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SENTADA NA SALA de costura de Hever, de costas para a janela pela qual soprava a cálida brisa vespertina - era agosto e o cómodo dava para o fosso do castelo -, Simonette inclinou-se sobre o seu bordado. Enquanto trabalhava, uma menina com cerca de sete anos espiou pela fresta da porta, sorriu e caminhou até a aia. Era umagarotinha adorável, alta para a idade, magra e belissimamente proporcionada; seus cabelos eram pretos, longos, sedosos; a pele era morna e olivácea; no rosto destacavam-se olhos grandes e negros, realçados por pestanas compridas. Era uma menina precoce, a mais inteligente que Simonette tivera a ventura de ter como aluna. A menina falava o idioma de Simonette quase tão bem quanto a própria professora- cantava como um anjo e tocava com excelência os instrumentos que o pai lhe ensinara.
Simonette costumava refletir que parecia haver algo de perfeito demais nessa criança. Mas não, não! Jamais existiu menina menos perfeita do que Ana. Duvida? Veja-a bater os pés no chão quando quer algo e está determinada a consegui-lo; veja-a brincar de pique-esconde com a pobre filha dos Wyatt! Ana jogava apenas para vencer. Era cheia de vontades. Melindrava-se fácil e sempre dizia o que lhe vinha à cabeça, sem temer punições. Era determinada e aventureira como um rapazinho, tão ávida quanto o seu irmão George ou o jovem tom Wyatt a explorar as masmorras escuras que jaziam abaixo do castelo. Não, ninguém diria que Ana era perfeita. Ana era apenas ela própria e, dentre todas as crianças dos Bolena, a mais amada por Simonette.
De quem, perguntava-se Simonette, esses pequenos Bolena tinham herdado seus encantos? De Sir Thomas, seu pai, que com a herança dos ancestrais mercadores comprara o Castelo de Blickling em Norfolk e o Castelo de Hever em Kent, assim como uma esposa aristocrática para combinar com as propriedades? Mas não! Esses encantos não podiam ter vindo de Sir Thomas, homem rude, obcecado em prosperar a despeito do que isso custasse aos outros. Não havia calor em seu coração, e os pequenos Bolena eram aquilo que Simonette costumava chamar de pessoinhas quentes. Precipitados eles eram; ambiciosos provavelmente um dia viriam a ser; mas todos eles - Mary, George e Ana - eram pessoas amáveis. Era possível tocar facilmente seus corações; eles davam amor e amor recebiam. E isso, como pensou Simonette, talvez fosse o segredo de seu carisma. Teriam herdado seus encantos da mãe? Bem... talvez um pouco. Embora a dama tivesse sido uma mulher muito bonita, seu charme era frágil quando comparado aos de seus três filhos. Mary, a mais velha, era belíssima; uma francesa como Simonette devia afeiçoar-se mais por Mary do que por George e Ana. Mary, aos 11 anos, já era mulher; vivia sorridente porque gostava que as pessoas parassem e dissessem:
- Como é bonita!
Alegre e despreocupada, essa era Mary. Simonette estremecia ao pensar nessa menina instalada numa corte estrangeira onde a moral se era possível acreditar em tudo que se ouvia - deixava muito a desejar para uma rigorosa governanta francesa. E o garboso George, que sempre tinha uma resposta arguta nos lábios e escrevia poemas divertidos sobre ele e suas irmãs - e poemas indubitavelmente indelicados sobre Simonette -, tinha sua cota do charme dos Bolena. Os dois mais novos eram inteligentes; reconheciam o brilhantismo um do outro e se amavam muito. Quantas vezes Simonette vira-os, tanto aqui em Hever quanto em Blickling, sussurrando um no ouvido do outro, compartilhando segredos! E seus primos, as-crianças dos Wyatt, estavam frequentemente com eles, porque os Wyatt eram seus vizinhos aqui em Kent e também em Norfolk.
Thomas, George e Ana formavam um trio de amigos. Margaret e Mary Wyatt, e também Mary Bolena, ficavam de fora. Mas elas não se importavam muito com isso, pelo menos não Mary Bolena, que sempre podia divertir-se sozinha planejando o que faria quando tivesse idade para frequentar a corte.
Ana parou diante de sua governanta, mãozinhas por trás e um brilho nos olhos. A pose era graciosa e cativante; para Ana, encantar era natural quanto respirar. Era inconscientemente graciosa, e o hábito de ficar nessa pose nascera de um desejo em esconder as mãos; no seu dedo mindinho esquerdo havia o começo de uma sexta unha. Não era um traço feio; mal seria notado por um olhar casual; mas Ana era criança vaidosa, e essa diferença - não poderia ser chamada de deformidade
- era-lhe deveras repugnante. Como era típico da menina, Ana infundira nesse hábito um charme que ficava aparente quando se punha ao lado de-outras crianças de sua idade; como as outras pareciam desajeitadas com as mãos pendendo à altura de seus quadris!
Ana falou no francês nativo de Simonette:
- Simonette, tenho notícias maravilhosas! Recebi uma carta de papai. vou para a França.
A sala de costura pareceu repentinamente silenciosa para a governanta; do lado de fora a brisa soprava os salgueiros que se curvavam sobre o fosso do castelo. A tapeçaria escorregou dos dedos de Simonette. Ana pegou-a do chão e colocou-a no colo da francesa. Sensível e imaginativa, a menina sabia que contara as notícias bruscamente; ficou imediatamente contrita, e enlaçou com seus bracinhos o pescoço moreno de Simonette.
- Simonette! Simonette! Deixar você é a única coisa que estraga essas notícias!
Havia lágrimas legítimas em seus olhos, mas eram porque ela magoara Simonette, não por sua partida inevitável. Ana não podia ocultar a empolgação reluzindo através das lágrimas. O Castelo de Hever era um lugar chato sem George e Thomas, que já estavam fora, prosseguindo sua educação. Simonette era querida; Mamãe era querida; mas era possível que as pessoas fossem queridas e ao mesmo tempo muito, muito chatas; e Ana Bolena não tinha paciência para a chatice.
- Simonette! - exclamou a menina. - Talvez seja por muito pouco tempo.
E como se isso pudesse prover algum consolo a Simonette, Ana acrescentou: - vou com a filha do rei!
Sete anos... cedo demais! Mesmo para uma menina precoce. Esta pequena na corte da
França! Sir Thomas era de fato um homem ambicioso. Será que ele não entendia que
essas coisinhas jovens e preciosas, sendo detentoras de uma inteligência incomum, necessitavam de cuidados especiais? "Este é o fim", pensou Simonette. Mas de nada adiantava lamentar. "Quem sou eu para conduzir a educação da filha de Sir Thomas Bolena durante mais do que os primeiros anos de sua vida?", perguntou-se ela.
- Na carta, papai mandou que eu me preparasse imediatamente... Como seus olhos cintilavam! Ela, que sempre amara histórias de
reis e rainhas, agora estava prestes a fazer parte de uma. Seu papel seria muito pequeno, isso era verdade, porque a mais jovem aia da princesa devia ter um papel muito pequeno; Simonette não duvidava de que ela iria desempenhar esse papel com afinco. Ela não mais procuraria Simonette com suas perguntas curiosas, não mais
ouviria a história do romance do rei com a princesa espanhola. Simonette contara essa história muitas e muitas vezes.
- Ela veio para a Inglaterra, a pobre princesinha, e se casou com o príncipe Arthur, que logo morreu. Então casou-se com seu irmão, o príncipe Henrique... o rei Henrique.
- Simonette, você já viu o rei?
- Vi-o na época de seu casamento. Que momento! É um homem grande e bonito, com a pele lisa e rosada como a de uma moça. Ruivo de cabelos e barba. O príncipe mais bonito que você poderia encontrar se tivesse procurado por todo o mundo.
- E a princesa espanhola, Simonette?
Ao ouvir essa pergunta, Simonette franzira o cenho; como boa francesa que era, não adorava os espanhóis.
- Era bonita o suficiente. Estava sentada numa carruagem dourada puxada por dois cavalos brancos. Seus cabelos eram compridos, quase chegando aos pés.
Simonette acrescentara, a contragosto:
- Eram cabelos bonitos. Mas ele era um príncipe menino. Ela era seis anos mais velha que ele.
A boca de Simonette aproximara-se do ouvido de Ana.
- Há quem diga que não é bom que um homem se case com a esposa do irmão.
- Mas ele não era um homem, Simonette. Era um rei!
Dois anos antes, George e Thomas costumavam ficar sentados à janela conversando como homens sobre a guerra contra a França. Simonette procurara não falar muito sobre o assunto. Temera ser expulsa do castelo devido aos pecados de seu país. E no ano seguinte houvera mais guerra, desta vez contra os traiçoeiros escoceses. Sobre essa guerra Ana amara conversar, afinal fora na batalha de Flodden Field que seu avô, o duque de Norfolk, e seus dois tios, Thomas e Edmund, haviam salvo a Inglaterra para o rei. As duas guerras estavam agora concluídas satisfatoriamente, mas guerras deixavam sequelas, abalando as vidas até mesmo daqueles que se pensavam distantes delas. Os ecos tinham-se propagado de Paris e Greenwich até a quietude de um castelo Kentish.
- Eu vou com o cortejo da irmã do rei, que irá desposar o rei da França, Simonette. Dizem que ele é muito, muito velho e... - Ana estremeceu. - Eu não gostaria de me casar com um homem muito velho.
- Bobagem! - exclamou Simonette, levantando-se e colocando sua tapeçaria de lado. - Ele pode ser velho, mas também é um rei. Pense nisso!
Ana ficou pensando, olhos brilhando, mãos cerradas às suas costas. "Que grande erro cometi", pensou Simonette. "O erro de, sendo uma governanta, amar bem demais aqueles que tenho sob minha guarda."
- Vamos-disse ela. - Precisamos escrever uma carta para o seu pai. Precisamos expressar nosso prazer com esta grande honra.
Ana estava correndo até a porta em sua ansiedade por acelerar os eventos, para apressar o começo daquela jornada empolgante. Então mais uma vez ficou triste ao lembrar-se de Simonette... a querida, bondosa, gentil, mas chata Simonette. Parou, girou sobre os calcanhares e correu de volta até sua governanta, pousando uma das mãos sobre as dela.
Em seus aposentos no Castelo de Dover, as damas de honra riam-se e sussurravam entre si. A mais jovem dentre elas, a quem esnobavam descaradamente - mais por inveja de sua beleza do que por sua carência de herança nobre - escutava sequiosa cada palavra.
Como eram lindas essas jovens damas, e como, na privacidade de seus aposentos, diferiam das criaturas serenas que eram durante as cerimónias de Estado! Ana considerara-as tão encantadoras que não podiam ser reais, quando se perfilara com elas na solenidade do casamento real em Greenwich, onde o duque de Longueville atuara como procurador para o rei da França.
Então, depois de muito tempo sem estar sentada, seus pés tinham ficado doídos e seus olhos haviam começado a piscar sonolentos, e a despeito de toda a sua empolgação, Ana sentira falta dos braços fortes de Simonette para carregá-la para a cama. Nos aposentos, as damas despiam as roupas brilhantes e caminhavam quase sem nada a cobrir-lhes os corpos, conversando sobre os lordes e cavaleiros com uma franqueza estarrecedora - mas ao mesmo tempo interessantíssima - para uma menina de sete anos.
Tendo acompanhado à costa sua irmã favorita, o rei estava em Dover. Os dois tardaram-se um mês inteiro no castelo, pois do lado de fora as ondas levantavam-se altas contra os rochedos e o vento soprava sobre as muralhas, chocalhando janelas e portas, e uivando pelas chaminés enormes, zombando dos planos dos reis. Atrevidos, vento e ondas empurravam destroços de navios ao longo da costa, como se mostrando o que acontecia àqueles que ignoravam a rabugice do oceano. Não havia outra coisa a fazer senão esperar; e no castelo matava-se o tempo com mascaradas, danças e banquetes, afinal o rei precisava ser entretido.
Ana vira-o de relance várias vezes, uma montanha de homem com pele sedosa e cabelos brilhantes. Quando falava, sua voz - que não destoava do corpanzil - ressoava pelas câmaras do castelo. As roupas de qualidade excepcional faziam parte de sua personalidade cativante. Os homens curvavam-se de medo diante de sua fúria, que irrompia tão repentina quanto sua risada; da mesma forma, a boca miúda, sempre preparada para sorrir a uma brincadeira, tornava-se, fácil, a mais cruel do mundo.
Em seus aposentos as damas conversavam constantemente acerca do rei, de sua rainha e de Maria Tudor, que para elas era no momento o membro mais fascinante da família real. Era Maria Tudor a quem estavam acompanhando ao longo do Canal até Luís da França.
Foi Lady Anne Grey quem disse:
- Não me causaria estranheza se minha dama fugisse com Suffolk!
- De fato! - respondeu Elizabeth, sua irmã. - Não iria me importar se estivesse em seu lugar, mas jamais no de Lord Suffolk. Imaginem só a fúria do rei!
Aninha estremeceu ao imaginá-la. Podia ser jovem, mas era madura o bastante para sentir a atmosfera de inquietude que inundava o castelo. A espera fora longa demais, e Maria Tudor - a mais adorável das criaturas na qual Ana já deitara os olhos - era tão indomável quanto a tempestade que irrompia lá fora, e quase tão confiável quanto o clima inglês. Contando 19 anos, Maria era muito parecida com o rei; possuía os mesmos cabelos castanho-avermelhados, pele clara, olhos azuis; o mesmo gosto por viver. A semelhança era notável, e o rei, dizia-se, amava-a muito. Havia em sua natureza dois ingredientes que se combinavam numa poção incendiária: um era sua ambição, que a deixava sedenta por compartilhar do trono da França; o outro era seu amor ardente pelo galhardo Carlos Brandon; e quando seus humores eram inconstantes como o clima de abril, perigo pairava no ar. Ser a rainha de um rei senil, ou a duquesa de um duque belo? Maria não se decidia pelo que queria, e com suas aias discutia seus sentimentos com paixão, incerteza, e a sinceridade tão típica dos Tudor.
Maria, que gostava de Ana por sua graça e precocidade, dizia à menina:
- Gostaria que outros tomassem a decisão em meu lugar. Não sei que caminho tomar.
Dito isso, Maria Tudor engalanava-se com um colar de jóias que lhe fora ofertado pelo rei da França, e exigia que a menina admirasse sua beleza estonteante.
- Eu não seria uma bela rainha da França, pequena Bolena? Então Maria Tudor enxugava os olhos. - Você não poderia saber... não poderia imaginar o quanto é bonito o meu Carlos! É apenas uma criança; não sabe nada do amor dos homens. Ah, se ele estivesse neste quarto comigo! Juro que eu iria forçá-lo a me possuir aqui e agora. Então, talvez, o rei da França não iria me desejar tanto, não acha, Ana?
Maria Tudor alternava lágrimas e risos; uma dama muito, muito complicada.
Quanta diferença entre o Castelo de Dover e o Castelo de Hever! Se, por acidente, alguém escutasse essa conversa, como imaginaria que uma das interlocutoras era senão uma menina, inculta dos assuntos mundanos? Uma criança que entendia menos da metade do que lhe era dito? O que importava se essa menina falasse francês tão bem quanto as damas Anne e Elizabeth Grey? De que valia uma noção de francês quando se vivia quase em ignorância absoluta dos modos do mundo? Restava à menina a opção de ouvir e aprender.
O rei, minha querida, foi afetado terrivelmente pela dama de
escarlate - confidenciou-lhe Lady Elizabeth. - Não entendes?
- E quem era ela?
A dama levou um dedo à frente do lábio e riu à socapa.
- E quanto à rainha? - perguntou a miúda Ana Bolena. As damas gargalharam.
- A rainha, minha querida, é uma velha. Tem 29 anos.
- ... 29! - gritou Ana, e tentou imaginar-se naquela idade avançada, o que descobriu ser impossível. - É mesmo velha.
- E parece mais velha do que é.
- O rei... ele também é velho demais - disse Ana.
- Você é muito jovem, Ana Bolena, e não sabe de nada... de nada mesmo. O rei tem 23 anos, e essa é uma idade muito boa para um homem.
- Parece-me uma idade muito avançada - disse a pequena Ana, só para ouvir as damas escarnecerem novamente dela.
Ana, que odiava que rissem dela, reprovou-se por não ter segurado a língua. Ela precisava ficar em silêncio e escutar; era assim que se aprendiam as coisas. As damas cochicharam uma ao ouvido da outra, sussurrando segredos que Ana não devia ouvir.
- Ora, ela é apenas uma criança! Não sabe de nada.. Não levou muito tempo para cansarem de sussurrar.
- Dizem que há muito tempo ele está cansado dela...
- Até agora, não tiveram filho... o casamento não rendeu sequer um fruto!
- Ouvi dizer que ela, tendo sido esposa do irmão dele...
- Fale baixo! Quer que lhe separem a cabeça dos ombros?
Era interessante, cada minuto daquilo. A menininha ficou calada, sem deixar escapar uma palavra sequer.
Naquela noite, enquanto Ana dormia serena, uma figura inclinouse sobre a menina e a balançou com força. Ana abriu os olhos para encontrar Lady Elizabeth Grey curvada sobre ela.
- Acorde, Ana Bolena! Acorde!
Ana lutou contra o sono que relutava em deixá-la.
- O clima mudou - relatou Lady Elizabeth, dentes batendo por frio e empolgação.-O clima mudou. Partiremos para a França imediatamente!
Fora confortante saber que seu pai estaria com ela. Também estava presente seu avô - o duque de Norfolk, pai de sua mãe. Outro membro do grupo era Surrey, seu tio.
Ainda não eram quatro da manhã, e o tempo começava a clarear, quando partiram. Ana não vira um mar tão calmo desde sua chegada a Dover. Maria Tudor estava alegre, o rosto ainda fresco do beijo de despedida de seu irmão.
- Quero que a pequena Botena fique sentada a meu lado - dissera. - Seu jeitinho bobo me diverte.
As ondas embalavam o barco. Ana estremeceu e se confortou pensando: meu pai está viajando conosco... e meu tio e meu avô. Sentia-se feliz por causa da companhia de Maria Tudor e não por estar com esses homens, a quem conhecia parcamente, cujo tempo era precioso demais para ser gasto com uma menina de sete anos, a menos importante na linhagem inteira!
- Como você se sentiria, Ana, se a estivessem mandando para um marido que jamais viu em carne e osso? - indagou Maria Tudor.
- Muito assustada, creio. Mas iria gostar de ser rainha.
- Para isso basta casar com um rei! Você é uma menininha arguciosa, não? Gostaria de ser rainha! Acha que o velho irá afeiçoar-se por mim?
- Acho que ele será incapaz de se conter de felicidade. Maria beijou a menina.
- Dizem que as francesas são muito bonitas. Veremos. Carlos, Carlos, se ao menos você fosse rei da França! Mas o que eu sou, Aninha? Nada senão uma cláusula num tratado, um peão num jogo que Sua Alteza, meu irmão, e o rei da França, meu marido, usam em seu jogo... Mas como este barco balança!
- O vento está ficando forte de novo.
- Por minha fé! Tem razão. Não estou gostando disso.
Ana estava assustada Nunca tivera uma experiência como aquela. A embarcação balançava e girava como se tivesse fugido ao controle. As ondas quebravam no casco e banhavam o convés. Agachada, um manto a embrulhá-la, Ana temia a morte e ansiava por ela.
Mas quando o enjoo passou um pouco, e o mar ainda rugia e aquele barco inadequado parecia prestes a virar, condenando sua tripulação e passageiros a afundar no oceano, Ana começou a chorar porque não queria mais morrer. Era triste morrer quando se tinha apenas sete anos e o mundo estava se revelando um palco colorido no qual ela iria desempenhar um papel, por mais coadjuvante que pudesse ser. Lembrou saudosa da quietude de Hever, das alamedas de Blicking, murmurando:
- Nunca mais vou ver as alamedas. Minha pobre mãe ficará arrasada de dor... George também. Meu pai, talvez... se ele sobreviver. E Maria chorará por mim. A pobre Simonette ficará inconsolável, ainda mais triste do que ao se despedir de mim.
Subitamente, Ana temeu pelos seus pecados.
- Eu menti para Simonette sobre a tapeçaria. O fato de eu ter mentido feriu alguém? Mas foi uma mentira, e eu não a confessei. Foi errado abrir o alçapão no salão de baile e mostrar as masmorras a Margaret, porque ela ficou assustada. Foi errado levá-la até lá e fingir que iria deixá-la... Oh, Deus, seria tão bom que o senhor não me levasse agora. Temo que minhas maldades me façam arder no inferno.
A morte era certa; ela ouviu vozes sussurrarem que eles deviam terse extraviado do resto da esquadra. Como era terrível ser tão jovem, tão cheia de pecados, e estar na iminência de morrer!
Porém, depois que o enjoo passou completamente, Ana foi animada por seu espírito aventureiro. Foi emocionante passar por tudo aquilo; mesmo quando o barco aportou no cais de Boulogne, e Ana e as damas foram levadas para os barquinhos que as conduziriam até a terra, a emoção persistiu. O vento soprava seus cabelos longos e negros, adejando-os ao redor de seu rosto, como se zangado pelo mar não tê-la tragado e a mantido sua para todo o sempre, e o sal aguilhoava suas faces. Ana estava cansada e nervosa.
Todavia, dias depois, vestida em veludo vermelho e montada num cavalo branco, Ana Bolena acompanhou a procissão rumo a Abbeville.
- Como o vermelho cai bem na pequena Bolena - sussurraram entre si as damas, invejando-a, ainda que fosse meramente uma criança.
Quando Ana Bolena chegou à corte francesa, ela ainda não se tornara a mais cintilante e alegre de toda a Europa, reputação que viria a adquirir sob a regência de François. Luís, o rei regente, era conhecido por sua sovinice. Certa vez comentou que preferia ser chamado de sovina do que sufocar seu povo com impostos. Luís cometia poucos excessos: bebia com moderação, comia com moderação, tinha uma mente calma e desprovida de qualquer criatividade. Não havia nada de notável em Luís; era a essência da mediocridade. Seu lema era França primeiro e França acima de tudo. A corte esforçava-se em imitar essa austeridade, qualidade alienígena à sua natureza, que lhe fora forçada durante a vida da rainha falecida. Suas filhas - a aleijadinha Claude e a jovem Renée - tinham lhe herdado o caráter. Não era de admirar que a corte estivesse impaciente por cair sob o feitiço do belo François, o herdeiro aparente. Assim como Luís, a linhagem de François remontava ao duque de Orleãs, e embora François estivesse na linha direta de sucessão, apenas alcançaria o trono se Luís não deixasse um varão para segui-to. Assim, François, sua irmã e sua mãe aguardavam - com impaciência e obstinação - a morte do rei, morte essa que, em sua opinião, já tardava. Imagine sua consternação com este casamento com uma jovem. A impaciência tornou-se fúria, a obstinação, medo.
Louise de Savoy, mãe de François, era uma mulher morena, passional em suas ambições para o filho - seu César, como o chamava. Compunham uma família estranha, essa mãe, seu filho e sua filha. A devoção de uns aos outros chegava às raias da doença. Estavam sempre juntos, uma trindade de devoção apaixonada. Louise consultou as estrelas, buscando bons presságios para o filho. Marguerite, duquesa dAlençon, uma das mulheres mais intelectuais de sua época, tremia diante da ameaça à ascensão de seu irmão ao trono. O próprio François - o mais jovem do trio, 20 anos, pele morena, nariz curvo e boca voluptuosa, já um farrista, do qual se dizia habituado a colher sexo das mulheres como colhia flores do jardim -, era da mesma forma um devotado membro da trindade. Aos 15 anos iniciara suas aventuras amorosas. Era imensamente generoso, dotado de raciocínio rápido, poeta de algum talento, intelectual e jamais um hipócrita. Vivia um caso de amor atrás do outro e gostava de ver aqueles que o cercavam desfrutar de prazeres similares.
- Toujours l'amour! - "Sempre o amor", clamava François.
Para ele, apenas os idiotas não eram felizes, e que felicidade podia ser comparada ao prazer do amor satisfeito? Apenas os néscios não usavam o dom concedido pelos deuses à humanidade. Apenas os imbecis orgulhavam-se da virtude. Virgindade era apenas um sinónimo para estupidez!
Louise olhou com admiração para o seu César.
por que ele não é como o meu irmão? - comentou Marguerite
dAlençon a respeito de seu estúpido marido.
E a corte da França, cansada da avareza de Luís e da influência da rainha, a quem chamavam de "a vestal", aguardavam ansiosos o dia em que François ascenderia ao trono.
E agora o velho rei casara-se com uma esposa jovem que parecia capaz de parir muitos filhos! Louise de Savoy praguejava contra os reis da França e da Inglaterra. Marguerite estava pálida, temendo que seu irmão idolatrado fosse furtado de sua herança.
- Mas como essa jovem Maria Tudor é linda!-comentou François, olhando com desgosto para sua prometida, a pequena e manca Claude.
Ana Bolena sentia muita pena de Claude. Como era triste ser desfavorecida e presenciar aquele que iria toma-la como esposa saltar dos braços de uma dama belíssima para outra, como uma libélula esfaimada num jardim de flores! Como era importante ser bonita! Ela continuava aprendendo, ouvindo, olhos arregalados para nada perder.
Em seu relacionamento com o rei, Maria, a nova rainha francesa, era arisca como um potro, e muito mais bonita. Confidenciava francamente sua intimidade com suas aias, agora a maioria francesa, pois praticamente todo seu cortejo de damas inglesas fora mandado para casa. O rei as dispensara; elas formavam uma cerca em torno da rainha, dissera ele, e se quisesse conselhos, a quem deveria recorrer além de seu marido? Contudo, Maria Tudor conseguira ficar com a pequena Ana Bolena. O rei voltara seu rosto esquálido - no qual a morte já começava a tocar com seus dedos frios - para a menininha e dera com os ombros. Uma criatura tão jovem não era motivo de preocupação. Assim, Ana permanecera.
- Ele é velho e está tão impaciente... - murmurou Maria. - Oh, como ele está ansioso por um filho!
Maria riu melodiosamente, enquanto reconstruía com gestos sua relutância tímida diante dos avanços do rei.
- Vejam só a pequena Bolena! Como são curiosos seus ouvidos! Espere até crescer, menina... então, para aprender, não precisará escutar quando acha que ninguém ave. Profetizo que esses lindos olhos negros terão sua chance de conhecer de perto os modos insólitos dos homens.
E Ana Bolena perguntou a si mesma: "Será que isso irá acontecer? Será que eu irei noivar e casar?"
Como sentia um pouco de medo ao pensar nisso, Ana ficou feliz em ter apenas sete anos. Quando se tem sete anos, o casamento parece um evento muito distante.
- Monsieur mon beau-fils é muito bonito, não é? - inquiriu Maria Tudor. E riu, segredos nos olhos.
"Sim, François é bonito", pensou Ana.
Era elegante e charmoso, e citava poesia para as damas ao entrar nos jardins do palácio. Certo dia cruzara com Ana nos jardins, causando um medo profundo na menina. E ele, que além de elegante e charmoso era perspicaz, percebeu seu temor, e isso divertiu-o deveras. Tomou a menina nos braços e manteve seus rostos próximos, para que ela pudesse ver os pêlos escuros e densos em suas faces e as bolsas já visíveis sob os olhos negros e faiscantes. E Ana tremeu por medo de que o rei fizesse com ela aquilo que, segundo diziam, fazia com qualquer uma que o agradasse por um momento fugaz.
Ele soltou uma gargalhada grave e gentil, e, enquanto ria, a jovem rainha apareceu na alameda. François colocou Ana no chão para que pudesse curvar-se para a rainha.
- Monsieur mon beau-fils - disse ela, rindo.
- Madame... Ia reine...
Os olhos de ambos trocaram faíscas. E a pequena Ana Bolena, não tendo qualquer papel nesse esporte que os divertia tanto, pôde escapulir.
"Realmente tenho sorte de aprender tanto", pensou Ana.
Estava agora bem mais madura que aquela menina do Castelo de Hever, que passara seus dias brincando e ajudando Simonette com seus bordados. Sabia muitas coisas; aprendera a interpretar os sorrisos das pessoas, a entender o que queriam dizer, menos pelas palavras do que pelo tom. Sabia que Maria tentava atrair François a um caso romântico, e que François, mesmo ciente da loucura disso, via-se incapaz de resistir. Maria era uma flor encantadora, rica em pólen dourado; mas ao redor dessa flor havia uma grande teia de aranha. François pairava indeciso sobre a flor, faminto por seu pólen, mas temendo cair na teia. Louise e sua filha vigiavam Maria, atentas para os sinais de gravidez tão temidos, que, para elas, significariam a morte de toda esperança para César.
Ah Aninha, se ao menos eu pudesse ter um filho! - desabafou
Maria Tudor. - Como queria aproximar-me de você e dizer-lhe "Estou enceínte"! Ah, eu dançaria de alegria. Ergueria o queixo diante da velha Louise, riria na cara de Marguerite, aquela serpente. Mas... vã esperança! O que aquele velho pode fazer por mim? Entretanto ele tenta... tenta obstinadamente... e eu também!
Ela riu ao lembrar-se dos esforços do casal. Sempre havia risos ao redor de Maria Tudor.
Por toda a corte essas palavras foram sussurradas:
- Enceintel Está a rainha enceinte?
- Se ao menos a rainha estivesse enceintel
Louise interrogou as damas que cercavam a rainha. Interrogou até mesmo Ana. A mulher, zangada e frustrada, enterrou a cabeça nas mãos e praguejou; visitou seu astrólogo; estudou seus mapas astrais.
- As estrelas disseram que meu filho irá se sentar no trono da França. O velho... é velho demais... e frio demais.
- Mas se comporta como um homem jovem e ardente - lembrou Marguerite.
- Seu fogo está se extinguindo.
- Um fogo moribundo é o último lampejo de calor, minha mãe! Maria adorava apoquentar as duas, fingindo enjoos.
- Declaro que não posso levantar-me esta manhã. Não sei qual pode ser o motivo, exceto o fato de ter comido demais ontem à noite...
- Seus olhos matreiros brilhavam, seus lábios sensuais tremiam.
- A rainha está doente esta manhã... Mas ontem à noite ela transbordava energia. Será que...?
Maria despiu as roupas e se pôs diante do espelho.
- Ana, diga-me sinceramente, estou engordando? Aqui... e aqui. Aninha, dar-lhe-ei um tapa se não disser que estou! - Riu histérica, para logo em seguida chorar um pouco. - Ana Bolena, já viu algum dia Lord Suffolk? Meu corpo clama por aquele homem! - A ambição era forte em Maria. - Um dia ainda serei mãe de um rei da França, Aninha. Ah, se ao menos meu belo beau-fils fosse rei da França! Duvida, jovem Bolena, que a esta altura ele já teria me dado um filho? O que eu quero da vida? Não sei, Ana.... Agora, se eu jamais tivesse conhecido Carlos...
O olhar de Maria se perdia quando ela pensava em Carlos Brandon.
Quando o rei entrava e flagrava-a distraída, Maria divertia-se fingindo que ele era a causa de seu olhar perdido. O pobre e velho rei estava completamente enfeitiçado por aquela bela criatura. Dava-lhe presentes, lindas jóias; uma por vez, para que a rainha pudesse expressar sua gratidão a cada uma. A corte ria às costas do velho.
- A nova jóia valerá cada centavo gasto!
Esse tipo de coisa espalhava risos pela corte francesa, que a cada dia caía mais sob a influência de François.
Imprudente, Maria flertava com o impaciente François.
Se o rei não lhe dava um filho, sussurrava a corte, por que não consegui-lo com François?
Nessa barganha, a rainha não sairia perdedora, mas o pobre François sim. Que-satisfação haveria em assistir à sua própria cria furtar-lhe o trono? Pouca, pois a
criança não teria qualquer ciência da paternidade. Oh, mas isso seria divertido, e os franceses gostavam de quem os entretinha. E o fato de que a causa do divertimento seria Maria Tudor oriunda daquela ilha umbrosa do outro lado do Canal-tornaria a coisa ainda mais divertida. Ah, esses ingleses, eles não existiam! Imagine só, uma princesa inglesa apresentar-lhes-ia a melhor comédia da História! François estava tenso; François estava inquieto. Sua paixão se retesava e se expandia. Não existia outra mulher, tinha certeza, a quem pudesse desejar mais do que a essa jovem Tudor de sangue quente. Havia quem considerasse seu dever alertá-lo.
- Não vê a teia estendida para pegá-lo? François via; relutantemente, desistiu da caçada.
No primeiro dia de janeiro, quando Ana retornava dos aposentos da rainha, deparou-se com Louise... uma Louise nervosa, de cabelos negros desgrenhados e um brilho selvagem nos olhos.
Ana hesitou, e foi empurrada rudemente para o lado.
- Saia da frente, menina! Não ouviu as notícias? O rei está morto. Diante do fato a excitação da corte adquiriu um tom mais discreto,
embora tenha aumentado ao invés de se abater. Louise e sua filha estavam jubilosas com o falecimento do rei, mas sua felicidade com o evento jazia à sombra do medo. Em quais condições estaria a rainha? Elas mal podiam esperar para saber. Estavam trémulas, desconfiadas. O que as pessoas sabiam? O que tinham ouvido? A corte estava inundada em intriga... e, no âmago de tudo, a galhofa de Maria Tudor.
O período de luto se instaurou, e o corpo jovem da rainha não pareceu alargar-se com o passar dos dias. Louise sentia-se agoniada, e François pareceu perder seu ânimo costumeiro. Apenas a rainha, empertigada e linda como nunca, divertia-se. Em seus aposentos, Louise debruçava-se sobre mapas astrais; cada vez mais, autoridades no mecanismo das estrelas visitavam-na.
- A rainha está enceintéí - indagava Louise, implorando que lhe dissessem que Maria não estava grávida, porque seria um golpe poderoso demais saber que a rainha iria dar a luz a um herdeiro!
Durante esses dias de suspense Louise pensou no passado; sua breve vida de casada, sua viuvez; o nascimento da arguta Marguerite, e então aquele dia em Cognac, há quase 21 anos, quando ela saiu direto da agonia do parto para o prazer de ter seu filho nos braços. Pensou em seu marido amoroso, que morrera quando François não contava nem dois anos. Sua perda fora-lhe um golpe duro, mas então ela dedicara toda sua vida a seus filhos, cuja educação supervisionou pessoalmente, deliciada com sua capacidade de aprender, seus talentos intelectuais que decerto destacavam-nos de todos os outros. Os dois eram merecedores de grandeza, principalmente seu César. Nesse tocante, Marguerite concordava plenamente com a mãe. Ele iria ser rei da França, pois nascera para sê-lo. Nenhum outro merecia mais do que ele tal honra, o bonito, cortês, viril, culto François. E agora este temor! A ameaça contra o direito de seu filho, ameaça na forma de uma vadia inglesa. Uma Tudor! Quem eram os Tudor? Eles não tinham muita História para recordar, tinham?
- Meu César será rei! - determinou Louise.
E, incapaz de suportar mais o suspense, seguiu até os aposentos da rainha, e enquanto fazia muitas perguntas sobre sua saúde, percebeu que Sua Majestade não parecia mais cheia no ventre do que no dia anterior. Assim, ela - que, afinal de contas, era Louise de Savoy, um poder na Franca mesmo nos dias de sua velha inimiga e rival, Anne de Brittany - balançou a sarcástica rainha até que o enchimento caiu das roupas da criatura. E... alegria, divina alegria! Ó abençoados astrólogos, que haviam lhe assegurado que seu filho teria o trono! Ali estava a pérfida, tão lisa e esguia quanto uma virgem.
Maria deixou a corte da França, e em Paris, secretamente e com grande pressa, casou-se com seu Carlos Brandon. Na corte da França, comentou-se o fato com discrição, até que ninguém aguentou mais e todos puseram-se a rir imoderadamente, porque se dizia que Brandon não ousando contar a seu rei do casamento não santificado com a rainha da França e a irmã do rei da Inglaterra, escrevera sua apologia a Wolsey, implorando ao grande cardeal que conduzisse as notícias gentilmente ao rei.
François sentou-se triunfal no trono e desposou Claude, enquanto Louise exultava com o prazer maravilhoso de um sonho concretizado. Ela era agora Madame da corte francesa.
A pequena Ana permaneceu na corte francesa para servir Claude. A duquesa dAlençon contraíra um grande afeto pela criança, devido à sua beleza, graciosidade e inteligência. Ela não contava ainda oito anos, mas detinha muita sabedoria mundana; sabia que a aleijada Claude era submissa, ignorada pelo marido, e que era a irmã do rei a verdadeira rainha da França. Ana costumava ver irmão e irmã passeando pelo palácio, braços dados, discutindo assuntos de Estado. Como Marguerite destacava-se numa corte onde o intelecto recebia o respeito que lhe era devido, podia aconselhar e auxiliar seu irmão. Outras vezes, Marguerite lia para o rei seus últimos escritos, e o rei mostrava-lhe um poema que escrevera. Ele chamava-a de sua mascote, sua querida, ma mignonne. Ela não queria outra coisa senão ser sua escrava; vezes sem conta declarou que se dispunha a ser até lavadeira do irmão, se preciso fosse, e por ele lançaria ao vento suas cinzas e ossos.
A sombra de Anne de Brittany foi banida da corte, e o rei passou a lançar-se a toda sorte de prazeres. Assim, a corte retomou suas raízes gaulesas, tornando-se uma das mais alegres da Europa. Era elegante; era única; sua pompa era da mais alta ordem; a alegria corria solta nos banquetes e bailes. Era a mais cintilante das cortes, a mais intelectual das cortes, e Marguerite dAlençon, irmã e escrava devotada do rei, era sua verdadeira rainha.
Foi nessa corte que Ana Bolena se despiu de sua infância e adentrou a maturidade prematura. com o passar dos anos e o desenvolver de sua amizade com a estranha e fascinante Marguerite, a própria Ana Bolena tornou-se uma das estrelas mais brilhantes da corte.
Entre as cidades de Guisnes e Ardres erguia-se uma fortaleza majestosa. O sol morno de junho banhava o palácio de Guisnes com toda sua reluzente glória. Era um castelo de contos de fadas, ainda que temporário- uma construção na qual muitos homens trabalhavam desde fevereiro, principalmente à custa do povo inglês. Seu objetivo era simbolizar o poder e as riquezas de Henrique da Inglaterra A seus portões e janelas posicionavam-se soldados, cujos rostos selvagens aterrorizavam a todos que os olhavam de muito perto; eles representavam o poderio bélico da pequena ilha do outro lado do Canal, talvez não particularmente significante aos olhos da Europa até aquele estadista hábil, o argucioso Wolsey, pôr as mãos no leme do país. Sempre que possível, as bandeiras de tecido dourado, as mobílias finíssimas e as cortinas suntuosas ostentavam a rosa Tudor - representando assim a riqueza da Inglaterra. A imensa fonte no átrio, da qual fluía vinho-clarete, branco e tinto -, e sobre a qual posava um grande Baco de pedra com a inscrição em ouro Faictes bonne chere qui vouldra, simbolizava a hospitalidade dos Tudor.
O povo de Inglaterra, que jamais veria tal demonstração de pompa, mas que para ela contribuíra com uma soma consideravelmente grande, talvez reclamasse; aqueles lordes que tinham sido ordenados pelo rei a realizar esta que era a empresa mais opulenta e cara de sua História, talvez ansiassem por retornar a suas propriedades, empobrecidos pela necessidade de pagar por suas participações na empreitada; mas o rei não se apoquentava com essas trivialidades. Ele estava prestes a se encontrar com seu rival, Francis; estava prestes a provar a Francis que era o melhor rei, o que era meramente uma questão de opinião; estava prestes a provar que era um homem melhor, o que alguns poderiam considerar duvidoso; estava prestes a mostrar que era um rei mais rico, o que, graças a seu precavido pai, era um fato; e que era poderoso na Europa, sobre o que não restava qualquer dúvida. Ele tinha muitos motivos para se alegrar neste reluzente palácio que erigira como local de repouso temporário de sua augusta pessoa; podia sorrir complacente porque, a despeito de seu tamanho, o lugar não comportava todo o seu cortejo, e os seguidores fiéis acomodavam-se na miríade de tendas coloridas em torno do palácio. Podia congratular-se pelo palácio de Francis em Ardes ser menos magnífico que o dele; e essas coisas enchiam o rei da Inglaterra com uma satisfação sem tamanho.
No pavilhão que servia como aposentos para o rei francês, a rainha Claude preparava-se para sua reunião com a rainha Catarina. Suas aias também se preparavam; e entre elas havia uma cuja beleza destacava-a de todas as outras. Estava agora com 14 anos, uma jovem adorável e esguia que trazia seus cabelos negros amarrados em anéis de seda, e em cuja cabeça repousava uma auréola de gaze trançada, cor de ouro. O azul de suas vestes combinava maravilhosamente com sua beleza morena. O vestido era de veludo azul chapinhado com estrelas prateadas; a capa de seda aguada era franjada com arminho, com mangas desenhadas pela própria dona; eram mangas largas e compridas que cobriam suas mãos, ocultando-as, porque ela sentia-se ainda mais incomodada com suas mãos do que em seus tempos em Blicking e Heber. Sobre essas vestes ela usava uma capa de veludo azul adornada
por pontas, e de cada uma das pontas pendiam pequenos sinos dourados; os sapatos eram encapados no mesmo veludo azul do vestido, e estrelas de diamante piscavam
nos dorsos de seus pés. Ana Bolena era uma das damas mais elegantes da pequena e avançada corte da França. No momento, as damas da corte esforçavam-se para copiar
aquelas mangas longas e pendentes, de modo que um artifício engendrado para ocultar uma deformidade tornava-se moda. Dentre as damas mais jovens, Ana era a mais alegre. Quem não seria alegre, sendo tão deslumbrante? Era dotada de uma oratória excepcional, e sempre tinha na ponta da língua uma resposta para tudo. Na dança, eclipsava todas as outras. A voz era um deleite; tocava a harpa com competência, e compunha um pouco. Conhecia as verdades do mundo, mas ainda assim deixava-se envolver em inocência e jovialidade.
O próprio François deitara olhos cobiçosos sobre Ana, mas a moça não era tola. Ela ria desdenhosamente daquelas mulheres que ficavam felizes em reter a atenção do rei por um dia. Como boa amiga que era, Marguerite imbuíra-a com uma maneira de pensar nova e avançada, cuja base era a igualdade dos sexos.
- Somos iguais aos homens, quando nos permitimos ser - teorizara a duquesa.
E Ana estava determinada a se permitir a ser. Assim, com perspicácia e diplomacia, Ana mantinha distância de François, e ele, entretido com isso e sem qualquer malícia, aceitara graciosamente a derrota.
Ana estava então em seu elemento; não havia nada de que gostasse mais do que se ver cercada por luxo, e lá havia luxo numa profusão que ela jamais encontrara antes. Sentia-se orgulhosa de seu berço inglês, e bebia sequiosamente das notícias sobre o esplendor da Inglaterra.
O cardeal parecia um rei - ouviu alguém dizer, e o relato prosseguiu com uma descrição de seu séquito, a beleza de suas vestes. - E ele é apenas o servo de seu mestre! O esplendor do rei da Inglaterra, então, é difícil descrever.
Ana já o vira algumas vezes: o grande rei vermelho. Tinha mudado muito desde a última vez em que o avistara, em Dober. Estava mais corpulento e rude; talvez desprovido de suas vestes deslumbrantes não fosse um homem bonito. O rosto estava mais vermelho, as faces mais cheias; todavia, a voz era tão retumbante quanto Ana lembrava. Que contraste representava com o moreno e discreto François! E Ana não era a única a presumir que esses dois nutriam pouco amor um pelo outro, apesar de todas as suas demonstrações de afeição.
Durante os dias que se seguiram ao encontro dos reis, Ana dançou, comeu e flertou como todas as outras damas. Naquele dia, cortesãos franceses eram convidados dos ingleses, sendo entretidos com quadros vivos, esportes, uma justa, um baile de máscaras, um banquete. No dia seguinte, seria a vez da corte francesa. Tudo precisava ser luxuoso; a corte francesa precisava ofuscar a inglesa, e em seguida os ingleses teriam de ser ainda mais grandiosos. Para que se preocupar com o custo, se era repassado para o povo sob a forma de impostos? Para que se preocupar com o fato de que os dois reis, por baixo das aparências de amizade sincera, eram inimigos jurados? Para que se preocupar? Este era o evento mais espetacular e luxuoso da História; e se era também o mais vulgar, o mais sem propósito, qual era o problema? Os reis precisam de diversão.
Mary Bolena viera auxiliar a rainha Catarina em Guisnes. Tinha 18 anos - uma criatura bonita e voluptuosa. Fazia anos que não via sua irmã mais nova, e, portanto, foi interessante encontrá-la no pavilhão em Ardres. Mary retornara do continente para a Inglaterra com a reputação em frangalhos; e seu rosto e modos, seu corpo pequeno e ávido, sugeriam que os rumores tinham fundamento. Mary parecia precisamente o que era: um animal amoroso, cheio de desejo, sensual, disposto a aventuras e incapaz de evitá-las, dizendo com os olhos: "Se é tão bom, por que deixar para o amanhã?"
Ana leu isso tudo no rosto da irmã, e sentiu-se constrangida. Feria sua dignidade reconhecer essa leviana como irmã. Os Bolena não eram uma família nobre; não eram uma família particularmente abastada. Ana era meio francesa em natureza; apesar de impulsiva, era prática. As irmãs eram tão diferentes quanto irmãs podiam ser. Ana punha um preço bem alto em si mesma; Mary não punha preço algum. A corte francesa abrira os olhos de uma para os assuntos mundanos quando ela era bem jovem, os franceses consideravam
l'amour muito encantador...
de fato, o que mais poderia ser? Mas a corte francesa também ensinara a Ana elegância e dignidade. E aqui estava Mary, irmã de Ana, com seu vestido cortado baixo
demais, e seus seios premidos para cima de modo provocante. E na boca entreaberta e nos olhos fúlgidos, estava o apelo de um animal fêmea implorando para ser possuído. Mary era bonitinha; Ana era bela. Ana era inteligente; Mary era uma tola.
Como ela perambulava pelos Cómodos das Damas, examinando os pertences da irmã, suas jóias, suas roupas! Aquelas mangas maravilhosas! Como Ana fora esperta em transformar uma desvantagem num trunfo! Terei essas mangas no meu novo vestido, pensou Mary; elas concedem uma graça adicional à silhueta., mas seria porque a graça vinha naturalmente para ela? Mary não podia conter sua admiração pela irmã. Pura e simplesmente, Ana Bolena parecia elegante como uma duquesa, orgulhosa como uma rainha.
- Por pouco não a reconheci, irmã!
- Eu tampouco a você. Ana estava sequiosa por novidades da Inglaterra.
- Fale sobre a corte da Inglaterra. Mary fez uma careta.
- A rainha... Ah, a rainha é muito chata. Você é uma felizarda por não servir à rainha Catarina. Somos obrigadas a nos sentar e costurar, e a frequentar a missa oito vezes por dia. Nós nos ajoelhamos tanto que os joelhos me estão gastos!
- O rei é tão devotado assim à virtude?
- Não tanto quanto a rainha, louvados sejam os santos! Ele é devotado a outros assuntos. Não fosse o rei, eu preferiria estar em casa em Hever do que na corte. Mas onde o rei está, sempre há bons esportes. Ele tem ojeriza pela rainha, e é completamente fascinado por Elizabeth Blount. Vez por outra os dois têm um filho. O rei sempre fica deliciado... e furibundo.
- Deliciado com o filho e furibundo com a rainha porque a criança não é dela? – inquiriu Ana.
Nesse caso, decerto. Uma filha a rainha tem de mostrar por
todos aqueles anos de casamento. Quando o rei ganha um filho, é de Elizabeth Blount. A rainha fica desapontada; ela mergulha ainda mais em suas devoções. Coitadas de nós... que não somos tão devotadas e precisamos rezar com ela e ouvir as músicas mais melancólicas que já se compuseram. O rei é belo, e ela, desgraciosa...
Ana pensou em Claude, tão submissa e quieta, não uma jovem que desfrutasse de viver, mas apenas uma máquina de parir filhos.
"Eu não seria como Claude, nem pelo trono da França", pensou Ana. "Eu não seria como Catarina, feia e sem atrativos depois de tantos abortos. Não! Eu seria como eu própria... ou Marguerite."
- Que notícias tem de nossa família? - perguntou Ana.
- Poucas, e coisas que decerto você sabe. A vida não nos é desagradável. Contudo, ouvi uma história triste sobre nosso tio, Edmund Howard, que é muito, muito pobre, e cuja família está crescendo rápido demais. Tudo que ele tem é sua casa em Lambeth, e nela procria filhos para passar fome com ele e sua senhora.
- Sua recompensa por salvar a Inglaterra em Flodden! - exclamou Ana.
- Fala-se que ele tenciona partir numa viagem de descobrimento, e fazendo isso ganhar um pouco de dinheiro para sua família.
- Tão deprimente ouvir notícias como essas sobre membros de nossa família!
Mary olhou de soslaio para a irmã; a arrogância cedera lugar à compaixão; a raiva encheu seus olhos negros, raiva da ingratidão de um rei e de um país para com um herói do campo de Flodden.
- Você pensa como uma rainha-analisou Mary. - Puseram ideias grandiosas em sua cabeça desde que você foi viver na corte francesa.
- Prefiro pensar como uma rainha que como uma meretriz! disparou Ana.
- Pois casa e poderá pensar como uma! Mas quem disse que você deve pensar como uma meretriz?
- Ninguém disse. Sou eu quem diz que prefiro não pensar como uma
- A rainha é contra este congresso - comentou Mary. - Ela não morre de amores pelos franceses. Ela reclamou disto com o rei; não sei como ela ousou, conhecendo seu temperamento.
Mary pôs-se a cantarolar um pouco. Ela começou a examinar um pouco mais os aposentos, testando os materiais dos vestidos da irmã. Fez perguntas sobre a corte francesa, mas não ouviu as respostas. Era tarde quando ela deixou sua irmã. Ela seria repreendida por isso, talvez; não ia ser a primeira vez que Mary seria repreendida por chegar tarde.
"Mas por uma irmã!", pensou Mary, divertindo-se.
Num corredor do suntuoso palácio de Guisnes, Mary deparou-se de repente com uma figura vestida majestosamente, e, apressada como estava, esbarrou com ele. Ela vislumbrou um casaco de veludo vermelho guarnecido com triângulos de pérolas; os botões do casaco eram diamantes. Os olhos de Mary arregalaram-se de vergonha e confusão, e ela se prostrou sobre um joelho.
Ele olhou para Mary. Seus olhos pequenos e reluzentes espiaram por entre as bolsas de pele vermelha que o cercavam.
- Bobagem! Bobagem! - disse, e então: - Levante!
Sua voz era rouca e grave, e talvez fosse isso e seu modo brusco de falar que tinham lhe valido a alcunha "o rude".
Seus olhos pequenos viajaram velozmente por todo o corpo de Mary Bolena, e então pousaram no busto provocador, expondo muito mais do que a moda demandava, nos lábios entreabertos e nos olhos encantadores.
- Eu a vi em Greenwich... a filha dos Bolena! Não é isso?
- Sim... se agrada chamar-me assim, Vossa Alteza.
- Sim, me agrada - disse.
A garota estava tremendo. Ele gostava que seus súditos tremessem, e se os lábios dela eram um pouco estúpidos, os olhos prestavam-lhe a homenagem que ele mais gostava de receber de súditas bonitas em corredores onde, de vez em quando, ele se via desacompanhado.
- Você é uma moça bonita.
- Vossa Majestade é gentil...
- Ah! - disse, rindo, o corpo tremendo por baixo do veludo vermelho. - E preparado para ser ainda mais gracioso quando em companhia de uma moçoila linda como você.
Henrique era absolutamente desprovido de delicadeza. Na verdade, ele estava menos elegante, mais rude, durante essa estadia na França. Ele estava disposto a mimetizar os galanteios dos franceses, embora não precisasse. Ele gostava de uma garota, e uma garota gostava dele; não era preciso qualquer fineza. Ele pousou uma gorda mão, reluzente de anéis, sobre o ombro de Mary. Qualquer relutância que Mary pudesse ter sentido - mas, sendo Mary, ela provavelmente sentiu muito pouca -, derreteu-se a seu toque. Sua admiração por ele transparecia em seus olhos; seu rosto tinha a expressão tensa de um desejo que estava aumentando e que iria sobrepujar todos os outros sentimentos. Para ela, ele era o rei perfeito, porque, sendo o rei, possuía o mais formidável ingrediente de domínio sexual: poder. Ele era o homem mais poderoso da Inglaterra, talvez o mais poderoso na França, também. Ele era o príncipe mais charmoso na cristandade, ou talvez suas roupas fossem mais lindas do que as usadas por qualquer outro, e o desejo de Mary por ele, e o dele por ela, era potente e óbvio demais para ser velado.
Henrique disse:
- Ora, garota...
E sua voz enrouqueceu e sumiu enquanto ele a beijava, e suas mãos apertaram os seios macios que tão claramente pediam para serem tocados. Os lábios de Mary prenderam-se à pele dele, e suas mãos apertaram o veludo vermelho de suas vestes. Henrique beijou seu pescoço e seus seios, e suas mãos apalparam as nádegas sob o vestido da jovem. Esta atração, instantânea e mútua, foi agridoce para ambos. Um rei como ele podia tomar qualquer mulher quando e onde quisesse; mas esse monarca rude era um homem complexo, um homem que não conhecia a si mesmo completamente; um homem profundamente emocional. Ele tinha grande poder, mas devido a esse poder que amava exercer, precisava constantemente ter seu poder confirmado. Quando, por mero capricho, um rei podia mandar cortar a cabeça de um homem ou enforcar uma mulher, ele precisava aceitar a incerteza que acompanha seu poder. Um rei se vê cercado por parasitas e pessoas que fingem amor porque não ousam demonstrar qualquer outra coisa. E na vida de um rei como Henrique havia raros momentos em que ele se sentia como um homem em primeiro lugar, e como um rei em segundo; ele valorizava imensamente tais momentos. Foi isso em Mary Bolena que lhe disse que ela o desejava - Henrique, o homem, despido de suas roupas pontuadas por diamantes; e esse homem ela queria urgentemente. Ele viraa muitas vezes, sentada com sua rainha pia, olhos baixos, bordando alguma peça de trabalho feminino. Ela até que o agradara; era bem bonitinha; o rei deixara seus olhos pousarem nela e imaginá-la nua na cama, como pensava em todas elas; nada mais do que isso. Ele gostava da família dela; Thomas era um bom servo; George, um rapaz brilhante; e Mary... bem, Mary era exatamente do que ele precisava naquele momento.
Ontem o rei da França derrotara-o numa disputa de luta romana, sendo mais habilidoso do que ele num jogo que demandava rapidez de ação em vez de força bruta como a dele. Ele ficara magoado com a indignação. E novamente, enquanto ele fazia o desjejum, o rei da França caminhava sem escolta até os seus aposentos e sentara-se informalmente; eles tinham rido e trocado piadas, e Francis chamara-o de irmão, e mais alguma coisa depois. Mesmo agora, enquanto o sexo clamava insistente .em seus ouvidos, as palavras do rei da França ecoavam dolorosamente, pois Francis chamara-o de "Meu prisioneiro!". Isso era um termo de amizade, uma pequena piada entre dois bons amigos. E tão abalado ficara Henrique em ouvir isso que não respondera nada na hora. Quanto mais ele pensava naquilo, mais insultuosa soava a saudação. Aquele não era um comentário que um rei fizesse a outro, quando ambos sabiam que sob suas demonstrações de amizade eles eram inimigos. Depois daquilo ele precisava de homenagens; ele sempre as conseguia quando precisava; mas isto que Mary Bolena oferecia-lhe era diferente: homenagem a ele próprio, não à sua coroa. Francis deixou-o desconcertado, e ele queria assegurar a si mesmo que era um homem tão bom quanto o rei da França. Francis chocava-o; Francis não tinha qualquer inibição; ele glorificava o amor, adorava-o desavergonhadamente. Os casos de Henrique nunca tinham sido descarados; ele considerava-os como pecados a serem confessados e perdoados; era um homem pio. Henrique afugentou o pensamento da confissão; não se pensava nisso antes do ato. E aqui estava a jovem Mary Bolena pronta para dizer-lhe que ele era um homem perfeito, assim como um rei perfeito. Ela era das mais bonitas que ele vira nas duas cortes. Francesas... Damas orgulhosas e charmosas não eram para ele! O que ele gostava era de uma boa companhia de cama inglesa! E aqui estava uma. Ela estava com os joelhos trôpegos por causa dele; suas mãozinhas tocavam seu peito, fingindo querer empurrá-lo, desvencilhar-se dele, enquanto o que realmente estavam dizendo era "Por favor, agora... nada de esperas".
Henrique mordeu a orelha de Mary e sussurrou nela:
- Então você gosta de mim, queridinha?
Ela estava pálida de desejo agora. Ela era o que ele queria. Num excesso de prazer, o rei jovialmente deu palmadas nas nádegas da jovem, e puxou-a na direção de sua câmara particular.
Esta era a maneira de lavar da boca o gosto de toda aquela galantaria francesa! Havia um divã nesta câmara. Aqui! Agora! Ao inferno com a hora, ao inferno com o lugar.
Mary abriu os olhos e encarou o divã fingindo surpresa, o que lhe valeu um vigoroso tapa no traseiro. Todas as mulheres gostavam de ser forçadas... cada uma delas. Bem, que o fizessem; era uma característica feminina que não desagradava ao rei. Ela murmurou:
- Se apetece Vossa Majestade, estou atrasada, e...
- Claro que apetece Nossa Majestade. Apetece-nos imensamente. Venha comigo, querida Mary. Quero saber se tem o resto do corpo tão doce quanto os lábios.
Ela estava excitada, rindo alto, não mais fingindo timidez feminina agora que não tinha jeito, precisava agir com naturalidade. O rei estava deleitado; não se sentia tão feliz desde que pusera o pé neste solo abominável.
Ele riu. Sentia-se revigorado, purificado de toda a humilhação sofrida. Ele iria tomar esta jovem ao modo inglês... nada de circunlóquios franceses! Iria dizer o que pensava, e ela também faria isso.
- Mary, você é toda doce, de fato - proclamou o rei. - E onde se escondeu todo esse tempo? Não temos certeza se você não merece punição por ter-se escondido de seu rei até agora. Poderíamos chamar isso de traição, poderíamos realmente!
Ele riu, como sempre, entretido por seus próprios galanteios. E ela manteve-se calada e passiva; então começou a reagir, fingindo temer ter sido presunçosa por ter proporcionado tanto prazer ao rei. Era o que ele queria, e não era ingrato para com os súditos que o agradavam. Muito espirituosamente, o rei deu uma palmada forte nas nádegas de Mary, agora sem qualquer veludo a cobri-las. Ela riu, e os olhinhos atrevidos prometeram mais para outras ocasiões por vir.
- Você me agrada muito, Mary - disse ele, e acrescentou, num afã de ternura crua: - Não sofrerá por este dia.
Depois que o rei deixara-a sozinha, catando suas roupas pelo chão, Mary ainda tremia pela violência da experiência.
Nos aposentos da rainha, foi repreendida por ter chegado tão tarde. Humilde, olhos baixos, Mary aceitou a admoestação.
Vindo de seu encontro com Mary Bolena, o rei reuniu-se com o cardeal.
Ah!, pensou o cardeal, notando as faces enrubescidas de seu mestre, e presumindo que algo acontecera. Quem era desta vez?
O rei pousou a mão no ombro do cardeal. Caminharam juntos até o corredor, conversando sobre as diversões que iriam oferecer aos franceses naquela noite. Falaram apenas sobre futilidades, porque assuntos de Estado não podiam ser discutidos no palácio de Guines; esses tópicos deviam esperar por Greenwich ou por York. Era impossível falar de assuntos importantes, cercados por inimigos.
"Tanta exuberância só pode significar uma coisa: sucesso no esporte", pensou o cardeal.
E como esporte o cardeal incluía a satisfação dos sentidos reais.
Bom!, disse o cardeal a si próprio. Assim o rei esquecerá o desastre na luta romana.
No todo, o cardeal era um homem realizado. Isso é, tão realizado quanto podia ser um homem ambicioso. Orgulhava-se de suas residências suntuosas, de suas posses abastadas. Era muito bom estar próximo ao rei, o homem mais rico da Inglaterra. E o cardeal também tinha aquilo que ele amava acima de todas as riquezas; e, para aqueles que haviam conhecido a obscuridade, o poder era uma bebida mais inebriante que as riquezas. A boca pequena, os homens podiam chamar o cardeal de "cachorro de açougue", mas tremiam diante de seu poder, porque ele era maior que o rei. Ele tinha autoridade sobre o rei, e era irrelevante o fato de que conseguia isso apenas porque Sua Majestade não sabia que era manipulada. O cardeal sentia imenso prazer em refletir que seu génio para a regência e a diplomacia haviam conduzido o reino à posição elevada na qual se encontrava. Este rei era um bom rei, porque a qualidade dos reis dependia de sua competência em escolher seus ministros. Nesse sentido, não havia dúvida de que Henrique era um bom rei; afinal escolhera Thomas Wolsey.
Agradava ao estadista ver o rei feliz com uma mulher, na iminência de se lançar a mais um caso de amor. Enquanto aquelas mãos gordas e pesadas de jóias estivessem ocupadas sobre o corpo de uma mulher, não encontrariam tempo para ficar ao leme da Inglaterra. O rei precisava ser entretido; o rei precisava ser animado. Quando o rei decidira organizar esta festa ridícula, a maior farsa da História, o cardeal não ousara debelar seus caprichos. Buckingham, aquele tolo, tentara isso. Logo Buckingham, que devia ser o mais dócil dos súditos; como parente muito próximo do rei, não tinha a cabeça segura sobre os ombros. O rei da França não merecia confiança; podia fazer tratados numa semana e esquecê-los na seguinte. Mas ele não conseguiria tirar o poder das mãos gordas do rei da Inglaterra, não enquanto o cardeal Thomas Wolsey soubesse usar a ciência da diplomacia.
"Diplomacia sempre!", pensou o cardeal.
Era preciso manter o rei entretido. Era boa notícia vê-lo encontrar prazer numa mulher; até onde o cardeal sabia, Elizabeth Blount, que servira seu propósito com excelência, começava a cansar Sua Majestade.
Os dois homens despediram-se afetuosamente diante dos aposentos reais, ambos sorrindo, satisfeitos com a vida e um com o outro.
Retirando-se para seus aposentos, a rainha dispensou as aias depois que o rei entrou. Seus cabelos louros acastanhados, ainda belíssimos, pendiam sobre os ombros; mas seu rosto estava pálido, magro e marcado por linhas, e havia sombras profundas abaixo de seus olhos.
O rei olhou com desdém para a rainha. com Mary Bolena ainda nos pensamentos, recordou a submissão fria ao dever demonstrada por essa espanhola através dos anos de seu casamento. Ela fora uma boa esposa, qualquer um diria isso; mas também teria sido uma boa esposa para seu irmão Arthur, se ele não tivesse morrido. Ser uma boa esposa era apenas mais uma das virtudes que o irritavam. E o que fora seu casamento com ela além de anos de esperança que jamais tinham materializado seus desejos?
A rainha está com uma criança no ventre; preparem-se para cantar um Te Deum; preparem os sinos de Londres. E então... aborto atrás de aborto; cinco em quatro anos.
Uma filha natimorta, um filho que vivera apenas dois meses, um menino natimorto, um que morrera ao nascer e outro nascido prematuramente. E então... uma filha!
Ele começara a sentir medo. Os rumores espalhavam-se rapidamente pelo país, e nem sempre era possível impedir que eles alcançassem os ouvidos reais.
Por que o rei não podia ter um filho?, murmurava o povo.
O rei começou a sentir medo. "Eu sou um homem muito religioso", pensou. "A culpa não pode ser minha. Assisto à missa seis vezes por dia, e em tempos de pestilência, guerra ou colheita ruim, oito vezes por dia. Confesso meus pecados com regularidade; a culpa não pode ser minha."
Mas ele era supersticioso. Ele desposara a viúva de seu irmão, e fora previsto que o casamento jamais seria consumado. De certa forma, nunca foi. A culpa não podia ser do rei. Como Deus podia negar um desejo tão querido a um homem religioso como Henrique VIII da Inglaterra? O rei procurara por um bode expiatório, e como o corpo de sua rainha estava disforme depois de tantas gravidezes infrutíferas, e como não suportara seus modos hispânicos exageradamente pios por mais de uma ou duassemanas, e como começava a odiá-la profundamente, ele culpava a rainha. Ressentido, pensava naquelas noites em que se deitara com ela Nas vezes em que rezara por um varão, lembrara a Deus sobre essas noites. Havia mulheres em sua corte que o tinham encantado, que tinham acendido seu desejo; ainda assim, por força do dever, ele deitara com a rainha, e procurara outros leitos apenas durante os períodos de gravidez da esposa. Quanta virtude... sem recompensa! Deus era justo e não tinha motivos para negar-lhe um filho. Portanto, a única culpada era... aquela mulher na qual ele gastara sua masculinidade sem ser recompensado.
Quando Elizabeth Blount parira seu filho, o rei tivera certeza de que a culpa não era dele. Ficara extasiado quando esse menino nascera. Sua virilidade vingada, a culpa de Catarina assegurada, a partir daquele dia sua aversão tornara-se tinta de ódio.
Mas esta noite seu ódio pela rainha foi suavizado pelo prazer que ele tivera com Mary Bolena. Ele esboçou aquele sorriso que a rainha sabia, por longa experiência, ser nascido do desejo satisfeito. Suas roupas luxuosas estavam um pouco amarfanhadas, as veias da testa larga estavam mais protuberantes que o usual.
O rei deixara-se cair numa cadeira, e estacou sentado, joelhos afastados, sorriso no rosto, fazendo planos que incluíam Mary Bolena.
A rainha faria uma oração especial por ele naquela noite. Enquanto isso, ela fez a si própria a pergunta que passara também pela mente do cardeal:
"Quem, desta vez?"
Vénus êtait blonde, lon ma dit. Lon you bien quelle est brutiette.
Assim cantava François para aquela que mais o excitava dentre todas as damas do séquito de sua esposa, a rainha. Infelizmente para François, além de a mais desejável, ela também era a mais esperta.
- Ah! - exprimiu François. - Você é uma mulher sábia, mademoiselle Bolena. Aprendeu que o fruto que pende fora do alcance é o mais cobiçado.
- Vossa Majestade conhece bem minha mente - explicou Ana.
- O que eu iria ser? A amante de um rei. Os dias de glória para alguém assim são muito curtos. Pode encontrar evidências disso ao nosso redor.
- Isso não depende de quem for a amante, mademoiselle Bolena?
Ela encolheu os ombros de uma forma que era muito mais encantadora do que os gestos das damas francesas, porque era apenas meio francesa.
- Prefiro não correr o risco.
O rei riu e cantou para Ana, e perguntou se ela poderia cantar para ele. Isso ela fez de bom grado; Ana tinha uma voz bonita e gostava de ser admirada sempre que a oportunidade se apresentava. O contato com a duquesa dAlençon despertara em Ana Bolena uma tendência a se valorizar imensamente, e embora gostasse de flertar tanto quanto qualquer outra mulher, sabia exatamente o momento de se retirar. Estava apreciando cada momento de sua vida na corte da França. Havia tanto ali para diverti-la que a vida jamais era tediosa. Realizar flertes inocentes, escutar notícias sobre os escândalos da corte, ler com Marguerite e aprender um pouco sobre a nova religião que começara a florescer na Europa desde que um monge alemão, de nome Martinho Lutero, pregara uma série de teses na porta de uma igreja em Wittenberg. Sim, a vida era colorida e divertida, estimulando mente e corpo. Todavia as notícias que vinham da Inglaterra não eram tão boas. O desastre se instalara depois do retorno do palácio de Guisnes. A pobreza varrera o país; a colheita fora ruim, e as pessoas morriam de peste nas ruas de Londres. O rei era menos popular que fora antes de sua paixão por Vénus, era loura, disseram-me. Vê-se bem que ela é morena.
Exibições vulgares de riqueza, que o levou a construir o lugar que os ingleses agora chamavam "O Campo do Manto de Ouro".
As notícias sobre sua família também não eram animadoras. Tio Edmund Howard ganhara mais uma criança, desta vez uma filha. Chamaram-na Catarina. Ana sentiu pronta simpatia pela pobre Catarina Howard, nascida na pobreza daquela velha casa em Lambeth. Depois, Mary casara-se com um certo William Carey - uma escolha nada brilhante. Ana preferia que sua irmã tivesse se casado melhor, mas, desde os tempos de Hever, ela e George sabiam que Mary era uma tola.
E agora nuvens de guerra começavam a se avultar no horizonte. Desta vez temia-se um conflito entre a França e a Inglaterra. Ao mesmo tempo falava-se de um casamento para Ana, que fora arranjado na Inglaterra pata acalmar alguma disputa que um ramo de sua família estava tendo com outro.
Assim, Ana deixou a França relutante, e viajou de navio para a Inglaterra. Em casa, disseram-lhe que ela parecia mais francesa que inglesa; era imperiosa, divertida, agradável ao olhar, e todos que a viam comentavam suas roupas.
Tinha apenas 16 anos.
O avô de Ana, o velho duque de Norfolk, não estava em casa quando a jovem, na companhia de sua mãe, visitou o solar dos Norfolk em Lambeth. A duquesa era uma mulher um pouco preguiçosa e fútil, que gostava de ouvir narrativas das aventuras ambiciosas dos membros mais jovens de sua família. Ela soube que sua neta, Ana, retornara da França, e que era uma criatura encantadora Portanto, nada satisfaria mais a duquesa do que receber uma visita de Ana. Durante a visita, a duquesa - que logo passou a considerar Ana o membro mais interessante de sua família - descobriu um deleite especial em sentar-se no pátio de sua casa adorável, que ficava à margem do rio, para conversar com a jovem. Essa moça tem muitos de meus traços, refletiu a velha senhora, e me recordo de ter sido muito parecida com ela em sua idade. Será que o futuro guardava para Ana Bolena honras à sua altura?, questionou-se a duquesa. Afinal o acordo de casamento com os Butler não estava chegando a uma conclusão satisfatória, e seria uma lástima se essa moça brilhante precisasse enterrar-se naquela Irlanda horrível, problemática e incivilizada! Mas-e a duquesa suspirou profundamente – o que eram as mulheres senão bens a serem negociados entre os homens para resolver seus problemas? Thomas Bolena era ambicioso demais. Cáspite! Ana é minha, para a corte ela deve ir, e que uma praga caia sobre os Butler!
A duquesa observou a jovem dar de comer aos pavões; uma figura graciosa em escarlate e cinza, Ana não era menos bela do que esses pássaros altivos, elegantes. Ela é uma Howard, pensou a duquesa com orgulho. Totalmente Howard! Não se vê na jovem um traço sequer dos Bolena.
- Venha sentar-se a meu lado, querida-disse a duquesa. - Quero falar com você.
Ana sentou-se no banco de madeira que dava para o rio. Correu os olhos por sua margem, ao longo da qual perfilavam-se casas com jardins belíssimos que vinham até a água, colocando seus proprietários em uma distância confortável dos mais rápidos e menos perigosos meios de transporte. Seu olhar subiu para as colinas e montanhas que invadiam o céu azul e sem nuvens. Ela pôde ver os arcos pesados da Ponte de Londres e as ameias da Torre de Londres - a fortaleza grande e impressionante cujas torres, fortes e formidáveis, erguiam-se como sentinelas guardando a cidade.
Agnes, duquesa-mãe de Norfolk, viu a expressão ansiosa da jovem e adivinhou seus pensamentos. Acariciou seu braço.
- Fale-me sobre a corte da França, criança. Tenho para mim que você encontrou muito com que se divertir lá.
Enquanto Ana falava, a duquesa manteve-se recostada no banco, vez por outra contendo um bocejo, porque comera demais no jantar, e por mais interessada que estivesse, o sono a vencia.
- Ora, que Deus nos abençoe! - clamou a duquesa. - Quando você partiu, o seu pai era pouco importante; agora voltou para encontrálo como um gentil-homem de grande influência... Tesoureiro da Casa Real! Aposto que está orgulhosa.
- Com certeza!
- Disseram-me que o posto paga mil libras anuais! Que outra coisa pagaria tanto? Administrador de Tonbridge... - Ela começou a enumerar com os dedos os títulos. - Mestre de Caça. Oficial do Castelo. Camareiro de Tonbridge. Xerife de Bradstead e Curador do Solar de Penshurst. E agora dizem à boca pequena que ele será nomeado Curador dos Parques em Thundersley, para não falar de Essex e Westwood. Nunca tanta honra foi prestada a um homem num período de tempo tão curto!
- Meu pai é um homem de grandes habilidades - disse Ana.
- E sorte grande - disse Agnes com malícia, fitando a jovem, pensando: "Será que ela não sabe por que essas honras foram prestadas a seu pai, será que não aprendeu nada na pérfida corte da França?" - E seu pai teve muita sorte com seus filhos - acrescentou Agnes, provocantemente.
A jovem voltou olhos intrigados para sua avó. A velha riu, pensando: "Ela sabe fingir ignorância muito bem!"
- Gostaria que a situação de todos os membros de nossa família fosse tão boa assim - disse Ana, mudando de expressão. E seus olhos caíram sobre uma casa a pouco mais de um quilómetro dali, ao longo do rio.
- Ah! - suspirou a duquesa. - Há um homem que serviu muito bem a seu país, mas que, ainda assim... - Ela deu com os olhos. - Os filhos dele não lhe terão qualquer utilidade.
- Soube que ele teve mais um filho - disse Ana. - Eles não visitam a senhora?
- Querida, Lord Edmund não sai de casa por medo de ser preso. Ele tem muitas dívidas, pobre homem, e é orgulhoso como Lúcifer. Ah, sim... uma nova criança. A pequena Catarina é ainda apenas um bebé.
- Avó, eu gostaria de ver o bebé.
A duquesa bocejou. Sempre tivera o hábito de empurrar para longe os pensamentos desagradáveis, e o ramo de sua família que discutiam agora incomodava-a muito. O que ela gostava de ouvir eram as histórias do sucesso de Sir Thomas e as aventuras de sua filha. Ela podia ouvir essas histórias e recordar sua própria juventude enquanto olhava para as águas calmas do rio. Ainda assim, ela gostaria que os Edmund Howard vissem aquela moça adorável em suas lindas roupas. A duquesa, maliciosamente, mudou de ideia. Os pequenos Howard tinham um distinto soldado como pai, e deviam estar passando fome; os filhos dos Bolena tinham um pai que podia ser um diplomata sagaz, mas, descendendo de mercadores, não era orgulhoso como os Howard; ainda assim, ele tinha uma filha deveras atraente. Nunca houve dois homens com menos em comum do que Lord Edmund Howard e Sir Thomas Bolena "E para Sua Majestade", pensou a duquesa, sorrindo num lenço de seda, "uma espada enferrujada é de menos uso do que uma jovem adorável e inteligente."
Ana corra até a casa e traga mantos - ordenou a duquesa. -
Iremos visitar a casa dos Howard. Uma caminhada irá me fazer bem e talvez livrar-me desta flatulência, que, declaro, ultimamente ataca-me após cada refeição.
- A senhora come demais, avó.
- Modere sua língua, criança imprudente! Ana correu para pegar os mantos.
Faz-me bem olhar para ela, pensou a avó. E o que irá acontecer quando o rei puser os olhos nela, hein, Thomas Bolena? Embora agora me ocorra que Ana talvez não seja do gosto dele. Fosse eu um homem, arrancaria a bofetões a arrogância de Ana Bolena antes de levá-la para a cama. E o rei não iria se rebaixar ao uso de tais meios. Ah, se for para a corte, Ana Bolena, terá de usar sua dignidade francesa... se anseia sairse tão bem quanto sua irmã abusada. Porém, você não irá para a corte; irá para a Irlanda. O título dos Ormond e a riqueza dos Ormond precisam ser mantidos na família para satisfazer Thomas, e ele sempre foi o tipo de homem capaz de atirar sua família aos lobos.
A duquesa se levantou, e Ana, que chegou correndo, colocou um manto sobre os ombros da velha. As duas caminharam lentamente pelos jardins e ao longo do rio.
O Solar Lambeth dos Edmund Howard era um lugar espaçoso, frio e úmido. Lady Edmund era uma criatura delicada cuja beleza sofrera muito com as gravidezes sucessivas e a pobreza do marido. Ela e seu marido recebiam seus visitantes no grande salão apainelado, e vinho foi trazido para que elas bebessem. A dignidade de Lord Edmund era grande, e Ana ficou profundamente tocada por seus esforços em ocultar a pobreza.
- Minha querida Jocosa-disse a duquesa para sua nora. - Trouxe minha neta para conhecê-los. Ela retornou recentemente da França, como sabem. Conte a seu respeito à sua tia e tio, meu anjo.
- Tio Edmund decerto acharia o relato de minha vida de um tédio sem par - disse Ana.
- Ah! - exprimiu Edmund. - Lembro-me bem de você, sobrinha. Castelo de Dover, não é? E aquela travessia! Cáspite! Achei que jamais iria ver seu rosto novamente, quando seu navio foi dado como perdido pelo resto de nós. Lembro de ter dito a Surrey: "Nossa sobrinha está lá, e ela é apenas um bebé!"
Ana bebericou seu vinho, conversando um pouco com Lord Edmund sobre a corte da França, o velho Luís, o alegre François, e Maria Tudor, que quisera ser rainha da França e duquesa de Suffolk, e satisfizera ambas as ambições.
A velha duquesa bateu seu cajado imperiosamente, não se importando em ser educada com Jocosa.
- Ana estava interessada nas crianças - disse a velha. - Aposto que ela ficará desapontada se não conhecê-las.
- Você precisa ir até a ala infantil - disse Jocosa. - Embora eu duvide que as crianças mais velhas estejam lá a essa horas. Os bebés adoram visitas.
A ala infantil ficava no topo da casa, e ali havia mais evidência da pobreza deste ramo da família Howard. A pequena Catarina estava vestida em farrapos. Mary, o bebé, estava embrulhada num pedaço de flanela remendada. Havia uma velha ama-seca que, Ana presumiu, decerto trabalhava sem salário por puro amor à família.
Seu rosto brilhava de orgulho pelas crianças, com afeto por sua dama; mas ela tratou com frieza Ana e sua avó. "Se eu soubesse, teria posto um vestido mais simples", pensou Ana. fe.
- Este é o novo bebé, madame - disse a ama-seca, e colocou o embrulho de flanela nos braços de Ana. O rostinho era franzido e vermelho; um bebé muito feio, mas era divertido ver a ama-seca pairando sobre ele como se fosse muito, muito precioso.
Uma mãozinha estava acariciando a seda do manto de Ana. Ana olhou para baixo e viu uma menininha muito bonita, de olhos grandes, que não podia ter mais de um ano de idade.
- Esta é a segunda mais nova - disse Jocosa.
- Pequena Catarina! - disse a duquesa, e tomou a criança nos braços. - Agora, Catarina Howard, o que você tem a dizer a Ana Bolena?
Catarina não podia dizer nada; podia apenas fitar a bela dama nas roupas bonitas e brilhantes. As jóias em sua garganta e dedos fascinavam Catarina. Ela se contorceu nos braços da duquesa num esforço de se aproximar mais de Ana, que, sempre suscetível à admiração, mesmo de bebés, devolveu o embrulho de flanela à ama-seca.
- Gostaria que eu a segurasse no colo, prima Catarina? - perguntou, e Catarina sorriu deliciada.
- Ela não sabe falar - disse a duquesa.
- Temo que ela não seja tão avançada quanto as outras-esclareceu a mãe de Catarina.
- Não diga besteiras! - ralhou a duquesa. - Lembro-me bem desta menina quando bebé. Nunca vi um bebé tão inteligente... exceto talvez seu irmão George. Agora, Mary... ela era mais como a Catarina.
À menção do nome de Mary, Jocosa se empertigou, mas a velha duquesa prosseguiu, olhos brilhando:
- Mary era uma criaturinha tagarela, embora devesse tomar mais cuidado com a língua. Ela sabia como pedir o que queria, sem palavras... e aposto que ainda sabe!
Ana e Catarina sorriram uma para a outra.
- Pronto! - disse a duquesa. - Ela já está desejando ter seu próprio bebé. Confesse, Ana!
- Um como este, claro! - riu Ana. Catarina tentou puxar os olhos lindos de Ana.
- Ela admira você imensamente! - disse Jocosa.
Ana caminhou até uma cadeira e se sentou, segurando Catarina no colo, enquanto sua avó puxava Jocosa até um canto e conversava com ela sobre a proposição de casamento para Ana, do progresso de Sir Thomas e George Bolena, e de Mary e o rei.
As mãozinhas de Catarina exploraram o vestido adorável, as jóias brilhantes; e a criança riu feliz enquanto fazia isso.
- Elas compõem um belo quadro - disse a duquesa. - Sinto muito orgulho de minhas netas, Ana Bolena e Catarina Howard Elas são criaturas lindas, ambas.
Os dedos de Catarina tinham se enroscado numa gema que pendia de um cordão de seda amarrado à cintura de Ana; era uma bijuteria de algum valor.
- Quer ficar com ela, pequena Catarina? - sussurrou Ana, soltando a gema do vestido.
"com toda certeza, eles poderão vendê-la", pensou Ana. Não era muito, mas era alguma coisa. "Posso ver que seria inútil oferecer ajuda abertamente a tio Edmund."
Quando elas disseram adeus, Catarina começou a chorar.
- Ora, vejam só o que a menina tem na mão! - gritou a duquesa.
- É sua, não é, Ana? Catarina Howard, Catarina Howard, você é então uma ladrazinha?
- É um presente - apressou-se em dizer Ana. - Ela gostou da gema, e eu tenho outra.
Foi agradável voltar a Hever depois de uma longa ausência. Como eram silenciosos os bosque Kentish, como eram solitárias as campinas verdejantes! Ela quisera ver os Wyatt, mas no momento eles não estavam em sua residência no Castelo Allington. Ela levava uma vida calma, lendo, costurando, brincando e cantando com sua mãe. Estava contente em desfrutar desses dias de ócio, pois tinha pouco desejo em desposar o jovem a quem sua mão fora prometida. Ana aceitara a inevitabilidade do casamento; desde pequena sabia que ao atingir certa idade um casamento lhe seria arranjado. Agora chegara a hora. Mas como vinha sendo agradável passar esses dias na calma Hever, passeando pelos campos que ela tanto amava por causa de suas memórias de infância.
Mary visitou Hever. Estava vestida esplendidamente - Ana considerou-a arrumada em excesso - e também muito alegre e animada. Sua risada ecoava pelo castelo, estilhaçando toda a paz do lugar. Mary admirava sua irmã, e era franca demais para não admitir isso.
- Você prosperaria muito na corte, irmã Ana - disse a ela. Faria muito sucesso, tenho certeza. E essas roupas! Nunca vi nada igual. E quem mais, senão você, poderia vesti-las com tanto efeito?
Deitaram-se juntas sob as velhas macieiras no pomar. Mary, ociosa e voluptuosa, colocou um lenço sobre o busto para impedir que o sol estragasse sua brancura.
- De vez em quando penso na visita que lhe prestei - disse Mary.
- Lembra de Ardres?
- Sim. Lembro perfeitamente.
- E como você me desaprovou naquela época! Não desaprovou? Confesse.
- Fui tão transparente?
- E como foi, madame! Você me olhou de cima a baixo com seu nariz empinado, desaprovando-me completamente. Espero que não me desaprove mais.
- Acho que você mudou muito pouco - disse Ana. Mary riu,
- Você me desaprovou naquela noite, Ana, mas houve uma pessoa que gostou de mim como sou.
Evidentemente, nem todo mundo tem o mesmo gosto.
Houve uma pessoa que me aprovou calorosamente... e ele não é de pouca importância.
Vejo que está louca para me contar seus casos amorosos - disse Ana, rindo.
- Não está interessada?
- Não muito. Tenho certeza de que você teve vários, e que eles são todos monotonamente similares.
- De fato! E imagine se eu contasse isso à Sua Majestade!
- Então você derrama confidências femininas no ouvido do rei?
- De vez em quando, quando acho que elas divertem Sua Alteza.
- Como é essa história? - exclamou Ana, levantando-se para olhar mais de perto sua irmã.
- Eu já ia lhe dizer. Não lhe disse que, embora você tenha me desaprovado, houve uma pessoa que não o fez? Ouça, irmã. A noite em que eu a deixei para retornar ao Palácio de Guisnes, encontrei-me por acaso com o rei. Ele falou comigo, e descobrimos que gostávamos um do outro.
As faces de Ana enrubesceram... e então ficaram lívidas. Ela estava entendendo muitas coisas - a conversa de sua avó, os olhares de sua tia Jocosa, a expressão indignada da ama-seca quando ela tomou o bebé nos braços. Um herói de Flodden passa fome, enquanto a família dos Bolena prospera porque o rei tem como predileta uma de suas filhas.
- Há quanto tempo? - perguntou Ana, sucinta.
- Daquela época até agora. Ele ainda está ávido por mim. Nunca houve homem igual. Ana, eu poderia lhe contar...
- Rogo para que não o faça.
Mary deu com os ombros e rolou na grama como um gato amoroso.
- E William, seu esposo? - indagou Ana.
- Pobre William! Gosto muito dele.
- Compreendo. O casamento foi arranjado, e ele recebeu uma posição na corte para que você possa sempre estar a postos para o prazer do rei, e para colocar uma cobertura de propriedade muito fina sobre sua imoralidade.
Mary quase engasgou com sua risada.
- Suas expressões me divertem, Ana. Digo-lhe uma coisa, contarei tudo que você me disse ao rei. Ele achará muito engraçado. E pensar que você acaba de chegar da corte da França!
- Estou começando a desejar não ter saído de lá. E nosso pai...
- Está muito feliz com a situação. Seria um tolo se pensasse de outro modo, e ninguém pode dizer que nosso pai é um tolo.
- Então todas essas honras que foram prestadas a ele...
- Devem-se ao fato de sua irmã travessa agradar ao rei!
- Isso me deixa enojada.
- Você tem estômago fraco, irmã. Mas é muito jovem, apesar de entender muito bem as coisas do mundo, e de ser dotada de elegância e graça. Mas, Ana, a vida não se resume apenas a vestir roupas bonitas.
- Para você a vida parece se resumir mais a tirá-las!
- Ana, que língua afiada. Não posso competir com ela. Você iria encontrar uma posição excelente na corte, se colocasse de lado os seus padrões morais. Se há uma coisa que o rei não suporta, são pessoas virtuosas em excesso. Para ele, de virtuosa já basta a rainha.
- Ela sabe sobre você e...
- É impossível manter segredos na corte, Ana.
- Pobre dama!
- Mas se não fosse eu, seria outra, sendo o rei como é.
- Sendo o rei um adúltero! - proclamou Ana, feroz.
- Isso é traição! - gritou Mary, com terror fingido. - Ah, para você é tão fácil falar... Quanto a mim, nunca poderia dizer não a um homem como ele.
- Você nunca poderia dizer não a qualquer homem!
- Pode me desprezar, se quiser. Mas o rei não me despreza, e nosso pai está satisfeitíssimo com sua filha Mary.
Agora o segredo ruíra. Agora Ana compreendia os olhares maliciosos dos servos, a expressão de aprovação de seu pai ao deitar os olhos na filha mais velha. Até que George chegasse em casa, não haveria ninguém com quem Ana pudesse falar sobre as coisas que a perturbavam.
George tinha 18 anos, uma alegria para os olhos, muito parecido com Ana em aparência, pleno de vigor. Poeta e pretendente a diplomata, já tinha o ar de ambos. Seus olhos ardiam com seu entusiasmo pela vida. Ana sentiu-se feliz quando ele pegou suas mãos; ela temera que os anos de distância os tivessem separado, e que ela tivesse perdido seu irmão adorado da infância. Mas depois de algumas horas esses temores foram postos de lado. Ele ainda era o mesmo George, ela, a mesma Ana.
Sua amizade, ela sabia, não podia morrer com o passar dos anos, apenas crescer. Suas mentes eram de calibre similar: alertas, intelectuais, eram dados a ficar felizes com a mesma rapidez com que se irritavam. Tinham, portanto, uma compreensão perfeita um do outro. Era natural que, estando atormentada, Ana o procurasse.
Ana abriu seu coração enquanto eles caminhavam juntos pelas alamedas de Kentish. Estavam ali porque Ana sentira a necessidade de sair do castelo para não temer que o rei pudesse ouvi-los.
- Soube a respeito de Mary e do rei.
- Isso não me surpreende - disse George. - É de conhecimento comum.
- Fiquei profundamente chocada, George. Ele sorriu para ela.
- Não deveria.
- Mas a nossa irmã! É degradante.
- Ela iria se degradar cedo ou tarde, então por que não fazer isso de modo a poder lucrar ao máximo?
- Nosso pai está adorando a situação, George, e nossa mãe está complacente.
- Ana, minha querida irmã, você tem apenas 16 anos. E muito inteligente, sabe como o mundo funciona, mas ainda não amadureceu. Você é muito parecida com a menininha que se sentava diante das janelas em Blickling, sonhando com feitos de cavalaria. A vida não é romântica, Ana, e os homens nem sempre são cavaleiros honrados. Ávida é uma batalha ou um jogo que cada um de nós joga com toda habilidade a seu comando. Não condene Mary porque ela não age da mesma maneira que você agiria.
- O rei irá se cansar dela
- com toda certeza.
- E então bani-la!
- Faz parte da natureza de Mary ser feliz. Não tema. Ela encontrará outros amantes depois que for expulsa da cama real. Ela tem o infeliz Will Carey. Ela está nas boas graças do rei há quase três anos e sua família ainda não sofreu por isso. Saiba, querida irmã, que ser a amante do rei é uma honra. Uma mulher só se degrada quando é amante de um homem pobre.
Momentaneamente as feições belas de George assumiram uma expressão melancólica, mas quase instantaneamente ele estava rindo alegremente.
- George, eu não consigo gostar dessa história - disse Ana.
- Não gosta? Não gosta de ver o seu pai se tornar um homem poderoso? Não gosta de ver o seu irmão encontrar um espaço na corte?
- Preferia que eles tivessem conseguido essas coisas por suas próprias habilidades, que são consideráveis.
- Ana, minha querida, há mais favores conseguidos assim do que pelo suor da testa. Esqueça esse assunto. A sorte dos Bolena está em seu píncaro. Quem poderia imaginar que iríamos conseguir as bênçãos do rei, e graças à nossa rechonchuda Mary?
- Eu não gosto nada disso - repetiu Ana.
George segurou as mãos de Ana e beijou-as levemente, querendo acalmar sua mente atormentada.
- Não tema, irmãzinha.
George conseguiu que Ana sorrisse com ele... rindo da incongruência da situação. Mary - aquela que não era tão brilhante quanto os outros - estava conduzindo os Bolena à fama e à fortuna.
Agora que Mary e George haviam partido, tudo parecia de um silêncio quase insuportável. Ana, que não podia falar com sua mãe sobre o relacionamento de Mary e o rei, violentava sua natureza franca conduzindo todas as conversas para longe desse tópico delicado. Ficou feliz quando seu pai retornou da corte, embora seu deleite óbvio com sua boa sorte enfurecesse Ana. O pai considerou-a uma jovem amuada, e de fato Ana não estava nada feliz, precisando ocultar seu descontentamento. Mary era sua filha favorita e uma jovem sensível; e Ana não pôde deixar de acreditar que seu pai não via a hora de completar os arranjos com os Butler para o casamento. Ela passou os dias conversando com a mãe ou caminhando sozinha pelas alamedas e jardins.
Sir Thomas retornou ao castelo de Hever num frenesi de empolgação. O rei iria passar por Kent, e era provável que permanecesse uma noite em Hever. A empolgação de Thomas não tardou a contagiar a casa inteira Ele foi à cozinha e ordenou preparativos; mandou que o salão de baile fosse decorado com flores a serem substituídas duas vezes por dia; resmungou incessantemente sobre a inconveniência de um velho castelo como Hever, e desejou fervorosamente que tivesse uma casa moderna na qual pudesse entreter o rei.
- Decerto a casa pouco importa - comentou Ana, cáustica. Importante é que Mary permaneça atraente para o rei.
- Cale-se, menina! - trovejou Sir Thomas. - Não entende que não há honra maior do que a visita do rei?
- Tenho toda certeza de que há honras maiores-murmurou Ana Sua mãe, que temia uma discórdia, lançou-lhe um olhar severo.
Amando sua mãe, ainda que reprovando visceralmente sua postura no caso de Mary e o rei, Ana desistiu.
Como o rei não precisara a data de sua visita, Sir Thomas passou vários dias tenso, caminhando para cima e para baixo, mal saindo do castelo com medo de não se encontrar em casa para receber seu mestre real.
Certa tarde, Ana levou uma cesta até o jardim de rosas; queria cortar alguns dos melhores brotos para a mãe. Como fazia calor, usava um vestido fresco e simples em sua cor favorita, vermelha. O dia estava muito quente e Ana tirou o chapelete, soltando os cachos longos, sedosos. Estava sentada numa cadeira no jardim de rosas há uma hora ou mais, quase cochilando, quando decidiu que era tempo de catar as flores e voltar para a casa. Levantou-se. Parou diante de uma roseira ao escutar um som de passos. Ao se virar, avistou o que a princípio considerou um "Personagem" passando através da brecha nas coníferas que servia de entrada para o jardim. Ao reconhecer o rei, Ana sentiu o sangue correr para as suas faces. O sol incidia nas jóias em suas roupas, fazendo com que parecessem em chamas; o rosto era corado, a barba parecia dourada, sua presença enchia o jardim. Ao lembrar o encontro de sua irmã com o rei no palácio de Guines, o ressentimento de Ana aumentou ainda mais; ainda assim, racional como era, sabia que seria tolice demonstrar esse ressentimento. Assim, procurou controlar a expressão em seu rosto e, com calma admirável - pois decidira que o plano mais seguro seria fingir ignorância sobre a identidade daquele homem -, pôs-se a cortar as rosas.
Henrique estava próximo. Ela se virou, surpresa por não se encontrar mais sozinha, e lhe prestou a mesura convencional de reconhecimento, a mesma que poderia ter concedido ao pai de uma de suas amigas.
- bom dia, senhor - disse, ousada.
O rei ficou pasmo. Então riu por dentro, pensando:
"Ela não tem noção de quem sou!"
O rei estudou-a minuciosamente. O vestido informal, considerou, caía-lhe muito melhor que as criações vergadas por certas damas nas cerimónias da corte. Os cabelos belíssimos caíam-lhe sobre os ombros como um manto de seda preta. Henrique sorveu cada detalhe da aparência daquela jovem, e considerou que jamais vira uma mulher cuja beleza mais o agradasse.
Ana virou a cabeça e cortou o caule de uma rosa.
- Papai disse que o rei entrará por este jardim. Suponho que o senhor seja um de seus cavaleiros.
Henrique sempre gostara de farsas. Não havia nada que o divertisse mais-do que aparecer disfarçado em algum baile ou banquete, e depois de pregar muitas peças em seus súditos, despir o disfarce no momento apropriado, proclamando: "Sou o seu rei!" E como esse jogo poderia ser mais divertido do que num jardim de rosas numa tarde de verão, com aquela que, certamente, era a dama mais formosa deste reino?
Henrique deu um passo na direção da jovem.
- Se eu soubesse que iria me encontrar face a face com tamanha beleza, teria chicoteado meu cavalo para chegar mais cedo.
- O senhor não deve agir segundo a vontade do rei?
- Decerto! - Henrique deu uma palmada na sua coxa gorda. A vontade do rei acima de tudo!
Ana, que sabia tão bem fazer o jogo do flerte, resolveu levar a situação adiante, e assim tentar pacificar a raiva que sentia ao contemplar este amante de sua irmã Mary. Ela iria deixá-lo aproximar-se e então
- alegando ignorância de seu título - iria congelá-lo com um olhar. Ela cortou uma rosa e deu-a a ele.
- Pode ficar com esta rosa, se quiser.
- Eu quero. vou mante-la comigo para sempre.
- Bah! - respondeu com desprezo. - Mera galantearia de corte!
- Não gosta de nossas cortesias de corte?
com olhos galhofeiros, Ana varreu a figura bem vestida.
- Elas parecem desajeitas quando comparadas ao cavalheirismo na corte francesa.
- É recém-chegada da França?
Sou. Um casamento foi negociado para mim com o meu primo.
- Se eu fosse esse primo, daria graças a Deus! Diga-me... - Ele se aproximou mais, notando a pele macia, os cachos sedosos, a pose orgulhosa da cabeça e a curva graciosa do pescoço delicado. - Ele era menos desajeitado?
- Não! - disse rindo, exibindo dentes brancos. - Era completamente desprovido de sutilezas. Vi quando estava chegando.
Henrique percebeu que estava gostando daquela conversa, ainda que fosse um pouco desconcertante. A jovem era dotada de uma inteligência sagaz, e ele apreciava isso. Ela era estimulante como uma taça de champanhe.
Juro que nunca pousei meus olhos numa rapariga mais adorável!, disse a si próprio.
Como sua postura era orgulhosa! Henrique tinha a impressão de que ele era o vassalo... e ela a rainha!
- O jardim é bonito, não acha? - perguntou a jovem. - Para mim, este é um dos locais mais agradáveis de Hever.
Caminharam pelo jardim. Ela mostrou-lhe as flores. Pegou um ramo de lavanda e segurou-o diante do nariz do rei; em seguida, rolou-o nas mãos, deixando nelas sua fragrância agradável.
- Você disse que veio recentemente da França. Gosta de lá?
- É um país muito agradável.
- Está arrependida por ter retornado?
- Estou, um pouco. Entenda, enquanto estive lá, o país foi um lar para mim.
- Fico triste em ouvir isso. Ela deu com os ombros.
- Dizem que sou tão francesa quanto sou inglesa.
- Os franceses são um bando de chacais pérfidos-disse Henrique, o vermelho de suas faces repentinamente tingido com um tom púrpura.
- Senhor! - exclamou ela, em tom reprovador.
Puxando as saias a seu redor, afastou-se dele e se sentou no banco de madeira ao lado do lago. Olhou friamente para Henrique enquanto ele se aproximava dela.
- Claro que são! - disse Henrique, já farto daquele jogo. Sentou-se ao lado dela, pressionado a coxa contra a dela, o que a fez recuar imediatamente.
- Pérfidos - repetiu ela, lentamente. - Chacais! E eu acabo de lhe dizer que sou meio francesa!
- Ah! - disse ele. - Eu jamais descreveria a senhora com tais palavras. Tem um rosto de anjo.
Ela se levantou do banco, como se não confiasse nele tão próximo. Sentou-se no gramado ao lado do lago e olhou para as águas serenas, fitando seu próprio reflexo, uma Narciso feminina, seus cabelos tocando a água.
- Não! - disse imperiosa quando ele se levantou. - Permaneça aí, e talvez eu me digne a conversar um pouco com o senhor.
Henrique não compreendia a si próprio. Já era tempo de acabar a piada. Era hora de explicar, de fazê-la ajoelhar-se rogando piedade por sua ousadia. Ele deveria levantá-la e dizer: "Nós não podemos perdoar um tratamento tão desrespeitoso da parte de um súdito. Exigimos um beijo em pagamento por seus pecados!" Mas ele estava inseguro. Havia alguma coisa nela que ele jamais encontrara numa mulher. Ela parecia petulante o suficiente para recusar um beijo a um rei.
"Não, não!", pensou. "Continuarei o jogo durante mais algum tempo."
- Os franceses são pessoas interessantes - disse ela. - Fui feliz em sua terra. Minha amiga era a madame Ia duchesse dAlençon, e eu me considerava feliz por tê-la como amiga.
- Ouvi histórias sobre ela - disse Henrique.
- Sua fama viaja. Diga-me, senhor, já leu Boccaccio?
O rei se inclinou para a frente. Se ele lera Boccaccio! Claro que lera, e seus escritos tinham-no agradado imensamente.
- E você, leu? - perguntou.
Ela fez que sim com a cabeça, e os dois sorriram um para o outro, descobrindo um prazer compartilhado.
- Líamos juntas, a condessa e eu. Diga-me, quais histórias o senhor prefere?
Vendo-se imerso numa discussão sobre a literatura de seus tempos, Henrique esqueceu que era um rei, e um rei lascivo. Havia nesse homem, além de um sensualista bruto e insaciável, um erudito. Em geral o sensualista era mais forte, sempre pronto para sufocar o erudito, mas havia alguma coisa nessa garota sentada à beira do lago, uma certa pureza, que merecia seu respeito. Ele descobriu um imenso prazer em voltar a se sentar no banco e extrair dessa mulher o mesmo deleite que usufruiria de uma bela pintura ou um texto bem redigido, ao mesmo tempo maravilhando-se com seu intelecto tão pouco feminino. Literatura, música e arte eram assuntos que poderiam ter uma posição forte em sua vida, não tivesse ele gasto sua juventude sendo um animal saudável. Se ele tivesse posto nesses assuntos o mesmo entusiasmo que dedicava ao ténis, à justa ou à caça de animais e de mulheres, sua mente decerto teria se desenvolvido com a mesma nobreza que seu corpo. Uma mente elástica ter-lhe-ia servido melhor que músculos fortes; mas o animal da selva em seu íntimo fora imperioso. E desejos urgentes, temperados por uma visão religiosa estreita, haviam reprimido o homem mais refinado, e do acasalamento do animal com o carola nascera aquele monstro cruel: a consciência de Henrique. Mas isso ainda estava por vir; o monstro ainda se encontrava em sua infância, e agradava a Henrique tratar de assuntos do intelecto com uma companhia tão encantadora. Ela era plena de sabedoria, e Marguerite dAlençon falava através de seus lábios jovens. A moça tivera até mesmo a chance de espiar o Heptameron aquele livro estranho que, sob a influência de Boccaccio, Marguerite estava escrevendo.
Da literatura ela passou aos eventos na corte francesa. Contou a respeito dos bailes de máscara, menos esplêndidos talvez do que aqueles que ele frequentava com tanto prazer, porém mais sutis e divertidos. Criatividade era, para a corte francesa, o que cores fortes e jóias reluzentes eram para os ingleses. Ela contou sobre uma peça que ajudara Marguerite a escrever, citando falas que o fizeram rir alegremente. Ele se sentiu estimulado a contar-lhe sobre suas próprias composições, e recitou alguns versos de sua lavra Ela ouviu, cabeça pendendo para um lado, crítica
Ela balançou a cabeça.
- A última linha não é tão boa. Mas seria melhor a seguinte...
E realmente era! Por um momento ele ficou furioso, afinal os cortesãos haviam dito que jamais houvera versos como os traçados por sua mão. Devido a muita prática, Henrique podia fingir, até para si próprio, que sua raiva provinha de uma causa diferente daquela que realmente a originara. Agora a raiva provinha - assegurou-se - não dos comentários críticos sobre sua poesia, mas da indignação de descobrir que uma jovem, mal saída da infância, fora exposta à malícia da corte francesa. Desprovido de qualquer senso de ridículo, Henrique era capaz até mesmo de esquecer que estava planejando sua sedução, e arder com indignação pelo fato de que outros - garanhões e libertinos com modos franceses afetados - podiam ter tido intenções similares. Uma jovem como essa, tão extraordinariamente dotada, jamais deveria ter sido mandada à França. Ele disse, com dignidade:
- Entristece-me pensar nos perigos aos quais você foi exposta naquela corte libertina, presidida por um monarca que... - A voz lhe faltou quando Henrique visualizou o rosto moreno e arguto, sorriso matreiro nos lábios, referindo-se a ele como "meu prisioneiro".
Ela riu polidamente.
- O rei da França é realmente de natureza muito amorosa, mas eu jamais seria a amante de um rei!
Henrique percebeu que essa jovem arguta respondera a uma pergunta que ele ainda não tivera a oportunidade de formular. E a resposta deixou-o indignado.
- Há pessoas que não considerariam uma desonra ser amante de um rei, mas um privilégio!
- Pessoas que se vendem por pouco.
- Por pouco! - exclamou, quase rugindo. - Acha que o rei não é generoso para com aqueles que o agradam?
- Não me referi a bens materiais. Vender a própria honra em troca de poder temporário, e talvez riquezas... isso é vender por pouco coisas que estão além de qualquer preço. Agora preciso retirar-me para a casa.
Levantou, jogando para trás o cabelo. Ele também se levantou, sentindo-se desanimado e nada majestoso.
Calado, Henrique saiu com ela do jardim de rosas. Agora era hora de expor sua identidade, afinal não poderia mante-la em segredo por muito tempo.
- Você não perguntou o meu nome.
- E nem você o meu.
- Deduzi que você é a filha de Sir Thomas Bolena.
- De fato. És muito esperto! - zombou. - Sou Ana Bolena.
- Você ainda não sabe meu nome. Não está curiosa?
- Sei que você me dirá na hora certa.
- Meu nome é Henrique.
- Um nome bem inglês.
- E você ainda não notou nada? Ela voltou olhos inocentes para ele.
- O que eu deveria ter notado?
- É o mesmo nome do rei. - Então ele viu a zombaria nos olhos de Ana. - Por Deus! - vociferou. - Você sabia o tempo inteiro!
- Depois que uma pessoa vê Vossa Majestade, como pode esquecê-la?
Agora ele não tinha certeza se deveria achar graça ou ficar zangado. Em vão tentou recordar tudo que a jovem dissera para ele e ele para ela.
- É de fato uma donzela insolente!
- Espero que minha insolência tenha agradado a meu rei poderoso. Henrique fitou-a severamente, porque, embora suas palavras tivessem sido respeitosas, seus modos não o foram.
- Tempero em demasia pode arruinar um prato, sabe disso?
- E a falta de tempero pode torná-lo intragável! - disse, levantando os olhos. - Imaginei que Vossa Majestade, sendo um grande connoisseur, preferiria um prato bem temperado.
Henrique riu alto e estendeu uma das mãos, que teria pousado nos ombros de Ana, se ela, sem olhá-lo nos olhos, não tivesse se movido agilmente para o lado, de um modo que ele ficou sem saber se foi de propósito ou por acidente.
- Esperamos vê-la na corte com sua irmã - disse o rei.
Ele não estava preparado para o efeito dessas palavras. As faces de Ana ficaram vermelhas como seu vestido, e seus olhos perderam toda a alegria. Seu pai estava atravessando o gramado na direção deles; ela fez uma mesura, e, dando-lhe as costas, correu pelo gramado até o castelo.
- Você tem uma filha linda, Thomas! - exclamou o rei. EThomas, obsequioso, sorriso nos lábios, humildemente conduziu Henrique ao interior do Castelo de Hever.
A visão da mesa na grande sala de jantar provocou um brilho de orgulho nos olhos de Sir Thomas. Sobre ela foram servidas porções generosas de carne de vaca, carneiro, veado e faisões temperados; havia vegetais e frutas, e grandes tortas e doces. As instruções de Sir Thomas a seus cozinheiros tinham sido seguidas à risca, e ele considerou que as grandes cozinhas de Hever tinham-lhe feito justiça. O rei contemplou o banquete com uma aprovação que teria sido mais evidente se os seus pensamentos ainda não estivessem voltados para a filha de Sir Thomas.
Tomaram seus lugares, o rei no local de honra, à mão direita de seu anfitrião, e o pequeno cortejo que trouxera consigo ao redor da mesa. Havia um rosto pelo qual o rei procurava em vão; Sir Thomas, sempre disposto a antecipar o menor desejo de seu soberano, viu que o rei parecia procurar algo e compreendeu. Chamou uma criada e sussurroulhe que fosse até sua filha e ordenasse a ela para comparecer à mesa sem demora. A criada retornou com a mensagem constrangedora de que a filha de Sir Thomas estava com enxaqueca e não poderia reunirse ao grupo à mesa. O rei, observando esse diálogo com grande interesse, escutou cada palavra.
- Retorne imediatamente - disse Sir Thomas. - Diga à dama que eu ordeno sua presença aqui e agora!
- Fique! - intercedeu Henrique, sua voz surpreendendo Sir Thomas com uma doçura nada usual. - Permita-me cuidar desse assunto, bom Thomas. Aproxime-se, rapariga.
A pobre criada fez uma mesura trémula e temeu não entender os comandos do rei, tão abalada estava por ele tê-la notado.
- Diga à dama que estamos realmente penalizados por sua enxaqueca. Diga-lhe que a causa, indubitavelmente, foi ter permanecido tempo demais exposta aos raios do sol. Diga-lhe que compreendemos sua ausência e estimamos melhoras rápidas.
Ana permaneceu em seu quarto, e Henrique não a viu novamente. Na manhã seguinte, ele deixou o Castelo de Hever. Ele olhou para as janelas, imaginando qual poderia ser a dela, dizendo a si próprio que nenhuma garota - por mais insolente ou dona de si que fosse - poderia conter-se em olhar pela última vez para seu rei. Mas nenhum rosto apareceu em nenhuma das janelas. Desconsolado, confuso, o rei cavalgou para longe do Castelo de Hever.
O grande cardeal, que era lorde chanceler do reino, cavalgava através da multidão. À sua frente e atrás dele vinham seus cavaleiros. Como homem importante, ele não podia sair às ruas sem impressionar o povo com sua grandeza. Montava sua mula com uma dignidade que teria sido adequada a um rei. De que importava se seu corpo era fraco, sua digestão ruim e que ele sofresse muitas mazelas! Sua mente era a mais aguçada, a mais hábil, a mais profunda do reino. E, portanto, primeiro através do pai do rei, e mais eficazmente através de seu filho gracioso Thomas Wolsey chegara até esse posto elevado. Seu sucesso, sabia bem, devia-se à sua compreensão da natureza do rei - aquele animal robusto. Quando fora um mero lacaio de seu senhor gracioso, Wolsey usara esse conhecimento para ascender na hierarquia. Muitos conselheiros tinham incitado o rei a conter suas vontades e devotar mais tempo aos assuntos do reino. Mas não Thomas Wolsey! Que o rei deixasse os assuntos mais cansativos para o seu servo leal. Que o rei satisfizesse suas vontades. Que os assuntos mais sérios ficassem a cargo de seu obediente e - o que era mais importante - competente Wolsey!
Como o rei amava aqueles que faziam suas vontades! Esse rei, esse homem imenso - cujas emoções faziam par com o tamanho de seu corpo -, sabia odiar e amar com a mesma ferocidade. E ele amara Wolsey, em cujas mãos podia tão seguramente colocar aqueles assuntos que eram importantes para o seu rei, mas tão tediosos para sua mente régia. E nunca um homem sentiu-se mais feliz do que Wolsey com a situação vigente. Ele, tão arrogante e imperioso quanto o rei, tivera a indignidade de nascer filho de um homem pobre de Ipswich, e fora apenas graças a seu cérebro brilhante que conseguira substituir indignidade por honra. O filho do mercador de Ipswich era agora o melhor e mais querido amigo do rei, e um amante fervoroso dos luxos e extravagâncias que ele, que um dia sofrera com a obscuridade, agora via-se cercado!
Wolsey não podia ser condenado por amar tanto o luxo; afinal precisava lavar da boca o sabor de Ipswich.
Cavalgava a seu modo cerimonioso, e o povo o observava. Diante do nariz ele mantinha o que parecia uma laranja, e era realmente uma proteção contra doenças; pois todas as substâncias naturais haviam sido retiradas da laranja e em seu lugar colocada parte de uma esponja contendo vinagre e outros elementos que, acreditava-se, protegiam uma pessoa da peste que flutuava no ar londrino. Talvez os plebeus murmurassem contra ele; havia alguns que lhe lançavam olhares ferozes.
Esse era um homem de Deus?, perguntavam-se uns aos outros. Esse Wolsey, que não nasceu melhor do que qualquer um de nós, e que se cerca com elegância e luxo à custa do povo oprimido! Esse gourmet, que requereu ao papa dispensa especial por não poder seguir os mandamentos da Quaresma! Dizem que ele jamais esquece um deslize. Dizem que tem as mãos tão vermelhas quanto seus mantos. E quanto ao bravo Buckingham? Era de admirar que o fantasma decapitado do duque não assombrasse esse assassino!
Se Wolsey pudesse falar com eles sobre Buckingham, dir-lhes-ia que, para manter o favor do rei, um homem precisa com frequência sujar as mãos de sangue. Buckingham tinha sido um imbecil. Buckingham insultara Wolsey, e Wolsey acusara-o de feitiçaria traiçoeira. Buckingham fora para o cepo, não por seus insultos contra Wolsey, não por sua feitiçaria traiçoeira. Ele morrera porque havia cometido o pecado imperdoável de ser um parente próximo demais do rei. Ele se encontrava perto demais do trono, e os Tudor, que haviam estado longe do poder por muito tempo, não estavam dispostos a entregá-lo de mão beijada. Portanto, era assim que um homem se mantinha nas graças do rei; aprendendo seus desejos não proclamados e antecipando suas vontades; assim, esse homem era o poder por trás do trono, seus olhos alertas, seus ouvidos treinados para captar a menor inflexão da voz real, sempre temeroso de que o seu poderoso títere voltasse a ser o titereiro.
Na câmara de presença, Wolsey aguardava uma audiência com o rei. Henrique, que acabara de chegar de sua jornada a Kentish, estava cheio de saúde, olhos brilhando de prazer ao pousar em seu estadista mais estimado.
- Gostaria de falar com Sua Majestade sobre um ou dois assuntos - disse o chanceler-cardeal depois que tinha congratulado o rei por sua aparência saudável.
- Assuntos de Estado! Assuntos de Estado, é? Vejamos esses assuntos, meu bom Thomas.
Wolsey espalhou papéis sobre a mesa, e a assinatura real foi posta neles. O rei ouviu, embora parecesse um pouco distraído.
- É um bom homem, Thomas, e nós o amamos - disse o rei.
- A consideração de Sua Majestade é a minha posse mais valiosa. O rei deu uma gargalhada gostosa, mas em seguida sua voz pareceu ácida.
- Então o rei está satisfeito, porque, meu rico amigo, ser a sua riqueza mais valiosa é possuir realmente muito valor!
Por um instante Wolsey sentiu medo; então viu no rosto de seu soberano uma expressão que conhecia bem. Havia um brilho nos olhos pequenos e brilhantes, e a boca cruel assumira um desenho mais suave; quando o rei voltou a falar, seu tom era gentil.
- Wolsey, estive conversando com uma jovem dama, bela e inteligente como um anjo. Uma jovem merecedora de usar uma coroa.
Wolsey, em estado de alerta, conteve um sorriso e o desejo de esfregar as mãos de pura alegria.
- Basta que Sua Majestade considere essa jovem merecedora de seu amor - sussurrou.
O rei cofiou a barba.
- Não, Thomas, temo que ela jamais será condescendente dessa maneira.
- Senhor, grandes príncipes, quando querem agir como amantes, têm em seu poder a capacidade de derreter corações de aço.
O rei balançou a cabeça, melancólico, vendo-a inclinada sobre o lago, vendo sua cabeça jovem e orgulhosa sobre o pescoço delicado, ouvindo sua voz doce: "Eu jamais seria a amante de um rei!"
- Essa dama entristeceu Sua Majestade-comentou Wolsey, solícita
- Creio que sim, Wolsey.
- Isso não pode ser! - exclamou o cardeal.
O coração de Wolsey estava feliz. Naquele momento, não havia nada que ele desejasse mais do que ver seu mestre imerso num caso de amor. No momento era necessário manter o dedo gordo e adornado em jóias longe da torta francesa.
- Não, meu mestre, meu querido lorde, o seu chanceler proíbe tanta tristeza - acrescentou Wolsey, aproximando-se mais do rosto corado. - Não seria possível levar a dama à corte, e encontrar para ela um lugar entre as damas da rainha?
O rei pousou um braço carinhoso sobre os ombros de Wolsey.
- Se Sua Majestade ao menos sussurrasse o nome da dama...
- É a filha dos Bolena... Ana.
Agora Wolsey teve ainda mais dificuldade em conter sua vontade de rir. A filha dos Bolena! Ana! Esqueçam a filha mais velha! Tragam a mais nova!
- Meu rei, ela pode vir à corte. Darei um banquete em Hampton Court... um baile de máscaras! Pedirei a meu querido vassalo que me honre com sua presença poderosa. A dama comparecerá!
O rei sorriu, satisfeito. Como esse homem sábio dissera, um príncipe tinha a capacidade de derreter um coração de aço. bom Wolsey! Querido Thomas! Querido amigo e hábil estadista!
- Creia em mim, Thomas, realmente o amo muito - disse o rei, lágrimas nos olhos.
Wolsey caiu sobre seus joelhos e beijou o rubi no dedo indicador da mão gorda.
Realmente amo esse homem, pensou o rei. com Wolsey não era preciso fazer circunlóquios para expressar fatos crus. A dama seria trazida à corte, e pareceria que ela não fora trazida por desejo do rei. Era isso que ele queria, e não usara uma só palavra para exprimir esse desejo; ainda assim, Wolsey o entendera. O rei bem sabia que Wolsey cuidaria daquela situação com expediência e tato.
A vida na corte inglesa oferecia uma grande variedade de entretenimento, e a chegada de uma dama vivaz e estonteante como Ana Bolena não podia passar despercebida. As damas receberam-na com algum interesse e muita inveja, os gentis-homens com evidente apreciação. Havia dois estilos de vida na corte: por um lado havia o modo alegre e despreocupado do rei; do outro, a religiosidade da rainha. Como dama de companhia da rainha, as ações de Ana eram restritas; mas nas justas e bailes, aos quais a rainha comparecia ao lado do rei, Ana atraía muita atenção. Ninguém era melhor que Ana na dança, e onde tivesse uma harpa ou flauta, ela tocava, sempre reunindo um grande grupo a seu redor; quando cantava, muitos homens ficavam sentimentais, porque sua voz melodiosa e jovem podia levar homens às lágrimas.
O rei acompanhava todas as ações de Ana, ainda que fingindo não notá-la. Queria que a jovem acreditasse que ele não gostara inteiramente dos modos desrespeitosos que ela demonstrara em Hever, e que ainda lembrava que a franqueza das palavras de Ana tinham-lhe causado desconforto.
Ana ria para si mesma, pensando... bem, ele gosta de um baile de máscaras, quando o providencia; bem, ele gosta de uma piada pregada em outros! Será que ele está zangado em me ver atendendo a rainha?
Só espero que eu não seja banida para Hever!
A vida tornara-se interessante. Como dama de companhia da rainha, Ana contava com uma criada e tinha seu próprio spaniel. Ela gostava dos serviços da mulher e adorava brincar com o cão. Os três compartilhavam um desjejum de bife e pão, mais um galão de cerveja, que bebiam entre os pratos. As outras refeições eram feitas junto com as outras damas na câmara grande, e em todas essas refeições servia-se uma quantidade farta de cerveja e vinho. O prato principal geralmente era carne - vaca, carneiro, frango, coelho, faisão, lebre, pombo -, com exceção nos dias de jejum, quando, em lugar das carnes, havia uma fartura de salmão, linguado, enguia salgada, pescada marlonga, ou solha e cabrinha. Mas não era a abundância de comida que maravilhava Ana; eram as companhias divertidas. E se ela temera ser dispensada da corte naqueles primeiros dias, ela não tardou a ter olhos para Henry, Lord Percy, filho mais velho do conde de Northumberland
Ocasionalmente, os dois jovens deparavam-se na corte, embora não com a frequência que Ana teria apreciado; embora Ana, como dama de companhia da rainha Catarina, estivesse afiliada à corte, Percy era um protegido do cardeal. Agradava a Wolsey ter em seu séquito vários jovens bem-nascidos, e sua posição era tão importante que essa honra era disputada por muitas das famílias mais nobres do reino. Portanto, o jovem Percy precisava assistir o cardeal diariamente, acompanhá-lo à corte, e considerar-se imensamente honrado por ser um protegido desse homem malnascido.
Lord Percy era um jovem bonito, de feições delicadas e modos cavalheirescos. Assim que pousou os olhos na mais nova dama de companhia da rainha, foi cativado por seus encantos. E Ana, vendo esse belo jovem, flagrou-se cheia de ternura por ele, sentimento que até agora ela não experimentara por ninguém. Assim, sempre que sabia que o cardeal viera visitar o rei, Ana procurava o jovem nobre. E ele, sempre que vinha ao palácio, mantinha-se alerta para qualquer sinal de Ana. Eram ambos jovens; ele era muito tímido, e ela, por mais estranho que parecesse, também, no que dizia respeito a essa situação.
Certo dia Ana estava sentada a uma janela, olhando para o pátio, quando nesse cenário apareceu o cardeal e seus auxiliares. Entre esses estava Henry, Lord Percy. Os olhos do rapaz voaram para a janela, viram Ana e, encorajado pela distância que os separava, lançou-lhe com o olhar uma mensagem que ela entendeu como "Aguarde-me; enquanto o cardeal estiver entre quatro paredes com o rei, eu vou retornar. Há muito anseio falar contigo!".
Ela aguardou, seu coração batendo depressa enquanto ela fingia fazer um bordado. Esperou, esperou, sentindo um medo doentio de que o rei por acaso não quisesse ver o cardeal, assim impedindo o jovem de escapar. O rapaz chegou correndo pelo pátio. Por sua pressa e expressão de alegria, Ana percebeu que ele compartilhara do mesmo medo.
- Temi não encontrá-la mais aqui - disse, arfante.
- Temi que você não viesse - respondeu Ana.
- Sempre procuro por você.
- E eu por você.
Ambos sorriram, maravilhados por descobrir que amavam e eram amados.
Ana estava pensando que, se ele lhe pedisse a mão, ela, que rira de Mary por desposar Will Carey, casaria feliz com esse moço, embora não fosse nada mais do que o lacaio do cardeal.
- Não sei o seu nome, mas nunca vi um rosto tão belo quanto o seu - disse Percy.
- Sou Ana Bolena.
- A filha de Sir Thomas?
Ela assentiu, enrubescendo, pensando que Mary estaria em sua mente. Foi subitamente tomada por um temor de que a desgraça de sua irmã pudesse desacreditá-la a seus olhos. Mas ele estava imerso demais no amor para considerá-la qualquer coisa além de perfeita.
- Ingressei na corte há pouco tempo.
- Isso eu sei! Você não poderia ficar um dia aqui sem que eu não a descobrisse.
- O que o seu mestre diria se o visse parado abaixo desta janela?
- Não sei, e não me importo!
- Se você fosse pego, será que não iriam proibi-lo de vir novamente? A sua falta já deve ter sido sentida.
Ele ficou alarmado. Seria intolerável ser impedido de desfrutar novamente de um encontro com Ana.
- Preciso ir agora - disse ele. - Amanhã... você estará aqui a esta hora?
- Você poderá me encontrar aqui.
- Amanhã - disse ele, e sorriram um para o outro.
No dia seguinte ela o viu, e no seguinte. Houve vários encontros, e para cada um desses dois jovens apaixonados o dia era bom quando conseguiam se encontrar, e ruim quando não conseguiam- Ele lhe contou sobre sua posição elevada, e ela disse, com honestidade, que para ela isso não fazia qualquer diferença, exceto, claro, que seu ambicioso pai não levantaria qualquer objeção a uma união com a casa de Northumberland. Um dia seu amado chegou com uma expressão radiante.
- O cardeal dará um baile em sua casa em Hampton. Todas as damas da corte serão convidadas!
- Você estará lá?
- Você também - retrucou.
- Devemos comparecer mascarados.
- Irei encontrar você.
- E então...? - perguntou ela.
Os olhos do rapaz apresentaram a resposta à pergunta.
Ana sonhara em conhecer tamanha felicidade, embora seus últimos contatos com os que lhe eram próximos houvessem-na ensinado que esse sentimento era muito, muito raro. Mas, para ela, a felicidade viera; ela iria guardá-la como a um tesouro, para sempre. Mal podia esperar pelo dia em que Thomas Wolsey iria entreter a corte em seu solar em Hampton, no Tamisa.
O rei estava inquieto. O cardeal pensara em ajudá-lo quando designara Ana como dama de companhia para a rainha. Mas será que isso realmente o ajudara? Jamais o rei ficara tão perplexo com uma mulher. Ele precisava vê-la todos os dias, pois como poderia negar a seus olhos a visão da criatura mais encantadora do mundo? Ainda assim, ele não ousava falar-lhe. E por quê? Por esta razão: mal a menina pusera os pés nos aposentos da rainha, uma velha inimiga, sua consciência, mostraralhe sua cara feia.
- Henrique - disse a consciência -, a irmã da moça, Mary Bolena, dividiu a cama com você por muitas noites, e você conhece bem o edital do papa Você sabe que a associação com uma irmã concede-lhe parentesco com a outra Portanto, o que queres é pecado!
- Sei muito bem disso - respondeu o rei Henrique. - Mas como não houve casamento...
Tal raciocínio não poderia satisfazer a consciência; era a mesma coisa - com cerimónia ou sem cerimónia de casamento -, e ele sabia bem disso.
- Mas jamais houve mulher como essa. Nunca uma mulher me atraiu tanto. Nunca me senti fraco assim quando estou longe de alguém. Creio verdadeiramente que, se nos tornássemos amantes, eu dispensaria de bom grado todas as outras, e isso seria bom, porque, aos olhos da Santa Igreja, não é melhor que um homem tenha apenas uma amante do que muitas? E isso não faria a rainha mais feliz? Uma amante é perdoável; a dor da rainha provém de eu ter muitas.
Henrique era um homem de muitas superstições, de convicções religiosas profundas. O Deus de sua crença era um rei como ele próprio, embora mais poderoso porque, no lugar do machado, podia usar uma arma muito mais terrível cuja lâmina era o fenómeno sobrenatural. Vingativo era o deus do rei, suscetível a lisonjas, violento no amor, mais violento ainda no ódio, um deus ciumento, um deus que espionava, que registrava deslizes e insultos, e cuja mente funcionava de uma forma muito mais simples que a de Henrique da Inglaterra. Diante desse deus, Henique tremia como os homens tremiam diante de Henrique. Daí a consciência, a inquietude, a sua vigilância ciumenta a Ana Bolena, e sua relutância em declarar sua preferência.
Em vão ele tentou apaziguar seus sentidos. Todas as mulheres são parecidas na escuridão. Mary é muito parecida com sua irmã. Mary é doce e disposta a agradá-lo; e havia outras igualmente dispostas.
Ele tentou aplacar sua consciência.
- Não devo olhar para a garota. Lembrarei que existe um parentesco entre nós.
Assim, esses dias, que foram um paraíso para Ana e Henry, foram um purgatório para o rei Henrique, disputado ferozmente por sua consciência e seu desejo.
Estava de vermelho, com detalhes dourados no tecido. Ela usava o que se tornara conhecido na corte como as mangas Bolena, mas elas não divulgariam sua identidade, pois muitas usavam as mangas Bolena desde que ela introduzira a moda. Tinha os cabelos escondidos por um chapelete dourado, e apenas os olhos lindos, aparecendo através da máscara, proclamavam que ela era Ana Bolena.
Ele não precisou esforçar-se muito para encontrá-la; ela descrevera-lhe detalhadamente as roupas que iria usar.
- Eu a teria reconhecido, mesmo se você não tivesse me dito como estaria Eu sempre iria reconhecê-la
Então, senhor, eu deveria tê-lo colocado à prova - comentou,
provocante.
Ouvi a música nas barcas quando vinha pelo rio - disse ele -
e acho que nunca fiquei tão feliz em toda a minha vida.
Ele era uma figura esguia num casaco de veludo púrpura, bordado com fios de ouro e pérolas. Ana considerou-o mais bonito que qualquer outro homem no grande salão de baile, embora o rei, com seu casaco vermelho cravejado de esmeraldas, e sua boina reluzindo com rubis e diamantes, fosse uma visão magnífica.
Os amantes deram-se as mãos e, de um recanto, observaram a festa.
- Lá está o rei!
- Que acha que pode se disfarçar com uma máscara! - disse Ana, rindo.
- Ninguém ousa desiludi-lo, claro. Engraçado, parece que ele está procurando alguém.
- Sua última paixão, sem dúvida! - sentenciou Ana, escarninha. Percy colou a mão sobre os lábios de Ana.
- Você tem a língua solta, Ana.
- Esse sempre foi um grave defeito meu. Mas você duvida de que seja esse o caso?
- Não duvido de nada... e você não tem defeito algum! Vamos escapar desta multidão. Conheço um cómodo onde poderemos ficar sozinhos. Tenho muito a lhe dizer.
- Leve-me para lá, então. Embora eu corra o risco de receber uma reprimenda severa. Imagine o que a rainha dirá se souber que uma de suas damas de companhia se trancou com um homem num dos cómodos da casa.
- Pode confiar em mim. Eu preferiria morrer a deixar que qualquer mal lhe acontecesse.
- Sei muito bem disso. Não gosto de multidões, e quero saber o que você tem a me dizer.
Subiram uma escada e caminharam por um corredor. Havia três degraus curtos que conduziam a uma pequena antecâmara; sua única janela mostrava o rio brilhando ao luar.
Ana caminhou até a janela e olhou sobre o jardim para a água.
- Decerto nunca houve noite tão perfeita! - exclamou. Henry envolveu Ana em seus braços, e eles olharam um para o outro, maravilhados com o que viam.
- Ana! Faça desta a noite mais perfeita que já existiu, prometendo casar-se comigo.
- Se era só isso que era preciso para tornar essa noite perfeita, então agora ela o é - respondeu Ana, baixinho.
Ele segurou as mãos de Ana e as beijou, tão jovens e frágeis diante da violência das emoções do rapaz.
- Você é a mais bela das damas da corte, Ana.
- Pensa assim porque me ama.
- Também suspeito disso.
- Então estou feliz por você me amar tanto.
- Já sonhou com tanta felicidade, Ana?
- Sim, muitas vezes... mas nunca acreditei que iria concretizar o meu sonho.
- Pense naquelas pessoas abaixo de nós, Ana. Como são merecedoras de pena! Elas jamais conhecerão felicidade como esta!
Ela riu de repente, pensando no rei, caminhando pelo salão, tentando disfarçar o fato de que era o rei, procurando por sua nova paixão. Logo seus pensamentos vagaram para Mary.
- Minha irmã... - começou.
- O que tem sua irmã? Que diferença ela pode fazer por nós?
- Nenhuma! - gritou, e tomando sua mão, beijou-a. - Nenhuma, contanto que não permitamos que ela faça qualquer coisa.
- Então não permitiremos, Ana.
- Como eu o amo! - disse a ele. - E pensar que eu ia deixar que me casassem com meu primo de Ormond!
- Iam casar-me com a filha dos Shrewsbury.
Então um leve temor abalou Ana. Ela lembrou que ele era o herdeiro do conde de Northumberland; era adequado que ele se casasse com a família Shrewsbury, não com a humilde Ana Bolena.
- Ó, Henry, e se tentarem casar você com Lady Mary?
- Não conseguirão casar-me com ninguém senão com Ana Bolena! Não era difícil, lá em cima, na pequena câmara alumiada pelo luar, desafiar o mundo; mas eles não podiam ousar demorar-se muito. Toda a companhia precisava estar presente quando as máscaras fossem removidas, senão o rei ficaria deveras insatisfeito.
No salão de baile, o ar festivo estava tinto de melancolia. O cardeal estava perturbado, pois o rei demonstrava claramente sua irritação. Um baile de máscaras não era uma ideia tão brilhante quanto parecera à primeira vista; o rei não conseguira encontrar a quem procurava.
As máscaras foram removidas, o baile acabou, e o cortejo real foi abrigado nos 240 quartos que o cardeal pusera ao dispor de seus convidados.
A princípio as notícias pareceram um rumor, mas antes que muitos dias tivessem se passado, foi estabelecido que Henry, Lord Percy, filho mais velho e herdeiro do nobre conde de Northumberland, estava tão perdido de amor pela bela Ana Bolena que queria casar-se com ela.
E assim as novidades chegaram aos ouvidos do rei.
O rei estava roxo de raiva. Ele mandou chamá-lo, como sempre fazia quando surgiam problemas. O cardeal chegou rápido, sabendo que confiar nas boas graças de um rei
é como construir um lar sobre um vulcão calmo, mas ainda não extinto. Sobre o cardeal fluía a lava derretida da raiva de Henrique.
- Por Cristo! - bradou o rei. - Que maravilhosa situação! Eu prenderia o miserável e queimá-lo-ia no tronco, não fosse ele tão jovem! Como ele ousa comprometer-se sem o nosso consentimento!
- Vossa Majestade, temo estar em completa ignorância...
- O rapaz dos Percy! - rugiu Sua Majestade. - O maldito! Um ladrão, é isso o que ele é! Ele teve a ousadia de decidir casar-se com Ana Bolena!
Por dentro, o cardeal pôde sorrir. Isto era apenas uma mera crise de ciúmes.
"Cuidarei disso", pensou o cardeal, indignado com o fato de que sua argúcia, sua diplomacia, tivessem de ser empregadas para resolver problemas causados por dois amantes.
- É apenas um imbecil jovem e impertinente - apaziguou o cardeal. - Como ele é um dos meus jovens seguidores, Sua Majestade deve deixar-me cuidar dele. Irei castigá-lo. Deixá-lo-ei ciente de sua tolice... não, de seu crime, porque ofendeu Vossa Majestade. Ele é um imbecil se pensa que um Northumberland pode se unir à filha de um cavaleiro!
- Isso é uma afronta a nós - grunhiu Henrique. - Demos nosso consentimento à união com a jovem dos Shrewsbury.
- É uma união adequada de fato - murmurou o cardeal.
- Uma união mais sensata do que com a filha dos Bolena. Meu caro Wolsey, serei o responsável perante Shrewsbury e sua pobre filha se alguma coisa sair errado...
- Vossa Majestade sempre foi conscienciosa. Não deve culpar seu eu real pelos atos insensatos de seus súditos.
- Mas eu me culpo, Thomas... eu me culpo! Afinal de contas fui eu quem a trouxe para a corte.
Wolsey murmurou:
- Vossa Majestade...? Ora, pensei que tinha sido minha pessoa quem havia falado com os Bolena sobre sua filha caçula...
- Não importa! - decretou o rei, olhos brilhando de afeto por seu vassalo. - Acho que mencionei a garota a você. Não importa!
- Falei com os Bolena, Alteza, lembro-me bem.
A mão do rei pousou no ombro coberto de vermelho.
- Sei que este assunto pode ser confiado a você.
- Vossa Majestade sabe bem que eu posso cuidar disso com rapidez.
- Ambos devem ser banidos da corte. Não admito ser desfeiteado por crianças!
Wolsey fez uma mesura.
- O casamento com a filha dos Shrewsbury pode ser apressado - disse o rei.
Ousando muito, Wolsey indagou:
- E a jovem, Vossa Majestade? Falava-se sobre um casamento... as propriedades dos Ormond estavam na questão... Talvez Vossa Alteza não recorde.
As sobrancelhas se contraíram; a carne folgada no rosto pareceu engolir os olhos miúdos. O rei grunhiu, impaciente:
- Esse assunto não está resolvido. Não gosto desses irlandeses. Satisfaz-me banir a garota.
- Vossa Majestade pode confiar em mim para lidar com o assunto, segundo os seus desejos reais.
- E, Thomas... faça com que a correção parta de ti. Não quero que dois jovens saibam que tenho seu bem-estar tão próximo a meu coração; creio que eles já têm a si mesmos num conceito alto demais.
Depois que Wolsey retirara-se, o rei continuou caminhando para um lado e para o outro. Que ela retornasse para o Castelo de Hever. Ela devia ser punida por ousar apaixonar-se por aquele moço ordinário. O quanto ela estava apaixonada? Levemente? Era-lhe difícil imaginar isso. Perdidamente? Ah! Perdidamente apaixonada por um maldito garoto! E isso depois de ter sido tão petulante com seu senhor, o rei!
Para testar o afeto de Ana, Henrique dera-lhe a jóia mais reluzente em sua coroa mas ela recusara seus favores como uma rainha E embora conhecessem-se há tão pouco tempo, ela já o ofendera duas vezes. Então, que ela visse agora que não podia fazer nada disso impunemente!
Esta era a decisão: ela seria exilada para Hever, onde ele apareceria um dia. Ela seria humilde; ele, inflexível... só no começo.
Henrique deixou-se cair numa cadeira, pernas abertas, mãos nos joelhos, pensando numa reconciliação no jardim de rosas em Hever.
Sua fúria esmorecera.
Assim que voltou ao seu solar em Westminster, Wolsey mandou chamar Lord Percy.
O jovem chegou prontamente, e ali, na presença de vários dos seus servos mais importantes, Wolsey pôs-se a admoestá-lo. Revelou-se estarrecido com sua petulância em achar que poderia contrair matrimónio com uma moçoila da corte. Será que o jovem imbecil não se apercebia que, com a morte de seu pai, ele iria herdar e desfrutar um dos condados mais nobres do reino? Como então ele poderia casar-se sem o consentimento de seu pai? Será que Percy acreditava que seu pai ou o rei poderiam consentir que ele se cassasse com uma moça tão malnascida? O cardeal prosseguiu, incitando-se a um nível tal de indignação que só poderia causar o horror mais profundo no coração do rapaz. Ele comunicou ao moço que o rei esforçara-se muito preparando uma união adequada para Ana Bolena. Como ele ousava interferir na vontade do rei?
Lord Percy não era mais tímido que a maioria, mas conhecia a vida na corte bem o bastante para tremer diante do significado do que ele lia nas palavras de Wolsey. Homens haviam sido mandados para a Torre por recusar obediência ao comando do rei, e Wolsey claramente tinha o rei por trás dessa questão. Mandado para a Torre! Embora o temido cardeal não tivesse posto isso em palavras, Percy soube que elas podiam ser pronunciadas a qualquer momento. Homens iam para a Torre, e deles não se ouvia falar nunca mais. Aconteciam coisas pavorosas nas câmaras subterrâneas da Torre de Londres. Homens eram encarcerados e nunca mais viam a luz do dia. E Percy ofendera o rei!
- Senhor, não sabia nada sobre a vontade do rei, e sinto muito têla ofendido - disse Percy, trémulo. - Considero que me encontro em boa idade, e pensei que seria capaz de providenciar sozinho uma esposa conveniente, acreditando que meu senhor e meu pai dar-me-iam seu consentimento. Embora ela não seja mais do que uma simples aia e seu pai um cavaleiro, ela descende de uma linhagem nobre, porque sua mãe é de alto sangue Norfolk e seu pai tem o conde de Ormond como antepassado. Rogo humildemente ajuda à Vossa Graça, para intervir com Sua Majestade em meu favor.
O cardeal virou-se para seus servos e comentou a estupidez do rapaz. Num tom triste, o cardeal repreendeu Percy por não saber a vontade do rei e não ter-se submetido prontamente a ela.
- Fui longe demais nesta questão - disse Percy.
- Não pense que o rei e eu não sabemos o que fazer em casos graves como este!
Ele deixou o moço, comentando ao sair que ele não mais deveria procurar a moça, e que, se o fizesse, teria de enfrentar a fúria do rei.
O conde chegou. Viera apressado do norte porque o comando partira do rei, e correu até a casa de Wolsey. Homem frio com um olho em seus próprios interesses, o conde ouviu gravemente, tocou o pescoço como se estivesse sentindo a ponta de um machado afiado tocá-lo, cabeças já tinham sido cortadas por menos -, empederniu o rosto e disse que colocaria a questão em pratos limpos.
Procurou seu filho e ralhou com ele, amaldiçoando seu orgulho, sua licenciosidade, mas principalmente o fato de que ele infringira a vontade do rei. O que ele queria, levar seu pai para o cepo e fazer com que as posses da família fossem confiscadas? Ele era um biltre, um inútil, um... Ele iria retornar para sua casa imediatamente e proceder o casamento com Lady Mary Talbot, com quem estava comprometido.
Percy, ameaçado por seu pai, temendo a ira do rei, intensamente assustado com o poderoso cardeal, e não possuindo a mesma coragem irresponsável que sua parceira no romance, estava chocado com a tempestade que ele e Ana tinham provocado. Ele não podia se colocar contra esses homens. com grande pesar no coração, ele desistiu e deixou a corte com o pai.
Todavia foi capaz de deixar uma mensagem para Ana com uma parente da moça. Na mensagem ele rogava de sua promessa, porque ninguém, senão Deus, poderia fazer com que se esquecesse dela.
E o cardeal passando pelo átrio do palácio com seu séquito viu, numa das janelas, uma jovem de olhos negros com uma expressão pálida, trágica.
"Ah, a causa de tantos problemas!", pensou o cardeal, voltando sua mente para assuntos do reino.
Ao pousar no cardeal, os olhos negros de Ana reluziram em fúria, Algumas pessoas tinham ouvido os comentários demeritórios de Wolsey sobre Ana e se apressado em informá-la. A Wolsey ela culpava, e apenas a Wolsey, pela ruína de sua vida.
Insolente, Ana o fitou, lábios movendo-se como se o amaldiçoassem.
O cardeal sorriu. Ela acha que me assusta? Que garota ridícula! E eu sou o homem mais poderoso do reino! Poderia puni-la, mas imagine se iria me rebaixar notando alguém tão insignificante!
Na vez seguinte em que passou pelo pátio, o cardeal não viu Ana Bolena. Fora banida para Hever.
Em casa, no Castelo de Hever, uma raiva feroz tomou posse de Ana Ela esperara por uma nova mensagem de seu amado. Nenhuma mensagem chegou. Ele virá, disse Ana para si mesma Eles iriam cavalgar juntos, talvez disfarçados como aldeões, e fariam pouco caso da raiva do cardeal.
Às vezes ela acordava no meio da noite, pensando ouvir uma batida em sua janela; caminhando pelos arredores, sentia o coração acelerar sempre que escutava tropel de cavalos. Ana ansiava por seu querido, pensando naquela noite na pequena câmara em Hampton Court, que eles haviam concordado ser uma noite perfeita para se prometerem em casamento um ao outro, e feito isso. Lembrava da pena que eles tinham sentido pelas pessoas dançando no saguão abaixo, alheias ao encantamento que aquele casal estava experimentando.
Ela estaria pronta quando ele viesse pegá-la. Para onde iriam? Para qualquer parte! Porque o lugar não importava A vida iria ser uma aventura gloriosa Tomando por referência sua própria coragem, por que Ana haveria de duvidar da coragem de Henry?
Mas Henry não vinha, e Ana ficava cada vez mais triste. Então começou a sentir uma amargura profunda, imaginando por que ele não viera. Pensou naquele cardeal cuja maldade arruinara todas as suas chances de felicidade. Odiava-o frementemente.
Essa menina estúpida, dissera o cardeal. Essa tal Ana Bolena, que não é nada senão a filha de um cavaleiro, querendo se casar com o herdeiro de uma das famílias mais nobres do reino!
Ana iria mostrar ao cardeal se ela era estúpida ou não! Oh, que hipócrita! Um homem de Deus! Ele, que morava como um rei, era vingativo como um demónio e odiado pelo povo!
Quando ela e Percy fugissem juntos, o cardeal iria ver quem era a menina estúpida!
E seu amado não chegava.
Não posso suportar mais uma separação tão longa! - gritou a
jovem apaixonada. -Talvez ele planeje esperar até seu pai morrer, que, como todos sabem, é um homem doente. Mas eu não quero esperar tanto!
Ela estava melancólica, porque o verão estava passando, e era triste ver as folhas caírem.
O rei chegou a cavalo ao Castelo de Hever. De seu quarto Ana ouviu o burburinho que sua presença no castelo inevitavelmente causava. Trancou a porta e se recusou a descer. Se Wolsey tinha arruinado sua felicidade, o rei - indubitavelmente instigado por aquele homem maligno - humilhara-a banindo-a da corte. Infeliz como estava, Ana não se importava com nada... nem com a raiva de seu pai ou de seu rei.
A mãe foi até a porta do quarto de Ana apelar-lhe.
- O rei pediu a sua presença, Ana. Você precisa descer... depressa.
- Eu não irei! Eu não irei! - gritou Ana. -Fui banida, não fui? Se ele queria me ver, não deveria ter-me banido da corte.
- Não ouso descer e dizer à Sua Majestade que você se recusa a vê-lo.
- Eu não me importo! - gritou Ana, jogando-se na cama e rindo e chorando ao mesmo tempo. Estava tomada por uma raiva tão grande que não se via capaz de se controlar.
Seu pai chegou até sua porta, mas suas ameaças foram tão vãs quanto os apelos de sua mãe.
- Vai nos trazer uma grande desgraça, menina! - bradou Sir Thomas. - Não acha que já não nos trouxe muita?
- Desgraça? - gritou, furibunda. - Sim, se é uma desgraça amar e querer se casar, eu desgracei você. É uma honra ser amante do rei. Mary lhe deu essa honra! Se eu não desci a pedido de minha mãe, decerto não descerei ao seu!
- O rei ordena a sua presença!
- O senhor meu pai pode fazer o que o rei quiser - disse Ana, teimosa. - Sua Majestade pode fazer o que quiser. Eu não ligo para nada... agora.
E ela voltou a derramar lágrimas frescas.
Sir Thomas-tão diplomático diante de uma crise familiar quanto o seria numa missão no estrangeiro - explicou que infelizmente sua filha estava terrivelmente indisposta. E o rei, ele próprio impressionado com seus sentimentos para com essa moça manhosa, retrucou:
- Então não a perturbe.
O rei deixou o Castelo de Hever, e Ana retornou para aquela vida sem qualquer significado: esperar, sonhar, torcer, temer.
Num dia frio, quando o toque do inverno estava no ar e um vento forte derrubava as últimas folhas das árvores no parque, Sir Thomas trouxe notícias para casa.
Olhou para Ana e, sem uma expressão sequer no rosto, disse:
- Lord Percy desposou Lady Mary Talbot. Este é o fim do seu romance.
Ana subiu para o seu quarto e permaneceu lá o dia inteiro. Ela não comia; não dormia; não falava com ninguém. E no segundo dia sucumbiu a um surto de choro, amaldiçoando o cardeal, e com ele, o seu amado.
- Eles poderiam ter feito o que quisessem comigo, mas eu nunca teria cedido à sua vontade! - protestava amarga.
Dias tristes se passaram. Ana ficou tão pálida e fraca que sua mãe temeu pela vida da filha e comunicou esse medo ao marido.
Sir Thomas insinuou que se agora ela quisesse retornar à corte, seu desejo não seria negado.
- Isso com toda certeza eu não farei! - clamou, e tão doente estava que ninguém ousou discutir com ela.
Ana recordou a felicidade que desfrutara na França, e pareceu-lhe que sua única esperança para tratar a dor de seu coração seria livrandose da Inglaterra. Lembrou de uma pessoa a quem iria admirar eternamente: a arguta e alegre duquesa dAlençon. Será que na companhia daquela dama ela conseguiria renovar seu interesse pela vida?
O amor ela experimentara, e considerara-o amargo. Não queria mais esse tipo de experiência.
- com Marguerite eu poderia esquecer - disse Ana.
Temendo pela saúde da filha, Sir Thomas decidiu fazer-lhe suas vontades. Assim, mais uma vez Ana Bolena partiu de Hever para a corte da França.
O SOLAR LAMBETH ESTAVA tomado pela melancolia mais profunda. Na cama que compartilhava com Lord Edmund Howard desde a noite de seu casamento, Jocosa agora jazia à morte. Estava muito cansada, a pobre dama; sua vida de casada exigira muito de sua saúde. Por anos a fio seu útero mal pudera descansar antes que outro pequeno Howard começasse a crescer e a iminência da morte suavizava os sentimentos mais amargos. O que importava agora se o seu distinto marido tivesse sido tão negligenciado? Por que, perguntou-se vagamente, as pessoas temiam tanto a morte? Era tão fácil morrer, tão difícil viver.
- Silêncio! - disse uma voz. -Não perturbe sua mãe agora. Não vê que ela está dormindo em paz?
Então chegou aos ouvidos de Jocosa o som do choro de uma menininha. Jocosa tentou mover a manta para atrair atenção. Esse era o choro da pequena Catarina, porque, ainda que jovem, tinha idade suficiente para entender o significado das vozes baixas, a atmosfera melancólica. Ela tinha idade suficiente para sentir o odor da morte.
- Minhas crianças... - murmurou Jocosa, e tentou levantar da cama.
Calma, minha dama - disse uma voz. - A senhora precisa de
descanso.
- Minhas crianças - sussurrou Jocosa, mas seus lábios estavam ressequidos, rígidos demais para formar palavras.
Pensou em Catarina, a mais bonita de suas filhas, mas de certo modo também a mais indefesa. A gentil e pequenina Catarina, tão ansiosa por agradar que deixava os outros fazerem dela gato e sapato. Algum sentido desconhecido lhe dizia que sua filha Catarina iria sentir uma grande falta dos cuidados da mãe.
com muito esforço, ela falou:
- Catarina... Filha...
- Ela disse o meu nome! - gritou Catarina. - Está chamando por mim.
- Ca... Catarina...
Jocosa levantou os dedos da menininha até seus lábios rachados. Talvez, ela pensou, Catarina ganhe uma madrasta. Nem sempre as madrastas são gentis; elas têm seus próprios filhos para favorecer na frente das crianças da mulher à qual substituem, e uma esposa viva tem um poder do qual uma morta carece. Talvez sua tia Norfolk aceitasse ficar com esta pequena Catarina; talvez sua avó Norfolk. Não, não os Norfolk, essa gente rude! Catarina, que era jovem e terna, não deveria ser criada por eles. Jocosa lembrou de sua própria infância em Hollingbourne, na casa adorável de seu pai, Sir Richard Culpepper. Agora seu irmão John estava instalado lá; ele tinha um filho que naquele momento estava brincando na ala infantil da casa. Lembrou dos dias felizes que passou lá, e em seus pensamentos entorpecidos pela proximidade da morte, era Catarina que parecia estar em Hollingbourne, não ela Para a mãe moribunda, era acalentador ver sua filha brincando na ala infantil que ela conhecia tão bem, mas o prazer passou e ela novamente adquiriu consciência da sala grande e vazia em Lambeth.
- Edmund..
Catarina voltou seus olhos lacrimosos para a enfermeira
- Ela está falando o nome de meu pai.
- Sim, minha dama? - perguntou a ama-seca, inclinando-se sobre a cama.
- Edmund...
- Vá até o seu pai e lhe diga que a sua mãe quer ter com ele.
Assim, o pobre, gentil e entristecido Edmund, cuja vida fora afligida pela peste e pela pobreza, pôs-se ao lado da cama de Jocosa. Agora sentia-se arrependido pelas palavras cruéis que usara para com a esposa, e lamentava a pobreza que sempre o assombrara, rindo dele, minando dele sua gentileza natural, arruinando a paz que ele queria conceder à sua família.
- Jocosa...
Tão grande foi a ternura em sua voz ao dizer o nome da esposa, que, por um instante, ela pensou que aquela era sua noite de núpcias, e ele seu noivo; mas então percebeu que estava rouca e que seu corpo ardia em febre, e isso a lembrou de que aquele não era o prólogo, e sim o epílogo de sua vida com Edmund, e que Catarina - a mais doce de suas crianças - encontrava-se em algum risco, que ela sentia mas não compreendia.
- Edmund... Catarina...
Edmund levantou a criança em seus braços e a segurou mais próxima da cama. - Jocosa, aqui está Catarina.
- Meu senhor... deixe-a ir... deixe Catarina ir...
Sua cabeça se inclinou para mais perto, e com muito esforço as palavras saíram.
- Meu irmão John... em Hollingbourne... em Kent. Deixe Catarina... ir para o meu irmão John.
Lord Edmund disse:
- Descanse em paz, Jocosa. Será como você deseja.
Jocosa voltou a afundar na cama, sorrindo, porque assim iria ser, afinal ninguém desrespeitava uma promessa a uma moribunda.
O esforço cansara-lhe. Ela não sabia mais onde estava deitada, mas acreditava encontrar-se em Hollingbourne em Kent, tamanha era a paz que sentia. As batidas de seu coração estavam mais lentas agora.
- Catarina está a salvo - disse Jocosa. - Catarina está... a salvo.
Em Hollingbourne, para onde Catarina fora levada a comando de seu pai, a vida era diferente daquela no Solar Lambeth. A primeira coisa que surpreendeu a menina foi a abundância de alimentos de fazenda. Havia em Hollingbourne uma simplicidade que ela não conhecera em Lambeth; e Sir John, em seu retiro de campo, era lorde da vizinhança, enquanto Lord Edmund, levando sua vida paupérrima entre aqueles de nascimento igualmente nobre, parecia de pouca importância. Catarina considerava seu grande tio John alguém muito parecido com um deus.
A ala infantil era composta por várias salas arejadas no pavimento superior da casa, e de lá era possível avistar os pastos agradáveis de Kentish, não perturbados pela grandeza sombria da grande cidade em cujas cercanias repousava o Solar Lambeth. Em Lambeth, muitas vezes Catarina olhara para os fortes da grande Torre de Londres, e percebera neles alguma coisa que a assustava. Os criados em Lambeth não eram superprotetores; e embora houvesse aqueles que não tinham nada senão adulação a conceder a Lord Edmund e sua esposa, a pobreza provara-se niveladora, e havia outros que nutriam pouco respeito por alguém que temia ser preso a qualquer momento em razão de suas dívidas, ainda que fosse ele um lorde nobre. E esses servos não mediam palavras ao falar na presença dos pequenos Howard. Havia uma certa Doll Tappit que tinha como amante um guarda da Torre, e ela repassava as histórias terríveis que ele lhe contava; histórias sobre os gritos aterrorizantes que provinham das câmaras de tortura, dos nobres que tinham desagradado o rei e que ali foram deixados para morrer de fome nas torres infestadas de ratos. Portanto, Catarina estava feliz em ver colinas verdes e formosas delineadas contra o horizonte, e árvores cheias de folhas no lugar das grandes torres de pedra.
Havia conforto em Hollingbourne, conforto que Catarina jamais conhecera em Lambeth.
Foi levada para a ala infantil e colocada sob a guarda de uma velha ama-seca que conhecera sua mãe; ali ela foi apresentada a seu primo Thomas e seu tutor.
Tímida, ela estudou Thomas. Ele, com seu rosto encantador - que ostentava olhos ousados e vivos -, era mais velho que Catarina um ano ou dois. Catarina ficou muito impressionada com o menino, mas ele, ao descobrir que o parente com quem iria dividir os aposentos da ala infantil era apenas uma garota - e uma garota tão pequenina -, tendia a desdenhá-la.
Catarina sentiu-se muito solitária naquele primeiro dia. É verdade que lhe deram comida. E que a ama-seca olhou para seu guarda-roupa escasso, estalando a língua para esta e aquela roupa puída, que há muito deveriam ter sido dadas a um criado.
- Que lástima! - exclamou a ama-seca. - É de admirar que você tenha crescido, menina!
Culpando a pequena Catarina Howard pela pobreza de seus pais, a ama-seca se perguntou para onde o mundo estava indo, quando mendigos eram recebidos na nobre casa de Culpepper.
Catarina era, por natureza, calma, feliz e otimista. Nunca dizia "Isso é ruim". Sempre dizia "Isso podia ser pior". Ela perdera a mãe, que amara acima de qualquer outra pessoa no mundo, e estava triste com isso, mas era impossível não gostar do leite que lhe davam para beber; era impossível não ficar feliz com o fato de ter sido retirada de Lambeth. Sentia falta de suas irmãs e irmãos, mas sendo uma das mais jovens, nos jogos sempre recebia os papéis menos importantes e agradáveis; e se já havia um número suficiente de crianças numa brincadeira, era ela que sempre ficava de fora. A tarde de seu primeiro dia em Hollingbourne foi passada com a ama-seca que, estalando a língua, cortava roupas descartadas por "minha dama", para fazer trajes para Catarina Howard. Ela recebeu ordens de ficar parada para ser medida; foi empurrada e girada. Mas o sacrifício iria compensar; as roupas que estavam sendo feitas pareciam esplêndidas.
Pela janela ela viu Thomas cavalgando sua égua. Catarina correu até a janela e se ajoelhou para observá-lo; e ele, olhando para cima, pois suspeitava de que ela estaria lá, gesticulou graciosamente para a menina. Isso encheu Catarina de deleite, porque ela decidira, no momento em que pusera os olhos no menino, que ele era a pessoa mais bela que ela já vira.
Ela possuía um quarto só para si - um pequeno cómodo apainelado com cortinas nas janelas-, que ficava adjacente à sala principal da ala infantil. Em Lambeth ela dividira um quarto com vários membros de sua família.
Mesmo naquele primeiro dia ela amou Hollingbourne, mas isso porque sua mãe falara-lhe sobre o lugar com muito afeto.
Mas naquela primeira noite, quando ela estava deitada no pequeno quarto, todo só para ela, com a lua brilhando através da janela e lançando sombras fantasmagóricas nas paredes, Catarina começou a ser tomada por uma grande solidão, e seu amor repentino por Hollingbourne foi substituído por medo. Não havia som de barcas descendo o rio para Greenwich ou subindo para Richmond e Hampton Court; havia apenas silêncio quebrado de vez em quanto pelo pio soturno de uma coruja. A sala estranha parecia ameaçadora à meia-luz, e de repente Catarina sentiu saudades do quarto em Lambeth, com seus irmãos e irmãs barulhentos. Pensou em sua mãe; Catarina Howard desfrutara da companhia da mãe com uma frequência rara entre crianças bem-nascidas, por não haver vida na corte para afastar Jocosa de sua família, e suas preocupações não serem voltadas para a moda, mas sim para seus filhos. Essa alegria a pobreza concedera a Catarina, mas a vida cruel tomará-lhe sem aviso. Assim, em seu quarto silencioso em Hollingbourne, Catarina vertia lágrimas amargas no travesseiro, com saudades dos carinhos e da voz gentil de sua mãe.
- Como agora você não tem mãe, precisa aprender a ser uma menina corajosa - haviam lhe dito.
Mas eu não sou corajosa, pensou Catarina, e imediatamente lembrou como seu irmão mais velho escarnecera dela porque, apesar de seu medo de fantasmas, ouvira e até mesmo encorajara Doll Tappit a contar histórias sobre almas do outro mundo.
O amante de Doll Tappit, Walter, o sentinela, certa vez vira um fantasma. Doll Tappit contou a história à ama-seca enquanto alimentava o bebé. Catarina sentara-se perto das duas, ouvindo com olhos arregalados.
- Você sabe, ama, que o trabalho de meu Walter exige que ele caminhe pela Torre duas vezes por noite. Walter, como você sabe, mede mais de um metro e oitenta, sendo quase tão alto quanto Sua Majestade o rei. Ele é um homem que não se acovarda fácil. Walter disse que isso se deu numa noite em que as nuvens cobriam a lua como se quisessem esconder dela visões horrendas. Acontecem coisas horríveis na Torre de Londres, ama! Walter já ouviu lá gemidos de gelar o sangue, escutou correntes sendo arrastadas, ouviu gritos e uivos. Mas até essa noite ele nunca tinha visto nada... E ali estava ele, diante do cadafalso, quando... nítido como eu a vejo agora, ama... ele viu o duque. Sua cabeça jazia à sua frente no chão, no meio de uma poça vermelha, e o sangue escorria pelas roupas refinadas de Sua Graça!
- O que aconteceu, então? - perguntara a enfermeira, que tendia ao ceticismo. - O que o duque de Buckingham tinha a dizer a Walter, o sentinela?
- Ele não disse nada. Ele apenas estava lá., durante um minuto ele esteve lá. Então sumiu.
- Dizem que o taberneiro das redondezas é muito generoso, e sempre manda vinho para os guardas...
- Walter nunca toma!
Garanto-lhe que ele tomou naquela noite.
- E depois que o fantasma desapareceu, Walter parou onde estivera a...
- Onde estivera o quê?
- A cabeça, pingando sangue. E embora a cabeça tivesse desaparecido, o sangue ainda estava lá. Walter o tocou. Ele me mostrou a mancha em seu casaco.
A enfermeira manifestou sua descrença com um resmungo, mas Catarina sentiu um arrepio. Depois disso, em várias ocasiões, ela sonhou com o duque decapitado, caminhando até ela, sua cabeça provocando manchas no chão da ala infantil.
E em Hollingbourne não havia irmãos e irmãs para ajudá-la a não acreditar em fantasmas. Os fantasmas apareciam quando as pessoas se viam sós, a julgar pelas histórias que Catarina ouvira. Os fantasmas tinham uma aversão a multidões de seres humanos, e portanto, durante toda sua vida, estando cercada por irmãos e irmãs, Catarina sentira-se segura; mas não desde que viera a Hollingbourne.
Enquanto esses pensamentos provocavam arrepios em Catarina, ela ouviu um ruído baixo vir do lado de fora; um roçar suave, como se mãos tocassem a moldura da janela. Ela prestou atenção, e ouviu mais uma vez o ruído.
Estava sentada em sua cama, olhando para a janela. Mais uma vez, ouviu o ruído; e com ele um som de respiração ofegante.
Ela cerrou os olhos; cobriu a cabeça com o lençol. Então, ao dar uma espiada entre os panos, viu um rosto em sua janela. Gritou.
- Silêncio! - disse uma voz, muito severa, e Catarina pensou que morreria de alívio, pois a voz era a de seu belo primo, Thomas Culpepper.
Ele pulou pela janela.
- Ora, Catarina Howard, eu a assustei?
- Eu... pensei que você... fosse... um fantasma! Isso o fez rir.
- Eu tinha esquecido que este era o seu quarto, prima - mentiu, pois estivera ciente disso e escalara a janela para impressioná-la com sua coragem. - Estive lá fora, vivendo aventuras. - Ele abriu um sorriso e mostrou um rasgo em suas roupas.
- Aventuras...
- Faço coisas ousadas à noite, prima.
Os olhos de Catarina arregalaram-se de pasmo, admirando-o, e Thomas Culpepper, feliz com tanta admiração, que não poderia obter de qualquer um senão dessa menina simples, sentiu uma satisfação imensa por Catarina Howard ter vindo morar em Hollingbourne.
- Conte-me suas aventuras - pediu. Ele colocou um dedo sobre os lábios.
- É melhor não falar sobre isso muito alto, prima. Nesta casa eles pensam que eu sou apenas um menino. Quando estou lá fora, sou um homem.
- É feitiçaria? - perguntou Catarina, ansiosa; muitas vezes ouvira Doll Tappit falar sobre feitiçaria.
Nesse ponto o menino fez silêncio, assumindo uma expressão misteriosa. Mas antes que falasse com ela, iria tirá-la de sua cama e mostrarlhe a altura do muro que ele escalara sozinho, apenas por uma trepadeira.
Ela empurrou os lençóis, e, nua, caminhou até a janela. Ela estava muito impressionada.
- Maravilhoso isso que você fez, primo Thomas - disse ela. Ele sorriu, muito satisfeito, considerando-a mais bonita em sua pele muito branca do que nas roupas feias que usara ao chegar.
- Faço muitas coisas maravilhosas - disse a ela. - Você vai sentir frio, nua desse jeito. Volte para a sua cama.
- Sim - disse ela, tremendo, meio por causa do frio, meio por causa da empolgação. - Estou com frio.
Ela saltou graciosa para a cama e puxou as cobertas até a altura de seu queixo. Ele se sentou na cama, admirando a lama em seus sapatos e a aparência desmazelada de suas roupas.
- Conte-me - rogou a menina, joelhos colados no queixo, olhos reluzindo.
- Temo que não seja para os ouvidos de uma menininha.
- Não sou uma menininha. Você só tem essa impressão porque é grande.
- Ah! - exprimiu, muito satisfeito em ser considerado assim. É provável. Talvez você não seja tão pequena. Eu vivi muitas aventuras, prima. Estive lá fora, colocando armadilhas para lebres e atirando em animais.
A boca da Catarina assumiu um desenho de O, redondo de maravilhamento.
- Pegou muitos?
Centenas, prima! Mais do que uma menininha como você conseguiria contar.
- Eu posso contar centenas - protestou.
- Você levaria dias para contar esses. Sabia que, se eu tivesse sido pego, poderiam me enforcar em Tyburn?
- Sim - respondeu Catarina, que poderia contar-lhe mais histórias assustadoras sobre Tyburn do que ele poderia narrar para ela; afinal ele nunca conhecera Doll Tappit.
- Mas eu espero que Sir John, meu pai, não permita que isso aconteça. Além disso, não poderiam chamar isso de roubo, porque as terras de meu pai um dia serão minhas. Vê, prima Catarina, que tipo de aventuras eu tenho?
- É muito corajoso.
- Talvez um pouco. Estive ajudando um homem com quem fiz amizade. Ele é um homem muito interessante, prima; um caçador ilegal. Assim, pela diversão e pelo lucro, estou roubando a caça das terras do meu pai.
- Se ele for capturado, poderá ser pendurado pelo pescoço!
- Nesse caso, intercederei em seu favor junto a meu pai.
- Queria ser tão corajosa quanto você!
- Bah! Você é apenas uma garota... e morre de medo de ver um fantasma.
- Não estou com medo agora. Só sinto medo quando fico sozinha.
- Vai ficar com medo depois que eu for embora?
- com muito medo.
Ele lançou-lhe um olhar gentil. Ela era uma menininha, e ela pagara um tributo muito agradável à sua superioridade masculina. Sim, com toda certeza ele estava satisfeito por sua prima ter vindo morar em Hollingbourne.
- Ficarei aqui para protegê-la.
- Ficará? Primo Thomas, nem sei como lhe agradecer.
- Certamente não acha que eu teria medo de um fantasma!
- Sei que é impossível.
- Então você está a salvo, Catarina.
Mas se... quando eu estiver sozinha..
- Ouça. - Ele aproximou sua cabeça do rosto da menina, conspiratório. Apontou sobre o ombro. - Ali é o meu quarto. Apenas uma parede me separa de você, pequena prima. Sempre estarei alerta para o perigo, e tenho o sono muito leve. Ouça com atenção, Catarina. Se um fantasma aparecer, tudo que você precisa fazer é bater na parede, e estarei aqui antes que possa fechar uma pestana. Dormirei com a minha espada bem à mão.
- Oh, Thomas! Você também tem uma espada?
- É do meu pai, mas é quase minha porque um dia também irei herdá-la.
- Oh, Thomas! - Doce era sua adulação pelo pequeno fanfarrão.
- Ninguém vai ousar machucá-la quando eu estiver por perto assegurou-a. - As criaturas vivas ou mortas terão de lidar comigo antes.
- Você poderia ser meu cavaleiro, Thomas - disse, baixinho.
- Você não teria um mais corajoso e...
- Eu sei disso. Acho que agora não irei mais chorar tanto.
- Por que você chora?
- Por minha mãe, que morreu.
- Não, Catarina, você não precisa chorar. Porque no lugar de sua mãe você terá o seu primo corajoso, Thomas Culpepper.
- Então só preciso bater com a mão na parede se...? Ele franziu o cenho.
- Por esta noite, sim. Amanhã encontrarei um cajado para você... um cajado pesado. com ele você poderá bater na parede ou, numa emergência, atacar o fantasma, caso isso seja necessário antes que eu chegue.
- Não, eu não conseguiria! Eu iria morrer de pavor. Ademais, os fantasmas não fazem coisas terríveis com quem ousa atacá-los?
- Isso é verdade. O plano mais seguro, prima, é me esperar.
- Não sei como lhe agradecer.
- Agradeça-me colocando sua confiança em mim.
O menino se afastou da cama e fez uma mesura até o chão.
- Boa noite, prima
- Boa noite, querido e corajoso Thomas.
O menino saiu, e Catarina abraçou o travesseiro num êxtase de alegria. Nunca uma criança da sua idade fora-lhe tão gentil. Nunca ela se sentira tão importante.
E quanto aos fantasmas, que se danassem! Que dano eles poderiam causar a Catarina Howard, com Thomas Culpepper no quarto ao lado, atento a seu chamado, pronto para vir em seu resgate!
Havia alegria nas horas passadas em Hollingbourne. Os dias em Lambeth tinham ficado para trás, num passado nebuloso e infeliz. E acontecera a Catarina coisa melhor do que o nascimento de sua amizade com o primo Thomas. Catarina, cuja natureza era excessivamente afetuosa, não pedia nada mais do que a permissão para amá-lo. Ele aceitava muito graciosamente o afeto da prima, e gostava mais dela do que sua dignidade permitia-lhe aparentar. Doce, jovem e feminina, Catarina tocava alguma coisa em sua masculinidade. Ele encontrava grande prazer em protegê-la. Assim, o amor cresceu entre eles. Thomas ensinou Catarina a cavalgar, escalar árvores e compartilhar suas aventuras, embora jamais a levasse com ele à noite. Na verdade nem ele teve muito mais aventuras dessa espécie depois da chegada da prima, porque queria estar próximo nas horas mais altas, quando ela talvez precisasse de seu auxílio.
A educação de Catarina foi negligenciada. Sir John não acreditava muito na instrução de meninas. Ademais, quem era ela senão uma agregada, ainda que fosse filha de sua irmã! Ela era uma menina, e seria muito difícil conseguir um casamento para ela; e portando um nome como Howard, essa união poderia ser feita sem o adorno desnecessário de uma boa educação. Considere o caso de seu parente, Thomas Bolena. Segundo John ouvira, Thomas Bolena fizera grandes sacrifícios para prover instrução a seus dois filhos mais novos que, na família, tinham adquirido a reputação de dotados de certo brilhantismo. Até mesmo a menina fora educada, e o que o ensino fizera por ela? Falava-se alguma coisa sobre um desastre na corte; a garota aspirara desposar um jovem de berço muito nobre... indubitavelmente devido a ter recebido uma boa educação. E essa educação tinha-lhe ajudado? Nem um pouco! Sua recompensa fora o banimento e a desgraça. O ideal era permitir que as meninas continuassem dóceis; estimulá-las a cultivar modos encantadores; ensiná-las como se vestir bem e se submeter a seus maridos. Isso era tudo de que uma jovem precisava da vida. Por acaso ela deveria entender como construir versos latinos para fazer essas coisas? Precisava saber como dar voz a seus pensamentos frívolos em seis línguas diferentes? Não, a educação da jovem Catarina Howard limitar-se-ia às prendas femininas.
Thomas tentou ensinar um pouco sua prima, mas logo desistiu da ideia. Ela não tinha qualquer aptidão para aprender. Ao invés disso, preferia ouvir as histórias de suas aventuras imaginárias, cantar, dançar e tocar instrumentos musicais. Era uma criaturinha fútil, e tendo nascido na pobreza, estava bastante satisfeita por ter
saído dela, e feliz por desfrutar da companhia de seu amigo, com toda certeza o primo mais querido e bonito do mundo. Que mais ela poderia querer?
E assim os dias transcorriam agradavelmente... cavalgar com o primo, ouvir suas histórias, admirá-lo, brincar de jogos nos quais Thomas sempre assumia o papel glorioso de um cavaleiro heróico e ela o personagem da dama indefesa a ser
resgatada. De vez em quando, Catarina tomava uma lição de cravo, o que não considerava uma aula, tendo nascido com amor pela música. Ela precisava fazer exercícios de canto, e adorava praticá-los, porque sua voz era bonita e prometia ser boa Mas a vida não poderia seguir eternamente neste sustenido melodioso. Um jovem como Thomas Culpepper não poderia ser deixado indefinidamente aos cuidados de um tutor particular.
Certo dia, Thomas chegou à sala de música enquanto Catarina praticava o cravo com seu professor, e se sentou numa poltrona para assisti-la tocar. Os cabelos castanhos de Catarina caíam sobre seu rosto corado; ela era muito jovem, mas sempre houvera em Catarina Howard, mesmo quando ela fora um bebé, uma certa sensualidade feminina.
Tendo percebido a presença de Thomas, estava tocando ainda com mais afinco que o normal para agradá-lo. Isso, pensou Thomas, era típico de Catarina; ela sempre procurava
agradar as pessoas a quem amava. Thomas ia sentir muita falta de sua prima. Para sua supresa, Thomas percebeu que vêla tocar fazia seus olhos lacrimejarem, e chegou a pensar em correr da sala, para que não fosse traído por lágrimas estúpidas. Fazia realmente pouco tempo desde que Catarina viera para Hollingbourne, e ainda assim ela marcara uma diferença significativa em sua vida. Era estranho que isso tivesse acontecido; ela era tímida e recatada, mas sua vontade constante em agradá-lo tornava-a importante para Thomas; e ele, que desejara tanto ver este estágio de sua educação completado, agora lamentava que ele tivesse chegado ao fim.
O professor se levantou; a aula terminara
Catarina voltou um rosto corado para o primo.
- Thomas, você acha que melhorei?
- Acho sim - respondeu, percebendo que mal ouvira o que ela havia tocado. - Catarina, vamos cavalgar um pouco - disse rápido. Preciso lhe dizer uma coisa.
Galoparam em torno do estábulo, Thomas liderando, Catarina tentando acompanhá-lo mas nunca conseguindo - o que a tornava tão encantadora. Ela era o perfeito representante do sexo feminino, sempre expressando sua subserviência ao homem, suave e indefesa, meiga, olhos sempre prontos para se encherem de lágrimas diante de qualquer censura.
Ele parou seu cavalo, mas não desmontou. Não ousou fazer isso, sentindo-se ridiculamente próximo às lágrimas; precisava estar pronto para chicotear seu cavalo se essa inclinação se tornasse um perigo real.
- Catarina, tenho más notícias... - disse, a voz já embargada. Ele olhou para o rosto da menina, para os olhos castanhos, agora arregalados de medo, para a boca pequena e arredondada que agora tremia.
- Minha priminha querida, não é tão ruim assim. Eu vou voltar. Deverei voltar muito em breve.
- Então você vai partir, Thomas?
O mundo de Thomas ficou repentinamente escuro; lágrimas brotaram de seus olhos e começaram a descer por suas faces. Ele olhou para outro lado e procurou proteger-se, engrossando a voz.
- Ora, Catarina, não seja boba. Claro que você não imaginava que o filho do meu pai passaria todos os seus dias enfiado aqui no interior!
- N-não...
- Então! Enxugue os olhos. Não tem lenço? Como é que pode, Catarina? - Ele lhe deu o seu. - Fique com este, guarde consigo e pense em mim depois que eu tiver ido embora.
Catarina pegou o lenço, que já lhe era um objeto sagrado. O menino prosseguiu, voz vacilante:
- E você deve me dar um dos seus, Catarina, para que eu possa guardá-lo.
A menina enxugou os olhos. Ele disse, muito terno:
- É apenas por pouco tempo, Catarina. Agora ela estava sorrindo.
- Eu devia ter adivinhado. Claro que você ia embora.
- Quando eu voltar, teremos dias muito agradáveis juntos, Catarina
- Sim, Thomas.
Sendo Catarina, ela já começava a pensar mais na volta do que na partida.
Ele saltou do cavalo, e ela imediatamente o imitou. Thomas estendeu as mãos, e ela colocou as suas entre as dele.
- Catarina, você pensa como será quando nós crescermos... quando realmente formos adultos, e não precisarmos mais fingir isso?
- Eu não sei, Thomas. Talvez já tenha pensado.
- Quando formos adultos, Catarina, nós deveremos nos casar... essa é uma obrigação que nós dois teremos. Catarina, eu posso querer me casar com você quando tiver idade para isso.
- Thomas! Você faria isso?
- É possível.
Ela era bonita, com o sorriso irrompendo através das lágrimas.
- Sim. Acho que talvez eu queira fazer isso. Então, Catarina, não fique triste por eu precisar ir embora. Você sabe que nós dois somos muito novos. Se não fôssemos, eu me casaria com você agora e a levaria comigo.
Estavam de mãos dadas, sorrindo um para o outro; ele, corado com o prazer de sua beneficência em ofertar-lhe uma perspectiva tão gloriosa como um casamento com ele; ela, subjugada pela honra que ele acabara de lhe prestar.
- Quando se prometem em casamento, Catarina, as pessoas se beijam. Eu vou beijar você agora.
Thomas beijou Catarina uma vez em cada face e então, finalmente, em sua boca macia de bebé. Catarina queria que ele continuasse a beijála, mas ele não fez isso, não gostando tanto da operação e considerando-a uma formalidade necessária e até humilhante; ademais, temia que houvesse por perto alguma testemunha para fazer o que ele mais temia das pessoas, rir à sua custa
- Está selado - sentenciou o menino. - Vamos cavalgar.
Catarina estava há tanto tempo em Hollingbourne que passou a considerá-la o seu lar. Thomas voltava para casa eventualmente, e não havia nada que gostasse mais do que narrar as aventuras que tivera; e jamais ele conhecera uma ouvinte melhor do que sua priminha. Ela era tão crédula, tão propensa a admirá-lo! Ambos aguardavam ansiosamente esses reencontros, e embora não falassem sobre o casamento ao qual haviam se prometido há tanto tempo no estábulo, não tinham esquecido nem queriam repudiar o compromisso. Thomas não era o tipo de garoto que pensasse muito em meninas, exceto quando elas podiam encaixar-se numa aventura na qual, por sua natureza indefesa e inferioridade física, elas pudessem glorificar a perícia e a força do macho. Thomas era um menino normal e saudável cujos pensamentos já haviam se voltado, ainda que levemente, para o sexo; Catarina, embora mais jovem, compreendia o sexo desde que era muito pequena; ela gostava da companhia de Thomas principalmente quando o primo segurava sua mão, erguia-a sobre um córrego ou a resgatava de alguma ameaça imaginária. Quando a brincadeira era fazer de conta um roubo de jóias, e ela devia fingir ser um homem, a aventura perdia todo seu prazer. Ela ainda lembrava dos beijos rápidos e envergonhados que ele lhe dera diante do estábulo, e ela adoraria que eles voltassem a fazer planos para seu casamento, apenas para beijá-lo de novo. Ela não ousava contar isso a Thomas, e ele, que sempre pensava em sua prima como uma criança, mal imaginava que ela já era uma mulher.
Assim passaram-se dias agradáveis até a tarde fatídica em que Catarina estava sentada diante da janela para a ala infantil e uma criada veio dizer-lhe que seu tio a chamava em sua câmara.
Assim que chegou ao cómodo, Catarina percebeu que alguma coisa estava errada; seu tio e sua tia ostentavam expressões muito sérias.
- Minha querida sobrinha, aproxime-se-disse o tio, que frequentemente falava pelos dois. - Tenho notícias para você.
Catarina caminhou até o tio e parou diante dele, joelhos trémulos, enquanto orava: "Por favor, Deus, faça com que Thomas esteja seguro e bem."
- Agora que seu avô, o duque Lord Thomas, não está mais entre nós, a sua avó decidiu que gostaria muito de tê-la a seu lado - disse Sir John no tom solene que usava ao falar dos mortos. - Você sabe que seu pai se casou de novo...
O rosto do tio empederniu-se. Era um homem direto; não havia uma gota de ternura em sua natureza. Parecia-lhe perfeitamente razoável o fato de que, tendo o marido de sua irmã iniciado uma nova vida, sua própria responsabilidade para com a sobrinha cessasse automaticamente.
- Ir embora... daqui...? - gaguejou Catarina.
- Para a sua avó em Norfolk.
- Mas... eu... não quero... Aqui tenho sido tão... feliz...
A tia envolveu o ombro da menina com um braço e beijou-a na face.
- Catarina, você precisa compreender que sua estadia aqui não está em nossas mãos. O seu pai se casou de novo... é desejo dele que você vá viver com a sua avó.
Catarina olhou de um para o outro, olhos reluzentes com lágrimas que transbordaram, nunca tendo sido boa em controlar suas emoções.
O tio e a tia esperaram até que ela tivesse enxugado os olhos e pudesse ouvi-los de novo. Então Sir John disse:
- Você precisa se preparar para uma jornada longa, para que esteja pronta quando sua avó vier buscá-la. Agora vá.
Catarina cambaleou para fora do cómodo, pensando: "Da próxima vez em que ele voltar eu não estarei aqui! E como vou poder vê-lo novamente, estando ele em Kent e eu em Norfolk?" Na ala infantil, as notícias foram recebidas com grande interesse.
- Ora, que motivo você tem para chorar? - disseram-lhe. Quando você estiver na casa de sua vó, irá se sentir muito superior a nós, os pobres. Uma de nós que serviu a duquesa disse que ela possui propriedades magníficas, tanto em Horsham quanto em Lambeth. A próxima notícia que teremos de você é de que irá para a corte!
- Eu não quero ir para a corte! - gritou Catarina.
- Ah?-disseram-lhe. - Tudo que você quer é o seu primo Thomas! Então Catarina pensou:
"Será que Norfolk fica tão distante daqui assim? Talvez não tão distante que ele não possa ir até lá. Ele irá; e então, dentro de alguns anos, iremos nos casar. O tempo passará rápido..."
Ela lembrou de sua avó: uma velha preguiçosa, gorda e inclinada a cutucá-la com um pedaço de pau, que passava a maior parte do tempo sentada e rindo sozinha dos próprios comentários, como: "Você tem olhos bonitos, Catarina Howard. Fique com eles; irão servir-lhe bem!" A avó, com olhos matreiros, papadas que balançavam quando ria, tripas que roncavam quando ela abusava à mesa.
Catarina esperou a chegada daqueles que iriam levá-la até sua avó, e com a passagem dos dias seus temores diminuíram; viveu num sonho agradável no qual Thomas ia a Horsham e passava seus feriados lá ao invés de em Hollingbourne; e Catarina, sendo a neta de uma dama rica como a duquesa-mãe de Norfolk, envergava roupas bonitas e jóias nos cabelos. Thomas dizia: "Você é mais bonita em Norfolk do que era em Kent!", e a beijava. E Catarina o beijava. Havia uma profusão de beijos e abraços em Horsham. "Vamos fugir juntos", dizia-lhe Thomas.
Assim, transcorreram aprazíveis os últimos dias em Hollingbourne, e quando chegou o momento de sua partida para Norfolk, ela não se importou muito, tendo planejado um futuro tão feliz para si mesma e para Thomas.
A casa em Hosham era grande de fato. Fora construída em torno de um salão imenso; era provida de um salão de bailes, muitos quartos, inúmeras alcovas menores e corredores imprevisíveis. Pelas janelas providas com vitrais descortinavam-se vistas de parques graciosos; as cadeiras acolchoadas provinham conforto; as mobílias elegantes ofereciam luxo. Uma pessoa podia se perder facilmente nessa casa, e havia tantos criados e atendentes a serviço de sua avó que, na primeira semana que passou lá, Catarina estava sempre se deparando com estranhos.
Ao chegar, foi levada até a avó, que estava no leito, ainda não tendo se levantado para ver a tarde que já avançava.
- Ah! - disse a insigne duquesa. - Aí está você, pequena Catarina Howard! Deixe-me dar uma olhada em você. Terá cumprido a promessa de se tornar uma menina muito bonita?
Catarina escalou a cama, beijou uma das mãos gordas e se deixou inspecionar.
- Cáspite! - exclamou a duquesa. - Você é uma menina grande para a sua idade. Bem, bem, ainda temos tempo para encontrar um marido para você.
Catarina ter-lhe-ia contado sobre seu contrato com Thomas Culpepper, mas a duquesa não estava disposta a ouvir nada.
- Você está muito distinta. Posso jurar que isso é fruto do capricho de Lady Culpepper. Catarina Howard e tanta distinção não me parecem pertencer uma à outra. Dê-me um beijo, menina, e então se retire. Jenny! - chamou, e uma criada apareceu subitamente, vinda detrás de uma porta. - Chame a governanta Isabel. Preciso falar com ela sobre minha filha. -Virou-se para Catarina. -Agora, neta, conteme, o que aprendeu em Hollingbourne?
- Aprendi a tocar cravo e a cantar.
- Ah, isso é bom. Mas teremos de analisar sua educação. Não deixarei que se esqueça de que, embora o seu pai seja um homem pobre, você é uma Howard. Ah! Aqui está a governanta Isabel.
Uma jovem alta e pálida entrou no quarto. Tinha olhos pequenos e boca fina; seus olhos voaram prontamente para Catarina Howard, que estava sentada na cama.
- Isabel, esta é a minha netinha. Você sabia que ela viria.
- Sua Graciosa Senhoria mencionou para mim.
- Bem, a criança chegou. Leve-a, Isabel, e providencie para que não lhe falte nada.
Isabel fez uma mesura, e a duquesa deu um empurrão de leve em Catarina, para indicar que ela devia sair da cama e seguir Isabel. Juntas, deixaram os aposentos da duquesa.
Isabel caminhou na frente pela escadaria e ao longo dos corredores, ocasionalmente se virando, como para se certificar de que Catarina a seguia. Catarina começou a sentir medo; esta casa velha era refeita de sombras, e em lugares inesperados punham-se portas e passagens súbitas. Todo o seu antigo medo de fantasmas voltou, e a saudade de Thomas trouxe lágrimas a seus olhos. E se a colocassem num quarto só para si, longe dos outros cómodos! Se Hollingbourne talvez contivesse um fantasma, por certo um vagava nesta casa! Isabel, olhando para ela sobre seu ombro, era a única razão para que a menina não explodisse em lágrimas - havia algo em Isabel que assustava Catarina mais do que ela admitia para si mesma.
Isabel abrira uma porta, e as duas agora estavam num cómodo amplo, contendo muitas camas. Como todos os cómodos da casa, esse dormitório era mobiliado nababescamente, mas estava uma verdadeira bagunça. Sobre as cadeiras e camas jaziam várias peças de roupa; sapatos e anáguas empilhavam-se sobre o assoalho. Perfume pairava no ar.
- É neste quarto em que dormem as damas de companhia de Sua Graça - explicou Isabel. - Ela me disse que você ficará temporariamente conosco.
O coração de Catarina foi inundado por alívio; não havia nada a temer. O rosto pálido ficou corado de ânimo e prazer.
- Isso lhe agrada? - perguntou Isabel.
Catarina disse que sim, isso a agradava, acrescentando:
- A solidão não me apetece.
Outra jovem chegou ao quarto; uma moça de peitos fartos, ancas largas e olhos travessos.
- Isabel... - começou a moça.
Isabel levantou uma das mãos em sinal de aviso.
- A neta de Sua Graça chegou.
- Oh... essa menininha?
A moça deu um passo à frente, viu Catarina e fez uma mesura.
- Sua Graça disse que ela deverá compartilhar de nosso quarto esclareceu Isabel.
A moça sentou-se numa cama, levantou as saias até a altura dos joelhos e ergueu os olhos para o teto ornamentado.
- Ela adorou isso, não adorou, Catarina?
- Sim - respondeu Catarina.
A moça, cujo nome parecia ser Nan, lançou um olhar atormentado para Isabel, que Catarina interceptou mas não compreendeu.
- Você é muito bonita, Catarina - observou Nan. Catarina sorriu.
- Mas muito jovem - acresceu Isabel.
- Cáspite! - exclamou Nan, dobrando sobre a cama pernas bem torneadas e baixando a cabeça como se para admirá-las. - Todas nós devemos ser jovens em algum momento, não é verdade?
Catarina sorriu de novo. Gostava mais do jeito amigável de Nan do que dos modos taciturnos de Isabel.
- E logo você estará crescida - comentou Nan.
- Espero que sim - disse Catarina.
- com toda certeza crescerá rápido! - disse Nan com uma risadinha, levantando-se da cama.
De um armário Nan tirou uma caixa de doces, comeu um e deu um para Isabel e outro para Catarina.
Isabel examinou as roupas de Catarina, pesando suas saias e sentindo o material entre os dedos polegar e indicador.
- Ela chegou da casa do tio, Sir John Culpepper de Hollingbourne, em Kent.
- Eles vivem em grande estilo em Kent? - indagou Nan, mastigando.
- Não tanto quanto nesta casa.
- Então você está feliz por vir para cá, onde a vida é mais divertida?
- Ávida era muito boa em Hollingbourne.
- Isabel, a menina parece saber das coisas! - riu-se Nan. - Hum... Aposto que você tinha um namorado lá, Catarina Howard!
Catarina corou.
- Ela tinha! Ela tinha! Juro que ela tinha!
Isabel largou a saia de Catarina e trocou um olhar com Nan. Perguntas tremeram em seus lábios mas não foram formuladas; naquele momento a porta foi entreaberta e um rapaz enfiou a cabeça pela fresta.
Nan brandiu uma das mãos para dispensá-lo, mas ele ignorou o sinal e entrou no quarto.
Catarina considerou essa uma situação muito peculiar; em Hollingbourne, um gentil-homem jamais entraria nos aposentos das damas sem qualquer cerimónia.
- Uma recém-chegada! - exclamou o jovem.
- Tire os olhos! - ordenou Isabel.-Ela não é para você. É Catarina Howard, neta de Sua Graça.
O jovem estava muito bem vestido. Fez uma mesura para Catarina e teria pego sua mão para beijá-la, se Isabel não tivesse puxado a menina para longe do rapaz. Nan sentou-se em sua cama, amuada, e o rapaz disse:
- Como está a minha querida Nan hoje?
Mas Nan virou o rosto para a parede e não falou com ele; então o jovem sentou-se na cama e colocou os braços à volta de Nan, de modo que a mão esquerda pousou sobre o seio esquerdo da dama, enquanto a direita repousava sobre o direito. Em seguida o rapaz beijou-a com força no pescoço, onde já havia uma marca vermelha. Nan levantou-se e deu-lhe um tapa muito leve no rosto. Então riu e saltou sobre a cama, o rapaz atrás dela, numa perseguição que só acabou quando Isabel expulsou-o do quarto.
Catarina testemunhou a cena com muito pasmo, pensando que Isabel devia estar muito zangada, e esperando vê-la castigar Nan, que ainda ria. Mas Isabel nada fez senão sorrir, quando, depois que o rapaz saíra, Nan jogou-se na cama às gargalhadas.
Repentinamente, Nan empertigou-se na cama e se sentou; agora que o moço não estava mais presente, seu interesse voltou para Catarina Howard.
- Você tinha um namorado em Hollingbourne, Catarina Howard! Isabel, não viu como ela ficou com faces em chamas? E ainda estão, garanto! Garanto! Aposto que você é uma rapariga muito matreira, Catarina Howard.
Isabel pousou as mãos nos ombros de Catarina.
- Conte-nos sobre ele, Catarina.
- Era o meu primo, Thomas Culpepper.
- Aquele que é filho de Sir John? Catarina fez que sim com a cabeça.
- Deveremos nos casar quando a oportunidade se apresentar.
- Fale-nos sobre Thomas Culpepper, Catarina. Ele é alto? É bonito?
- É alto e bonito.
- Conte-me, ele a beijou com ardor?
- Só uma vez. Foi diante do estábulo, quando falamos sobre casamento.
- E ele a beijou - disse Nan. - O que mais?
- Calada! - disse Isabel. - E se a menina contar à Sua Graciosa Senhoria sobre o jeito como você falou com ela?
- Sua Graciosa Senhoria é preguiçosa demais para se importar com o que suas damas dizem ou fazem.
- Um dia desses você ainda será jubilada desta casa-alertou Isabel. - Acautele-se!
- Então o seu primo a beijou, Catarina. E prometeu que iria se casar com você. Não sabe que quando um homem fala sobre casamento é hora de abrir bem os olhos?
Catarina não entendeu; essa conversa incomum provocava-lhe um certo medo, mas também um interesse vívido.
- Basta - disse Isabel.
Nan foi para sua cama e se deitou, esticando a mão para pegar seus doces.
- Sua cama será esta-disse Isabel a Catarina. - Dorme profundamente?
- Sim - respondeu Catarina.
De fato, as únicas ocasiões em que Catarina não conseguira dormir tinham sido aquelas em que tivera medo de fantasmas, e se aqui iria dormir num quarto cheio de leitos, cada um ocupado por uma dama, Catarina não precisava temer uma companhia medonha e podia dizer, com sinceridade, que dormia profundamente.
Isabel olhou para as roupas da menina, fez-lhe muitas perguntas sobre Lambeth e Hollingbourne. Enquanto Catarina respondia às perguntas, várias jovens damas entraram; algumas deram-lhe doces, outras, beijaram-na. Catarina considerou todas elas moças muito bonitas.
Vergavam roupas de cores vivas e usavam arcos nos cabelos. Durante aquela tarde e noite, por várias vezes algum rapaz enfiou a cabeça pela fresta da porta entreaberta e foi afugentado com as palavras:
- A neta da duquesa, Catarina Howard, irá dividir o quarto conosco.
Os rapazes faziam mesuras e eram tão gentis quanto as damas. Várias vezes, uma das damas saía para falar com eles, e Catarina ouvia risos abafados. O ambiente era muito divertido e agradável, e até Isabel, que a princípio parecera um pouco carrancuda, agora ria com as outras.
Catarina comeu e bebeu com as damas, e sua gentileza persistiu durante a noite. Foi tarde para a cama, sob a escolta de Isabel, que puxou as cortinas em torno de sua cama. Catarina não tardou a adormecer; as emoções do dia tinham-na deixado muito cansada.
Acordou assustada e se perguntou onde estava. Lembrou e imediatamente se apercebeu das vozes sussurrantes. Ficou ouvindo durante algum tempo, pensando que as damas deviam estar se recolhendo para dormir. Contudo, as vozes continuaram, e Catarina, atónita, reconheceu algumas delas como pertencentes a homens. Levantou e espiou através das cortinas. Não havia luz no quarto, mas o luar bastou para mostrar-lhe uma visão muito inesperada.
A sala parecia cheia de rapazes e moças. Estavam sentados nas camas, alguns deitados nelas, mas todos encontravam-se em poses carinhosas. Estavam comendo e bebendo, e acariciando e beijando uns aos outros. Os rapazes estalavam os beiços ao ver as iguarias, e vez por outra uma das moças fazia uma exclamação de surpresa e fingia indignação, ou outra ria baixinho. Todos falavam em sussurros. As nuvens que cortavam a face da lua tornava a cena alternadamente iluminada e escura; e o vento que empurrava as nuvens gemia de vez em quando, misturando sua voz às das moças e rapazes.
Catarina observou tudo, olhos arregalados. Durante algum tempo, o sono não lhe voltou. Ela viu o rapaz que despertara o descontentamento de Nan agora a beijar-lhe os ombros nus, desatar-lhe os cordões do vestido e enterrar o rosto nos seios da moça. Catarina continuou assistindo a tudo até suas pálpebras ficarem pesadas e seus olhos começarem a piscar. Ela se deitou e dormiu.
Acordou para descobrir que era dia e que Isabel tinha puxado as cortinas de sua cama. O quarto agora estava ocupado apenas por moças, que corriam nuas e tagarelando, procurando por suas roupas que pareciam espalhadas pelo chão.
Isabel estava olhando para Catarina, um sorriso matreiro nos lábios.
- Tem certeza de que dormiu bem?
Catarina disse que sim, ela havia dormido muito bem.
- Mas não durante a noite inteira.
Catarina não podia fitar os olhos penetrantes de Isabel, por temer que a moça soubesse que ela observara a cena; alguma coisa dizia-lhe que ela não devia ter espiado pelos panos.
Isabel sentou-se pesadamente na cama e segurou Catarina pelo ombro.
- Você esteve acordada durante parte da noite passada. Por acaso não acha que eu não a vi, espiando pelas cortinas, ouvindo, prestando atenção em tudo?
- Eu não quis espionar - defendeu-se. - Fui acordada, e a lua me mostrou coisas.
- Que coisas, Catarina Howard?
- Jovens gentis-homens, sentados pelo quarto em companhia das damas.
- O que mais?
Isabel agora parecia muito má. Catarina começou a tremer, pensando que talvez tivesse sido melhor passar a noite numa alcova isolada. Afinal, agora era dia claro, e Catarina só sentia medo de fantasmas à noite.
- O que mais? - repetiu Isabel. - O que mais, Catarina Howard?
- Vi que eles comeram e...
Isabel apertou mais forte o ombro de Catarina
- O que mais?
- Bem... eu não sei o que mais, mas eles beijaram as moças, e pareceram muito carinhosos.
- O que você vai fazer, Catarina Howard?
- O que vou fazer? Não sei o que você quer dizer, governanta Isabel. O que você deseja que eu faça?
- Será que você irá contar o que viu... à Sua Graça, sua avó? Os dentes de Catarina bateram; o que elas tinham feito devia se muito errado para transtornar sua avó.
Isabel soltou o ombro de Catarina e gritou para que as outras se calassem. Fez-se silêncio e ela falou, um tom de desprezo na voz:
- Na noite passada, enquanto fingia dormir, Catarina Howard estava bem acordada, observando a tudo que se passava nesta câmara. Ela irá contar a Sua Graça, a duquesa, tudo sobre a nossa pequena diversão.
Uma multidão de garotas reuniu-se em torno da cama. Todas olhavam para Catarina, medo e raiva transparecendo em cada face.
- Eu não fiz nada errado! - protestou uma das moças, quase às lágrimas.
- Silêncio! - comandou Isabel. - Se o que acontece aqui à noite chegar aos ouvidos de Sua Graciosa Senhoria, vocês todas serão mandadas para casa em desgraça.
Nan ajoelhou-se diante da cama, seu rosto bonito a implorar misericórdia.
- Você não me parece uma delatora, menina.
- Claro que não sou! - gritou Catarina. - Mas vocês me acordaram, e estando acordada, não podia deixar de ver...
- Tenho certeza de que ela não soltará a língua. Não fará isso, fará, pequena Catarina? - sussurrou Nan.
- Se a menina disser qualquer coisa, podem ter certeza de que será pior para ela - disse Isabel. - E se contássemos à Sua Graça o que você fez, Catarina Howard, no estábulo com o seu primo, Thomas Culpepper!
- O que... eu... fiz? - gaguejou Catarina. - Mas eu não fiz nada de errado. Thomas não faria nada de errado. Ele é nobre... ele não faria qualquer coisa que me prejudicasse.
- Ele a beijou e lhe prometeu casamento - disse Isabel.
As damas desenharam um "O" redondo com seus lábios, e pareceram terrivelmente chocadas.
- Ela chama isso de nada! A pequena devassa! Catarina pensou:
"Será que pequei? Será que foi por causa disso que Thomas ficou envergonhado e nunca mais me beijou?"
Isabel tirou as roupas, pondo-se nua diante de todas elas. Parou diante de Catarina e lhe deu uma palmada nas nádegas.
- Não falarás! - disse Nan, rindo. - Ora, você pecou ainda mais do que nós. Uma Howard! A própria neta de Sua Graciosa Senhoria!
Não tenho dúvida de que enforcarão o rapaz, e seu corpo será arrastado pela cidade e esquartejado pelo que fez com você!
- Não! - gritou Catarina, sentando-se. - Não fizemos nada de errado.
As meninas estavam todas rindo e falando sem parar. Isabel olhou Catarina bem de perto:
- Entendeu? Não conte nada sobre o que viu ou verá nesta câmara, e seu amante estará salvo!
Nan disse:
- É simples assim, queridinha. Não conte nada sobre os nossos pecados, e nós não contaremos nada sobre os seus.
- Então tudo estará bem - concluiu Isabel.
Nan trouxe um doce para Catarina, e enfiou-o em sua boca.
- Tome! Não é gostoso? Um gentil-homem charmoso me deu uma caixa cheia desses ontem à noite. Talvez algum dia um nobre gentilhomem venha trazer-lhe doces, Catarina Howard!
Nan colocou os braços em torno da menina, e deu-lhe dois beijos calorosos. E Catarina, mastigando, perguntou-se por que se sentira tão assustada. Não havia nada a temer. Tudo de que ela precisava era não dizer nada.
Os dias se passaram com a mesma velocidade que em Hollingbourne, e foram muito mais empolgantes. Em Hosham não havia aulas. Não havia nada a fazer durante os dias longos e preguiçosos, além de desfrutálos. Catarina levava bilhetes das damas para os gentis-homens; ela era popular com todos, mas especialmente com os mais jovens. Certa vez, um deles lhe disse:
Estive esperando tanto por esta carta, e ela será ainda mais encantadora porque me foi trazida por Catarina!
Eles lhes davam doces e outros petiscos. Catarina tocava um pouco flauta e de cravo; cantava. Gostavam muito de ouvi-la cantar, pois a menina tinha de fato uma voz bonita. Ocasionalmente, a velha duquesa mandava-a chamar para conversar um pouco com ela. Nessas ocasiões, sua avó murmurava:
Você parece um moleque, Catarina Howard! Declaro que nunca vi uma moça tão desmazelada. Queria que você tivesse a graça da sua prima, Ana Bolena... embora tanta graciosidade não lhe tenha feito muito bem!
Catarina adorava ouvir falar de sua prima. Lembrava de tê-la visto ocasionalmente em Lambeth, antes de ser mandada para Hollingbourne. Ao ouvir seu nome, vinha-lhe à mente beleza e cor, jóias faiscantes e sorrisos. Ela esperava um dia ver sua prima de novo. A duquesa parecia tê-la em grande estima, embora frequentemente, ao comentar sobre sua desgraça e banimento da corte, os olhos da velha brilhassem como se ela gostasse de contemplar a queda da neta.
- Então uma Bolena não é boa o bastante para um Percy! De fato, há uma certa verdade nisso! Mas Ana é parte Howard, e uma Howard é um par perfeito para um Percy a qualquer hora do dia ou da noite! E eu seria a primeira a dizer isso a Northumberland, se eu me visse frente a frente com ele. Quanto ao rapaz, que o diabo carregue sua alma. Disseram-me que essa Lady Mary o odeia e que ele a odeia. Quanto bem esse casamento fará para ambos? Escreva o que digo, ele descobrirá que não será nada fácil esquecer minha neta. Ah, Catarina Howard, aquilo é que era uma menina. Juro que jamais vi tamanha beleza... tamanha graciosidade. E aonde todos esses predicados a levaram? Para a França! E que fim levou o casamento com o rapaz dos Ormond? Ela ainda não fez 20 anos... espero que retorne logo. Catarina Howard, Catarina Howard, os seus cabelos exigem atenção. E o seu vestido, minha criança! Digo-lhe, você jamais terá a graça de Ana Bolena!
Catarina não teve coragem de dizer à duquesa que seria impossível para qualquer menina possuir a mesma graça que uma prima que recebera uma excelente educação e que frequentara a corte francesa; que fora suprida nababescamente com as roupas necessárias para honrar o nome do pai em qualquer círculo em que estivesse. Não teve coragem de dizer que a brilhante Ana possuía um dom natural para escolher as roupas que melhor lhe caíam, e saber como usá-las. Não teve coragem porque era obrigação da duquesa saber essas coisas.
A velha balançou para a frente e para trás em sua cadeira e cochilou, e mal notou Catarina parada à sua frente.
- Cáspite! E os perigos aos quais essa jovem foi exposta! A corte francesa! Garanto que Ana Bolena viveu muitas aventuras, mas ela guarda esses segredos com cuidado. Ah! Como fiz bem, Catarina, em ter posto você debaixo da minha asa!
E enquanto a duquesa roncava em seu quarto, suas damas promoviam banquetes à meia-noite em seu quarto. Elas agora consideravam Catarina uma das suas. Catarina era alguém em quem podiam confiar. Não havia problema se ela dormia ou não; ela era apenas uma criancinha, e havia noites em que ela adormecia profundamente. Ela era popular. As moças e os rapazes atiravam doces em sua cama. As vezes ela era beijada e abraçada.
- Ela não é uma menina linda?
- Ela é sim, e se não tirar os olhos dela, jovem senhor, eu ficarei muito irritada.
Risos, tapas de amor, provocações... Era divertido, diziam elas. E, com elas, Catarina Howard dizia:
- É divertido!
Às vezes os casais deitavam-se abraçados nas camas; às vezes deitavam-se debaixo dos lençóis... por detrás de cortinas fechadas.
A esta altura Catarina estava acostumada a esse comportamento estranho, e mal o notava. Todos eles eram muito gentis com ela, até Isabel. Ela ficava mais feliz na
companhia das jovens do que quando atendia à sua avó, sentada a seus pés ou esfregando suas costas onde coçava. Às vezes precisava massagear as pernas da velha, que nelas sentia dores estranhas, sempre atenuadas pelas mãos macias de
Catarina. A velha falava pelos cotovelos, sempre dizendo que alguma coisa precisava ser feita quanto à educação de Catarina, porque não podia permitir que sua neta, uma Howard, passasse o dia correndo para cima e para baixo, como uma louca. A duquesa falava sobre membros de sua família; seus enteados e suas incontáveis enteadas que haviam desposado cavaleiros ricos porque a fortuna dos Howard precisava ser engordada.
- Os Howard casaram-se com os Wyatt e os Bryan e os Bolena gabava-se a duquesa. - E escreva o que digo, Catarina Howard, os filhos desses casamentos serão saudáveis e inteligentes. tom Wyatt ê um rapaz adorável... - A duquesa esboçou um sorriso gentil, pois tinha um apreço especial pelos meninos solitários. - E George Bolena também... e Mary e Ana são mocinhas adoráveis.
Certo dia, a duquesa disse:
- Ah! Soube que a sua prima, Ana, está de volta à Inglaterra e à corte.
- Eu gostaria muito de vê-la - disse Catarina.
- Esfregue com mais força, mocinha! Aí! Mas como é desajeitada! Você me arranhou. Ah! De volta à corte, e ainda mais bela do que ao partir... - A duquesa desatou a rir tão descontroladamente que Catarina temeu que ela sufocasse. - Disseram-me que o rei está profundamente atraído por ela - disse a duquesa. - Disseram-me também que ela está pondo o rei em banho-maria!
Ao dizer que o rei estava profundamente atraído por Ana Bolena, a duquesa falara a mais profunda verdade. Ana deixara a corte da França e retornara à Inglaterra, e mal fizera sua aparição espetacular na corte quando o rei voltou a deitar olhos nela. Os poucos anos que haviam se passado tinham provocado grandes mudanças em Ana; ela não estava nem uma gota menos bonita do que na época em que Henrique a vira no jardim do Castelo de Hever; na verdade estava ainda mais bonita; ela desenvolvera uma pose que antes teria assentado estranhamente numa pessoa tão jovem. Se naquela época Ana Bolena fora elegante, agora era majestosa. Sua beleza amadurecera e ganhara em maturidade; os olhos negros reluziam tanto quanto antes e a língua parecia ainda mais afiada, resultado de uma mente experiente. Ela estivera ajudando Marguerite a dar as boas-vindas a François, que recentemente fora libertado do cativeiro. François deixara sua juventude numa prisão em Madri, na qual quase morrera, o que teria acontecido não fosse pelo amor de sua irmã, que viajou apressada até a Espanha para cuidar de suas mazelas. Mas François fizera seu tratado de paz com seu velho inimigo, Carlos V embora negasse isso, e agora sua mãe e irmã tinham grande deleite em compensá-lo pelos tempos de sofrimento.
Ana Bolena fora uma integrante útil da corte francesa, afinal sabia cantar e dançar, era hábil em letras, música, poesias. Sempre podia-se contar com Ana para prover entretenimento e beleza em qualquer ocasião. Mas seu pai, no continente como embaixador, ordenara sua volta à Inglaterra, decerto por acreditar que uma moça de 19 anos não podia esbanjar seus melhores anos indefinidamente. Assim, Ana Bolena voltara à corte de sua terra natal para encontrar sua família inteira instalada no palácio. George, agora visconde de Rochford, estava casado, e sua esposa - que fora Jane Parker e era neta de Lord Morley e Monteagle ainda era uma das damas da rainha. Conhecer a esposa de George foi uma das surpresas menos agradáveis no retorno de Ana. Ela percebeu logo que George não era muito feliz no casamento com uma esposa frívola e estúpida que não era aceita no grupo de poetas e intelectuais- a maioria deles primos dos Bolena -, no qual George naturalmente assumia uma posição destacada. Isso era deprimente. Ana, ainda sofrendo com o fim de seu amor com Percy - embora ninguém pudesse adivinhar isso -, teria desejado para o irmão o casamento feliz que fora negado a ela própria. Mary, por mais estranho que pudesse parecer, parecia feliz com William Carey; eles tinham um menino - que, sussurrava-se, pertencia ao rei - e nenhum observador externo presumiria que sua união não era tudo que eles haviam desejado. Ana se perguntou se ela e George não pediam muito à vida.
Não havia qualquer sinal de melancolia em Ana. Ela não pudera conter uma certa satisfação - embora tivesse se censurado por isso ao saber que Percy e sua Mary eram o casal mais miserável do reino. Ana culpava Percy por sua covardia Dizia-se que Lady Mary era uma megera que jamais o perdoara por, estando-lhe prometido, ter-se apaixonado por Ana Bolena num caso que terminara em escândalo.
"Ora, bem!", pensou Ana. "Que Percy sofra como eu!"
Quantas vezes, durante os últimos anos, Ana Bolena repreendera-o em pensamentos por sua infidelidade! Talvez agora ele entendesse que a forma mais fácil nem sempre era a melhor. Mantivera a cabeça erguida, considerando seu antigo amor um covarde, desejando fervorosamente que ele tivesse sido um pouco mais como Thomas Wyatt, que a perseguia desde seu retorno à corte. Ana se perguntava se não estava um pouco apaixonada - ou prestes a se apaixonar - por seu primo Thomas, decerto o homem mais bonito, precipitado e fervoroso da corte. Não havia dúvida acerca de seus sentimentos por Ana, que estavam em seus olhos e em seus versos. E Thomas era tão ousado que não se importava com que todos conhecessem seus sentimentos.
Havia mais alguém que a observava quando ela estava na corte. Ana sabia disso, embora os outros talvez não soubessem; embora essa pessoa não fosse nem por sonho um homem sutil, ele conseguira até aqui manter em segredo absoluto a paixão que nutria por uma das damas de companhia de sua esposa.
Ana não pensava muito nesse homem. Ela não se importava em sentir aqueles olhinhos pousados nela. As maneiras desse homem eram corretas, embora agora algumas pessoas
estivessem começando a notar alguma coisa. Ela vira pessoas sussurrando, sorrindo matreiras. Agora que o rei se cansou da irmã mais velha, está interessado na mais nova? Qual é o segredo desses Bolena? Thomas está ascendendo com tanta rapidez quanto o cardeal; George tem postos que deviam ter sido concedidos a um homem grisalho; Mary...
todos conhecemos a história de Mary; e, agora, o mesmo acontecerá a Ana?
Não! disse Ana a si própria. Jamais!
Se Thomas Wyatt ainda não possuía uma esposa, como seria agradável ouvir seus versos excelentes, que tinham como tema principal a própria Ana. Em sua mente, Ana podia ver o grande saguão do Castelo de Allington decorado para as festividades natalinas, com ela própria e Thomas assumindo papéis de destaque numa peça que tinham escrito para a diversão de seus amigos. Mas isso não poderia acontecer.
A posição de Ana Bolena na corte complicara-se. Não lhe saía da cabeça uma conversa que tivera com o rei, quando ele, que indubitavelmente vira-a caminhar pelo terreno do palácio, descera e encontraraa sozinha. Então, olhos ardendo no rosto corado, o rei dissera que : precisava ter uma palavra com Ana
Ele pedira a Ana que o acompanhasse até uma casinha de verão, onde poderiam ficar em segredo. Trémula de terror, Ana reunira suas forças, bastante cônscia de que precisaria de toda sua argúcia; apelaria à razão do rei, rogando para que ele desviasse seus olhos ardentes para uma mulher mais disponível.
Ao entrar na casa de verão, Ana sentira a cor em suas faces. Contudo, mantivera a cabeça bem erguida, e sua própria determinação ajudara-a a se acalmar. Encostado contra a porta, o rei ficara parado, olhando-a, suas roupas acolchoadas - reluzentes e coloridas - aumentando ainda mais sua grande estatura. Henrique pedira que Ana aceitasse como presente um conjunto de jóias muitíssimo caras. Dissera-lhe que não tinha olhos para outra mulher desde o momento em que a vira no jardim do pai. Dissera-lhe que jamais vira alguém que o agradasse mais; na verdade, ele a amava. O rei falara com confiança, porque nesse momento acreditara que, explicando seus sentimentos para com ela, Ana render-se-ia a seus encantos. Isso acontecera em outras ocasiões, por que desta vez seria diferente?
Ana ajoelhara-se diante do rei. Muito galante, ele dissera-lhe que não, ela não devia se ajoelhar; era ele quem devia ajoelhar-se diante de Ana Bolena, porque, por Deus, em toda sua vida ele nunca tivera tanta convicção de seus sentimentos por alguém.
Ana retrucara:
- Creio, meu rei, que Vossa Majestade profere essas palavras por brincadeira, para pôr-me à provação, sem intento de degradar a sua nobre pessoa. Portanto, para poupar Vossa Graciosa Senhoria do trabalho de me fazer qualquer outra pergunta, imploro-lhe que não insista mais e aceite esta minha resposta, que profiro das profundezas da minha alma. Meu nobre rei! Eu preferiria perder a vida à minha virtude, que será a maior e melhor parte do dote que darei a meu marido.
Palavras ousadas; palavras sábias; palavras características de Ana Bolena. Há muito tempo ela sabia que alguma coisa dessa natureza acabaria por acontecer, e portanto preparara o que deveria ser dito. Ela não era como Percy para se acovardar diante da autoridade. Era uma súditae Henrique o rei, mas este assunto de amor não era um assunto para um rei e um súdito - era um assunto para um homem e uma mulher; e Ana jamais esquecia de seus direitos como mulher, embora sempre os expressasse com o máximo de tato.
A resposta deixara Henrique abalado, mas não seriamente. Ela era tão bela, ajoelhada diante dele, que ele estava disposto a perdoá-la por não se ter rendido. Ela queria afugentá-lo; muito bem, ele era um caçador que gostava de correr antes de abater a caça. Henrique rogou para que ela se levantasse e disse - olhos devorando-a porque em sua mente ele já a estava possuindo - que não iria abrir mão de suas esperanças.
Mas a cabeça de Ana levantara-se ao ouvir isso, cor ardendo em suas faces.
- Eu não entendo, poderoso rei, como Vossa Majestade pode continuar com tais esperanças. Sua esposa eu jamais poderia ser, tanto em respeito à minha própria falta de valor e também porque já tem uma rainha. - E então Ana acrescentara a frase mais perturbadora de todas: - E sua amante eu jamais seria!
O rei deixou-a sozinha. Por horas a fio caminhou em círculos em seus aposentos. Henrique desejava-a ardentemente desde que Ana Bolena era uma menina de 16 anos, mas sua consciência ficara entre ele e o desejo; ele não protestara quando ela abrira a porta da gaiola e voara para longe. Agora Ana estava de volta, ainda mais desejável, uma mulher deslumbrante no lugar daquela linda moça. Desta vez, pensara o rei, ela não escaparia. Ele acreditava que só precisava dizer isso para que acontecesse. Sufocara os avisos de sua consciência e agora precisava enfrentar a recusa da mulher. Era um absurdo; isso jamais acontecera em sua vida amorosa longa e próspera. Ele era o rei; ela era a mais humilde das damas da rainha. Não, não! Ela só podia estar fazendo um jogo com ele. Ela queria mante-lo esperando, para que sua chama ardesse ainda mais. Se pudesse acreditar que era apenas isso, como ficaria feliz!
Porque ele mesmo malcompreendia tanto desejo por Ana Bolena. Desejo era algo que conhecia bem; como surgia e era saciado com a mesma velocidade. No começo ele ardia em paixão por uma mulher; em seguida passava por um interlúdio doce no qual o desejo começava a esmorecer; finalmente, chegava o... fim. Esse era o padrão inevitável. E aqui estava uma mulher que dizia, a voz envolta num manto de determinação: "Sua amante eu jamais seria!" Ele estava zangado com ela. Será que Ana esquecera que ele era o rei ? Ela falara com Henrique como se ele fosse um gentil-homem na corte... qualquer gentil-homem. Assim ela falara com ele no jardim do pai, no Castelo de Hever. O rei ficara roxo de fúria, mas logo se acalmara; seria inútil combater aquela que o escravizara. Era o orgulho de Ana, era a sua dignidade, que tornaria a sua rendição ainda mais deliciosa.
O rei olhou-se no espelho. Uma bela figura de homem... se o seu porte fosse considerado. A roupa que ele estava usando custara três mil libras, e isso sem contar todas as jóias que a adornavam. Mas ela não era o tipo de mulher que dizia sim a peças de vestuário; era ao homem dentro delas que ela daria sua resposta positiva. Henrique sorriu para si mesmo; tinha certeza de que acabaria por conquistar Ana Bolena.
Também Henrique mudara desde os dias em que permitia que sua consciência ficasse entre ele e Ana Bolena. A mudança fora sutil, mas definitiva. A consciência ainda era o aspecto dominante de sua vida, mas ele era, como provava-lhe agora o espelho, maior que a vida. A mudança era esta: a consciência não mais governava Henrique; ele governava a consciência. Henrique conseguira domá-la, e agora concedia aos eventos sua própria visão antes que sua consciência o fizesse. Havia a questão de Mary Bolena. Henrique estava cansado de Mary. Deixara de pensar nela quando sua irmã retornara para a Inglaterra. Ah, sim, sim, Henrique sabia que muitos argumentariam haver um parentesco entre ele e Ana, mas será que no curso de muitos anos de aventuras amorosas isso jamais acontecera? Nunca houvera na corte um homem que amara duas irmãs, talvez contra a sua própria vontade? Talvez isso já tivesse acontecido até com ele próprio! Pois - e nesse ponto Henrique podia ser muito rígido -, sendo a moral da corte como era, quem podia ter certeza de quem tinha parentesco próximo com quem? Suponha que essas irmãs não sejam filhas do mesmo pai! Pronto! Isso não reduzia pela metade o grau de parentesco? Impossível saber os segredos das famílias. E se a própria mãe não deu à luz as duas filhas? Ninguém podia ter certeza; corriam histórias estranhas sobre troca de crianças. Este assunto realmente não era merecedor de mais reflexão. Imagine se ele abrisse mão de Ana, e lhe encontrasse um marido, apenas para descobrir depois que ela não era realmente irmã de Mary! Não seria um pecado maior tomar a esposa de outro homem? E seu desejo por essa jovem incomum não seria sobrelevado facilmente, ele sabia disso. O melhor era esquecer que Ana era irmã de Mary e tomala assim mesmo como amante. Ele iria esquecer esse dilema estúpido! Mas havia outra questão que o preocupava, algo com que sua consciência atormentava-o profundamente há algum tempo: haviam-lhe dito que Catarina não poderia mais ter filhos. O assunto perturbara-o tanto que Henrique conversara a seu respeito apenas com os amigos mais queridos. Apesar de estar casado com Catarina há muitos anos, só uma filha nascera da união. O que isso significava? Por que os varões morriam um atrás do outro? Por que apenas um de seus rebentos-e uma menina
- fora agraciada com a chance de continuar vivendo? Havia algum significado profundo nisso, e Henrique achava que tinha descoberto. Certamente havia alguma maldição sobre sua união com Catarina, e o que ele fizera, aos olhos de um deus justo, para merecer isso? Ele não sabia o que... a não ser que fosse o fato de ter desposado a esposa do irmão. Não estava escrito no Levítico que, se um homem desposasse a mulher do irmão, essa união não poderia gerar crianças? Henrique rompera todas as relações matrimoniais com Catarina depois que os doutores disseram que ela não poderia parir mais. Ah! Ele lembrava bem daquele dia. Lembrava de ter caminhado em círculos nos seus aposentos, tomado por uma fúria gélida. Henrique Tudor não iria deixar um filho homem! Apenas uma filha! E por quê? Por quê? Então sua mente começara a trabalhar rápida e furiosamente nessa questão de um divórcio. Essa lhe parecera uma possibilidade empolgante. Divórcios eram, em princípio, proibidos pela Santa Igreja, mas, alegando-se razões políticas, podiam ser obtidos com o papa, que sempre estava disposto a agradar os homens que detinham o poder.
Era preciso de um herdeiro!, disse Henrique à sua consciência.
O que aconteceria se eu morresse e não deixasse um herdeiro? Há a minha filha com Catarina, Maria Tudor, mas... uma mulher no trono da Inglaterra! Não! Eu preciso ter um herdeiro homem! As mulheres não foram feitas para reger grandes países! A posteridade condenar-me-á se eu não deixar um herdeiro.
Henrique olhou novamente para o grande homem em seu espelho, Viu o rosto digno, os ombros poderosos; e esse homem não podia gerar um filho para a Inglaterra! Há pouco tempo ele mandara que trouxessem à sua presença seu filho com Elizabeth Blount, para sagrá-lo duque de Richmond, título que ele próprio portara na juventude.
Henrique fizera isso para causar desconforto a Catarina. "Eu poderia ter um filho", era como se insinuasse. "Veja! Aqui está o meu filho. Foi você quem falhou!" E todas as lágrimas que ela derramou em segredo, todas as orações que ela elevou aos céus, pouco serviam para redimi-la. Catarina não tinha nada para dar-lhe senão uma filha, porque - e quando ele pensava nisso as veias púrpuras sobressaíam em sua fronte - ela havia mentido. Ela jurara que seu casamento com Arthur jamais fora consumado. Essa espanhola pálida e fria enganara Henrique para levá-lo ao altar e conquistar o trono da Inglaterra, e, fazendo isso, colocara em risco a dinastia Tudor. Henrique estava possuído pelo ódio. Ele queria um divórcio e o queria pela mais nobre das razões... não para si mesmo, mas para a casa de Tudor; não para estabelecer sua masculinidade e virilidade aos olhos de seu povo, não para banir uma esposa feia e envelhecida... não por essas coisas, mas porque ele, que antes não hesitara em empurrar seus súditos a uma guerra inútil, temia que eles iniciassem uma guerra civil, porque temera ter vivido em pecado com uma mulher que não tinha sido sua esposa, já tendo vivido com seu irmão. Isto, sua consciência - agora tão belissimamente controlada - dizia a Henrique. E todos esses pensamentos nobres estavam tingidos em rosa por uma linda moça cujos lábios petulantes e cruéis haviam dito: "Sua amante eu jamais seria!" Mas sua consciência ainda não precisava refletir sobre esse assunto, porque um rei não conclama uma humilde dama de companhia a ser sua rainha, por mais desejável que ela pudesse ser. Não, não! Nenhum pensamento como esse tinha passado por sua mente... não seriamente, claro. A moça estava lá, e agradava-lhe imaginá-la em seus braços, porque esses pensamentos eram másculos e naturais; e como ela iria chegar a essa posição era uma questão de pouca importância, sendo um assunto puramente pessoal, enquanto esta grande questão de divórcio decerto era um assunto de Estado.
Portanto, por um lado Henrique estava empolgado com os planos para o divórcio, mas por outro via-se atormentado pela relutância daquela a quem desejava acima de todas as outras. com uma tolerância majestosa, Henrique aguardava uma mudança no comportamento de Ana, como um caçador satisfeito em manter-se à espreita. Embora espreitar fosse uma tarefa penosa, era um sacrifício pequeno frente à grandeza da recompensa que o aguardava.
Assim, havia alguma verdade nos comentários da duquesa-mãe de Norfolk, quando ela dizia à sua neta, Catarina Howard, que Ana Bolena estava pondo o rei em banho-maria.
Em seus aposentos no palácio, Jane Bolena estava prestes a discutir com seu marido. George estava acomodado no assento de janela, bonito o bastante para atormentá-la, indiferente o bastante para enfurecêla Ele estava com um pedaço de papel nas mãos, sorrindo enquanto escrevia letras para as quais sua irmã certamente comporia melodias que viriam a ser cantadas diante do rei.
- Faça silêncio, Jane - disse George com calma, e era justamente essa calma que a enlouquecia.
Jane sabia que ele não se importava com ela o bastante nem para perder a compostura. George estava batendo o pé ritmicamente, sorrindo, muito satisfeito com seu trabalho.
- Que diferença faz se falo ou fico muda? - perguntou Jane, amarga. - Você não se importa com nada que faço.
- Como sempre, você fala sem pensar - disse George. - Se não me importasse, por que iria implorar pelo seu silêncio?
Ela deu com os ombros, impaciente.
- Palavras! Palavras! Você sempre as tem a seu dispor. Eu o odeio. Queria nunca ter-me casado com você!
- Sentimentos, cara Jane, que, caso lhe interesse saber, são recíprocos da parte de seu esposo.
Ela caminhou até ele e se sentou a seu lado, no assento da janela
- George... - começou ela, voz chorosa
Ele suspirou.
Como os seus sentimentos por mim são tão violentos, minha
querida, não seria mais sábio se você se removesse deste assento, ou, melhor ainda, deste cómodo? Claro, se você preferir, posso sair eu. Mas sabe muito bem que foi você quem me seguiu até aqui.
Enquanto George falava, sua voz pareceu cada vez mais cansada. A pena em sua mão tremeu como se implorasse que essa briga estúpida cessasse e pudesse prosseguir com aquilo que realmente o motivava. Seu pé começou a bater impacientemente no chão.
Enraivecida, Jane tomou a pena das mãos do marido e jogou-a ao chão.
Ele permaneceu completamente parado, olhando para a pena, não para a esposa. Se tivesse conseguido despertar sua fúria, Jane teria ficado menos zangada com ele. Era sua indiferença - sempre fora - que a atormentava.
- Eu o odeio!
- A repetição esfria o argumento ao invés de aumentar a veemência - comentou em seu tom mais leve. - O rancor é mais bem expressado em palavras curtas, querida Jane.
- Querida Jane! - vociferou. - Quando eu já lhe fui querida?
- Essa é uma pergunta que o cavalheirismo me fará responder com uma inverdade.
George era cruel, e queria sê-lo. Ele sabia como ferir profundamente sua esposa. Descobrira que Jane era ciumenta, autoritária e vingativa, e sem nutrir qualquer amor por ela, não se importava com o ciúme, e embora sua vontade de controlá-lo o irritasse, suas atitudes vingativas encontravam sua indiferença.
Os pais de Jane tinham considerado vantajoso associar a fortuna de sua filha à dos Bolena, que crescia rapidamente sob o calor da proteção do rei. Assim, tinham lhe entregue a mão de Jane, e, uma vez casada, a jovem caíra vítima do encanto dos Bolena, seus modos calmos, sua dignidade, sua inteligência. Mas que esperança tinha Jane em conquistar o amor de George? O que ela sabia das coisas que ele amava tão profundamente? George considerava-a estúpida, insossa, iletrada. Por que, perguntava-se Jane, George não podia contentar-se em conversar com ela a respeito dos assuntos fúteis que a agradavam? Por que eles não podiam desfrutar de um matrimónio feliz, com filhos? Mas ele não a queria e, estupidamente, Jane achava que provocando discussões, forçando-o a notá-la, poderia atraí-lo. Mas ela conseguia justamente o oposto: afastá-lo, irritá-lo, entediá-lo. Eram pessoas estranhas, esses dois Bolena mais jovens, pensava Jane. Ambos brilhantes, ambos detentores de um alto poder de encantar não apenas aqueles que pertenciam ao mesmo sexo, mas ao sexo oposto. Jane considerava ambos pessoas muito frias. Odiava Ana; na verdade, nada deixara-a mais infeliz do que a notícia do retorno da cunhada à corte inglesa. Odiava sua cunhada, não porque Ana tivesse sido desagradável para com ela - pois até Jane precisava admitir que Ana tentara tratá-la como irmã -, mas devido à influência que exercia sobre o irmão. Odiava-a porque George podia conceder a Ana, que era apenas sua irmã mais nova, muito afeto e admiração, enquanto a Jane, a esposa que o adorava, ele não ofertava nada além de desprezo.
Agora ela tentava irritá-lo, querendo que ele a segurasse pelos ombros e a sacudisse, que ele a tocasse, ainda que movido pelo ódio. Talvez ele soubesse disso; era diabolicamente inteligente e compreendia os mecanismos das mentes menos dotadas que as dele. Assim, George permaneceu sentado, braços dobrados, olhando para a pena caída no chão polido, entediado por Jane, cansado de seus escândalos, e absolutamente desinteressado por seus sentimentos.
- George...
Em resposta, ele levantou sobrancelhas fatigadas.
- Eu... eu sou tão infeliz!
- Sinto muito por isso - retrucou George, um tom muito leve de candura na voz.
Ela se aproximou mais; ele permaneceu indiferente.
- George, o que você estava escrevendo?
- Apenas um divertimento despretensioso.
- Está irritado por eu tê-lo interrompido?
- Não estou irritado.
- Fico feliz em ouvir isso, George. Não quis interromper. Devo pegar a sua pena?
Ele riu e, levantando-se, pegou a pena enquanto lançava um sorriso para a esposa. Qualquer sinal discreto de raciocínio da parte de Jane sempre o divertia. Ela lutou contra suas lágrimas, tentando manter a aprovação momentânea que conquistara.
- Eu realmente sinto muito, George.
- Isso não importa. Quem deveria sentir era eu.
- Não, George, eu é que sou irracional. Diga-me, esse texto é para o baile de máscaras do rei?
- É - respondeu.
E então George se virou para ela, querendo explicar o que ele, juntamente com Wyatt, Surrey e Ana, estava fazendo. Mas ele sabia que isso seria inútil; Jane apenas iria fingir interesse. Ela faria muita força para se concentrar, e então diria alguma coisa terrivelmente estúpida, e ele perceberia que sua esposa não prestara atenção a nada do que ele dissera, e que estivera apenas tentando atraí-lo a um interlúdio amoroso. George tinha pouca inclinação amorosa pela esposa; considerava-a feia, e ainda mais feia quando tentava seduzi-lo.
Ela se aproximou ainda mais, inclinando a cabeça para a frente para olhar o papel. Começou a ler.
- É brilhante, George.
- Bobagem! - disse George. - É muito ruim e precisa de muito polimento.
- Será cantado?
- Sim. Ana comporá a música.
Ana! A menor menção desse nome destruía as boas intenções de Jane.
- Ana, claro! - disse ela com uma careta.
Ela viu os olhos do marido fuzilarem-na. Quis se controlar, mas ele ouvira a inflexão sutil em sua voz ao mencionar o nome de Ana.
- Por que não Ana? - perguntou George.
- Por que não Ana? - disse, imitando-o. - Tenho por certo que o melhor músico do reino jamais escreveria músicas tão bonitas quanto as de Ana., aos seus olhos, claro.
Ele não respondeu a isso.
- Você consideraria a música do próprio rei inferior à de Ana! Isso o fez rir.
- Jane, sua tolinha, um músico seria realmente ruim se não fosse mais talentoso que Sua Majestade!
- Certas coisas que você diz, George Bolena, bastariam para separar um homem de sua cabeça.
- Se reportadas no ambiente certo, com certeza. O que me propõe, doce esposa? Que eu as reporte no ambiente certo?
- Juro que farei isso um dia! Ele riu novamente.
- Isso não me surpreenderia, Jane. Você é uma bobinha, e tenho certeza de que, em seu ciúme vingativo, seria capaz de mandar seu marido para o cadafalso.
- E ele com certeza iria merecê-lo!
- com certeza! com certeza! Todos os homens que foram para o cadafalso não mereceram sua sina? Eles falaram o que pensavam, expressaram uma opinião, ou tiveram um parentesco próximo demais com o rei. E tudo isso é sinónimo de traição, querida Jane.
Apesar de toda essa imprudência, ela o amava. Como ela gostaria de ser como ele, de poder desfrutar da vida como ele o fazia!
- Você é um bobo, George. Tem sorte de possuir uma esposa como eu!
- Isso é indubitável, Jane!
- Talvez você preferisse que eu parecesse com sua irmã Ana, que eu me vestisse como sua irmã Ana, que escrevesse como ela escreve... Então assim talvez eu tivesse sua estima!
- Você jamais pareceria com Ana.
- Nem todos nós podemos ser perfeitos - retrucou Jane.
- Ana está longe de ser perfeita.
- O quê? Mentiroso! Aos seus olhos ela é perfeita, tão perfeita quanto uma mulher já foi aos olhos de um homem.
- Minha querida Jane, Ana é encantadora mais por suas imperfeições do que por suas boas qualidades.
- Aposto que você odeia o destino por não poder casar com a sua irmã!
- Nunca tive uma conversa mais idiota em toda a minha vida. Ela começou a chorar.
- Jane - disse ele, colocando uma das mãos em seu ombro. Ela se jogou sobre ele, forçando as lágrimas a correrem de seus olhos, porque apenas elas pareciam exercer poder sobre ele. E enquanto estavam sentados assim, ouviram sons de passos no corredor, e esses passos foram seguidos por uma batida na porta.
George afastou Jane de si.
- Entre! - disse ele.
Eles entraram, alegres e barulhentos.
O belo Thomas Wyatt estava um pouco à frente dos outros, cantando uma balada. Jane não gostava de Thomas Wyatt; de fato, ela odiava a todos eles. Eles eram todos da mesma estirpe, sendo os homens mais importantes da corte no momento, os favoritos do rei, e próximos por parentesco. Brilhantes eles eram; os poetas da corte. O caolho Francis Byan, Thomas Wyatt e George Bolena tinham retornado recentemente da França e da Itália, e estavam ávidos por transformar a atmosfera um tanto pesada da corte inglesa numa cópia mais brilhante das outras cortes que tinham conhecido. Esses jovens estavam ansiosos por remover a causa do tédio na corte: a velha geração. Esses jovens não eram soldados nem conselheiros taciturnos para o rei; eram os artistas de sua época; queriam entreter o rei, fazê-Io rir, dar-lhe prazer. Não havia nada que o rei quisesse mais. Além disso, o fato de que esse grupo alegre incluía aquela que era a dama que interessava mais profundamente ao rei, apenas os favorecia a seus olhos.
O semblante de Jane franziu ainda mais, pois entre esses rapazes estava a própria Ana Bolena.
Ana lançou um sorriso indiferente para Jane e se dirigiu ao irmão.
- Vejamos o que você já fez - disse Ana.
Ela puxou o papel das mãos de George e começou a ler em voz alta. Subitamente parou de ler e pôs uma melodia nas palavras, cantando enquanto os outros reuniam-se a seu redor. Ana bateu os pés ritmicamente, como seu irmão fizera há pouco. Wyatt, que era tão ousado quanto bonito, sentou-se entre ela e George no assento de janela, e seus olhos demoraram-se no rosto de Ana, como se não conseguissem se desviar dele. Raiva ardendo no peito, Jane observou a todos, mas principalmente a Ana. Ana, com as mangas pendendo para esconder sua sexta unha; Ana, com um ornamento especial no pescoço para esconder o que considerava uma verruga feia. E agora todas as damas da corte estavam usando esses ornamentos. Jane levantou a mão para tocar o próprio pescoço. Por que tudo na vida era tão fácil para Ana? Por que todos aplaudiam qualquer coisa que ela fizesse? Por que George amava-a mais do que à sua esposa? Por que um rapaz bonito e talentoso como Thomas Wyatt estava tão apaixonado por ela?
Essas perguntas há muito ressoavam na cabeça de Jane, e cada vez mais enchiam de rancor o seu coração.
Wyatt viu-a sentada à beira do lago que havia no jardim cercado, uma peça de bordado nas mãos. Caminhou a passos lépidos até ela. Estava profunda e ardorosamente apaixonado.
Ela levantou o rosto para sorrir para ele, também gostando de seu rosto bonito, de sua mente brilhante.
- Olá, Thomas...
- Olá, Ana...
Ele se sentou a seu lado.
- Ana, você não acha bom escapar de vez em quando dos cerimoniais tediosos da corte?
- Acho, com toda certeza.
Thomas percebeu que havia saudade nos olhos de Ana. Ela estivera pensando em Hever, Allington e na silenciosa Kent.
- Eu queria estar lá - disse; havia tanta harmonia entre os dois que ocasionalmente liam os pensamentos um do outro.
- Os jardins de Hever devem estar lindos agora.
- E também os de Allington, Ana.
- Sim. Os de Allington também. Ele se aproximou dela.
- Ana, e se nós deixássemos a corte... juntos? E se fôssemos para Allington e ficássemos lá...
- Você fala isso... como se não estivesse compromissado com uma esposa!
- Ah! - Sua voz estava melancólica. - Ana, lembra de quando éramos crianças em Hever?
- Muito bem - respondeu. -Você me trancou nas masmorras uma vez, e quase morri de medo. Você era um menino cruel, Thomas.
- Eu! Cruel! E com você! Nunca! Juro que sempre fui terno. Ana, por que naquela época não sabíamos que a felicidade para você e para mim ficava no mesmo lugar?
- Suponho que ninguém é sábio na juventude, Thomas. É a experiência que nos ensina as grandes lições da vida. Como é triste que, muitas vezes, ao ganharmos experiência percamos aquilo que descobrimos amar!
Ele tentou pegar a mão de Ana, mas ela o evitou.
- Acho que ê hora de voltarmos - disse Ana.
- Agora., quando estávamos entendendo um ao outro!
- Você, tendo desposado uma mulher... - começou Ana.
- E assim sendo profundamente infeliz - interrompeu George. Mas Ana não gostava de ser interrompida.
- Você não está em posição de falar nesse tom, Thomas.
- Ana, então devemos dizer adeus à felicidade?
- Se a felicidade reside num casamento entre nós dois, sim, devemos.
- Você está me condenando a uma vida de melancolia.
- Você se condenou a isso, não eu!
- Eu era muito jovem.
- Você era, lembrou bem, um rapaz muito precoce.
Ele sorriu triste ao lembrar sua juventude. Um menino de grande precocidade, tinham-no mandado para Cambridge quando ele contava 12 anos, e aos 17 casara-se com Elizabeth Brooke, que foi considerada um bom par para ele, sendo filha de Lord Cobham.
Thomas levantou uma questão:
- Por que nossos pais, pensando fazer-nos bem, casam-nos com quem é de sua escolha, e não com quem é da nossa? Por que esse tipo de casamento costuma ser tão infeliz?
- Vocês são covardes, todos vocês - sentenciou Ana.
E seus olhos lacrimejaram quando os pensamentos a levaram de volta a Percy. Percy, que ela amara e perdera, Percy que fora apenas uma folha ao vento. O cardeal maligno, a quem ela odiava tanto agora quanto naquela época, dissera "Isso não pode ser", e Percy aquiescera humildemente. Agora ele reclamava que a vida negara-lhe a felicidade, esquecendo que ele não fizera um grande esforço para segurá-la em suas mãos. E Wyatt, a quem ela facilmente poderia amar, queixava-se da mesma maneira. Eles tinham obedecido a seus pais. Tinham se casado não com quem queriam, mas com quem fora-lhes considerado mais adequado. E então reclamavam amargamente!
- Eu jamais seria forçada! - asseverou Ana. - Eu escolheria meu caminho, e, com a graça de Deus, depois eu jamais me queixaria!
- Ah! Por que eu não entendi que minha felicidade estava com Ana Bolena!
Ela se acalmou.
- Mas como você entenderia isso... você, que tinha apenas 17 anos, e eu ainda menos? mais interessada em se casar com Percy! - acrescentou ele.
Isso! - Ela corou de raiva, lembrando dos insultos do cardeal.
Isso... Ah! Isso fracassou tanto quanto o seu casamento, Thomas, embora de forma diferente. No meu caso, estou feliz por meu projeto ter fracassado; do contrário, estaria ligada a um poltrão!
Agora ele se sentiu subitamente animado, descartando sua melancolia. Ele iria ler para Ana alguns versos que escrevera, porque os tinha feito com ela em mente e para ela, e era justo que ela fosse a primeira a conhecê-los.
Assim, ela fechou os olhos e ouviu, de um lado emocionada com sua poesia, de outro triste ao pensar no quanto poderia ter amado Thomas. E ali no lago do jardim ocorreu a Ana Bolena que a vida foralhe pouco gentil em seu amor pelos homens. Percy, ela perdera depois de um breve lampejo de um futuro feliz que eles poderiam ter compartilhado; Wyatt, ela perdera antes mesmo de poder sonhar em tê-lo.
O que o futuro reservava-lhe? Ela seguiria essa estrada melancólica, sendo amada mas vivendo sozinha? Era uma vida insatisfatória.
Thomas acabou de ler e colocou o poema no bolso, o rosto enrubescido com satisfação pelo seu trabalho.
"Ele tem sua poesia, e eu, o que tenho?", meditou Ana. "Sim, o resto de nós escreve um pouco; é uma recreação aprazível, mas não significa tanto para nós quanto para Wyatt. Ele tem poesia no coração, e muita. Mas o que tenho eu?"
Wyatt inclinou-se para a frente e disse, honestamente:
- Lembrarei deste dia para sempre, pois nele você quase disse que me ama!
- Há momentos em que temo que o amor não é para mim.
- Ah, Ana! Está tão abatida hoje! Para quem deve ser o amor, se não para aqueles que são merecedores de recebê-lo? Anime-se, Ana! A vida não é só tristeza. Quem sabe se um dia você e eu não possamos ficar juntos!
Ana meneou a cabeça.
- Tenho um sentimento melancólico, Thomas.
- Bobagem. Você e melancolia não combinam uma com a outra. Ele se levantou e estendeu as mãos para ela. Ana colocou as mãos
entre as dele e deixou que Thomas a ajudasse a se levantar. Ele se recusou a soltar as mãos de Ana; seus lábios estavam próximos aos dela. Ela se sentiu atraída por ele, mas parecia-lhe que sua irmã estava entre eles... Mary, irresponsável e devassa, rindo, escarnecendo dela. Ana se afastou, fria. Ele soltou-lhe as mãos imediatamente, e elas bateram contra a cintura de Ana; mas nisso ele tocou uma jóia que ela usava pendendo do bolso numa corrente de ouro. Ele pegou a jóia no chão, rindo.
- Um momento, Ana, desta tarde, quando você quase me disse que me amava.
- Devolva! - exigiu.
- Não! Ficarei com ela para sempre, e quando me sentir mais melancólico, pegarei a jóia e olharei para ela, e lembrarei desta tarde em que a roubei, a tarde em que você quase disse que me ama.
- Isso é uma sandice! Não quero perder essa jóia.
- É uma pena, Ana, porque acaba de perdê-la. Será um belq talismã, porque me enche de esperança. Quando eu me sentir mais triste, olharei para a jóia, e direi a mim mesmo que tenho algo por que viver.
- Thomas, eu lhe imploro... ; Ela deveria ter tomado a jóia de suas mãos, mas ele caminhou parar
trás e se pôs a rir.
- Jamais devolverei a jóia, Ana. Você terá de roubá-la de volta ; Ela caminhou até ele. Ele correu, Ana em seus calcanhares. Por um
instante, correndo pelo jardim cercado, tentando recuperar algo que ele lhe roubara, Ana teve a impressão de que retornara aos dias felizes de sua infância em Allington e Hever.
O cardeal cavalgava através da multidão, passando cerimoniosamente sobre a Ponte de Londres, deixando a capital em seu trajeto para a França, para onde o rei ordenara-lhe ir. Um grande número de assessores cavalgava à frente do cardeal, enquanto outros seguiam-no; entre eles havia cavaleiros vestidos em veludo preto com correntes de ouro penduradas nos pescoços, acompanhados por serviçais em garbosas vestes acastanhadas. O próprio cardeal cavalgava uma mula com paramentos em veludo vermelho e arreios de cobre e ouro. À sua frente eram portadas duas cruzes de prata, dois pilares de prata, o Grande Selo da Inglaterra e o seu chapéu de cardeal.
O povo observava-o acabrunhadamente. Agora o cardeal era conhecido, mesmo fora da corte, como o Mestre Secreto do Rei. E o povo culpava o cardeal pelos últimos eventos, sussurrando que fora ele quem pusera ideias absurdas na cabeça do rei. Por que Wolsey estava indo agora para a França? Decerto para encontrar uma nova esposa para substituir a mulher legítima do rei, a adorada rainha Catarina. Recentemente, o povo renovara a lealdade por sua rainha taciturna, passando a vê-la como uma mulher infeliz e humilhada, e o povo de Londres era sentimental, tendendo a apoiar os injustiçados.
Na multidão sussurrava-se o versinho escrito pelo malicioso Skelton e adotado pelo público, que gostara de sua implicação simples, com alusões cáusticas a um cardeal que governava como um rei.
Já foste à nova corte?
Qual nova corte?
À corte do rei !
Ou à corte de Hampton?
Wolsey era odiado, como apenas os homens de sucesso podem ser odiados pelos falidos. O fato de que ascendera de um berço humilde fortalecia o ódio.
"Nós somos tão bons quanto esse homem!"
"com a sorte dele, talvez eu tivesse conseguido!"
Assim sussurrava o povo. O cardeal tinha ciência desses sussurros, e eles o atormentavam; muitas coisas atormentavam esse homem enquanto atravessava Londres em seu caminho para a casa de Sir Richard Wiltshite em Dartford, onde faria o primeiro pernoite de sua jornada à costa.
O cardeal meditava sobre o assunto secreto do rei. Cabia-lhe facilitar a vida para seu senhor, dar-lhe tudo que ele desejava o mais cedo possível; e ele, que conduzira a nau do Estado entre muitas rochas perigosas, agora estava assustado. Concordava plenamente com Sua Majestade que os casamentos de reis e rainhas dependiam de seu sucesso em gerar varões. E o que o rei e sua rainha tinham para mostrar por anos de casamento além de uma filha? A verdadeira religião do cardeal era o governo; por esse motivo, Wolsey frequentemente escolhia por esquecer a obediência que, como cardeal, devia à Igreja. Desde que soubera pela primeira vez da paixão do rei pela dama de companhia Ana Bolena, o cardeal organizara muitas festas em suas grandes casas para que o rei e sua dama pudessem se encontrar. O adultério era um pecado aos olhos da Santa Igreja; mas não tanto na mente liberal de Thomas Wolsey. O adultério do rei era tão necessário quanto as justas e os torneios que ele próprio organizava para a diversão de Sua Majestade. E embora estivesse sempre preparado para conceder ao rei oportunidades para encontrar-se com essa dama, não dava muita importância às aventuras amorosas de Sua Majestade. Este caso parecia-lhe apenas mais um dentre muitos; essa mulher iria absorver o rei, e em seguida saciar seus desejos. E então... ele procuraria a próxima. Mas quando a ideia de um divórcio fora-lhe passada pelo rei, na mente do cardeal tinham começado a se formar possibilidades gloriosas de como favorecer os interesses da Inglaterra através de um casamento vantajoso.
Se a Inglaterra deveria aliar-se à França contra o imperador Carlos, haveria fundamento melhor para essa aliança do que um casamento? Ele já encaminhara sua atenção para a irmã viúva de Francis, Marguerite dAlençon. Contudo, o irmão de Marguerite, inseguro sobre essa união com Henrique, que ainda tinha uma esposa não divorciada - e que não outra senão a tia do próprio imperador Carlos -, rompera as negociações e casara sua irmã com o rei de Navarre. Porém, havia Renée da França, irmã da falecida rainha Claude, e o coração de Wolsey reluzia diante da possibilidade desse casamento. Não havia Claude dado a Francis muitas crianças? Por que, portanto, Renée não daria inúmeros varões a Henrique? E para completar a barganha, por que não prometer a filha do rei ao filho de Francis, o duque de Orleãs? Sobre esses assuntos Wolsey falara com o rei, e o rei aparentara considerá-los. Porém, enquanto falava sobre esses assuntos, o rei não pensara em outra mulher senão Ana Bolena, a quem ainda desejava. A relutância de Ana inflamara sua paixão a um ponto tal que ele flertava com a ideia de descartar os planos de Wolsey sobre um casamento benéfico para a Inglaterra; ele estava planejando incorrer na desaprovação de seus súditos, jogando a tradição ao vento, para satisfazer unicamente seus desejos e desposar Ana Bolena. Ele conhecia seu chanceler: um homem arguto e diplomático. Henrique deixaria Wolsey considerar este divórcio um caso de Estado, dedicando-lhe todo o seu génio governamental. Afinal, se Wolsey soubesse que o divórcio tinha como propósito principal a satisfação do ardor de seu senhor por uma dama de sua corte - que persistente e obstinadamente recusara tornar-se sua amante -, colocaria seu génio a funcionar a favor de seu rei? Henrique achava que não. Assim ao ouvir os planos de Wolsey, fingira interesse e aprovação, mas, sem que o cardeal
soubesse, despachou seu próprio secretário como mensageiro para o papa, pois queria aplacar sua consciência quanto a um certo assunto que o preocupava. O assunto era o seu caso de amor com Mary Bolena, que ele temia haver gerado um parentesco entre ele e Ana, embora ele já tivesse decidido não se preocupar com isso caso seu secretário não conseguisse obter o consentimento do papa para remover o impedimento.
Cavalgando para Dartford, o cardeal estava imerso em pensamentos. Um temor pesava-lhe no coração, porque esse assunto de divórcio prometia ser delicado e menos adequado a seu génio, mais qualificado a resolver questões diplomáticas do que problemas domésticos. Sobre essa Ana Bolena, ele pensava muito pouco. Para ele, o caso de amor do rei com essa moça estúpida era uma questão completamente isolada do divórcio, e desmerecedora de pensamentos mais sérios. Ele tinha a impressão de que Ana era uma leviana, uma versão mais jovem de sua irmã Mary. Sorriu ao pensar em Mary porque, embora não concedesse muita importância às favoritas do rei, cuja influência sempre fora efémera, não nutria qualquer sentimento negativo por elas. Mas essa Ana., vagamente ele se recordava de algum caso envolvendo Percy. O cardeal esboçou um pequeno sorriso ao lembrar disso. Seria possível que o rei permanecesse fiel a essa mulher por tanto tempo?
Ele fixou os olhos no seu chapéu de cardeal que era portado à sua frente, e no símbolo de seu poder, o Grande Selo da Inglaterra. Sua mente estava atarefada e perturbada porque eventos recentes haviam complicado a questão do divórcio. Ele pensou nos três homens de importância na Europa: Henrique, Carlos e Francis. Francis - mesmo enfermo como se encontrava agora - detinha o papel invejável de espectador, aguardando avistar uma vantagem para saltar sobre ela; Henrique e Carlos precisavam tomar papéis mais ativos nesse drama; a esposa de Henrique era tia de Carlos, e era improvável que Carlos permanecesse impassível enquanto Henrique humilhava a Espanha através de uma parente tão próxima sua. Entre esses dois estava o papa, um homem indeciso, que se encontrava perplexo. Ele não ousava ofender Henrique; ele não ousava ofender Carlos. Ele concedera um divórcio a Margaret, irmã do rei, em bases muito ténues, mas isso fora fácil; esse divórcio não ofendera qualquer potentado. Henrique, irado, desejoso de algo que, parecia-lhe, outros conspiravam para manter fora de seu alcance, era um homem perigoso. E a quem ele pediria para satisfazer seus caprichos senão a Wolsey? E em quem ele verteria sua ira, caso seus desejos fossem frustrados?
Essa situação lastimável fora agravada por um evento recente na Europa. O evento mais inesperado, horrível e sacrílego que o cardeal poderia conceber, e o mais desastroso ao divórcio. O saque de Roma pelas forças do duque de Bourbon em nome do Império.
Durante os últimos anos Wolsey tecera tramas ardilosas na Europa; e agora, cavalgando para Dartford, perguntava-se se a sua argúcia não acabara por envolvê-lo nesta que era uma situação terrivelmente difícil. Há muito Wolsey tinha ciência da discórdia entre Francis e um dos nobres mais poderosos da França, o duque de Bourbon. Esse nobre, para proteger sua vida, fugira do país, e sendo um gentil-homem muito orgulhoso e exaltado, estava pouco inclinado a passar o resto da vida descansando no exílio; de fato, mesmo anos antes de sua fuga já mantinha traiçoeiramente contato com o imperador Carlos, inimigo hereditário da França, e ao fugir do país procurara Carlos com planos para fazer guerra contra o rei francês.
Nesse momento ocorrera a Wolsey que, se o duque fosse suprido secretamente com dinheiro, poderia montar um exército com seus incontáveis aliados e assim tornar-se um general sob as ordens do rei inglês, embora ninguém jamais fosse saber que a Inglaterra tinha um dedo nessa guerra. Portanto, a Inglaterra estaria em aliança secreta com a Espanha contra a França. Henrique considerava a concepção de tal ideia puro génio, porque o enfraquecimento da França e a reconquista desse país sempre fora um de seus sonhos. Um embaixador secreto fora mandado ao imperador Carlos, e o rei e Wolsey, juntamente com seu conselho, haviam rido de sua própria astúcia.
Frances, entretanto, descobrira tudo e enviara um mensageiro secreto impor condições à Inglaterra, com o resultado de que o pequeno exército de Bourbon desesperado e exausto - esperara em vão pela ajuda prometida pela Inglaterra. Conforme Wolsey calculara, a liderança de Francis foi alternadamente hesitante e corajosa. Em Pavia, as forças do rei francês foram derrotadas, e o rei feito prisioneiro; e entre seus documentos foi encontrado um tratado secreto sob o Grande Selo da Inglaterra. Assim, Francis foi feito prisioneiro nas mãos do imperador, e o tratado duplo inglês foi exposto. Francis foi jogado em uma prisão de Madri, onde quase morreu; e Carlos não se mostrou ansioso por associar-se novamente à Inglaterra. Assim, o golpe de mestre que colocaria a Inglaterra na posição invejável de estar do lado vencedor - qualquer que fosse ele - havia fracassado.
Isso acontecera dois anos antes; ainda assim era uma situação desagradável de contemplar, assim como era o fracasso de Wolsey em ser eleito papa, a despeito de todo o dinheiro que gastara em subornos. E agora viera o maior dos golpes: Bourbon voltara suas atenções para a própria cidade de Roma. Isso custara ao ousado duque sua vida, era verdade, mas seus homens deram continuidade a seus planos diabólicos, e a cidade foi invadida, arrasada pelo fogo e pela pilhagem, seus padres humilhados, suas virgens violadas; e a cidade sagrada foi a cena de um dos massacres mais terríveis da História. Porém mais chocante de tudo foi o fato de que o papa, que iria conceder o divórcio a Henrique, era agora prisioneiro no Castelo Angell - prisioneiro do imperador ; Carlos, o primo da dama que seria a parte mais lesada nesse divórcio.
Não era de admirar que a cabeça do cardeal doesse tanto, mas, mesmo dolorida, fervilhava de planos; faria parte do génio desse homem virar qualquer posição em que se encontrasse para sua própria vantagem; e agora ocorrera-lhe uma ideia que iria torná-lo mais famoso e faria seu senhor amá-lo ainda mais. Há pouco tempo parecera-lhe que uma grande nuvem começava a cobrir o sol de sua glória, mas ele confiava no calor dos raios do sol para vaporizar essa nuvem; e assim iria ser. O papa era prisioneiro; por que não estabelecer um papa substituto enquanto ele estivesse aprisionado? E quem seria mais adequado ao posto do que o cardeal Wolsey? E por que esse substituto não haveria de favorecer o pedido de divórcio de seu mestre?
com esses pensamentos em mente cavalgou o cardeal até chegar a Canterbury; ali, tornou-se líder de uma procissão poderosa que seguiu para a abadia. Ali, vestido majestosamente, usando seu chapéu de cardeal, ele orou pelo papa cativo e chorou por ele, enquanto sua mente estava repleta de planos para reger como papa no lugar de Clemente, conceder o divórcio a Henrique e casar seu senhor com uma nobre francesa.
O cardeal seguiu para a França, onde foi recebido como um chefe de Estado pela regente, Louise de Savoy - que reinava durante a ausencia de seu filho François -, e pela brilhante irmã do rei, Marguerite de Navarre. O cardeal assegurou a ambas a amizade de seu senhor para com seu país; ele negociou o casamento da filha do rei com o duque de Orleãs; e insinuou sobre o divórcio do rei e seu casamento com Renée. Proveram-lhe muitos divertimentos para enfatizar a amizade francesa. Mas entre o povo da França o cardeal não era mais popular do que na Inglaterra; e embora ele tenha chegado com ofertas de amizade, e embora tenha trazido ouro inglês consigo, o humilde povo francês não confiava nele e tornou muito desconfortável a jornada por seu território. O cardeal foi roubado em muitos lugares onde descansou, e certa manhã, ao acordar em sua cama, caminhou até a janela e viu que algum brincalhão havia gravado numa rocha o desenho de um chapéu de um cardeal e, sobre ele, uma forca.
A corte inteira não falava de outra coisa além do mestre secreto do rei. Ana ouviu sobre isso; Catarina ouviu sobre isso. A rainha estava receosa. Ela se esforçou imensamente por embelezar-se, na tentativa de agradar ao rei, e na esperança de que ainda houvesse chance de desafiar os médicos e produzir um herdeiro. Catarina estava melancólica; ela rezava muito fervorosamente; ela sentia medo.
Ana ouviu essa história e sentiu pena da rainha, que embora fosse tão diferente dela quanto a noite era do dia-uma mulher carrancuda, uma mulher cuja risada quase nunca se fazia ouvir -, Ana nutria um respeito profundo por sua religiosidade, ainda que fosse incapaz de emulá-la.
Mas Ana estava ocupada com pensamentos sobre seus próprios problemas. Wyatt atormentava-a, fazendo sugestões loucas e impossíveis; e ela temia estar pensando muito frequentemente em Wyatt. Chegavam-lhe pequenos pedaços de papel com a caligrafia do rapaz, e os poemas escritos nesses papéis expressavam sua paixão por ela, a infelicidade de seu casamento, a esperança que ele tinha de estar ao lado de Ana no futuro. Havia aqueles que diziam que Ana era meio francesa; em personalidade, isso era verdade. Era frívola, sentimental, carente de admiração; mas imiscuídos com esses atributos havia alguma coisa essencialmente prática. Se Wyatt não fosse casado, ela certamente darlhe-ia ouvidos; porém, precisava admitir para si mesma que - embora não desse a seu primo qualquer esperança de que seus planos viessem um dia a frutificar - considerava impossível recusar inteiramente suas atenções. Ela procurava por ele; estava sempre pronta para flertar com ele. Juntamente com Surrey e seu irmão, ela frequentemente se via em companhia de Wyatt. Eles eram o quarteto mais alegre e brilhante da corte; seu parentesco era um elo que os unia fortemente. A vida era agradável para Ana com amigos como esses, e ela estava desfrutando disso como uma borboleta voa à luz do sol mesmo quando o frio da noite já se apresenta.
Wyatt não saía dos pensamentos de Ana enquanto a dama preparava-se para o banquete que seria oferecido no palácio de Greenwich em honra aos embaixadores franceses que estavam de partida. Esse banquete prometia ser o mais glorioso até então, como um gesto de amizade para com os novos aliados dos ingleses. Em Hampton esses gentis-homens tinham sido entretidos luxuosamente pelo cardeal, que recentemente retornara da França. O banquete que o cardeal preparara para os visitantes fora tão magnífico que o rei, enciumado pelo fato de que um de seus súditos tivesse provido um banquete que mais seria apropriado ao palácio de um rei, decidira fazer a hospitalidade de Wolsey empalidecer perante a sua.
George, Ana, Surrey, Bryan e Wyatt tinham organizado um espetáculo luxuoso para o entretenimento desses gentis-homens franceses. Eles haviam ficado muito satisfeitos com o resultado de seu trabalho que, tinham certeza, iria agradar ao rei. Esses eventos eram sempre um deleite para Ana; ela adorava-os porque sabia que, graças a seus dons especiais, se destacava acima de todas as outras mulheres presentes; e isso era inebriante para Ana, dispersando aquela melancolia que ela experimentava periodicamente desde que perdera Percy e que agora retornava com mais constância, talvez devido aos avanços de Wyatt.
As roupas de Ana eram em tecido vermelho e dourado; ela portaria diamantes no vestido e em sua gargantilha. Ela abriu mão de sua peruca, decidindo que ela a deixava muito parecida com as outras; Ana iria usar seus belos cabelos soltos e informais.
Ela era, como acostumara-se a ser, a luz brilhante da corte. Os olhos dos homens viravam-se para vê-la passar. Entre eles estavam Henry Norris, o sempre apaixonado Thomas Wyatt, e o rei, olhos reluzindo ao vê-la. Quanto a Norris, ela era indiferente; quanto a Thomas Wyatt, cautelosa; quanto ao rei, ela o temia um pouco. Mas admiração, não importando de onde viesse, era sempre bem-vinda. George sorriu para ela em sinal de aprovação; Jane observou-a invejosa, mas isso pouco a incomodava, visto que todas as mulheres nutriam-lhe inveja; embora, com Jane, talvez a inveja fosse tinta de ódio. Mas imagine se Ana ligava para a esposa estúpida de seu irmão!
"Pobre George!", pensou. "Era melhor estar sozinho do que ligado a uma mulher como essa."
Ana achava bom estar sozinha, sentir muitos olhos sobre ela, observando-a, admirando-a, desejando-a; desfrutando o poder que lhe concedia a necessidade que esses homens sentiam por ela.
Durante o banquete, ao redor de Ana as risadas eram mais altas, a diversão mais solta. O rei juntou-se ao grupo que a cercava, porque gostava de estar com pessoas felizes e jovens; e durante todo o tempo seus olhos ardiam para contemplar aquela que era o centro daquele grupo feliz.
A rainha permaneceu sentada em seu lugar, pálida e quase feia. Era uma mulher triste e assustada que não podia deixar de pensar continuamente no suposto divórcio. E este banquete era por si só humilhante para a rainha; sendo ela espanhola, como poderia encontrar alegria na amizade com franceses!
O desprezo do rei por sua rainha era aparente. As damas da corte que eram jovens e gostavam de se divertir mal prestavam à rainha a homenagem que lhe era devida; elas preferiam reunir-se em torno de Ana Bolena, porque assim estariam mais próximas ao rei, fazendo coro com seus risos.
Agora, de sua posição na cabeceira da mesa, o rei estava observando Wyatt. O vinho deixava o poeta excessivamente ousado, e ele não saía do lado de Ana, embora estivesse plenamente cônscio de que o olhar de Henrique sempre acompanhava sua prima. Praticamente não tinha ninguém à mesa que não soubesse a respeito da paixão do rei, e havia uma atmosfera de tensão no saguão, enquanto todos esperavam que o rei agisse.
Então o rei falou. Havia uma canção que ele queria que a companhia ouvisse. Era de sua própria lavra. Todos fingiram muito interesse por ouvir a canção.
Músicos foram convocados. com eles chegou um dos melhores cantores da corte. Houve um momento de silêncio completo, ninguém ousando mover-se enquanto a canção do rei estava prestes a ser cantada. O rei sentou-se inclinado para a frente e seus olhos não deixaram o rosto de Ana até que a canção estivesse terminada e os aplausos irrompessem.
A águia governa todos os pássaros do firmamento;
O metal não resiste às chamas mais que um momento;
O sol ofusca olhos protegidos com zelo;
E evapora o orvalho, e derrete o gelo;
A pedra dura é cinzelada pelo aço
E um príncipe jamais aceita o fracasso.
Não havia qualquer dúvida sobre o significado dessas palavras arrogantes; não havia dúvida de para quem elas haviam sido escritas. Ana encontrou-se subitamente sufocada pelo esplendor do palácio de Greenwich, pelo poder que ele representava. As palavras continuavam ecoando em seus ouvidos. Ele estava lhe dizendo que estava cansado de esperar; príncipes, como ele, não esperavam por muito tempo.
A noite perdera toda sua alegria para ela agora. Ana estava com medo. Wyatt ouvira essas palavras e percebera sua implicação; George ouvira-as, e seus olhos sorriam para os seus, encorajando-a. Ela quis correr até seu irmão, quis-lhe dizer:
"Vamos para casa, vamos voltar a ser crianças. Estou com medo do brilho desta corte. Os olhos dele estão sobre mim agora Irmão! Me ajude! Me leve para casa!"
George sabia ler os pensamentos da irmã. Ele a viu inclinar a cabeça, inquieta, e sorriu para ela. Sentindo-se melhor, Ana retribuiu seu sorriso. George estava encorajando-a, parecendo-lhe dizer:
"Nada tema, Ana! Nós somos os Bolena!"
A corte estava aplaudindo. Grande poesia, era o veredicto. Ana olhou para aquele que, alguns diziam, era o génio literário da corte, Sir Thomas More. Ela acabara de ler seu Utopia com muito prazer. Sir Thomas olhava pasmo para suas mãos grandes e feias; Ana notou que ele não tinha se juntado à ovação efusiva dos outros. O que Sir Thomas desaprovava: a poesia ou os sentimentos?
A canção do rei foi o prelúdio dos entretenimentos da noite, e Ana e seus amigos fariam parte dos festejos. Ela tentou esquecer seus temores. Durante a noite, tocou com um fervor que raramente expressara antes em qualquer um daqueles bailes de máscaras e peças que seu quarteto acompanhava musicalmente. Em seu medo introduzira-se um elemento que Ana não conseguia definir. O que era? O desejo de fazer o rei admirá-la mais? Os cortesãos estavam sendo extremamente gentis com ela; até seu velho inimigo, Wolsey, a quem Ana jamais cessara de odiar, sorria-lhe amistosamente! Os favoritos do rei eram paparicados por todos, e quando você tinha sido desprezada por seu berço humilde... quando tinha sido humilhada por um homem como Wolsey... sim, naquela noite havia prazer imiscuído ao medo.
Ana era como uma chama brilhante em seu vestido vermelho e dourado. Todos os olhos estavam sobre ela. Durante meses todos iriam falar sobre aquela noite, quando Ana fora a lua de todas aquelas estrelas foscas.
A noite deveria terminar com uma dança, quando cada gentil-homem escolheria seu par. Tradicionalmente, o rei tomava a mão da rainha e conduzia a dança. A rainha estava sentada pesadamente em sua cadeira, uma expressão muito triste no rosto. O rei nem olhou para ela. Houve um momento de silêncio gélido quando Henrique caminhou até Ana Bolena e, escolhendo-a, fez pública sua preferência.
A mão de Henrique segurou com firmeza a de Ana. Era uma mão forte e quente; ela temeu que ele lhe esmagasse os dedos.
Dançaram. Os olhos do rei brilhavam tanto quanto as jóias de suas roupas. Era uma paixão muito diferente da de Wyatt; mais feroz, mais orgulhosa, com um ardor furioso em lugar de tristeza.
Ele queria falar com ela longe de todas aquelas pessoas. Ela respondeu que temia a desaprovação da rainha, caso saísse do salão de baile.
- Não teme a minha, se permanecer aqui? - perguntou o rei.
- Majestade, a rainha é minha ama.
- E uma ama severa, certo?
- Uma ama muito gentil, Majestade. Uma ama a quem não tenho a menor intenção de desagradar.
- Dama, está pondo em prova nossa paciência - disse o rei. Gostou de nossa canção?
- Rimou corretamente - respondeu, porque, agora que se sentara com ele, podia ver que sua ira não era para ser temida.
O rei não iria feri-la; misturada à sua paixão havia uma grande ternura. Perceber a existência dessa ternura aplacou o medo no coração de Ana, e também encheu-o com um sentimento estranho e poderoso.
- O que quer dizer com isso? - perguntou, aproximando-se mais dela. Não podia evitar, mesmo sabendo que o observavam.
- Dos versos de Vossa Majestade gostei muito; mas dos sentimentos expressados, não tanto.
Basta de tolices! - sentenciou. -Você sabe que a amo muito.
- Rogo a Vossa Majestade...
Poderá rogar tudo que quiser, contanto que diga que me ama.
Ela repetiu o velho argumento.
Vossa Majestade, não há qualquer possibilidade de amor entre nós... eu jamais poderia ser sua amante.
- Ana, juro que se você se der a mim de corpo e alma, não haverá mais ninguém em meu coração. Eu afastaria todas as outras que estão em competição, porque jamais houve uma mulher com quem tenha me deliciado tanto quanto você.
Ela se levantou, trémula. Podia ver que ele continuaria se recusando a ouvir um não como resposta, e sentiu muito medo. - A rainha nos observa, Vossa Majestade. Temo sua ira. Ele se levantou, e eles se juntaram aos dançarinos.
- Não pense que este assunto termina aqui - disse o rei.
- Imploro misericórdia a Vossa Majestade. Não vejo qualquer chance de que isto possa terminar de forma satisfatória para nós dois.
- Diga-me, gosta de mim? - perguntou.
- Como súdita, tenho muito apreço por Vossa Majestade...
- Tenho certeza de que você poderia nutrir muito mais que apreço por mim, Ana, caso se permitisse isso. E imploro que você se permita. Há muito tempo eu a amo; há muito tempo não tenho pensamentos para nenhuma outra senão para você.
- Sou indigna da atenção de Vossa Majestade.
"Palavras! Palavras repugnantes!", pensou Ana. "Estou assustada. Oh, Percy, por que você me deixou? Thomas, se você me amava quando era uma criança, por que deixou que eles lhe escolhessem uma esposa!"
O rei se avultou sobre Ana, imenso e reluzente em poder. Ele arfava pesadamente; seu rosto estava escarlate; havia desejo em seus olhos, desejo em sua boca.
"Amanhã retornarei secretamente a Hever", decidiu Ana.
A rainha estava amuada. Ela dispensou suas damas e foi para a câmara onde havia a grande cama oval que ela ainda compartilhava com Henrique, embora isso fosse mera formalidade. Ela deitava num extremo da cama; ele, no outro.
Ela disse:
- É inútil fingir que está dormindo. Ele disse:
- Eu não tenho qualquer intenção de fingir, madame.
- Aparentemente, humilhar-me dá-lhe grande prazer.
- Como assim?
- Invariavelmente aparece alguém. Esta noite foi a jovem Bolena. Era o seu dever real ter-me escolhido.
- Escolhido a senhora! - grunhiu. -Jamais faria isso. Nem agora, nem anos atrás, se a escolha tivesse sido minha!
Ela começou a chorar e murmurar preces. Rezou por autocontrole para ela e para ele. Rezou para que ele a tratasse com mais candura, e que ela pudesse desafiar os doutores que tinham profetizado que ela jamais daria um varão ao rei.
Como estava acostumado às orações da esposa, Henrique não se deixou incomodar por elas, concentrando seus pensamentos num corpo esguio de moça em vermelho e dourado, uma jovem com cabelos soltos, rosto agudo, inteligente, e os olhos negros mais adoráveis da corte.
"Ana, sua bruxa!", pensou Henrique. "Rogo para que pare de me provocar. Basta, jovem! Já se passam muitos anos desde que a vi no jardim de seu pai, e a desejei! O que você quer, jovem? Peça e terá, mas me ame, me ame porque eu a amo verdadeiramente."
A rainha parou de orar.
- Elas ficam tão presunçosas, essas mulheres que você favorece.
- Ora, não é natural que as mulheres que são notadas pelos reis fiquem presunçosas? - disse Henrique, satisfeito em perceber agora que Ana realmente parecera mais cheia de si.
- Há tantas delas- disse a rainha, desanimada.
"Ah!", pensou o rei. "Por mim, só haveria uma, Ana, e ela é você!" A rainha repetiu:
- Apetecer-me-ia se Vossa Majestade controlasse seus ânimos. Como o tagarelar incessante da rainha o entediava! Ele queria dormir em paz, para sonhar com aquela cuja presença tanto o encantava.
Ele disse, muito cruel:
- Madame, a senhora não é um grande encorajamento para que um homem esqueça suas amantes.
Ela estremeceu; o rei sentiu isso, apesar de os dois estarem separados pela vasta largura da cama.
- Não sou mais jovem. Tenho culpa se nossos filhos morreram?
Ele ficou calado. Ela agora tremia violentamente.
Ouvi falar daquilo que chamam de o Assunto Secreto do Rei -
disse Catarina.
Agora ela conseguira arrastar a mente de Henrique do sonho sensual que lhe serenava o corpo. Então os boatos tinham alcançado seus ouvidos! Bem, ela haveria de saber
cedo ou tarde, mas o rei teria preferido que o assunto tivesse lhe sido apresentado de uma forma mais digna.
Ela disse, suplicante:
- Henrique, você não nega?
Ele empertigou seu corpanzil na cama.
- Catarina, você sabe bem que por minha própria vontade eu seria incapaz de substituí-la, mas a vida de um rei não lhe pertence, e sim a seu reino. E, Catarina, dúvidas sérias foram despertadas em minha mente, não recentemente, mas há um certo tempo. Eu teria suprimido essas dúvidas, mas a consciência não me permitiu. Saiba, Catarina, que quando o casamento de nossa filha com o duque de Orleãs foi proposto, o embaixador francês questionou sua legitimidade.
- Legitimidade! - gritou Catarina, empertigando-se também. O que ele quis dizer com isso? Milorde, espero que tenha reprochado severamente esse homem!
- Ah! Isso eu fiz! E fiquei terrivelmente magoado.
O rei estava mais feliz agora; ele não era mais o marido pecador sendo admoestado por sua esposa fiel; ele era o rei, que punha seu país em primeiro lugar, à frente de todos os pedidos pessoais; e neste caso, disse a si mesmo, o homem vinha em segundo lugar, depois do rei. Deitado nesta cama com uma mulher cujos hábitos pios e corpo informe há muito tinham cessado de causar-lhe qualquer sentimento, salvo repugnância, Henrique podia assegurar-se de que a necessidade de permanecer casado com ela fora removida.
Henrique casara-se com Catarina porque na época houvera a necessidade por parte da Inglaterra de formar uma amizade profunda com a Espanha. A Inglaterra era fraca
nessa época, e na outra margem de um canal - que era um mero filete de água - jazia a poderosa França, um inimigo perene. Naqueles dias do começo de seu casamento Henrique nutrira a esperança de conquistar a França mais uma vez; com Calais ainda em mãos inglesas, isso não parecera uma impossibilidade; ele torcera que com a ajuda do imperador esse desejo pudesse ser concretizado, mas, desde o incidente humilhante em Pavia, Carlos dificilmente quereria unir-se a aliados ingleses; assim, a necessidade de amizade com a Espanha fora removida; os planos de Wolsey tinham sido abortados; os novos aliados eram os franceses. Portanto, o que poderia ser melhor para a Inglaterra do que dissolver o casamento espanhol! E em seu lugar... Mas isso não importava agora; o que importava era dissolver o casamento espanhol que não mais era útil à Inglaterra.
Essas eram questões menores, comparadas com o problema que atormentava sua consciência. "Deus abençoe o bispo de Tarbes, aquele embaixador que questionara a legitimidade da princesa Maria."
- Isso é motivo para uma guerra contra a França-disse Catarina, indignada - Minha filha... uma bastarda! Sua filha...
- Esses assuntos não cabem a mulheres - sentenciou o rei. Guerras não são declaradas sobre pretextos insignificantes.
- Insignificante! - gritou, a voz aguçada pelo medo. Catarina não era tola. Aos jantares que oferecia em seus aposentos compareciam os homens mais cultos, os cortesões mais sérios, homens como Sir Thomas More. Ela era mais teimosa que as damas inglesas, e nunca tentara adotar seus hábitos. Não aprovava os esportes de sangue que seu marido adorava. No começo ele protestara ao ouvir de Catarina que as damas espanholas não seguiam falcões e cães de caça. Mas isso fora há muitos anos; agora ele estava feliz que ela não o tivesse acompanhado aos eventos esportivos, afinal sua companhia não teria sido agradável. Mas havia em Catarina alguma coisa que despertava o respeito de Henrique: sua dignidade calma, sua fé religiosa; e mesmo agora, quando esta grande catástrofe a ameaçava, ela não demonstrara publicamente - fora a melancolia que lhe era natural - que sabia o que estava em andamento. Mas ela era tenaz; Henrique sabia que ela iria lutar, se não por si mesma, por sua filha. Sua religiosidade dir-lheia que era seu dever lutar por Henrique e também por si própria, que o divórcio era errado aos olhos da Igreja, e que ela precisava empregar nessa batalha toda sua persistência silenciosa.
- Catarina, recorda o que diz a Bíblia?
Ele citou uma passagem do Levítico onde era dito que era pecado um homem possuir a esposa do irmão, porque assim ele via a nudez do irmão; e se tal acontecesse, filhos não nasceriam dessa união. Ele repetiu a última frase.
- Você sabe muito bem que nunca fui verdadeiramente esposa do teu irmão.
É um assunto que me deixa imensamente perplexo.
Está dizendo que não acredita em mim?
Eu não sei o que dizer. As nossas esperanças de ter um herdeiro foram frustradas; isso parece obra da Providência. É natural que nossos filhos devam morrer um atrás do outro? É natural que todos os nossos esforços tenham sido frustrados?
Nem um pouco - disse, sorumbática.
- Uma filha - disse com desprezo.
- Ela é uma moça de valor...
- Uma moça! Que bem pode fazer uma mulher ao trono da Inglaterra! Ela não é a resposta a nossas preces, Catarina. Filhos nos foram negados... A culpa não reside em mim....
Havia lágrimas nos olhos da rainha. Ela odiaria esse homem se os seus instintos mais primitivos não fossem suprimidos pela religiosidade. Neste momento ela não sabia se amava ou odiava, sabia apenas que precisava agir de acordo com os mandamentos de sua religião. Ela não devia odiar o rei; ela não devia odiar seu marido, pois isso era um pecado mortal. Assim, em todos aqueles anos em que ele a menosprezara e humilhara, em todos aqueles anos que ele lhe fora infiel, Catarina sempre dissera a si própria que o amava. Não era de admirar que ele a considerasse insípida; não era de admirar que agora ele comparasse esta mulher de 41 anos a uma moça risonha de 19! Ele tinha 35; decerto uma boa idade para um homem - seu apogeu. Mas ele devia estar preocupado com o avanço dos anos, sendo um rei que até agora não conseguira dar a seu reino um herdeiro.
Não fazia muito tempo, Henrique trouxera seu filho ilegítimo para a corte e lhe concedera honras para profunda humilhação da rainha, que na época temera principalmente por sua filha. Esse homem imenso nada sentia por sua esposa, e pouco pela filha. Tudo que lhe importava era conseguir o que queria, e que o mundo pensasse que ao saciar suas necessidades não o fazia por si, mas por seu reino.
Ao dizer que a culpa não residia nele, insinuara que Catarina mentira ao se declarar virgem; insinuara que ela vivera com seu irmão como esposa. Ela começou a chorar enquanto rezava por forças para lutar contra este homem poderoso e suas intenções cruéis de destituir sua filha do trono em benefício de um bastardo.
- Busque em sua alma! - disse Henrique num tom inquisidor. Busque em sua alma pela verdade, Catarina. A culpa deste desastre causado a nosso reino reside em você ou em mim? Eu tenho uma consiência limpa. Você pode dizer o mesmo, Catarina?
- Sim, eu posso. E direi!
Ele poderia tê-la esbofeteado, mas se acalmou e disse num tom melancólico:
- Eu jamais teria dado esse passo se a consciência não me atormentasse.
Ela se deitou e permaneceu em silêncio. Ele se deitou também, e em pouco tempo esquecera Catarina e pensava naquela que ele estava determinado a tornar sua.
Ana chegou ao Castelo de Hever com as palavras da canção do rei ecoando em seus pensamentos. Ela encontrava dificuldade em analisar os próprios sentimentos; ser objeto de tanta atenção da parte de um homem poderoso como o rei era refletir esse poder; e para uma mulher ousada e ambiciosa como Ana Bolena, o poder, embora talvez não fosse o melhor presente que a vida poderia lhe dar, não era coisa para se desprezar.
Ela se perguntou o que aconteceria quando Henrique descobrisse sua partida. Ficaria zangado? Decidiria que estava abaixo de sua dignidade perseguir uma mulher que tanto se recusava a ele? Bani-la-ia da corte? Ana rezava para que isso não acontecesse, precisando de alegria mais do que nunca na vida. Ela podia sufocar sua melancolia
com planos para eventos; ademais, seus amigos estavam na corte - George e Thomas, Surrey e Francis Bryan; com eles Ana podia rir e brincar, e até travar conversas sérias, estando todos, talvez com a exceção de Surrey, interessados na nova religião sobre a qual ela aprendera muito com Marguerite, agora rainha de Navarre. Todos eles tinham uma inclinação para essa nova religião, talvez por serem jovens e ávidos por experimentar qualquer coisa diferente das antigas tradições, apreciando-a por virtude de sua novidade.
Ela não estava em Hever há mais do que um dia quando o rei chegou. Qualquer dúvida sobre o sentimento intenso que Henrique nutria por ela evanescera agora. Ele estava inclinado a ficar zangado, mas, ao vê-la, sua raiva derreteu. Ele estava humilde, o que era de certo modo tocante num indivíduo em quem a humildade era uma virtude muito rara. Ele estava ávido e apaixonado, ansioso para que Ana deixasse de duvidar da natureza de seus sentimentos por ela
Os dois caminharam no jardim que fora o cenário de seu primeiro encontro; e isso foi a pedido de Henrique, que era um sentimental quando isso o agradava.
Estive pensando seriamente no assunto do amor entre nós -
disse-lhe Henrique. - Quero que saiba que eu entendo seus sentimentos. Estou muito abalado pelo meu amor e preciso saber quais são os seus sentimentos por mim agora, e quais seriam se eu não mais tivesse uma esposa.
Ana ficou pasma. Possibilidades deslumbrantes haviam se apresentado. Ela, uma rainha! A glória inebriante do poder! A alegria de estalar os dedos para o cardeal! Rainha da Inglaterra...!
- Milorde, acho que sou uma estúpida - balbuciou. - Eu não havia entendido que...
O rei pousou uma das mãos no braço de Ana, que sentiu o ardor de seus dedos. Enquanto os dedos de Henrique escalavam seu antebraço, Ana fitou-o, vendo a intensidade de seu desejo por ela. Ana estava jubilosa; embora não fosse ele um homem a quem amasse, era o rei da Inglaterra. Ana sentia seu poder, e sentia sua necessidade por ela. Enquanto Henrique estivesse tomado por essa necessidade urgente, era ela quem detinha o poder, porque tinha o rei da Inglaterra indefeso em suas mãos.
Ela baixou os olhos, temendo que o rei lesse seus pensamentos. Ele disse que ela era mais bela do que qualquer dama que já tinha visto, e que estava ansioso por possuí-la, corpo e alma.
- Corpo e alma - repetiu, sua voz suave e humilde, seus olhos fixos no pescoço pequeno, no corpo esguio; e sua voz subitamente ficou embargada de desejo enquanto, em sua mente, ele a possuía, exatamente como fizera quando estivera deitado ao lado da rainha, conjurando imagens tão vívidas de Ana que parecia que era ela quem estava a seu lado.
Ana estava pensando em Percy e Wyatt, e por um momento pareceu-lhe que os dois mesclavam-se, tornando-se um só, representando o amor; e diante dela avultava-se esse homem poderoso, coberto de jóias, representando a ambição.
Henrique cobria a mão de Ana com beijos rápidos, devoradores. Havia no indicador de Ana um anel que ela sempre usava Ele beijou o anel, e pediu que ela o desse como uma lembrança, mas ela cerrou as mãos e balançou a cabeça. Havia no dedo do rei um grande anel de diamante que ele queria dar-lhe, e disse que aqueles dois anéis seriam símbolos do amor entre eles.
- Porque em breve eu estarei livre para escolher uma esposa disse o rei.
Ela levantou olhos incrédulos para o rosto de Henrique.
- Vossa Majestade não está dizendo que iria me escolher! Ele retrucou, apaixonadamente:
- Eu não escolheria nenhuma outra!
Então era verdade, ele estava oferecendo-lhe casamento. Henrique iria elevá-la àquela posição eminente na qual agora se encontrava a rainha Catarina, filha de um rei e uma rainha. Ela, a humilde Ana Bolena, seria colocada ali... e mais alto, porque, embora Catarina fosse rainha, jamais desfrutara do amor do rei. Era uma perspectiva brilhante demais para ser contemplada. Ela a ofuscava Ela deixava-a com dor de cabeça. Ana não conseguia pensar claramente, e teve a impressão de ver Wyatt sorrindo para ela, ora escarnecendo, ora melancólico. Era um problema grande demais para uma garota que tinha apenas 19 anos e que, ansiosa por ser amada, fora desapontada dolorosamente por seus amores.
- Vamos, Ana! Tenho certeza de que gosta de mim.
- É coisa demais para eu contemplar... eu preciso...
- Você precisa de mim para tomar a decisão em seu lugar! - disse ele, e então, ali e naquele momento, ele a tinha nos braços, seus lábios ásperos e quentes contra os dela. Ana sentiu a urgência de Henrique, e se esforçou para manter a cabeça no lugar. Ela já sabia uma coisa importante sobre o seu rei: um homem de grandes necessidades, sempre impaciente por saciá-las imediatamente. Ele lhe dizia:
- Eu lhe prometi casamento. Por que esperar mais? Aqui! Agora! Mostre a seu rei sua gratidão e sua confiança nele, e acredite que ele manterá sua promessa!
O Mestre Secreto... o que acharia daquilo? O que seu inimigo antigo, Wolsey, teria a dizer desse casamento? Haveria na corte pessoas poderosas que fariam de tudo para impedir essa união. Não, ela podia estar se apaixonando pela noção de si própria como rainha, mas não estava apaixonada pelo rei.
Ela disse, com aquela dignidade petulante que o exasperava mas que jamais falhava em amansá-lo:
- Majestade, a honra que me presta é tão grande que eu poderia desmaiar... com um tom rude na voz, ele a interrompeu:
Basta de títulos e palavras floreadas, meu coração! Não falemos como rei e súdita, mas como homem e mulher.
Havia agora uma mão na garganta de Ana. Ela sentiu o corpo quente do rei contra o seu. com ambas as mãos, ela o empurrou.
Ainda assim, estou incerta - disse friamente.
As veias sobressaltaram na fronte do rei.
- Incerta! - trovejou. - O seu rei diz que a ama... e que irá desposá-la, e você está incerta!
- Vossa Majestade sugeriu que falemos como homem e mulher, não como rei e súdita.
Ela havia se libertado e corria na direção da sebe que envolvia o jardim; ele corria atrás dela, e ela permitiu-se ser alcançada diante da cerca. Eletomou as mãos de Ana com firmeza entre as suas.
- Ana! - clamou. - Ana! Por que me amaldiçoas? Ela respondeu com toda franqueza:
- Eu nunca tive a intenção de amaldiçoar qualquer um, e por que amaldiçoaria Vossa Majestade, que me prestou essa grande honra! Vossa Majestade me ofereceu o seu amor, que para mim é a maior de todas as honras, sendo Vossa Majestade o meu rei e eu apenas uma moça humilde. Mas foi Vossa Majestade que ordenou que eu deixasse de pensar em você como o rei...
Ele interrompeu:
- Você distorce as minhas palavras, Ana Que moça atrevida você é! E forçando-a contra a sebe, ele colocou as mãos sobre seus ombros e beijou-a nos lábios. Então aquelas mãos tentaram abrir o vestido de Ana. Ela conseguiu se libertar, mas o rei capturou-a novamente. Ele disse, severo:
- Quero então que agora você me considere o seu rei. Quero que seja a minha súdita obediente e amorosa.
Ela ofegava de medo. Disse, arriscando-se imensamente:
- Você jamais conquistaria o meu amor dessa forma! Eu imploro, solte-me.
Ele fez isso, e ela se afastou dele, olhos faiscando, coração batendo loucamente. Ela temia que ele a forçasse àquilo que até agora ela tivera tanta sensatez em evitar. Mas subitamente ela viu a sua vantagem, porque ali estava Henrique à sua frente, não um rei irado, mas um homem humilde que, além de desejá-la, amava-a; e então ela percebeu que cabia não a ele, mas a ela, determinar o que aconteceria em seguida. Esse entendimento acalmou sua mente atormentada e, mais calma, Ana era de fato a ama daquela situação. Aqui estava esse homem grande como um touro, apaixonado pela primeira vez na vida, e portanto inexperiente em como lidar com essa emoção que governava suas ações, forçando-o a acatar ordens ao invés de dá-las, forçando-o a suplicar ao invés de exigir.
- Docinho - começou, rouco. Mas ela levantou uma das mãos.
- O seu tratamento rude me insultou.
- Mas o meu amor por você...
Ela olhou para as marcas vermelhas que as mãos de Henrique tinham deixado em seu ombro, onde ele rasgara o colarinho de seu vestido.
- Isso me assusta - disse ela, não parecendo nem um pouco assustada, mas ama de si mesma e dele. - Isso me deixa insegura...
- Não sinta qualquer insegurança, querida! Quando eu a encontrei pela primeira vez, retornei e disse a Wolsey: "Estive conversando com uma mulher que merece usar uma coroa!"
- E o que disse o cardeal? Tenho por certo que ele riu de você.
- Você não acredita que ele ousaria! - O cardeal faria muitas coisas que os outros homens não ousariam. Ele é uma criatura arrogante e malnascida!
- Você o julga mal, querida... mas não queremos falar sobre ele agora. Eu lhe rogo, considere esta questão com toda seriedade, pois eu juro que não existe outra mulher que possa fazer-me feliz além de você!
- Vossa Graciosa Senhoria compreende minha necessidade em pensar com todo o cuidado sobre esse assunto.
- Pensar com todo o cuidado, Ana? Eu lhe pedi que aceitasse ser a minha rainha!
- Não discutiremos reis e rainhas - ralhou, e essa reprovação apenas o encantou. - Este é um assunto entre um homem e uma mulher. Então você quer que eu seja sua rainha e não esteja totalmente certa de que o amo mais que uma súdita ama um rei?
Era desconcertante. Onde ele encontraria outra mulher que hesitasse numa questão como essa! Que mulher faria par com ela? Em argúcia, em beleza, ele há muito sabia
que ela não tinha igual; mas em virtude ela também era única. Era uma mulher inestimável, pois ele nada podia fazer para comprá-la. Ele precisava conquistar o seu amor.
Henrique estava encantado. Isto era delicioso... pois como ele podia duvidar de que ela o amaria? Não havia ninguém que o excedesse nas justas; ele sempre ganhava... ou quase sempre. Suas canções eram mais admiradas do que as de Wyatt ou de Surrey; e ele não havia conquistado o título de Defensor da Fé por seu repúdio contra Lutero? Poderia algum outro homem ter escrito um livro como aquele? Não!
Ele era um rei entre homens em todos os sentidos das palavras. Se lhe tirassem o trono amanhã, ele ainda seria rei. No amor... ah! Ele apenas precisava olhar para uma mulher, e punha-a madura para ele. Sempre fora assim... exceto com Ana Bolena Mas ela se destacava de todas as outras mulheres. Ela era diferente; era por isso que merecia ser a sua rainha.
- Preciso de tempo para refletir sobre esse assunto.
As palavras de Ana eram sinceras. Os beijos desse homem tinham despertado nela um desejo pelos beijos de outro homem, e agora ela estava dividida entre o amor e
a ambição. Se Wyatt não tivesse se casado, se pudesse ter-lhe dado um amor digno, Ana não teria hesitado. Porém, era o rei que lhe oferecia dignidade, além de poder e propriedades; além disso, Wyatt não era um amante tão humilde quanto este homem podia ser, apesar de todo seu poder; e, carecendo de humildade, Ana apreciava-a nos outros.
- Permanecerei aqui aguardando sua resposta - disse o rei. Juro que não deixarei Hever até que eu esteja usando o seu anel, e você o meu.
- Dê-me até amanhã de manhã.
- Então, que assim seja, meu amor. Seja gentil comigo em sua decisão.
- Como eu não poderia ser gentil com Vossa Majestade, que sempre tratou a mim e aos meus com gentileza?
Ele gostou de ouvir isso. O que ele não fizera por esses Bolena! Sim, e ele ainda viria a fazer muito. Ele faria da irmã de Thomas uma rainha. Então, ele se perguntou, teria ela se referido a Mary? Seu amor tinha língua afiada e grande inteligência; será que sentia algum ciúme de sua irmã Mary?
Ele disse, muito calmo:
- Não haverá nenhuma competidora para você, meu amor. Então ele ouviu uma resposta desconcertante:
- Não haverá nenhuma, porque eu não posso acreditar no amor de um homem que se diverte com amantes. - Então ela se tornou toda sorrisos e candura. - Milorde, perdoe minha franqueza. Desde que você me disse que é um homem que me ama, esqueci que também é o rei.
Henrique estava maravilhado. Ana aceitaria sua proposta não pela posição que iria alcançar; ela aceitaria por ele, como homem.
A noite foi agradável. Depois da refeição no grande salão de jantar, Ana tocou para ele e cantou um pouco.
Antes de se retirar para dormir, o rei beijou ardorosamente as mãos dela.
- Amanhã eu terei aquele anel.
- Amanhã Vossa Majestade saberá se o terá ou não. Ele disse, olhando para os lábios dela:
- Não tem pena de mim, dormindo sobre este teto sabendo que estás tão perto e recusando-me?
- Talvez não seja assim para sempre.
- Sonharei que você já é rainha da Inglaterra. Sonharei com você em meus braços.
Essas palavras provocaram medo em Ana. Ela lhe desejou uma boa noite, repetindo sua promessa de que daria sua resposta pela manhã. Subiu para sua alcova e trancou a porta.
Ana passou a noite torturada por dúvidas. Ser rainha da Inglaterra! O pensamento a assombrava, a dominava. O amor ela perdera-o amor com que sonhara. Agora a ambição falava mais alto. Decerto ela nascera para ser rainha, tendo sido agraciada com grandes dons. Ela imaginava-se rodeada por damas, vestida graciosa, imperiosa.
"E há tantas pessoas a quem posso ajudar!", pensou.
E seus pensamentos voltaram-se para uma casa em Lambeth e uma menininha puxando suas saias. Seria realmente gratificante salvar da pobreza amigos e membros de sua família; saber que eles falavam sobre ela com amor e respeito... Devemos isto à rainha... a rainha, mas uma menina humilde com dons incomuns, cuja sagacidade e beleza escravizara o rei que lhe fizera rainha. E também... havia alguns que tinham rido dela, seus inimigos que haviam dito:
Ah! Lá vai Ana Bolena. Lá vai ela, tal e qual sua irmã!
Como seria agradável olhar essas pessoas de cima, fazê-las curvarem-se a ela!
Os olhos de Ana reluziram de excitação. A menina inocente que amara Percy, que estivera inclinada a amar Wyatt, desaparecera, deixando em seu lugar uma mulher calculista. A ambição lutava desesperadamente contra o amor; e a ambição estava vencendo.
"Eu não desgosto do rei", pensou Ana.
Afinal, como ela poderia desgostar de um homem que tivera o bom gosto de admirá-la tão ardorosamente?
E a rainha? Ah! Mais uma coisa para se juntar à luta contra a ambição. A pobre rainha, uma mulher muito gentil, mas melancólica, era a parte injustiçada. Oh, mas o brilho da majestade! E Ana Bolena era mais adequada a ocupar um trono que Catarina de Aragon, porque a majestade é inata; ela não é concedida àqueles que não têm nada exceto parentesco com outros reis e rainhas.
Thomas, Thomas! Por que você não é um rei, para conseguir um divórcio, para escolher uma nova rainha!
Você seria fiel, Thomas? Algum homem seria? E se não fosse, é o amor uma posse que deve ser valorizada acima de todas as outras? Thomas e sua esposa! George e Jane! O rei e a rainha! Olhe a seu redor na corte; onde o amor durara? Não era ele um sentimento superestimado? E a ambição... Wolsey! O quão alto esse homem chegara! De um açougue, segundo diziam alguns, ao palácio de Westminster. Do sótão frio de seu tutor à Hampton Court! A ambição era sedutora. Era possível derrubar cardeais de seus pedestais, mas era preciso uma rainha para fazê-lo. E quem podia destituir uma rainha das graças do rei?
Uma rainha! Uma rainha! Rainha Ana!
Enquanto Henrique, inquieto, sonhava com Ana despindo aquelas roupas elegantes, e com suas mãos acariciando aqueles membros formosos, ela, acordada, via-se passeando numa liteira de seda e ouro, enquanto em ambos os lados as pessoas curvavam suas cabeças para a rainha da Inglaterra.
No dia seguinte, Henrique, depois de extrair dela uma promessa de que retornaria à corte imediatamente, saiu do Castelo de Hever portando no dedo o anel de Ana Bolena.
O cardeal chorou. O cardeal implorou. O cardeal empregou todos os seus dons raros para dissuadir o rei. Mas Henrique estava mais determinado neste projeto do que em qualquer outro de sua vida. Como cera nas mãos do habilidoso Wolsey, Henrique fora sempre moldado. Mas Wolsey tinha de aprender que isso acontecera porque, sendo inteligente o bastante para reconhecer os poderes de Wolsey, ele, de bom grado, deixara-o agir como queria. Agora Henrique desejava o divórcio, desejava o casamento com Ana Bolena como nunca tinha desejado nada, exceto o trono, e lutaria por essas coisas com toda a tenacidade do homem obstinado que era; e tendo sido capaz de assegurar a si próprio de que seus motivos eram justos, Henrique podia agir com toda sua energia. O divórcio era correto, por razões dinásticas. Ana era certa para ele, porque, jovem e saudável, poderia dar a luz a muitos varões. Uma rainha inglesa para o trono inglês! Era só isso que ele pedia.
Em vão Wolsey explicou como seria a reação na França. Ele já não tinha prometido Henrique a Renée? E o povo da Inglaterra? Havia Sua Graça, o rei, considerado seus sentimentos na questão? Por toda a capital, murmurava-se muito contra o divórcio. Henrique fez apenas o que sempre fazia quando contrariado: perdeu a calma, e em sua mente foram plantadas as primeiras sementes de suspeita contra seu velho amigo e conselheiro. Wolsey não nutria ilusões; ele conhecia bem seu mestre real. Agora ele devia trabalhar pelo divórcio com todo seu zelo e génio; precisava usar todas as suas energias para colocar no trono uma pessoa que ele sabia ser sua inimiga, uma pessoa que ele descobrira ser mais do que uma mulher fraca em busca de admiração e divertimento, que ele sabia nutrir interesse na nova religião e estar envolvida num grupo poderoso que incluía seu tio de Norfolk, seu pai, seu irmão, Wyatt e o resto. Wolsey precisava fazer isso ou desagradar o rei. Neste mérito, ele não veria qualquer recompensa para si próprio. Para agradar o rei ele deveria colocar Ana Bolena no trono, e colocar Ana Bolena no trono era elevar uma pessoa que decerto poria o rei sob sua influência, e que indubitavelmente estava ansiosa por removê-lo da posição elevada que ele levara anos para alcançar... isso se Ana Bolena não estivesse determinada a destruí-lo.
Mas como ele era Wolsey, o diplomata, escreveu ao papa exaltando as virtudes de Ana Bolena.
A própria Ana retornara à corte uma pessoa mudada. Agora ela precisava aceitar a adulação de todos. Havia aqueles que antes a desprezavam, mas agora buscavam fervorosamente agradá-la. Fizeram-na sentir que ela era a pessoa mais importante na corte, pois até o rei tratava-a com deferência.
Ela tinha 19 anos... uma menina, a despeito de sua aura de sofisticação. O poder era sedutor. Se Ana era um pouco petulante era porque se lembrava da humilhação de quando não fora considerada boa o bastante para Percy... logo ela, que agora beirava tornar-se rainha da Inglaterra Se era um pouco austera, era porque a vida fora-lhe cruel, primeiro com Percy, depois com Wyatt. Se adorava ser admirada e buscava isso onde não era sensato fazê-lo, sua grande beleza era a culpada. Era bela e talentosa, e era apenas humano querer usar esses dons. Ana considerou muito nobre da parte de Catarina vergar trajes discretos. A rainha estava envelhecida e seu corpo perdera a forma; ademais, nunca, nem mesmo em sua juventude, Catarina fora bonita. O corpo de Ana tinha proporções perfeitas, seu rosto era animado e encantador; para ela, era tão natural adornar-se quanto para Wyatt era escrever versos, ou para o rei cansar muitos cavalos a cada dia de cacada. As pessoas gostam de fazer coisas que fazem bem, e se Catarina possuísse o rosto e a silhueta de Ana, certamente passaria mais tempo ao espelho e menos no confessionário. E se Ana ofendia alguns nesse ponto, era quase uma criança, com seus 19 anos; e era ávida por levar uma vida repleta de prazeres e felicidades.
A pena que Ana nutria pela rainha diminuiu quando a dama, alegando amizade, passou a chamá-la para jogar cartas todas as noites para mante-la afastada do rei. Porém, ao jogar, Ana expunha a pequena deformidade em sua mão esquerda.
"Essas carolas!", pensou Ana. "Será que são tão boas quanto julgam ser? Muitas vezes escondem-se por trás de sua devoção para magoar pecadoras como eu!"
Talvez Ana fosse generosa demais, ansiosa por compartilhar sua boa sorte com outros. Uma das maiores alegrias que ela extraía do poder recentemente adquirido era o deleite em poder ajudar os necessitados. Ela, que não esquecera de seu tio, Edmund Howard, incitou o rei a fazer algo por ele. O rei, que a cada dia tornava-se mais devotado a Ana e se importava menos com o que os outros pensavam disso, prometeu dar a capitania de Calais a Edmund. Ana adorou receber essa notícia; e ela desfrutou de muitos prazeres semelhantes.
Mas Ana, aparentemente embriagada de felicidade, em momento algum relaxava no jogo cauteloso que mantinha com Henrique. O divórcio ainda tardaria a chegar, e era árduo manter em cheque o desejo do rei. Ana precisava manter-se continuamente em guarda... aquele era um jogo contra um oponente perigoso.
Não que lhe fosse possível esquecer isso, porque, inteligente como era, Ana aprendeu rápido sobre a natureza de seu futuro marido. E nessa existência aparentemente edênica havia momentos em que temores profundos a acometiam.
Wyatt, descuidado e ousado, estava constantemente à volta de Ana, e embora ela soubesse o quanto isso era insensato, odiava dispensar a companhia do primo. Ela guardava muito bem seu segredo, e Wyatt ainda não sabia sobre os planos de casamento que tinham sido feitos por ela e pelo rei. A personalidade de Wyatt era muito parecida com a de Ana, de modo que o parentesco dos dois frequentemente parecia mais próximo do que entre primos de primeiro grau. Considerava-se Wyatt o homem mais bonito da corte. Decerto ele era charmoso. Tão impulsivo quanto Ana, ele não pensava duas vezes antes de se envolver em situações arriscadas.
Uma dessas situações ocorreu quando ele estava jogando bola com o rei. O duque de Suffolk e Sir Francis Bryan completavam o quarteto. Todos estavam dispostos a deixar o rei ganhar o jogo, menos Wyatt. Wyatt jogava para vencer, e o rei também. Em dado momento, Henrique tinha certeza de que derrotara Wyatt no lançamento da bola. Wyatt prontamente retrucou:
- Majestade, com todo o respeito, não foi assim.
O rei deitou seu olhar nesse jovem simpático de quem ele gostaria mesmo se quisesse evitar, graças à sua animação e perspicácia. Os olhinhos de Henrique perscrutaram o corpo esguio de Wyatt, e ele lembrou-se de tê-lo visto em companhia de Ana naquela manhã. Wyatt era bonito, não havia como negar. Wyatt escrevia versos excelentes. O rei também escrevia versos, e sentia certa inveja da fluência do rapaz. E Ana, o que pensava dele? Aos ouvidos de Henrique tinham chegado comentários-quando as pessoas ainda não sabiam que comentários dessa natureza enfurecêlo-iam - de que Wyatt estava apaixonado por Ana.
Subitamente Henrique estava zangado com Wyatt. O rapaz ousara contrariar sua opinião sobre o vencedor da partida. Ele ousara deitar olhos em Ana Bolena. E jovem e belo, era plausível que Wyatt conseguisse virar a cabeça de qualquer moça.
Significativamente, e falando nas parábolas que amava usar, Henrique gesticulou amplamente para mostrar que, no dedo mindinho, trazia o anel que Ana lhe dera. Wyatt viu o anel, reconheceu-o e ficou perplexo. E isso atiçou ainda mais a raiva do rei. Como Wyatt sabia tão bem que aquele anel pertencera a Ana! Quantas vezes ele levara a mãozinha de Ana a seus lábios?
Wyatt! - disse o rei; e sorrindo complacente e àgnificativamente: - Digo que eu o ganhei!
Wyatt, atrevido, olhou por um momento para o anel e, com um ar displicente, tirou do bolso a corrente da qual pendia a jóia que ele tomara de Ana. Disse, com o mesmo sentido empregado pelo rei:
- Se Vossa Majestade conceder-me o prazer de medir a trajetória com esta corrente, tenho certeza de que verá que eu o ganhei!
Graciosamente, Wyatt pôs-se a medir, enquanto Henrique, ardendo em fúria ciumenta, observava imóvel.
- Ah! - exclamou Wyatt. - Vossa Majestade verá que tenho razão. Eu ganhei o jogo!
Henrique, faces rubras de fúria, gritou com Wyatt:
- Se você ganhou é porque eu fui enganado!
E se retirou, deixando os outros jogadores pasmos, vendo-o afastar-se.
- Wyatt, desta vez você se excedeu - disse Bryan. - Por que fez tanto alvoroço por causa de um jogo trivial?
Os olhos de Wyatt tinham perdido seu brilho triunfal. Ele encolheu os ombros. Sabia que tinha perdido, e considerou o anel que Ana dera ao rei como um símbolo.
Henrique invadiu a sala onde Ana estava sentada com algumas das damas de companhia. As damas se levantaram ao vê-lo entrar, fizeram mesuras tímidas e obedeceram prontamente o sinal para que se retirassem.
- Vossa Majestade está furiosa - disse Ana, alarmada.
- Lady Ana Bolena, exijo saber o que há entre você e Wyatt.
- Eu não entendo. O que poderia haver?
- Ele se vangloria de seu sucesso com você.
- Ele se vangloria sem motivo.
- Eu quero prova disso. Ela deu com os ombros.
- Vossa Majestade está dizendo que duvida de minhas palavras. Ana inflamava-se tão rápido quanto ele, e tinha muito poder sobre Henrique porque, embora ele estivesse profundamente apaixonado por ela, ela estava apaixonada pelo poder que ele podia dar-lhe, e ainda não tinha certeza se obter a honra de ser rainha era o que ela queria para a sua vida. Esse era o segredo do poder de Ana Bolena sobre Henrique. Ela fez um gesto para que ele se retirasse de sua presença, e Henrique, enfeitiçado e inflamado com a paixão sexual poderosa que coloria toda sua existência, estava inteiramente à mercê da jovem.
- Ana, eu sei bem que você fala a verdade. Mas garanta-me, com toda sinceridade, que não existe nada entre você e Wyatt.
- Vossa Majestade culparia a mim porque sou a musa de seus versos?
- Não, minha querida. Eu não a culparia por nada. Diga-me que eu não tenho nada a temer desse homem, e restaure minha felicidade.
- Você não tem nada a temer dele.
- Ele tinha uma jóia que já lhe pertenceu.
- Eu lembro disso. Ele a tomou de mim. Ele se recusou a devolvêla, e como eu não gostava tanto assim dela, não insisti.
Henrique sentou-se pesadamente ao lado de Ana no assento da janela e envolveu-a com um braço.
- Você me agradou imensamente, querida. Deve perdoar o meu ciúme.
- Eu perdoo - disse ela.
- Então tudo está bem. - Henrique beijou afaimadamente a mão de Ana, olhos rogando por aquilo que seus lábios não ousavam dizer.
Henrique deixara Ana com raiva. Ele não podia correr o risco de tornar a fazer isso, para não ferir a incerteza que ela ainda sentia. Isso fez o rei maravilhar-se com o amor que nutria por essa jovem. Toda a corte também estava impressionada com isso. Henrique jamais amara dessa forma; não, ele jamais amara antes. Tinha 36 anos, sendo, em alguns aspectos, velho para sua idade, porque vivera desregradamente. Próxima à extinção, a chama de sua juventude ainda brilhava forte, enchendo tudo à sua volta com cores fantásticas. Ele era o homem de meia-idade apaixonado pela juventude. Ele sentia uma ternura imensa por Ana; estava obcecado por ela. A demora da obtenção do divórcio estava levando-o às raias da loucura.
Depois do episódio do jogo, Ana sabia que estava finalmente comprometida. O olhar de Wyatt agora era sardónico; Wyatt desistira. Ela escolhera poder e glória; o rival de Wyatt tentara-a com a isca do matrimónio. Ele escreveu:
Então você abandonou
Aquele que a amou por tanto tempo
Na riqueza e na tristeza
Onde conseguiu um coração tão duro
Para me tratar assim?
O coração de Ana precisava ser forte. Ela devia cultivar a ambição. Devia olhar cuidadosamente onde pisava, porque começava a descobrir seus inimigos na corte, ainda que sua malícia fosse acobertada por palavras gentis. O cardeal, sempre atento e cauteloso; o duque de Suffolk e sua esposa - aquela Mary com quem ela viajara para a França -, que agora via-a lançando uma sombra sobre as perspectivas do direito de seus descendentes ao trono; Chapuys, o espanhol que era mais um espião de seu mestre, o imperador Carlos, do que seu embaixador; Catarina, a rainha que ela iria destronar; Maria, a princesa que seria marcada como ilegítima. Todos esses indivíduos em posições elevadas tinham poder para lutar contra Ana Bolena. Havia ainda um inimigo mais perigoso - o povo de Londres. O descontentamento corria solto na cidade; a colheita fora pobre, e os mercadores consideravam essa aliança com a França uma estupidez, uma mera troca de velhos amigos por novos, que já tinham provado não serem merecedores de confiança. Pelo país inteiro pessoas passavam fome, e embora o rei emprestasse milho de sua própria colheita, ainda assim o povo reclamava. Os mercadores de tecido estavam assustados; o problema com a Espanha significava a perda do grande mercado de Flandres. Alegando pobreza, o condado de Kent processava o rei, exigindo que lhe fosse pago um empréstimo que lhe tinha cedido dois anos antes. O arcebispo de Canterbury fazia o que estava a seu alcance para apaziguar essas pessoas, mas elas continuavam inquietas.
O rei da Inglaterra punha a culpa de todos esses problemas em Wolsey. Durante os anos prósperos o rei tivera o respeito de seus súditos; ele estivera em seus corações durante o período de sua coroação quando ele, um inglês de figura magnífica, bonito, alto e habilidoso nos esportes, fora conduzido pelas ruas... um grande contraste com seu pai, feio e idoso. Agora, durante os anos sombrios, Henrique culpava Wolsey; porque Wolsey cometera o pecado de pertencer ao povo e crescer mais que ele. Os sussurros prosseguiam:
Qual nova corte? A corte de Hampton!
Este era o crepúsculo do dia brilhante de Wolsey. E os famintos e os desgraçados cobriam os olhos diante do brilho daquela moça belíssima, reclinada em sua barcaça ou sendo conduzida pelas ruas com amigos da corte. Mais bem vestida que as outras damas, ela reluzia com jóias caras, presentes do rei... uma visão que incitava a fúria do povo faminto.
- Não queremos "Ama" Bolena! - resmungavam. - A meretriz do rei não deve ser a nossa rainha. Rainha Catarina para sempre!
Dos esgotos obstruídos levantavam-se odores fétidos; matéria putrefata jazia nas ruas por semanas a fio; ratos, grandes como gatos, caminhavam pelas calçadas; os sobrecéus dos prédios, que quase encostavam-se sobre as ruas estreitas, tapando sol e ar, continham a atmosfera vil. E nessas ruas sujas homens e mulheres eram acometidos
subitamente por doenças. Muitos morriam nas ruas, suor escorrendo de seus corpos. Logo todos entenderam que a temida doença do suor retornara à Inglaterra. O povo sofrido de Londres perguntava-se o motivo da maldição que caíra sobre eles. Os súditos falavam mal daquela que, como uma bruxa, enfeitiçara o rei, desencaminhando-o de seus modos pios. Os doentes e miseráveis de Londres sussurravam seu nome; o povo rebelde de Kent falava com ela; nos condados próximos seu nome era proferido com desdém. Por toda parte murmurava-se contra o instrumento do diabo, Wolsey, e aquela que levara o rei a caminhos impuros, fazendo a justiça dos céus cair sobre seu país. Até em Horsham, onde as notícias da doença do suor ainda não tinham chegado, falava-se de Ana Bolena. A velha duquesa divertia-se muito com o assunto.
- Venha cá, Catarina Howard. Esfregue as minhas costas. Declaro que devo estar coberta por lêndeas ou sofrendo da coceira! Esfregue com força, criança. Ah! Soube de acontecimentos interessantes na corte. Parece que o rei está enfeitiçado por sua prima, Ana Bolena. Não fiquei surpresa em ouvir isso. Eu disse, quando ela foi-me visitar em Lambeth: "Ah! Eis uma moça da qual o rei gostaria!" Embora, devo confessar, tenha dito que, antes de levá-la para a cama, ele iria se sentir inclinado a espancá-la até desnudá-la de toda sua arrogância. Não me arranhe, criança! Coce gentilmente... gentilmente. Agora me pergunto se... -A duquesa riu. -Você não devia parecer tão interessada, criança, e eu não deveria falar com você sobre esses assuntos. Porque, claro... Como se ele ainda não tivesse... Pelo que já ouvi sobre Sua Majestade... Embora haja aqueles que digam... Nunca é sensato ceder... Mesmo assim, o que uma garota pobre pode fazer frente... e olhe como Mary conseguiu mante-lo no cabresto por tantos anos! Os Bolena devem ter algo especial, certamente herdado dos Howard... embora eu jure que vejo muito pouco disso em você, criança. Ora, olhe só para o seu vestido! Isso é um rasgo? Devia fazer com que Isabel cuidasse melhor de você. E o que vocês fazem durante as noites quando deveriam estar dormindo? Juro que noite dessas ouvi um barulho vindo dos seus aposentos, e pensei que talvez fosse sensato descer e ver o que vocês estavam fazendo...
A duquesa falava isso da boca para fora; ela jamais se levantaria de sua cama. Mas Catarina decidiu que deveria contar isso às outras.
- E ouvi dizer que sua prima fará alguma coisa pelo seu pai, Catarina Howard. Oh, como ê bom ter amigos na corte! O que você está fazendo? Sonhando acordada? Esfregue mais forte! Ou melhor, pare. Cuide agora das minhas pernas.
Catarina estava sonhando com a bela prima que viera à casa em Lambeth. Ela sabia o que significava ser uma favorita do rei, pois Catarina entendia a atração que havia entre homens e mulheres, e os métodos segundo os quais essa atração era mostrada. Nos livros ela aprendera pouco, porque a duquesa, que vez por outra mencionava que devia ensiná-la, sempre acabava por esquecer dessa necessidade. A prima dera-lhe uma jóia, e ela ainda a tinha. Guardava-a como um tesouro.
- Algum dia irei a Lambeth para estar perto da minha neta que é quase uma rainha - disse a duquesa.
- Ela não é realmente sua neta - disse Catarina. - Você foi a segunda esposa do avô dela
Por isso, a duquesa deu um tapa no ouvido da menina.
- Quê? Está negando o meu parentesco com a futura rainha! Ela que é quase rainha jamais foi desrespeitosa comigo. Agora as minhas pernas, menina, e nada mais de impertinências!
Catarina pensou:
"E você também não é minha avó verdadeira!"
E ela estava feliz com isso, porque parecia um tanto sacrílego que essa velha louca-duquesa-mãe de Norfolk ou não - fosse tão proximamente relacionada com a gloriosa prima Ana.
Quando Catarina estava no quarto que ainda compartilhava com as outras damas de companhia, tirou a jóia de seu bolso e olhou para ela. Era impossível guardar segredos no dormitório. Várias das moças aglomeraram-se em torno de Catarina, querendo ver o que ela possuía nas mãos.
- Não é nada - disse Catarina.
- Ah! - exclamou Nan. - Entendi, Catarina! É um presente do seu amante!
- Não é! - declarou Catarina. - E eu não tenho amante.
- Deveria dizer isso com vergonha! Uma menina grande e bonita como você! - disse uma moça alta, de aparência lasciva, ainda mais ousada que as outras.
- Aposto que isso foi presente do amante dela - disse Nan. Vejam! Tem uma inicial na jóia: A. De quem é esse A? Pensem com força, todas vocês.
Catarina, que não aguentaria ouvir os palpites, confessou:
- vou lhe dizer. Eu tenho essa jóia desde que era um bebé. Foime dada por minha prima Ana Bolena.
- Ana Bolena! - gritou Nan. - Ora, ê claro, nossa Catarina é prima em primeiro grau da amante do rei!
Nan saltou da cama e fez uma mesura sarcástica para Catarina. As outras imitaram-na. Catarina apressou-se em guardar a jóia, arrependida por tê-la mostrado.
Agora elas estavam todas falando sobre o rei e Ana, a prima de Catarina, e o que elas diziam fez as faces da menina corarem. Ela não podia suportar que elas falassem sobre sua prima dessa forma, como se fosse uma delas.
- Esta noite encenaremos uma pequena peça... Você fará o papel do rei. Eu serei Ana Bolena!
Elas estavam rolando de rir.
- Sim, nós vamos nos divertir tanto que corremos o risco de acordar Sua Graça.
- Precisamos tomar cuidado...
- Se ela descobrir...
- Bah! O que ela faria?
- Ela iria nos mandar para casa em desgraça.
- É preguiçosa demais...
- O que mais? O que mais?
A pequena Catarina Howard será a aia da alcova!
Ra! Essa é boa. Ela sendo prima em primeiro grau da dama...
Bem, Catarina Howard, nós a pusemos no bom caminho, não foi? Nós a treinamos para o que esperar de sua prima, mesmo nas circunstâncias mais delicadas, agindo com muita compreensão e...
Tato! - exclamou Nan. - E discrição!
Ela provavelmente terá um lugar na corte!
- E, Catarina Howard, a não ser que nos leve com você, diremos tudo que sabemos sobre você e...
- Eu não fiz nada! - disse Catarina. - Não há nada que vocês possam dizer contra mim.
- Ah! Então você já esqueceu Thomas Culpepper?
- Eu lhes disse que não aconteceu nada...
- Catarina Howard! Esquecestes do estábulo e do que vocês fizeram lá...
- Não foi nada... Juro! Nan disse com firmeza:
- Quem jura, mente. Não sabia disso, Catarina?
- Mas eu... - gritou Catarina. E então, num excesso de ousadia:
- Se vocês não pararem de dizer mentiras sobre Thomas, contarei à minha avó sobre o que acontece nesta alcova à noite.
Isabel, que estivera em silêncio em meio à algazarra das outras, segurou Catarina pelo pulso.
- Você não ousaria...
- Não esqueça que temos algo a dizer sobre você
- Não há nada que vocês possam dizer. Eu não fiz nada além de observar vocês...
- E gostou de observar! Ora, Catarina Howard, eu vi um jovem gentil-homem beijá-la ontem à noite.
- Não era meu desejo, e eu lhe disse isso.
- Ora, não era meu desejo que tal e tal acontecesse comigo, e eu falei isso para ele - disse Nan. - Mas aconteceu do mesmo jeito.
Catarina caminhou até a porta. Isabel estava a seu lado.
- Catarina, não dê ouvidos a essas imbecis. Havia lágrimas nos olhos de Catarina.
- Não continuarei ouvindo elas falarem essas mentiras sobre o meu primo.
- Não dê ouvidos a essas idiotas, elas estão apenas brincando.
- Não suporto mais isso.
- E acha que acabará com isso contando à sua avó?
- Sim, porque quando ela souber o que acontece aqui expulsará todas vocês.
- Não teria tanta certeza, Catarina. Você esteve muitas noites aqui conosco. Ela talvez pense que você é tão culpada quanto nós. Catarina, ouça o que digo. Elas não falarão mais nada sobre o seu primo novamente. Eu garantirei isso. Mas primeiro você deve me prometer de que não dirá à sua avó uma palavra do que acontece aqui.
- Eu não direi se elas não me provocarem a isso.
- Então fique tranquila, porque elas não o farão.
Catarina saiu correndo do quarto. Isabel virou-se para as moças, que tinham acompanhado boquiabertas o diálogo.
- Suas idiotas! -xingou Isabel. - Estão pedindo problemas. Não vejo problemas que ajamos irresponsavelmente para nos divertir, mas implicar com uma menininha... O que vocês ganham com isso, além de aumentar o risco de serem pegas?
- Ela não ousaria abrir a boca - disse Nan.
- Será que não? Desde que chegou aqui, sua mente de criança vem trabalhando nisso, decidindo se deve dizer ou não. com toda certeza, esse Thomas, que ela tem como a um santo, disse-lhe que era errado entregar os outros.
- Ela não tem coragem de contar! - insistiu outra garota.
- Por que não, sua idiota? Ela é inocente. Ela não fez nada além de observar a gente. Todas estaremos arruinadas se qualquer coisa chegar aos ouvidos de Sua Graça.
- Sua Graça não se importa com nada no mundo além de comer, beber, dormir, coçar e fofocar!
- Mas há outros que se importam. E enquanto ela for inocente, correremos o risco de que ela conte. Agora, se ela for envolvida...
- Precisamos encontrar um amante para ela - disse Nan.
- Uma menina bonita como ela! - disse a garota de rosto lascivo que prometera fazer o papel de Henry.
As garotas gritaram juntas, animadas. Apenas Isabel, afastada da confusão, pensou seriamente no assunto.
Sozinho e desconsolado, o rei estava sentado em seus aposentos pessoais. Tinha o coração pesado de ansiedade. Por toda a borda sudeste da Inglaterra espalhava-se aquela enfermidade nefasta, a doença do suor. Nas ruas de Londres homens contraíam-na enquanto caminhavam. Muitos morriam num espaço de algumas horas. As pessoas entreolhavam-se desconfiadas. Por que isso viera somar-se às nossas misérias? Já tínhamos pobreza; já tínhamos fome; e agora, o suor! Olhos voltavam-se para os palácios, olhos ameaçadores; vozes murmuravam:
- Nosso rei expulsou sua esposa fiel de sua cama, e colocou uma bruxa em seu lugar. Nosso rei brigou com o santo papa...
Wolsey, juntamente com os outros membros de seu conselho, alertara-o:
- Seria sensato enviar dama Ana Bolena de volta para o castelo de seu pai até que a doença tenha passado, porque o povo está falando mal dela. Seria sensato que Vossa Majestade aparecesse em público com a rainha.
Por mais zangado que estivesse, o rei concluíra que havia sabedoria nessas palavras. Ele procurou Ana Bolena e lhe disse:
- Meu amor, o povo está dizendo coisas horríveis a nosso respeito. Essa questão do divórcio, que eles não compreendem, é a catalisadora. Você precisa ficar em Hever durante algum tempo.
Ela, com a precipitação da juventude, dera com os ombros para o povo.
- É ridículo associar essa doença com o divórcio! Eu não quero deixar a corte. É humilhante ser mandada para longe dessa forma.
Nunca um homem foi tão amaldiçoado, e ele era um rei! Ana Bolena rira de seus temores, desprezando sua fraqueza por ter-se curvado a seus ministros e à sua consciência. Ela teria desafiado o demónio, ele sabia disso. Henrique forçara-se a ser firme, e implorara que Ana entendesse que era devido ao amor que nutria por ela que ele queria ver o assunto do divórcio concluído o mais rápido possível e com o mínimo de problemas.
Desde a partida de Ana, Henrique escrevera-lhe cartas e mais cartas, cartas apaixonadas nas quais ele desnudava sua alma, nas quais ele dizia claramente mais do que era sensato dizer-lhe.
"Oh, se você estivesse em meus braços!", escreveu Henrique.
Ele não era sutil com a pena; escrevia do coração. Amava-a, queria-a a seu lado. Ele lhe disse essas coisas e, fazendo isso, ele, o rei da Inglaterra, punha-se à mercê de uma menina de 19 anos.
Assim como seu povo, Henrique acreditava que o suor era uma praga dos céus. Acontecera em outras ocasiões. Houvera uma epidemia imediatamente antes de sua ascensão ao trono. Deus estaria dizendo que não estava satisfeito pelos Tudor terem herdado a Inglaterra? Mais uma vez a doença aparecera em 1517, aproximadamente na época em que Martinho Lutero estava protestando contra Roma. Seria a intenção de Deus apoiar o alemão e demonstrar sua desaprovação para com aqueles que tinham seguido Roma? O pai de Henrique dissera-lhe que a doença espalhara-se também logo depois de seu conflito com Bosworth... e agora, aqui estava ela novamente, quando Henrique pensava no divórcio. Decerto era alarmante contemplar essas coisas!
Henrique rezou muito. Acompanhava a missa muitas vezes por dia. Rezava alto e em pensamentos.
- Vós sabeis que não é por meus desejos carnais que quero Ana como esposa. Não haveria outra que eu quisesse por esposa além de Catarina, se eu soubesse que ela é realmente minha esposa, que eu não estou pecando em continuar deixando-a compartilhar de meu leito. Vós sabeis disso! Vós levastes William Carey, Senhor. Ele era um marido complacente para Mary, e talvez esta seja sua punição. Por minha conta, pequei neste assunto e em outros, como Vós sabeis, mas sempre confessei. Eu sempre me arrependi de meus pecados...
Todas as suas orações e todos os seus pensamentos eram tintos com seu desejo por Ana.
- Essa mulher dará filhos a mim e à Inglaterra! É por causa disso que quero elevá-la ao trono.
Acalmava-o dizer "A Inglaterra precisa de meus filhos!" ao invés de "Eu desejo Ana!".
Henrique estava trabalhando no pedido de divórcio que despacharia para o papa, no qual frisava a ilegalidade de seu casamento. Sentia orgulho do texto por seus argumentos profundos e sábios, sua clareza, sua plausibilidade, seu valor literário. Ele mostrou o que fizera a Sir Thomas More; esperara ansiosamente os elogios do homem, mas More meramente disse que não podia julgar o texto por conhecer muito pouco sobre esses assuntos.
"Ah!", pensou Henrique. "Ciúmes profissionais, hein?"
Henrique fitara severamente More, a quem invejava por seu bom humor, sua erudição, sua rapidez de pensamento, o charme e a serenidade que transpareciam em seu semblante. Henrique já fora recebido no Solar de More; caminhara no jardim agradável e vira os filhos de More darem de comer a seus pavões; vira esse homem no coração de sua família, profundamente amado e reverenciado por eles; observara sua amizade com homens como o sábio Erasmo, o despecuniado Hans Holbein que, pobre como era, sabia muito bem brandir um pincel. E estando lá, ele o rei - embora não pudesse reclamar que eles não lhe tivessem tratado com as devidas honras - sentira-se fora daquele círculo familiar mágico, embora Erasmo e Holbein fossem visivelmente bem recebidos nele.
Um ciúme selvagem enchera seu coração por esse More que era conhecido pela ousadia com que expunha suas opiniões, por seu amor pela literatura e pela arte, e por sua virtude prática. Henrique poderia ter odiado esse homem, tivesse o homem permitido isso, mas sempre tão suscetível ao charme dos homens quanto era ao das mulheres, ele caíra vítima da simpatia de Sir Thomas More. No coração de Henrique havia amor por esse homem, e mesmo depois que ele se recusara a elogiar o texto - e embora soubesse que More estava entre aqueles que não aprovavam o divórcio -, o rei continuava sentindo a necessidade de respeitar o homem e buscar sua amizade. Quantos dos seus, como More, não aprovavam o divórcio! Henrique sentia o peito arder de indignação e de desejo de fazê-los ver a questão à sua luz verdadeira.
Ele escrevera uma carta moralizante para sua irmã Margaret de Escócia, acusando-a de imoralidade em divorciar-se de seu marido sob a alegação de que seu casamento não fora legal, desta forma tornando sua filha ilegítima. Na carta, expressava sua indignação pela vergonha de sua sobrinha enquanto ele - ao mesmo tempo-planejava colocar sua filha numa posição similar. Ele fez isso com toda seriedade, porque seus pensamentos eram governados por seus princípios morais distorcidos. Henrique via a si próprio como um rei nobre e perfeito. Quando as pessoas falavam mal de Ana, era porque elas não compreendiam! Ele estava pronto a sacrificar-se pelo seu país. Ele não via a si próprio como o que era, mas como queria ser. E, cercado por aqueles que continuamente buscavam seus favores, Henrique não tinha como saber que os outros não o viam como ele queria ser visto.
Certa noite, durante essa situação frustrante, ocasionada pela ausência de Ana, um mensageiro expresso trouxe-lhe notícias inquietantes.
- De Hever! - rugiu o rei. - O que você me traz de Hever?
Ele ansiava por uma cana, porque ela não respondera às suas a despeito de todas as suas súplicas. Ansiava por uma carta na qual Ana fosse mais gentil, na qual expressasse uma forma de raciocínio mais submisso. Mas aquilo não era uma carta, mas a notícia alarmante de que Ana e seu pai tinham contraído a doença, ainda que levemente. O rei foi tomado pelo pânico. O corpo mais precioso do reino estava em perigo. Carey morrera.
"Não Ana!", orou. "Não Ana!"
Ele tomou uma atitude prática. Lamentando que seu médico principal não estivesse por perto, imediatamente despachou para o Castelo de Hever o seu segundo melhor, o doutor Butts. Desesperadamente ansioso, Henrique aguardou notícias.
Caminhou em círculos por seus aposentos, esquecendo seus temores supersticiosos, esquecendo-se de recordar a Deus de que iria desposála porque era saudável e podia dar filhos à Inglaterra. Henrique pensava apenas no vazio que Ana Bolena deixaria em sua vida.
Henrique sentou-se e derramou seu coração para Ana, a seu modo direto e simples.
"Ontem à noite recebi subitamente as notícias mais desagradáveis que eu posso imaginar. Três são meus motivos para sofrer. O primeiro, saber da doença de minha amada, a quem estimo mais do que tudo no mundo, e cuja saúde desejo tanto quanto a minha própria; de bom grado, suportaria metade do seu sofrimento para curá-la. O segundo motivo é o medo que sinto em não suportar por muito mais tempo a dor de sua ausência. O terceiro motivo é o fato de meu médico (aquele no qual ponho a maior confiança) estar ausente no exato momento em que poderia dar-me mais con- torto. Mas espero, através dele e de seus meios, conservar uma das maiores alegrias que o mundo meu deu. Para isso, envio meu segundo melhor médico, o doutor Butts; espero que ele lhe devolva a saúde o quanto antes. Então eu irei amá-lo mais do que nunca. Rogo que você siga à risca as ordens do doutor. Espero vê-la novamente muito em breve. O que para mim será uma alegria maior do que ganhar todas as jóias preciosas do mundo.
Escrito pela mão do secretário que é, e para sempre será, seu servo mais leal. H.R."
E, tendo escrito e despachado essa carta, Henrique pôs-se a camihar por seus aposentos numa ansiedade que ele jamais conhecera, emossionado com a existência dessa coisa chamada amor, toda felicidade e sofrimento, capaz de invadir até o coração dos príncipes.
A rainha estava jubilosa. Seria essa a forma de Deus atender às suas preces? Ela comemorou com sua filha: no Castelo de Hever, Ana Bolena contraíra a doença do suor.
- Essa é a vingança do Senhor! - exclamou a rainha para sua jovem filha. - Este é o julgamento da maldade dessa moça.
A pequena Maria Tudor, de 12 anos, ouvia a tudo de olhos arregalados, pensando em sua mãe como uma santa.
- Meu pai... ama essa mulher? - perguntou a menina.
A mãe cofiou o cabelo de Maria. Amando-a profundamente, ela agora supervisionava a educação da filha, mantendo-a o tempo todo consigo, imbuindo-a com suas próprias ideias sobre a vida.
- Ele pensa que sim, filha. Ele é um homem lascivo, isso é próprio dos homens. Não é realmente culpa de seu pai; a culpada é essa mulher.
- Eu já a vi na corte - disse Maria, olhos estreitos, imaginando Ana como a tinha visto.
"Era assim que as bruxas pareciam", pensou Maria. Tinham cabelos soltos, olhos grandes e negros, e corpos curvilíneos que amavam envolver em vermelho; as bruxas pareciam Ana Bolena!
- Ela devia ser queimada na fogueira, mãe! - decretou Maria.
- Fale baixo-aconselhou a mãe. - Não devemos dizer isso. Reze por ela, Maria. Tenha piedade dela, Maria, porque talvez neste momento ela esteja ardendo no inferno.
Os olhos de Maria brilharam: ela esperava que sim. Maria visualizou nitidamente chamas da cor do vestido da bruxa a lamber-lhe os membros alvos. Em sua imaginação, podia ouvir a voz mais melodiosa da corte implorando em vão ser libertada daquele tormento.
Maria entendia grande parte do que estava acontecendo. Essa mulher iria casar-se com seu pai. Para isso seria dito que a mãe de Maria não era esposa, e que ela, Maria, era uma bastarda. Ela sabia o significado disso. Ela não mais seria a princesa Maria Tudor; ela não mais receberia as homenagens prestadas pelos súditos de seu pai; ela jamais seria rainha da Inglaterra.
Todas as noites, Maria Tudor rezava para que seu pai se cansasse de Ana, para que a banisse da corte, para que passasse a odiá-la, confinando-a na Torre, onde deveria ser posta numa masmorra escura para passar fome e ser comida pelos ratos, para ser posta a ferros, para que seu corpo fosse torturado impiedosamente por cada lágrima que ela fizera cair dos olhos da santa mãe de Maria Tudor.
Maria Tudor tinha nela algo do pai e também algo da mãe. Da mãe herdara, talvez, o fanatismo; do pai, a crueldade e a determinação.
Certa vez sua mãe dissera:
- Maria Tudor, e se o seu pai fizesse de Ana sua rainha? Maria Tudor respondera polidamente:
- Só poderia haver uma rainha da Inglaterra, mãe.
Essas palavras haviam aquecido o coração de Catarina, que amava profunda e ternamente sua filha. Enquanto elas estavam juntas, Catarina não conhecia o desespero completo. Mas todos os seus desejos, todas as suas preces não surtiam efeito.
Quando chegaram a Henrique as notícias de que Ana se recuperara, ele abraçou o mensageiro, pediu vinho para refrescá-lo, caiu sobre seus joelhos e agradeceu a Deus.
- Ra! - disse o rei para Wolsey. - Isso é um sinal! Estou certo em meu desejo de desposar a dama; ela irá me dar muitos varões.
Pobre Catarina! Nada podia fazer senão chorar em silêncio. E então sua amargura perdeu-se em meio ao medo, pois sua filha contraíra a doença.
Ana convalesceu em Hever. Na corte continuava-se falando de Ana ao modo de sempre. Du Bellay, o perspicaz embaixador francês, brincou do seu jeito leve. Ele apostou que a doença da dama estragara-lhe a beleza em alguma medida. Tinha certeza de que durante sua ausência alguma outra teria encontrado seu caminho para o coração suscetível do rei. Chapuys, o embaixador espanhol, riu com ele e escreveu a seu mestre sobre a doença da "concubina". Galhofeiro, profetizou um fim para esse divórcio - aos olhos de Espanha - monstruoso.
Mas Henrique não esperou o término da convalescença de Ana. Como seria capaz de esperar tanto? Já fora paciente demais. Secretamente, cavalgava de Greenwich para Eltham e dali para o Castelo de Hever. Do castelo, Ana ouvia o chamado de clarim vindo de uma colina próxima e ia até lá para encontrar seu rei. Caminhavam juntos pela alameda, ou sentavam-se na câmara apainelada em carvalho enquanto Henrique contava-lhe sobre os progressos da questão do divórcio. Henrique falava-lhe de seu amor, exigia em fúria selvagem ou súplica humilde que ela lhe fizesse logo o mais feliz dos homens.
E depois que Ana superou a pestilência e retornou para a corte, Du Bellay reportou a seu governo:
"Acredito que o rei esteja tão apaixonado por Ana Bolena que agora apenas Deus seja capaz de abater sua loucura."
Thomas Wolsey, doente da alma, fingia doença do corpo. Conhecia seu senhor: sentimental como uma moça e mole como cera nas mãos furiosas de Ana Bolena.
Wolsey via agora seu declínio tão claramente como vira tantas vezes o sol se pôr. Mas, para ele, depois da chegada da noite não haveria outra alvorada.
Ele não se queixava; era sábio demais para isso. Sabia bem que cometera um erro, e onde. Ele humilhara aquela que agora tinha o ouvido do rei próximo aos lábios. E ela não era uma mulher fraca; era forte e vingativa, uma boa amiga e uma inimiga terrível. "Ah!", pensou ele, "um corvo noturno possuiu o ouvido real e distorce todas as minhas ações."
Ele não tinha nem mesmo o direito de se queixar. Lembrava-se dos dias de sua própria juventude; podia olhar para trás e ver sua vida humilde como tutor dos filhos do marquês de Dorsert. Nessa época houve um certo cavaleiro, um tal Sir Amyas Pawlet, que ousara humilhar o jovem Wolsey; e os anos tinham feito Wolsey se esquecer disso? Claro que não! Ele fez Sir Amyas Pawlet desejar ter pensado melhor antes de molestar um humilde tutor. O mesmo caso se dera com Ana Bolena e Thomas Wolsey. Wolsey podia procurá-la e dizer-lhe: "Quero explicar-lhe tudo. Não fui eu quem quis prejudicá-la. Não fui eu quem impediu seu casamento com Percy. Foi o meu rei. Nessa questão fui apenas servo de Sua Majestade." Era possível que ela, conhecida por seus impulsos generosos, o perdoasse; era possível que interrompesse seus planos contra ele; era possível... mas ela não era sua única inimiga. Seu tio, Norfolk, estava com ela nessa questão; e também o duque de Suffolk e aquele Percy de Northumberland, que a amara e ainda lamentava sua perda. Esses homens poderosos estavam fartos dos dias de Wolsey como regente.
Temia o futuro. Derrotado por este divórcio, fingia doença para apelar aos sentimentos do rei, fazê-lo apiedar-se de seu velho amigo. Escondia-se até que Campeggio, a quem o papa estava enviando de Roma, chegasse. Este era Wolsey em declínio.
Wolsey agira estupidamente no caso de Eleanor Carey. Fora essa questão que o fizera definitivamente cair em desgraça com o rei. Por causa disso, recebera um reproche como nunca ouvira antes, alguém lhe dizendo claramente que o rei não estava mais sob seu comando. O corvo da noite e seu bando de abutres observavam-no, esperando por sua morte. Ainda assim, Wolsey agira de forma obtusa e orgulhosa nesse caso de Eleanor Carey. Ela era a cunhada de Ana; quando a mulher pedira-lhe para fazê-la abadessa de Wilton - cujo posto ficara vago -, Ana, com sua bondade característica, prometera fazer seu desejo. E ele, Wolsey, arrogantemente recusara a indicação de Eleanor Carey e dera o cargo a outra mulher. Assim, a fúria de dama Ana Bolena levantara-se mais uma vez contra o cardeal. Quão amargamente ela reclamara de sua ação ao rei! Wolsey explicara que Eleanor não era adequada ao posto, tendo dois filhos ilegítimos com um padre. Sabendo disso, Henrique, cuja atitude contra os outros era rigorosamente moral, entendera o motivo da recusa. Gentilmente e com muitas desculpas pela humilhação que ela sofrera nesse caso, o rei explicou isso a Ana.
Henrique escreveu à sua amada:
"Nem por todo o ouro do mundo eu sujaria sua consciência e a minha tornando essa mulher regente de uma casa..."
Ana, que por natureza era honesta, não teve muito respeito pela consciência de seu amado; estava impaciente e demonstrou isso: insistiu que a arrogância de Wolsey não deveria passar sem punição. E Henrique, temendo perdê-la, pronto a dar-lhe qualquer coisa que ela quisesse, escreveu linhas duras para Wolsey; e essa carta mostrou ao cardeal, mais claramente do que qualquer coisa que acontecera até ali, que ele estava caminhando num terreno escorregadio, e ele não conseguia pensar em nenhuma forma de pisar com mais firmeza na estrada da simpatia real.
Agora Wolsey finalmente compreendia que aquela que tinha o ouvido do rei próximo aos lábios era de fato uma rival a ser temida. E ele, pego entre Roma e Henrique, não tinha planos; não podia ver nada resultando desse caso além de desastre. Assim, fingiu doença para dar a si mesmo tempo para preparar um plano, e, doente da alma, sentiu derrota aproximar-se rápido.
O delegado chegara de Roma e o velho Campeggio estava prestes a julgar o caso do rei e da rainha. Turbas reuniam-se nas ruas; quando a rainha Catarina era conduzida pela cidade, os moradores aplaudiamna alto, e também à sua filha Maria Tudor. Catarina, emagrecida pela preocupação, e Maria Tudor, empalidecida pela doença, eram mártires aos olhos do povo de Londres; e o rei implorava a Ana que não saísse às ruas por temer que o povo lhe fizesse algum mal.
Ana estava triste, ansiando por se libertar da estrada coberta de espinhos da ambição. Não conhecera um momento sequer de paz verdadeira desde que começara a trilhá-la.
O rei continuamente tentava forçá-la a se render, e ela estava cansada da luta que precisava empreender contra ele. E quando o julgamento estava prestes a começar, e Henrique mandou-a mais uma vez voltar ao Castelo de Hever, Ana ficou colérica.
Henrique disse, humilde:
- Meu bem, sua ausência será dura de suportar, mas meu único pensamento é vencer o nosso caso. com você aqui...
Os lábios de Ana curvaram-se cáusticos; afinal, não sabia ela que Henrique iria alegar falta de interesse por qualquer mulher que não a sua esposa? Não sabia ela que Henrique diria aos cardeais que estava agindo sob sua mais escrupulosa consciência?
Ana estava sendo infantil e não se importava com isso. Por que ela estava agindo assim, se queria o divórcio? Ela estava histérica de medo. Algumas vezes, já vendo as armadilhas que se deitavam aos pés de uma rainha, desejava fervorosamente que estivesse noiva de um homem de quem gostasse mais.
- Eu não vou voltar - disse, irracional. - Não vou voltar. Não serei mandada de um lado para o outro como um pombo-correio!
Henrique apelou à razão de sua amada.
- Querida, seja razoável! Não deseja que esse assunto chegue ao fim? Só poderei fazê-la minha rainha depois que o divórcio tenha sido completado.
Ela retornou para Hever, tendo subitamente ficado enjoada do palácio, por cujas janelas via multidões zangadas e escutava seus murmúrios:
"Ama Bolena! A puta do rei! Não queremos nenhuma Ama Bolena!" Isso era vergonhoso, vergonhoso!
- Oh, Percy! - gritou. - Por que deixou que eles fizessem isso conosco?
E isso renovou uma vez mais seu ódio pelo cardeal, tendo se convencido de que fora ele que, com seus artifícios sutis e argutos, voltara o povo contra ela.
No Castelo de Hever seu pai tratou-a com grande respeito - mais do que ele demonstrara para com Mary. Afinal Ana não iria ser a amante do rei, mas sua esposa, a rainha. Lord Rochford mal podia crer em sua boa sorte. Ele dava conselhos à filha, mas ela, irónica, rejeitava todos.
Dois meses passaram, durante os quais cartas chegaram do rei recriminando-a por não escrever para ele, assegurando-a de que ela era sua toda-adorada; e gastando linhas e linhas para garantir-lhe que agora era seguro para ela retornar à corte.
O rei suplicou com todas as suas forças. Ana repetiu suas recusas a cada súplica de Henrique.
O pai de Ana foi ter com ela.
- Seu desatino está além da minha compreensão! - disse Lord Rochford. - O rei pediu que você retornasse à corte! E você se recusa!
- Eu disse a ele que não continuarei sendo enviada para um lado e para o outro dessa forma descortês.
- Você fala como uma parva! Não compreende as questões em jogo?
- Estou cansada de tudo isso. Quando consenti casar-me com o rei, achei que seria muito mais simples.
- Quando você consentiu...!
Lord Rochford mal podia acreditar em seus ouvidos. Ela falava como se estivesse conferindo um favor a Sua Majestade. Lord Rochford estava perturbado. E se o rei se cansasse da arrogância de sua filha estúpida?
- Ordeno que você vá ! - vociferou.
Mas isso apenas fê-la rir dele. Oh, como tinha sido mais simples controlar sua filha Mary! Ele teria mandado Mary para seu quarto, ordenado que ficasse trancada lá, mas como podia agir assim com a futura rainha da Inglaterra?
Lord Rochford conhecia muito pouco essa sua filha. Manhosa, imprevisível, birrenta, sem medo de punições, ela fora desde a infância, e era assim até hoje. Temia que a qualquer momento ela dissesse ao rei que não queria mais casar-se com ele.
- Ordeno que você vá! - gritou.
Pode ordenar o quanto quiser! - E, sem refletir, acrescentou:
Não irei até que me seja arranjada uma acomodação muito boa.
Lord Rochford disse isso ao rei, e Henrique, com aquela pertinência de propósito que ele sempre demonstrava quando queria alguma coisa urgentemente, chamou Wolsey; e Wolsey, querendo redimir-se perante o rei, sugeriu o Solar Suffolk em lugar do Solar Durham, que o rei previamente colocara a seu dispor.
- Afinal, meu rei, meu próprio Solar York é vizinho ao Solar Suffolk, e não seria muito conveniente para Vossa Majestade se, enquanto a dafna estiver no Solar Suffolk, Vossa Alteza estivesse morando no Solar York?
- Thomas, esse é um plano digno de você!
A mão gorda repousou no ombro coberto de pano vermelho. Os olhinhos sorriram para os do seu cardeal; o rei estava lembrando que sempre amara esse homem.
Ana foi ao Solar Suffolk. Sua grandeza deixou-a pasma; a morada fora projetada para uma rainha. Ela teria suas damas de companhia, seu caudatário, seu capelão; ela ofereceria recepções e dispensaria patronatos à Igreja e ao Estado.
- É como se eu fosse uma rainha! - disse a Henrique, que estava lá para recebê-la.
- Você é uma rainha - respondeu apaixonado.
Agora ela compreendia. A luta estava terminada. Ele, que esperara tanto tempo, decidira não esperar mais.
Henrique disse-lhe que eles jantariam juntos informalmente no Solar Suffolk. O velho e querido Wolsey emprestara-lhe o Solar York, ao lado. Assim, ele estaria perto e poderia visitá-la sem cerimónias. Ela não achava que fora muito severa no julgamento de seu pobre e velho amigo?
O rei parecia mais jubiloso que o habitual. Ana entendeu isso, e ele percebeu que ela entendeu.
- Talvez tenhamos sido muito severos com ele - concordou Ana.
- Querida, quero que saiba que nada lhe faltará. Qualquer coisa que você teria como minha rainha, e juro que irei torná-la, será sua agora
-Pousou mãos cálidas nos ombros de Ana. -Você precisa apenas pedir o que deseja, meu amor.
- Disso eu sei.
Sozinha em seu quarto, Ana olhou a si mesma no espelho. Seu coração batia pressuroso.
- E o que você teme, Ana Bolena? - sussurrou para o seu reflexo.
- Teme que depois desta noite não haja volta? Por que deveria temer? Você é bonita. Há muitas damas na corte com feições mais perfeitas que as suas, mas nenhuma tão inebriantemente adorável, tão avassaladoramente atraente quanto Ana Bolena! O que você tem a temer? Nada! O que tem a ganhar? Você já se decidiu que será rainha da Inglaterra Não há nada a temer.
Os olhos de Ana ardiam no rosto pálido; seus lábios belos estavam firmes. Ela vergou um vestido de veludo negro; em contraste com o tecido, sua pele reluziu tanto quanto as pérolas que o adornavam.
Ana desceu até o rei, que a recebeu absolutamente pasmo. Ela estava animada agora, aquecida pela adoração de Henrique, por sua devoção apaixonada.
Ele a conduziu até uma mesa onde os criados aguardavam-nos discretamente. E este jantar tête-à-tête, que ele planejara com zelo, foi para Henrique a completa felicidade. A presunção de Ana desaparecera; ela estava mais suave. Henrique teve certeza de que sua amada se rendera; ele esperara por tanto tempo, passara por isso tantas vezes em seus sonhos, mas nada que ele imaginara, tinha certeza, seria tão maravilhoso quanto a realidade.
Tentou explicar-lhe seus sentimentos, dizer-lhe como ela o mudara, como anelara por ela, como Ana era diferente de todas as outras mulheres, de como pensar nela coloria sua vida; como, até que ela aparecesse, ele jamais conhecera o amor.
Henrique, apaixonado, era uma pessoa atraente; a humildade era uma roupa que assentava estranhamente naqueles ombros grandiosos, mas não menos bonita porque não lhe caía bem. Henrique era terno ao invés de rude, modesto ao invés de arrogante, e Ana começou a afeiçoarse por ele. Ela bebeu com mais liberdade do que era de seu costume: tinha confiança em si mesma e no futuro.
Henrique disse, quando eles se levantaram da mesa:
- Esta noite acho que serei o homem mais feliz da Terra!
Apreensivo, Henrique esperou pela resposta de Ana, mas não ouviu nenhuma. Quando falou novamente, descobriu que perdera a voz. Ele não tinha voz; ele não tinha orgulho; não tinha nada senão sua grande necessidade por ela.
Ana estava deitada nua em sua cama; vendo-a assim, Henrique ficou emudecido, paralisado, temeroso de suas próprias emoções. Mas então sua paixão falou mais alto e ele se atirou sobre ela, pondo-se a beijar o corpo branco de Ana com um sentimento que beirava o frenesi.
Ela pensou:
"Não tenho nada a temer. Se ele estava ansioso antes, ficará duplamente ansioso agora."
E enquanto jazia deitada, esmagada pelo peso de Henrique, sentindo sua alegria e êxtase, por dentro, Ana ria de alívio. Porque agora Ana não precisaria mais salvaguardar-se
de Henrique, e juntaria todas as suas forças para suportar o tormento desse divórcio até o fim.
As palavras de Henrique saíam incoerentes, mas falavam de amor, de muito amor, desejo, paixão e prazer.
- Nunca houve ninguém como você, minha Ana! Nunca, nunca, eu juro... Ana... Rainha Ana... Minha rainha...
Henrique se deitou ao lado dela, este homem enorme, seu rosto sereno e absolutamente feliz. Ana olhou para ele e soube como deveria ter sido a aparência de Henrique quando ele fora um menino muito pequeno; seu rosto estava expurgado de toda a rudeza que sempre despertara asco em Ana. E ela sentiu que devia começar a amá-lo, que quase já o amava; por impulso, inclinou-se sobre Henrique e o beijou. Ele a abraçou, rindo, e disse-lhe novamente que ela era linda, e que excedia todas as suas fantasias.
- E quantas vezes eu a possuí, minha rainha, em pensamentos! Lembra-se do jardim em Hever? Lembra-se da sua petulância? Ora, Ana! Porque eu não a possuí naquele momento e lugar, eu não sei. Nunca quis tanto uma mulher como a quis, Ana, minha rainha, minha pequena rainha branca!
Ela riu friamente, pensando:
"Logo ele estará livre, e logo eu serei realmente rainha... e depois ele jamais conseguirá viver sem mim."
- Mas eu sei porque fui tão suave com você, minha adorada. Foi porque eu a amo, e jamais poderia machucá-la. Agora você me ama verdadeiramente... não como seu rei, mas como um homem, como você mesma disse. Você me ama como eu a amo, e eu encontrarei prazer nisto, como faço agora.
E então ele se lançou a um novo frenesi de paixão. Acariciou-a e beijou-a, seus lábios no corpo alvo, suas mãos nos cabelos longos, no pescoço fino, nos seios firmes.
- Nunca houve amor como este! - afirmou Henrique da Inglaterra a Ana Bolena.
FAZIAM-SE preparativos para as festividades natalinas. Todas as moças do dormitório estavam muito empolgadas. Elas dariam uma festa esPecial em comemoração ao Natal, muito mais empolgante do que aquela realizada no grande salão para a apreciação de todos. As damas estavam atarefadas providenciando presentes para seus amantes e especulando o que iriam usar. Pobre pequena Catarina Howard! - disseram, rindo. - Ela não tem amante!
- E quanto ao galante Thomas? Viu, Catarina, como ele esqueceu você tão rápido?
Catarina pensou nisso com certa culpa; embora ela jamais fosse esquecer de Thomas, vinha pensando bem menos no menino nos últimos meses. Catarina se perguntou se Thomas pensava nela; se o fazia, evidentemente não considerava necessário que ela o soubesse.
- Não é sensato pensar em pessoas que não pensam em nós filosofou Isabel.
Nos aposentos da duquesa, onde Catarina costumava sentar-se com sua avó, a velha dama reclamava da monotonia da vida no campo.
- Queria que estivéssemos em Lambeth! Ouvi falar de coisas muito interessantes acontecendo lá na corte.
- Sim - respondeu Catarina, esfregando as costas da avó. Minha prima é agora uma dama muito importante.
- Tenho certeza de que ela é! Ah! Eu me pergunto o que Lord Henry Algernon Percy... perdão, o conde de Northumberland... tem a dizer sobre isso! Ele era importante e poderoso demais para desposála, não era? "Muito bem", disse a minha Ana, "ficarei com o rei no lugar dele." Ra! Ra! Declaro que nada me deleita mais do que saber que esse rapaz arrogante está levando uma vida muito infeliz com sua esposa. Mas isso é o que merece alguém que se considera bom demais para a minha neta.
- A neta do seu marido - lembrou-lhe Catarina uma vez mais. E recebeu um tapa no ouvido por suas palavras.
- Como eu gostaria de vê-la no Solar Suffolk! - prosseguiu a velha. - Soube que ela dá recepções diárias, como se já fosse rainha. Ela dispensa caridade, que é tarefa da rainha. Há pessoas que se levantam contra ela, porque, Catarina, sempre haverá invejosos. Ah! Como eu gostaria de ver minha neta reinando em Greenwich! Soube que a rainha está arrasada com isso, e que, no último Natal, Ana ofereceu suas festividades à parte daquelas de Catarina... o que ou chocou ou deliciou a todos. Imagine as festividades delal Imagine as da pobre Catarina! Ela própria, minha neta, o centro da atração, com George, Wyatt, Surrey e Bryan com ela. E quem poderia colocar-se contra eles? E o rei está tão apaixonado que lhe dá qualquer coisa que ela lhe pede. Ah! Como adoraria estar lá para ver! E Wolsey, aquele velho ardiloso, tremendo em seus sapatos, tenho certeza. E ele tem todos os motivos para temer. Imagine, tentar impedir que nosso senhor soberano fizesse de Ana sua rainha! Se algum dia uma mulher nasceu para ser rainha, essa mulher é a minha neta Ana!
- Eu também adoraria vê-la-disse Catarina, sonhadora. - Avó, quando iremos à corte?
- Muito em breve. Tenho planos agora. Ora, tudo que tenho a fazer é comunicar a Ana meus intentos, e ela mandará buscar-me. Ela sempre foi minha neta favorita, e sempre me pareceu que eu era a sua avó mais querida. Abençoada seja! Abençoada seja a rainha Ana Bolena!
- Deus a abençoe! - disse Catarina.
A avó fitou a menina através de olhos estreitos.
- Declaro que nunca vi ninguém tão carente de dignidade. Gostaria de ouvi-la tocar um pouco, Catarina. A música é a única coisa para a qual você parece ter alguma aptidão. Vamos, toque uma melodia para mim.
Catarina dirigiu-se ansiosamente até o seu cravo. Ela odiava coçar a avó, e odiava ainda mais que isso fosse um acompanhamento para as conversas fúteis de que ela gostava.
A duquesa, pés batendo ritmicamente no chão, prestava pouca atenção à música; seus pensamentos estavam longe, em Greenwich, em Eltham, em Windsor, no Solar Suffolk, no Solar York. Viu sua linda neta comportando-se como uma rainha nesses lugares; viu o rei, humilde em seu amor; a cor, a música, as roupas garbosas, os bailes de máscara; o terror daquele homem Wolsey a quem ela sempre odiara; e Ana, a mulher mais adorável do reino, rainha da corte.
Estar lá! Ser uma das favoritas da favorita do rei! "Minha neta, a rainha." Vê-la de vez em quando, adorável, cheia de vida; pensar nela, amada ardorosamente pelo rei; talvez fazer amizade com o próprio rei, porque ele seria gentil com todos os amados por sua adorada; e Ana sempre tivera um apreço por sua avó velha, preguiçosa e amante de escândalos... ainda que fosse apenas a esposa de seu avô!
- Eu devo ir a Lambeth! - disse a duquesa.
E a pequena Catarina receberia um lugar na corte, ela pensou... Acompanhante de sua prima, a rainha. Por que não? Assim que o processo do divórcio fosse resolvido, ela iria para Lambeth. E decerto não faltava muito agora; o processo vinha se arrastando há mais de dois anos; e agora que os olhos do rei estavam sendo abertos para a maldade daquele Wolsey, decerto não duraria muito tempo.
Sim, a pequena Catarina ganharia um lugar na corte. Mas como era inadequada a essa grande honra! "Ana, minha filha", pensou ela, "na idade de Catarina você estava na corte francesa, uma pequena dama encantando a todos que a viam, tenho certeza, com sua graça, encanto e roupas deliciosas e a forma como você as usava. Ah, Catarina Howard! Você nunca será uma Ana Bolena; ninguém haveria de esperar isso. Veja só essa criança, debruçada sobre o seu cravo."
Mesmo assim, ela não era de todo desprovida de atrativos; já tinha um ar de mulher. O corpo pequeno possuía aquela aparência voluptuosa que indicava que iria florescer prematuramente. Mas Catarina tinha um jeito descuidado, e era isso que enraivecia a duquesa. Que direito Catarina Howard tinha de parecer desmazelada! Ela vivia na morada palaciana de uma duquesa; estava aos cuidados das damas de companhia dessa duquesa. Alguma coisa precisava ser feita quanto a essa menina Mas a duquesa, no fundo, sabia que era ela mesma a culpada; afinal não fora ela que tomara para si a responsabilidade sobre sua educação e depois se esquecera disso? De súbito sentiu uma raiva imensa de Catarina, e levantando de sua cadeira deu um tapa na lateral da cabeça da menina.
Catarina parou de tocar e olhou para cima, espantada. O golpe não a abalara muito; a duquesa esbofeteava-a frequentemente e não havia muita força em seus músculos flácidos.
- Você é uma vergonha! - vociferou a velha.
Catarina não compreendeu. Tocar instrumentos musicais era uma das poucas coisas que ela sabia fazer realmente bem. Não sabia que a duquesa - pensamentos bem longe, lá no Solar Suffolk, onde outra neta era uma rainha em tudo menos no título - não ouvira uma só nota do que ela tocara. Catarina pensou que ela havia tocado mal, pois como poderia adivinhar que a duquesa estava comparando-a com Ana e se perguntando se poderia mandar para a corte uma menina tão desprovida de educação?
- Catarina Howard, você é uma vergonha para esta casa! - sentenciou a duquesa, tentando convencer a si própria de que não tinha culpa por anos de negligência. - O que pensaria a rainha Ana se eu pedisse para você um lugar na corte? Ela certamente concederia esse lugar, visto que o pedido partira de mim. Mas o que ela pensaria quando finalmente eu a apresentasse a sua., sua prima? Olhe para o seu cabelo! Você está ficando grande demais para as suas roupas, e seus modos são uma desgraça! Declaro que vou dar-lhe uma sova como você nunca recebeu, sua maltrapilha ignorante! E, pior, parece-me que se você fosse menos indolente, seria uma menina muito bonita. Agora devemos iniciar sua educação com toda pressa. Vamos acabar com a maré mansa dos seus dias. Você irá trabalhar, Catarina Howard, e se não o fizer, terá de responder a mim. Entendeu o que eu disse?
- Entendi, avó.
A duquesa tocou um sino; uma aia apareceu.
- Traga-me imediatamente o jovem Henry Manox.
A aia obedeceu. Pouquíssimo tempo depois Manox fazia uma mesura diante da duquesa. Era um rapaz com o cabelo cortado numa franja um pouco longa sobre a fronte, mas com um porte elegante, que, em conjunto com um par de olhos
negros audaciosos, faziam-lhe uma criatura muito atraente.
- Manox, esta é a minha neta. Temo que ela necessite de muito aprendizado. Agora quero que você se sente diante do cravo e toque um pouco.
Ele lançou para Catarina um sorriso que parecia sugerir que eles iam se tornar amigos. Catarina, sempre disposta a responder a intenções de amizade, retribuiu o sorriso. Ele se sentou e tocou com excelência, tanto que Catarina, amando música como amava, ficou deliciada e bateu palmas quando ele terminou.
- É assim, menina! - disse a duquesa. - É assim que eu quero que você toque. Manox, você será o professor de minha neta. Dê-lhe uma lição agora.
Manox levantou-se e fez uma mesura. Caminhou até Catarina, fez outra mesura, pegou sua mão e conduziu-a até o cravo.
A duquesa observou-os. Gostava de ver jovens. Havia alguma coisa deliciosa neles; seus movimentos eram muito graciosos. Particularmente, ela gostava de rapazes, tendo, desde o berço, uma preferência por eles. Ela lembrou sua própria juventude. Nessa época ela tivera um mestre de música maravilhoso. Não houvera nada de pernicioso nessa admiração, claro; ela soubera cuidar de sua dignidade desde muito jovem. Ainda assim fora agradável ser ensinada por um rapaz tão bonito; e ele passara a gostar muito dela, embora ela sempre o tenha mantido em seu lugar.
Lá estavam sentados eles, as duas crianças - afinal, ele era pouco mais que um menino em comparação com sua idade avançada -, e juntos eles pareciam mais atraentes do que separados. "Se Catarina não fosse tão jovem", pensou a duquesa, "eu teria de observar Manox. Creio que ele tem uma reputação terrível e é ávido por aventuras com jovens damas."
Observando sua neta tomando uma lição, a duquesa pensou:
"De agora em diante eu supervisionarei pessoalmente a educação da menina. Afinal de contas ser prima da rainha significa muito. Quando a oportunidade chegar, ela deverá estar pronta para agarrá-la."
Então, sentindo-se virtuosa, a devoção de avó crescendo em seu íntimo, disse a si mesma que, embora Catarina fosse meramente uma criança, ela não iria permitir que ela ficasse a sós com um jovem com a reputação de Manox; as lições deveriam ocorrer sempre neste quarto, sob sua supervisão.
Pela milionésima vez, a duquesa disse a si própria que a jovem Catarina Howard tinha muita sorte de estar sob seus cuidados. A prima de uma rainha precisa ser tratada carinhosamente; afinal, quem pode prever que honras a aguardam?
Ana estava sendo vestida para o banquete. Suas damas rodeavamna, adulando-a.
Estou feliz?, perguntou a si própria, enquanto seus pensamentos regrediam ao ano anterior, que a vira ascender à glória, e que mesmo assim fora repleto de decepções, apreensões e até mesmo temores.
Ela mudara; ninguém sabia disso melhor do que ela própria. Ana Bolena tornara-se dura, calculista. Não era mais a mesma menina que amara Percy com tanta profundidade e audácia. Ela estava menos simpática, sentindo ódios desabrochando em seu coração. Além disso, vinha desenvolvendo um estado de espírito que lhe era completamente novo: predisposição à vingança.
Ela rira ao ver Percy. Ele mudara. Em vez daquele rapaz belo e delicado que ela amara, Percy agora era uma pessoa ainda mais frágil, sofrendo de alguma doença indefinida. E seu rosto transparecia tanta infelicidade que ela deveria chorar por ele. Mas ela não chorou. Em vez disso deixou escapar uma gargalhada amarga, pensando:
"Seu idiota! Você causou isso a si próprio. Você destruiu sua vida... e a minha junto. E agora está sendo castigado pelos seus atos... enquanto eu, sou recompensada!"
Mas ela estava sendo realmente recompensada? Estava começando a conhecer bem o seu amante régio. Ela podia comandá-lo. com sua beleza e argúcia - que não tinham par em toda a corte - tinha feito de Henrique seu escravo. Mas quanto tempo permanece fiel um homem que é mais polígamo que a maioria? Essa era uma questão que de vez em quando atormentava Ana. Ela já sentia uma mudança na atitude de Henrique para com ela. Ah, claro, ele estava profundamente apaixonado, ávido por agradá-la, ansioso por concretizar cada pequeno desejo que ela expressava. Mas quem agora era o culpado pela demora, Ana ou Henrique? Henrique desejava o divórcio; ele queria imensamente remover Catarina do trono e colocar Ana em seu lugar, mas estava menos ansioso por isso do que Ana. Ana era sua amante; ele podia esperar para torná-la sua esposa. Era Ana quem precisava lutar contra a demora, que precisava temer, que precisava lamentar sua virtude perdida, que precisava perguntar a si própria:
O papa algum dia concordará com o divórcio?
Algumas vezes seus pensamentos deixavam-na frenética. Ela se rendera, apesar de sua promessa de que jamais se renderia. Ela se rendera diante da promessa do rei em torná-la sua rainha; sua irmã Mary não obtivera nenhuma promessa. Onde estava a diferença entre Ana e Mary, considerando que Mary vendera-se por riquezas e, Ana, por uma coroa! Ana imaginava-se retornando para casa derrotada, ou talvez casada com alguém tão desprezível quanto William Carey.
Henrique concedera a Thomas Wyatt o posto de Supremo Delegado de Calais, que o mantinha afastado da Inglaterra a maior parte do tempo. Ana gostava dessa faceta da personalidade de Henrique; ele amava alguns de seus amigos, e Wyatt era um deles. Ele não mandara Wyatt para a Torre - o que teria sido muito fácil -, mas encontrara um meio de afastá-lo... Ah, sim, Henrique podia ser sentimental nos casos que envolviam alguém que ele realmente amava, e Henrique amava Thomas.
Quem não amaria Thomas?, perguntou-se Ana, e chorou um pouco.
Ana agora tentou pensar clara e honestamente sobre o último ano. Fora um ano bom? Fora... claro que fora! Como ela podia dizer que não se divertira... ora, ela se divertira imensamente! Orgulhosa e petulante como ela, claro que só podia se divertir vendo todos tratarem-na com deferência. Ciente de sua beleza, o que ela podia fazer senão querer exibi-la? A rainha Catarina decerto considerava isso vaidade; então o orgulho de ser quem ela era chamava-se vaidade? Como ela não poderia deleitar-se com os banquetes nos quais ela era aclamada como a luz brilhante, a estrela, a mais bela, a mais realizada das mulheres, a amada do rei?
Ela possuía inimigos, o cardeal o primeiro entre eles. Seu tio Norfolk era externamente seu amigo, mas ela jamais poderia gostar desse homem e confiar nele, e acreditava que ele estava irritado pelo rei não ter preferido favorecer sua filha, Mary Howard, que era muito mais bem-nascida do que Ana Bolena. Suffolk! Esse era outro inimigo, e Suffolk era uma pessoa perigosa e cruel. Os pensamentos de Ana retornaram aos dias e noites tempestuosos no Castelo de Dover, quando Maria Tudor falara-lhe sobre a magnificência de um certo Carlos Brandon. E aqui estava ele, este homem cruel e ambicioso! Homem astuto, casara-se com a irmã do rei e pusera-se bem próximo ao trono. E como uma repentina virada do destino pusera Ana ainda mais perto do trono, ele a tomara como inimiga. Esses pensamentos eram assustadores.
Como ela se sentira feliz dançando com o rei em Greenwich no último Natal, rindo na cara daqueles que a criticavam por promover recepções em Greenwich em desafio à rainha. Maldita rainha, que tão obstinadamente recusara-se a ir a um convento e admitir que consumara seu casamento com Arthur! Ela dançara magnificamente, tecera comentários jocosos sobre a rainha e a princesa, e demonstrara sua supremacia sobre elas. E depois... depois odiara-se por isso, embora não tivesse admitido esse ódio a ninguém além do reflexo que a fitava açusadoramente de seu espelho.
A princesa odiava Ana e não se dava ao trabalho de ocultar o fato. Assim como não hesitara em dizer, a pessoas dispostas a conduzir suas palavras aos ouvidos de Ana, o que ela, se fosse rainha, faria à amante do rei.
- Iria aprisioná-la na Torre, e lá torturá-la. Veríamos o quanto restaria da beleza de Ana Bolena depois que os carnífices tivessem trabalhado nela! Eu mesma operaria o ecúleo. Quando os ratos descessem ao poço para roer-lhe os ossos e mordê-la até a morte, será que Ana Bolena faria seus comentários espirituosos? Mas eu não iria deixá-la morrer dessa forma; iria queimá-la viva. Ela não é nada senão uma bruxa, e ouvi dizer que anda em companhia dos seguidores da nova fé. Arre! Eu iria empilhar
os cepos a seus pés e vê-la arder, e antes que ela tivesse morrido, tirá-la-ia da estaca para poder queimá-la de novo, e de novo, dando-lhe de provar, na Terra, o que decerto a aguarda no Inferno.
Os olhos da princesa, já ardendo de um fervor fanático, fixavam-se odiosos em Ana. Ana ria dessa menina boba e fingia-lhe indiferença. Mas esses olhos assombravam-na quando estava acordada e adormecida. Porém, ainda que professasse desprezo e ódio pela garota, Ana compreendia muito bem o que sua chegada representara para Maria Tudor, princesa da Inglaterra, que desfrutara dos privilégios de ser filha de seu pai. Agora o rei tentava reduzi-la a mera bastarda, de importância ainda menor do que o duque de Richmond que, ao menos, era um rapaz. Deitada nos braços do rei, Ana queixou-se da princesa.
- Eu não serei tratada dessa forma por ela! Eu juro. Na corte não há espaço para nós duas.
Se por um lado Henrique tranquilizou Ana, por outro, defendeu Maria Tudor. Sua veia sentimental evidenciava-se quando ele pensava na filha. Henrique não era desprovido de afeto por ela, e muito embora ansiasse por um filho, tornara-se - antes da perspectiva de divorciar-se de Catarina, quando Ana ainda jurava que jamais seria sua amante - apegado à menina.
Ana disse ao rei:
- Voltarei a Hever. Não ficarei aqui para ser insultada dessa forma.
- Não permitirei que retorne a Hever, meu bem - retrucou Henrique. - O seu lugar é aqui comigo.
- Não obstante, a Hever irei - insistiu Ana, fria.
O medo de que Ana o abandonasse era uma ameaça constante à tranquilidade de Henrique, e ele não poderia suportar tê-la longe de suas vistas. Dessa forma, ameaçando deixá-lo, Ana mantinha-o sob seu controle.
Quando Maria Tudor caiu em desgraça com o pai, houve aqueles que, penalizados pela jovem, acusaram Ana de ser vingativa demais. Achavam o mesmo de sua atitude para com Wolsey. Era verdade que ela não se esquecera do menosprezo com que fora tratada pelo cardeal, e que o perseguia incansavelmente, determinada em derrubá-lo da posição elevada na qual se alojara. Talvez aqueles que acusavam Ana esquecessem de que ela travava uma batalha desesperada. Por trás de toda a riqueza e poder, toda admiração e afeto que o rei vertia sobre ela, Ana era atormentada pelos boatos que corriam à boca pequena pelo povo, pelos planos maliciosos de seus inimigos que neste mesmo instante tentavam arruiná-la. Os principais desses inimigos eram Wolsey e a princesa Maria Tudor. Portanto, o que Ana poderia fazer senão lutar contra essa gente? Se neste momento ela tinha em seu poder a mais eficaz das armas, meramente usava-a, assim como Wolsey e Maria Tudor teriam feito em seu lugar.
Mas os triunfos de Ana eram-lhe amargos. Afeita por ser admirada e querida, Ana não desejava ter inimigos. Wolsey e ela, embora fingissem amizade, sabiam que ambos não poderiam manter as posições elevadas que tinham lutado para alcançar; um deles precisaria sair. Ana lutava com tanta tenacidade quanto o cardeal, e como a estrela de Wolsey punha-se enquanto a de Ana se erguia, ela sabia que estava vencendo. Havia poucas evidências de uma rixa entre os dois; uma das mais significativas fora o confisco de um livro de propriedade de Ana. O volume fora achado em posse de seu cavalariço, o jovem George Zouch. Para o descontentamento do cardeal, Ana já era conhecida como uma das pessoas interessadas na nova religião que começava a tornar-se um assunto de certa relevância no continente. Ao saber disso, um dos reformadores presenteara-lhe com a tradução de Tindal para as escrituras sagradas. Ana lera o texto e discutira-o com seu irmão e alguns de seus amigos. Considerando-o de grande interesse, emprestara-o a uma das damas favoritas de seu séquito. Dama Gaynsford era uma moça inteligente, e Ana considerou que a leitura seria de seu interesse. Contudo dama Gaynsford encontrava-se enamorada por George Zouch e este, certo dia, para provocá-la, aproximara-se sorrateiramente enquanto ela lia e roubara-lhe o livro. Ela pedira o volume de volta, mas, em vez disso, ele levara-o para a capela do rei. Ali, durante a missa, abrira o livro e, absorvido por seu conteúdo, atraíra a atenção do pároco, que exigira ver o volume. Ao descobrir que se tratava de uma obra proibida, o pároco não tardara a comunicar o ocorrido ao cardeal Wolsey. Terrificada com o curso dos eventos, dama Gaynsford procurara o auxílio de Ana; esta, sempre disposta a reclamar do cardeal, dissera ao rei que Wolsey confiscara seu livro e exigira devolução imediata. O livro fora prontamente devolvido a Ana.
- Que livro é esse que causa tanto alvoroço? - quisera saber Henrique.
- Você deveria lê-lo - respondera Ana, e então acrescentara: Eu insisto!
Henrique prometeu ler o livro, e o fez. O cardeal ficou desconcertado em descobrir que Sua Majestade estava tão interessada quanto ficara o jovem George Zouch. Essa foi uma derrota profundamente significativa para Wolsey.
"O ano que passou foi muito triste para o cardeal", refletiu Ana olhando-se no espelho enquanto a coifa era fixada sobre sua cabeça.
O resultado do julgamento fora lamentável. Será que um dia conseguiremos o divórcio?, perguntou-se Ana. O papa estava irredutível.
- "Ama" Bolena jamais será nossa rainha! - clamava o povo. Henrique dissera muito pouco sobre o que acontecera em Blackfriars Hall, mas Ana sabia alguma coisa sobre esse fiasco. Sabia do comparecimento de Catarina à corte, onde ajoelhara-se diante do rei, pedindo por justiça. Ana podia imaginar a cena: a atmosfera solene, as janelas deixando passar filetes do sol de maio, o rei impaciente com os procedimentos, o taciturno Wolsey orando para que o rei se curasse de seu amor por Ana Bolena e desistisse dessa loucura, o velho e amargo Campeggio procrastinando, sem qualquer intenção de conferir um veredicto. O rei fizera um discurso longo sobre sua consciência escrupulosa e de como - os lábios de Ana curvaram-se em desprezo - ele não pedia o divorcio por força de seus desejos carnais, porque a rainha agradava-o tanto quanto qualquer mulher, mas por causa de sua consciência... sua consciência... sua consciência mui escrupulosa...
E o julgamento arrastara-se durante os meses de verão, até Henrique - pressionado pela própria Ana-exigir uma decisão. Assim, Campeggio fora forçado a fazer uma declaração, na qual expusera sua intenção que, claro, era não conceder o divórcio. Para a ira extrema de Henrique, ele alegara a necessidade de consultar seu senhor, o papa Nesse momento, Suffolk decidira declarar uma guerra aberta contra o cardeal, tendo se levantado e gritado:
- Enquanto tivermos cardeais entre nós, a Inglaterra jamais será feliz!
E, num acesso de raiva, o rei trovejou para fora da sala, amaldiçoando o papa, o atraso, Campeggio e, com ele, Wolsey, a quem estava quase pronto a considerar um comparsa de Campeggio. Os pensamentos de Ana concentraram-se nos dois homens que, antes considerados obscuros, tinham no ano anterior saltado para a proeminência - os dois Thomas: Crowell e Cranmer. Ana gostava de ambos, em quem ela e Henrique punham grandes esperanças. Cranmer distinguira-se devido às suas visões inovadoras, particularmente nesta questão do divórcio. Ele era diplomático e discreto, inteligente e culto. Como dom, tutor, padre e catedrático de Cambridge, estava interessado
no luterismo. Ele sugerira que, nessa questão do divórcio, Henrique deveria apelar às cortes eclesiásticas inglesas em vez de às de Roma; ele expressou essa opinião constantemente, até que ela foi levada ao conhecimento de Henrique.
Henrique, ansioso por escapar dos mestres de Roma, estava disposto a receber de braços abertos qualquer um que pudesse manejar uma faca para cortar as amarras que o prendiam. Ele gostou do que Cranmer lhe disse.
- Por Deus! - bradou Henrique. - Eis aí um homem muito sensato!
Mandaram chamar Cranmer. Henrique era inteligente quando concentrava seus pensamentos num assunto, e nunca pensara tanto em algo quanto na questão do divórcio. Wolsey, ele sabia, estava compromissado com Roma, pois Roma enredara o cardeal com seus fios pegajosos como uma aranha faz com uma mosca em sua teia. O rei estava precisando de novos homens para tomarem o lugar de Wolsey. Não poderia haver outro Wolsey, disso ele tinha certeza; mas será que ele não encontraria um número suficiente de homens aptos para que, juntos, carregassem o fardo que Wolsey suportara sozinho? Depois de conversar com Cranmer algumas vezes, Henrique viu grandes possibilidades nesse homem. Era obediente, dócil, leal; ele seria de um valor inestimável para um Henrique que perdera seu Wolsey para a teia de Roma.
Em seguida os pensamentos de Ana concentraram-se no outro Thomas: Cromwell. Cromwell era um homem do povo, exatamente como Wolsey fora, mas com uma diferença. Cromwell
portava as marcas de sua origem e não podia escapar delas. Wolsey, o intelectual, escapara, embora houvesse aqueles que dissessem que havia sinais de seu berço pobre na sua paixão pelo esplendor, e em suas exibições vulgares de riqueza. (Mas, pensou Ana, rindo para si mesma, não nutria o rei um prazer ainda maior por esse tipo de ostentação?) Entretanto Cromwell rude, impérvio a insultos, com seus olhos de peixe e mãos geladas-não podia ocultar suas origens e pouco tentava fazê-lo. Ele estava servindo Wolsey com grande competência, deplorando a falta de gana do cardeal por lutar. Mas Cromwell não era um homem simpático; embora Henrique visse grandes possibilidades nele, isso incomodava-o imensamente.
- Eu não amo esse homem! - disse Henrique a Ana. - Por Deus! Há um ar de sarjeta a seu redor. Sinto asco dele. Ele é um plebeu!
Na natureza de Henrique havia um lado peculiar que nascia de seu amor quase infantil e admiração por certas pessoas, que o fazia tentar defendê-las mesmo quando planejava sua destruição. Ele tinha esse tipo de afeição por Wolsey, Wolsey o sábio, em suas belas casas, em suas lindas roupas; gostava de Wolsey como um homem. Mas desse Cromwell ele jamais iria gostar, por mais útil que fosse; por mais útil que prometesse vir a ser. Cromwell era cego à humilhação; trabalhava duro e aceitava insultos; era inteligente; ajudara Wolsey, aconselhando-o a favorecer os amigos de Ana; aplacara Norfolk, e assim garantira uma cadeira no Parlamento. Será que sempre haveria homens para surgir do nada e substituir outros quando o rei precisasse disso? E se ela própria perdesse o favor do rei? Era muito mais simples substituir uma amante do que um Wolsey...
A linda Anne Saville, a dama de companhia favorita de Ana, confidenciou que tinha notado que Ana estava preocupada naquela noite. Ana respondeu que de fato estava, e que estivera pensando nos eventos do ano anterior.
Anne Saville penteou os lindos cabelos de Ana Bolena.
- Foi um ano grande e glorioso para a senhora
- Foi? - retrucou Ana, rosto tão sério que Anne fitou-a em alarme súbito.
- Mas decerto - disse a garota. - Muitos passaram para o lado da senhora, e o rei parece mais apaixonado a cada dia que passa.
Ana segurou a mão de sua dama de companhia e apertou-a durante algum tempo; gostava muito dessa jovem.
- E a senhora está mais linda a cada dia-disse Anne Saville, com toda honestidade. - Não há na corte mulher que não desse 10 anos de sua vida para trocar de lugar com a senhora.
No espelho, a coifa brilhava como uma coroa dourada. Ana sentiu seu corpo tremer um pouco. No grande salão ela estaria mais alegre do que qualquer outra pessoa, mas aqui em cima, longe da multidão que reunia frequentemente, Ana Bolena temia a noite que a aguardava, e não ousava pensar muito à frente dela.
Ana estava pronta; agora ela iria descer. Deu uma última olhada em seu reflexo - agora o reflexo de Lady Ana Rochford, pois recentemente seu pai fora consagrado conde de Wiltshire, George tornarase Lord Rochford, e ela mesma não era mais apenas Ana Bolena. Os Bolena tinham chegado muito longe, pensou Ana. Então lembrou-se de George, sempre rindo, sendo visto triste apenas quando flagrado em repouso.
Pensar em George ajudava Ana a espantar a inquietude e recuperar a crença de que viver perigosamente era melhor do que viver sem aventuras.
Os pensamentos por George eram agradáveis. com uma pontada de tristeza, ela percebeu que dentre todos os amigos-com o rei à frente
- que juravam que morreriam por ela, havia apenas um em quem realmente podia confiar. Entre as pessoas que lhe eram mais chegadas havia seu pai, seu tio Norfolk, o homem que iria ser seu marido... mas nas ocasiões em que o medo aparecia e se punha ameaçadoramente à sua frente, era em seu irmão que ela pensava.
- De fato não há nenhum outro como George! - costumava dizer. Graças a Deus por George, disse Ana para seus botões, e dispensou seus pensamentos sombrios.
No grande salão, o rei aguardava para saudá-la. Henrique estava magnífico em seu trajes favoritos, marrons, acolchoados e cravejados de jóias. Maior do que qualquer homem no recinto, corado pelo esforço da caçada que empreendera durante o dia, e enrubescendo ainda mais ao descansar seus olhos em Ana Bolena.
- Parece-me que não a beijo há tempos! - disse o rei.
- Foi apenas uma questão de horas, garanto - respondeu Ana.
- Não existe ninguém como você, Ana.
Esta noite Henrique estava determinado a mostrar seu grande amor por Ana, que recentemente queixara-se do desrespeito com que vinha sendo tratada pela rainha e pela princesa.
Henrique dissera a Ana:
- Por Deus! Porei um fim à sua obstinação. Elas devem prostrar-se de joelhos diante de você, querida, ou sentir o gosto do meu descontentamento!
A princesa iria ser separada de sua mãe, e ambas seriam banidas da corte. Na noite anterior Henrique dissera-se farto das duas; cansado da obstinação religiosa da rainha, que se prendia às suas mentiras e recusava ingressar num convento, assim facilitando as coisas para o rei; cansado da filha rebelde que recusava comportar-se e ainda assim se julgava merecedora de receber o afeto do pai - logo ela, que não era mais do que uma bastarda.
- Eu lhe digo, Ana - pronunciara o rei, lábios nos cabelos da amada. - Estou cansado dessas mulheres.
Ana respondera:
- Será que eu preciso dizer o mesmo?
E Ana pensara: "As duas vão querer ver-me ardendo no inferno. Não que eu as culpe por isso; afinal, que bem lhes fiz? Mas não posso suportar mais sua postura de superioridade. Elas queimam em desejo por vingança, e oram para que a justiça seja feita para mim; rezam a Deus para colocar-me em tormento. Um desejo pecaminoso de vingança é algo que eu sei perdoar, mas não quando é oculto sob um manto de devoção e pretensa justiça... jamais! Jamais! Portanto, lutarei contra essas duas, e não farei nada para facilitar-lhes a vida. Eu sou uma pecadora; elas também. Os pecados não se tornam menos fétidos quando embrulhados em religiosidade."
Mas Ana não falou nada disso a seu amante que, afinal de contas, também era propenso a usar esse mesmo manto de devoção para encobrir seus pecados. Quando fosse confessar esta noite o que fizera na noite passada, Henrique diria:
- Fiz pela Inglaterra, porque preciso ter um filho!
Olhos pequeninos, cheios de luxúria; mãos nervosas; o desejo urgente de possuí-la de novo, e de novo. E Ana o fazia, não para dar prazer ao rei, mas para dar à Inglaterra um filho!
Não era de admirar que algumas vezes, nas primeiras horas da manhã, quando ele estava deitado a seu lado, roncando, a mão pousada suave sobre seu corpo, Henrique sorria no sono, o sorriso da recordação, murmurando o nome de Ana. Não era de admirar que nesses momentos Ana pensasse no belo rosto do irmão, e murmurasse para si mesma:
- George, leve-me para casa! Leve-me para Blickling, não para Hever, porque em Hever eu veria o jardim de rosas e pensaria em Henrique. Mas leve-me para Blicking,
onde nós moramos juntos quando éramos muito novos... e onde eu nunca sonhei em ser rainha da Inglaterra.
Mas ela não podia voltar atrás agora Ela precisava seguir em frente.
"Eu quero continuar! Eu quero continuar! O que é o amor, afinal? É apenas algo etéreo, que você não pode segurar; é algo transiente, que você não pode guardar. Mas uma rainha é sempre uma rainha. Seus filhos são reis. Eu quero ser uma rainha, claro que quero ser uma rainha! É apenas nos momentos de depressão mais profunda que eu sinto medo."
A aflição que atormentava Ana Bolena evidentemente não diminuiu quando o rei, a despeito de estar rodeado por tantos gentis-homens e damas, pressionou seu corpo imenso contra o dela para mostrar o quanto estava impaciente pela noite.
Naquela noite Henrique iria mostrar-lhe o quanto a amava. Faria com que todas essas pessoas prestassem homenagem a essa linda jovem que tanto o agradara, que continuava a agradá-lo, e que, não fosse pelo destino cruel na forma de um papa fraco, uma rainha obstinada e um par de cardeais falaciosos, ele ainda não conseguira fazê-la sua rainha.
Henrique faria com que ela assumisse precedência sobre as duas damas mais nobres presentes: a duquesa-mãe de Norfolk e sua própria irmã de Suffolk.
Ana percebeu que essas damas não gostaram disso, mas, repentinamente, viu-se despojada de qualquer temor. Por que ela devia se preocupar com o que pensavam essas mulheres? O que importava o que elas pensavam? Ana Bolena tinha o amor do rei e nenhum de seus inimigos ousava opor-se abertamente a ela.
A irmã do rei? Ela estava envelhecendo agora; era muito diferente da jovem que atormentara o pobre Luís, alternando-se entre seu desejo de desposar um rei da França e casar-se com Brandon; não lhe restava nada senão ambição; e ambição pelo quê? Sua filha, Francês Brandon? Mary de Suffolk queria sua filha no trono. E agora aqui estava Ana Bolena, jovem e cheia de vida, apenas esperando pelo divórcio para dar ao rei muitos filhos e assim estabelecer uma distância maior entre Francês Brandon e o trono da Inglaterra.
E a condessa de Norfolk? Ela, assim como o seu marido, guardava rancor de Ana porque o rei escolhera-a em vez de sua filha, Lady Mary Howard. A duquesa sentia raiva da amizade de Ana com a augusta duquesa-mãe de Norfolk.
"O que isso me importa? O que eu tenho a temer?"
Nada! Porque o rei estava olhando para ela com desejo profundo; porque ele não podia suportar o pensamento de viver sem ela. Para banir essas damas arrogantes da corte, Ana precisaria apenas ameaçar deixar Henrique.
Assim, Ana Bolena comportou-se com ousadia e petulância, e ostentou sua supremacia sobre todos aqueles que não gostavam dela. Ana Rochford, amacia do rei, patrona dos banquetes, agora tomando precedência sobre a dama mais nobre do país, como se já fosse a rainha.
Ela vira a condessa Chateau-briant e a duquesa DEstampes serem tratadas como princesas pelo pequeno Claude na corte de Francis. E assim devia ser ela tratada por essas petulantes duquesas de Norfolk e Suffolk; sim, e por Catarina de Aragão e sua filha Maria Tudor!
Obviamente, havia uma grande diferença entre as damas francesas e a dama Ana Rochford. Elas tinham sido meramente as amantes do rei da França; a dama Ana Rochford iria ser a rainha da Inglaterra!
Em sua cadeira, a duquesa-mãe de Norfolk cochilava; seu pé meneava automaticamente, mas ela não estava prestando atenção no casal tocando cravo. Estava pensando na corte e na paixão do rei por aquela dama formosa, sua querida neta. "Ah! E o astuto Thomas agora tem seu condado e tudo que acompanha o título. Decerto ele está muito satisfeito, porque o dinheiro significa para Thomas mais do que qualquer outra coisa. E sua neta é a Lady Ana Rochford, enquanto George se encontra em excelentes termos com o rei... embora não com sua esposa! Pobre George! Uma pena que ele não possa divorciar-se. Por que não arranjar uma princesa para seu irmão desposar, Ana, minha rainha? Hein? Claro que você é rainha! Ela certamente cuidará de George... aqueles dois são mais unidos que carne e unha. Ah, como eu queria que ela mandasse pegar-me! Aposto que faria isso se soubesse como estou ansiosa por ir... E se eu mandasse um mensageiro... Ah! A corte, os bailes... ainda que eu já seja um pouco velha para esses prazeres. Ficaria encantada se ela viesse visitar-me em Lambeth... Ficaríamos sentadas nos jardins, e eu pediria para que ela me falasse do rei... Minha neta, rainha da Inglaterra! Minha neta... rainha Ana.."
A velha estava adormecida, e Henry Manox, percebendo isso, lançou sobre o ombro um olhar arguto para Catarina.
- Sim! - disse Catarina. - Pode haver coisa melhor? Aproximando-se de Catarina, ele disse:
- Isso foi perfeito!
Catarina ruborizou de prazer. Ele notou a pele delicada, os cílios longos, os encantadores cachos castanhos a cair-lhe sobre a fronte. Sua juventude era excitante; ele nunca fizera amor com alguém tão jovem; e ainda assim, apesar de sua juventude, Catarina já mostrava sinais de um desabrochar prematuro.
- Jamais gostei tanto de ensinar alguém como gosto de ensinar a você - sussurrou.
A duquesa roncou baixo.
Catarina riu, e Manox juntou-se a ela no riso. De repente ele se inclinou para a frente e beijou a ponta do nariz da moça. Catarina sentiu um arrepio agradável; fora excitante por ter sido feito enquanto a duquesa dormia; e ele era bonito, com seus olhos negros e audazes. Além disso, Catarina sentia-se envaidecida por ser admirada por alguém tão mais velho do que ela. Depois dos reproches de sua avó, era gratificante ser tratada como uma mulher muito bonita.
- Fico feliz por ser uma boa aluna.
- Você é uma aluna excelente! - disse ele. - Estou muito feliz por ser seu professor.
- Sua Graça, minha avó, acha que sou estúpida.
- Então é Sua Graça, sua avó, que é estúpida! Catarina arqueou os ombros, rindo.
- Por isso, senhor, entendo que não me considera estúpida.
- Decerto não. Mas jovem, muito jovem, e com muito ainda por aprender.
A duquesa acordou de supetão, e Catarina começou a tocar.
- Ela está melhor, não está, Manox? - perguntou a duquesa.
- com toda certeza, Sua Graça, ela está!
- Considera que sua pupila tem potencial?
- Vasto, madame.
- Eu também. Agora você pode ir, Catarina. Manox, fique um pouco comigo para conversarmos.
Catarina saiu. Ele permaneceu e conversou um pouco com a duquesa. Falaram sobre música, não tendo nada em comum além disso. Mas a duquesa não se importava com o que seus rapazes falassem, contanto que falassem e a distraíssem. Era de sua juventude que ela gostava. Estar em contato com homens jovens fazia-lhe bem à vaidade.
E enquanto Manox falava com ela, a duquesa vagou de volta para os dias de sua juventude, e então de novo para o presente, para a corte como era hoje, regida pela mais adorável de suas netas.
- Creio que irei a Lambeth - proclamou, dispensando Manox em seguida.
Catarina retornou aos seus aposentos, onde encontrou Isabel.
- Como correu a lição? - indagou Isabel.
- Muito bem.
- Como você ama sua música! - disse Isabel. - Parece até que acaba de deixar um amante, não um professor.
Essas moças não conversavam de outra coisa além de amantes; Catarina não notava isso, porque já lhe parecia muito natural. Ter amantes não apenas era normal como a possibilidade mais empolgante da vida de uma mulher; fazia parte do empreendimento glorioso de crescer, e agora Catarina desejava ser uma adulta.
Ainda pensava em Thomas Culpepper, mas apenas com muita dificuldade conseguia lembrar de sua aparência. Ainda sonhava com ele chegando a cavalo a Horsham e dizendo-lhe que iam fugir juntos, mas seu rosto, que por tanto tempo permanecera borrado em sua mente, agora começava a tomar as feições de Henry Manox. Aguardava ansiosamente suas lições; o momento mais empolgante de seus dias era quando descia para o quarto da duquesa e encontrava-o lá. Sempre sentia medo de que ele não estivesse lá, que a sua avó tivesse lhe arranjado um novo professor. Ansiava pelo prazer de ouvir a duquesa produzir aqueles roncos espasmódicos que faziam ela e Manox rirem e deixava os olhos do rapaz mais audaciosos. Ele sempre sentava-se muito perto de Catarina, seus dedos longos de músico sobre o joelho da moça, dando palmadinhas rítmicas para que ela mantivesse o tempo. A duquesa balançava a cabeça lentamente em sinal de aprovação até que sua cabeça estivesse pendida para o lado; então acordava de repente e olhava em torno com arrogância, como se para negar o fato evidente de que havia cochilado.
Algumas semanas depois da primeira lição, houve um dia que foi perfeito, com a primavera manifestando-se nos raios de sol que entravam pela janela, nas canções dos pássaros nas árvores lá fora, no coração de Catarina e nos olhos de Manox.
Nesse dia, ele sussurrara:
- Catarina! Penso em você constantemente.
- Melhorei tanto assim na harpa?
- Não é na sua música que penso, Catarina... é em você.
- Não entendo por que você pensaria constantemente em mim.
- Porque você é adorável.
- Sou? - perguntou Catarina.
- E não é a criança que parece!
- Não. Às vezes acho que sou muito madura.
Ele pousou as mãos delicadas no discreto contorno dos seios da mocinha.
- Sim, Catarina, eu também penso assim. Uma moça madura como você é muito encantadora, Catarina. Quando você for uma mulher, não sentirá falta alguma da sua infância.
- Eu acredito nisso. Tive alguns momentos tristes em minha infância. Minha mãe morreu e tive de ir para Hollingbourne, e, justo quando estava começando a amar minha vida lá, mandaram-me para este lugar.
- Não fique tão triste, doce Catarina! Diga-me, não está triste, está?
- Não agora.
Ele beijou a face da moça. Ele disse:
- Eu gostaria de beijar os seus lábios.
Manox fez isso, e Catarina ficou impressionada com o beijo, que era muito diferente daquele dado por Thomas. Catarina sentiu um arrepio e respondeu ao beijo.
- Nunca fui tão feliz! - disse Manox.
Estavam absortos demais um no outro para prestar atenção nos roncos e na respiração pesada da duquesa. Ela acordou de repente e, sem ouvir a música, olhou para eles.
- Chega de conversa fiada! Isso é uma lição de música! Catarina começou a tocar, errando muito.
A duquesa bocejou. Seus pés começaram a acompanhar o ritmo. Em cinco minutos dormia novamente.
- Acha que ela nos viu quando nos beijamos?-sussurrou Catarina.
- com toda certeza, não! - assegurou Manox.
E tinha certeza disso, pois bem sabia que se a velha tivesse visto o beijo ele teria sido expulso dali imediatamente, e possivelmente dispensado da casa; e Catarina teria recebido uma sova.
Catarina estremeceu, tensa.
- Tenho medo de que ela nos veja, e cancele as lições.
- Você lamentaria muito isso?
Catarina voltou para ele seus olhos cândidos.
- Eu lamentaria muito!
Estava vulnerável ao rapaz porque tinha a mente de uma criança, ainda que seu corpo começasse a adquirir formas de mulher. Enquanto um estava tão avançado, o outro permanecia um pouco para trás; e no momento era o corpo que estava ao comando de Catarina. Ela gostava da proximidade desse homem; gostava de seus beijos. Disse-lhe isso de muitas formas; e ele, totalmente privado de escrúpulos, considerava a situação nova e excitante demais para não ser explorada.
A empolgação o fez agir por impulso. Diante da duquesa adormecida, ele tomou Catarina nos braços e beijou-a nos lábios. Sequiosa, Catarina levantou o rosto como uma flor que se volta para o sol.
A duquesa ainda estava dormindo, quando eles ouviram uma batida leve na porta; Isabel entrou. A lição estendera-se para além do tempo programado, e ela, ansiosa por ver juntos professor e pupila, tinha preparada uma desculpa para a intromissão. Isabel ficou parada na soleira da porta, olhando para a cena: a duquesa adormecida, o rapaz, rosto muito pálido, olhos muito brilhantes; Catarina, cabelo um tanto desgrenhado, olhos arregalados, lábios entreabertos, e com uma marca vermelha na pele.
"Olhe só onde ele a beijou, o safado!", pensou Isabel.
A duquesa acordou assustada.
- Entre! Entre! - instruiu, vendo Isabel na porta.
Isabel aproximou-se e falou com a duquesa. Catarina se levantou; Manox também.
- Você pode ir, Catarina - disse a duquesa. - Manox! Fique um pouco; quero conversar com você.
Catarina se retirou, ansiosa por ficar sozinha, para lembrar de tudo que ele lhe dissera, para fixar na memória a aparência de seu amado; para se perguntar como conseguiria esperar a lição do dia seguinte.
Depois que foi dispensada, Isabel esperou Manox sair.
O jovem sorriu ao vê-la, pensando que a havia impressionado, pois seu charme e reputação tinham-no tornado irresistível para um grande número de damas. Ele fez uma mesura e comparou o rosto fino de Isabel com as feições mais arredondadas, infantis, de Catarina. Desde seu primeiro caso de amor, Manox não se sentia tão empolgado. Essa aventura com a menininha era uma experiência nova, e embora estivesse fadada a ser lenta, a requerer tato e paciência, seria mais interessante do que qualquer caso normal.
Isabel disse:
- Nunca vi você nas nossas festas.
Ele sorriu. Disse que ouvira falar das reuniões das jovens damas, e lamentava muito jamais ter podido comparecer a uma.
- Você precisa vir... irei dizer-lhe quando. Você sabe que é segredo!
- Não tema. Sua Graça nada saberá por minha boca.
- É um folguedo inocente - garantiu Isabel.
- Não poderia pensar outra coisa!
- Brincamos um pouco, comemos. Não acontece nada de errado. É apenas divertido.
- Foi o que ouvi dizer.
- Mandarei avisá-lo.
- Você é a mais gentil das damas.
Manox se despediu com uma mesura e seguiu seu caminho, pensando em Catarina.
Ana e Henrique caminhavam pelos jardins de Hampton Court. Ele estava empolgado, a cabeça fervilhando com planos; o palácio do cardeal agora era seu. Henrique inquiriria a um humilhado Wolsey se lhe parecia justo um súdito possuir um palácio como aquele. E, numa atitude digna da argúcia com a qual fundamentara sua carreira brilhante, o cardeal - sabendo-se perdido e esperando com presentes reinstalarse no coração do rei - retrucou que um súdito só poderia construir um palácio para ter um presente nobre para ofertar ao rei.
Henrique ficara deliciado com essa resposta. Ele abraçara seu velho amigo, e seus olhos tinham reluzido ao pensar em Hampton Court. Henrique herdara a natureza esbanjadora do pai, e pensar em riquezas fazia-o lamber os lábios com prazer.
- Querida, precisamos ir a Hampton Court - dissera a Ana. Há alterações que preciso fazer. Farei de Hampton Court um palácio, e você irá ajudar-me nisso.
A barcaça real os conduzira rio acima. Essa ocasião não foi marcada por qualquer espécie de cerimonial. Talvez o rei não estivesse com paciência para cerimónias; talvez sentisse um pouco de vergonha por ter aceitado de um velho amigo um presente tão magnífico. Durante todo o trajeto rio acima, Henrique riu com Ana da incongruência de um vassalo possuir um lugar como esse.
- Ele era outro rei... ou pretendia vir a sê-lo! - alfinetou Ana.- Você foi muito condescendente com ele.
- Essa sempre foi uma falha minha, meu amor. Sou muito condescendente com aqueles a quem amo.
Ana levantou as sobrancelhas lindamente arqueadas e o fitou com um ar zombeteiro.
- Creio que eu também sou assim.
Henrique deu um tapa na própria coxa - um de seus hábitos- e riu de Ana. Ela o deliciava tanto quanto sempre. Sentiu-se enternecido ao contemplar o fato de que,
embora a amasse há muito tempo, sua paixão ainda não esfriara. Estar apaixonado era uma coisa muito agradável. Tomado por uma generosidade imensa, Henrique pensou:
"Ela merece ter as acomodações mais grandiosas que possam ser construídas! Eu mesmo irei planejá-las."
O rei contou-lhe suas ideias sobre as alterações.
- As obras para as acomodações de minha rainha devem começar antes de qualquer outra coisa. As cortinas serão de tecido de ouro, meu amor. Eu mesmo desenharei as paredes.
Ele pensou em grandes laços de fitas com as iniciais H e A entrelaçadas. Contou-lhe sobre isso, a voz carregada de afeto:
- Entrelaçadas, querida! Como nossas vidas são desde que nos conhecemos. Quero que o mundo saiba que nada pode se colocar entre nós dois.
Sem qualquer cerimónia, desceram da barcaça. Os jardins eram bonitos... mas os jardins de um cardeal, disse Henrique, não os de um rei!
- Sabe que tenho um afeto especial por jardins? - indagou Henrique. - E sabe por quê?
Era estranho e perturbador o fato de que, para lembrá-la de sua fidelidade, Henrique tivesse escolhido este domínio que tomara-pois o presente fora forçado - de uma das pessoas a quem mais devia lealdade. Mas como isso era típico de Henrique! Aqui, à sombra da amada Hampton Court de Wolsey, precisava dizer a si mesmo que era um amigo leal, porque fora desleal para com o proprietário do lugar.
- Rosas vermelhas e brancas-disse o rei, e tocou a face de Ana.
- Faremos este lugar muito parecido com o jardim de seu pai no Castelo de Hever, certo? Teremos um lago, e você poderá ficar sentada à sua margem conversando comigo, ou admirando seu próprio reflexo. Só espero que você seja mais gentil comigo aqui do que foi em Hever!
- Pode ter certeza disso - disse ela, rindo.
Henrique falou com entusiasmo sobre os planos. Ele visualizava tapetes de rosas - vermelhas e brancas para simbolizar a união das casas de York e Lancaster, para lembrar a todos que as vissem que os Tudor representavam a paz; ele envolveria esses tapetes com cercados de madeira pintados nas cores branca e verde, que pertenciam a seu emblema; colocaria postes e pilares que depois seriam decorados com desenhos heráldicos. O lugar inteiro seria para todos, inclusive para ele próprio, uma lembrança constante de que ele era um homem fiel; que quando amava, amava profunda e longamente. H e Á! Essas iniciais deveriam ser exibidas em todos os locais possíveis.
- Venha comigo, minha paixão. Preciso escolher seus quartos. Eles devem ser os mais luxuosos que você já viu.
Subiram a escada e atravessaram uma sala ampla. Foi Ana que se virou para a direita e desceu alguns degraus até os cómodos apainelados que tinham pertencido ao próprio Wolsey. Henrique não quisera entrar nesses cómodos, mas ao ver a mobília esplêndida, as cortinas suntuosas, a prataria magnífica, os assentos de janela atapetados em vermelho, os detalhes dourados no teto, não quis mais sair dali. Ele vira esse esplendor muitas vezes antes; mas antes pertencera a Wolsey, e agora era dele.
Ana apontou para os tapetes adamascenos que jaziam sobre o assoalho e perguntou ao rei se eram verídicos os boatos que contavam como Wolsey os conseguira.
Henrique estava menos propenso do que o usual a defender seu antigo favorito. Recontou a história do suborno veneziano mantendo sua boca numa linha reta, ainda que antes tivesse rido muito do fato.
Atravessaram os quartos mobiliados esplendorosamente, admiraram as roupas de cama em seda e damasco, as almofadas de veludo, cetim e tecido de ouro.
- Minha adorada, acho que seus aposentos devem ser estes, que decerto constituem a melhor parte de Hampton Court. As salas devem ser ampliadas; mandarei fazer novos tetos; tudo aqui será do melhor. Deverá ser terminado o mais breve possível.
- Demorará anos - disse Ana, e acresceu: - Tanto que é bem possível que a essa altura o nosso divórcio tenha saído, se é que sairá um dia!
Ele pousou um braço sobre os ombros de Ana.
- Claro que sairá, querida! Esperamos por muito tempo, e estamos impacientes, mas acho que não deveremos esperar muito mais. Cranmer é um homem com muitas ideias, e aquele plebeu, Cromwell, também! Meus planos para as suas acomodações poderão demandar um ou dois anos de obras, mas não tema. Muito antes disso você será rainha da Inglaterra!
Estando o dia quente, sentaram-se um pouco num assento de janela. Ele falava entusiasticamente sobre as mudanças que empreenderia. Ela ouviu, tentando esconder sua melancolia; Hampton Court trazialhe lembranças de uma certa noite enluarada quando ela e Percy tinham olhado de uma dessas janelas e conversado sobre a felicidade que iriam dar um ao outro.
Ana perguntou-se se gostaria de um dia ocupar os aposentos que Henrique planejara para ela. Wolsey fizera muitos planos pérfidos nesta casa.
- Nossas iniciais entrelaçadas, meu amor! - bradou o rei. - Mas você está tremendo! Venha, é hora de voltarmos para casa.
Em sua casa em Westminster, Wolsey aguardava a chegada de Norfolk e Suffolk. Sua sorte chegara ao fim, e Wolsey sabia disso. Este era o fim de seus dias de glória; iria viver o resto de sua vida na escuridão do ostracismo. Se ele tivesse sorte; mas não era um fato comprovado que quando grandes homens perdem o favoritismo do rei suas cabeças não tardavam a rolar? Muitas vezes aqueles que tinham vivido gloriosamente morriam violentamente. Wolsey estava doente, de mente e de corpo. Sentia uma dor em seu plexo solar, uma dor em sua garganta; e isso era o que os homens de sua época chamavam de um coração partido. E em sua carreira nenhum momento partira mais seu coração do que quando ele chegara a Grafton com Campeggio, para descobrir que não havia um lugar para ele na corte. Para seu amigo cardeal havia acomodações
preparadas de acordo com seu posto, mas para Thomas Wolsey, outrora amado pelo rei, não havia cama na qual descansar seu corpo doído. Nesse instante ele descobrira
a que profundezas de desfavor tinha chegado. Ele já sofrera humilhação suficiente para partir o coração de um homem orgulhoso. O cardeal muito fizera por Henrique e ele o tratava assim; mas o jovem Henry Norris, por quem Wolsey nada fizera, tratara-o com compaixão.
O coroinha Norris, um rapaz bonito com compaixão nos olhos agradáveis, oferecera seus próprios aposentos ao velho desgastado pela viagem. Momentos como esse eram agradáveis num dia lastimável. No dia seguinte, ele e Campeggio haviam tido sua audiência com o rei, e, para a surpresa do cardeal, ao deitar-lhe os olhos pequenos, Sua Majestade tratara-o com mais gentileza. Henrique jamais odiava seu velho amigo quando se encontrava cara-a-cara com ele; os dois compartilhavam de muitas lembranças; juntos, haviam dado luz a diversos planos bem-sucedidos. Ainda assim, Wolsey sentira-se vigiado por olhos especulativos. Ele sabia que aqueles cortesãos insensíveis tinham feito apostas sobre a conduta do rei para com o seu ex-favorito. Wolsey vira a decepção em seus rostos quando Henrique deixara seu antigo afeto triunfar. Os olhos negros de Lady Ana tinham brilhado de raiva, pois ela acreditara que a ressurreição da influência moribunda de Wolsey significava o estrangulamento da sua própria. Seu rosto belo empedernira, embora ela tivesse sorrido graciosamente para o cardeal; e Wolsey, retribuindo o sorriso, sentira o medo apertar uma vez mais o seu coração. Que esperanças ele poderia ter contra uma inimiga tão formidável?
Chegara a seus ouvidos, por intermédio dos criados que tinham servido o jantar para Henrique e Ana, que ela ficara profundamente ofendida pela demonstração de afeto de Henrique para com o cardeal; e ela, ousada e confiante em seu poder sobre o rei, não hesitara em reprová-lo.
- Não o assusta pensar no perigo causado pela dívida que você tem para com os seus súditos? Dívida engendrada por Wolsey? - perguntara Ana, segundo os relatos.
O rei ficara intrigado.
- Como assim, querida?
Ela mencionara aquele empréstimo que o cardeal extraíra dos súditos de Henrique para o uso do rei. Ana rira e acrescentara:
- Se meu Lord Norfolk, meu Lord Suffolk, o senhor meu pai, ou qualquer outro homem nobre de seu reino, tivesse feito muito menos do que Wolsey, a essa altura já teriam perdido suas cabeças.
A isso o rei respondera:
- Percebo que você não é amiga do cardeal.
- Não tenho motivo algum para não sê-lo! - retorquiu Ana. Nenhum motivo, claro, além do meu amor por Vossa Majestade, considerando-se os feitos dele.
Nada mais fora ouvido naquela mesa, mas Wolsey sabia o quanto era gratificante para o rei imaginar que o ódio de Ana pelo cardeal era oriundo de seu amor pelo rei. Ela era uma adversária contra a qual era sensato acautelar-se. Ele não tivera chance de ver o rei de novo, porque na manhã seguinte Lady Ana saíra para cavalgar com ele, e providenciara para que Sua Majestade só retornasse depois da partida dos cardeais. Que veneno essa mulher vertia dia e noite nos ouvidos de Sua Majestade? Mas, sendo Wolsey, o cardeal sabia que ele não tinha mais a quem culpar senão a si próprio. Fora ele quem dera aquele passo em falso. Ele era astuto demais para não compreender que, se tivesse estado no lugar de Lady Ana, agiria precisamente como ela fazia agora. Dotado de uma grande imaginação, que o ajudara a subir em poder, Wolsey não tinha dificuldade em ver a si próprio na posição de Lady Ana Rochford. Ele podia até mesmo sentir pena dela, porque sua estrada era mais perigosa que a dele. Aqueles que, para alcançar a prosperidade, dependiam do humor de um príncipe - e de um príncipe como Henrique -, deviam considerar cada passo antes de dá-lo, se quisessem sobreviver. Ele fracassara na questão do divórcio e, olhando para trás, isso parecera inevitável; como cardeal ele devia obediência a Roma, e o rei estava tentando romper as correntes que o prendiam à Santa Sé. Ele, que era perspicaz e diplomático, fracassara. Ela era petulante, imperiosa, impulsiva; que destino aguardava-a? Enquanto Ana calculara bem onde pisar, Wolsey fora descuidado. Um homem não tem culpa quando sua grandiosidade lhe traz inimigos; um homem tem culpa quando sua tolice lhe traz inimigos. Talvez a humilhação fosse mais fácil de suportar quando o culpado era o próprio humilhado.
Seu criado, Cavendish, veio dizer-lhe que os duques de Norfolk e Suffolk tinham chegado. O cardeal recebeu-os sem cerimónia: o Norfolk de olhos frios e o Suffolk de olhos cruéis, ambos regozijando com sua queda.
Suffolk disse:
- É desejo do rei que Sua Graça passe para nossas mãos o Grande Selo, e que simplesmente parta para Esher.
Esher! Nas proximidades da esplêndida Hampton Court, uma casa que era sua através da diocese de Winchester. Wolsey reuniu toda a sua dignidade.
- E que autoridade possuem os senhores, meus lordes, para darme essa ordem?
Eles disseram que vinham da parte do rei, e que tinham recebido a autoridade de sua real boca.
- Então não é o suficiente - argumentou Wolsey. - O Selo Real da Inglaterra foi-me entregue pela própria pessoa do rei, para que eu dele desfrutasse durante a minha vida. Eu tenho as cartas do rei que atestam isso.
Os duques ficaram zangados com a resposta, mas, vendo as cartas do rei, tudo que podiam fazer era retornar a Henrique.
Wolsey sabia que ele meramente postergara o dia fatídico. O Grande Selo, o símbolo de sua grandeza, permaneceria em suas mãos por apenas mais um dia.
Na manhã do dia seguinte os duques retornaram de Windsor com cartas do rei; não havia mais nada que Wolsey pudesse fazer além de entregar o selo.
O coração do ex-chanceler foi tomado por um pressentimento terrível; ele mandou seus servos fazerem inventários de todas as posses de valor em sua casa. Esses bens ele iria ofertar ao rei, porque, se o seu senhor não fosse tocado pelo afeto, talvez o fosse por presentes valiosos. Muitas vezes Wolsey notara aqueles olhinhos brilhando de inveja ao deitar sobre essas coisas. Quando um homem se encontra em risco de se afogar, ele se livra de todos os seus adornos caros para poder nadar com mais facilidade. O que eram suas posses comparadas com a sua vida!
Depois de ordenar que o esperassem em Putney com os cavalos, dirigiu-se até seu cais pessoal e tomou sua barcaça. Ele encontrou o rio repleto de embarcações; as notícias haviam se espalhado depressa, e havia quem considerasse aprazível o espetáculo da queda de um homem. Ele viu seus sorrisos; escutou suas risadas; sentiu a especulação, a decepção por ele não estar indo direto para a Torre.
Cavalgando através da cidade de Putney, o cardeal viu Norris vindo em sua direção. Sentiu um grande alívio, pois passara a considerar Norris um amigo. Norris contou-lhe que a paz de espírito do rei fora abalada profundamente pela história que Norfolk e Suffolk tinham-lhe contado ao devolver-lhe o selo. O rei não podia esquecer que um dia amara Wolsey; estava assombrado por um rosto pálido e adoentado por baixo do chapéu de cardeal; e lembrava o quanto esse homem fora seu amigo e conselheiro. Embora tencionasse dispensar os serviços de Wolsey, o rei queria apaziguar sua consciência, assegurando-se de que não fora ele, mas outros, o responsável pela queda de seu velho amigo. Assim, enviara Norris a Putney com um presente para o cardeal: um anel de ouro que Wolsey reconheceria pela pedra valiosa que continha, um anel que já tinham usado como emblema de sua amizade. Norris disse ao cardeal que ele devia agradecer a Deus, porque ainda se encontrava nas boas graças do rei.
Wolsey foi tomado por uma alegria infinita; seu corpo ganhou força e ele recobrou seu velho espírito de luta. Ele não estava derrotado. O cardeal abraçou Norris, sentindo grande afeição por esse rapaz, e tirou uma pequena corrente de ouro do pescoço e lhe deu; nessa corrente pendia uma pequena cruz.
- Quero que você receba isto de minhas mãos como uma pequena recompensa - disse, e Norris sentiu-se profundamente comovido.
Em seguida o cardeal olhou para o seu séquito e viu uma pessoa que lhe era muito chegada; um homem dotado de grande argúcia e humor, que muitas vezes tinha trazido alegria às horas mais tristes do cardeal.
- Leve meu Bobo, Norris - instruiu. - Leve-o ao meu senhor o rei. Tenho certeza de que Sua Majestade gostará do presente. Bobo! chamou. - Aqui, Bobo!
O homem se aproximou, olhos arregalados de medo e amor por seu senhor; e vendo isso, o cardeal inclinou-se e disse quase com ternura:
- Você terá um lugar na corte, Bobo.
Mas o Bobo ajoelhou-se na lama e chorou amargamente. Wolsey sentiu-se imensamente comovido ao ver seu servo demonstrar-lhe tanto amor; afinal, ser Bobo para o rei, em vez de para um homem que naufraga em desgraça, decerto era um grande passo.
- Você é realmente um bobo! - disse Wolsey. - Não entende o que estou lhe oferecendo?
Agora naquelas feições ridículas não se manifestavam mais expressões de humor, apenas lágrimas.
- Não irei deixá-lo, mestre.
- Não ouviu que eu lhe dei a Sua Majestade?
- Eu não servirei a Sua Majestade. Meu senhor, tenho apenas um mestre.
Os olhos em lágrimas, o cardeal convocou seis soldados para removerem o homem. Resistindo, cheio de raiva e tristeza, foi embora o Bobo.
Em seguida Wolsey cavalgou rumo a seu novo lar. E quando chegou àquela casa humilde, desprovida de camas, mobília, prataria ou copos, tinha o coração aquecido pelo conhecimento de que no mundo havia quem pudesse amar um homem despojado de sua grandiosidade.
Lady Ana Rochford estava sentada em seus aposentos, folheando um livro. Encontrara o volume em sua alcova, e desde a primeira vez que o segurara tivera a certeza de que alguém pusera-o ali para que ela o encontrasse. Ao virar uma página, a cor subiu de seu pescoço para sua fronte, e ela ficou cheia de raiva. Ficou sentada por um longo tempo, fitando a página aberta, tentando adivinhar quem pusera o livro ali, e quantos de seus criados tinham-no visto.
O volume era um livro de profecias; havia muitas pessoas no país que consideravam essas profecias como miraculosas; portanto, era alarmante ver a si própria exercendo um papel proeminentemente nelas.
Adotando um tom arrogante, que lhe vinha facilmente, convocou a presença de Anne Saville.
- Aia! - gritou. - Venha cá! Venha cá imediatamente!
Anne Saville atendeu ao chamado; vendo o livro nas mãos de sua senhora, ficou imediatamente pálida.
- Você já viu esse livro? - indagou Ana.
- Eu devia tê-lo removido daqui antes que a senhora pusesse os olhos nele.
Ana deu uma gargalhada.
- Ainda bem que você não fez isso. Esse me fez rir muito. Lady Ana virou as páginas, sorrindo, os dedos absolutamente
estáveis.
- Veja, aia! Esta figura representa a mim... e aqui está o rei. E aqui está Catarina. Deve ser isso, porque nossas iniciais estão ao lado das figuras. Aia, diga-me, esse desenho não me faz jus, não é? Veja, aia, não vire o rosto. Aqui estou eu com a cabeça cortada!
Anne Saville começou a tremer da cabeça aos pés.
- Se eu achasse que esse é o futuro que me aguarda por tomar um determinado homem por marido, não me casaria nem se fosse ele imperador! - afirmou.
Ana estalou os dedos, sarcástica.
Estou resolvida a desposá-lo, aia.
Anne Saville não conseguia desgrudar os olhos da figura decapitada na página.
- Esse livro é uma bobagem, um embuste. Estou determinada a ser rainha, aia. - Ela acrescentou: - Aconteça o que acontecer comigo!
- Então a senhora é muito corajosa.
- Aia! Aia! Que tolinha você é! Acreditando num livro estúpido! Enquanto Anne Saville ficou muito calada durante aquele dia, como se seus pensamentos a atormentassem, Lady Ana Rochford estava particularmente alegre, embora o incidente do livro a tivesse perturbado mais do que deixava aparentar. Ela não queria dar a seus inimigos a satisfação de saber que ela estava perturbada. Porque de uma coisa Ana tinha certeza absoluta: ela estava cercada por inimigos que queriam minar sua segurança a qualquer custo; e este livro era apenas um de seus artifícios. Na esperança de semear temor em sua mente, um inimigo pusera o livro onde ela poderia encontrá-lo. Que ideia absurda. Cortar-lhe a cabeça!
Ela estava nervosa; seus sonhos foram atormentados por aquela imagem no livro. Começou a desconfiar de todos a seu redor, a procurar entre eles os seus inimigos. A rainha, a princesa, o duque e a duquesa de Suffolk, o cardeal... todos os indivíduos mais importantes do país. Quem mais? Quem poderia ter posto o livro em sua alcova?
As pessoas que a cercavam provavelmente estavam observando tudo que ela fazia; ouvindo a tudo que ela dizia. Ana sentia muito medo.
Certa noite ela acordou suando frio. Sonhara com Wolsey parado à sua frente, segurando um machado, e a lâmina estava voltada para ela. O rei estava deitado a seu lado, e, aterrorizada, ela o acordou.
- Eu tive um sonho horrível...
- Sonhos não são nada, minha querida.
Ela não deixaria que ele menosprezasse seu sonho. Ela insistiu que ele a abraçasse, que a assegurasse de seu amor imorredouro por ela.
- Porque, sem o seu amor, eu morreria - disse Ana ao rei. Ele beijou-a ternamente e a acalmou.
- E eu também morreria sem o seu.
- Ninguém poderia ferir você - disse Ana
- Ninguém poderia ferir você também, querida. Não enquanto eu estiver aqui para cuidar de você.
- Há muitas pessoas que invejam seu amor por mim, pessoas que querem destruir-me.
Então Ana contou tudo sobre o livro de profecias.
- O crápula que imprimiu esse livro será enforcado, querida. Penduraremos sua cabeça na Ponte de Londres. Assim as pessoas saberão o que acontece com quem assusta minha amada.
- Você diz isso, mas mesmo assim tem entre seus favoritos pessoas que me odeiam.
- Nunca tive entre meus favoritos qualquer pessoa que odiasse você.
- Eu sei de uma.
- Oh, querida, ele é um homem velho e doente. Ele não lhe deseja nenhum mal...
- Não! - gritou Ana. - Ele não lutou contra nós consistentemente? Ele não falou contra nós para o papa? Eu conheço quem possa confirmar isso.
Ana tremia nos braços de Henrique, porque sentia a relutância do rei em falar sobre o cardeal.
- Temo por nós dois - disse ela - Como posso não temer por você também, quando o amo? Eu ouvi muitas histórias sobre a maldade desse homem. Soube de muitas coisas através de seu médico veneziano, que me tratou...
- O quê! - gritou o rei.
- Na época, não falei nada porque você tinha Wolsey em grande consideração, e não iria puni-lo. Agora ele está em York. Imagine, deixálo lá! Ele foi banido de Westminster,
e isso é motivo mais do que bastante para atiçar sua ira Lá em York ele pode prosseguir suas maldades e persuadir o povo contra mim. Porém o que mais me entristece
é que ele é mais importante para você do que eu.
- Ana, Ana, você não sabe do que está falando. Quem poderia ser mais importante para mim do que você?
- O seu ex-chanceler, o cardeal Wolsey! - ela retorquiu.
Ana foi tomada por um frenesi. Puxou o rosto de Henrique para perto do dela e o beijou, e falou com ele incoerentemente sobre seu amor e devoção, o que tocou profundamente o rei. E de sua ternura por Ana nasceu uma paixão imensa, uma necessidade de dar-lhe tudo que ela pedisse, de provar seu amor por ela e de manter o amor que ela nutria por ele.
Minha querida, há loucura em suas palavras - disse ele.
Sim, eu falo com loucura. Apenas o seu cardeal fala com bom
senso. Posso ver que não preciso mais ficar aqui. Irei embora. Perdi os bens que me eram mais queridos do que a própria vida: minha virtude, minha honra. Devo deixar você. Esta é a última noite que estarei em seus braços, porque vejo que estou arruinada, que você não me ama.
Henrique sempre era tomado por um terror profundo quando ela ameaçava deixá-lo. Antes que ele tivesse lhe dado o Solar Suffolk, ela fora para Hever e voltara várias vezes. A perspectiva de perdê-la era mais do que ele podia suportar; ele estava preparado para oferecer-lhe Wolsey, se ele era o preço que ela pedia.
- Acha mesmo que eu permitiria que você me deixasse, Ana? Ela riu suavemente.
- Você poderia forçar-me a permanecer. Poderia forçar-me a compartilhar da sua cama! - Mais uma vez ela riu. - Você é grande e forte, e eu sou fraca. Você é rei e eu uma mulher pobre que, por amor, deu-lhe sua honra e virtude... Sim, não tenho dúvidas de que você poderia forçar-me a permanecer aqui, mas fazendo isso você apenas prenderia o meu corpo. Mas o meu amor estaria perdido para você.
- Você não pode falar isso! Nunca conheci felicidade maior do que a de tê-la em meus braços. A sua virtude... a sua honra! Meu Deus, você fala bobagens, querida! Você não será a minha rainha?
- Você diz isso há muitos anos. Estou cansada de esperar. Você se cerca de pessoas que mais nos prejudicam do que ajudam. Tenho provas de que o cardeal é uma dessas pessoas.
- Que provas?
- Não lhe falei sobre o meu médico? Ele sabe que Wolsey escreveu para o papa, pedindo-lhe para excomungar você, caso você não me dispensasse e aceitasse de volta Catarina.
- Por Deus! Não posso crer nisso.
Ana envolveu o pescoço de Henrique com os braços, e com uma das mãos cofiou seu cabelo.
- Querido, procure o médico, descubra por si mesmo...
- É isso que farei! - assegurou-lhe.
Depois de ouvir isso, Ana conseguiu dormiu mais pacificamente. Entretanto pela manhã seus temores estavam mais fortes do que nunca. O médico confirmou a perfídia de Wolsey, e seu primo, Francis Bryan, trouxe-lhe os papéis que provavam que o cardeal mantivera comunicação com o papa, pedindo que o divórcio fosse postergado. Mas quando Ana, triunfal, levou essas provas ao rei e viu a raiva fazer sobressair as veias de sua testa, percebeu que ainda não seria agora que conquistaria sua paz de espírito. Ana lembrou do amor do rei por esse homem; lembrou que quando Wolsey adoecera em Esher, Henrique instruíra Butts, seu médico - o homem que mandara para ela em Hever -, a atender seu velho amigo. Ana lembrou que, assim que Butts chegara de Esher, Henrique convocara-o para informar-se sobre a saúde de Wolsey; e quando Butts dissera que temia que o velho morresse caso não recebesse algum símbolo da consideração do rei, Henrique mandara-lhe um anel de rubi e - humilhação das humilhações! - pedira a Ana que ela também lhe desse um presente. Era desse porte a consideração do rei por Wolsey e sua relutância em destruí-lo.
Mas Ana não iria deixar seu inimigo viver; e nesse projeto ela contava com seu lado a muitos nobres, à frente dos quais encontravam-se os poderosos duques de Norfolk e Suffolk, homens que não deixariam a poeira acumular sobre esse assunto.
George conversara com Ana a respeito de Wolsey:
- Ana, não haverá paz para nós enquanto esse homem viver. Se um dia eu tive um inimigo, foi esse homem!
Ela confiava completamente em George. Ele dissera:
- Você pode fazer isso, Ana. Tudo que você precisa é pressionar o rei. Não hesite. Você sabe muito bem que se tivesse o poder para destruí-la, Wolsey não hesitaria em fazê-lo.
- Disso não tenho dúvida - respondera Ana. Então ela fora acometida por uma tristeza repentina. - George, não seria maravilhoso se pudéssemos voltar para casa e vivermos sossegadamente, sem sermos odiados por ninguém?
- Eu não quero uma vida sossegada, irmã-dissera George. - E você também não, admita Seria capaz de desistir de tudo agora?
Ana vasculhara sua mente e concluíra que ele tinha razão. George prosseguira:
- Você nasceu para ser rainha da Inglaterra, Ana Você tem todos os atributos necessários.
Eu sinto isso, mas eu posso sonhar com uma vida que não fosse tão cheia de ódio!
Mas Ana continuou odiando fervorosamente. Esta era uma batalha entre ela e Wolsey, uma batalha que Ana estava determinada a vencer. Norfolk observava; Suffolk observava; ambos aguardavam por uma oportunidade.
Mais uma acusação foi levantada contra o cardeal. Ele era culpado de requerer jurisdição papal na Inglaterra. Henrique precisava aceitar as provas; ele precisava agradar Ana; ele precisava satisfazer os seus ministros. Wolsey seria preso no Castelo de Cawood em York, onde abrigara-se nos últimos meses.
- O conde de Northumberland deveria ser mandado para prendêlo - aconselhou Ana, os olhos reluzindo.
A hora de sua vingança estava próxima. Ela subiu para os seus aposentos, dispensou as damas de companhia e, jogando-se na cama, verteu uma mixórdia de risos e lágrimas. Sentia-se não como a mulher que aspirava ao trono da Inglaterra, mas como a mocinha apaixonada que, através desse homem, perdera o amor de sua vida.
- Agora ele verá! Agora ele verá! Ele se referiu a mim como "essa menina estúpida"! Disse a Percy que eu não era "nada senão a filha de um cavaleiro, querendo se casar com o herdeiro de uma das famílias mais nobres do reino"!
O pai de Ana era agora um conde; e ela, rainha da Inglaterra em tudo, menos no título.
"Sábio cardeal! Como eu queria ver o seu rosto quando Percy for visitá-lo! Como queria ver-te descobrir que não foi tão sábio assim quando decidiu destruir Ana Bolena!"
O cardeal estava à mesa do salão de jantar do Castelo de Cawood quando um criado entrou no recinto e anunciou:
- Meu senhor, Sua Graça, o conde de Northumberland, está no castelo!
Wolsey ficou atónito.
- Não pode ser. Se um homem tão nobre fosse me honrar com sua visita, certamente teria me avisado. Traga-o para mim para que eu possa dar-lhe as boas-vindas.
Northumberland foi conduzido ao salão de jantar. Mudara muito desde que o cardeal vira-o pela última vez, e Wolsey mal reconheceu-o como o rapaz bonito que ele reprochara por ter tido a ousadia de se apaixonar pela favorita de Henrique.
- Senhor conde, deveria ter-me comunicado da sua vinda, para que eu pudesse prestar-lhe a honra que lhe é devida!
Num tom de voz muito controlado, o conde respondeu que não viera receber qualquer honra. Seus olhos ardiam estranhamente no rosto macilento. Wolsey lembrou das histórias que ouvira sobre seu matrimónio infeliz com a filha dos Shrewsbury. Um homem não devia permitir que um casamento o afetasse tanto; havia outras coisas na vida. Um homem na posição de Northumberland tinha muitos motivos para ser feliz, afinal não era ele o lorde regente de uma das casas mais nobres do reino?
"Bah!", pensou Wolsey com inveja. "Fosse eu conde...." Ele nutria certo carinho pelo rapaz. Lembrava bem de quando o jovem servira sob sua orientação. Um moço dócil e encantador. Wolsey sentira uma grande tristeza quando fora obrigado a dispensá-lo.
- Fico feliz por termos nos encontrado de novo - disse Wolsey.
- Pelos velhos tempos.
- Pelos velhos tempos! - repetiu Northumberland, falando como um homem em seu sono.
- Lembro bem de você - disse Wolsey -, um rapaz brilhante, impetuoso.
- Lembro bem de você - repetiu Northumberland.
com o coração carregado de perversidade, Percy fitou o velho alquebrado. Então os poderosos caíam de seus pedestais! Este homem fizera algo pelo que ele jamais poderia perdoá-lo. Wolsey tomará-lhe Ana Bolena, uma mulher que ele jamais esquecera durante longos seis anos de casamento malditoso. E ele também nunca tivera qualquer intento de esquecer Wolsey. Ana deveria ter sido dele, e ele, de Ana. Eles tinham se amado; tinham feito votos; e este homem, que agora atreviase a recordá-lo dos velhos tempos, fora a causa de todo esse sofrimento. E agora que estava velho e alquebrado, agora que fora destruído por sua própria ambição, Wolsey queria ser gentil e saudosista Mas Percy também tinha uma boa memória!
- Pensei muitas vezes no senhor - disse Percy, e isso era a mais pura verdade.
Quando brigava com Mary, sua esposa - a quem odiava e que o odiava-, Percy pensava no rosto do cardeal e nas palavras duras que ele usara: "Você é um garoto estúpido..."
Será que algum dia Percy se esqueceria daquela humilhação amarga? Não, ele jamais se esqueceria; e assim como jamais cessaria de condenar a si próprio por seu sofrimento, sabendo muitíssimo bem que se tivesse demonstrado coragem bastante poderia ter lutado por sua felicidade, Percy nutria por esse homem um ódio imorredouro. Ficou parado diante de Wolsey, tremendo de ódio, sabendo que ela engendrara o presente momento, e que dele esperava agora a coragem que lhe faltara sete anos antes.
Northumberland pousou a mão direita no braço de Wolsey.
- Meu senhor, prendo-o por Alta Traição!
O conde sorria cortesmente, mas com malícia; o cardeal começou a tremer.
A vingança era uma emoção satisfatória, considerou o conde. Ele que levou tantos ao sofrimento agora também sofreria.
- Viajaremos para Londres o mais cedo possível - comunicou Percy.
Os moradores de Cawood viram o cardeal ser levado do castelo. Eles choraram; eles lançaram pragas contra os inimigos de Wolsey. O cardeal deixou Cawood com os gritos ressoando em seus ouvidos.
- Deus salve Vossa Graça! Que um mal horripilante caia sobre aqueles que tiraram Vossa Graciosa Senhoria de nós! Rezaremos a Deus para derramar sobre eles Sua vingança.
O cardeal esboçou um sorriso triste. Durante as últimas semanas, aqui em York, ele levara uma vida condizente com um homem da Igreja. Em seus portões ele doara esmolas, comida e vinho ao povo. No Castelo de Cawood ele cuidara dos mendigos e dos necessitados, pessoas em quem raramente pensara em Hampton Court e no Solar York. Pois Wolsey, que um dia concentrara-se apenas em aplacar seu senso de inferioridade e ascender socialmente, agora tentava garantir um lugar no céu mediante a realização de boas ações. Ele sentia pena de si mesmo; seu corpo estava doente, e ele não tinha certeza se conseguiria resistir à jornada para Londres... Na verdade rezava para que não conseguisse. Mas sorria, pois via a si mesmo como um homem que subira muito e agora estava caído.
- O orgulho foi meu inimigo - disse ele. - Um inimigo ainda mais amargo que Lady Ana.
A notícia da morte de Wolsey foi recebida pela facção Bolena com uma alegria desavergonhada. Um ano antes ninguém teria acreditado que o maior homem da Inglaterra poderia cair tanto. Wolsey, dizia-se, falecera em decorrência de uma diarreia, mas todos sabiam que ele morrera do que o povo chamava de "coração partido", sendo a melancolia uma doença tão fatal quanto qualquer outra; e tendo perdido tudo que lhe era caro, por que um cardeal devia continuar vivo? Ele, sendo levado para a Torre! Ele, que amara seu senhor, sendo julgado por Alta Traição!
Era o apogeu de Ana. As pessoas respeitavam-na mais do que nunca. Ser um favorito de Ana era ser um favorito do rei. Ela desfrutou de seu triunfo e ofereceu banquetes especiais em comemoração à derrota de seu inimigo. Ela se deixou cair no mau gosto de mandar encenar uma peça que tratava o grande cardeal como uma figura patética.
George estava tão radiante quanto Ana.
- Enquanto aquele homem continuasse vivo, eu temeria por você - disse-lhe George. Ele soltou uma gargalhada curta. - Ouvi dizer que, próximo ao fim, ele contou a Kingston que, se tivesse servido a Deus com a mesma diligência com que servira ao rei, não teria sido descartado em sua velhice. Eu diria que se tivesse servido a seu Deus tão diligentemente quanto serviu a si próprio, ele teria ido para o cadafalso muito antes!
As pessoas ouviram esse comentário, riram dele e passaram-no adiante.
O rei não compareceu às comemorações dos Bolena. Tendo emitido a ordem de prisão contra Wolsey, Henrique queria expurgar o assunto de sua mente. Via-se dividido entre o remorso e a felicidade. Wolsey deixara muita riqueza, e em que mãos elas podiam cair senão nas do rei?
Henrique orou:
"Senhor, vós sabeis que eu amei aquele homem. Eu devia ter zelado mais por ele. Eu devia ter impedido que seus inimigos tivessem-no afastado de mim. Pois eu sempre fui seu amigo. Não lhe mandei presentes simbolizando meu apreço? Não disse que eu não perderia o amigo por 20 mil libras?"
Mas ele não conseguia impedir seus pensamentos de vagarem para as posses do cardeal. Restavam ainda mais riquezas das quais ele poderia se apoderar. Hampton Court já era dele; o Solar York também, porque Henrique, que gostava muito da mansão, não a devolvera depois que Ana fora para o Solar Suffolk.
Mas ele chorou pelos dias de sua amizade; chorou por Wolsey; e conseguiu lamentar sua morte, apesar de todo o ouro que ela havia lhe trazido.
Logo depois disso ocorreram dois eventos que causaram certa preocupação ao rei.
O primeiro veio na forma de uma carta que a condessa de Northumberland escrevera ao pai, o conde de Shrewsbury. Shrewsbury considerou sensato mostrar essa carta ao duque de Norfolk, que, por sua vez, levou-a prontamente à sua sobrinha.
Ana leu a carta. Não havia dúvida sobre seu significado. Mary de Northumberland estava deixando o marido. Explicava ao pai que, numa de suas brigas conjugais mais violentas, Percy revelara-lhe que os dois não eram casados realmente; ele estivera previamente compromissado com Ana Bolena.
O coração de Ana bateu forte. Aqui estava mais uma tramóia para desacreditá-lo aos olhos do rei. Era sua amante há quase dois anos, e tinha a impressão de que não estava mais perto de se tornar rainha do que estivera naquela primeira noite no Solar Suffolk. Ela estava preocupada; não sabia por quanto tempo conseguiria ainda manter o rei como seu obediente escravo. Há muito tempo mantinha-se atenta por alguma queda na paixão do rei, mas até agora não detectara nenhuma. Ela se estudava cuidadosamente em busca de alguma deterioração de sua beleza. Se estava mais velha, um pouco magra, tinha um número bem maior de roupas deslumbrantes e jóias caras para compensar isso. Mas Ana vivia continuamente em estado de tensão, e embora dissesse a si própria que gostaria de levar uma vida pacífica e que seria feliz se tivesse casado com Percy ou Wyatt, sabia que a fagulha de ambição em seu íntimo fora atiçada, e agora era uma labareda infernal. Fora sincera ao dizer a Anne Saville que iria casar-se com o rei a despeito do que pudesse lhe acontecer. Ana tinha certeza de que, se desse ao rei um filho varão, passaria a deliciá-lo não apenas como amante, mas também como progenitora do futuro Tudor rei da Inglaterra. Tendo degustado o poder, como poderia abrir mão dele? E aqui residia a raiz de seu medo. O atraso do divórcio, a ciência de inimigos poderosos ao seu redor... tudo isso deixava-a nervosa, imperiosa, histérica, arrogante, assustada.
Assim, Lady Ana estremeceu ao ler essa carta.
- Dê-me a carta - ordenou ao tio.
- O que você fará com ela? Ela não tinha certeza. O tio disse:
- Você deveria mostrá-la ao rei.
Estudou o rosto do tio. Frio, rude, absolutamente desprovido de sentimentos, ele desprezava essas famílias que tinham ascendido, aliadas à sua própria Casa simplesmente
porque a sorte dos Norfolk entrara em declínio por ocasião da subida ao poder de Henrique VÊ, devido ao erro que sua família cometera ao apoiar Ricardo III. Ela pesou
as palavras do tio. Ele não era amigo de Ana; mas seria inimigo? Para ele, mais vantajoso ver sua sobrinha no trono da Inglaterra do que a sobrinha de outro.
Foi ter com o rei.
Ele estava aboletado num assento de janela, tocando uma harpa e cantando uma música que compusera.
- Ah! Meu amor, eu estava pensando em você. Sente comigo, que eu lhe cantarei minha canção... Ora, o que há com você? Está pálida e trémula
- Estou com medo. Há pessoas que parecem capazes de envenenar sua mente contra mim.
- Bah! - disse ele.
Henrique estava com excelente humor porque Wolsey deixara-lhe riquezas com as quais nem mesmo Henrique sonhara, e ele finalmente conseguira convencer a si próprio que nada tinha a ver com a morte do cardeal. Ele morrera de um distúrbio estomacal, e esse tipo de doença podia atacar a qualquer homem, fosse chanceler ou mendigo.
- Qual é o problema agora, Ana? Já não lhe disse que é impossível envenenar minha mente contra você?
- Você não deve se lembrar, mas quando eu era muito jovem e vim para a corte, Percy de Northumberland manifestou seu desejo de casar-se comigo.
O rei estreitou os olhos. Ele lembrava bem. Fizera Wolsey banir da corte o rapaz e também a Ana. Durante anos ela esteve fora de seu alcance. Naquela época Ana fora apenas um botão de rosa, mal desabrochado, mas muito linda. Eles tinham perdido anos juntos.
- Não houve contrato - prosseguiu Ana. - Ele foi jubilado da corte, tendo sido prometido previamente à filha de Lord Shrewsbury. Agora os dois brigaram. Ele diz que irá deixá-la, e ela diz que soube por ele que os dois nunca estiveram realmente casados, porque ele estava compromissado comigo.
O rei deixou escapar um impropério, e pôs de lado sua harpa.
- Isso não é verdade? - perguntou.
- Evidentemente não!
- Então precisamos pôr um fim nesses boatos fúteis. Deixe isso a meu cargo, amor. Irei levá-lo ao arcebispo de Canterbury. Se ele não retirar essa declaração, o pior irá lhe acontecer!
O rei pôs-se a andar em círculos, tensão estampada no rosto.
- Meu amor, estou cercado por loucos-desabafou. - Se Wolsey estivesse aqui...
Ela não disse nada, porque não era necessário atacar o cardeal agora; ele era um problema sanado. Ana tinha inimigos novos com quem lidar. Sabia que Henrique estava postergando a decisão de entregar o cargo de chanceler a Norfolk ou a More; fazia isso para lembrar a todos que embora Wolsey houvesse morrido, ele não tivera qualquer relação com sua morte. Ela desejou que não conhecesse tão bem esse homem; desejou que ela pudesse ser tão despreocupada quanto as pessoas a seu redor, vivendo para o dia, não pensando no amanhã. Ela, que se vestia garbosamente, ciente de sua graça e charme, sabendo que era irresistível para os homens, perguntava-se o que aconteceria quando fosse velha, como sua avó Norfolk.
"Então, suponho, irei dormir numa cadeira e recordar minha juventude aventureira, e cutucar minhas netas com um cajado de ébano. Eu gostaria que minha avó viesse ver-me. Ela é uma velha tola, decerto, mas pelo menos ela seria minha amiga."
- Querida, preciso sair agora para cuidar desse assunto - disse o rei. - Não terei paz de espírito enquanto Northumberland não admitir que isso é uma mentira.
Ele beijou os lábios de Ana; ela retribuiu o beijo, sabendo muito bem como encantá-lo. Era parcimoniosa com suas carícias; assim, quando as recebia, Henrique era-lhe mais grato do que seria a uma esposa mais generosa. Ele era o caçador; embora ele falasse continuamente sobre ansiar por paz de espírito, ela sabia que isso jamais iria satisfazêlo. Ele nunca se saciava; estava sempre em busca de satisfação. Durante dois anos ela o mantivera saciado, apesar das circunstâncias difíceis. Ela precisava mante-lo assim, pois o seu futuro dependia de sua habilidade em fazer isso.
Ele teria permanecido com ela de bom grado, mas ela o estimulou a ir. Ana lhe disse:
- Porque, embora eu saiba que isto tudo é mentira, até que Northumberland diga a verdade, estarei debaixo de uma nuvem. Eu não poderei casar-me com você se não tivermos sua confissão plena de que não há um grão de verdade nessas declarações.
Ana fitou o rei com olhos estreitos; viu-o retribuir com um olhar que expressava seu temor profundo de perdê-la. Ele era fácil de ser lido, simples em seus desejos, sempre disposto a aceitar a avaliação de Ana sobre ela própria. Que parvoíce teria sido chorar, dizer-lhe que Northumberland mentira, fazê-lo acreditar que ela queria tornar-se rainha da Inglaterra para seu próprio benefício, não para o dele. Enquanto ele acreditasse que ela estava disposta a retornar ao Castelo de Hever, enquanto ele acreditasse que ela desejava ser esposa do rei principalmente porque cedera aos desejos dele e sacrificara sua honra e virtude, ele lutaria por ela. Ana precisava fazê-lo crer que a alegria que ela podia dar-lhe valia mais do que qualquer honra que ele podia deitar aos pés dela.
E ele acreditava nisso. Henrique saiu da sala furioso; ele levou Northumberland ao arcebispo; ele o fez jurar que jamais houvera um contrato com Ana Bolena. Ficou perfeitamente claro que Northumberland estava casado com a filha de Shrewsbury, e Ana Bolena livre para desposar o rei.
Ana soube que seus esforços para resolver aquela pequena questão lograram sucesso.
Foi diferente com o problema sobre Suffolk.
Suffolk, invejoso, procurando impedir o casamento de Ana com o rei, estava disposto a qualquer coisa para desacreditar Ana, contanto que conseguisse manter a cabeça sobre os ombros.
Ele iniciou um rumor de que Ana tivera um caso com Thomas Wyatt mesmo antes que o rei demonstrasse sua preferência por ela. Esse tipo de boato representava um perigo real; não havia ninguém na corte que não tivesse testemunhado a atitude amorosa de Thomas para com Ana; eles tinham sido vistos por todos, passando muito tempo juntos, e era possível que ela tivesse demonstrado ao poeta sua preferência por ele.
Ana, decidindo que contra-atacar com outro rumor era a melhor solução, respondeu com algo bastante danoso a Suffolk. Ela disse, em lugares onde sabia que qualquer comentário chegaria rápido aos ouvidos de Suffolk, que ele nutria um afeto mais que paternal por sua filha, Francês Brandon, e que seu amor por ela era nada menos que incestuoso. A acusação enfureceu Suffolk. Ele confrontou Ana; eles discutiram; e, como resultado dessa briga, Ana insistiu que ele se ausentasse da corte por algum tempo.
Isso foi guerra aberta contra alguém que - talvez com a exceção de Norfolk - era cunhado do rei e um dos nobres mais poderosos da Terra. Suffolk retirou-se furioso. Ana sabia que ele não deixaria uma acusação dessa escala passar sem resposta, e ela sempre tivera medo de Suffolk.
Sentindo-se deprimida, trancou-se em seus aposentos. Chorou um pouco e instruiu Anne Saville a não admitir ninguém que procurasse por ela, incluindo o próprio rei.
Ficou deitada na cama, fitando o teto ornamentado, enxergando os olhos raivosos de Suffolk para onde quer que olhasse. Visualizou-o conversando com os amigos sobre a arrogância daquela que - momentaneamente -tinha os ouvidos do rei perto dos lábios. Momentaneamente! Era uma palavra hedionda.
"Rainha!", pensou. "Se me tornasse rainha, quão feliz ficaria!"
A espera parecia interminável. O papa jamais cederia; ele temia o imperador Carlos!
"Como poderei ser rainha da Inglaterra enquanto Catarina viver?"
Uma batida em sua porta e a cabeça de Anne Saville apareceu.
- Eu lhe disse que não veria ninguém - gritou Ana, impaciente.
- Disse ninguém! Absolutamente ninguém. Nem mesmo o rei...
- Não é o rei - disse Ana Saville. - É milorde Rochford. Disselhe que talvez a senhora quisesse vê-lo...
- Traga-o para mim.
George entrou, o rosto belo estampando um sorriso. Mas ela conhecia-o bem o bastante para ver a expressão preocupada por trás do sorriso.
- Foi uma tarefa hercúlea fazer com que ela lhe dissesse que eu estava aqui, Ana.
- Eu disse a ela que não queria ver ninguém.
Ele se sentou na cama e olhou para ela.
- Ouvi sobre o incidente com Suffolk, Ana - disse, e estremeceu. - É um caso grave.
- Temo concordar com você. - Ele é cunhado do rei.
- Bem, e o que tem isso? Eu serei a esposa do rei!
- Você faz inimigos demais, Ana.
- Eu não os faço! Eles se fazem sozinhos.
- Quanto mais alto você ascender, irmã, mais numerosos serão seus inimigos, todos dispostos a derrubá-la.
- Você não pode me dizer mais do que eu sei sobre esse assunto, George.
Ele se inclinou na direção de Ana.
- Quando vi Suffolk, quando ouvi os boatos... Senti medo. Em seu lugar, eu teria sido mais razoável, Ana.
- Ouviu o que ele disse a meu respeito? Disse que eu e Wyatt éramos, ou tínhamos sido, amantes!
- Compreendo que você precisasse puni-lo... mas não daquela forma.
- Eu disse que ele seria banido da corte, e ele o foi. Se eu digo que alguém será banido, isso deve ser feito.
- Uma rainha terá mais necessidade de amigos do que Ana Rochford, e Ana Rochford jamais poderia ter amigos demais.
- Ah, meu sábio irmão! Tenho sido tão tola... sei disso.
- Ele não deixará o assunto morrer aqui, Ana. Tentará lhe causar algum mal.
- Sempre haverá aqueles que tentarão causar-me mal, George, não importa o que eu faça!
- É insensato fazer inimigos.
- Às vezes sinto-me farta da corte, George.
- É isso que diz a si mesma, Ana. Mas, se fosse banida para Hever, morreria de tédio.
- com isso concordo plenamente, George!
- Se alguém lhe perguntasse qual é o seu desejo mais querido, e você respondesse sinceramente, diria: "Quero estar sentada com segurança no trono da Inglaterra." Estou certo?
- Você me conhece melhor do que eu conheço a mim mesma, George. É uma aventura gloriosa. Estou voando alto, a viagem é empolgante, alegre, mas, às vezes, quando olho para baixo, sinto vertigem; e então, sinto medo. - Estendeu uma das mãos e ele a segurou. - As vezes digo para os meus botões que não confio em mais ninguém no mundo além de George. Ele beijou a mão da irmã.
- Você sempre poderá confiar em George - prometeu. - Em outros também, garanto, mas sempre em George. - Repentinamente, George deixou de lado suas reservas e se pôs a falar tão francamente quanto a irmã. - Ana, Ana, às vezes sinto tanto medo! Para onde estamos indo, você e eu? De cidadãos simples tornamo-nos cidadãos eminentes. E ainda assim... ainda assim... Lembra quando desprezávamos a pobre Mary? E ainda assim... Ana, para onde estamos indo, você e eu? Você é feliz? Eu sou? Casei-me com a mais rancorosa das mulheres; você está contemplando o casamento com o mais perigoso dos homens. Ana, Ana, temos caminhado na lâmina de uma espada.
- Você está me amedrontando, George.
- Não vim lhe pôr medo, Ana.
- Veio para reprochar-me por minha conduta em relação a Suffolk, Sabe que eu sempre odiei esse homem.
- Ana, quando você odeia alguém, o mais sábio é esconder esse ódio. Apenas o amor deve ser mostrado.
- Não há nada que possa ser feito agora sobre Suffolk. No futuro me lembrarei das suas palavras. Lembrarei de quando você veio aos meus aposentos com o semblante preocupado flutuando sobre o seu sorriso caloroso.
A porta se abriu; Lady Rochford entrou. Seus olhos correram para acama
- Achei que encontraria a senhora aqui.
- Onde está Anne Saville? - perguntou Ana friamente, odiando que perturbassem esse tête-à-tête; ainda havia muita coisa que ela precisava dizer ao irmão.
- Quer que eu a repreenda por ter-me deixado entrar? - indagou Jane, e acrescentou, a voz transbordando malícia: - Acho que quando meu marido entra na câmara de uma dama, devo segui-lo.
- Como está passando, Jane? - indagou Ana.
- Muito bem, obrigada. Mas você não parece tão bem, irmã. O incidente com Suffolk deve tê-la abalado. Ouvi dizer que ele está furibundo. Pelo que ouvi, você o acusou de incesto.
O rosto de Ana ficou vermelho de raiva. Havia algo em sua cunhada que podia enfurecê-la mesmo quando ela se sentia nos melhores termos com o mundo; agora, a mulher estava enlouquecendo-a.
Jane prosseguiu:
- Isso deixará a irmã do rei iracunda. Ela tem péssimo humor, você sabe... E o que Francis irá dizer, nem consigo pensar!
- Não achava que você pensasse sobre qualquer assunto - fustigou-a Ana. - E não gosto que entre em meus aposentos sem ser anunciada.
- Sinto muito, Ana. Achei que você não trataria tão cerimoniosamente a esposa do seu irmão.
- É hora de irmos, Jane - disse George, voz cansada. E só então ela percebeu que aquela era a primeira vez que a olhava desde sua primeira expressão de desgosto ao vê-la entrar no quarto.
- Está bem. Sei quando não sou desejada; mas não me permitam perturbar sua conversa. Tenho certeza de que foi muito aprazível... e amorosa.
- Adeus, Ana - disse George. Ele se levantou, sorrindo para ela, seus olhos emitindo uma mensagem: - Fique calma. Tudo ficará bem. O rei a adora. Já esqueceu que ele irá fazer de você sua rainha? Nada tem a temer de Suffolk! Não enquanto o rei amar você.
- Você me fez muito bem, George - agradeceu Ana. - Você sempre me faz sentir bem.
Ele parou e se inclinou para beijar a fronte da irmã.
Enciumada, Jane observou os dois. Quando fora a última vez que ele a beijara - voluntariamente -, há um ano, ou mais?
"Eu odeio Ana", pensou Jane. "Senta-se reclinada como se já fosse uma rainha. Usa vestidos caríssimos, pagos, não resta dúvida, pelo próprio rei! Toda coberta de jóias como se estivesse exercendo um papel numa cerimónia de Estado, e não descansando em seus aposentos pessoais. Rezo para que ela jamais se torne rainha! Catarina é rainha. Por que um homem descarta a esposa porque está cansado dela? Por que Ana Bolena deveria tomar o lugar da rainha verdadeira, só porque é jovem, deslumbrante, vivaz e arguta, e sabe vestir-se bem e fazer com que todos os cortesãos a considerem a coisa mais bela na qual já deitaram os olhos? Todos falam sobre ela; não é possível ir a qualquer lugar sem ouvir o nome de Ana Bolena. E George a ama... e ele nunca me amou! E não sou eu a sua esposa?"
- Vamos, Jane! - disse George, seu tom de voz absolutamente diverso daquele que usara para com sua irmã.
Ele a conduziu para fora. Caminharam silenciosos através dos corredores rumo a seus aposentos no palácio.
George tentou afastar-se de Jane, mas ela se colocou em seu caminho.
- Você se deixa engabelar por ela tanto quanto o rei!
Ele exalou aquele suspiro cansado que sempre fazia-a sentir vontade de matá-lo, mas não realmente, porque ela o amava; e matá-lo seria aniquilar todas as suas chances de felicidade.
- Você fala contra-sensos, Jane!
- Contra-sensos! - gritou agudamente.
E então se rendeu a lágrimas, cobrindo o rosto com as mãos, esperando que ele lhe segurasse as mãos, implorasse para que ela se controlasse. Ela chorou alto, mas nada aconteceu, e destampando o rosto viu que ele a deixara.
Então ela tremeu de raiva fria contra ele e sua irmã.
- Queria que morressem, os dois! Eles merecem morrer; ela, pelo que fez à rainha; ele, pelo que fez a mim! Um dia...
Ela se calou e correu ao espelho, viu o rosto manchado pelas lágrimas, deformado pela dor, e pensou no rosto frio e adorável da moça que vira na cama, e nos cabelos longos e escuros que, desmazelados, pareciam ainda mais bonitos do que quando penteados com zelo.
Prosseguiu, murmurando para si mesma:
- Acho que um dia matarei um deles... quiçá ambos.
Esses eram pensamentos absurdos, que George decerto diria seremlhe dignos; não obstante, ela encontrou nele um escape para seus sentimentos violentos, e eles lhe trouxeram um conforto inusitado.
Uma barca passou ao longo do rio. As mulheres à margem viraram-se para olhá-la. Na embarcação estava a mais bela dama da corte do rei. As pessoas viram como o sol
poente alumiava sua pessoa ornada em jóias. Os cabelos estavam presos por uma coifa dourada que repousava elegantemente em sua cabeça.
- "Ama" Bolena! - As palavras soavam como trovão em meio ao povo.
- Dizem que a pobre rainha, a verdadeira rainha, está morrendo de coração partido...
- Assim como Maria Tudor, sua filha.
- Dizem que "Ama" Bolena subornou o cozinheiro da rainha para administrar veneno a Sua Majestade...
- Dizem que ela ameaçou envenenar a princesa Maria Tudor.
- E quanto ao rei?
- O rei é o rei. Não tem culpa alguma. Apenas está enfeitiçado por essa marafona!
- Ela é belíssima
- Bah! Isso é efeito de sua bruxaria
- Isso é verdade, uma bruxa pode aparecer sob qualquer disfarce... Mulheres vestidas em farrapos cuspiam palavras venenosas ao deitar
os olhos em todo o cetim, veludo e tecido de ouro que cobria o corpo de Lady Ana Rochford... que na verdade era apenas a nefanda "Ama" Bolena
- O avô dela era apenas um mercador de Londres. Pôr que devemos ter uma filha de mercador como rainha?
- Não poderá haver rainha enquanto a primeira rainha viver.
- Eu perdi dois filhos para a doença do suor...
Os londrinos pisavam em lama de sarjeta, evitando os ratos cuja ousadia aumentara com seu número e a falta de surpresa e animosidade causada por sua presença.
Em meio ao fedor que pairava sobre as ruas calçadas em paralelepípedos, os plebeus amaldiçoavam Ana Bolena
Sobre a Ponte de Londres, as cabeças de traidores olhavam com seus olhos vítreos; vísceras flutuavam pelo rio; mendigos com membros cobertos por ulcerações pediam esmolas; mendigos com uma perna, mendigos com um olho e mendigos com o corpo comido pela lepra.
- Vivemos num país pobre desde que o rei expulsou do leito sua rainha virtuosa!
- Lembro da pobre dama em sua coroação. Era bela então, vestida em tecido de ouro e com os cabelos longos e adoráveis caindo sobre seus ombros. Mas suas vestes jamais foram tão caras quanto as da amante do rei.
- Um homem, mesmo que seja ele um rei, deve livrar-se de sua esposa porque ela não é mais jovem?
Esse era o lamento das mulheres atemorizadas, sendo conhecido por todos que o rei estabelecia exemplos. Era o lamento das mulheres envelhecidas contra os membros mais jovens de seu sexo que iriam seduzir seus maridos e roubá-los delas.
Os murmúrios subiram para um rugido.
- Não teremos como rainha "Ama" Bolena!
Havia uma mulher com olhos fundos e sem os dentes da frente. Ela levantou as mãos e gritou para as mulheres que se reuniam a seu redor.
- Vocês não aceitarão "Ama" Bolena, hein? E o que farão a respeito disso, hein? Vocês serão as primeiras a gritar "Deus salve Sua Majestade" quando o rei fizer dessa rameira nossa rainha!
- Não eu! - gritou um espírito ousado, e as outras juntarem-se
em coro.
A chama da liderança envolvia essa mulher. Ela brandiu um cajado.
- Vamos pegar "Ama" Bolena! Vamos pegá-la, e depois que tivermos dado cabo dela veremos se continua essa beldade. Quem virá? Quem virá?
Havia excitação no ar. Muita gente sempre estava disposta a seguir uma procissão, até mesmo a defender uma causa; e qual era mais valiosa do que esta, quando as plebeias tinham tão pouco para comer e vestir, tão pouco com que sonhar, e tanto a temer?
Tinham visto Lady Ana Rochford em sua barcaça, orgulhosa e imperiosa, tão bela que mais parecia uma pintura que uma mulher; suas roupas pareciam perfeitas demais para serem verdadeiras... e ela não estava tão distante deles.... sua barcaça parara no rio.
O céu escuro instigava-as à aventura, aventura perigosa. Elas eram necessitadas; eram famintas; e Ana era rica, indubitavelmente a caminho de um jantar na casa de amigos. Seria por uma causa nobre: a causa de rainha datarina; a causa da princesa Maria Tudor.
- Abaixo Ana Bolena! - gritavam.
Lembraram que a meretriz estaria coberta de jóias. Suas mentes foram tomadas por cupidez e desejo de justiça.
- Deixaremos essa mundana sentar no trono da Inglaterra? Dizem que ela carrega uma fortuna em jóias sobre o corpo!
Contava-se que certa vez, nos dias de sua juventude, o rei Henrique participava de um banquete com amigos, sob os olhos atentos da plebe; tão ofuscada estava com sua pessoa, que não conseguia dela desviar os olhos. De súbito, os plebeus investiram contra o rei, agarraram-no e despojaram-no de suas jóias. O que ele fez? Ele era um rei nobre, um amante de brincadeiras. O que ele fez? Não fez nada além de sorrir e tratar o assunto como uma piada. Ele era um rei bonachão! Um grande rei! Entretanto, no momento
Henrique encontrava-se sob a influência malévola de uma bruxa. Naquela noite da juventude do rei, alguns plebeus tinham roubado uma fortuna. Por que então não roubar agora uma fortuna de "Ama" Bolena? E ela não era um rei bom e bonachão, mas uma mulher ardilosa, uma bruxa, uma envenenadora, uma usurpadora do trono da Inglaterra! Era por uma causa justa; uma causa nobre; e, também, uma causa lucrativa!
Alguém acendera uma tocha. Outra se acendeu, e mais outra. Ao brilho bruxuleante das chamas, os rostos das mulheres tomavam a semelhança de caras de animais. Havia cupidez em cada rosto... e crueldade, ciúme, inveja...
- Ah! O que faremos com "Ama" Bolena quando a encontrarmos? Eu irei desmembrá-la... irei arrancar as jóias de seu corpo. "Ama" Bolena não será nossa rainha. Rainha Catarina para sempre!
As mulheres dispuseram-se em alguma ordem, e marcharam. Havia agora mais tochas; elas compunham um rubor brilhante no céu.
Elas murmuravam, e cada uma sonhava com a jóia reluzente que arrancaria daquele corpo alvo. Uma fortuna... uma fortuna a ser feita numa noite apenas, e em nome da causa justa da rainha Catarina.
- O que significa isto? - indagaram recém-chegados.
- "Ama" Bolena! - entoou a turba. - Não aceitaremos nenhuma "Ama" Bolena! Rainha Catarina para sempre!
A multidão agora estava grande e densa, e continuava seguindo em frente, uma multidão imbuída de um único propósito sombrio.
Ana, na casa à margem do rio onde fora jantar, viu o rubor no céu, ouviu o entoar baixo das vozes.
- O que dizem eles? - perguntou aos que estavam com ela. - O que está acontecendo? Acho que eles vêm para cá.
Ana e seus amigos saíram para o jardim à beira do rio, e puseram-se a escutar atentamente. As vozes pareciam pertencer a milhares de pessoas.
- "Ama" Bolena... "Ama" Bolena... Não aceitaremos a meretriz do rei...
O medo embrulhou o estômago de Ana. Já ouvira esse grito antes, mas nunca tão perto, nunca tão ominoso.
- Eles a viram vir para cá - sussurrou sua anfitriã, tremendo, imaginando o que uma turba furiosa poderia fazer aos amigos de Ana Bolena.
- O que eles querem?
- Dizem o seu nome. Ouça... Eles forçaram seus ouvidos.
- Não aceitaremos nenhuma "Ama" Bolena! Rainha Catarina para sempre!
Os convidados estavam pálidos; eles se entreolharam, trémulos. Externamente calma, internamente tensa, Ana disse:
- Bons amigos, creio que é melhor deixá-los. Talvez eles decidam ir embora quando não me encontrarem aqui-
Chamou Anne Saville para acompanhá-la, e com a dignidade de uma rainha, sem qualquer pressa, desceu os degraus na margem do rio até sua barcaça. Mal ousando respirar até que a embarcação tivesse se afastado da margem, Ana olhou para trás e viu as tochas nitidamente. Diante daquela massa escura de pessoas, não teve como não conjeturar o que lhe teria acontecido em suas mãos.
Silenciosa, a barcaça movia-se rio abaixo, na direção de Greenwich. Anne Saville estava lívida e trémula, choramingando; mas Lady Ana Rochford aparentava calma.
Sem poder esquecer os uivos de ódio, sentiu o coração pesado de tristeza. Ana sonhara tornar-se rainha, cavalgar pelas ruas de Londres, aclamada pelo povo. "Rainha Ana. Boa rainha Ana!" Ela queria ser respeitada e admirada.
- "Ama" Bolena, a puta! Não queremos uma prostituta no trono...
Rainha Catarina para sempre!
- Conquistarei o respeito do povo - disse a si próPria- Preciso... preciso! Um dia... um dia eles irão me amar.
A barcaça singrou com rapidez. Ana sentia-se exausta ao alcançar o palácio. Mas sua postura estava mais arrogante, imperiosa e régia do que quando ela saíra para ir à casa à margem do rio.
Foi marcado um banquete especial no dormitório em Horsham. As meninas tinham passado o dia inteiro rindo à socapa.
- Soube que essa será uma ocasião especial para você - disse a Catarina Howard uma das moças. -Teremos um quitute especial para você!
Catarina arregalou os olhos ao ouvir isso. "O que era?", perguntou-se.
Isabel estava sorrindo secretamente; todas faziam segredo de alguma coisa.
Ela tivera sua lição naquele dia, e descobrira Manox menos aventureiro que de costume. A duquesa cochilara, batera o pé ritmicamente e até reprochara Catarina, que
naquele dia realmente tocara mal. Durante todo o tempo Manox manteve-se sentado reto a seu lado - mais o professor do que o amigo afetuoso. Catarina soube então o quanto aguardava ansiosa as lições.
- Eu o ofendi? - sussurrou Catarina para Manox.
- Ofender-me? Claro que não. Você nunca poderia fazer-me nada além de me agradar.
- Tenho a impressão de que você está distante hoje.
- Sou apenas seu instrutor de cravo-sussurrou Manox. - Ocorreu-me que se a duquesa descobrir que somos amigos, ficará ofendida. Ela talvez até suspenda as lições. Isso não iria causar-lhe tristeza, Catarina?
- Decerto que iria! - disse Catarina - De todas as coisas, a que mais amo é a música.
- E do seu professor, não gosta?
- Sabe muito bem que gosto.
- Vamos tocar. A duquesa está cochilando, mas pode nos ouvir falar a qualquer momento.
Ela tocou. O pé da duquesa começou a bater vigorosamente no chão; então voltou a bater cada vez mais devagar até parar.
- Nunca deixo de pensar em você - disse Manox. - Mas com medo.
- Medo?
- Medo de que aconteça alguma coisa que interrompa estas lições.
- Oh, nada acontecerá!
- Ainda assim, com que facilidade poderia acontecer! Sua Graça pode simplesmente decidir que você precisa ter outro professor.
- Então iria pedir-lhe para continuar sendo sua aluna. Os olhos de Manox arregalaram-se em alarme.
- Você não deve fazer isso, Catarina!
- Mas eu faria! Não suportaria ter outro professor.
- Pensei muito no que lhe dizer hoje, Catarina. Se Sua Graça souber de nossa... nossa amizade.
- Nós tomaremos cuidado - disse Catarina.
- É triste que só possamos nos encontrar aqui, sob a vigília da duquesa.
Catarina ensaiou algo para dizer, mas ele mandou-a calar-se.
- Sua Graça vai acordar. No futuro, Catarina, eu parecerei estar distante de você, mas não se iluda. Porque, embora eu possa parecer meramente seu mestre frio e rígido, meu apreço por você estará tão profundo quanto nunca.
Catarina sentiu uma grande tristeza. Ela adorava carícias e demonstrações de afeto, mas pouquíssimas surgiam em seu caminho. Depois que a duquesa a dispensou, ela retornou para os aposentos das jovens damas sentindo-se triste e desanimada. Deitou-se na cama e puxou as cortinas; pensou nos olhos escuros de Manox e como em várias ocasiões ele se inclinara para perto dela e beijara-a rapidamente.
No dormitório ela podia ouvir as meninas rindo juntas, preparandose para a noite. Ouviu seu próprio nome ser mencionado entre risos.
- Uma surpresa...
- Por que não...
- É mais seguro...
Não lhe importavam as surpresas que as moças lhe reservavam. Importavam-lhe apenas o fato de que Manox jamais iria beijá-la de novo. Então ocorreu a Catarina que ele provavelmente apenas gostava dela como um rapaz jovem e atraente podia gostar de uma moça. Não era a mesma emoção que pessoas mais velhas sentiam umas pelas outras. Catarina pensava muito sobre esse tipo de emoção, e ansiava por experimentá-la. Mas, antes que isso acontecesse, ela precisava viver os anos lastimáveis de sua infância. O pensamento deixou-a melancólica.
Através das cortinas ela escutou o som de passos lépidos. Ouviu a voz de um rapaz. Ele disse que trouxera doces e guloseimas para a festa daquela noite. Houve exclamações de surpresa e de deleite.
- Como são apetitosos!
- Mal consigo manter minhas mãos longe deles.
- Esta noite será especial, não sabem? A chegada da maturidade de Catarina...
O que isso significava? Elas podiam rir, se quisessem. Catarina não estava interessada em suas surpresas. A noite chegou. Isabel insistiu em abrir as cortinas da cama de Catarina.
- Não me sinto bem esta noite-alegou Catarina - Quero dormir.
- Bah! - riu Isabel. - Achei que você ia querer juntar-se à diversão! Nós trabalhamos duro para fazer desta uma noite inesquecível para você.
- Vocês foram muito gentis, mas eu realmente preciso dormir.
- Você não sabe o que está dizendo. Venha, beba um pouco de vinho. Os convidados começaram a chegar. Eles entraram na ponta dos pés, contendo seus risos. A sala enorme estava carregada da excitação erótica que sempre fazia parte desses eventos. Ouviam-se palmadas, beijos e risos; cortinas de camas eram abertas e fechadas; e pedidos de cautela, pedidos por menos barulho.
- Você será a morte para mim, tenho dito!
- Silêncio! Sua Graça...
- Sua Graça está roncando elegantemente. Posso ouvi-la daqui.
- Há pessoas que às vezes acordam com seus próprios roncos!
- Isso acontece com a duquesa. Eu já vi!
- E Catarina também já viu, quando estava tendo suas lições de cravo com Henry Manox!
Esse comentário gerou uma grande gargalhada, como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Catarina disse, muito séria:
- É verdade. Ela costuma acordar com os próprios roncos.
A porta abriu. Houve um momento de silêncio. O coração de Catarina começou a martelar com uma mistura de medo e prazer. Henry Manox entrou na sala.
- Sê bem-vindo! - saudou Isabel. - Catarina, eis a sua surpresa. Catarina se levantou. Primeiro ficou vermelha, e então branca.
Manox caminhou rapidamente até ela e sentou-se em sua cama.
- Eu não tinha noção... - balbuciou Catarina
- Decidimos que iria ser um segredo. Você não está descontente em me ver, está?
- Eu... claro que não!
- Seria ousadia da minha parte crer que você está feliz?
- Sim, estou feliz. Muito.
Os olhos negros de Manox reluziram.
- Pequena Catarina, era perigoso beijá-la diante da duquesa. Fiz isso apenas por força da necessidade que eu sentia em beijá-la
Ela respondeu:
- É perigoso aqui.
- Bah! - retorquiu. - Eu não temeria o perigo aqui... estando entre tantas pessoas. E quero que você saiba, Catarina, que nenhum perigo iria me deter.
Isabel aproximou-se do casal.
- E então, minhas crianças? Vêem agora como eu penso na sua felicidade?
- Essa era a sua surpresa, Isabel? - indagou Catarina.
- Claro. Não está grata? Não foi uma surpresa boa?
- Foi sim.
Um dos jovens gentis-homens aproximou-se com um prato de doces; o outro, com vinho.
Catarina e Manox sentaram na ponta da cama de Catarina, de mãos dadas. Catarina pensou que nunca se sentira tão excitada ou feliz, pois sabia que saíra direto de uma infância dolorosa para a maturidade, onde a vida era perpetuamente empolgante e divertida.
- A partir de hoje não me importarei em me comportar como um santo diante de Sua Graça! Catarina, eu parecerei frio e distante, mas o tempo inteiro você saberá que eu desejo beijá-la.
Dito isso, Manox inclinou-se para beijar Catarina. A mocinha retribuiu o beijo. O vinho era potente; os doces, agradáveis. Manox passou um braço em torno da cintura de Catarina.
A sala foi imersa no escuro; nessas ocasiões jamais usavam-se luzes, pois poderiam chamar a atenção.
- Catarina, quero ficar sozinho com você completamente - disse Manox. - Vamos... fechar essas cortinas.
E assim Manox fechou as cortinas, e os dois se encontraram isolados das outras moças e dos convidados da festa.
A névoa de outubro pairava sobre Calais. A mente de Ana voltou muitos anos no tempo, até a época das festas em Ardes e Guisnes. Naquela época, como agora, Francis e Henrique tinham se encontrado e expressado sua amizade. Naquela época, Catarina fora a rainha de Henrique; agora a primeira-dama da Inglaterra era a marquesa de Pembroke, a própria Ana. Ana sentia-se mais tranquila agora do que nos últimos quatro anos. Nunca tivera tanta certeza de que sua
Ambição viria um dia a ser concretizada. O rei estava tão ardente quanto sempre, e impaciente com a longa espera. Além disso, Thomas Cromwell tinha planos ardilosos
para apresentar à Sua Majestade. Esse era um homem dotado de uma certa crueldade, o tipo de homem que podia ser encarregado de qualquer tarefa, por mais arriscada ou suja que fosse. E, contanto que a recompensa fosse grande o bastante, a tarefa decerto seria realizada.
Assim, vivendo o ápice da glória que alcançara até aquele momento, Ana podia desfrutar da pompa e cerimónia desta excursão à França, que estava sendo tratada como uma visita de um rei e sua rainha. Henrique estava disposto a mandar para a Torre qualquer pessoa que não prestasse a Ana a honra que ele lhe julgava devida. Há um mês Ana fora sagrada marquesa de Pembroke, e com essa grande honra adquirira também as regalias de uma rainha. Tinha agora, para seu uso pessoal, uma caudatária, aias de alcova, damas de honra, guardas, oficiais burocráticos e pelo menos 30 serviçais. Henrique queria que o mundo soubesse que uma cerimónia de casamento era a única coisa que impedia a marquesa de ser rainha em título.
- Por Deus! - disse Henrique a Ana. -Juro que você não envelhecerá muito antes que isso aconteça, minha querida!
Eles tinham permanecido quatro dias em Bolonha, e ali Ana sofrera um certo constrangimento. Como as damas francesas não tinham vindo com Francis, Ana não pudera comparecer às festividades que os franceses haviam providenciado para Henrique. Era compreensível que a esposa de Francis não tivesse vindo. Depois da morte de Claude, Francis casara-se com uma irmã de Carlos, Eleanor, e era sabido que, enquanto a visita estava sendo discutida, Henrique dissera que preferiria ver o diabo encarnado a uma mulher em roupas espanholas. A rainha da França, portanto, não poderia vir. Restava a irmã de Francis, a rainha de Navarre, mas ela alegara doença. Consequentemente, não havia damas da corte francesa para saudar Henrique e sua marquesa. com toda certeza isso ocorrera em consequência de um preconceito contra Ana, mas esses preconceitos seriam extintos assim que Ana passasse a usar uma coroa.
Agora eles estavam de volta a Calais e, muito em breve, com suas damas, Ana desceria o grande salão para o baile de máscaras. Contudo, ela teria de esperar até que o jantar fosse concluído, porque ao banquete compareceriam apenas homens. Enquanto aguardava, Ana entregava-se a reminiscências, pensando nos últimos meses, lembrando-se daquela cerimónia de Estado em Windsor, quando o rei fizera-a marquesa de Pembroke - a primeira mulher da história a ser sagrada fidalga do reino. Que triunfo! E como Ana - com seu amor pela admiração e pela pompa, das quais ela era o centro - gozara de cada minuto! Damas de berço nobre, que antes tinham-se considerado tão acima de Ana Bolena, haviam sido forçadas a comparecer com toda a humildade: Lady Mary Howard para carregar os robes oficiais de Ana; as condessas de Rutland e Sussex para conduzi-la ao rei; os lordes de Norfolk e Suffolk, juntamente com o embaixador francês, para atender ao rei nas acomodações oficiais. E toda essa cerimónia fora realizada em honra a Ana Bolena! Lembrou de si mesma, os cabelos soltos caindo sobre o manto de veludo carmesim franjado com arminho; ela ajoelhada diante do rei enquanto, amorosa e ternamente, ele punha na cabeça de sua amada a coroa de marquesa.
E então, a jornada para a França, e com Wyatt em sua comitiva, bem como seu tio Norfolk e, o melhor de tudo, George. com George e Wyatt presentes, ela sentira-se segura e feliz; Wyatt amava-a mais do que nunca, embora agora não ousasse mais demonstrar seu amor. Ele o derramava em sua poesia.
Não se esqueça! Oh, não se esqueça! Há muito tempo, e ainda hoje, Guardo o mesmo pensamento. Não se esqueça, jamais!
Não se esqueça daquele que a adora, Que há tanto tempo a leva consigo, Cuja fé é firme, e sempre o será. Não se esqueça, jamais!
Enquanto era vestida por suas damas, Ana citou para si essas palavras. Wyatt jamais iria esquecê-la; ele rogava-lhe que ela não o excluísse de seus pensamentos. Ana sorriu, feliz. Não, ela não esqueceria Wyatt; mas ela estava feliz esta noite, quando se sentia mais segura do que nunca sobre as intenções do rei em
desposá-la. Ele declarara isso muitas vêzes, mas ações valiam muito mais do que palavras. Se Henrique não estivesse mais determinado a torná-la sua rainha do que há dois anos, não a teria sagrado marquesa
de Pembroke, e nem a trazido consigo para a França. Ana sentia-se forte e plena de poder, capaz de prender Henrique e mante-lo sob seu controle. Como podia não se sentir feliz, sabendo que era tão amada! George era seu amigo; Wyatt dissera que jamais iria esquecê-la. Pobre Wyatt! E o rei preferira enfrentar a desaprovação do povo, e até mesmo a possibilidade de enfraquecer seu trono, a abrir mão de Ana.
A coragem fazia seus olhos brilharem mais, punha-lhe cor nas faces. Esta noite ela estava vestida numa fantasia de baile; o vestido era de tecido de ouro com seda escarlate trancada ao longo de seu corte num estilo incomum, e forrado com tecido de prata e ornamentado com laços dourados. Todas as damas estavam vestidas nesse estilo, e elas deveriam entrar no baile mascaradas, para que ninguém soubesse quem eram. E então, depois da dança, o próprio Henrique removeria as máscaras, e as damas seriam exibidas com orgulho nacional, pois todas tinham sido escolhidas por sua beleza.
A condessa de Derby entrou para dizer a Ana que era hora de descerem. Quatro damas em seda escarlate, que iriam conduzi-las ao salão, foram convocadas, e elas desceram as escadas.
Sua chegada provocou um murmúrio de expectativa no salão que Henrique, a grandes custos, decorara especialmente para a ocasião. As cortinas eram de tecido de prata e ouro; e as costuras dessas cortinas tinham sido decoradas com prata, pérola e pedras preciosas.
Cada dama mascarada iria selecionar seu parceiro, e Ana escolheu para si o rei da França.
Francis mudara muito desde que Ana vira-o pela última vez; seu rosto estava cansado e marcado por linhas; quando estivera na França, ela ouvira histórias alarmantes sobre ele, e lembrava que uma delas era sobre a filha de um prefeito em cuja casa Francis hospedara-se durante uma de suas campanhas. Ele gostara da moça, e ela, temendo seus avanços e conhecendo bem demais a reputação do monarca, arruinara suas feições com ácido.
Francis disse que não podia pensar num deleite maior para depois do jantar do que a ideia do rei inglês: um baile no qual todas as damas estivessem mascaradas.
- Assim, ficamos trémulos de suspense, aguardando o momento em que as máscaras serão removidas.
Ele tentou espiar lascivamente por baixo da máscara de Ana, mas, rindo, ela replicou que estava surpresa por ele ter-se declarado trémulo.
- Não seria o amador, e não o connoisseur, que deve ser reduzido a esse estado?
- Até connoisseurs ficam emocionados diante de obras de arte, madame!
- É isso o que meu senhor, o rei, chamaria de uma lisonja francesa.
- Eu chamaria isso de verdade francesa.
Henrique observava-a, enciumado e alerta, ciente da reputação do rei francês. Não confiava nele, e não gostava de vê-lo conversando com Ana Francis disse:
- É estimulante lembrar que teremos a presença de Lady Ana aqui esta noite. Há muito tempo desejo ver o rosto que encantou meu irmão da Inglaterra.
- A sua curiosidade será saciada em breve.
- Eu já conheci essa dama certa vez - disse ele, fingindo não saber que era justamente ela sua parceira nessa dança.
- Deve ter sido há muito tempo.
- Há alguns anos. Mas uma dama assim, madame, um homem jamais esqueceria.
- Pode falar francês, se quiser. Eu conheço a língua.
Ele falou francês; estava feliz por poder expressar-se em seu próprio idioma. Disse à sua parceira que ela falava encantadoramente. Disselhe que podia apostar que ela era uma dama ainda mais bonita que a própria Lady Ana, porque ele nunca pusera os olhos numa figura tão formosa, nunca ouvira uma voz tão melódica. Disse que tinha certeza de que ela possuía o rosto mais belo da Inglaterra e da França, e ficaria decepcionado se ela não o tivesse!
Ana, sentindo os olhos de Henrique vigiando-a, sentiu-se orgulhosa de seu esposo. Ele era um rei e um grande rei; ela não teria desposado Francis nem por todos os
reinos do mundo.
Henrique, cansado de vigiar Ana, declarou que iria remover as máscaras. E assim ele fez, começando por Ana.
- Vossa Majestade esteve dançando com a marquesa de Pembroke - disse ele a Francis, que se declarou surpreso e maravilhado.
Henrique prosseguiu, deixando Ana com Francis.
- E então, sentiu saudades de seu velho amigo, minha pequena Ana Bolena?
Ana riu.
- Vossa Majestade sabia muito bem com quem estava dançando.
- Uma dama tão cheia de graça, tão aprazível aos olhos e ouvidos, não poderia ser outra senão aquela que em breve, tenho certeza, será minha irmã da Inglaterra. Congratulo-me
por ter sido sua escolha para a dança.
- O cerimonial exigia isso, conforme Vossa Majestade bem entende.
- Você sempre teve uma língua afiada, bela dama! Disso nunca esqueci.
- Fale-me sobre sua irmã.
Conversaram durante muito tempo. De vez em quando Ana ria alto, porque eles tinham lembranças sobre a corte francesa para compartilhar, e cada um podia despertar recordações no outro.
Henrique observou, meio orgulhoso, meio zangado. Ele nunca sentira tanto ciúme de Francis. Não sabia se devia juntar-se a eles ou deixá-los conversando sozinhos. Não lhe apetecia ver Ana numa conversa tão íntima com aquele lascivo Francis, mas isso devia acontecer porque ele era rei da França, e a honra prestada a Ana era honra prestada a Henrique. A aprovação de Francis em Roma poderia significar muito para o processo do divórcio, porque, embora Carlos fosse o homem mais importante da Europa, Henrique e Francis possuíam, juntos, mais poder do que o sobrinho de Catarina.
A dança foi interrompida; as damas se retiraram. Henrique conversou com seu convidado real. Francis sugeriu que ele se casasse com Ana sem o consentimento do papa. Henrique disse que não via possibilidade disso, mas gostou dessa conversa; era agradável pensar que tinha apoio francês.
Henrique foi até a câmara de Ana e dispensou as damas.
- Você está realmente uma rainha esta noite!
- Espero não ter envergonhado o meu rei.
Ela estava alegre, saboreando o sucesso da noite, adorável em seu vestido tecido em ouro.
Henrique envolveu-a com seus braços.
- Os vestidos eram os mesmos, mas você se destacava entre todas elas. Se eu não soubesse quem você era, não teria dificuldade em ver que você era a rainha verdadeira.
- Você está sendo muito gracioso.
- E você está feliz por ter o meu amor, não está?
Ela estava tão feliz naquela noite que queria derramar felicidade a seu redor; e quem merecia mais receber esse banho de alegria se não o seu benfeitor régio?
- Nunca fui mais feliz em toda a minha vida - disse ela. Mais tarde, quando ela estava em seus braços, Henrique confessou que sentira ciúmes do rei francês.
- Tive a impressão de que você gosta dele, querida.
- Queria que eu fosse descortês com ele? Se eu aparentei gostar de Francis, foi porque ele era o seu convidado.
- Tive a impressão de que você realmente pareceu desfrutar de sua companhia.
- Fiz apenas o que julguei que seria do seu agrado, Henrique.
- Ana, nunca será de meu agrado vê-la dedicar seus sorrisos para outro!
- Meus sorrisos! Bah! Se eu sorri para ele foi porque eu o comparei com você, e fiquei feliz com o resultado.
Henrique ficou eufórico ao ouvir isso.
- Tive a impressão de que o trono francês lhe roubou muitos anos - disse Henrique. - Não que eu o tenha considerado bonito algum dia, mas...
- O rosto de Francis está claramente envelhecido-considerou Ana. A boca pequena de Henrique curvou-se num sorriso.
- Eu não gostaria de ter a reputação da qual ele goza!
Então ela o divertiu com uma imitação do rei francês, recordando o que ele dissera e o que ela respondera; e o rei riu e ficou muito feliz com ela.
Pela manhã, Francis mandou para Ana uma jóia como presente. Henrique examinou a jóia, ficou encantado com seu valor e invejou o fato de que não fora ele quem a dera a Ana.
Henrique deu-lhe mais jóias. Ofertou-lhe jóias que tinham pertencido a ele mesmo, a Catarina e até a sua irmã, Mary de Suffolk. O rei estava mais profundamente apaixonado do que nunca.
Quando chegou a hora de partirem de Calais, soprava um vento alto que tornava arriscada a travessia do Canal. Ana lembrou-se de sua estada no Castelo de Dover; mas naquela época ela fora uma tola menina de sete anos, tentando ouvir o que diziam as pessoas a seu redor e aprender alguma coisa sobre a vida. Para alguém que subira muito na vida, pensar no passado distante era uma experiência agradável.
Durante os dias de espera, eles se distraíram com jogos de dados e cartas, nos quais o rei perdeu várias vezes, e Ana quase sempre saiu vencedora. Mas não importava se ela perdesse, porque o rei pagaria as dívidas da amada. Um dos jogadores era um rapaz chamado Francis Weston, de quem Ana gostava genuinamente, e ele dela. Eles jogavam durante o dia e dançavam à noite. Riam muito durante os jogos de cartas, e ainda mais quando brincavam de "Papa Júlio", o jogo favorito da corte, com suas alusões ao matrimónio, intriga e o papa, a quem odiavam tanto devido ao processo do divórcio. Assim transcorreram os dias, com Ana mais feliz do que na época em que decidira ocupar o trono, e muito mais segura e satisfeita.
O ano velho morria; o Natal chegou. O papa ainda mantinha-se irredutível; o processo ainda se arrastava. Quatro anos atrás Ana fora a amante do rei, e agora, no Natal do ano 1532, ela ainda esperava para ser a sua rainha.
Estava pálida e desanimada.
- Sente-se mal, meu coração? - indagou o rei.
- Imensamente mal - disse-lhe ela. O rei ficou alarmado.
- Querida, conte-me logo. Sabendo o que está errado, tentarei consertar.
Ela disse, muito francamente:
- Temo que aquele que deveria suceder Vossa Majestade como rei da Inglaterra será nada mais do que um bastardo.
Henrique ficou apalermado pela importância das notícias. Ana estava grávida! Um filho era o que ele queria mais do
que qualquer coisa no mundo - depois da própria Ana,
claro. Ana, há muito, deveria ser a rainha; se eles tivessem se casado, ela agora estaria imensamente feliz com a perspectiva de dar-lhe um herdeiro. Sempre fora
o desejo de Ana que eles não tivessem nenhum filho antes que ela se tornasse rainha. Seu filho! Seu filho
homem! Aquele que iria ser o rei da Inglaterra!
- E por Deus, ele o será! - disse o rei.
Agora Henrique era todo ternura, todo amor. Aquele corpo que abrigava seu filho tornara-se duas vezes mais precioso.
- Não tema, meu amor. Abandone todas as suas preocupações. Não suportarei mais esse atraso, e tenho dito! Colocarei aquele papa petulante em seu devido lugar ou, Deus, muito sangue irá jorrar!
Ana sorriu. A gravidez fora o evento mais feliz que poderia ter acontecido; ela fizera-o decidir. Ana sempre quisera que seu filho nascesse legítimo, e Henrique também.
Henrique lembrava da fúria que sentira ao ver pela primeira vez o seu filho, hoje, o duque de Richmond. Se esse belo rapaz, tão parecido com ele próprio, tivesse nascido de Catarina ao invés de Elizabeth Blount, o rei teria sido poupado de muita angústia. Não! Esse tipo de coisa não poderia se repetir!
Ele convocou a presença de Cromwell. Ele queria ver Cranmer. Henrique decretou que eles não deixariam de explorar nenhuma possibilidade; o divórcio precisava ser obtido, e depressa, porque Ana estava grávida de um filho.
A determinação de Henrique afastava toda a oposição contra ele; ninguém que valorizasse seu futuro, ou sua cabeça, ousaria opor-se ao rei, enquanto aqueles que o apoiassem seriam abençoados com o sucesso e o favoritismo.
Warham morrera em agosto, e quem poderia substituí-lo senão Cranmer, o homem que, quando a ideia de divórcio fora considerada pela primeira vez, posicionara-se contra a Igreja e a favor do rei! O arcebispado de Canterbury, portanto, estaria em boas mãos. Então Cromwell: o plano audacioso de Cromwell de separar a Inglaterra de Roma, que a princípio parecera louco demais para ser posto em prática, agora apresentava-se como a única solução certa. Cromwell, ao contrário de tantos, não sofria de um temor supersticioso das consequências; ele não era, de forma alguma, um homem escrupuloso; ele poderia reunir provas contra Roma com a velocidade de que seu senhor precisasse. "O que haveria a perder com a separação?", inquiriu Cromwell a seu rei. E então fez com que Henrique visse o que havia a ganhar!
Os olhos de Henrique brilharam, contemplando a dissolução daqueles armazéns de tesouros, os monastérios... tesouros que naturalmente seriam jogados nos baús do rei. Desassociado de Roma, o Estado seria forte, não tendo de prestar obediência a ninguém. Ademais, livre do papa, por que Henrique deveria importar-se com seu veredicto para o divórcio? Henrique, todo-poderoso, poderia promulgar seu próprio divórcio! A influência avassaladora do protestantismo no continente enfraquecera a Igreja. Em toda parte na Europa os homens desafiavam a autoridade do papa; uma nova religião desabrochava Era simples: significava apenas que a liderança seria transferida do papa para Henrique. Hesitante, Henrique reconsiderou esse plano vezes sem conta. Ele precisava considerar sua consciência, que o atormentava incessantemente. Ele temia o isolamento. Como isso iria afetá-lo politicamente? Wolsey - o homem mais sábio que ele conhecera - teria se oposto ao projeto de Cromwell. Wolsey não gostara de Cromwell; considerara-o um roceiro. Teria Cromwell razão? Seria Cromwell merecedor de confiança? Cromwell poderia ser um roceiro, mas seria um sábio?
Henrique não sabia que caminho tomar. Sempre considerara que sua ascensão fora influenciada pela Santa Sé, e, através da Santa Sé, por Deus; mas estava sempre disposto a apoiar uma ideia da qual gostasse. Altamente supersticioso, sempre considerara o papa um homem santo; não era fácil para um homem supersticioso dotado de uma consciência negar uma tradição de uma vida inteira. Temia a ira de Deus, embora não temesse o vacilante papa Clemente. Henrique orgulhava-se de seu título "Defensor da Fé". Quem fora o redator do repúdio mais brilhante contra Lutero? Henrique da Inglaterra Como ele poderia negar aquilo que defendera com tanto ardor?
Cromwell argumentara persuasivamente, lembrando a Henrique que a questão do divórcio precisava ser solucionada, e que não via qualquer forma de resolvê-la senão essa. Explicou que isso nada tinha a ver com o luterismo; a religião do país permaneceria a mesma; era meramente a liderança da Igreja que estava envolvida. Não era mais lógico que uma nação tivesse em seu rei bom e poderoso o líder de sua Igreja?
Henrique tentou justificar moralmente esse procedimento. Warham morrera no momento mais conveniente; isso talvez tivesse sido um sinal. Quem era melhor para liderar a Igreja de um país do que o seu rei? Ana estava grávida. Isso era um sinal. Ele precisava conseguir o divórcio para legitimar a criança de Ana. O tempo era curto.
Não havia mais tempo para conferências e postergações. Alguns meses antes, Sir Thomas More aposentara-se do cargo de chanceler. More sempre causara certo desconforto a Henrique. Ele gostava do homem, não tinha como evitar isso, mas ficara abalado quando More, ao assumir o cargo, dissera que serviria "primeiro a Deus e em seguida a meu soberano". Fora muito constrangedor ouvir isso da boca de um ministro; mas More era um homem constrangedor; era amado pelo povo, honesto, religioso no sentido verdadeiro que tão poucos são, ou tentavam ser. Demitira-se do cargo e fora para casa calmamente, reunir-se a seus familiares e amigos; implorara que lhe fosse permitido fazer isso alegando problemas de saúde, e Henrique tivera de aceitar esse apelo. Mas Henrique sabia que o problema de More fora mais no espírito do que no corpo. More não podia aceitar a ideia do divórcio; fora por causa disso que se demitira e voltara para a paz de sua casa em Chelsea. Externamente, o rei aceitara bem o pedido de demissão, e até mesmo visitara More em Chelsea.
Porém, interiormente, ficara entristecido com a perda de More, que era conhecido como um homem bom e sábio.
Cromwell estava tentando influenciar o rei. Cromwell era inteligente; Cromwell era astuto; qualquer trabalho delicado poderia ser deixado ao encargo de Cromwell.
Divórcio! Por que divórcio? Quando um casamento não fora válido, qual era a necessidade de um divórcio? Ele nunca fora casado com Catarina! Ela era a esposa de seu irmão; portanto, a cerimónia fora ilegal.
Henrique não ousava postergar mais. A criança de Ana precisava ser legítima. Assim, num dia de janeiro, Henrique convocou um de seus capelães para um sótão sossegado
em White Hall. Ao chegar, o capelão encontrou na câmara - muito para seu assombro, considerando que haviam lhe dito que ele ia apenas celebrar uma missa -, o rei acompanhado por dois padrinhos, um deles sendo aquele Morris, cuja amizade iluminara as últimas horas do cardeal Wolsey. O capelão não estava lá há mais de alguns minutos quando viu chegar a marquesa de Pembroke acompanhada por Anne Saville!
Então o rei chamou o capelão a um canto, e lhe disse que desejava que ele o casasse com a marquesa.
Ao ouvir isso o capelão começou a tremer, olhando assustado a seu redor, o que despertou a impaciência do rei. O capelão temia muito o rei, mas temia ainda mais Roma. Henrique, percebendo que tinha um problema nas mãos, apressou-se em dizer ao homem que o papa concedera o divórcio, e que ele não precisava temer nada. A cerimónia acabou antes do raiar do dia, e todo o grupo foi dispensado secretamente.
Henrique estava perturbado e um tanto quanto alarmado. Ele tomara uma atitude ousada, e nem mesmo Cranmer soubera que ele pretendera agir daquela forma. Pois, ao casar-se com Ana, ele havia, irrevogável mente, rompido com Roma e se posicionado como o dirigente da Igreja inglesa O concílio nada podia fazer além de aceitar essa situação. Henrique era o seu rei. Mas, e quanto ao povo, aquela massa descontente que sofrera peste e pobreza, e era menos inclinada do que a nobreza a ajoelhar-se diante do rei? Nas ruas os plebeus falavam mal de Ana. Alguns falavam mal do rei.
Enquanto o rei temia problemas, Ana sentia-se triunfante. Depois de quatro anos de espera, ela era rainha: rainha da Inglaterra. Ela já carregava em seu ventre a criança do rei. A longa luta deixara-a mentalmente exausta, e apenas agora ela percebia que guerra tinha travado, que energia nervosa ela empregara para se manter de pé, e o quanto temera jamais alcançar este pináculo de poder. Agora ela podia relaxar e lembrar que em breve seria mãe. Então o povo não lhe iria negar amor. Ela carregava uma criança, e a criança iria herdar o trono da Inglaterra. Ana dormia pacificamente, sonhando que a criança - um filho - já tinha nascido, e que suas aias carregavam-no no colo. E seu coração encheu-se de amor por essa criança não nascida.
- Setembro! - disse ela ao acordar. - Mas setembro está tão longe ainda!
George Bolena preparava-se para uma jornada; ele iria deixar o palácio antes do amanhecer. Jane acordou e se aproximou do marido enquanto ele abotoava seu casaco.
- George... para onde você está indo?
- Para uma missão secreta.
- Tão cedo?
- Tão cedo.
- Não posso acompanhar você?
Ele decidiu não responder a uma pergunta tão estúpida.
- George, é muito secreto? Diga-me para onde está indo. George contemplou a esposa; sempre ficava mais inclinado a serlhe gentil quando estava prestes a deixá-la.
- Como é um segredo, se eu lhe contar, você terá de guardá-lo completamente para si.
Ela bateu palmas, subitamente feliz porque seu marido sorria-lhe de forma tão amistosa.
- Guardarei o segredo, George! Juro que guardarei! Posso ver que são boas notícias!
- As melhores!
- Conte-me logo, George.
- O rei e Ana se casaram esta manhã. Estou indo levar a notícia ao rei da França.
- O rei... casado com Ana! Mas se o papa não concedeu o divórcio, como isso é possível?
- com Deus... e o rei... todas as coisas são possíveis.
Ela ficou calada, não querendo estragar aquele raro momento de amizade entre ela e seu marido.
- Então você agora é o irmão da rainha, George, e eu a cunhada!
- Isso é verdade. Preciso ir. Tenho de deixar o palácio antes do raiar do dia.
Sorrindo agradavelmente, observou-o partir; então todo seu ciúme amargo se manifestou de repente. Era tão injusto! Então Ana era agora rainha da Inglaterra, e seria mais arrogante do que nunca. Como um homem podia livrar-se de sua esposa meramente porque tinha se cansado dela!
Um casamento fora arranjado para Isabel; ela iria deixar o séquito da duquesa. Jamais tendo gostado de Isabel, Catarina não estava realmente triste com isso. Além do mais, estava muito absorvida por seu romance com Henry Manox para ligar para o que acontecia com qualquer outra pessoa.
Manox estivera no dormitório em várias ocasiões e agora era reconhecido como o amante de Catarina. Eles tinham trocado muitos beijos, carícias e juras de amor, e Catarina estava muito feliz com isso. Finalmente uma adulta, gostava de agir dissimuladamente e receber presentinhos de Manox; ela nunca escrevia para ele, jamais tendo sido ensinada a escrever apropriadamente; mas mensagens orais eram trocadas entre ela e Manox por intermédio de seus amigos.
Durante as lições eles mantinham um comportamento convencional - algo que Catarina via como uma grande brincadeira. A velha marquesa podia cair no sono mais profundo, e tudo que Manox e Catarina faziam era trocar olhares lascivos.
Em certa ocasião, a duquesa chegou mesmo a dizer:
- Está sendo muito rígido com a criança, Manox! Não faz nada além de dar-lhe sermões!
Os dois riram disso enquanto estavam deitados na cama de Catarina a cortinas fechadas. Catarina, embora uma criança em idade, era uma mulher altamente sensual e precoce. Empolgante e ousado, este caso com Manox parecia-lhe o ponto alto de sua vida. Ele disse que a amara desde o primeiro momento em que deitara olhos nela. Catarina tinha certeza de que também o amava desde a primeira lição. O amor era a desculpa para tudo que eles faziam. Manox dava-lhe doces e arcos para seus cabelos; eles riam e brincavam como todos os outros amantes no quarto.
Foi a duquesa que disse a Catarina que estava contratando outra mulher para o lugar de Isabel.
- Ela é do vilarejo, e seu nome é Dorothy Barwicke. Ela tomará o lugar de Isabel entre as damas. É uma jovem muito séria, como Isabel era, e acho que posso confiar nela para manter vocês, moças, sob alguma ordem. Mas tenho uma coisa para lhe contar, Catarina... Antes que o mês termine iremos para Lambeth, finalmente! Estou cansada do campo, e agora que minha neta é verdadeiramente a rainha....
Ela jamais se cansava de falar sobre Ana, mas Catarina, que sempre gostara tanto de ouvir sobre a prima, agora estava pouquíssimo interessada.
- Imagine só a expressão da pobre Catarina quando o rei levou Ana para a França! Pois naquele momento o rei estava proclamando sua nova rainha! E soube que ela foi um sucesso retumbante. Como eu gostaria de tê-la visto dançar com o rei francês! Marquesa de Pembroke, imagine só! Aposto que Thomas... perdão, o conde de Wiltshire, está contando o sucesso de sua filha em ouro. Oh, Thomas, conde de Wiltshire, que bem lhe fez parir filhas bonitas!
- Avó, a senhora realmente irá para Lambeth?
- Não fique tão apalermada, criança. Posso assegurar-lhe que irei. Haverá convidados para a coroação da querida rainha. Tenho por certo de que serei convidada, em vista de meu título e de meu parentesco com Sua Majestade, a rainha.
- E... a senhora levará todos os residentes da mansão? - indagou Catarina, voz trémula. Mas a duquesa estava absorta demais em seus pensamentos e planos para a coroação para notar isso.
- Que perguntas estúpidas você me faz, criança! O que importa se...
- A senhora levará os seus músicos, não levará? A senhora irá me levar?
- Ah! É isso que a preocupa? Teme ser deixada de fora dos festejos? Nada tema, Catarina Howard. Tenho certeza de que sua prima, a rainha, encontrará um lugar para você na corte quando estiver preparada.
Ela não conseguiu extrair qualquer certeza da avó. Em todo caso, a duquesa mudava seus planos todos os dias.
- Isabel! Isabel! - disse Catarina. - Você acha que todos os residentes da casa serão levados para Lambeth?
- Ah! - exclamou Isabel, que em vista da proximidade de seu casamento não estava mais interessada em nada que acontecesse na casa da duquesa. - Você está pensando
no seu amante! - Ela se virou para Dorothy Barwicke, uma mulher morena de boca fina e olhos inquietos e curiosos. - Olhando para Catarina Howard, você deve achar que ela é apenas uma criança, certo? Mas de inocente ela não tem nada. Ela tem um amante que a visita em nosso quarto à noite. Ele é um jovem muito audacioso, e os dois desfrutam a vida; não desfrutam, Catarina?
Catarina enrubesceu, e olhando diretamente para Dorothy Barwicke, disse:
- Eu amo Henry e ele me ama.
- Claro que você o ama! - disse Isabel. - E que garotinha cheia de amor você é. Dorothy, como Catarina é muito virtuosa, ela não permitiria Manox em sua cama se não o amasse!
- E como o ama, aposto que não consegue recusar o que ele lhe pede - completou Dorothy Barwicke.
As duas jovens trocaram olhares e riram.
- Você cuidará de Catarina depois que eu for embora, não cuidará? - perguntou Isabel.
- Não preciso de ninguém para cuidar de mim.
- Claro que não precisa! - disse Dorothy. - Qualquer jovem que ainda não tenha entrado na adolescência e já receba gentis-homens em sua cama à noite é perfeitamente capaz de cuidar de si mesma!
- Não genús-homens - disse Isabel ambiguamente. - Apenas Manox.
Catarina sentiu que as duas caçoavam dela, mas ela nunca tinha muita certeza do que as damas diziam.
- Espero que você cuide bem de Catarina depois que eu tiver ido embora - disse Isabel.
- Ela estará em boas mãos.
Catarina viveu uma agonia de medo quando a duquesa, falando sem parar sobre "minha neta, a rainha", encarregou todos os residentes da casa de cuidarem dos preparativos para sua jornada a Lambeth, como arrumar suas roupas cerimoniais e cuidar de inúmeros detalhes. Já soubera de boa fonte que seria convidada à coroação - marcada para maio -, e estava disposta a chegar a Lambeth com certa antecedência, para poder ter alguns encontros informais com a rainha antes do grande evento.
Naquelas noites em que as garotas não recebiam visitantes no dormitório, Catarina ficava deitada na cama, perguntando-se o que iria fazer se a duquesa decidisse não levar Manox. Catarina amava Manox porque precisava amar alguém. Havia duas paixões na vida de Catarina: uma era a música; a outra, era amar. Ela amara sua mãe e a perdera; ela amara Thomas Culpepper e o perdera; agora ela amava Manox. Ela dedicara a cada uma dessas pessoas a plena capacidade de seu amor, que era grande. Catarina precisava amar; sem amor, a vida para ela era completamente desprovida de interesse. A despeito de sua juventude, ela gostava da excitação do amor sensorial; mas seu amor por Manox não era inteiramente uma emoção física. Ela gostava de dar prazer tanto quanto de receber, e não havia nada que não fosse capaz de fazer por aqueles a quem amava. Tudo que Catarina pedia da vida era que ela a deixasse amar; e ela temia a vida, tendo a impressão de que seu amor fora amaldiçoado, afinal, primeiro ela perdera sua mãe, depois Thomas Culpepper e agora Manox. Ela estava aterrorizada com a perspectiva de ir para Lambeth sem Manox.
Então chegou um dia em que ela não conseguiu mais suportar o suspense. Foi ter diretamente com sua avó.
- Avó, quando estiver em Lambeth, que será de minhas lições?
- Como assim, criança?
- Henry Manox irá nos acompanhar, para poder continuar me instruindo?
A resposta da duquesa fez um arrepio correr pela espinha de Catarina.
- Acha que eu não conseguiria achar um professor para você em Lambeth?
- Não acho que a senhora não conseguiria. Mas quando uma aluna já se dá tão bem com seu professor...
- Bah! Saberei escolher um bom professor. E por que você está me incomodando com preocupações com professores e lições? Não entende que iremos à coroação da sua prima Ana?
Catarina conteve-se para não chorar. Nos dias que se seguiram, sua melancolia apenas cresceu.
Manox continuou a comparecer frequentemente ao dormitório.
- Você acha que eu seria capaz de deixá-la? - perguntou. - Ora, se você for a Lambeth sem mim, irei segui-la.
- E o que acontecerá a você se desobedecer?
- Qualquer que seja a punição, será um preço justo por eu estar perto de você, ainda que por uma hora!
Mas não! Catarina não queria que ele fizesse isso. Lembrou das histórias que Doll Tappit ouvira de Walter, o guarda da Torre. Lembrou que, embora corresse como louca pela casa e suas roupas fossem tão esfarrapadas quanto as de uma pedinte, ela era Catarina Howard, herdeira de uma casa grande e nobre, enquanto ele era simplesmente Henry Manox, instrutor de cravo. Embora ele parecesse bonito e inteligente aos olhos de Ana, haveria pessoas - entre elas sua avó e seu temido tio, o duque - que considerariam errado o seu romance. E se eles, ambos, fossem aprisionados na Torre? Era por Manox que ela temia, porque o amor de Catarina era completo. Ela poderia suportar a separação, mas não o pensamento do corpo de Manox trespassado pela Dama de Ferro, ou apodrecendo e sendo comido por ratos no poço. Ela chorou e implorou que ele não fizesse nada insensato. Mas Manox riu e disse que já agia com insensatez todas as noites em que entrava sorrateiramente no quarto das moças. Afinal, o que ela achava que iria acontecer se sua avó soubesse que os dois estavam mantendo um romance?
Isso renovou os temores de Catarina. Por que deveria o mundo, que era repleto de deleites, ser ao mesmo tempo tão cruel! Por que deveriam existir avós rígidas e tios aterrorizantes? Por que as pessoas não podiam entender o quanto era bom amar e ser amado daquela forma excitante e sensacional que ela descobrira recentemente?
Mas Catarina concluiu que o mundo era realmente um lugar feliz no momento em que partiu para Lambeth com o séquito de sua avó, e viu que Manox iria acompanhá-los.
Lambeth era um lugar muito bonito na primavera, e Catarina pensou que nunca se sentira tão completamente feliz em toda a sua vida. As árvores nos pomares que margeavam o rio estavam carregadas de frutas, e ela passou dias inteiros perambulando pelos jardins belíssimos, observando as barcaças singrarem o rio.
com Manox em Lambeth, eles várias vezes puderam se encontrar ao ar livre. A duquesa estava ainda mais displicente em sua vigília aqui do que em Hosham, tão atarefada estava com os preparativos para a coroação. Ana visitou a avó, e elas se sentaram nos jardins para conversar, os olhos da duquesa cintilando enquanto contemplavam sua neta adorável. Ela não pôde resistir em dizer a Ana o quanto estava feliz com seu sucesso, o quanto o rei era sortudo e como, bem fundo em seu coração, ela sempre soubera que sua neta ainda seria rainha.
Catarina foi trazida para cumprimentar sua prima.
- Sua Majestade lembra desta pequena? - indagou a duquesa. Ela não era mais do que um bebé quando a senhora a viu pela última vez.
- Lembro-me bem dela-disse Ana - Chegue-se, Catarina, quero vê-la mais de perto.
Catarina se aproximou e recebeu um beijo suave no rosto. Ainda considerava sua prima a pessoa mais bela que ela já vira, mas estava menos propensa a idolatrá-la, tendo concentrado agora toda sua devoção em Manox.
- Ajoelhe-se, menina! - ribombou a duquesa. - Não sabe como se portar diante da rainha?
Ana riu.
- Que é isso! Nada de cerimónias na família... Não, Catarina, por favor.
"Coitadinha!", pensou Ana. "Ela é muito bonita, mas como parece desmazelada!"
- Talvez Sua Majestade encontre um lugar para ela na corte...
- Claro que encontrarei! - disse Ana. - Mas ela ainda é muito nova.
- Ajoelhe-se, menina, e mostre alguma gratidão.
- Avó!-disse a rainha, rindo. - Lembre-se, por favor, que estamos em família. Estou cansada de tantas cerimónias, por favor, poupe-me um pouco. O que você gosta de fazer, Catarina? Gosta de música?
Os olhos de Catarina brilhavam quando ela falava sobre música. Ana e Catarina lembraram como haviam sentido afeto espontâneo e mútuo ao se conhecerem; à medida que conversaram, esse sentimento retornou com toda força.
Depois que Catarina tinha sido dispensada, Ana disse:
- Ela é uma criança adorável, mas um pouco desajeitada. vou mandar-lhe algumas roupas. Elas podem ser alteradas para caber nela.
- Ah! Não adianta tentar vestir Catarina Howard! É muito arteira, essa criança. E que vida isolada ela levou! Acho que eu a mantive no campo por tempo demais.
Enquanto elas estavam em Lambeth, uma nova mulher juntou-se ao séquito da duquesa. Seu nome era Mary Lassells, e ela era de berço inferior à maioria das damas da duquesa. Mary fora ama-seca do primeiro filho de Lord William Howard, e depois que ele perdera a esposa, a duquesa concordara em abrigar a moça. Durante sua primeira semana nas acomodações da duquesa em Lambeth, Mary Lasseis conheceu um rapaz moreno e bonito com olhos audaciosos, por quem sentiu-se prontamente atraída. Estava sentada num tronco de árvore no pomar de Lambeth, quando ele se aproximou.
- Bem-vinda, forasteira! - saudou. - Ou estou errado em chamálas de forasteira? Por certo lembraria de você se a tivesse visto antes!
E, dizendo isso, ele se sentou a seu lado.
- Você tem razão em supor que sou uma forasteira. Estou entre as damas da duquesa há poucos dias. Você trabalha para ela há muito tempo?
- Fui de Norfolk para lá.
Os olhos ousados do rapaz estudaram a mulher. Era bonita, mas não valia um risco tão grande quanto a pequena Catarina, que, com sua inocência e disposição, vinha proporcionando o caso mais divertido e absorvente que ele desfrutava em longo tempo.
- Fico muito feliz em vê-la aqui - continuou.
- O senhor é mesmo muito gentil.
- Você é que é gentil, por sentar-se a meu lado. Diga-me, gosta daqui?
Ela não gostava muito, e disse-lhe isso. Considerava o comportamento de algumas das damas chocante. Ela lhe pareceu amarga ao lamentar ser tão malnascida e inexperiente em termos de protocolo, tendo sido meramente uma ama-seca antes de entrar para o séquito. Ficara deliciada ao receber o convite da duquesa, por quem nutria enorme gratidão. Mas entre as damas ela se sentia deslocada. Incomodava-lhe a forma como elas falavam e se comportavam. Além disso, acreditava que elas a observavam e riam dela às suas costas. Isso era pura imaginação da parte de Mary; na verdade, as damas estavam absorvidas demais por seus afazeres para prestar muita atenção nela; mas ela alimentara seu rancor até que ele crescera desproporcionalmente à realidade. Ela ocupava uma cama no dormitório com as outras, embora ainda não tivesse presenciado nenhuma festa ou namoro, isso porque na casa em Lambeth o dormitório não ficava situado convenientemente. Ainda assim, ela já notara a leviandade das damas. Ao passar pelo dormitório, alguns gentis-homens tinham aberto a porta para olhar para dentro; e ela vira muitos deles beijarem as moças e deixar escapar indícios de familiaridade. Mary pensara amargamente: e essas vadias ainda se sentem superiores a uma mulher decente como eu!
Mary disse que não gostara do que vira até agora a respeito da conduta daquelas que chamavam a si mesmas de damas.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- Parece haver muita familiaridade entre elas e os rapazes - insistiu Mary.
Manox riu por dentro, pensando que seria divertido estimulá-la a expor seus pensamentos. Ele fingiu surpresa. Sentindo-se encorajada, Mary prosseguiu:
- Gentis-homens... ou pelo menos é assim que eles se autodenominam... abriram a porta e olharam para dentro do dormitório a todas as horas do dia. Nunca fiquei tão chocada em toda a minha vida. Uma dessas autoproclamadas damas estava mudando de roupa, e um rapaz abriu a porta e a viu; então ela fingiu pudor e correu para trás de um biombo, mas ficou deliciada quando ele espiou por cima. Juro que por muito pouco não comuniquei isso à Sua Graça!
Manox fitou a moça. O vestido severo, os lábios finos demonstrando desaprovação, os olhos frios... todas essas coisas caracterizavam uma fofoqueira Ela era virgem, ele não duvidava disso...
"Uma virgem por força da necessidade!", pensou Manox, cínicamente.
E era desse material que eram feitas as fofoqueiras, as mulheres realmente perigosas.
Ele pousou uma das mãos sobre a de Mary. Ela se assustou e um rubor surgiu em seu busto modesto e se espalhou rapidamente por todo seu rosto. Naquele momento, mais do que em qualquer outro, ela esteve próxima de parecer bonita.
Ele disse gentilmente:
- Eu entendo... claro que entendo. Mas será que você aceitaria um conselho amigo?
Ela voltou os olhos para ele, sorrindo, pensando que ele era a pessoa mais bonita e encantadora que encontrara até agora naquela casa.
- Estou sempre disposta a ouvir um conselho amigo.
- Seria muito insensato levar esse tipo de história aos ouvidos de Sua Graça.
- Por quê?
- Você me disse que foi ama-seca antes de vir para cá. Eu sou apenas um músico. Eu instruo damas em qualquer instrumento musical que lhes tenha sido decretado aprender a tocar. - A voz de Manox ficou mais carinhosa. - Você e eu somos pessoas humildes. Acha que Sua Graça iria acreditar na gente? Claro que não. Se contar qualquer coisa que tiver visto à Sua Graça, será você que será expulsa da casa!
Isso foi combustível para a amargura que ela nutria. Ela vivera em muitas casas nobres, e sonhara em pertencer à nobreza; ela via todas as situações desse ângulo. "Eu sou tão boa quanto eles... Por que eu devo servi-los, só porque nasci numa casa humilde, e eles em castelos!"
- Sim, acredito que a culpa seria posta em mim, e não naquelas delinquentes.
Ele se aproximou mais de Mary.
- Pode ter certeza absoluta. Assim é a vida. Faça silêncio sobre o que você vir, bela dama.
- Eu não posso lhe fazer entender o que significa para mim tê-lo conhecido - disse ela. - A sua simpatia aquece-me, dá-me coragem.
- Então estou realmente feliz por ter caminhado para cá.
Mary Lasseis estava tremendo de excitação. Jamais um homem jovem notara-lhe antes. Os olhos desse eram calorosos e amigáveis, audazes até. Mary começou a se sentir muito feliz, muito satisfeita por ter-se juntado ao séquito da duquesa.
- Você caminha muito por aqui? - perguntou ela Ele beijou a mão da moça.
- Nós voltaremos a nos encontrar em breve. Ela estava ansiosa por deixar o encontro marcado.
- Decerto caminharei por aqui amanhã.
- É bom saber disso - disse ele.
Eles caminharam pelo pomar na direção da margem do rio. Era um dia de primavera adorável, e ela pensou que jamais vira uma cena mais bonita do que aquele rio correndo diante das árvores frondosas. O sol, ela tinha certeza, estava mais quente hoje, e os pássaros pareciam cantar mais felizes. Manox também cantou. Ele tinha uma voz muito agradável; música era sua paixão, a única à qual ele podia manter-se fiel durante toda sua vida.
"Ele deve estar muito feliz também, cantando desse jeito", pensou Mary.
Eles entraram na casa. Aquele encontro mudara Mary; tudo para ela parecia diferente agora, e as pessoas olhavam para ela e consideravam-na menos malnascida do que tinham imaginado. Ela sorriu, esquecendo as barreiras sociais entre ela e a maioria das outras. Sorriu cândida para a netinha da duquesa.
"Não há qualquer problema que eu não seja de berço nobre", pensou Mary. "Assim, ao menos, um músico será um noivo adequado para mim."
Dali a menos de uma semana ela foi acordada rudemente. Ela vira Manox em várias ocasiões, e em cada uma delas ele fora encantador. Neste dia ela foi ao dormitório no meio da manhã, tendo descido ao pomar, tendo ficado sentada no tronco de árvore por mais de uma hora, esperando em vão. Ela abriu a porta do dormitório. As cortinas da maioria das camas estavam abertas, e então ela olhou para uma num canto, a da jovem Catarina Howard, e viu que ali estava sentada a menina, e com ela Henry Manox. Estavam sentados lado a lado, abraçados um ao outro; ele estava acariciando a criança, e Catarina estava ruborizada e rindo. Isso foi um grande choque para Mary. Ela ficou parada, olhando para eles. Então Manox se levantou e disse:
- Ah! Aqui está a senhorita Lasseis!
Mary ficou paralisada, lutando contra suas emoções.
"Que tola eu sou!", pensou. "Ele gosta de crianças. Decerto ele veio aqui para cumprir algum dever, viu a criança e começou a brincar com ela. Mas que negócio teria Henry Manox a tratar no dormitório das damas? E ele não sabia que esta era a hora em que eu estaria esperando vê-lo no pomar?"
Manox foi plausível. Durante seus numerosos casos de amor ele já se vira muitas vezes envolvido em situações delicadas. com tato e charme ele sempre conseguira corrigir a situação, ao menos temporariamente.
Ele caminhou rapidamente até Mary e lhe disse:
- Eu tinha uma mensagem para trazer para cá. Sou de fato nada mais que um servo. E, ao chegar, vi que a menininha carecia de conforto.
Ela aceitou a explicação. Afinal, Catarina era apenas uma criança, e não lhe ocorreu que eles poderiam ser amantes. Ela sorriu de novo, . feliz. - "Meu Deus!", pensou Manox. "Ela deve ser uma mulher vingativa!"
E se xingou por ter cedido à tentação de iniciar um flerte despretensioso com ela. Ela parecera-lhe tão petulante, tão virtuosa, que ele não resistira à tentação. Ele quisera mostrar-lhe que não era o desejo pelo pecado que lhe faltava, apenas a oportunidade.
Ele escapou, e a situação estava salva; mas isso não poderia continuar calmo indefinidamente, e ele não estava disposto a trocar Catarina por Mary Lassells.
Então houve uma noite em que Manox, incapaz de manter-se distante mais tempo, audaciosamente procurou Catarina, ainda que sabendo que Mary provavelmente iria descobrir. E ela descobriu. Mary fechou as cortinas de sua cama e derramou lágrimas de amarga humilhação. Se ela odiara o mundo antes de conhecer Manox, agora ela o odiava mil vezes mais; e seu ódio era dirigido, não contra Manox, mas contra Catarina Howard.
"Meretriz!", pensou. "Mundana!"
E ela era uma futura grande dama! Uma Howard! E além de nobre... prima da rainha! E quem é a rainha? Outra mulher tão leviana quanto Catarina Howard. Ora, que mundo pérfido é este em que os pecadores não são punidos e os virtuosos não são recompensados?
Os olhos de Mary estreitaram-se e verteram lágrimas. Sua vontade era ir ter com a duquesa imediatamente, mas não queria que Manox sofresse. Catarina Howard iria receber uma surra, talvez fosse deserdada, mas o assunto seria abafado para que o escândalo não atingisse a casa Howard Seria Manox quem viria a sofrer mais, ele que era tão malnascido quanto Ana, tão sem importância quanto ela. Eram pessoas como eles que sofriam pelos pecados da nobreza.
Quem poderia dizer que Manox não iria tomar juízo, que não iria aprender a prezar a virtude, e então descartar aquela vadia vil, Catarina Howard, que ainda não entrara na adolescência e já afundara nas profundezas do pecado! A imoralidade sexual decerto era a forma mais violenta de pecado. E por ela uma pessoa devia arder no inferno. Roubar e matar eram crimes terríveis, isso era verdade, mas que crime poderia se comparar à perfídia de Catarina Howard?
Portanto, ela não iria dizer nada, em benefício de Manox; ela iria torcer para que um dia ele entendesse seu erro e se arrependesse... isso antes que os frutos começassem a cair das árvores do pomar, ele viesse procurá-la e dissesse que agira estupidamente.
Ele não fez isso, e seus olhares pareceram-lhe zombeteiros. Certo dia ela se encontrou com Manox perto do rio; dizendo a si mesma que precisava salvá-lo de seu pecado, dirigiu-se a ele e, com olhos flamejantes e lábios trémulos, exigiu:
- Homem, não percebe o papel de bobo que está fazendo? Não sabe que se a duquesa-mãe de Norfolk descobrir a respeito de seu romance com a jovem Howard será você quem receberá a punição? A moça pertence a uma casa nobre, e se você ousar desposá-la, os Howard decerto orquestrarão sua ruína!
Manox jogou a cabeça para trás e riu, sabendo perfeitamente bem o que incitara Mary a dar-lhe esse aviso. Manox disse que ela não precisava temer por ele, porque suas intenções eram estritamente de natureza desonrosa.
Zangada e humilhada, Mary entrou na casa. Se Manox não aceitasse seu aviso a respeito da insensatez de prosseguir esse caso, talvez Catarina aceitasse. Ela encontrou Catarina bordando na sala de costura.
- Quero falar com você, senhorita Howard.
Catarina olhou para cima; ela sabia muito pouco a respeito de Mary Lassei Is, e não gostava muito do pouco que sabia, concordando com a maioria das outras garotas que a mulher era burra e chata.
- Sim?
- Vim lhe dar um conselho. Você é muito jovem, e creio que não entende o que está fazendo. O que você faz com Manox é... criminoso!
- Eu não entendo o que você está dizendo - disse Catarina com arrogância, e estava se levantando para se retirar quando Mary segurou seu braço.
- Você precisa escutar. Manox está se aproveitando de você. Ele diz pilhérias sobre a sua generosidade.
- Você está mentindo!
- Falei com ele e, por acreditar que esse teria sido o desejo de sua avó, a duquesa, implorei-lhe que cessasse o seu relacionamento - disse Mary com um ar virtuoso. - Disse-lhe que isso era uma insensatez e que, se ele se cassasse com você, um dos membros da sua casa engendraria a ruína dele. Ele achou graça e se gabou, dizendo que suas intenções contigo eram apenas desonrosas.
Catarina enrubesceu de raiva e medo; de raiva pelo ar petulante de Mary Lasseis e de medo por repentinamente ver seu belo romance sob uma luz diferente. Agora ele era sórdido, e nem um pouco belo. Ela estivera errada em mante-lo. Manox desprezava-a; muitas pessoas iriam desprezá-la; que Deus a ajudasse se o que ela havia feito chegasse aos ouvidos de sua avó! Porém a coisa que mais entristecia eram as palavras de Manox: suas intenções eram desonrosas! Que coisa horrível de se dizer! Será que Manox não era um namorado adorável, fiel, galante e cortês como ela crera?
Catarina estava colérica.
- Maldito seja! - gritou. - Onde ele está agora? Irei até ele, e você virá comigo. Exigirei saber dele se você disse a verdade.
Não havia nada que Mary pudesse fazer além de conduzir Catarina até Manox, no pomar, onde as árvores grossas ocultavam aqueles que queriam encontrar-se clandestinamente. Mary tinha apenas um pensamento: romper esse relacionamento absurdo entre Manox e Catarina Howard. Ela visualizava Manox arrependendo-se e ela própria mostrando-se compreensiva; então um casamento entre eles seria adequado.
Manox pareceu estarrecido ao ver as duas; Catarina enrubescida de raiva, Mary sorrindo secretamente.
Catarina disse com uma raiva que ela descobriu ser incapaz de controlar:
- Quero que saiba, Manox, que eu o desprezo, eu o odeio, e que jamais quero vê-lo novamente!
- Catarina! O que significa isso?
- Sei o que você disse a meu respeito a essa... mulher.
Aquilo abalou Manox. Havia alguma coisa muito atraente em Catarina Howard Catarina adorava manter contato físico com seu amado e darlhe prazer; nunca Manox conhecera uma jovem tão deliciosamente irresponsável e fácil de excitar; ela era uma mocinha adorável; sua juventude era encantadora e adicionava tempero ao romance; ele jamais tivera uma experiência semelhante. Se tivesse escolha, Manox jamais perderia Catarina Howard. Ele lançou um olhar venenoso contra Mary Lasseis, olhar que ela viu e que a feriu profundamente.
- Catarina... - disse ele, e a teria abraçado na frente de Mary Lasseis, mas a jovem desvencilhou-se dele.
- Não me toque! Quero que saiba que eu jamais permitirei que faça isso novamente.
- Você precisa me entender - disse Manox, cobrindo o rosto com as mãos e forcando lágrimas em seus olhos. - Eu a amo inteiramente, Catarina. Não disse nada ofensivo. Como poderia, quando não penso em outra coisa senão em sua felicidade!
Ela repetiu o que Mary lhe dissera Ofendida, Mary gritou:
- O senhor não pode negar isso! Não na minha frente!
- Não sei o que dizer. - A voz de Manox saía trémula. - Tudo que sei é que a paixão que sinto por você é tão grande que me transporta para além dos limites da razão, e que, dessa forma, não encontro o que dizer!
Catarina, que não conseguia ver uma pessoa sofrer, amoleceu imediatamente.
- Eu fiquei muito irritada-disse ela, e era evidente que ela estava enfraquecendo.
Ignorando Mary Lasseis, Manox envolveu Catarina com um braço. Mary, amargando a derrota, virou-se e correu para a casa.
Catarina caminhou com Manox pelo pomar, escutando suas juras de amor. Como Catarina não conseguia nutrir ressentimentos por muito tempo, estava sempre disposta a encontrar o melhor nos outros e era incapaz de ver qualquer pessoa sofrer, disse a Manox que o perdoava. Mas, no fundo, ela ainda estava abalada, terrivelmente abalada.
Mary Lasseis fizera-a ver este caso de amor sob uma luz diferente. Ela jamais voltaria a sentir a mesma coisa por Manox; e, sendo Catarina, necessitada de amor, precisaria procurar à sua volta por um objeto que fosse mais merecedor de seu afeto.
Naquela manhã de maio, cada cidadão que conseguira um barco estava no rio Tamisa. Ao longo das margens do rio a multidão se adensava. Campesinos tinham vindo à cidade para ver a procissão, e os ladrões esperavam desfrutar de um dia de trabalho lucrativo no meio da turba. As tavernas estavam cheias; em todos os pontos de vista privilegiada, as pessoas mantinham-se de pé, sentadas ou ajoelhadas; algumas estavam trepadas em postes ou sobre os ombros de um companheiro, tudo para ver com clareza a festa da coroação da rainha Ana.
Da margem do rio, Catarina assistia a tudo em companhia de algumas das damas, entre elas Dorothy Barwicke e Mary Lasseis. Ninguém pensava em nada além de se divertir. Todas as damas, tendo envergado suas roupas mais bonitas em honra à rainha, estavam risonhas e procurando por mancebos com quem flertar. A maioria das pessoas mais jovens estava disposta a admirar a nova rainha; apenas os mais velhos ainda falavam mal de Ana, e até eles estavam menos calorosos em sua desaprovação nesse dia. Quando Ana fora amante do rei a situação tinha sido uma; agora que ela era rainha a situação era outra, bem diferente. O rei desposara Ana. O papa não sancionara o divórcio, e Roma considerava o matrimónio ilegal; mas o que importava isso? A Inglaterra não estava mais sob o jugo do papa; a nação devia sua lealdade a nenhum outro senão seu grande rei. Essas eram questões complicadas, que a grande massa não compreendia plenamente. Se os ingleses rezavam da mesma forma que antes, e os mesmos ritos religiosos eram observados, por que se preocupar? E até mesmo aqueles que sentiam pena de Catarina e desprezavam Ana divertiam-se naquele dia. A festa que o rei ia oferecer à sua nova rainha prometia ser um espetáculo grandioso, capaz até mesmo de empalidecer todo o esplendor demonstrado pelos Tudor até agora.
A rainha viria de Greenwich para a Torre, e a coroação aconteceria em Westminster. Os próximos dias seriam repletos de festas e desfiles, e os londrinos adoravam essas ocasiões.
Mary Lasseis gostaria de expressar suas opiniões sobre a nova rainha, mas considerou mais sensato ficar calada. Para ela, lá estava mais um exemplo do pecado sendo recompensado e celebrado, mas ela sabia que seria uma tolice dizer em alto e bom tom o que realmente lhe passava pela cabeça. O rei estava determinado a não ter opositores. Mary ouvira dizer que as masmorras da Torre de Londres já estavam repletas de pessoas que tinham tecido palavras rudes sobre Ana Bolena; também sabia que os instrumentos de tortura vinham sendo muito utilizados. Qualquer pessoa de berço humilde que não soubesse ficar de bico fechado corria grave perigo.
A boba da Catarina Howard estava cheia de alegria infantil, falando incessantemente sobre sua linda e querida prima, a quem amava devotadamente.
- Acho que vou estourar de orgulho... - balbuciava Catarina Howard. - Mal posso esperar para ver a barcaça real...
Mary Lasseis conversou com Dorothy Barwicke acerca da vida em pecado de Manox e Catarina. Dorothy ouviu, fingindo repulsa, sem mencionar que ela própria conduzira muitas mensagens de Manox para Catarina, de modo a facilitar seus encontros; que assumira a tarefa de Isabel em promover o caso de amor para que Catarina, envolvida nas práticas ocorridas nos apartamentos das damas, não contasse à avó o que ali acontecia. "Não que o temor de Isabel tivesse fundamento", pensou Dorothy. Catarina não era nenhuma linguaruda, e a última pessoa no mundo que quisesse prejudicar os outros. Mas com Mary Lasseis a história era bem outra. Dorothy percebeu que precisaria agir cautelosamente com Mary.
Os olhos brilhantes de Catarina tinham visto um pequeno grupo de gentis-homens ao longo da margem do rio. Os moços pareciam interessados no grupo de jovens damas, reconhecendo-as como a comitiva da duquesa.
- Posso dizer-lhe quem eles são - sussurrou uma moça risonha ao ouvido de Catarina. - São os gentis-homens de seu tio, o duque.
Era verdade; o duque de Norfolk mantinha em sua comitiva certos gentis-homens de berço razoável e pouca fortuna, a maioria dos quais clamava algum parentesco - por mais distante que fosse - com o duque. Ele chamava esses moços de sua tropa pessoal, e eles eram pouco mais do que pensionistas. Seu único dever era proteger os interesses de seu senhor, fossem quais fossem, em tempos de guerra segui-lo ao campo de batalha, apoiá-lo em suas brigas, estar sempre dispostos a defendê-lo quando a necessidade se manifestava. Para tal o duque pagava-lhes bem, alimentava-os e vestia-os dignamente, e dava-lhes pouco a fazer - exceto quando precisava de seu auxílio além de se divertirem. O conde de Northumberland contava com um séquito semelhante em sua casa; os nobres tinham certa dificuldade em se livrar desse costume, uma relíquia do sistema feudal. Os gentishomens, não tendo nada a fazer além de se divertirem, faziam isso com gosto; compunham grupos animados e audaciosos, buscando aventuras sob quaisquer formas.
Era um pequeno bando desse tipo que agora achava uma oportunidade de falar com as damas do séquito da duquesa. Eles tinham-na visto frequentemente, sendo a residência do duque próxima à da sua madrasta, e seus jardins e pomares também corriam ao longo do rio.
- Vejam! - exclamou Dorothy Barwicke, e a atenção de Catarina voltou-se dos jovens para o rio.
Numerosas barcas, contendo os principais cidadãos de Londres com seu prefeito, estavam a caminho de seu encontro com a rainha. Os mercadores compunham uma visão deslumbrante com suas roupas escarlate e as correntes de ouro grandes e pesadas em seus pescoços. Um bando de músicos tocava na barcaça oficial da cidade.
Catarina pôs-se a cantar, acompanhando a banda. Um dos rapazes na margem do rio juntou-se a ela. Catarina notou que ele era o mais bonito do grupo; enquanto cantava, ela não conseguiu desgrudar os olhos dele. Ele apontou para uma barca, chamando a atenção de Catarina para o que parecia um dragão que pousara no convés, balançando sua grande cauda e cuspindo fogo para o rio, para o deleite intenso de todos os espectadores. Catarina riu, e o jovem também. Ela percebeu que ele estava conclamando seus companheiros a se aproximar de Catarina e suas amigas. Catarina gargalhava, vendo os monstros que ajudavam o dragão a divertir os cidadãos. Os olhos de Catarina encheram-se de lágrimas quando surgiu uma barcaça contendo um coro de menininhas, cantando suavemente. Catarina conseguiu ouvir o que elas cantavam, e era sobre a beleza e a virtude da rainha Ana.
Houve uma espera longa antes do retorno da procissão, trazendo com ela a rainha Porém, num dia como aquele não faltavam diversões.
Doces eram distribuídos ao ar livre, e também vinho e petiscos. Foi tudo muito agradável, especialmente depois que Catarina encontrou o rapaz bonito parado a seu lado, oferecendo-lhe doces.
- Eu estava observando a senhorita lá da multidão-disse o rapaz.
- Não precisa me dizer isso; vi que o senhor estava me observando! Catarina parecia mais velha do que era realmente; sua experiência com Manox fizera-a amadurecer. Francis Derham julgou-a com cerca de 15 anos.
"Uma idade deliciosa", pensou.
- Imaginei que a senhorita devia gostar destes doces.
- E como gosto! - Catarina comeu os doces afobadamente, como uma criança. - Estou ansiosa pelo momento em que a rainha passará!
- Já viu Sua Majestade? Ouvi dizer que é dona de uma beleza assombrosa.
- Claro que já a vi! Devo contar-lhe, senhor, que sou prima em primeiro grau da rainha.
- Prima da rainha! Sei que você integra a comitiva da duquesa. Diga-me, então você é neta da duquesa?
- Sou.
Ele ficou surpreso com o fato de Sua Graça de Norfolk deixar que sua neta - tão jovem e atraente - ficasse solta daquele jeito, mas suprimiu seu espanto. Ele disse, excitação na voz:
- Então acredito que eu e você somos afinados por parentesco! Catarina ficou deliciada. Eles conversaram sobre seu parentesco. O moço tinha razão; eles tinham um parentesco, embora distante.
- Ah! - exprimiu Catarina. - Sinto-me segura com você! Essa foi uma reflexão agradável para Catarina, porque ela vinha percebendo que não podia mais sentir-se segura com Manox, que começava a temer os abraços do rapaz, que começava a procurar desculpas para não vê-lo. As palavras sórdidas que o rapaz dissera para Mary Lasseis tinham chocado e assustado Catarina, e embora ela não quisesse magoá-lo, não tinha qualquer desejo de vê-lo. Ademais, agora que ela conhecera Francis Derham sentia-se mais afastada de Manox do que antes. Francis era de um tipo completamente diferente: um gentil-homem, um homem de boas maneiras e boa educação. Estando com Francis, mesmo naquelas primeiras horas, e vendo que ele sentia tanta atração por ela quanto Manox sentira, Catarina não se conteve em comparar os dois. Assim, cada resquício de admiração que ela ainda tinha pelo músico simplesmente desapareceu.
Francis pensou: "A avó desta moça está auxiliando a rainha, e isso dá-lhe muita liberdade; mas ela é jovem demais para ficar ao ar livre sozinha."
Ele decidiu que era seu dever protegê-la.
Francis permaneceu ao lado de Catarina. Eles caminharam ao longo da margem do rio, viram a rainha em sua barca real, da qual emanava uma música encantadora; e seguiram a rainha, os barcos do pai de Ana, o duque de Suffolk, e toda a nobreza.
- Ela vai para a Torre! - exclamou Derham.
- A Torre! - Catarina estremeceu, e o rapaz riu dela. - Do que você está rindo? - perguntou.
- Porque você parece estar com medo.
Catarina contou-lhe sobre sua infância, sobre Doll Tappit e Walter, o guarda da Torre, sobre a dama de ferro e o poço; e os gritos que o guarda ouvira vindo das câmaras de tortura.
- Gostaria que minha prima querida não estivesse indo para a Torre.
Francis riu da inocência de Catarina.
- Você não sabe que todos os nossos soberanos vão para a Torre em sua coroação? Garanto que os apartamentos oficiais são muito diferentes das masmorras e câmaras de tortura!
- Ainda assim, não gosto disso.
- Você é uma menininha adorável.
"Não deviam permitir que ela andasse solta deste jeito!", pensou Francis de novo.
E ele sentiu raiva daqueles que tinham a jovem sob sua guarda. Ele gostava da companhia de Catarina. Ela era tão jovem e inocente, mas ainda assim tão... feminina. Ela era capaz de atrair os homens, e isso talvez fosse perigoso para a sua segurança.
- Você e eu poderíamos ir juntos às celebrações, o que acha? Poderíamos nos encontrar e irmos juntos.
Catarina estava sempre ansiosa por aventuras, e gostava deste rapaz, que lhe inspirara confiança. Queria alguém em quem pudesse pensar com carinho, para assim não ter mais de se preocupar com Manox.
- Você é muito gentil.
- Você terá de usar suas roupas mais simples, para podermos nos juntar ao povo.
- Minhas roupas mais simples! São todas simples!
- Quero dizer que, em meio aos plebeus, você poderia deixar de ser Catarina Howard de Norfolk. Poderia ser simplesmente Catarina Smith ou algo assim. O que acha desse plano?
- Gosto imensamente! - riu Catarina.
E assim eles fizeram seus planos, e foi com Francis que Catarina viu a procissão da rainha depois de sua breve permanência na Torre. Foi com Derham que ela acompanhou o cortejo real através da cidade. Na Gracechurch Street, decorada com tecidos vermelhos e púrpuras, o casal imiscuiu-se à multidão. Ficaram maravilhados com a fachada da Torre decorada em veludo e tecido de ouro. Viram o prefeito da cidade receber a rainha no Portão da Torre; viram o embaixador francês, os juizes, os cavalheiros que tinham acabado de ser sagrados, em homenagem à coroação; viram os abades e bispos; espiaram o duque de Suffolk, que precisava esconder sua animosidade nesse dia, usando o cetro de prata que o identificava como o detentor do posto de Alto Oficial da Inglaterra. Catarina olhou para esse homem, e segurou com mais firmeza a mão de Derham. Seu companheiro olhou-a intrigado.
- O que aflige Catarina Smith?
- Acabo de pensar na esposa dele, a irmã do rei. Ouvi dizer que ela está morrendo, mas ele não demonstra qualquer tristeza.
- Ele não demonstra qualquer coisa - disse-lhe Francis ao pé do ouvido. - Nem seu antagonismo contra a rainha... Mas não falemos de assuntos deprimentes.
Catarina estremeceu, e então soltou uma gargalhada súbita.
- Acho muito mais agradável usar uma roupa simples e estar no meio do povo do que ser uma rainha. Acho que sou tão feliz quanto a minha prima!
Ele apertou a mão de Catarina. Ele começara sentindo amizade, mas a amizade estava se transformando em sentimentos mais calorosos. Catarina Howard era uma criaturinha doce, adorável, encantadora!
Catarina engoliu em seco, porque agora estava vendo nenhuma outra senão a rainha, com sua beleza de tirar o fôlego, numa carruagem aberta, acolchoada com tecido de ouro, puxada por dois cavalos brancos. Seus lindos cabelos estavam penteados ao estilo favorito da rainha, e em sua cabeça havia uma tiara de ouro cravejada de pedras preciosas. Seu casaco era de tecido de prata, e seu manto, do mesmo material, era franjado com arminho. Até aqueles que falavam mal da rainha tiveram de engolir seus murmúrios, porque ela jamais estivera tão bonita, e enquanto ela estivesse entre o povo, conseguiria mante-lo sob seu feitiço.
Catarina estava absolutamente fascinada pela prima. Ela não tinha olhos para os acompanhantes; não viu as damas vestidas em escarlate nem as carruagens que acompanhavam o cortejo, todas cobertas por tecido de ouro avermelhado. Ela só desviou os olhos da prima quando Derham apontou para sua avó na primeira carruagem, ao lado da marquesa de Dorset. Catarina sorriu, imaginando o que a velha diria se a visse na multidão. Mas a velha duquesa não devia estar pensando em nada além da mulher linda que estava na carruagem da frente, sua neta, a rainha da Inglaterra. A duquesa certamente não sentira mais orgulho em toda sua vida longa do que naquele momento.
Através da cidade prosseguiu o desfile. Na Gracechurch Street o casal abriu caminho através da multidão reunida em torno da fonte da qual jorrava o mais delicioso vinho tinto.
Catarina considerou o adereço da procissão - um falcão branco encantador; o pássaro representava Ana, e estava pousado entre rosas vermelhas e brancas. Então, quando a rainha aproximou-se, os músicos tocaram uma música adorável e um anjo desceu voando para colocar uma coroa de ouro na cabeça do falcão. Em Corhill, diante de uma fonte que jorrava vinho, ela sentou-se num trono adornado com as Três Graças. Ela descansou ali enquanto um poeta lia um poema declarando que a rainha possuía as qualidades representadas pelas três damas no trono. Durante toda a tarde, a fonte à esquerda da central jorrou vinho branco, enquanto daquela à direita fluía o mais delicioso clarete.
Em meio a todo esse esplendor, Ana, olhos reluzindo de triunfo este era o momento pelo qual ela esperara durante quatro longos anos -, caminhou pelo Westminster
Hall para agradecer ao prefeito e àqueles que tinham organizado a homenagem. Cansada, mas muito feliz, ela comeu e trocou suas roupas oficiais, permanecendo ali em Westminster com o rei naquela noite.
Na manhã seguinte - o dia da coroação em si, o primeiro de junho, um domingo glorioso - Catarina e Derham encontraram-se de novo. Eles viram a rainha de relance com seu vestido e manto púrpura franjado com arminho, com rubis reluzindo no cabelo.
- Ali está minha avó! - sussurrou Catarina.
E, de fato, ali estava ela, porque naquele dia, para o prazer e honra da velha dama, seria a vez de a duquesa assumir a função de caudatária de sua neta. Seguindo a duquesa estavam as damas mais eméritas da Inglaterra, vestidas esplendidamente em veludo escarlate, e as barras de arminho que decoravam suas cinturas denotavam, por seu número, o grau de nobreza possuída por cada uma. Depois dessas damas vieram as esposas dos cavaleiros e as gentis-donas da rainha, todas em escarlate vívido. Nem Catarina nem Derham foram à abadia para ver Cranmer pôr a coroa na cabeça de Ana. Imiscuídos à multidão no lado de fora, ambos pensavam que nunca tinham conhecido felicidade maior em todas as suas vidas.
- Esta é uma grande aventura para mim! - exclamou Derham.
- E estou feliz por ter avistado você!
- Também estou feliz!
Entreolharam-se e riram. Então ele, puxando-a para um beco, encostou seus lábios nos dela. Ficou surpreso com a candura com que ela retribuiu seu beijo. Beijou-a de novo, e de novo.
Transeuntes viram-nos e sorriram.
- Não sei o que tem mais nesta cidade hoje: amantes ou ladrões! - disse um dos transeuntes.
- Sim! Todos ansiosos por seguir o exemplo real!
Eles riram. Ao passar por estas ruas, o que se podia fazer senão rir? Afinal eram as mesmas nas quais, há poucos anos, as pessoas tinham morrido da "doença do suor", e de cujas fontes agora jorrava vinho da melhor qualidade!
Houve outro membro da família de Ana que não compareceu à coroação. O ciúme de Jane Rochford tornara-se incontrolável, e, tomada por uma sanha enlouquecida contra sua cunhada, ela era ainda mais indiscreta do que o habitual.
Jane dissera:
- Este casamento... não é casamento. Um homem não pode tomar uma esposa enquanto possui outra. Ana ainda é a amante do rei, a despeito das cerimónias que foram preparadas.
Existe uma só rainha, e essa é a rainha Catarina.
Muitos apoiavam a rainha Catarina; muitos balançavam as cabeças melancolicamente ao pensar no que acontecera à mulher a quem tinham respeitado como rainha durante mais de 20 anos. De fato, até mesmo aqueles que, por amor ou medo, apoiavam Ana tinham pouco a dizer contra a rainha Catarina. Ela precisava ser admirada pela dignidade calma e majestosa que jamais perdera durante seu reinado. Sofrera profundamente; fora submetida à tortura mental por seu esposo infiel, mesmo antes de ser-lhe dito rudemente que seria pedido o divórcio, porque ela não mais era de serventia ao rei. Através de seu comportamento, Catarina conseguira envolver o rei com sua própria dignidade, acobertando seus casos espalhafatosos, dizendo "Assim são os monarcas!", algo no que acreditava piamente. Ela sofrera uma humilhação amarga nas mãos de Henrique VII durante aqueles dias compreendidos entre a morte de Artur e seu casamento com Henrique. Mas pouco se queixara. Era humilde e submissa quando considerava isso um dever; quando considerava que seu dever era ser forte, podia ser tão firme e tenaz quanto o próprio Henrique. O dever era a coisa mais importante de sua vida. Preferia sofrer a tortura mais severa do que se desviar daquilo que considerava certo. Recebera essa lição de sua mãe, Isabela, que por sua vez fora instruída por aquele fanático religioso, o inquisidor espanhol Torquemada.
Essas três pessoas-Catarina, Isabela, Torquemada-tinham acendido chamas de fanatismo para afugentar o medo. A religião era a rocha à qual elas se seguravam; para elas, a vida na Terra era nada além de um sonho, em comparação com a realidade que as aguardava. Catarina, fiel a Roma, acreditando que não poderia haver divórcio, estava disposta a ir para a fogueira para não dar a Henrique o divórcio que ele pedira. Para ela, o tormento terreno era um preço pequeno a pagar pela alegria eterna reservada aos verdadeiros servos da fé católica romana. com toda sua força, Catarina posicionara-se contra seu marido furioso. Nobre, corajosa, convicta da justeza de sua crença, até mesmo na derrota parecia triunfal, e não havia quem pudesse estar em sua presença e não tratá-la como rainha. Sua devoção à filha tocava os corações de todos. A Maria ela dera todo o afeto que seu marido recusara; vivia por essa filha, e deliciava-se com a crença de que um dia a jovem iria sentar-se no trono da Inglaterra. Supervisionara a educação da moça com o maior cuidado, tendo se sentido muito gratificada pela aptidão de Maria para os estudos e por seu entusiasmo juvenil.
Assim, a princesa Maria Tudor fora a única alegria terrena que alumiara a vida sombria de Catarina. Henrique amaldiçoara sua obstinação, incapaz de acreditar que ela não pudesse ver o que era tão claro para sua consciência escrupulosa; condenara-a por não admitir que consumara o casamento com o irmão dele; odiara-a porque ela poderia ter resolvido a situação toda simplesmente ingressando num convento. Fervilhando de raiva, Henrique separara Catarina da filha.
Fazer isso fora agir com insensatez; a simpatia que a grande massa de pessoas estava sempre disposta a dar às vítimas de injustiças recaíra sobre Catarina e Maria Tudor. As mães choraram pelas duas; embora fossem plebeias humildes, podiam compreender perfeitamente o sofrimento de uma rainha.
Henrique, cuja natureza exigia homenagens e adulações, ficou magoado e alarmado pela simpatia demonstrada por Catarina. Antes da época da disputa do divórcio, fora ele quem tinha caminhado pelas ruas atraindo a atenção de todos... ele, grande e magnífico, o mais bondoso dos soberanos, o mais belo dos soberanos, o mais atlético dos soberanos, o soberano mais amado e admirado do mundo. Catarina estivera sempre a seu lado, mas apenas como um satélite refletindo o fulgor de sua personalidade. E agora, nos corações das pessoas suscetíveis e sentimentais, ela era venerada como uma santa, enquanto ele era visto como um marido promíscuo, um homem cruel. Ele não podia suportar isso; era injusto demais. Ele não lhes dissera que tinha meramente obedecido aos mandamentos de sua consciência? Eles tinhamno julgado como um homem, não como um rei.
Então Henrique começou a sentir raiva. Ele explicara pacientemente; ele desnudara sua alma; ele sofrera a humilhação de um julgamento em Westminster Hall. E eles não haviam entendido! Ele fora paciente demais até aqui. Ele faria todas essas pessoas entenderem que ele era seu senhor absoluto! Uma palavra, um olhar, seria suficiente para mandar qualquer um deles - por mais importante ou ignoto que fosse para a Torre de Londres.
Os motivos de Jane não eram os mais justificáveis; fora por ciúme que ela abandonara a prudência. Jane encontrava-se à beira da histeria. George estava frequentemente na companhia da rainha, e sempre havia emoção em seu rosto ao demonstrar honras à irmã. Mas a Jane ele não reservava nada além de admoestações pela imprudência com que falava sobre a rainha Ana.
"Ele me condena por meus defeitos mas é cego aos dela!", pensava Jane.
As pessoas olhavam furtivas para Jane. Quando falava sobre a rainha Ana, elas se afastavam, não querendo serem tomadas por cúmplices. Jane sentia-se infeliz demais para se preocupar com o que dizia A única coisa que lhe dava satisfação - uma satisfação amarga - era condenar Ana.
Agora em seus apartamentos no palácio, Jane viu-se envolta por um silêncio denso. Aqueles amigos que antes costumavam sentar-se para conversar com ela não mais eram vistos em parte alguma. Já tendo se dedicado a seu ciúme, encontrava agora espaço para sentir medo. Sentada ali, Jane pensava na vida, ansiosa para que George retornasse e assim ela pudesse contar-lhe sobre seus temores. Esperava que ele, vendo-a em perigo, lhe dedicasse ao menos alguma piedade.
Então ela ouviu um som de passos na escada próxima à sua porta. Ela se levantou abruptamente, porque havia nesses passos algo de precisão e autoridade. Eles pararam do lado de fora de sua porta; seguiu-se uma batida peremptória.
Suprimindo um desejo de se esconder, Jane disse numa voz trémula:
- Pode entrar!
Ela o conhecia. Trazia o rosto endurecido. Ele já devia ter testemunhado muito sofrimento, e se acostumado a ele; era Sir William Kingston, curador da Torre de Londres.
- Lady Jane Rochford, estou aqui para conduzi-la à Torre de Londres sob a acusação de Alta Traição.
Traição! Aquela palavra tão temida. E ela era culpada disso; era traição falar contra o rei, e ao falar contra Ana, fora isso que ela fizera.
Jane sentiu a sala girar a seu redor; um dos guardas de Sir William segurou-a. Eles mantiveram-na com a cabeça abaixada até o sangue correr para trás, e fizeram isso naturalmente, como se tivessem esperado que acontecesse. A sala se endireitou, mas Jane ainda escutava um som farfalhante, e os rostos dos homens estavam borrados.
- Deve ser algum engano - balbuciou Jane.
- Não há engano. Sua senhoria deve partir imediatamente.
- Meu marido... - começou ela. - Minha irmã, a rainha..
- Tenho um mandado de prisão - disseram-lhe. - Devo obedecer às ordens. E rogo a sua senhoria que nos acompanhe imediatamente.
Sem dizer uma palavra, ela saiu e atravessou o pátio até uma barcaça que a esperava. Eles subiram o rio discretamente. Ela olhou para trás e viu o palácio à margem do rio com suas torres baixas e sua profusão de janelas - a morada favorita do rei, porque fora ali que Henrique nascera e porque a localização permitia-lhe uma visão perfeita do rio.
Quando verei Greenwich de novo?, indagou-se Jane.
A barcaça passou diante das casas dos ricos, que margeavam o rio, até chegar à grande fortaleza que agora parecia ameaçadora à luz ténue do luar. Quantos já haviam passado pelo Portão dos Traidores, sido engolidos pelo monstro de pedras cinzas, e sumido das vistas do mundo exterior!
"Não pode estar acontecendo comigo", pensou Jane. "Não comigo! O que fiz? Nada... nada. Não fiz nada além de expressar minha opinião."
Então ela lembrou de um comentário cínico que George tecera certa vez; ele dissera que tanto aqueles que expressavam suas opiniões quanto aqueles que eram próximos demais ao rei por parentesco mereciam a morte.
A barcaça aportou rápido. Jane foi conduzida para cima por uma escadaria de pedras. Sentia-se sufocada pela atmosfera opressiva do lugar. Foi conduzida por um portão nos fundos, sobre uma ponte de pedra muito estreita, e levada até a entrada de uma torre cinza. Trémula, Jane adentrou a Torre de Londres e foi conduzida por escadarias espirais estreitas, ao longo de frios corredores, até o cómodo que teria de ocupar. Ela entrou e a porta foi trancada às suas costas. Correu até a janela e olhou para fora; lá embaixo corria a água sombria do Tamisa.
Jane atirou-se na cama estreita e se desmanchou em lágrimas histéricas. Era tudo culpa sua! Como ela fora tão estúpida? Por que deveria ligar para a rainha Catarina? Por que deveria ligar para a princesa Maria Tudor? Ela não queria ser mártir. Ela sabia que, se tivesse tentado ser amiga de Ana, teria conseguido, porque Ana não procurava por inimigos; apenas lutava contra aqueles que se opunham a ela. E como poderia a pobre Jane Rochford opor-se à rainha Ana?
Ela fora uma estúpida. Relembrando sua vida de casada, ela podia agora ver o quanto fora estúpida. Oh, o que não faria por outra chance! Humilde e arrependida, Jane culpava a si mesma. Jane sabia perfeitamente bem que, se fosse procurar a rainha e dissesse que estava arrependida, Ana daria seu perdão. Decidiu que, se saísse da Torre, iria superar seu ciúme por sua cunhada brilhante. E talvez, quem sabe se, fazendo isso, ela ganharia um pouco da afeição de George?
Ela estava calma agora, e assim permaneceu por algum tempo, até aquele dia que marcara o começo das celebrações, e então, olhando por sua janela, ela viu a chegada de Ana à Torre. Ana estava vestida em tecido de ouro e acompanhada por muitas damas. Ao vê-la, Jane sentiu todo seu ódio retornar; o contraste entre ela e sua cunhada era grande demais para ser suportado friamente. Ela chegara à Torre pelo Portão dos Traidores, enquanto Ana adentrara em triunfo, como a rainha Não! Jane não podia suportar isso. Aqui neste mesmo lugar estava sua cunhada, celebrada e homenageada, adorada abertamente por aquele homem poderoso e temido, Henrique VIII. Isso era demais. Jane se rendeu a uma nova crise de choro.
- Ela tem muitos inimigos! - gritou Jane. - Há a rainha verdadeira e sua filha. Há Suffolk, Chapuys... para citar uns poucos, e todos eles são pessoas poderosas! - Depois de uma breve pausa, Jane acrescentou, muito amarga: - Mas, Ana Bolena, embora muitos a odeiem, não há quem nutra um ódio mais feroz por você do que Jane Rochford!
O rei não estava feliz. Passara todo o mês quente de junho atormentado por uma insatisfação com a vida. Henrique pensara que tornando Ana sua rainha conheceria a felicidade completa. Agora ela já era sua rainha há cinco meses, mas, em vez de crescer, sua felicidade minguava gradualmente.
O rei ainda desejava Ana, mas não a amava mais; o que significava que ele perdera a ternura que nutrira por ela, a ternura que o dominara por seis anos, que abrandara sua natureza rude. Jamais o rei amara alguém que não a si próprio, porque até seu amor por Ana baseara-se em sua necessidade por ela. Ana aparecera em seu horizonte, uma moça alegre e risonha; para Henrique, ela representara a energia da juventude. Fora a única que recusara a se render aos avanços do rei; a única que parecera não se impressionar pela majestade de Henrique; a única que falara sobre a necessidade de amar o homem antes do rei. Em suas emoções, Henrique era tão simples quanto um leão da selva: ele perseguia sua caça, e nesses momentos a perseguição era a única coisa que lhe importava. A perseguição a Ana terminara; ela conseguira torná-la árdua; fizera-o acreditar que o fim da caçada não era sua redenção, mas a conquista de um lugar para ela a seu lado no trono; juntos, eles tinham caçado uma coroa para Ana Agora a coroa era dela, e o esforço deixara a ambos exaustos.
Para um homem com o temperamento de Henrique, o relacionamento entre amantes era mais empolgante do que aquele entre uma esposa e um marido, embora sua consciência jamais lhe fosse permitir admitir uma coisa como essa. O primeiro era um relacionamento pleno de excitação, com encontros clandestinos, dúvidas e temores, e todos os ingredientes do romance; o segundo era prosaico, arranjado e - a mais demeritória de suas características - sem saída... ou quase. Mesmo desde janeiro, o relacionamento vinha mudando pouco a pouco. Ana ainda podia despertar em Henrique momentos de paixão animal. Ela sempre iria conseguir isso, ela sempre seria para ele a mulher mais atraente de sua vida; mas Henrique era essencialmente polígamo, e possuía uma consciência maravilhosamente elástica para explicar todas as suas ações.
Sendo muito inteligente, Ana poderia ter mantido Henrique sob seu controle, feito-o crer que alcançara a felicidade plena. Mas Ana sempre fora uma pessoa imprudente, e a luta cansara-a mais do que a Henrique; fora ela quem tivera mais a ganhar e mais a perder; achava que alcançara seu objetivo e precisava descansar. Ademais, agora podia ver de um ângulo diferente esse homem com quem se casara. Ana não era mais a súdita humilde tentando subir às mesmas alturas vertiginosas que o rei; agora era sua igual, não a filha humilde de um cavaleiro, mas uma rainha. E, como rainha, ela olhava para seu rei... e a visão mais próxima beneficiava-o menos. A boa aparência de Henrique desaparecera com sua juventude. Estava agora na casa dos 40, tendo desfrutado demais da vida. Fizera muitas coisas em excesso, e isso era aparente; despido das roupas deslumbrantes, Henrique não era belo, apenas um homem que sofrera as consequências inevitáveis de uma vida promíscua. A forma com evitava encarar diretamente os fatos irritava Ana sobremaneira. Ana rebelava-se contra a consciência de Henrique; olhava para ele de perto demais, e ele percebia isso. Henrique notava os lábios da esposa curvarem-se em resposta a alguns de seus comentários; via o cenho de Ana franzir em reação às suas demonstrações de grosseria.
Coisas assim enraiveciam-no, e ele se lembrava de que era filho de um rei, e que fora inteiramente graças a ele que Ana obtivera sua eminência.
Brigavam. Ambos eram geniosos demais para evitar; mas até agora as brigas tinham sido pouco mais do que trocas de chistes. Porque Ana ainda podia encantar Henrique, e ele não esquecia que ela carregava no ventre o herdeiro dos Tudor. Ana também não esquecia disso; na verdade, encontrava-se completamente absorvida por esse pensamento.
Ana manifestava a despreocupação da gestante: tudo o mais era de pouca importância em comparação à vida que se movia dentro dela. Estava obcecada por isso. Queria ser deixada a sós para sonhar com essa criança, esse filho, por quem precisaria esperar ainda por três longos meses.
Isso era completamente justo, considerava Henrique. A criança era importante, mas não era motivo para tê-la feito mudar tão radicalmente. Henrique gostava de ver Ana ganhar corpo; era um presságio bom - o menino estava bem e saudável no ventre da mãe, e que Deus abençoasse sua vinda! Mas... ela não devia esquecer o pai do bebé, como aparentava ter feito. Estava lânguida, não expressando qualquer deleite pelas atenções que Henrique lhe prestava, preferindo conversar sobre bebés com suas damas de companhia do que estar com seu marido. Henrique estava desapontado. Sentia falta do sexo apaixonado. Estava na casa dos 40; não esperava desfrutar de seu vigor masculino por muitos anos a mais. Às vezes sentia-se terrivelmente velho; então dizia a si mesmo:
Tudo aquilo que suportei nos últimos anos por ela fez isso comigo Levou-me alguns anos mais para perto da sepultura!
E era tomado por um rancor profundo contra Ana, rancor por ela, carregando seu filho, negar-lhe aquele prazer que mulher nenhuma no mundo jamais lhe dera igual. Ele reconsiderava sua promessa de fidelidade para com ela.
"Ora, um homem deve ser fiel a uma amante se quiser mante-la, mas uma esposa é uma história completamente diferente!"
Esse pensamento invadiu Henrique e assombrou sua mente. Lembrou-se dos dias antes de Ana vir morar no Solar Suffolk. Nessa época havia tempero e encanto em seu amor, e a clandestinidade adicionava um sabor de aventura.
"A maçã colhida na macieira é mais saborosa que a maçã que é servida num prato", rezava a sabedoria popular. "Há verdade nisso", considerou Henrique, repentinamente pensando em aventuras amorosas.
Chegou um dia chuvoso em julho quando havia pouco a fazer. Henrique podia tocar harpa, podia cantar... mas o dia se arrastava, porque sua mente estava inquieta. Assuntos de Estado pesavam-lhe nos ombros. A despeito de sua separação de Roma, estivera ansioso para que o papa sancionasse seu casamento. Ficou profundamente decepcionado porque, ao invés da sanção, veio um pronunciamento de que a sentença de Cranmer sobre o casamento anterior de Henrique estava em vias de ser anulada. O rei recebeu a seguinte ameaça: a não ser que deixasse Ana antes de setembro e retornasse para Catarina, tanto ele quanto aquela a quem chamava de sua nova rainha seriam excomungados.
Eram notícias inquietantes. Henrique estava com medo. O desprezo de Ana por Roma e sua falta de temor supersticioso enfureciam Henrique, que não gostava de vê-la demonstrar mais coragem do que ele. Estava transtornado, embora sua consciência explicasse que seu sentimento não era temor, mas ansiedade por ter assegurado de que ele agira de acordo com a vontade de Deus. Alguns padres, particularmente no norte, estavam rezando contra o novo casamento. Em Greenwich, o frei Peyto tivera a ousadia de rezar diante de Henrique e Ana, insinuando o julgamento terrível que os aguardava. O cardeal Polé - que decidira ser bom para ele viver no continente devido a seu grau próximo de parentesco com o rei - escreveu cartas reprovadoras sobre Ana. Henrique não confiava no embaixador espanhol; o homem era matreiro, insolente, audacioso; ousara perguntar a Henrique se ele tinha certeza de que poderia gerar filhos, referindo-se ao estado do corpo do rei, que estava acometido por uma chaga maligna na perna, que se recusava a sarar.
Henrique tinha motivos para acreditar que Chapuys reportara a seu mestre acerca do estado das defesas inglesas; e se ele fizera isso, não seria capaz de aconselhar o imperador a desferir um ataque?
A conquista da Inglaterra seria difícil para um general habilidoso como Carlos? Henrique sabia que a maioria de seus nobres - talvez com a exceção de Norfolk - estaria disposta a apoiar Catarina; e os escoceses sempre tinham sido problemáticos. Por que Carlos, sob o pretexto de vingar uma tia maltratada, não faria algo que seria de imensa vantagem para si: dominar a Inglaterra? Se havia um lado bom nessa perspectiva, era o fato de Carlos estar ocupado com suas possessões espalhadas, e ser cauteloso demais para arriscar extinguir seus recursos já minguados iniciando outra causa. Henrique, furibundo, dissera que iria mandar Chapuys de volta para casa, mas sabia que isso seria insensato; era melhor ter em seu meio um espião cujos métodos ele conhecia do que outro, que talvez fosse dotado de uma astúcia ainda maior. Henrique engoliu temporariamente sua indignação, contendo sua fúria, mas armazenando-a, nutrindo-a. A única luz no horizonte político era o fato de que Francis enviara congratulações para ele e Ana pelo casamento. Henrique convidara o rei francês para ser padrinho de seu filho, o que Francis aceitara cordialmente. Henrique sentia que, uma vez que seu filho tivesse nascido, a massa popular - o elemento que ele mais temia - ficaria tão feliz que esqueceria dos diversos métodos não ortodoxos que tinham sido empregados para produzir um evento tão glorioso. Astrólogos e médicos tinham lhe assegurado de que não havia dúvida acerca do sexo da criança, de modo que tudo que Henrique precisava fazer era esperar até setembro; mas nunca um mês pareceu demorar tanto a chegar, e eles ainda estavam em julho. E chovia. Portanto o rei sentia uma necessidade febril por diversão.
E a diversão chegou na forma voluptuosa de uma das damas de companhia de Ana. A garota representava um contraste completo de sua senhora: rosto arredondado, dona de olhos grandes e azuis como os de um bebé, roliça e convidativa. Não havia nela qualquer sinal de arrogância ou dignidade, e Henrique sempre gostara de variar.
Ela olhava para Henrique sempre que atravessara a alcova, e Ana, absorvida pela maternidade, a princípio não notou o que estava acontecendo. A menina fazia-lhe mesuras, olhava sobre o ombro para Henrique; ele sorria para ela, esquecendo Chapuys e Carlos, e todos que rezavam contra ele.
Na quietude de um corredor, Henrique abordou a moça subitamente. Ela fez-lhe uma mesura, lançando-lhe um olhar ousado de admiração que o fez lembrar dos dias em que Ana ainda não ocupara inteiramente seus pensamentos. Beijou a moça, que logo perdeu o fôlego; também lembrava de ter provocado muitas vezes essa reação, como se a moçoila estivesse apalermada por estar beijando o rei! Henrique sentiu-se um rei novamente! Era muito mais agradável conceder favores como um rei do que implorar por eles como um cachorro.
Depois que deixou a companhia da jovem, Henrique percebeu que Ana ainda ocupava a maior parte de seus pensamentos. Não havia mulher que pudesse ser comparada a Ana, e ele ainda sentia medo dela, medo de suas reações caso descobrisse qualquer infidelidade. Henrique jamais esquecera do dia em que Ana retornara para o Castelo de Hever. Além disso, ela estava prestes a dar-lhe um filho. Ele ainda sentia muito amor e respeito por Ana. Mas um beijo não era nada.
O clima clareou e Henrique se sentiu melhor. Agosto chegou. Os convites para o balizado do príncipe já tinham sido feitos. Ana, deitada em seu sofá, olhava de soslaio para o rei, perguntando-se que motivo ele teria para estar com uma expressão culpada, notando os olhares lascivos de sua aia, percebendo uma certa ousadia oculta na forma como era tratada por essa garota. Ana não podia acreditar que Henrique, que fora tão fiel por anos a fio, sob circunstâncias extremamente difíceis, tivesse relaxado tão rápido, e no mais delicado dos momentos, quando ela estava prestes a dar-lhe um filho. Mas a expressão culpada de Henrique e a irritação que vinha demonstrando para com ela fizeram com que Ana percebesse que se encontrava numa situação de grande risco.
Ana não tinha a paciência de Griselda, nem de Catarina de Aragão. Estava furiosa, e sua fúria era tinta de medo.
E se a história fosse se repetir? E se o que acontecera com a rainha Catarina estivesse prestes a acontecer com a rainha Ana? Ele iria pedir-lhe para admitir que seu casamento era ilegal? Ela seria convidada para ingressar num convento? Ela não podia esquecer de que não tinha nenhum homem poderoso como o imperador Carlos para apoiá-la.
Ana vigiou o rei e vigiou a garota. Henrique estava inquieto; bebia desregradamente; os dias pareciam intermináveis para ele; ora estava nervoso e irritado, ora estava exultante. Mas isso era compreensível; o nascimento de um filho varão era da máxima importância, considerando que isso não apenas garantiria a dinastia Tudor, como também seria para Henrique um sinal dos céus de que ele tivera o direito de substituir Catarina.
Ana sentiu-se muito desconfortável durante os dias quentes que se seguiram, ansiosa pelo nascimento de sua criança. Sentia sobre si os olhos de todos; sentia que aguardavam o fator decisivo: o nascimento de um filho varão. Os amigos de Ana rezavam por um menino; os inimigos, por uma menina ou um natimorto.
Certo dia no final de agosto Ana teve a impressão de que a moça a quem vigiava com suspeita parecia mais animada e um pouco arrogante. E então flagrou Henrique lançando-lhe um olhar lascivo.
"Devo permitir que isso aconteça diante de meus próprios olhos?", questionou-se Ana "Não sou eu a rainha?"
Ela esperou até que Henrique estivesse a sós na alcova com ela. Então disse, olhos em brasa:
- Se você quer se divertir, prefiro que não faça isso diante de minhas vistas e com uma das minhas criadas!
Os olhos de Henrique arregalaram-se de fúria. Odiava ser pego. Ele já resolvera a questão com a sua consciência; não era nada este pequeno caso de amor com uma leviana que decerto perdera a virgindade há muito tempo; não valia nem mesmo uma confissão a um padre. Era um caso breve e trivial, iniciado depois de uma tarde em que abusara do vinho; era pouco mais do que um sonho.
"Livrei-me de uma esposa para me tornar um peão nas mãos de outra?", questionou-se.
Ele estava farto disso. Ele era o rei, ele iria possuí-la agora Ele já estava farto da arrogância de Ana.
Enquanto lutava em busca de palavras para expressar sua indignação, uma de suas aias entrou. Isso não deteve o rei. Era preciso que todos soubessem que ele era o rei absoluto e que a rainha desfrutava de seu poder através dele.
- Mantenha os olhos fechados, como aquelas que eram melhores que você fizeram antes!
As faces de Ana ficaram rubras. Ela se sentou na cama Respostas ferozes vieram a seus lábios, mas alguma coisa no rosto do rei paralisou-a Ela sentiu toda a raiva abandonar seu ser, porque agora só havia espaço para o medo mortal. O rosto de Henrique perdera também sua aparência corada; os olhos, repentinamente frios e cruéis, espiavam...
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