainda ma não pedistes? Mas eu dar-vo-la-ei. D'Orbec é-me tão dedicado como vós próprio. Espero que iremos ver, finalmente, e ter connosco na corte, essa bela menina, que o seu futuro marido terá o bom senso de levar até lá. Como se chama ela?

— Colomba, Senhora.

— É um lindo nome e mui doce. Dizem que os nomes têm influência sobre o destino. Se assim for, a pobre menina deve ter um coração terno e não deixará de sofrer. Então, Isabeau, que há?

— Nada, Senhora. Ele diz que espera.

— Ah, óptimo! já nem me lembrava. Pois repito-vos, Sr. d'Estourville, que deveis ter cuidado com Colomba, pois o conde há-de ser um marido da mesma massa que o meu, pelo menos tão ambicioso como o duque d'Étampes, e, portanto, capaz de trocar a esposa por qualquer ducado. E nesse caso, cuidado então também comigo! Mormente se ela for tão bonita como para aí se diz! Haveis de apresentar-ma. É justo que eu possa pôr-me em guarda.

A duquesa, radiante com a expectativa da sua vitória, falou por muito tempo e com grande volubilidade, mas a sua alegria impaciente transparecia nos seus mais simples movimentos.

— Ora vá! — disse ela — mais meia hora de espera e as duas terão passado; libertaremos o pobre Benvenuto do seu suplício. Como deve estar a sofrer horrivelmente, ele, para quem o Louvre está sempre aberto e o rei sempre visível! É verdade que ele mereceu este castigo, mas não posso deixar de lastimar a sua sorte. A esta hora deve estar bem furioso o grande Cellini! E sem poder manifestar a raiva! Ah! Ah! Ah! Ah! Não posso conter-me. Mas... Santo Deus! Que é que eu ouço!? Que barulho é este?... Que vozearia!

— Quando Deus quer, é esse danado que já não aguenta mais o purgatório!... — exclamou o preboste, renovando esperanças.

— Muito gostava de ver! — disse a duquesa empalidecendo. —Vinde comigo, Senhores, vinde.

 

Benvenuto, resignado, pelas razões que vimos, a conciliar o ânimo da favorita omnipotente, logo no dia seguinte ao da sua conversa com Primatício, tinha escolhido um belo vaso de oiro para servir de refém à sua tranquilidade e, amparando Ascânio, ainda muito fraco e pálido da sua noite de angústias, havia-se encaminhado para o Palácio d'Êtampes. Os primeiros criados que encontrou recusaram-se logo a anunciá-lo à sua ama a hora tão matinal. Passou meia hora insistindo e já começava a irritar-se, quando passou Isabeau, que acedeu a ir anunciá-lo à Sr.a d'Étampes. Voltou dizendo que a duquesa estava ainda a toucar-se, pelo que tinha de esperar uns momentos. Encheu-se de paciência e foi sentar-se num escabelo, ao lado de Ascânio, que enfraquecido pela caminhada, pela febre e pelos próprios pensamentos mostrava um grande abatimento.

E assim se passou uma hora. Benvenuto pôs-se a contar os minutos «É claro — pensava ele — que os preparativos de uma duquesa constituem para ela a ocupação mais importante do dia, e por um quarto de hora a mais ou a menos não vou agora desistir de alcançar o que pretendo.» No entanto, apesar destas reflexões filosóficas, começou a contar os segundos.

Durante aquela longa espera, Ascânio ia-se tornando cada vez mais pálido. Querendo esconder o seu sofrimento do mestre, havia-o seguido heroicamente sem nada dizer. A verdade, porém, é que ainda por cima estava em jejum, e as forças começavam a abandoná-lo. Benvenuto, incapaz de permanecer sentado, começou a dar grandes passadas de um lado para o outro.

Passou-se assim um quarto de hora.

— Sofres, meu rapaz? — perguntou Cellini a Ascânio.

— Não, mestre. Vós é que deveis estar sofrendo; mas tende alguma paciência, rogo-vos, pois agora já não pode tardar.

Neste momento, Isabeau voltou a passar.

— Vossa ama demora bem — disse Benvenuto.

A maliciosa rapariga foi à janela e olhou o relógio do pátio.

— Mas há apenas hora e meia que estais à espera!... — disse ela. — De que vos queixais? E enquanto Cellini carregava o sobrolho, Isabeau, às gargalhadas, escapou-se por uma porta.

Benvenuto, fazendo um esforço violento, conseguiu ainda dominar-se. Mas teve que voltar para o escabelo e, com os braços cruzados, ali ficou, mudo e grave. Parecia calmo, mas a cólera fermentava-lhe em silêncio. Dois criados, imóveis diante da porta dos aposentos da duquesa, olhavam-no imperturbáveis, mas ironicamente, segundo lhe quis parecer.

O relógio bateu o quarto. Benvenuto olhou para Ascânio e viu-o mais pálido que nunca; pareceu-lhe quase a desmaiar.

— Ah, não! — exclamou, incapaz de aguentar mais tempo — ela está a fazer de propósito! Fiz os possíveis por acreditar no que me diziam, e esperei cortesmente. Mas, se o que pretendia era insultar-me (e estou tão pouco habituado a tal que nem sequer me ocorria a ideia), se se trata de um insulto, não sou homem que se deixe insultar, nem mesmo por uma mulher, e não estou aqui nem mais um segundo! Anda, Ascânio!

Dizendo isto, Benvenuto soergueu vigorosamente o escabelo onde o rancor da duquesa o havia humilhado durante duas horas e deixou-o cair despedaçado. Os criados fizeram um movimento mas, como Cellini desembainhou meia espada, contiveram-se. Ascânio, receando pelo mestre, quis levantar-se, mas a comoção acabara-lhe com o resto das forças, caindo sem acordo. Benvenuto, a princípio, não deu conta.

Neste momento a duquesa, pálida de cólera, apareceu no limiar da porta.

— Sim, vou-me embora! — prosseguiu Benvenuto com voz de trovão, e notando perfeitamente a chegada da duquesa. — Dizei a essa mulher que torno a levar o meu presente, e que vou dá-lo ao primeiro farroupilha que encontre, pois é, com certeza, mais digno dele do que ela! Dizei-lhe que se me tomou por um dos seus criados, enganou-se redondamente, e que nós, os artistas, não vendemos a nossa obediência e os nossos respeitos, como ela o seu arnor! E agora, afastem-se! Ascânio, segue-me!

Neste momento, voltou-se para o seu discípulo dilecto e viu-o de olhos fechados e com a cabeça caída de encontro à parede.

Ascânio! —exclamou Benvenuto —Ascânio, meu filho!... Desmaiado!... Quem sabe Se moribundo?... Oh, Ascânio, filho da minha alma!... E tudo por causa desta mulher!...

Benvenuto voltou-se para a duquesa numa atitude assustadora e, entretanto, preparava-se Para transportar Ascânio nos braços.

Quanto a ela, transtornada pela cólera e pelo terror, fora, até àquele momento, incapaz de pronunciar uma só palavra. Mas, ao ver Ascânio branco como o mármore, a cabeça tombada, os longos cabelos esparsos, tão belo na sua palidez, tão gracioso no seu desmaio, por um movimento irresistível precipitou-se para ele e, num segundo, estava ajoelhada em frente de Benvenuto, tendo, como este, uma mão de Ascânio entre as suas.

— Mas este rapaz morre! Se o levardes, matá-lo-eis! Carece de socorro imediato. Jerónimo, vai a correr chamar mestre André! Não quero que ele saia daqui neste estado, ouvis? Ide vós, ou ficai, mas deixai-o a ele ficar.

Benvenuto fitou a duquesa com um olhar penetrante, e Ascânio com ansiedade. Viu que não havia o menor perigo em deixar o seu discípulo amado entregue aos cuidados da duquesa d'Étampes, ao passo que correria grave risco se fosse transportado sem precauções. A sua deliberação foi quase instantânea, como sempre, pois uma decisão rápida e inquebrantável era uma das qualidades ou um dos defeitos de Cellini.

— Ficais responsável por ele, Senhora! — exclamou.

— Por minha vida! — afirmou a duquesa.

Depois de beijar docemente a testa do discípulo, cobrindo o manto e com a mão no punhal, saiu altivamente, mas não sem ter trocado com a duquesa um olhar de ódio e desdém. Quanto aos dois homens que a acompanhavam, nem se dignou olhá-los.

Ana, por seu lado, enquanto lhe foi possível, acompanhou o seu inimigo com um olhar ardente de furor e despeito. Depois, mudando de expressão, baixou os olhos com tristeza e inquietação para o gentil enfermo. O amor sucedia à cólera; a pantera voltava a ser gazela.

— Mestre André — disse ela ao seu médico, que chegava —, observai-o; salvai-o, está ferido e moribundo.

— Não é nada — disse mestre André —, é um desfalecimento passageiro.

E verteu-lhe nos lábios algumas gotas de um poderoso cordial que trazia sempre consigo.

— Já está a voltar a si... já se move! — exclamou a duquesa. — Agora, mestre, necessita de repouso e calma, não é? Levem-no para aquele quarto — disse para os criados. — Estendam-no numa cama.

Depois, baixando a voz para ser ouvida apenas por eles, acrescentou;

— Mas primeiro ouvi isto: se disserdes uma só palavra do que acabais de presenciar, pagá-lo-eis com a cabeça. Ide.

Os lacaios, aterrados, inclinaram-se, e, erguendo suavemente Ascânio, levaram-no.

Ficando só com o preboste e o visconde de Marmagne, espectadores mudos e prudentes do seu ultraje, a Sr.a d'Étampes fitou-os, sobretudo o segundo, com um grande desprezo, mas reprimiu imediatamente aquele sentimento.

— Dizia-vos, pois, visconde — continuou ela, amarga mas calmamente —, que o assunto de que me faláveis era grave. Mas não importa. Reflectindo melhor, creio que tenho poder bastante para suprimir um traidor, já que poderia fazer calar para sempre dois indiscretos. O rei, desta vez, dignar-se-ia castigar, suponho; mas o que eu quero é, porém, vingar-me. O castigo tornaria público o insulto; a vingança sepultá-lo-á. Vós tivestes, Senhores, o sangue-frio bastante para adiar a vingança de modo a não a comprometer. Louvo-vos por isso. Aconselho-vos a que tenhais também a coragem e a perseverança necessárias para a não deixardes escapar, e agi de maneira que eu não me veja obrigada a recorrer a outros além de vós. Visconde de Marmagne, careceis de palavras inequívocas, e aqui as tendes: garanto-vos a impunidade que se concede ao carrasco. E aceitai este conselho, renunciai à espada, vós e os vossos esbirros. Recorrei apenas ao punhal. E, agora, não digais nada, agi apenas e prontamente. Será essa a vossa melhor resposta. Adeus, senhores.

Dizendo estas palavras com voz breve e sacudida, a duquesa estendeu o braço como a mostrar a porta aos dois fidalgos. Estes inclinaram-se grotescamente, sem acharem qualquer desculpa, e, confusos e vexados, deixaram os aposentos.

«Oh! Ser apenas uma mulher e ter de me servir de tais cobardes!... — disse Ana, vendo-os afastar e contraindo os lábios com repugnância. —Ah, como desprezo todos estes homens!... amante real, marido venal, criados todos, quer de gibão quer de libré... todos menos um que admiro contra vontade, e outro, que adoro com toda a alma.»

E assim discorrendo, entrou nos aposentos onde se encontrava o seu belo doente. Quando a duquesa dele se aproximou, Ascânio abriu os olhos.

— Não é nada — disse mestre André à duquesa d'Etampes. — Este jovem recebeu recentemente um ferimento no ombro e a fadiga, a comoção e até a falta de alimento ocasionaram urn desmaio passageiro que os cordiais dissiparam, como vedes. Agora já está bem, e creio que pode, sem perigo, ser transportado de liteira.

— Basta, mestre — disse a duquesa, passando-lhe para as mãos uma bolsa de dinheiro. Mestre André inclinou-se profundamente e saiu.

— Onde estou? — perguntou Ascânio que, tendo recobrado o acordo, procurava reatar as ideias.

— Estais a meu lado, em minha casa, Ascânio — respondeu a duquesa.

— Em vossa casa, Senhora!? Ah, sim, já vos reconheço, sois a Sr.a d'Etampes. E também recordo que... onde está Benvenuto?! Onde está o meu mestre!?

— Não vos mexais, Ascânio. O vosso mestre está bem, tranquilizai-vos. A esta hora deve estar a jantar sossegadamente em sua casa.

— Mas porque me deixou aqui?

— Desmaiastes e, por isso, confiou-vos aos meus cuidados.

— E assegurais-me, Senhora, que saiu em segurança daqui e que não corre nenhum perigo?

— Repito-vos, afirmo-vos, Ascânio, que nunca esteve tão seguro como neste momento. Ingrato! Velo-vos, cuido de vós com a solicitude de uma irmã, eu, a duquesa d'Étampes, e vós não me falais senão em vosso mestre!...

— Oh, perdão, Senhora! perdão e mil agradecimentos.

— Era tempo, na verdade — disse a duquesa, meneando a cabeça com um fino sorriso. A Sr.a d'Etampes pôs-se então a falar, acompanhando cada palavra de uma entoação terna e dando às palavras mais simples as intenções mais delicadas, fazendo cada pergunta com um misto de avidez e respeito, ouvindo depois como se o seu destino dependesse da resposta.

Soube ser humilde, flexível e caridosa como uma gata, atenta a tudo, pronta para tudo, como uma boa actriz em cena, reconduzindo Ascânio docemente ao tom, quando o jovem dele se afastava, e atribuindo-lhe todo o mérito das ideias que preparava e atraía à conversa. Parecia duvidar de si própria e escutava-o como a um oráculo. No entanto, ia patenteando todo aquele espírito culto e gracioso que lhe valera, como já dissemos, o epíteto da mais sábia das belas e a mais bela das sábias. Numa palavra, soube fazer daquela conversa uma lisonja válida e uma hábil sedução. Como, no entanto, o jovem fizesse, pela terceira vez, menção de retirar-se, a duquesa, procurando retê-lo, disse:

— Falais-me com tanto fogo e eloquência da vossa bela arte de cinzelar, que é para mim como uma revelação. De hoje em diante, um adereço ou qualquer jóia revelar-me-ão todo o pensamento dos seus autores. E o primeiro destes, em vossa opinião, será sempre Cellini, não?

— Senhora, o meu mestre conseguiu já superar o próprio Miguel Angelo.

— Se continuais, ides diminuir o meu ressentimento pelas suas ofensas...

— Oh, não deveis fazer caso da sua rudeza, Senhora. Os seus modos bruscos escondem a alma mais ardente e dedicada que possais imaginar. Mas Benvenuto tem um temperamento demasiado impaciente e fogoso. Imaginou que o queríeis insultar com tão longa espera...

— Ora, ora, uma malícia tão pequenina!... — exclamou a duquesa com a confusão fingida de uma criança mimalha.

— Mas, a falar verdade, quando o vosso mestre se fez anunciar ainda eu não estava pronta. Tudo o que fiz foi prolongar um bocadinho mais os penteados. Foi mal feito, vejo agora! Mas bem vedes como estou arrependida... E não sabia que também tínheis vindo — acrescentou ela com vivacidade.

— Sim, mas Cellini, Senhora, que não tem grande penetração, e que, de resto, enganaram, ignora que sois tão graciosa e tão boa como na verdade sois. Julga-vos perversa, terrível... de modo que numa criancice julgou ver uma ofensa.

— Acreditais que é assim? — continuou a duquesa, sem poder esconder totalmente um sorriso.

— Oh, perdoai-lhe, Senhora! Acreditai que se vos conhecesse havia de ajoelhar a vossos pés e pedir-vos perdão do seu erro.

— Ah, calai-vos, calai-vos. Pretendeis que eu comece desde já também a amá-lo? Não, não, prefiro continuar a querer-lhe mal; e para isso vou suscitar-lhe um rival.

— Será difícil, Senhora.

— Não, Ascânio, porque esse rival sois vós, o seu discípulo. Deixai-me prestar, assim, uma homenagem indirecta a esse grande génio que me detesta. Vós, cuja graça e talento inventivos Cellini tanto gaba, recusais pôr essa vossa poesia ao meu serviço? Uma vez que não partilhais das prevenções de vosso mestre contra a minha pessoa, dignar-vos-ei embelezá-la com a vossa arte?

— Senhora, tudo de que for capaz e tudo o que sou está às vossas ordens. Sois tão bondosa para comigo, informastes-vos ainda agora, com tanta solicitude, acerca do meu passado e das minhas esperanças, que vos estou já dedicado de alma e coração.

— Criança! Nada fiz ainda por vós, e não vos peço agora senão um pouco do vosso talento. Ora vejamos... Tendes na imaginação algum projecto para uma jóia prodigiosa? Tenho ali umas pérolas magníficas. Em que maravilhosa chuva desejais transformar-mas, meu gentil feiticeiro? Olhai, quereis saber uma ideia que me veio ainda agora, ao ver-vos tão pálido, estendido no leito e com a cabeça em abandono? Julguei ver um formoso lírio branco inclinado pela brisa. Pois bem! Fazei-me um belo lírio de pérolas e prata, para eu trazer sempre no seio — disse a sedutora, pousando levemente os dedos sobre o coração.

— Ah, Senhora, que bondade...

— Quereis saber, Ascânio, a maneira como podeis retribuir essa bondade de que falais. Prometei fazer de mim a vossa confidente e a vossa amiga, contando-me todas as vossas acções, projectos e desgostos... pois bem vejo que a tristeza vos abate. Prometei que vireis ter comigo sempre que tiverdes necessidade de ajuda ou de conselhos.

— Mas... é uma nova mercê que me concedeis, e não uma prova de reconhecimento o que me pedis!...

— Seja, mas prometeis?

— Ai de mim! Ontem ainda vo-lo teria podido prometer, Senhora, comprometendo-me ante a vossa generosidade a usar dela; mas hoje já ninguém poderá ajudar-me.

— Quem sabe!...

— Sei-o eu, Senhora!

— Ah, Ascânio, Ascânio! vós sofreis!... Bem vejo. Ascânio abanou a cabeça tristemente.

— Estais a dissimular com uma amiga, Ascânio. Não vos fica bem — prosseguiu a duquesa, pegando na mão do jovem e apertando-a docemente.

— O meu mestre deve estar inquieto, Senhora, e receio tornar-me importuno. Sinto-me completamente refeito. Consenti que me retire.

— Que pressa tendes de me deixar! Esperai ao menos que se vos prepare uma liteira. Não tenteis resistir: foram ordens do médico.

Ana chamou um criado, a quem deu as indicações necessárias; depois disse a Isabeau que lhe trouxesse as suas pérolas e algumas pedras preciosas. Quando ela as trouxe, entregou tudo a Ascânio.

— Vou restituir-vos agora a liberdade — disse ela — mas logo que estejais restabelecido, a primeira coisa de que vos ocupareis será do meu lírio, não é assim? Entretanto, ide pensando nele e logo que tenhais o desenho acabado, vinde mostrar-mo.

— Sim, Senhora Duquesa.

— E não quereis, Ascânio, que eu procure qualquer maneira de vos ser útil?! Vós prontificai-vos sempre com tão boa vontade a aceder aos meus desejos, e eu não havia de, pela minha parte, procurar maneira de realizar qualquer aspiração vossa?... Ora vejamos, Ascânio, que é que mais desejais? Na vossa idade, por mais que se comprima o coração, se desvie o olhar ou se apertem os lábios, há sempre algo a desejar. Bem pouco poder me atribuís se desdenhais do auxílio da vossa amiga e confidente!

— Eu sei, Senhora, que tendes todo aquele grande poder que, em verdade, mereceis. Mas nenhum poder humano podia vir em meu auxílio na situação desgraçada em que me encontro.

— Não importa, dizei! — retorquiu a duquesa — Exijo.

E adoçando logo a voz e o semblante, com uma graça cheia de sedução, exclamou:

— Suplico-vos.

— Ai de mim, Senhora, ai de mim! — murmurou Ascânio, cujo sofrimento trasbordava. — Ai de mim! mas, já que me falais com tanta bondade, e visto que a minha pronta partida vos vai esconder a minha confusão e as minhas lágrimas, vou obedecer-vos. Ontem, teria pedido a minha felicidade à duquesa, hoje, farei apenas uma confidência à mulher. Ontem, ter-vos-ia dito: «Amo Colomba, e sou bem feliz!...» Hoje, dir-vos-ei: «Colomba não me tem amor, e só me resta morrer!» Adeus, Senhora, lastimai a minha sorte!

Ascânio beijou precipitadamente a mão da Sr.a d'Etampes, muda e imóvel, e saiu.

«Uma rival! Uma rival! exclamou Ana, como se despertasse de um sonho. — Mas ela não o ama, e ele há-de amar-me, pois assim o quero!... Oh, sim! sim! Juro que há-de amar-me e que matarei Benvenuto.»

 

           ONDE SE PROVA QUE O FUNDO DA EXISTÊNCIA HUMANA É A DOR

Perdoem-nos os leitores a amarga misantropia deste título. Mas é que, em verdade, temos de confessar que o presente capítulo, tal como a vida, não tem outra unidade senão a da dor. A reflexão não é original, dirão, mas consola-nos como desculpa perante o leitor, que vamos, como Virgílio a Dante, conduzir de desespero em desespero.

Neste momento, todos os nossos amigos, a começar por Benvenuto e a acabar em Tiago Aubry, estão mergulhados na tristeza e no desalento. Pois durante este capítulo, vê-los-emos sofrer, pouco a pouco, a maré cheia da dor.

Vimos já como Cellini saíra de casa da duquesa muito preocupado com a sorte de Ascânio. De regresso ao Grand-Nesle, juro-vos que nem uma vez sequer pensou na cólera da Sr.a d'Étampes. Inquietava-o apenas a saúde do seu caro discípulo. Por isso, foi grande a sua alegria quando a porta se abriu dando passagem a uma liteira, de onde Ascânio saltou lesto, indo estreitar-lhe a mão e assegurar-lhe que se sentia tão bem como pela manhã ao levantar. Mas a fronte de Benvenuto voltou logo a carregar-se às primeiras palavras do discípulo, escutando com singular expressão de desagrado o que Ascânio lhe dizia:

— Mestre, devíeis reparar uma injustiça que cometestes devido a falsa interpretação. Um dia me agradecereis o que vos vou dizer. Enganastes-vos a respeito da Sr.a d'Étampes. Ela não vos odeia nem despreza. Pelo contrário: admira-vos e enaltece-vos; temos de concordar que haveis tratado com muita rudeza uma mulher e, mais a mais, duquesa. Mestre, a Sr.a d'Étampes não é apenas bela como uma deusa, é também boa como um anjo, modesta e entusiasta, simples e generosa, e tem tanto espírito como coração. Onde, esta manhã, vistes uma insolência ultrajante, não havia mais que infantil malícia. Por isso, não persistais no vosso injurioso desprezo, peço-vo-lo, tanto por nós, que não gostais de ser injusto, como por mim, a quem ela dispensou tão bondosos cuidados. Posso garantir que vos não será difícil fazer com que ela esqueça... Mas... nada dizeis, querido mestre... Abanais a cabeça... Ter-vos-ia eu ofendido?...

— Ouve, meu filho — respondeu Benvenuto com gravidade —, tenho-te dito muitas vezes que, em meu entender, há apenas no mundo uma coisa eternamente bela, eternamente jovem, eternamente fecunda, é a Arte. E no entanto, sei, ou melhor, suponho, que, para certas almas ternas, também o amor é um sentimento grandioso, profundo, capaz de fazer a felicidade de uma vida inteira, mas é raro. Que é geralmente o amor? O capricho de um dia, uma alegre associação em que reciprocamente duas pessoas se enganam, muitas vezes de boa fé. Deste amor troço eu habitualmente, bem sabes, Ascânio. Troço tanto das suas pretensões como da linguagem que usa. Mas não digo mal dele. No fundo, é até a espécie de amor a que mais me agrada, pois possui, em pequena escala, todas as doçuras e mistérios de uma paixão verdadeira e as suas feridas não são mortais. Comédia ou tragédia, ao fim de algum tempo só nos fica a recordação de uma espécie de espectáculo teatral. Além disso, as mulheres são seres encantadores mas, quanto a mim, não compreendem, em geral, senão essas pequenas fantasias do amor. Julgá-las capazes de mais é sempre um engano que nos fica caro. Por exemplo: Scozzone... se conseguisse entrar verdadeiramente na minha alma, ficaria assustada. Mas não; apenas a deixo adejar, e por isso está sempre alegre, canta, ri e é feliz. Acrescenta a isto, Ascânio, que os amores mutáveis têm todos um fundo comum, que é quanto basta ao artista: o culto da forma e a adoração da beleza pura. Não calunio o amor vulgar porque lhe pressinto algum mistério, no entanto rio-me dele. Mas, ai, Ascânio! há outros amores, porém, que me não despertam o riso; fazem-me estremecer; são amores terríveis, insensatos, impossíveis como sonhos.

«Valha-me Deus! — pensou Ascânio — terá ele sabido da minha louca paixão por Colomba?»

— Esses — prosseguiu Cellini —, nem dão prazer nem trazem felicidade, mas abrasam-nos inteiramente; são como vampiros que, lentamente, vão bebendo toda a nossa existência, devorando-nos a alma. Prendem-nos funestamente nas suas garras, donde não poderemos nunca mais arrancar-nos. Ascânio, Ascânio, teme tais amores! Vemos perfeitamente que são quimeras e que nada temos a ganhar com eles, e no entanto entregamo-nos de corpo e alma a eles, abandonando-lhe, quase com alegria, toda a nossa existência.

«É assim mesmo! Soube tudo!» disse Ascânio para consigo.

— Querido filho — prosseguiu Benvenuto — se ainda estás a tempo, quebra esses laços, que te acorrentariam para sempre. Sairás com marcas, mas ter-te-ás salvo.

— E quem vos disse que eu a amava? — perguntou o discípulo.

— Se a não amas, Deus seja louvado! — exclamou Benvenuto, que supôs que Ascânio negava, quando não fazia mais do que interrogar. — Mas nesse caso tem cuidado porque esta manhã percebi claramente que ela te ama.

— Esta manhã?!... A quem vos referis? Que quereis dizer?...

— A quem me refiro?! A duquesa d'Étampes.

— A Sr.a d'Êtampes?! — exclamou o discípulo, estupefacto. — Mas... enganais-vos, mestre, enganais-vos! Dissestes que a duquesa me tinha amor?!...

— Ascânio, tenho quarenta anos... vivi e sei muitas coisas. Pelo olhar que aquela mulher te lançava, pela maneira como soube aparecer-te, juro-te que te ama. E, pelo entusiasmo com que ainda agora a defendias, receio muito que tu a ames também. Se assim fosse, Ascânio, estarias perdido. Esse amor seria bastante para te consumir totalmente e, depois, deixar-te-ia, sem uma ilusão, sem uma crença, sem uma única esperança; e não te restaria mais que amares, por tua vez, como te haviam amado, com um amor peçonhento e fatal, levando a outros corações a mesma desolação que haviam posto no teu.

— Mestre — disse Ascânio — ignoro se a Sr.a d'Étampes se enamorou de mim, do que porém não tenho a menor dúvida é de que eu não amo a Sr.a d'Étampes.

O tom de sinceridade de Ascânio não tranquilizou Cellini em absoluto, pois pensou que o jovem poderia estar a enganar-se a si próprio quanto aos verdadeiros sentimentos do seu coração. Não voltou a abordar o assunto, mas nos dias que se seguiram olhava algumas vezes o discípulo com tristeza.

Aliás, Cellini parecia menos atormentado por causa de Ascânio que devido a qualquer preocupação pessoal. Perdera a costumada e franca alegria e nunca mais tivera um daqueles ditos espirituosos que criavam a boa disposição à sua volta. De manhã, fechava-se sempre no Pequeno pavilhão com janela para os jardins do Petit-Nesle, proibindo que alguém o fosse ali importunar.

Durante o resto do dia, trabalhava na gigantesca estátua de Marte, com o ardor de sempre. Mas já não se lhe referia com a mesma efusão. Era junto de Ascânio que o seu semblante se tornava mais sombrio. Dir-se-ia que a presença do discípulo, mau grado seu, o embaraçava. Parecia fugir de Ascânio como de um credor ou de um juiz. Em suma, adivinhava-se que uma grande dor ou uma paixão terrível se apoderara daquela alma vigorosa e a ia minando.

Ascânio, por sua parte, não parecia mais feliz. Estava persuadido, tal como o dissera à Sr.a dEtampes, que Colomba o não amava. O conde d'Orbec, que apenas conhecia de nome, era aos olhos do seu desespero e do seu ciúme, um jovem e elegante fidalgo, e a filha do preboste a noiva ditosa de um belo senhor que nem um minuto gastara a pensar no obscuro artista. Nem sequer podia acalentar essa vaga e fugitiva esperança que nunca abandona um coração amante pois cometera a imprudência de revelar à Sr.a dEtampes o nome da sua rival. Aquele casamento, que ela teria talvez o poder de evitar, seria agora certamente apressado com todas as suas forças. Ela perseguiria Colomba com todo o seu ódio. Sim: Benvenuto tinha razão. O amor daquela mulher era efectivamente terrível e mortal, mas o amor de Colomba devia ser aquele sentimento sublime e celeste de que o mestre falara primeiro; e era afinal a outro que estava reservada tanta felicidade. Ascânio sentia-se desesperar. Crera na amizade da duquesa d'Etampes, mas esse sentimento enganador era, afinal, um amor cheio de perigos. Confiara no amor de Colomba, e esse amor mentiroso não passava de uma indiferente amizade. Estava prestes a odiar aquelas duas mulheres, que tão mal haviam sabido corresponder a todos os seus sonhos, amando-o, cada uma, como ele desejaria ser amado pela outra.

Entregue ao seu desespero, nem mais pensou no lírio encomendado pela Sr.a d'Étampes; e, despeitado de ciúme, não quisera voltar ao Petit-Nesle, apesar das súplicas e censuras de Ruperta, a cujas mil perguntas nem se dava ao trabalho de responder. No entanto, às vezes arrependia-se das resoluções tomadas, resoluções cuja crueldade só ele sentia. Desejava então avistar-se com Colomba, mas... para pedir-lhe contas de quê? Das extravagantes visões que ele próprio tinha? Enfim, vê-la-ia, pensava, nos momentos de maior enternecimento. Confessar-lhe-ia, então, dessa vez, o seu amor, como um crime, e ela era tão boa que talvez o consolasse do seu sofrimento como de um infortúnio. Mas como justificar a sua ausência aos olhos da jovem?

Ascânio, entregue às suas ingénuas e dolorosas reflexões, ia deixando passar o tempo e não ousava tomar uma resolução.

Foi com receio e alegria que Colomba esperou por Ascânio no dia seguinte àquele em que Dona Perrine o fulminara com a terrível revelação. Mas foi em vão que a jovem contou horas e minutos, como também foi em vão que Dona Perrine se manteve à escuta. Ascânio, refeito a tempo do seu desmaio, teria podido aproveitar-se da benevolente permissão de Colomba, mas não foi com Ruperta bater as quatro pancadas combinadas à porta do Petit-Nesle. Que quereria isso dizer?

Isso significava, talvez, que Ascânio estava doente, quem sabe se a morrer... de qualquer modo, demasiado mal para poder fazer a visita. Pelo menos, foi isto o que pensou Colomba. Passou todo o dia ajoelhada no seu oratório, chorando e rezando; e quando acabou de rezar, reparou que chorava ainda. Assustou-se. Aquela ansiedade que lhe oprimia o peito foi para ela uma revelação. Havia efectivamente razão para receios, pois, em menos de um mês, Ascânio tornara-se de tal modo senhor dos seus pensamentos que já esquecia Deus, o pai e o próprio infortúnio.

Mas que importava isso naquele momento? Ascânio sofria a dois passos dali. Morria> talvez, sem que ela pudesse vê-lo! Não era ocasião para grandes argumentações, mas para chorar e rezar. Quando ele estivesse livre de perigo, então ela reflectiria.

Mas o dia seguinte foi bem pior. Perrine espiou a saída de Ruperta e, mal a viu fora de casa, precipitou-se na sua direcção, muito mais para ir abastecer-se de novidades que de víveris. Ora Ascânio não estava pior. Recusara-se simplesmente a ir ao Petit-Nesle e a dar sobre isso qualquer explicação a Dona Ruperta. Às repetidas perguntas desta respondia ele com um silêncio obstinado. Não restava às duas comadres mais do que simples conjecturas. A coisa ultrapassava as suas faculdades de compreensão.

Quanto a Colomba, não precisou de muito tempo para chegar à conclusão que se impunha: «Sabe tudo. Disseram-lhe que dentro de três meses serei a esposa do conde d'Orbec e não quer voltar a ver-me.»

A sua primeira reacção foi a de ainda querer mais ao seu apaixonado, pela sua cólera, e sorriu. Explique quem quiser esta secreta alegria de Colomba, o nosso papel é apenas o de referir os factos. Mas, bem depressa, à medida que reflectia, começou a querer mal a Ascânio por ele ter acreditado que ela aceitava tal casamento sem desespero. «Ele despreza-me» disse ela. Este suceder de indignação e enternecimentos tinha o seu perigo. Ia revelando a si mesmo um coração ingénuo. Colomba ia dizendo, de si para si, que nunca mais queria ver Ascânio, mas no íntimo da sua alma desejava ardentemente um encontro a fim de que ele se justificasse.

E a jovem sofria em sua consciência sensível como no seu amor mal compreendido.

Não era porém o de Colomba o único amor mal compreendido por Ascânio. Havia outro, mais poderoso e ainda mais impaciente por se lhe revelar, e que, surdamente, sonhava com a felicidade da mesma forma que o ódio sonha com a vingança.

A duquesa d'Etampes não acreditava, ou não queria acreditar, naquela paixão profunda de Ascânio por Colomba.

«Uma criança que não sabe o que quer — dizia ela —, que se quis apenas entreter com a primeira rapariga bonita que encontrou, e que se feriu com os desdéns de uma pequenina tola e vaidosa. O obstáculo apenas incitou o seu orgulho. Oh, quando ele sentir o que é um amor verdadeiro, um amor ardente e tenaz!... Quando ele souber que eu, a duquesa d'Etampes, eu, cujo capricho governa um reino... quando ele souber que eu o amo!... E é preciso que ele o saiba.»

O visconde de Marmagne e o preboste de Paris, por seu turno, sofriam no seu ódio, como Ana e Colomba no seu amor. Odiavam mortalmente Cellini. Marmagne ainda mais que o preboste. Por causa de Benvenuto, uma mulher desprezava-o e humilhava-o, forçando-o a correr graves riscos e a mostrar-se valente. De facto, antes da cena ocorrida no Palácio d Etampes, o visconde teria podido mandar apunhalar Benvenuto pelos seus esbirros; mas agora via-se obrigado a ir ele próprio atacá-lo em sua casa, e este simples pensamento causava um arrepio de medo a Marmagne; ora nenhum homem perdoa a quem quer que lhe faça sentir que não passa de um cobarde.

Deste modo, todos sofriam. Até Scozzone, a estouvada Scozzone. Já não ria, já não cantava, e não raro os seus olhos apareciam rasos de lágrimas. Benvenuto já não a amava, pois se Mostrava sempre frio, e até, às vezes, brusco com ela.

A pobre Scozzone acalentara sempre uma ideia fixa, que com o tempo se foi tornando monomania. Queria que Benvenuto a desposasse. Quando pela primeira vez foi a casa dele, julgando ir ser um brinquedo nas suas mãos, Benvenuto tratou-a como a uma mulher e não como a uma perdida, de modo que a pobre jovem sentiu-se subitamente elevada a seus próprios olhos por aquele respeito e aquelas atenções inesperadas; ao mesmo tempo, uma profunda gratidão pelo seu benfeitor e um orgulho ingénuo de se ver tão nobremente apreciada, dilataram-lhe o coração.

Depois, não por ordem mas a pedido de Cellini, consentira alegremente em servir-lhe de modelo, e, vendo-se reproduzida tantas vezes e tantas vezes admirada em bronze, em prata e em ouro, começara ingenuamente a atribuir a si própria metade do sucesso do mestre-ourives, uma vez que essas formas perfeitas e tão admiradas lhe pertenciam muito mais a ela do que ao mestre. De resto, corava sempre quando alguém elogiava a Benvenuto a pureza de linhas desta ou daquela figura. Assim acabou por persuadir-se, jubilosamente, que se havia tornado tão indispensável à fama e à glória do seu amado como à felicidade do seu coração.

Pobre criança! Mal ela sabia que, pelo contrário, jamais constituíra para o artista aquela alma secreta, aquela divindade abscôndita que todo o artista criador invoca e, graças à qual, cria realmente. Mas, como Benvenuto parecia reproduzir as suas atitudes e as belezas do seu corpo, imaginava, de boa fé, que Cellini lhe devia tudo, de modo que, pouco a pouco, fora-se-lhe convertendo em certeza a esperança de que, depois de a ter elevado de cortesã a amante, acabaria por elevá-la também à categoria de esposa.

Como não sabia dissimular, confessara francamente as suas pretensões a Cellini. Este, depois de a escutar com grave semblante, respondera:

— Vamos ver.

A verdade, porém, é que ele teria preferido voltar ao Castelo de Santo Angelo, ainda que para se evadir tivesse de quebrar novamente a perna. Não que desprezasse a sua querida Scozzone. Amava-a terna e até ciosamente, como vimos. Mas, acima de tudo, adorava a Arte, de modo que a sua verdadeira e eterna amante era e seria antes de mais nada a escultura. Se casasse, como poderia continuar aquela alegre boémia tão propícia ao artista? Nas mãos apreensivas de um pai de família o cinzel não seria certamente o mesmo. E, de resto, se devesse desposar todos os seus modelos, já há muito teria incorrido em poligamia.

«Quando deixar de amar e modelar Scozzone — dizia consigo Benvenuto —, procurar-lhe-ei qualquer moço honrado mas bastante curto de vista para não poder, simultaneamente, olhar o passado e encarar o futuro. Assim, não verá mais que uma linda mulher e o dote nada feio que lhe darei. Terá assim satisfação plena aquela fúria que tem Scozzone de usar burguesmente o nome de um marido.» Estava, pois, Benvenuto convencido de que o que Scozzone desejava era principalmente um marido, fosse quem fosse.

Entretanto, ia deixando a ambiciosazinha embalar-se à vontade com as suas quimeras. Mas, depois da instalação no Grand-Nesle, as ilusões de Scozzone começaram a sofrer vários abalos. A jovem notou que a sua presença já não era tão necessária à vida e à obra de Cellini como havia pensado. A sua alegria e vivacidade já não conseguiam dissipar a nuvem de tristeza que ensombrava a fronte de Cellini. Por outro lado, este começara a modelar uma Hebe em cera sem que fosse Scozzone a posar. E, coisa estranha e dolorosa! A pobre jovem tentara alguns requebros com Ascânio na frente do mestre, sem que este demonstrasse o menor sinal de ciúme ou cólera. Era espantoso! Teria pois de renunciar aos seus mais belos sonhos, resignando-se a ser a pobre rapariga humilhada de outrora?

Quanto a Pagolo, se alguém estiver interessado em sondar os recessos tenebrosos daquela alma, diremos que o aprendiz jamais se mostrara mais sombrio e taciturno do que então.

Pensam acaso os leitores que pelo menos Tiago Aubry, o jovial estudante, escapou a este contágio de tristeza? Pois não; não escapou. Também ele sofria. Simone, depois de o ter esperado imenso tempo em vão, no domingo do cerco de Nesle, recolhera furiosa ao domicílio conjugal e nunca mais quisera, fosse a que pretexto fosse, receber o impertinente. É verdade que este, para se vingar, deixara de vestir da alfaiataria do marido da caprichosa. No entanto, o honesto alfaiate sentira com isso uma enorme satisfação, pois que, se Tiago Aubry gastava rápida e prodigiosamente os seus trajos (menos os bolsos), é-nos necessário acrescentar que tinha por princípio de economia jamais os pagar. Ora, uma vez que a influência de Simone deixou de contrabalançar as faltas de pagamento, o egoísta do alfaiate achou que a honra de vestir Tiago Aubry não correspondia ao prejuízo que sofria vestindo-o de graça.

Desta maneira, o nosso pobre amigo achou-se de repente sem carinhos e sem vestimenta. Mas, como vimos, Aubry não era rapaz que se deixasse embolorecer na melancolia. E ainda bem. Depressa achou uma encantadora consolaçãozinha, chamada Gervásia. Mas Gervásia estava eriçada de toda a espécie de princípios, que seriam muito morais, mas que reputava absurdos e ridículos. Assim, escapava-se-lhe a cada momento, e ele dizia mal da sua vida, incapaz de fixar a caprichosa. Deixara quase de comer e beber, tanto mais que o seu infame taberneiro, primo do seu alfaiate infame, já não queria fiar-lhe nem mais um tostão.

Sentiam-se, pois, desgraçados todos aqueles cujos nomes figuram nestas páginas, a começar no rei, muito apreensivo sobre se Carlos V aceitaria ou não a passagem pela França, e a acabar em Dona Perrine e Dona Ruperta, ambas desoladas com o fim das suas comadrices. Se, como Júpiter antigo, os nossos leitores dispusessem do direito (e da chumbada) de poderem ouvir todos os queixumes e aspirações dos mortais, eis aqui o plangente coro que lhes chegaria aos ouvidos:

Tiago Aubry: «Se Gervásia deixasse, ao menos, de se me rir nas barbas!...»

Scozzone: «Se conseguisse fazer sentir alguns ciúmes a Benvenuto!...»

Pagolo: «Se Scozzone começasse a detestar o mestre!...»

Marmagne: «Se eu fosse tão feliz que pudesse surpreender esse Cellini quando ele estivesse só!...»

A Sr.a d'Êtampes: «Se ao menos Ascânio soubesse que eu o amo!...»

Colomba: «Se eu pudesse vê-lo um só instante, o tempo de me justificar!...»

Ascânio: «Se ela se justificasse!...»

Benvenuto: «Se ao menos eu tivesse a coragem de confessar a minha tortura a Ascânio!...»

Todos: «Que tormento! Que tormento!»

 

         A ALEGRIA NÃO É MAIS QUE O INTERREGNO DA DOR

Todas aquelas aspirações tão veementemente formuladas teriam a sua realização antes do fim da semana. Mas estava destinado que tal sucesso tornaria ainda mais tristes e desgraçados aqueles que formulavam semelhantes desejos. É a lei da vida: toda a alegria contém em si um germe de dor.

Gervásia deixou de rir-se de Tiago Aubry, mudança esta (não sei se se lembram) ardentemente desejada pelo estudante. É que este achara finalmente o liame dourado de prender a caprichosa. Foi um belo anel cinzelado pelo próprio Benvenuto e representando duas mãos unidas.

É preciso que se saiba que, depois do dia do combate, Tiago Aubry começou a nutrir crescente amizade pelo artista florentino, cuja franqueza e soberana energia muito admirava. Coisa maravilhosa! quando Benvenuto falava, Tiago Aubry nunca o interrompia. Olhava-o e escutava-o com respeito, coisa que os seus mestres jamais tinham obtido dele. Admirava os seus trabalhos com um entusiasmo que, se não era muito esclarecido, era pelo menos muito sincero e muito caloroso. Por outro lado, a sua lealdade, coragem e bom humor tinham agradado a Cellini. No jogo da péla era um adversário de força, mas não de tanta que ganhasse ao mestre-ourives. A mesa, bebendo, não ficava aquém mais do que uma garrafa. Em suma: o artista e ele haviam-se tornado grandes amigos, e Cellini, generoso, porque sabia a sua riqueza inesgotável, forçara-o certo dia a levar aquele anel tão prodigiosamente cinzelado que, à falta de maçã, teria tentado Eva e lançado a discórdia nas bodas de Tétis e Peleu.

No dia seguinte àquele em que o anel passou das mãos de Tiago Aubry para as de Gervásia, esta tomou um ar grave e apaixonado. O estudante imaginou que já era sua. Enganou-se, pobre doido! Ele é que já era dela.

Scozzone, consoante o seu desejo, conseguiu acender no coração de Benvenuto uma chispa de ciúme. Foi da seguinte maneira.

Uma noite em que os seus requebros e gentilezas se tinham uma vez mais malogrado ante a gravidade impassível do mestre, tomou ela, por sua vez, uma expressão solene.

— Benvenuto — disse —, receio que estejais completamente esquecido dos vossos compromissos para comigo...

— Que compromissos, querida mocinha? — respondeu Benvenuto, olhando para o tecto como a procurar ali qualquer explicação para aquela censura.

— Não me haveis prometido cem vezes desposar-me?...

— Não me recordo — disse Benvenuto.

— Não vos recordais?

— Não; creio que apenas vos respondi: «Vamos ver.»

— E então? Já vistes tudo? -Já.

— Que foi que vistes?...

— Que ainda sou demasiado jovem para ser, por enquanto, outra coisa que teu amante, Scozzone. Falaremos disto mais tarde.

— E eu não sou suficientemente néscia, Senhor, para me ir contentando com uma promessa tão vazia enquanto espero...

— Faz como entenderes, mocinha; e se tens muita pressa, não percas tempo.

— Mas que tendes, afinal, contra o casamento? Que mudança poderia ele trazer à vossa existência? Faríeis a felicidade de uma pobre rapariga que vos ama, é tudo.

— As mudanças que traria à minha existência, Scozzone! — disse Cellini com gravidade. — Vês essa candeia cuja chama já pálida nos           alumia tão frouxamente? Pois olha... agora ponho-lhe este apagador por cima... Vê que escuridão ficou. Pois o casamento é como este apagador. Volta a acender a candeia, Scozzone, detesto a escuridão.

— Entendo — exclamou Scozzone com volubilidade, e desfazendo-se em lágrimas. — Usais um nome demasiado ilustre para o dardes a uma jovem obscura que vos entregou a alma, a vida, tudo o que tinha, tudo o que podia dar, e que está pronta a tudo suportar por vós, que não respira senão por vós, que não ama senão a vós!...

— Tudo isso eu sei, Scozzone, e podes ficar certa de que não poderia estar-te mais grato do que estou.

— Quem aceitou de bom grado e alegrou quanto pôde a vossa solidão? Quem, sabendo-vos ciumento, jamais olhou as belas cavalgadas de archeiros e sargentos de armas? Quem fechou sempre os ouvidos a todas as propostas que nunca deixou de receber, mesmo em vossa casa?...

— Mesmo aqui?!... — interrompeu Cellini.

— Sim, mesmo aqui; ouvis?

— Scozzone — exclamou Benvenuto — não foi nenhum dos companheiros que ousou ultrajar o seu mestre a esse ponto, suponho!...

— Desposar-me-ia, se eu quisesse — prosseguiu Scozzone, atribuindo a cólera de Cellini a um renascimento de amor.

— Falai, Scozzone! Quem é o insolente?... Não é Ascânio, espero...

— Há um que me tem dito cem vezes: «Catarina, o mestre engana-vos. Ele nunca vos desposará, a vós, que sois tão boa e tão linda. É demasiado orgulhoso para o fazer. Oh, se ele vos amasse como eu vos amo, ou se vós quisésseis amar-me como o amais a ele!...»

— O nome! o nome do traidor! — exclamou Benvenuto furioso.

— Mas é que eu nem sequer o escutava — prosseguiu Scozzone maravilhada. — Pelo contrário, todas as suas doces palavras se perdiam, e eu ameacei-o mesmo de vos contar tudo se continuasse. E não amava senão a vós; estava cega, não sabia apreciar as suas belas palavras nem os seus olhos tão doces. Vá! tomai o vosso ar indiferente, fingi que não me acreditais... Nem por isso o que vos contei deixa de ser pura verdade.

— Não te acredito, Scozzone — disse Benvenuto, percebendo que se quisesse conhecer o none do seu rival teria de utilizar um processo totalmente oposto ao que estava a seguir.

— Quê?! não me acreditais?! — exclamou Scozzone desconcertada.

— Não.

— Pensais então que vos minto?

— Suponho que tentas enganar-me.

— Com que então, quereis significar que já ninguém poderá amar-me!...

— Não quis dizer isso.

— Mas pensai-lo?...

Benvenuto sorriu, convencido de que acabava de achar maneira de fazer falar Catarina.

— E contudo amam-me; esta é a verdade — continuou Scozzone. Benvenuto fez novo gesto de dúvida.

— Amam-me como nunca fui por vós amada; mais do que poderíeis vir a amar-me ouvis bem, Senhor?...

Benvenuto desatou a rir.

— Ainda gostaria de saber — disse ele — quem é esse belo médor.

— Não se chama Médor — respondeu Catarina.

— Como se chama então? Amadis?...

— Também não se chama Amadis. Chama-se...

— Galaor?...

— Chama-se Pagolo, já que tanto quereis saber.

— Ah! Ah! Ah! É «Monsenhor» Pagolo!... — murmurou Cellini.

— Sim é «Monsenhor» Pagolo — continuou Scozzone, magoada com o tom depreciativo com que Benvenuto tinha pronunciado o nome do seu rival. — Um honesto rapaz, de boa família, com uma razoável situação, sossegado, religioso, e que daria um óptimo marido.

— É essa a tua opinião, Scozzone?

— Sim, é.

— E nunca lhe deste qualquer esperança?

— Nem sequer lhe dava ouvidos. Que tola fui!... Mas de agora em diante...

— Tens toda a razão, Scozzone, é preciso que lhe dês ouvidos e responder-lhe.

— Que dizeis?!...

— Digo-te que deves prestar-lhe atenção quando te falar de amor e não o repelir. O resto é comigo.

— Mas...

— Fica descansada, é cá uma ideia minha.

— Ora ainda bem! mas não vades castigar tragicamente aquele pobre diabo, que parece estar a confessar os pecados quando diz: «Amo-vos.» Pregai-lhe uma boa partida, mas sem usardes a espada. Peço-vos perdão para ele.

— A minha vingança há-de agradar-te, Scozzone, pois vai reverter em teu proveito.

— Em meu proveito?

— Sim, porque graças a ela vais poder realizar um dos teus mais ardentes desejos.

— Que quereis dizer, Benvenuto?

— É segredo.

— Oh, se soubésseis a cara que ele faz quando se quer pôr muito terno... — prosseguiu a estouvada rapariga, incapaz de permanecer triste mais de cinco minutos. — Com que então, mauzão, sempre vos importais que façam a corte à vossa pobre Scozzone? Ainda lhe tendes um bocadinho de amor?...

— Ainda, mas não deixes de obedecer-me à letra quanto à tua atitude futura para com Pagolo. Lembras-te das instruções que te dei?

— Oh, ficai descansado! sei representar quando é preciso. Não tarda muito que me volte a dizer: «Então, Catarina, continuais a ser a cruel de sempre?» Responderei então: «Que mais quereis que vos diga, Sr. Pagolo?» Mas isto num tom um bocadinho zangado e um bocadinho encorajante... compreendeis? Quando ele vir que a minha severidade acabou, julgar-se-á o vencedor do mundo. Mas... que lhe fareis então, Benvenuto? Quando começareis a vingar' -vos dele? Demorará muito? Será divertido? Rir-nos-emos?

— Riremos — respondeu Benvenuto.

— E amar-me-eis sempre?

Benvenuto depôs na fronte um beijo afirmativo, isto é, a mais sábia das respostas, pois ele responde a tudo e não responde a nada. A pobre Scozzone não duvidou sequer que o beijo de Cellini era o princípio da sua vingança.

 

Também o visconde de Marmagne realizou o seu desejo de encontrar Benvenuto só. Vejam como a coisa se passou.

Aguilhoado pela cólera do preboste, excitado pelo desprezo da duquesa d'Étampes e, principalmente, picado pela espora da sua avareza, o visconde, decidido a ir atacar com a ajuda dos dois esbirros o leão, no seu antro, tinha escolhido para tal o dia de Santo Elói, padroeiro da corporação dos ourives, em que o atelier devia estar deserto. Caminhava, pois, ao largo do cais, de cabeça erguida, coração palpitante, seguido a dez passos pelos seus dois valentões.

— Ora aqui vai um belo senhor à conquista de alguma dama — disse alguém a seu lado. — O aspecto heróico é para a dama, os esbirros para o marido...

Marmagne voltou-se, pensando que era algum amigo quem lhe dirigia a palavra, mas apenas viu um desconhecido, que seguia o mesmo caminho, e a quem, na sua preocupação, não havia notado.

— Aposto que acertei, meu fidalgo — prosseguiu o desconhecido, passando do monólogo ao diálogo. — Aposto a minha bolsa contra a vossa, sem mesmo lhe saber o conteúdo, que ides atrás de uma aventura de amor. Oh, nada digais, que em amor a discrição é um dever sagrado. Quanto a mim, sou Tiago Aubry, estudante, e vou a uma entrevista com a minha mais-que-tudo, Gervásia Philipot, uma linda moça, mas de uma virtude terrível. No entanto, aqui para nós, consegui vencê-la apenas com um anel. É verdade que era uma jóia sem preço, um trabalho maravilhoso do cinzel de Benvenuto Cellini. Sim, nem mais nem menos, do grande Cellini!

Até a este ponto, o visconde de Marmagne mal tinha prestado atenção às confidências do impertinente palrador, evitando encorajá-lo com a menor resposta, mas ao ouvir o nomeCellini mudou imediatamente de tenção.

— Um trabalho de Benvenuto Cellini?! Que diabo! é um presente demasiado principesco para um estudante...

— Oh, deveis compreender, caro barão... Sois barão, conde ou visconde?...

— Visconde — disse Marmagne, mordendo os lábios com a impertinente familiaridade do estudante, mas desejando saber mais qualquer coisa.

— Deveis compreender, caro visconde, que eu não ia comprá-lo. Não! sou apreciador, mas não gasto dinheiro nessas bagatelas. Foi Benvenuto que quis retribuir-me a ajuda q'he lhe prestei no domingo passado quando tirou o Grand-Nesle ao preboste.

— Sois, portanto, um amigo de Cellini? — perguntou Marmagne.

— O seu mais íntimo, visconde, o que é para mim uma glória. A nossa amizade é para a vida e para a morte. Decerto que também o conheceis, visconde... Não?

— Conheço.

— Podeis gabar-vos. É um génio sublime, não achais, meu caro? Perdoai que vos diga, meu caro», mas é maneira de falar; aliás, creio que também sou fidalgo... Pelo menos, minha mãe afirmava-o a meu pai sempre que este lhe batia. Pois, como vos ia dizendo, sou adnirador, confidente e irmão do grande Benvenuto Cellini e, por conseguinte, também amigo dos seus amigos e inimigo de seus inimigos. Sim, porque ao meu sublime mestre ourives não faltam inimigos. Primeiro, a duquesa d'Étampes e o preboste de Paris, um velho pedante.

E depois, um certo Marmagne, um grande espirra-canivetes, que talvez conheçais, e que segundo dizem, quer apoderar-se do Grand-Nesle. Ah, com seiscentos diabos! há-de ser bem recebido!...

— Com que então Benvenuto já sabe das suas pretensões? — perguntou Marmagne, que começava a interessar-se grandemente na conversa.

— Preveniram-no, mas... caluda! Não se diz nada, que é para que o dito Marmagne receba o correctivo que merece.

— Nesse caso, e segundo o que acabais de me dizer, Benvenuto está precavido?... — continuou o visconde.

— Precavido?! Começa porque Benvenuto está sempre preparado para o que der e vier... Na sua pátria, esteve não sei quantas vezes para ser assassinado e, graças a Deus, sempre conseguiu escapar.

— E que precauções é que ele tomou?

— Ora! Não foi contratar nenhuma guarnição de esbirros, como esse velho poltrão do preboste. Nada disso! Pelo contrário: a esta hora está ele sozinho no Grand-Nesle, visto que todos os companheiros se foram divertir para Vanvres. Tínhamos até combinado jogar hoje uma partida de péla, eu e o meu caro Benvenuto, mas surgiu a concorrência da Gervásia e, como muito bem compreendeis, preteri o meu grande Benvenuto Cellini.

— Nesse caso, irei substituir-vos — disse Marmagne.

— Isso, isso! Ide, que fazeis uma obra meritória. Dizei-lhe, caro visconde, que o seu amigo Tiago Aubry o visitará esta noite. Três pancadas com certa força... já sabeis... é claro, por causa desse trangalhadanças de Marmagne, que deve estar para lhe pregar alguma... Conheceis esse visconde de Marmagne?

— Não.

— Ainda mal, pois poderíeis dar-me os seus sinais.

— E para quê?

— Para lhe propor um pequenino encontro à paulada. Não sei bem porquê, meu caro, mas detesto esse tal Marmagne, sem nunca o ter visto. Creio que se o apanho um dia a jeito, lhe dou uma boa sova de pau. Ah, eis-nos nos Agostinhos; desculpai, tenho de vos deixar. Mas... a propósito, meu caro, como vos chamais?

O visconde afastou-se, como se não tivesse ouvido a pergunta.

— Ah! Ah! — exclamou Tiago Aubry, vendo-o afastar. — Ao que parece, desejamos manter o incógnito, caro visconde. É o que se chama acto de cavalaria, da autêntica! Como quiserdes, caro visconde, como quiserdes.

E Tiago Aubry, de mãos nos bolsos e bamboleando-se, como de costume, começou a assobiar uma estudantina enquanto se dirigia para a rua da Gervásia.

Quanto ao visconde de Marmagne, continuou o seu caminho em direcção ao Grand-Nesle.

De facto, e tal como dissera Tiago Aubry, Benvenuto estava só. Ascânio fora sonhar para qualquer sítio, Catarina visitar uma amiga com Dona Ruperta e os artífices estavam para Vanvres, a festejar o Santo Elói.

O mestre achava-se no jardim, trabalhando no modelo de barro da sua gigantesca estátua de Marte, cuja cabeça colossal dominava os telhados do Grand-Nesle, podendo ser vista do próprio Louvre. O pequeno Jehan, que naquele dia estava de guarda à porta, enganado pe'a maneira de bater de Marmagne, pensou que fosse um amigo e mandou-o entrar com os seus dois esbirros.

Se Benvenuto não trabalhava, como Ticiano, sempre com a couraça afivelada, fazia-o pelo menos como Salvador Rosa, com a espada ao lado e a escopeta à mão. Marmagne viu, assim, que não ganhara grande coisa em vir de surpresa, pois deparava com um homem bem armado.

O visconde procurou dissimular o melhor que pôde as intenções cobardes que o traziam. Quando Cellini, em tom peremptório que exigia rapidez na resposta, lhe perguntou com que objectivo se apresentava em sua casa, Marmagne disse:

— Nada tenho a tratar convosco. Sou o visconde de Marmagne, secretário do rei, de quem trago um mandato concedendo-me o uso de uma parte do Grand-Nesle. E ao dizer isto, o visconde mostrou um papel que elevou acima da cabeça. — Venho apenas — prosseguiu — tomar algumas disposições para mandar adaptar ao meu gosto todos os aposentos e salas que passarei a habitar.

E dizendo isto, Marmagne, seguido sempre pelos dois esbirros, avançou para a porta do jardim.

Benvenuto pegou na escopeta que, como dissemos, lhe estava ao alcance da mão, e de um salto achou-se no alto do patamar, frente à porta.

— Alto lá! — gritou com voz indescritível.

E estendendo um braço em direcção a Marmagne, acrescentou:

— Um passo mais e sois um homem morto!

O visconde paralisou, conquanto, depois do seu exórdio, se lhe pudesse imaginar maior coragem.

Mas é que há efectivamente homens com o dom de se mostrarem formidáveis. Do seu olhar enfurecido, do seu gesto e atitude implacáveis, emana não sei que terror, comparável ao que o leão infunde em certos momentos de cólera. O ar que respiram gera o pavor em todas as direcções. Sente-se logo a sua força, a distância. Vendo-os bater com o pé, cerrar os punhos, carregar as sobrancelhas e dilatar as narinas, os mais decididos hesitam. A fera a quem se ataca a cria, basta-lhe eriçar o pêlo e respirar com ruído para que se trema. Mas os homens de que estamos a falar são mil vezes mais temíveis, são o próprio terror. Os valentes reconhecem neles símiles seus e, a despeito de secreta emoção, vão direitos a eles. Mas os tímidos, os fracos e os cobardes tremem e recuam.

Ora, Marmagne, como possivelmente já se reparou, não era um valente. Benvenuto inspirava-lhe um medo horrível.

Assim, logo que o visconde ouviu a voz ameaçadora do ourives e que o viu estender o braço em sua direcção, compreendeu que a escopeta, a espada e o punhal de que estava munido representavam a sua morte e a dos seus esbirros.

De mais, percebendo que o seu mestre estava ameaçado, o pequeno Jehan armara-se de uma lança.

Marmagne compreendeu que tinha perdido a cartada e que podia dar-se por feliz se conseguisse retirar são e salvo do vespeiro onde caíra.

— Está bem, está bem, Senhor ourives — disse Marmagne. — Nós só queríamos saber se estáveis ou não disposto a obedecer às ordens de Sua Majestade. Mas desprezais essas ordens, recusais-vos a cumpri-las!... Está bem! Dirigir-nos-emos a quem saberá fazer-vo-las executar. Mas não penseis que vos daremos a honra de nos batermos convosco... Boas-tardes!

— Boas-tardes! — disse Benvenuto entre duas boas gargalhadas. — Jehan, acompanha estes senhores.

O visconde e os dois esbirros, envergonhadíssimos, deixaram então o Grand-Nesle, intimidados por um homem e conduzidos por uma criança.

Este triste fim foi pois o desfecho daquele desejo do visconde: «Ah, se eu pudesse encon-trar-me a sós com Benvenuto!...»

Como o destino enganara mais dolorosamente o nosso valente visconde, nas suas aspirações, do que Tiago Aubry e Scozzone, que ainda não conheciam a ironia da sua sorte, o visconde estava furioso.

«A Sr.a d'Étampes tinha razão — dizia Marmagne para consigo —, tenho mas é que seguir o seu conselho: quebrar a espada e afiar o punhal. Este homem é tal como dizem, pouco paciente e nada fácil. Li, efectivamente, nos seus olhos que se desse um passo mais era homem morto. Mas há sempre uma desforra. Podes-te ir preparando, mestre Benvenuto, podes-te ir preparando...»

Contava, é claro, com os seus dois valentões, gente experimentada e que não desejava mais que ganhar honestamente o seu dinheiro matando ou fazendo-se matar. Retirando-se, os dois esbirros haviam apenas obedecido às ordens do seu patrão. Tanto um como outro prometeram a Marmagne que resolveriam o caso numa simples emboscada. E, como o visconde para salvar a honra lançava as culpas do insucesso aos esbirros, anunciou-lhes que teriam de haver-se sozinhos na emboscada, pois não os acompanharia. Era, de resto, o que eles mais desejavam ouvir.

Em seguida, recomendando-lhes a maior discrição acerca do projecto, dirigiu-se a casa do preboste e disse-lhe ter julgado efectivamente mais prudente, para afastar suspeitas, retardar o castigo de Benvenuto até um dia em que ele transportasse prata do rei ou alguma obra preciosa por qualquer rua deserta como costumava. Julgar-se-ia então que Benvenuto fosse assassinado por ladrões.

Resta-nos agora ver como os desejos da duquesa d'Etampes, os de Ascânio e os de Cellini se converteram também em dolorosa realidade.

 

         UMA CORTE

Entretanto, Ascânio havia terminado o desenho do lírio encomendado pela duquesa e, fosse por curiosidade, fosse pela atracção que exercem sobre os infelizes os que os lastimam, apressara-se a levá-lo ao Palácio d'Étampes. Eram duas da tarde; a duquesa estava em seu trono, rodeada por uma autêntica corte. Tal como no Louvre, em relação a Cellini, havia ordem no Palácio d'Etampes para que Ascânio fosse imediatamente conduzido até junto da duquesa. Depois de o instalarem atenciosamente numa sala de espera, foram prevenir a Sr.a d'Étampes. Esta estremeceu de alegria ao pensar que o belo jovem ia poder vê-la em todo o esplendor da sua grandeza, e deu algumas ordens em voz baixa a Isabeau, que lhe trouxera o recado. A aia foi logo ter outra vez com Ascânio e, tomando-lhe a mão, conduziu-o sem dizer palavra através de um corredor até que, soerguendo um reposteiro, empurrou-o suavemente para a frente. Ascânio achou-se assim no salão de recepção da duquesa, mesmo por detrás do trono da Sr.a d'Étampes, que, adivinhando-lhe a presença mais pelo estremecimento de toda a sua pessoa do que pelo ruído abafado do reposteiro, deu-lhe a bela mão a beijar por cima do seu ombro que, no lugar onde se encontrava, Ascânio roçava quase com os lábios.

A bela duquesa estava, como dissemos, rodeada por uma verdadeira corte. A sua direita, sentava-se o duque de Medina Sidónia, embaixador de Carlos V. O Sr. de Montbrion, preceptor de Carlos d'Orleães, segundo filho do rei, estava à sua esquerda; o resto do grupo fazia círculo aos pés da duquesa.

Juntamente com as principais personagens do reino, grandes militares, homens de Estado, Magistrados e artistas, encontravam-se também alguns chefes do partido protestante, que a duquesa protegia em segredo. Todos aqueles grandes senhores se tinham feito cortesãos da favorita. Era uma reunião animada e deslumbrante. As conversas sucediam-se quase sempre com espirituosos e malévolos remoques contra Diana de Poitiers, amante do delfim e inimiga numero um da duquesa d'Etampes. Mas Ana não tomava parte nesta guerra de escarninhos; contentava-se com atirar, de vez em quando, frases rápidas e agudas, como esta:

— Vamos lá, Senhores, acabem com essa má-língua a respeito de Diana. Olhem que "Endimião» pode zangar-se!...

Ou então:

— Deixem lá essa pobre Sr.a Diana. Quando eu nasci, casava-se ela!...

Tirando estes gracejos com que espicaçava a conversa geral, a Sr.a d'Étampes fala apenas com os seus dois vizinhos. Fá-lo a meia voz mas de maneira animadíssima. Não conversa, no entanto, tão baixo que não possa ser ouvida por Ascânio, que se sente cada vez mais ofuscado entre tão ilustre companhia.

— Sim, Sr. de Montbrion —- dizia confidencialmente a bela duquesa ao seu vizinho da esquerda —, é preciso que nós façamos do vosso discípulo um príncipe admirável. Será ele o verdadeiro rei do futuro, bem sabeis. Toda a minha ambição é a favor dessa criança, a quem tanto quero, e a quem preparo, presentemente, uma realeza independente para o caso de Deus nos levar o pai. Não importa que o irmão mais velho suceda no trono, esse pobre Henrique II. Nós, que desejamos um rei francês, deixar-lhe-emos a Sr.a Diana e Paris, e levaremos connosco o nosso Carlos. O verdadeiro espírito de Paris é ele. E a corte será onde eu estiver, Sr. de Montbrion. Mudarei o curso do Sol, levaremos connosco os grandes pintores, como Primatício, e os poetas maravilhosos, como Clemente Marot, que se agita ali ao fundo sem dizer palavra. Ou me engano muito, ou aquela agitação significa que está ansioso por nos dizer versos acabados de compor. Todos estes artistas são, no fundo, mais vaidosos que interesseiros, mais ávidos de glória que de dinheiro. Irão atrás de quem lhes souber lisonjear infatigavelmente o génio e não de quem possuir maiores riquezas. E aquele atrás de quem forem será sempre grande, pois até um pobre burgo saberiam tornar célebre com a sua presença e as suas obras. O delfim só aprecia torneios. Pois bem: que fique com as lanças e as espadas, que nós ficaremos com as penas e os pincéis. Ah, podeis estar descansado, Sr. de Montbrion, não deixarei Diana, essa rainha em expectativa, levar jamais a melhor comigo. Que espere pacientemente que o acaso e o tempo lhe ponham a coroa na cabeça. Entretanto, terei eu obtido uma segunda realeza. Que vos parece o ducado de Milão? Poderíeis estar ali bem perto dos vossos amigos de Genebra. Sim, porque sei muito bem que as novas doutrinas da Alemanha vos agradam bastante... Psiu! Falaremos nisso mais tarde. Dir-vos-ei algumas coisas que hão-de surpreender-vos. Porque se teria a Sr.a Diana tornado a protectora dos católicos? Tanto pior! Ela protege, e eu protesto; é muito simples.

E, com um gesto soberano e um olhar profundo, a duquesa deu assim por finda a sua conversa com o preceptor de Carlos d'Orleães, que ficou assarapantado com o que acabava de ouvir. Ainda quis responder, mas Ana havia-se já voltado para o duque de Medina Sidónia.

Como dissemos, Ascânio podia ouvir perfeitamente tudo o que a duquesa dizia.

— Então, Senhor Embaixador — perguntou ela —, o imperador sempre se decide ou não a atravessar a França? É o melhor que ele tem a fazer. Se fosse por mar, seu primo Henrique VIII apoderar-se-ia dele, mas, se escapasse aos Ingleses, cairia infalivelmente nas mãos dos Turcos. Por terra, os príncipes protestantes opor-se-iam à sua passagem. Não lhe resta portanto outra alternativa senão passar pela França. Isto, é claro, se não quiser renunciar ao seu projecto de castigar a rebelião dos seus caros compatriotas Gandeses. Sim, porque o nosso grande imperador Carlos V é um burguês de Gand. Bem o mostrou, de resto, na maneira desrespeitosa como tratou Sua Majestade Real. E é a lembrança disso que o torna agora tão tímido e circunspecto, Sr. de Medina. Oh, nós compreendemos o que ele sente. Receia que o rei de França vingue o prisioneiro da Espanha, e que o prisioneiro de Paris acabe de pagar o resgate devido pelo cativo do Escorial. Só Deus sabe como os seus receios são infundados e injustos. Se o imperador é incapaz de compreender a nossa lealdade cavalheiresca, já devia, pelo menos, ter ouvido falar nela.

— Decerto, Senhora duquesa — disse o embaixador —, nós conhecemos muito bem a lealdade de Francisco I, quando é ele sozinho a resolver; mas receamos...

— Receais os conselheiros, não é assim? — interrompeu a duquesa, radiante. — Eu sei' eu sei! Um parecer dado por uma linda boca, um conselho em forma zombeteira e espirituosa podiam muito bem pesar no espírito do rei. Compete-vos, porém, Senhor Embaixador, prover a que isso se faça em vosso proveito, tomar as precauções que se impõem. Suponho que o imperador vos deu plenos poderes ou, pelo menos, qualquer assinatura em branco onde podem firmar-se muitas coisas em poucas palavras. Nós sabemos como isso se faz. Estudámos diplomacia e, com a nossa acentuada predilecção por negociações, chegámos mesmo a pedir ao rei que nos nomeasse embaixatriz. Ah, eu sei bem que havia de custar a Carlos V o entregar uma porção do seu império pela liberdade da sua pessoa ou para garantir a sua inviolabilidade. Por outro lado, a Flandres é um dos belos florões da sua coroa; é toda a herança da sua avó materna, Maria de Borgonha, e custa bastante renunciar, com dois traços, ao património dos seus antepassados, quando esse património, depois de ter constituído um grão-ducado, poderia transformar-se numa pequena monarquia. Mas... de que estou eu a falar, meu Deus! eu, que detesto a política, pois dizem que desfeia as mulheres! É certo que, de vez em quando, abordo de passagem algumas questões de Estado, mas, se Sua Majestade insiste em conhecer mais a fundo o meu pensamento, suplico-lhe que me poupe a tais sensaborias e furto-me às suas perguntas deixando-o presumir o que lhe não digo. Dir-me-eis, talvez, pois sois muito hábil diplomata e conheceis os homens, dir-me-eis que são precisamente essas palavras atiradas para o ar que se insinuam e germinam em espíritos como o do rei, e que essas palavras, que se julgariam levadas pelo vento, têm quase sempre mais influência que uma longa argumentação escutada a custo. É possível, Senhor Duque de Medina, é bem possível; mas eu sou apenas uma simples mulher ocupada em adornos e outras bagatelas, de modo que podeis entender muito melhor do que eu todas essas graves questões. Mas até o leão pode precisar da formiga, e a barca salva a tripulação. Estamos na Terra para nos entendermos, Senhor Duque, o que é preciso é sabermos fazê-lo.

— Se vós quisésseis, Senhora — disse o embaixador —, tudo se faria rapidamente...

— Quem dá hoje, recebe amanhã — prosseguiu a duquesa, sem responder directamente. — A mim, a minha intuição de mulher levar-me-á sempre a induzir Francisco I a acções grandes e generosas; mas às vezes o instinto volta as costas à razão. Temos que pensar também no interesse... no interesse da França, naturalmente. Mas eu tenho inteira confiança em vós, Sr. de Medina, de modo que saberei pedir-vos conselho. Enfim, acho que o imperador fazia bem em confiar na palavra do rei e arriscar-se à viagem pela França.

— Ah, se vós estivésseis por nós, Senhora, não hesitaria ele...

— Mestre Clemente Marot — disse a duquesa, parecendo não ter ouvido a exclamação do embaixador e acabando bruscamente a conversa — Mestre Clemente Marot, tendes por acaso algum madrigal ou melodioso soneto para nos dizer?

— Senhora — respondeu o poeta —, madrigais e sonetos são flores naturais que brotam sob os vossos passos e desabrocham ao sol dos vossos belos olhos. Assim, acabo de achar uma oitava só com olhá-los.

— A sério, mestre?... Pois, nesse caso, dizei-ma! — disse a duquesa. — Ah, Senhor Preboste, sede bem-vindo, e perdoai-me por vos não ter visto mais cedo. Tendes notícias do vosso futuro genro e nosso amigo conde d'Orbec?

— Senhora, sim — respondeu o preboste —, manda-me dizer que deve antecipar o seu regresso, de modo que em breve o veremos, espero.

Um suspiro meio abafado fez estremecer a Sr.a d'Étampes, que todavia se não voltou para quem o soltara.

— Será bem-vindo por todos. Ah, visconde de Marmagne — exclamou a duquesa, vendo-o — já achastes a bainha do vosso punhal?

— Senhora, não; mas já descobri uma pista, e sei agora como posso encontrá-la.

— Felicidades, então, Senhor Visconde, felicidades. Pronto, mestre Clemente? ansiamos todos por escutar-vos.

Ouviu-se um murmúrio de aprovação e o poeta, com voz afectada, a declamar:

Sabei que o vale de Tempe celebrado Por quantos bebem água de Castália Com suas flores, seu clima tãl temperado. Já não fica, Senhores, na Tessália. Que Júpiter dali o tem mudado Para as formosas terras desta Gália. E mais, sabei também que pouco alterado Seu nome Tempe foi em língua sália, Pois só d'Étampes podia chamar-se Tal paraíso, e a Ana dedicar-se.

 

A Sr.a d'Étampes aplaudiu com as mãos e com o sorriso, e logo todas as mãos e todos os lábios aplaudiram também.

— Vejo — disse ela, sem interromper o sorriso e as palmas — que Júpiter se não esqueceu de Píndaro ao transportar Tempe para França.

Dito isto, a duquesa levantou-se, seguindo-lhe todos o exemplo. Não era sem razão que esta mulher se considerava a verdadeira rainha de França. Foi também com um gesto de rainha que se despediu de todos os presentes, e foi como a uma rainha que todos a saudaram ao retirar-se.

— Ficai — sussurrou ela a Ascânio. Ascânio obedeceu.

Mas, quando todos saíram, já não foi uma rainha desdenhosa e altiva, mas uma mulher apaixonada e humilde que o jovem viu à sua frente.

Nascido na obscuridade, criado longe do mundo, na penumbra quase claustral do atelier, Ascânio, que raramente acompanhara o mestre até aos palácios, já se sentia tonto e deslumbrado no meio de tanta luz, tanto movimento e tão animadas conversas. Causou-lhe vertigens ouvir a duquesa falar com tanto à-vontade, ou melhor, com tanta garridice, de projectos tão graves, parecendo dominar, com uma simples frase, os destinos dos reis e a sorte dos reinos. Como se fosse a própria Providência, aquela mulher acabava de talhar a sorte de cada um, dando a todos a sua porção de mágoas e alegrias, recerrando cadeias com a mesma mão com que deixava cair coroas e palmas. E esta alta soberana, tão altiva para com os grandes fidalgos que a lisonjeavam, ali estava na sua frente, não só com o doce olhar de uma mulher que ama, mas também na atitude suplicante da escrava receosa e submissa. Num abrir e fechar de olhos, Ascânio, de simples espectador tornara-se a principal personagem em cena.

Aliás, a duquesa, na sua garridice, havia calculado e sabido avolumar habilmente todo este efeito. Ascânio notou todo o ascendente que aquela mulher estava a tomar, contra sua vontade, não sobre o seu coração, mas sobre o seu espírito, e como uma criança que era armou-se de frieza e severidade para esconder a perturbação. Pareceu-lhe também ter visto perpassar como uma sombra entre si e a duquesa, a imagem branca e luminosa da sua casta Colomba.

 

         AMOR E PAIXÃO

— Senhora — disse Ascânio à duquesa —, pedistes-me um lírio, lembrai-vos? Ordenastes-me que vos trouxesse o desenho logo que o acabasse. Terminei-o esta manhã; ei-lo aqui.

— Temos tempo, Ascânio — disse a duquesa com um sorriso e voz de sereia. — Sentai-vos. E então, gentil enfermo, como vai o vosso ferimento?

— Estou completamente curado, Senhora — respondeu Ascânio.

— Curado no ombro; mas... aqui? — disse a duquesa, pousando a linda mão sobre o coração do jovem, num gesto gracioso e casquilho.

— Suplico-vos, Senhora, que esqueçais todas essas loucuras com que tive o mau gosto de importunar Vossa Senhoria.

— Oh, meu Deus! que quer dizer esse ar constrangido, essa fronte enrugada, essa voz severa?... Toda esta gente vos enfadava, não é, Ascânio? Pois eu... ah, eu odeio-os! Mas temo-os... Como ansiava por estar a sós convosco!... Não vistes com que desembaraço os despedi?

— Tendes razão. Senhora; ainda agora me sentia deslocado em tão nobre companhia, eu, que sou um pobre artista e que vim apenas para vos mostrar um desenho.

— Valha-vos Deus, Ascânio! — continuou a duquesa, abanando a sua bonita cabeça. — Bem frio e reservado vos mostrais com uma velha amiga! Outro dia fostes tão expansivo e tão gentil!... Porquê esta mudança, Ascânio? Decerto por qualquer sermão do vosso mestre, que não me pode ver... Que lhe respondestes? Vá. Ascânio, sede franco. Ele falou-vos de mim, não falou? Disse-vos que era perigoso confiar na minha pessoa... não disse? E que eu... vos detestava, talvez...

— Disse-me que vós me tínheis amor, Senhora — respondeu Ascânio olhando fixamente a duquesa.

Ana, por instantes, ficou interdita; na sua alma entrechocaram-se mil pensamentos diversos. É verdade que desejava que Ascânio conhecesse o seu amor, mas teria querido mais algum tempo a fim de o ir preparando e destruir pouco a pouco, sem parecer interessada, a sua paixão por Colomba. Agora, que a emboscada por ela urdida estava descoberta, teria que lutar abertamente e vencer a batalha em plena luz do Sol. Num segundo, decidiu-se:

— Pois bem — disse ela —, amo-te. Será um crime? Será uma falta, sequer? Amar ou odiar dependerá da nossa vontade? Por mim, nunca virias a conhecer o meu amor, pois Para que havia eu de to confessar, se amas a outra?... Mas aquele homem tudo te revelou! Mostrou-te o meu coração; e afinal fez bem, Ascânio. Olha-o bem, pois acharás nele uma adoração tão profunda que não poderá deixar-te insensível. E agora, ouve bem, Ascânio, é Necessário que correspondas ao meu amor.

Ana d'Étampes, natureza superior e forte, desdenhosa por penetração, ambiciosa por tédio, tinha tido, até então, diversos amantes mas nem um só amor. Seduzira o rei, o almirante Brion surpreendera-a, o conde de Longueval agradara-lhe; mas em todas estas aventuras a cabeça havia desempenhado o papel de coração. Agora, que ela achara esse amor verdadeiro e jovem, terno e profundo, tantas vezes desejado e sempre desconhecido, uma outra mulher lho disputava. Ah! tanto pior para essa mulher, pois a paixão de Ana seria implacável. Empregaria no seu amor toda a decisão e violência habituais da sua alma. Tal mulher decerto ignorava ainda que fatalidade representava para si o ter por rival a duquesa d'Étampes, que desejava o seu Ascânio apenas para si e que, com um simples olhar, uma palavra, um gesto, podia despedaçar tudo o que se interpusesse entre si e o objecto do seu amor. O destino estava traçado; dali em diante, a ambição e a beleza da favorita do rei iriam apenas servir o seu amor por Ascânio e o seu ciúme de Colomba.

Pobre Colomba, naquele momento curvada sobre o tear, sentada junto à roda ou de joelhos, no oratório!...

Em presença de um amor tão franco e tão de temer, Ascânio sentia-se, ao mesmo tempo, fascinado, arrastado e receoso. Compreendia agora as palavras de Benvenuto; não se tratava de um mero capricho. Faltava-lhe, não a força, que luta, mas a experiência, que sabe iludir para submeter. Aquele rapaz simples pensava que lhe bastaria evocar a lembrança da jovem e ingénua Colomba, pronunciar o seu nome, para dissuadir o amor da duquesa. Ignorava que as rivalidades e os ciúmes só servem para exacerbar paixões como a da Sr.a d'Etampes.

— Ora vá, Ascânio! — prosseguiu a duquesa, dominando-se ao ver que o jovem se calava, decerto assustado com as palavras dela — esqueçamos por hoje o meu amor, apenas revelado por uma imprudência vossa. Pensemos apenas em vós. Oh, se vos amo é mais por vosso bem que por meu, juro-vos. Quero iluminar a vossa vida, tal como vós iluminastes a minha. Sois órfão, deixai-me ser como vossa mãe. Ouvistes, decerto, o que eu disse a Montprion e ao Medina Sidónia, e pensastes que era ditado pela minha ambição pessoal. É verdade, sou ambiciosa, mas apenas por vós. Quereis saber há quanto tempo sonho com um ducado independente e governado por um francês no coração da Itália? Desde que vos amo. Se eu chegar a ser rainha nessas terras, quem pensais que será o verdadeiro rei? Vós. Por vós, mudarei de império e de reino. Ah, não me conheceis, Ascânio, não sabeis de que sou capaz. Deveis pressentir que vos digo toda a verdade, que vos comunico todos os meus projectos. É agora a vossa vez de me fazerdes as vossas confissões. Dizei-me quais são os vossos sonhos para eu os realizar, quais as vossas paixões para que eu as sirva.

— Senhora, quero ser tão franco e leal como vós, quero dizer-vos também a inteira verdade. Nada desejo, com nada sonho, e nada quero além do amor de Colomba.

— Mas se ela te não ama!... Não foi o que me dissestes?...

— Outro dia desesperava já, é certo. Mas hoje... quem sabe... — Ascânio baixou os olhos e a voz, acrescentando:

— Vós amais-me deveras, sei-o bem.

A duquesa ficou aterrada ante a revelação daquela grande verdade, adivinhada pelo instinto da paixão. Seguiu-se um momento de silêncio, que bastou à duquesa para se refazer da surpresa.

— Ascânio — disse ela — não falemos hoje mais das coisas do coração. Já vo-lo pedi, e volto a fazè-lo. Ora vejamos: para vós, homem, o amor não é tudo, suponho. Nunca desejastes honras, riquezas, a glória?

— Ah, se as desejo!... Há um mês, e ardentemente — respondeu Ascânio, sempre arrastado, mau grado seu, pelo mesmo pensamento.

Seguiu-se nova pausa.

— Amais a Itália? — prosseguiu Ana, a custo.

— Senhora, sim — respondeu Ascânio. — Há por lá laranjeiras em flor à sombra das quais é doce conversar!... Lá, o ar azul rodeia, acaricia, belos rostos cheios de serenidade.

— Oh, levar-te até essas terras, ter-te só para mim! Ser tudo para ti, e seres para mim tudo! Meu Deus, meu Deus! — exclamou a duquesa, também irresistivelmente dominada pela sua paixão.

Mas, receando assustar ainda Ascânio, conteve-se, procurando mudar de assunto:

— Creio que antes de mais nada, o que amais é a Arte....

— Antes de mais nada, amo! Amar!... Oh, não sou eu, mas o meu mestre Cellini, quem se dá inteiro às suas criações artísticas. O grande, o admirável, o sublime artista, é ele. Eu sou apenas um pobre aprendiz, é tudo. Segui-o até França, não para ganhar riquezas, nem para alcançar fama, segui-o apenas porque lhe tenho afeição e me é impossível separar-me dele, que, naquela época, era tudo para mim. Eu não tenho vontade pessoal nem força independente. Se me fiz ourives foi para lhe agradar, foi porque ele o desejava; e se me fiz cinzelador, foi porque ele é um entusiasta de cinzelagens finas e delicadas.

— Está bem — disse a duquesa —, escuta. Viver em Itália todo poderoso, quase um rei, proteger os artistas (Cellini em primeiro lugar), dar-lhe bronze, prata e ouro para ele cinzelar, fundir, modelar além de tudo isto, amar e ser amado... dizei Ascânio, não é um belo sonho?...

— Senhora, é o paraíso, se for Colomba a amar-me e a ser amada por mim.

— Sempre Colomba, sempre Colomba! — exclamou a duquesa — Pois seja! falemos de Colomba, já que o seu nome e a sua pessoa teimam obstinadamente em reaparecer na nossa conversa e nas nossas almas. Uma vez que não podemos libertar-nos dela, pois está incessantemente nos teus olhos e no teu coração, falemos dela abertamente e sem hipocrisias. Ela não te ama, sabe-lo bem.

— Oh, Senhora, já o não sei...

— Mas... se ela vai desposar outro...!?

— Talvez que o pai a force... — respondeu Ascânio.

— O pai força-a!... E crês tu que, se me tivesses o amor que lhe tens se eu estivesse no seu lugar, haveria no mundo qualquer força qualquer vontade ou poder capaz de nos separar um do outro?... Oh, deixaria tudo, fugiria de tudo... e correria para ti, a dar-te o meu amor, a minha honra e a minha vida! Ah, não! ela não te ama digo-te eu, e queres saber agora ainda outra coisa?... Tu, tu também a não amas!

— Eu?! Eu?! não amo Colomba?!... Creio que foi isto que dissestes...

— Não a amas. Enganas-te a ti mesmo. Na tua idade, toma-se por amor o que é apenas necessidade de amar. Se me tivesses visto primeiro que a ela, tenho a certeza que era a mim que amarias, e não a Colomba. Oh, quando penso que poderias amar-me!... Ah, não não! Vale mais que sejas tu a escolher-me. Não conheço essa Colomba: será bela, será pura, será tudo o que quiseres, mas essas jovens não sabem amar. Julgas que a tua Colomba te diria alguma vez o que acabas de ouvir àquela de quem desdenhas?... A sua vaidade, a sua reserva, a sua honra não lho permitiriam. Mas o meu amor é simples e fala como é. Tu desprezas-me, achas que esqueço o meu papel de mulher, e tudo isto porque não dissimulo contigo. Um dia, quando conheceres melhor o que é o mundo, quando te tiveres enfronhado na vida a ponto de lhe sentires as dores, então tomarás consciência da tua injustiça e sentirás admiração pela minha atitude. Mas eu não pretendo ser admirada, mas amada por ti, Ascânio. Repito-te que se te não amasse tanto, ser-me-ia fácil ser falsa, calculista e sedutora contigo. Mas amo-te demasiado para querer seduzir-te. Quero que sejas tu próprio a dares-me o teu coração, e não eu a roubar-to. A que conduzirá esse teu amor por Colomba? Responde.

Apenas ao teu sofrimento, meu bem-amado. Mas eu... eu posso ajudar-te em tantas coisas!... Já sofri pelos dois; quem sabe se Deus te descontará os meus sofrimentos!... Riqueza, poder, experiência, tudo ponho a teus pés. Acrescentarei a minha vida à tua, e poupar-te-ei a toda a espécie de enganos e de corrupções. Para atingir o triunfo um artista precisa muitas vezes de envilecer-se e rastejar. Comigo a teu lado, nada disso terás a temer; e elevar-te-ei cada vez mais, serei os degraus da tua ascensão. Graças a mim, permanecerás sempre o altivo, o nobre, o puro Ascânio.

— E Colomba? e Colomba, Senhora? Não é ela também uma imaculada pérola?...

— Meu amigo, acredita — disse a duquesa, passando da exaltação à melancolia —, a tua cândida e inocente Colomba tornar-te-ia a existência árida e monótona. Sois demasiado celestiais um para o outro. Deus não criou os anjos para se unirem entre si, mas para melhorarem os maus.

A duquesa dizia estas coisas numa tão eloquente entoação, e punha tanta sinceridade na voz, que, bem contra sua vontade, Ascânio imbuiu-se de um terno sentimento de piedade.

— Senhora, vosso tão grande amor por mim enternece-me e emociona-me. Mas é ainda melhor amar!

— Que grande verdade disseste, Ascânio! Mais quero aos teus desdéns que às mais doces palavras do rei. Oh, amo pela primeira vez! pela primeira vez, juro-te!

— E o rei? Não o amais então Senhora?

— Não. Não é ele o meu senhor, o possuidor da minha alma.

— Mas ele... ele ainda vos ama!

— Deus meu! — murmurou a duquesa, olhando Ascânio fixamente e retendo as mãos do jovem entre as suas. — Deus meu! Serei tão ditosa que sintas ciúme do rei?... Ouve bem. Fui até agora, para ti, a duquesa rica, nobre, poderosa, oferecendo-te reinos, tesouros e poder. Agradar-te-ia mais a mulher simples e solitária, afastada do mundo, com um singelo vestido branco e uma flor campestre nos cabelos? Agradar-te-ia mais assim? Di-lo, e deixaremos Paris, o mundo, a corte. Refugiar-nos-emos em qualquer recanto perdido da tua Itália, debaixo dos altos pinheiros de Roma, ou perto da tua encantadora baía napolitana. Estou pronta: partamos. Oh, Ascânio, meu amor! lisonjearia o teu orgulho sacrificando-te um amante coroado?

— Senhora — disse Ascânio, que, mau grado seu, sentia fundir-se-lhe o coração à chama de tão veemente amor —, Senhora! o meu coração é demasiado orgulhoso, demasiado exigente. Não poderíeis dar-me também o passado.

— O passado!... Ah, como os homens sabem ser cruéis! o passado!... E deve uma desgraçada responder pelo seu passado, quando foram quase sempre os acontecimentos e as coisas mais fortes do que ela que originaram esse passado?... Supõe que uma tempestade ou um turbilhão te levava agora para Itália... Daqui a dois ou três anos, quando voltasses, poderias querer mal a Colomba, que hoje tanto amas, só por ter obedecido a seus pais desposando o conde d'Orbec?... Querer-lhe-ias mal por causa da sua própria virtude? Castigá-la-ias por ter obedecido a um dos mandamentos do Céu? Pois bem: supõe agora que ela nem sequer te conhecia ainda... supõe que, esmagada pelo sofrimento, desesperada, esquecida por um momento de Deus, tinha querido fazer uma ideia desse paraíso que lhe fecharam, e que se chama amor... Supõe, sim, que num momento de delírio amou alguém que não era o seu marido, que ela não podia amar... que entregou a sua alma... Aos teus olhos, uma tal mulher perdeu a sua dignidade, não perdeu? Jamais poderá aspirar à felicidade do teu amor, porque já não possui o passado para dar em troca do teu coração. Oh, volto a repetir, não pode haver nada mais injusto nem mais cruel!

— Senhora...

— Quem te diz que não é essa a minha história? Ouve o que te digo, e crê no que te afirmo. Repito-te que sofri já duplamente. Pois bem: Deus perdoa a essa mulher; só tu não és capaz de perdoar. Não compreendes que há mais valor em nos levantarmos do abismo onde caímos do que passar perto dele sem o ver, porque a venda da felicidade nos tapa os olhos? Oh, Ascânio, Ascânio! Julguei-te melhor que os outros porque eras mais jovem e mais belo...

— Senhora!...

— Estende-me a tua mão Ascânio, e eu saberei, de repente, elevar-me do fundo do abismo até ao teu coração. Queres? Amanhã terei abandonado o rei, a corte e o mundo. Oh, o amor dá-me forças para tudo! Mas não pretendo fazer-me valer mais do que sou, pois afinal era bem pouco o que imolava ao teu amor. Todos esses homens não valem um só olhar dos teus. Mas, se queres um conselho, deixa-me conservar a minha autoridade e prosseguir nos meus projectos a teu e meu respeito. Serás grande; vós, os homens, passais sempre pelo amor para chegardes à glória. Cedo ou tarde, sempre vos há-de sorrir a ambição. Quanto ao amor do rei, não te preocupes. Saberei fazer inclinar para outra o seu coração, permanecendo senhora do seu espírito. Escolhe, pois, Ascânio. Preferes ser poderoso comigo, e graças a mim, ou que eu me torne humilde por teu amor? Olha, ainda não há muito, viste bem como eu me sentava nesse trono, e como os mais poderosos da corte estavam a meus pés. Pois senta-te agora tu no meu lugar, que eu tomarei o lugar deles. Oh, como me sinto bem a teus pés. Ascânio!... Que felicidade é ver-te, que doçura olhar-te!... Empalideces, Ascânio?!... Ah, se tu quisesses dizer-me apenas que ainda poderias vir a amar-me... um dia... mais tarde, muito mais tarde!...

— Senhora! Senhora! — exclamou Ascânio, escondendo a cabeça entre as mãos e fechando simultaneamente olhos e ouvidos. A vista e a entoação de sereia fascinavam-no.

— Não me chames assim, nem mesmo Ana — disse a duquesa, afastando as mãos do jovem. — Chama-me Luísa. É também o meu nome, mas ainda nunca ninguém o usou para comigo; será, portanto, um nome só para ti. Luísa! Luísa!... Não achas Ascânio, que é um nome bem doce?

— Ainda conheço outro mais doce — murmurou Ascânio.

—Ah, Ascânio, tem cautela! — exclamou a leoa ferida. — Se também tu pretendes fazer-me sofrer, posso chegar a odiar-te tanto como te amo!

— Senhora — respondeu o jovem, assaz perturbado —, confundis-me a razão, transtornais-me a alma. Deliro?... Terei febre?... Sonho?... Perdoai-me se vos disse palavras duras, foi para ver se desperto. Vejo-vos a meus pés, bela, adorada, autêntica rainha! Tais tentações não podem surgir senão para perdição das almas. Dissestes que estáveis num abismo, mas em lugar de sairdes dele só me arrastais também. Ah, não submetais a minha fraqueza a tal prova!

— Não há a prova, nem sonho, nem tentação. Há apenas que te amo Ascânio, e que vislumbro para nós uma realidade deslumbrante. Amo-te, Ascânio, Amo-te!

— Hoje, amais-me, mas um dia, arrependida deste amor, não me perdoaríeis o que trouxestes à minha vida nem o que eu houvesse tirado à vossa.

— Ah! não me conheces — exclamou a duquesa — se me julgas tão fraca que possa arrepender-me. Olha, queres uma prova?

E Ana correu para uma escrivaninha, sobre a qual havia tinta, papel e penas, escrevendo a pressa algumas palavras.

— Pois bem! — disse ela — duvida ainda, se ousas. O jovem pegou no papel e leu:

 

Ascânio, amo-te; segue-me para onde eu for, ou deixa-me seguir-te para onde quer que vás.

                 Ana d'Heilly.

 

— Oh, mas não pode ser, Senhora!... O meu amor seria como uma desonra para vós.

— Uma desonra?! — exclamou a duquesa. — Que significa isso para mim? Sou demasiado orgulhosa, e o meu orgulho é a minha virtude.

— Ah, mas eu sei de uma virtude mais doce e mais santa — disse Ascânio, apegando-se desesperadamente à recordação de Colomba.

Ferida em pleno peito, a duquesa levantou-se, fremente de indignação.

— Sois uma criança cruel, Ascânio — disse ela em voz entrecortada. — O meu maior desejo era evitar-vos sofrimentos, mas vejo agora que só a dor vos poderá ensinar a viver. Para mim voltareis, Ascânio, ferido, sangrando e com o coração despedaçado. Sabereis então apreciar-me melhor e quanto valia a vossa Colomba. Mas eu perdoar-vos-ei, porque vos amo. Até lá, hão-de passar-se coisas terríveis! Até breve!

E a Sr.a d'Étampes saiu, transtornada pelo ódio e pelo amor, não se lembrando que deixava em poder de Ascânio aquelas duas linhas que escrevera num momento de delírio.

 

           AMOR, SONHO

Logo que Ascânio deixou a duquesa, toda a poderosa influência que aquela mulher exercia se dissipou, como por encanto, e o jovem viu claro dentro de si e à sua volta. Lembrou-se de ter dito que, se a duquesa d'Étampes o amava, também Colomba poderia amá-lo. Esta intuição maravilhosa ganhava corpo e causava-lhe uma alegria doida, mas via bem quão mal-avisado andara em confiar tal pensamento à duquesa. Se a alma honesta e recta do nosso jovem se pudesse decidir pela dissimulação, tudo se teria salvo, mas assim o que fez foi apenas incitar a temível duquesa ao ataque. Dali para diante tinha, pois, que contar com uma guerra tanto mais terrível quanto era certo que Colomba seria a única alvejada.

Contudo, esta cena palpitante e perigosa que acaba de passar-se entre Ana e Ascânio teve o condão de insuflar ao jovem não sei que exaltação e que confiança em si próprio. O seu espírito, embriagado com o espectáculo a que acabava de assistir, e com os próprios esforços, exercitara-se na iniciativa e na audácia, de modo que, logo ali, tomou esta decisão: havia de saber até onde podia aspirar o seu coração; sondaria a alma de Colomba, custasse o que custasse, nem que estivesse condenado a deparar ali com a mais terrível indiferença. Se Colomba realmente amasse o conde d'Orbec, para que resistir ao amor da duquesa? Deixá-la fazer o que quisesse de uma existência repelida e desolada. Tornar-se-ia ambicioso, sombrio e mau, mas que importava?... Urgia era acabar de uma vez com todas as dúvidas, penetrar com passo resoluto até ao âmago do seu destino.

Ascânio tomou esta decisão enquanto caminhava ao longo do cais, olhando o sol, que, numa apoteose de ouro e damascos, descia ao longe, para lá da negra Torre de Nesle. Chegado ao palácio, sem mais tardar nem hesitar, escolheu algumas jóias e foi, resolutamente, bater as quatro pancadas à porta do Petit-Nesle.

Por sorte, Dona Perrine não estava longe. Admirada e cheia de curiosidade, foi logo abrir; mas ao ver o aprendiz, pareceu-lhe que devia acolhê-lo friamente:

— Ah sois vós, Sr. Ascânio? Que desejais?

— Desejo, minha boa Dona Perrine, mostrar imediatamente estas jóias à Senhorinha Colomba. Está no jardim?

— Sim, na sua alameda. Mas não vades tão depressa, jovem!

Ascânio, que não se esquecera do caminho, percorria-o rapidamente, sem mais se lembrar da governanta.

«Creio que o melhor — disse a matrona para consigo, ao mesmo tempo que parava — é ficar-me por aqui, e deixar Colomba escolher livremente as suas compras e os presentes. Não convém que eu apareça, pois é mais que provável que escolha também algo para mim.

Chegarei apenas quando tiver acabado, e nessa altura é evidente que me ficará mal recusar. É isso mesmo, fiquemos aqui; não importunemos tão belos corações.»

Como se vê, a governanta era forte em delicadeza.

Havia dez dias que Colomba já não perguntava ao seu coração se era Ascânio o senhor absoluto do seu pensamento. A inexperiente e pura Colomba ignorava ainda o que fosse o amor, mas o amor trasbordava já do seu coração. Censurava a si própria o prazer que fruía com aqueles sonhos, desculpando-se, no entanto, com a ideia de que não voltaria a ver Ascânio, nem teria a consolação de se justificar a seus olhos.

Passava agora todas as tardes naquele banco, onde o vira sentar-se a seu lado, e ali, falava-lhe, escutava-o, concentrando toda a sua alma na evocação dos momentos passados. Mais tarde, quando as sombras se adensavam e a voz de Dona Perrine impunha a retirada, a linda sonhadora regressava ao palácio a passos lentos e, caindo em si, recordava então, mas só então, as ordens do pai, o conde d'Orbec, e o casamento que se aproximava. Cruéis eram também as suas insónias, mas não o bastante para dissiparem o encanto das belas visões ao anoitecer.

Naquela tarde, como de costume, entregava-se Colomba ao prazer de reviver a hora deliciosa que ali passara junto de Ascânio, quando, erguendo os olhos, soltou um grito.

Ascânio estava na sua frente, contemplando-a em silêncio.

Achava-a mudada, mas ainda mais bela. A palidez e a melancolia casavam-se bem com o seu rosto ideal. Parecia ainda mais etérea. Ascânio, vendo-a mais encantadora do que nunca, voltou por momentos às modestas apreensões que o amor da Sr.a dEtampes havia dissipado. Como poderia jamais amá-lo uma tão celeste criatura?

Estavam frente a frente, aqueles dois jovens admiráveis que tanto tempo havia se amavam sem o dizerem, e que já tanto se tinham feito sofrer um ao outro. Era evidente que iria agora anular-se num minuto o espaço que os separava, e que cada um tinha percorrido separadamente nos seus sonhos. Podiam agora dar-se todas as justificações e, de coração para coração, eclodiriam, num primeiro transporte de alegria, todos os seus sentimentos dolorosamente reprimidos até então.

Mas eram demasiado tímidos para isso e, embora a emoção de se voltarem a ver os traísse mutuamente, foi só ao fim de algum tempo que as suas almas de anjos se uniram.

Colomba, muda e ruborizada, levantara-se de um ímpeto. Ascânio pálido de emoção, parecia reprimir com ambas as mãos o pulsar do seu coração.

Acabaram por começar a falar ao mesmo tempo; ele para dizer: «Perdão, Senhorinha, havíeis-me concedido trazer-vos algumas jóias...»; e ela: «Vejo com alegria que vos refizestes completamente do ferimento, Sr. Ascânio...»

Interromperam-se ao mesmo tempo mas, embora as suas falas tivessem sido simultâneas, entenderam-nas perfeitamente. E Ascânio encorajado pelo sorriso involuntário que o incidente provocou na jovem, prosseguiu um pouco mais seguro de si.

— Tão bondosa sois que ainda vos lembrais de que fui ferido?

— Dona Perrine e eu ficámos muito admiradas e inquietas por não vos voltarmos a ver.

— O meu desejo era não mais voltar.

— E porquê?

Neste ponto decisivo da conversa, Ascânio foi obrigado a apoiar-se a uma árvore; em seguida, reunindo todas as suas forças e coragem disse, com voz ofegante:

— Agora, posso confessar-vo-lo: eu amava-vos.

— E agora já não?...

Este grito involuntário de Colomba teria dissipado todas as dúvidas a quem quer que fosse mais experiente que Ascânio. Este viu apenas reanimarem-se um pouco as suas esperanças.

— Agora... ai de mim, já não! — prosseguiu ele — pois medi bem a distância que me separa da noiva ditosa de um nobre conde...

— Ditosa?!... — interrompeu Colomba, com um sorriso ingenuamente amargo.

— Pois quê?!... Dar-se-á o caso que não ameis o conde, santo Deus?!... Oh, falai! Não é digno de vós?

— É rico e poderoso, e a sua posição é muito superior à minha. Mas... já o vistes?

— Não, e receei sempre informar-me a seu respeito. Qualquer coisa me dizia que ele era jovem e formoso, e que vos agradava.

— É mais idoso que meu pai, e causa-me medo — exclamou Colomba, escondendo o rosto com as mãos, num gesto de repulsa que não pôde dominar.

Louco de alegria, Ascânio caiu a seus pés, de mãos postas, pálido, com as pálpebras semi-cerradas, mas dardejando através delas um olhar sublime de felicidade, e brincando-lhe nos lábios descorados um sorriso inefável que alegraria o próprio Deus.

— Que tendes, Ascânio? — perguntou Colomba assustada.

— O que tenho?! — exclamou o jovem, achando no excesso da sua alegria a audácia que a dor lhe havia negado. — Tenho que te amo, Colomba!

— Ascânio! Ascânio! — murmurou a jovem num tom de censura e de prazer, mais terno que o de uma confissão.

Tinham-se, enfim, compreendido. Os seus corações falavam, e só mais tarde notaram que as suas bocas se tinham aflorado e permaneciam unidas.

— Meu doce amigo!... — disse Colomba, afastando suavemente Ascânio. Olharam-se como num êxtase. Os dois anjos reconheciam-se. A vida não tem dois

momentos como este.

— Nesse caso — prosseguiu Ascânio —, não amais o conde d'Orbec... podeis amar-me!...

— Meu amigo — disse Colomba com a sua voz grave e doce —, até agora só meu pai me beijava, e bem raramente, na fronte. Sou uma rapariga bastante ignorante, e desconheço quase tudo da vida; mas, no estremecimento que o vosso beijo provocou em mim, senti que o meu dever é pertencer-vos ou consagrar-me inteiramente a Deus. Sim, tenho a certeza que cometeria um crime se procedesse de qualquer outra forma! Os vossos lábios sagraram-me vossa noiva e vossa esposa, e podia vir o meu próprio pai dizer que não, que eu apenas acreditaria na voz de Deus, que em mim está dizendo: «Sim!» Aqui tendes a minha mão; é vossa.

— Anjos do Paraíso, escutai-a, e invejai-me! — exclamou Ascânio. — O êxtase não pode ser pintado nem descrito. É preciso vivê-lo; por isso, recordem-no aqueles que podem recordá-lo. Não tentarei, pois, descrever as palavras, os olhares, o entrelaçar de mãos daquelas duas belas e puras crianças. As suas almas cristalinas misturavam-se como duas fontes límpidas, sem modificarem as suas naturezas ou a sua cor. Ascânio não aflorou, com a sombra sequer dum mau pensamento, a fronte casta da sua bem-amada. Colomba, confiante, abandonara a sua linda cabeça sobre o ombro do noivo. Se a Virgem Maria os tivesse olhado lá do alto, não teria desviado decerto o seu olhar puríssimo.

Quando amamos pela primeira vez, um dos nossos primeiros anseios é comunicar o mais que possamos da nossa vida presente e passada, sem esquecer projectos para o futuro. Assim, logo que puderam falar, Ascânio e Colomba puseram-se a contar um ao outro todo o sofrimento e todas as esperanças dos últimos anos. Era encantador. Não tardou que cada um podia já contar toda a vida do outro. Ambos tinham bebido do cálice do sofrimento, e agora, ao recordarem as angústias passadas, sorriam.

Mas acabaram por falar do futuro, e tornaram-se tristes. Que lhes reservaria Deus para o dia seguinte? Segundo as leis divinas, haviam sido criados um para o outro. Mas as conveniências humanas declaravam a sua união imprópria e inaceitável. Que fazer?

Como persuadir o conde d'Orbec a que renunciasse à sua prometida esposa? E como convencer o preboste de Paris a dar a sua filha a um artífice?

— Pobre de mim, meu amigo! — disse Colomba — ainda agora vos prometia não pertencer senão a vós ou ao Céu... Vejo agora que é a este que terei de pertencer.

— Não — disse Ascânio —, não será assim! Sozinhos nada poderemos fazer, bem sei, mas falarei ao meu querido mestre Benvenuto Cellini. Ele é poderoso, Colomba, e vê as coisas do alto. Oh, ele age na Terra como Deus deve imperar nos Céus; o que a sua vontade determina, acaba sempre por realizar-se. Ele fará com que sejas minha; não sei como, mas fá-lo-á, tenho a certeza. Os obstáculos agradam-lhe e incitam-no. Falará ao rei, convencerá teu pai. Benvenuto seria capaz de remover montanhas. A única coisa que não poderia fazer era com que tu me desses o teu amor; mas isso tu própria o fizeste. O resto deve ser simples. A teu lado, minha adorada Colomba, todos os milagres me parecem possíveis.

— Querido Ascânio, as vossas esperanças serão as minhas. Quereis que, pela minha parte, tente também alguma coisa? Dizei! Há uma pessoa a quem meu pai nada recusa. Quereis que escreva à Sr.a d'Etampes?

— À Sr.a d'Étampes?! — exclamou Ascânio. — Santo Deus! Tinha-me esquecido dela!... Então Ascânio, sem qualquer fatuidade, sóbrio e simples, contou o que se passara entre si e a duquesa, como esta lhe confessara o seu amor, e como, naquele mesmo dia, uma hora antes, ela se havia declarado inimiga mortal de Colomba. Não importava! Benvenuto teria um pouco mais de trabalho, mas acabaria por triunfar. Um adversário a mais não era coisa que o intimidasse.

— Meu amigo — disse Colomba —, vós tendes fé em vosso mestre; eu tenho fé em vós. Falai a Cellini o mais cedo que possais, e que ele disponha do nosso destino.

— Tudo, amanhã, lhe confiarei. Tem-me tanta afeição!... Compreender-me-á de repente. Mas que tens, adorada Colomba? Ficaste agora tão triste!...

Cada frase de Ascânio fazia sentir a Colomba quanto ela o amava mas, ao mesmo tempo, o ciúme fora entrando, como um punhal, no seu coração, de modo que Colomba havia já por mais de uma vez apertado convulsivamente a mão de Ascânio que repousava entre as suas.

— Ascânio, é bela a Sr.a d'Étampes? — perguntou. — É amada por um grande rei... Tendes a certeza de que não impressionou o vosso coração? Deus meu! Falai.

— Amo-te! — disse Ascânio.

— Espera-me um instante — pediu Colomba.

Momentos depois regressava ela com um formoso e fresco lírio branco.

— Olha — disse-lhe ela —, quando trabalhares no lírio de ouro e pedrarias da duquesa, lança um pequenino olhar, de vez em quando, aos pobres lírios do jardim da tua Colomba.

E com tanta graça como a que a duquesa poderia ter impresso naquele gesto, Colomba beijou a flor e deu-a ao aprendiz.

Neste momento, apareceu Dona Perrine no princípio da alameda.

— Adeus, até que nos vejamos! — disse precipitadamente Colomba, aflorando com a mão, num encantador movimento furtivo, os lábios do seu amado.

A governanta aproximou-se deles.

— Então, minha filha — disse ela a Colomba —, ralhastes muito a esse fugitivo e escolhestes lindas jóias?

-— Olhai, Dona Perrine — disse Ascânio, passando para as mãos da governanta a caixa das jóias que levara, e que nem sequer chegara a abrir. — A Senhorinha Colomba e eu decidimos que deveríeis ser vós a escolher o que mais convém, de modo que eu voltarei amanhã a buscar as restantes.

Dito isto, partiu, louco de contentamento, não sem lançar a Colomba um último olhar cheio daquilo que tinha ainda para dizer-lhe.

Colomba, mãos cruzadas sobre o peito, como para reter a felicidade que Ascânio ali depusera, permaneceu imóvel, enquanto Dona Perrine fazia a sua escolha entre as preciosidades trazidas por Ascânio.

Mas, ai! não tardou que a pobre Colomba fosse dolorosamente despertada de seus sonhos.

Uma mulher, que chegara acompanhada por um dos archeiros do preboste, disse-lhe:

— O Senhor Conde d'Orbec, que deve chegar depois de amanhã, mandou-me apresentar ao serviço de V. S.a a partir de hoje. Estou ao corrente do que mais se usa em trajos de corte, e fui incumbida pelo Senhor Conde e pelo Senhor Preboste de vos confeccionar um magnífico vestido de brocado. Segundo creio, a Senhora Duquesa dÊtampes deseja apresentar-vos à rainha no dia da partida de Sua Majestade para S. Germano, isto é, dentro de quatro dias.

Depois da cena a que o leitor assistiu há pouco, não será difícil adivinhar o desespero que esta dupla notícia produziu em Colomba.

 

           AMOR, IDEIA

Ao romper do dia seguinte, Ascânio, resolvido a entregar o seu destino nas mãos do mestre, dirigiu-se à fundição onde Cellini trabalhava todas as manhãs. Mas, quando ia para bater à porta do pequeno pavilhão a que Benvenuto chamava a sua célula, ouviu a voz de Scozzone. Pensou que a rapariga estava a posar e retirou-se discretamente, voltando algum tempo depois. Enquanto esperava, Ascânio pôs-se a passear no jardim do Grand-Nesle, meditando no que iria dizer a Cellini e procurando imaginar o que este lhe diria.

Mas Scozzone não estava de modo algum a posar para o mestre. Era mesmo aquela a primeira vez que ela havia penetrado no pavilhão, onde ainda ninguém pusera os pés além de Benvenuto, que não permitia que ninguém ali o fosse importunar. Por isso, grande foi a sua cólera quando, ao voltar-se, deu de cara com Catarina, que abria, como nunca, os seus grandes olhos curiosos. Mas a sua curiosidade indiscreta pouco achou, desta vez, com que se satisfizesse. Alguns desenhos pelas paredes, um cortinado verde diante da janela, uma estátua inacabada de Hebe e muitos utensílios de escultura, foi tudo o que Scozzone pôde ver na célula do mestre.

— Que queres daqui, pequenina serpente? Que vieste cá fazer? Irás, Santo Deus, perseguir-me até ao Inferno!?... — exclamara Benvenuto ao ver Catarina.

— Ai de mim, mestre! — disse Scozzone, no tom mais doce que sabia fazer. — Ai de mim! asseguro-vos que não sou nenhuma serpente. Confesso que, só para estar sempre perto de vós, seguir-vos-ia de boa vontade nem que fosse até ao Inferno. Mas hoje, se venho aqui, é porque este lugar é o único onde se vos pode falar em segredo.

— Pois então despacha-te! Que tens a dizer-me?

— Deus meu! Que maravilha de rosto, Benvenuto! — exclamou Scozzone, reparando na estátua começada. — É a vossa Hebe?... Não a julgava tão adiantada. Que bela é!

— Não é? — disse Benvenuto.

— Oh! sim, é mais do que bela! Compreendo que eu jamais poderia servir de modelo a tal divindade. Mas, então, quem vos serviu de modelo? — prosseguiu Scozzone inquieta. — Se eu não vi entrar nem sair mulher alguma!...

— Cala-te, pequena tagarela. Creio que não vieste aqui para falar de escultura...

— Não, mestre, trata-se de Pagolo. Fiz como mandastes e ele aproveitou a vossa ausência para me falar do seu eterno amor. É claro que, seguindo as vossas ordens, ouvi-o até final.

— Ah, sim?... Traidor! E que dizia ele?

— Oh, é de morrer a rir! Só queria que vísseis e ouvísseis! Olhai que, para que vós não desconfiásseis, o hipócrita, enquanto me falava, ia trabalhando naquela cinzelagem que lhe destes, e o chinfrim da lima para cima e para baixo ainda tornava mais patético o que o pobre me dizia. «Querida Catarina — dizia-me ele — sinto que morro de amor por vós. Quando é que tereis piedade deste meu martírio? Dizei uma palavra, só vos peço uma palavra. Vedes bem a quanto me exponho por amor de vós; se o mestre me não visse este fecho acabado, desconfiava logo de alguma coisa, e bastava-lhe essa desconfiança para me matar sem misericórdia. Mas, pelos vossos olhos, sou capaz de me atrever a tudo. Jesus! Este maldito fecho nem anda nem desanda. Dizei lá Catarina, que lucrais em amar Benvenuto? Ele não vo-lo agradece. Cada vez se mostra mais indiferente convosco!... Ao passo que eu... eu amar-vos-ia com um amor tão ardente e tão prudente!... Havíeis de ver que ninguém desconfiaria!... Eu faria tudo com tanta discrição que em nada vos comprometeria. Olhai — acrescentou ele, encorajado com o meu silêncio —, descobri já um lugar secreto e seguro onde nos poderíamos encontrar sem receio...» Ah, Benvenuto, aposto que não fazeis a mínima ideia do esconderijo que aquele velhaco escolheu... Sabeis onde aquela testa descida e aqueles olhos sempre baixos foram descobrir um refúgio para os nossos amores? Pois nem mais nem menos que no interior da cabeça da vossa grande estátua de Marte! Disse-me que se podia subir até lá por uma escada, e que havia ali um quarto encantador, onde ninguém nos veria, e donde se desfrutava uma bela vista para os campos.

— A ideia é de facto magistral! — exclamou Benvenuto a rir. — E que lhe respondeste, Scozzone?

— Ora!... Respondi-lhe com duas gargalhadas, que não pude conter e que o desconcertaram por completo. Tomou então um ar muito fúnebre, e pôs-se-me a dizer que eu não tinha coração e que desejava apenas a sua morte. E, sempre ao som da lima e do martelo, foi falando, falando, que julguei que não acabava.

— E no final, que lhe respondeste?

— Que lhe respondi? Quando batestes à porta, pousou ele a cinzelagem, finalmente acabada, sobre a mesa; então eu peguei-lhe na mão e disse-lhe com toda a gravidade que pude: «Pagolo, falastes como um livro!» E ele tomou então aquele arzinho pateta que lhe vistes ao entrar.

— Pois fizeste mal, Scozzone; não o devias ter desencorajado.

— Dei-lhe atenção porque assim o mandastes. Mas se julgais que é muito fácil prolongar estas cenas com belos jovens, enganais-vos. E qualquer dia acontece uma fatalidade...

— Mas é que tu não deves só ouvi-lo, é preciso que também lhe respondas. É indispensável ao meu plano. Fala-lhe primeiro sem irritação, depois com indulgência e depois com agrado. Quando tiveres chegado a esse ponto, dir-te-ei o que hás-de fazer.

— Mas isso pode levar-nos demasiado longe... Pelo menos, acho que devíeis estar ao pé.

— Descansa, Scozzone, que eu aparecerei no momento preciso. Confia em mim e segue fielmente as instruções que te dei. Agora vai-te, linda mocinha, e deixa-me trabalhar.

Catarina saiu a cantarolar, e rindo já da boa partida que Cellini ia pregar a Pagolo, partida de que ela não fazia, aliás, a mais pequena ideia.

Contudo, mal ela saiu, Benvenuto não se entregou a qualquer trabalho. Correu precipitadamente para a janela que dava obliquamente para o jardim do Petit-Nesle e entregou-se a contemplação. Mas uma pancada na porta arrancou-o bruscamente ao êxtase contemplativo em que se encontrava.

— Com seiscentos mil diabos! — exclamou Cellini furioso — quem teremos ainda? Ja não se pode trabalhar em paz!

— Perdoai, mestre — disse a voz de Ascânio —, se vos venho importunar, já me retiro.

— Ah, és tu, meu filho! Não, não te vás! Tu nunca me importunas. Diz-me o que há e o que queres.

E Benvenuto apressou-se a abrir a porta ao seu aluno dilecto

— Perturbo a vossa solidão e o vosso trabalho? — disse Ascânio.

— Não, Ascânio, és sempre bem-vindo.

— Mestre, tenho a confiar-vos um segredo e um favor a pedir-vos.

— Fala. Se precisas de dinheiro, a minha bolsa é tua. Se precisas de outra ajuda, é teu o meu cérebro.

— Tenho talvez necessidade dos dois, querido mestre.

— Tanto melhor! Dispõe de tudo, corpo e alma, Ascânio. Aliás, também eu tenho uma confissão a fazer-te... sim, uma confissão pois que, sem ser realmente culpado, sentirei remorsos enquanto me não absolveres. Mas fala tu primeiro.

— Seja, mestre! Mas... que é isto, meu Deus!?... Que esboço é este? — exclamou Ascânio, interrompendo-se.

Acabava de reparar na estátua de Hebe, reconhecendo logo Colomba.

— É Hebe — respondeu Benvenuto com um clarão no olhar —, é a deusa da juventude. Agrada-te a escultura, Ascânio?

— Como não podeis imaginar!... Mas... não é ilusão! eu conheço estes traços...

— Indiscreto! Mas, já que levantas metade do véu deste mistério, é necessário que eu to desvende, pelo que, decididamente, a tua confissão só virá depois da minha. Pois bem, Ascânio, senta-te e prepara-te para leres no meu coração como num livro aberto. Dizes tu que precisas de mim; também eu preciso que me escutes. É necessário que saibas tudo, para que eu me liberte de um grande fardo que pesa na minha consciência.

Ascânio sentou-se mais pálido que o condenado a quem vão ler uma sentença de morte.

— És de Florença, Ascânio, e por isso não preciso perguntar-te se conheces a história de Dante Alighieri. Um dia viu passar na rua uma jovem chamada Beatriz e amou-a. Ela morreu, mas ele continuou a amá-la, pois era à sua alma que ele queria bem, e as almas, bem sabes, não morrem. Com o seu talento de poeta, cingiu-lhe a fronte com uma coroa de estrelas e colocou-a no Paraíso. Feito isto, pôs-se a estudar profundamente o mistério das paixões humanas; sondou o âmago da poesia e os abismos de todo o conhecimento. Quando, por fim, purificado pela angústia e pelo pensamento, chegou às portas do Céu, onde Virgílio, isto é, a sabedoria, devia abandoná-lo, Dante não se perdeu no caminho, porque achou ali Beatriz, isto é, o amor, que lhe ensinou o resto do caminho.

Também eu, Ascânio, tive a minha Beatriz, que adorei, e que, como a outra, morreu um dia. Não sei resistir muito à tentação mas através de todas as paixões impuras que a vida me oferecer aquela minha adoração permanece intangível. Tinha colocado tão alto aquela luz inefável do meu coração e do meu pensamento que a lama nunca a pode salpicar. Enquanto o homem se lançava descuidosamente nos prazeres, o artista permanecia fiel ao seu noivado místico e, se alguma vez fiz obra válida, se a matéria inerte, prata ou argila, alguma vez palpitou com vida e beleza sob os meus dedos, à minha radiosa e adorada visão o devi sempre, pois durante mais de vinte anos sempre me amparou, aconselhou e esclareceu.

Mas creio, Ascânio, que há certas diferenças entre o poeta e o cinzelador, entre o que burila ideias e o que burila o ouro. Dante sonha; eu careço do real para admirar. A ele bastava-lhe o nome de Maria; a mim faz-me falta a representação do rosto da Madona. As suas criações adivinham-se; as minhas tocam-se. Aqui está talvez por que a minha Beatriz não era bastante, ou era demasiado para mim, simples escultor. Sim, o espírito pairava sobre mim, mas eu era forçado a encontrar a forma. A angélica figura de mulher que me iluminava a existência fora sem dúvida bela e, mais do que tudo, pelo coração, mas não realizava aquele tipo de beleza eterna que eu idealizava. Via-me constrangido a procurá-la algures, e inventá-la, até.

Agora, Ascânio, responde ao que vou perguntar-te. Pensas que, se aquele ideal de escultor se me apresentasse com vida sobre a Terra, e eu o tornasse objecto das minhas adorações, pensas tu, Ascânio, que estava a ser ingrato e infiel ao meu outro ideal de poeta? Crês que a minha aparição celeste me abandonaria? Que o anjo se tornava cioso da mulher? É a ti só que o pergunto, Ascânio, e um dia saberás porquê, saberás porque tremo antes da tua resposta como se ela viesse da minha própria Beatriz.

— Mestre — disse Ascânio com gravidade e com tristeza —, sou ainda muito novo para ter opinião sobre assunto tão elevado. Mas penso, no entanto, muito sinceramente, que vós sois um homem escolhido e dirigido por Deus, de maneira que tudo o que se vos depara no vosso caminho não está ali por acaso mas por vontade divina.

— Pensas assim, não é, Ascânio? Pensas que o meu anjo da Terra, o meu belo sonho realizado, foi enviado pelo Senhor, e que o outro anjo divino não tem por que entristecer-se lá no Céu?... Ora ainda bem! Posso agora dizer-te que achei o meu sonho, que ele vive, respira, que eu o vejo e quase posso tocar. Ascânio, o modelo de toda a beleza, de tudo o que há mais puro, o paradigma da perfeição infinita a qual todos os artistas aspiramos, não está muito longe de mim, posso contemplá-lo e admirá-lo todos os dias. Ah! tudo o que fiz até agora é nada, comparado com o que tenciono fazer. Esta Hebe, que achas bela e que é, de facto, a minha obra-prima, ainda me não satisfaz. O meu sonho animado está de pé ao lado da sua imagem e parece-me cem vezes mais esplendoroso. Mas esperarei, Ascânio, saberei esperar! Mil estátuas brancas semelhantes a ela estão já de pé no meu pensamento e caminham. Vejo-as, pressinto-as, e um dia desabrocharão como flores puríssimas. E agora, Ascânio, queres que te mostre o meu belo génio inspirador? Ainda se não deve ter afastado de nós. Todas as manhãs, quando o Sol se eleva no horizonte, brilha-me ele ali em baixo. Olha.

Benvenuto afastou o reposteiro da janela e estendeu os dedos em direcção ao jardim do Petit-Nesle.

Na sua verdejante alameda, Colomba, de branco como uma aparição sobrenatural, caminhava a passos lentos.

— Que formosa é, não achais? — disse Benvenuto extasiado. — Nem Fídias, nem Miguel Angelo criaram nunca coisa mais pura! Os Antigos, quando muito, conseguiram aproximar-se da graça daquela cabeça! Quanta beleza!...

— Oh, sim, muito formosa! — murmurou Ascânio, deixando-se cair desalentadamente na cadeira. Sentia-se sem forças e incapaz de pensar.

Seguiu-se um minuto de silêncio, durante o qual Benvenuto contemplava o objecto da sua adoração e Ascânio media a profundidade da sua dor.

— Mas, enfim, mestre — arriscou o aprendiz —, aonde vos conduzirá essa paixão de artista? Que tencionais fazer?

— Ascânio — disse Cellini —, aquela que morreu, não foi nem podia ser minha. Deus quis apenas mostrar-me, sem me pôr no coração, amor humano por ela. Coisa estranha! Nem sequer me deu a entender o que ela representava para mim, senão quando a levou deste mundo. Assim, ela é na minha vida uma recordação, uma vaga imagem entrevista. Se bem me compreendeste, Colomba está mais vinculada à minha existência, ao meu coração. Ouso amá-la, e ouso dizer para comigo que será minha!

— Mas é a filha do preboste de Paris — disse Ascânio, e a voz tremia-lhe.

— Ainda que fosse a filha do próprio rei! Sabes bem, Ascânio, quanto pode a minha vontade. Até hoje, consegui sempre alcançar o que pus na vontade, e nunca desejei nada tão ardentemente. Não sei ainda como o conseguirei, mas é absolutamente necessário que ela venha a ser minha esposa.

— Vossa esposa?! Colomba vossa esposa?!

— Falarei ao meu grande Francisco I — prosseguiu Benvenuto. — Se ele quiser, povoar-lhe-ei o Louvre e Chambord de estátuas. Cobrirei de candelabros e gomis as suas mesas, e se, depois de lhe pedir em paga a mão de Colomba, ma recusar, não será Francisco I. Oh, tenho uma grande esperança, Ascânio. Irei procurá-lo no meio de toda a sua corte. Olha, dentro de três dias o rei parte para São Germano. Virás comigo. Levar-lhe-emos o saleiro de prata que está pronto e os desenhos para uma porta de Fontainebleau. Ficarão todos maravilhados, e ele mais que nenhum. Pois bem, estas surpresas repetir-se-ão todas as semanas. Jamais senti em mim uma força tão fecunda e tão criadora. Dia e noite, sinto o meu cérebro ferver. Este amor, Ascânio, rejuvenesceu-me multiplicando as minhas faculdades. Quando Francisco I vir que lhe transformo os seus sonhos em rápidas e magníficas realidades, ah! então deixarei de pedir: exigirei! Far-me-á grande, tornar-me-ei rico, e o próprio preboste de Paris se sentirá honrado em me ter por genro. Ah, eu dou em doido! Quando penso nisto, perco todo o domínio sobre mim mesmo. Ah! Ela é minha! Oh, sonho celestial! Compreendes, Ascânio?... Ela é minha! Abraça-me meu filho, porque depois que te ouvi, tudo me parece possível. O meu coração está agora calmo; tu legitimaste a minha felicidade. Nem tu imaginas quanto te agradeço. Deixa-me abraçar-te, meu filho.

— Mas pensai, mestre, que talvez ela vos não ame...

— Oh, cala-te, Ascânio! Já nisso pensei, e dei comigo a invejar a tua beleza e a tua juventude. Mas o que me disseste sobre planos da divina Providência, até nesse particular me sossegou. Ela espera-me. Quem havia de amar? Algum cortesão pedante, indigno dela! De resto, quem quer que seja o que lhe destinem, sou tão bom fidalgo como ele, e tenho ainda o génio por acréscimo.

— Diz-se que o conde dOrbec é seu noivo.

— O conde d'Orbec?! Tanto melhor! Conheço-o. É tesoureiro do rei, e é a sua casa que vou sempre buscar o ouro e a prata que necessito para os meus trabalhos, bem como os honorários que o rei me concede. É um velho avarento, carrancudo e alquebrado; não é rival que conte; suplantá-lo nem chega a ser vitória. É a mim que amará, Ascânio, não por mim, mas por si própria, pois terá no meu talento e no meu amor a apoteose da sua beleza; ver-se-á compreendida, adorada e imortalizada por mim. De resto, eu disse já «Quero!», e cada vez que pronunciei esta palavra acabei sempre por alcançar o que desejava. Não há poder humano capaz de fazer frente à energia da minha paixão. Irei, como sempre, direito ao meu objectivo com a inflexibilidade do destino. Ela será minha, digo-te eu, ainda que tenha de revolver o reino; e se por acaso qualquer rival se me quiser atravessar no caminho... demónio! tu bem me conheces, ele que tenha cuidado! Mas... ora esta!... Que egoísta eu sou, que me esqueço que também tu tens um segredo a confiar-me e um favor a exigir-me. Jamais te poderei demonstrar a afeição que te tenho, mas fala; fala, meu filho. Por ti também serei capaz de poder quanto quiser.

— Enganais-vos, mestre; há coisas para as quais só Deus tem poder bastante, e sei agora que só devo contar com Ele. Deixarei pois o meu segredo entre a minha fraqueza e o Seu poder.

Ascânio saiu.

Quanto a Cellini, mal o discípulo fechou a porta, afastou o cortinado e, aproximando o seu trabalho da janela, entregou-se novamente à modelação de Hebe, cheio de alegria e de esperanças para o futuro.

 

         O NEGOCIANTE DA PRÓPRIA HONRA

Colomba deve ser hoje apresentada à rainha.

Encontramo-nos numa das salas do Louvre; toda a corte está reunida. Depois da missa, será a partida para São Germano, e apenas se espera a chegada do rei e da rainha para se passar à capela. Se exceptuarmos algumas damas, todos os cortesãos estão de pé, e muitos conversam caminhando. Roçam o brocado e a seda dos vestidos, entrechocam-se as espadas, cruzam-se olhares de amor e ódio, marcam-se entrevistas galantes e duelos; é uma esplêndida barafunda, um turbilhão estonteante. Há trajes soberbos, talhados segundo a última moda, e rostos adoráveis.

Na opulenta e saborosa variedade dos trajes de pé e imóveis, sobressaem os pajens vestidos à italiana ou à espanhola, com o punho na anca e a espada ao lado. É um quadro tão brilhante de vivacidade e magnificência que, por mais que o tentássemos reproduzir com palavras, jamais surgiria ao leitor, senão como uma frouxa e palidíssíma cópia. Fazei reviver todos aqueles cavaleiros elegantes e espirituosos, fazei respirar todas aquelas damas vivas e galantes de Brantôme e Heptâmeron, ponde nas suas bocas aquele idioma rápido, conceituoso, natural e tão eminente francês, do século dezasseis, e tereis uma ideia daquela encantadora corte, mormente se recordardes a frase de Francisco I: «Uma corte sem damas é como um ano sem Primavera ou uma Primavera sem flores.» Ora, a corte de Francisco I era uma eterna Primavera, perfumada pelas mais belas e mais nobres flores da Terra.

Depois do primeiro atordoamento causado pela confusão e pelo barulho, tornava-se mais fácil distinguir os grupos e percebia-se nitidamente que existiam duas facções naquela multidão: uma, de cor lilás, apoiava a duquesa d'Étampes, a outra, azul, seguia Diana de Poitiers; os partidários secretos da Reforma pertenciam à primeira facção, os católicos puros à segunda. Entre estes, notava-se o rosto insignificante e inexpressivo do delfim; entre os outros, sobressaía o louro, jovial e espirituosíssimo Carlos d'Orleães, segundo filho do rei. Complicai estas oposições políticas e religiosas com ciúmes de mulheres e rivalidades de artistas, e obtereis uma boa panorâmica dos ódios ali reinantes, a qual vos explicará, se vos causarem estranheza, todos estes olhares desdenhosos e gestos ameaçadores, que nem a dissimulação mais cortesã pode esconder do olhar observador.

As duas inimigas, Ana e Diana, estavam sentadas nos dois topos opostos do imenso salão. Pois, facto espantoso! apesar da distância, cada dito trocista, cada epigrama, não demorava mais de cinco segundos a passar da boca de uma aos ouvidos da outra, cuja resposta fazia logo o caminho inverso, através dos mesmos correios, e demorando o mesmo tempo.

No meio deste combate de frases espirituosas, e entre todos estes fidalgos em trajes de veludo e seda, passava, indiferente e grave na sua longa veste doutoral, Henrique Estienne, entranhado reformista, enquanto, a dois passos, se podia ver, não menos alheado de quanto o cercava, o católico ferrenho Pedro Strozzi, pálido e melancólico refugiado florentino que, de pé, apoiado a uma coluna, recordava sem dúvida a pátria distante onde viria, mais tarde, a entrar como prisioneiro, e onde não voltaria a achar repouso senão no túmulo.

Passam depois, falando de graves negócios de Estado, e parando muitas vezes um em frente do outro, como para dar mais peso à conversa, o velho Montmorency, a quem o rei confiou há apenas dois anos o cargo de condestável, vago pelo desvalimento de Bourbon, e o chanceler Poyet, tão orgulhoso do imposto sobre lotarias que acabava de estabelecer como do decreto de Villers-Cotterêts, que também assinou.

Sem aderir a nenhum grupo, sem entrar em nenhuma conversa, o beneditino e franciscano Francisco Rabelais, de sorriso aguçado e branco, farejava, observava, escutava e escarnecia, enquanto Triboulet, o bobo favorito de Sua Majestade, se rebolava entre as pernas dos cortesãos, com a sua corcova e as suas calúnias, aproveitando-se da sua estatura de podengo para morder impune e dolorosamente a torto e a direito.

Quanto a Clemente Marand, imponente no seu trajo novo de camareiro do rei, mostrava-se tão excitado como na recepção no palácio dÉtampes. Era evidente que lhe escaldava no bolso qualquer oitava recém-nascida, ou qualquer soneto enjeitado, que desejava fazer passar por improviso. Sim, porque a inspiração vem do alto, e não quando se quer. Assim, viera-lhe muito naturalmente ao espírito uma portentosa invenção poética inspirada no nome de Diana. Havia lutado contra ela, pois filiava-se na hoste contrária; mas, como a musa não é escrava mas senhora, os versos haviam-se formado sozinhos, e as rimas haviam-se encadeado com uma tal rapidez que parecia bruxedo. Em suma: aquela desgraçada oitava atormentava-o até ao desespero. Era um devoto da duquesa, não tinha dúvidas, bem como de Margarida de Navarra; as suas inclinações iam todas para o partido protestante. Quem sabe mesmo se não maquinava um epigrama contra Diana de Poitiers, quando o desgraçado madrigal em seu louvor lhe surgiu na mente!... Mas a verdade é que surgira, e estava pronto e brilhante. Como poderia agora conter-se, e não mostrar, pelo menos a qualquer amigo letrado, os soberbos versos que o seu cérebro protestante compusera em louvor da católica Diana de Poitiers?

De facto, o desventurado Marot não se conteve e revelou-os em voz baixa. Mas o indiscreto cardeal de Turnão, a quem os confiou, achou-os tão belos, tão esplêndidos, tão magníficos, que se sentiu obrigado a comunicá-los ao duque de Lorena, que foi logo gabá-los aos ouvidos de Diana. Não tardou nada que se fizesse um burburinho em todo o partido azul, reclamando a presença de Marot e a recitação da sua oitava. Os lilases, vendo Marot atravessar a multidão para ir ter com Diana de Poitiers, avançaram também, comprimindo-se à volta do poeta, tão ufano como aterrorizado. Por fim, a própria duquesa d'Étampes levantou-se do seu pequeno trono e, cheia de curiosidade, aproximou-se também, para ver, segundo ela disse, «como o marau do Marot empregava o seu grande espírito em louvar Dona Diana».

O pobre Clemente Marot, quando se preparava para começar o recitativo, e depois de se inclinar diante de Diana de Poitiers, que lhe sorria, voltou-se um quase nada para deitar uma olhadela ao seu redor, e deu com os olhos na duquesa d'Étampes, que também lhe sorria. Mas se o sorriso de uma era gracioso, acolhedor, o da outra era terrível. Por isso, foi com uma voz tremida e muito pouco clara que o infeliz Marot, abrasado por um lado e congelado pelo outro, começou a recitar os seguintes versos:

 

         Ser Febo quantas vezes desejei.

         Mas não pra ter a ciência de curar.

         Pois que esta dor que sofro e sofrerei

         Não há ervas capazes de abrandar.

         Nem foi para ao Amor dar minha lei,

         Nem para ter no Olimpo meu lugar.

         Se quis ser Febo, oh, graça soberana!

         Foi porque a Febo amou a linda Diana.

 

Ainda Marot não tinha pronunciado a última sílaba deste gracioso madrigal, os azuis romperam em calorosos aplausos, enquanto os lilases se conservavam num silêncio mortal. Clemente Marot, encorajado pela aprovação e melindrado pela prática contrária, foi corajosamente apresentar a sua obra-prima a Diana de Poitiers.

— Para a linda Diana — disse ele em voz baixa, inclinando-se profundamente. — Senhora, compreendei: a linda, a bela por excelência, e sem comparação!

Diana agradeceu-lhe com o seu mais doce olhar, e Marot afastou-se.

— Podem fazer-se versos a uma bela dama, depois de se terem feito a outra mais bela ainda — disse em jeito de desculpa o pobre poeta, quando passou junto da Sr.a d'Étampes. — Ainda vos lembrais do vale de Tempe?

Ana respondeu-lhe com um olhar fulminante.

Dois grupos nossos conhecidos mantiveram-se estranhos a este incidente. Um deles era formado por Ascânio e Cellini; Benvenuto tinha a fraqueza de preferir a Divina Comédia aos «concetti». O outro grupo formam-no o conde d'Orbec, o visconde de Marmagne, o preboste e Colomba, que suplicara ao pai que se mantivesse um pouco afastado daquela multidão, que a jovem via pela primeira vez e que muito a intimidava. O conde dOrbec, por galantaria, não quis deixar a sua noiva, que o preboste, depois da missa, devia apresentar à rainha.

Apesar de muito perturbados, Ascânio e Colomba tinham-se logo avistado e olhavam-se de vez em quando cautelosamente. Estes dois puros e tímidos jovens, educados naquela solidão que forma as grandes almas, ter-se-iam sentido terrivelmente isolados e perdidos no meio daquela multidão elegante e corrompida se não se tivessem podido ver e encorajar um ao outro com o olhar.

Aliás, não se tinham tornado a ver depois daquela tarde em que confessaram o seu mútuo amor. Ascânio tentara por diversas vezes entrar no Petit-Nesle, mas sem êxito. A nova criada, mandada a Colomba por d'Orbec, aparecera sempre à porta, em vez de Dona Perrine, e opusera-se sempre à sua entrada. Ascânio não era suficientemente rico nem ousado para tentar subornar aquela mulher. Decerto as notícias que tinha a comunicar à sua amada eram pouco alegres, e ela as saberia cedo ou tarde. Tratava-se da confissão que o mestre lhe fizera acerca do seu amor por Colomba, e da necessidade em que estavam, não só de desistirem do apoio de Cellini mas até de terem de lutar contra ele.

Tal como o dissera a Benvenuto, Ascânio resolvera confiar o seu problema a Deus, pois sentia que só Ele o podia ajudar. Contudo, o jovem não quis deixar de efectuar uma última tentativa junto da duquesa dEtampes, pensando, ingenuamente, enternecê-la. Quando nos falta subitamente um auxílio com que contávamos, voltamo-nos para qualquer esperança de socorro, mesmo a mais ténue. A poderosa energia de Benvenuto não só lhe faltava como parecia dever voltar-se contra ele. Ascânio porque era jovem, ia pois confiante, invocar o que julgava ver de grandeza, generosidade e terna dedicação na duquesa, a fim de suscitar para o seu sofrimento a piedade daquela que tanto o amava. Depois disto, se também aquele frágil e derradeiro ramo lhe escapasse, que restava ao pobre e desamparado jovem senão deixar seguir os acontecimentos e aguardar? Aqui está por que se decidira a acompanhar Benvenuto à corte. A duquesa d'Étampes havia voltado para o seu lugar. Ascânio misturou-se com os seus cortesãos e conseguiu aproximar-se do seu pequenino trono. Voltando-se, ela viu-o.

— Ah, sois vós, Ascânio — disse ela friamente.

— Sou, Senhora Duquesa. Vim acompanhar à corte o meu mestre Benvenuto; e se ouso aproximar-me de vós é porque, como deixei outro dia no vosso palácio o desenho do lírio que tivestes a bondade de me encomendar, gostaria de saber se não ficastes muito decepcionada.

— Ah, não, de modo algum; achei-o muito belo — disse a Sr.a d'Étampes em tom mais doce. — E os apreciadores a quem o mostrei, mormente o Sr. de Guisa, que ali vedes, foram todos da minha opinião. Mas sereis capaz de executá-lo tão bem como o desenhastes? Serão bastantes as minhas pedras preciosas?

— Espero que sim, Senhora. No entanto, muito gostaria de colocar um grande diamante no colo do pistilo, por forma que aí estremecesse como uma gota de orvalho, mas receio que seja demasiada despesa para obra confiada a um tão humilde como eu.

— Oh, podemos com essa despesa, Ascânio.

— É que um diamante daquele tamanho custaria talvez duzentos mil escudos, Senhora.

— Pois bem! Tereis diamante. Mas — acrescentou a duquesa baixando a voz — fazei-me um favor, Ascânio.

— As vossas ordens, Senhora.

— Ainda agora, quando escutava as sensaborias desse Marot, avistei o conde d'Orbec na outra extremidade. Dizei-lhe que desejo falar-lhe.

— Dizeis, Senhora...?! — disse Ascânio, empalidecendo ao ouvir o nome do conde.

— Não dissestes ainda agora que estáveis às minhas ordens? — exclamou a duquesa com altivez. — Aliás, se é a vós que encarrego deste recado é porque a conversa que vou ter com d'Orbec não vos é indiferente e deverá fazer-vos reflectir, se é que os enamorados são susceptíveis de reflexão.

— Vou obedecer-vos, Senhora — disse Ascânio, receoso de desagradar àquela de quem esperava a solução.

— Bem. Quando vos dirigirdes ao conde, fazei-o em italiano, pois tenho bons motivos para isso; e voltai com ele.

Para não irritar mais a sua temível inimiga, Ascânio afastou-se, perguntando a um jovem fidalgo de fitas lilases se tinha visto o conde d'Orbec e onde o podia encontrar.

— Olhai — respondeu-lhe o interpelado —, é esse velho macaco que conversa além com o preboste de Paris e que está junto daquela jovem adorável.

A jovem adorável era Colomba, que todos os peraltas admiravam com curiosidade. Quanto ao «velho macaco» pareceu, de facto, a Ascânio tão repelente quanto um rival o podia desejar. Depois de uns instantes de observação, o jovem aproximou-se do conde d'Orbec e, com grande espanto de Colomba, dirigiu-lhe a palavra em italiano convidando-o a acompanhá-lo até junto da Sr.a d'Etampes. O conde pediu desculpa à noiva e aos amigos, e apressou-se a obedecer às ordens da duquesa, acompanhando Ascânio, que não se afastou sem ter, com um olhar de inteligência, sossegado Colomba, que se perturbara ao ouvir a estranha mensagem, e ainda mais ao reconhecer o mensageiro.

— Ah! Bons-dias, conde — disse a duquesa ao avistar dOrbec —, estou encantada por vos ver, pois tenho importantes coisas para vos dizer. Senhores — acrescentou ela, dirigindo-se aos que a rodeavam —, Suas Majestades deverão tardar ainda um bom quarto de hora. Se me permitis, aproveitarei esse tempo para conversar com o meu velho amigo conde d'Orbec.

Todos os fidalgos que se comprimiam obsequiosos em torno da duquesa se apressaram a afastar-se discretamente depois desta despedida sem cerimónia, deixando-a a sós com o tesoureiro do rei num destes vãos de janela tão vastos como os nossos salões de agora. Preparava-se Ascânio para fazer como os mais, porém a duquesa fez-lhe sinal que ficasse, e ele obedeceu.

— Quem é este jovem? — perguntou o conde.

— Um pajem italiano que não compreende uma palavra de francês. Podeis falar à vontade diante dele, pois é como se estivéssemos sós.

— Pois bem, Senhora, começou dOrbec, espero ter obedecido cegamente às vossas ordens, pois nem sequer quis saber dos motivos. Mostrastes desejos em ver a minha futura esposa apresentada hoje à rainha, e ela aqui está com seu pai. Mas agora, que fiz tudo que pedistes, confesso que gostaria bem de compreender. Será pedir demasiado, Senhora, rogar-vos uma pequenina explicação?

— Sois o mais dedicado dos meus fiéis, d'Orbec. Sinto-me feliz por ter ainda muito a fazer em vosso favor e, mesmo assim, receio nunca chegar a fazer-vos tanto quanto mereceis; mas farei o possível. O cargo de tesoureiro do rei, que vos obtive, não é mais que o alicerce         sobre que quero edificar a vossa felicidade, conde.

— Senhora!... — exclamou o conde, inclinando-se até ao chão.

— Falar-vos-ei, pois, com o coração nas mãos. Mas, antes de mais nada, deixai-me felicitar-vos. Acabo de ver Colomba. É, na verdade, deslumbrante; um bocadinho acanhada, mas é mais um encanto. Mas, aqui entre nós, por mais que procure, não sou capaz de descobrir porque é que vós, homem grave, prudente e pouco arraigado, creio, à beleza e à frescura juvenil, fazeis, enfim, tal casamento. Refiro-me evidentemente à finalidade que tendes em vista, pois conheço-vos bem... não sois homem que dê ponto sem nó.

— Cáspite, Senhora! É preciso a gente saber viver. E como o pai é um velho patife que deixará bastantes escudos à filha!...

— Mas que idade tem ele então?

— Oh!... Uns cinquenta ou sessenta anos.

— E vós conde?

— Oh, a mesma, mais ou menos, mas... ele está tão acabado...

— Agora começo a compreender-vos e a reconhecer-vos. Bem vos sabia eu superior a um sentimento vulgar, e que não foram os atractivos daquela rapariga que vos seduziram.

— É claro, Senhora, nem neles pensei. Podia ser bem feia, que para o caso dava o mesmo. Mas, sendo bonita, tanto melhor.

— Ora ainda bem, senão perdia a esperança em vós.

— E agora, que voltais a reconhecer-me como sou, Senhora, dignar-vos-eis explicar-me...

— Oh! É que acalento belos sonhos para vós, conde — interrompeu a duquesa. — Sabeis, dOrbec, onde eu desejava ver-vos era a ocupar o cargo de Poyet, que detesto! — exclamou Ana, lançando um olhar de ódio ao chanceler, que prosseguia no seu passeio com o condestável.

— Que dizeis, Senhora?! Uma das mais elevadas dignidades do reino?!...

— E não sois vós um dos mais eminentes homens da França?... Mas, ai, o meu poder é tão precário!... Reino à beira de um abismo, conde! Olhai: actualmente, tenho motivos para uma inquietação mortal. O rei tem agora por amante a mulher de um zé-ninguém, um funcionário da Justiça chamado Féron. Se aquela mulher fosse ambiciosa, estaríamos perdidos. Preciso, quanto antes, de tomar também uma iniciativa quanto a este novo capricho de Francisco I. Ah, se eu pudesse voltar a encontrar uma nova duquesa de Brissac como a que dei a Sua Majestade!... Era uma mulher tão meiga e tão fácil de conduzir como uma criança.

Hei-de lamentar sempre a sua perda. Não era perigosa, a duquesinha, só falava ao rei nas minhas qualidades. Pobre Maria! Acabou por tomar todos os encargos da minha posição, deixando-me contudo todos os benefícios. Mas, quanto a essa Feronnière, como lhe chamam, é forçoso afastar dela Sua Majestade. Mas eu, ai de mim! já nada posso. Esgotei todo o meu arsenal de seduções e vejo-me reduzida ao último reduto, o hábito.

— Dizeis...?!

— Sim, já não conto senão no seu espírito, o coração deixou de me pertencer. E por isso preciso de uma auxiliar. Onde encontrá-la? Onde achar uma amiga tão dedicada e tão sincera que possa confiar nela inteiramente? Ah, como eu saberia cumulá-la de riquezas e honrarias! Procurai-ma, d'Orbec. Não imaginais como em Sua Majestade o rei está perto do homem, nem até onde o homem pode arrastar o rei. Se fôssemos duas, não rivais mas aliadas, não duas amantes, mas duas amigas... se dominássemos, uma Francisco I, e a outra Francisco apenas, a França seria nossa, conde, e em que momento!... Quando Carlos V vem lançar-se nas nossas redes, quando podemos estipular à vontade o seu resgate e aproveitar a sua imprudência para construir um futuro magnífico! Explicar-vos-ei os meus planos, d'Orbec. Essa Diana, que tanto vos agrada, deixaria um dia de influir sobre o nosso destino, e o cavaleiro de França poderia tornar-se... Mas eis que chega o rei.

Tal era a duquesa dEtampes. Raras vezes explicando o seu pensamento, deixava-o apenas adivinhar. Semeava nos espíritos resoluções e ideias; depois, deixava actuar a avareza, a ambição, as perversões naturais, e sabia sempre interromper-se no momento exacto.

Este sistema seria utilíssimo a muitos poetas e a não poucos namorados.

O conde d'Orbec, ávido de riquezas, sedento de honrarias, experimentado e corrompido, compreendera perfeitamente a duquesa, pois mais de uma vez, durante a conversa, Ana olhara intencionalmente na direcção de Colomba. Quanto a Ascânio, o seu carácter recto e generoso não lhe deixou ver até ao fundo aquele mistério de iniquidade e infâmia, mas pressentia vagamente que aquela conversa estranha e sombria escondia um perigo terrível para a sua bem-amada e fitava a Sr.a d'Etampes com horror.

Um bedel acabava de anunciar o rei e a rainha. Não demorou um instante que todos se pusessem de pé, os fidalgos de chapéu na mão.

— Guarde-vos Deus, Senhores! — disse Francisco I, ao entrar. — Preciso, sem mais delongas, dar-vos uma grande notícia. O nosso querido irmão, o imperador Carlos V, está neste momento a caminho de França, se não é que já a pisa. Preparemo-nos, Senhores, para o acolher condignamente. Não preciso recordar à minha fiel nobreza a quanto a obriga tão alto hóspede. Mostrámos no campo do Drap d'Or como sabíamos receber os monarcas. Daqui a menos de um mês, Carlos V entrará no Louvre.

— E eu, Senhores — disse a rainha Eleonor com a sua voz doce —, agradeço-vos desde já o acolhimento que a meu real irmão quiserdes fazer.

Como resposta, ouviram-se gritos de: «Viva o rei! Viva a rainha! Viva o imperador!» Neste instante, algo de muito irrequieto passou por entre as pernas dos cortesãos, conseguindo chegar junto do rei: era Triboulet.

— Majestade — disse o bobo —, consentis que vos dedique uma obra que vou mandar imprimir?

— Com o maior gosto, Triboulet — respondeu o rei —, mas tendes, antes, de me dizer o seu título e se está muito adiantada.

— Majestade, a obra terá por título O Almanaque dos Doidos e inclui uma lista dos maiores insensatos que existiram desde o princípio do mundo. Se quereis saber em que ponto vai a obra, dir-vos-ei que já inscrevi na primeira página o nome do rei dos doidos passados e por vir.

— E quem é esse ilustre confrade que me dás por primo e escolhes para rei? — perguntou Francisco I.

— Carlos V, Majestade — respondeu Triboulet.

— Como Carlos V?!

— Porque, em todo mundo, só Carlos V, tendo-vos tido prisioneiro em Madrid, como teve, é tão doido que se atreva a atravessar-vos o reino.

— E se ele passar toda a França sem qualquer acidente?... — replicou Francisco I.

— Nesse caso — respondeu Triboulet —, ver-me-ei obrigado a safar o seu nome, para pôr outro no lugar dele.

— E que nome porás, então?

— O vosso, Majestade; porque, deixando-o passar, tereis conseguido ser ainda mais doido do que ele.

O rei desatou a rir, e os cortesãos fizeram coro. A pobre Eleonor, porém, empalideceu.

— Pois então — disse Francisco —, põe já o meu nome no lugar do imperador, visto que dei a minha palavra e mantê-la-ei. Quanto à dedicatória, aceito-a, e aí tens o preço do primeiro exemplar que aparecer.

A estas palavras, Francisco I mostrou uma bolsa cheia de moedas de ouro e atirou-a a Triboulet, que a recebeu entre os dentes, afastando-se sobre pés e mãos e rosnando como um cão que apanhou um osso.

— Senhora — disse o preboste para a rainha, enquanto avançava com Colomba —, dignar-vos-eis conceder que aproveite estes momentos de alegria para vos apresentar minha filha Colomba, que tão bondosamente quereis acolher entre as vossas damas?

A boa rainha dirigiu algumas palavras de felicitação e encorajamento à pobre e confusa Colomba, que o rei, entretanto, olhava com admiração.

— À fé de quem sou, Senhor Preboste! — exclamou Francisco I sorrindo — sabeis que é um crime de alta traição ter tido tanto tempo escondida dos nossos olhos uma tal pérola? Como ela ficará bem na coroa de belezas que cerca a majestade da nossa rainha! Se não sois castigado por esta felonia, Dom Roberto, devei-lo apenas à muda intercessão desses belos olhos descidos.

Em seguida, o rei fez um gracioso cumprimento à encantadora jovem, e passou, seguido de toda a corte, em direcção à capela.

— Senhora — disse o duque de Medina Sidónia, oferecendo a mão à duquesa d'Étampes — deixaremos, se quereis, passar a multidão e ficaremos um pouco para trás. Não há melhor ocasião para duas palavras que tenho a dizer-vos em segredo.

— Podeis dispor, Sr. de Medina Sidónia — respondeu a duquesa. — Não precisais afastar-vos, conde d'Orbec. Podeis confiar neste velho amigo como em mim própria, Senhor Embaixador, e podeis também falar à vontade diante deste jovem, pois só fala italiano.

— A sua discrição deve importar-vos tanto como a mim, Senhora, e uma vez que confiais... Mas eis-nos agora sós. Irei direito ao fim, sem rodeios nem reticências. Sabeis já como Sua Majestade Sagrada se decidiu a atravessar a França e como, possivelmente, já a esta hora se encontra em território francês. Também não ignorais que marchará entre filas inimigas, confiado apenas na palavra cavalheiresca do rei. Vós própria lhe aconselhastes essa confiança, Senhora, e eu sou o primeiro a afirmar que o vosso poder de influenciar Francisco I é superior ao de qualquer ministro; de modo que podeis usar do vosso conselho como quiserdes: torná-lo bom ou mau, cilada ou garantia. Mas porque havíeis de voltar-vos contra nós, se nem é esse o interesse do Estado nem o vosso?

— Acabai, Senhor; penso que tendes ainda algo a dizer.

— Tenho, Senhora. Carlos V é digno sucessor de Carlos Magno, e o que um aliado poderia exigir dele como resgate quer ele oferecê-lo como presente, recompensando, assim, tanto a hospitalidade como o conselho.

— Oh! É o que se chama agir com grandeza e com prudência.

— O rei Francisco I desejou sempre ardentemente o ducado de Milão. Pois bem: Carlos V está na disposição de lhe ceder, mediante um foro anual, essa província, cuja posse tantas guerras tem originado entre a França e a Espanha.

— Compreendo — interrompeu a duquesa —, sabe-se que as finanças do imperador estão muito baixas; por outra parte, o Milanês está arruinado por vinte guerras, e Sua Majestade não se importaria de transferir o seu crédito de um devedor pobre para um devedor opulento. Recuso, Sr. de Medina; vós mesmo deveis compreender que tal proposta é inaceitável.

— Mas, Senhora, já se deu a entender esta disposição ao rei e ele pareceu encantado com ela.

— Bem sei. Mas eu, por mim, recuso. Se podeis dispensar-vos de mim, tanto melhor para vós.

—Senhora, o imperador faz o maior empenho em vos saber favorável, e quanto desejardes...

— A minha influência não é coisa que se venda ou que se compre, Senhor Embaixador.

— E quem disse tal, senhora?

— Olhai, vós assegurastes-me que o vosso imperador deseja o meu apoio e, francamente, tem razão em o desejar. Pois bem: obtê-lo-á, e para isso o que lhe peço é menos do que ele oferece. Eis o que deverá fazer. Prometerá o ducado de Milão a Francisco I mas, uma vez fora de França, lembrar-se-á do tratado de Madrid não cumprido e esquecerá a sua promessa.

— Senhora! mas isso seria a guerra!...

— Devagar Sr. de Medina. Sua Majestade, efectivamente, há-de zangar-se e ameaçar. Então Carlos erigirá o Milanês em Estado independente e oferecê-lo-á, sem qualquer foro, a Carlos d'Orleães, filho segundo do rei; desta maneira, o imperador não engrandecerá um rival, o que vale bem, penso eu, alguns escudos. Quanto ao que eu, pessoalmente, possa desejar, como dizíeis ainda agora, se a Sua Majestade Sagrada agradar o meu projecto na nossa primeira entrevista deixar-me-á tombar nas mãos um brilhante maior ou menor, que eu guardarei, se valer a pena, como lembrança da graciosa aliança firmada entre o sucessor dos Césares, rei de Espanha e da índia, e eu.

A Sr.a d'Étampes falou ao ouvido de Ascânio. Este mostrava-se assombrado com os tenebrosos e misteriosos projectos da duquesa, o duque de Medina inquieto e o conde dOrbec encantado.

— Tudo isto é para ti, Ascânio — foi o que ela disse ao ouvido do aprendiz. — Para alcançar o teu coração, farei a perdição da França. Então, Senhor Embaixador — prosseguiu em voz alta —, qual é a vossa resposta?

— Só o imperador pode tomar uma decisão em assunto de tanta gravidade, Senhora. No entanto, tudo me leva a crer que aceitará uma proposta que, de tão vantajosa para nós, me assusta.

— Pois tranquilizai-vos, que também não é menos vantajosa para mim, pelo que desde já me comprometo a fazê-la aceitar ao rei. Nós, as mulheres, também temos a nossa política, mais profunda, às vezes, que a vossa. Mas posso jurar-vos que os meus projectos não apresentam o menor perigo para vós. E senão, reflecti. Em que poderiam eles ser perigosos? Mas, enquanto espero pela resolução de Carlos V, podeis ficar certo, Sr. de Medina, que não deixarei escapar uma ocasião de agir contra ele, e envidarei todos os meus esforços junto de Sua Majestade para que o retenha prisioneiro.

— Que dizeis, Senhora?! Assim iniciais a nossa aliança?!

— Vamos lá, Senhor Embaixador. Então um diplomata como vós não é capaz de perceber que o essencial é afastar qualquer suspeita a meu respeito, e que se advogasse abertamente a vossa causa poderíamos perdê-la? Aliás, não creio que possa jamais vir a ser traída ou denunciada. Deixai-me, pois, ser vossa inimiga, Senhor Duque, deixai-me falar contra vós. Que vos importa? Ignorais acaso para que nos servem, muitas vezes, as palavras? Se Carlos V recusar o meu tratado, direi ao rei: «Majestade, deveis recuar ante umas represálias tão justas como necessárias.»

E se o imperador aceitar, direi: «Majestade, a minha astúcia feminina, isto é, felina, não falha; tendes que resignar-vos a uma infâmia proveitosa.»

— Ah, Senhora! — disse o duque de Medina, inclinando-se perante a duquesa — que pena serdes uma rainha! Teríeis sido o mais brilhante dos embaixadores!

Ditas estas palavras, o duque despediu-se da Sr.a dÊtampes e afastou-se, maravilhado com o súbito aspecto que haviam tomado as negociações.

— Agora, a minha vez de falar abertamente e sem rodeios — disse a duquesa ao conde d'Orbec, mal ficou só com ele e Ascânio. — Sabeis agora três coisas, conde: primeiro, que é de toda a importância para os meus amigos, e para mim, que o meu poder se consolide nesta altura e fique ao abrigo de qualquer ataque; a segunda é que, depois de realizados os planos, poderemos estar seguros de que será Carlos d'Orleães quem sucederá a Francisco I, e que aquele que eu tornar duque de Milão me ficará a dever muito mais que o rei de França, a quem eu devo o que sou; e a terceira é que a beleza da vossa Colomba impressionou vivamente Sua Majestade. Pois bem, conde! Dirijo-me agora ao homem superior a vulgares preconceitos. Neste momento, tendes nas mãos o vosso destino. Quereis que o tesoureiro d'Orbec suceda ao chanceler Poyet? ou, em termos mais positivos, quereis que Colomba d'Orbec suceda a Maria de Brissac?

Ascânio teve um gesto de horror, que passou despercebido a d'Orbec. Este trocou um olhar odiosamente malicioso com o olhar profundo da Sr.a d'Etampes.

— Quero ser chanceler— respondeu simplesmente d'Orbec.

— Ora ainda bem. Estamos salvos. Mas, o preboste!...

— Ora, ora! — exclamou o conde. — Achar-lhe-eis qualquer bom lugar. Só vos peço que seja mais lucrativo que honorífico, pois é o que lucrarei quando o velho podagra morrer.

Ascânio não pôde reprimir por mais tempo a sua indignação.

— Senhora! — exclamou ele com voz vibrante e avançando.

Não teve tempo de prosseguir, nem o conde de se espantar, porque uma porta abriu-se de par em par. Era toda a corte que regressava. A duquesa d'Etampes, segurando a mão de Ascânio, recuou bruscamente com ele para junto da janela e, com voz contida mas vibrante, disse-lhe ao ouvido:

— Vês agora, Ascânio, como uma jovem se pode tornar concubina de um rei, e onde a vida nos conduz, às vezes, contra a nossa vontade?

A duquesa calou-se. As suas palavras graves, sucedeu o bom humor e os gracejos do rei e dos cortesãos.

Francisco I estava radiante; Carlos V estava a chegar. Haveria recepções, festas, empresas e, sobretudo, um belo papel a desempenhar. O mundo teria os olhos postos em Paris e no seu rei. Era com uma alegria quase infantil que Francisco I antevia o interessante drama de que ele ia poder puxar todos os cordelinhos. O seu temperamento levava-o, assim, a encarar os factos mais pelo seu lado brilhante e espectacular do que pelo lado sério; o que mais lhe importava era o efeito, por isso nas batalhas via torneios e na realeza, uma arte. Espírito apaixonado de esplendor, aventura, mistério e poesia, Francisco I fez do seu reinado um espectáculo e do mundo uma sala de teatro.

Naquele dia, antegozando o ensejo de deslumbrar um rival e a Europa, Francisco I encantava mais do que nunca a todos, pela sua afabilidade e clemência.

Triboulet, ao notar-lhe um ar tão prazenteiro, foi rebolar-se a seus pés no momento em que o rei transpunha a porta.

— Majestade! Oh, Majestade! — exclamou o bobo com simulado e cómico pranto — tenho a fazer-vos as minhas despedidas; tendes que resignar-vos a ficar sem mim. Se me vedes chorar, é mais por vós que por mim. Que vai ser de Vossa Majestade sem o seu pobre e tão amado Triboulet?

— Quê?! Pois tu queres-me deixar, grande doido, no momento em que há apenas um bobo para dois reis?!

— Sim, Majestade, no momento em que haverá apenas dois reis para um bobo.

— Mas como é isso, Triboulet? Tens de ficar, ordeno-te.

— Pobre de mim! Ficarei, mas nesse caso dizei duas palavrinhas ao Sr. de Vieilleville, a quem eu fui dizer o que se diz da sua esposa, e que, por coisa tão insignificante, jurou que me arrancaria as orelhas primeiro, e em seguida a alma... se é que eu tenho alguma, como disse aquele bárbaro. Acho que devíeis mandar cortar-lhe a língua por semelhante blasfémia.

— Vai-te tranquilo — retorquiu-lhe o rei —, porque quem se atrevesse a tirar a vida ao meu bobo podia ter a certeza de que seria enforcado um quarto de hora depois.

— Ah, Majestade! Se tanto se vos desse...

— O quê?

— Mandá-lo enforcar um quarto de hora antes.

Todos riram, e o rei mais que ninguém. Depois, continuando a avançar, passou junto de Pedro Strozzi, o nobre exilado.

— Sr. Pedro Strozzi — disse-lhe —, creio que muito tempo há, demasiado mesmo, que nos pedistes cartas de naturalização. É para nós um vexame que, tendo vós combatido tão valorosamente pelos Franceses e como um Francês, no Piemonte, ainda não pertençais à pátria que defendestes, uma vez que vos renega aquela onde nascestes. Esta tarde, Sr. Strozzi, o meu secretário, Le Maçon, vai enviar-vos as vossas cartas de naturalização. Não me agradeçais, pois importa que Carlos V vos venha achar Francês, para minha honra e para a vossa...

— Ah, sois vós, Cellini!. E nunca vindes com as mãos vazias. Que trazeis aí sobraçado? Ah, esperai um momento... Por quem sou, que não há-de dizer-se que vos não tenha alguma vez antecedido em magnificência. Sr. Le Maçon, às cartas de naturalização do grande Pedro Strozzi haveis de juntar as do meu amigo Benvenuto; levar-lhas-eis a sua casa sem custar. É evidente que um mestre-ourives não pode dispor de quinhentos ducados tão facilmente como um Strozzi.

— Majestade — disse Benvenuto —, quanto vos agradeço... Mas, perdoai a minha ignorância, que quereis dizer com isso de cartas de naturalização?

— Quê?! — disse António Le Maçon formalizado, enquanto o rei desatava a rir — então não sabeis, mestre Benvenuto, que as cartas de naturalização são a honra máxima que Sua Majestade pode conceder a um estrangeiro?! Não sabeis que essas cartas vos tornam francês?

— Começo a compreender, Majestade, e agradeço-vos — disse Celliní. — Mas perdoai-me mais esta pergunta: eu já era vosso súbdito pelo coração... para que me servem as tais cartas?

— Para que vos servem?! — exclamou Francisco I, cujo bom humor aumentava. — Pois servem para que eu possa, agora que sois francês, conceder-vos o título nobiliárquico de Sr. de Grand-Nesle, coisa impossível sem tais cartas. Sr. Le Maçon, juntareis às cartas de naturalização a doação definitiva do castelo. Compreendeis agora, Benvenuto, para que servem as cartas?...

— Oh, sim, Majestade! e obrigado, mil vezes obrigado! Dir-se-ia que os nossos corações comunicam sem falar, pois a graça que acabais de conceder-me é já meio caminho para um favor imenso que talvez um dia me atreva a pedir-vos.

— Tu sabes o que te prometi, Benvenuto. Traz-me o Júpiter, e pede-me o que quiseres.

— Sim, Vossa Majestade tem boa memória, e eu sei que não terá pior palavra. Podeis realizar-me um sonho de que, em parte, depende a minha vida; mas já, por um instinto real e sublime, começastes a sua realização.

— Ela se realizará totalmente, segundo o vosso desejo, meu grande Benvenuto. Mas, entretanto, mostrai-nos o que aí tendes.

— Majestade, é um saleiro de prata a condizer com o vaso e com a bacia.

— Mostrai-mo depressa, Benvenuto.

O rei examinou-o tão atenta e silenciosamente como sempre que se tratava de uma obra maravilhosa de Cellini.

— Está errado! — disse por fim. — É um disparate!...

— O quê?! — exclamou Benvenuto desesperado. — Não satisfaz Vossa Majestade?!...

— Sem dúvida!... mas como pudestes desperdiçar tão bela ideia com prata? De oiro! de oiro é que devíeis ter executado tão maravilhosa invenção! Lamento-o por vós, Cellini, mas recomeçareis, não é assim?

— Ai Majestade! — exclamou melancolicamente Cellini — não enriqueçais tanto as minhas obras. Ou me engano muito ou será a riqueza da matéria o que deitará a perder estes tesouros caros ao meu pensamento. Para uma glória duradoira vale mais trabalhar o barro que o ouro, Majestade; a fama dos ourives não conhece, em geral, a posteridade; as necessidades são às vezes prementes e cruéis, e os homens quase sempre cúpidos e estúpidos. Quem sabe se uma taça de prata feita por mim, e avaliada por vós em dez mil ducados, não virá ainda a ser vendida a peso, isto é, por dez escudos!...

— Ora, ora, Benvenuto! Cuidais que o rei de França vá algum dia empenhar aos Lombardos os saleiros da sua própria mesa?...

— Majestade» o imperador de Constantinopla não empenhou aos Venezianos a coroa de espinhos de Nosso Senhor?...

— Mas um rei de França a desempenhou, Senhor!

— Bem sei, Majestade. Mas pensai em tantos perigos que podem sobrevir, pensai na revolução, nos exílios... Eu sou de um país donde os Médicis já foram expulsos três vezes, Majestade. Reis como vós, sempre vitoriosos, são raríssimos, e esses podem conservar os seus bens.

— Não importa, Benvenuto, não importa; quero o meu saleiro de oiro, e o meu tesoureiro vai ainda hoje entregar-vos mil escudos de bom puro antigo, para o lavrardes. Ouvis, conde d'Orbec? hoje mesmo, pois não quero que Cellini perca um só minuto. Adeus, Benvenuto; continuai. O rei pensa no Júpiter, adeus, Senhores, pensai em Carlos V.

Enquanto Francisco I descia ao encontro da rainha, que já estava no coche, e que ele devia acompanhar a cavalo, correram vários factos que não devemos omitir. Benvenuto acercou-se do conde d'Orbec, dizendo-lhe:

— Tende esse ouro à minha disposição, Senhor Tesoureiro. Para que as ordens de Sua Majestade sejam cumpridas, vou já a casa buscar um saco e dentro de meia hora baterei à vossa porta.

O conde aquiesceu, inclinando-se, e Cellini saiu só, depois de ter em vão procurado Ascânio com o olhar.

Na mesma ocasião, Marmagne falava baixo ao preboste, que não largara ainda a mão de Colomba.

— Ora aqui está uma ocasião magnífica — dizia-lhe ele —, vou já prevenir os meus homens. Dizei a dOrbec que deve demorar Cellini em sua casa o mais que puder.

Enquanto Marmagne se afastava, o preboste foi junto do conde dOrbec e falou-lhe ao ouvido. Depois, acrescentou em voz alta:

— Entretanto, conde, eu acompanharei Colomba até ao palácio.

— Está bem — disse d'Orbec. — Logo à noite, vinde comunicar-me o resultado. Separaram-se então, e o Sr. d'Estourville dirigiu-se efectivamente com a filha para o Petit-Nesle.

Sem que os dois o suspeitassem, porém, eram seguidos por Ascânio, que os não perdera de vista um só momento, e que, de longe, amorosamente, via a sua Colomba caminhar. Entretanto, o rei punha o pé no estribo; montava um soberbo alazão, seu favorito e oferta de Henrique VIII. Ao subir para o cavalo disse:

— Grande caminhada faremos hoje juntos.

Lindo cavalo meu, tão manso. Tão dócil sempre a meu mandar...

— E esta!? Pois não acabo de fazer os dois primeiros versos de uma quadra!... — acrescentou Francisco I. — Mestre Marot, acabai-a vós... ou vós, mestre Melin de Saint-Gelais!

Marot coçou a cabeça, mas Saint-Gelais, adiantando-se-lhe com uma prontidão e inspiração notáveis, continuou:

 

       Sem seres Bucéfalo, te afianço

       Que outro Alexandre vais levar!

 

Estrugiram aplausos de todos os lados e o rei, já a cavalo, agradeceu ao poeta com um gesto gracioso e expressivo.

Quanto a Marot, regressou a casa ainda mais obtuso que de costume, resmungando: «Que teriam hoje todos na corte, que estavam tão estúpidos?...»

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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