Biblio VT
Oceano Índico, 1667, em alguma latitude próxima ao cabo da Boa Esperança. Sir Francis Courtney e o filho Hal estão a bordo da caravela Lady Edwina à espera dos galeões holandeses recheados de ouro em pó do Oriente. Assim começa a grande aventura em busca de tesouros e especiarias, recriada em detalhes por Wilbur Smith, sinônimo de romances.
No litoral africano, precisamente na cidade do Cabo, o cenário é desolador. Um lugar que se resume a algumas fortificações, com ruas imundas e população miserável, administrada a ferro e fogo pelo terrível governador Petrus van de Velden.
No mar, embarcações holandesas enfrentam os ingleses, em uma guerra cruel, na qual sangue e ouro se misturam. Marinheiros são trucidados a golpes de espada e reduzidos a pó sob tiros de canhão.
Em sua embarcação, Sir Francis treina Hal para sucedêlo como capitão. De forma dramática, acompanhamos a transição forçada do rapaz para a idade adulta, quando é obrigado a assistir a seu pai ser torturado e morto pelas mãos dos holandeses. Entretanto, após uma sangrenta batalha, Hal deve seguir atrás do tesouro escondido pelo pai, ao mesmo tempo que parte no encalço do capitão que traiu Sir Francis.
Aves de rapina é o resultado de uma pesquisa meticulosa de elementos de época, formando um rico mosaico de paisagens marítimas e batalhas históricas, em ritmo equilibrado de tensão e drama. Uma verdadeira obra prima de Wilbur Smith, que confirma o autor como histórico.
Embora esta história esteja fundada nos meados do século XVII, os galeões e caravelas nas quais meus personagens se encontram são mais comumente associados ao século XVI. Navios do século XVII muitas vezes guardam uma forte semelhança com aqueles do século XVI, porém, como seus nomes podem ser pouco familiares para o leitor comum, usei os termos mais conhecidos, ainda que anacrônicos, para transmitir uma impressão acessível de sua aparência. Além disso, em nome da clareza, simplifiquei a terminologia com respeito às armas de fogo e, tal como na linguagem comum, utilizei ocasionalmente a palavra canhão como um genérico.
O rapaz agarrou-se à beirada da cesta de gávea na qual se agachava vinte metros acima do convés, ao embalo do navio. O mastro se inclinava num ângulo forte conforme a nau lançava a proa ao vento. O navio era uma caravela chamada Lady Edwina em homenagem à mãe de quem o rapaz mal conseguia se lembrar.
Lá embaixo, nas sombras que precedem o alvorecer, ele podia ouvir as grandes colubrinas de bronze a se chocarem às roldanas e se erguerem com um baque contra o massame de fixação. O casco pulsava e ressoava num impulso diferente conforme a nau manobrava e avançava rumo oeste. Com o vento sudeste agora à popa, ela se transformava, mais leve e ágil, mesmo com as velas arriadas e com um metro de água nos porões.
Isso tudo era bastante familiar para Hal Courtney. Ele saudara as últimas sessenta e cinco auroras assim, do mastro principal. Seus olhos jovens, os mais aguçados no navio, estavam postados ali para captar o primeiro vislumbre de uma vela distante no alvorecer do novo dia.
Mesmo o frio era familiar. Ele puxou o grosso gorro de lã de Monmouth até as orelhas. O vento entrava cortante através de seu gibão de couro, porém ele estava habituado a tal leve desconforto. Não prestou atenção a isso e estreitou os olhos, fitando a escuridão.
Hoje os holandeses virão gritou, e sentiu a emoção e o pavor pulsarem nas costelas.
Bem acima dele, o esplendor das estrelas começou a empalidecer e desbotar, e o firmamento encheu-se com a perolada promessa do novo dia. Agora, lá embaixo, ele já conseguia distinguir as figuras no convés. Pôde reconhecer Ned Tyler, o timoneiro, debruçado sobre a cana do leme, a segurar o navio na rota; e seu próprio pai curvado sobre a bitácula para ler o novo curso, a lanterna a lhe iluminar as feições magras e escuras, seus longos cachos a esvoaçarem ao vento.
Com uma pontada de culpa, Hal olhou para a escuridão; ele não deveria vagar os olhos pelo convés naqueles minutos cruciais, quando, a qualquer momento, o inimigo poderia assomar por perto, saído do ventre da noite.
Já então havia luz suficiente para entrever a superfície do mar fustigando o casco. Tinha o duro brilho iridescente de carvão recém-cortado. Ele conhecia muito bem aquele mar do sul, aquela larga avenida do oceano que fluía eternamente costa abaixo da África Ocidental, azul e quente e pululando de vida. Sob a tutela do pai, ele o estudara, de maneira que conhecia de cor o sabor e o curso daquelas águas, cada contracorrente e ondulação.
Um dia ele também seria honrado com o título de Cavaleiro Nautonnier do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal. Seria, como o pai, um Navegador da Ordem. Seu pai estava tão determinado quanto o próprio Hal a conseguir isso, e, aos dezessete anos de idade, tal objetivo não era mais simplesmente um sonho.
Aquela corrente era a avenida pela qual os holandeses deveriam velejar para fazer seus avanços para oeste e aproximações de terra na misteriosa costa que ainda jazia velada ao longe, na noite. Aquela era a passagem de entrada através da qual deveria passar quem procurasse contornar aquele cabo perigoso que dividia o oceano das índias do Atlântico Sul.
Eis por que Sir Francis Courtney, o pai de Hal, o Navegador, escolhera aquela posição, a 34 graus e 25 minutos de latitude sul, para esperar por eles. A espera já durava sessenta e cinco tediosos dias, ao balanço de para trás e para frente-, porém, naquele dia, os holandeses poderiam surgir, e Hal olhou com os lábios entreabertos e os olhos verdes estreitados para o céu que se coloria.
A uma amarra de distância da proa de estibordo, ele viu o lampejo de asas, alto o suficiente para captar os primeiros raios do sol, um longo bando de mergulhões vindos de torra, peitos nevados e cabeças em preto e amarelo. Viu o líder mergulhar e fazer a volta, quebrando o padrão, e virar a cabeça para inspecionar as águas escuras. Percebeu a agitação lá embaixo, o bruxulear de escamas e o fervilhar da superfície quando um cardume subiu à luz. Hal observou o pássaro dobrar as asas e arremessarse para baixo, e cada ave que se seguiu começou seu mergulho no mesmo ponto no ar, para atingir a água escura numa explosão de espuma rendilhada.
Logo, a superfície era uma confusão branca dos pássaros mergulhadores que se empanturravam de anchovas prateadas a se debaterem. Hal desviou o olhar e examinou o horizonte que se abria.
Seu coração falhou ao vislumbrar o brilho de uma vela de um grande navio de velas quadradas apenas uma légua a leste. Teve de encher os pulmões e abriu a boca para berrar um alerta ao tombadilho superior antes de reconhecê-lo. Era o Gull ofMoray, uma fragata, não uma nau mercante holandesa. A fragata estava fora de posição, o que iludira Hal.
O Gull of Moray era o outro navio principal no esquadrão de bloqueio. O Gavião, como era conhecido seu capitão, deveria estar fora da vista, abaixo do horizonte ocidental. Hal debruçou-se na beirada da cesta de gávea e olhou para o convés. Seu pai, punhos nos quadris, o encarava lá de baixo.
Hal berrou para o tombadilho superior: O casco do Gull a barlavento!, e seu pai desviou os olhos para leste. Sir Francis divisou as formas do navio do Gavião, negro contra o céu sombrio, e levou o tubo fino de bronze da luneta ao olho. Hal podia sentir a raiva no conjunto dos ombros do pai e na maneira com que fechava o instrumento com um baque e jogava para trás os cabelos negros. Antes que aquele dia acabasse, seriam trocadas palavras entre os dois comandantes. Hal sorriu para si mesmo. Com sua vontade de ferro e a língua ferina, seus punhos e a espada, Sir Francis instilava terror entre aqueles a quem enfrentava mesmo seus irmãos cavaleiros da ordem lhe tinham respeito. Hal deu graças a Deus que naquele dia o temperamento de seu pai fosse dirigido a qualquer outra pessoa que não ele próprio.
Olhou para o Gull of Moray, a deslizar pelo horizonte conforme se ampliava rapidamente com o chegar da manhã. Hal não precisava de luneta para ajudar os aguçados olhos de jovem além disso, havia apenas um daqueles caros instrumentos a bordo. Divisou as outras velas exatamente onde deveriam estar, pequenas manchas pálidas contra o mar negro. As duas pinaças a se manterem em formação, contas de um colar, estavam espalhadas a quinze léguas de cada lado do Lady Edwina, parte da rede que seu pai lançara para apanhar os holandeses numa armadilha.
As pinaças eram naus abertas, com uma dúzia de homens fortemente armados em cada uma. Quando não necessárias, podiam ser desmontadas e guardadas no porão do Lady Edwina. Sir Francis trocava a tripulação regularmente, pois nem os corajosos homens do sudoeste da Inglaterra nem os galeses e nem mesmos os mais rijos ex-escravos que formavam a maioria da tripulação poderiam suportar as condições a bordo daqueles pequenos navios por muito tempo e ainda estarem aptos para uma luta ao final.
A plena luz do dia finalmente irrompeu, quando o sol subiu do oceano, a oriente. Hal olhou para a trilha de vermelho brilhante que tingiu as águas. E sentiu o ânimo sucumbir ao perceber o oceano vazio de uma vela estranha. Tal como nas sessenta e cinco madrugadas precedentes, não havia nenhum holandês à vista.
Então olhou para norte, para a massa de terra que se agachava como uma enorme esfinge rochosa, sombria e inescrutável, acima do horizonte. Aquele era o cabo Agulhas, o ponto mais ao sul do continente africano.
África! O som daquele nome misterioso em seus próprios lábios arrepiou-lhe a pele dos braços e os pêlos da nuca.
África! A terra não mapeada de dragões e outras criaturas terríveis, que comiam carne de homens, e de selvagens de pele negra que também comiam carne de gente e usavam seus ossos como enfeite.
África! A terra de ouro e marfim e escravos e outros tesouros, todos à espera que um homem ousado o suficiente os procurasse ali e, talvez, perecesse na empreitada. Hal se sentiu assombrado e mesmo assim fascinado pelo som e promessa daquele nome, ameaça e desafio.
Dedicara longas horas às cartas de navegação na cabine do pai quando deveria estar aprendendo de cor as listas das passagens celestiais ou a declinar os verbos latinos. Havia estudado os grandes espaços interiores, preenchido os vazios com desenhos de elefantes e leões e monstros, traçado os contornos das montanhas da Lua, e de lagos e poderosos rios confidencialmente brasonados com nomes como Khoikboi e Camdeboo, Sofala e Reino do Padre João. Hal sabia, porém, por meio de seu pai, que nenhum homem civilizado jamais viajara por aquele interior temido e admirado e ficou a imaginar, como fizera muitas vezes antes, como seria ser o primeiro a se aventurar ali. Padre João particularmente o intrigava. Aquele regente lendário de um vasto e poderoso império cristão nas profundezas do continente africano existia na mitologia européia por centenas de anos. Era um homem ou uma linha de imperadores?
Os devaneios de Hal foram interrompidos por ordens gritadas do tombadilho superior, débeis ao vento, e pela sensação do navio a mudar de curso. Ao olhar para baixo, viu que o pai pretendia interceptar o Gull of Moray. Apenas com as velas de mezena e com tudo o mais arriado, os dois navios agora convergiam, mas a rumar para oeste em direção ao cabo da Boa Esperança e o Atlântico. Moviam-se com preguiça tinham estado por muito tempo naquelas águas cálidas do sul, e seus cascos estavam infestados de teredos. Nenhuma nau poderia sobreviver por longo tempo ali. Os pavorosos vermes de navio ficavam tão grossos como o dedo de um homem e tão compridos como um braço, e se alojavam muito próximo, um dos outros nas pranchas, como favos de mel. Mesmo de seu assento no mastro principal, Hal podia ouvir as bombas a trabalharem em ambos os navios para baixar o fundo chato da embarcação. O som nunca cessava: era como o bater de um coração que mantinha o navio flutuando. Era contudo outra razão pela qual precisavam procurar os holandeses: precisavam trocar de navios. O Lady Edwina, debaixo de seus pés, estava sendo devorado.
Assim que os dois navios alcançaram a distância de um grito, as tripulações penduraram-se nos cordames e se alinharam nas amuradas para trocar caçoadas pela água.
A quantidade de gente dentro de cada navio nunca deixava de intrigar Hal, quando ele a via assim, numa massa como aquela. O Lady Edwina era um navio de 170 toneladas, com um comprimento total de pouco mais de 25 metros, porém carregava uma tripulação de cento e trinta homens, se incluídos aqueles que agora ocupavam as duas pinaças. O Gull não era muito maior, mas com quase metade desse número de homens a bordo.
Cada um daqueles lutadores seria necessário, se quisessem sobrepujar os enormes galeões da Companhia Holandesa das índias Orientais. Sir Francis coletara informações de todos os cantos do oceano sul de outros cavaleiros da ordem, e sabia que pelo menos cinco daqueles grandes navios ainda estava no mar. Naquela estação, vinte e um dos galeões da companhia tinham feito a passagem até então e aportado na pequena estação aprovisionadora abaixo das imponentes Tafelberg, como os holandeses a chamavam, ou Montanha da Mesa, ao pé do continente, antes de se voltarem rumo norte e viajarem Atlântico acima, em direção a Amsterdã.
Aqueles cinco navios atrasados, ainda a navegar pelo oceano das índias, deveriam rodear o cabo antes que o tráfego marítimo sul-leste se reduzisse e o vento mudasse para noroeste. E isso se daria em breve.
Quando o Gull ofMoray não estava em cruzeiro na guerre de course, o que era um eufemismo para a pirataria, Angus Cochran, conde de Cumbrae, recheava seus bolsos com o comércio de escravos nos mercados de Zanzibar. Assim que os infelizes eram presos às argolas de ferro dos grilhões no convés do longo e estreito porão, não poderiam ser soltos até que o navio aportasse ao fim da viagem no Oriente. Isso significava que mesmo aquelas pobres criaturas que sucumbiam durante a tenebrosa passagem tropical do oceano das índias deveriam apodrecer com os vivos nos espaços confinados dos conveses. O eflúvio dos cadáveres putrefatos, misturado ao odor das excreções dos vivos, conferia aos navios escravos um fedor distinto que os identificava de muitas léguas a favor do vento. Nenhuma esfregação, nem mesmo com as mais fortes das águas de barrela, poderia livrar um negreiro de seu cheiro característico.
Conforme o Gull cruzou ao vento, ouviram-se urros de exagerado desgosto de parte Ja tripulação do Lady Edwina.
Por Deus, a nau cheira a um monte de esterco.
Não lavam seus traseiros, seus vermes nojentos? Podemos sentir o cheiro daqui! gritou um para a bela fragata. A linguagem usada de volta pelo Gull fez Hal sorrir. Claro, os intestinos humanos não guardavam mistérios para ele, mas ele não entendeu muito do restante, pois nunca vira aquelas partes de uma mulher às quais os marujos de ambos os navios se referiam com tantos detalhes gráficos, nem sabia os usos do que poderia ser posto ali, porém lhe excitou a imaginação ouvi-las assim descritas. E divertiu-se muito mais ao imaginar a fúria do pai ao escutar aquilo.
Sir Francis era um homem devotado que acreditava que as sinas de guerra seriam influenciadas pelo comportamento de temor a Deus por parte de cada homem a bordo.
Proibia o jogo, a blasfêmia e as bebidas fortes. Conduzia as preces duas vezes ao dia e exortava seus marujos a se comportarem com modos gentis e dignos quando aportados embora Hal soubesse que seu conselho raramente fosse seguido. Agora Sir Francis tinha as feições fechadas, ao ouvir seus homens trocarem insultos com a tripulação do Gavião; contudo, não poderia chicotear metade da companhia do navio para mostrar sua desaprovação, e assim segurou a língua até estar a um berro da fragata.
Nesse ínterim, ele mandara o criado até sua cabine para lhe apanhar o manto. O que teria a dizer ao Gavião era oficial, e ele deveria estar com as insígnias reais. Quando o criado voltou, Sir Francis colocou o magnífico manto de veludo sobre os ombros antes de levar o trompete de comunicação aos lábios.
Bom dia, meu senhor!
O Gavião veio até a amurada e ergueu a mão em saudação. Acima do xadrez escocês, usava meia-armadura, que luzia à fresca luz da manhã, porém sua cabeça estava nua, os cabelos ruivos e a barba emaranhada tal qual um feixe de feno, os cachos a dançarem ao vento como se seu crânio estivesse em chamas.
Jesus o ama, Franky! berrou ele de volta, a voz potente a transcender com facilidade ao vento.
Seu posto é no flanco oriental! O vento e a raiva encurtaram o discurso de Sir Francis. Por que desertou dele?
O Gavião abriu as mãos num expressivo gesto de desculpas.
Eu tenho pouca água e estou completamente sem paciência. Sessenta e cinco dias são o bastante para mim e meus bravos camaradas. Há escravos e ouro a apanhar junto à costa Sofala. Seu sotaque era como a aragem da Escócia.
Sua comissão não lhe permite atacar os navios portugueses.
Holandeses, portugueses ou espanhóis berrou Cumbrae de volta, seu ouro brilha lindamente. Você bem sabe que não existe paz além da Linha.
Um século e meio atrás, pela bula papal Inter Coetera, de 25 de setembro de 1493, a Linha fora traçada pelo meio do Atlântico de norte a sul, pelo papa Alexandre VI, para dividir o mundo entre Portugal e Espanha. Que esperança haveria de que as nações cristãs excluídas, em sua inveja e ressentimento, pudessem honrar essa declaração? Espontaneamente, uma outra doutrina nascera: Nenhuma paz além da Linha! Tornara-se a palavra de ordem para os piratas e os corsários. E seu significado estendia-se em suas mentes para englobar todas as regiões inexploradas dos oceanos.
Dentro das águas do continente norte, atos de pirataria, rapinagem e assassinato cujos perpetradores anteriormente seriam caçados pelas marinhas reunidas da Europa cristã e enforcados no próprio tirante de verga eram tolerados e até mesmo aplaudidos quando cometidos além da Linha. Cada monarca preparado para o combate assinara as Cartas de Marca que, num golpe, converteram seus navios mercantes em piratas, naus de guerra, e os enviara a perpetrarem pilhagens nos oceanos recém-descobertos do globo de expansão.
A própria carta de Sir Francis Courtney fora assinada por Edward Hyde, conde de Clarendon, o lorde chanceler da Inglaterra, em nome de Sua Majestade o Rei Carlos II. Com isso, ele tinha sanção para caçar os navios da República de Holanda, com a qual a Inglaterra estava em guerra.
Já que desertou de seu posto, perdeu seus direitos de reclamar uma parte de qualquer prêmio! gritou Sir Francis através da estreita faixa de água entre os dois navios, porém o Gavião se afastou para dar ordens a seu timoneiro.
O capitão do Gull ofMoray berrou ao gaiteiro, que estava a postos:
Toque uma canção para Sir Francis se lembrar de nós.
Os comoventes acordes de Farewell to the Isles (Adeus às ilhas) cruzaram a água até o Lady Edwina, enquanto os homens do Gavião, no mastaréu, subiam como macacos pelo cordame e soltavam os rizes. As peças até então sem uso do Gull se enfunaram. A vela principal encheu-se com um estouro semelhante à descarga de um canhão, girou ansiosa para sudeste e comprimiu com o ombro a próxima protuberância, escancarando-a com violência para o lado.
Conforme foi empurrado para trás, o Gavião voltou para a amurada de popa, e sua voz se elevou acima do guincho agudo das gaitas de fole e o assobiar do vento.
Possa a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo protegê-lo, meu reverenciado irmão cavaleiro. Nos lábios do Gavião, porém, aquilo soava como uma blasfêmia.
Com seu manto, esquartelado pela croix pattée escarlate da ordem a se enfunar e esvoaçar dos ombros largos, Sir Francis ficou a observálo se afastar.
Lentamente os chistes irônicos e os pesados palavrões dos homens morreram. Um novo ânimo, sombrio, começou a infectar o navio à medida que a companhia se dava conta de que suas forças, insignificantes antes, tinham sido mais que reduzidas à metade num único golpe. Estavam sozinhos para se defrontarem com os holandeses, fossem quais fossem as forças que pudessem aparecer. Os marujos que lotavam o convés e os cordames do Lady Edwina estavam silenciosos agora, incapazes de se encararem.
Então Sir Francis jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
Mais para dividirmos! gritou, e todos riram com ele e deram vivas, enquanto ele seguia para a cabine abaixo do convés de popa.
Por outra hora, Hal continuou no mastro principal. E ficou a imaginar por quanto tempo duraria o ânimo feliz dos homens pois estavam com a água racionada a uma caneca, duas vezes ao dia. Embora a terra e seus rios doces estivessem a menos de metade de um dia de viagem, Sir Francis não ousara destacar nem mesmo uma das pinaças para encher os cascos. Os holandeses poderiam chegar a qualquer hora, e quando o fizessem, ele necessitaria de cada homem.
Por fim, um marujo subiu ao topo para trocar de turno com Hal, na gávea.
O que tem lá para ver, rapaz? perguntou, ao se esgueirar para dentro do ninho de lona ao lado de Hal.
Quase nada admitiu Hal, e apontou para as velas minúsculas das duas pinaças no horizonte distante. Nem transportes nem sinais. Observe a bandeira vermelha: significará que eles têm a caça à vista.
O marujo resmungou.
Em seguida vai me ensinar a peidar. Contudo, sorriu para Hal de um jeito amistoso; o garoto era o favorito do navio.
Hal sorriu de volta.
É a verdade de Deus, mas você não precisa que o ensinem, mestre Simon. Eu o ouvi na barrica na hora crítica. Prefiro enfrentar o canhão de um holandês. Você quase rachou cada prancha do casco.
Simon deixou escapar uma gargalhada explosiva e socou o ombro de Hal.
Desça, rapaz, antes que o ensine a voar como um albatroz. Hal começou a descer pelas enxárcias. A princípio, movia-se com dificuldade, os músculos emperrados e entorpecidos depois da longa vigília, porém logo se sentiu aquecido e balançou-se para baixo com gestos flexíveis.
Alguns dos homens no convés pararam com suas tarefas nas bombas e com os repuxos e agulhas com que consertavam as velas rasgadas pelo vento e ficaram a observá-lo. Ele era tão robusto e de ombros largos como um rapaz três anos mais velho, e de membros longos já era tão alto como o pai. Contudo, ainda conservava a pele fresca e macia, a face sem marcas e a alegre expressão de adolescente. Seus cabelos, amarrados com uma tira de couro atrás da cabeça, escapavam de sob o gorro e reluziam em tons de negro azulado ao sol matutino. Naquela idade, sua beleza era quase feminina, e depois de mais de quatro meses no mar seis, desde que os homens tinham posto os olhos numa mulher, alguns, cujo pendor se inclinava naquela direção, fitavam-no com lascívia.
Hal chegou à verga principal e abandonou a segurança do mastro. Correu ao longo dela, a se equilibrar com a facilidade de um acrobata dezesseis metros acima do estrépito da onda na proa e das pranchas do convés principal. Agora, cada olhar estava sobre ele: era um feito de que poucos a bordo poderiam rivalizar.
Para isso, você tem de ser jovem e estúpido resmungou Ned Tyler, mas meneou a cabeça com ternura ao se debruçar sobre a cana de leme e ficar a observar. Melhor que o bobinho não deixe o pai apanhálo fazendo aquela brincadeira.
Hal chegou ao fim da verga e sem uma pausa balançou-se no braço; deixou-se cair de enxárcia em enxárcia até que estava três metros acima do convés. Dali, saltou com leveza sobre os pés descalços, a flexionar os joelhos para absorver o impacto sobre as pranchas brancas de tanta esfregação.
Ergueu-se, virou para a popa e enregelou-se ao som de um grito inumano. Era um berro primordial, o desafio ameaçador de algum enorme animal predatório.
Hal continuou cravado no lugar por apenas um instante, e então, instintivamente, virou e desviou-se quando uma figura gigantesca atacou-o. Ouviu o som cortante no ar antes de ver a lâmina e abaixou-se. O aço prateado reluziu sobre sua cabeça, e seu atacante rugiu de novo, um guincho de fúria.
Hal viu de relance a face de seu adversário, negra e reluzente, a cavidade da boca delineada por grandes dentes quadrados e brancos, a língua tão rosada e curvada como a de um leopardo, enquanto ele gritava.
Hal dançou e desviou-se quando a lâmina prateada voltou num arco. Sentiu um puxão na manga do gibão, quando a ponta da espada rasgou o couro, e caiu para trás.
Ned, um punhal! berrou com uma voz selvagem para o timoneiro às suas costas, sem tirar os olhos dos do assaltante. As pupilas eram negras e brilhantes como uma obsidiana, a íris opaca de fúria, o branco injetado de sangue.
Hal pulou para o lado com o ataque selvagem que se seguiu e sentiu no queixo o impacto de um soco. Atrás dele, ouviu o raspar de um alfanje sacado da bainha do marujo e a arma a deslizar pelo convés até onde ele estava. Inclinou-se de leve e pegou-a, o cabo a se encaixar naturalmente em sua mão, conforme ele se posicionava em guarda e fazia mira para os olhos do atacante.
Defrontado com a lâmina ameaçadora de Hal, o homem alto mediu a próxima investida, e quando, com a mão esquerda, Hal tirou do cinto sua adaga de um palmo e apontou-a também, a luz de loucura naqueles olhos tornou-se fria e apreciativa. Circundaram um ao outro no convés aberto abaixo do mastro principal, as facas a ondularem, tocando-se e tinindo ligeiramente, enquanto cada um procurava uma abertura.
Os marujos no convés abandonaram suas tarefas mesmo aqueles no manejo das bombas e se aproximaram correndo para formar um anel em torno dos lutadores, a observarem uma briga de galos, as faces iluminadas diante da perspectiva de derramamento de sangue. Resmungavam e grunhiam a cada golpe e defesa, e incentivavam os seus favoritos.
Corte fora essas enormes bolas pretas dele, jovem Hal!
Arranque as penas do rabo desse galinho esquentado, Aboli. Aboli era dés centímetros mais alto que Hal e não havia nenhuma gordura em sua compleição magra e elástica. Era da costa oriental da África, de uma tribo guerreira altamente valorizada pelos negreiros. Cada cabelo fora cuidadosamente arrancado de seu crânio, que luzia como mármore negro polido, e seu queixo era adornado com tatuagens rituais, padrões em espiral de cicatrizes que lhe davam uma aparência terrificante. Movia-se com uma graça peculiar naquelas longas pernas musculosas, a ondular a cintura como alguma enorme cobra negra. Usava apenas uma tanga esfarrapada de lona e seu torso estava nu. Cada músculo do peito e dos braços parecia ter vida própria, serpentes a deslizarem e se enrolarem debaixo da pele oleada.
Ele avançou de súbito, e com um esforço desesperado, Hal girou a faca, porém quase no mesmo instante Aboli reverteu o golpe, mirando mais uma vez contra a cabeça do garoto. O golpe era tão potente que Hal percebeu que não poderia bloqueá-lo com o alfanje apenas. Ergueu as duas lâminas, cruzando-as, e prendeu a do negro logo acima da cabeça. Aço contra aço, as armas rangeram, e a multidão urrou diante da habilidade e graça da defesa.
Contudo, na fúria do ataque, Hal cedera um passo e outro e mais outro conforme Aboli o pressionava mais uma vez, não lhe dando descanso, usando a altura maior e a força superior contra a habilidade natural do rapaz.
A face de Hal expressava seu desespero. Cedia mais agora e seus movimentos mostravam-se sem coordenação: estava cansado e receava estar aturdido nas respostas. Os cruéis espectadores se voltavam contra ele, a gritar por sangue, a incentivar seu implacável oponente.
Marque essa face bonita, Aboli.
Dê-nos uma amostra das entranhas dele.
O suor engraxava as faces de Hal, e sua expressão se crispou quando Aboli o fez recuar contra o mastro. Parecia bem mais jovem de repente, e à beira das lágrimas, os lábios a tremerem de terror e exaustão. Não mais contra-atacava. Agora era todo defesa. Estava lutando por sua vida.
Incansavelmente, Aboli desferiu um novo ataque, brandindo a lâmina contra o corpo de Hal e depois mudando o ângulo para lhe acertar as pernas. Hal estava quase no limite de suas forças, apenas ameaçando rechaçar cada golpe.
Então Aboli mudou sua tática de ataque outra vez: forçou Hal a se esticar todo ao fazer um movimento simulado de quadril esquerdo e depois mudar o peso e avançar com o longo braço direito. A lâmina brilhante passou direto pela guarda de Hal, e os espectadores rugiram quando tiveram o sangue por que tanto ansiavam.
Hal cambaleou e retrocedeu para fora do mastro, ficando de pé, a ofegar, à luz do sol, cego com o próprio suor. O sangue pingava lentamente em seu gibão de um corte minúsculo apenas, feito com a perícia de um cirurgião.
Outra cicatriz para você a cada vez que lutar como uma mulher! caçoou Aboli.
Com uma expressão de incredulidade exausta, Hal ergueu a mão esquerda que ainda segurava a adaga, e com as costas do punho limpou o sangue do queixo. A ponta do lóbulo de sua orelha fora cortada, e a quantidade de sangue exagerava a severidade do ferimento.
Os espectadores berraram com escárnio e alegria.
Pelos dentes de Satã um dos timoneiros riu. O rapazinho bonito tem mais sangue do que tem colhões!
Diante da chacota, uma rápida transformação ocorreu em Hal. Ele baixou a adaga e se posicionou em guarda, ignorando o sangue que ainda pingava de seu queixo. Sua face estava branca, tal como a de uma estátua, e seus lábios, apertados e pálidos. De sua garganta brotou um lento urro, e ele investiu contra o negro.
Explodiu pelo convés com tanta velocidade, que Aboli foi pego de surpresa e arrastado para trás. Quando travaram as facas, ele pôde sentir o novo poder no braço do rapaz, e seus olhos se estreitaram. Então, Hal estava sobre ele como um gato selvagem ferido a escapar de uma armadilha.
Dor e raiva deram-lhe asas aos pés. Seus olhos estavam impiedosos, e a mandíbula cerrada esticava os músculos de sua face numa máscara que não guardava nenhum traço de juventude. Contudo, aquela fúria não lhe roubava a razão e o discernimento. Toda a habilidade que o rapaz acumulara, durante centenas de horas e dias de prática no convés, de repente se aglutinara.
Os circundantes uivaram quando aquele milagre aconteceu diante de seus olhos. Parecia que, naquele instante, o rapaz se tornara um homem, crescera em estatura para ficar queixo a queixo e olho no olho com seu escuro adversário.
Não pode demorar muito, disse Aboli a si mesmo, ao se defrontar com o ataque. Aquela força não iria perdurar. Porém era um novo homem aquele que ele confrontava, e ainda não o reconhecia.
De repente, percebeu-se cedendo espaço ele cansará logo, mas as lâminas gêmeas que dançavam diante de seus olhos pareciam ofuscantes e etéreas, como os pavorosos espíritos das florestas sombrias que uma vez tinham sido seu lar.
Olhou para a face pálida e os olhos incandescentes e não os conheceu. Sentiu um respeito supersticioso assaltá-lo, o que lhe deixou lento o braço direito. Aquele era um diabo, com uma força sobrenatural demoníaca. Ele sabia que estava em perigo sua própria vida.
A próxima investida atingiu-o com velocidade no peito, a infiltrarse por sua guarda como um raio de sol. Ele torceu para o lado a parte superior do corpo, porém o golpe pegou-o sob o braço esquerdo erguido. Não sentiu dor, mas ouviu o raspar da borda da lâmina contra as costelas, e o calor do sangue a escorrer-lhe pelos flancos. Tinha ignorado a arma no punho esquerdo de Hal, e o rapaz usava ambas as mãos com igual facilidade.
Com o canto dos olhos, viu a faca mais curta e mais rija aproximarse velozmente de seu coração e lançou-se de costas para evitá-la. Seu tornozelo ficou preso na ponta de um tirante de verga, enrolado no convés, e ele esparramou-se no chão. O cotovelo de seu braço de espada chocou-se contra o alcatrate, a deixá-lo insensível até a ponta dos dedos, e o alfanje caiu-lhe da mão.
De costas, Aboli parecia indefeso e viu a morte acima de si naqueles terrificantes olhos verdes. Aquela não era a face da criança de quem tivera a tutela e a guarda especial pela última década, o garoto que ele tratava com carinho e treinara e amara durante dés longos anos. A ponta brilhante do alfanje começou a descer, mirada em sua garganta, tendo por trás o pleno peso do corpo flexível do garoto.
Henry! Uma voz severa, autoritária, ressoou pelo convés, a suplantar os uivos dos espectadores sedentos de sangue.
Hal assustou-se e continuou imóvel com a ponta da faca apontada contra a garganta de Aboli. Uma expressão incrédula espalhou-se por sua face, como a de um sonâmbulo, e ele ergueu os olhos para o pai, no tombadilho de popa.
Chega dessa tolice de menino. Desça para sua cabine agora mesmo. Hal olhou pelo convés, para as faces ruborizadas e excitadas que o rodeavam. Sacudiu a cabeça, intrigado, e baixou o olhar para o alfanje em sua mão. Abriu os dedos e deixou-o cair nas pranchas. Suas pernas ficaram moles como água, e ele caiu sobre Aboli. Abraçou-o como uma criança abraça seu pai.
Aboli! murmurou, na língua das florestas que o negro lhe ensinara e que era um segredo que nenhum outro homem branco no navio compartilhava. Eu o machuquei seriamente. O sangue! Por minha vida, eu poderia tê-lo matado.
Aboli riu baixinho e respondeu no mesmo idioma:
Isso passou. Por fim, você perfurou a fonte do sangue de um guerreiro. Pensei que nunca a encontraria. Tive de pressioná-lo muito para isso.
Sentou-se e empurrou Hal para o lado, porém havia uma nova luz em seus olhos ao encarar o rapaz, que não mais era um garoto.
Vá e faça o que seu pai mandou!
Hal levantou-se, trêmulo, e olhou de novo para o círculo de faces que o rodeavam, vendo nelas uma expressão que não reconhecia: era respeito mesclado com mais do que apenas um pouco de medo.
Por que estão como paspalhos? berrou Ned Tyler. A brincadeira acabou. Não têm trabalho a fazer? Manobrem aquelas bombas. Aquelas velas do joanete estão à bolina. Posso encontrar calceses para todas as mãos ociosas Ouviu-se o baque de pés descalços pelo convés enquanto a tripulação corria para seus deveres, com sensação de culpa.
Hal inclinou-se, pegou seu alfanje e entregou-o ao timoneiro, pelo lado do cabo.
Obrigado, Ned. Precisei disso.
E lhe deu bom uso. Eu munca vira aquele pagão dominado, a não ser pelo seu pai, antes de você.
Hal arrancou um trapo da barra esfarrapada de suas calças de lona, levou-o à orelha para estancar o sangue e desceu para a cabine de popa.
Sir Francis tirou os olhos de seu diário de bordo, a pena de ganso pousada sobre a página.
Não se mostre tão presunçoso, filhote resmungou para Hal. Aboli brincou com você, como sempre faz. Poderia tê-lo espetado uma dúzia de vezes antes que você virasse o jogo com aquele golpe de sorte ao final.
Quando Sir Francis levantou-se, dificilmente sobraria lugar para ambos na minúscula cabine. Os anteparos estavam cheios de livros de convés a convés, e mais deles espalhavam-se a seus pés; os volumes de capa de couro atulhavam-se dentro do cubículo que lhe servia como um catre. Hal ficou a imaginar onde ele encontrava espaço para dormir.
Seu pai dirigia-se a ele em latim. Quando estavam sozinhos, insistia em falar o idioma de um homem educado e culto.
Você morrerá antes de se tornar um espadachim, a menos que descubra o aço em seu coração assim como em sua mão. Algum holandês pesado o dividirá pelos dentes no primeiro encontro. Sir Francis olhou para o filho de fisionomia fechada. Recite a lei da espada.
Um olho nos olhos resmungou Hal em latim.
Fale alto, rapaz! A audição de Sir Francis fora afetada pelo estouro de colubrinas; no correr dos anos, um milhar de surriadas explodira em torno de sua cabeça. Ao final de um enfrentamento, o sangue estaria pingando dos ouvidos dos marujos ao lado dos canhões, e durante dias depois disso até mesmo os oficiais na popa ouviam sinos celestiais a ressoar em seus crânios.
Um olho nos olhos repetiu Hal sonoramente, e seu pai aquiesceu.
Os olhos são a janela da mente. Aprenda a ler neles as intenções antes do ato. Veja ali o golpe antes que seja desferido. O que mais?
O outro olho para os pés recitou Hal.
Ótimo concordou Sir Francis. Os pés se moverão antes das mãos. O que mais?
Mantenha a ponta alta.
A regra cardinal. Nunca abaixe a ponta. Mantenha-a apontada para os olhos.
Sir Francis conduziu Hal através do catecismo, como fizera incontáveis vezes antes. Por fim, disse:
Eis mais uma regra para você. Lute desde o primeiro golpe, não apenas quando estiver ferido ou zangado, ou poderá não sobreviver ao primeiro ferimento.
Olhou para a ampulheta pendurada no convés acima de sua cabeça.
Ainda há tempo para sua leitura antes das preces do navio. Continuava a falar em latim. Pegue seu Titus Livius e traduza a partir do topo da página vinte e seis.
Por uma hora, Hal leu em voz alta a história de Roma no original, traduzindo cada verso em inglês conforme prosseguia. Então, por fim, Sir Francis fechou seu exemplar de Titus Livius com um baque.
Houve uma melhora. Agora, decline o verbo durare.
Que seu pai tivesse escolhido aquele verbo era um sinal de sua aprovação. Hal recitou com pressa e num só fôlego, diminuindo o ritmo quando chegou ao futuro do indicativo.
Durabo. Persistirei.
Aquela palavra era o lema da cota de armas dos Courtney, e Sir Francis sorriu com frieza quando Hal a pronunciou.
Possa o Senhor conceder-lhe essa graça. Levantou-se. Pode ir agora, porém não se atrase para as preces.
Feliz por se ver livre, Hal fugiu da cabine e rumou para cima pela escada do tombadilho.
Aboli estava agachado ao abrigo do vento ao lado de uma das pesadas colubrinas de bronze perto da proa. Hal ajoelhou-se ao lado dele.
Eu o feri.
Aboli fez um eloqüente gesto de descaso.
Uma galinha a ciscar fere a terra com mais gravidade.
Hal puxou o manto de pano alcatroado dos ombros de Aboli, pegou-o pelo cotovelo e ergueu o braço grosso e musculoso para o alto para verificar o profundo corte pelas costelas.
Entretanto, este pequeno galo lhe deu uma boa bicada observou, com secura, e sorriu quando Aboli abriu a mão e lhe mostrou a agulha já enfiada com linha de costurar vela. Ia pegá-la, porém Aboli o conteve.
Lave o corte conforme eu lhe ensinei.
Com essa sua longa píton negra, você pode fazer isso por si mesmo exclamou Hal, e Aboli soltou sua longa e sonora risada, baixa e grave como um trovão distante.
Teremos de fazer isso com uma pequena lombriga branca.
Hal levantou-se e soltou a corda que lhe segurava as calças. Deixou-as caírem até os joelhos e com a mão direita afastou o prepúcio.
Eu te batizo, Aboli, senhor das galinhas! Imitava o tom de voz do pai em prece fervorosa e dirigiu o jato de urina amarela para a ferida aberta.
Embora Hal soubesse o quanto isso ardia, pois Aboli fizera o mesmo com ele muitas vezes, as feições negras permaneceram impassíveis. Hal lavou a ferida até a última gota e depois puxou as calças. Sabia o quanto era eficaz aquele remédio tribal de Aboli. Da primeira vez em que fora usado nele, ficara revoltado com isso, porém no decorrer de todos aqueles anos desde então ele jamais vira um ferimento tratado assim gangrenar.
Pegou a agulha e o fio de vela, e enquanto Aboli segurava juntos os lábios do ferimento com a mão esquerda, Hal costurou-os com pontos de marinheiro, enterrando a ponta da agulha pela pele elástica e dando nós apertados. Quando terminou, pegou o pote de alcatrão quente que Aboli tinha pronto. Besuntou profusamente o ferimento costurado e meneou a cabeça, satisfeito com o trabalho.
Aboli levantou-se e ergueu a tanga de lona.
Agora vamos ver sua orelha disse a Hal, e o pênis escuro sobrepujava seu punho em metade do comprimento.
Hal encolheu-se depressa.
Não passa de um arranhão protestou, porém Aboli o segurou sem piedade pelo rabo-de-cavalo e torceu-lhe a face para cima.
Ao badalar do sino, a companhia amontoou-se na parte central do navio, e ficou de pé em silêncio, cabeças descobertas ao sol até mesmo os negros de tribos que não reverenciavam exclusivamente o Senhor crucificado, porém outros deuses também, cuja moradia eram as profundas florestas sombrias de seus lares.
Quando Sir Francis, tendo na mão a grande Bíblia de capa de couro, entoou sonoramente Nós vos imploramos, Deus Todo-poderoso, entregai os inimigos de Cristo em nossas mãos para que não possam triunfar..., seus olhos eram os únicos ainda voltados para o céu. Cada outro olho na companhia se voltara em direção ao leste, de onde aquele inimigo viria, carregado de prata e especiarias.
Na metade do longo serviço religioso, uma linha de borrasca veio do leste, o vento a empurrar as nuvens numa massa escura e turbulenta sobre as cabeças e lavando os conveses com lençóis prateados de chuva. Porém, os elementos não poderiam conspirar para afastar Sir Francis de sua conversa com o Todo-poderoso, e assim, enquanto a tripulação se enfiava em suas jaquetas de pano alcatroado, com chapéus do mesmo material amarrados sob o queixo, e a água a escorrer deles como do couro de um bando de morsas na praia, Sir Francis não perdeu o compasso de seu sermão.
Senhor da tempestade e do vento rezou ele, socorrei-nos. Senhor da linha de batalha, sede nosso escudo e proteção...
A borrasca passou sobre eles depressa e o sol irrompeu de novo, a reluzir nas ondas azuis, o vapor a fumegar nos conveses.
Sir Francis empurrou o chapéu de abas largas de cavalier para trás na cabeça, e as penas brancas ensopadas que o enfeitavam pareceram concordar em aprovação.
Mestre Ned, descarregue os canhões.
Era a ação apropriada a fazer, percebeu Hal. A chuva teria ensopado a escorva e molhado a pólvora carregada. Em vez do lento processo de retirar a bala e recarregar, seu pai daria à tripulação alguma prática.
Chame todos a postos, por favor.
O rufo do tambor ecoou pelo casco, e a tripulação correu a sorrir e brincar para seus postos. Hal pegou a ponta de um fósforo de queima lenta no braseiro ao pé do mastro. Quando acendeu por igual, pulou para as enxárcias e, carregando o fósforo incandescente nos dentes, subiu para seu posto de batalha no tope de mastro.
No tombadilho, viu quatro homens que manejavam uma barrica de água vazia e a empurravam em ziguezague para o lado do navio. A uma ordem da popa, ergueram-na e jogaram-na pela amurada, deixando que boiasse na esteira do navio. Enquanto isso, os artilheiros arrancaram os calços e, fazendo força nos tirantes, correram as colubrinas. De ambos os lados no tombadilho inferior, havia oito, cada uma carregada com uma carga de pólvora e uma bala. No tombadilho superior estavam distribuídas dés semicolubrinas, cinco de cada lado, os longos canos lotados de metralha.
O Lady Edwina estava em falta com balas de ferro depois de seus dois longos anos de cruzeiro, e alguns dos canhões eram carregados com bolas de seixo rolado catados às margens das desembocaduras dos rios que desaguavam nas praias. Num movimento pesado, a nau virou de bordo e ajustou-se ao novo rumo, batendo contra o vento. O barril flutuante ainda estava duas amarras de distância à frente, porém a amplitude se estreitava lentamente. Os artilheiros seguiam de canhão a canhão, a empurrar os calços de elevação e ordenando que fossem ajustados os tirantes. Aquela era uma tarefa especializada: apenas cinco homens a bordo tinham a perícia necessária para carregar e preparar uma peça de artilharia.
No cesto de gávea, Hal girou o falconete de cano longo em seu eixo e apontou-o para uma massa de sargaços levada pela corrente. Então, com a ponta de seu alfanje, raspou a pólvora empedrada e úmida da caçoleta de escorva da arma e, com cuidado, reabasteceu-a com pólvora fresca de seu frasco. Depois de dés anos de instrução dadas pelo pai, era tão perito como Ned Tyler, o artilheiro mestre do navio, na arte restrita aos iniciados. Seu posto de combate seria, por direito, no convés de artilharia, e ele ficaria contente com seu pai se este o colocasse lá porém recebera uma dura resposta: Você irá aonde eu o mandar. Agora, devia sentar-se ali, fora da confusão, enquanto seu jovem coração ansiava por ser parte daquilo.
De súbito, foi surpreendido pelo estouro de um tiro vindo do tombadilho abaixo. Uma longa e densa coluna de fumaça soprou e o navio adernou ligeiramente com a descarga. Um momento depois, uma alta formação de espuma elevou-se dramaticamente da superfície do mar quarenta e cinco metros à direita e vinte além do barril flutuante. Naquele alcance, não fora um mau tiro, porém o convés explodiu num coro de urras e assobios.
Ned Tyler correu para a segunda colubrina e verificou rapidamente sua colocação. Gesticulou para os homens no cordame para puxá-la para um ponto à esquerda e depois avançou um passo e levou o fósforo em chamas para o ouvido da arma. Um sibilante penacho de fumaça subiu e depois, da boca do canhão, surgiu uma chuva de fagulhas, pólvora meio queimada e torrões de sujeira úmida. A bala rolou pelo cano de bronze e caiu no mar a menos de meio caminho do alvo. A tripulação urrou de decepção.
As duas próximas armas negaram fogo. A praguejar com fúria, Ned ordenou aos tripulantes que puxassem as cargas com os longos forcados de ferro, enquanto corria pela fila.
Gasto enorme de pólvora e bala! recitou Hal para si mesmo as palavras do grande Sir Francis Drake por quem seu próprio pai fora batizado ditas depois do primeiro dia da épica batalha contra a armada de Felipe II, rei de Espanha, liderada pelo duque de Medina Sidônia. Durante todo aquele longo dia, sob a névoa pardacenta da fumaça dos tiros, as duas grandes frotas tinham perdido suas poderosas amuradas uma para a outra, porém o fogo de barragem não mandara um único navio de cada frota para o fundo.
Aterrorize-os com canhão instruíra-o seu pai, mas varra seus tombadilhos com o cutelo e vocalizara seu escárnio pela barulhenta porém ineficiente arte de artilharia naval. Era impossível mirar uma bala do tombadilho oscilante de um navio a um ponto preciso no casco de outro: a exatidão estava nas mãos do Todo-poderoso em vez de naquelas do mestre artilheiro.
Como se para ilustrar o ponto, depois de Ned ter disparado cada um das pesadas armas a bordo, seis tinham negado fogo e o mais próximo que ele chegara de atingir o barril flutuante não passara de dezoito metros. Hal meneou a cabeça com tristeza, refletindo que cada um daqueles disparos havia sido cuidadosamente orientado e mirado. No calor de uma batalha, com a amplitude obscurecida pela fumaça em turbilhão, a pólvora e a bala socada com pressa dentro das bocas, os canos aquecidos de forma desigual e o fósforo aplicado à caçoleta de escorva por atiradores excitados e apavorados, os resultados não poderiam ser nem mesmo satisfatórios.
Por fim, seu pai olhou para ele.
Topo do mastro! rugiu.
Hal temera ter sido esquecido. Agora, com uma sensação de alívio, soprou a ponta do fósforo fumegante na mão. A chama luziu brilhante e forte.
Sir Francis o observava do tombadilho, a expressão séria e ameaçadora. Não deveria jamais mostrar o amor que nutria pelo menino. Precisava ser sempre duro e crítico na sua condução. Para o próprio bem do menino não, pela própria vida dele, devia forçá-lo a aprender, a competir, a persistir, a correr cada passo do curso adiante com toda a força e todo o coração. Sim, sem deixar aparente que ele deveria também ajudar, encorajar e assisti-lo. Precisava apascentá-lo com sabedoria, com sagacidade, em direção a seu destino. Havia se demorado a chamar por Hal até aquele momento, quando o barril flutuava para perto.
Se o rapaz pudesse arrebentá-lo com a pequena arma, quando Ned falhara com o grande canhão, então sua reputação com a tripulação seria engrandecida. Os homens em sua maioria eram rufiões violentos, simples iletrados, porém um dia Hal seria chamado a liderá-los ou a outros como eles. Dera um passo gigantesco naquele dia ao sobrepujar Aboli diante deles todos. Ali estava uma oportunidade de consolidar esse ganho.
Guiai-lhe a mão e o vôo da bala, ó Deus da linha de batalha rezou Sir Francis silenciosamente, e a companhia do navio dobrou o pescoço para observar o rapaz lá no alto.
Hal cantarolou baixinho enquanto se concentrava na tarefa, ciente dos olhos que o seguiam. No entanto, não sentiu a importância daquele disparo e estava alheio às preces do pai. Era um jogo para ele, apenas outra chance para sair-se bem. Hal gostava de vencer, e cada vez que o fazia, gostava mais. A jovem águia estava começando a rejubilar-se com a força de suas asas.
Girou o falconete para baixo, agarrando a ponta do longo rabo de bronze, e, olhando pelo cano, alinhou o corte acima da caçoleta de escorva com a marca ao final do cano.
Ele aprendera que era tolice mirar diretamente para o alvo. Haveria um atraso de segundos de quando ele aplicasse o estopim até o estouro do tiro, e, nesse ínterim, navio e barril teriam se movido em direções opostas. Haveria ainda o instante em que as balas disparadas estariam em vôo antes de atingirem o alvo. Ele precisava calibrar onde o barril se posicionaria quando o tiro o alcançasse e não mirar para o lugar onde estivesse quando levasse o fósforo à caçoleta.
Desviou a alça de mira ligeiramente do alvo e pousou a ponta luzidia do fósforo à espoleta. Forçou-se a não se esquivar da combustão da pólvora em chama nem recuar de antecipação à explosão, porém manteve os canos a oscilarem gentilmente na linha que escolhera.
Com um rugir que fez zunir seus tímpanos, o falconete pinoteou nos eixos e tudo desapareceu numa nuvem de fumaça acinzentada. Em desespero, Hal sacudiu a cabeça à esquerda e à direita, tentando ver em torno da fumaça, mas foram os vivas dos tombadilhos abaixo que fizeram seu coração saltar, ao alcançá-lo apesar dos ouvidos que cantavam. Quando o vento dissipou a fumaça, ele pôde ver as tábuas curvas do barril esfacelado a girar e revirar à popa, na esteira do navio. Soltou um urro de alegria e acenou com o gorro para as faces no convés lá embaixo.
Aboli estava em seu lugar na proa, timoneiro e capitão de artilharia do primeiro turno. Devolveu o sorriso beatífico de Hal e bateu no peito com o punho fechado, enquanto com o outro brandia o alfanje sobre a cabeça calva.
O tambor ressoou para dar um fim ao exercício e mandar a tripulação para seus postos de batalha. Antes de descer pelas enxárcias, Hal recarregou o falconete com cuidado e atou uma tira de lona ensopada de alcatrão em torno da caçoleta de escorva para protegê-la do sereno, chuva e borrifos.
Assim que seus pés tocaram o convés, ele olhou para a popa, a tentar encontrar o olhar do pai e colher sua aprovação. Sir Francis, contudo, estava concentrado em conversa com um de seus oficiais de pequena importância. Um instante se passou antes que olhasse friamente por sobre o ombro para Hal.
Por que está aparvalhado, rapaz? Há armas a serem recarregadas.
Ao se afastar, Hal sentiu uma pontada de desapontamento, porém as congratulações ruidosas da tripulação, os tapas rijos em suas costas e ombros enquanto passava pelo convés de artilharia lhe devolveram o sorriso.
Quando Ned Tyler o viu aproximar-se, deu um passo atrás da culatra da colubrina que carregava e estendeu o soquete para Hal.
Qualquer idiota pode disparar, porém é preciso um bom homem para carregá-la resmungou e recuou com ar de crítica para observar Hal medir uma carga da barrica de couro com pólvora. Que peso de pólvora? perguntou, e Hal deu a mesma resposta que dera uma centena de vezes antes.
O mesmo peso daquele da bala esférica.
A pólvora negra era composta de grânulos grosseiros. Houvera uma época em que, sacudida e agitada pelo balanço do navio ou algum outro movimento repetitivo, os três elementos essenciais, enxofre, carvão e salitre, poderiam se separar e se tornarem inúteis. Desde então, o processo de granulação tinha evoluído, o pó fino em estado natural sendo tratado com urina ou álcool para se transformar num bolo que era então esmagado num moinho até o tamanho requerido. Contudo, o processo não era perfeito, e um artilheiro deveria ter sempre um olho atento à condição de sua pólvora. Umidade ou tempo de duração poderiam degradála. Hal testou os grãos entre os dedos e provou uma pitada. Ned Tyler o ensinara a assim diferenciar entre a pólvora boa e a degenerada. Em seguida, ele verteu o conteúdo da barrica dentro do cano e depois disso colocou a bucha de estopa.
Então empurrou tudo para baixo com o longo soquete de cabo de madeira. Essa era outra parte crucial do processo: com a pólvora sendo socada firmemente, a chama poderia não passar através da carga, e era inevitável que a arma negasse fogo; não socada com firmeza suficiente porém, a pólvora negra iria queimar sem o poder de empurrar o pesado projétil para fora do cano. A socadura correta era uma arte que só poderia ser aprendida com uma prática prolongada, mas Ned meneou a cabeça em aprovação enquanto observava Hal trabalhar.
Muito mais tarde, Hal subiu de novo para a luz do sol. Todas as colubrinas estavam carregadas e seguras atrás de suas portinholas, e o torso nu de Hal luzia de suor do calor do apertado convés de artilharia e do trabalho com o soquete. Ao parar para enxugar a face gotejante, puxar a respiração e esticar as costas depois de ficar agachado por tanto tempo no espaço exíguo do convés inferior, seu pai o chamou, com profunda ironia:
A posição do navio não tem nenhum interesse para você, mestre Henry?
Com um sobressalto, Hal olhou para o sol. Estava alto nos céus acima: a manhã passara depressa. Correu para a escada do tombadilho, desceu-a, irrompeu pela cabine do pai e pegou o pesado sextante de sua caixa na antepara. Em seguida voltou-se e correu de volta para o convés de popa.
Graças a Deus, não estou atrasado murmurou ele para si mesmo e relanceou os olhos para a posição do sol. Estava sobre o braço da verga de estibordo. Posicionou-se de costas para ele, de tal maneira que a sombra lançada pela vela principal não o escondesse, e mesmo assim tivesse uma clara visão do horizonte para o sul.
Agora, concentrava toda a atenção no quadrante do sextante. Tinha de manter o pesado instrumento firme contra o jogo do navio. Depois, precisava ler o ângulo que os raios do sol subentendessem no quadrante por sobre seu ombro, o que lhe daria a inclinação do sol em relação ao horizonte. Era um ato de malabarismo que requeria força e destreza.
Por fim, pôde observar a passagem do meio-dia e leu o ângulo do sol com o horizonte no momento preciso em que chegava ao zênite. Hal baixou o sextante com os braços e ombros doloridos, e garatujou rapidamente a leitura na lousa lateral.
Depois, correu para baixo da escada até a cabine de popa, porém a tabela dos ângulos celestes não estava em sua estante. Preocupado, ele se voltou e viu que seu pai o seguira e o observava com um olhar intenso. Nenhuma palavra foi trocada, porém Hal sabia que estava sendo desafiado a provar seu valor pela memória. Sentou-se no baú do pai que servia como escrivaninha e fechou os olhos enquanto visualizava as tabelas com os olhos da mente. Precisava recordar-se das figuras do dia anterior e extrapolar a partir delas. Massageou o lóbulo da orelha inchado, e seus lábios se moveram de forma inaudível.
De súbito, sua face iluminou-se; ele abriu os olhos e rabiscou outro número na lousa. Trabalhou por mais um minuto, transferindo o ângulo do sol do meio-dia para graus de latitude. Então ergueu os olhos, triunfante.
Trinta e quatro graus, quarenta e dois minutos de latitude sul. Seu pai tomou-lhe a lousa da mão, verificou as figuras e em seguida estendeu-a de volta a ele. Inclinou a cabeça ligeiramente, em concordância.
Bastante próximo, se sua visão do sol estava correta. Agora, qual a sua longitude?
A determinação da longitude exata era um enigma que nenhum homem jamais resolvera. Não havia nenhum medidor de tempo, ampulheta ou relógio que pudesse ser carregado a bordo de um navio e ainda ser suficientemente exato para manter o passo das revoluções majestosas da terra. Apenas a tábua transversal, que estava pendurada ao lado da bitácula de compasso, poderia guiar os cálculos de Hal. Agora ele estudava os pinos que o timoneiro colocara nos orifícios em torno da rosa-dos-ventos do compasso a cada vez que alterara o rumo durante o turno anterior. Hal somou e fez a média desses valores, e em seguida marcouos na carta de navegação da cabine de seu pai. Era apenas uma aproximação rude da longitude, e, como era de se prever, seu pai mostrou-se relutante.
Eu teria dado um toque mais para leste, pois com os teredos no fundo e a água dos porões, a nau cai pesadamente a sotavento; porém, marque seu cálculo no diário de bordo.
Hal ergueu os olhos, atônito. Aquele era um dia realmente momentoso. Nenhuma outra mão além da do pai jamais escrevera no diário de capa de couro que ficava ao lado da Bíblia no tampo do baú.
Enquanto seu pai observava, Hal abriu o diário e, por um instante, fitou as páginas cheias da escrita fluente e elegante de Sir Francis e os belos desenhos de homens, navios e aproximações de terra que adornavam as margens. Seu pai era um artista abençoado. Emocionado, Hal mergulhou a pena no tinteiro de ouro que uma vez pertencera ao capitão do Heerlycke Nacht, um dos galeões da Companhia Holandesa das índias Orientais que seu pai apresara. Deixou que a tinta supérflua gotejasse da ponta, caso contrário iria macular a página sagrada. Então prendeu a ponta da língua entre os dentes e escreveu, com infinito cuidado.
Um toque de sino no turno da tarde, neste terceiro dia de setembro no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1667. Posição 34 graus 42 minutos sul, 20 graus 5 minutos leste. Ocontinente africano à vista a partir do tope de mastro na direção devida norte.
Sem se atrever a acrescentar mais nada e aliviado por não ter estragado a página com rabiscos ou perdigotos, Hal colocou de lado a pena e secou com areia as letras bem formadas com orgulho. Sabia que sua mão era firme embora talvez não tão firme quanto a do pai, pensou, ao comparar a caligrafia.
Sir Francis tomou a pena que ele deixara de lado e, debruçando-se sobre o ombro do filho, escreveu:
Esta manhã, antes do meio-dia, o alferes Henry Courtney foi severamente ferido numa briga jamais vista.
Então, ao lado da citação, desenhou rapidamente uma caricatura notável de Hal com sua orelha inchada estendida para a frente e despencando para um lado, e o nó da linha que o prendia a contornar como um arco os cabelos de uma mulher.
Hal se engasgou com a própria gargalhada reprimida, porém, quando ergueu os olhos, viu o luzir nos olhos verdes do pai. Sir Francis pousou a mão sobre o ombro do rapaz o que era o mais próximo que ele poderia chegar de um abraço, e apertou-o, enquanto dizia:
Ned Tyler estará aguardando para instruí-lo no conhecimento do cordame e da guarnição do velame. Não o deixe à espera.
Embora fosse tarde quando Hal seguiu adiante pelo convés superior, ainda havia luz suficiente para que achasse o caminho com facilidade entre os corpos adormecidos dos oficiais fora de turno. O céu da noite estava cheio de estrelas, numa disposição tal que deveria extasiar os olhos de qualquer nortista. Naquela noite, Hal não tinha olhos para elas. Estava exausto a ponto de não se agüentar de pé. Aboli guardara um lugar para ele na proa, sob o abrigo do canhão dianteiro, onde ficavam fora do vento. Estendera o catre cheio de palha sobre o convés, e Hal tombou agradecido sobre ele. Não havia acomodações colocadas à disposição da tripulação, e os homens dormiam onde pudessem encontrar um espaço no tombadilho aberto. Naquelas noites cálidas do Sul, todos preferiam as partes superiores ao convés inferior abafado. Jaziam em filas, ombro a ombro, porém a proximidade de tanta humanidade fedorenta era natural para Hal, e até mesmo os roncos e resmungos não poderiam impedi-lo por muito tempo de dormir. Chegou-se um pouco mais perto de Aboli. Era como dormira a cada noite pelos últimos dés anos, e extraía conforto da imensa figura a seu lado.
Seu pai é um grande líder murmurou Aboli. É um guerreiro e conhece os segredos do mar e dos céus. As estrelas são suas filhas.
Sei que tudo isso é verdade respondeu Hal, na mesma língua tribal.
Foi ele que me ordenou que o enfrentasse com a espada hoje confessou Aboli.
Hal ergueu-se sobre um cotovelo e olhou para a escura figura a seu lado.
Meu pai queria que você me cortasse? perguntou, incrédulo.
Você não é como os outros rapazes. Se sua vida é dura agora, será ainda mais dura daqui para a frente. Você foi escolhido. Um dia terá em seus ombros o grande manto da cruz vermelha. Deve ser merecedor dele.
Hal afundou-se na enxerga e olhou para as estrelas.
E se eu não quiser essa coisa? perguntou.
É sua. Você não tem escolha. Aquele que é Cavaleiro Nautonnier escolhe o cavaleiro a segui-lo. Tem sido assim por quase quatrocentos anos. Sua única escapatória para isso é a morte.
Hal ficou calado por tanto tempo que Aboli pensou que o sono o dominara, mas então o rapaz murmurou:
Como sabe dessas coisas?
Por seu pai.
Você também é um cavaleiro de nossa ordem? Aboli riu baixinho.
Minha pele é muito escura e meus deuses são estranhos. Eu jamais poderia ser escolhido.
Aboli, estou com medo.
Todos os homens têm medo. Cabe a nós de sangue guerreiro subjugar o medo.
Você nunca me deixará, não é, Aboli?
Ficarei a seu lado enquanto precisar de mim.
Então, não terei tanto medo.
Horas mais tarde, Aboli acordou de um profundo sono sem sonhos com a mão de alguém em seu ombro.
Oito toques de sino do turno do meio, Gundwane. Usava o apelido de Hal; em seu próprio idioma significava Rato dos Arbustos. Não era pejorativo, apenas o nome afetuoso que ele pusera no menino de quatro anos de idade que fora colocado sob seus cuidados havia mais de uma década.
Quatro horas da manhã. Haveria luz em uma hora. Hal espreguiçou-se e, esfregando os olhos, cambaleou para a barrica malcheirosa e aliviou-se. Depois, completamente acordado, correu pelo convés que subia e descia num balanço, evitando as figuras adormecidas que o coalhavam.
O cozinheiro tinha o fogo na cozinha alinhada de tijolos e passou a Hal uma caneca de peltre com sopa e um biscoito duro. Hal estava esfomeado e engoliu o líquido embora lhe escaldasse a língua. Quando mordeu o biscoito, sentiu os gorgulhos estourarem entre os dentes.
Ao correr para o pé do mastro principal, viu o brilho do cachimbo de seu pai nas sombras da popa e sentiu o cheiro do tabaco no ar doce da noite. Hal não parou e subiu as enxárcias, notando a mudança de amura e a nova disposição das velas que tivera lugar enquanto ele dormia.
Quando chegou ao topo de mastro e liberou o vigia dali, acomodou-se no cesto de gávea e olhou para cima. Não havia lua e, a não ser pelas estrelas, tudo estava escuro. Ele conhecia cada estrela pelo nome, da poderosa Sirius à pequena Mintaka no cinturão reluzente de Orion. Eram as chaves de código do navegador, os sinaleiros do céu, e ele aprendera seus nomes com o alfabeto. Seu olhar continuou sem querer a buscar Regulo, no signo de Leão. Não era a estrela mais brilhante do zodíaco, porém era sua própria estrela particular, e Hal sentiu um tranqüilo prazer ao pensar que ela brilhava apenas para ele. Aquela era a hora mais feliz de seu longo dia, o único momento em que poderia ficar só na nau superlotada, a única hora em que poderia deixar a mente vagar entre as estrelas e a imaginação assumir as rédeas.
Seus próprios sentidos pareciam alterados. Mesmo acima do soluço do vento e do ranger dos cordames, ele podia ouvir a voz do pai e reconhecer seus tons, se não as palavras, enquanto conversava tranqüilamente com o timoneiro no tombadilho lá embaixo. Podia ver o nariz adunco do pai e o conjunto de suas sobrancelhas sob o brilho avermelhado do fornilho do cachimbo quando ele tragava a fumaça do tabaco. Parecia-lhe que seu pai nunca dormia.
Podia sentir o cheiro do iodo do mar, o aroma fresco de algas e de sal. Seu nariz era tão apurado, purgado por meses do suave ar marinho, que ele podia até mesmo farejar o ligeiro odor da terra, o cheiro quente e cozido da África como biscoito saído do forno.
Então, havia um outro cheiro, tão leve que ele pensou que suas narinas lhe pregavam uma peça. Um minuto mais tarde, sentiu-o de novo, apenas um traço adocicado de mel ao vento. Não o reconheceu e virou a cabeça para trás e para a frente, a farejar ansioso em busca de novo vislumbre do leve perfume.
De repente, eis que aparecia outra vez, tão fragrante e forte que ele estremeceu como um bêbado a cheirar um jarro de aguardente de vinho, e teve de se controlar para não gritar alto com a excitação. Com esforço, manteve a boca fechada e, com o aroma a lhe encher a cabeça, pulou do cesto de gávea e escorregou pelas enxárcias até o tombadilho abaixo. Correu de pés descalços tão silenciosamente, que o pai sobressaltou-se quando ele tocou-lhe o braço.
Por que deixou seu posto?
Eu não poderia berrar para o senhor do topo do mastro. Eles estão muito perto. Poderiam me ouvir também.
O que está tartamudeando, rapaz? Seu pai ficou zangado. Fale direito.
Papai, não sente o cheiro? Sacudiu o braço do pai com aflição.
O que é? Sir Francis tirou o cabo do cachimbo da boca. Que cheiro é esse que você sentiu?
Especiaria! exclamou Hal. O ar está cheio do perfume de especiaria.
Ned Tyler, Aboli e Hal movimentavam-se rapidamente pelo convés, a sacudir os vigias de folga para que acordassem, a avisálos para se manterem em silêncio enquanto os empurravam para seus postos de batalha. A emoção era contagiante. A espera terminara. Os holandeses estavam lá em algum lugar por perto, na direção do vento em meio à escuridão. Todos podiam sentir o cheiro de sua fabulosa carga agora.
Sir Francis apagou a vela na bitácula para que a nau não mostrasse nenhuma luz e em seguida passou as chaves dos baús de armas para seus intendentes. Eram mantidas trancadas até que a caça estivesse à vista, pois o pavor de motim estava sempre no canto da mente de todo capitão. Em outras ocasiões, apenas os oficiais inferiores carregavam alfanjes.
Com pressa, os baús foram abertos, e as armas passadas de mão em mão. Os alfanjes eram de bom aço Sheffield, com cabos simples de madeira e copos guarda-mão. As lanças tinham eixos de carvalho inglês de dois metros e pesadas cabeças hexagonais de ferro. Aqueles da tripulação a quem faltava habilidade com a espada escolheram ou aqueles robustos chuços ou os machados de abordagem que poderiam decepar a cabeça de um homem de seus ombros com um golpe.
Os mosquetes estavam armazenados no armazém de pólvora negra. Foram trazidos para cima, e Hal ajudou os atiradores a carregá-los com um punhado de bolotas de chumbo por cima de um punhado de pólvora. Eram armas imprecisas, desajeitadas, com uma amplitude efetiva de apenas vinte ou trinta metros. Depois que o gatilho era acionado e a espoleta aplicada mecanicamente, a arma disparava numa nuvem de fumaça;
depois, porém, tinha de ser recarregada. Essa operação demorava dois ou três minutos cruciais, durante os quais o mosqueteiro estava à mercê de seus inimigos.
Hal preferia o arco; o famoso arco longo inglês que dizimara os cavaleiros franceses em Agincourt. Ele poderia soltar uma dúzia de flechas no tempo que levava para recarregar um mosquete. O arco longo transpunha cinqüenta passos com a precisão necessária para atingir um oponente no centro do peito e a força para espetá-lo até o osso, mesmo que usasse uma couraça ao peito. Ele já tinha dois pacotes de flechas amarradas dos lados do cesto de gávea, prontas, à mão.
Sir Francis e alguns de seus oficiais menores colocaram suas meias armaduras, couraças leves de cavalaria e elmos de aço. O sal do mar as enferrujara, e elas estavam denteadas e amassadas de outras ações.
Em breve, o navio estava pronto para a batalha, e a tripulação armada e protegida. Contudo, as portinholas dos canhões estavam fechadas, e as semicolubrinas não estavam corridas para fora. A maioria dos homens foi mandada às pressas para baixo por Ned e outros intendentes, enquanto o restante recebia ordens para se deitar de barriga no convés, escondendo-se embaixo da proteção da amurada. Nenhum estopim foi aceso o brilho e a fumaça poderiam alertar a caça para o perigo. No entanto, braseiros ardiam ao pé de cada mastro, e os calços foram arrancados das portinholas dos canhões com marretas de madeira enroladas em panos para que o som dos baques não se alastrasse.
Aboli abriu caminho entre as figuras agitadas até onde Hal estava, ao pé do mastro. Em torno da cabeça calva, usava um pano escarlate cuja ponta pendia até suas costas, e enfiado na faixa em sua cintura estava um alfanje. Debaixo de um braço, um pacote enrolado de seda colorida.
De seu pai. Jogou o pacote nos braços de Hal. Seu pai diz que você tem de ficar no topo do mastro, não importa como se desenrole a luta. Ouviu bem?
Virou-se e correu de volta para a proa. Hal sorriu com ar rebelde às costas largas do negro, mas subiu obediente pelas enxárcias. Quando chegou ao topo do mastro, esquadrinhou a escuridão rapidamente, porém ainda não havia nada para ver. Mesmo o aroma de especiaria se evaporara. Sentiu uma pontada de preocupação de que pudesse ter imaginado aquilo.
A caça apenas afastou-se de nosso vento reafirmou a si mesmo. É provável que esteja ao nosso lado agora.
Amarrou o pendão que Aboli lhe dera à adriça de sinalização, pronto para soltá-lo a uma ordem de seu pai. Em seguida, removeu a cobertura da caçoleta da escorva do falconete. Verificou a tensão da corda antes de colocar o arco dentro do cesto, ao lado dos pacotes de flechas compridas. Agora não havia nada a fazer a não ser esperar. Abaixo dele o navio estava num silêncio incomum, nem mesmo um sino a marcar a passagem das horas, apenas o canto suave das velas e o acompanhamento mudo dos cordames.
O dia chegou sobre eles com a brusquidão que naqueles mares africanos ele viera a conhecer tão bem. Para fora da noite que morria, elevou-se uma alta torre brilhante, rútila e transluzente como um pico coberto de gelo um grande navio sob uma massa de velas lustrosas, os mastros tão altos que pareciam tocar as últimas estrelas pálidas do céu.
Vela à vista. Ele calibrou a voz para que esta chegasse até o convés abaixo, mas não até o navio estranho que jazia a uma légua de distância, pelas águas escuras. Bem no eixo de bombordo!
A voz do pai fluiu de volta para ele.
Topo do mastro! Desfralde as cores!
Hal puxou a adriça e o pacote de seda voou pelo topo do mastro. Então, enfunou-se, aberto, e a bandeira tricolor da República de Holanda tremulou para sudeste, em laranja, branco nevado e azul. Em questão de instantes, as outras flâmulas e longos pendões se enfunavam da cabeça da mezena e do mastro de proa, um brasonado com a cifra da VOC, die Verenigde Oostindische Compagnie, a Companhia Unida da índia Oriental. A insígnia régia era autêntica, capturada apenas quatro meses antes do Heerlycke Nacht. Mesmo o estandarte do Conselho dos Dezessete era genuíno. Dificilmente houvera tempo para o capitão do galeão saber da captura de sua nau irmã e portanto questionar as credenciais daquela estranha caravela.
Os dois navios estavam em cursos convergentes mesmo no escuro, Sir Francis avaliara bem sua interceptação. Não houve brado para alterar o curso e alarmar o capitão holandês. Em questão de minutos, porém, estava claro que o Lady Edwina, apesar do casco infestado de vermes, era mais rápido na água que o galeão. Logo iria ultrapassar o outro navio, o que era preciso evitar a qualquer custo.
Sir Francis observou o galeão pelas lentes de sua luneta e, de imediato, viu por que a nau era tão lenta e desgraciosa: seu mastro principal estava com cordame provisório e ela havia muitas outras evidências de danos a seus outros mastros e cordoalha. Percebeu que ela deveria ter sido colhida em alguma terrível tempestade nos oceanos do leste o que também deveria contar para o atraso na chegada à aproximação de terra, no cabo Agulhas. Sabia que não poderia mudar a disposição de velas sem alertar o capitão holandês, porém tinha que passar pela nau à popa. Estava preparado para isso: fez um sinal ao carpinteiro na amurada, que, com seu companheiro, ergueu uma âncora flutuante de lona pesada e deixou-a cair pela popa. Como um freio num garanhão forte, ela afundou na água e segurou com dureza o Lady Edwina. De novo Sir Francis avaliou as velocidades díspares das duas naus e meneou a cabeça com satisfação.
Então, correu o olhar pelo próprio tombadilho. A maioria dos homens estava escondida sob os conveses ou deitados sob as amuras de onde eram invisíveis mesmo para os vigias na gávea do galeão. Não havia armas à vista, todos os canhões ocultos por trás de suas portinholas. Quando Sir Francis capturara aquela caravela, ela era um mercante holandês que operava ao largo da costa da África Ocidental. Ao convertê-la numa nau pirata, ele fizera o possível para preservar seu ar inocente e as linhas prosaicas. Apenas uma dúzia ou pouco mais de homens estavam visíveis nos conveses e no cordame, o que seria normal para um navio mercante desatento.
Ao olhar de novo, as bandeiras da república e da companhia abriram-se nos topos do mastro da nau holandesa. Apenas um pouco tardiamente ela agradecia sua saudação.
Ela nos aceitou resmungou Ned, ao manter solidamente o Lady Edwina no curso. Gosta de nossa pele de cordeiro.
Talvez! retrucou Sir Francis. E, contudo, solta mais pano. Enquanto observavam, os sobrejoanetes e joanetes do galeão sopraram contra o céu matutino.
Olhe lá! exclamou, um momento depois. Está alterando o curso, afastando-se de nós. O holandês é um camarada cauteloso.
Pelos dentes de Satã! Sinta só o cheiro! murmurou Ned, quase para si mesmo, quando um traço do aroma de especiarias perfumou o ar. Doce como uma virgem e duas vezes mais bonito.
É o perfume mais rico que vocês alguma vez já tiveram em suas narinas falou Sir Francis em voz alta o suficiente para que os homens no tombadilho abaixo o escutassem. Ali jazem cinqüenta libras por cabeça de prêmio em dinheiro, se tiverem vontade de lutar por isso. Cinqüenta libras eram dés anos de salários de um trabalhador inglês, e os homens encheram-se de excitação e rosnaram como cães de caça sob controle.
Sir Francis rumou para a amurada de popa e ergueu o queixo para chamar pelos homens nos cordames:
Façam crer que aqueles cabeças de queijo lá são seus irmãos. Dêem-lhes um viva e calorosas boas-vindas.
Os homens ao alto urraram de alegria e acenaram com seus gorros para o grande navio, enquanto o Lady Edwina se aproximava por baixo da popa do galeão.
Katinka van de Velde sentou-se e olhou de cenho fechado para Zelda, sua velha babá. Por que me acordou tão cedo? perguntou, petulante, e jogou as mechas de cachos dourados para trás da face. Mesmo saída do sono, era rosada e angelical. Seus olhos tinham uma surpreendente cor violeta, como as asas lustrosas de um beija-flor tropical.
Há um outro navio perto de nós. Outro navio da companhia. O primeiro que vemos em todas aquelas terríveis semanas tormentosas. Eu começava a pensar que não havia outra alma cristã no mundo reclamou Zelda, chorosa. Você está sempre se queixando de tédio. Isso pode diverti-la por algum tempo.
Zelda era pálida e abatida. Suas faces, um dia gordas, suaves e luzidias de uma boa vida, estavam encovadas. Sua enorme barriga se fora e pendia em dobras de pele solta quase até seus joelhos. Katinka podia vê-la através do tecido fino da camisola.
Ela perdera toda a gordura e metade da carne, pensou Katinka com uma ferroada de desgosto. Zelda ficara prostrada pelos ciclones que assaltaram o Standvastigheid e o massacraram sem misericórdia desde que tinham deixado a costa de Trincomalee, no Ceilão.
Katinka jogou os lençóis de cetim e balançou as pernas na borda da cama dourada. Sua cabine fora especialmente mobiliada e decorada para acomodá-la, a uma filha de um dos onipotentes Zeventien, os dezessete diretores da companhia. A decoração era toda em dourado e veludo, almofadas de seda e vasos de prata. Um retrato de Katinka pelo artista da moda em Amsterdã, Pieter de Hoogh, pendia do anteparo do lado oposto à cama, um presente de casamento de seu pai amoroso. O artista captara seu lascivo virar de cabeça. Devia ter esgotado a paleta para reproduzir tão fielmente a cor maravilhosa de seus olhos e sua expressão, que era ao mesmo tempo inocente e devassa.
Não acorde meu marido avisou ela à velha, enquanto jogava um manto de brocado dourado sobre os ombros e amarrava o cinto de pedrarias na cintura de ampulheta. As pálpebras de Zelda caíram, numa concordância conspiratória. Por insistência de Katinka, o governador dormia na cabine menor e menos suntuosa além da porta, que ficava trancada do lado dela. Sua desculpa era que ele roncava de forma abominável, e que ela estava indisposta pelo mal-de-mer (enjôo). Na verdade encarcerada em seus aposentos durante todas aquelas semanas, Katinka estava inquieta e aborrecida, a explodir de energia jovem e inflamada de desejos que o velho gordo não poderia jamais saciar.
Tomou a mão de Zelda e pisou no estreito corredor de popa. Era um balcão particular, ornado de querubins e anjos entalhados, a olhar por sobre a esteira do navio e escondido dos olhos vulgares da tripulação.
Estava uma manhã inebriante com a magia da luz do sol, e conforme encheu os pulmões com o travo salgado do mar, ela sentiu cada músculo e nervo de seu corpo estremecer com o ímpeto da vida. O vento arrancava penas cremosas dos topos das longas ondas azuis e brincava com seus cachos dourados. Fazia farfalhar as sedas de seus seios e ventre com a carícia dos dedos de um amante. Ela se espreguiçou e arqueou as costas sensualmente, como um saudável gato dourado.
Então, viu o outro navio. Era muito menor que o galeão, porém de linhas agradáveis. As belas bandeiras e pendões que esvoaçavam nos mastros contrastavam com o conjunto de suas velas brancas. Estava perto o bastante para que ela divisasse a figura dos poucos homens que manobravam os cordames. Eles estavam acenando em saudação, e ela podia ver que alguns eram jovens e vestidos apenas com tangas curtas.
Debruçou-se na amurada e apurou os olhos. Seu marido ordenara que a tripulação do galeão observasse um código estrito de vestimenta enquanto ela estivesse a bordo, e assim, as figuras naquele navio estranho a fascinavam. Cruzou os braços sobre o peito e apertou os seios juntos, sentindo os mamilos duros e intumescidos. Queria um homem. Requeimava por um homem, qualquer homem, desde que fosse jovem e duro e entusiasmado por ela. Um homem como aquele que conhecera em Amsterdã antes que seu pai descobrisse seu gosto por jogo pesado e a tivesse mandado para as índias, para a segurança de um velho marido que tinha uma alta posição dentro da companhia e perspectivas ainda mais altas. A escolha recaíra sobre Petrus Jacobus van de Velde, que agora casado com Katinka, tinha assegurado a próxima vaga no conselho da companhia, onde se juntaria ao panteão dos Zeventien.
Venha para dentro, Lieveling. Zelda puxou-a pela manga. Aqueles rufiões lá estão olhando para você.
Katinka sacudiu o ombro para se livrar da mão de Zelda, mas era verdade. Eles a reconheciam como a uma fêmea. Mesmo àquela distância, a excitação de todos era quase palpável. Suas momices haviam se tornado frenéticas, e uma figura maltrapilha na proa enchera as mãos na própria virilha e jogava os quadris na direção dela num gesto rítmico e obsceno.
Revoltam,! Venha para dentro! insistiu Zelda. O governador ficará furioso se vir o que aquele animal está fazendo.
Ele deveria ficar furioso por não poder se sair com tanta habilidade retrucou Katinka, com ar angelical. Comprimiu as coxas com força para melhor saborear a súbita quentura úmida em sua junção. A caravela estava muito mais próxima agora, e ela podia ver que aquilo que o marujo lhe oferecia era volumoso o bastante para lhe ultrapassar as mãos em concha. A ponta de sua língua rosada correu pelos lábios polpudos.
Por favor, senhora.
Num instante objetou Katinka, com relutância. Você tinha razão, Zelda. Isso realmente me diverte. Ergueu a mão branca e acenou para o outro navio. No mesmo instante, os homens redobraram seus esforços para lhe chamar a atenção.
Isso é por demais indigno resmungou Zelda.
Mas é divertido. Nunca mais veremos aquelas criaturas de novo, e ser sempre digno é tão aborrecido. Inclinou-se a alguma distância do parapeito e deixou que a frente da camisola se abrisse.
Naquele momento, ouviu-se uma pancada pesada na porta da cabine de seu marido. Sem mais aviso, Katinka fugiu do balcão, correu para a cama e jogou-se sobre ela. Puxou os lençóis de cetim até o queixo, antes de fazer um gesto a Zelda, que ergueu a tramela da porta e se abaixou numa reverência desengonçada enquanto o governador irrompia quarto adentro. Ele ignorou-a e, amarrando o roupão em torno da barriga protuberante, rumou para a cama onde estava Katinka. Sem a peruca, a cabeça estava coberta por esparsos fios grisalhos.
Minha cara, está bem o bastante para se levantar? O capitão enviou um recado. Quer que nos vistamos e nos aprontemos. Há um estranho navio ao largo e tem um comportamento suspeito.
Katinka disfarçou um sorriso ao pensar no comportamento suspeito do marujo desconhecido. Em vez disso, fez uma expressão de coragem, porém de dar pena.
Minha cabeça está estourando, e meu estômago...
- Minha pobre querida. Petrus van de Velde, governador eleito do cabo da Boa Esperança, inclinou-se sobre ela. Mesmo naquela manhã fria suas bochechas estavam lustrosas de suor e ele recendia ao jantar da noite passada, peixe ao curry javanês, alho e rum azedo.
Desta vez, seu estômago realmente revoltou-se, mas Katinka ofereceu-lhe a face com obediência.
Eu posso ter forças para me levantar murmurou, se o capitão ordena.
Zelda correu para o lado da cama e ajudou-a a se sentar e depois a se erguer nos pés. Com um braço em torno de sua cintura, conduziu-a até um pequeno biombo chinês no canto da cabine. Sentado no banco do lado oposto, seu marido via apenas vagos relances de pele branca por detrás dos painéis pintados de seda, e mesmo assim virava a cabeça para enxergar mais.
Quanto tempo mais essa terrível viagem vai durar? reclamou Katinka.
O capitão me assegurou que, com esses ventos a se manterem firmes, deverá lançar âncora na baía da Mesa dentro de dés dias.
Que o Senhor me dê forças para sobreviver por esse tempo.
Ele nos convidou para jantar hoje com ele e seus oficiais retrucou o governador. É uma pena, mas mandarei um recado dizendo que você está indisposta.
A cabeça e os ombros de Katinka assomaram por sobre o biombo.
Não fará uma coisa dessas! esbravejou ela. Seus seios, redondos, brancos e macios, tremeram de agitação.
Um dos oficiais a interessava mais do que apenas um pouco. Era o coronel Cornelius Schreuder, que, como seu próprio marido, estava en route para assumir uma designação no cabo da Boa Esperança. Fora apontado como comandante militar da povoação da qual Petrus van de Velde seria governador. Usava bigodes de ponta e uma barba na moda, no estilo van Dick, e se desdobrava em reverências graciosas a Katinka a cada vez que ela subia ao convés. Tinha pernas bem torneadas e os olhos escuros, brilhantes como de uma águia e que provocavam arrepios pela pele de Katinka quando a fitavam. Ela lera neles mais do que um justo respeito por sua posição, e ele correspondera de forma gratificante ao olhar de soslaio que ela lhe enviara com apreciação por sob os longos cílios.
Quando chegassem ao cabo, ele seria subordinado de seu marido. Sob as ordens dela também e ela tinha certeza de que poderia aliviar a monotonia do exílio na povoação abandonada no fim do mundo que seria seu lar pelos próximos três anos.
Quero dizer ela mudou de tom rapidamente, seria indelicado de nossa parte declinar da hospitalidade do capitão, não seria?
Mas sua saúde é mais importante protestou ele.
Encontrarei forças resmungou Katinka, enquanto Zelda lhe enfiava as anáguas pela cabeça, uma após a outra, cinco ao todo, cada uma enfeitada de fitas.
Katinka saiu de trás do biombo e ergueu os braços. Zelda baixou o vestido de seda azul por sobre eles e puxou-o pelas anáguas. Depois se ajoelhou e cuidadosamente subiu as saias de um lado, para revelar as anáguas abaixo e os tornozelos esguios em meias brancas de seda. Era a última moda. O governador a fitou, em transe. Ah, se pelo menos uma das partes daquele corpo fosse tão grande e agitada como as órbitas, pensou Katinka, com zombaria, ao se voltar para o longo espelho e fazer uma pirueta diante dele.
Então, soltou um grito selvagem e fechou as mãos sobre o peito, quando, do convés logo acima deles, ouviu-se um súbito e ensurdecedor estouro de artilharia. O governador gritou tão alto e num tom ainda mais agudo e jogou-se do banco sobre os tapetes orientais que cobriam o convés.
De Standvastigheid Através das lentes da luneta, Sir Francis Courtney leu o nome do galeão na grande trave dourada. A Resolução. Baixou o instrumento e resmungou: Um nome que logo poremos em teste!
Enquanto falava, uma longa pluma brilhante de fumaça brotou do tombadilho superior do navio, e, poucos segundos depois, o estrondo do canhão foi carregado pelo vento. A meia amarra à frente da proa do Lady Edwina, a pesada bala afundou no mar, fazendo nascer uma alta fonte de espuma branca. Podiam ouvir o rufar urgentes dos tambores no outro navio, e as portinholas nos tombadilhos inferiores caíram abertas. Longos canos apontaram para fora.
Estou admirado que ele tenha se demorado tanto para nos dar um tiro de alerta resmungou Sir Francis. Fechou a luneta e ergueu os olhos para as velas. Assuma o leme, mestre Ned, e leve-nos para debaixo daquela popa. A exibição de falsas cores tinha lhes dado tempo suficiente para desviá-los da ameaça da esmagadora amurada do galeão.
Sir Francis voltou-se para o carpinteiro, que permanecia pronto murada de popa com o machado de abordagem nas mãos.
Corte a corda! ordenou.
O homem ergueu o machado acima da cabeça e girou-o para baixo. Com um baque, a lâmina enterrou-se na tábua da amurada de popa, a linha da âncora partida com um estalo sibilante, e, livre de seus freios, o Lady Edwina saltou para a frente e então adernou quando Ned girou o leme.
O criado de Sir Francis, Oliver, veio correndo com o manto de quartos vermelhos e o chapéu emplumado de cavalier. Sir Francis colocou-os rapidamente e berrou para o topo do mastro:
Desça as cores da república e vamos ver as da Inglaterra!
A tripulação irrompeu em gritos selvagens quando a bandeira da União tremulou e alçou-se ao vento. Os homens vinham fervilhando dos tombadilhos abaixo, como formigas de um ninho estourado, e se alinharam nas amuradas a rugir em desafio para a enorme nau que se aproximava gigantesca sobre eles. Os conveses e os cordames do mercante holandês pululavam de atividade frenética.
Os canhões nas portinholas do galeão estavam sendo virados, porém poucos poderiam cobrir a caravela que voava ao vento, emoldurada pelo próprio alto painel de popa do holandês.
Um costado roto estourou pelo vão estreito, mas a maioria dos tiros caiu longe, a bem mais de noventa metros, ou passou assobiando sem perigo por sobre as cabeças. Hal encolheu-se quando o sopro de um tiro arrancou-lhe o gorro da cabeça e lançou-o a voar pelo vento. Um orifício redondo aparecera miraculosamente no navio, seis metros acima dele. Ele afastou os longos cabelos da face e olhou para a imponente nau.
A pequena companhia de oficiais holandeses no convés superior estava em confusão. Alguns se mostravam em mangas de camisa e enfiavam o camisolão para dentro das calças conforme subiam a escada.
Um oficial lhe chamou a atenção no ajuntamento: um homem alto, com um elmo de aço, a barba em estilo van Dick, reunia uma companhia de mosqueteiros no convés de popa. Usava o galão bordado a ouro de um coronel no ombro, e, pela maneira com que dava ordens e a vivacidade com que seus homens respondiam, parecia um camarada a observar, alguém que poderia se comprovar um perigoso inimigo.
Agora, sob seu comando, os homens corriam para a ré do navio, cada um carregando um morteiro, uma das pequenas armas especialmente usadas para repelir abordagens. Havia chanfros na amurada de popa do galeão nos quais os pinos de ferro do morteiro seriam encaixados, permitindo que a pequena arma mortal ficasse na transversal e mirada para os tombadilhos de um navio inimigo ao se aproximar de lado. Quando tinham abordado o Heerlycke Nacht, Hal vira a destruição que o morteiro poderia causar numa faixa próxima. Era mais ameaçador que o resto da bateria do galeão.
Ele girou o falconete no eixo e soprou a mecha que tinha na mão. Para alcançar a popa, a fila de mosqueteiros holandeses precisava subir a escada do tombadilho superior para a popa. Hal mirou na ponta da escada conforme o vão entre os dois navios se fechava com rapidez. O coronel holandês foi o primeiro a subir a escada, espada na mão, seu elmo dourado a reluzir bravamente à luz do sol. Hal deixou-o atravessar o convés numa corrida e esperou que seus homens o seguissem para cima.
O primeiro mosqueteiro tropeçou na ponta da escada e esparramou-se no convés, derrubando o morteiro ao cair. Aqueles que o seguiam se amontoaram atrás dele, sem condições de passar pelo instante que demorou até que ele se recuperasse e ficasse de pé. Hal fitou o pequeno grupo de homens por sobre o cano do falconete. Comprimiu a ponta acesa da mecha na caçoleta da escorva e manteve a mira deliberadamente enquanto a pólvora faiscava. O falconete saltou e berrou e, quando a fumaça se desvaneceu, Hal viu que cinco dos mosqueteiros estavam no chão, dois rasgados em trapos pelo estouro, os outros a gritar e a encher de sangue o tombadilho branco.
Hal ficou sem fôlego de choque ao olhar para a carnificina. Jamais matara um homem antes, e seu estômago revirou-se numa náusea repentina. Aquilo não era o mesmo que destroçar uma barrica d'água. Por um instante, pensou que fosse vomitar.
O coronel holandês na amurada de popa ergueu os olhos para ele. Levantou a espada e apontou-a para a face de Hal. Gritou algo, mas o vento e o continuado espocar de artilharia abafaram suas palavras. Hal, porém, sabia que fizera um inimigo mortal.
Aquela constatação lhe foi útil. Não havia tempo para recarregar o falconete, ele fizera seu serviço. Sabia que aquele único tiro salvara as vidas de muitos de seus próprios homens. Ele surpreendera os mosqueteiros holandeses antes que estes pudessem assentar seus morteiros para varrer como uma sega os que fossem abordá-los. Sabia que deveria estar orgulhoso, mas não estava. Estava com medo do coronel holandês.
Pegou o arco. Tinha de ficar de pé para puxá-lo. Apontou a primeira flecha para o coronel. Retesou a corda ao máximo, mas o holandês não mais o encarava: comandava os sobreviventes de sua companhia para que ocupassem seus postos na amurada de ré do galeão. Suas costas estavam voltadas para Hal.
Hal esperou uma fração de segundo, atento ao vento e ao movimento do navio. Soltou a flecha e viu-a voar, fazendo um movimento descendente quando o vento a pegou. Por um momento, pensou que poderia atingir sua marca nas costas largas do coronel, porém o vento o frustrou. A flecha perdeu a mira por um palmo e enterrou-se com um baque nas tábuas do convés, onde ficou a tremer. O holandês ergueu de novo os olhos para ele, o escárnio a lhe torcer o bigode de lado. Não tentou buscar cobertura, porém voltou-se para seus homens.
Hal pegou outra flecha com gestos frenéticos, porém naquele instante os dois navios se chocaram e ele quase foi catapultado pela beira do cesto de gávea.
Elevou-se um tumulto de estouros e rangidos, tábuas a estourarem, e as janelas das galerias de popa do galeão despedaçaram-se com a colisão. Hal olhou para baixo e viu Aboli na proa, um colosso negro, enquanto girava um arpéu em torno da cabeça em longas revoluções ondulantes, que o lançou para a frente, a linha a sibilar atrás.
O gancho de ferro deslizou pelo convés de popa, mas quando Aboli puxou-o para trás, ele se alojou com firmeza na amurada do galeão. Um dos tripulantes holandeses correu e ergueu um machado para cortá-lo fora. Hal colocou outra flecha no arco e soltou-a. Desta vez, sua avaliação do vento foi perfeita, e a cabeça da flecha se enterrou na garganta do homem, que deixou cair o machado e agarrou-se ao cabo da seta enquanto cambaleava para trás e caía.
Aboli pegara outro arpéu e o lançara contra a popa do galeão. Seguiram-se vários outros, pelas mãos dos demais intendentes. Em instantes as duas naus estavam ligadas uma à outra por uma teia de cordas de cânhamo, numerosas demais para os defensores do galeão romperem, embora corressem pela apostura com machadinhas e alfanjes.
O Lady Edwina não disparara suas colubrinas. Sir Francis mantivera seu costado para o momento em que seria mais necessário. O tiro poderia fazer pouco estrago às pranchas maciças do galeão, e estava longe de seus planos danificar mortalmente seu prêmio. Agora, porém, com os dois navios juntos, o momento chegara.
Atiradores! Sir Francis brandiu a espada por sobre a cabeça para lhes atrair a atenção. Estavam de pé sobre as peças, mecha na mão, a observá-lo. Agora! rugiu ele, e baixou a espada num gesto forte.
A linha de colubrinas estrondeou num único coro infernal. Seus canos estavam comprimidos com força contra a popa do galeão, e a madeira entalhada pintada de ouro desintegrou-se numa nuvem de fumaça, enquanto voavam pelos ares lascas brancas e cacos de vidro estanhado das janelas.
Era o sinal. Nenhuma ordem poderia ser ouvida naquele tumulto, nem gesto visto na névoa densa que envolveu as duas naus, porém um selvagem grito de guerra elevou-se da fumaça, e a tripulação do Lady Edwina saltou para o galeão.
Fizeram a abordagem em bando através da galeria de popa, como doninhas num cercado de coelhos, a subir com a agilidade de macacos, e caíram como enxame sobre a apostura, ocultos dos atiradores holandeses pela nuvem revoluta de fumaça. Outros correram ao longo do Lady Edwina e pularam para os conveses do galeão.
Franky e São Jorge! Aqueles gritos de guerra chegavam até Hal no topo do mastro. Ele viu apenas três ou quatro tiros dos morteiros à popa antes que os próprios mosqueteiros holandeses fossem atacados e dominados. Os homens que se seguiram escalaram sem resistência a popa do galeão. Hal viu o pai cruzar para o outro lado com a rapidez e agilidade de um homem muito mais jovem.
Aboli debruçou-se para guindá-lo por sobre a amurada do galeão, e os dois caíram lado a lado, o alto negro com o turbante escarlate e o cavalier com seu chapéu de plumas, o manto a se enfunar em torno do aço maltratado de seu alfanje.
Franky e São Jorge! urraram os homens, quando viram seu capitão no grosso da luta e o seguiram, varrendo o convés de popa com o aço cortante e cantante.
O coronel holandês tentou reunir os poucos homens que restavam, porém eles batiam em retirada sem remorso e desciam as escadas aos tropeços, para o tombadilho. Aboli e Sir Francis foram atrás deles, com a turba a clamar por trás como um bando de cães com o cheiro da raposa nas narinas.
Ali se defrontaram com oposição mais firme. O capitão do galeão ordenara a formação dos atiradores no convés abaixo do mastro principal, e agora seus mosqueteiros disparavam de perto e descarregavam as armas nos homens do Lady Edwina que os enfrentavam com aço Os tombadilhos eram uma confusão com a massa que se debatia em luta.
Embora Hal tivesse recarregado o falconete, não havia alvo para ele Amigos e inimigos estavam tão engalfinhados, que ele apenas podia observar inutilmente a luta a avançar e recuar pelo convés aberto abaixo de si.
Em questão de minutos, tornou-se evidente que a tripulação do Lady Edwina era superada em número. Não havia reservas Sir Francis não deixara ninguém além de Hal a bordo da caravela. Comprometera até o último homem, jogando tudo na surpresa e naquela primeira investida selvagem. Vinte e quatro deles estavam a léguas na água, manejando as duas pinaças, e não poderiam tomar parte na refrega. Eram tremendamente necessários agora, porém, quando Hal olhou para as pequenas naus de escolta, viu que estavam ainda a milhas de distância. Ambas tinham suas velas de carangueja içadas, mas faziam apenas um progresso ínfimo contra o sudoeste e as enormes vagas sinuosas. A luta seria decidida antes que pudessem alcançar os dois navios em batalha e interviessem.
Hal olhou de novo para o convés do galeão e, para sua consternação, percebeu que a luta se voltara contra o grupo de abordagem. Seu pai e Aboli estavam sendo empurrados em direção à popa. O coronel holandês vinha à frente do contra-ataque, a bufar como um touro ferido e inspirando seus homens pelo exemplo.
Das fileiras de trás, separou-se um pequeno contingente do Lady Edwina, que havia mostrado relutância e agora fugia da luta. Eram liderados por um homem manhoso, Sam Bowles, um antigo advogado cujo maior talento estava em sua língua ágil, na habilidade em discutir a divisão dos espólios e em semear a dissensão e o descontentamento entre seus camaradas.
Sam Bowles disparou pela popa do galeão e saltou sobre a amurada do tombadilho do Lady Edwina, seguido por quatro outros.
Os navios engatados tinham girado pesadamente diante do vento, de maneira que agora o Lady Edwina esticava-se na teia de cordas que os mantinha juntos. Em pânico e terror, os cinco desertores caíram com machado e cutelo contra as linhas. Cada uma partiu-se com um estalo que subiu claramente até Hal, no topo do mastro.
Alto com isso! gritou ele para baixo, porém nenhum homem ergueu a cabeça do trabalho traiçoeiro.
Papai! esgoelou Hal em direção ao convés do outro navio. O senhor se verá abandonado! Volte! Volte!
Sua voz não pôde superar o vento ou o barulho da batalha. Sir Francis lutava com três marujos holandeses, toda a atenção concentrada neles. Hal o viu levar uma estocada e em seguida sua resposta com um reluzir de aço. Um dos oponentes cambaleou para trás, a agarrar o braço, a manga de súbito ensopada de vermelho.
Naquele momento, a última corda de ligação partiu-se com um estalo, e o Lady Edwina estava livre. Sua proa rapidamente girou em redor, as velas enfunadas, e a caravela se afastou, deixando o galeão a chafurdar, as velas batidas todas para trás, tomando, desajeitado, o rumo de popa.
Hal lançou-se para baixo das enxárcias, as palmas escaldadas pela velocidade da corda a assobiar entre elas. Chocou-se contra o convés com tanta força que seus dentes estalaram nas mandíbulas e ele rolou pelas pranchas. Num instante estava de pé e a olhar desesperadamente em volta. O galeão já estava a uma amarra de distância, os sons da luta a esmorecerem ao vento. Então olhou para a própria popa e viu que Sam Bowles vinha pelo tombadilho superior, apressado, para tomar o leme.
Um marujo caído jazia no embornal, abatido por um morteiro holandês. Seu mosquete estava ao seu lado, ainda não disparado, a mecha a faiscar e fumegar no gatilho. Hal pegou-o e correu pelo convés para interceptar Sam Bowles.
Chegou à cana do leme uns doze passos adiante do outro homem e rodeou-o, investindo com a boca do mosquete em sua barriga.
Para trás, seu porco covarde! Ou explodirei suas entranhas de traidor pelo tombadilho.
Sam encolheu-se, e os outros quatro marujos recuaram atrás dele, olhando para Hal com as feições ainda pálidas e apavoradas da luta.
Vocês não podem deixar nossos companheiros. Vamos voltar! gritou Hal, seus olhos a luzirem verdes com raiva selvagem e de medo por seu pai e Aboli. Ameaçou-os com o mosquete, a fumaça da mecha a circular em torno de sua cabeça. Seu indicador estava travado em torno do gatilho. Ao olhar para aqueles olhos, os desertores não puderam duvidar da decisão que havia neles e recuaram pelo convés.
Hal pegou a cana de leme e a segurou. A nau tremeu sob seus pés quando ficou sob comando. Ele olhou outra vez para o galeão, e seu ânimo fraquejou. Sabia que não poderia conduzir o Lady Edwina contra o vento com aquele conjunto de velas: estavam se afastando de onde eu pai e Aboli lutavam pelas próprias vidas. No mesmo instante, Bowles sua turma se deram conta da situação.
Ninguém quer voltar, e não há o que você possa fazer a respeito, jovem Henry casquinou Sam, triunfante. Terá de pôr a nau num outro rumo para voltar para seu papaizinho, e nenhum de nós irá manejar os panos por você. Não é, camaradas? Nós o temos numa armadilha! Hal olhou ao redor, desesperançado. Então, de repente, cerrou o queixo, resoluto. Sam viu-lhe a mudança nas feições e voltou-se para lhe seguir o olhar. Sua própria expressão cobriu-se de consternação ao ver a pinaça apenas a meia légua adiante, lotada de marinheiros armados.
A ele, camaradas! exortou os companheiros. Ele tem apenas um tiro no mosquete, e depois será nosso!
Um tiro e minha espada! rosnou Hal, e bateu no cabo do alfanje no quadril. Pelos dentes de Deus, mas levarei metade de vocês comigo, e em glória.
Todos juntos! esgoelou Sam. Ele não há de tirar a lâmina da bainha.
Sim! Sim! gritou Hal. Venham! Por favor, imploro por uma chance de dar uma olhada em suas entranhas de covardes.
Todos eles tinham visto aquele jovem gato selvagem em ação, presenciado sua luta com Aboli, e nenhum queria estar à frente da descarga. Resmungaram e se arrastaram para trás, dedos nos cutelos, e desviaram os olhos.
Venha, Sam Bowles! desafiou Hal. Você foi rápido em sair do convés do holandês. Deixe-me ver o quanto é rápido para chegar em mim agora.
Sam se empertigou e então, com um sorriso proposital, avançou um passo, mas quando Hal colocou o cano do mosquete um palmo adiante, apontado para sua barriga, recuou depressa e empurrou um de sua turma para frente.
Pegue-o, rapaz! incitou Sam.
Hal mudou a mira para a face do segundo homem, porém este escapou das garras de Sam e escondeu-se por trás do vizinho.
A pinaça estava perto à frente, agora podiam ouvir os gritos ansiosos dos marujos nela. A expressão de Sam era de desespero. Como um coelho assustado, ele correu escada abaixo até o tombadilho inferior e, num instante, os outros o seguiram, mobilizados pelo pânico.
Hal deixou cair o mosquete no convés e colocou ambas as mãos na cana do leme. Olhou adiante, por sobre a proa que arfava, avaliando o momento com cuidado; então, lançou seu peso contra a alavanca e girou a cabeça do navio para o vento.
A nau ficou ali, ondulando. A pinaça estava próxima, e Hal pôde ver Daniel Grande Pescador na proa, um dos melhores patrões de embarcação do Lady Edwina. Daniel Grande aproveitou a oportunidade e manejou o pequeno barco para a lateral do costado. Seus marujos agarraram as cordas pendentes que Sam e sua turma tinham cortado e subiram para o tombadilho da caravela.
Daniel! gritou Hal para ele. Vou fazer o giro do navio. Fique pronto para assestar as vergas! Vamos voltar para a luta!
Daniel Grande endereçou-lhe um sorriso, seus dentes projetados e quebrados como de um tubarão, e liderou seus homens até os estais das vergas. Doze homens, descansados e ansiosos, exultou Hal, ao se preparar para a perigosa manobra de trazer o vento pela popa do navio em vez de pela proa. Se fizesse uma má avaliação, iria desmantelar os mastros, mas se fosse bem-sucedido em fazer a nau girar, popa primeiro ao vento, ganharia minutos cruciais para voltar ao galeão em batalha.
Hal colocou a cana de leme com força a sotavento, mas enquanto a nau lutava furiosamente para sentir o vento vir pela popa e ameaçava cambar, Daniel arriou os estais de verga para forçar a tensão. As velas se encheram com estrondo, e, de súbito, a caravela virava de bordo, a barlavento, rumando de volta para se juntar à luta.
Daniel deu um berro e arrancou o gorro da cabeça, e todos deram vivas, pois fora uma ação corajosa e bem-feita. Hal mal olhou para os outros, concentrado em manter o Lady Edwina no rumo, na esteira do holandês à deriva. A luta ainda devia estar correndo solta a bordo, pois ele podia ouvir gritos débeis o ocasional espocar de um mosquete. Então, houve um lampejo de branco, a sotavento, e ele avistou a vela de carangueja da segunda pinaça à frente, a tripulação a acenar para lhe atrair a atenção. Outros doze combatentes para se juntarem à peleja, pensou. Valeria a pena o tempo de pegá-los? Outros doze alfanjes cortantes? Deixou o Lady Edwina cair um ponto para que rumasse direto até a pequena embarcação.
Daniel tinha uma linha pronta para lançar, e, em questão de segundos, a segunda pinaça regurgitava seus homens e era rebocada atrás do Lady Edwina.
Daniel! chamou-o Hal. Mantenha aqueles homens calados! Não faz sentido avisar os cabeças-de-queijo que estamos chegando.
Certo, mestre Hal. Vamos lhes fazer uma pequena surpresa.
Correr as escotilhas nos conveses inferiores! Temos uma carga de covardes e traidores escondidos em nossos porões. Mantenham-nos trancados lá, até que Sir Francis possa lidar com eles.
Silenciosamente, o Lady Edwina esgueirou-se por debaixo da parte central do costado do galeão. Talvez os holandeses estivessem muito ocupados para vê-la se aproximar sob vela curta, pois nenhuma única cabeça espiou pela amurada acima à medida que os dois cascos se juntavam num impacto surdo. Daniel e sua tripulação lançaram os arpéus por sobre a amurada do galeão e de imediato subiram pelas cordas, mão após mão.
Hal levou apenas um instante para trancafiar a cana de leme e em seguida correu pelo convés e tomou uma das linhas esticadas. Perto dos calcanhares de Daniel Grande, subiu rapidamente e fez uma pausa ao chegar à amurada do galeão. Com uma das mãos na corda e ambos os pés firmemente plantados nas tábuas do galeão, sacou o alfanje e prendeu a lâmina entre os dentes. Então, balançou-se para cima e, apenas um segundo atrás de Daniel, saltou sobre a amurada.
Descobriu-se na fileira de frente do grupo de abordagem. Com Daniel ao lado e a espada no punho direito, Hal levou um momento para olhar pelo convés. A luta estava quase terminada. Tinham chegado com apenas segundos de sobra, pois os homens de seu pai estavam amontoados em pequenos grupos pelo tombadilho, rodeados pela tripulação holandesa e lutando por suas vidas. Metade deles estava caída, uns poucos evidentemente mortos. Uma cabeça, decepada do torso, espiou para Hal do embornal, onde rolava para a frente e para trás, numa poça do próprio sangue. Com um arrepio de horror, Hal reconheceu o cozinheiro do Lady Edwina.
Outros estavam feridos e se retorciam, rolavam e grunhiam no convés. As pranchas estavam lisas e escorregadias de sangue. Outros ainda se sentavam exaustos, desarmados e já sem alento, as armas jogadas ao lado, as mãos sobre as cabeças, a berrar para o inimigo.
Uns poucos ainda lutavam. Sir Francis e Aboli estavam à parte, debaixo do mastro principal, rodeados pelos holandeses, que uivavam, a dar golpes cortantes e a investir. A não ser por uma cutilada no braço esquerdo, seu pai parecia incólume talvez o alfanje de aço o tivesse salvado de um ferimento sério e lutava com todo o ímpeto usual. Ao lado, Aboli era enorme e indestrutível, e soltara um brado de guerra em sua própria língua ao ver a cabeça de Hal apontar sobre a amurada.
Sem um pensamento além de ir prestar ajuda, Hal avançou.
Por Franky e São Jorge! berrou a todo pulmão, e Daniel Grande assumiu o brado, correndo à sua esquerda. Os homens das pinaças foram atrás, guinchando como uma horda de loucos fugidos de um sanatório.
A tripulação holandesa estava ela mesma quase exaurida; uma vintena no chão e, dentre aqueles que ainda lutavam, muitos estavam feridos. Olharam por sobre os ombros quando aquela tardia falange de ingleses sedentos de sangue corria para enfrentá-los. A surpresa foi completa. Choque e desespero revelaram-se na face de cada homem cansado e lavado de suor. Muitos jogaram suas armas e, como qualquer tripulação derrotada, apressaram-se a se esconder nos tombadilhos abaixo.
Umas poucas almas mais corajosas viraram-se para enfrentar a carga, aqueles em torno do mastro liderados pelo coronel holandês. Porém, os gritos do grupo de abordagem de Hal deram ânimo aos exaustos e ensangüentados companheiros de navio, que avançaram com renovada disposição para se juntarem ao ataque. Os holandeses foram cercados.
Mesmo na confusão e no tumulto, o coronel Schreuder reconheceu Hal e virou-se para confrontá-lo, mirando um golpe oblíquo para a sua cabeça. Seus bigodes eriçaram-se como os pêlos das narinas de um leão, e sua lâmina sibilava. Estava miraculosamente incólume e parecia tão forte e descansado como qualquer dos homens que Hal liderava. Hal desviou o golpe com um torcer do punho e partiu para o contra-ataque.
Para enfrentar a investida de Hal, o coronel voltara as costas a Aboli, um movimento temerário. Ao que ele travou o avanço de Hal e deslizou os pés para a frente, Aboli o assaltou por detrás. Por um momento, Hal julgou que o negro iria atravessá-lo pela espinha, porém deveria ter imaginado melhor. Aboli conhecia o valor do resgate tão bem como qualquer homem a bordo: um oficial inimigo morto era simplesmente não mais que carne podre para lançar para os tubarões que seguiam a esteira do navio, porém um cativo valia bons florins holandeses de ouro.
Aboli inverteu o golpe e levou a copa de aço do punho do alfanje para o alto, a desferi-la contra o verso do crânio do coronel. Os olhos do holandês arregalaram-se de espanto e em seguida suas pernas se dobraram e ele caiu de cara sobre o tombadilho.
Assim que o coronel desabou, a última resistência da tripulação do galeão sucumbiu com ele. Jogaram as armas, e aqueles da tripulação do Lady Edwina que haviam se rendido saltaram de pé, ferimentos e exaustão esquecidos. Apoderaram-se das armas descartadas e voltaram-se para os holandeses batidos, a conduzi-los para a frente, forçando-os ficar em filas com as mãos enlaçadas em torno das cabeças, desgrenhados e desolados.
Aboli apertou Hal num abraço de urso.
Quando você e Sam Bowles fizeram-se à vela, pensei que fosse a última vez que o veria arquejou.
Sir Francis veio em passadas longas na direção do filho, abrindo caminho pela confusão álacre de seus marujos.
Você desertou de seu posto no topo do mastro! Encarou Hal de semblante fechado enquanto amarrava uma tira de pano em torno do corte do braço e puxava o nó com os dentes.
Papai balbuciou Hal, eu pensei...
E pela primeira vez pensou com sabedoria! A expressão sombria de Sir Francis se desanuviou e os olhos verdes luziram. Ainda faremos de você um guerreiro, se se lembrar de manter a ponta da espada para cima em resposta. Aquele grande cabeça-de-queijo apontou o coronel caído com o dedo estava prestes a espetá-lo até que Aboli estourou-lhe o cocuruto. Sir Francis enfiou a espada de volta na bainha. O navio ainda não está seguro. Os tombadilhos inferiores e os porões estão lotados de gente. Teremos de arrancá-los para fora. Fique perto de Aboli e de mim!
Papai, o senhor está ferido protestou Hal.
E talvez bem mais gravemente, tivesse você voltado para nós um único minuto depois que o fez.
Deixe-me ver seu ferimento.
Conheço os truques que Aboli lhe ensinou. Iria urinar em seu próprio pai? Riu e agarrou Hal pelo ombro. Talvez eu lhe dê esse prazer mais tarde. Voltou-se e berrou pelo convés: Daniel Grande, leve seus homens para baixo e espante para fora aqueles cabeças-dequeijo que estiverem escondidos lá. Mestre John, ponha uma guarda nas escotilhas de carga. Veja que não sejam saqueadas. Partilha justa para todos! Mestre Ned, assuma o leme e faça este navio ao vento antes que ele fustigue as velas até elas virarem trapos.
Então, bradou para os demais:
Estou orgulhoso de vocês, seus velhacos! Um bom dia de trabalho. Cada um chegará em casa com cinqüenta florins de ouro no bolso. Porém, as moças de Plymouth nunca irão amá-los tanto quanto eu amo!
A tripulação deu vivas a seu líder, histérica de alívio pela ação desesperada e pelo medo da derrota e morte.
Vamos! Sir Francis fez um gesto a Aboli e rumou para a escada que levava aos alojamentos dos oficiais e passageiros, na popa.
Hal seguiu-os numa corrida enquanto cruzavam o convés, e Aboli resmungou por sobre o ombro:
Arme-se de coragem. Existem aqueles lá embaixo que ficariam felizes em abrir um naco entre suas costelas.
Hal sabia para onde seu pai ia e qual seria sua primeira preocupação. Queria as cartas e as direções de navegação do capitão holandês. Eram mais valiosas para ele que todas as fragrantes especiarias e os metais preciosos e as jóias brilhantes que o galeão pudesse carregar. Com aquilo em suas mãos, ele teria a chave para cada porto e forte holandês nas índias. Leria as ordens de navegação dos comboios de especiarias e o manifesto de suas cargas. Para ele, valiam dés mil libras em ouro.
Sir Francis irrompeu escada abaixo e tentou a primeira porta ao fundo. Estava trancada por dentro. Ele deu um passo para trás e investiu. Com seu chute, a porta abriu-se num estrondo e bateu contra as dobradiças.
O capitão do galeão estava amontoado sobre a escrivaninha, a cabeça tosquiada sem peruca e as roupas encharcadas de suor. Parecia consternado, o sangue a pingar de um corte na face para a camisa de seda, suas largas mangas elegantes raiadas de vermelho.
A vista de Sir Francis, imobilizou-se no ato de enfiar os livros do navio num pesado saco de lona e então o ergueu e correu para as janelas de popa. Os batentes e o vidro tinham sido arrebentados pelas colubrinas do Lady Edwina e jaziam abertas, o mar a quebrar e ondular sob o painel de popa. O capitão holandês levantou o saco para lançá-lo pela abertura, porém Sir Francis segurou-o pelo braço erguido e empurrou-o de costas sobre o beliche. Aboli agarrou o saco, e Sir Francis curvou-se numa pequena mesura.
Fala inglês? indagou.
No english retrucou o capitão.
Sir Francis mudou naturalmente para o holandês. Como um Cavaleiro Nautonnier da Ordem, falava a maioria dos idiomas das grandes nações navegantes, francês, espanhol e português, assim como holandês.
É meu prisioneiro, Mijnheer. Qual é o seu nome?
Limberger, capitão de primeira classe, a serviço da VOC E você, Mijnheer, é um corsário retorquiu o capitão.
Está enganado, senhor. Viajo sob as Cartas de Marca de Sua Majestade Rei Carlos II. Seu navio é agora um apresamento de guerra.
Você desfraldou falsas cores acusou o holandês.
Sir Francis sorriu com frieza.
Uma legítima estratégia de guerra. Fez um gesto de desprezo e prosseguiu: É um homem corajoso, Mijnheer, porém a luta terminou agora. Assim que me der sua palavra, será tratado como meu hóspede honrado. No dia em que seu resgate for pago, estará livre.
O capitão enxugou o sangue e o suor da face com a manga de seda, e uma expressão de resignação entorpeceu-lhe as feições. Levantou-se e estendeu a espada, punho primeiro, para Sir Francis.
Tem minha palavra. Não tentarei escapar.
Nem irá encorajar seus homens à resistência? Sir Francis o confrontou.
O capitão aquiesceu, sombrio:
Pode estar certo que não.
Precisarei de sua cabine, Mijnheer, porém encontrarei alojamentos confortáveis para você em algum lugar. Sir Francis voltou a atenção, ansioso, para o saco de lona, e despejou o conteúdo sobre a escrivaninha.
Hal sabia que, doravante, seu pai ficaria absorto na leitura, e relanceou os olhos para Aboli, de guarda na porta. O negro fez-lhe um gesto de permissão, e Hal esgueirou-se para fora da cabine. Seu pai não o viu sair.
Alfanje na mão, ele percorreu cautelosamente o estreito corredor. Podia ouvir os gritos e o estardalhaço dos outros tombadilhos à medida que a tripulação do Lady Edwina punha para fora os marujos holandeses derrotados e os conduzia para o convés aberto. Ali embaixo, tudo estava quieto e deserto. A primeira porta que tentou estava trancada. Ele hesitou e então seguiu o exemplo anterior do pai. A porta resistiu à primeira investida, porém ele recuou e investiu novamente. Desta vez ela se abriu num baque e ele irrompeu pela cabine, desequilibrado e escorregando nos magníficos tapetes orientais que cobriam o convés. Esparramou-se sobre a enorme cama que parecia encher metade da cabine.
Ao sentar-se e relancear os olhos pelo esplendor que o rodeava, teve consciência de um aroma muito mais pesado que qualquer especiaria que já tivesse cheirado. O odor de boudoir de uma mulher mimada, não simplesmente os preciosos óleos essenciais de flores, procurados pela arte dos perfumistas, porém mesclados com aqueles acentos mais sutis de pele e cabelo e um saudável e jovem corpo feminino. Era tão requintado, tão intenso, que quando ele ficou de pé suas pernas ficaram estranhamente moles sob ele, e Hal aspirou o ar, extasiado. Era o cheiro mais delicioso que suas narinas tinham alguma vez provado.
Espada na mão, ele correu os olhos pela cabine, apenas vagamente consciente das ricas tapeçarias e dos vasos de prata cheios de guloseimas, frutas secas e pot-pourri. A penteadeira contra o anteparo de popa estava repleta de um sortimento de cosméticos e perfumes em frascos de cristal lapidado, com roscas de prata marchetada. Hal aproximou-se dela. Disposta ao lado das garrafas estava um conjunto de escovas com armação de prata e um pente de casco de tartaruga. Preso entre os dentes do pente, havia um único fio de cabelo, longo como o seu braço, fino como seda.
Hal ergueu o pente até o rosto como se fosse uma relíquia sagrada. Havia aquele odor embriagante de novo, aquele cheiro vertiginoso de mulher. Ele perpassou o cabelo pelo dedo e livrou-o dos dentes do pente, para depois, com reverência, enfiá-lo dentro do bolso de sua camisa manchada e fedendo a suor.
Naquele momento, ouviu-se um suave porém lamentoso soluço de cortar o coração por detrás do elegante biombo chinês, a um canto da cabine.
Quem está aí? gritou Hal, o alfanje erguido. Saia ou o mandarei para o inferno!
Ouviu-se outro soluço, mais pungente que o último.
Por todos os santos, falo sério! Hal avançou para o biombo. Investiu, rasgando um dos painéis pintados. Com a força do golpe,
o biombo desequilibrou-se e caiu contra o convés. Ouviu-se um grito terrificado, e Hal inclinou-se, boquiaberto, para a maravilhosa criatura que estava ajoelhada, toda encolhida de medo no canto da cabine.
Sua face estava enterrada nas mãos, porém a massa de cabelos reluzentes que tombava até o convés brilhava como escudos de ouro limpos de novo, e as saias que se espalhavam em torno eram do azul das asas de uma andorinha.
Por favor, senhora! murmurou Hal. Não pretendo lhe fazer nenhum mal. Por favor, não chore. Suas palavras não tiveram efeito. Era evidente que não eram entendidas, e, inspirado pelo momento, Hal mudou para o latim. Não precisa ter medo. Está segura. Não a machucarei.
A cabeça notável se ergueu. Ela compreendera. Hal fitou-a na face, e foi como se tivesse recebido uma descarga de metralha no centro do peito. A dor foi tão intensa que ele ofegou. Jamais sonhara que tamanha beleza pudesse existir.
Misericórdia! murmurou ela em latim, num tom de lamento. Por favor, não me machuque. Seus olhos estavam marejados de lágrimas que só serviam para aprimorar a magnitude e intensidade daquele violeta iridescente. Suas faces estavam brancas até o brilho translúcido do alabastro, e as lágrimas que escorriam luziam como aljôfares.
Você é linda murmurou Hal, ainda em latim. Sua voz soou como a de uma vítima nos estertores, arquejante e em agonia. Sentia-se torturado por emoções que nunca sonhara existir. Queria proteger e acarinhar aquela mulher, mantê-la para sempre consigo, amá-la e cultuála. Todas as palavras de cavalheirismo que, até olhar para ela, ele lera e formulara porém jamais realmente compreendera, correram para sua língua a exigir que fossem pronunciadas; contudo, ele só conseguia ficar ali de pé, a olhar.
Então foi atraído por um outro som abafado atrás de si. Girou nos calcanhares, alfanje de prontidão. Sob os lençóis de cetim que caíam pela borda da enorme cama, estava agachada uma figura porcina. As costas e a barriga eram tão bem cobertas de lardo que balouçavam a cada movimento que o homem fazia. Rolos de gordura saltavam de sua nuca e pendiam de sua oscilante papada.
Renda-se! berrou Hal, e espetou-o com a ponta da lâmina. O governador soltou um grito agudo de terror e caiu sobre o convés. Retorcia-se como um cachorrinho.
Por favor, não me mate. Sou um homem rico soluçava, também em latim. Pagarei qualquer resgate.
Levante-se. Hal o espetou de novo, mas Petrus van de Velde teve apenas força e coragem suficiente para se pôr de joelhos. Ficou ali, a balbuciar palavras entrecortadas de soluços e lágrimas.
Quem é você?
Sou o governador do cabo da Boa Esperança, e esta senhora é minha esposa.
Aquelas foram as mais terríveis palavras que Hal já ouvira pronunciadas. Encarou o homem, estupefato. A maravilhosa dama que já amava com sua própria vida era casada e com aquele grotesco arremedo de homem que se ajoelhava diante dele.
Meu sogro é um diretor da companhia, um dos mercadores mais ricos e mais poderosos de Amsterdã. Ele pagará ele pagará qualquer coisa. Por favor, não nos mate.
As palavras faziam pouco sentido para Hal. Seu coração estava despedaçado. Em instantes, ele fora da selvagem exultação até as profundezas do espírito humano, do amor pungente ao desolador desespero.
Porém, as palavras do governador significavam mais para Sir Francis Courtney, que se postava agora à entrada da cabine, com Aboli às suas costas.
Por favor, acalme-se, governador. O senhor e sua esposa estão em mãos seguras. Farei os arranjos para seu resgate com toda urgência. Tirou o chapéu emplumado de cavalier e dobrou os joelhos para Katinka. Mesmo ele não era inteiramente à prova de tamanha beleza. Posso me apresentar, senhora? Capitão Francis Courtney, às suas ordens. Por favor, tire um momento para se recompor. Às quatro badaladas isto é, daqui a uma hora, eu ficaria honrado se se juntasse a mim no convés de popa. Pretendo passar em revista a guarnição do navio.
Ambos os navios estavam sob panos, a pequena caravela apenas sob as varredouras e as da gávea, o grande galeão com seu conjunto de velas mestras. Navegavam bem próximos, num rumo nordeste, para longe do cabo e num curso à orça da região do continente africano. Sir Francis fitou com olhar paternal sua tripulação, na parte do convés entre os castelos do galeão.
Prometi a vocês cinqüenta guinéus por homem como prêmio disse, e eles gritaram vivas com estardalhaço.
Alguns estavam doloridos e estropiados de seus ferimentos. Cinco jaziam em estrados ao lado da amurada, fracos demais pela perda de sangue para ficar de pé, mas resolvidos a não perder uma palavra daquela cerimônia. Os mortos já estavam costurados nas mortalhas de lona, cada um com uma bala de canhão holandesa nos pés e estirados na proa. Dezesseis ingleses e quarenta e dois holandeses, companheiros na trégua da morte. Nenhum dos vivos lhes destinava um pensamento agora.
Sir Francis ergueu a mão. A tripulação caiu em silêncio e amontoou-se para a frente, para não perder as próximas palavras.
Menti para vocês. Houve um momento de aturdida incredulidade, e então eles resmungaram e fungaram num murmúrio sombrio. Não há um homem entre vocês... ele parou para causar efeito que não esteja mais rico em duzentas libras por este dia de trabalho!
O silêncio persistiu enquanto o fitavam, aparvalhados, e então ficavam loucos de alegria. Davam cambalhotas e uivavam e rodopiavam um ao outro numa dança delirante. Mesmo os feridos sentaram-se e cantaram vitória.
Sir Francis sorriu para eles com ar benigno por um instante, enquanto permitia que dessem vazão à alegria. Então acenou com um punhado de páginas manuscritas sobre a cabeça e todos caíram em silêncio mais uma vez.
Este é o extrato que fiz do manifesto de navio!
Leia-o! pediram.
O recital prosseguiu por quase meia hora, pois eles vivavam a cada item do conhecimento de embarque que Sir Francis traduzia do holandês conforme lia em voz alta. Cochinilha e pimenta, canela e açafrão, cravos e cardamomo, com um peso total de quarenta e duas toneladas. A tripulação sabia que, peso por peso e libra por libra, aquelas especiarias eram tão preciosas quanto barras de prata. Todos estavam roucos de gritar, e Sir Francis ergueu a mão novamente.
Eu os canso com esta lista sem fim? Já têm o suficiente?
Não! bradaram eles. Leia!
Bem, então, há umas poucas pilhas de tábuas nos porões. Balu e teca e outras madeiras estranhas que nunca foram vistas ao norte do equador. Cerca de trezentas toneladas. Eles se rejubilaram com suas palavras, os olhos reluzentes. Há ainda mais, porém vejo que os estou cansando. Não querem mais?
Leia para nós! imploraram.
As mais finas porcelanas chinesas em azul e branco, e seda em fardos. Isso agradará às damas!
Berraram como uma horda de elefantes machos em frenesi à menção de mulheres. Quando chegassem ao próximo porto, com duzentas libras em cada bolso, poderiam ter quantas mulheres de qualquer qualidade e beleza suas fantasias ordenassem.
Há ainda ouro e prata, porém estão a bordo em baús selados de aço no fundo do porão principal, com trezentas toneladas de madeira por cima. Não poremos as mãos neles até que atraquemos e descarreguemos a carga principal.
Quanto de ouro? imploraram. Diga-nos quanto há de prata.
Prata em moeda no valor de cinqüenta mil florins. Isso é mais Que dés mil boas libras inglesas. Trezentos lingotes de ouro das minas de Kollur, no rio Krishna, em Kandy, no Ceilão, e só o Bom Senhor sabe o que nos trarão quando os vendermos em Londres.
Hal pendurava-se nas enxárcias do mastro principal, um ponto vantajoso de onde podia olhar para baixo, para o pai, no convés de popa. Dificilmente uma palavra do que ele dizia fazia sentido para Hal, porém ele percebeu vagamente que aquele deveria ser um dos maiores prêmios já obtidos pelos marinheiros ingleses durante o curso daquela guerra com os holandeses. Ele se sentia aturdido e atordoado, incapaz de se concentrar em algo além do maior tesouro que capturara com sua própria espada, e que agora se sentava modestamente atrás de seu pai, atendida pela criada. O cavalheiresco Sir Francis tinha colocado uma das cadeiras entalhadas e estofadas da cabine do capitão no convés de popa, para a esposa do governador holandês. Petrus van de Velde se postava agora por detrás da esposa, esplendidamente vestido, a envergar botas altas de macio couro espanhol que lhe chegavam às coxas; estava de peruca e adornado de fitas, a corpulência coberta de medalhões e os cinturões de seda de seu cargo público.
Para a própria surpresa, Hal descobriu que odiava aquele homem amargamente e lamentava que não o tivesse espetado quando ele engatinhava de sob a cama e assim ter feito do anjo que era sua esposa uma viúva trágica.
Imaginou-se a devotar a vida a fazer o papel de Lancelot para sua Guinevere. Viu-se humilde e submisso a cada capricho, mas inspirado a feitos de eminente valor por seu puro amor a ela. Ao comando dela, poderia até mesmo empreender uma jornada cavalheiresca à procura do Santo Graal e colocar a relíquia sagrada naquelas belas mãos brancas. Estremeceu de prazer ao pensamento, e fitou-a saudosamente.
Enquanto Hal devaneava nos cordames, a cerimônia no convés abaixo chegara a seu término. Atrás do governador estavam enfileirados o capitão holandês e os outros oficiais capturados. O coronel Cornelius Schreuder era o único sem um chapéu, pois uma bandagem circundava-lhe a cabeça. Apesar da pancada que lhe desferira Aboli, seu olhar ainda era agudo e sem sombras, e sua expressão feroz, enquanto ouvia Sir Francis relacionar os espólios.
Porém, isso não é tudo, rapazes! assegurou Sir Francis à sua tripulação. Fomos afortunados o bastante para ter a bordo, como nosso honrado hóspede, o novo governador do povoamento holandês do cabo da Boa Esperança. Com um irônico floreio, curvou-se diante de van de Velde, que o fitou de sobrolho fechado: agora que seus captores tinham se dado conta de seu valor e posição, sentia-se mais seguro.
Também fomos afortunados em ter conosco a adorável esposa do Governador... interrompeu-se quando a tripulação expressou apreciação pela beleza dela.
Corja reles de campônios resmungou van de Velde, e pousou mão protetora sobre o ombro de Katinka. Ela fitou os homens com os grandes olhos violeta, e sua beleza e inocência os envergonharam, até que caíram num silêncio constrangido.
Mevrouw van de Velde é a única filha de Burgher Hendrik Coetzee,
o stadhouder da cidade de Amsterdã e presidente do conselho de administração da Companhia Holandesa das índias Orientais.
A tripulação encarou-a com admiração e respeito. Poucos compreendiam a importância de tão exaltado personagem, porém a maneira como Sir Francis recitara aqueles títulos os impressionara.
O governador e sua esposa serão mantidos a bordo deste navio até que seu resgate seja pago. Um dos oficiais holandeses capturados será despachado para o cabo da Boa Esperança com a exigência do resgate para ser transmitida pelo próximo navio da companhia para o conselho, em Amsterdã.
A tripulação esbugalhou os olhos para o casal, enquanto consideravam o fato, e então Daniel Grande perguntou:
Quanto, Sir Francis? Qual o valor do resgate que o senhor estipulou?
Estipulei o resgate do governador em duzentos mil florins em moeda de ouro.
A companhia do navio ficou estupefata, pois uma tal soma ultrapassava seu entendimento. Então Daniel berrou:
Vamos dar um viva para o capitão, rapazes! E eles berraram até que suas vozes falharam.
Sir Francis percorreu lentamente as filas de marujos holandeses capturados. Eram quarenta e sete, dezoito deles feridos. Examinou a face de cada homem ao passar: eram de compleição rude, de feições grosseiras e pouco inteligentes de expressão. Era evidente que nenhum tinha qualquer valor de resgate. Eram, em vez disso, uma responsabilidade, pois teriam de ser alimentados e guardados, e havia sempre o perigo de que pudessem recobrar a coragem e tentar uma insurreição.
Quanto mais cedo nos livrarmos deles, melhor murmurou ele para si mesmo e então se dirigiu a eles em voz alta, no próprio idioma dos prisioneiros. Cumpriram bem seu dever. Serão deixados livres e mandados de volta ao forte no cabo. Podem levar seus pertences com vocês, e providenciarei para que lhe sejam pagos os salários devidos antes que partam. As faces de todos brilharam. Não esperavam por isso. Aquilo deveria mantê-los quietos e dóceis, pensou Sir Francis, ao se afastar escada abaixo até sua cabine recém-adquirida, onde seus mais ilustres prisioneiros o aguardavam.
Cavalheiros! saudou-os, ao entrar e tomar assento por trás da escrivaninha de mogno. Gostariam de um cálice de vinho das Canárias?
O governador van de Velde aquiesceu avidamente. Sua garganta estava seca, e embora tivesse comido fazia apenas uma hora, seu estômago roncava como o de um cão faminto. Oliver, o criado de Sir Francis, verteu o vinho dourado nos cálices de longos cabos e serviu as frutas açucaradas que encontrara na despensa do capitão holandês. O capitão fez uma expressão azeda ao reconhecer a própria comida, mas tomou um grande gole do vinho das Canárias.
Sir Francis consultou a pilha de manuscritos nos quais tomara suas notas e em seguida relanceou os olhos para uma das cartas que encontrara na escrivaninha do capitão. Era de uma eminente firma de banqueiros na Holanda. Encarou o capitão e dirigiu-se a ele num tom severo:
Imagino como um oficial de seu cargo e posição perante a VOC poderia permitir-se negociar por conta própria. Ambos sabemos que isso é estritamente proibido pelos Dezessete.
O capitão deu a impressão de que poderia protestar, porém, quando Sir Francis tamborilou os dedos sobre a carta, derreou-se na cadeira e olhou de soslaio com ar culpado para o governador, sentado a seu lado.
Parece que é um homem rico, Mijnheer. Dificilmente não atingiria um resgate de duzentos mil florins. O capitão resmungou e fechou o sobrolho, sombrio, porém Sir Francis prosseguiu, suavemente:
Se pegar a pena e escrever para seus banqueiros, o assunto pode ser resolvido entre cavalheiros, desde que eu receba essa quantia em ouro.
O capitão inclinou a cabeça, em concordância.
Agora, quanto aos oficiais do navio continuou Sir Francis, examinei seu registro de alistamento. Puxou o livro em sua direção e abriu-o.
Parece que são todos homens sem altas conexões ou substância financeira. Olhou para o capitão. É esse o caso?
verdade, Mijnheer.
- Eu os mandarei para o cabo com os marujos comuns. Agora só
falta resolver a quem poderemos confiar a exigência do resgate para o conselho da companhia com relação ao governador van de Velde e sua boa senhora e, é claro, sua carta a seus banqueiros.
Sir Francis olhou para o governador. Van de Velde enfiou outra fruta em confeito na boca e retrucou:
Mande Schreuder.
Schreuder? Sir Francis folheou os papéis até encontrar a comissão do coronel. Coronel Cornelius Schreuder, o recém-indicado comandante militar do forte em Boa Esperança?
Ja, esse mesmo. Van de Velde pegou outro doce. Seu posto lhe dará mais prestígio quando apresentar sua exigência por meu resgate a meu sogro ponderou.
Sir Francis estudou a face do homem enquanto ele mastigava. Ficou a imaginar por que o governador queria se livrar do coronel. Parecia um bom sujeito e habilidoso; faria mais sentido mantê-lo à mão. Contudo, o que van de Velde dizia de seu status era verdade. E Sir Francis sentiu que o coronel Schreuder poderia fazer a parte do diabo se ficasse a bordo do galeão por qualquer período de tempo. Muito mais problema do que valia a pena, pensou, e disse, em voz alta:
Muito bem, eu o mandarei.
Os lábios cobertos de açúcar do governador fizeram um bico de satisfação. Ele estava plenamente ciente do interesse de sua esposa pelo atraente coronel. Estava casado com ela fazia poucos anos, contudo sabia com certeza que ela tivera pelo menos dezoito amantes nesse tempo, alguns apenas por uma hora ou uma noite.
A criada, Zelda, era paga por van de Velde e relatava a ele cada uma das aventuras de sua patroa, extraindo um profundo prazer indireto em contar cada detalhe escabroso.
Quando van de Velde tomara ciência pela primeira vez do apetite carnal de Katinka, ficara ultrajado. Contudo, suas admoestações furiosas de início não surtiram efeito, e ele aprendera depressa que sobre ela não tinha nenhum controle. Não poderia nem protestar muito nem mandála embora, pois, por um lado, estava estupidificado por ela e, por outro, havia o pai de Katinka, muito rico e poderoso. O avanço de sua Própria fortuna e posição dependia quase que inteiramente dela. Por fim, seu único curso de ação fora, tanto quanto possível, manter a tentação e a oportunidade afastadas. Durante aquela viagem, fora bemsucedido em mantê-la como uma virtual prisioneira nos alojamentos, e estava certo de que, não tivesse agido assim, sua esposa já teria experimentado os utensílios do coronel, que estavam ostensivamente à exposição. Com ele fora do navio, a chance de diversão de Katinka seria severamente encurtada, e, depois de um jejum prolongado, ela poderia até mesmo tornar-se dócil a seus próprios avanços suados.
- Muito bem - concordou Sir Francis -, mandarei o coronel Schreuder como seu emissário. - Virou a página do almanaque à sua frente, sobre a escrivaninha. - Com bons ventos, e pela graça do Todopoderoso, a viagem do cabo para a Holanda e de volta até aqui para o encontro não deverá ocupar mais que oito meses. Podemos esperar que você possa estar livre para assumir seus deveres no cabo pelo Natal.
- Onde nos manterá até que o resgate seja recebido? Minha esposa é uma dama de qualidade e disposição delicada.
- Num lugar seguro e com conforto. Isso eu lhe asseguro, senhor.
- Onde encontrará o navio que retornar com nosso dinheiro de resgate?
- A trinta e três graus de latitude sul e quatro graus e trinta minutos leste.
- Onde, pois, deveria ser isso?
- Ora, governador van de Velde, no próprio lugar do oceano onde estamos neste exato momento. - Sir Francis não seria trapaceado tão prontamente, revelando os paradeiros de sua base.
Num amanhecer nublado, o galeão lançou âncora nas águas mais dóceis atrás de uma ponta de terra rochosa da costa africana. O vento começava a virar. O fim da estação de verão estava às portas; aproximavam-se depressa do equinócio outonal. O Lady Edwina, as bombas a trabalhar sem cessar, chegou-se de lado e, com defensas de calafetagem entre os cascos, passou rápido pela nau maior.
De imediato, o trabalho de limpeza começou. Blocos e talhas já haviam sido içados das vergas do galeão. Tiraram primeiro os canhões. Os grandes canos de bronze em seus trilhos foram suspensos no ar. Trinta marujos se afastaram com a talha e então baixaram cada colubrina para o convés do galeão. Assim que esses canhões fossem assentados, o galeão teria o poder de fogo de um navio da linha e seria capaz de atacar qualquer galeão da companhia com vantagem.
Ao observar a vinda do canhão para bordo, Sir Francis percebeu que agora tinha força para desfechar um ataque de surpresa sobre qualquer dos portos mercantes holandeses nas índias. A captura do Standvastigheid fora apenas um começo. A partir dali, ele planejava tornar-se o terror da Holanda no oceano das índias, tal como Sir Francis Drake atormentara os espanhóis em sua própria terra no século anterior.
Agora as barricas de pólvora eram içadas para fora do armazém da caravela. Poucas continuavam cheias depois de um tão longo cruzeiro e as pesadas ações que enfrentara. Contudo, o galeão ainda carregava quase duas toneladas de pólvora de excelente qualidade, suficiente para lutar uma dúzia de batalhas, ou para capturar um rico entreposto holandês na costa de Trincomalee ou javanesa.
Quando a mobília e as provisões foram trazidas, barricas d'água e baús de armas, barris de salmoura com picles, sacos de pão de barricas de farinha, as pinaças foram também içadas a bordo e desmanteladas pelos carpinteiros. Foram armazenadas no porão da carga principal do galeão no topo das pilhas de raras madeiras orientais. Tão pesado e superlotado com sua própria carga estava o galeão, que, para acomodar seu volume, as braçolas de escotilha tiveram de ser deixadas fora dos porões principais até que a presa fosse levada para a base secreta de Sir Francis.
Desnudado até as pranchas, o Lady Edwina rodou alto na água quando o coronel Schreuder e a tripulação holandesa liberada estavam prontos para subir a bordo. Sir Francis reuniu-se com o coronel no convés de popa e entregou-lhe de volta a espada e a carta endereçada ao conselho da Companhia Holandesa das índias Orientais, em Amsterdã. Fora costurada dentro de uma coberta de lona, as bordas seladas com cera vermelha, e amarrada com fita. Era um embrulho impressionante, que o coronel Schreuder colocou firmemente sob o braço.
- Espero que nos encontremos de novo, Mijnheer - disse Schreuder, num tom agourento, para Sir Francis.
- Em oito meses, a contar de agora, estarei no ponto de encontro - assegurou Sir Francis. - Então ficarei encantado em revê-lo, contanto que tenha os duzentos mil florins de ouro para mim.
- O senhor se enganou quanto às minhas palavras - disse Cornelius Schreuder, com um sorriso irônico.
- Asseguro-lhe que não - respondeu Sir Francis, com tranqüilidade. Então o coronel olhou para a abertura na popa onde Katinka van de Velde estava de pé, ao lado do marido. A profunda mesura que ele fez em direção a eles e o olhar de anseio em seus olhos não foram somente para o governador.
- Voltarei com toda pressa para terminar seu sofrimento - disse a eles.
- Deus esteja com o senhor - disse o governador. - Nossa sina está em suas mãos.
- Terá assegurada minha mais profunda gratidão em seu retorno, meu caro coronel - murmurou Katinka, numa ofegante voz de menina, e o coronel estremeceu como se um balde de água gelada escorresse de suas costas. Empertigou-se à plena altura, saudou-a e depois se voltou e seguiu para a amurada do galeão.
Hal estava esperando na ponte com Aboli e Daniel Grande. Os olhos do coronel se estreitaram e ele parou em frente a Hal, torcendo o bigode. As fitas de seu casaco flutuavam à brisa, e o cinturão de seu posto brilhou quando ele tocou a espada ao lado.
- Fomos interrompidos, menino - disse baixinho, em bom inglês sem sotaque. - Contudo, haverá um tempo e um lugar para mim em que vou terminar a lição.
- Esperemos que sim, senhor. - Hal era corajoso com Aboli a seu lado. - Sou sempre grato por instrução.
Por um instante, encararam, um ao outro, e depois Schreuder saltou por sobre o lado do galeão para o tombadilho da caravela. Imediatamente os cabos foram retirados, e a tripulação holandesa içou as velas. O Lady Edwina jogou sua popa como um cavalo arisco e avançou à pressão de seus panos. Girou ligeiramente ao se afastar de terra para zarpar.
- Nós também vamos nos pôr a caminho, por favor, mestre Ned! - exclamou Sir Francis. - Içar âncora.
O galeão afastou-se da costa da África, rumando para o sul. Do topo do mastro onde Hal se acocorava, o Lady Edwina ainda estava à vista. A nau menor procurava se afastar dos traiçoeiros bancos de areia do cabo Agulhas, antes de fazer a volta e pegar o vento para descer até o forte holandês, abaixo da grande montanha com tampo de mesa que guardava a extremidade sudoeste do continente africano.
Enquanto Hal observava, a silhueta dos panos da caravela se alterou drasticamente. Ele se debruçou no cesto de gávea e berrou:
- O Lady Edwina está alterando o curso.
- Para onde? - berrou seu pai de volta.
- Está correndo livre - respondia Hal. - Seu novo curso parece ser rumo oeste.
A nau estava fazendo exatamente o que esperavam dela. Com o sudoeste bem à popa de seu vau, ela agora rumava direto para Boa Esperança.
- Mantenha o olho nele.
Conforme Hal a observava, a caravela foi diminuindo em tamanho até que suas velas brancas se mesclaram com as jubas desgrenhadas das ondas com cristas brancas sopradas pelo vento, no horizonte.
- Ele se foi! - berrou ele para o tombadilho de popa. - Está fora de vista daqui!
Sir Francis tinha aguardado por aquele momento antes de levar o galeão num giro para seu verdadeiro destino. Agora dava as ordens para o leme que o empurraria em direção ao leste, e a nau voltou a uma larga faixa de amplitude paralela à costa africana.
- Este parece ser o seu melhor ponto de navegação - disse a Hal, quando o filho desceu para o convés, depois de ter sido substituído no topo do mastro. - Mesmo com as vergas armadas para uso temporário, a nau está mostrando uma boa velocidade. Precisamos conhecer os caprichos e manhas de nossa nova patroa. Faça um cálculo com o silômetro, por favor.
Com o utensílio na mão, Hal regulou o silômetro de madeira em seus caixilhos, desceu da proa em sua caminhada ao longo do casco até chegar à popa. Fez um cálculo rápido na lousa e depois ergueu os olhos para o pai.
- Seis nós pela água.
- Com a nova vela mestra, a nau será boa para dez. Ned Tyler encontrou uma vergôntea de bom pinho norueguês estocada no porão. Vamos erguêla tão logo aportemos. - Sir Francis pareceu deliciado: Deus estava sorrindo para eles. - Reúna a guarnição do navio. Vamos pedir as bênçãos de Deus sobre a nau e dar-lhe um novo nome.
Todos ficaram de cabeças descobertas ao vento, os gorros comprimidos ao peito, as expressões tão piedosas quanto possível, ansiosos para não atrair o desfavor de Sir Francis.
- Nós vos agradecemos, Deus Todo-poderoso, pela vitória que nos concedestes sobre os heréticos e os apóstatas, os seguidores cercados pelas trevas do filho de Satã, Martinho Lutero.
- Amém! - gritaram. Eram todos bons anglicanos, a não ser os negros das tribos dentre eles, porém estes também gritaram amém com o resto. Tinham aprendido aquela palavra desde o primeiro dia a bordo do navio de Sir Francis.
- Nós vos agradecemos pela oportuna e misericordiosa intervenção no meio da batalha e o resgate da derrota certa...
Hal remexeu-se em discordância, porém sem olhar para cima. Parte do crédito pela oportuna intervenção era sua, e seu pai não se pronunciara a respeito disso abertamente.
- Nós vos agradecemos e louvamos vosso nome por colocar em nossas mãos este belo navio. Prestamos a vós nosso solene juramento de que o usaremos para levar humilhação e punição sobre vossos inimigos. Pedimos vossa bênção sobre nós. Imploramos para que olhai gentilmente por nós e para sancionar o novo nome que agora damos a ele. Doravante se chamará Resolução.
Seu pai simplesmente traduzira o nome do galeão holandês, e Hal estava triste por ele não levar o nome de sua mãe. Ficou a imaginar se a lembrança da mãe estava por fim se desvanecendo das recordações do pai, ou se ele teria outra razão para não mais perpetuar sua memória. Sabia, no entanto, que jamais teria coragem de perguntar, e simplesmente deveria aceitar aquela decisão.
- Pedimos a vós a continuada ajuda e intervenção em nossa infindável batalha contra os sem-Deus. Agradecemos humildemente pelas recompensas que tendes generosamente derramado sobre nós. E cremos que, se nos comprovarmos merecedores, seremos recompensados por nossa devoção e sacrifício com mais provas de amor por vossa bondade.
Aquele era um sentimento perfeitamente razoável, com o qual cada homem a bordo, cristão verdadeiro ou pagão, poderia estar de pleno acordo. Cada homem devotado ao serviço de Deus na terra tinha direito a sua recompensa, e não apenas na vida por vir. Os tesouros que recheavam os porões do Resolução eram prova e tangível evidência da aprovação e consideração de Deus para com eles.
- Agora vamos erguer um viva para o Resolução e todos que velejam nele.
Todos vivaram até ficarem roucos, e Sir Francis silenciou a todos por fim. Recolocou o chapéu de abas largas e fez um gesto para que cobrissem as cabeças. Sua expressão tornou-se séria e sombria.
- Há mais uma tarefa que temos de realizar agora - disse, e olhando para Daniel Grande. - Traga os prisioneiros ao tombadilho, mestre Daniel.
Sam Bowles estava à dianteira da fila desolada que subiu dos porões, pestanejando à luz do sol. Foram conduzidos à frente e obrigados a se ajoelhar defronte à guarnição do navio.
Sir Francis leu-lhes os nomes da folha de pergaminho que segurava:
- Samuel Bowles. Edward Broom. Peter Law. Peter Miller. John Tate. Ajoelhem-se diante de seus companheiros de navio, acusados de covardia e deserção em face do inimigo, e derrelição de seu dever.
Os outros resmungaram e os encararam, faces sombrias.
- Misericórdia, sua graça. Foi uma loucura do momento. Nós verdadeiramente nos arrependemos. Perdoe-nos, imploramos pelo bem de nossas esposas e as doces crianças que deixamos em casa - implorou Sam Bowles, como porta-voz.
- As únicas esposas que alguma vez tiveram eram as rameiras nas casas de prostituição da rua da Doca - caçoou Daniel Grande, e a tripulação urrou.
- Pendurem-nos no braço da verga! Vamos vê-los dançar uma pequena dança para o diabo.
- Envergonhem-se - calou-os Sir Francis. - Que tipo de justiça inglesa é essa? Cada homem, não importa quem seja, tem direito a um julgamento justo. - Todos ficaram com ar sombrio, e ele prosseguiu: - Iremos tratar deste assunto na ordem adequada. Quem faz essas acusações contra eles?
- Nós! - rugiu a tripulação em uníssono.
- Quem são suas testemunhas?
- Nós! - retrucaram eles, a uma única voz.
- Testemunharam algum ato de traição ou covardia? Viram essas tolas criaturas fugir da luta e deixar seus companheiros à própria sina?
- Sim!
- Ouviram o testemunho contra vocês. Têm algo a dizer em sua defesa?
- Misericórdia! - gemeu Sam Bowles. Os outros pareciam apalermados.
Sir Francis voltou-se para a tripulação.
- E assim, qual é seu veredicto?
- Culpados!
- Culpados como o inferno! - acrescentou Daniel Grande, caso houvesse alguma dúvida pendente.
- E sua sentença? - perguntou Sir Francis, e imediatamente um tumulto irrompeu entre a tripulação.
- Enforque-os.
- Enforcar é muito bom para os porcos. Vamos passá-los pela quilha do navio.
- Não! Não! Cortar e esquartejá-los. Fazê-los comer as próprias bolas.
- Vamos fritar os porcos! Queimar os bastardos na estaca. Sir Francis silenciou-os novamente.
- Vejo que temos algumas diferenças de opinião. - Fez um gesto para Daniel Grande. - Leve-os para baixo e trancafie-os. Deixe-os cozinhar nos próprios sucos fedorentos por um dia ou dois. Trataremos deles quando chegarmos ao porto. Até lá, há assuntos mais importantes para tratar.
Pela primeira vez em sua vida a bordo de um navio, Hal tinha uma cabine só sua. Não precisava mais compartilhar cada momento de sono e acordar amontoado em forçada intimidade com uma horda de outros corpos.
O galeão era espaçoso em comparação com a pequena caravela, e seu pai lhe encontrara um lugar ao lado de seus próprios alojamentos magníficos. Fora o guarda-louça do criado do capitão holandês e não passava de um simples cubículo.
- Você precisa de um lugar mais iluminado para continuar seus estudos - justificara-se Sir Francis por tal indulgência. - Desperdiça muitas horas da noite dormindo, quando poderia estar trabalhando. - Ordenara ao carpinteiro do navio que improvisasse um catre e uma estante na qual Hal pudesse colocar seus livros e papéis.
Um lampião a óleo pendia acima de sua cabeça, a enegrecer o convés ao alto com sua fuligem, mas dando a Hal luz suficiente para enxergar as linhas e permitindo que ele anotasse as lições que seu pai lhe passara. Seus olhos ardiam de fadiga, e ele precisava conter os bocejos à medida que mergulhava a pena no tinteiro e olhava para a folha de pergaminho onde copiava o extrato das direções de navegação do capitão holandês de que seu pai se apossara. Cada navegador tinha seu próprio manual pessoal de direções de navegação, um diário inestimável em que guardava detalhes de oceanos e mares, correntes e costas, aproximação de terra e portos; tabelas de desvios mutáveis e misteriosos de bússolas, conforme um navio navegava por águas estranhas, e cartas do céu noturno, que se alterava com as latitudes. Aquilo era conhecimento que cada navegador acumulava penosamente durante sua vida inteira, de suas próprias observações ou extraído da experiência e casos de outros. Seu pai haveria de esperar que ele completasse aquele trabalho antes de seu turno no topo de mastro, que começava às quatro da manhã.
Um débil ruído por detrás do anteparo o distraiu, e ele ergueu os olhos, com a pena ainda na mão. Era uma pisada leve, quase inaudível, e vinha dos luxuosos aposentos da esposa do governador. Ele mobilizou cada fibra do ser, tentando interpretar cada som que o alcançava. Seu coração lhe dizia que era a adorável Katinka, porém ele não tinha certeza disso. Poderia ser a feia e velha criada ou mesmo o grotesco marido. Sentiu-se deprimido e irritado ao pensamento.
Convenceu-se no entanto de que fora Katinka, e aquela proximidade dela o emocionou, mesmo através das pranchas do anteparo que os separavam. Ansiava tão desesperadamente por ela, que não conseguia nem se concentrar na tarefa ou mesmo ficar sentado.
Levantou-se, forçado a abaixar-se em virtude da baixa altura do convés acima de sua cabeça, e moveu-se silenciosamente para o anteparo. Inclinou-se para ele e apurou os ouvidos. Escutou um leve raspar, o ruído de algo a ser arrastado pelo tombadilho, o farfalhar de tecido, o som borbulhante de líquido a ser vertido numa bacia ou tigela. Com os ouvidos contra o painel, visualizou cada movimento. Ouviu-a colher a água com as mãos em concha e borrifá-la nas faces, ouviu os ligeiros arquejos quando o frio atingiu-lhe o rosto e, depois, as gotas a pingarem de volta na bacia.
Olhou para baixo e viu que um débil raio de luz de vela brilhava através de uma fresta nas tábuas do painel, um estreito fio de luz amarela que ondulava no ritmo do movimento do navio. Sem pesar as conseqüências do que estava fazendo, ajoelhou-se e encostou o olho na fresta. Podia enxergar pouco, pois era estreita, e a luz suave da vela estava dirigida para seu olho.
Então, alguma coisa passou entre ele e a vela, um torvelinho de sedas e renda. Hal arregalou o olho e em seguida arquejou ao divisar o brilho perolado de pele branca perfeita. Fora simplesmente um relance, tão rápido que ele mal tivera tempo de descobrir a linha de uma costa nua, luminosa como madrepérola sob a luz amarela.
Comprimiu a face ainda mais contra o painel, desesperado por outro vislumbre de tamanha beleza. E fantasiou que, sobre o som normal das tábuas do navio a estalar na rota marítima, podia ouvir a respiração suave, leve como o murmúrio dum zéfiro dos trópicos. Conteve o próprio fôlego para escutar até que seus pulmões queimaram, e se sentiu aturdido de admiração.
Naquele momento, a vela na outra cabine foi assoprada, o raio de luz através da fresta a despedir-se de seu olho fixo e a se extinguir. Ele ouviu os passos leves se afastarem, e a escuridão e o silêncio caíram além da divisória.
Hal continuou ajoelhado por um longo tempo, como um devoto num santuário, e então se levantou lentamente e se sentou mais uma vez diante da estante de trabalho. Tentou forçar o cérebro cansado a cumprir a tarefa que o pai lhe designara, porém continuou refugando com um cavalo indisciplinado na rédea do treinador. As letras da página diante dele dissolveram-se em imagens de pele de alabastro e cabelos dourados. Em suas narinas estava a lembrança daquele odor inebriante que sentira quando irrompera pela primeira vez na cabine de Katinka. Cobriu os olhos com a mão na tentativa de impedir que as visões invadissem seu cérebro latejante.
Foi inútil: sua mente estava além do controle. Estendeu a mão para a Bíblia, que jazia ao lado do diário, e abriu a capa de couro. Entre as páginas estava uma fina filigrana de ouro, aquele único fio de cabelo que ele roubara do pente de Katinka.
Tocou-o com os lábios e soltou um gemido: imaginou que podia ainda sentir um traço do perfume dela no fio, e fechou os olhos.
Passou-se algum tempo antes que ele se desse conta das ações de sua traiçoeira mão direita. Como um ladrão, ela se insinuava sob a beirada do calção de lona que era sua única vestimenta no cubículo quente e abafado. No momento em que percebeu o que estava fazendo, era tarde demais para impedir-se. Rendeu-se indefeso ao bombear e apertar dos próprios dedos. O suor vertia de cada poro e escorria por seus rijos músculos jovens. A haste que ele segurava entre os dedos era dura como osso e dotada de uma vida própria que pulsava.
O cheiro de Katinka encheu-lhe a cabeça. A mão andou mais depressa, porém não tão depressa como o coração. Ele sabia que aquilo era pecado e loucura. O pai o avisara, porém ele não conseguia parar. Remexeu-se no banco. Sentiu o oceano de seu amor por ela a pressionar o dique de sua contenção, como uma maré alta e irresistível. Sentiu o fluxo quente do jato pelas coxas retesadas, viu-o borrifar no convés, e depois seu odor almiscarado dissipou o sagrado perfume do cabelo de Katinka de suas narinas.
Jogou o corpo para trás, a suar e a ofegar baixinho, e deixou que as ondas de culpa e auto-reprovação o dominassem. Tinha traído a confiança do pai, a promessa que lhe fizera, e, com sua luxúria profana, conspurcara a pura e adorável imagem de uma santa.
Não poderia ficar na cabine um momento a mais. Enfiou-se no gibão de lona e correu escada acima para o tombadilho. Debruçou-se por um instante sobre a amurada, a respirar fundo. O ar salgado dissipou-lhe a culpa e a auto-reprovação. Sentiu-se mais firme e olhou ao redor para ter noção das redondezas.
O navio ainda estava de amura a bombordo, com o vento de través. Os mastros balançavam para trás e para a frente pela brilhante abóbada de estrelas. Ele podia apenas divisar a massa carrancuda de terra abaixo, a sotavento. A Grande Ursa pairava à largura de um dedo acima da silhueta escura da terra. Era um lembrete nostálgico da terra de seu nascimento e da infância que ele deixara para trás.
Ao sul, o céu era deslumbrante, a constelação do Centauro acima de seu ombro direito, o poderoso Cruzeiro do Sul a queimar no centro. Aquele era o símbolo do novo mundo além da Linha.
Olhou para o leme e viu o cachimbo do pai a luzir num canto protegido do tombadilho superior. Não queria encará-lo agora, pois tinha certeza de que a culpa e a depravação ainda estavam tão gravadas em suas feições, que o pai as reconheceria mesmo no escuro. Entretanto, sabia que o pai o vira e iria julgar estranho que não lhe prestasse respeito. Foi até onde ele estava, apressado.
- Sua indulgência, por favor, papai. Subi para respirar um pouco de ar e clarear minha cabeça - resmungou, incapaz de encontrar o olhar de Sir Francis.
- Não fique ocioso aqui em cima por muito tempo - advertiu-o seu pai. - Quero ver sua tarefa terminada antes que você assuma seu turno no topo do mastro.
Hal apressou-se em voltar. Aquele convés extenso ainda lhe era pouco familiar. Grande parte da carga e mercadorias da caravela não havia cabido dentro dos porões já atopetados do galeão, e estava espalhada sobre o convés. Ele abriu caminho entre barricas e baús e colubrinas de bronze.
Estava ainda tão imerso em remorso e culpa, que tinha pouca noção das coisas ao redor, até que ouviu um murmúrio baixo, conspiratório, por perto. Seus sentidos, lhe voltaram num ímpeto, e ele olhou para a proa.
Um pequeno grupo estava escondido nas sombras lançadas pela carga armazenada abaixo da elevação do castelo de proa. Seus movimentos furtivos o alertaram para algo fora do comum.
Depois do julgamento por seus pares, Sam Bowles e seus homens tinham sido levados para os tombadilhos inferiores do galeão e lançados num pequeno compartimento, que provavelmente deveria ser o armazém do carpinteiro. Não havia luz, e o ar era pouco. O cheiro forte de pimenta e água podre estagnada era sufocante, e o espaço tão confinado, que os cinco não poderiam se estirar ao mesmo tempo sobre o convés. Acomodavam-se o melhor que podiam naquele buraco do inferno, mergulhados num desolado silêncio desesperado.
- Em que lugar estamos? Abaixo da linha d'água, talvez? - perguntou Ed Broom, aflito.
- Nenhum de nós conhece o casco deste holandês - resmungou Sam Bowles.
- Você acha que vão nos matar? - indagou Peter Law.
- Pode ter certeza que não vão nos dar um abraço e um beijo - retrucou Sam.
- Passar pela quilha - sussurrou Ed. - Já vi isso ser feito. Quando arrastaram o infeliz por debaixo do navio e o tiraram do outro lado, ele estava afogado como um rato num barril de cerveja. Não havia muita carne em sua carcaça - fora arrancada pelas cracas sob o casco. Podiam-se ver seus ossos pulando para fora, brancos.
Pensaram naquilo por algum tempo. Então, Peter Law disse:
- Eu vi quando enforcaram e executaram os regicidas em Tyburn, em cinqüenta e nove. Depois, quando assassinaram o rei Carlos, o pai do Menino Negro. Abriram suas barrigas feito peixe, depois espetaram um gancho de ferro e o giraram até arrancar todas as entranhas e puxar seus intestinos para fora como cordas. Então deceparam seus pintos e suas bolas...
- Cale a boca! - esbravejou Sam, e eles mergulharam num abjeto silêncio, na escuridão uma hora mais tarde, Ed Broom murmurou:
- Tem ar vindo para cá de algum lugar. Posso sentir em meu pescoço Depois de um momento, Peter Law exclamou:
- Ele tem razão. Posso sentir também.
- O que existe por trás deste anteparo?
- Isso ninguém sabe. Talvez o porão da carga principal. Ouviu-se um som de apalpadelas, e Sam perguntou:
- O que está fazendo?
- Tem uma abertura no entabuamento aqui. É por onde o ar está entrando.
- Deixe-me ver. - Sam arrastou-se e, depois de alguns instantes, concordou: - Tem razão. Posso enfiar meus dedos pelo buraco.
- Se pudermos abri-lo...
- Se Daniel Grande o pegar, você estará metido num grande problema.
- O que pode fazer? Nos esquartejar? Ele já quer fazer isso. Sam trabalhou na escuridão por algum tempo e depois resmungou:
- Se eu tivesse alguma coisa para abrir essas pranchas...
- Estou sentado em algumas tábuas soltas.
- Vamos pegar um pedaço.
Estavam todos trabalhando juntos agora, e, por fim, forçaram a ponta de um pedaço rijo de madeira através da fenda no anteparo. Usando-a como alavanca, lançaram todo o peso em conjunto sobre ela. A madeira partiu-se com um estalo, e Sam enfiou o braço pela abertura. Havia espaço aberto além. Poderia ser um caminho para fora.
Todos se lançaram para a frente a fim de arrancar as bordas da abertura, quebrando as unhas e enterrando lascas de madeiras nas palmas das mãos, na pressa.
- Para trás! Recuem! - disse-lhes Sam, e esgueirou-se, cabeça primeiro, pela abertura. Logo que o ouviram rastejar do lado oposto, todos passaram pela fresta atrás dele.
Explorando o caminho adiante, Sam ficou sufocado quando o forte cheiro de pimenta queimou-lhe a garganta. Estavam no porão que continha as barricas de especiarias. Havia um pouco mais de luz ali: vinha pelas fendas onde as braçolas das escotilhas não estavam presas.
Mal podiam divisar os enormes barris, cada um mais alto que um homem, alinhados em fila, e não havia espaço para rastejar sobre o topo, pois o convés era muito baixo. Contudo, podiam se espremer entre eles, mas era uma passagem perigosa.
Os pesados barris balançavam ligeiramente com o movimento do navio. Raspavam e batiam nas tábuas do convés e se esfregavam nas cordas que os restringiam. Um homem poderia ser esmagado como uma barata se fosse pego entre eles.
Sam Bowles era o menor. Rastejou para a frente, e os outros o seguiram. De repente, um grito agudo ecoou pelo porão e os enregelou a todos.
- Quieto, seu estúpido bastardo! - Sam voltou-se, furioso. - Vai trazê-los até nós.
- Meu braço! - gritou Peter Law. - Tire isso de cima de mim. Um dos enormes barris se erguera com o balanço do casco e então descera outra vez, seu pleno peso a prender o braço do homem contra o convés. Ainda deslizava e batia sobre o membro, e eles podiam ouvir os ossos do antebraço e do cotovelo de Law a se espatifarem como trigo seco entre as pás de um moinho. Ele berrava, histérico, e não havia como calá-lo: a dor o deixava além de todo o raciocínio. Sam arrastou-se de volta e aproximou-se de seu lado.
- Cale essa boca! - Agarrou o ombro de Peter e puxou-o, tentando livrá-lo. Porém o braço estava prensado, e Peter berrou ainda mais alto.
- Não há nada a fazer - resmungou Sam, e, da cintura, puxou a corda que lhe servia de cinto. Passou um laço sobre a cabeça do homem e puxou o nó apertado contra sua garganta. Inclinou-se para trás, ancorando ambos os pés nas espáduas da vítima, e puxou com toda a força. Abruptamente, os berros agudos de Peter cessaram. Sam manteve o nó apertado por algum tempo depois que as convulsões terminaram, e finalmente soltou-o e voltou a amarrar a corda na cintura. - Tive de fazer isso - resmungou para os outros. - Melhor um morto que todos nós.
Ninguém falou, mas seguiram Sam quando este rastejou para a frente, deixando o cadáver estrangulado para ser esmagado pelos barris balouçantes.
- Dêem-me uma ajuda aqui - disse Sam, e os outros o impulsionaram para cima de uma das barricas abaixo da escotilha. - Não há nada além de um pedaço de pano entre nós e o convés agora - murmurou ele, triunfante, e estendeu a mão para tocar a cobertura esticada.
- Vamos lá, vamos dar o fora daqui - sussurrou Ed Broom.
- Ainda é dia claro lá fora. - Sam segurou o homem quando ele tentou soltar as cordas que seguravam a coberta de lona no lugar. -
Espere escurecer. Não vai demorar agora.
Gradualmente, a luz que se filtrava através das dobras em torno da coberta de lona amorteceu e findou. Podiam ouvir o sino do navio anunciando os turnos.
- Fim do último turno de vigia - disse Ed. - Vamos agora.
- Dê mais um tempo - insistiu Sam. Depois de outra hora, concordou. - Solte os panos.
- O que vamos fazer lá fora? - Agora que era hora de entrar em ação, eles estavam temerosos. - Você não está pensando em tomar o navio, está?
- Não, seu burro. Já tive o bastante de seu sanguinário capitão Franky. Vou encontrar alguma coisa que flutue e depois passar pela amurada. A terra não está distante.
- E os tubarões?
- O capitão Franky dá mordidas piores que qualquer amaldiçoado tubarão que você encontre lá fora.
Ninguém discutiu.
Livraram um canto das lonas, e Sam ergueu a abertura e espiou para fora.
- Tudo limpo. Há algumas barricas vazias de água ao pé do mastro de proa. Vão nos transformar em almofadinhas.
Ele se esgueirou de sob a lona e correu pelo convés. Os outros o seguiram, um de cada vez, e o ajudaram a soltar as amarras que seguravam os barris vazios no lugar. Em questão de segundo, tinham dois soltos.
- Juntos agora, camaradas - murmurou Sam, e eles rolaram o primeiro pelo convés. Ergueram o barril e o jogaram por sobre a amurada e em seguida correram de volta e pegaram um segundo.
- Ei! Vocês aí! O que estão fazendo?
A interpelação tão próxima os assustou, e todos voltaram as faces pálidas para trás. E reconheceram Hal.
- É a cria de Franky! - gritou um, e eles soltaram o barril e dispararam para o lado do navio. Ed Broom foi o primeiro a pular. Mergulhou de cabeça, com Peter Miller e John Tate por perto, logo atrás dele.
Hal levou um instante para se dar conta do que estavam prestes a fazer e em seguida avançou para interceptar Sam Bowles. Era o líder, o mais culpado da turma, e Hal atracou-se a ele quando Sam chegou à amurada.
- Papai! - gritou, alto o bastante para que sua voz se espalhasse por todo o convés. - Papai, me ajude!
Peito a peito, eles se engalfinharam. Hal aplicou-lhe uma chave de cabeça, porém Sam lançou a cabeça para trás e depois a investiu para a frente na esperança de quebrar o nariz de Hal. Daniel Grande, contudo, havia ensinado a Hal esse golpe, e ele agiu com presteza: baixou a cabeça no peito de modo que seu crânio se chocasse com o de Sam. Ambos ficaram meio atordoados com o impacto e se soltaram das garras um do outro.
No mesmo instante, Sam arremessou-se para a amurada, mas, em seus calcanhares, Hal agarrou-o pelas pernas.
- Papai! - berrou de novo.
Sam tentou chutá-lo, mas Hal o segurou com firmeza. Então Sam olhou para cima e viu Sir Francis Courtney a descer do tombadilho superior. Sua espada estava desembainhada, e a lâmina reluzia à luz das estrelas.
- Segure firme, Hal! Estou chegando.
Não havia tempo para Sam livrar o cinto de corda da cintura e passar o laço pela cabeça de Hal. Então ele levantou as duas mãos e agarrouo pela garganta. Era um homem pequeno, porém seus dedos eram rijos do trabalho, duros como dardos de ferro. Achou a traquéia de Hal e bloqueou-a impiedosamente.
A dor sufocou Hal, e ele soltou as pernas de Sam. Segurou os punhos do homem, tentando romper o estrangulamento, porém Sam colocou um pé em seu peito, empurrou-o para trás e então saltou para o lado do navio. Sir Francis desferiu-lhe um golpe de espada enquanto corria, mas Sam abaixou-se e mergulhou pela amurada.
- O verme traiçoeiro vai se safar! - bradou Sir Francis. - Contramestre, chame todas as mãos para virar o navio de bordo. Vamos voltar para pegá-los.
Sam Bowles foi ao fundo pela força com que atingiu a água, e o choque do frio tirou-lhe o ar dos pulmões. Sentiu-se afogar, porém lutou e arrastou-se para cima. Por fim, sua cabeça apontou à superfície, e ele sorveu o ar a plenos pulmões, sentindo o atordoamento e a fraqueza nas pernas passarem.
Ergueu os olhos para o casco do navio, a rolar majestosamente por ele; depois, foi ficando na esteira, que brilhava escorregadia e oleosa à luz das estrelas. Aquele era o caminho que iria guiá-lo para a barrica, Precisava segui-lo antes que as ondas o deixassem sem sinais de orientação no escuro. Seus pés estavam descalços, e ele usava apenas uma camisa de algodão rasgada e os calções de lona, o que não poderia lhe atrapalhar os movimentos. Diferentemente da maioria de seus camaradas, era um grande nadador.
Depois de umas doze braçadas, ouviu uma voz na escuridão por perto.
- Ajude-me, Sam Bowles! - Reconheceu os gritos de Ed Broom. - Dê-me uma ajuda, companheiro, ou estou acabado.
Sam parou de bracejar e, à luz das estrelas, viu os borrifos que Ed levantava ao se debater. Além dele, viu algo mais a se erguer na crista de uma onda escura, alguma coisa preta e redonda.
A barrica!
Ed, porém, estava entre ele e aquela promessa de sobrevivência. Sam começou a nadar de novo, mas se desviando de Ed Broom. Era perigoso chegar muito perto de um homem a se afogar, pois ele poderia segurálo e pendurar-se em você com uma garra mortal, até que você fosse levado para baixo com ele.
- Por favor, Sam. Não me abandone. - A voz de Ed se tornava mais fraca.
Sam alcançou a barrica flutuante e agarrou-se no batoque protuberante. Descansou um momento e em seguida assustou-se, quando outra cabeça apontou ao lado.
- Quem é? - ofegou.
- Sou eu, John Tate - falou o nadador, cuspindo a água do mar enquanto tentava encontrar um ponto de apoio no barril.
Sam soltou a corda do cinto da cintura. Usou-a para fazer um laço em torno do batoque e passou o braço por ela. John Tate agarrou-se ao laço também.
Sam tentou empurrá-lo.
- Solte! É meu. - Mas o aperto de John era desesperado com o pânico, e, depois de um minuto, Sam deixou-o ficar. Não poderia se permitir perder as próprias forças em disputa com um homem maior.
Penduravam-se juntos na corda numa trégua hostil.
- O que aconteceu a Peter Miller? - perguntou John Tate.
- O patife do Peter Miller - debochou Sam.
A água era fria e escura, e ambos imaginaram o que poderia estar espreitando-os debaixo de seus pés. Um bando dos monstruosos tubarões-tigre sempre seguia o navio naquelas latitudes, para pegar o lixo e os resíduos das barricas de latrina que eram esvaziados pela amurada. Sam vira uma daquelas pavorosas criaturas tão grande como a pinaça do Lady Edwina e pensou sobre aquilo naquele momento. Sentiu seu corpo se encolher e tremer de frio e do pavor daquelas filas serrilhadas de dentes ao se fecharem para dividi-lo em dois, como ele poderia morder uma maçã madura.
- Olhe! - John Tate sufocou-se quando uma onda o atingiu na face e inundou-lhe a boca aberta.
Sam ergueu a cabeça e viu uma sombra montanhosa e escura assomar na noite, perto dali.
- Franky sanguinário volta para nos encontrar - resmungou ele, entre os dentes que batiam. Olharam, com horror, quando o galeão rumou para eles, crescendo de tamanho a cada segundo, até que parecia apagar todas as estrelas, e eles já podiam ouvir as vozes dos homens no tombadilho.
- Vê alguma coisa, mestre Daniel? - Era a voz de Sir Francis.
- Nada, capitão. - O brado de Daniel Grande veio da proa. Ao olhar para a água negra e turbulenta, seria quase impossível distinguir a madeira escura da barrica ou as duas cabeças boiando ao lado.
Bowles e Tate foram atingidos pela onda de proa que o galeão provocou ao passar e deixados a girar e boiar na esteira, enquanto a lanterna de popa reluzia na escuridão.
Duas vezes mais durante a noite, eles viram aquele brilho, porém de cada vez o navio passou longe deles. Muitas horas mais tarde, quando a luz da madrugada se anunciou, eles procuraram com ansiedade pelo Resolução, porém a embarcação não estava em lugar algum à vista. Deviam tê-los dado como afogados, retomando o galeão seu curso original. Entorpecidos de frio e fadiga, eles se penduravam no precário suporte.
- Lá está a terra - murmurou Sam, quando uma vaga os ergueu mais ao alto e eles puderam divisar o litoral sombrio da África. - Está tão perto que você poderia nadar até lá com facilidade.
John Tate não deu resposta, mas encarou-o num silêncio hostil através dos olhos vermelhos e inchados.
- É sua melhor chance. Um camarada forte e jovem como você.
Não se preocupe comigo. - A voz de Sam estava rouca do sal.
- Não vai se livrar assim tão fácil de mim, Sam Bowles - resmungou John entre dentes.
Sam caiu em silêncio outra vez, preservando as forças, pois o frio o solapara até quase o limite. O sol subiu mais alto e ambos o sentiram nas cabeças, primeiro como um calor suave e depois como as chamas de uma fornalha aberta que lhes cozinhava a pele e os aturdia e cegava com seu reflexo no mar em torno.
O sol subira, porém a terra não ficara mais próxima: a corrente os empurrava inexoravelmente em paralelo às pontas rochosas e às praias brancas. Sam percebeu vagamente um retalho da sombra de nuvens que passou perto deles, a se mover escura sob a superfície da água. Então a sombra virou e voltou, a se mover contra o vento, e Sam agitou-se e ergueu a cabeça. Não havia nenhuma nuvem no doloroso azul do Armamento capaz de lançar tal sombra. Sam olhou para baixo outra vez e concentrou toda a atenção naquela presença sombria no mar. Uma vaga ergueu a barrica tão alto que ele pôde enxergar abaixo.
- Doce Jesus! - gaguejou, pelos lábios rachados de sal. A água estava tão clara como uma garrafa de gim, e ele via uma grande forma malhada se mover ao fundo, as listras zebradas sobre as costas. Soltou um berro.
John Tate ergueu a cabeça.
- O que foi? O sol te pegou, Sam Bowles. - Fitou os olhos arregalados de Sam e depois virou a cabeça lentamente para seguir-lhe o olhar. Ambos viram o maciço rabo em forcado a girar vigorosamente de lado a lado, a empurrar o longo corpo para a frente. Subia para a superfície, e a ponta da alta barbatana dorsal corria pela água apenas com a largura do dedo de um homem, o resto ainda oculto na profundeza abaixo.
- Tubarão! - sibilou John Tate. - Tigre! - Começou a dar chutes frenéticos, tentando virar o barril para interpor Sam entre si e a criatura.
- Fique imóvel - esbravejou Sam. - Ele é como um gato. Se se mexer, ele vem para cima de você.
Podiam ver os olhos do bicho, pequenos para tanta circunferência e comprimento de corpo. Estavam implacavelmente fixos neles, ao iniciar o próximo círculo. O tubarão fez uma volta e rodeou de novo, cada círculo a se estreitar, com a barrica no centro.
- O bastardo está nos caçando como uma fuinha a uma perdiz.
- Cale essa boca. Não se mova - murmurou Sam, embora sem poder mais controlar seu terror. Seu esfíncter soltou-se, e ele sentiu o fétido calor escorrer sob seus calções quando seus intestinos se esvaziaram involuntariamente.
Imediatamente os movimentos da criatura se tornaram mais excitados, e seu rabo batia num ritmo mais rápido para provar os excrementos. A barbatana dorsal ergueu-se à sua plena altura acima da superfície, tão longa e curvada como a lâmina de uma foice de ceifar.
O rabo do tubarão bateu na superfície branca e espumosa, a impulsionálo para a frente, até que seu focinho chegou ao lado da barrica. Sam viu, aterrorizado, a miraculosa transformação daquela cabeça escorregadia. O lábio superior abaulou-se e projetou-se para fora conforme as largas mandíbulas se abriam. As fileiras de dentes foram lançadas para a frente, abertas em leque, e se chocaram contra o lado da barrica de madeira.
Ambos os homens entraram em pânico e se agarraram desesperadamente à barrica danificada, tentando erguer a parte inferior do corpo para fora da água. Gritavam agora incoerentemente, a cravar as unhas às cegas nas aduelas e um no outro.
O tubarão recuou e iniciou outro daqueles terríveis círculos. Abaixo do olho fixo, a boca era um sorridente crescente. As pernas agitadas dos homens que se debatiam lhe dava um novo foco agora, e ele investiu de novo, suas costas largas a abrir as águas.
O grito estridente de John Tate morreu abruptamente, mas sua boca ainda estava escancarada, de modo que Sam olhou para baixo de sua garganta rosada. Nenhum som vinha dela, apenas um suave sibilar de respiração expelida. Então, John foi puxado para baixo da superfície. Seu punho esquerdo ainda estava enfiado no laço da corda, e, conforme foi puxado para baixo, a barrica bamboleou e imergiu feito cortiça.
- Solte! - berrou Sam enquanto era levado num giro, a corda a se enterrar em seu próprio punho. De súbito, a barrica subiu à superfície, o pulso de John Tate ainda torcido no laço. Uma nuvem de um rosado escudo espalhou-se pela superfície ao redor.
Então a cabeça de John saltou para fora. Ouviu-se um som estridente de um grasnido, e seu cuspe sanguinolento espirrou nos olhos de Sam. O tubarão veio de volta e, por baixo da superfície, agarrou a parte inferior do corpo de John, a sacudi-lo e dilacerá-lo de tal maneira, que a barrica danificada foi novamente empurrada para baixo. Ao saltar mais uma vez para a superfície, Sam respirou fundo e puxou o pulso de John.
- Saia! - gritou, tanto para o homem como para o tubarão. - Fique longe de mim! - Com a força de um louco, soltou o laço e chutou o peito do outro homem, livrando-se dele, enquanto gritava o tempo todo: - Dê o fora!
John Tate não resistiu. Seus olhos ainda estavam arregalados, e embora Os lábios se mexessem, nenhum som vinha deles. Sob a superfície, seu corpo fora arrancado abaixo da cintura, e o sangue manchava as águas de um vermelho tinto. O tubarão o abocanhou mais uma vez e depois nadou para longe, a engolir bocados da sua carne.
A barrica danificada estava tomada de água e agora flutuava baixo, porém isso lhe dava uma estabilidade que lhe faltava quando girava leve no alto. Na terceira tentativa, Sam arrastou-se para cima dela. Enroscou braços e pernas, a cavalgá-la. O equilíbrio da barrica era precário, e ele não se atreveu a erguer nem mesmo a cabeça, com medo de emborcar e ser rolado de volta no mar. Depois de um tempo, viu a grande barbatana dorsal passar diante de seus olhos, como se a criatura voltasse mais uma vez à barrica. Não ousou erguer a cabeça para seguir os círculos que se estreitavam, e então fechou os olhos para tentar calar a mente da presença do bicho.
De repente, a barrica deu guinadas sob ele, e sua resolução foi esquecida. Seus olhos se arregalaram e ele soltou um guincho estridente. Porém, depois de morder a madeira, o tubarão se afastava. Duas vezes mais retornou, a cada vez cutucando a barrica com o focinho grotesco. Contudo, cada tentativa era menos determinada, talvez porque houvesse saciado o apetite na carcaça de John Tate e estivesse agora desencorajado pelo gosto e pelo cheiro das lascas de madeira. Por fim, Sam o viu fazer a volta e se afastar, a barbatana alta a oscilar de lado a lado conforme ele nadava, corrente acima.
Sam jazia imobilizado, agarrado à barrica, cavalgando o ventre salgado do oceano, a subir e cair em seus empuxos como um amante exausto. A noite se fechou e, agora, ele não conseguiria se mexer mesmo que quisesse. Caiu em delírio e acessos de esquecimento.
Sonhou que era manhã novamente, que sobrevivera à noite. Sonhou que ouvia vozes humanas por perto. Sonhou que, quando abrira os olhos, vira um grande navio, a se aproximar de lado. Sabia que era fantasia, pois, no espaço de doze meses, não mais que duas dezenas de navios rodearam aquele cabo remoto no fim do mundo. No entanto, enquanto observava, um bote fora baixado do lado do navio e rumava para ele. Apenas quando sentiu mãos rudes a lhe segurarem as pernas, deu-se conta, aparvalhado, de que aquilo não era nenhum sonho.
O Resolução tomou o rumo de terra com apenas um conjunto de velas e a tripulação a postos para a ordem de derriçá-las e enrolá-las nos mastros. Os olhos de Sir Francis desviaram-se do velame para a terra à frente. Ouviu com atenção o canto do líder conforme ele girava a linha e deixava o peso cair adiante da proa. Assim que o navio passou por ela, e a linha esticou-se de cima abaixo, ouviu o sonoro;
- Profundidade vinte!
- Ápice da maré em uma hora. - Hal ergueu os olhos da lousa. - E lua cheia em três dias. Vai subir mais.
- Obrigado, piloto - disse Sir Francis, com um toque de sarcasmo. Hal estava apenas cumprindo seu dever, mas o garoto não era o único a bordo que se debruçava por horas sobre o almanaque e as tabelas. Então Sir Francis enterneceu-se. - Suba ao topo do mastro, rapaz. Mantenha os olhos bem abertos.
Ficou a observá-lo subir pelas enxárcias e depois relanceou os olhos para o leme e disse, baixinho:
- Um ponto a bombordo, mestre Ned.
- Um ponto a bombordo, capitão. - Com os dentes, Ned moveu o cano de seu cachimbo vazio de um canto da boca para o outro. Ele também vira o branco ondular dos recifes à entrada do canal.
A terra estava tão perto agora, que eles podiam avistar os galhos das árvores que cresciam altaneiras na ponta rochosa que guardava a entrada.
- Firme no curso - disse Sir Francis, à medida que o Resolução avançava por entre aqueles imponentes rochedos. Ele nunca vira aquela entrada marcada em nenhuma carta que apreendera ou comprara. Aquela costa era descrita sempre como proibida e perigosa, com poucas ancoragens seguras por umas mil milhas ao norte, da baía da Mesa até Boa Esperança. Contudo, conforme o Resolução se lançava mais ao fundo do verde canal de água, uma ampla e adorável lagoa se abria adiante dele, rodeada de todos os lados por colinas elevadas, densamente cobertas de florestas.
- Lagoa do Elefante! - Hal exultou, no topo do mastro. Fazia dois meses desde a última vez que tinham zarpado daquele porto secreto. Como se para justificar o nome que Sir Francis dera àquela enseada, ouviu-se um trombetear da praia, abaixo da floresta.
Hal riu de prazer ao divisar na praia quatro imensas silhuetas acinzentadas. Estavam ombro a ombro numa sólida fila, a encarar o navio, as orelhas abertas em leque. Suas trombas se erguiam retas ao alto, as narinas na ponta a investigar o ar à procura do cheiro daquela estranha aparição que viam se aproximar na sua direção. O elefante macho levantou suas presas amarelas e sacudiu a cabeça até as orelhas baterem como as lonas rasgadas de uma vela mestra desdobrada. Trombeteou de novo.
Na proa do navio, Aboli devolveu a saudação, erguendo a mão sobre a cabeça e berrando no idioma que só Hal poderia entender.
- Eu o vi, velho sábio. Vá em paz, pois sou de seu totem e não pretendo lhe fazer mal.
Ao som de sua voz, os elefantes recuaram da beira d'água e depois se voltaram como um só e rumaram de volta à floresta numa corrida arrastada. Hal riu de novo, das palavras de Aboli e ao observar os grandes animais se afastarem, atropelando e sacudindo a floresta com seu porte maciço.
Então, concentrou-se mais uma vez em divisar os bancos de areia e baixios, e em gritar as direções ao pai, no tombadilho superior. O Resolução seguiu o sinuoso canal pela extensão da lagoa até chegar a um largo poço esverdeado. A última sobra de suas velas foi derreada e enrolada nas vergas, e a âncora lançada para a profundeza. A nau rodou gentilmente e deu um esticão ao cabo de âncora.
Jazia apenas a quarenta e cinco metros da praia, escondida atrás de uma pequena ilha na lagoa, de maneira que estava oculta do escrutínio casual de um navio em trânsito que tentasse divisá-la pela entrada entre as pontas. Dificilmente poderiam deixá-la antes que Sir Francis gritasse suas ordens:
- Carpinteiro! Monte e lance as pinaças.
Antes do meio-dia, a primeira ordem era baixada do convés para a água, e dez homens desceram para ela com seus pertences num saco sujo. Daniel Grande assumiu o encargo dos remadores, que os levaram pela lagoa e os colocaram em terra ao pé das pontas rochosas. Através da luneta, Sir Francis observou-os subir a trilha íngreme dos elefantes até o topo. Dali poderiam manter vigia e avisá-lo da aproximação de qualquer vela estranha.
- Amanhã moveremos as colubrinas para a entrada e as assentaremos em embasamento de pedra para cobrir o canal - disse ele a Hal. - Agora, celebraremos nossa chegada com peixe fresco para o nosso jantar. Tire os anzóis e as linhas. Leve Aboli e quatro homens com você na outra pinaça. Desenterre alguns caranguejos da praia e me traga de volta uma carga de peixe para o rancho do navio.
De pé na proa enquanto a pinaça era remada para dentro do canal, Hal espiou a água. Era tão clara que ele podia ver o fundo arenoso. A lagoa abundava de peixes, e cardume após cardume se afastava veloz ante o bote. Muitos eram tão compridos como um braço, alguns tão longos como a extensão de dois braços abertos.
Quando ancoraram na parte mais profunda do canal, Hal deixou cair uma linha de mão pelo lado do barco, os anzóis recheados de siris que ele tirara de seus buracos na praia arenosa. Antes que tocasse o fundo, a isca foi puxada com tanta força, que, assim que ele tentou segurá-la, a linha abrasou-lhe os dedos. Inclinando-se para trás, contra a linha, ele a trouxe, mão após mão, e puxou um corpo lustroso do mais puro prateado a se debater por sobre a borda.
Enquanto o bicho ainda espanejava sobre o convés e Hal lutava para arrancar o anzol de seu lábio elástico, Aboli gritou de excitação e puxou a própria linha. E antes que pudesse suspender seu peixe por sobre a borda, todos os outros marinheiros estavam rindo e forcejando para puxar a pesca pesada para bordo.
Em questão de uma hora, o convés estava repleto de peixes mortos e toda a tripulação lambuzada até as sobrancelhas de escamas e muco viscoso. Mesmo as mãos mais rijas e calosas das cordas sangravam, queimadas pelas linhas e com os cortes das barbatanas agudas. Não era mais uma diversão, porém trabalho duro, manter a cascata invertida de prata viva a escorrer pelos lados da embarcação.
Pouco antes do pôr-do-sol, Hal ordenou uma pausa, e eles remaram de volta em direção ao galeão ancorado. Estavam ainda a noventa metros dele, quando, num impulso, Hal levantou-se na popa e arrancou suas roupas cobertas de muco. Nu como nascera, equilibrou-se no banco do remador e gritou para Aboli:
- Siga em frente e descarregue a carga. Vou a nado daqui.
Não se banhava fazia quase dois meses, desde a última vez que tinham ancorado na lagoa, e ansiava pela sensação da água clara e fria sobre a pele. Concentrou energias e mergulhou. Os homens na amurada do galeão gritaram palavrões de encorajamento, e até mesmo Sir Francis parou e ficou a observá-lo com indulgência.
- Deixe-o estar, capitão. É ainda um garoto despreocupado - disse Ned Tyíer. - E que é tão grande e alto que algumas vezes nos esquecemos disso. - Ned estava com Sir Francis por tantos anos, que poderia ser desculpado por tal familiaridade.
- Não há lugar para um rapaz irrefletido na guerre de course. Isso é trabalho de homem e necessita de uma cabeça firme mesmo no mais jovem dos ombros, ou haverá um nariz holandês para aquela cabeça insensata. - Porém, não fez esforço para reprimir Hal, ao observar aquele corpo nu e branco a deslizar pela água, flexível e ágil como o de um golfinho.
atinka ouviu a comoção no tombadilho acima, e ergueu os olhos do livro que lia. Era um exemplar de Gargantua e Pantagruel,
Ãkde François Rabelais, que fora impresso particularmente em Paris, com ilustrações eróticas belamente detalhadas, coloridas a mão e naturais. Um jovem que conhecera em Amsterdã antes de seu casamento apressado o enviara a ela. Por experiência íntima e chegada, ele lhe conhecia bem os gostos. Ela relanceou os olhos preguiçosamente pela janela e seu interesse se acendeu. Deixou cair o livro e inclinou-se para ver melhor.
- Lieveling, seu marido - advertiu-a Zelda.
- Para o diabo com meu marido - exclamou Katinka, ao rumar para a galeria de popa e proteger os olhos contra os raios oblíquos do sol poente.
O jovem inglês que a capturara estava de pé na popa de um pequeno bote, não muito distante, nas águas da tranqüila lagoa. Enquanto ela observava, ele arrancou a roupa suja e rasgada, até que estava nu e sem qualquer vergonha, a se equilibrar com graça no banco do remador.
Quando jovem, ela acompanhara o pai à Itália. Lá, subornara Zelda para que a levasse a ver a coleção de esculturas de Michelangelo, enquanto seu pai se reunia com os sócios mercadores italianos. Passara quase uma hora naquela tarde abafada parada diante da estátua de Davi.
Sua beleza despertara nela um turbilhão de emoções. Era a primeira representação de nudez masculina que vira, e tinha mudado sua vida.
Agora, olhava para outra escultura de Davi, mas essa não era em mármore frio. Claro, desde o primeiro encontro na cabine, ela vira o rapaz muitas vezes. Ele espreitava seus passos como um bichinho de estimação muito afeiçoado. Sempre que ela deixava a cabine, ele aparecia como por milagre, a olhá-la como no mundo da lua, à distância. Aquela adoração transparente provocava nela nada mais que um ligeiro divertimento, pois não estava acostumada a menos de cada homem entre as idades de quatorze e dezoito anos. Mal dispensava mais que um olhar para aquele rapaz bonito vestido de trapos largos e sujos. Depois do primeiro e violento encontro, o cheiro dele se impregnara em sua cabine, tão fortemente que ela mandara Zelda espargir perfume para dissipálo. Então, porém, ela descobrira por amarga experiência que todos os marinheiros fediam, pois não havia água no navio a não ser para beber, e em pouca quantidade.
Agora que o rapaz se livrara daquela roupa malcheirosa, tornara-se uma coisa de surpreendente beleza. Embora seus braços e a face fossem bronzeados pelo sol, seu torso e as pernas eram talhados num puro branco sem manchas. O sol baixo ressaltava as curvas e os ângulos de seu corpo, e os cabelos escuros escorriam-lhe pelas costas. Seus dentes eram muito brancos na face queimada, e sua risada tão musical e cheia de uma tal satisfação, que lhe trouxe um sorriso aos lábios.
Então olhou para baixo, e sua boca abriu-se de espanto. Os olhos violeta se estreitaram e se tornaram calculistas. As linhas doces de sua face assumiram um ar de frustração. Ele não era mais um rapazinho. A barriga era lisa, estriada por uma musculatura fina e jovem como as areias de uma duna esculpida pelo vento. Na base, florescia um arbusto escuro de pêlos crespos, e os genitais rosados penduravam-se cheios e pesados, com uma autoridade que faltava àquele Davi de Michelangelo.
Quando mergulhou na lagoa, ela pôde seguir cada movimento dele sob a água clara. Ele veio à superfície e, rindo, sacudiu o cabelo ensopado da face com um meneio da cabeça. As gotas em voo luziram como o sagrado aro de luz em torno da cabeça de um anjo.
Ele avançou na direção de onde ela se postava, no alto da popa, a deslizar pela água com uma graça peculiar que Katinka não notara que ele possuía, quando vestido nos trapos de lona. Passou quase que diretamente abaixo de onde ela estava, alheio a seu escrutínio. Ela podia divisar os nós da coluna flanqueados por estrias de musculatura dura que corria para baixo, a se mesclar com a profunda depressão entre as nádegas firmes e redondas, que se apertavam eroticamente a cada golpe das pernas, como se fizesse amor com a água ao passar.
Katinka se debruçou no gradil para segui-lo com os olhos, porém ele nadou para longe de sua vista, contornando a popa. Ela franziu os lábios de frustração e foi pegar o livro. Mas as ilustrações nele tinham perdido seu encanto, pálidas contra o contraste da carne verdadeira e da lustrosa pele jovem.
Ela se sentou com o livro aberto no colo e imaginou aquele corpo duro todo branco e reluzente sobre ela, as nádegas firmes se apertarem e mudarem de forma conforme ela enterrava as unhas agudas na carne rija. Sabia por instinto que ele era virgem - podia quase lhe sentir o cheiro de castidade, doce como o mel, e sentiu-se a sorvê-lo como uma vespa a uma fruta madura. Seria sua primeira vez com um inocente sexual.
O pensamento acrescentou uma pitada de pimenta à beleza natural do rapaz.
Seus devaneios eróticos eram agravados pelo longo período de forçada abstinência, e ela recostou-se e comprimiu as coxas juntas, com força, começando um balanço gentil para trás e para a frente na cadeira, a sorrir secretamente para si mesma.
Hal passou as próximas três noites acampado na praia, abaixo do pontal de areia. Seu pai o colocara como responsável por levar os canhões para a praia e por construir os embasamentos de pedra para abrigá-los, dominando a estreita entrada da lagoa.
Sir Francis, naturalmente, remara até lá para aprovar os locais que o filho escolhera, porém nem mesmo ele pôde encontrar falha para a visão de Hal de um campo de fogo que poderia arrasar um navio inimigo que procurasse passar pelas pontas de areia.
No quarto dia, quando o trabalho estava terminado e Hal remava de volta pela lagoa, viu de longe que o trabalho de reparos no galeão estava a pleno vapor. O carpinteiro e seus companheiros tinham construído plataformas sobre a popa, a partir das quais ajustavam novas tábuas para substituir aquelas danificadas pelo tiroteio, para grande desconforto dos hóspedes a bordo. A deselegante guindola, erguida pelo capitão holandês para tomar o lugar do mastro principal destruído pelo vendaval, fora posto abaixo, e as linhas do galeão mostravam-se desajeitadas e pouco harmoniosas com um mastro em falta.
Contudo, quando Hal subiu para o convés pelo enfrechate, viu que Ned Tyler e sua turma içavam os toros maciços de madeira exótica que constituíam a parte mais pesada da carga do navio e as baixavam para a lagoa, para flutuarem até a praia.
O mastro de reserva estava armazenado no fundo do porão, onde o compartimento selado continha os baús de moeda e de lingotes. A carga tivera de ser removida para se chegar lá.
- Seu pai está procurando por você - disse Aboli a Hal, e Hal apressou-se a atender.
- Você perdeu três dias de seus estudos enquanto estava em terra - disse-lhe Sir Francis, sem preâmbulos.
- Sim, papai. - Hal sabia que era inútil argumentar que não se evadira dos deveres deliberadamente. Porém, pelo menos não me desculparei por isso, resolveu, em silêncio, e encarou o olhar do pai sem pestanejar.
- Depois de seu jantar desta noite, tomarei de você o catecismo da ordem. Venha até minha cabine aos sinos das oito, no segundo turno de vigia.
O catecismo de iniciação para a Ordem de São Jorge e do Santo Graal jamais fora escrito, e, por aproximadamente quatro séculos, as duzentas questões e respostas esotéricas eram passadas boca a boca; o mestre a instruir o noviço na Estrita Observância.
Sentado ao lado de Aboli no convés de proa, Hal devorou biscoitos quentes fritos em gordura e peixe fresco assado. Agora, com um ilimitado suprimento de lenha e comida fresca à mão, as refeições do navio eram substanciais. Hal estava silencioso enquanto comia. Em sua mente repassava o catecismo, pois seu pai seria rígido no julgamento. Tão logo o sino do navio bateu e conforme a última nota se desvanecia, Hal bateu à porta da cabine do pai.
Enquanto o pai se sentava à escrivaninha, Hal se ajoelhou nas pranchas nuas do convés. Sir Francis usava o manto de seu posto sobre os ombros, e em seu peito reluzia o magnífico selo de ouro, a insígnia de um Cavaleiro Nautonnier que passara por todos os graus da ordem. Representava o leão de patas dianteiras levantadas da Inglaterra segurando em suspenso a croix pattée e, acima dele, as estrelas e a lua crescente da deusa-mãe. Os olhos do leão eram de rubis, e as estrelas, de diamantes. No segundo dedo de sua mão direita, Sir Francis usava um estreito anel de ouro, gravado com uma bússola e um sextante, os instrumentos de um navegador, e, acima deles, um leão coroado. O anel era pequeno e discreto, não tão ostentoso como o selo.
Seu pai conduziu o catecismo em latim. O uso desse idioma assegurava que somente homens educados e letrados eram capazes de se tornar membros da ordem.
- Que é você? - Sir Francis fez a primeira pergunta.
- Henry Courtney, filho de Francis e Edwina.
- Qual é seu objetivo aqui?
- Venho me apresentar como acólito da Ordem de São Jorge e do Santo Graal.
- De onde vem?
- Do mar oceânico, pois esse é meu início e ao meu final será minha mortalha. - Com esta resposta, Hal reconhecia as rotas marítimas da ordem. As próximas cinqüenta questões tratavam de compreensão pelo noviço da história da ordem.
- Quem veio antes de você?
- Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. - Os Cavaleiros do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal eram os ucessores para a extinta Ordem dos Cavaleiros Templários.
Depois disso, Sir Francis fez Hal descrever em linhas gerais a históia da Ordem; no ano de 1312, os Cavaleiros Templários haviam sido atacados e destruídos pelo rei de França, Filipe, o Belo, em conivência com seu fantoche, o papa Clemente V, de Bordeaux. A vasta fortuna em ouro e prata em lingotes e as terras foram confiscadas pela coroa, e a maioria deles fora torturada e queimada na estaca. Entretanto, avisados por seus aliados, os marinheiros templários esgueiraram-se de suas amarrações idos portos do canal francês e se fizeram ao mar. Rumaram para a Inglaterra e procuraram a proteção do rei Eduardo II. Desde então, tinham aberto suas lojas na Escócia e Inglaterra sob novos nomes, porém com os dogmas lásicos da ordem intactos.
A seguir, Sir Francis fez o filho repetir as palavras arcanas de reconhecimento, e o aperto de mãos que identificava os cavaleiros uns para os outros.
- In Arcadia habito. Moro na Arcádia - entoou Sir Francis, e debruçou-se sobre Hal para tomar sua mão direita no aperto duplo. - Flumen sacrum bene cognosco! Conheço bem o rio sagrado! - etrucou Hal com reverência, entrelaçando o dedo indicador com o do pai, em resposta.
- Explique o significado dessas palavras - insistiu seu pai.
- É nosso pacto com Deus e cada um dos outros. O templo é Arcádia, e nós somos o rio.
O sino do navio tocou duas vezes à passagem das horas, antes que as duzentas questões fossem perguntadas e respondidas, e Hal tivesse permissão de se levantar dos joelhos.
Quando chegou à pequena cabine, Hal estava cansado demais até mesmo para acender a candeia e afundou todo vestido em seu catre para jazer ali num estupor de exaustão mental. As perguntas e respostas do catecismo ecoavam, num refrão sem fim, por seu cérebro fatigado, até que significado e realidade pareceram se retirar.
Foi então que ouviu leves sons de movimento vindos de além do anteparo, e, miraculosamente, seu cansaço se desvaneceu. Sentou-se, os sentidos voltados para a outra cabine. Não iria acender o candeeiro, pois o som da pederneira no aço iria atravessar o painel. Rolou para fora do catre e, no escuro, moveu-se silencioso nos pés descalços até o anteparo.
Ajoelhou-se e correu os dedos levemente pela junta entre as placas até encontrar o pino que lá pusera. Removeu-o em silêncio e colocou o olho no orifício.
Seu pai permitia que, todo dia, Katinka van de Velde e a criada, com Aboli para guardá-las, fossem para terra e caminhassem pela praia por uma hora. Naquela tarde, enquanto as mulheres estavam longe do navio, Hal aproveitara a ocasião para se esgueirar até sua cabine. Usara a ponta do punhal para alargar o buraco no anteparo. Depois, enfiara um pino de madeira para fechar e esconder a abertura.
Agora, estava cheio de culpa, porém não conseguia se controlar. Colocou o olho no buraco alargado. Sua visão para a pequena cabine além estava desimpedida. Um alto espelho veneziano estava afixado ao anteparo do lado oposto a ele, e, em seu reflexo, podia ver claramente as outras áreas da cabine que, não fora o espelho, estariam escondidas de sua vista. Era evidente que aquela cabine menor era um anexo da maior e mais esplêndida cabine principal. Parecia servir como quarto de vestir e um lugar de retiro onde a esposa do governador poderia tomar seu banho e proceder à toalete íntima e particular. A banheira estava assentada no centro do convés, uma tina pesada de cerâmica em estilo oriental, os lados decorados com cenas de paisagens montanhosas e florestas de bambu.
Katinka estava sentada num banco baixo do outro lado da cabine, e sua criada lhe penteava os cabelos com uma das escovas com cabo de prata. A cabeleira lhe caía até a cintura, e cada escovada a fazia luzir à luz da lamparina. Usava um vestido de brocado, duro, com bordados em ouro, mas Hal maravilhou-se por seus cabelos serem mais brilhantes que os fios do precioso metal.
Olhou para ela, em transe, tentando memorizar cada gesto daquelas mãos brancas e cada movimento delicado da adorável cabeça. O som da voz e a risada suave de Katinka eram um bálsamo para seu corpo e mente exaustos. A criada terminou a tarefa e afastou-se. Katinka levantou-se do banco, e o ânimo de Hal se anuviou, pois ele supôs que ela fosse pegar a lamparina e sair da cabine. Em vez disso, porém, ela veio em sua direção. Embora ela passasse fora da linha direta de sua visão, ele podia ver o seu reflexo no espelho. Havia apenas a espessura do painel entre os dois agora, e Hal teve receio de que ela pudesse notar sua respiração ofegante.
Pregou o olho no reflexo quando ela se inclinou e ergueu a tampa do gabinete de higiene que estava preso ao lado oposto do anteparo ao qual Hal se comprimia. De súbito, antes que ele se desse conta do que Katinka pretendia, ela ergueu as saias acima da cintura e, no mesmo movimento, empoleirou-se como um pássaro no assento do gabinete.
Continuou a rir e conversar com a criada enquanto a urina escorria para dentro do urinol, embaixo. Quando se levantou outra vez, Hal teve mais um relance das longas pernas antes que as saias caíssem sobre elas e Katinka se retirasse graciosamente da cabine.
Hal jogou-se no catre duro, as mãos enlaçadas no peito, e tentou dormir. Porém, as imagens da beleza de Katinka o atormentavam. Seu corpo queimava, e ele rolou, sem cessar, de um lado para o outro.
- Serei forte! - murmurou alto, e fechou os punhos até os nós dos dedos estalarem. Tentou arrancar a visão da mente, mas ela zunia em seu cérebro tal como um enxame de abelhas zangadas. Mais uma vez ouviu, em sua imaginação, a risada de Katinka a misturar-se com o tinido alegre que sua urina produzira no urinol, e não pôde resistir mais. Com um gemido de culpa, capitulou, e levou as duas mãos ao membro inchado e pulsante.
Assim que a carga de madeira foi erguida para fora do porão principal,o mastro de reserva pôde ser içado para o tombadilho. Era um trabalho que requeria a metade da guarnição do navio.
O vergalhão maciço era quase tão comprido como o galeão e teve de ser cuidadosamente manobrado de seu lugar de descanso no ventre do porão. Foi derriçado na água e deixado a flutuar pelo canal e depois arrastado para a praia. Lá, numa clareira sob a larga abóbada da floresta, os carpinteiros assentaram os cavaletes e começaram a desbastá-lo e modelá-lo, para que pudesse ser fincado no casco a fim de substituir o mastro destruído pelo vendaval.
Somente quando o porão ficou vazio, Sir Francis pôde chamar toda a tripulação para testemunhar a abertura do compartimento do tesouro que as autoridades holandesas tinham deliberadamente coberto com a carga mais pesada. Era prática comum da VOC proteger seus bens mais valiosos dessa maneira. Várias centenas de toneladas de estorvos empilhadas sobre a entrada do quarto forte impediriam mesmo os mais determinados ladrões de mexer em seu conteúdo.
Enquanto a tripulação se amontoava na abertura da escotilha, Sir Francis e os contramestres desceram, cada um carregando uma lanterna acesa, e se ajoelharam no fundo do porão para examinar os lacres que o governador holandês de Trincomalee colocara na entrada.
- Os lacres estão intactos! - gritou Sir Francis, para tranqüilizar os espectadores, e eles soltaram um berro estridente.
- Quebre as dobradiças - ordenou a Daniel Grande, e o contramestre investiu contra a porta com vontade.
A madeira se espatifava e os parafusos de bronze gemiam conforme eram arrancados de seus assentos. O interior do quarto forte era apainelado com folhas de cobre, porém a barra de ferro de Daniel Grande penetrou pelo metal, e um zumbido de prazer brotou dos espectadores quando o conteúdo do compartimento foi revelado.
As moedas estavam acondicionadas em grossos sacos de lona, dos quais havia quinze. Daniel arrastou-os para fora e empilhou-os numa rede de carga que seria içada para o tombadilho. A seguir, os lingotes de ouro foram erguidos. Estavam colocados, dez de cada vez, em baús de madeira crua nas quais o número e o peso das barras haviam sido marcados com ferro quente.
Ao sair do porão, Sir Francis ordenou que tudo, a não ser dois sacos de moedas, fosse carregado para baixo, para sua cabine.
- Dividiremos apenas esses dois sacos de moedas agora - disse-lhes Sir Francis. - O resto de sua parte vocês receberão quando chegarmos em casa, na velha e querida Inglaterra. - Debruçou-se sobre os dois sacos restantes de moedas com uma adaga na mão e cortou a costura. Os homens uivaram como uma matilha de lobos quando um rio de moedas de prata de dez florins escorreu pelo convés.
- Não é preciso contá-las. Os cabeças-de-queijo fizeram esse trabalho por nós. - Sir Francis apontou para os números gravados nos sacos. - Cada homem dará um passo à frente quando seu nome for chamado - disse-lhes.
Com risadas excitadas e comentários irreverentes, os homens formaram filas. Conforme cada um era chamado, saltava adiante com o gorro estendido, e sua parte de florins de prata lhe era entregue.
Hal foi o único homem a bordo que não recebeu parte alguma do butim. Embora tivesse direito a uma cota de aspirante, uma centésima parte da porção da tripulação, quase duzentos florins, seu pai tomaria conta disso para ele.
- Não há tolo como um menino com prata ou ouro no bolso - explicara ele, com sensatez, a Hal. - Um dia, me agradecerá por guardar isso para você. - Então, voltou-se com fúria fingida para a tripulação. - Só porque são ricos agora, isso não quer dizer que eu não tenha trabalho para vocês - esbravejou. - O resto da carga pesada precisa ser transportado para terra antes que possamos levar a nau para a praia e virá-la de querena para limpar seu casco imundo e colocar o novo mastro e as colubrinas dentro dela. É trabalho suficiente para mantêlos ocupados por um mês ou dois.
Nenhum homem tinha permissão de ficar ocioso por muito tempo em qualquer navio de Sir Francis. Tédio era o inimigo mais perigoso que poderiam alguma vez encontrar. Enquanto um dos grupos prosseguia com o trabalho de descarga, ele mantinha os fora de turno ocupados. Nunca podiam esquecer que aquele era um navio de batalha e que deveriam estar prontos a qualquer momento para enfrentar um inimigo desesperado.
Com as escotilhas abertas e as enormes barricas de especiarias a serem içadas para fora, não havia espaço no tombadilho para exercício de armas, de maneira que Daniel Grande levou os homens fora de turno para a praia. Ombro a ombro, formavam filas e praticavam conforme o manual de armas. Brandir o alfanje - dar uma cutilada para a esquerda, investir e recuar, uma cutilada à direita, investir e recuar - até que o suor escorria deles e todos arquejavam por fôlego.
- Basta com isso! - disse-lhes Daniel Grande por fim, porém eles não estavam liberados ainda.
- Um assalto ou dois de luta agora, só para aquecer o sangue - gritou ele, e caminhou entre eles, emparelhando homem a homem, escolhendo um par pelo tamanho do cangote e os empurrando um contra o outro, como se fossem galos de briga na rinha.
Logo, a praia estava coberta por pares de homens em luta, aos gritos, nus até a cintura, a erguer e arrancar um ao outro dos pés e a rolar na areia branca.
Parada entre a primeira fileira de árvores da floresta, Katinka e sua criada observavam com interesse. Aboli postava-se poucos passos atrás delas, encostado ao tronco de uma das gigantes árvores de madeira amarela da floresta.
Hal era parceiro de um marujo mais velho que ele, de uns vinte anos. Eram da mesma altura, porém o outro era mais pesado que uma rocha. Ambos se engalfinharam num aperto de pescoço e ombro conforme dançavam num círculo, tentando forçar um desequilíbrio ou dar um gancho de tornozelo para lançar o oponente no chão.
- Use o quadril. Jogue-o sobre o seu quadril! - murmurou Katinka, enquanto observava Hal. Estava tão absorta no espetáculo, que, inconscientemente cerrou os punhos e batia com eles nas próprias coxas, de excitação, conforme incitava Hal, suas faces mais rosadas que o pote de ruge ou o calor poderiam fazê-lo.
Katinka adorava ver homens ou animais atracados um ao outro. A cada oportunidade, seu marido tinha de acompanhá-la às touradas e brigas de galo ou às competições de caça ao rato com cães terriers.
- Sempre que o vinho tinto é derramado, minha adorável queridinha está feliz. - Van de Velde se sentia orgulhoso do pendor incomum da esposa por esportes sanguinários. Ela nunca perdia um torneio de épée, e sempre apreciara a prática inglesa de boxe com os punhos nus. Contudo, luta corpo a corpo era uma de suas diversões favoritas, e Katinka conhecia todos os golpes e quedas.
Agora, estava encantada com os movimentos graciosos do rapaz e impressionada com sua técnica. Podia afirmar que ele fora bem instruído, pois, embora o oponente fosse mais pesado, era mais rápido e mais forte. Usava o peso do oponente contra o próprio, e o homem mais velho tinha de grunhir e bater os pés para se recobrar dos golpes conforme Hal o forçava ao limite do equilíbrio. Na próxima investida, Hal não ofereceu qualquer resistência, mas cedeu ao impulso do oponente, caindo de costas e ainda mantendo o aperto. Ao atingir o chão, interrompeu a própria queda com um arco das costas, ao mesmo tempo lançando os calcanhares na barriga do adversário para se catapultar sobre a cabeça. Enquanto o mais velho jazia atordoado, Hal rodeouo para montar em suas costas e enterrar-lhe a face no chão. Agarrou o rabo-de-cavalo do homem e forçou-lhe o rosto contra a areia branca e fina, até que ele bateu no chão com ambas as mãos, em sinal de rendição.
Hal soltou-o e saltou de pé com a agilidade de um gato. O marujo ergueu-se de joelhos, ofegante e cuspindo areia. Depois, inesperadamente, arrojou-se sobre Hal logo quando este começava a se afastar. Pelo canto do olho, Hal percebeu o giro do punho fechado na direção de sua cabeça e desviou-se do golpe, porém não com suficiente rapidez.
O soco deslizou-lhe pela face, arrancando um borrifo de sangue de uma narina. Ele agarrou o pulso do oponente quando este chegou ao limite da extensão, torceu o braço do marujo para trás e depois ergueu-lhe o punho na direção das espáduas. O marujo esgoelou de dor conforme era forçado a ficar na ponta dos pés.
- Pelo leite de Maria, mestre John, mas você deve gostar do gosto de areia. - Hal colocou um pé descalço sobre as costas do homem e o empurrou, cabeça primeiro, para se esparramar na praia mais uma vez.
- Está ficando muito esperto e atrevido, mestre Hal! - Daniel Grande caminhou para ele, testa franzida, e sua voz saiu áspera enquanto ele tentava esconder o prazer diante do desempenho do pupilo. - Da próxima vez, eu lhe darei um par mais duro. E não deixe o capitão ouvir essa sua blasfêmia sobre leite, ou será mais do que uma boa areia limpa da praia que você irá saborear.
Ainda rindo, deliciado com a aprovação mal escondida de Daniel e os urras de encorajamento dos outros lutadores, Hal cambaleou até a beira da lagoa e pegou uma concha de água nas mãos para lavar o sangue do lábio superior.
- José e Maria, mas ele adora vencer. - Daniel sorriu, por trás das costas de Hal. - Por mais que tente, o capitão Franky não dobrará esse aí. O velho cão gerou um filhote de seu próprio sangue.
- Quantos anos você acha que ele tem? - perguntou Katinka à criada, numa entonação reflexiva.
- Não sei com certeza - murmurou Zelda, com afetação. - É apenas uma criança.
Katinka meneou a cabeça, sorrindo, a relembrar-se do rapaz nu, de pé, na popa da pinaça.
- Pergunte a nosso cão negro de vigia.
Obediente, Zelda olhou para Aboli e perguntou-lhe, em inglês:
- Que idade tem o garoto?
- Idade bastante para aquilo que ela quer dele - resmungou Aboli, em sua própria língua, um ar intrigado na face ao fingir não entender. Naqueles últimos dias, enquanto a guardava, ele estudara aquela mulher de cabelos de sol. Reconhecera o luzir brilhante e predatório nas profundezas daqueles incríveis olhos cor de violeta. Ela observava um homem do jeito que um mangusto observa uma galinha gorda, e sustentava a cabeça numa afetação de inocência que era desmentida pelo devasso gingar de seus quadris debaixo das camadas de sedas brilhantes e rendas transparentes. - Uma prostituta é sempre uma prostituta, qualquer que seja a cor de seu cabelo, e não importa se vive numa cabana miserável ou no palácio de um governador. - A cadência profunda de sua voz era pontuada pelos cortes em staccato de seu sotaque tribal. Zelda voltou-se de costas para ele com um gesto de desdém.
- Animal estúpido. Não entende nada.
Hal saiu da beira d'água e subiu rumo às árvores. Levou a mão para um galho de árvore onde se pendurava sua camisa descartada. Seus cabelos ainda estavam molhados, e seu peito nu e ombros tinham manchas avermelhadas do rude contato da luta. Uma crosta de sangue ainda estava grudada à sua face.
A mão erguida na direção da camisa, ele ergueu os olhos, que encontraram o olhar violeta de Katinka, no mesmo nível. Até aquele momento, ele estivera alheio à presença da mulher. Instantaneamente, seu jeito arrogante se evaporou, e ele cambaleou para trás como se tivesse sido esbofeteado de surpresa. Um rubor escuro espalhou-se por sua face, ocultando as manchas de um rosado mais claro deixadas pelos socos de seu oponente.
Com frieza, Katinka correu o olhar pelo peito nu de Hal. E ele cruzou os braços, como se envergonhado.
- Tem razão, Zelda - disse ela, com um aceno displicente da mão. - Não passa de uma criança encardida - emendou, em latim, para ter certeza de ser compreendida. Hal fitou-a, com ar miserável, enquanto ! ela reunia as saias e, seguida por Aboli e a criada, caminhava regiamente pela praia até a pinaça que esperava.
Naquela noite, enquanto jazia no encaroçado catre de palha em seu estreito beliche, ele ouviu movimento, vozes suaves e risadas na cabine ao lado. Ergueu-se sobre um cotovelo. Então, recordou-se do insulto que ela lhe lançara com tamanho desdém.
- Não pensarei mais nela outra vez - prometeu a si mesmo, ao se afundar na enxerga e colocar as mãos sobre os ouvidos para bloquear a cadência ritmada daquela voz. Numa tentativa de afastá-la da mente, repetiu, baixinho: -In Arcadia habito. - Porém, passou-se um longo tempo antes que a exaustão lhe permitisse por fim cair num sono profundo, negro e sem sonhos.
Aponta da lagoa, quase a dois quilômetros e meio de onde o Resolução estava ancorado, um riacho de água doce e clara escorria através de uma estreita garganta para se misturar com as águas mais escuras, abaixo.
Conforme os dois botes se moviam lentamente contra a corrente, na boca da garganta, assustavam os bandos de aves aquáticas dos baixios para o ar. Erguiam-se numa cacofonia de grasnidos, guinchos e cacarejos, vinte diferentes variedades de patos e gansos em nada parecidas com quaisquer das que conhecessem do norte. Havia outras espécies também, com bicos de formas estranhas e longas pernas desproporcionais, a andar por ali, e garças, maçaricos e garças-reais que não eram semelhantes às suas correlatas inglesas, maiores ou mais brilhantes em plumagem. O céu estava escuro com o número delas, e os homens descansaram um momento sobre os remos para observar, atônitos, aquela multidão.
- É uma terra de maravilhas - murmurou Sir Francis, a olhar para o amplo espetáculo. - E, no entanto, exploramos apenas uma parte trivial dela. Que outras maravilhas jazem além daquele limiar profundo no interior, sobre o qual nenhum homem pôs os olhos?
As palavras do pai excitaram a imaginação de Hal e conjuraram mais uma vez as imagens de dragões e monstros que decoravam as cartas que ele estudava.
- Avante! - ordenou seu pai, e se inclinaram para os longos remos outra vez. Os dois estavam sozinhos no bote de vanguarda: Sir Francis puxava o remo de estibordo com um longo e poderoso impulso que combinava com o incansável remar de Hal. Entre eles estavam as barricas de água vazias, e enchê-las de novo era o propósito evidente daquela expedição à ponta da lagoa. A verdadeira razão, contudo, jazia no fundo, aos pés de Sir Francis. Durante a noite, Aboli e Daniel Grande carregaram os sacos de lona de moedas e os baús de lingotes de ouro da cabine e os esconderam sob um pano alcatroado no fundo do bote. Na proa, enfileiravam-se cinco barricas de pólvora e diversas armas, capturadas juntamente com o tesouro do galeão, alfanjes, pistolas e mosquetes, e sacos de couro de balas de chumbo.
Ned Tyler, Daniel Grande e Aboli seguiam de perto no segundo bote, os três da tripulação em quem Sir Francis confiava acima de todos os outros. Seu bote também estava carregado de barricas de água.
Assim que estavam bem dentro da desembocadura do riacho, Sir Francis parou de remar e debruçou-se sobre o lado para pegar uma concha de água e prová-la. Meneou a cabeça de satisfação.
- Pura e doce. - Gritou para Ned Tyler: - Comece a encher as barricas aqui. Hal e eu subiremos a corrente.
Conforme Ned manobrava o bote na direção da margem do rio, um brado selvagem e retumbante ecoou pela garganta. Todos ergueram os olhos.
- O que são essas criaturas? Serão homens? - indagou Ned. - Algum tipo de estranhos duendes cabeludos? - Havia medo e respeito em sua voz, enquanto olhava para as fileiras de formas humanóides que se alinhavam na borda do precipício, acima deles.
- Macacos - gritou Sir Francis, ao descansar o remo. - Como aqueles da Costa Bárbara.
Aboli deu uma risada e depois jogou a cabeça para trás, a voz a imitar com perfeição fidedigna o desafio do babuíno macho que liderava o bando. A maioria dos animais mais jovens saltou, ao som, e fugiu se arrastando pelo penhasco.
O enorme macaco macho aceitou o desafio. Debruçou-se nas quatro patas à beira do precipício e arreganhou a boca para mostrar um conjunto de terríveis presas brancas. Encorajados por aquela demonstração, alguns dos mais jovens retornaram e começaram a lançar pequenas pedras e cascalho para baixo. Os homens foram forçados a se inclinar e se desviar dos projéteis.
- Dê um tiro para dispersá-los - ordenou Sir Francis.
- Um bem longo. - Daniel tirou o mosquete da tipóia e soprou a ponta da mecha de queima lenta enquanto levava o cano ao ombro.
A garganta ecoou ao estouro de trovão, e todos explodiram em risadas diante das cabriolas dos macacos, que entraram em pânico com o tiro. A bala arrancou uma lasca da borda do penhasco, e os mais jovens do grupo deram um salto mortal para trás de espanto. As mães agarraram as crias, enfiaram-nas sob a barriga e escalaram a face íngreme da saliência, e mesmo o bravo macho abandonou a dignidade e juntou-se à correria por segurança. Em questão de segundos, o penhasco estava deserto e os sons da retirada motivada pelo terror se enfraqueceram.
Aboli saltou por sobre a borda do bote, a cintura mergulhada dentro do rio, e arrastou a embarcação para a margem, enquanto Daniel e Ned Tyler tiravam as tampas das barricas de água, para enchê-las. No outro bote, Sir Francis e Hal inclinaram-se sobre os remos e subiram corrente acima. Depois de uns novecentos metros, o rio se estreitava como um funil e os penhascos de ambos os lados se tornavam mais íngremes. Sir Francis parou para avaliar o ângulo de direção e depois girou o bote para debaixo do penhasco e levou a proa para se chocar com uma árvore morta que se pendurava de uma fenda na rocha. Deixando Hal no bote, saltou na estreita protuberância abaixo do rochedo e começou a escalá-lo. Não havia nenhuma trilha óbvia a seguir, mas Sir Francis se movia com confiança, apoiando mão após mão. Hal o observava com orgulho: a seus olhos, o pai, apesar de velho - deveria ter passado fazia tempo da venerável idade de quarenta anos -, subia as pedras com força e agilidade. De repente, quinze metros acima do rio, Sir Francis chegou a uma saliência invisível por debaixo e se arrastou por uns poucos passos nela. Então se ajoelhou para examinar a estreita fenda na face do penhasco; a abertura estava bloqueada por rochas caprichosamente assentadas. Ele sorriu com alívio ao perceber que estavam exatamente como as deixara, muitos meses antes. Com cuidado, puxou-as para fora da abertura e colocou-as de lado, até que a abertura se tornasse larga o bastante para ele agachar por ela.
A caverna além estava na escuridão, mas Sir Francis ficou de pé e levou a mão a uma prateleira de pedra acima de sua cabeça, onde tateou em busca da pederneira e do aço que lá deixara. Acendeu a candeia que trouxera consigo e então olhou ao redor, pela caverna.
Nada fora tocado desde sua última visita. Cinco baús estavam contra a parede dos fundos. Eram o butim do Heerlycke Nacht, a maioria em prata e uns cem mil florins em moeda, que serviriam como pagamento da guarnição holandesa em Batávia, na Indonésia. Um monte de equipamentos estava empilhado ao lado da entrada, e Sir Francis começou a trabalhar com eles de imediato. Custou-lhe quase meia hora para montar a pesada trave de madeira como um pórtico da saliência do lado de fora da entrada da caverna e depois baixar o guincho até o bote atracado lá embaixo.
- Amarre o primeiro baú - gritou ele para Hal.
Hal fez o que ele mandava, e seu pai içou a carga para cima, a roldana a guinchar a cada giro. O baú desapareceu, e uns poucos minutos mais tarde a ponta da corda era lançada para baixo e pendia onde Hal poderia alcançá-la. Ele amarrou nela o próximo baú.
Levou mais de uma hora para içarem todos os lingotes e sacos de moedas e empilhá-los no fundo da caverna. Então começaram a trabalhar com as barricas de pólvora e os fardos de armas. O último item a subir foi o menor: uma caixa dentro da qual Sir Francis colocara uma bússola e um sextante, um rolo de cartas náuticas tiradas do Standvastigheid pederneira e bastão de aço, um conjunto de instrumentos cirúrgicos num rolo de lona, e uma seleção de outros equipamentos que poderiam fazer a diferença entre a sobrevivência e uma morte demorada para um grupo detido naquela costa selvagem, inexplorada.
- Suba, Hal - gritou por fim Sir Francis, e Hal escalou o penhasco com a rapidez e facilidade de um dos jovens babuínos.
Quando alcançou seu pai, este estava sentado confortavelmente na estreita saliência, as pernas dependuradas, o cachimbo e o saco de tabaco nas mãos.
- Ajude-me aqui, rapaz. - Apontou com o cachimbo vazio para a fenda vertical na face do rochedo. - Feche aquilo de novo.
Hal passou outra meia hora colocando de volta as pedras soltas na entrada, para escondê-la e desencorajar os intrusos. Havia pouca probabilidade de que homens descobrissem o depósito secreto naquela garganta deserta, porém ele e o pai sabiam que os babuínos poderiam retornar. Eram tão curiosos e travessos como qualquer humano.
Quando Hal ia começar a descer o penhasco, Sir Francis o impediu, ao pousar-lhe a mão no ombro.
- Não há pressa. Os outros não terminaram de encher as barricas de água.
Sentaram-se em silêncio na saliência, enquanto Sir Francis acendia o longo cachimbo. Então, perguntou, por entre uma nuvem de fumaça.
- O que eu fiz aqui?
- Escondeu nossa parte do tesouro.
- Não apenas nossa parte, mas aquela da Coroa e de cada homem a bordo - Sir Francis corrigiu-o. - Agora, por que fiz isso?
- Ouro e prata são uma tentação mesmo para um homem honesto. - Hal repetia a ladainha que seu pai enfiara em sua cabeça muitas vezes antes.
- Não deveria eu confiar em minha tripulação? - perguntou Sir Francis.
- Se não confiar em nenhum homem, então ninguém irá desapontálo. - Hal repetiu a lição.
- Acredita nisso? - Sir Francis voltou-se para observar a face do filho à medida que ele respondia, e Hal hesitou. - Você confia em Aboli?
- Sim, confio nele - admitiu Hal, com relutância, como se aquilo fosse um pecado.
- Aboli é um bom homem, não há melhor. Porém, veja que nem mesmo a ele eu trago para este lugar - Sir Francis fez uma pausa e em seguida perguntou: - Confia em mim, rapaz?
- Claro.
- Por quê? Por certo sou um homem e lhe disse para não confiar em nenhum homem, não é assim?
- Porque o senhor é meu pai e eu o amo.
Os olhos de Sir Francis se nublaram e ele fez um gesto como se fosse afagar a face de Hal. Então, suspirou, deixou cair a mão e olhou para o rio, abaixo. Hal esperava que o pai o censurasse pela resposta, porém ele não o fez. Depois de uns instantes, Sir Francis formulou outra pergunta:
- E sobre as outras coisas que escondi aqui? A pólvora e as armas, as cartas marítimas e os assemelhados. Por que as coloquei aqui?
- Para um futuro incerto - retrucou Hal, com confiança; ouvira a pergunta muitas vezes antes. - Uma raposa esperta tem muitas saídas para sua toca.
Sir Francis concordou.
- Todos nós que velejamos na guerre de course estamos sempre em risco. Um dia, aqueles poucos baús podem valer nossas próprias vidas.
Seu pai ficou em silêncio outra vez enquanto fumava os últimos poucos fragmentos de tabaco no forno do cachimbo. Então, disse, baixinho:
- Se Deus for misericordioso, chegará o momento, talvez não muito distante no futuro, em que esta guerra com os holandeses terminará. Então voltaremos aqui e resgataremos nosso prêmio e rumaremos para casa, em Plymouth. Faz tempo que meu sonho é possuir a herdade de Gainesbury, cujas terras correm ao longo de High Weald... - Interrompeu-se, como se não se atrevesse a tentar o destino com tanta imaginação. - Se algum mal me abater, é preciso que você saiba e se recorde onde estão armazenados nossos ganhos. Será meu legado a você.
- Nenhum mal jamais interceptará o seu caminho! - exclamou Hal, agitado. Era mais um pedido que uma demonstração de convicção. Ele não conseguia imaginar uma existência sem aquela presença majestosa no seu centro.
- Nenhum homem é imortal - disse Sir Francis, com suavidade. - Todos devemos a Deus a morte. - Desta vez, ele permitiu que a mão pousasse brevemente sobre o ombro de Hal. - precisamos encher as barricas de água de nosso bote antes de escurecer.
Quando os botes desceram pela beira da lagoa escura, Aboli tomara o lugar de Sir Francis no banco do remador, e agora o pai de Hal sentava-se na popa, enrolado num manto escuro de lã contra o frio da noite. Sua expressão era remota e sombria. Enquanto trabalhava num dos longos remos, Hal podia estudá-lo de soslaio. Aquela conversa à boca da caverna deixara-o preocupado, com um pressentimento de má sorte adiante.
Imaginou que, desde que tinham ancorado na lagoa, seu pai tivesse elaborado o próprio horóscopo. Vira a carta do zodíaco, coberta com notações arcanas, a jazer aberta sobre a escrivaninha em sua cabine. Aquilo deveria contribuir para seu humor retraído e introspectivo. Como dissera Aboli, as estrelas eram seus filhos, e ele conhecia seus segredos.
De súbito, seu pai ergueu a cabeça e farejou o frio ar noturno. Então sua face mudou, à medida que examinava a borda da floresta. Nenhum pensamento negro poderia absorvê-lo a ponto de deixá-lo alheio às redondezas.
- Aboli, leve-nos para a margem, por favor.
Voltaram o bote em direção à estreita praia, e o segundo o seguiu. Depois que todos tinham saltado para a praia e atracado ambas as embarcações, Sir Francis deu uma ordem, em voz baixa:
- Tragam suas armas. Sigam-me, porém em silêncio. Conduziu-os para a floresta, a avançar com firmeza pela vegetação rasteira, até que parou de repente numa trilha batida. Olhou para trás para se certificar de que era seguido e em seguida apressou-se à frente.
Hal estava abismado com as ações do pai, até que sentiu um traço do cheiro de fumaça de madeira no ar e notou pela primeira vez a bruma azulada ao longo das copas da árvores da densa floresta. Deveria ter sido aquilo que alertara o pai.
De repente, Sir Francis pisou numa pequena clareira e estacou. Osquatro homens que já estavam lá não o notaram. Dois jaziam como cadáveres numa batalha, um ainda a segurar uma pesada garrafa marrom nos dedos inertes, o outro a babar fios de saliva do canto da boca enquanto roncava.
O segundo par estava completamente absorto pelas pilhas de florins de prata e dados de marfim que se espalhavam entre eles. Um apanhou um dado e sacudiu-o perto do ouvido antes de rolá-lo pelo retalho de terra batida. - Mãe de um porco! - resmungou. - Este não é meu dia de sorte. - Você não deveria falar com grosseria da dama que o deu à luz - disse Sir Francis, suavemente. - Porém, o resto do que disse é verdade este não é seu dia de sorte. Eles ergueram os olhos para seu capitão com incredulidade horrorizada, mas não tentaram resistir ou escapar quando Daniel e Aboli os ergueram nos pés e os prenderam com cordas, pescoço a pescoço, da maneira usada pelos negreiros.
Sir Francis avançou para inspecionar o alambique que se erguia no fundo da clareira. Tinham usado um pote de ferro preto para ferver a massa fermentada de biscoito velho e cascas, e um tubo de cobre roubado dos estoques do navio para a serpentina. Chutou a engenhoca, e a aguardente sem cor inflamou-se no braseiro sobre o qual estava o pote. Havia uma fila de garrafas cheias, fechadas com chumaços de folhas, debaixo de uma árvore de madeira amarela. Ele as pegou, uma de cada vez, e estourou-as contra o tronco. Ao se espatifarem, a exalação que se evaporava era tão acre, que produziu lágrimas nos olhos. Então Sir Francisvoltou até onde estavam Daniel e Ned, que haviam arrancado os bêbados a chutes de seu estupor, e arrastando-os pela clareira para amarrálos com os outros cativos.
- Daremos a eles um dia para dormir, mestre Ned. Então, amanhã, no começo do turno da tarde, reuniremos a guarnição do navio para testemunhar sua punição. - Olhou para Daniel Grande. - Creio que você ainda sabe manejar o azorrague, mestre Daniel.
- Por favor, capitão, não queríamos fazer mal algum. Só um pouco de diversão. - Tentaram se arrastar até onde ele estava, mas Aboli puxouos de volta como cães no laço.
- Eu não me ressinto com sua diversão - disse Sir Francis -, se você não se ressentir com a minha.
O carpinteiro tinha instalado uma fileira de quatro tripés no tombadilho superior, e os bêbados e jogadores foram ali amarrados pelos pulsos e tornozelos. Daniel Grande caminhou pela fila e lhes abriu as camisas do colarinho à cintura, para que suas costas nuas ficassem expostas. Eles pendiam indefesos nos laços como porcos atados na traseira de uma carroça de mercado.
- Cada homem a bordo sabe muito bem que não tolerarei bebedeiras e jogos, ambos uma ofensa e abominação aos olhos do Senhor. - Sir Francis dirigiu-se à guarnição reunida em filas solenes no centro do navio. - Cada homem a bordo sabe da punição. Cinqüenta chibatadas do azorrague. - Observou-lhes as faces. Cinqüenta vergastadas das tiras de couro cheias de nós poderiam mutilar um homem pela vida toda. Uma centena de golpes era uma sentença de morte certa e horrível. - Eles fizeram por merecer todas as cinqüenta. Contudo, lembro-me que esses quatro tolos lutavam bem neste próprio convés quando capturamos a embarcação. Ainda temos algumas batalhas duras diante de nós, e aleijados não são de utilidade para mim quando as colubrinas estiverem fumegando e os alfanjes desembainhados.
Parou para lhes examinar as faces e viu o terror do azorrague nos olhos de todos, mesclado com o alívio de que não fossem eles a estar amarrados nos tripés. Diferentemente dos capitães de muitos navios corsários, mesmo de alguns cavaleiros da ordem, Sir Francis não extraía prazer naquela punição. Contudo, não vacilava diante da necessidade. Comandava um navio cheio de homens rudes, desregrados, a quem escolhera a dedo pela ferocidade e que tomariam qualquer demonstração de bondade como fraqueza.
- Sou um homem misericordioso - disse-lhes, e alguém nas fileiras de trás soltou uma risadinha de escárnio. Sir Francis parou e, com um olhar glacial, fulminou o ofensor. Quando o culpado deixou pender a cabeça e arrastou os pés, ele continuou, suavemente: - Porém, estes malandros haveriam de testar minha misericórdia a seus limites.
Voltou-se para Daniel Grande, que se postava ao lado do primeiro tripé. Estava despido até a cintura, e seus músculos fortes salientavam-se nos braços e ombros. Amarrara para trás os longos cabelos grisalhos com um pedaço de pano, e de seu pulso marcado de cicatrizes, as tira do azorrague pendiam até as pranchas do convés como as serpentes da cabeça de Medusa.
- Quinze para cada um, mestre Daniel - ordenou Sir Francis -, mas penteie bem o seu chicote entre os golpes.
A menos que os dedos de Daniel separassem as tiras do azorrague depois de cada golpe, o sangue iria grudá-las e fechá-las num único instrumento pesado que cortaria a carne humana como uma cutilada de espada. Mesmo quinze chibatadas com um azorrague despenteado arrancariam a carne das costas de um homem até as vértebras da coluna.
- Que sejam quinze, capitão - aquiesceu Daniel, e, sacudindo o chicote para separar as tiras cheias de nós, deu um passo para a primeira vítima. O homem torceu a cabeça para observá-lo por sobre o ombro, a expressão pálida de medo.
Daniel ergueu o braço e deixou as tiras escorrerem por sobre o ombro; depois, com uma graça peculiar para um homem tão grande, girou-o para a frente. O chicote assobiou como o vento nas folhas de uma árvore alta e estalou alto na pele nua.
- Um! - cantou a tripulação em uníssono, enquanto a vítima guinchava de choque e agonia. O chicote deixou-lhe um padrão grotesco sobre as costas, cada linha vermelha crivada de estrelas de escarlate mais vivo onde os nós tinham rompido a pele. Parecia a ferroada das venenosas gavinhas de uma água-viva.
Daniel penteou seu chicote, e os dedos de sua mão esquerda ficaram lambuzados de sangue fresco e brilhante.
- Dois! - os observadores contaram, e o homem gritou de novo e se debateu nos laços, os pés a dançar uma dança de dor nas tábuas do convés.
- Alto com a punição! - gritou Sir Francis, ao ouvir uma ligeira comoção na ponta da guarnição, em direção às cabines na popa. Obedientemente, Daniel baixou o látego e esperou, enquanto Sir Francis caminhava para a escada.
O chapéu emplumado do governador van de Velde apareceu acima do rebordo, seguido por sua face gorda e corada. Ele ficou de pé, ofegante, à luz do sol, a enxugar a papada com um lenço de seda, e olhou ao redor. Sua face iluminou-se de interesse ao ver os homens que pendiam em fila nos tripés.
- Ja! Goed! Vejo que não estamos atrasados - disse, com satisfação. Logo atrás dele, Katinka emergiu da escotilha com um passo leve e ágil, as saias ao alto o bastante para revelar os sapatinhos de cetim bordados com aljôfares.
- Bom dia, Mijnheer - Sir Francis cumprimentou o governador com uma mesura superficial -, há uma punição em andamento. É um espetáculo impróprio para uma dama de criação delicada como a de sua esposa testemunhar.
- Realmente, capitão - Katinka riu enquanto intervinha -, não sou uma criança. Os céus sabem, há uma grande penúria de diversão a bordo deste navio. Pense, o senhor não recolheria nenhum resgate se eu morresse de tédio. - Bateu no braço de Sir Francis com o leque, porém ele se afastou daquele toque condescendente e dirigiu-se de novo ao marido dela.
- Mijnheer, creio que o senhor deveria acompanhar sua esposa até os alojamentos.
Katinka deu um passo entre ambos como se ele não tivesse dito nada e fez um gesto a Zelda para que a seguisse.
- Coloque meu banco lá, à sombra. - Espalhou as saias conforme se acomodava no banco e fez um beicinho para Sir Francis. - Ficarei tão quieta que o senhor nem mesmo saberá que estou aqui.
Sir Francis olhou zangado para o governador, mas van de Velde ergueu as mãos gorduchas num gesto teatral de impotência.
- Sabe como é, Mijnheer, quando uma bela mulher coloca seu coração em algo... - Postou-se atrás de Katinka e colocou uma das mãos numa pose orgulhosa e indulgente sobre os ombros dela.
- Não posso ser responsável pela sensibilidade de sua esposa, se ficar ofendida com o espetáculo - advertiu Sir Francis, num tom sombrio, aliviado pelo menos por seus homens não poderem compreender sua troca de palavras em holandês e ciente de que fora liberado para cuidar dos cativos.
- Creio que não precisa se preocupar profundamente. Minha esposa tem o estômago forte - murmurou van de Velde. Durante a temporada de trabalho em Kandy e Trincomalee, sua esposa jamais perdera as execuções que eram realizadas com regularidade no pátio do forte. Dependendo da natureza da ofensa, aquelas punições variavam desde ser queimado na estaca a ser marcado com ferro em brasa, garroteado e ter a cabeça decepada. Mesmo naqueles dias em que ela sofrera de dores da febre da dengue e, de acordo com as ordens do médico, deveria permanecer acamada, a carruagem de Katinka estava sempre estacionada em seu lugar costumeiro, com vista para o cadafalso.
- Então, isso será de sua inteira responsabilidade, Mijnheer - murmurou Sir Francis secamente, e voltou-se para Daniel.
- Prossiga com a punição, mestre Daniel - ordenou.
Daniel jogou para o alto o azorrague, por trás do ombro, e as tatuagens coloridas que decoravam seu grande bíceps pareceram ganhar vida própria.
- Três! - gritou a tripulação, e o látego cantou e estalou. Katinka retesou-se e inclinou-se para a frente em seu banco.
- Quatro!
Ela se assustou com o estalo do azorrague e com o grito alto de dor que se seguiu. Lentamente, sua face tornou-se pálida como um tolete de vela.
- Cinco!
Finas serpentes escarlates escorriam pelas costas do homem e encharcavam a cintura de seus calções de lona. Katinka deixou os longos cílios caírem até quase se fecharem para esconder o brilho dos olhos violetas.
- Seis!
Katinka sentiu uma minúscula gota de líquido atingi-la, como um único pingo de cálida chuva tropical. Desviou os olhos do corpo que se debatia e gemia no tripé, e olhou para as mãos graciosas.
Uma gota de sangue, que voara do látego encharcado, pousara em seu dedo indicador. Como um rubi colocado num precioso anel, luzia contra sua pele branca. Ela a cobriu com a outra mão em concha, e escondeu-a no colo, enquanto relanceava os olhos para as faces que a rodeavam. Cada olhar estava fixo em total fascinação no espetáculo medonho à frente. Ninguém vira o sangue espirrar nela. Ninguém a observava agora.
Ela ergueu a mão até os polpudos lábios macios como se num involuntário gesto de aflição. A ponta rosada de sua língua avançou e lambeu a gota de seu dedo. E Katinka saboreou o gosto metálico de sal. Recordou-a do esperma de um amante, e ela sentiu uma umidade viscosa a escorrer por entre as pernas, tanto que, quando esfregou as coxas apertadas, elas deslizaram uma contra a outra, escorregadias como enguias em acasalamento.
Haveria necessidade de alojamentos em terra enquanto o Resolução fosse submetido a manutenção na praia, seu casco limpo de sargaços e examinado em busca de qualquer sinal de teredo.
Sir Francis colocou Hal a cargo da construção do recinto que deveria acomodar os reféns. Hal tomou um cuidado especial com a cabana que abrigaria a esposa do governador, fazendo-a espaçosa e confortável, numa localização mais privativa e segura contra animais selvagens. Depois, fez seus homens construírem uma paliçada de ramos quebrados em torno de todo o recinto da prisão.
Quando a escuridão obrigou à interrupção do primeiro dia de trabalho, ele desceu para a praia da lagoa e ensopou-se nas águas cálidas e ligeiramente salgadas. Então esfregou o corpo com mãos cheias de areia molhada até que sua pele ardesse. Contudo, ainda se sentia maculado pela lembrança dos açoites que fora forçado a ver naquela manhã. Somente quando sentiu o odor hipnótico de biscoito quente a flutuar pela água, vindo da cozinha do navio, seu ânimo se alterou, e ele enfiou as pernas nas calças e correu pela praia para se escarranchar na pinaça que se afastava da praia.
Enquanto Hal estivera em terra, seu pai escrevera na lousa uma série de problemas navegacionais para ele resolver. Ele tomou a lousa sobre o braço, pegou uma caneca de peltre de cerveja, uma tigela de peixe cozido e, segurando o biscoito quente entre os dentes, desceu pela escada para a sua cabine, o único lugar no navio onde poderia ficar sozinho para se concentrar na tarefa.
De súbito, ergueu os olhos ao ouvir água a escorrer na cabine ao lado. Notara os baldes de água fresca sobre o braseiro na cozinha e rira quando o cozinheiro reclamara amargamente que seu fogo estava sendo usado para aquecer água de banho. Agora Hal sabia para quem aquelas panelas fumegantes haviam sido preparadas. Os tons guturais de Zelda chegavam a ele através do painel enquanto ela arengava com Oliver o criado de Sir Francis. A resposta de Oliver foi truculenta:
- Não entendo uma palavra do que diz, sua velha cadela pavorosa. Mas se não gosta, pode encher essa amaldiçoada banheira sozinha!
Hal riu consigo mesmo, meio divertido e meio ansioso, ao soprar o lampião e ajoelhar-se para remover o pino de madeira do orifício. Viu que a cabine estava cheia de nuvens de vapor, que embaçavam o espelho no anteparo do outro lado, de modo que tinha a visão restrita. Zelda estava enxotando Oliver da cabine quando Hal ajustou o olho na abertura.
- Tudo bem, sua velha rameira! - provocou-a Oliver, ao carregar com esforço os baldes vazios da cabine. - Não há nada que possa fazer que me mantenha aqui um minuto a mais.
Quando Oliver se foi, Zelda entrou na cabine principal, e Hal ouviu-a a conversar com a patroa. Um minuto mais tarde, ela precedia Katinka pela porta. Katinka parou ao lado da banheira fumegante e tocou de leve a água com a ponta dos dedos. Soltou uma exclamação aguda e puxou a mão. Zelda adiantou-se, apressada, pedindo desculpas, e jogou água fria na banheira, do balde que estava ao lado. Katinka testou a temperatura de novo. Desta vez, sacudiu a cabeça com satisfação e foi se sentar no banco. Zelda veio por detrás, ergueu-lhe a esplêndida cascata de cabelos com ambas as mãos para empilhá-lo no topo da cabeça de Katinka e prendê-lo com grampos ali, como um feixe de trigo maduro.
Katinka inclinou-se para a frente e, com a ponta dos dedos, abriu uma estreita clareira na superfície embaçada do espelho. Examinou a vinheta de si mesma naquele ponto limpo. Esticou a língua para fora para procurar algum traço de cobertura branca. Estava rosada como uma pétala de rosa. Então, arregalou os olhos e espiou nas profundezas, tocando a pele abaixo deles com a polpa do dedo.
- Olhe para essas rugas horríveis! - lamentou-se. Zelda negou com veemência.
- Não há uma única!
- Jamais quero ficar velha e feia. - A expressão de Katinka era trágica.
- Então é melhor morrer agora! - exclamou Zelda. - Esse é o único jeito de evitar isso.
- Que coisa horrível de se dizer. Você é tão cruel comigo - reclamou Katinka.
Hal não conseguia entender o que diziam, porém o tom daquela voz o tocou até as profundezas do ser.
- Ora essa - repreendeu-a Zelda. - A senhora sabe que é linda.
- Sou, Zelda? Você realmente pensa assim?
- Sim. E a senhora também. - Zelda ergueu-a nos pés. - Porém, se não se banhar agora, vai cheirar mal que é uma beleza.
Soltou os laços do vestido da patroa e, em seguida, postou-se atrás dela para lhe erguer o vestido por sobre os ombros, e Katinka ficou de pé, nua, diante do espelho. O arquejo involuntário de Hal foi abafado pelo painel e pelos pequenos estalos do casco do navio.
Daquele pescoço esguio até os tornozelos delicados, o corpo de Katinka formava uma linha de pureza de partir o coração. Suas nádegas salientavam-se em dois orbes perfeitamente simétricos, como um par de ovos de avestruz que Hal vira à venda nos mercados de Zanzibar. Porém, havia covinhas infantis, vulneráveis, no verso de seus joelhos.
A própria imagem de Katinka no espelho nublado era etérea e não poderia reter a atenção daquela mulher mimada por muito tempo. Ela se afastou e ficou de pé, de frente para a banheira. O olhar de Hal correu para os seios dela. Eram grandes para os ombros estreitos. Cada um deles poderia encher-lhe a mão em concha, e no entanto não eram perfeitamente redondos como esperava que fossem.
Fitou-os até que os olhos marejaram de lágrimas e ele foi forçado a piscar. Então, deixou o olhar escorregar para baixo, sobre a pequena porém fascinante protuberância daquela barriga, e para a indistinta nuvem de finos pêlos que se aninhavam entre aquelas coxas. A luz do lampião incidia sobre eles, que brilhavam como ouro puro.
Ela ficou um longo tempo assim, mais do que ele ousaria esperar que ela fosse capaz, a olhar para a banheira enquanto Zelda espargia óleo perfumado de uma garrafa de cristal na água e depois se ajoelhava para espalhá-lo com a mão. Katinka continuou de pé, seu peso apoiado numa perna, de maneira que sua pelve se inclinava num ângulo encantador, e havia um ligeiro sorriso enviesado em seus lábios quando ela ergueu a mão lentamente e tomou um dos mamilos entre o polegar e o indicador. Por um momento, Hal pensou que ela o encarava diretamente e começou a se afastar culposamente do orifício de vigia. Então percebeu que era uma ilusão, pois ela baixara os olhos e fitava a gorda amora que apontava entre seus dedos.
Ela mexeu no mamilo suavemente para trás e para a frente, e enquanto Hal olhava, incrédulo, ele mudava de cor e forma. Inchava-se e endurecia e ficava mais escuro. Hal jamais imaginara algo como aquilo - um pequeno milagre que deveria enchê-lo de reverência, mas que, em vez disso, dilacerava-lhe o ventre com as garras da luxúria.
Zelda ergueu os olhos da banheira que mexia, e quando viu o que sua patroa fazia, deu-lhe uma áspera reprimenda. Katinka riu e apontou-lhe a língua, mas deixou cair a mão e entrou no banho. Com um suspiro langoroso, sentou-se na água quente e perfumada, até que apenas o grosso rolo de cabelos dourados se mostrava acima da beirada da banheira.
Zelda debruçou-se sobre ela, ensaboando uma flanela, a esfregar e lavar, murmurando palavras afetuosas e rindo com as respostas da patroa. De súbito, girou nos calcanhares e deu outra instrução, ao que Katinka levantou-se e a água ensaboada caiu em cascata por seu corpo. Suas costas estavam voltadas para Hal, e agora as nádegas redondas brilhavam mais rosadas da água quente. Conforme as instruções de Zelda, ela se moveu para permitir que a velha lhe ensaboasse uma perna de cada vez.
Por fim, Zelda ergueu-se de pé e saiu da cabine. Tão logo ela se fora, Katinka, ainda no banho, olhou por sobre o ombro. Hal, outra vez, teve a culposa ilusão de que ela o fitava diretamente no olho que espiava. Foi apenas por um momento; então, num requebrar lento e voluptuoso, ela se ajoelhou e se inclinou para a frente. As nádegas mudaram de forma ao movimento. Katinka levou as duas mãos para baixo, sobre as reluzentes nádegas rosadas, e puxou-as para separá-las. Desta vez, Hal não pôde afogar o pequeno grito que lhe subiu aos lábios conformeprofunda depressão do traseiro se abria a seu fervente olhar.
Zelda irrompeu pela cabine com uma braçada de toalhas. Katinka endireitou-se, e aquela encantadora fenda fechou-se com firmeza, seus segredos escondidos mais uma vez do olhar de Hal. Saiu do banho, e Zelda envolveu-a com uma toalha pelos ombros que pendia até os tornozelos. Zelda soltou o rolo dos cabelos da patroa e escovou-os; em seguida, trançou-os numa grossa corda dourada. Estava atrás de Katinka e segurava um vestido para que ela pudesse enfiar os braços dentro das mangas, mas Katinka sacudiu a cabeça e deu uma ordem peremptória. Zelda protestou, mas Katinka insistiu e a criada jogou o vestido sobre o banco e deixou a cabine num claro amuo.
Quando a criada se fora, Katinka deixou a toalha cair sobre o convés e, nua mais uma vez, foi até a porta e colocou o pino da tramela no gar. Então, voltou e passou fora da vista de Hal. Ele viu um confuso borrão rosado de movimento no espelho embaçado, mas não conseguia saber ao certo o que ela estava fazendo, até que, abrupta e espantosamente, os lábios dela estavam a centímetros do lado oposto do buraco de espia e ela murmurava com voz perversa para ele:
- Seu piratinha sujo! - Falava em latim, e ele se encolheu como se ela tivesse jogado um balde de água fervente em sua face. Mesmo em sua confusão, no entanto, o insulto o espicaçou ao extremo, e ele respondeu, sem pensar:
- Não sou um pirata. Meu pai tem Cartas de Marca.
- Não ouse me contradizer! - De uma forma confusa, ela misturava latim, holandês e inglês. A entonação, porém, era aguda e ferina como um açoite.
De novo ele se viu incitado a responder.
- Não tinha intenção de ofendê-la.
- Quando meu nobre marido descobrir que você tem me espionado, irá até seu pai pirata, e você será flagelado no tripé como aqueles outros homens, esta manhã.
- Eu não a estava espionando...
- Mentiroso! - Ela não o deixou terminar. - Seu pirata sujo e falso. - Por um instante, ela arquejou entre os insultos.
- Eu só queria...
A fúria de Katinka se reacendeu.
- Sei o que você queria. Queria olhar para minha katjie... - ele sabia que era a palavra holandesa para gatinha - e depois pegar seu pinto e enfiá-lo...
- Não! - quase gritou Hal. Como ela soubera de seu segredo vergonhoso? Sentiu-se enojado e mortificado.
- Quieto! Zelda vai nos ouvir - sibilou ela de novo. - Se o pegarem, provará as chibatadas.
- Por favor - murmurou ele, de volta. - Não pretendia nenhum mal. Por favor, perdoe-me. Eu não queria isso.
- Então me mostre. Prove sua inocência. Mostre-me seu pinto.
- Não posso. - A voz de Hal tremeu de vergonha.
- Levante-se! Ponha-o perto do buraco para que eu possa ver se você está mentindo.
- Não. Por favor, não me faça fazer isso.
- Depressa, ou gritarei para que meu marido venha aqui. Lentamente, ele ficou de pé. O orifício de espia ficava quase exatamente no mesmo nível que seus genitais doloridos.
- Agora, mostre-me. Abra a virilha - estimulou-o a voz dela. Devagar, consumido de vergonha e constrangimento, Hal ergueu a camisa, e, antes que estivesse no alto, seu pênis pulou para fora como um rebento de árvore nova. Ele sabia que Katinka deveria estar nauseada e sem fala, de desgosto por ver uma coisa assim. Depois de um minuto de espesso e carregado silêncio que pareceu o mais longo de sua vida, ele começou a baixar a camisa.
Instantaneamente, ela o impediu com uma voz que pareceu a Hal tremer de repulsa, tanto que ele mal conseguia compreender as palavras em inglês distorcido.
- Não! Não procure cobrir sua vergonha. Essa sua coisa o condena. Ainda finge não ser culpado?
- Não - admitiu ele, miseravelmente.
- Então precisa ser punido - disse ela. - Devo contar a seu pai.
- Por favor, não faça isso - implorou ele. - Ele me matará com as próprias mãos.
- Muito bem. Terei de puni-lo eu mesma. Traga seu pinto mais para perto.
Obediente, ele impulsionou os quadris para a frente.
- Mais perto, para que eu possa alcançá-lo. Mais perto.
Ele sentiu a ponta do pênis distendido tocar a madeira rústica que rodeava o orifício de espia, e então, chocado, percebeu que dedos frios te fechavam sobre a ponta. Tentou puxá-lo, mas o aperto aumentou, e a voz de Katinka soou, aguda:
Fique quieto!
Katinka ajoelhou-se na antepara e puxou-lhe a glande pela abertura; e então, soltou-a sob a luz do lampião. Estava tão inchada que quase não conseguia caber no buraco.
- Não, não puxe - disse-lhe ela, com voz severa e zangada, enquanto o segurava com um aperto mais firme.
Hal, obediente, relaxou e cedeu à insistente pressão dos dedos de Catinka, permitindo que ela puxasse todo o comprimento do pênis pela abertura.
Katinka olhou para o membro, fascinada. Na idade dele, ela não esperava que fosse tão grande. A cabeça intumescida era do púrpura brilhante de uma ameixa madura. Ela puxou o prepúcio solto, como um capuz de monge, e então empurrou a pele para trás de novo, tão longe quanto conseguiu. A cabeça pareceu inchar mais, a ponto de explodir, e Katinka sentiu aquele eixo duro pulsar em suas mãos.
Repetiu o movimento, lentamente para a frente e depois para trás, e ouviu-o gemer além do painel. Era estranho, mas quase se esquecera do garoto. Aquele boneco anatômico que segurava nas mãos tinha uma vida e uma existência próprias.
- Esta é sua punição, seu garoto sujo e sem-vergonha.
Katinka podia ouvir as unhas de Hal rasparem na madeira, à medida que sua mão começou a voar para trás e para a frente ao longo de todo o comprimento daquele membro, como se ela estivesse manejando a lançadeira de um tear.
Aconteceu mais depressa do que ela esperava. O jato quente e viscoso contra seus seios foi tão forte que a espantou, porém ela não se afastou.
Depois de algum tempo, disse:
- Não pense que o perdoei ainda pelo que fez a mim. Sua penitência apenas começou. Compreende?
- Sim. - A voz de Hal soou entrecortada e rouca.
- Você precisa fazer uma abertura secreta nesta parede. - Ela bateu na antepara com o nó dos dedos. - Soltar este painel para que possa passar por ele e vir até a mim e eu possa puni-lo com mais severidade. - Compreende?
- Sim - ofegou ele.
- Precisa esconder a abertura. Ninguém mais deve saber.
- É minha impressão - disse Sir Francis a Hal - que sujeira e doença têm uma peculiar afinidade uma com a outra. Não sei por que seria assim, mas é. Respondia à cautelosa indagação do filho sobre a razão de levar a efeito a onerosa e detestável operação de fumigar o navio. Com toda a carga fora dele e a maioria da tripulação alojada em terra, Sir Francisestava determinado a tentar livrar o casco de vermes. Parecia que cada fenda na madeira pululava de piolhos e os porões estavam abarrotados de ratos. A cozinha estava coberta de pelotas pretas de excrementos, eNed Tyler informara ter encontrado algumas das carcaças fedorentasI e inchadas a apodrecer nas barricas de água.
Desde o dia da chegada na lagoa, um grupo na praia queimava lenha e recolhia as cinzas para obter a barrela, e Sir Francis mandara Aboli para a floresta a fim de procurar por aquelas ervas especiais que sua tribo usava para manter as cabanas livres de vermes nojentos. Agora, um grupo de marinheiros esperava no convés de proa, armados combaldes da substância cáustica.
- Quero cada fenda e junta do casco esfregado, mas sejam cuidadosos- advertiu-os Sir Francis. - O fluido corrosivo pode queimara pele de suas mãos... - Interrompeu-se abruptamente. Cada cabeça abordo se voltou em direção às distantes pontas rochosas, e cada homem na praia parou o que estava fazendo e inclinou a cabeça para escutar.
O estouro nítido de um canhão ecoou dos penhascos à entrada dalagoa, e o som reverberou pelas águas calmas da extensa baía.
- Esse é o sinal de alarme do vigia nas pontas, capitão - gritouNed Tyler, e apontou pela água para onde um penacho de fumaça branca ainda flutuava sobre um dos locais que guardavam a entrada. Enquanto olhavam, uma pequena bola preta pairou no ar no topo do mastro improvisado no cume da ponta de terra a oeste e, depois, desfraldou-se numa bandeira vermelha de formato de cauda de andorinha. Era o sinal geral de alarme, e só poderia significar que uma vela estranha estava à vista.
- Chamar a postos, mestre Daniel! - ordenou Sir Francis, secamente. - Destranque os baús de armas e arme a tripulação. Vou para a entrada. Quatro homens para remar o escaler, e o restante assuma seus postos de batalha em terra.
Embora sua face continuasse inexpressiva, no íntimo ele estava furioso que tivesse se permitido ser surpreendido assim, com os mastros desenfurnados e todos os canhões fora do casco. Voltou-se para Ned Tyler. - Quero os prisioneiros levados para terra e colocados sob sua mais estrita guarda, bem longe da praia. Se souberem que há um navio estranho na costa, isso pode lhes dar a idéia de tentar atrair atenção.
Oliver subiu pela escada com a capa de Sir Francis no braço. Enquanto a espalhava por sobre os ombros do patrão, Sir Francis terminou de distribuir suas ordens. Então se voltou e seguiu para a amurada de embarque ao longo da qual jazia o escaler e Hal esperava, receoso de que pudesse não receber ordem para se juntar a ele. Ali, seu pai não poderia ignorá-lo.
- Muito bem, então - esbravejou Sir Francis. - Venha comigo. Posso precisar desses seus olhos. - E Hal correu para o cabo de amarração e soltou-o no momento em que o pai pisava no escaler.
- Puxem até estourarem as entranhas! - disse Sir Francis aos homens nos remos, e o escaler deslizou pela lagoa.
Sir Francis saltou pelo lado e vadeou até a praia abaixo do penhasco com a água a lhe chegar ao topo das botas altas. Hal teve de correr para alcançá-lo na trilha do elefante. Pararam no topo, cem metros acima da lagoa, com vista total para o oceano. Embora o vento que os esbofeteava nas alturas tivesse chutado o mar numa massa confusa de ondas que se quebravam em rendas, os olhos agudos de Hal divisaram os salpicos mais claros que persistiam entre as efêmeras cristas brancas antes que o vigia pudesse apontá-las a ele.
Sir Francis olhou pela luneta.
- O que acha? - indagou a Hal.
- Há dois navios - respondeu Hal.
- Vejo apenas um ... não, espere! Você tem razão. Há outro, um pouco mais para o leste. É uma fragata, não acha?
- Três mastros - Hal protegeu os olhos com a mão -, e plenamente aparelhados. Eu diria que é uma fragata. A outra embarcação ainda está muito distante. Não posso lhe dizer o tipo. - Doía a Hal admitir isso, e ele estreitou os olhos em busca de algum outro detalhe. - Ambos rumam diretamente para nós.
- Se pretendem seguir para Boa Esperança, então precisam mudar de rumo em breve - murmurou Sir Francis, sem baixar a luneta. Todos observavam ansiosamente.
- Pode ser um par de mercantes holandeses ainda em tráfego para oeste - sugeriu Hal, esperançoso.
- Então por que estariam num curso tão próximo de uma praia a sotavento? - perguntou Sir Francis. - Não, parece muito mais estarem rumando direto para a entrada. - Fechou a luneta com um baque. - Vamos! - Num trote, ele liderou a descida pela trilha até onde o escaler esperava na praia. - Mestre Daniel, rume para as baterias do lado oposto. Assuma o comando lá. Não abra fogo até que eu o faça.
Ficaram a observar o escaler deslizar rapidamente pela lagoa e ser enfiado pelos homens de Daniel numa cova estreita onde ficava escondido da vista. Então, Sir Francis rumou para a plataforma de artilharia no penhasco e deu uma curta série de ordens aos homens que se dobravam sobre as colubrinas com as mechas de queima lenta.
- A meu comando, atirem no navio líder. Uma salva de tiro redondo - disse-lhes. - Mirem para a linha-d'água. Depois, carreguem com palanqueta e derrubem os cordames. Não haverão de tentar manobrar nesses canais estreitos com metade das velas abatida. - Saltou para o parapeito da plataforma e olhou para o mar pela entrada estreita, porém as naus que se aproximavam ainda estavam escondidas da vista pelos penhascos.
De súbito, da ponta oeste do cabo surgiu um navio a todo pano. Estava a menos de duas milhas de terra, e, mesmo enquanto a observavam em consternação, alterou o curso e ajustou as vergas, rumando diretamente para a entrada.
- Seus canhões estão corridos, então é por uma briga que estão procurando - disse Sir Francis, muito sério, ao sair do parapeito. - E nós lhe daremos isso, rapazes.
- Não, papai - gritou Hal. - Eu conheço aquele navio.
- Quem... - Antes que Sir Francis pudesse fazer a pergunta, teve a resposta. Do topo de mastro do navio, desfraldou-se uma bandeira com cauda de andorinha. Escarlate e branco nevado, chicoteou e estalou ao vento.
- A croix pattée - berrou Hall. - É o Gull of Moray. É lorde Cumbrae, papai!
- Por Deus, é mesmo. Como o açougueiro barba-ruiva soube que estávamos aqui?
À popa do Gull of Moray, o navio estranho surgiu à vista. Também alterava seu rumo, seguindo o Gavião à medida que este se postava no caminho da entrada.
- Conheço aquele navio também - gritou Hal, contra o vento. - Lá, agora. Posso mesmo reconhecer sua figura de proa. É o Goddess. Não sei de nenhum outro navio neste oceano com uma Vênus nua no pranchão de proa.
- Capitão Richard Lister, é ele - concordou Sir Francis. - Fico mais tranqüilo por tê-lo aqui. É um bom homem. Embora, Deus sabe, eu não confie em nenhum deles, de qualquer forma.
Conforme o Gavião vinha velejando canal abaixo e passava pela plataforma de artilharia, deve ter avistado a mancha brilhante do manto de Sir Francis contra as rochas cobertas de líquen, pois baixou seu estandarte em saudação.
Sir Francis ergueu o chapéu em resposta, mas resmungou, entre os dentes:
- Eu preferiria saudá-lo com um buquê de metralha, seu bastardo escocês. Farejou o butim, não foi? Veio pedir ou roubar, não é isso? Mas, como soube?
- Papai! - gritou Hal outra vez. - Olhe lá, nas arreigadas das enxárcias da gávea! Eu reconheceria aquele safado sorridente em qualquer lugar. Eis como eles souberam. Ele os conduziu até aqui.
Sir Francis ajeitou suas lentes.
- Sam Bowles. Parece que mesmo os tubarões não tiveram estômago para aquela peça de carniça. Eu deveria ter deixado os companheiros lidarem com ele quando tivemos a chance.
O Gull passou lentamente por eles, reduzindo as velas progressivamente enquanto costurava seu caminho para dentro da lagoa. O Goddess o seguia a uma cautelosa distância. Também ostentava a croix pattée no mastaréu da gávea, junto com a cruz de São Jorge e a bandeira da União. Richard Lister também era um cavaleiro da ordem. Eles distinguiram sua diminuta figura no tombadilho superior quando ele chegou à amurada e gritou alguma coisa pela água, que foi levada pelo vento.
- Você está em estranha guarnição, Richard. - Mesmo que o galés não pudesse ouvi-lo, Sir Francis acenou com o chapéu, em resposta. Lister estivera com ele quando tinham capturado o Heerlycke Nacht, haviam partilhado amigavelmente os espólios e ele o tinha em conta de um amigo. Lister deveria ter estado com eles, Sir Francis e o Gavião, quando passaram aqueles tenebrosos meses no bloqueio ao largo do cabo Agulhas. Contudo, perdera o ponto de encontro em Port Louis, nas ilhas Maurício. Depois de esperá-lo por um mês, Sir Francis fora obrigado a aceder aos reclamos do Gavião, e tinham partido sem ele.
- Bem, é melhor fazermos uma expressão de coragem e iremos cumprimentar nossos hóspedes não convidados - disse Sir Francis a Hal, e desceu para a praia enquanto Daniel trazia o escaler pelo canal, entre as pontas.
Assim que remaram pela lagoa, as duas naus recém-chegadas lançaram âncora no canal principal. O Gull of Moray estava apenas a meia amarra de distância à proa do Resolução. Sir Francis ordenou a Daniel para que rumasse diretamente para o Goddess. Richard Lister estava na amurada de desembarque para saudá-lo quando ele e Hal subiram a bordo.
- Pelas chamas do inferno, Franky. Ouvi dizer que tinha feito uma grande presa. Agora eu vejo a nau holandesa ali, ancorada. - Richard apertou-lhe a mão. Em altura, não passava dos ombros de Sir Francis, porém seu aperto de mão era forte. Cheirou o ar com o rubicundo nariz e prosseguiu, em seu cantante dialeto celta. - E não é especiaria que sinto no ar? Maldigo a mim mesmo por não tê-lo encontrado em Port Louis.
- Onde estava, Richard? Esperei trinta e dois dias por sua chegada.
- Me entristece ter de admitir, porém peguei um furacão logo ao sul da Maurício. Ele me desmantelou e me empurrou pela costa da ilha de St. Lawrence.
- Seria a mesma tempestade que arrebentou o mastro do holandês. - Sir Francis apontou pelo canal, para o galeão. - Estava com as vergas avariadas quando o capturamos. Mas, como acabou se encontrando com o Gavião?
- Decidi que, tão logo o Goddess estivesse preparado para o mar outra vez, eu procuraria por você ao largo do cabo Agulhas, se por acaso ainda estivesse a postos ali. Foi quando cruzei com o Gavião. Ele mej conduziu até aqui.
- Bem, é bom vê-lo, meu velho amigo. Mas, diga-me, tem alguma notícia de casa? - Sir Francis inclinou-se para a frente, ansioso.
Esta era sempre uma das perguntas principais que os homens faziam um ao outro quando se encontravam ali, além da Linha. Poderiam viajar até os confins dos mares não mapeados, porém seus corações sempre haveriam de ansiar pelo lar. Quase um ano se passara desde que Sir Francis recebera notícias da Inglaterra.
Diante da pergunta, a expressão de Richard Lister tornou-se sombria.
- Cinco dias depois que zarpei de Port Louis, encontrei Windsong, uma das fragatas de Sua Majestade. Saíra a cinqüenta e seis dias antes de Plymouth, rumo à costa Coromandel.
- Então, que notícias tinha? - interrompeu-o Sir Francis, impaciente.
- Nenhuma boa, como o Senhor pode testemunhar. Disseram que toda a Inglaterra foi atingida por uma praga e que homens, mulheres e crianças morriam aos milhares e dezenas de milhares, de maneira que não podiam enterrá-los depressa o bastante e os corpos jaziam apodrecendo e fedendo nas ruas.
- A praga! - Sir Francis fez o sinal-da-cruz, de horror. - A ira de Deus.
- Então, enquanto a praga ainda devastava cada cidade e vila, Londres foi destruída por um poderoso incêndio. Dizem que as chamas mal deixaram uma casa em pé.
Sir Francis encarou-o, alarmado.
- Londres, queimada? Não pode ser. O rei... está a salvo? Foram os holandeses que puseram fogo em Londres? Conte-me mais, homem, conte-me mais.
- Sim, o Menino Negro está a salvo. Mas, não, desta vez não são os holandeses os culpados. O fogo começou num forno de um padeiro em Pudding Lane e queimou por três dias sem parar. A Catedral de São Paulo está queimada até o chão, assim como a prefeitura, a Bolsa de Valores Real, uma centena de igrejas paroquiais, e só Deus sabe o que mais. Dizem que o prejuízo excederá dez milhões de libras.
- Dez milhões! - Sir Francis encarou-o, abismado. - Nem mesmo o mais rico monarca no mundo poderia levantar uma tal quantia. A receita pública total da Coroa para um ano é de menos de um milhão! Isso deve reduzir à miséria o rei e a nação.
Richard Lister meneou a cabeça, com sombrio prazer.
- Além disso, há mais notícias ruins. Os holandeses nos desferiram um golpe poderoso. Aquele demônio, de Ruyter, navegou diretamente para dentro do rio Medway e do Tâmisa. Perdemos dezesseis navios de linha para ele, e ele capturou o Royal Charles no atracadouro nas docas de Greenwich e rebocou-o para Amsterdã.
- A nau capitania, flor e orgulho de nossa frota. Pode a Inglaterra sobreviver a uma tal derrota, a lhe chegar tão perto dos calcanhares da praga e do incêndio?
Lister meneou a cabeça outra vez.
- Dizem que o rei está pedindo paz aos holandeses. A guerra pode estar terminada neste exato momento. Pode ter acabado meses atrás, por tudo que sabemos.
- Vamos rezar com fervor para que não seja assim. - Sir Francis olhou para o Resolução. - Mal fiz aquela presa, três semanas atrás. Se a guerra tiver acabado, então minha comissão da Coroa teria expirado. Minha captura poderia ser considerada um ato de pirataria.
- As sinas da guerra, Franky. Você não tinha conhecimento da paz. Ninguém, a não ser os holandeses, o culpará por isso. - Richard Lister apontou com seu nariz de inflamado trompete para o Gull ofMoray. - Parece que meu senhor Cumbrae se ressente ligeiramente por ser excluído desta reunião. Veja, ele vem se juntar a nós.
O Gavião acabara de lançar um escaler. Estava sendo remado pelo canal agora, em direção a eles, o próprio Cumbrae postado na popa. O bote chocou-se contra o costado do Coddess, e o Gavião começou a escalar a escada de corda para o tombadilho.
- Franky! - saudou a Sir Francis. - Desde que nos separamos, não deixei passar um único dia sem fazer uma prece por você. - Veio em passadas largas pelo convés, sua manta xadrez balançando ao movimento. - E minhas preces foram ouvidas. É um belo galeãozinho o que temos ali, e cheio até a apostura de especiarias e prata, assim ouvi dizer.
- Você deveria ter esperado mais um ou dois dias, antes de desertar de seu posto. Poderia ter uma parte dele.
O Gavião abriu as mãos, divertido.
- Mas, meu caro Franky, o que está querendo dizer? Nunca deixei meu posto. Fiz um curto giro para leste, para ter certeza de que os holandesesnão estavam tentando nos passar a perna ficando mais longe no mar. Voltei depressa, tão logo pude. Mas, então, você já se fora.
- Deixe-me relembrá-lo de suas próprias palavras, senhor: "Estou completamente sem paciência. Sessenta e cinco dias são suficientes paramim e meus bravos camaradas."
- Minhas palavras, Franky? - O Gavião meneou a cabeça. - Seus ouvidos devem ter lhe pregado uma peça. O vento o enganou, você não me ouviu direito.
Sir Francis riu ligeiramente.
- Desperdiça seu talento como o maior mentiroso da Escócia. Não há ninguém aqui para você divertir. Richard e eu, ambos o conhecemos muito bem.
Franky, espero que isso não signifique que você tentaria me lesar minha parte justa dos espólios, não? - Mostrou-se triste e incrédu- Concordo que eu não estava à vista na captura, e não esperaria a partilha ao meio. Dê-me um terço e não ficarei tergiversando. - Respire fundo, senhor. - Sir Francis pousou casualmente a mão no cabo da espada. - Esse aroma de especiarias é toda a parte que terá de mim.
Milagrosamente, o Gavião animou-se e soltou uma estrondosa risada.
- Franky, meu velho e caro companheiro de armas. Venha e jante a bordo de meu navio esta tarde, e poderemos discutir a iniciação de seu rapaz na ordem, com um trago de bom uísque das Terras Altas.
- Então é a iniciação de Hal que o traz de volta para me ver, não é? Não a prata e as especiarias?
- Sei o quanto o rapaz significa para você, Franky - para todos nós. Ele é um grande crédito a você. Todos queremos que se torne um cavaleiro da ordem. Você falou disso muitas vezes. Não é verdade?
Sir Francis olhou para o filho e concordou, quase imperceptivelmente.
- Bem, então não teremos uma oportunidade como esta outra vez num ano. Aqui estamos, três cavaleiros Nautonniers juntos. É o número mínimo que se exige para admitir um acólito ao primeiro grau. Quando encontraríamos outros três cavaleiros para estabelecer uma loja, aqui, além da Linha?
- Que atencioso da sua parte, senhor. E, é claro, isso não tem nenhuma ligação com a partilha de meu butim que estava reclamando, um minuto atrás, não é? - A entonação de Sir Francis era eivada de ironia.
- Não falaremos disso outra vez. Você é um homem honesto, Franky. Jamais lesaria um irmão cavaleiro, lesaria?
Sir Francis retornou pouco antes do turno da meia-noite do jantar com lorde Cumbrae, a bordo do Gull of Moray. Tão logo estava em sua cabine, mandou Oliver chamar Hal.
- No próximo domingo. Três dias a contar de hoje. Na floresta - disse ao filho. - Está arranjado. Abriremos a loja ao nascer da lua, um pouco depois dos dois sinos no segundo turno de vigia.
- Mas, o Gavião - protestou Hal -, o senhor não gosta dele nem confia nele. Ele nos deixou...
- E, no entanto, Cumbrae tinha razão. Podemos nunca ter três cavaleiros reunidos juntos outra vez até que voltemos à Inglaterra. Devo aproveitar esta oportunidade para vê-lo em segurança abrigado dentro da Ordem. O bom Senhor sabe que poderia não haver outra oportunidade.
- Ficaremos à mercê dele enquanto estivermos em terra - lembrou Hal. - Ele poderia nos fazer de tolos.
Sir Francis meneou a cabeça.
- Jamais ficaremos à mercê do Gavião, não tema por isso. - Levantou-se e foi até seu baú. - Estou preparado para o dia de sua iniciação - Ergueu a tampa. - Aqui está seu uniforme. - Atravessou a cabine com um embrulho nas mãos e deixou-o cair no catre. - Ponha o. Teremos certeza de que serve em você. - Ergueu a voz e chamou: - Oliver!
O criado aproximou-se de imediato com sua pequena caixa de costura enfiada debaixo do braço. Hal tirou o velho e usado gibão de lona e as calças, e, com a ajuda de Oliver, começou a envergar o uniforme cerimonial da Ordem. Jamais sonhara possuir roupa tão esplêndida.
As meias eram de seda branca, e as calças e colete, de cetim azulescuro as mangas recortadas em ouro. Os sapatos tinham fivelas de prata pesada, e o couro preto polido combinava com o cinto trançado. Oliver penteou os grossos cachos emaranhados e depois colocou o chapéu oficial de cavaleiro na cabeça de Hal. Pegara as mais belas penas de avestruz no mercado em Zanzibar para decorar a aba larga.
Quando Hal estava vestido, Oliver rodeou-o com ar crítico, a cabeça pendida de lado.
- Está apertado nos ombros, Sir Francis. Mestre Hal fica maior a cada dia. Mas dá para consertar isso num piscar de olhos.
Sir Francis aquiesceu e aproximou-se de novo do baú. O coração de Hal saltou ao ver o manto dobrado nas mãos do pai. Era o símbolo da classe dos cavaleiros que ele estudara com tanto afinco para alcançar. Sir Francis veio até Hal e abriu-lhe o manto sobre os ombros, fechando depois a fivela no pescoço. O tecido branco caiu até os joelhos, e a cruz escarlate assentou-se em seus ombros.
Sir Francis deu um passo atrás e esquadrinhou o filho atentamente,
- Falta apenas um detalhe - resmungou, e retornou ao baú. De lá, tirou uma espada, porém não uma espada comum. Hal a conhecia bem. Era um legado da família Courtney, mas mesmo assim sua magnificência ainda o deixava admirado. Enquanto trazia até onde ele estava, Sir Francis recitou a Hal sua história e proveniência mais uma vez. - Esta espada pertenceu a Charles Courtney, seu bisavô. Oitenta anos atrás, foi-lhe entregue como prêmio pelo próprio Sir Francis Drake, por sua parte na captura e saque do porto de Rancheria, na parte meridional do mar das Caraíbas. Foi entregue como rendição a Drake pelo governador espanhol, don Francisco Manso.
Estendeu a bainha de ouro e prata marchetado para Hal examinar. Era decorada com coroas e golfinhos e espíritos marinhos reunidos ao redor da figura heróica de Netuno entronizado. Sir Francis inverteu a arma e ofereceu o punho a Hal. Uma enorme safira em estrela estava assentada no botão do punho da espada. Hal sacou a lâmina e viu de imediato que aquilo não era apenas um ornamento de algum almofadinha espanhol. A lâmina era do mais fino aço de Toledo cinzelado de ouro. Flexionou-a entre os dedos e rejubilou-se com sua elasticidade e têmpera.
- Tenha cuidado - advertiu-o seu pai. - Pode se cortar com essa borda.
Hal devolveu a arma à bainha, e seu pai colocou a espada na cesta de couro do cinto de Hal; depois, deu um passo atrás, outra vez, para examiná-lo com olhar crítico.
- O que acha dele? - perguntou a Oliver.
- Só os ombros. - Oliver correu as mãos pelo cetim do colete. - É toda essa luta e prática de esgrima que lhe muda a forma. Terei de refazer as costuras.
- Então, leve-o até a sua cabine e providencie isso. - Sir Francis dispensou a ambos e voltou-se para a escrivaninha. Sentou-se e abriu o diário de capa de couro.
Hal parou à soleira da porta.
- Obrigado, papai. Esta espada... - Tocou a safira ao lado do quadril, porém não encontrou palavras para continuar. Sir Francis resmungou alguma coisa sem erguer os olhos, mergulhou a pena no tinteiro e começou a escrever na página de pergaminho. Hal demorou-se um pouco mais na entrada, até que o pai o encarou, com irritação. Hal recuou e fechou a porta suavemente. Ao se voltar para a passagem, a porta oposta abriu-se e a esposa do governador holandês saiu por ela tão depressa, num farfalhar de sedas, que quase colidiram.
Hal saltou de lado e tirou o chapéu emplumado da cabeça.
- Perdoe-me, senhora.
Katinka parou e o encarou. Examinou-o lentamente, das fivelas de prata reluzentes dos novos sapatos para cima. Quando lhe alcançou os olhos, fitou-o com frieza e disse, baixinho:
- Um filhotinho de pirata vestido como um grande nobre. - Então, de repente, inclinou-se sobre ele até que sua face quase tocasse a de Hal e murmurou: - Verifiquei o painel. Não há abertura. Você não fez a tarefa que lhe designei.
- Meus deveres me mantiveram em terra. Não tive oportunidade - gaguejou ele, enquanto procurava as palavras em latim.
- Providencie isso esta noite mesmo - ordenou ela, e afastou-se. Seu perfume permaneceu no ar, e o colete de veludo pareceu a Hal muito quente e apertado. Sentia o suor escorrer-lhe pelo peito.
Oliver trabalhou no ajuste do colete por um tempo que pareceu a Hal metade do resto da noite. Soltou as costuras, alfinetou e voltou a coser a linha do ombro por duas vezes antes que ficasse satisfeito. Hal fungava de impaciência.
Quando Oliver finalmente saiu, levando todas as novas vestimentas com ele, Hal mal podia esperar para colocar a travessa na porta e se ajoelhar na antepara. Descobriu que o painel estava fixado na esquadria de carvalho por cavilhas de madeira, rente ao madeiramento.
Com a ponta do punhal, ele extraiu e torceu as cavilhas de seus assentos perfurados. Era um trabalho lento, e ele não ousava fazer nenhum barulho. Qualquer golpe ou raspar poderia reverberar pelo navio.
O alvorecer se aproximava quando ele foi capaz de remover a última peça e em seguida deslizar a lâmina da adaga pela junta e abrir o painel. Ele cedeu de repente, com um guincho de madeira contra o quadro de carvalho, rangido que pareceu ser transportado pelo casco, e que possivelmente poderia alarmar tanto Sir Francis como o governador.
Com o fôlego contido, ele esperou que uma terrível retribuição lhe caísse na cabeça, porém os minutos escoaram, e por fim ele pôde respirar direito outra vez
Desajeitadamente, enfiou a cabeça e os ombros pela abertura retangular. A cabine de toalete de Katinka, além, estava na escuridão, mas o odor do perfume dela tornou-lhe a respiração entrecortada. Hal apurou os ouvidos, mas não conseguiu ouvir nada da cabine principal. Então, o som do sino do navio chegou-lhe debilmente do convés acima, e ele percebeu, com aflição, que era quase o alvorecer e em meia hora seu turno iria começar.
Tirou a cabeça da abertura e recolocou o painel, prendendo-o com as cavilhas de madeira, porém tão de leve que poderiam ser removidas em segundos.
Vai permitir que os homens do Gavião vão a terra. - perguntou Hal respeitosamente ao pai. - Perdoe-me, papai, mas pode confiar assim nele?
- Posso impedi-lo sem provocar uma briga? - respondeu Sir Francis com outra pergunta. - Ele diz que precisa de água e lenha, e não somos donos desta terra ou mesmo desta lagoa. Como posso proibi-lo?
Hal poderia ter continuado com os protestos, mas seu pai o silenciou com um rápido fechar de cenho e voltou-se para cumprimentar lorde Cumbrae conforme a quilha de seu escaler beijava as areias da praia e ele punha os pés em terra, as pernas a apontarem debaixo da manta forrada de um pêlo amarelado como o de um urso.
- Todas as bênçãos de Deus sobre você nesta adorável manhã, Franky - gritou ele, ao ir na direção deles. Seus pálidos olhos azuis se mexiam inquietos como peixinhos numa lagoa sob as hirsutas sobrancelhas ruivas.
- Ele vê tudo - murmurou Hal. - Veio para descobrir onde estocamos as especiarias.
- Não podemos esconder as especiarias. Há montanhas delas - disse-lhe Sir Francis. - Porém, podemos tornar o roubo difícil para ele. - Então, sorriu em frieza para Cumbrae, quando se aproximou. - Espero vê-lo com boa saúde, e que o uísque não tenha atrapalhado seu sono na noite passada, senhor.
- O elixir da vida, Franky. O sangue em minhas veias. - Seus olhos estavam eivados de sangue enquanto disparavam pelo acampamento nos limites da floresta. - Preciso encher minhas barricas de água. Deve haver boa água doce nas imediações.
- Um quilômetro e meio pela lagoa. Há um riacho que vem das colinas.
- Abundante de peixe. - O Gavião gesticulou para as fileiras de estacas fincadas na clareira, nas quais os peixes divididos ao meio jaziam sobre a fumaça de madeira verde. - Mandarei meus rapazes pegarem alguns para nós também. Mas, e carne? Há algum veado ou boi selvagem na floresta?
- Há elefantes, e hordas de búfalos selvagens. Porém todos são ferozes, e mesmo uma bala de mosquete em suas costelas não os abate. Contudo, tão logo o navio seja carenado, pretendo mandar um grupo de caçadores para o interior, além das colinas, para ver se encontramos presa mais fácil.
Era evidente que Cumbrae perguntara por outro motivo, e mal se importou em ouvir a resposta. Quando seus olhos inquietos luziram, Hal seguiu-lhe o olhar. O Gavião descobrira a fila de cabanas cobertas de palha a uns cem passos, por entre as árvores, sob as quais os enormes barris de especiaria se enfileiravam em série.
- Então planeja trazer o galeão à praia e fazer a querena. - Cumbrae desviou os olhos do estoque de especiarias e apontou com a cabeça para o casco do Resolução. - Um plano prudente. Se precisar de ajuda, tenho três carpinteiros de primeira classe.
- É muito amável - disse Sir Francis. - Posso vir a precisar.
- Tudo para ajudar um companheiro cavaleiro. Sei que faria o mesmo por mim. - O Gavião deu-lhe um tapinha caloroso no ombro. -Agora, enquanto meu grupo na praia vai encher de novo as barricas de água, você e eu podemos procurar um lugar adequado para estabelecer nossa loja. Devemos deixar o jovem Hal aqui orgulhoso. É um dia importante para ele.
Sir Francis olhou para Hal.
- Aboli está esperando por você. - Fez um gesto de cabeça na direção de onde o enorme preto se postava pacientemente, um pouco mais distante, na praia.
Hal ficou a observar o pai se afastar com Cumbrae e desaparecer pela trilha para dentro da floresta. Então correu para se juntar a Aboli.
- Estou pronto, por fim. Vamos.
Aboli afastou-se de imediato, a correr pela praia em direção à ponta da lagoa. Hal seguia ao lado dele.
- Não tem varas?
- Iremos cortá-las na floresta. - Aboli bateu no cabo de uma machadinha de mão, cuja cabeça de aço estava enganchada em seu ombro, e desviou-se da praia enquanto falava. Conduziu Hal por um quilômetro e meio ou mais terra adentro, até que chegaram a um bosque cerrado. - Marquei estas árvores mais cedo. Minha tribo as chama de kweti. Delas, faremos as melhores varas de lança.
Enquanto se embrenhavam no matagal denso, houve uma explosão de folhas que voavam e galhos partidos, como se algum enorme animal fugisse à frente. Viram de relance uma pelagem preta sarnenta e um lampejo de grandes chifres salientes.
- Nyati! - disse Aboli a Hal. - O búfalo selvagem. - Deveríamos caçá-lo. - Hal tirou o mosquete do ombro e levou mão, ansioso, à pederneira e ao aço na algibeira para acender a mecha : queima lenta. - Um tal monstro daria carne para todos da guarnição do navio. Aboli sorriu e meneou a cabeça. - Ele o caçaria primeiro. Não existe animal mais feroz em toda a floresta, nem mesmo o leão. Irá rir de suas pequenas balas de chumbo enquanto abre sua barriga com aqueles poderosos espetos que carrega no topo da cabeça. - Tirou o machado do ombro. - Deixe estar o velho nyati, encontraremos outra carne para alimentar a tripulação.
Aboli deu uma machadada na base de um dos kweti mais novos e com uma dúzia de golpes, expôs a raiz bulbosa. Depois de umas poucas machadadas a mais, ergueu-a da terra, com o tronco junto.
- Minha tribo chama este porrete de iwisa - disse a Hal, enquanto trabalhava -, e hoje eu lhe mostrarei como usá-lo. - Com cortes hábeis, desbastou a extensão do eixo e arrancou a casca. Então cortou a raiz numa bola dura, como a cabeça de um macete. Quando terminou, ergueu o porrete, testando seu peso e equilíbrio. Depois, deixouode lado e procurou por outra árvore. - Precisamos de dois para cada um.
Hal agachou-se nos calcanhares e ficou a observar as lascas de madeira voarem sob o aço.
- Que idade tinha quando os negreiros o capturaram, Aboli? - perguntou, e as mãos negras pararam com a tarefa.
Uma sombra perpassou pelos olhos escuros, mas Aboli começou a trabalhar novamente antes de responder:
- Não sei, apenas era muito jovem.
- Você se lembra disso, Aboli?
- Lembro que era noite quando chegaram, homens de mantos brancos com longos mosquetes. Foi há muito tempo, mas me recordo das chamas na escuridão, quando eles rodearam nossa vila.
- Onde seu povo morava?
- Longe, ao norte. Nas praias de um grande rio. Meu pai era um chefe e no entanto o arrastaram da cabana e o mataram como um animal. Mataram todos os nossos guerreiros, poupando apenas as crianças muito jovens e as mulheres. Acorrentaram-nos juntos em filas, pescoço a pescoço, e nos fizeram marchar por muitos dias, em direção ao nascer do sol, pela costa abaixo. - Aboli levantou-se de repente e apanhou o feixe de porretes que terminara. - Falamos como velhas enquanto deveríamos estar caçando.
Voltou para trás, pelas árvores, pelo caminho por onde tinham vindo. Quando chegaram à lagoa outra vez, olhou para Hal.
- Deixe seu mosquete e o frasco de pólvora aqui. Não terão utilidade para você na água.
Enquanto Hal escondia a arma no mato rasteiro, Aboli escolheu um par dos mais leves e mais retos do iwisa. Quando Hal voltou, estendeulhe os porretes.
- Observe. Faça o que eu faço - ordenou, ao tirar as roupas e vadear para os baixios da lagoa. Hal o seguiu, nu, para dentro do espesso feixe de juncos.
Com água pela cintura, Aboli parou e puxou as hastes dos longos juncos sobre a cabeça, apertando-os juntos para formar uma cobertura. Então, afundou na água, deixando apenas a cabeça para fora. Hal se postou não muito longe dele e, com gestos rápidos, fez para si mesmo um teto semelhante de juncos. Podiam ouvir debilmente as vozes do grupo de aguadeiros do Gull e o rumorejar dos remos enquanto se guiam de volta para a ponta da lagoa, onde tinham enchido as barricas de água doce.
- Ótimo! - disse Aboli, baixinho. - Esteja pronto agora, Gundwane! Eles espantarão os pássaros para nós no ar.
De repente, ouviu-se um ruflar de asas, e o céu encheu-se da mesma vasta nuvem de pássaros que tinham observado antes. Um bando de gansos que se parecia com o marreco inglês, a não ser por seus brilhantes bicos amarelos, voou numa baixa formação em V na direção de onde estavam escondidos.
- Lá vêm eles - avisou Aboli, num sussurro, e Hal ficou tenso, aface para cima para observar o velho ganso macho que conduzia o bando. Suas asas eram como lâminas de faca à medida que cortavam o ar com golpes rápidos e agudos.
- Agora! - gritou Aboli, e levantou-se à plena altura, o braço direito já dobrado para trás com o iwisa no punho. Conforme ele o lançava girando no ar, a fila de patos selvagens abriu-se em leque, em pânico.
Aboli antecipara aquela reação, e seu porrete em giro atingiu o ganso macho no peito e o parou no ar, morto. Ele caiu numa confusão de asas e pés espalmados, penas que voavam, mas, bem antes que se chocasse na água, Aboli lançara o segundo macete. Ele subiu rodando para atingir um pássaro mais jovem no pescoço esticado, derrubando-o perto, ao lado do corpo flutuante do velho ganso macho.
Hal lançou seus próprios porretes em rápida sucessão, porém ambos passaram ao largo da marca, e o bando disperso voou para longe, por sobre os canteiros de junco.
- Logo você vai aprender, passou perto em ambos os arremessos encorajou-o Aboli, ao se enfiar por entre os juncos, primeiro para pegar os pássaros mortos e depois para recuperar seus iwisas. Deixou as duas carcaças a flutuar numa poça de água aberta à frente, e, em questão de minutos, tinham engodado outro bando de clângulas que descera até quase o topo dos juncos antes que ele os atingisse.
- Bom arremesso, Gundwane! - Aboli riu para Hal quando este vadeou pela água para apanhar outros dois pássaros mortos. - Chegou mais perto. Logo vai atingir um.
A despeito daquela profecia, era quase metade da manhã quando o rapaz abateu seu primeiro pato. Mesmo assim, estava de asa quebrada, e Hal teve de mergulhar e nadar pela lagoa antes de pôr a mão nele e torcer-lhe o pescoço. No meio do dia, os pássaros pararam de voar e pousaram em águas mais profundas, onde não poderiam ser alcançados.
- Já chega! - Aboli pôs um fim à caçada e recolheu as peças abatidas.
De uma árvore à beira d'água, cortou tiras de casca e torceu-as para amarrar os patos mortos em pencas. Fizeram uma carga quase pesada demais até mesmo para seus ombros largos, porém Hal carregava seu mísero fardo sem dificuldade, ao voltarem ao longo da praia.
Quando chegaram à volta da ponta e puderam olhar para a baía onde os três navios jaziam ancorados, Aboli deixou cair os pássaros mortos na areia.
- Vamos descansar aqui. - Hal afundou-se ao lado dele, e por um instante ficaram sentados em silêncio, até que Aboli perguntou: - Por que o Gavião veio aqui? O que seu pai disse?
- O Gavião disse que veio para abrir uma loja para minha iniciação. Aboli fez um gesto de assentimento.
- Em minha própria tribo, o jovem guerreiro tinha de entrar na cabana de circuncisão antes de se tornar um homem.
Hal estremeceu e tocou sua virilha como se para verificar se tudo ainda estava no lugar.
- Fico contente que não tenha de me submeter à faca, como você.
- Mas essa não é a verdadeira razão pela qual o Gavião nos seguiu até aqui. Ele segue seu pai como a hiena segue o leão. O cheiro de traição é forte nele.
- Meu pai o sentiu também - assegurou-lhe Hal baixinho. - Mas estamos à sua mercê, pois o Resolução não tem o mastro principal e os canhões estão fora dele.
Ambos olharam pela lagoa, para o Gull of Moray até que Hal se agitou, inquieto.
- O que o Gavião está aprontando agora?
O escaler do Gull era remado de seu costado para onde o cabo da âncora se afundava na lagoa. Observaram a tripulação agarrar-se a ele e trabalhar ali por vários minutos.
- Estão protegidos da vista da praia para que meu pai não possa perceber o que estão aprontando. - Hal estava pensando alto. - E têm um ar furtivo, e não gosto disso nem um pouco.
Enquanto ele falava, os homens terminaram sua tarefa secreta e começaram a remar de volta para o costado do Gull. Agora Hal podia perceber que estavam esticando um segundo cabo sobre a popa conforme se afastavam. Diante disso, ele saltou de pé, agitado.
- Estão puxando uma regeira da âncora! - exclamou.
- Uma regeira? - Aboli encarou-o. - Por que fariam isso?
- Para que, com alguns giros do cabrestante, o Gavião possa virar seu navio em qualquer direção que escolha.
Aboli postou-se ao lado dele, a expressão grave.
- Assim ele pode virar seu costado de canhões para nosso navio indefeso ou varrer nosso acampamento na praia com metralha - disse. - Precisamos voltar depressa para avisar o capitão.
- Não, Aboli, não corra. Não devemos alertar o Gavião para o fato de que vimos seu truque.
Sir Francis ouviu atentamente aquilo que Hal dizia, e quando seu filho terminou, coçou o queixo, com ar reflexivo. Então, seguiu até a amurada do Resolução e ergueu casualmente a luneta até o olho. Fez um lento reconhecimento pela larga expansão da lagoa, mal parando quando seu olhar passou pelo Gull, de maneira que ninguém pudesse notar seu súbito interesse no navio do Gavião. Então, fechou a luneta e voltou até onde Hal esperava. Havia respeito nos olhos de Sir Francis quando disse:
- Muito bem, meu rapaz. O Gavião está aprontando seus truques costumeiros. Você tinha razão. Eu estava na praia e não pude vê-lo colocando aregeira. Poderia nunca tê-la percebido. - Vai ordenar que ele a retire, papai?Sir Francis sorriu e meneou a cabeça.
- Melhor não deixá-lo saber que percebemos sua intenção.
- Mas o que podemos fazer?
- Já tenho as colubrinas na praia apontadas para o Gull. Daniel e Ned avisaram cada homem...
- Mas, papai, não há artimanha que possamos preparar para o Gavião que se compare à surpresa que ele claramente planeja contra nós, não é? - Em sua agitação, Hal encontrara coragem para interromper, mas seu pai fechou o cenho e sua resposta foi dura.
- Sem dúvida, você tem uma sugestão, mestre Henry.
Diante daquele tratamento formal, Hal se viu alertado para a raiva crescente do pai e imediatamente mostrou-se contrito.
- Perdoe minha presunção, papai, não pretendia ser impertinente.
- Fico contente em ouvir isso. - Sir Francis começou a se afastar, as costas ainda rígidas.
- Meu bisavô, Charles Courtney, não estava com Drake na batalha de Gravelines?
- Estava, realmente. - Sir Francis se voltou. - Mas como você já sabe a resposta muito bem, não é uma estranha pergunta para me fazer agora?
- Então, pode muito bem ter sido meu próprio bisavô quem propôs a Drake o uso dos navios do demônio contra a Armada Espanhola enquanto ela estava ancorada em Calais, não pode?
Sir Francis virou lentamente a cabeça e olhou para o filho. Começou a sorrir e então a casquinar, e, por fim, explodiu numa gargalhada.
- Deus do céu, mas o sangue dos Courtney corre de verdade em suas veias! Desça até minha cabine agora e mostre-me o que tem em mente.
Sir Francis postou-se por trás do ombro de Hal enquanto ele desenhava um projeto na lousa.
- Não precisam ter construção rija, pois não irão longe, e não terão mares duros a enfrentar - explicou Hal, com deferência.
- Sim, mas, uma vez lançados à água, deveriam ser capazes de manter um curso firme e ainda carregar um bom peso em carga - murmurou seu pai, e tomou o giz da mão do filho. Desenhou umas poucas linhas na lousa. - Poderemos trancafiar dois cascos juntos. Assim, eles não seriam capturados ou consumidos antes que chegassem a seu destino.
- O vento tem ficado firme do sudeste desde que estamos ancorados aqui - disse Hal. - Não há sinal de que vá enfraquecer. Portanto, poderemos mantê-los na direção do vento. Se os colocarmos na pequena ilha pelo canal, o vento trabalhará por nós quando os lançarmos.
- Muito bem - concordou Sir Francis. - De quantos precisaremos? - Podia ver quanto prazer dava ao rapaz consultando-o daquelamaneira.
- Drake mandou oito contra a Invencível Armada, porém não temos tempo para construir tantos. Cinco, talvez? - Ergueu os olhos para o pai, e Sir Francis concordou de novo.
- Sim, cinco, talvez. De quantos homens precisaremos? Daniel deve ficar no comando das colubrinas na praia. O Gavião pode acionar sua armadilha antes que estejamos prontos. Porém, mandarei Ned Tyler eo carpinteiro para ajudá-lo a construí-los... e Aboli, é claro.
Hal olhou para o pai com admiração e respeito.
- Confiará a mim o encargo da construção? - perguntou.
- É seu plano; portanto, se falhar, devo ser capaz de lançar a culpa toda sobre você - retrucou seu pai, com apenas um ligeiro sorriso nos lábios. - Pegue seus homens e vá para praia de imediato para começar o trabalho. Porém, seja circunspecto. Não facilite com o Gavião.
Os machadeiros de Hal limparam uma pequena clareira no lado mais afastado da ilha densamente coberta de floresta, do outro lado do canal, onde estavam ocultos do Gull of Moray. Depois de uma volta em círculo pela floresta em terra firme, ele pudera transportar seus homens e o material para o outro lado da ilha, fora da vista dos vigias na nau do Gavião.
Naquela primeira noite, trabalharam à luz bruxuleante de tochas encharcadas de breu até a meia-noite. Todos estavam cientes da urgência da tarefa, e quando ficaram exaustos, simplesmente se lançaram na cama macia de folhas sob as árvores e dormiram até que a alvorada trouxe luz suficiente para recomeçar o trabalho.
Pelo meio-dia, na manhã seguinte, as cinco estranhas embarcações estavam prontas para serem transportadas de seu local escondido no matagal para a beira da lagoa. Com a maré baixa, Sir Francis atravessou pelo vau de terra firme e seguiu o caminho pela trilha através da densa floresta que recobria a ilha, para inspecionar o trabalho. Fez um gesto de dúvida.
- Espero sinceramente que flutuem - resmungou, ao contornar uma das naus desajeitadas.
- Só saberemos quando as lançarmos na água pela primeira vez. - Hal estava cansado, e seu temperamento, exacerbado. - Mesmo para agradá-lo, papai, eu não poderia fazer uma demonstração prévia, beneficiando lorde Cumbrae.
O pai encarou-o, ocultando a surpresa. O filhotinho se transforma num jovem cão e aprende a rosnar, pensou, com uma pontada de orgulho paternal. Exige respeito e, verdade seja dita, faz por merecê-lo.
Em voz alta, disse:
- Saiu-se bem no tempo que tinha. Tais palavras baniram, em definitivo, a raiva de Hal. - Mandarei homens descansados para ajudá-lo a transportá-las e colocá-las no matagal.
Hal estava tão cansado que mal conseguia se arrastar para cima da escada de corda que levava à amura de embarque do Resolução. Porém, embora sua tarefa estivesse completa, seu pai não iria deixá-lo escapar para a cabine.
- Estamos ancorados diretamente atrás do Gull. - Sir Francis apontou pelo canal iluminado pelo luar para a forma escura do outro navio. - Já pensou o que poderá acontecer se uma de suas embarcações diabólicas passar além da marca e vier sobre nós, aqui? Sem mastro como estamos, não poderemos manobrar o navio.
- Aboli já cortou longas estacas de bambu na floresta. - A entonação de Hal não conseguia ocultar que ele estava exausto até os ossos. - Nós as usaremos para desviar de nós quaisquer barcos errantes e mandálos sem danos para a praia além. - Voltou-se e apontou na direção de onde as fogueiras do acampamento fulguravam entre as árvores. - O Gavião será tomado de surpresa e não estará equipado com estacas de bambu.
Por fim, seu pai estava satisfeito.
- Vá descansar agora. Amanhã à noite, abriremos a loja, e você deve ser capaz de dar as respostas ao catecismo.
Hal voltou relutante do abismo do sono no qual afundara. Por alguns instantes, não teve certeza do que o acordara. Então, o suave rangido surgiu de volta, vindo da antepara. No mesmo instante, estava completamente desperto, cada vestígio de fadiga esquecido. Rolou para fora do catre e ajoelhou-se diante do painel. O raspar era agora impaciente, exigente. Ele tamborilou uma resposta rápida no madeiramento e depois tateou a escuridão para localizar o pino do orifício de espia. No momento em que o removeu, um raio amarelado de luz de lampião brilhou pelo buraco, mas foi cortado quando Katinka colocou os lábios no lado oposto e murmurou, com voz zangada:
- Onde esteve na noite passada?
- Tinha deveres em terra - murmurou ele de volta.
- Não acredito em você - disse-lhe ela. - Tentou escapar de sua punição. Você me desobedeceu deliberadamente.
- Não, não, eu não iria...
- Abra este painel agora mesmo.
Ele levou a mão para o punhal que pendia em seu cinto, no gancho ao pé do catre, e arrancou as cavilhas. O painel soltou-se em suas mãos com apenas um leve som rascante. Ele colocou-o de lado, e um quadrado de luz suave passou pela escotilha improvisada.
- Venha - ordenou a voz de Katinka, e ele se esgueirou pela abertura. Era um espaço apertado, porém, depois de algum esforço, Hal se viu com as mãos e os joelhos no convés da cabine dela. Começou a se erguer, mas ela o impediu.
- Fique onde está.
Hal fitou-a quando ela se postou diante dele. Estava vestida numa florida camisola de algum material transparente. Seus cabelos estavam soltos e pendiam em esplendor até a cintura. A luz do lampião se filtrava pela roupa e lhe contornava a silhueta do corpo, o lustro de sua pele a reluzir através das dobras diáfanas de seda.
- Você não tem vergonha - disse-lhe Katinka, quando ele se ajoelhou diante dela como se ela fosse a imagem sagrada de uma santa. - Veio até mim nu. Não me demonstra respeito.
- Sinto muito - gaguejou ele. Em sua ansiedade para obedecer Katinka, ele se esquecera da própria nudez, e agora cobria com as mãos em concha as partes privadas. - Não pretendia desrespeitá-la.
- Não! Não cubra sua vergonha. - Ela se inclinou e lhe puxou as mãos.
Ambos olharam para o pênis. Viram-no lentamente se distender e engrossar, a se erguer na direção de Katinka, o prepúcio a recuar por sua própria conta.
- Não há nada que eu possa fazer para impedir esse comportamento revoltante? Está mergulhado nas malhas de Satã?
Pegou um punhado dos cabelos de Hal e puxou-o para cima, obrigando-oa ficar de pé e a segui-la até a esplêndida cabine onde ele pusera os olhos pela primeira vez naquela beleza.
Empurrou-o para a cama e sentou-se, a encará-lo. A saia de seda branca se abriu e caiu para os lados das longas coxas esguias. Ela torceu-lhe o punhado de cabelos e disse, numa voz de repente ofegante:
- Você deve me obedecer em todas as coisas, seu filho de pirata. Suas coxas se afastaram e ela empurrou-lhe o rosto para baixo, apertando-o com força contra as entrepernas, para os cachos incrivelmente macios e sedosos de pêlos dourados.
Ele sentiu o cheiro de mar nela, de sal e iodo, o aroma de coisas vivas dos oceanos, o odor cálido e suave das ilhas, de ondas salgadas quebrando numa praia banhada de sol. Saboreou aquele fabuloso aroma pelas narinas infladas e depois traçou o contorno da sua fonte com os lábios.
Katinka jogou o corpo para a frente, escorregando pelas cobertas de cetim para lhe encontrar a boca, as coxas mais abertas, e ergueu os quadris para se abrir para ele. Com o punhado de cabelos nas mãos, moveu-lhe a cabeça para guiá-lo até aquele pequeno botão cor-de-rosa, de carne rija, que se aninhava na fenda escondida. Quando ele o encontrou com a ponta da língua, ela arquejou e começou a se contorcer contra a face de Hal como se cavalgasse nua um garanhão em galope. E se pós a dar gritinhos incoerentes e contraditórios.
- Oh, pare! Por favor, pare! Não! Não pare! Continue para sempre! Então, de repente, puxou-lhe a cabeça de entre as coxas abertas e caiu de costas, sobre as cobertas, arrastando-o para cima de si. Hal sentiu os duros tornozelos de Katinka se enterrarem na parte inferior de suas costas, conforme ela enrodilhava as pernas em torno dele, e as unhas, como facas, a lhe cortarem os músculos tensos dos ombros. Então a dor desapareceu, perdida na sensação escorregadia de calor envolvente quando ele deslizou para dentro dela; sufocou os gritos no emaranhado louro daqueles cabelos.
Os três cavaleiros tinham estabelecido a loja no declive das colinas acima da lagoa, ao pé de uma pequena cascata que caía numa bacia de água escura rodeada por árvores altas cheias de liquens e cipós.
O altar ficava dentro do círculo de pedras, a fogueira a queimar diante dele. Assim, todos os antigos elementos estavam representados. A lua estava em seu primeiro quarto, significando renascimento e ressurreição.
Hal esperou sozinho na floresta enquanto os três cavaleiros da Ordem abriam a loja no primeiro grau. Depois, seu pai, a espada nua na mão, veio caminhando pela escuridão para buscá-lo e o conduziu pela trilha.
Os outros dois cavaleiros aguardavam, ao lado da fogueira, no círculo sagrado. Suas espadas estavam desembainhadas, as lâminas a reluzir sob o reflexo das chamas. Sobre a pedra do altar, num pano de veludo ele viu a forma da espada de Netuno de seu bisavô. Pararam do lado de fora do círculo de pedras, e Sir Francis pediu licença para entrar na loja.
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
- Quem entraria na Loja do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal? - estrondeou lorde Cumbrae numa voz que ressoou pelas colinas, sua longa espada escocesa de dois gumes a cintilar em seu punho cabeludo.
- Um noviço que se apresenta para iniciação aos mistérios do templo - retrucou Hal.
- Entre com risco de sua vida eterna - advertiu-o Cumbrae, e Hal entrou para o círculo. De súbito, o ar pareceu mais frio, e ele estremeceu, mesmo enquanto se ajoelhava na radiância do fogo.
- Quem apadrinha este noviço? - indagou o Gavião.
- Eu o faço. - Sir Francis deu um passo à frente, e Cumbrae voltou-se para Hal.
- Quem é você?
- Henry Courtney, filho de Francis e Edwina.
O longo catecismo começou, enquanto o eixo estrelado do firmamento girava lentamente por sobre as cabeças e as chamas da fogueira perdiam o vigor.
Passava da meia-noite quando, por fim, Sir Francis ergueu a coberta de veludo da espada de Netuno. A safira no punho refletiu um pálido feixe azul de luar nos olhos de Hal enquanto o pai lhe colocava a empunhadura nas mãos.
- Sob esta espada você confirmará os dogmas de nossa fé.
- Nessas coisas eu creio - começou Hal -, e as defenderei com minha vida. Creio que existe apenas um Deus na Trindade, o Pai eterno, o Filho eterno e o Espírito Santo eterno.
- Amém! - entoaram em coro os três cavaleiros Nautonniers.
- Creio na comunhão da Igreja da Inglaterra, e no divino direito de seu representante na terra, Carlos, rei de Inglaterra, Escócia, França e Irlanda, Defensor da Fé.
Amém!
Assim que Hal recitou suas crenças, Cumbrae chamou-o para fazer os votos da classe da cavalaria.
- Apoiarei a Igreja da Inglaterra. Confrontarei os inimigos de meu senhor soberano, Carlos. - A voz de Hal tremia de convicção e sinceridade. - Renuncio a Satã e todos os seus trabalhos. Abstenho-me de todas as falsas doutrinas e heresias e cismas. Voltarei minha face para longe de todos os outros deuses e seus falsos profetas.
- Protegerei o fraco. Defenderei o peregrino. Socorrerei o necessitado e aqueles que precisam de justiça. Erguerei a espada contra o tirano e o opressor.
- Defenderei os locais sagrados. Procurarei e protegerei as preciosas relíquias de Jesus Cristo e Seus Santos. Jamais abandonarei minha busca pelo Santo Graal que continha Seu sangue sagrado.
Os cavaleiros Nautonniers fizeram o sinal-da-cruz quando ele pronunciou esse juramento, pois a busca do Graal estava no centro de sua crença. Era a coluna granítica que sustentava o teto de seu templo.
- Comprometo-me à Estrita Observância. Obedecerei ao código de minha Cavalaria. Abster-me-ei da libertinagem e da fornicação - a língua de Hal se atrapalhou com a palavra, mas ele se recobrou depressa -, e honrarei meus companheiros cavaleiros. Acima de tudo mais, manterei segredo de todos os procedimentos de minha loja.
- E possa o Senhor ter misericórdia de sua alma! - entoaram em uníssono os três cavaleiros Nautonniers. Então, deram um passo à frente e formaram um anel em torno do noviço ajoelhado. Cada um pousou a mão em sua cabeça inclinada, e a outra no punho de sua espada, as mãos sobrepostas umas às outras.
- Henry Courtney, seja bem-vindo à sociedade do Graal. Nós o aceitamos como irmão cavaleiro do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal.
Richard Lister falou primeiro, em sua sonora voz galesa, quase cantando sua bênção:
- Eu lhe dou as boas-vindas ao templo. Possam as águas dos oceanos distantes se abrir largas diante da proa de seu navio, e possa a força do vento empurrá-lo.
Então Sir Francis Courtney falou, com a mão firmemente posta sobrea testa de Hal.
- Eu lhe dou as boas-vindas ao templo. Possa você sempre ser verdadeiro para com seus votos, para com seu Deus e para consigo mesmo.
Então, os cavaleiros Nautonniers o ergueram de pé e, um após ooutro, o abraçaram. As suíças de lorde Cumbrae eram duras e picavam como uma guirlanda de espinhos.
Tenho um porão cheio com minha parte das especiarias que ambos tomamos do Heerlycke Nacht, suficiente para eu comprar um castelo e cinco mil acres das mais belas terras em Gales - disse Richard Lister, enquanto apertava a mão direita de Sir Francis na sua, usando o aperto secreto de mãos dos Nautonniers.- E tenho uma esposa jovem e dois filhos robustos em quem não ponho os olhos em três anos. Um ligeiro descanso em lugares verdes eagradáveis com aqueles a quem amo e depois, eu sei, o vento irá meconvocar. Talvez possamos nos encontrar de novo em águas distantes,Francis.
- Siga a maré de seu coração, então, Richard. Agradeço por suaamizade e pelo que fez por meu filho. - Sir Francis correspondeu aoaperto. - Espero um dia dar as boas-vindas a seus dois rapazes no templo.
Richard virou-se em direção ao seu escaler, que esperava, mas hesitou e voltou atrás. Colocou um braço em torno dos ombros de Sir Francis,e sua fisionomia estava séria, a voz baixa, enquanto dizia:
- Cumbrae me fez uma proposta com relação a você, mas não gosteie disse-lhe isso na cara. Tome cuidado, Franky, e durma com um olhoaberto enquanto ele estiver a seu redor.
- Você é um bom amigo - disse Sir Francis, e ficou a observarRichard seguir para o escaler e cruzar a lagoa para o Goddess. Assim que ele subiu a escada para o tombadilho superior, a tripulação içoul âncora. Todas as velas enfunadas, a nau deslizou pelo canal, baixando seu pendão em despedida enquanto desaparecia entre as pontas para omar aberto.
- Agora, temos apenas o Gavião para nos fazer companhia. - Hal olhou para o Gull of Moray, que estava atracado no centro do canal, seus botes em torno a descarregar barricas de água, feixes de lenha e peixe defumado para dentro dos porões.
- faça os preparativos para levar o navio à praia, por favor, Sr. Courtney - retrucou Sir Francis, e Hal endireitou a espinha. Não estava acostumado com seu pai se dirigindo a ele assim. Era estranho ser tratado como um cavaleiro e um oficial pleno, em vez de um alferes. Mesmo seu modo de se vestir mudara com o novo status. Seu pai lhe providenciara a camisa de fino algodão branco de Madras, assim como as novas calças de molesquim, tecido forte de algodão que parecia macio como seda contra sua pele depois da aspereza da lona rude que usara até aquele dia.
Ficou ainda mais surpreso quando o pai teve a deferência de explicar a ordem.
- Devemos prosseguir com nossas atividades como se não suspeitássemos de traição. Além disso, o Resolução estará mais seguro na praia, se ocorrer uma luta.
- Compreendo, senhor. - Hal olhou para o sol para avaliar a hora. - A maré estará boa para isso aos dois sinos no turno matutino de amanhã. Estaremos preparados.
Durante todo o resto daquela manhã, a tripulação do Gull comportou-se como a de qualquer outro navio se preparando para o mar, e embora Daniel e seus artilheiros, com canhões carregados e apontados e mechas queimando, observassem o Gull de seus postos escondidos enterrados no solo arenoso, ao longo da fímbria da floresta, não havia pistas de traição.
Um pouco antes do meio-dia, o próprio lorde Cumbrae remou para terra e foi encontrar Sir Francis onde estava, ao pé da fogueira sobre a qual um caldeirão de breu borbulhava, pronto para começar a calafetagem do casco do Resolução, quando fosse querenado.
- É adeus, então. - Abraçou Sir Francis, lançando o grosso braço ruivo em torno de seus ombros. - Richard tinha razão. Não existe presa a ser capturada se nos sentarmos aqui na praia e rasparmos nossos costados.
- Então, está pronto para zarpar? - Sir Francis manteve a entonação uniforme, sem trair seu espanto.
- Com a maré de amanhã de manhã, partirei. Mas detesto deixálo, Franky. Não tomaria um último trago a bordo do Gull comigo agora? Estou ansioso para discutir com você minha parte do dinheiro pelo apresamento do Standvastigheid.
- Meu senhor, sua parte é nada. Isso encerra nossa discussão, e eu lhe desejo bons ventos.
Cumbrae soltou uma gargalhada explosiva.
- Sempre adorei seu senso de humor, Franky. Sei que você só quer me poupar o trabalho de carregar aquela pesada carga de especiarias de volta ao estuário de Forth. - Voltou-se e apontou com a barba cacheada para as especiarias estocadas sob as árvores da floresta. - Portanto, deixarei que faça isso por mim. Porém, nesse ínterim, confio em que manterá uma contabilidade justa de minha parte e a entregará a mim quando nos encontrarmos da próxima vez... mais o juro usual, é claro.
- Confio no senhor da mesma forma, milorde.. - Sir Francis ergueu o chapéu e varreu a areia com as plumas, ao fazer uma mesura.
Cumbrae retornou para a proa e, ainda a soltar gargalhadas, acomodou-se no escaler e seguiu remando para o Gull.
Durante o transcurso da manhã, os reféns holandeses tinham sido levados para terra e instalados nos novos alojamentos que Hal e seu grupo haviam construído para eles. As acomodações eram localizadas bem longe da lagoa e separadas do conjunto em que a tripulação do Resolução estava abrigada.
Agora o navio estava vazio e pronto para ser levado à praia. Conforme a maré subia pelas pontas, a tripulação, sob a direção de Ned Tyler e Hal, começou a rebocar a nau em direção à praia. Tinham prendido os mais fortes moitões e cadernais nas maiores das árvores. Foram amarrados à proa e à popa do Resolução pesados cabos de reboque, e com cinqüenta homens a estirar as linhas, o navio veio em paralelo paraa praia.
Quando seu fundo tocou a areia branca, eles o prenderam ali. A medida que a maré recuava, viraram-no de querena com a talha amarrada à mezena e aos mastros de proa que ainda estavam enfurnados. O navio adernou a pique até que os mastaréus da gávea tocaram as copas das árvores. O lado inteiro de estibordo de seu casco, assim como aquilha, estava exposto, e Sir Francis e Hal vadearam a água para inspecioná-lo. Ficaram satisfeitos em descobrir apenas ligeiros sinais de infestaçãode teredos.
Umas poucas seções do emplacamento tinham de ser substituídas e o trabalho começou de imediato. Quando a escuridão caiu, foram acesas tochas, pois a obra no casco continuaria até que o retorno da maré o interrompesse. Quando isso aconteceu, Sir Francis foi jantar em seus novos alojamentos, enquanto Hal dava ordens para proteger o casco durante a noite. As tochas foram apagadas, e Ned levou os homens para o jantar atrasado. Hal não estava faminto por comida. Seu apetite era de uma ordem diferente, mas levaria pelo menos outra hora para que ele pudesse satisfazêlo. Sozinho na praia, estudou o Gull pela faixa estreita de água. Parecia que se acomodara tranqüilamente para a noite. Seus pequenos botes ainda jaziam ao lado, porém não tomaria muito tempo içá-los a bordo e fechar as escotilhas. Virou-se e voltou para as árvores. Caminhou até a linha do posto deartilharia, conversando baixinho com os homens de vigia atrás das colubrinas. Verificou mais uma vez o assentamento de cada uma, certificando-se de que estavam realmente miradas para a forma escura do Gull que jazia num fulgurar do reflexo das estrelas na calma e escura lagoa.
Por um momento, sentou-se perto de Daniel Grande, pendurando as pernas no ressalto da arma.
- Não se preocupe, Sr. Henry. - Mesmo Daniel usava a nova e mais respeitosa forma de tratamento com naturalidade. - Estamos mantendo um olho firme naquele bastardo de barba ruiva. Pode ir e comer seujantar.
- Quando foi a última vez que dormiu, Daniel? - perguntou Hal.
- Não se preocupe comigo. O turno logo vai mudar. Serei rendido por Timothy.
Do lado de fora de sua cabana, Hal encontrou Aboli sentado quieto como uma sombra ao lado do fogo, esperando por ele com uma tigela que continha pato assado e nacos de pão, e uma caneca de cerveja fraca.
- Não estou com fome, Aboli - protestou Hal.
- Coma. -Aboli enfiou-lhe a tigela nas mãos. - Precisará de força para a tarefa que jaz diante de você esta noite. Hal aceitou a tigela, porém tentou desvendar a expressão de Aboli e ler nela o significado mais profundo de sua admoestação. A luz da fogueira dançava naquelas feições escuras e enigmáticas, como as de um ídolo pagão, realçando-lhe as tatuagens nas faces; porém os olhos estavam imperscrutáveis. Hal usou o punhal para dividir o pedaço do pato em dois e ofereceu uma porção a Aboli. - Que tarefa é essa que tenho de realizar? - perguntou, cauteloso. Aboli pegou um pedaço do peito do pato e deu de ombros, enquanto mastigava.
- Você deve ter cuidado para não arrancar suas partes mais tenras num espinho quando passar pelo buraco na paliçada, para cumprir seu dever.
A mandíbula de Hal parou de se mover e o pato em sua boca perdeu o sabor. Aboli devia ter descoberto a estreita passagem pela cerca de espinhos, atrás da cabana de Katinka, que Hal deixara aberta com tanto segredo.
- Há quanto tempo sabe? - perguntou, de boca cheia.
- Não deveria saber? - perguntou Aboli. - Seus olhos são como a lua cheia, quando você olha numa certa direção, e ouvi seus berros como de um búfalo ferido que vinham da popa, à meia-noite.
Hal estava estupefato. Fora tão cuidadoso e dissimulado.
- Acha que meu pai sabe? - perguntou, com ansiedade.
- Você ainda está vivo - ponderou Aboli. - Se ele soubesse, não poderia estar.
- Você não contaria a ninguém? - murmurou Hal. - Principalmente, não a ele?
- Principalmente, não a ele - concordou Aboli. - Porém, tome cuidado para não cavar sua própria cova com essa espada entre suas pernas.
- Eu o amo, Aboli - sussurrou Hal. - Não consigo dormir pensando nela.
- Não ouvi você dormindo. Acho que poderia acordar toda a guarnição do navio com sua insônia.
- Não caçoe de mim, Aboli. Morrerei por falta dela.
- Então preciso salvar sua vida levando-a até lá.
- Iria comigo? - Hal estava chocado com a oferta.
- Esperarei no buraco na paliçada. Para protegê-lo. Você pode precisar de minha ajuda se o marido o encontrar no lugar em que gostaria de estar.
- Aquele animal gordo! - exclamou Hal, furioso, sentindo que detestava o homem de todo o coração.
- Gordo, talvez. Matreiro, quase com certeza. Poderoso, sem dúvida. Não o subestime, Gundwane. - Aboli levantou-se. - Irei primeiro, para ter certeza de que o caminho está limpo.
Os dois se esgueiravam em silêncio pela escuridão, e pararam nos fundos da paliçada.
- Não tem de esperar por mim, Aboli - murmurou Hal. - Eu posso me demorar um pouco.
- Se não se demorasse, eu ficaria desapontado com você - disse Aboli a Hal em sua própria língua. - Lembre-se sempre deste conselho, Gundwane, pois lhe será útil em todos os dias de sua vida. A paixão de um homem é como um fogo em grama alta e seca, quente e furioso, mas logo se acaba. Uma mulher é como o caldeirão de um mágico, que deve cozinhar em fogo lento sobre as brasas até que possa produzir sua magia. Seja rápido em todas as coisas, a não ser no amor.
Hal suspirou na escuridão.
- Por que as mulheres são tão diferentes de nós, Aboli?
- Graças a todos o seus deuses, e aos meus também, que são. - Os dentes de Aboli luziram na escuridão enquanto ele riu. Empurrou Hal gentilmente para a abertura. - Se você chamar, estarei aqui.
O lampião ainda queimava na cabana de Katinka. Os feixes de luz amarela brilhavam nos locais mais desprotegidos do teto de sapé. Hal encostou o ouvido à parede, mas não ouviu vozes. Tentou a porta, que se abriu num estalo. Espiou para dentro, para a enorme cama de dossel que seus homens tinham carregado da cabine dela, no Resolução. As cortinas estavam fechadas para manter longe os insetos, de maneira que ele não poderia ter certeza de que havia apenas uma pessoa atrás.
Sem qualquer ruído, ele se esgueirou pela porta e chegou até a cama. Ao tocar as cortinas, uma pequena mão branca estendeu-se por entre as dobras, segurou-lhe a mão estendida e puxou-o para dentro.
- Não fale! - sussurrou Katinka. - Não diga uma palavra! Seus dedos correram ansiosos para os botões da frente da camisa,
abrindo-a até a cintura, e depois suas unhas se enterraram dolorosamente no peito de Hal.
Ao mesmo tempo, sua boca cobria a dele. Ela jamais o beijara antes, e o calor e a suavidade de seus lábios o deixaram aturdido. Hal tentou agarrar-lhe os seios, mas Katinka segurou-o pelos punhos e empurrouo para o lado, enquanto sua língua deslizava para dentro da boca de Hal e se trançava com a dele, a escorregar e se retorcer como uma enguia viva, excitando-o e provocando-o lentamente, para um nível mais alto do que antes.
Então, ainda a lhe prender as mãos para o lado, ela forçou-o a deitar de costas. Seus dedos rápidos voaram para abrir as calças de molesquim e depois, num farfalhar de sedas e rendas, ela sentou-se sobre os quadris de Hal e o comprimiu contra as cobertas de cetim. Sem usar as mãos, contorceu a pelve até encontrá-lo e sugou-o para dentro de seu calor secreto.
Muito mais tarde, Hal caiu num sono tão profundo, que era como uma pequena morte.
Uma mão insistente em seu braço nu o acordou, e ele saltou, alarmado.
- O que... - começou, mas a mão fechou-se sobre sua boca e lhe cortou as próximas palavras.
- Gundwane! Não faça barulho. Ache suas roupas e venha comigo. Depressa!
Hal rolou para fora da cama com cuidado para não perturbar a mulher ao lado, e achou as calças onde Katinka as jogara.
Nenhum dos dois falou outra vez até que tinham saído pela fenda na paliçada. Lá, pararam, enquanto Hal erguia os olhos para o céu e via, pelo ângulo do grande Cruzeiro do Sul com o horizonte, que faltava apenas uma hora ou pouco mais para o amanhecer. Aquela era a hora perigosa, em que todos os recursos humanos estavam em sua maré mais baixa. Hal olhou de volta, para a forma escura de Aboli.
- O que é Aboli? - indagou. - Por que me chamou?
- Ouça! - Aboli pousou-lhe a mão no ombro, e Hal deixou pender a cabeça.
- Não ouço nada.
- Espere! - Aboli apertou-lhe o ombro, pedindo silêncio. Então, Hal ouviu, distante e débil, abafada pelas árvores, uma descontrolada risada.
- Onde...? - Hal estava intrigado.
- Na praia.
- Pelas chagas de Cristo! - exclamou Hal. - Que bruxaria é essa agora? - Começou a correr, com Aboli ao lado, rumo à lagoa, tropeçando na escuridão no chão irregular da floresta, com os galhos mais baixos a lhes vergastarem as faces.
Ao chegarem às primeiras cabanas do acampamento, ouviram mais barulho adiante, um retalho de uma canção ininteligível e uma vaia de risadas enlouquecidas.
- Os canhões. - Hal ofegou, e viu, naquele momento, no último lampejo de uma fogueira que morria, uma pálida forma humana adiante.
Então, a voz de seu pai o confrontou:
- Quem é?
- É Hal, papai.
- O que está acontecendo? - Era evidente que Sir Francis acabara de acordar, pois estava em mangas de camisa e sua voz era engrolada de sono, porém a espada estava em sua mão.
- Não sei - disse Hal. Ouviu-se outro borbulhar de risadas estúpidas. - Vem da praia. Os canhões!
Sem mais palavras, os três saíram correndo e chegaram juntos à primeiracolubrina. Ali, à beira da lagoa, a abóbada de folhas ao alto era maisespessa, permitindo que os últimos raios da lua se filtrassem por ela,dando luz suficiente para que vissem um dos atiradores debruçado sobre o longo cano de bronze. Quando Sir Francis atingiu-o com um chutezangado, o homem caiu na areia.
Foi quando Hal avistou a pequena barrica de pé na beira do buraco. Alheio à chegada deles, um dos outros atiradores estava agachado, mãos e joelhos no chão, em frente a ela, como um cachorro, a lamber o líquido que pingava do espicho. Hal sentiu o perfume adocicado, pesado nanoite como a emanação de alguma flor venenosa. Saltou para dentro doburaco e segurou o artilheiro pelos cabelos.
- Onde conseguiu o rum? - esbravejou. O homem fitou-o com os olhos nublados. Hal armou o punho e desferiu um soco que fez os dentes do marujo estalarem nas mandíbulas. - Beberrão maldito! Onde o conseguiu? - Hal picou-o com a ponta do punhal. - Responda-me ou lhecorto a traquéia.
A dor e a ameaça mobilizaram sua vítima.
- Um presente de despedida de Sua Senhoria. - Ele ofegou. -Mandou uma barrica do Gull para bebermos à sua saúde e desejar-lhe os bons ventos de Deus.
Hal jogou o bêbado para longe e saltou sobre o parapeito.
- Os outros artilheiros? Será que o Gavião mandou presentes para todos eles?
Correram pela linha de plataformas de peças de artilharia e em cada uma encontraram barricas de carvalho de cheiro adocicado e corpos inertes. Poucos dos tripulantes ainda estavam de pé, porém mesmo esses cambaleavam e babavam, embriagados. Poucos marujos ingleses conseguiam resistir à essência ardente da cana-de-açúcar.
Até mesmo Timothy Reilly, um dos mais confiáveis timoneiros de Sir Francis, havia sucumbido e, embora tentasse responder às perguntas do patrão, girava nos pés. Sir Francis desferiu-lhe um golpe com o cabo da espada pelo lado da cabeça, e o timoneiro esparramou-se na areia.
Naquele momento, Daniel Grande chegou correndo do acampamento.
- Ouvi o tumulto, capitão. O que aconteceu?
- O Gavião supriu os atiradores de bebida. Estão todos sem sentidos. - Sua voz tremeu de fúria. - Só pode significar uma coisa. Não há um momento a perder. Acorde o acampamento. Dê armas aos homens... mas sem alarde, tenha em mente!
Enquanto Daniel se afastava correndo, Hal ouviu um leve som que vinha do navio escuro, pelas águas calmas da lagoa, um ranger distante de lingüeta de catraca, que lhe enviou choques pela espinha acima.
- O cabrestante! - exclamou. - O Gull está apertando sua regeira de âncora.
Olharam pelo canal e, ao luar, viram a silhueta do Gull começar a se alterar, conforme o cabo de reboque, correndo da âncora para o cabrestante, puxava-lhe a popa ao redor, e seu costado se mostrava para a praia.
- Seus canhões estão corridos! - exclamou Sir Francis, quando o luar iluminou os canos. Atrás de cada um, podiam agora divisar o brilho débil das mechas de queima lenta nas mãos dos artilheiros do Gull.
- Pelo hálito de Satã, vão disparar em nós! Para baixo! - gritou Sir Francis. - Desçam! - Hal saltou por sobre o parapeito do buraco do canhão e caiu de barriga no chão arenoso.
De súbito, a noite se acendeu num brilho tremeluzente, como se por um relâmpago. Um instante depois, um estrondear atingiu-lhe os ouvidos, e o tornado de metralha varreu a praia e arremessou-se pela floresta em torno. O Gull disparara todos os canhões contra o acampamento numa única surriada devastadora.
A metralha devastou a folhagem acima e os galhos, e montes de folhas e lascas de casca molhada choveram em cima deles. O ar estava cheio de um enxame mortal de estilhaços arrancados dos troncos das árvores.
As frágeis cabanas não tinham nenhuma proteção para os homens lá dentro. A surriada varreu as cabanas, fazendo as estacas voarem e derrubando as estruturas inconsistentes como se elas tivessem sido atingidas por uma onda da maré alta. Ouviram-se os gritos terrificados de homens a acordar num pesadelo, e os soluços, berros e gemidos daqueles cortados pela saraivada de tiros ou perfurados pelos estilhaços agudos e desiguais.
O Gull desaparecera atrás da mortalha da própria fumaça de artilharia, mas Sir Francis saltou de pé e arrancou a mecha da mão insensível de um atirador embriagado. Olhou pela mira da colubrina e viu que ela ainda estava apontada para a fumaça serpeante atrás da qualjazia o Gull. Comprimiu a mecha ao detonador. A colubrina berrou com uma longa golfada de fumaça prateada e saltou em ricochete em suasamarras. Ele não conseguiu ver o golpe de seu tiro, mas rugiu uma ordem para os artilheiros ainda sóbrios o bastante para obedecer:
- Fogo! Abram fogo! Continuem disparando tão depressa quanto puderem!
Escutou uma salva desigual; então, viu que muitos dos atiradores se levantavam e cambaleavam entre as árvores.
Hal saltou para a beira da plataforma, gritando por Aboli e Daniel.
- Vamos! Cada um traga uma mecha e me siga. Precisamos chegar à ilha!
Daniel já ajudava Sir Francis a recarregar a colubrina, limpando com lambaz o cano fumegante para apagar as fagulhas acesas.
- Basta, Daniel. Deixe esse trabalho para outros. Preciso de sua ajuda.
Ao olharem ao mesmo tempo para a praia, a névoa que cobria o Gull dispersou-se para o lado e a nau abriu fogo numa nova surriada, nada mais que dois minutos desde a primeira. Seus artilheiros eram rápidos e bem treinados e tinham a vantagem da surpresa. De novo, a tempestade de metralha varreu a praia e lavrou a floresta com efeito mortífero.
Hal viu uma das colubrinas ser atingida em cheio por uma bola de chumbo. A amarra escapou e ela foi arrancada de seu trilho, tanto que seu cano apontava para as estrelas.
Os gritos dos feridos e moribundos aumentavam gradualmente de volume no pandemônio de desespero, à medida que os homens desertavam de seus postos e fugiam entre as árvores. O desconexo fogo de retorno dos canhões na praia mirrou até que não passava de um estouro ocasional e o faiscar de um canhão. Assim que a bateria foi silenciada, o Gavião voltou seus canhões para as cabanas restantes e os grupos de moitas em que a tripulação do Resolução se abrigara.
Hal podia ouvir a tripulação do Gull a soltar vivas selvagens conforme recarregavam e disparavam.
- O Gull e Cumbrae! - gritavam.
Não houve mais surriadas, porém um contínuo tartamudear de estrondos conforme cada atirador disparava tão logo estava pronto. Os clarões das bocas dos canhões bruxuleavam e tremeluziam dentro da fumaça branca sulfurosa como as chamas do inferno.
Enquanto corria, Hal ouviu a voz do pai atrás de si, fraca com a distância, enquanto ele tentava reunir sua tripulação dispersa e desmoralizada. Aboli corria lado a lado com ele, e Daniel Grande estava alguns poucos passos atrás, perdendo terreno para os dois corredores mais rápidos.
- Precisaremos de mais homens para lançá-las à água. - Daniel ofegou. - São pesadas.
- Você não vai encontrá-los para nos ajudarem agora. Estão todos bêbados ou correndo pelas próprias vidas - resmungou Hal, mas, mesmo enquanto falava, ele viu Ned Tyler sair da floresta logo adiante, liderando cinco de seus marujos. Todos pareciam bastante sóbrios.
- Bom homem, Ned! - gritou Hal. - Mas, precisamos nos apressar. O Gavião mandará seus homens para a praia tão logo tenha silenciado nossas baterias.
Avançaram num grupo pelo canal raso entre eles e a ilha. A maré estava baixa, e a princípio cambalearam pelo fundo de lama viscosa que lhes sugava os pés; porém, então, chegaram à água aberta. Vadearam o banco de areia, nadaram e se arrastaram para o outro lado, com o estrondo da barragem do Gull a esporeá-los para diante.
- Há apenas um sopro de vento do sudoeste. - Daniel Grande ofegou, ao subirem, escorrendo água, pela praia da ilha. - Não será o bastante para nos servir.
Hal não respondeu, mas quebrou um galho seco e acendeu-o com sua mecha de queima lenta. Segurou-o no alto para ter luz suficiente para enxergar o caminho e correu para dentro da floresta. Em minutos, tinham cruzado a ilha e chegaram à praia do lado oposto. Hal parou e olhou para o Gull, no canal principal.
A alvorada se aproximava passo a passo, e a noite fugia diante dela. A luz se tornava cinza e prateada, a lagoa a luzir suavemente como um lençol de peltre polido.
O Gavião assestava seus canhões para trás e para a frente, com o uso da regeira da âncora, virando o Gull em sua atracação para que pudesse atingir qualquer alvo na praia.
Houve apenas um esparso clarão de resposta dos canhões na praia, e o Gavião respondeu de imediato, girando o navio e fazendo-os suportar a plena carga de sua surriada, calando-os com uma saraivada de metralha, areia que voava e árvores que caíam.
Todos do grupo de Hal estavam abatidos pela dura corrida pelos baixios lamacentos e o mergulho no canal.
- Não há tempo para descansar. - A respiração de Hal assobiava em sua garganta.
Os navios do demônio estavam cobertos com montes de ramos cortados, e eles os retiraram. Então, formaram um círculo em torno da primeira das embarcações, e cada um pegou um suporte de mão.
- Juntos, agora! - exortou-os Hal, e todos ergueram as quilhas da nau de casco duplo para fora da areia. Era pesada com sua carga, feixes de lenha seca encharcada de breu para torná-los mais inflamáveis.
Arrastaram-se para a praia transportando a nau e a deixaram cair nos baixios, onde chapinhou e rolou nas ondulações da água, o quadrado de lona suja do mastro curto e grosso a se enfunar preguiçosamente aos leves sopros de vento que vinham das pontas. Hal enrolou uma volta do proiz no pulso, para impedir que a embarcação derivasse para longe.
- Não há vento suficiente - lamentou Daniel Grande, olhando para o céu. - Pelo amor de Deus, uma brisa.
- Guarde suas preces para mais tarde. - Hal prendeu a nau e conduziu todos de volta numa corrida para as árvores. Carregaram, arrastaram e lançaram mais dois dos botes na beira da água.
- Ainda não há vento bastante. - Daniel olhou na direção do Gull. No curto tempo que lhes custara lançar as embarcações à água, a luz
da manhã se firmara, e, agora, conforme haviam parado para recuperar o fôlego, viram que os homens do Gavião abandonavam seus canhões e, dando vivas selvagens, brandindo alfanjes e lanças, pulavam para os botes.
- Vamos dar um jeito naqueles porcos. Eles consideram a luta terminada - resmungou Ned Tyler. - Vão em busca do saque.
Hal hesitou. Mais dois navios do demônio ainda jaziam na fímbria da floresta, porém lançá-los demandaria muito tempo.
- Então precisamos dar-lhes algo para mudarem de opinião - disse, muito sério, e prendeu a mecha de queima lenta entre os dentes. Vadeou, até a profundidade de suas axilas, para onde a primeira embarcação do demônio boiava, logo além da praia, e enfiou a mecha na pilha alta de cipó. Ela faiscou e se inflamou, uma fumaça azul a se desprender e a se dispersar na brisa débil conforme os troncos ensopados de breu pegavam fogo.
Hal pegou o proiz amarrado na proa e puxou a embarcação para dentro do canal. Dentro de dés metros, estava em água mais profunda, e o casco não se arrastava mais no fundo. Hal nadou para a popa e, ao encontrar um ponto de apoio nela, bateu as pernas com força e o bote avançou.
Aboli viu o que ele estava fazendo e mergulhou de cabeça na lagoa. Com poucas e poderosas braçadas, estava ao lado de Hal. Com ambos a empurrá-lo, o bote se moveu mais depressa.
Com uma das mãos na popa, Hal ergueu a cabeça fora d'água para se orientar e viu a flotilha de pequenos escaleres do Gull rumando em direção à praia. Estavam lotados de marujos que gritavam enlouquecidos, as armas a reluzirem à luz da manhã. Tão certo estava o Gavião de sua vitória, que poderia ter deixado apenas uns poucos homens a bordo para guardar o navio.
Hal olhou por sobre o ombro e viu que tanto Ned como Daniel tinham seguido seu exemplo. Conduziam o resto do grupo para a água e se agarravam às popas das duas outras embarcações, chutando a água até deixar um rastro de espuma atrás, enquanto avançavam pelo canal. Dos três botes subiam fíletes de fumaça à medida que as chamas tomavam conta das cargas de lenha ensopadas de breu.
Hal voltou para o lado de Aboli e continuou a bater as pernas com força, empurrando o barco à frente, pelo canal, para onde o Gull jaziaancorado. Então, a maré que entrava pegou-os com firmeza em seu fluxo e, como se fossem um trio de patos mancos, empurrou-os mais rapidamente.
Conforme o bote de Hal girou sua proa, ele teve uma visão melhor da praia. Reconheceu a cabeça ruiva flamejante e a barba do Gavião no escaler de liderança que rumava para o ataque ao acampamento, e imaginou que, mesmo com o tumulto, ouvia sons de sua gargalhada carregados pelas águas.
Então, teve algo mais em que pensar, pois o fogo na carga acima dele ganhara força e rugia agora vivo e turbulento. As chamas crepitavam e saltavam para o alto em colunas de densa fumaça negra. Dançavam e ondulavam como se seu calor criasse a própria correnteza de ar, e a única vela enfunou-se com mais determinação.
- Mantenha-o em movimento! - ordenou Hal, ofegante a Aboli, a seu lado. - Vire-o dois pontos mais para bombordo.
Uma golfada de calor o envolveu com tamanha força que pareceu sugar-lhe o ar dos pulmões. Ele enfiou a cabeça abaixo da superfície e tirou-a a tossir, a água a lhe escorrer em cascata pela face dos cabelos ensopados, mas mesmo assim ele continuou a bater os pés com toda a força. O Gull estava a menos de uma amarra de distância, bem à frente. Daniel e Ned seguiam logo atrás, ambas as embarcações envoltas em fumaça negra e chamas de um laranja escuro. O ar sobre eles tremia e voluteava com o calor como uma miragem no deserto.
- Mantenha-o indo em frente - resmungou Hal. Suas pernas começavam a doer insuportavelmente, e ele falou mais para si mesmo que para Aboli. O proiz amarrado à proa do navio do demônio correra para trás, ameaçando enrolar-se em suas pernas; ele chutou-o para longe -
não havia tempo para soltá-lo.
Viu o primeiro dos escaleres do Gull chegar à praia e Cumbrae saltarem terra, a girar sua espada escocesa de dois gumes em círculos reluzentes em torno da cabeça. Ao pisar na areia, jogou a cabeça para trás, soltou o sanguinário grito de guerra gaélico e, depois, escalou a praia íngreme. Ao chegar às árvores, olhou para trás para se assegurar de que seus homens o seguiam. Parou ali, com a espada ao alto, e olhou para o canal. Avistou a pequena esquadra de navios do demônio, afogueado de fumaça e chamas, que rumava firme para o Gull ancorado.
- Quase lá - arquejou Hal, e as ondas de calor que sopravam sobre sua cabeça pareceram fritar suas órbitas. Ele mergulhou a cabeça na água outra vez para esfriá-la, e desta vez, quando subiu, viu que o Gull estava apenas quarenta metros à frente.
Mesmo acima do crepitante rugir das chamas, ouviu o rosnado do Gavião:
- De volta! De volta para o Gull. Os bastardos estão mandando naus em chamas para ele. - A fragata estava recheada com o butim de um longo e duro cruzeiro de pirataria, e sua tripulação soltou um revoltado urro de ultraje quando viu os frutos de três anos tão ameaçados. Todos correram de volta para seus escaleres ainda mais depressa do que tinham avançado para a praia.
O Gavião postou-se na proa do seu, agitado e gesticulando de tal maneira, que seu equilíbrio era precário.
- Deixe-me pôr as mãos naquele porco coberto de feridas. Vou cortar-lhe a traquéia, arrancar-lhe os intestinos... - Naquele momento, reconheceu a cabeça de Hal na popa do navio em chamas que ia à dianteira, iluminado pelo clarão das chamas espiraladas, e sua voz subiu uma oitava. - E o fedelho do Franky, por Deus! Eu o pegarei! Vou tostar-lhe o fígado no próprio fogo! - esgoelou, e então se afundou numa ira inarticulada de faces cor de carmim, a rasgar o ar com a espada escocesa para incitar a tripulação a avançar mais depressa.
Hal estava apenas a uns dés metros agora do costado do Gull e encontrou força renovada para impelir as pernas exaustas. Incansavelmente, Aboli nadava a seu lado, usando o impulso à moda dos sapos para empurrar a água numa esteira espumante atrás de si.
Com o escaler do Gavião a rumar rapidamente sobre eles, cobriram os últimos poucos metros, e Hal sentiu a proa do bote em chamas bater pesadamente nas tábuas do Gull. O empurrão das ondas o imprensou ali, balançando o bote de modo que as chamas eram sopradas pela brisa matinal para lamber a lateral do Gull, chamuscando e escurecendo o costado.
- Agarrem o barco! - berrou o Gavião. - Peguem um cabo e o reboquem! - Seus remadores dispararam na direção do bote incendiado,mas, ao sentirem o calor vindo em sua direção, fraquejaram. Na proa,! o Gavião ergueu as mãos para cobrir o rosto, e sua barba ruiva se enrolava e cantava. - Para trás! - rugiu. - Ou seremos fritos! - OlhouI para o timoneiro. - Dê-me a âncora. Eu a lançarei e iremos rebocá-lo.
Hal estava prestes a mergulhar e nadar sob a água fora do círculo de calor, mas ouviu a ordem do Gavião. O proiz ainda se esticava em torno de suas pernas, e ele agarrou-o abaixo da superfície pela ponta, prendendo-o entre os pés. Então, afundou e nadou sob o casco do bote em chamas,! subindo à tona na estreita abertura entre ele e o Gull.
O cabo do leme do Gull estava à superfície, e, cuspindo água da boca, Hal fez um laço com o proiz em torno do pino. Sua face parecia prestes a empolar à medida que o calor atingia sua cabeça com golpes de martelo, porém ele amarrou a nau incendiada com firmeza na popa do Gull.
Então, mergulhou de novo e emergiu perto de Aboli.
- Para a praia! - gritou, ofegante. - Antes que o fogo alcance o estoque de pólvora do Gull.
Ambos se afastaram com longas braçadas, e Hal viu o escaler, bem próximo, quase tão perto que poderia tocá-lo, mas o Gavião perdera o interesse neles. Girava a pequena âncora em torno da cabeça e, enquanto Hal o observava, lançou-a sobre o bote em chamas, enganchando-a nele.
- Força nos remos para trás! - gritou o escocês para a tripulação. - Reboquem-na.
Os remadores usaram de toda a força, mas de imediato o bote era chamas resistiu na linha de amarração que Hal firmara, e as pás bateram na água em vão. Ele não seria rebocado, e, agora, o emplacamento do costado do Gull entrava em combustão lenta de forma ameaçadora.
Fogo era o terror de todo marinheiro. O navio era construído de material inflamável e estava recheado de explosivos, madeira e breu, lonas e cânhamo, sebo, barris de especiarias e pólvora. As faces da tripulação do escaler mostravam-se contorcidas de pavor. Mesmo o Gavião estava de olhos arregalados diante do fogo, quando desviou o olhar para o lado e viu os dois outros botes em chamas a avançar impiedosamente sem remorso sobre ele.
- Parem aqueles outros! - apontou com a espada. - Afastem-nos! - Então voltou a atenção para a embarcação incendiada atracada ao Gull.
Já então, Hal e Aboli estavam a cinqüenta metros de distância, nadando para a praia, mas Hal virou-se de costas para observar e boiar. Viu de imediato que os esforços do Gavião para rebocar o bote em chamas para longe haviam falhado.
Agora, ele remara em torno da proa do Gull e subia para o convés. Conforme sua tripulação o seguia, ele esbravejou:
- Baldes! Façam uma cadeia de baldes. Bombas! dés homens nas bombas. Joguem água nas chamas!
Os homens apressaram-se em obedecer, mas o fogo se espalhava rapidamente, comendo a popa e dançando ao longo da amurada, a chegar faminto na direção das velas recolhidas e das vergas esticadas.
Um dos homens nos escaleres do Gull agarrara o bote em chamas de Ned e, com frenéticas batidas de remo, puxava-o para longe. Outro tentava lançar um cabo ao barco de Daniel Grande, mas as chamas o forçaram a manter distância. A cada vez que tinham sucesso em enganchá-lo, Daniel girava ao redor e cortava a corda com um golpe de faca. Os homens no escaler que carregavam mosquetes e pistolas atiravam furiosamente em sua cabeça boiando, mas, embora as balas lançassem borrifos em torno de si, Daniel parecia invulnerável.
Aboli nadara para a frente, e Hal agora rolara de barriga e o seguia para a praia. Juntos, correram pela areia branca e para a floresta devastada pelos tiros. Sir Francis ainda estava na plataforma de canhão onde o tinham deixado, porém reunira em torno de si uma tripulação conseguida com dificuldade entre os sobreviventes do Resolução. Carregavam o grande canhão.
Hal correu para eles e gritou:
- O que querem que eu faça?
- Leve Aboli com você para encontrar mais alguns homens. Carregue outra colubrina. Vamos colocar o Gull sob fogo. - Sir Francis não ergueu os olhos da arma, e Hal correu de volta entre as árvores. Encontrou meia dúzia de homens, e ele e Aboli os chutaram e os arrastaram dos buracos e arbustos em que estavam escondidos, levando-os de volta às baterias silenciadas.
Nos poucos minutos que levara para reunir os atiradores, o cenário na lagoa havia mudado completamente. Daniel guiara seu bote em chamas para o lado do Gull e o prendera lá. As novas chamas acrescentavam confusão e pânico a bordo da fragata. Agora, Daniel nadava de volta para a praia. Agarrara dois de seus homens, que não sabiam nadar, e os arrastava pela água.
A tripulação do Gull conseguira apresar o bote de Ned - tinham posto cabos nele e o arrastavam para longe. Ned e seus três camaradas o abandonaram e também voltavam para a praia. Um deles, porém Hal pôde observar, não resistiu e afundou.
Ver o afogamento espicaçou a raiva de Hal: ele enfiou um punhado cheio de pólvora na caçoleta da colubrina enquanto Aboli usava uma lança de ferro para virar o cano. A arma soltou um berro de ensurdecer e os homens de Hal gritaram deliciados quando a plena carga de metralha atingiu o escaler que rebocava a nau abandonada de Ned. O escaler desintegrou-se com o choque, e os homens dentro dele foram arremessados à lagoa. Ficaram a se debater, gritando por ajuda e tentando subir para outro escaler ali perto, mas este já estava lotado, e os que estavam nele tentaram empurrar para longe com os remos, os frenéticos marujos. Alguns, no entanto, conseguiram segurar na borda e, gritando e brigan do entre si, fizeram o escaler adernar pesadamente, até que, de repente, ele emborcou. A água em torno dos cascos em chamas estava cheia de destroços e de cabeças de nadadores em desespero.
Hal concentrou-se em recarregar a arma, e, quando ergueu os olhos outra vez, viu que alguns dos homens na água tinham chegado ao Gull e subiam as escadas de corda para o convés.
O Gavião pusera por fim suas bombas a funcionar. Vinte homens as bombeavam para cima e para baixo como monges em prece à medida que lançavam seu peso nas alavancas e jatos brancos de água jorravam dos bocais das mangueiras de lona, dirigidos para a base das chamas, que agora se espalhavam pela popa do Gull.
O próximo tiro de Hal arrebentou a amurada de madeira do lado de bombordo do Gull e prosseguiu para varrer a turma que trabalhava na bomba de proa. Quatro foram arremessados longe como se por um par invisível de garras, o sangue a espirrar nos outros, ao lado, nas alavancas.
O jato de água da mangueira parou de jorrar.
- Mais homens aqui! -A voz de Cumbrae ressoou pela lagoa, enquanto ele gritava a outros para que tomassem o lugar dos mortos. De imediato, o jato d'água foi reavivado, mas fazia pouca diferença nas chamas que lambiam o casco e agora tomavam toda a popa do Gull.
Daniel Grande chegou à praia e deixou cair na areia os dois homens que resgatara. Correu para as árvores, e Hal gritou:
- Assuma o comando de uma das armas. Carregue a metralha e mire para os tombadilhos. Impeça-os de combater o fogo.
Daniel Grande sorriu para Hal com os dentes pretos e deu uma pancadinha na testa cõm o nó dos dedos.
- Tocaremos uma bela melodia para Sua Senhoria dançar - prometeu.
A tripulação do Resolução, que fora desmoralizada pelo ataque sorrateiro do Gull, agora começava a tomar coragem novamente diante da virada na sorte. Um ou dois mais emergiram de onde haviam se escondido na floresta. Então, enquanto os disparos começaram a espocar das baterias da praia e a se chocar contra o casco do Gull, os outros criaram coragem e voltaram para ajudar com as armas.
Logo, um lençol de chamas e fumaça se esticava das árvores pela água. As chamas alcançaram as vergas de mezena do Gull e tomavam conta das velas recolhidas.
Hal viu o Gavião andando em meio à fumaça, iluminado pelas chamas do navio, um machado na mão. Parou sobre a corda de âncora onde ela se esticava tesa através da sapata e, com um giro gigantesco do machado, cortou-a fora. De imediato, o navio começou a ser carregado pelo vento. Ele ergueu a cabeça e berrou uma ordem a seus marujos, que subiam pelas enxárcias.
Soltaram a vela mestra, e a nau respondeu rapidamente. Assim que o navio colheu a brisa crescente, as chamas sopraram para o outro lado, e os combatentes do incêndio puderam avançar e dirigir a água das mangueiras para a base do fogo.
O Gull rebocou os dois botes em chamas por uma curta distância, mas, quando os cabos que os prendiam queimaram também, deixou-os para trás, enquanto rumava lentamente canal abaixo.
Ao longo da praia, as colubrinas continuaram a disparar salva após salva sobre o Gull, mas, à medida que a nau ficava fora de alcance, a bateria foi silenciando. Com a fumaça e chamas alaranjadas ainda a ondearem por trás, o Gull rumou para mar aberto. Então, quando entrava no canal entre as pontas e procurava velejar livre, as baterias escondidas nos penhascos abriram fogo contra ele. A fumaça dos disparos rodopiava por entre asrochas cinzentas, e as balas de canhão arrancavam jatos de espuma ao longo da linha-d'água do Gull, ou abria buracos em suas velas.
Penosamente, a nau correu suas defesas e, por fim, deixou as baterias fumegantes fora de alcance.
- Sr. Courtney! - gritou Sir Francis para Hal. - Mesmo no calor da batalha, ele usava o tratamento formal. - Tome um bote e cruze para as pontas. Mantenha o Gull sob observação.
Hal e Aboli chegaram ao lado oposto da baía e escalaram o terreno alto até o topo das cabeceiras. O Gull já estava um quilômetro e meio ao largo, a colher o vento com o conjunto de velas dos dois mastros da frente. Filetes de fumaça cinza-escura dispersavam-se de sua popa, e Hal pôde ver que a tripulação apagara os últimos vestígios de fogo e se esforçava para colocar o navio sob controle e a velejar novamente.
- Demos uma lição a Sua Senhoria que será lembrada por muito tempo - exultou Hal. - Duvido que tenhamos mais problemas com ele por um tempo.
- O leão ferido é o mais perigoso - resmungou Aboli. - Neutralizamos seus dentes, mas ele ainda tem suas garras.
Quando Hal pulou do bote para a praia, abaixo do acampamento, descobriu que seu pai já tinha uma turma de homens notrabalho, reparando o dano à bateria de colubrinas ao longo da praia. Estavam construindo parapeitos e nivelando as duas armas que haviam sido arrancadas de seus trilhos pelas surriadas do Gull.
Onde jazia de querena, na praia, o Resolução fora atingido por um tiro. O disparo do Gull abrira grandes feridas nas tábuas. A metralha perfurara o costado, porém não penetrara nas pranchas robustas. O carpinteiro e seus companheiros já estavam na lida, cortando fora as seções danificadas e verificando as esquadrias sob elas, num preparativo para recolocar novas tábuas de carvalho dos estoques do navio. Os caldeirõesde breu borbulhavam e fumegavam sobre os carvões, e o raspar de serras e o murmúrio de plainas ressoavam pelo acampamento.
Hal encontrou o pai mais além, entre as árvores, onde jaziam os feridos sob um abrigo improvisado de lona. Contou dezessete e, num olhar, pôde dizer que pelo menos três dificilmente veriam a alvorada do dia seguinte. A aura da morte já pairava sobre eles.
Ned Tyler desdobrava-se como cirurgião do navio - fora treinado para o papel na rústica e empírica escola do convés de armas, e manejava seus instrumentos com o mesmo brusco abandono com que os carpinteiros trabalhavam no casco perfurado do Resolução.
Hal viu que ele realizava uma amputação. Um dos homens do mastaréu da gávea levara uma rajada de metralha na perna, logo abaixo do joelho, e o membro pendia num farrapo de carne e nervos brancos expostos do qual se projetavam as lascas brancas do osso da canela. Dois dos companheiros de Ned tentavam segurar o paciente num lençol de lona encharcado de sangue, enquanto ele se debatia e se retorcia. Tinham passado um cinto dobrado de couro entre seus dentes. O marinheiro o mordia com tanta força que os nervos de seu pescoço saltavam como cordas esticadas. Seus olhos pulavam da face retorcida e escarlate, e seus lábios estavam escancarados num ricto terrível. Hal viu um de seus dentes podres e pretos explodir sob a pressão da mordida.
Afastou o olhar para longe e começou seu relatório para Sir Francis:
- O Gull rumava para oeste da última vez que o vi. O Gavião parece ter controlado o fogo, embora a nau esteja fazendo uma nuvem de fumaça...
Foi interrompido por gritos quando Ned pôs de lado a faca e pegou a serra para serrar o osso arrebentado. Então, abruptamente, o homem caiu em silêncio e abandonou-se ao aperto dos companheiros que o seguravam. Ned deu um passo atrás e meneou a cabeça.
- O pobre bastardo está se despedindo. Tragam um dos outros. - Limpou o suor e a fumaça da face com a mão cheia de sangue e deixou uma mancha vermelha pela bochecha.
Embora o estômago de Hal se revirasse, ele manteve a voz firme enquanto continuava o relatório.
- Cumbrae está dando duro com todas as velas que o Gull poderia enfunar. - Estava determinado a não mostrar fraqueza em frente aos homens e ao pai, porém sua voz falhou quando Ned começou a arrancar um grosso fragmento de madeira das costas de outro marujo. Hal não conseguia desviar os olhos.
Os dois musculosos assistentes de Ned montaram sobre o corpo do paciente e o seguraram para baixo, enquanto ele agarrava a ponta protuberante da lasca com um par de pinças de ferreiro. Colocou um pé nas costas do homem para ter apoio e inclinou-se para trás com todo o peso. A lasca bruta era tão grossa quanto seu polegar, com farpas como uma cabeça de flecha, e resistiu bastante até finalmente ser extraída. Os gritos do ferido ecoavam pela floresta.
Naquele momento, o governador van de Velde aproximou-se dele,bamboleando, pelas árvores. Sua esposa apoiava-se em seu braço, a chorar copiosamente e quase incapaz de suportar o próprio peso. Zelda a seguia de perto, tentando colocar um frasco de sais aromáticos sob o nariz da patroa.
- Capitão Courtney! - gritou van de Velde. - Devo protestar nos termos mais veementes possíveis. O senhor nos colocou no mais calamitoso perigo. Uma bala passou pelo teto de minha habitação. Eu poderia ter sido morto. - Enxugou as papadas encharcadas de suor com o lenço de pescoço.
O coitado que recebia os cuidados de Ned soltou naquele instante um grito lancinante, quando um dos assistentes despejou breu quente para estancar o sangramento da ferida profunda em suas costas.
- Precisa manter aqueles seus cretinos calados. - Van de Velde apontou com mão trêmula para o marujo seriamente ferido. Seus balidos de terreiro estão assustando e ofendendo minha esposa.
Com um último gemido, o paciente caiu para trás, em silêncio, morto pela generosidade de Ned. A expressão de Sir Francis era sombria quando ele ergueu o chapéu para Katinka.
- Mevrouw, não pode duvidar de nossa consideração para com suas suscetibilidades. Parece que o sujeito grosseiro prefere morrer a ofendêla mais. - Suas feições eram duras e pouco gentis quando continuou: - Em vez de ficar com esses mios e se permitir cheirar os vapores de sais, talvez possa gostar de ajudar mestre Ned no trabalho de cuidar dos feridos, não?
Van de Velde empertigou-se todo diante da sugestão e encarou-o com fúria.
- Mijnheer insulta minha esposa. Como se atreve a sugerir que ela possa atuar como uma criada para esses reles camponeses?
- Peço desculpas a sua esposa, porém sugiro que, se ela não tem nenhuma serventia aqui além de embelezar a paisagem, leve-a de volta para a cabana e a mantenha lá. Quase com certeza haverá outras cenas e sons desagradáveis para testar-lhe os nervos. - Sir Francis fez um gesto a Hal para que o seguisse e deu as costas ao governador. Lado a lado, ele e o filho caminharam para a praia, passaram por onde os encarregados de fazer as velas costuravam os mortos nas mortalhas de lona e uma turma já cavava suas sepulturas. Num tal calor, precisavam ser enterrados no mesmo dia. Hal contou os embrulhos.
- Só vinte são nossos - disse-lhe o pai. - Os outros sete são do Gull, lançados à praia. Fizemos oito prisioneiros também. Vou tratar deles agora.
Os cativos estavam sob guarda na praia, sentados em fila com as mãos entrelaçadas atrás das cabeças. Ao se aproximarem deles, Sir Francis disse, alto o bastante para ser ouvido:
- Sr. Courtney, faça seus homens armarem oito laços naquela árvore. - Apontou para os galhos esparramados de uma imensa figueira. - Vamos pendurar alguns novos frutos nela. - Soltou uma risadinha tão macabra que Hal ficou espantado.
Os oito deixaram escapar um gemido de protesto.
- Não nos enforque, senhor. Eram ordens de Sua Senhoria. Só fizemos o que ele mandou.
Por um instante mais, Hal hesitou. Estava abalado diante da perspectiva de ter de levar a efeito uma execução assim, tão a sangue-frio, mas quando viu a expressão do pai, apressou-se em obedecer.
Rapidamente foram lançadas cordas por sobre os galhos robustos e laços feitos nas pontas pendentes. Um grupo de marinheiros do Resolução postou-se pronto para içar as vítimas ao alto.
Um de cada vez, os oito prisioneiros do Gull foram arrastados para as pontas das cordas, as mãos atadas atrás das costas e as cabeças enfiadas entre os laços. Sob as ordens do pai, Hal percorreu a fila e ajustou os nós sob as orelhas de cada vítima. Então se voltou para encarar o pai, o rosto pálido e o estômago enjoado. Tocou a testa, numa continência.
- Pronto para proceder à execução, senhor.
Sir Francis desviou a face dos condenados e falou baixinho, pelo canto da boca.
- Implore por suas vidas.
- Senhor? - Hal parecia abobalhado.
- Maldição. - A voz de Sir Francis falhou. - Peça-me para poupálos - murmurou.
- Perdão, senhor, mas não irá poupar estes homens? - disse Hal, bem alto.
- Os patifes não merecem nada além da ponta da corda - esbravejou Sir Francis. - Quero vê-los dançar um sapateado para o diabo.
- Estavam apenas cumprindo as ordens de seu capitão. - ponderou Hal, no papel de advogado. - Não vai lhes dar uma chance?
As cabeças nos laços dos oito homens viravam para trás e para frente enquanto seguiam a argumentação. Suas expressões eram abjetas, porém seus olhos guardavam um débil luzir de esperança.
Sir Francis levou o dedo ao queixo.
- Não sei. - Sua expressão ainda era feroz. - O que fazer com eles? Soltá-los na floresta para servirem de pasto para os animais selvagens e os canibais? Seria mais misericordioso pendurá-los.
- Poderíamos usá-los como tripulação para substituir os homens que perdemos - pediu Hal.
Sir Francis pareceu ainda mais em dúvida.
- Não prestariam um juramento de lealdade, prestariam? - Olhou carrancudo para os condenados, que, não tivessem os laços no pescoço para contê-los, teriam caído de joelhos.
- Nós o serviremos com lealdade, senhor. O jovem cavalheiro temrazão. Não encontrará homens melhores nem mais leais do que nós.
- Traga minha Bíblia de minha cabana - resmungou Sir Francis, os oito marujos fizeram o juramento de serviço com os laços em torno dos pescoços.
Daniel Grande libertou-os e conduziu-os para longe, e Sir Francis ficou a observá-los ir com satisfação.
- Oito espécimes de primeira linha para substituir algumas de nossas perdas - murmurou. - Precisaremos de cada mão que pudermos encontrar, se quisermos ter o Resolução pronto para o mar antes do fim deste mês. - Olhou pela lagoa, para a entrada entre as pontas de terra - Só o bom Senhor sabe quem poderá ser nosso próximo visitante, se nos demorarmos aqui.
Voltou-se para Hal.
- Isso deixa apenas os bêbados que caíram no rum do Gavião. Pensa em outra seção de chicotadas, Hal?
- É hora de tornar metade de nossa tripulação inútil com o azorrague, papai? Se o Gavião voltar antes que estejamos prontos para o mar, então eles não lutarão melhor com metade da carne arrancada das costas.
- Então está dizendo para deixá-los se safar livres? - perguntou Sir Francis com frieza, a face perto da de Hal.
- Por que não tirar deles a parte do espólio do Standvastigheià e dividi-la entre os outros que lutaram sóbrios?
Sir Francis encarou-o por um momento a mais e depois sorriu, com um ar sério.
- O julgamento de Salomão! Seus bolsos lhes darão mais dor que suas costas, e acrescentarão um guinéu ou três à nossa própria parte.
Angus Cochran, conde de Cumbrae, subiu até o cume do passo da montanha, pelo menos uns trezentos metros acima da praia,onde tinha chegado em terra, vindo do Gull. Seus contramestres e dois marujos o seguiam. Todos carregavam mosquetes e alfanjes. Um dos homens equilibrava uma pequena barrica de água de beber no ombro, pois o sol africano seca rapidamente a umidade do corpo de uma pessoa.
Custara metade da manhã de dura escalada seguir as trilhas de caça ao longo das saliências íngremes e estreitas, para alcançar aquele ponto de vigia, que Cumbrae conhecia bem. Ele o usara mais de uma vez, antes. Um hotentote que tinham capturado na praia o levara ali pela primeira vez. Agora, enquanto se acomodava confortavelmente numa rocha que formava um assento parecido com o de um trono, os ossos brancos do hotentote jaziam a seus pés, no chão. O crânio brilhava como uma pérola, pois estava ali fazia três anos, e as formigas e outros insetos tinham-no deixado limpo. Teria sido tolice de Cumbrae permitir que o selvagem contasse histórias de sua chegada à colônia holandesa de Boa Esperança.
De seu trono de pedra, Cumbrae tinha uma vista panorâmica, de tirar o fôlego, de dois oceanos e do cenário irregular montanhoso que se espalhava por toda parte ao redor de si. Quando olhou de volta para o caminho pelo qual tinham vindo, pôde avistar o Gull ofMoray ancorado não muito distante de um pequeno trecho de praia que se abrigava precariamente ao pé dos altos penhascos onde as montanhas caíam para ornar. Havia 12 picos diferentes naquela faixa marítima, marcadas como os 12 Apóstolos nas cartas náuticas holandesas que ele capturara.
Olhou para o Gull através da luneta, porém pôde divisar apenas uma pequena evidência do incêndio que a nau sofrera na popa. Ele conseguira substituir as vergas de mezena e enrolar novas velas sobre elas. Daquela grande altura e distância, ela parecia adorável como sempre, afastada de olhos inquisitivos na enseada de águas verdes abaixo dos Apóstolos.
O escaler que trouxera Cumbrae através das ondas ainda estava na praia, pronto para uma rápida partida se ele se defrontasse com problemas em terra. Contudo, não esperava nenhum. Poderia encontrar uns poucos hotentotes entre os arbustos, mas eram uma tribo inofensiva, meio despida, gente pastoril com maçãs do rosto salientes e olhos puxados asiáticos, que poderiam ser dispersos desordenadamente por um tiro de mosquete por sobre suas cabeças.
Muito mais perigosos eram os animais selvagens que abundavam naquela terra inóspita e indomável. Na noite anterior, do tombadilho do Gull ancorado, tinham ouvido rugidos terríveis de enregelar o sangue, a aumentar e diminuir, culminando numa série de grunhidos e resmungos mais baixos que soava como o coro de todos os demônios do inferno.
- Leões! - tinham sussurrado, uns para os outros, os mais velhos, que conheciam a costa, e a guarnição do navio ficara a escutar em silên cio respeitoso. De madrugada, tinham visto um dos terríveis gatos amarelos, do tamanho de um pônei, com uma densa juba escura a lhe cobrir a cabeça e que chegava até abaixo de seu ombro, a caminhar pelas areias brancas da praia com régia indolência. Depois disso, fora preciso a ameaça do chicote para forçar a tripulação do escaler a remar e levar Cumbrae e seu grupo para a praia.
Ele levou a mão para o saco de couro que se pendurava em frente a seu manto xadrez e tirou um frasco de peltre. Inclinou sua base para o céu e tomou dois longos goles; depois, suspirou com prazer e torceu a rosca de volta no pescoço do frasco. Seus contramestres e os dois marujos o fitaram intensamente, porém ele sorriu e meneou a cabeça.
- Não faria bem nenhum a vocês. Guardem minhas palavras, uísque é a própria urina quente do diabo. Se não tiverem um pacto com ele, como eu tenho, seria melhor nunca deixá-lo passar por seus lábios.
Enfiou o frasco de volta no saco e ergueu a luneta para o olho. A sua esquerda, erguia-se o cume da montanha em forma de esfinge que os marinheiros mais antigos chamavam de Cabeça de Leão, quando a viam do mar. A direita se elevava o íngreme penhasco que subia em torre até o topo chato da poderosa montanha da Mesa, que dominava o horizonte e dava nome à baía que se abria abaixo dela.
Bem abaixo de onde ele se sentava, a baía da Mesa era uma adorável curva de água aberta a abrigar uma pequena ilha em seus braços. Os holandeses a chamavam de ilha Robben, pois esse era o nome dos milhares de focas que a infestavam.
Além, ficava a expansão interminável do Atlântico Sul, varrida pelo vento. Cumbrae esquadrinhou a vista em busca de qualquer sinal de uma vela estranha, porém, quando não divisou nada, transferiu a atenção para baixo, para a povoação holandesa de Boa Esperança.
Havia pouco que a fizesse se destacar da terra selvagem e rochosa que a rodeava. Os tetos de poucas edificações eram de sapé e se misturavam aos arredores. As hortas da companhia, que haviam sido plantadas para fornecer provisões para os navios da VOC na passagem para o leste, eram os mais evidentes sinais de intrusão humana. Os campos regulares em retângulo eram ou de um verde-claro com a cultura ou marrom-chocolate com a terra recém-revolvida.
Logo acima da praia, ficava o forte holandês. Mesmo daquela distância, Cumbrae podia ver que estava incompleto. Ouvira de outros capitães que, desde o início da guerra com a Inglaterra, os holandeses tentavam acelerar a construção, porém havia ainda aberturas nas paredes externas defensivas, como dentes em falta.
O forte e seu estado semi-acabado eram de interesse para Cumbrae apenas no que dizia respeito a oferecer proteção aos navios que jaziam ancorados na baía, sob seus canhões. Naquele momento, três grandes embarcações estavam ali, e ele lhes dirigiu a atenção.
Uma delas parecia uma fragata naval. Desfraldava a insígnia da república, laranja, branco e azul, do topo de mastro. Seu casco era pintado de preto, mas as portinholas dos canhões eram destacadas em branco. Cumbrae contou dezesseis do lado que se apresentava para ele. O Gull poderia ser derrotado se alguma vez chegassem a um enfrentamento. Porém, essa não era sua intenção. Queria presas mais fáceis, e isso significava uma das outras duas naus na baía. Ambas eram mercantes, e ambas desfraldavam a insígnia da companhia.
- Qual será? - resmungou, ao olhar para elas com maior atenção. Uma parecia familiar. Rodava alto na água, e ele supunha que estava provavelmente lastreada e no percurso a leste de sua viagem, rumando para as possessões holandesas a fim de recolher carga valiosa.
- Não, por Deus, reconheço o corte de sua bujarrona agora - exclamou ele, em voz alta. - É o Lady Edwina, o velho navio de Franky. Ele me disse que o mandara de volta ao cabo com seu pedido de resgate. - Estudou a embarcação um pouco mais. - Foi deixado nu; até mesmo os canhões estão fora dele.
Perdendo o interesse na nau como uma possível presa, Cumbrae virou sualuneta para o segundo mercante. Era ligeiramente menor que o Lady Edwina, porém estava pesado de carga, a rodar tão baixo que suas portinholas inferiores estavam quase à flor d'água. Obviamente estava em viagem de retorno, e recheado com os tesouros do Oriente. O que o tornava mais atraente era que jazia ancorado mais longe da praia que o outro mercante, pelo menos a duas amarras de distância das muralhas do forte. Mesmo nas melhores condições, seria impossível um longo tiro de canhão dos atiradores holandeses sobre a praia.
- Uma vista adorável. - O Gavião sorriu para si mesmo. - Faz a boca da gente se encher de água.
Passou outra meia hora estudando a baía, notando as linhas de espuma que marcavam o fluxo da corrente ao longo da praia e o comportamento do vento à medida que descia das alturas. Planejou sua entrada na baía da Mesa. Sabia que os holandeses tinham um pequeno posto nas escarpas da Cabeça de Leão, cujos vigias iriam alertar o povoado da aproximação de um navio estranho com um tiro de canhão.
Mesmo à meia-noite, na presente fase da lua, poderiam ser capazes de avistar o brilho de suas velas enquanto ele ainda estivesse longe no mar. Teria de fazer um círculo largo, bem abaixo do horizonte, e depois vir do oeste, usando a massa da ilha Robben como disfarce para passar sem ser observado até mesmo pelo mais atento vigia.
Sua tripulação era bem versada na arte de abocanhar uma presa sob as baterias de costa. Era um truque inglês especial, adorado tanto porHawkins como por Drake. Cumbrae o polira e refinara, e se considerava tão mestre quanto aqueles grandes piratas elisabetanos O prazer de furtar uma presa sob o nariz do inimigo o recompensava muito além do espólio resultante.
- Montar a boa esposa enquanto o marido ronca na cama ao lado dela... - muito mais doce que lhe erguer as saias enquanto ele está fora, no mar, sem oferecer risco. - Ele soltou uma risadinha e varreu a baía com a luneta, a verificar se nada havia mudado desde sua última visita, se não havia perigos à espreita, tal como um canhão recém-colocado ao longo da costa.
Embora o sol tivesse passado de seu zênite e houvesse uma longa jornada de volta até onde o escaler esperava na praia, ele se demorou um pouco mais estudando os cordames da presa através das lentes. Assim que pusesse as mãos nele, seus homens precisavam ser capazes de içar as velas com rapidez e tirar a nau da costa de sotavento na escuridão.
Passava da meia-noite quando o Gavião, usando como marco de terra o imenso volume da montanha da Mesa, que obliterava metade do céu ao sul, levou o Gull para dentro da baía, vindo do oeste. Ele estava confiante em que, mesmo numa clara noite estrelada como aquela, com metade da lua brilhando, ainda estaria fora das vistas do vigia na Cabeça de Leão.
O formato escuro de baleia da ilha Robben ergueu-se com espantosa brusquidão da obscuridade adiante. Ele sabia que não havia destacamento permanente naquele pedaço nu de rocha, de maneira que poderia levar o Gull para perto de sua costa de sotavento e lançar âncora em sete braças de água protegida.
O escaler no convés estava pronto para ser lançado. Tão logo a âncora no turco de ferro mergulhou espadanando água nas ondas suaves, o bote balançava ao lado da amurada e descia para a superfície. O Gavião já inspecionara o grupo de abordagem. Estavam armados com pistolas e alfanjes e porretes de carvalho, e suas faces escurecidas com fuligem para que parecessem um bando de selvagens com apenas os olhos e os dentes reluzindo. Estavam vestidos com gibões enegrecidos de piche, e dois homens tinham machados para cortar o cabo de âncora da presa.
O Gavião foi o último a descer a escada para o escaler, e, assim que estava a bordo, eles partiram. Os remos estavam abafados, as toleteiras almofadadas, e o único som era o mergulho das pás, porém mesmo este se perdia no quebrar das ondas e no cantar gentil do vento.
Quase imediatamente depois que saíram de detrás da ilha, puderam ver as luzes do continente, duas ou três pequenas marcas das fogueiras de vigia nas muralhas do forte, e feixes de lamparina das edificações fora das muralhas, espalhadas ao longo da orla marítima.
As três naus que ele avistara da depressão das montanhas ainda estavam ancoradas na enseada. Cada uma exibia uma luz de ancoragem no topo do mastro, e outra na popa. Cumbrae sorriu na escuridão.
- Muita gentileza dos cabeças-de-queijo colocar um aviso de boasvindas para nós. Não sabem que há uma guerra em curso?
Daquela distância, ele não conseguia ainda distinguir um navio dos outros, porém sua tripulação forçou os remos, ansiosa, o cheiro da presa em suas narinas. Meia hora mais tarde, embora estivessem ainda fora na baía, Cumbrae pôde divisar o Lady Edwina. Descartou-o de seus cálculos e desviou todo o interesse para a outra embarcação, que não mudara de posição e ainda jazia a distância maior das baterias do forte.
- Aproe para o navio do lado de bombordo - ordenou ele a seu contramestre num sussurro.
O escaler alterou um ponto, e o bater dos remos recomeçou. O segundo estava perto, à popa, como um cão de caça nos calcanhares, e Cumbrae espiou para trás, para sua forma escura, grunhindo de aprovação. Todas as armas estavam cobertas, não havia nenhum reflexo de luar numa lâmina nua ou cano de pistola que pudesse luzir e avisar o vigia de bordo da caça. Nem havia uma mecha acesa para mandar a diante um fiapo de fumaça pelo vento ou um brilho de luz, avisando de suachegada.
Ao deslizarem furtivamente na direção da nau ancorada, Cumbrae leu seu nome do pranchão. De Swael, a Andorinha. Estava alerta para qualquer sinal de um vigia de âncora: aquela era uma costa de sotavento, com o sudeste a dançar imprevisível em torno da montanha, mas ouo capitão holandês era descuidado ou o vigia dormira, pois não havia nenhum sinal de vida a bordo do navio escuro.
Dois marinheiros postavam-se prontos para aparar o choque com o costado do Andorinha, e chumaços de estopa nodosa pendiam do lado do escaler para suavizar o impacto. Um sólido contato de tábuas contra o casco se espalharia pelo navio como o corpo ressonante de uma viola e acordaria cada pessoa a bordo.
Tocaram a embarcação com a gentileza de um beijo de virgem, e um dos homens, escolhido por sua habilidade simiesca como escalador, saltou e imediatamente escalou depressa o costado, puxando um cabo atéo arganéu de âncora de um trilho de canhão, que deixou cair de volta para o escaler abaixo.
Cumbrae parou o tempo suficiente para erguer o postigo da lanterna e acender a mecha de queima lenta com a chama e, depois, segurou a corda e subiu com os pés descalços, calejados de caçar veados sem botas. Numa pressa silenciosa, as tripulações de ambos os botes, também descalços, o seguiram.
Cumbrae tirou a lança do cinto e, com o contramestre a seu lado, correu sorrateiramente para a proa. O vigia de âncora estava encolhido no convés, fora do vento, dormindo como um cachorro em frente à lareira. O Gavião parou sobre ele e lhe perfurou o crânio com um golpe forte da lança de ferro. O homem suspirou, esticou as pernas e mergulhou num estado ainda mais profundo de inconsciência.
Seus homens já estavam em cada escotilha do Andorinha, rumando para os conveses inferiores, e, enquanto Cumbrae corria de volta para a popa, fechavam as cobertas e corriam as escotilhas, aprisionando a tripulação holandesa abaixo dos tombadilhos.
- Não há mais que vinte da guarnição a bordo - resmungou ele para si mesmo. - E, provavelmente, de Ruyter terá recrutado a maioria de marujos de primeira viagem para a Marinha. Serão apenas garotos e velhos gordos em seu último percurso. Duvido que nos causem muitos problemas.
Olhou para as figuras escuras de seus homens silhuetados pelas estrelas enquanto corria para as enxárcias e dançava ao longo das vergas. Conforme as velas se enfunavam, ele ouviu adiante a suave pancada de um machado quando o cabo da âncora foi cortado. Imediatamente o Andorinha ganhou vida e desacorrentou-se sob seus pés assim que caiu a sotavento. Seus contramestres já estavam na vara de leme.
- Para a frente. Rumo oeste! - falou Cumbrae asperamente, e os homens puseram a embarcação de cabeça tão virada para o vento quanto foi possível.
Cumbrae viu de imediato que o navio pesado de carga era surpreendentemente fácil de manobrar, e que seriam capazes de levá-lo para a ilha Robben naquela amura de bombordo. dés homens armados esperavam, prontos para segui-lo. Dois carregavam lanternas de tempestade com os postigos fechados, todos tinham mechas queimando para as pistolas. Cumbrae pegou uma das lanternas e conduziu seus homens numa corrida para baixo, para os alojamentos dos oficiais, na popa. Tentou a porta da cabine que deveria se abrir para as galerias de popa e encontrou-a destrancada. Esgueirou-se por ela, rápida e silenciosamente. Quando acendeu a lanterna, um homem num camisolão enfeitado com borlas sentou-se no beliche.
- Wie is ditf - resmungou ele, sonolento.
Cumbrae puxou-lhe os lençóis sobre a cabeça para abafar qualquer outro grito, deixou que seus homens subjugassem e amarrassem o capitão, correu pelo corredor e irrompeu dentro da próxima cabine. Ali, outro oficial holandês já acordara. Gordo e de meia-idade, seus cabelos grisalhos a lhe caírem pelos ombros, ele ainda cambaleava de sono ao levar a mão para a espada que pendia de sua bainha ao pé da cama. Cumbrae lançou-lhe um facho de luz da lanterna nos olhos e colocou a ponta aguda da espada escocesa na garganta do homem.
- Angus Cumbrae, a seu serviço - disse o Gavião. - Renda-se, ou irei dá-lo às gaivotas aos bocadinhos.
O holandês poderia não ter compreendido o enrolado sotaque escocês, porém o propósito de Cumbrae era inconfundível. Fungando, ergueu ambas as mãos acima da cabeça; o grupo de abordagem rodeouo e empurrou-o para o tombadilho, enrolando os lençóis em torno de sua cabeça.
Cumbrae correu para a última cabine, porém, ao pôr a mão na porta ela se abriu de dentro com tanta força que ele foi lançado pela passagem contra a antepara. Uma figura robusta irrompeu pela soleira com um berro de enregelar o sangue. Desferiu um golpe sobre a cabeça doGavião, mas, no espaço estreito do corredor, a lâmina de sua espada vergastou o dintel da porta, dando a Cumbrae um instante para se recobrar. Ainda berrando de raiva, o estranho investiu contra ele de novo.Desta vez, o Gavião aparou o golpe, e a espada passou por cima de seul ombro para despedaçar o painel atrás dele. Os dois homens fortes lançaram-se pelo corredor, lutando a curta distância, quase peito a peito. O holandês gritava insultos numa mistura de inglês e seu próprio idioma, e Cumbrae respondia num inflamado sotaque escocês:
- Seu cabeça-de-queijo tagarela, comedor de freira! Vou lhe enfiar os miúdos pela orelha. - Seus homens dançavam ao redor deles com porretes erguidos, esperando para derrubar o oficial holandês, mas Cumbraegritou: - Não o matem! É um janota e valerá um belo resgate.
Mesmo à luz incerta da lanterna, ele reconhecera a qualidade doadversário. Acabado de levantar do beliche, o holandês não usava peruca na cabeça raspada, mas seus belos bigodes de ponta mostravam que era um homem na moda. Seu camisolão de linho bordado e a espada que brandia com ostentação de um mestre em duelo, tudo comprovava que era um cavalheiro, e não havia engano.
A lâmina mais longa da espada escocesa era uma desvantagem num espaço restrito, e Cumbrae foi forçado a usar a ponta em vez das bordas duplas. O holandês investiu e depois fez uma finta baixa e esgueirou-se por baixo de sua guarda. Cumbrae assobiou de raiva quando aço voou sob o braço direito erguido, perdendo-o pela largura de um dedo e arrancando uma chuva de lascas do painel atrás do oponente.
Antes que seu adversário pudesse recobrar-se, o Gavião enlaçou o braço esquerdo no pescoço do homem e agarrou-o num abraço de urso. Atracados na estreita passagem, nenhum deles podia usar a espada. Deixaram-nas cair e se arrastaram em luta de uma ponta à outra do corredor, a rosnar e xingar como um par de cães, para depois grunhir e uivar de dor e afronta quando, primeiro um e depois o outro, desferiu um soco potente sobre a cabeça ou enterrou o cotovelo na barriga do outro.
- Arrebentem-lhe o crânio - gritou Cumbrae, ofegante para seus homens. - Abatam o bruto. - Não estava acostumado a ser superado numa disputa de músculos, porém o outro era páreo para ele. O joelho do oponente, lançado para cima, atingiu a entreperna do Gavião, e ele urrou novamente: - Ajudem-me, seus malditos sifilíticos amarelos. Derrubem o bastardo!
Conseguiu livrar uma das mãos e cravou-a na cintura do adversário; depois, a face escarlate com o esforço, ergueu-o e girou-o para que suas costas se apresentassem para um marujo que esperava com um porrete erguido no punho. A arma se abateu com um prático e controlado choque na parte de trás da cabeça raspada, não com força bastante para rachar o osso, mas com violência suficiente para atordoar o holandês e fazer com que suas pernas bambeassem como geléia. Ele desabou nos braços de Cumbrae.
Ofegante, o Gavião jogou-o sobre o convés, e todos os quatro marujos se lançaram sobre o holandês, prendendo-lhe as pernas e montando-lhe as costas.
- Passe uma corda nesse endiabrado - arquejou Cumbrae -, antes que se recobre e nos arrebente, arruinando nosso trabalho.
- Outro nojento pirata inglês! - murmurou o holandês debilmente, balançando a cabeça para clarear os pensamentos e a se debater pelo convés conforme tentava se livrar dos captores.
- Não vou tolerar seus insultos - resmungou Cumbrae, furioso, enquanto esfregava a barba ruiva desgrenhada e pegava sua espada. - Pode me chamar de pirata nojento se quiser, porém não sou inglês e lhe agradeceria se se lembrasse disso.
- Piratas! Todos vocês, escória, são piratas.
- E quem é você para me chamar de escória, você com seu enorme traseiro apontado para o ar? - Na refrega, o camisolão do holandês tinha se enrolado em torno de sua cintura, deixando-o nu para baixo. - Não falarei com um homem com trajes tão indecentes. Arrume suas roupas, senhor, e depois continuaremos com esta discussão.
Cumbrae subiu para o tombadilho e viu que todos já tinham rumado para o mar. Gritos e baques abafados subiam das escotilhas corridas, porém seus homens tinham pleno controle do convés.
- Serviço bem-feito, seu bando de espertos ratos do mar. Os cinqüenta guinéus mais fáceis que já puseram nos bolsos. Dêem um viva a si mesmos e façam uma micagem para o diabo - bradou ele para que até mesmo os homens nas vergas pudessem ouvi-lo.
A ilha Robben estava apenas uma légua à frente, e conforme a baía se abriu diante deles, puderam divisar o Gull à luz da lua.
- Ice uma lanterna ao topo do mastro - ordenou Cumbrae -, e poremos um grande trecho de água entre nós antes que os cabeças-dequeijo no forte esfreguem os olhos de sono.
Assim que a lanterna subiu, O Gull repetiu o sinal em confirmação,Então içaram a âncora e seguiram com a presa para o mar.
- Com certeza há um bom desjejum na cozinha - disse Cumbrae a seus homens. - Os holandeses sabem como cuidar de suas barrigas. Assim que os tiverem trancafiado nos próprios grilhões, podem cuidardo repasto. Contramestre, mantenha a nau firme enquanto ela se afasta. Vou descer para dar uma espiada no manifesto e descobrir do que nos apoderamos.
Os oficiais holandeses foram atados pelos pés e pelas mãos e deixados numa fila no convés da cabine principal. Um marinheiro armado postou-se junto a cada homem. Cumbrae acendeu-lhes a lanterna nasfaces e examinou-os em seguida. O oficial grandalhão e belicoso ergueua cabeça e berrou:
- Peço a Deus que eu viva para vê-lo balançando na ponta da corda, junto com todos os outros piratas ingleses germinados pelo demônio que infestam os oceanos. - Era óbvio que estava plenamente recuperado da pancada na parte de trás da cabeça.
- Devo condecorá-lo pelo domínio da língua inglesa - disse-lhe Cumbrae. - Sua escolha de palavras é bastante poética. Qual é seu nome, senhor?
- Sou o coronel Cornelius Schreuder, a serviço da Companhia Holandesa das índias Orientais.
- Como vai, senhor? Sou Angus Cochran, conde de Cumbrae.
- Você, senhor, nada mais é que um vil pirata.
- Coronel, suas repetições estão se tornando um pouquinho cansativas. Imploro que não estrague uma amizade bastante promissora dessa maneira. Afinal, deve ser meu hóspede por algum tempo, até que seu resgate seja pago. Sou um corsário, velejando sob comissão de Sua Majestade o Rei Carlos. Vocês, cavalheiros, são prisioneiros de guerra.
- Não há guerra! - rugiu o coronel Schreuder para ele, com escárnio.- Demos uma boa surra em vocês, ingleses, e a guerra acabou. A paz foi assinada dois meses atrás.
Cumbrae encarou-o, horrorizado, e então recobrou a voz:
- Não acredito no que diz, senhor. - De repente, mostrava-se moderado e abatido. Negara mais para dar a si mesmo tempo para pensardo que por qualquer convicção. Notícias da derrota da Inglaterra no rio Medway e da batalha do Tâmisa eram velhas de alguns meses quando Richard Lister as contara a ele, acrescentando que o rei estava em tentativas de paz com a república holandesa. Qualquer coisa poderia ter acontecido nesse ínterim.
- Ordene a esses seus patifes que me soltem, e lhe provarei. - O coronel Schreuder ainda espumava de uma raiva profunda, e Cumbrae hesitou antes de fazer um gesto de assentimento para seus homens.
- Soltem-no e desamarrem-no - ordenou.
O coronel Schreuder saltou de pé e alisou os bigodes desarrumados enquanto saía enfurecido para a própria cabine. Ali, pegou um roupão de seda da cabeceira do beliche. Amarrando o cinto em torno da cintura, foi até a escrivaninha e abriu a gaveta. Com gélida dignidade, voltou até Cumbrae e estendeu-lhe um grosso maço de papéis.
O Gavião viu que a maior parte era de proclamações holandesas tanto em holandês como inglês, porém uma delas era um boletim informativo inglês. Desdobrou-o com ansiedade e esticou-o ao comprimento do braço. Era datado de agosto de 1667. O cabeçalho estava em maiúsculas de encorpado negrito com cinco centímetros de altura:
ASSINADA A PAZ COM A REPÚBLICA HOLANDESA!
Conforme seu olhar corria pela página, sua mente tentou se ajustar àquela desconcertante mudança nas circunstâncias. Sabia que, com a assinatura do tratado de paz, todas as Cartas de Marca, expedidas por qualquer lado no conflito, tinham se tornado nulas e inválidas. Mesmo que houvesse qualquer dúvida a respeito disso, o terceiro parágrafo da página o confirmava:
É ordenado que todos os corsários de ambas as nações combatentes, a velejar sob comissão e Cartas de Marca, cessem doravante as expedições belicosas e retornem a seus portos para se submeterem a interrogatório através de inquérito judicial do Almirantado.
O Gavião continuou a fitar o boletim informativo sem ler adiante, a ponderar os vários cursos de ação que se abriam diante dele. O Andorinha era uma rica presa, só o Bom Senhor sabia o quanto era rico. Coçando a barba, ele brincou com a idéia de escarnecer do inquérito judicial do Almirantado e aferrar-se à recompensa a todo custo. Seu bisavô fora um famoso fora-da-lei, astuto o suficiente para voltar o conde de Moray e outros senhores escoceses contra Maria, rainha da Escócia.
Depois da batalha de Carberry Hill, tinham forçado Maria a abdicar ecolocar seu filho infante, James, no trono. Por sua parte na campanha. meu antepassado recebera um condado.
Antes dele, todos os Cochrane tinham sido ladrões de ovelha ea saltantes de fronteira, que fizeram fortuna matando e roubando nãoapenas ingleses mas também membros de outros clãs escoceses. O sangue dos Cochrane corria em suas veias, e portanto a consideração não era um problema de ética. Era um cálculo de suas chances de se safar com aquela presa.
Cumbrae era orgulhoso de sua linhagem, porém também ciente de que seus antepassados haviam chegado à proeminência evitando astutamente a forca e o serviço do carrasco. Durante o último século, todas as nações navegantes do mundo tinham se coligado para reprimir o tormento dos corsários e piratas, que, desde os tempos dos faraós do antigo Egito; eram uma praga para o comércio nos oceanos.
- Você não se safará com isso, rapazinho - resolveu ele, em silêncio, e meneou a cabeça com tristeza. Passou o boletim informativo diante dos olhos de seus marinheiros, nenhum dos quais sabia ler. - Parece que a guerra acabou, que pena. Teremos de deixar esses cavalheiros livres.
- Capitão, isso significa que perdemos nossa recompensa? - perguntou o timoneiro, aflito.
- A menos que queira balançar na forca, nas docas de Greenwich por pirataria, certamente significa. - Então, voltou-se e fez uma mesura para o coronel Schreuder. - É com prazer que lhe devolvo sua espada. Lutou como um guerreiro e um verdadeiro cavalheiro. - O coronel inclinou-se com mais graça. - Darei ordens para que a tripulação de seu navio seja libertada de imediato. O senhor está, é claro, livre para voltar à baía da Mesa e continuar sua viagem dali. Qual é seu destino, senhor? - perguntou, polidamente.
- Estávamos prestes a zarpar para Amsterdã antes de sua intervenção, senhor. Levo cartas de resgate para o conselho da VOC em nome do governador designado do cabo da Boa Esperança, que, junto com sua santa esposa, foi capturado por outro pirata inglês, ou, preferível mente - corrigiu-se -, por outro corsário inglês.
Cumbrae encarou-o.
- O governador designado se chama Petrus van de Velde e foi capturado a bordo do navio da companhia, o Standvastigheid - perguntou. - E seu captor é um inglês, Sir Francis Courtney?
O coronel Schreuder pareceu espantado.
- Exatamente, senhor. Porém, como sabe desses detalhes?
- Responderei a sua pergunta no devido curso, coronel, mas primeiro preciso saber. Tem ciência se o Standvastigheid foi capturado depois que o tratado de paz foi assinado por nossos dois países?
- Meu senhor, eu era um passageiro a bordo do Standvastigheid quando ele foi capturado. Certamente estou ciente que era uma presa ilegal.
- Uma última pergunta, coronel. Não seriam sua reputação e posição profissional grandemente valorizadas se pudesse capturar esse pirata, Courtney, para assegurar, pela força das armas, a libertação do governador van de Velde e de sua esposa, e devolver ao tesouro da Companhia Holandesa das índias Orientais a valiosa carga do Standvastigheid.
O coronel ficou sem fala diante de uma perspectiva tão magnífica. Aquela imagem de olhos cor de violeta e cabelos como os raios de sol, que, desde a última vez que os vira, jamais lhe saíra da mente, agora retornava em cada vivido detalhe. A promessa daqueles doces lábios vermelhos sobrepujava para ele até mesmo o tesouro de especiarias e ouro e prata em lingotes que estava em perigo. Quão agradecida ficaria a senhora Katinka por sua liberdade, e o pai dela também, que era presidente do conselho de administração da VOC? Aquele poderia ser o mais significativo golpe da fortuna que lhe aparecera no caminho.
Estava tão empolgado que mal pôde fazer um gesto de concordância com a proposta do Gavião.
- Então, senhor, creio realmente que ambos tenhamos assuntos a discutir que podem redundar em nossa mútua vantagem - disse o Gavião, com um sorriso expressivo.
Na manhã seguinte, o Gull e o Andorinha velejaram juntos de volta àbaía da Mesa e tão logo tinham ancorado sob os canhões do forte, o coronel e Cumbrae foram para terra. Avançaram pelas ondas, onde um grupo de escravos e condenados vadeou com água pelos ombros para puxar o bote até a praia antes que a próxima vaga pudesse emborcá-lo, e pisaram em solo seco sem molhar as botas. Ao caminharem juntos em direção aos portões do forte, faziam um par surpreendente e incomum: Schreuder estava em pleno uniforme, seus galões, fitas e as plumas no chapéu a flutuar ao sudeste. Cumbrae estava resplandecente com seu manto de xadrez escocês em vermelho, castanho, amarelo e preto. A população daquela remota estação de passagem nunca vira um homem vestido com tanto garbo e acorreu em multidão para a beira do passeio não pavimentado para vê-lo, embasbacada.
Algumas das moças escravas javanesas com feições de boneca chamaram a atenção de Cumbrae, pois ele estivera no mar por meses sem o lenitivo de companhia feminina. A pele das jovens brilhava como marfim polido, e os olhos escuros eram lânguidos. Muitas haviam sido embonecadas ao estilo europeu por seus donos, e os bustos pequenos e firmes pareciam livres sob os corpetes de renda.
Cumbrae correspondeu-lhes a admiração como a realeza em trajeto erguendo a boina adornada de fitas para as mais jovens e mais bonitas das moças, deixando-as a se rir e se ruborizar com aquele ousado olhar azul sobre a moita feroz das suíças.
As sentinelas do forte saudaram Schreuder, que era bem conhecido deles, e os dois passaram para o pátio interior. Cumbrae olhou ao redorde si com um olhar atento, avaliando a força das defesas. Poderia haverpaz agora, mas quem ousaria dizer o que haveria de transpirar dentro de uns poucos anos adiante? Um dia ele poderia fazer um cerco contraaquelas muralhas.
Viu que as fortificações eram projetadas no formato de uma estrela de cinco pontas. Claramente, tinham, como modelo, a nova fortaleza deAntuérpia, que fora a primeira a adotar aquele inovador plano de terreno. Cada uma das cinco pontas era coroada por um baluarte, cujos ângulos salientes tornavam possível aos defensores assentar um fogo de cobertura sob os lances das muralhas, no que seria antes terreno mortal e indefensável. Assim que as robustas paredes externas de alvenaria fossemcompletadas, o forte seria quase inexpugnável para qualquer outra coisa que não fosse um elaborado cerco. Poderia levar meses para solapar e minar as muralhas antes que elas pudessem ser violadas.
Entretanto, o trabalho estava longe de ser terminado. Turmas de centenas de escravos e condenados trabalhavam no fosso e no topo dasparedes meio erguidas. Muitos dos canhões estavam estocados no pátioe não haviam ainda sido assentados em seus baluartes no topo das muralhas que dominavam a baía.
- Uma oportunidade perdida! - gemeu o Gavião. Aquela informação chegara a ele muito tarde para ser lucrativa. - Com outros poucos cavaleiros da ordem para me ajudar - Richard Lister e até mesmo Franky Courtney, antes de rompermos -, eu poderia ter tomado este forte e saqueado a cidade. Se combinássemos nossas forças, nós três poderíamos nos sentar aqui, com conforto, comandando todo o Atlântico Sul e abocanhando cada galeão holandês que precisasse contornar o cabo.
Ao olhar ao redor pelo pátio, viu que parte do forte era também usada como uma prisão. Uma fila de condenados e escravos com grilhões nas pernas era conduzida para cima, vinda dos calabouços sob a parede norte. Barracas para a guarnição militar haviam sido construídas acima daquelas fundações.
Embora pilhas de alvenaria e andaimes enchessem o pátio, uma companhia de mosqueteiros com os gibões em verde e dourado da VOC se exercitava no único espaço aberto em frente ao arsenal.
Carroças puxadas por bois, pesadamente carregadas com tábuas e pedras, entravam e saíam pelos portões ou se amontoavam no pátio, e um cocheiro, de pé e sozinho, esperava do lado de fora da entrada na ala sul da edificação. Os cavalos do coche eram uma parelha de animais cinzentos, escovados até que seus lombos reluzissem ao sol. O cocheiro e o lacaio estavam com librés verdes e douradas da companhia.
- Sua Excelência está em seu escritório cedo esta manhã. Normalmente não o vemos antes do meio-dia - resmungou Schreuder. - Deve ter recebido notícias de nossa chegada em sua residência.
Subiram a escadaria da ala sul e entraram por portas de teca com o timbre da companhia entalhado nelas. No saguão de entrada, com seus assoalhos de madeira amarela polida, um ajudante-de-ordens tomoulhe os chapéus e espadas e conduziu-os para a antecâmara.
- Direi a Sua Excelência que os senhores estão aqui - disse, enquanto saía do aposento. Retornou em minutos. - Sua Excelência irá vê-los agora.
A sala de audiência do governador dominava a baía através de estreitas janelas. Era mobiliada com uma estranha mistura da pesada mobília holandesa e artefatos orientais. Tapetes chineses, brilhantemente coloridos, cobriam os assoalhos polidos, e os gabinetes com frente de vidro exibiam uma coleção de delicadas porcelanas com os padrões esmaltados distintos e coloridos da dinastia Ming.
O governador Kleinhans era um homem alto e dispéptico, de avançada meia-idade, sua pele amarelada pela vida nos trópicos, e as feições marcadas e vincadas pelos ossos do ofício. Sua compleição era esquelética, o pomo-de-adão tão proeminente como se fosse deformado, e a peruca inteira, jovial demais em estilo para o semblante enrugado sob ela.
- Coronel Schreuder. - Saudou o oficial formalmente, sem tirar os olhos cansados, em suas bolsas de pele amarela, do Gavião. - Quando acordei esta manhã e vi que seu navio se fora, pensei que tivesse partido para casa sem minha permissão.
- Peço-lhe perdão, senhor. Eu lhe darei uma explicação cabal, mas poderia primeiro apresentar-lhe o conde de Cumbrae, um nobre inglês?
- Escocês, não inglês.
O governador Kleinhans, no entanto, ficara impressionado com o título e mudou para um inglês muito bom gramaticalmente, marcado apenas ligeiramente por seu sotaque gutural.
- Ah, seja bem-vindo ao cabo da Boa Esperança, meu senhor. Por favor, sente-se. Posso lhe oferecer um refresco leve... um copo de Madeira,talvez?
Com os cálices de haste longa de vinho âmbar nas mãos, as cadeiras de assento alto colocadas num círculo, o coronel inclinou-se para Kleinhans e murmurou:
- Senhor, o que tenho a lhe dizer é um assunto da maior delicadeza - e olhou para os criados que andavam por ali e para o ajudante-de-ordens.
O governador bateu palmas e eles desapareceram como fumaça ao vento. Intrigado, inclinou a cabeça na direção de Schreuder.
- Ora, coronel, o que é esse segredo que tem para me contar? Lentamente, enquanto Schreuder falava, as feições do governador se acenderam de ganância e ansiedade, porém, quando Schreuder terminou sua exposição, ele demonstrou relutância e ceticismo.
- Como saberemos que esse pirata, Courtney, ainda está ancorado no lugar onde o viu da última vez? - perguntou a Cumbrae.
- Recentemente, doze dias atrás, o galeão roubado, o Standvastigheid estava de querena sobre a praia, com a carga descarregada e o mastro principal desenfurnado. Sou um marinheiro e posso assegurar ao senhor que Courtney não poderia tê-lo deixado pronto para o mar outravez em menos de trinta dias. Isso significa que temos ainda duas semanas para fazer nossos preparativos e desferir um ataque contra ele - explicou o Gavião.
Kleinhans concordou.
- Então, em que redondezas é a ancoragem na qual esse patife está escondido? - O governador tentou tornar a pergunta casual, mas seus olhos amarelados de febre luziam.
- Posso apenas assegurar que está bem escondido. - O Gavião esquivou-se da pergunta com um sorriso seco. - Sem minha ajuda, seus homens não serão capazes de caçá-lo.
- Compreendo. - Com seu indicador ossudo, o governador cutucou o nariz e em seguida inspecionou o fragmento de ranho seco que retirara. Sem erguer os olhos, continuou, ainda casualmente: - Naturalmente, você não iria reivindicar uma recompensa por tal desempenho, que é, afinal de contas, simplesmente seu dever legal e moral, destruir o ninho desse pirata.
- Eu não pediria outra recompensa além de uma modesta quantia para me compensar por meu tempo e despesas - concordou Cumbrae.
- Uma centésima parte do que formos capazes de recuperar da carga do galeão - sugeriu Kleinhans.
- Não tão modesta assim - objetou Cumbrae. - Eu tinha em mente a metade.
- Metade! - O governador Kleinhans sentou-se empertigado, e suas feições se tornaram da cor de um velho pergaminho. - Está brincando, certamente, senhor.
- Eu lhe asseguro, senhor, que, quando se trata de dinheiro, eu raramente brinco - disse o Gavião. - Já levou em consideração quão agradecido ficará o diretor-geral de sua guarnição quando lhe devolver a filha ilesa e sem ter de fazer o pagamento do resgate? Isso por si só seria um fator compulsório para aumentar sua pensão, sem mesmo levar em conta o valor da carga de especiarias e lingotes de metal precioso.
Enquanto o governador Kleinhans ficava a considerar a questão, começou a escarafunchar a outra narina e permaneceu em silêncio. Cumbrae prosseguiu, persuasivo:
- Claro, assim que van de Velde for libertado das garras daquele vilão e chegue aqui, o senhor poderá transferir seus deveres a ele e depois estará livre para retornar a seu lar, na Holanda, onde as recompensas de seu longo e leal serviço o esperam. - O coronel Schreuder havia comentado como o governador estava ansioso por sua iminente aposentadoria, depois de trinta anos a serviço da companhia.
Kleinhans agitou-se diante de tal perspectiva animadora, porém sua voz saiu dura:
- Um décimo do valor da carga recuperada, mas que não incluirá o valor de quaisquer piratas capturados e vendidos no mercado de escravos. Um décimo, e esta é minha oferta final.
Cumbrae fez um ar trágico.
- Terei de dividir a recompensa com minha tripulação. Eu não poderia considerar uma quantia inferior que um quarto.
- Um quinto - regateou Kleinhans.
- Concordo - disse Cumbrae, bastante satisfeito. - E, é claro, precisarei dos serviços daquela bela fragata naval ancorada na baía, e de três guarnições de seus mosqueteiros com o coronel Schreuder aqui para comandá-las. E minha própria embarcação precisa ser recarregada com pólvora e cartuchos, para não mencionar água e outras provisões.
Custou um prodigioso esforço ao coronel Schreuder, mas, no fim da tarde do dia seguinte, as três guarnições de infantaria, cada uma compreendendo noventa homens, apresentavam-se no passeial fora das muralhas do forte, prontas para embarque. Os oficiais e nãocomissionados eram todos holandeses, porém os mosqueteiros eram uma mistura de tropas nativas, malacanos da Malásia, hotentotes recrutados das tribos do cabo e cingaleses e tâmiles das possessões da companhia no Ceilão. Estavam curvados como corcundas sob as armas e os pesados pacotes nas costas, mas, numa incongruência, tinham os pés descalços.
Enquanto os observava a marchar para fora dos portões, em suas simples boinas pretas, gibões verdes e cintos brancos cruzados, os mosquetes carregados a tiracolo, Cumbrae comentou, com azedume:
- Espero que lutem tão bem quanto marcham, mas creio que podem se mostrar uma pequena surpresa quando encontrarem os ratos do mar de Franky.
Ele poderia transportar uma única guarnição com toda a sua bagagem a bordo do Gull. Mesmo assim, seus tombadilhos ficariam lotados e desconfortáveis, principalmente se pegassem tempo ruim no caminho.
As outras duas guarnições de infantaria embarcaram na fragata naval. Fariam uma viagem mais fácil, pois o De Sonnevogel, o Pássaro do Sol, era uma nau rápida e cômoda. Fora capturada da frota de Oliver Cromwell pelo almirante holandês de Ruyter durante a batalha de Kentish Knock, e estivera na esquadra de de Ruyter durante sua incursão pelo Tâmisa, apenas meses antes de sua chegada ao cabo. Era esguia e adorável em sua lustrosa pintura negra e com debuxos em branco nevado. Era fácil constatar que suas velas tinham sido renovadas antes de ela zarpar da Holanda, e todas as escotas e massames eram ótimos e novos. Sua tripulação era na maior parte de veteranos das duas guerras recentes com a Inglaterra, guerreiros de primeira linha endurecidos pela batalha.
Seu comandante, o capitão Ryker, era também um marinheiro duro, grosseiro, de águas profundas, largo de ombros e de barriga grande. Não fez nenhuma tentativa de esconder seu desprazer ao se descobrir sob a direção de um homem que, até recentemente, fora seu inimigo, um irregular a quem considerava pouco menos que um ganancioso pirata. Sua postura com relação a Cumbrae era fria e hostil, seu desprezo mal disfarçado.
Tinham levado a efeito um conselho de guerra a bordo do De Sonnevogel que não fora fácil, com Cumbrae a se recusar a revelar seu destino, e Ryker a fazer objeção a cada sugestão e a discutir cada proposta que lhe era apresentada. Apenas o arbítrio do coronel Schreuder impedira a expedição de fracassar irremediavelmente antes que tivessem deixado a proteção da baía da Mesa.
Foi com profundo sentimento de alívio que o Gavião viu por fim a fragata recolher âncora e, com quase duzentos mosqueteiros alinhados em sua amurada a acenar adeus para a multidão de mulheres hotentotes, espalhafatosas em seus vestidos ou seminuas na praia, seguir o pequeno Gull em direção à entrada da baía.
O próprio tombadilho do Gull estava lotado de homens de infantaria que acenavam e tagarelavam e apontavam para os marcos na montanha e na praia, um para o outro, e atrapalhavam os marujos que trabalhavam para tirar o Gull da costa de sotavento.
Assim que o navio contornou o ponto abaixo da Cabeça de Leão e fez sua primeira investida majestosa para o Atlântico Sul, um estranho silêncio caiu sobre os barulhentos passageiros, e quando mudaram de direção e seguiram em alta velocidade rumo ao leste, os primeiros mosqueteiros correram para a amura e lançaram uma longa golfada amarela de vômito no olho do vento. Um espocar de gargalhadas subiu da tripulação à medida que o vento mandava aquilo de volta para as faces pálidas dos infelizes e emplastava seus gibões verdes com a biliosa evidência da última refeição.
Em questão de uma hora mais, os outros soldados tinham seguido o exemplo, e os tombadilhos estavam tão escorregadios e traiçoeiros com as oferendas a Netuno, que o Gavião ordenou que as bombas fossem acionadas e ambos os conveses e os passageiros lavados com jorros d'água.
- Serão uns poucos dias interessantes - disse ele ao coronel Schreuder. - Espero que essas belezas tenham força para se arrastarem para terra quando chegarmos a nosso destino.
Antes que tivessem completado metade da viagem, tornou-se evidente que aquilo que ele dissera de brincadeira era, de fato, a dura realidade. Amaioria das tropas parecia moribunda, a jazer como cadáveres no convés, com nada nas barrigas para sustentá-los. Um sinal do capitão Ryker indicou que aqueles a bordo do Sonnevogel não estavam em melhor situação.
- Se pusermos esses homens direto do tombadilho para dentro de uma luta, os rapazes de Franky irão comê-los sem cuspir os ossos. Teremos de mudar nossos planos - disse o Gavião a Schreuder, que enviou um sinal para o Sonnevogel. Enquanto ele deixava o navio à capa, o capitão Ryker se aproximava em seu esquife com evidente má vontade para discutir o novo plano de assalto.
Cumbrae desenhara um esboço de mapa da lagoa e do litoral que ficava de cada lado das pontas. Os três oficiais debruçaram-se sobre o croqui na minúscula cabine do Gull. O humor de Ryker melhorara diante dadescoberta do destino final, pela perspectiva de ação e o dinheiro do prêmio, e por um trago de uísque que Cumbrae lhe servira. Pela primeira vez estava disposto a concordar com o plano que Cumbrae lhe apresentava. - Há outra ponta de terra aqui, cerca de oito ou nove léguas oeste da entrada da lagoa. - O Gavião pousou a mão no mapa. - Com este vento, haverá água calma suficiente a sotavento para mandar os botes à praia e desembarcar o coronel Schreuder e seus mosqueteiros na praia. Então ele começará sua marcha de aproximação. - Apontou para o desenho com o indicador coberto de pêlos cor de gengibre. -O intervalo em terra seca e o exercício darão a seus homens a oportunidade de se recobrarem de sua moléstia. Quando alcançarem o covilde Courtney, terão algum ânimo de novo.
- Os piratas armaram quaisquer defesas na entrada da lagoa? - quis saber Ryker.
- Têm baterias aqui e ali, cobrindo o canal. - Cumbrae desenhou uma série de cruzes de cada lado da entrada. - Estão bem protegidos para ficar invulneráveis e retornar fogo disparado por um navio a entrar ou deixar a ancoragem. - Parou ao se recordar do vibrante bota fora que aquelas colubrinas tinham dado ao Gull enquanto ele fugia pela lagoa, depois do ataque abortado ao acampamento.
Ryker pareceu sombrio diante da perspectiva de submeter seu navio a salvas de curto alcance das baterias entrincheiradas em terra.
- Poderei lidar com as baterias com uma aproximação de oeste - prometeu-lhe Schreuder. - Mandarei um pequeno destacamento para escalar as colinas. Não haverão de esperar um ataque da retaguarda. Contudo, não serei capaz de cruzar o canal e alcançar os canhões da ponta de terra a leste.
- Mandarei outro grupo de incursão para colocar aquelas armas fora do jogo - interrompeu-o Ryker vamos estabelecer um sistema de sinais para coordenar nossos ataques.
Passaram outra hora a trabalhar num código com bandeiras e fumaça entre os navios e a costa. Já então, o sangue, tanto de Ryker como de Schreuder, estava em ebulição, e eles visualizavam a oportunidade de ganhar honras de batalha.
Por que haveria eu de arriscar meus próprios marinheiros, quando esses heróis estão ansiosos para fazer o trabalho por mim? pensou o Gavião, contente. Em voz alta, disse:
- Eu os cumprimento, cavalheiros. É um plano excelente. Suponho que o senhor atrasará os ataques às baterias na entrada até que o coronel Schreuder tenha levado sua força principal de infantaria através da floresta e esteja em posição para desferir o assalto maior à retaguarda do acampamento pirata.
- Sim, é bem assim - concordou Schreuder, ansioso. - Porém, tão logo as baterias das pontas sejam colocadas fora de ação, seus navios providenciarão a evasiva, velejando por elas e bombardeando o acampamento dos piratas. Será o sinal para que eu deslanche meu ataque por terra pela retaguarda.
- Nós lhe daremos nosso pleno apoio - concordou Cumbrae, a pensar satisfeito consigo mesmo, "Como ele está faminto por glória", e refreou um impulso fraternal de lhe dar um tapinha no ombro. O idiota é bem-vindo em minha parte de balas de canhão, contanto que eu possa pôr minhas mãos na recompensa.
Então, ergueu os olhos especulativos para o capitão Ryker. Restava providenciar para que o Sonnevogel conduzisse a esquadra pelas pontas para dentro da lagoa e, no processo, atraísse a atenção total das colubrinas de Franky ao longo da beira da floresta. Poderia ser de sua vantagem que a nau sofresse danos pesados antes que Franky fosse dominado. Se ele estivesse no comando do único navio em condições de navegação ao fim da batalha, seria capaz de ditar os próprios termos quando chegasse a hora de dispor do espólio de guerra.
- Capitão Ryker - disse, com um arrogante floreio -, reclamo a honra de liderar a esquadra para dentro da lagoa com meu galante e pequeno Gull. Meus rufiões não me perdoarão se eu deixá-lo ir adiante de nós.
Os lábios de Ryker se repuxaram de teimosia.
- Senhor! - disse, empertigado. - O Sonnevogel é mais pesadamente armado e mais capaz de resistir às balas do inimigo. Devo insistir que me permita liderar a entrada na lagoa.
E isso resolve a questão, pensou o Gavião, ao inclinar a cabeça em relutante concordância.
Três dias depois, colocaram o coronel Schreuder e suas três guarnições de mosqueteiros enjoados em terra, numa praia deserta, e os observara marchar para o interior africano numa longa coluna desordenada.
A noite africana era calada, porém nunca silenciosa. Quando Hal parou na trilha estreita, as leves passadas de seu pai soaram abafadas adiante e Hal pôde ouvir os sons suaves de miríades de vidas que pululavam na floresta ao seu redor: o chamado modulado de um pássaro noturno, mais assombrosamente belo que qualquer oultro que um musicista pudesse arrancar de um instrumento de corda; o raspar de roedores e outros pequenos mamíferos entre as folhas mortas, e o repentino grito pavoroso dos pequenos felinos predadores que os caçavam; o cantar e o zunir dos insetos, e o eterno murmúrio dovento. Tudo era parte do coro escondido naquele templo de Pã.
O feixe de luz da lanterna de tempestade desapareceu à frente, e agora Hal apressava o passo para alcançá-la. Quando haviam deixado o acampamento, seu pai lhe ignorara as perguntas, porém, quando emergiram por fim da floresta ao pé das colinas, ele percebeu para onde estavam indo. As pedras que ainda marcavam a loja dentro da qual ele fizera seus juramentos formavam um círculo fantasmagórico ao brilho da lua minguante. A entrada dela, Sir Francis caiu sobre um joelho e inclinou a cabeça, em prece. Hal ajoelhou-se ao lado dele.
- Senhor Deus, faça-me valoroso - rezou Hal. - Dê-me a força para manter os votos que fiz aqui, em Seu nome.
Seu pai ergueu a cabeça por fim. Levantou-se, tomou a mão de Hal e ergueu-o de pé. Então, lado a lado, entraram no círculo e se aproximaram da pedra do altar.
- In Arcadia habito! - disse Sir Francis, em sua voz profunda emusical. E Hal deu a resposta.
- Flumen sacrum bene cognosco!
Sir Francis colocou a lanterna sobre a pedra alta e, sob sua luz amarelada, ajoelharam-se novamente. Por um longo tempo, rezaram em silêncio, até que Sir Francis ergueu os olhos para o céu.
- As estrelas são as chaves de código do Senhor. Iluminam nossas idas e nossas vindas. Guiam-nos pelos oceanos não mapeados. Guardam nosso destino em suas espirais. Medem o número de nossos dias.
Os olhos de Hal buscaram de imediato sua própria estrela particular, Regulo. Atemporal e imutável, luzia no signo de Leão.
- Na noite passada, fiz seu horóscopo - disse-lhe Sir Francis. - Existe muita coisa que não posso revelar, porém isto posso lhe dizer. As estrelas guardam um destino singular reservado a você. Não pude imaginar de que natureza.
Havia um tom pungente na voz de seu pai, e Hal o fitou. O semblante de Sir Francis estava abatido, as sombras sob seus olhos, profundas e escuras.
- Se as estrelas estão inclinadas tão favoravelmente, o que o preocupa, papai?
- Tenho sido severo com você. Tenho-o tratado com dureza. Hal meneou a cabeça.
- Papai...
Sir Francis, porém, aquietou-o ao lhe pousar a mão no braço.
- Deve se lembrar sempre por que fiz isso com você. Se o amasse menos, teria sido mais gentil. - Seu aperto no braço do filho aumentou quando ele sentiu que Hal tomava fôlego para falar. - Tentei preparálo e lhe dar conhecimento e força para ir ao encontro desse destino particular que as estrelas lhe reservaram. Compreende isso?
- Sim. Sei disso faz tempo. Aboli me explicou.
- Aboli é sábio. Estará com você quando eu me for.
- Não, papai. Não fale nisso.
- Meu filho, olhe para as estrelas - retrucou Sir Francis, e Hal hesitou, incerto de sua significação. - Você sabe qual é minha própria estrela. Eu a mostrei a você centenas de vezes antes. Procure por ela agora no signo de Virgem.
Hal ergueu a face para os céus e voltou-a para leste, onde Regulo ainda se mostrava, brilhante e clara. Seu olhar correu para o signo de Virgem, que jazia perto, ao lado de Leão, e ele arquejou, a respiração a sibilar através dos lábios, com temor supersticioso.
O signo de seu pai estava cortado de uma ponta a outra por uma cimitarra em chamas. Uma flamejante pena vermelha, vermelha como sangue.
- Uma estrela cadente - murmurou ele.
- Um cometa - corrigiu-o o pai. - Deus me envia um aviso. Meu tempo aqui chega a seu término. Mesmo os gregos e os romanos sabiam que o fogo celestial é o presságio do desastre, de guerra e fome e praga, e da morte dos reis.
- Quando? - perguntou Hal, sua voz pesada de terror.
- Em breve - retrucou Sir Francis. - Deve ser logo. Mas certamente antes que o cometa tenha completado seu trânsito por meu signo. Esta pode ser a última vez que você e eu fiquemos sozinhos assim.
- Não há nada que possamos fazer para evitar esse infortúnio? Não podemos fugir dele?
- Não sabemos quando ele chegará - disse Sir Francis, com gravidade. - Não podemos escapar daquilo que foi decretado. Se corrermos, então certamente seguiremos direto para suas mandíbulas.
- Ficaremos para encontrá-lo e lutar, então - disse Hal, com determinação.
- Sim, lutaremos - concordou o pai -, mesmo que o resultado tenha sido ordenado. Porém, não foi por isso que eu o trouxe aqui. Quero passar a você, nesta noite, sua herança, os legados tanto materiais como espirituais que lhe pertencem, como meu único filho. -Tomoua face de Hal entre as mãos e voltou-a para que ele o fitasse dentro dos olhos.
- Depois de minha morte, a posição e o título honorífico de baronete, outorgado a seu bisavô, Charles Courtney, pela boa Rainha Bess, depois da destruição da Armada Espanhola, pertencem a você. Você se tornará Sir Henry Courtney. Compreende isso?
- Sim, papai.
- Seu pedigree foi registrado no Colégio de Armas na Inglaterra - Parou quando um grito selvagem ecoou pelo vale, o berro de um leopardo caçando pelos penhascos à luz do luar. A medida que os pavorosos rugidos rascantes morreram, Sir Francis continuou, tranqüilamente: - É meu desejo que progrida na ordem até que obtenha o posto de cavaleiro Nautonnier.
- Eu me esforçarei por atingir esse objetivo, papai.
Sir Francis ergueu a mão direita. O círculo de ouro em seu dedo anular luziu à luz da lanterna. Ele torceu-o e tirou-o, erguendo-o para captar o luar.
- Este anel é parte das insígnias do ofício de Nautonnier. - Pegou a mão direita de Hal e enfiou o anel em seu segundo dedo. Era muito largo e portanto ele o colocou no indicador do filho. Depois, abriu o colarinho alto do manto e expôs o grande selo de seu ofício que jazia contra seu peito. Os pequenos rubis nos olhos do leão de patas erguidas da Inglaterra e as estrelas de diamantes acima dele luziram suavemente à luz incerta. Ele tirou a corrente do selo em torno do pescoço, ergueu-o sobre a cabeça de Hal e depois o baixou sobre os ombros. - Este selo é a outra parte das insígnias da ordem. É sua chave para o templo.
- Estou honrado, porém humilhado, pela confiança que deposita em mim.
- Há uma outra parte do legado espiritual que deixo a você - disse Sir Francis, enquanto levava a mão para as dobras do manto. - É a memória de sua mãe. - Abriu a mão; na palma, jazia um camafeu com a miniatura de Edwina Courtney.
A luz não era forte bastante para que Hal divisasse os detalhes do retrato, porém a face da mãe estava gravada em sua mente e seu coração. Sem fala, ele o colocou no bolso do peito do gibão.
- Deveríamos rezar juntos pela paz da alma de sua mãe - disse Sir Francis, calmamente, e ambos inclinaram as cabeças. Depois de alguns minutos, Sir Francis ergueu a cabeça de novo. - Agora, resta apenas a discutir a herança terrestre que deixo a você. Primeiramente, há High Weald, nossa herdade da família, em Devon. Você sabe que seu tio Thomas administra a casa e as terras em minha ausência. As escrituras do título estão com meu advogado, em Plymouth... - Sir Francis continuou falando por um longo tempo, relacionando e detalhando suas posses e domínios na Inglaterra. - Escrevi tudo isso em meu diário para você, porém ele pode ser perdido ou roubado antes que possa estudá-lo. Lembre-se de tudo que eu lhe disse.
- Não esquecerei nada - assegurou-lhe Hal.
- Depois, há as presas que fizemos neste cruzeiro. Você estava comigo quando escondemos os espólios tanto do Heerlycke Nacht como do Standvastigheid. Quando retornar com aquele butim para a Inglaterra, certifique-se de pagar a cada homem da tripulação a sua parte.
- Eu o farei sem falta.
- Pague também cada pêni da parte da Coroa aos oficiais da alfândega do rei. Apenas um patife procuraria enganar seu soberano.
- Não me furtarei a pagar meu rei.
- Eu jamais descansaria em paz se soubesse que todas as riquezas que amealhei para você e para mim fossem perdidas. Exijo que você faça um juramento por sua honra como um cavaleiro da ordem - disse Sir Francis. - Deve jurar que jamais revelará o paradeiro dos espólios a qualquer outra pessoa. Nos dias de dificuldade que jazem adiante de nós, enquanto o cometa vermelho rege meu signo e dita nossos negócios, pode haver inimigos que tentarão forçá-lo a quebrar seu juramento. Você precisa sustentar no frontispício de sua mente o lema da família. Durabo! Persistirei.
- Por minha honra, e em nome de Deus, eu persistirei - prometeu Hal. As palavras lhe passaram fáceis pela língua. Ele não poderia saber que, quando retornassem a ele, seu peso seria doloroso e cruel o bastante para lhe despedaçar o coração.
Durante toda a sua carreira militar, o coronel Cornelius Schreuderfizera campanha com tropas nativas em vez de com homens de sua própria raça e país. Ele os preferia, pois eram habituados à adversidade e provavelmente menos afetados pelo calor e o sol, ou pelo frio e umidade. Eram resistentes às febres e pragas que derrubavam os brancos que se aventuravam naqueles climas tropicais, e sobreviviam com menos comida. Podiam viver e lutar com a refeição frugal que aquela terra selvagem e terrível oferecia, enquanto as tropas européias adoeceriam e morreriam se forçadas a se submeter a privações semelhantes.
Havia outra razão para sua preferência. Ao passo que as vidas dastropas cristãs deviam ser computadas como caras, aqueles pagãos podiam ser perdidos sem tal consideração, assim como o gado que nãotem o mesmo valor que os homens e pode ser mandado para o matadouro sem remorso. Claro, eram ladrões famosos e não poderiam serde confiança perto de mulheres ou bebida, e, quando forçados a depender da própria iniciativa, eram como criancinhas, mas, com bons oficiais holandeses em cima deles, sua coragem e espírito de luta sobrepujavam as fraquezas.
Schreuder postou-se numa elevação de solo e observou a longa coluna de infantaria passar em fila. Era notável como tinham se recuperado rapidamente da terrível aflição dos enjôos que, apenas um dia antes deixaram prostrados a maioria deles. Uma noite de descanso no chão duro e uns poucos bocados de peixe seco e bolos de sorgo assados sobre as brasas, e, naquela manhã, estavam alegres e fortes como quando tinham embarcado. Passavam por ele de pés descalços, seguindo seus oficiais de escalão inferior de branco, a se movimentar facilmente sob os fardos, a conversar entre si em suas próprias línguas.
Schreuder sentia mais confiança neles agora do que a qualquer tempo, desde que tinham embarcado na baía da Mesa. Levantou o chapéu e enxugou a testa. O sol apenas se mostrava acima da copa das árvores, mas já estava quente como uma baforada de um forno de padeiro. Ele olhou adiante, para as colinas e florestas que os esperavam. O mapa que o escocês ruivo desenhara para ele era um croqui rudimentar que simplesmente debruava a linha da costa e não avisava daquele terreno difícil que tinham encontrado.
A princípio, ele marchara ao longo da praia, porém aquilo se provara pesado - sob os pacotes, os homens afundavam o tornozelo fundo na areia a cada passo. Além disso, as praias abertas eram intercaladas de penhascos e cabos rochosos, que poderiam provocar mais atraso. Assim, Schreuder se voltara para o interior e mandara seus batedores à frente para achar um caminho através das colinas e da floresta.
Naquele momento, ouviu-se um grito do alto, adiante. Um corredor voltava pela fila. Ofegante, o hotentote aproximou-se e saudou-o com um floreio.
- Coronel, há um rio largo adiante. - Como a maioria daquelas tropas, ele falava um bom holandês.
- Em nome do cão! - praguejou Schreuder. - Devemos estar bem mais para trás, e nosso encontro está apenas a dois dias de hoje. Mostre-me o caminho. - O batedor conduziuo em direção ao cume da colina.
No topo da elevação, um íngreme vale de rio se abriu sob seus pés. Os lados tinham quase sessenta metros de profundidade e eram densamente cobertos por floresta. Ao fundo, o estuário era largo e amarronzado, correndo para dentro do mar com a maré. Ele tirou a luneta da caixa de couro e esquadrinhou o vale com cuidado, no ponto onde este se enfiava profundamente para dentro das colinas, no interior.
- Não parece ser um caminho mais fácil para cruzar, e não poderemos desperdiçar mais tempo procurando. - Olhou para o precipício. - Amarre cordas naquelas árvores no topo, para dar apoio aos homens na descida.
Tomou-lhes metade da manhã fazer descer duzentos homens para o vale. Num certo estágio, uma corda rompeu-se sob o peso de cinqüenta deles que se penduravam nela para manter o passo enquanto desciam. Contudo, embora a maioria sofresse esfoladuras, cortes e arranhões conforme rolavam até a margem do rio, não houve uma séria fatalidade. A perna direita de um jovem cingalês da infantaria ficou presa na raiz de uma árvore enquanto ele caía e foi fraturada em uma dúzia de partes abaixo do joelho, as lascas agudas do osso a saltar da pele.
- Bem, descemos com apenas um homem perdido - disse Schreudera seu tenente, com satisfação. - Poderia ter sido pior. Poderíamos ter passado dias procurando outro ponto de travessia.
- Mandarei fazer uma liteira para o homem ferido - sugeriu o tenente Maatzuyker.
- Está louco da cabeça? - esbravejou Schreuder. - Ele apenas atrasaria a marcha. Deixe o idiota trapalhão aqui com uma pistola carregada. Quando as hienas caírem sobre ele, pode escolher em quem atirar numa delas ou em si mesmo. Chega de conversa! Vamos fazer a travessia da margem, Schreuder olhou pela extensão de cerca de cem metros do rio, a superfície revolta com pequenos redemoinhos conforme a maré cheia se chocava com as águas barrentas em sua corrida para o mar.
- Teremos de construir balsas... - aventurou-se a dizer o tenente Maatzuyker, mas Schreuder retorquiu, com rispidez:
- Não temos tempo para isso. Passe uma corda até a outra margem. Preciso ver se o rio é vadeável.
- A corrente é forte - ponderou Maatzuyker, com tato.
- Mesmo um pateta pode ver isso, Maatzuyker. Daí, talvez, você não ter tido dificuldade em fazer a observação - retrucou Schreuder, num tom agourento. - Pegue seu nadador mais forte!
Maatzuyker bateu continência e correu pelas fileiras das tropas. Os homens adivinharam o que lhes estava reservado, e cada um encontrou algo de interesse para estudar no céu ou na floresta, em vez de encarar o olhar de Maatzuyker.
- Ahmed! - gritou ele para um de seus cabos, agarrando-o pelo ombro e puxando-o de um grupo de homens entre os quais ele tentava passar despercebido.
Resignado, Ahmed entregou o mosquete a um dos companheiros de tropa e começou a se despir. Seu corpo nu era sem pêlos e amarelo, revestido de musculatura flexível e rija.
Maatzuyker amarrou uma corda sob suas axilas e mandou-o para a água. Conforme Ahmed entrava na corrente, a água subiu gradualmente até sua cintura. E as esperanças de Schreuder de uma travessia rápida e fácil subiram com ela. Os companheiros de Ahmed, na margem, gritavam palavras de encorajamento enquanto soltavam a corda.
Então, quando estava em meio à travessia, Ahmed tropeçou abruptamente no canal principal do rio, e sua cabeça desapareceu abaixo da superfície.
- Puxem-no de volta! - ordenou Schreuder, e os homens arrastaram Ahmed para trás, para uma parte mais rasa, onde ele cambaleou para recuperar o pé, a espirrar e tossir com a água que tinha engolido.
De repente, Schreuder gritou, com mais urgência.
- Puxem! Tirem-no da água!
A quarenta metros, corrente acima, ele vira um poderoso redemoinho na superfície das águas opacas. Então, uma forma em V, veloz, lançou-se pelo canal onde o cabo chapinhava, nos baixios. A turma com a corda também viu, e, com gritos de consternação, todos puxaram Ahmed com tamanho vigor que ele caiu de costas e foi arrastado, a se debater e chutar em direção à margem. Contudo, a coisa abaixo da superfície moveu-se mais rapidamente ainda e disparou para o homem indefeso.
Quando estava apenas a alguns metros dele, sua boca deformada, nodosa e escamosa como um tronco preto, investiu para a superfície, e, seis metros atrás da cabeça, uma cauda em crista de sáurio explodiu para fora. O hediondo monstro disparou pela distância e ergueu-se acima da água, as mandíbulas abertas a exibir as fileiras pontudas de dentes amarelos.
Então Ahmed o avistou e soltou um berro pavoroso. Com um estalo, como de uma grade levadiça caindo, as mandíbulas se fecharam sobre aparte inferior de seu corpo. Homem e animal afundaram abaixo da superfície num redemoinho de espuma cremosa. Os soldados na fila foram arrancados dos pés e arrastados em pilha para baixo da margem.
Schreuder saltou atrás deles e segurou a ponta da corda. Deu duas voltas em torno do punho e retesou o peso todo para trás. No encontro amarronzado de maré e rio, houve outra efervescente explosão de espuma conforme o imenso crocodilo, as mandíbulas travadas na barriga de Ahmed, rolava sobre si com espantosa velocidade. Os outros homens na corda recobraram o pé e puxaram a corda. As águas barrentas se tingiram de vermelho enquanto Ahmed era decepado pelo meio, do jeito que um glutão poderia arrancar a perna de um peru assado.
A mancha de sangue foi levada para longe e dissipou-se rio abaixo na corrente veloz, e os homens retesados caíram para trás quando a resistência da outra ponta da corda cedeu. O torso superior de Ahmed foi puxado para terra, os braços a se agitarem e a boca a se abrir e fechar convulsivamente, como de um peixe moribundo.
A distância, no rio, o crocodilo emergiu novamente, segurando as pernas e o torso inferior de Ahmed atravessado nas mandíbulas. Ergueu a cabeça para o céu e tragou vorazmente o pedaço, mastigando-o entre os dentes para engolir. Conforme a carcaça desmembrada deslizava para dentro de seu papo, os homens podiam vê-lo arquear a garganta macia e pálida.
Schreuder rugia de raiva.
- Aquele maldito animal irá nos atrasar por dias, se permitirnos. - Voltou-se contra os abalados mosqueteiros que arrastavam o cadáver coberto de areia de Ahmed. - Tragam esse pedaço de carne para cá!
Eles deixaram cair o cadáver aos pés dele e viram, admirados, quando Schreuder livrou-se das próprias roupas e se postou nu, diante deles, a musculatura dura e firme ondulando em sua barriga e o grossopênis a saltar de um emaranhado de pêlos escuros na base. Diante de sua ordem impaciente, eles amarraram uma corda sob as suas axilas edepois lhe estenderam um mosquete carregado com a mecha queimando na trava, o qual Schreuder ergueu no ombro. Com a outra mão,agarrou o braço inanimado de Ahmed. Um burburinho incrédulo deadmiração espalhou-se pela margem à medida que Schreuder punha os pés no rio, arrastando os restos sangrentos consigo.
- Venha, então, seu animal nojento! - berrou ele, raivoso, quando a água chegou-lhe aos tornozelos e ele continuava adiante. - Quer comer? Bem, tenho algo para você mastigar.
Um murmúrio de horror escapou de cada garganta quando, rio acima de onde Schreuder se postava, com a água nos quadris, houve outro tremendo redemoinho e o crocodilo disparou corrente abaixo em direção a ele, deixando uma longa esteira lisa pela superfície barrenta.
Schreuder preparou-se e então, com um giro do braço, lançou o torso do cadáver desmembrado de Ahmed adiante de si, na trilha da investidafulminante do crocodilo.
- Coma isso! - gritou ele, ao erguer o mosquete do ombro e mirando nos restos humanos que boiavam apenas dois braços de distância à frente.
A cabeça monstruosa irrompeu para a superfície, e a bocarra abriu-se escancarada o suficiente para abocanhar os restos estraçalhados de Ahmed. Pela mira da arma, Schreuder olhou para aquelas mandíbulas abertas. Viu as lanças desiguais dos dentes, ainda festonados com farrapos de carne humana, e, além deles, a linha da garganta, que era de um belo amarelo cor de manteiga. Conforme as mandíbulas se abriam, uma forte membrana automaticamente fechava a garganta para impedir que a água entrasse nos pulmões do animal.
Schreuder mirou nas profundezas da garganta aberta e apertou o gatilho. A mecha caiu e houve um instante de atraso enquanto a pólvora se inflamava na caçoleta. Então, conforme Schreuder firmava a mira, veio um berro ensurdecedor, e uma longa baforada de fumaça prata azulada fluiu do cano, direto para a garganta do crocodilo. Três onças de balas de chumbo endurecidas com antimônio atravessaram a membrana, rasgaram a traquéia, artéria e carne, enterrando-se fundo na cavidade do peito, estraçalhando o coração e os pulmões do réptil frio.
Uma tal poderosa convulsão tomou conta do enorme lagarto, que quatro metros e meio de seu comprimento se arquearam fora d'água e a cabeça grotesca quase tocou a cauda em crista antes de cair para trás, numa alta coluna de espuma. Então o animal rolou, afundou e emergiu outra vez, a rodopiar em contorções de Leviatã.
Schreuder não parou para observar aqueles hediondos estertores de morte, mas deixou cair o mosquete fumegante e mergulhou de cabeça para a parte mais profunda do canal. Confiante no frenesi do animal para confundir e distrair quaisquer outros dos répteis mortais, arrancou para a margem distante com braçadas vigorosas.
- Soltem a corda para ele! - gritou Maatzuyker para os homens de pé, paralisados de choque, e eles recobraram o bom senso. Segurando o cabo ao alto para mantê-lo livre da corrente, soltaram-no conforme Schreuder se lançava pelo canal.
- Olhem! - berrou Maatzuyker, quando o primeiro e depois outro crocodilo deslizaram pela superfície. Os olhos se situavam em calombos nodosos protuberantes, de maneira que podiam ver as convulsões do companheiro moribundo sem expor o todo das cabeças.
O esparrinhar mais suave de Schreuder não lhes atraiu a atenção até que ele estava apenas a uma dúzia de braçadas da outra margem, quando um dos monstros sentiu-lhe a presença. Voltou-se e disparou na direção dele, as ondulações da água a se abrirem como um leque de cada lado dos calombos gêmeos de sua testa.
- Mais depressa! - berrou Maatzuyker. - Ele está atrás do senhor! Schreuder redobrou a força das braçadas à medida que o crocodilo investia rapidamente sobre ele. Cada homem na margem gritava, buscando encorajá-lo, mas o réptil medonho estava um corpo atrás, quando os pés de Schreuder tocaram o fundo. O animal estava nos seus calcanhares enquanto ele se lançava para a frente, e as poderosas mandíbulas se fecharam apenas alguns centímetros atrás de suas passadas.
Arrastando a corda como uma cauda, ele cambaleou em direção à linha de árvores - porém ainda não estava livre do perigo, pois a criatura semelhante a um dragão, ergueu-se nos tocos das pernas encurvadas quando chegou em terra e investiu atrás dele numa velocidade em queos observadores mal podiam acreditar. Schreuder chegou à primeira árvore da floresta apenas centímetros à frente e saltou para um galho estendido. Quando as mandíbulas denteadas estalaram, fechadas, ele pôde erguer as pernas além do alcance da mordida e, com a última de suas forças, içar-se para mais alto no galho.
O réptil, frustrado, começou a se mover sorrateiro, embaixo, circularia o tronco da árvore. Então, com um rugido sibilante, recuou lentamente para a margem. Carregava ao alto a longa cauda, denteada como uma gigantesca crista de galo, mas, ao chegar ao rio, abaixou-a e deslizou para baixo da superfície.
Mesmo antes que tivesse desaparecido, Schreuder gritou, pelo rio.
- Amarrem forte sua ponta!
Enrolou a própria ponta da corda em torno do grosso tronco ao lado do qual estava pendurado e amarrou-a. Depois, berrou:
- Maatzuyker! Mantenha esses homens ocupados a construírem uma balsa. Podem se puxar pela corda contra a correnteza.
O casco do Resolução fora limpo de algas e cracas, e, assim que a tripulação arriou os cabos, ele se endireitou lentamente sob a pressão da maré que subia. Enquanto ficara de querena, na praia, os carpinteiros tinham terminado de moldar e vestir o mastro principal, que estava, por fim, pronto para ser enfurnado. Foi preciso cada mão para carregar a longa e pesada vergôntea pela praia e erguer a ponta grossa sobre a amurada. A talha foi fixada depressa aos outros dois mastros de pé, e as lingas ajustadas para erguer a nova verga.
Com turmas a puxar cautelosamente os cabos, e com Daniel Grande e Ned a dirigi-las, ergueram a compacta extensão de pinho reluzente para a vertical. Sir Francis não confiava em ninguém mais para supervisionar o trabalho crucial de ajustar o calcanhar do mastro pelo buraco no tombadilho principal e depois deslizá-lo para dentro, através do casco, para fincá-lo na sobrequilha do navio e fixá-lo na carlinga. Era uma operação delicada, que precisava da força de cinqüenta homens, e levou a maior parte do dia.
- Muito bem-feito, rapazes! - disse-lhes Sir Francis quando, por fim, a maciça vergôntea deslizou para seu lugar pelos últimos poucos centímetros e o pé encaixou-se pesadamente em seu caixilho preparado. -Afrouxar! - Não mais apoiado pelas cordas, o mastro de quinze metros ficou de pé por sua própria conta.
Daniel Grande gritou para o convés de onde estava, com água na cintura, dentro da lagoa.
- Agora, pobres daqueles cabeças-de-queijo. Daqui a dés dias a contar de hoje, zarparemos pelas pontas, pode marcar minhas palavras.
Sir Francis sorriu para ele da amurada.
- Não antes que coloquemos as enxárcias naquele mastro mestre. E isso não acontecerá enquanto você ficar aí, com a boca aberta e a língua tagarelando.
Ia se afastar quando, de repente, fechou o cenho ao olhar para a praia. A esposa do governador saía das árvores, seguida pela criada, e agora parava na linha da praia, girando o cabo do guarda-sol entre os longos dedos brancos de modo que volteasse sobre sua cabeça numa roda brilhantemente colorida que atraía o olhar de cada homem da tripulação. Mesmo Hal, que supervisionava a turma no convés de proa, desviara-se de seu trabalho para fitá-la, embasbacado como um bobo. Naquele dia, ela se vestira com um novo e atraente costume, de decote tão baixo que seus seios estavam à mostra quase até os mamilos.
- Sr. Courtney - exclamou Sir Francis, alto o bastante para envergonhar o filho em frente a seus homens -, atente para seu trabalho. Onde estão os calços para firmar aquela verga?
Hal se assustou e corou profundamente sob a pele bronzeada, ao se voltar para a amurada e erguer uma pesada marreta.
- Ouviram o capitão - esbravejou, para sua turma.
- Aquela meretriz é a Eva neste paraíso - disse Sir Francis, baixando a voz e falando com o canto da boca para Aboli, em seu ombro.
- Vi Hal extasiado por ela antes e, céus, ela o encara de volta com a ousadia de uma rameira com as tetas à mostra. Ele é apenas um menino.
- Você o vê com olhos de pai. - Aboli sorriu e meneou a cabeça.
- Ele não é mais um menino. É um homem. Você me disse uma vez que seu santo livro fala de uma águia no céu e uma serpente numa rocha, e um homem com uma donzela.
Embora Hal pudesse roubar pouco tempo de seus deveres, respondia às convocações de Katinka como um salmão retornando a seu rio nativo na estação da desova. Quando ela o chamava, nada poderia impedi-lo de atender. Corria pelo caminho com o coração em compasso com os pés que voavam. Fazia quase um dia inteiroII desde a última vez em que ficara sozinho com Katinka, o que era de mais para seu gosto. Algumas vezes, conseguia se esgueirar do acampamento para encontrá-la duas ou três vezes num único dia. Com freqüência podiam ficar juntos apenas por uns poucos minutos, mas era tempo suficiente para ter o negócio feito. Os dois desperdiçavam pouco do tempo precioso juntos em cerimônias ou conversas.
Tinham sido forçados a encontrar um lugar de encontro que não fosse a cabana dela. As visitas noturnas de Hal à paliçada dos refénsquase tinham terminado em desastre. O governador van de Velde talvez não dormisse tão profundamente como seus roncos sugeriam, e os doisse tornaram descuidados e atrevidos nos jogos de amor.
Certa noite, acordado pelos gritos não reprimidos da esposa e a resposta alta de Hal, o governador van de Velde pegara a lamparina e correra para a cabana. Aboli, em guarda lá fora, vira o brilho a tempo de assobiar um aviso, dando a Hal tempo para que apanhasse suas roupas e se esgueirasse pelo buraco na parede da paliçada, justamente quando van de Velde irrompia para dentro da cabana com a lamparina numa das mãos e a espada nua na outra.
O homem reclamara amargamente com Sir Francis, na manhã se guinte.
- Um de seus marujos ladrões - acusara.
- Há alguma coisa de valor sumida da cabana de sua esposa? - quis saber Sir Francis, e quando van de Velde meneou a cabeça, foi duro na resposta. - Talvez sua esposa não devesse fazer um tal espetáculo com suas jóias, pois provocam idéias gananciosas. No futuro, senhor, poderia ser prudente tomar mais cuidado com todas as suas posses.
Sir Francis interrogou os vigias fora de turno, mas, como a esposa do governador não conseguia fornecer nenhuma descrição do intruso - estava profundamente adormecida na ocasião -, o assunto logo morreu. Aquela fora a última visita noturna que Hal se atrevera a se arriscar à paliçada.
Acabaram encontrando aquele lugar secreto para se encontrar. Era bem escondido, porém situado suficientemente perto do acampamento para que Hal pudesse atender às convocações e chegar ali apenas em poucos minutos. Ele parou por um breve instante no terraço estreito da caverna, respirando fundo com a pressa e a excitação. Ele e Aboli tinham descoberto o local quando retornavam de uma das incursões de caça nas colinas. Não era realmente uma caverna, mas uma saliência onde o arenito macio e avermelhado fora erodido do estrato de rocha mais dura para formar uma varanda profunda.
Não eram os primeiros humanos a passar por aquele caminho. Havia cinzas velhas no fogão de pedra contra a parede dos fundos do abrigo, e o teto baixo estava manchado de fuligem. Pelo chão, havia ossos de peixe e pequenos mamíferos, restos de uma refeição preparada no fogão. Os ossos estavam secos e limpos, e as cinzas, frias e dispersas. O fogão havia longo tempo estava em desuso.
Entretanto, não eram apenas os únicos sinais de ocupação humana. A parede de trás estava coberta do chão ao teto com uma selvagem e exuberante cavalgada de pinturas. Antílopes chifrudos e gazelas que Hal não reconhecia corriam em grandes hordas pela face macia do rochedo, caçados por arqueiros de feições humanas, de nádegas protuberantes e membros sexuais incongruentemente eretos. As pinturas eram infantis e coloridas, a perspectiva e o tamanho relativo de homens e animais, fantásticos. Algumas figuras humanas pareciam anões diante do elefante que perseguiam, e águias eram duas vezes o tamanho das manadas de búfalos negros abaixo de suas asas esticadas. Muitas vezes, nos intervalos de quietude entre os selvagens arroubos de sexo, Hal ficava ali, deitado, a olhar para aqueles estranhos homens pequeninos que caçavam ou lutavam entre si. Nessas ocasiões, sentia uma estranha ansiedade de saber mais sobre os artistas e aqueles heróicos caçadores e guerreiros que retratavam.
Quando perguntou a Aboli sobre eles, o negro enorme deu de ombros com desdém.
- São os san. Não são homens realmente, mas pequenos macacos amarelos. Se tiver alguma vez a infelicidade de encontrá-los, uma sina da qual seus três deuses deveriam protegê-lo, descobrirá mais sobre suas flechas envenenadas do que sobre seus potes pintados.
Naquele dia, as pinturas poderiam lhe prender o interesse por apenas um momento, pois o leito de mato que ele pusera contra o chão da parede estava vazio. Não era surpresa, pois estava adiantado para o encontro marcado. Mesmo assim, ficou a imaginar se Katinka viria ou se a convocação fora um capricho. Então, atrás de si, Hal ouviu o estalar de um ramo quebrado, adiante, abaixo, na encosta.
Olhou ao redor rapidamente, procurando um lugar para se esconder. Caindo de um lado da entrada, havia uma cortina de trepadeiras,sua folhagem verde-escura enfeitada de flores de um brilhante amarelo,seu leve e doce perfume a invadir a caverna. Hal esgueirou-se para debaixo dela e agachou-se contra a parede de pedra.
Um momento depois, Katinka entrou com passos ligeiros no terraço do lado de fora da entrada e espiou ansiosa para o interior. Quandopercebeu que estava vazio, seu corpo enrijeceu-se de raiva. Ela disse uma palavra em holandês que, pelo uso regular que dela fazia, Hal vieraa conhecer bem. Era um dito obsceno, e ele sentiu a pele formigar deexcitação diante das delícias que aquela palavra prenunciava.
Silenciosamente, saiu do lugar de esconderijo e saltou por trás dela cobriu-lhe os olhos com a mão e, com o outro braço a lhe rodear cintura, ergueu-a dos pés e correu com ela para a cama de capim.
Muito depois, Hal estirou-se de costas sob o leito de mato, o peito nu ainda a arquejar e coberto de suor. Katinka mordiscou-lhe um mamilo como se fosse uma uva-passa. Então, brincou com o medalhão de ouro pendurado no pescoço de Hal.
- Isto é bonito - murmurou ela. - Gosto dos olhos de rubi do leão. O que é?
Hal não entendeu a pergunta complexa no idioma natal de Katinka, e deu de ombros. Ela repetiu a pergunta lentamente e com clareza.
- É uma coisa dada por meu pai. Tem grande valor para mim retrucou ele, evasivo.
- Eu o quero - disse ela. - Você o dará a mim? Ele sorriu, com indolência.
- Jamais poderia fazer isso.
- Você me ama? - murmurou ela, com um beicinho. - Está louco por mim?
- Sim, eu a amo loucamente - admitiu ele, e, com o verso do braço, enxugou o suor dos olhos.
- Então, dê-me o medalhão.
Ele balançou a cabeça sem dizer nada, e depois, para evitar discussão, perguntou:
- Você me ama como eu a amo? Katinka soltou uma alegre risada.
- Não seja tolo! Claro que não o amo. Lorde Ciclope é o único a quem eu amo. - Ela lhe apelidara o sexo com o nome do gigante de um só olho da lenda, e, para reafirmar isso, levou a mão até a virilha de Hal. - Porém, mesmo a ele eu não amo, quando está tão mole e pequeno. - Seus dedos ficaram ocupados por um momento; depois, ela riu outra vez, desta vez um riso rouco. - Agora, eu o amo muito mais. Ah, sim! Ainda mais. Quanto maior fica, mais eu o amo. Vou beijá-lo agora para mostrar o quanto eu o amo.
Deslizou a ponta da língua pelo ventre de Hal, mas enquanto mergulhava a face no emaranhado escuro dos pêlos pubianos, um som a mobilizou. Vinha rolando pela lagoa abaixo e quebrou-se numa centena de ecos ribombantes das colinas.
- Trovões! - gritou Katinka, e sentou-se. - Detesto trovão. Desde que era uma menininha.
- Não é trovão! - disse Hal, e empurrou-a tão rudemente que ela gritou outra vez.
- Oh! Seu filho de um porco, você me machucou.
Hal, porém, não deu atenção à queixa e saltou de pé. Nu, correu para a entrada da caverna e olhou para fora. A entrada ficava situada numa altura suficiente para possibilitar-lhe uma visão sobre as copas das árvores da floresta que rodeava a lagoa. Os mastros nus do Resolução avançavam para o céu azul do meio-dia. O ar estava cheio de pássaros marinhos - o som trovejante os espantara da superfície da água, e o sol cintilava em suas asas de tal modo, que, circulando lá no alto, pareciam ser criaturas de gelo e cristal.
Um banco de névoa que rodopiava obscureceu metade da lagoa, enegrecendo os penhascos rochosos das pontas em vagalhões azul-prateados que de repente cintilavam com estranhas luzes bruxuleantes. Aquilo, porém, não era névoa.
O trovão espocou de novo, alcançando Hal muito depois do faiscar de luzes, o som distante a levar tempo para lhe alcançar os ouvidos. As nuvens revolutas se espessaram, espalhando-se densas e pesadas como óleo pelas águas da lagoa. Acima daquele banco de nuvens, os mastros altos e os velames de dois grandes navios flutuavam como se suspensos acima das águas. Hal fitou-os, estupefato, enquanto deslizavam serenos entre as pontas. Outra surriada irrompeu do navio líder. E ele percebeu de imediato que era uma fragata, o casco negro debruado de branco, as portinholas dos canhões arregaçadas, e o fogo e a fumaça a borbulhar para fora delas. No alto, acima dos bancos de fumaça, a bandeira tricolor da república holandesa ondulava à brisa ligeira. Em fila, atrás dela, o Gull ofMoray seguia suavemente, as cores de São Jorge e Santo André da e a grande cruz vermelha do templo decorando seus mastros e cordames, as colubrinas a esgoelar seu coro de guerra.
- Deus misericordioso! - gritou Hal. - Por que as baterias nas entradas não retribuem o fogo?
Então, de olhos nus, viu estranhos soldados em uniforme verde espalhando pelas plataformas de artilharia ao pé dos penhascos, as espadas e cabeças de aço de suas lanças a faiscarem ao sol à medida que matavam os atiradores e jogavam seus corpos por sobre os parapeitos para o mar, lá embaixo.
- Surpreenderam nossos homens no forte. O Gavião trouxe os holandeses até nós e lhes mostrou onde nossos atiradores estavam colocados. - Sua voz tremia de abominação. - Pagará com seu sangue poreste dia, eu juro.
Katinka saltou da cama de capim e correu para a entrada, ao lado dele.
- Olhe! É um navio holandês, veio me resgatar do covil de seu pai pirata. Graças a Deus! Logo estarei longe deste lugar esquecido e salva em Boa Esperança. - Dançava de excitação. - Quando pendurarem você e seu pai do cadafalso no passeio do lado de fora do forte, estarei lá para lhe soprar um último beijo e acenar em despedida. - Riu, com escárnio.
Hal ignorou-a. Correu de volta para dentro da caverna, enfiou-se rapidamente nas roupas e prendeu no cinto a espada de Netuno.
- Haverá luta e grande perigo, mas você ficará segura aqui até que tudo tenha acabado - disse a ela, e começou a descer.
- Você não pode me deixar aqui! - gritou ela, às suas costas. Volte aqui, eu ordeno!
Ele, porém, não lhe deu atenção e correu pela trilha entre as árvores. Eu não deveria ter me permitido sair do lado de meu pai, lamentou-se silenciosamente, enquanto corria. Ele me avisou do perigo do cometa vermelho. Mereço qualquer que seja a sina cruel que me aguar da agora.
Estava em tamanha aflição, que ficou alheio a tudo a não ser à necessidade de assumir seus deveres negligenciados e quase correu para dentro das linhas de atiradores que se moviam pelas árvores, adiante dele. Em tempo, sentiu o cheiro da fumaça das mechas de queima lenta e então avistou seus gibões verdes e os cintos brancos cruzados enquanto seguiam caminho pelas árvores da floresta. Atirou-se ao chão e rolou para baixo do tronco de uma alta figueira selvagem. Espiou dali e viu que o estranho grupamento em verde movia-se adiante, avançando para o acampamento, lanças e mosquetes à mão, mantendo boa ordem sob a direção de um oficial branco.
Hal ouviu o oficial falar baixinho, em holandês.
- Mantenham espaço. Não se amontoem!
Não poderia haver dúvidas agora de que tropas eram aquelas. As costas do holandês ainda estavam voltadas para ele, e Hal teve um momento para pensar. "Devo chegar ao acampamento para avisar meu pai, mas não há tempo suficiente para encontrar um caminho ao redor. Terei de abrir caminho pelas fileiras do inimigo. Tirou a espada da bainha e ergueu-se sobre um joelho, quando parou, enquanto um pensamento o fuzilava com força. "Estamos superados em número em terra e na água. Desta vez não haveria naus em fogo para expulsar o Gavião e a fragata holandesa. "A batalha pode se tornar dura para nós.
Usando a ponta da espada, abriu um buraco no solo macio e fértil, na base da figueira selvagem. Então, tirou o anel do dedo e o camafeu com a miniatura da mãe do bolso e colocou-os no buraco. Depois disso, tirou o selo de Nautonnier do pescoço e o depositou por cima dos outros tesouros. Espalhou a terra solta sobre eles e tampou o buraco.
Isso lhe tomara apenas um minuto, porém, quando ficou de pé, o oficial holandês desaparecera na floresta adiante. Hal avançou em frente, guiado para o objeto em perseguição pelo estalar e pisotear de galhos no solo. Sem seus oficiais, aqueles soldados não lutariam tão bem, pensou ele. Se eu o pegar, posso esfriar um pouco do fogo em suas barrigas. Diminuiu o passo ao se aproximar do homem que seguia e chegou por trás do holandês enquanto este abria caminho pelo terreno, o barulho de seus passos mascarando os suaves sons da investida de Hal.
O holandês suava, manchas úmidas e escuras a marcar as costas de seu casaco de sarja. Pelos galões, Hal percebeu que era um tenente no exército da companhia. Era magro e anguloso, com zangadas pústulas vermelhas a apontar no verso de seu pescoço ossudo. Carregava a espada nua na mão direita. Não se banhava fazia muitos dias e cheirava como um javali selvagem.
- Em guarda, Mijnheer. - desafiou-o Hal, em holandês, pois não poderia atacá-lo pelas costas.
O tenente virou-se num repelão para encará-lo, erguendo a espada, em guarda. Seus olhos eram de um azul pálido e se arregalaram de choque e susto ao descobrir Hal tão perto, atrás de si. Era não muito mais velho que Hal, e sua face branqueou-se de terror, enfatizando a erupção de acne púrpura que lhe cobria o queixo.
Hal investiu, e suas espadas tilintaram, ao se cruzarem. Com aquele primeiro contato leve, avaliara o adversário. O holandês era lento, e seu pulso faltavam a maleabilidade e o poder de um espadachim comprática. As palavras do pai lhe ecoaram aos ouvidos: "Lute desde o primeiro golpe. Não espere até ficar zangado." E ele entregou o coraçãoa uma raiva fria e assassina.
- Ah! - rosnou, e fintou para o alto, mirando a ponta nos olhos do holandês, mas equilibrado para seu desvio.
O tenente foi lento no contra-ataque, e Hal sentiu que poderia arriscar a investida veloz que Daniel lhe ensinara contra aquele idiotaIria partir para o golpe final.
Seu pulso temperado até o aço por horas com Aboli no convés de exercício, ele apanhou a lâmina do holandês e girou-a com um movimento violento que lançou a ponta fora da linha de defesa. Criara uma abertura, mas, para explorá-lo com o ataque fulminante, precisava abrira própria guarda e se colocar em pleno risco da resposta natural do holandês - suicídio em face de um oponente hábil.
Empenhou-se, lançando o peso para a frente sobre o pé esquerdo, e desferiu a ponta através da guarda do outro homem. A resposta veio muito tarde, e o aço de Hal espetou a roupa de sarja manchada de suor. Deslizou numa costela e então encontrou uma abertura entre elas. Aj despeito dos dias que passara com uma espada na mão, esta era a primeira morte de Hal a sangue-frio, e ele não estava preparado para a sensação de sua lâmina a correr pela carne humana.
Era uma sensação pesada, horrível, que suavizou a velocidade de sua investida. O tenente Maatzuyker arquejou e deixou cair a espada quando a ponta da de Hal parou por fim contra sua espinha. Agarrou a lâmina afiada de Hal com as mãos nuas. Ela cortou-lhe as palmas até o osso, secionando os tendões num rápido fluxo de sangue brilhante. Seus dedos se abriram, desenervados, e ele afundou de joelhos, olhando para a face de Hal com os olhos azuis aguados, como se estivesse prestes a explodir em lágrimas.
Hal postou-se sobre ele e puxou com força o punho de safira da espada de Netuno, mas o aço de Toledo se prendera na carne fresca. Maatzuyker gemeu, em agonia, e ergueu as mãos mutiladas num apelo.
- Sinto muito - murmurou Hal, horrorizado, e puxou novamente o cabo da espada.
Desta vez, Maatzuyker escancarou a boca e choramingou. A lâmina lhe passara pelo pulmão direito, e uma súbita golfada de sangue explodiu por seus lábios pálidos, escorreu pelo casaco e espirrou nas botas de Hal.
- Oh, Deus! - resmungou Hal, à medida que Maatzuyker tombava de costas com a lâmina entre suas costelas. Por um momento, ficou de pé, imóvel, vendo o outro homem entrar em colapso e se afogar no próprio sangue. Então, de bem perto, atrás, veio um grito selvagem dos arbustos.
Um soldado de gibão verde o avistara. Um mosquete estourou, as balas a devastar a folhagem acima da cabeça de Hal e se enterrando no tronco de árvore ao lado dele. Hal ficou galvanizado. O tempo inteiro soubera o que precisava fazer, mas, até aquele momento, não fora capaz de agir. Agora, colocava a bota firmemente no peito arquejante de Maatzuyker e se inclinava para trás, contra a resistência da lâmina presa. Puxou uma vez e depois de novo com todo o peso para trás. Relutante, a lâmina deslizou para fora, até que, de repente, ficou livre, e Hal cambaleou para trás.
De imediato, recuperou o equilíbrio e saltou sobre o corpo de Maatzuyker justamente quando outro tiro de mosquete espocava e as balas passavam assobiando por sua cabeça. O soldado que atirara se atrapalhava com o frasco de pólvora ao tentar recarregar a arma, e Hal correu direto para ele. O mosqueteiro ergueu os olhos de susto e depois deixou cair a arma vazia e voltou-se para correr.
Hal não usaria a ponta novamente, mas vergastou a espada contra o pescoço do homem, logo abaixo da orelha. A borda afiada cortou até o osso, e o lado do pescoço abriu-se como uma boca vermelha sorridente. O homem caiu sem um som no chão. Porém, por toda parte, ao redor dele, o mato estava vivo com figuras em jaquetas verdes. Hal percebeu que deveriam ser centenas deles. Aquele não era um grupo de incursão, mas um pequeno exército a atacar o acampamento.
Hal ouviu gritos de alarme e de raiva, e, agora, uma constante barragem de fogo de mosquete, boa parte selvagem e não direcionada, mas com alguns disparos a se enterrar no chão por perto, a seu lado, conforme ele corria com toda a velocidade e força. No meio do tumulto, Hal reconheceu, por sua força e autoridade, uma voz estentórea.
- Peguem aquele homem! - berrava em holandês. - Não deixem que fuja! Quero aquele homem.
Hal relanceou o olhar na direção de onde vinha a voz, e quase caiu de espanto ao ver Cornelius Schreuder a correr entre as árvores para pegá-lo. Seu chapéu e a peruca haviam sido arrancados de sua cabeça e a cabeça raspada luzia como uma casca de ovo. Os bigodes se grudavam em sua face. Para um homem tão grande, era rápido nos pés, mas o medo fez Hal ser mais rápido.
- Eu o quero! - berrou Schreuder. - Desta vez, você não vai se safar.
Hal irrompeu numa corrida veloz e, em trinta passadas rápidas como o vento, tinha avançado até o ponto em que podia ver a paliçada do acampamento através das árvores. Estava deserta, e ele percebeu que seu pai e todos os outros homens deveriam ter sido atraídos para a beira da lagoa pelo fogo pesado das duas naus de guerra, e que poderiam estar manejando as colubrinas nas plataformas.
- Às armas! - gritou ele enquanto corria, com Schreuder a se aproximar, distante apenas dés passos dele. - Cerrar fileiras comigo, Resolução. A retaguarda!
Ao irromper pelo acampamento, viu, com imenso alívio, Daniel Grande e uma dúzia de marujos que respondiam a seu chamado, correndo da praia para lhe dar apoio. Imediatamente, Hal parou e enfrentou o holandês.
- Venha, então - disse, e se pôs em guarda.
Mas Schreuder estacou ao ver os homens do Resolução partindo com ele, e percebeu que abandonara suas próprias tropas, deixara seus soldados sem um líder e agora se encontrava inferiorizado em número de 12 para um.
- De novo você tem sorte, filhote de um cão - esbravejou para Hal. - Mas antes que este dia acabe, eu e você falaremos de novo.
Trinta passos atrás dele, Daniel Grande parou e ergueu o mosquete que carregava. Mirou para Schreuder, mas, assim que o gatilho foi acionado, o coronel abaixou-se e girou nos calcanhares, e o tiro passou aolargo; ele voltou para a floresta, gritando para reunir seus mosqueteirosI enquanto eles avançavam pelas árvores.
- Mestre Daniel - Hal ofegava -, o holandês lidera uma força poderosa. A floresta está cheia de homens.
- Quantos?
- Uma centena ou mais. Lá! - Hal apontou para os primeiros dos atacantes que chegavam correndo e rumavam em direção a eles, paran do apenas para disparar, recarregar os mosquetes e em seguida avançar novamente.
- O que é pior, há dois navios de guerra na baía - disse-lhe Daniel. - Um é o Gull, mas o outro é uma fragata holandesa.
- Eu os vi da colina. - Hal havia recobrado o fôlego. - Estamos em desvantagem de armas na vanguarda e superados em número na retaguarda. Não podemos ficar aqui. Estarão sobre nós num minuto. Vamos voltar para a praia.
As tropas coloridas atrás deles uivavam como um bando de cães quando Hal se voltou e conduziu seus homens numa corrida. Balas e tiros zumbiam e assobiavam em torno deles, arrancando chispas de terra úmida em seus calcanhares, a impulsioná-los pelo caminho.
Através das árvores, ele podia ver a terra empilhada das plataformas dos canhões e o enovelado banco de fumaça. Conseguia divisar as cabeças de seus próprios artilheiros quando recarregavam as colubrinas. Na lagoa, a imponente fragata holandesa chegou perto da praia, envolta na própria fumaça de pólvora. Enquanto Hal olhava, a nau girou o leme, trazendo o costado para o lado, e, de novo, suas portinholas de artilharia se iluminaram com grandes relâmpagos de chamas. Segundos depois, o estrondo do canhoneio e a rajada de metralha uivante varreram as imediações.
Hal esquivou-se no turbilhão de ar desintegrado, os tímpanos a cantar. árvores inteiras desabavam, e galhos e flores choviam sobre eles. Bem em frente, ele viu uma das colubrinas ser atingida em cheio e saltar dos trilhos. Os corpos de dois dos marujos do Resolução foram lançados em giro para o alto, no ar.
- Papai, onde está você? - Hal tentou se fazer ouvido acima do pandemônio, porém, então, através dos estampidos, ouviu a voz de Sir Francis.
- Firmes em seus canhões, rapazes. Mirem nas portinholas do holandês. Dêem nossa boa salva inglesa àqueles cabeças-de-queijo.
Hal saltou para dentro da fossa de artilharia ao lado do pai, segurou-lhe o braço e sacudiu-o, aflito.
- Onde esteve, menino? - Sir Francis encarou-o, mas então viu o sangue em suas roupas e não esperou resposta. - Assuma o comando dos canhões no flanco esquerdo. Dirija seu fogo...
Hal interrompeu-o, num ímpeto sem fôlego.
- Os navios inimigos estão apenas criando uma distração, papai.
O perigo real está em nossa retaguarda. A floresta está cheia de soldados holandeses, centenas deles. - Apontou para a espada manchada de sangue. - Estarão sobre nós em um minuto.
Sir Francis não hesitou.
- Desça pela fila de canhões. Ordene que cada segunda colubrina seja girada e carregada com metralha. As da frente continuem a travar combate com os navios, mas contenham o fogo com as armas de trás até que o ataque em nossa retaguarda seja à queima-roupa. Darei a ordem para disparar. Agora, vá! - Enquanto Hal saltava para fora da vala,Sir Francis voltou-se para Daniel Grande. - Pegue esses seus homens e quaisquer outros que possa encontrar, volte e retarde o avanço do inimigo em nossa retaguarda.
Hal correu pela fila, parando ao lado de cada plataforma para gritar as ordens e depois seguir em frente. O som da barragem e o fogo de resposta da praia era ensurdecedor e confuso. Ele titubeou e quase caiu esparramado no chão quando outra surriada da fragata negra varreu o ar sobre ele, como os ventos demoníacos de um tufão, espalhando-se pela floresta e arrancando terra ao redor de onde ele estava. Sacudiu a cabeça para clareá-la e correu, saltando por sobre um tronco caído.
Conforme passava em cada plataforma e alertava os atiradores, eles começaram a girar as colubrinas, mirando-as para trás, para a floresta. Ao fundo, já podiam ouvir o fogo de mosquete e os gritos zangados de Daniel Grande e seu pequeno grupo de marujos a disparar contra as hordas em avanço que escorriam da floresta.
Hal chegou à vala de fogo ao final da linha e saltou para dentro, ao lado de Aboli, que capitaneava a equipe de artilheiros ali. Aboli enfiou a mecha no buraco de toque. A colubrina saltou e trovejou. Enquanto a fumaça fedorenta rodopiava de volta em torno deles, Aboli sorriu para Hal, sua face negra manchada ainda mais escura de fuligem, e os olhos, raiados de sangue com o fumo.
- Ah! Pensei que você não iria pôr sua raiz para fora do açúcar a tempo de se juntar à luta. Temi que tivesse de subir até a caverna e soltá-lo com uma barra de ferro.
- Você vai sorrir menos contente com uma bala de mosquete nas penas de seu rabo - disse-lhe Hal, nervoso. - Estamos cercados. Os bosques atrás de nós estão cheios de holandeses. Daniel os está segurando, mas isso não durará muito tempo. Há centenas deles. Gire essa peça do outro lado e carregue com metralha. - Enquanto recarregavam, Hal continuou a distribuir ordens: - Teremos tempo apenas para um tiro e depois investiremos sobre eles com a fumaça - disse, ao empurrar a carga para baixo com o longo soquete. Ao retirá-lo, um marujo ergueu o pesado saco de lona cheio de balas de chumbo e forçou-o pelo cano. Hal empurrou-o para que se assentasse sobre a carga de pólvora. Depois, inclinaram-se atrás do parapeito de ambos os lados do canhão, mantendo limpa a área onde a arma iria dar o coice, e olharam além da paliçada, para a floresta. Podiam ouvir o tilintar de aço em aço e os berros selvagens enquanto Daniel e seus homens enfrentavam e faziam recuar o contra-ataque dos gibões verdes. O fogo de mosquete martelava sem cessar conforme os homens de Schreuder recarregavam e avançavam para disparar novamente.
Agora, tinham relances pelas árvores de seus próprios marujos que recuavam. Daniel avolumava-se acima dos outros: carregava um ferido sobre um ombro e brandia o alfanje na outra mão. Os gibões verdes pressionavam duro a ele e seu grupo.
- Prontos agora! - berrou Hal com estridência para os marinheiros ao lado, e eles se agacharam abaixo do parapeito e agarraram suas lanças e alfanjes. - Aboli, não dispare até que Daniel esteja fora da linha de fogo.
De repente, Daniel jogou seu fardo no chão e voltou-se para trás. Correu para dentro do grosso do inimigo e dispersou-os com uma grande saraivada de seu alfanje. Depois, correu de volta para o marinheiro ferido, ergueu-o sobre o ombro e rumou de novo para onde Hal estava agachado.
Hal olhou pela linha das valas de artilharia. Embora os canhões de frente estivessem ainda mirados nos navios na lagoa, cada segunda colubrina estava direcionada para a floresta, esperando pelo momento de soltar uma tempestade de metralha para dentro das linhas da infantaria de ataque.
- Em tal faixa de alcance, a metralha não se espalhará, e eles estão mantendo espaço - resmungou Aboli.
- Schreuder os mantém bem sob controle - concordou Hal, muito sério. - Não poderemos esperar abater muitos com uma simples rajada.
- Schreuder! - Os olhos de Aboli se estreitaram. - Não me disse que era ele.
- Lá está ele! - Hal apontou para a figura alta sem peruca que seguia em passadas rápidas pelas árvores. Seus galões brilhavam, e o bigode se retorcia enquanto ele incitava os mosqueteiros à frente.
Aboli resmungou por entre os dentes:
- Aquele sujeito é o demônio. Teremos trabalho com ele. - Enfiou uma barra de ferro sob a colubrina e girou-a uns poucos graus, tentando levar a mira para o coronel.
- Fique parado - murmurou - o tempo suficiente para me dar a chance de um tiro.
Schreuder, contudo, andava de um lado para o outro pela fileira de soldados, urgindo-os a ir em frente. Estava tão próximo agora, que suavoz chegava até Hal, enquanto esbravejava com seus homens.
- Mantenham sua fila! Mantenham o avanço. Firmes agora, contenham o fogo!
Seu controle sobre eles era evidente, no avanço determinado porém calculado. Deviam estar cientes da fila de atiradores à espera, porém seguiam em frente sem vacilar, mantendo os disparos, sem desperdiçar um único tiro.
Estavam perto o suficiente para que Hal divisasse suas feições individuais. Ele sabia que a companhia recrutava a maioria de suas tropas ! nas colônias orientais, e aquilo era evidente nas faces asiáticas de muitos dos soldados em avanço. Seus olhos eram escuros e no formato de amêndoa, e suas peles, de um âmbar escuro.
De súbito, Hal percebeu que as surriadas dos dois vasos de guerra haviam cessado e se permitiu dar uma espiada por sobre o ombro. Viu que tanto a fragata negra como o Gull tinham ancorado a apenas uma amarra de distância, se tanto, da praia. Seus canhões estavam silenciosos, e Hal se deu conta de que Cumbrae e o capitão da fragata haviam acertado com Schreuder um código de sinais. Tinham cessado fogo com receio de ferir seus próprios homens.
Isso nos dá um espaço para respirar, pensou, e olhou para trás novamente.
Viu que o bando de Daniel estava muito esgotado: tinham perdido metade de seu número, e os sobreviventes estavam claramente exaustos pela correria e o feroz embate. Seu andar era errático - muitos mal conseguiam se arrastar. Suas roupas estavam empapadas de suor e de sangue das feridas. Um de cada vez, cambalearam e se jogaram por sobre o parapeito, para jazer ofegantes no fundo da vala.
Daniel sozinho era infatigável. Passou o ferido pelo parapeito para os atiradores, e tão assassino era seu ânimo, que teria voltado e corrido para o inimigo mais uma vez, se Hal não o impedisse.
- Volte aqui, seu touro cabeçudo! Deixe-nos amaciá-los com uma pequena rajada de metralha. Então pode ir ter com eles de novo.
Aboli ainda tentava alinhar o cano sobre a forma fugidia de Schreuder.
- Ele vale cinqüenta dos outros - resmungou para si mesmo, em sua própria língua.
Hal, contudo, não lhe prestava qualquer atenção; tentava, ansioso, ter um relance do pai na plataforma mais distante, e receber uma orientação sua.
- Por Deus, ele os está deixando chegar muito perto! - preocupou-se. - Um tiro mais longo daria à metralha uma chance de se espalhar, mas não abriremos fogo antes que ele dê a ordem.
Então, ouviu a voz de Schreuder novamente.
- Fileira de vanguarda! Preparar para disparar!
Cinqüenta homens caíram, obedientes, de joelhos, bem em frente ao parapeito, e apoiaram os cabos de seus mosquetes no chão.
- Pronto agora, homens! - falou Hal baixinho aos marujos que se amontoavam em torno dele. Percebera por que seu pai tinha atrasado a salva de colubrinas até aquele momento: esperara que os atacantes descarregassem seus mosquetes; depois, os teria em nítida desvantagem quando tentassem descarregar.
- Firmes agora! - repetiu Hal. - Esperem pelos disparos!
- Apresentem suas armas! - O comando de Schreuder ecoou no súbito silêncio. - Façam mira!
A fila de homens ajoelhados ergueu seus mosquetes e apontou para o parapeito. A fumaça azul da mecha nas caçoletas serpeava em torno de suas cabeças, e eles estreitaram os olhos para mirar.
- Cabeças para baixo! - berrou Hal.
Os marujos nas valas de artilharia inclinaram-se abaixo do parapeito, justamente quando Schreuder rugia.
- Fogo!
A longa saraivada desigual de mosquetaria matraqueou pela fila de homens ajoelhados, e balas de chumbo assobiavam sobre as cabeças dos artilheiros, fazendo-os enterrarem-se na rampa de terra. Hal saltou de pé e olhou para a ponta mais distante da fila de valas de canhões. Viu o pai pular para o parapeito, brandindo sua espada, e embora estivesse muito longe para que sua ordem fosse ouvida com clareza, seus gestos eram inequivocáveis.
- Fogo! -gritou Hal, a plenos pulmões, e a linha de canhões irrompeu numa sólida rajada de fumaça, chamas e sibilante metralha, varrendo a estreita linha verde da infantaria holandesa à queima-roupa.
Bem à sua frente, Hal viu um holandês atingido pela plena fúria da saraivada. O homem desintegrou-se num estouro de sarja verde destroçada e carne rosa em farrapos. Sua cabeça girou para o alto e depois caiu na terra e rolou como uma bola de criança. Depois disso, tudo foi obscurecido pela densa nuvem de fumaça, mas embora seus ouvidos aindacantassem com a descarga estrondosa, Hal podia ouvir os gritos e gemidos dos feridos a ressoar na fedida névoa azul.
- Todos juntos! - gritou Hal, quando a fumaça começou a clarear. - Ferro neles agora, rapazes!
Depois da explosão enlouquecedora dos canhões, suas vozes eram finas e fracas ao se elevarem juntas das valas de artilharia.
- Por Franky e o rei Carlos! - gritaram, e o aço dos alfanjes e das lanças piscava e luzia conforme saltavam do parapeito e investiam paraa fila desbaratada de uniformes verdes.
Aboli estava do lado esquerdo de Hal e Daniel, à direita, enquanto ele os liderava para dentro do entrevero. Por concordância não verbal,os dois homens enormes, um preto, o outro branco, colocavam as asasprotetoras sobre Hal, mas tinham de correr com a máxima velocidade para se emparelharem a ele.
Hal viu que suas apreensões tinham se confirmado plenamente. A saraivada de metralha não provocara a devastação entre a infantaria holandesa que poderiam ter esperado. O alcance fora muito curto: quinhentas balas de chumbo de cada colubrina tinham se abatido sobre eles como uma única carga de bala de canhão. Homens pegos pela descarga haviam sido eliminados, porém, para cada disparo, cinco outros estavam incólumes.
Aqueles sobreviventes estavam aturdidos e atordoados, os olhos esgazeados e as expressões nulas. A maioria se ajoelhava, a piscar e sacudiras cabeças, sem tentar recarregar os mosquetes vazios.
- A eles, antes que se recuperem! - esgoelou Hal, e os marujos que o seguiam gritaram vivas com mais ansiedade. Em face da carga, os mosqueteiros começaram a se recobrar. Alguns saltaram de pé, jogando fora as armas vazias e puxando as espadas. Um ou dois suboficiais tinham pistolas enfiadas nos cintos, que puxaram e dispararam enlouquecidamente contra os marinheiros que investiam contra eles. Uns poucos se voltaram de costas e tentaram fugir por entre as árvores, mas Schreuder estava lá, para rechaçá-los.
- Voltem, seus cães e filhos de um cão. Mantenham terreno como homens!
Os homens voltaram e se alinharam em torno dele.
Cada um da tripulação do Resolução que ainda se agüentava em pé estava naquela investida - mesmo os feridos cambaleavam atrás do resto, a gritar tão alto como seus companheiros.
As duas linhas se defrontaram, e, imediatamente, tudo era confusão. A sólida fileira de atacantes dividiu-se em pequenos grupos de homens em luta, mesclada aos casacos de sarja verde dos holandeses. Por toda parte, ao redor de Hal, homens engalfinhados praguejavam, aos gritos, atracados um ao outro. Sua existência se fechou, tornou-se um círculo de faces zangadas e terrificadas junto com o clamor das armas de aço, a maioria já embotada com sangue novo.
Um gibão verde apontou uma longa lança para a face de Hal. Ele se dobrou sob ela e, com a mão esquerda, segurou o eixo logo atrás da cabeça em farpa. Quando o mosqueteiro o puxou para trás, Hal não resistiu, mas usou o ímpeto para desferir seu contra-ataque, com a espada de Netuno na mão direita. Mirou para a garganta amarela distendida acima do alto colarinho verde, e a ponta deslizou por ali sem dificuldade. Conforme o homem deixava cair a lança e desabava de costas, Hal permitiu que o peso do corpo em queda deixasse livre a lâmina.
Saltou para trás, em guarda, e relanceou o olhar rapidamente em torno, para o próximo oponente, mas a investida dos marinheiros tinha quase varrido a fila de mosqueteiros. Poucos estavam de pé, e se viam rodeados por aglomerados de atacantes.
Hal sentiu o espírito se desanuviar. Pela primeira vez, desde que avistara aquelas duas velas de navios na lagoa, sentiu que havia uma chance de poderem vencer aquela luta. Nos últimos poucos minutos, tinham arrasado o ataque principal. Agora, teriam de lidar com os marinheiros da fragata holandesa e do Gull, quando tentassem vir à terra.
- Muito bem, rapazes. Podemos fazer isso! Podemos arrasá-los - gritou, e os marujos que o ouviram deram vivas outra vez.
Olhando ao redor, podia ver o triunfo na face de cada um de seus homens enquanto abatiam o último dos jaquetas verdes. Aboli ria e cantava um de seus cantos pagãos de guerra numa voz que ultrapassava o clamor da batalha e inspirava cada um que o ouvia. Davam vivas a ele e a si próprios, rejubilando-se em delírio pela facilidade da vitória.
A figura alta de Daniel assomou do lado direito de Hal. Sua face e os braços grossos e musculosos estavam empapados do sangue dos ferimentos que infligira a suas vítimas, e sua boca estava escancarada enquanto ele ria com ferocidade, mostrando os dentes cariados.
- Onde está Schreuder? - berrou Hal, e Daniel mostrou-se sóbrio instantaneamente. A risada morreu em sua boca fechada, e ele relanceou os olhos raivosos pelo campo de batalha, que silenciava.
Então, a pergunta de Hal foi respondida sem equívoco pelo próprm Schreuder:
- Segunda leva! Em frente! - berrou ele, com vigor.
Estava parado na fímbria da floresta, apenas a uns cem passos de distância. Hal, Aboli e Daniel partiram em direção a ele e depois, estacaram, quando outra coluna em massa de jaquetas verdes escorreu dafloresta, por detrás de onde se postava Schreuder.
- Por Deus! - disse Hal ofegante, em desespero. - Não vimos metade deles ainda. O bastardo manteve sua força principal na reserva.
- Deve haver duas centenas daqueles suínos! - Daniel sacudiu a cabeça, incrédulo.
- Dividir colunas! - berrou Schreuder, e a infantaria em avanço mudou sua formação: espalharam-se atrás deles em três precisas fileirasespaçadas. Schreuder conduziu-os à frente num trote, as fileiras apertadas e as armas em riste. - Primeira fileira! Preparar para atirar! - Seus homens afundaram-se de joelhos, embora, atrás deles, as duas fileiras permanecessem de pé.
"Apresentar suas armas! - Uma linha de mosquetes foi erguida e nivelada para o grupo de marujos espantados. - Fogo! - rosnou Schreuder.
A saraivada crepitou. De uma distância de apenas cinqüenta passos, varreu os homens de Hal, e quase todo tiro encontrou seu alvo. Homens caíam e cambaleavam quando as pesadas balas de chumbo os atingiam. A linha de ingleses recuou e se dispersou. Havia um coro de berros - de dor, raiva e medo.
- Carga! - gritou Hal. - Não fiquem parados para que eles os abatam! - Ergueu a espada de Netuno ao alto. - Vamos, rapazes. A eles!
De cada lado dele, Aboli e Daniel avançaram, mas a maioria dos outros recuou. Era manifesto a eles que a luta estava perdida, e muitos olharam para trás, para a segurança das plataformas de artilharia. Era um sinal perigoso. Uma vez que olhavam por sobre os ombros, tudo estava perdido.
- Segunda fila - berrou Schreuder -, preparar para atirar! Cinqüenta outros mosqueteiros deram um passo à frente, as armas carregadas e as mechas queimando. Passaram pelas aberturas da fileira ajoelhada que tinha acabado de atirar, avançaram outros dois passos de um modo vigoroso e então se ajoelharam.
- Apresentem suas armas!
Mesmo Hal e o destemido par que o flanqueava titubearam ao olharem para os canos de cinqüenta mosquetes nivelados, enquanto um gemido de medo e horror brotou do peito de seus homens. Nunca tinham antes se defrontado com tropas tão disciplinadas.
- Fogo! - Schreuder baixou a espada, e a próxima rajada de balas espalhou-se entre os marujos vacilantes.
Hal encolheu-se quando uma bala passou tão perto de sua orelha que a deslocação de ar jogou-lhe uma mecha de cabelos nos olhos. A seu lado, Daniel arquejou:
- Fui ferido!
Revirou-se como uma marionete e caiu sentado, pesadamente. A saraivada de balas tinha atingido outra dúzia de homens do Resolução e ferido outros mais. Hal abaixou-se para ajudar Daniel, porém o enorme timoneiro resmungou:
- Não fique indeciso aqui, seu tolo. Corra! Estamos batidos e há outra saraivada a caminho.
Como se para comprovar aquelas palavras, as próximas ordens de Schreuder ecoaram perto.
- Terceira fileira, apresentar suas armas!
Ao redor deles, os homens do Resolução que ainda estavam de pé recuaram e se esparramaram em face dos mosquetes nivelados, correndo e tropeçando em direção às valas dos canhões.
- Ajude-me, Aboli - gritou Hal, e Aboli agarrou o outro braço de Daniel. Ergueram-no de pé e rumaram para a praia.
- Fogo! - gritou Schreuder, e, naquele instante, sem esperar uma palavra um do outro, Hal e Aboli se atiraram de barriga no chão, puxando Daniel para baixo com eles.
A fumaça e a saraivada de tiros da terceira investida passou por sobre suas cabeças. Imediatamente eles saltaram de pé novamente e, arrastando Daniel, correram para o abrigo das valas.
- Está ferido? - resmungou Aboli para Hal, que meneou a cabeça, poupando o fôlego.
Poucos dos marujos ainda estavam de pé. Apenas um punhado chegou à linha das valas de artilharia e saltou para o abrigo.
Quase arrastando Daniel, eles cambalearam para a frente, enquanto, atrás deles, ouviam-se gritos jubilosos, e os mosqueteiros vestidos de verde avançavam, brandindo suas armas. Os três chegaram à vala e puxaram Daniel para dentro.
Não foi preciso perguntar de seu ferimento, pois todo o lado esquerdo de Daniel estava vermelho de sangue. Aboli arrancou o pano que tinha em torno da cabeça, enrolou-o numa bola e apertou-o na frente da camisa de Daniel.
- Segure isso na ferida - disse a Daniel. - Comprima com a força que puder. - Deixou-o no fundo do buraco e postou-se ao lado.
- Oh, minha doce Maria! - murmurou Hal. Sua face esfriada de suor estava pálida de horror e fúria enquanto ele se erguia sobre o parapeito.
- Olhe para aqueles açougueiros sanguinários!
Conforme os jaquetas-verdes avançavam num clamor, paravam apenas para espetar os marujos que jaziam em seu caminho. Algumas dasvítimas rolavam de costas e erguiam as mãos nuas para tentar desviar ogolpe, outros gritavam por misericórdia e procuravam engatinhar paralonge; porém, rindo e uivando, os mosqueteiros corriam atrás deles, a investir e retalhar. Seu trabalho sangrento foi concluído depressa, comSchreuder berrando para que cerrassem fileiras e continuassem avançando.
Naquele instante de alívio, Sir Francis veio em ziguezague pela linha e saltou para a vala ao lado do filho.
- Fomos batidos, papai! - exclamou Hal, desanimado, e olharam ao redor, para os mortos e os feridos. - Já perdemos quase metade de nossos homens.
- Hal tem razão - concordou Aboli. - Acabou. Devemos tentar dar o fora daqui.
- E ir para onde? - perguntou Sir Francis, com um sorriso triste.
- Por ali? - Apontou em direção à lagoa, onde botes rumavam velozes para a praia, impulsionados pelos remos dos marujos inimigos ansiosos para se juntar à luta.
Tanto a fragata como o Gull tinham baixado os escaleres, lotados de homens. Seus alfanjes estavam desembainhados, e a fumaça das mechas das armas de fogo deixava azulado o ar, flutuando sobre a superfície das águas. Gritavam e davam vivas com a selvageria dos jaquetas-verdes à frente.
Quando os primeiros botes tocaram a praia, os homens armados saltaram de dentro deles e correram pela faixa estreita de areia branca. Uivando como um bando de selvagens, tomaram de assalto a linha de valas de artilharia na qual as colubrinas vazias apontavam de bocas silenciosas, e a tripulação restante do Resolução acovardou-se, estupefata.
- Não podemos esperar por mercê, rapazes - gritou Sir Francis.
- Olhem o que aqueles sanguinários pagãos fazem com os que tentam se render a eles. - Com a espada, indicou os cadáveres dos homens mortos que coalhavam o chão em frente aos canhões. - Mais um viva ao Rei Carlos, e cairemos lutando!
As vozes de seu minúsculo grupo estavam fracas e roucas de exaustão quando eles se arrastaram para cima do parapeito mais uma vez e se aprumaram para ir de encontro à carga de duzentos mosqueteiros descansados e ansiosos. Aboli estava uns doze passos à frente e retalhou o primeiro jaqueta-verde em seu caminho. Sua vítima caiu sob o golpe, mas a lâmina de Aboli escapuliu do cabo. Ele jogou-a de lado, inclinou-se e apanhou uma lança das mãos mortas de um dos marujos ingleses caídos.
Enquanto Hal e Sir Francis corriam para o seu lado, Aboli ergueu o longo eixo de carvalho e enterrou-o na barriga de outro mosqueteiro que investia contra ele com a espada erguida ao alto. A cabeça da lança acertou-o logo abaixo das costelas e transfixou-o, saindo quase um braço de comprimento entre suas espáduas. O homem estrebuchou como um peixe num arpão, e o pesado eixo se quebrou nas mãos de Aboli. Ele usou o toco como um porrete para derrubar o terceiro mosqueteiro com quem se confrontou. Depois, olhou ao redor, sorrindo como uma gárgula enlouquecida, os grandes olhos a rolar nas órbitas.
Sir Francis enfrentava um sargento holandês branco, trocando golpe por golpe, as lâminas a se chocar e raspar uma na outra.
Hal matou um cabo com um simples golpe em sua garganta e, então, olhou para Aboli.
- Os homens dos botes estarão sobre nós em um instante. - Podia ouvir os gritos loucos à retaguarda conforme os marujos inimigos se derramavam sobre as valas de artilharia, liquidando depressa os poucos homens escondidos ali. Hal e Aboli não precisavam olhar para trás - ambos sabiam que estava acabado.
- Adeus, velho amigo - disse Aboli, ofegante. - Foram bons tempos. Quem dera tivessem durado mais.
Hal não teve chance de retrucar, pois naquele momento uma voz rouca gritou, em inglês:
- Hal Courtney, seu filhote atrevido, sua sorte terminou neste instante.
- Cornelius Schreuder empurrou dois de seus homens e caminhou direto para Hal. - Você e eu! - berrou, e avançou, com o pé direito, dando os rápidos passos duplos de um mestre espadachim, recobrando-se instantaneamente de cada uma da rápida série de investidas com as quais empurrava Hal para trás.
Hal viu-se aturdido diante da força daquelas investidas e reuniu toda a sua habilidade e força para apará-las e desviá-las. O aço de Toledo de sua lâmina tinia sob os poderosos golpes, e ele foi tomado de desespero ao se dar conta de que não poderia esperar conter tamanha força.
Os olhos de Schreuder eram azuis, frios e implacáveis. Ele antecipava cada um dos movimentos de Hal, oferecendo-lhe uma parede de aço reluzente quando ele tentava a resposta, batendo a espada de lado e depois avançando de novo, impiedosamente.
Ali perto, Sir Francis estava absorvido em seu próprio duelo e não via o enfrentamento mortal do filho. Aboli tinha apenas o toco do eixo da lança na mão; nenhuma arma com a qual enfrentar um homem comoCornelius Schreuder. Viu Haí, sua imatura resistência já gasta pelos excessos anteriores, definhar visivelmente ante a avassaladora força daqueles ataques.
Aboli antecipou, pela expressão de Schreuder, que este julgava ser o momento e concentrava energias para a matança. Era certo, inevitável, pois Hal jamais poderia resistir à ameaça terrível que pairava sobre si.
Aboli moveu-se com a velocidade de uma cobra preta, mais rápido mesmo que Schreuder, antes que este pudesse desferir sua investida final. Avançou por trás de Hal e ergueu o porrete de carvalho. E, numa fração de segundo, derrubou-o no chão com uma pancada em sua orelha, atingindo com dureza sua têmpora.
Schreuder ficou admirado ao ver vítima cair ao chão, sem sentidos,logo quando estava prestes a desferir a investida mortal. Enquanto elehesitava, Aboli deixou cair o eixo da lança arrebentado e postou-seprotetoramente sobre o corpo inerte de Hal.
- Não pode matar um homem caído, coronel. Não pela honra de um oficial holandês.
- Seu Satã negro! - rugiu Schreuder, com frustração. - Se não posso matar o filhote de um cão, pelo menos posso matar você!
Aboli mostrou-lhe as mãos vazias, estendendo as palmas pálidas diante dos olhos de Schreuder.
- Estou desarmado - disse, baixinho.
- Eu poderia poupar um cristão desarmado. - Schreuder encarou-o, os olhos a fuzilar. - Mas você é um animal sem deus. - Puxou para trás a espada e mirou a ponta no centro do peito de Aboli, onde os músculos luziam com o suor, à luz do sol.
Sir Francis saltou para a frente do negro, ignorando a lâmina do coronel.
- Por outro lado, coronel Schreuder, sou um cavalheiro cristão - disse, suavemente -, e me rendo, e a meus homens, à sua mercê. - Inverteu a própria espada e estendeu o cabo a Schreuder.
Schreuder encarou-o, sem fala, de fúria e frustração. Não fez qualquer gesto para aceitar a espada de Sir Francis, mas colocou a ponta da arma sobre a garganta do oponente e picou-a ligeiramente.
- Para o lado, ou, por Deus, eu o cortarei de cima a baixo, cristão ou pagão. - Os nós de sua mão direita ficaram brancos no cabo da arma, conforme se preparava para desferir o golpe.
Outro grito o fez hesitar.
- Ora essa, coronel, estou relutante em interferir numa questão de honra. Se matar meu irmão do peito, Franky Courtney, quem irá nos levar até o tesouro daquele seu belo galeão, o Standvastigheid.
O olhar de Schreuder correu para a face de Cumbrae à medida que ele se aproximou em largas passadas, o grande manto xadrez manchado de sangue na mão.
- A carga? - indagou Schreuder. - Capturamos o ninho dos piratas. Descobriremos que o tesouro está aqui.
- Ora, não esteja tão certo disso. - O Gavião coçou a barba ruiva desgrenhada com ar de tristeza. - Se bem conheço meu caro irmão em Cristo, Franky, ele terá escondido a melhor parte de tudo longe daqui, em algum lugar. - Seus olhos luziam com ganância de sob a boina. - Não, coronel, vai ter de deixá-lo vivo, pelo menos até que possamos nos recompensar com um punhado de moedas de prata por fazer o serviço de Deus no dia de hoje.
Quando Hal recobrou a consciência, encontrou o pai ajoelhado sobre si. Murmurou: - O que aconteceu, papai? Nós vencemos?
O pai meneou a cabeça, sem fitá-lo nos olhos, e cumulou-o de atenções, limpando o suor e a fuligem da face do filho com um pedaço de pano sujo, rasgado da barra da própria camisa.
- Não, Hal. Não vencemos.
Hal olhou para além dele, e tudo lhe voltou. Viu a ínfima quantidade de tripulantes do Resolução que havia sobrevivido. Estavam juntos, num grupo, em torno de onde Hal jazia, guardados por jaquetas-verdes com mosquetes carregados. Os restantes estavam dispersos onde tinham caído, em frente às valas de artilharia, ou envoltos na morte, sobre os parapeitos.
Hal viu que Aboli cuidava de Daniel, amarrando a ferida em seu peito com uma tira vermelha. Daniel estava sentado e parecia de certa forma ter se recuperado, embora evidentemente tivesse perdido umagrande quantidade de sangue. Sua face, sob a sujeira da batalha, estava tão branca como as cinzas da fogueira do último dia no acampamento.
Hal virou a cabeça e viu lorde Cumbrae e o coronel Schreuder de pé, ali perto, em profunda e séria conversação. O Gavião afastou-se por fim e gritou uma ordem para um de seus homens:
- Georgie, traga os grilhões de escravos do Gull. Não querem que o capitão Courtney nos deixe de novo.
O marinheiro correu de volta à praia, e o Gavião e o coronel viera até onde os prisioneiros se agachavam, sob os mosquetes de seus guardas.
- Capitão Courtney. - Schreuder dirigiu-se a Sir Francis com ar agourento. - Eu o estou prendendo e à sua tripulação por pirataria em altos-mares. Será levado a Boa Esperança para enfrentar julgamento por estas acusações.
- Protesto, senhor. - Sir Francis ergueu-se com dignidade. - Exijo que trate meus homens com a consideração devida a prisioneiros de guerra.
- Não há nenhuma guerra - disse-lhe Schreuder com voz glacial. - As hostilidades entre a República da Holanda e a Inglaterra cessaram sob tratado alguns meses atrás.
Sir Francis encarou-o, abalado, embora se recobrasse do choque daquelas notícias.
- Eu não estava ciente de que a paz fora firmada. Agi em boa-fé - disse, por fim -, porém, em qualquer circunstância, eu viajava sob uma comissão de Sua Majestade.
- Falou de sua Carta de Marca durante nosso encontro anterior. Irá me considerar presunçoso se eu insistir em ver o documento? - perguntou Schreuder.
- Minha comissão de Sua Majestade está em meu baú, em minha cabana. - Sir Francis apontou para a paliçada, onde muitas das choças haviam sido destruídas pelo fogo do canhão. - Se me permitir, eu a trarei ao senhor.
- Por favor, não se incomode, Franky, meu velho amigo. - O Gavião deu-lhe um tapinha no ombro. - Eu a trarei para você. - Afastou-se e ao passar pela baixa soleira da porta da cabana que Sir Francis indicara, inclinou-se.
Schreuder defrontou-se com o prisioneiro novamente.
- Onde está guardando seus reféns, senhor? O governador van de Velde e sua pobre esposa, onde estão?
- O governador deve estar ainda na paliçada com outros reféns, sua esposa e o capitão do galeão. Não os vi desde o início da luta.
Hal levantou-se, trêmulo, segurando o pano na cabeça.
- A esposa do governador buscou refúgio da luta numa caverna no lado da colina, lá em cima.
- Como sabe disso? - perguntou Schreuder, com aspereza.
- Para sua própria segurança, eu mesmo a levei para lá. - Hal falava com intrepidez, evitando os olhos severos do pai. - Estava retornando da caverna, quando me deparei com vocês na floresta, coronel.
Schreuder olhou para a colina, dividido entre o dever e o desejo de correr para ajudar a mulher cujo resgate era, pelo menos para ele, o objetivo principal daquela expedição. Porém, naquele instante, o Gavião saiu da cabana. Carregava um rolo de pergaminho atado com uma fita escarlate. Os selos reais de cera vermelha pendiam dele.
Sir Francis sorriu com satisfação e alívio.
- Eis que tem o documento, coronel. Exijo que me trate e à minha tripulação como honrados prisioneiros, capturados numa luta justa.
Antes de chegar a eles, o Gavião parou e desenrolou o pergaminho. Estendeu-o à distância do braço e virou-o para que pudesse ver a caligrafia floreada escrita por algum escrivão do Almirantado em tinta indiana preta. Por fim, com um gesto de cabeça, chamou um de seus marujos. Pegou a pistola carregada da mão do homem e soprou a mecha de queima lenta na trava. Então, sorriu para Sir Francis e colocou a chama ao pé do documento em sua mão.
Sir Francis ficou abismado quando o fogo pegou e o pergaminho começou a se enrolar e escurecer conforme a chama de um pálido amarelo se alastrava.
- Por Deus, Cumbrae, seu bastardo traiçoeiro! - Deu um passo para a frente, mas a ponta da espada de Schreuder espetou-lhe o peito.
- Me daria o maior prazer enterrar até o fundo - murmurou o coronel. - Para seu próprio bem, não tente mais minha paciência, senhor.
- Aquele porco está queimando minha comissão.
- Não vejo nada - disse-lhe Schreuder, com as costas voltadas deliberadamente para o Gavião. - Nada, a não ser um notório pirata diante de mim com o sangue de homens inocentes ainda quente e úmido nas mãos.
Cumbrae ficou a ver o pergaminho queimar, um grande e largo sorriso a lhe separar as suíças amarelo-avermelhadas. Passou a folha que estalava de mão para mão à medida que o calor lhe chegava aos dedosvirando-a para permitir que as chamas consumissem cada pedaço.
- Ouvi-o falar com jactância de sua honra, senhor. - Sir Francis olhou furioso para Schreuder. - Parece que isso é um bem ilusório.
- Honra? - Schreuder riu friamente. - Ouço um pirata falar comigo sobre honra? Certamente meus ouvidos estão me pregando uma peça.
Cumbrae permitiu que as chamas lambessem a ponta de seus dedos antes de deixar cair o último farrapo enegrecido do documento na terra e pisotear as cinzas, esmagando-as até virarem pó. Então, aproximou-se de Schreuder.
- Receio que Franky tenha usado um de seus truques novamente. Não consegui achar nenhuma Carta de Marca assinada pelo punho real.
- Eu suspeitava disso. - Schreuder embainhou a espada. - Coloco os prisioneiros a seu encargo, meu senhor Cumbrae. Preciso ver o bem-estar dos reféns. - Olhou para Hal. - Você me levará imediatamente ao lugar onde deixou a esposa do governador. - Olhou ao redor, para seu sargento holandês que se postava atencioso ao seu lado. - Amarre-lhe as mãos atrás das costas e ponha-lhe uma corda em torno do pescoço. Puxe-o pelo laço como o filhote sarnento que é.
O coronel Schreuder retardou a expedição de resgate enquanto eraconduzida uma busca por sua peruca perdida. Sua vaidade não lhe permitiria ir até Katinka naquele estado de desalinho. Encontraram-na na floresta através da qual ele caçara Hal. Estava coberta de terra úmida e folhas mortas, mas Schreuder bateu-a contra a coxa e depois arrumou os cachos com cuidado antes de colocá-la na cabeça. Sua beleza e dignidade restauradas, fez um gesto a Hal.
- Mostre-nos o caminho!
Quando chegaram finalmente ao terraço em frente à caverna, Hal era uma triste criatura. Ambas as mãos estavam atadas atrás de suas costas,e o sargento tinha outra corda em torno de seu pescoço. Sua face estavaenegrecida de sujeira e fumaça das armas, e as roupas, rasgadas e manchadas de sangue diluído pelo próprio suor. A despeito da exaustão e do esgotamento, sua preocupação ainda era por Katinka, e ele sentiu um tremor de alarme quando entrou na caverna.
Não havia sinal dela. Não posso viver se algo aconteceu a ela, pensou, porém disse em voz alta para Schreuder:
- Deixei Mevrouw van de Velde aqui. Nenhum mal pode ter lhe acontecido.
- Para seu bem, é melhor que esteja correto quanto a isso. - A ameaça era mais assustadora por ter sido murmurada tão baixo. Então, Schreuder ergueu a voz. - Mevrouw van de Velde! - chamou. - Senhora, está a salvo. É o coronel Schreuder, vim para resgatá-la!
As trepadeiras que velavam a entrada da caverna farfalharam suavemente, e Katinka saiu timidamente de detrás delas. Seus enormes olhos violeta estavam marejados de lágrimas, e sua face era pálida e trágica, aumentando-lhe o encanto.
- Oh! - arquejou, com emoção. Então, com dramaticidade, ergueu ambas as mãos na direção de Cornelius Schreuder. - Você veio! Cumpriu sua promessa! - Correu para ele e ficou na ponta dos pés para envolvê-lo com os braços pelo pescoço. - Eu sabia que você viria! Sabia que nunca me deixaria para ser humilhada e molestada por esses terríveis criminosos.
Por instante, Schreuder ficou surpreso pelo abraço, mas então envolveu-a nos braços, protegendo-a e confortando-a enquanto ela soluçava contra as fitas e galões que lhe enfeitavam o peito.
- Se a senhora sofreu a menor afronta, juro que a vingarei cem vezes mais.
- Meu calvário foi terrível demais para que eu possa contar - gemeu ela.
Schreuder olhou para Hal e perguntou a Katinka:
- Foi esse um dos que a maltrataram?
Katinka olhou de soslaio para Hal, a face ainda comprimida contra o peito de Schreuder. Seus olhos se estreitaram maliciosamente, e um pequeno sorriso sádico lhe torceu os lábios lascivos.
- Ele foi o pior de todos. - Ela prorrompeu em mais soluços. - Não posso encontrar forças para lhe contar as coisas horríveis que ele me disse, ou como me atormentou e me humilhou. - Sua voz falhou. - Só agradeço a Deus pela força que me deu para me defender até o fim da importunação desse homem.
Schreuder pareceu inchar com a violência de sua fúria. Com gentileza, afastou Katinka para o lado e depois se voltou para Hal. Cerrou o punho direito e desferiu um soco duro do lado da cabeça do rapaz. Hal foi tomado de surpresa e cambaleou para trás. Schreuder seguiu-o rapidamente e seu próximo soco apanhou Hal na boca do estômago,expulsando-lhe o ar dos pulmões e fazendo-o se dobrar.
- Como se atreve a insultar e maltratar uma dama de alto nascimento?- Schreuder tremia de fúria. Perdera todo o controle do temperamento.
A testa de Hal quase lhe tocava os joelhos, conforme ele arquejava e resfolegava para recobrar a respiração. Schreuder mirou-lhe um chute na face, mas Hal viu o pé chegando e jogou a cabeça de lado. A bota atingiu-o no ombro e o mandou cambaleando para trás.
A raiva de Schreuder borbulhava.
- Você não merece lamber as solas dos sapatos desta dama. Concentrou-se para investir novamente, porém Hal foi mais rápido. Embora suas mãos estivessem amarradas nas costas, ele avançou um passo para encontrar Schreuder e desferiu-lhe um chute na virilha; contudo, faltou força ao golpe, já que estava tolhido pelas cordas. Schreuder ficou mais espantado que ferido.
- Por Deus, filhote, foi longe demais!
Hal estava ainda meio desequilibrado, e o próximo soco de Schreuder tirou-lhe os pés do chão. Ele caiu e Schreuder avançou, usando ambos os pés, as botas a bater com um estampido no corpo curvado de Hal. Hal gemeu e rolou de costas, tentando desesperadamente evitar a barragem de chutes que desabava sobre ele.
- Sim! Oh, sim! - Katinka gorjeava de excitação. - Puna-o por aquilo que fez a mim. - Incitava Schreuder, conduzindo o temperamento violento do coronel a seu limite. - Faça-o sofrer, como eu fui obrigada.
Hal sabia em seu coração que ela era forçada a rejeitá-lo agora, nafrente daquele homem, e, mesmo em seu sofrimento, perdoou-a. Dobrou-se para proteger as partes mais vulneráveis, levando a maioria dos chutes nos ombros e coxas, mas não podia se esquivar de todos. Um pegou-o no lado da boca, e o sangue espirrou-lhe pelo queixo.
Katinka gritou e bateu palmas ao vê-lo sangrar.
- Eu o odeio. Sim. Machuque-o! Arrebente essa carinha bonita e insolente!
Contudo, o sangue pareceu trazer Schreuder ao bom senso novamente. Com evidente esforço, controlou o ânimo exacerbado e recuou, respirando pesadamente e ainda a tremer de raiva.
- Isso é uma pequena amostra do que está reservado para você. Creia-me, Mevrouw, ele há de pagar por tudo quando chegarmos a Boa Esperança. - Voltou-se para Katinka e inclinou-se numa mesura.
- Por favor, deixe-me levá-la de volta para a segurança do navio que espera na baía.
Katinka deu um gritinho patético, os dedos nos macios lábios rosados.
- Oh, coronel, receio que eu vá desmaiar. - Cambaleou, e Schreuder saltou para a frente para segurá-la. Ela se recostou contra ele. - Não creio que minhas pernas possam me agüentar.
Ele ergueu-a nos braços e carregou-a, colina abaixo, com infinito cuidado. Ela se agarrava a ele como se fosse uma criança sendo levada para a cama.
- Vamos, isca de cadafalso! - O sargento puxou Hal de pé pelo laço em torno do pescoço e conduziu-o, ainda sangrando, para o acampamento. - Melhor seria se o coronel acabasse com você aqui e agora.
O carrasco de Boa Esperança é famoso. É um artista, ah, isso é. - Puxou firme a corda. - Vai se divertir com você, eu garanto.
Uma pinaça trouxe os grilhões para a praia, até onde os sobreviventes da tripulação do Resolução tanto os feridos como os incólumes, esperavam agachados sob guarda, no sol abrasador. Levaram o primeiro conjunto para Sir Francis.
- É bom vê-lo de novo, capitão. - O marujo com os ferros nas mãos postou-se diante dele. - Tenho pensado no senhor todo dia desde a última vez em que nos vimos.
- Eu, por outro lado, não lhe destinei um só pensamento, Sam Bowles.
- Sir Francis mal o olhou, porém havia escárnio em sua voz.
- Contramestre Sam Bowles, agora. Sua Senhoria me promoveu - disse Sam, com um sorriso insolente.
- Então, desejo que o Gavião desfrute de seu novo contramçstre. Esse é um casamento feito nos céus.
- Estenda suas mãos, capitão. Vamos ver o quanto é poderoso e altivo com braceletes de ferro - tripudiou Sam Bowles. - Por Cristo, nunca saberá quanto prazer isso me dá. - Fechou as algemas nos pulsos e tornozelos de Sir Francis, e, com a chave, apertou-as tão forte que elas lhe morderam a carne. - Espero que se ajustem no senhor tão bem quanto seu elegante manto. - Deu um passo para trás e cuspiu de repente na face de Sir Francis; depois, irrompeu numa gargalhada. - Prometo-lhe solenemente que, no dia que lhe encurtarem o mastaréu, estarei no campo da Boa Esperança, para lhe desejar felicidades. Fico a imaginar de que maneira o mandarão. Acha que será pelo fogo, ou vão pendurá-lo e estripá-lo? - Riu de novo e seguiu até Hal. - Bom dia para você,mestre Henry. É seu humilde servo, o contramestre Sam Bowles, que vem cuidar de suas necessidades.
- Não vi um relance de sua figura amarela durante a luta - disse Hal, calmamente. - Onde estava escondido desta vez?
Sam corou e arremessou o punhado de correntes pesadas contra a cabeça de Hal. Hal recuperou-se e fitou-o friamente nos olhos. Sam iainvestir de novo, mas uma enorme mão negra se estendeu e agarrou-opelo pulso. Ele olhou para os olhos nublados de Aboli, que se agachava ao lado de Hal. Aboli não disse uma palavra, mas Sam Bowles sustou ogolpe. Não podia enfrentar aquele olhar assassino, e deixou cair os olhos, mantendo-os desviados ao se ajoelhar depressa para prender as cadeias nos membros de Hal.
Levantou-se e foi para Aboli, que ficou a observá-lo com o mesmo olhar inexpressivo enquanto ele fechava rapidamente os grilhões nele; depois, passou para onde estava Daniel Grande. Daniel pestanejou, mas não murmurou uma palavra enquanto ele o puxava brutalmente pelos braços. O ferimento de bala tinha parado de sangrar, porém, com aquele rude tratamento, abriu-se de novo, e começou a vazar sangue aguado de sob o pano vermelho que Aboli usara para enfaixá-lo. O sangue escorreulhe pelo peito e pingou na areia.
Quando estavam todos sob grilhões, foi-lhes ordenado que ficassem de pé. Apoiando Daniel entre si, Hal e Aboli quase o carregaram enquanto eram conduzidos numa fila para uma das árvores maiores. Denovo, foram forçados a se sentar enquanto a ponta da corrente era passada em torno do tronco e fechada com dois pesados cadeados de ferro.
Havia apenas vinte e seis sobreviventes da guarnição do Resolução. Entre esses, quatro ex-escravos, dos quais Aboli era um. Quase todos estavam pelo menos ligeiramente feridos, porém quatro, incluindo Daniel, estavam gravemente machucados e correndo risco de vida.
Ned Tyler recebera um profundo corte de alfanje na coxa. Mesmo tolhidos pelas algemas, Hal e Aboli haviam-no enfaixado com outra tira de pano rasgado da camisa de um dos mortos que coalhavam o campo de batalha, como destroços de naufrágio numa praia varrida pelo vento.
Grupos de mosqueteiros de gibão verde trabalhavam sob as ordens dos sargentos holandeses para reunir os cadáveres. Puxando-os pelos calcanhares até uma clareira entre as árvores, eles despiam os corpos e procuravam por moedas de prata e outros itens de valor que fossem parte do butim do Standvastigheid.
Uma dupla de suboficiais rebuscava cuidadosamente as roupas descartadas, rasgando costuras e tirando as solas dos sapatos. Outro grupo de três homens, as mangas enroladas no alto e os dedos escorregadios de graxa, inspecionava os orifícios dos corpos dos mortos, em busca de quaisquer valores que pudessem ter sido enfiados naqueles tradicionais lugares escondidos.
O butim recuperado era lançado numa barrica de água, vazia sobre a qual se postava um sargento branco com uma pistola carregada, enquanto a barrica se enchia lentamente. Quando o trio vampiresco terminava com os cadáveres nus, outra turma os arrastava para longe e os lançava dentro de altas piras funerárias. Abastecidas de lenha seca, as chamas chegavam tão alto que murchavam as folhas verdes das árvores majestosas que rodeavam a clareira. A fumaça de carne carbonizada era doce e nauseante, como gordura de porco queimada.
Enquanto isso, Schreuder e Cumbrae, assistidos por Limberger, capitão do galeão, faziam a contagem dos barris de especiarias. Eram cuidadosos como coletores de impostos, com suas listas e livros, verificando se o conteúdo e peso dos bens recuperados conferia com o manifesto original do navio e marcando as aduelas dos barris com giz branco.
Quando tinham feito seus registros, outra turma de marinheiros rolava os grandes barris para a praia e os carregava na pinaça maior para serem levados para o galeão, que jazia ancorado no canal, sob seu novo mastro mestre e cordames. O trabalho prosseguiu por toda aquela noite, à luz de lampiões e fogueiras, e as chamas amarelas das piras de cremação.
Conforme as horas passavam, Daniel Grande tornou-se febril. Sua pele estava quente, e às vezes ele delirava. A bandagem tinha por fim estancado o sangue, e, sob ela, uma suave crosta começou a se formar sobre o feio buraco. Porém, a pele ao redor estava inchada e se tornando lívida.
- A bala ainda está lá - murmurou Hal para Aboli. - Não há ferimento nas costas, pois ela não saiu do corpo.
Aboli resmungou:
- Se tentarmos cortá-lo, acabaremos matando-o. Pelo ângulo em que entrou, deve estar alojada perto do coração e dos pulmões.
- Receio que vá gangrenar. - Hal meneou a cabeça.
- Ele é forte como um touro - retrucou Aboli. - Talvez forte o bastante para derrotar os demônios. - Aboli acreditava que toda doença era causada por demônios que invadiam o sangue. Era uma superstição sem fundamento, mas Hal era indulgente com aquela crença.
- Deveríamos cauterizar os ferimentos de todos os homens com breu quente. - Era a panacéia dos marinheiros, e Hal pediu em holandês aos guardas hotentotes que trouxessem um dos potes de piche da cabana do carpinteiro na paliçada, porém eles o ignoraram.
Passava da meia-noite quando viram Schreuder de novo. Ele saiu da escuridão e caminhou diretamente para onde Sir Francis estava acorrentado, junto aos outros, ao pé da árvore. Como o resto de seus homens, ele estava exausto e conseguia cochilar apenas por breves momentos de sono interrompido, perturbado pela algazarra incansável e os movimentos das turmas de trabalho, e pelos gritos e gemidos débeis dos feridos.
- Sir Francis. - Schreuder inclinou-se e sacudiu-o até vê-lo plenamente acordado. - Posso aborrecê-lo por uns poucos minutos de seu tempo? - Pelo tom de sua voz, parecia que seu temperamento estava equilibrado.
Sir Francis sentou-se.
- Primeiro, coronel, posso aborrecê-lo e pedir um pouco de compaixão? Nenhum de meus homens viu uma gota d'água desde a tarde de ontem. Como pode ver, quatro estão gravemente feridos.
Schreuder franziu a testa, e Sir Francis imaginou que ele não dera ordens para que os prisioneiros fossem deliberadamente maltratados. Ele próprio nunca pensara que Schreuder fosse um homem brutal ou sádico. Seu comportamento selvagem anteriormente fora, com certeza, causado pela natureza excitável e pela tensão e exigências da batalha. Schreuder, então, voltou-se para os guardas e deu ordens para que trouxessem água e comida para os prisioneiros, e mandou um sargento encontrar o baú de suprimentos médicos na cabana destruída de Sir Francis.
Enquanto esperava que suas ordens fossem cumpridas, Schreuder ficou a andar de um lado para outro na areia, o queixo no peito e as mãos engatadas atrás das costas. Hal, de repente, sentou-se mais ereto.
- Aboli - murmurou ele. - A espada.
Aboli resmungou ao se dar conta que na bainha de Schreuder estava a espada de Netuno, estampada em relevo, da classe de cavaleiro de Hal, que um dia pertencera ao avô de Sir Francis. Aboli pousou a mão sobre o ombro do jovem, para acalmá-lo e evitar que interpelasse Schreuder, e disse, baixinho:
- O espólio de guerra, Gundwane. Está perdida para você, porém pelo menos um verdadeiro guerreiro ainda a usa.
Hal afundou-se, percebendo a lógica cruel do conselho do amigo. Por fim, Schreuder voltou-se para Sir Francis.
- O capitão Limberger e eu verificamos as especiarias e a carga de madeira que o senhor tinha armazenado nos depósitos e descobrimos que a maior parte está em ordem e ainda intacta. A quantidade em falta deve ser provavelmente resultante de dano de água do mar durante a tomada do galeão. Soube que uma de suas colubrinas atingiu o porão principal, e parte da carga foi inundada.
- Fico satisfeito - murmurou Sir Francis, com leve ironia - que tenha podido recuperar toda a propriedade de sua companhia.
- Ora, não é o caso, Sir Francis, como deve estar bem ciente. Há ainda uma grande parte da carga do galeão sumida. - Parou quando o sargento retornou, e deu-lhe uma ordem. - Tire as correntes do preto edomenino. Deixe que distribuam água entre os outros. -Alguns homens traziam uma barrica d'água, que colocaram ao pé da árvore. Hal e Aboli começaram imediatamente a servir água fresca aos feridos, e todos beberam, engolindo o precioso líquido de olhos fechados e gargantas pendidas para trás.
O sargento dirigiu-se ao coronel Schreuder:
- Encontrei os instrumentos do cirurgião. - Mostrou o rolo de lona. - Mas, Mijnheer, aqui dentro há facas afiadas que poderiam ser usadas como armas, e o conteúdo dos potes de piche poderia ser empregado contra meus homens.
Schreuder olhou para baixo, para Sir Francis, onde este se acocorava, pálido e desgrenhado, ao lado do tronco de árvore.
- Tenho sua palavra de cavalheiro de que não usará esses suprimentos médicos para ferir meus homens?
- Tem minha palavra solene - concordou Sir Francis. Schreuder voltou-se para o sargento.
- Deixe tudo isso ao encargo de Sir Francis - ordenou, e o sargento estendeu o pequeno baú de suprimentos médicos, o pote de breu, um rolo de pano limpo que poderia ser usado como atadura.
- Ora, capitão - Schreuder retomou a conversa de onde a interrompera -, recuperamos as especiarias e a madeira roubada, porém mais da metade das moedas e todos os lingotes de ouro que estavam no porão do Standvastigheid ainda estão desaparecidos.
- Os espólios foram distribuídos para minha tripulação. -Sir Francis sorriu sem humor. - Não sei o que fizeram com sua parte, e a maioria está bem morta para ser capaz de nos esclarecer.
- Recuperamos o que eu calculo seja a maior parte da cota de suatripulação. - Schreuder apontou para o barril contendo os valores recolhidos daquela maneira macabra entre as fatalidades no campo de batalha. Estava sendo carregado por um grupo de marujos para uma pinaça que esperava, guardada por oficiais holandeses com as espadas desembainhadas. - Meus oficiais procuraram nas cabanas de seus homens na paliçada, porém ainda não há nenhum sinal da outra metade.
- Por mais que eu gostasse de lhe servir, sou incapaz de dar conta da porção perdida - respondeu Sir Francis, com calma.
Diante daquela negativa, Hal ergueu os olhos de onde estava, cuidando dos feridos, mas seu pai não olhou em sua direção.
- Lorde Cumbrae acredita que o senhor escondeu o tesouro perdido - comentou Schreuder. - E concordo com ele.
- Lorde Cumbrae é um mentiroso famoso e um trapaceiro - disse Sir Francis. - E o senhor está enganado em sua crença.
- Lorde Cumbrae é de opinião que, se lhe fosse dada a oportunidade de interrogá-lo em pessoa, poderia extrair do senhor o paradeiro do tesouro perdido. Está ansioso para tentar persuadi-lo a revelar o que sabe. Tive muita dificuldade para impedi-lo de fazer isso.
Sir Francis deu de ombros.
- O senhor deve fazer o que julgar adequado, coronel, porém, a menos que eu seja um pobre juiz, a tortura de cativos não é algo que um soldado como o senhor pudesse endossar. Sou grato pela compaixãoque demonstrou para com meus feridos.
A resposta de Schreuder foi interrompida por um grito de agonia de Ned Tyler, quando Aboli despejou um colherão cheio de breu fumegante na cutilada de espada em sua coxa. Conforme o grito se transformava em soluços, Schreuder continuou, com suavidade:
- O tribunal que o julgará por pirataria no forte em Boa Esperança será encabeçado por nosso novo governador. Tenho sérias dúvidas de que o governador Petrus Jacobus van de Velde se mostre tão constrangido a ser misericordioso quanto eu. - Schreuder parou e então prosseguiu: - A propósito, Sir Francis, estou seguramente informado de que o carrasco empregado pela companhia em Boa Esperança se orgulha de sua perícia.
- Terei de dar ao governador e a seu carrasco a mesma resposta que lhe dei, coronel.
Schreuder acocorou-se e baixou a voz até uma entonação conspiratória, quase amistosa.
- Sir Francis, em nosso curto tempo de conhecimento, formei um alto conceito a seu respeito, como um guerreiro, um navegante e um cavalheiro. Se eu prestasse depoimento junto ao tribunal de que sua Carta de Marca existia, e que o senhor era um legítimo corsário, o resultado de seu julgamento poderia ser diferente.
- O senhor deve ter uma fé no governador van de Velde que me falta - retrucou Sir Francis. - Gostaria de poder impulsionar sua carreira para a frente aparecendo com os lingotes sumidos, porém não posso ajudá-lo, senhor. Não sei absolutamente nada de seu paradeiro.
O semblante de Schreuder se fechou enquanto ele se levantava.
- Tentei ajudá-lo. Lamento que rejeite minha oferta. Contudo, está correto, senhor. Não tenho estômago para vê-lo interrogado sob tortura. E mais, impedirei que lorde Cumbrae assuma essa tarefa por conta própria. Simplesmente cumprirei meu dever e o entregarei à misericórdia do tribunal em Boa Esperança. Eu lhe peço, senhor, não irá reconsiderar?
Sir Francis meneou a cabeça.
- Lamento não poder ajudá-lo, senhor. Schreuder suspirou.
- Muito bem. O senhor e seus homens serão levados a bordo do Gull of Moray tão logo a nau esteja pronta para zarpar, amanhã pela manhã. A fragata Sonnevogel tem outros deveres nas índias e partirá à mesma hora para um destino diferente. O Standvastigheid permanecerá aqui sob seu verdadeiro comandante, o capitão Limberger, para recolher a carga de especiarias e madeira antes de retomar a viagem interrompida para Amsterdã.
Girou nos calcanhares e desapareceu nas sombras, na direção do depósito de especiarias.
Quando foram acordados por seus captores, na manhã seguinte, quatro dos feridos, inclusive Daniel e Ned Tyler, eram incapazes de caminhar, e seus companheiros foram forçados a carregálos. Os grilhões de escravo permitiam pouca liberdade de movimento, e foi uma linha confusa de homens que se arrastou pela praia. Cada passo era embaraçado pelas algemas tilintantes, de maneira que não podiam erguer os pés alto o bastante para pisar na borda da pinaça e tinham que ser jogados lá dentro pelos guardas.
Quando a pinaça foi amarrada ao pé da escada de corda no costado do Gull, a subida que esperava os homens acorrentados se revelou terrível e perigosa. Sam Bowles se postava na amurada, acima deles. Um dos guardas na pinaça gritou para ele:
- Podemos soltar as algemas dos prisioneiros, contramestre?
- Por que quer fazer isso? - berrou Sam de volta.
- Os feridos não podem se ajudar. Os outros não poderão puxá-los. Caso contrário, não conseguirão subir a escada.
- Se não conseguirem, que se danem - respondeu Sam. - Ordens de Sua Senhoria. As algemas devem continuar onde estão.
Sir Francis conduziu a subida, cada um de seus movimentos atrapalhado pela fileira de homens ligados atrás dele. Os quatro feridos, gemendo em seu delírio, eram pesos mortos que tinham de ser arrastados pela força. Daniel Grande, em particular, testava a resistência de todos. Se permitissem que se lhes escapasse das mãos, ele desabaria dentro da pinaça e puxaria a corrente toda de vinte e seis homens consigo, certamente fazendo emborcar o pequeno bote. Uma vez na lagoa, o peso dos pesados grilhões de ferro os levaria ao fundo, a quatro braças de profundidade.
Se não fosse pela força de touro de Aboli, jamais teriam chegado ao convés do Gull. Contudo, mesmo ele estava completamente exaurido quando, por fim, ergueu a forma inerte de Daniel por sobre a amurada e caiu ao lado, no convés branco de tanta esfregação. Todos ficaram ali, ofegantes e abatidos, para serem espicaçados por uma esfuziante risada.
Com esforço, Hal ergueu a cabeça. No tombadilho superior do Gull, sob um toldo de lona, uma mesa de desjejum estava posta. Os copos eram de cristal, e a baixaria de prata reluzia ao sol da manhã. Ele sentiu o pesado aroma de bacon ovos frescos e biscoito quente a subir do réchaud.
A cabeceira da mesa, sentava-se o Gavião. Ele ergueu o copo na direção daquele monte de corpos humanos espalhados na parte central do navio.
- Bem-vindos a bordo, cavalheiros, e um brinde à sua espantosa boa saúde! - Bebeu o uísque que erguera, depois enxugou as suíças amarelo-avermelhadas com um guardanapo de linho adamascado. - Os mais belos alojamentos a bordo foram preparados para vocês. Desejo-lhes uma boa viagem.
Katinka van de Velde riu outra vez, um som musical. Sentava-se à esquerda do Gavião. Sua cabeça estava nua, os cachos dourados presos ao alto, os olhos violeta enormes e inocentes no perfeito oval da face empoada, e com uma bela pinta desenhada com cuidado no canto da linda boca pintada.
O governador sentava-se do lado oposto ao da esposa. Parou no ato de erguer um garfo de prata carregado de bacon crocante e queijo para a boca, mas continuou a mastigar. Um pingo amarelo de gema de ovo escapou-lhe dos lábios beiçudos e correu pelo queixo, conforme ele falava de boca cheia:
- Não se desespere, Sir Francis. Lembre-se do lema de sua família. Tenho certeza de que resistirá. - Enfiou a garfada na boca e falou de novo: - Esta é realmente uma excelente refeição, fresca, de Boa Esperança. Pena que não possa se juntar a nós.
- Que gentileza de Sua Senhoria nos providenciar um entretenimento. Será que aqueles trovadores cantarão para nós ou irão nos divertir com mais acrobacias? - perguntou Katinka em holandês e depois fez um belo beicinho e bateu no braço de Cumbrae com seu leque pintado chinês.
Naquele momento, Daniel Grande rolou a cabeça de um lado para outro, batendo-a nas pranchas, e gritou em delírio. O Gavião soltou uma gargalhada.
- Como vê, eles tentam fazer o melhor, madame, porém seu repertório não agrada a cada gosto. - Fez um gesto para Sam Bowles. - Mostre-lhes os alojamentos, mestre Samuel, e certifique-se de que sejam bem cuidados.
Com a ponta de uma corda com nós, Sam Bowles vergastou os prisioneiros para que se levantassem. Eles ergueram os feridos e se arrastaram para a escada da gaiúta. Nas profundezas do casco, abaixo do porão principal, estendia-se o baixo convés dos escravos. Quando Sam Bowles ergueu a escotilha que se abria para ele, o fedor que subiu para saudálos o fez recuar. Era a essência do sofrimento de centenas de almas condenadas que tinham definhado ali.
O pé-direito daquele convés não era mais alto que a cintura de um homem, de maneira que foram forçados a se agachar e arrastar os feridos com eles. Anéis de ferro estavam presos à antepara, soldados no pesado eixo de carvalho que corria pelo comprimento do porão. Sam e seus quatro companheiros agacharam-se depois deles e passaram as correntes pelos anéis. Quando terminaram, os cativos foram deixados como arenques numa barrica, lado a lado, presos pelos pulsos e tornozelos, capazes apenas de sentar, mas impossibilitados de se virar ou mover as pernas mais que os poucos centímetros que as correntes permitiam.
Hal jazia ao lado do pai, de um lado, e da figura inerte de Daniel Grande, do outro. Aboli estava do outro lado de Daniel, e Ned Tyler,além dele.
Quando o último homem já fora acorrentado, Sam saiu e agachou-se na escotilha; fez uma careta para eles.
- dés dias até Boa Esperança, com este vento. Uma caneca de águapor dia para cada homem e três onças de biscoito, quando eu me lembrar de trazer. Estão liberados para cagar e urinar onde estão. Eu os vejo em Boa Esperança, meus amores.
Bateu a escotilha com força para fechá-la, e eles ouviram-no do outro lado martelar os pinos de trava em seus assentos. Quando os baques demarreta cessaram, a súbita quietude era assustadora. A princípio, a escuridão era completa, porém, então, conforme seus olhos se ajustavam,puderam divisar as formas escuras de seus companheiros amontoados ao redor.
Hal olhou para a fonte de luz e descobriu uma pequena grade colocada no convés diretamente acima de sua cabeça. Mesmo sem as barras, não teria largura suficiente para deixar passar a cabeça de um homem adulto, e ele descartou-a imediatamente como possível rota de fuga. Pelo menos liberava uma lufada de ar fresco.
O fedor era difícil de suportar, e todos ofegavam na atmosfera pesada. Cheirava como uma cova de urso. Daniel Grande gemeu, e o soml soltou-lhes as línguas. Começaram a falar todos de uma vez.
- Pelo amor de Deus, cheira como uma latrina na estação dos damascos aqui embaixo.
- Acha que existe uma chance de escapar daqui, capitão?
- Claro que há, meu valentão - respondeu um dos homens por Sir Francis. - Quando chegarmos a Boa Esperança.
- Eu daria metade de minha parte da mais rica presa que já navegou pelos sete mares por cinco minutos a sós com Sam Bowles.
- Toda a minha cota por outros cinco com aquele sanguinário doCumbrae.
- Ou com aquele bastardo cabeça-de-queijo, Schreuder. De súbito, Daniel tartamudeou:
- Oh, mãe, vi sua adorável face. Venha beijar seu pequeno Daniel. O lamento dolorido desconcertou-os, e o silêncio de desespero caiu sob o escuro e barulhento convés dos escravos. Gradualmente, afundaram num torpor de impotência, quebrado ocasionalmente pelos resmungos de delírio e pelo tilintar das correntes quando tentavam encontrar uma posição mais confortável.
Aos poucos, a passagem do tempo perdeu toda a significação, e nenhum deles tinha certeza se era noite ou dia quando o som do cabrestante da âncora do tombadilho superior reverberou pelo casco e eles ouviram os gritos débeis dos suboficiais retransmitindo as ordens para colocar o Gull a caminho.
Hal tentou avaliar o curso e a direção do navio pelo ímpeto e adernamento do casco, mas logo perdeu a noção. Só quando o Gull investiu subitamente e começou a deslizar com um movimento leve e folgazão, foi que ele percebeu que tinham deixado a lagoa e passado pelas pontas.
Hora após hora, o Gull batalhou com o sudeste para se fazer ao largo. O movimento os lançava para trás e para a frente sobre as pranchas nuas, fazendo-os escorregarem de costas pelos poucos centímetros que suas cadeias permitam, antes de lhes dar um solavanco nas algemas, e em seguida, fazê-los deslizar de volta para o outro lado. Foi um grande alívio quando, por fim, a nau acomodou-se num curso mais tranqüilo.
- Lá vamos. É um sinal melhor - disse Sir Francis a todos. - O Gavião fez-se ao largo. Virou de bordo e estamos velejando livres com o sudeste à popa de nosso lado, rumando a oeste para o cabo.
Conforme o tempo passava, Hal fez algumas estimativas da passagem dos dias pela intensidade da luz que passava pela grade acima de sua cabeça. Durante as longas noites, havia uma negrura sufocante no convés dos escravos, como a do fundo de uma mina de carvão. Depois, uma luz mais suave se filtrava até ele conforme a alvorada surgia, que crescia em intensidade até que ele conseguia divisar a forma da cabeça negra e redonda de Aboli além da face mais clara de Daniel Grande.
Entretanto, mesmo ao meio-dia, os cantos mais fundos do convés dos escravos ficavam imersos em escuridão, na qual os suspiros e gemidos e os ocasionais murmúrios dos outros homens ecoavam, lúgubres, entre as anteparas de carvalho. Depois, novamente a luz fenecia para aquela negrura absoluta, marcando a passagem de outro dia.
Na terceira manhã, uma mensagem sussurrada foi passada de homem a homem:
- Timothy o'Reilly está morto.
Era um dos feridos; levara um golpe de espada no peito de um dos jaquetas-verdes.
- Era um bom homem - fez-lhe o epitáfio Sir Francis. - Que Deus dê descanso a sua alma. Gostaria de poder dar a ele um enterro cristão.
Na quinta manhã, porém o cadáver de Timothy acrescia o miasma de podridão e degenerescência que permeava o convés dos escravos e lhes enchia os pulmões a cada respiro.
Muitas vezes, enquanto Hal jazia num estupor de desespero, os rápidos ratos acinzentados, grandes como coelhos, subiam por seu corpo. Suas unhas agudas provocavam arranhões dolorosos por sua pele nua. Por fim, ele desistiu da impossível tarefa de tentar expulsá-los chutando cempurrando-os, e acomodou-se para suportar o desconforto. Apenas quando um enterrou os dentes curvos e afiados nas costas de sua mão, ele gritou e tentou agarrar o bicho, que chiava agudamente pela garganta; esganou-o com as mãos nuas.
Quando Daniel urrou de dor a seu lado, Hal se deu conta de que os ratos o tinham encontrado também, e que ele era incapaz de se defender daqueles ataques. Depois disso, ele e Aboli assumiram turnos, sentados, na tentativa de manter os roedores vorazes longe do homem inconsciente.
Seus ferros os impediam de se acocorarem sobre a estreita canaleta que corria ao longo do pé da antepara, projetada para levar embora os dejetos. De vez em quando, Hal ouvia o borbulhante alívio quando um dos homens evacuava onde jazia, e, imediatamente depois, vinha o cheiro fétido de fezes frescas nos espaços confinados e já malcheirosos.
Quando Daniel esvaziou sua bexiga, o líquido quente se espalhou pelas pranchas sob Hal e ensopou-lhe a camisa e as calças. Não havia nada que ele pudesse fazer para evitar isso, a não ser erguer a cabeça.
Na maioria dos dias, em torno do que Hal julgava ser meio-dia, os pinos de trava da escotilha era subitamente retirados com estrondosos baques de marreta. Quando era erguida, a luz febril que se infiltrava no porão quase os cegava, e eles erguiam as mãos, pesadas de correntes, para proteger os olhos.
- Tenho uma bebida especial para vocês, alegres cavalheiros, no dia de hoje - cantava a voz de Sam Bowles. - Uma caneca d'água de nossos barris mais velhos, com uns poucos bichinhos andando nela e uma gota de meu cuspe para lhe dar sabor.
Ouviam-no escarrar com força e então estourar na risada antes de estender a primeira caneca de peltre. Cada caneca era passada ao longo do convés, de mão para mão presa em algemas, e, quando uma se emborcava, não era substituída.
- Uma para cada um de nossos cavalheiros. São vinte e seis canecas e nenhuma a mais - dizia-lhes Sam Bowles, alegremente.
Daniel Grande estava agora muito longe de poder beber sem ajuda, e Aboli tinha de lhe erguer a cabeça enquanto Hal derramava água entre seus lábios. Os outros doentes precisavam ser tratados da mesma maneira. Muito da água se perdia ao escorrer de suas bocas bambas, e era uma coisa custosa. Sam Bowles perdia a paciência antes que tivessem tomado metade.
- Nenhum de vocês quer mais? Bem, estou saindo, então.
E batia a escotilha, fechando-a, e colocava os pinos nas travas, deixando a maioria dos cativos a implorar em vão por sua parte, pelas gargantas ressecadas e os lábios descarnados. Porém, Sam se mostrava implacável, e eles eram forçados a esperar outro dia pela próxima ração.
Depois disso, Aboli enchia a própria boca com água da caneca, colocava os lábios sobre os de Daniel e forçava o líquido para dentro da boca do homem inconsciente. Os homens faziam o mesmo para os outros feridos. Aquele método era rápido o bastante para satisfazer mesmo Sam Bowles, e menos do precioso líquido era perdido.
Sam Bowles riu quando um dos homens lhe gritou:
- Pelo amor de Deus, contramestre, há um homem morto aqui. Timothy o'Reilly está fedendo até os céus. Não pode sentir o cheiro?
Ele respondeu:
- Estou contente que tenha me contado. Isso quer dizer que não irá usar sua ração de água. A partir de amanhã serão apenas vinte e cinco canecas que estarei servindo.
Daniel estava morrendo. Não mais gemia, e se debatia em delírio. Jazia imóvel como um cadáver. Mesmo sua bexiga se secara e não se esvaziava espontaneamente sobre as pranchas fedidas onde ele se achava largado. Hal ergueu-lhe a cabeça e murmurou ao seu ouvido, tentando incentivá-lo a continuar vivo:
- Não pode desistir agora. Agüente um pouco mais e estaremos no cabo antes que perceba. Toda aquela água fresca que você pode beber, belas escravas para tratá-lo. Pense nisso, Danny.
Ao meio-dia, naquele que julgou fosse o sexto dia no mar, Hal chamou por Aboli:
- Tenho algo a lhe mostrar aqui. Dê-me sua mão. - Pegou os dedos de Aboli e guiou-o pelas costelas de Daniel. A pele estava tão quente que era quase dolorosa de se tocar, e a carne tão consumida que ascostelas apontavam como aduelas de barril.
Hal rolou Daniel de lado tanto quanto as cadeias permitiam e dirigiu os dedos de Aboli para as espáduas.
- Aqui. Pode sentir esse calombo? Aboli resmungou:
- Posso senti-lo, mas não posso vê-lo. - Estava tão restrito por seus grilhões que não conseguia olhar por sobre o volume do corpo inerte de Daniel.
- Não tenho certeza, mas acho que sei o que é isso. - Hal abaixou a face para mais perto e estreitou os olhos à luz diminuta. - Há um inchaço do tamanho de uma noz. Está preto como uma contusão.
- Tocou o lugar gentilmente, mas mesmo a leve pressão fez Daniel gemer e se debater nos liames.
- Deve estar muito sensível - Sir Francis tinha se erguido e se inclinava para tão perto como podia. - Não posso enxergar bem. Onde é?
- No meio da espádua - respondeu Hal. - Creio que seja a bala de mosquete. Passou direto pelo peito e está aqui, debaixo da pele.
- Então é isso que o está matando - retrucou Sir Francis. - É olugar e a fonte da gangrena que o está comendo por dentro.
- Se tivéssemos uma faca - murmurou Hal -, poderíamos tentararrancá-la. Mas Sam Bowles tomou o baú de medicamentos.
Aboli resmungou:
- Não antes que eu escondesse uma das facas. - Procurou na cintura de suas calças e estendeu uma lâmina fina. Ela luziu suavemente naluz fraca que vinha da grade acima da cabeça de Hal. - Estava esperando por uma oportunidade para cortar a garganta de Sam com isto.
- Precisamos nos arriscar e tirar a bala daí - disse-lhe Sir Francis.
- Se ficar em seu corpo, ela o matará com mais certeza do que o escalpelo.
- Não consigo enxergar para fazer o corte onde ela está - retrucou Aboli. - Você terá de fazer isso.
Houve um arrastar e tilintar de elos de corrente, e então Sir Francis resmungou:
- Minhas cadeias são muito curtas. Não posso encostar um dedo nele.
Ficaram todos silenciosos por um momento, e então Sir Francis falou:
- Hal.
- Papai! - protestou Hal. - Não tenho o conhecimento ou a habilidade.
- Então Daniel morrerá - disse Aboli, secamente. - Você lhe deve a vida, Gundwane. Aqui, pegue a faca.
Na mão de Hal, a faca pareceu pesada como uma barra de chumbo. Com a boca seca de medo, ele testou o corte da lâmina no polegar e descobriu-a cega por muito uso.
- Está cega - protestou.
- Aboli está certo, meu filho. - Sir Francis pousou a mão no ombro de Hal e apertou-o. - Você é a única chance de Daniel.
Lentamente, Hal estendeu a mão esquerda e tateou o duro calombo na carne quente de Daniel. Moveu-o sob os dedos e sentiu-o raspar contra o osso da espádua.
A dor acordou Daniel, e ele se debateu contra as correntes. Gritava:
- Ajude-me, Jesus. Pequei contra Deus e os homens. O demônio veio até mim. Ele é negro. Tudo está negro.
- Segure-o, Aboli - murmurou Hal. - Mantenha-o imóvel. Aboli passou os braços em torno de Daniel, como os anéis de um grande píton negro.
- Faça - disse. - Faça depressa.
Hal inclinou-se para perto de Daniel, tão perto quanto as algemas lhe permitiam, a face a um palmo de distância das costas do outro homem. Agora conseguia ver o inchaço com mais clareza. A pele estava tão esticada que parecia lustrosa e arroxeada como uma ameixa madura. Ele colocou os dedos da mão esquerda de cada lado do calombo e repuxou ainda mais a pele.
Respirou fundo e colocou a ponta do escalpelo contra o inchaço. Concentrou coragem, contando silenciosamente até três, e depois comprimiu a lâmina para baixo com a força de um braço treinado na espada. Sentiu a lâmina escorregar fundo para as costas de Daniel e então atingir algo duro e resistente, metal contra metal.
Daniel soltou um guincho de dor e em seguida caiu frouxo nos braços dobrados de Aboli. Um jato de pus roxo e amarelo irrompeu do profundo corte do escalpelo. Quente e espesso como cola de carpinteiro, espirrou na boca de Hal e escorreu-lhe pelo queixo. O cheiro era pior que todos os outros odores do convés de escravos, e uma ânsia subiu pela garganta de Hal, escaldando-a. Ele engoliu de volta o próprio vômito e limpou o pus da face com as costas do braço, antes que pudesse se recompor para espiar mais uma vez para o ferimento.
Um pus negro ainda borbulhava dele, mas ele viu uma coisa estranha no corte fresco. Cutucou-o com a ponta do bisturi e puxou para fora um pedaço de material negro e fibroso no qual lascas de osso da escápula estilhaçada se misturavam ao sangue geleificado e com o pus.
- É um pedaço do gibão de Danny - arquejou ele. - A bala deve tê-lo empurrado para dentro da ferida.
- Achou a bala? - indagou Sir Francis.
- Não, ainda deve estar lá dentro. Cutucou ainda mais fundo no ferimento.
- Sim. Ei-la aqui.
- Pode tirá-la?
Por uns poucos minutos, Hal trabalhou em silêncio, grato que Daniel estivesse inconsciente e não sofresse durante a crua exploração. O fluxo de pus diminuiu, e agora sangue limpo e fresco brotava da ferida escura.
- Não consigo pegar com a faca. Escorrega para longe - murmurou ele. - Pôs de lado a lâmina e enfiou o dedo na carne quente e viva de Daniel. Com a respiração a resfolegar de pavor, enfiou mais e mais fundo até poder tocar a ponta do dedo por trás do calombo de chumbo.
- Ei-la! - exclamou, de súbito, quando a bala de mosquete pulou para fora do ferimento e caiu nas pranchas com um baque. Estava deformada pelo violento contato com o osso, e havia uma nódoa brilhante no chumbo macio. Ele fitou-a, aliviado, e depois tirou o dedo do ferimento.
Seguiu-se uma nova onda suave de pus e material estranho encaroçado.
- É a bucha do mosquete - balbuciou. - A coisa toda está fora agora. - Olhou para as mãos lambuzadas. O fedor delas atingiu-o como um soco na face.
Por uns instantes, ficaram todos em silêncio. Então Sir Francis sussurrou:
- Muito bem, Hal!
- Acho que ele está morto - respondeu Hal, numa voz desconsolada. - Está tão quieto.
Aboli soltou Daniel dos braços e depois puxou-o contra o peito nu.
- Não, está vivo. Posso sentir seu coração. Agora, Gundwane, precisa lavar a ferida para ele.
Entre os dois, arrastaram o corpo inerte de Daniel até o limite das cadeias, e Hal dobrou os joelhos, acima dele. Abriu as calças imundas e, desidratado pela limitada ração de água, dirigiu um jato fraco de urina para o ferimento. Foi o suficiente para lavar os últimos restos de pus e infecção. Hal usou as últimas gotas para limpar a sujeira das mãos e então caiu de costas, desgastado pelo esforço.
- Fez a coisa como um homem, Gundwane - disse-lhe Aboli, e estendeu a Hal o pano vermelho, preto e duro com sangue seco e pus. - Use isso para vedar a ferida. É tudo que temos.
Enquanto Hal enfaixava o ferimento, Daniel jazia como um cadáver. Não mais gemia ou lutava contra as correntes.
Três dias depois, quando Hal se inclinou sobre Daniel para lhe dar água, ele de repente ergueu a mão, jogou a cabeça para trás e pegou a caneca das mãos de Hal. Secou-a em três longos goles. Então arrotou poderosamente e disse, numa voz fraca, porém lúcida:
- Por Deus, isso estava bom. Gostaria de mais umas gotas.
Hal estava tão encantado e aliviado que lhe entregou a própria ração e ficou a vê-lo beber. No dia seguinte, Daniel já tinha condições de sentar-se conforme seus grilhões permitiam.
- Sua cirurgia teria matado uma dúzia de mortais comuns - murmurou Sir Francis, enquanto observava a recuperação de Daniel Grande com admiração -, mas Daniel Pescador supera qualquer um em saúde.
No nono dia de viagem, Sam Bowles abriu a escotilha e cantou, alegremente: - Boas-novas para vocês, cavalheiros. O vento tem pregado uma peça nestas últimas cinqüenta léguas. Sua Senhoria avalia que serão outros cinco dias antes que rodeemos o cabo. Portanto, seu cruzeiro maravilhoso irá durar um pouquinho mais.
Poucos tinham força ou interesse para se revoltar com aquela horrível notícia, e estenderam as mãos para as canecas de peltre com água com gestos frenéticos. Quando a cerimônia diária de lhes dar de beber estava terminada, Sam Bowles alterou a rotina. Em vez bater a escotilha e fechá-la por outro dia, enfiou a cabeça pelo vão e berrou:
- Capitão Courtney, senhor, os cumprimentos de Sua Senhoria, e, se não tiver nenhum compromisso previamente agendado, lorde Cumbrae ficaria lisonjeado se fosse jantar com ele. - Saltou para o convés dos escravos e, com dois de seus companheiros para ajudá-lo, soltou as algemas de Sir Francis dos pulsos e dos tornozelos e tirou as correntes dos anéis de ferro na antepara.
Mesmo depois que Sir Francis estava livre, foram precisos todos os três homens para erguê-lo de pé. Estava tão fraco e com tantas cãibras que balançava e cambaleava como um bêbado enquanto o ajudavam a subir penosamente para a escotilha.
- Perdão, capitão - Sam riu-lhe na cara -, o senhor não estava exatamente em nenhuma cama de rosas, não estava. Já cheirei chiqueiros de porcos e latrinas um pouco mais doces que o senhor, isso já,Franky, meu camarada.
Arrastaram-no para o convés e rasgaram-lhe as roupas fétidas dol corpo mirrado. Depois, quatro marujos foram para as manivelas da bomba do convés, e Sam voltou o jato de água da mangueira de lona em cheio sobre ele. O Gull entrara na ponta final da verde corrente de Benguela que escorria pela costa oeste do continente. O jorro de água gelada domar da mangueira quase arrancou Sir Francis de seus pés, e ele teve de se agarrar às enxárcias para manter o equilíbrio. Tremendo e engasgado quando Sam direcionou a mangueira para sua face, ele conseguiu mesmo assim esfregar a sujeira encrostada dos cabelos e do corpo. Não o preocupou o fato de que Katinka van de Velde se debruçasse na amurada do convés de popa e escrutinasse sua nudez sem a menor indicação de modéstia.
Somente quando a mangueira foi desligada e ele ficou de pé ao vento, para secar, foi que teve a chance de olhar ao redor e formar alguma estimativa da posição e condição do Gull. Embora seu corpo emaciado estivesse azul de frio, ele se sentia refrescado e fortalecido pelo banho. Seus dentes batiam e sua compleição inteira estremecia com espasmos involuntários de frio enquanto ele olhava para o lado, e dobrava os braços sobre o peito para se aquecer. O continente africano jazia dés léguas ou pouco mais ao norte, e ele reconheceu os penhascos e rochedos do ponto que guardava a entrada da baía Falsa. Teriam de agüentar firme para ultrapassar aquele ponto selvagem antes que pudessem entrar na baía da Mesa, no ponto mais distante da península.
O vento estava quase morto, e a superfície do mar tão lustrosa como óleo, com longas e lentas vagas a subir e cair como a respiração de um monstro adormecido. Sam Bowles dissera a verdade: a menos que aparecesse vento, seriam muitos dias antes que rodeassem o cabo e lançassem âncora na baía da Mesa. Sir Francis ficou a imaginar quantos mais de seus homens seguiriam Timothy antes que fossem libertados do confinamento do convés dos escravos.
Sam Bowles jogou umas poucas peças de roupas esfarrapadas, porém limpas, no convés, aos pés de Sir Francis.
- Sua Senhoria o está esperando. Não o faça aguardar agora.
- Franky! - Cumbrae levantou-se para cumprimentá-lo quando ele passou pela soleira, para dentro da cabine de popa do Gull. - Estou contente por ver que não parece tão mal, apesar de sua pequena estada abaixo dos conveses. - Antes que Sir Francis pudesse evitar, Cumbrae o envolveu num abraço de urso. - Devo pedir desculpas sinceramente pelo tratamento que lhe é dado, porém foi por insistência do governador holandês e de sua esposa. Eu jamais trataria um irmão cavaleiro de maneira tão desprezível.
Enquanto falava, o Gavião corria as grandes mãos rapidamente pelo corpo de Sir Francis, em busca de alguma faca escondida ou outra arma, e depois o empurrou para a maior e mais confortável cadeira da cabine.
- Um copo de vinho, meu caro e velho amigo?
Serviu-o ele próprio e depois fez um gesto ao camareiro de bordo para que colocasse uma tigela de ensopado à frente de Sir Francis. Embora a saliva lhe enchesse a boca com o aroma da primeira comida quente que lhe era oferecida em quase duas semanas, Sir Francis não fez nenhuma menção de pegar o copo ou a colher ao lado da tigela de ensopado.
Cumbrae notou-lhe a recusa e, embora erguesse uma das sobrancelhas hirsutas, não insistiu; simplesmente mas pegou a própria colher e encheu-a com um bocado da própria tigela. Mastigou com todos os sons de apetite e aprovação e então tomou um generoso gole do copo de vinho e enxugou as suíças ruivas com as costas da mão.
- Não, Franky, por minha própria escolha, eu jamais o teria tratado com tamanha mesquinhez. Você e eu tivemos nossas diferenças no passado, porém foi sempre com o espírito cavalheiresco de esporte e competição, não é assim?
- Esporte tal como disparar suas surriadas em meu acampamento sem avisar? - perguntou Sir Francis.
- Ora, não vamos perder tempo com recriminações ociosas. - O Gavião fez um gesto de descaso para o comentário. - Isso não teria sido necessário se você simplesmente tivesse concordado em dividir o butim do galeão comigo. O que realmente interessa é que você e eu entendemos um ao outro. De coração, somos irmãos.
- Acho que posso compreendê-lo - concordou Sir Francis.
- Então saberá que o que lhe causa sofrimento, me penaliza ainda mais. Tenho sofrido com você cada minuto de seu encarceramento.
- Detesto vê-lo sofrer, meu senhor, então por que não me liberta e a meus homens?
- Esse é meu mais fervoroso desejo e intenção, eu lhe asseguro. Contudo, ainda resta um pequeno empecilho que me impede de fazer isso. Preciso de um sinal de sua parte de que meus calorosos sentimentos com relação a você são recíprocos. Ainda estou profundamente magoado por não querer partilhar comigo, meu velho amigo, o que era por direito meu nos termos de nosso acordo.
- Tenho certeza de que os holandeses lhe deram a parte que lhe faltava antes. De fato, eu o vi carregando o que me pareceu uma generosa porção de especiarias a bordo deste mesmo navio. Fico a imaginar o que fará o Alto Almirantado da Inglaterra ao saber de tal tráfico com o inimigo.
- Umas poucas barricas de especiaria; mal valem o fôlego de mencionálas. - Cumbrae sorriu. - Mas não havia nada como prata e ouro para despertar meus instintos fraternais. Ora, vamos, Franky, já perdemos bastante tempo com amenidades. Ambos sabemos que você tem os lingotes de ouro do galeão escondidos em algum lugar perto de seu acampamento, na lagoa do Elefante. Sei que os encontrarei se procurar o tempo suficiente, mas até então você estará morto, mandado para o inferno pelo carrasco em Boa Esperança.
Sir Francis sorriu e meneou a cabeça.
- Não escondi nenhum tesouro. Procure se quiser, porém não há nada para você encontrar.
- Pense nisso, Franky. Você sabe o que os holandeses fizeram com os mercadores ingleses que capturaram na ilha de Bali? Crucificaram-nos e queimaram-lhes as mãos e os pés com chamas de enxofre. Quero salvá-lo disso.
- Se você não tem mais nada para discutir, voltarei para minha tripulação. - Sir Francis levantou-se. Suas pernas estavam mais fortes agora.
- Sente-se! - berrou o Gavião. - Diga-me onde escondeu isso, homem, e eu porei você e seus homens em terra sem mais maus-tratos, juro por minha honra.
Cumbrae esbravejou e tentou persuadi-lo por outra hora. Então, por fim, suspirou.
- Você é duro numa barganha, Franky. Eu lhe direi o que farei. Não o faria para ninguém mais, porém eu o amo como a um irmão. Se me levar de volta e me conduzir ao butim, eu o dividirei com você.
Cinqüenta por cento, metade para cada um. Ora, não posso ser mais justo que isso, posso?
Sir Francis encarou aquela oferta com um calmo e tranqüilo sorriso, e Cumbrae não conseguiu ocultar sua fúria. Bateu na mesa tão violentamente com a palma da mão, que os copos entornaram e o vinho se espalhou pela cabine. Berrou, furioso, para Sam Bowles:
- Leve este arrogante bastardo para longe e prenda-o em algemas de novo. - Quando Sir Francis deixava a cabine, gritou, às suas costas: - Descobrirei onde o escondeu, Franky, juro a você. Sei mais do que você pensa. Tão logo eu o tenha visto no topo do campo da Boa Esperança, voltarei para a lagoa e não sairei de lá até encontrar o tesouro.
Mais um dos marujos de Sir Francis morreu em seus grilhões antes que ancorassem na marinha d'água na baía da Mesa. Os outros estavam tão enrijecidos e fracos que foram forçados a se arrastar como animais para cima da escada até o tombadilho superior. Agacharam-se ali, suas roupas rasgadas encrostadas com a própria sujeira, a esgazear o olhar em volta, pestanejando e tentando proteger os olhos do sol brilhante da manhã.
Hal nunca estivera tão perto de terra em Boa Esperança. No percurso em terras estrangeiras de seu cruzeiro, no começo da guerra, tinham ficado bem ao largo e olhado para a baía de grande distância. Contudo, aquele breve relance não o preparara para o esplendor de sua paisagem marítima, onde o azul real do Atlântico, pintalgado de espuma do vento, lavava as praias de forma tão impressionante que fazia doer seus olhos fracos.
A fabulosa montanha de topo aplainado parecia encher a maior parte do céu azul africano, um grande penhasco de rocha amarelada cortado por profundas ravinas e afogado em densa floresta verde. O cume da montanha era tão geometricamente nivelado, e suas proporções tão agradáveis, que parecia ter sido projetado por um arquiteto celestial. Sobre o topo daquele imenso tabuleiro espalhava-se uma onda permanente de nuvem de luz difusa, cremosa como leite a ferver sobre a beirada de um caldeirão. Aquela cascata prateada nunca chegava aos declives mais baixos da montanha, porém, quando caía, evaporava-se em meio vôo com uma subitaneidade mágica, deixando os taludes abaixo resplandecentes em sua roupagem de floresta natural verdejante.
A grandeza apequenava e tornava inconseqüentes as edificações que se espalhavam como uma coceira irritante ao longo do litoral, acima da praia branca como a neve, da qual uma frota de pequenos barcos saiu para encontrar o Gull tão logo a nau lançou âncora.
O governador van de Velde recusou-se a descer a escada e foi içado do convés, a balançar para fora numa pequena cadeira de contramestre, durante todo o tempo a gritar ordens nervosas para os homens nas cordas.
- Cuidado agora, seus paspalhos atrapalhados! Deixem-me cair e eu mandarei arrancar a pele de suas costas.
Foi baixado para o escaler ao lado do Gull, na qual sua esposa já esperava. Assistida pelo coronel Cornelius Schreuder, sua descida fora consideravelmente bem mais graciosa que a do marido.
Foram levados a remo para beira-mar, onde cinco fortes escravos ergueram o novo governador do bote que dançava no quebra-mar de espuma branca na orla da praia. Eles vadearam o trecho com ele e odepositaram na areia.
Conforme os pés do governador tocaram o solo africano, os primeiros tiros de canhão de uma salva de quatorze se ouviram. Uma longa pluma de fumaça prateada subiu da troneira no topo do reduto sul, e o retumbante cumprimento assustou o novo representante da companhia, que saltou com um pé no ar e quase perdeu o chapéu emplumado para o vento sudoeste.
O governador Kleinhans, deslumbrado que seu sucessor tivesse por fim chegado, estava na orla para encontrá-lo. O comandante da guarnição, igualmente ansioso para passar o cargo ao coronel Schreuder e sacudir dos pés a fértil terra africana, aguardava nos taludes da fortaleza, sua luneta focalizada nos dignitários que chegavam.
A carruagem oficial esperava acima da praia, seis belos cavalos acinzentados nos varais. O governador Kleinhans desceu dela para cumprimentar os recém-chegados, agarrando o chapéu por causa do vento. Uma guarda de honra da guarnição se postava em torno da carruagem. Reunidas ao longo da linha-d'água, havia diversas centenas de homens, mulheres e crianças. Cada residente da povoação que podia andar ou se arrastar se reunira para dar as boas-vindas ao governador van de Velde, enquanto ele porfiava em seu caminho pela areia solta.
Quando, por fim, chegou em terreno firme e recuperou o fôlego e a dignidade, aceitou as boas-vindas do governador Kleinhans. Apertaram-se as mãos diante dos vivas e aplausos dos oficiais da companhia e dos burgueses livres e escravos reunidos a observar. O acompanhamento militar apresentou as armas, e a banda iniciou uma melodia de espírito patriótico. A música terminou com um bater de címbalos e o rufar de tambores. Os dois governadores espontaneamente se abraçaram, Kleinhans deliciado por estar livre para retornar a Amsterdã, e van de Velde cheio de alegria por ter escapado da morte na tempestade e no ataque pirata, e por ter o solo holandês sob os pés mais uma vez.
Enquanto Sam Bowles e seus companheiros removiam os cadáveres dos grilhões e os jogavam pela amurada, Hal agachou-se na fileira dos cativos e ficou a observar de longe enquanto Katinka era conduzida para a carruagem pelo governador Kleinhans num braço e o coronel Schreuder no outro.
Sentiu o coração retorcer-se de amor por ela, e murmurou para Daniel e Aboli:
- Ela não é a mais linda mulher do mundo? Usará a influência por nós. Agora que o marido tem plenos poderes, irá persuadi-lo a nos tratar com justiça.
Nenhum dos dois homens enormes retrucou, porém trocaram um olhar. Daniel sorriu com os dentes quebrados, e Aboli revirou os olhos.
Assim que Katinka se acomodou nos assentos de couro, os homens empurraram o marido para dentro da carruagem. Tão logo ele estava instalado em segurança ao lado da esposa, a banda iniciou uma marcha festiva e a escolta ergueu os mosquetes para o ombro e saiu marchando, uma visão impressionante com seus cintos brancos cruzados e os gibões verdes. A procissão espalhou-se pelo passeio aberto em direção ao forte, com a multidão a correr adiante da carruagem e se enfileirando de ambos os lados do percurso.
- Adeus, cavalheiros. Foi um prazer e um privilégio tê-los a bordo. - O Gavião tocou a beira do chapéu numa irônica saudação quando Sir Francis caminhou com passos trôpegos, arrastando as correntes pelo convés, e conduziu a fileira de sua tripulação para baixo, pela escada, para dentro do bote atracado ao lado do costado. Tantos homens acorrentados faziam uma pesada carga para a embarcação, na presente condição das ondas. Sobraram apenas uns poucos centímetros de bordo livre quando se afastaram do costado do Gull.
Os remadores lutavam para empurrar a popa do escaler para as ondas brancas que rebentavam conforme se aproximavam da praia, porém uma vaga mais alta entrou por baixo da embarcação e jogou-a fora da linha. Ela virou em roda pesadamente, afundou na ombreira e girou sobre si mesma em um metro e meio de água. Tripulação e passageiros foram jogados na água espumosa, e o bote emborcado foi pego pela onda.
Engasgados e tossindo água, os prisioneiros tentaram de arrastar uns aos outros para além do quebra-mar em suas cadeias. Miraculosamente,nenhum se afogou, mas o esforço exigiu-lhe mais do que o limite. Quando os guardas da fortaleza os ergueram com prepotência nos pés e osempurraram na ponta dos mosquetes, com palavrões, para a praia, todos escorriam água e estavam cobertos por uma camada de areia branca.
Tendo visto a carruagem oficial passar em segurança através dos portões do forte, a multidão correu de volta para beira-mar, para se divertir um pouco com aquelas infelizes criaturas. Estudavam-nos como se fossem mercadoria num mercado, as risadas desbragadas, os comentários rudes e vulgares.
- Para mim, parecem mais ciganos e mendigos do que piratas ingleses.
- Estou poupando meus guinéus. Não vou fazer lances quando esse lote de escravos for posto à venda.
- Eles não vendem piratas, simplesmente os queimam.
- Não parecem ser grande coisa, mas pelo menos nos darão alguma diversão. Não temos uma execução realmente boa desde a revolta dos escravos.
- Lá está Stadige Jan, vem dar uma olhada neles. Garanto que teráumas poucas lições a ensinar a esses corsários.
Hal voltou a cabeça na direção em que o homem que falara apontara, para onde se postava um burguês alto, de roupas pretas e grossas, com um chapéu puritano, acima da multidão. Ele olhou para Hal com os pálidos olhos amarelados inexpressivos.
- O que acha dessas belezas, Stadige Jan? Será capaz de fazê-los cantar uma bela canção para nós?
Hal sentiu a repulsão e fascinação que aquele homem despertava nas pessoas ao redor dele. Ninguém se aproximava, e fitavam-no de uma tal maneira que Hal instintivamente percebeu que aquele era o carrasco do qual tinham sido alertados. Sentiu a carne formigar ao olhar para aqueles olhos desbotados.
- Por que acha que o chamam de João Lento? - perguntou a Aboli, pelo canto da boca.
- Vamos esperar que nunca venhamos a descobrir - retrucou Aboli, ao passarem onde a alta e cadavérica figura se postava.
Meninos pequenos, tanto pardos como brancos, dançavam ao lado da coluna de homens acorrentados, zombando e crivando-os de pedras e sujeira dos esgotos abertos que levavam os dejetos da cidade para o mar. Encorajado por aquele exemplo, um bando de cães vira-latas avançava-lhes nos calcanhares. Os adultos na multidão estavam trajados em suas melhores roupas para uma ocasião tão incomum e riam diante das provocações das crianças. Algumas das mulheres levavam sachês de ervas às narinas quando sentiam o cheiro da fila enlameada de prisioneiros, estremecendo em horrorizada fascinação.
- Oh! Que criaturas pavorosas!
- Olhem para aquelas caras cruéis e selvagens.
- Ouvi dizer que alimentam aqueles negros com carne humana. Aboli contorceu a face e revirou os olhos para elas. As tatuagens em seu rosto se salientavam, orgulhosas, e seus grandes dentes brancos estavam expostos, num sorriso de meter medo. As mulheres gritaram, com deliciado terror, e as filhas pequenas escondiam as faces nas saias das mães enquanto ele passava.
Na retaguarda da multidão, afastados da companhia dos melhores e sem tomar parte na diversão de humilhar os cativos, havia aqueles homens e mulheres que, adivinhou Hal, deviam ser os escravos domésticos dos burgueses. Os escravos entre o povo variavam em cor do negro antracito da África ao âmbar e peles douradas do Oriente. A maioria estava simplesmente vestida nas roupas descartadas de seus donos, embora algumas das mulheres mais bonitas ostentassem os coloridos trajes elegantes que as destacavam como as preferidas de seus proprietários.
Olhavam caladas enquanto os marujos se arrastavam em suas correntes tilintantes, e não havia nenhum som de risadas entre elas. Em vez disso, Hal sentiu uma certa empatia por trás das fechadas expressões impassíveis, pois eram cativas também. Pouco antes de entrarem pelos portões do forte, Hal notou uma garota em particular na traseira da multidão. Subira numa pilha de blocos de alvenaria para ter uma vista melhor e estava mais ao alto que as fileiras intermédias de espectadores. Aquela não era a única razão pela qual Hal a distinguira.
Era mais bonita do que ele jamais esperara que qualquer mulher pudesse ser. Era uma flor de garota, com cabelos fartos e lustrosos, muito negros, e olhos escuros que pareciam grandes demais para sua face oval delicada. Por um momento, seus olhares se encontraram por sobre as cabeças da multidão, e pareceu a Hal que ela tentava lhe passar alguma mensagem que ele foi incapaz de captar. Sabia apenas que ela sentia compaixão por ele, e que partilhava de seu sofrimento. Então, perdeu-a de vista quando foram empurrados pela passagem para dentro do pátio do forte.
Sua imagem ficou com ele durante os dias terríveis que se seguira:: Gradualmente, começou a superar a memória de Katinka e, nas noites algumas vezes retornava para lhe dar a força de que precisava para resistir. Hal sentia que, se houvesse pelo menos uma pessoa com tanta graça e ternura fora dali, além das lúgubres muralhas de pedra, então valia apena lutar.
No pátio do forte, um armeiro militar tirou-lhe os grilhões. Um grupo em terra, sob o comando de Sam Bowles, postava-se para recolher as algemas descartadas e levá-las de volta ao Gull.
- Sentirei saudades de todos, meus companheiros. - Sam sorriu. - Os tombadilhos inferiores do velho Gull ficarão vazios e solitários sem suas faces sorridentes e seu bom humor. - Acenou-lhes um adeus do portão enquanto liderava seu grupo para fora. - Espero que cuidem de vocês tão bem quando seu bom amigo Sam Bowles. Mas, não tenham medo, estarei no campo quando derem o último espetáculo aqui.
Quando Sam se foi, Hal olhou pelo pátio. Viu que a fortaleza fora projetada numa escala substancial. Como parte de seu treinamento, seu pai o fizera estudar a ciência das fortificações em terra, e, portanto, ele reconhecia a clássica planta defensiva das muralhas de pedra e redutos. Percebeu que, assim que aqueles trabalhos fossem completados, seria preciso um exército muito bem equipado e preparado em termos de cerco para superar tais obstáculos.
Contudo, o trabalho estava ainda com menos da metade terminada, e, do lado de terra do forte, ou, como os novos carcereiros se referiam a ele, het kasteel o castelo, havia simplesmente fundações abertas sobre as quais as maciças muralhas de pedra seriam algum dia erguidas. No entanto, era evidente que a obra fora apressada. Quase com certeza, as duas guerras anglo-holandesas recentes tinham contribuído para aquela arrancada. Tanto lorde Oliver Cromwell, o Protetor da Comunidade da Inglaterra, Escócia e Irlanda, durante o interregno, como o Rei Carlos, filho do homem que ele decapitara, podiam reclamar algum crédito pelo frenesi de construção que havia ali em torno. Tinham forçado os holandeses a se recordar da vulnerabilidade de suas colônias distantes. As muralhas semi-acabadas enxameavam de centenas de trabalhadores, e o pátio onde se encontravam estava cheio de madeira de construção e blocos de alvenaria revestida, cortados das montanhas que assomavam sobre tudo.
Como cativos perigosos, Sir Francis e os demais foram mantidos à parte dos outros prisioneiros e conduzidos do pátio por uma curta escada em espiral abaixo da muralha sul do forte. Os blocos de pedra que se alinhavam no chão, no teto em arco e nas paredes, luziam com a umidade que minava do solo encharcado ao redor. Mesmo num dia ensolarado de outono, a temperatura naquelas úmidas imediações proibidas os fazia tremer de frio.
Ao pé do primeiro lance de escadas, Sir Francis foi arrastado para fora da fila por seus carcereiros e jogado numa pequena cela larga o suficiente para caber um homem. Integrava uma fileira de meia dúzia ou mais de cubículos idênticos, cujas portas eram de madeira sólida guarnecidas de tachões e com um pequeno orifício de vigia tampado. Não havia sinais dos outros internos.
- Alojamentos especiais para você, senhor Pirata - disse o robusto carcereiro holandês ao bater a porta na cara de Sir Francis e girar a chave de ferro do molho em sua cintura. - Nós o estamos colocando no Covil do Esqueleto, com todos os realmente maus, os assassinos e rebeldes e ladrões. Você se sentirá em casa aqui, disso estou certo.
O resto dos prisioneiros foi arrebanhado para baixo, para o próximo nível das masmorras. O sargento carcereiro destrancou uma porta gradeada ao final do túnel e eles foram empurrados para dentro de uma longa e estreita cela. Assim que a grade foi trancada atrás deles, mal havia espaço para todos se esticarem na estreita camada de palha úmida que cobria o chão de paralelepípedos. Uma única barrica de latrina estava a um canto, mas murmúrios de prazer dos homens saudaram a vista da larga cisterna ao lado do portão gradeado. Pelo menos, aquilo significava que não estavam mais sob as rações de água de quando a bordo do navio.
Havia quatro pequenas janelas postadas no topo de uma parede, e, assim que tinham inspecionado os arredores, Hal olhou para elas. Aboli ergueu-o nos ombros e ele pôde chegar a uma daquelas estreitas aberturas. Era pesadamente gradeada, como as outras; ainda assim Hal testou os ferros com as mãos nuas. Estavam firmemente assentados na rocha, e ele foi forçado a afastar da mente qualquer idéia de escapar por aquele caminho.
Pendurado na grade, ele se ergueu e espiou pelo buraco. Descobriu que seus olhos estavam a um palmo ou pouco mais acima do nível do chão, e, dali, ele tinha uma visão de parte do pátio interior do castelo. Podia ver a passagem de entrada e os grandes portais do que imaginava devessem ser os escritórios da companhia e a suíte do governador. De um lado, através do vão onde as muralhas ainda não tinham sido erigidas,ele podia ver uma porção dos penhascos da montanha em topo de tabuleiro, e, acima deles, o céu. Contra o azul sem nuvens, passava um bando de gaivotas brancas.
Hal se deixou cair e abriu caminho entre o amontoado de marinheiros, passando sobre os corpos dos doentes e feridos. Quando chegou àgrade, olhou para o alto da escada, porém não pôde ver a porta para acela do pai.
- Papai! - chamou, hesitante, esperando uma censura de um dos carcereiros, porém, quando não houve resposta, ergueu a voz e gritou novamente.
- Eu o ouvi, Hal - gritou de volta seu pai.
- Tem alguma ordem para nós, papai?
- Espero que nos deixem em paz por um dia ou dois, pelo menos até que tenham convocado um tribunal. Teremos de esperar. Diga aos homens que se mantenham animados.
Diante disso, uma voz estranha interveio, falando em inglês porém com um sotaque pouco familiar.
- São os piratas ingleses de que ouvimos falar tanto?
- Somos marinheiros honestos, falsamente acusados - gritou de volta Sir Francis. - Quem e o que é você?
- Sou seu vizinho no Covil do Esqueleto, duas celas adiante. Estoucondenado a morrer, como você.
- Ainda não fomos condenados - protestou Sir Francis.
- É apenas uma questão de tempo. Ouvi dos carcereiros que logo o será.
- Qual é seu nome? - Hal juntou-se à conversa. Não estava interessado no estranho, porém aquilo servia para passar o tempo e para desviá-lo das próprias preocupações. - Qual é seu crime?
- Sou Althuda, e meu crime é de me empenhar em ficar livre e delivrar outros homens.
- Então, somos irmãos, Althuda, você, eu e cada homem aqui. Todos lutamos por liberdade.
Houve um desconcertado coro de concordância, e quando feneceu, Althuda falou novamente:
- Liderei uma revolta dos escravos da companhia. Alguns foram recapturados. Esses, Stadige Jan queimou vivos, porém a maioria de nós escapou para as montanhas. Muitas vezes mandaram soldados atrás de nós, porém lutamos e os rechaçamos e não puderam nos escravizar novamente. - Era uma voz jovem e enérgica, orgulhosa e forte, e antes mesmo que lhe visse a face, Hal descobriu-se em empatia com aquele Althuda.
- Então, se escapou, como é que está de volta aqui, no Covil do Esqueleto? - quis saber um dos marinheiros ingleses. Todos o ouviam agora. A história de Althuda comovera mesmo o mais empedernido deles.
- Voltei para resgatar alguém, outro escravo que ficara para trás - disse-lhes Althuda. - Quando entrei na colônia novamente, fui reconhecido e traído.
Ficaram todos em silêncio por um espaço de tempo.
- Uma mulher? - perguntou uma voz. - Voltou pôr causa de uma mulher?
- Sim - disse Althuda. - Uma mulher.
- Há sempre uma Eva no meio do Éden para tentar-nos a fazer papel de bobos - cantarolou um dos marujos, e todos caíram na risada.
Então, algum outro perguntou:
- Era sua namorada?
- Não - respondeu Althuda. - Voltei por causa de minha irmãzinha.
Trinta convidados se sentavam no banquete que o governador Kleinhans mandou servir para dar as boas-vindas a seu sucessor. Todos os homens mais importantes da administração da colônia, junto com suas esposas, estavam sentados em torno da longa mesa.
Do lugar de honra, Petrus van de Velde olhou com deleitada satisfação pela extensão da mesa de roseira acima da qual pendiam enormes candelabros, cada um a queimar cinqüenta velas perfumadas. Iluminavam o grande salão como se fosse dia, e faziam luzir a prataria e os copos de cristal.
Durante meses até então, desde que tinham zarpado da costa de Trincomalee, van de Velde fora forçado a subsistir com a lavagem e o rebotalho cozinhado no galeão e depois com as refeições ordinárias que os piratas ingleses lhe forneciam. Agora, seus olhos brilhavam e a saliva brotava de sua boca ao contemplar as extravagâncias culinárias que se espalhavam diante de si. Estendeu a mão para o copo alto à sua frente e tomou um gole farto do raro vinho de Champagne. As minúsculasbolhas fervilhantes picaram-lhe o palato e estimularam seu apetite já desenfreado.
Van de Velde considerava aquele um posto muito auspicioso, pelo qual tinha de agradecer às relações da esposa no Conselho dos Dezessete. Posicionado ali, na ponta da África, uma constante procissão de navios passava em ambas as direções, trazendo os luxos da Europa e do Oriente para a baía da Mesa. Não haveria de querer mais nada.
Silenciosamente, xingou Kleinhans pelo longo discurso de boas-vindas, do qual mal ouvia uma palavra. Toda a sua atenção estava na disposição das travessas de prata e réchauds que se espalhavam diante de si, um após outro.
Havia pequenos leitõezinhos em crocantes arranjos de torresmos; medalhões de carne a escorrer os ricos sucos, arrumados em torno de fumegantes tabuleiros de batatas assadas; pilhas de tenros frangos e pombos e patos e gansos gordos; cinco diferentes tipos de peixe fresco do Atlântico,cozidos de cinco maneiras diferentes, fragrantes com os curries e especiarias de Java e Kandy e da índia ulterior; altas pirâmides das enormes lagostas escarlates sem as patas que abundavam naquele oceano meridional; um imenso arranjo de frutos e vegetais suculentos dos pomares da companhia; e refrescos e cremes e bolinhos açucarados e bolos e tortas de ovos e frutas e compotas e cada delícia doce que os chefes escravos nas cozinhas poderiam conceber. Tudo isso era acompanhado por robustas fileiras de queijo trazido pelos navios da Companhia da Holanda, e frascos de arenque apanhado no mar do Norte, e postas defumadas de javali e salmão.
Em contraste com aquela superabundância, o serviço de mesa era todo em delicados padrões de azul e branco. Atrás de cada cadeira se postava um escravo da casa no uniforme verde da companhia, pronto para encher de novo os copos e os pratos com mãos imaculadas em luvas brancas. Será que o homem não iria parar de falar e deixá-los com a comida? Ficou a imaginar van de Velde, e sorriu e aquiesceu diante das futilidades de Kleinhans.
Por fim, com uma mesura para o novo governador e uma mais profunda para a esposa de van de Velde, Kleinhans sentou-se em sua cadeira e todos olharam para o novo dignitário, na expectativa. Ele correu os olhos por aquelas faces asininas e, então, com um suspiro, levantou-se para responder. Dois minutos e está feito, disse a si mesmo, e disse o que todos esperavam ouvir, terminando jovialmente:
- Para concluir, quero apenas desejar ao governador Kleinhans um retorno seguro a seu velho país e uma longa e feliz aposentadoria.
Sentou-se com alacridade e pegou a colher. Aquela era a primeira vez que os burgueses tinham o privilégio de testemunhar o novo governador à mesa, e um silêncio admirado e respeitoso caiu sobre os convidados enquanto observavam o nível em sua tigela de sopa descer como uma maré vazante pela extensão de terra lamacenta do Zuiderzee, braço do mar do Norte. Então, ao perceberem subitamente que, quando o convidado de honra terminasse um prato, ele seria trocado e o próximo prato servido, dedicaram-se a um frenético esforço para alcançá-lo. Havia muitos corpulentos comilões entre eles, porém nenhum que se comparasse ao governador, principalmente quando estava a uma cabeça de distância.
Conforme sua tigela de sopa se esvaziou, cada tigela foi tirada e substituída por um prato cheio de pilhas de nacos grossos de leitãozinho. Os primeiros dois pratos foram consumidos em virtual silêncio, quebrado apenas pelos ruídos de mastigar e engolir.
Durante o terceiro prato, Kleinhans se animou e, como anfitrião, fez uma valente tentativa de reviver as conversas. Inclinou-se para a frente para desviar a atenção de van de Velde da comida.
- Espero que queira tratar do assunto dos piratas ingleses antes de quaisquer outros negócios - disse, e van de Velde aquiesceu vigorosamente, embora sua boca estivesse muito cheia da suculenta lagosta para permitir uma resposta verbal.
- Já decidiu como irá levar a efeito o julgamento e a sentença? -inquiriu Kleinhans, lugubremente.
Van de Velde engoliu o bocado com ruído antes de retrucar.
- Serão executados, é claro, mas não antes que seu capitão, aquele notório corsário Francis Courtney, revele o local onde escondeu a carga faltante da companhia. Eu gostaria de convocar um tribunal imediatamente para esse propósito.
O coronel Schreuder tossiu polidamente, e van de Velde encarou-o,impaciente.
- Sim? Quer dizer alguma coisa? Desembuche, então!
- Hoje, tive a oportunidade de inspecionar o trabalho das fortificações do kasteel, senhor. Só o bom Senhor sabe quando estaremos em guerra com a Inglaterra novamente, porém pode ser em breve. Os ingleses são ladrões por natureza e piratas por vocação. Foi por essa razão, senhor, que os Dezessete em Amsterdã deram a mais alta prioridade ao término de nossas fortificações. Tal fato é explicitado muito claramente em minhas ordens e em minha carta de indicação para o comando do kasteel.
Cada homem na mesa pareceu grave e atento à menção dos sagrados Dezessete, como se o nome de uma deidade tivesse sido invocado. Schreuder deixou o silêncio perpassar por algum tempo para dar ênfase a suas palavras, e então disse:
- O trabalho está muito mais atrasado do que suas excelências tinham imaginado.
O major Loten, o comandante de saída da guarnição, interveio:
- É verdade que o trabalho está de certa forma atrasado, porém há boas razões para isso.
A construção era de absoluta responsabilidade do comandante, e os olhos de van de Velde se voltaram para a face do major. O governador; pôs outra garfada de lagosta na boca. O molho estava verdadeiramente delicioso, e ele suspirou de prazer ao contemplar outros cinco anos de! refeições daquela ordem. Certamente precisaria comprar o chefe de cozinha de Kleinhans antes que partisse. Forçou o semblante a assumir a expressão mais solene enquanto ouvia Loten desfiar suas desculpas.
- Fiquei assoberbado com uma carência de trabalhadores. Essa mais que lamentável revolta entre os escravos nos deixou severamente destituídos de mão-de-obra - disse, de modo pouco convincente, e van de Velde fechou o cenho.
- Precisamente o ponto que eu estava prestes a abordar - adiantou-se Schreuder, com suavidade. - Se estamos tão necessitados de homens para fazer frente às expectativas dos Dezessete, seria sábio executar vinte e quatro fortes e hábeis piratas ingleses, em vez de empregá-los nos trabalhos?
Cada olhar na mesa se voltou para van de Velde para avaliar sua reação, esperando que ele lhes desse um indício. O novo governador engoliu e depois usou o indicador para soltar um fiapo de lagosta que se prendera em seus dentes de trás, antes de falar:
- Courtney não pode ser poupado - murmurou, por fim. - Nem mesmo para trabalhar nas fortificações. De acordo com lorde Cumbrae, cuja opinião eu respeito - fez ao Gavião uma mesura -, o inglês sabe onde a carga desaparecida está escondida e, além disso, minha esposa e eu - apontou para Katinka, que se sentava entre Kleinhans e Schreuder -, fomos forçados a sofrer muitas indignidades em suas mãos.
- Concordo plenamente - disse Schreuder. - Ele deve ser obrigado a falar tudo que sabe sobre os lingotes desaparecidos. Porém, e os outros? Seria um desperdício executá-los, quando são necessários nas muralhas, não acha, senhor? São, afinal, gado de cabeça dura, com pouco entendimento da gravidade de sua ofensa, porém com costas fortes para pagar por isso.
Van de Velde resmungou, de modo a não se comprometer:
- Gostaria de ouvir a opinião do governador Kleinhans sobre esse assunto - disse, e encheu a boca de novo, a cabeça abaixada entre os ombros e os pequenos olhos focalizados em seu predecessor. Astutamente, passava adiante a responsabilidade de chegar a uma decisão. Mais tarde, se houvesse repercussões, sempre poderia descarregar uma parcela da culpa.
- Claro - disse o governador Kleinhans, com um airoso aceno de mão -, escravos de primeira linha são vendidos por quase mil guinéus por cabeça no momento. Uma tal adição substanciosa à bolsa da companhia seria levada em alta conta por suas excelências. Os Dezessete estão determinados a conseguir que a colônia possa se custear e não se torne um dreno para o erário da companhia.
Todos os presentes deram às palavras a mais solene consideração. No silêncio, Katinka disse, numa entonação de cristal cantante:
- Eu, por exemplo, precisarei de escravos em minha casa. Saudaria como bem-vinda a oportunidade de adquirir bons trabalhadores mesmo a esses preços exorbitantes.
- Por acordo e protocolo internacional, é proibido vender cristãos para a escravatura - ponderou Schreuder, ao ver as perspectivas de conseguir mão-de-obra para suas fortificações começarem a recuar.
- Mesmo ingleses.
- Nem todos os piratas capturados são cristãos - insistiu Kleinhans.
- Vi algumas caras pretas entre eles. Escravos negros têm muita demanda na colônia. São boa mão-de-obra e procriadores. Não seria um compromisso bastante desejável vendê-los por alguns florins para agradar os Dezessete? Poderíamos então condenar os piratas ingleses a trabalho forçado perpétuo. Usá-los para apressar o término dos trabalhos e também para agradar os Dezessete.
Van de Velde resmungou novamente, e raspou o prato com barulho para chamar a atenção para o fato de que estava pronto para experimentar a carne. Ponderou sobre aqueles argumentos conflitantes enquanto um prato lotado de novo era colocado à sua frente. Havia outra consideração a levar em conta da qual ninguém mais estava ciente: seu ódio amargo pelo coronel Schreuder. Não queria lhe facilitar a vida e,verdade seja dita, ficaria deliciado se o coronel fracassasse miserávelmente no novo comando e recebesse ordem para voltar para casa, em desgraça - contanto que aquele fracasso não redundasse em seu próprio descrédito.
Olhou feio para Schreuder enquanto brincava com a idéia de se recusar a lhe aceitar as propostas. Sabia muito bem o que aquele sujeito tinha em mente, e voltou sua atenção do coronel para a esposa. Katinka parecia radiante naquela noite. Em questão de poucos dias da chegada ao cabo,e agora a se movimentar com liberdade pelos alojamentos temporáriosno castelo, estava plenamente recuperada da longa viagem e do cativeiro forçado que lhes impusera Sir Francis Courtney. Ela era, claro, jovem e com capacidade de recuperação rápida, ainda não completaravinte e quatro anos de idade, porém apenas isso não contava para sua alegria e vivacidade naquela noite. Sempre que o presunçoso Schreuder falava, o que era muito freqüente, ela voltava aqueles enormes e inocentes olhos sobre ele com total atenção. Quando se dirigia diretamente a ele, o que também era muito freqüente, tocava-o, pousando uma das mãos delicadas e brancas em sua manga, e, uma vez, para intensa mortificação de van de Velde, pousara os dedos na pata ossuda de Schreuder,deixando-os se demorarem ali para que todos os convidados vissem e fizessem ar de riso insolente.
O governador quase perdera o apetite ao ver aquele ousado ritual de corte a ter lugar não apenas debaixo de seu nariz, mas sob o nariz coletivo da colônia inteira. Já seria ruim o suficiente se, em particular, ele fosse forçado a encarar o fato de que o valente coronel em breve estaria fazendo uma busca minuciosa sob aquelas farfalhantes anáguas. Era intolerável que ele devesse partilhar desse conhecimento com todos os subordinados. Como poderia exigir respeito e obediência dos bajuladores, enquanto sua esposa lhe colocava publicamente chifres na testa? Quando o embarquei para Amsterdã para negociar meu resgate, pensei que estávamos vendo o coronel Schreuder pela última vez, pensou ele, mal-humorado. Parece que terei de tomar medidas mais duras no futuro. E, enquanto se empenhava em prosseguir pelos próximos dezesseis pratos, revirou na mente as várias alternativas.
Van de Velde estava tão estufado de boa comida, que a curta caminhada do grande salão do castelo para a câmara do conselho só foi completada com muito resfolegar pesado e uma pausa ocasional, ostensivamente para admirar as pinturas e outras obras de arte que decoravam as paredes, porém, em realidade, para recobrar suas forças.
Na câmara, acomodou-se com um enorme suspiro nas almofadas de uma das cadeiras de espaldar alto e aceitou um copo de conhaque e um cachimbo de tabaco.
- Convocarei a corte para julgar os piratas na semana que vem, ou seja, imediatamente depois de ter assumido a governadoria do Mijnheer Kleinhans - anunciou. - Não há sentido em desperdiçar algum tempo a mais com essa gentalha. Indico o coronel Schreuder para agir como procurador-geral e para instaurar o processo do caso. Assumirei os deveres de juiz. - Olhou pela mesa para seu anfitrião. - Espero que peça a seus oficiais que façam os arranjos necessários, por favor, Mijnheer Kleinhans.
- Certamente, Mijnheer van de Velde. Chegou a pensar em indicar um advogado para defender os piratas acusados?
Era claro, pela expressão de van de Velde, que ele não pensara, porém, agora, ele fazia um gesto de descaso com a mão gorducha e disse, com ar decoroso:
- Providenciará isso, não é? Tenho certeza de que um de seus escreventes terá conhecimento suficiente da lei para desempenhar o dever de forma adequada. Afinal, o que haveria a defender? - perguntou, e deu uma risadinha rouca.
- Um nome me vem à mente - concordou Kleinhans. - Irei indicálo e providenciar para que tenha acesso aos prisioneiros a fim de lhes receber as declarações.
- Por Deus! - Van de Velde pareceu escandalizado. - Por que faria isso? Não quero aquele rufião inglês, Courtney, pondo toda sorte de idéias na cabeça do homem. Eu colocarei os fatos por ele. Ele precisa apenas recitá-los na corte.
- Compreendo - concordou Kleinhans. - Estará tudo pronto para o senhor antes que eu deixe o cargo na próxima semana. - Olhou para Katinka. - Minha cara senhora, certamente, gostará de se mudar de seus alojamentos temporários aqui no castelo para a residência do governador, mais cômoda e mais confortável, tão logo seja possível. Creio que podemos arranjar uma inspeção em sua nova casa depois do serviço religioso no domingo. Ficaria honrado em conduzi-la pessoalmente num passeio pelo lugar.
- Isso é bastante gentil, senhor. - Katinka sorriu para ele, feliz por ser o foco de atenção mais uma vez.
Por um momento, Kleinhans desfrutou do calor daquela aprovação e depois prosseguiu, timidamente:
- Como bem pode imaginar, adquiri uma considerável equipe doméstica durante meu tempo de serviço na colônia. Coincidentemente, os cozinheiros que prepararam a humilde refeição que partilhamos esta noite são parte de meu próprio plantel de escravos. - Olhou para van de Velde. - Espero que os esforços deles tenham ido ao encontro de sua aprovação, não? - Quando o governador aquiesceu com benevolência ele se voltou de novo para Katinka. - Como sabe, muito em breve voltarei para a velha pátria, e para a aposentaria em meu pequeno domínio no campo. Vinte escravos serão de longe um excesso para meus futuros requisitos. A senhora Mevrouw vocalizou seu interesse em comprar escravos de qualidade. Gostaria de aproveitar a oportunidade de sua visita à residência para lhe mostrar essas criaturas que tenho para vender. Foram todas escolhidas a dedo, e creio que achará mais conveniente e mais barato fazer uma compra em particular do que dar lances num leilão público. O problema em comprar escravos é que aqueles que parecem ter bom valor em hasta pública podem ter sérios defeitos escondidos. É sempre reconfortante saber que o vendedor tem sonoras e suficientes razões para vender, não é?
Hal instalou uma vigilância constante na alta janela da cela. Havia sempre um homem de pé sobre os ombros de outro, agarrado às barras, para manter observação sobre o pátio do castelo. O vigia informava tudo que via a Hal, que, por sua vez, transmitia o que fora visto, pela escada, ao pai.
Em questão de poucos dias, eram capazes de estabelecer o horário da guarnição e anotar as idas e vindas de rotina dos oficiais da companhia e dos burgueses livres que visitavam o castelo regularmente.
Hal passou uma descrição de cada uma dessas pessoas ao líder não visto da rebelião dos escravos no Covil do Esqueleto. Althuda conhecia as características pessoais de cada habitante do povoado e transferiu todo esse conhecimento acumulado, de maneira que, nos primeiros poucos dias, Hal veio a conhecer não apenas a aparência mas também a personalidade e caráter de cada um.
Iniciou um calendário, marcando a passagem de cada dia com um risco numa laje de arenito em um dos cantos da cela, e registrou os acontecimentos mais importantes ao lado. Não sabia se iria ganhar alguma coisa com esses registros, mas pelo menos isso dava aos homens algo sobre o que falar e favorecia a ilusão de que tinham um plano para serem libertados ou, em caso de fracasso, para a fuga.
- Carruagem do governador na escada! - avisou o vigia, e Hal saltou de onde estava sentado entre Aboli e Daniel, contra a parede.
- Desça - ordenou. - Deixe-me subir.
Pelas barras, ele viu a carruagem oficial estacionada ao pé da larga escadaria que levava aos escritórios da companhia e à suíte do governador. O nome do cocheiro era Fredricus, um escravo javanês de idade que pertencia ao governador Kleinhans. De acordo com Althuda, ele não era nenhum amigo. Durante trinta anos, fora o cão de Kleinhans, e não era confiável. Althuda suspeitava que fora ele quem o traíra, informando seu retorno das montanhas ao major Loten.
- É provável que fiquemos livres dele quando Kleinhans deixar a colônia. Certamente levará Fredricus com ele para a Holanda - disse-lhes Althuda.
Houve um súbito alvoroço quando um destacamento de soldados correu pelo pátio, do arsenal e entrou em formação ao pé da escadaria.
- Kleinhans saindo - gritou Hal, reconhecendo os preparativos, e, enquanto falava, as portas duplas se abriram e um pequeno grupo emergiu à luz do sol e desceu em direção à carruagem que aguardava.
A figura alta e curvada de Kleinhans, com sua triste face dispéptica, contrastava agudamente com a da adorável jovem em seu braço. O coração de Hal falhou ao reconhecer Katinka, porém seus sentimentos por ela não eram mais tão intensos como certa vez tinham sido. Agora, seus olhos se estreitaram quando ele viu que a espada de Netuno pendia da bainha cinzelada e incrustada de ouro do lado de Schreuder, enquanto o coronel seguia Katinka pelas escadas. A cada vez que via Schreuder usando a espada, sua raiva aumentava.
Fredricus desceu empertigado de seu alto assento, dobrou para baixo os degraus, abriu a porta da carruagem e depois se postou de lado para permitir que os dois cavalheiros ajudassem Katinka a subir e se acomodar confortavelmente.
- O que está acontecendo aí embaixo? - gritou seu pai, e, com uma pontada de culpa, Hal se deu conta de que não abrira a boca desde que pusera os olhos na mulher que amava. Contudo, já então ela estava fora de sua vista. A carruagem rolou suavemente pelos portões do castelo, e as sentinelas saudaram enquanto Fredricus incitava os cavalos a um trote pelo campo.
Era um reluzente dia de outono, e o constante vento sudeste de verão tinha cessado. Katinka sentava-se ao lado do governador Kleinhans, olhando para a frente. Cornelius Schreuder sentava-se do lado oposto a ela. Katinka deixara o marido no escritório do castelo, trabalhando nos relatórios para os Dezessete, e agora ela sentia o diabo dentro de si. Agitou as saias, e as farfalhantes crinolinas cobriram as botas macias de couro do coronel.
Enquanto conversava animadamente com Kleinhans, estendeu um pé sob a coberta das saias e encontrou o dedo de Schreuder. Comprimiu-o com coqueteria, e o assustou. Pressionou novamente, e sentiu que ele respondia com timidez. Então, ela se voltou e dirigiu-se a Schreuder, diretamente:
- Não concorda, coronel, que uma avenida de carvalhos, levando à residência, pareceria esplêndida? Posso imaginar aqueles grossos troncos duros empinados, vigorosamente. Que lindo seria. - Arregalou os grandes olhos violeta para dar ênfase ao comentário, e pressionou-lhe o pé novamente.
- Realmente, Mevrouw. - A voz de Schreuder estava rouca de segundas intenções. - Concordo inteiramente. De fato, a imagem que retrata é tão vivida que seria possível até mesmo ver o broto crescer diante dos próprios olhos.
Com aquela insinuação, ela relanceou os olhos para baixo, para o colo dele, e, para seu divertimento, viu o efeito que provocava nele. Schreuder armara uma tenda nas calças por sua causa.
Quase um quilômetro e meio além do terreno proibido do castelo, a residência do governador erguia-se no sopé da montanha, nos pomares da companhia. Era uma edificação graciosa, com teto de palha escuro e paredes caiadas de branco, rodeada por largas e sombreadas varandas. Desenhada em formato de uma cruz, os oitões das quatro pontas da casa eram decorados com frisos de gesso representando as estações. Os jardins estavam bem cultivados; um séquito de jardineiros da companhia se dedicava com amor e cuidado a eles.
Mesmo à distância, Katinka estava encantada com a nova casa. Receara ser alojada em alguma choupana feia e bucólica, mas aquilo ultrapassava de longe suas expectativas mais otimistas. Toda a equipe doméstica da residência se alinhava no largo terraço da frente para cumprimentá-la.
A carruagem parou, e os dois acompanhantes apressaram-se em ajudar Katinka a descer. Num sinal preestabelecido, os criados que aguardavam ergueram seus chapéus e se dobraram ao meio numa mesura tão profunda, que varreram o chão diante dela com os cabelos, enquanto as mulheres se abaixavam em reverente cortesia. Katinka respondeu ao cumprimento com um frio acenar de cabeça, e Kleinhans apresentou-a a cada um dos serviçais. A maioria era de faces pardas ou amarelas que lhe causavam impressão, e ela apenas se dignou a relancear um olhar em sua direção enquanto passava, apressada em terminar o pequeno ritual o mais depressa que pudesse.
Contudo, um ou dois captaram e prenderam sua atenção por mais que uns poucos instantes.
- Este é o jardineiro-chefe. - Kleinhans chamou o homem com um estalar de dedos, e o criado se postou de cabeça descoberta diante dela, segurando contra o peito o chapéu puritano de copa alta com sua banda prateada e as abas largas. - É um homem de alguma importância para nossa comunidade - disse Kleinhans. - É não apenas o responsável por essas belas imediações - indicou os grandes gramados verdejantes e os canteiros de flores -, e por prover cada navio da companhia que chega à baía da Mesa com frutas frescas e vegetais, mas também o carrasco oficial.
Katinka caminhava para adiante, mas, diante de tais palavras, voltou-se, com um pequeno arrepio de excitação, para estudar aquela criatura. Avultava acima dela, e ela ergueu o olhar para aqueles estranhos olhos pálidos, imaginando que cenas horríveis teriam visto. Então, fitou-lhe as mãos. Eram mãos de lavrador, largas, fortes e calosas, as costas cobertas com pêlos rijos. Imaginou-as a segurar uma espada ou um ferro em brasa, um forcado ou um rolo cheio de nós na corda.
- É chamado de Stadige Jan? - Ela ouvira o nome pronunciado com fascinação e repulsa, do jeito como se fala de uma cobra venenosa mortal.
- Ja, Mevrouw - concordou ele. - É como me chamam.
- Um nome estranho. Por quê? - Julgou aquele olhar amarelado inquietante, como se olhasse para algo atrás dela.
- Porque falo devagar. Porque nunca me apresso. Porque sou meticuloso. Porque as plantas crescem lentamente e frutificam sob minhas mãos. Porque homens morrem lenta e dolorosamente sob essas mesmas mãos.
Estendeu uma para que ela a examinasse. Sua voz era sonora e melodiosa.
Ela se percebeu engolindo em seco, com uma ansiedade estranha e perversa.
- Logo teremos chance de observar seu trabalho, Stadige Jan.-
Sorriu, ligeiramente, sem fôlego. - Creio que as masmorras do castelo estão cheias de rufiões esperando por seus cuidados. - Anteviu uma imagem daquelas mãos largas e fortes trabalhando no corpo esguio de Hal Courtney, o corpo que Ja conhecia tão bem, transformando-o e, gradualmente, destroçando-o. Os músculos em suas coxas e ventre se comprimiram, ao pensamento. Seria uma emoção avassaladora ver o belo brinquedo do qual se cansara ser mutilado e desfigurado, porém lenta e vagarosamente.
- Precisamos conversar de novo, Stadige Jan - disse ela, apressada. - Tenho certeza de que tem muitas histórias divertidas para me contar, sobre repolhos e outras coisas.
Ele se curvou novamente, colocou o chapéu na cabeça raspada e recuou um passo, para a fila de criados. Katinka passou.
- Esta é minha governanta - disse Kleinhans, porém Katinka estava tão imersa nos próprios pensamentos, que, por vários segundos, não deu indicação de que o ouvira. Então, lançou um olhar preguiçoso para a mulher que Kleinhans lhe apresentava e, de súbito, seus olhos se arregalaram. Voltou a plena atenção para a mulher. - O nome dela é Sukeena. - Havia algo na entonação de Kleinhans que ela não pôde detectar de imediato.
- Ela é muito jovem para uma posição tão importante - disse Katinka, para ganhar tempo e permitir que seus instintos assomassem. De uma maneira inteiramente diferente, julgou aquela mulher tão fascinante quanto o executor. Era tão primorosamente delicada e elegante, que parecia a criação de um artista, e não de carne e osso.
- É uma característica da sua raça parecer mais jovem do que é - disse Kleinhans a Katinka. - Têm corpos pequenos e infantis; pode observar a cintura estreita e as mãos e pés, como os de uma boneca. - Calou-se, de repente, como se percebesse que poderia estar cometendo um ato falho ao comentar as partes corporais de outra mulher.
A expressão de Katinka não se alterou para revelar o divertimento que sentia. O velho bode se derrete de luxúria por ela, pensou, e estudou as qualidades de pedra preciosa para as quais ele lhe chamara a atenção. A jovem usava um decote alto, porém o tecido de sua blusa era diáfano e leve como uma teia de aranha. Aquele vestido, embora simples e no clássico desenho ocidental, deveria ter custado cinqüenta guinéus no mínimo. As sandálias eram bordadas em ouro, um acessório rico para uma escrava da casa. Na garganta, usava um ornamento de jade esculpido, uma jóia adequada para a favorita de um mandarim. Certamente a jovem deveria ser o belo brinquedinho de Kleinhans, decidiu Katinka.
O primeiro relacionamento carnal de Katinka acontecera nos seus treze anos, no limiar da puberdade. Na reclusão de seu quarto, a babá a iniciara naquelas delícias proibidas. Ocasionalmente, quando sua fantasia ditava e a oportunidade se apresentava, ela ainda viajava para a encantada ilha de Lesbos. Muitas vezes, achava ali encantos que nenhum homem era capaz de lhe proporcionar. Agora, ao erguer o olhar do corpo infantil para os olhos escuros, sentiu um tremor de desejo lhe percorrer o ventre e derreter-se no vão das pernas.
O olhar de Sukeena fumegava como as lavas dos vulcões em sua Bali nativa. Aqueles não eram olhos de uma criança escrava subserviente, porém os de uma mulher orgulhosa e desafiadora. Katinka sentiu-se provocada e excitada. Para subjugá-la, e tê-la e, depois, destroçá-la. Sentiu que o pulso se acelerava e sua respiração se encurtava à medida que visualizava isso acontecendo.
- Siga-me, Sukeena - ordenou. - Quero que me mostre a casa.
- Minha senhora.
Sukeena juntou as palmas das mãos e tocou os lábios com a ponta dos dedos enquanto se inclinava, porém seus olhos se fixavam em Katinka com a mesma sombria e furiosa expressão. Seria ódio?, imaginou Katinka, e a idéia aumentou-lhe a excitação.
Sukeena intrigou-a, como eu imaginava. Katinka irá comprá-la de mim, pensou Kleinhans. Ficarei livre da bruxa por fim. Ele percebera aquela interação de paixões e emoções entre as duas mulheres. Embora não se gabasse de ter podido penetrar na mente oriental da escrava, ela fora sua escrava por quase cinco anos e ele aprendera a reconhecer muitas das nuances de seus humores. A idéia de separar-se dela o enchia de aflição, porém, para a própria paz e sanidade, sabia que precisava fazê-lo. Ela o estava destruindo. Kleinhans não conseguia se lembrar o que era ter uma mente tranqüila, de não ser importunado e atormentado por paixões e desejos insatisfeitos, de não estar escravizado por aquela bruxa. Por causa dela, perdera a saúde. Seu estômago vinha sendo comido pelos ácidos quentes da dispepsia, e ele não conseguia se lembrar de uma noite de sono não interrompido em todos aqueles longos cinco anos.
Pelo menos estava livre do irmão dela, que fora um tormento quase tão grande para si. Agora, ela também, deveria ir embora. Kleinhans não conseguiria mais suportar aquela praga em sua existência.
Sukeena separou-se da fila dos criados e se postou obedientemente atrás dos três, do repulsivo dono, do gigante e rústico soldado, e daquela bela e cruel dama loura, que, ela sentia de certa forma, já lhe sustinha o destino nas mãos esguias e brancas.
Vou arrebatá-lo dela, jurou Sukeena. Aquele velho vil não pôde me dominar, embora durante os últimos cinco anos não sonhasse com outra coisa. Nem essa tigresa loura irá ser minha dona. Juro pela memória sagrada de meu pai.
Passaram em grupo pelos aposentos altos e arejados da residência. Pelas persianas pintadas de verde, filtrava-se o sol suave do cabo, lançando sombras zebradas no chão de tijolos. Katinka sentia uma leveza de espírito naquelas colônias ensolaradas. Era tomada de uma inquietude, uma ansiedade por estranhas aventuras e por excitações inimagináveis.
Em cada aposento, encontrava uma sutil e delicada influência feminina. Não apenas o perfume remanescente de flores e incenso, mas também o de alguma outra presença viva que sabia não poder jamais ter emanado daquele velho triste e doente a seu lado. Não precisou olhar para trás para ter consciência de que era a jovem que criava aquela aura, com suas roupas de seda a murmurar, as sandálias douradas a sussurrar nos pés miúdos, o cheiro de flor de jasmim em seus cabelos escuros como o carvão e o doce almíscar de sua pele.
Em contraponto, havia o duro bater em staccato dos calcanhares do coronel nos tijolos, o crepitar do couro e o tilintar da bainha que balançava a seu lado. O cheiro dele era mais poderoso que o da garota. Era masculino e pungente, adocicado com um toque de couro e animal, como de um garanhão a dar marradas, preso entre suas coxas. Naquela estufa emocional em que Katinka se encontrava, cada um de seus sentidos estava plenamente envolvido.
Por fim, o governador Kleinhans conduziu-os para fora da casa e pelos gramados até onde se erguia um pequeno mirante, escondido atrás dos carvalhos. Um repasto ao ar livre fora preparado para eles, e Sukee postou-se por perto, dirigindo o serviço da refeição com um olhar ou um sutil gesto gracioso.
Katinka notou que conforme cada travessa ou garrafa era apresentada, Sukeena provava um bocado ou tomava um delicado gole, como uma borboleta numa orquídea aberta. O silêncio que mantinha não era discreto, pois todos os três sentados à mesa estavam plenamente cientes da sua presença. Cornelius Schreuder sentara-se tão perto de Katinka que sua perna comprimia a dela sempre que ele se inclinava para lhe falar. Provaram vinho e depois olharam para a baía, onde o Standvastigheid jazia ancorado, tão longe do Gull ofMoray. O galeão chegara durante a noite, completamente carregado com a carga de especiarias e madeira recuperada. Levaria Kleinhans para o norte no próximo percurso da viagem, de maneira que ele estava com pressa de resolver seus negócios ali, no cabo. Katinka orriu docemente para o velho sobre a borda de seu cálice de vinho,
sabendo que o tinha em desvantagem na barganha que haveria de se seguir.
- Quero vender quinze de meus escravos - disse-lhe ele - e preparei uma lista deles, destacando as características pessoais, as habilidades e o treinamento, as idades e estado de saúde. Cinco das mulheres estão grávidas e, portanto, o comprador já terá assegurado um aumento de seu investimento.
Katinka olhou para o documento que ele lhe estendia e então o deixou cair sobre o tampo da mesa.
- Fale-me sobre Sukeena - exigiu. - Estou enganada, ou detectei nela uma gota de sangue nórdico? O pai dela era holandês?
Embora Sukeena estivesse por perto, Katinka falava sobre a garota como se ela fosse um objeto inanimado, sem audição ou sensibilidade humana, uma bela peça de joalheria ou uma pintura em miniatura, quem sabe.
- É observadora, Mevrouw. - Kleinhans inclinou a cabeça. - Porém, não, o pai dela não era holandês. Era um mercador inglês, e a mãe, balinesa, mas, não obstante, uma mulher de alta criação. Quando a conheci, já era de meia-idade. Contudo, creio que na juventude devia ter sido muito bela. Embora fosse simplesmente sua concubina, o mercador inglês a tratava como esposa.
Todos os três estudaram as feições de Sukeena abertamente.
- Sim, pode-se ver o sangue europeu. Está no tom da pele e no conjunto e formato dos olhos - disse Katinka.
Sukeena manteve os olhos baixos, e sua expressão não se alterou. Continuou com seus deveres, com gestos suaves.
- O que pensa da aparência dela, coronel? - Katinka voltou-se para Schreuder e comprimiu a perna contra a dele. - Estou sempre interessada naquilo que um homem julga atraente. Acha que ela é uma criaturinha deliciosa?
Schreuder enrubesceu ligeiramente e moveu-se na cadeira de modo a não mais olhar diretamente para Sukeena.
- Mevrouw, jamais tive pendor por moças nativas, mesmo que fossem meio castas. - O semblante de Sukeena continuou impassível, ainda que, a seis passos do coronel, ela tivesse ouvido claramente a descrição desairosa. - Meu gosto se inclina muito mais para nossas adoráveis moças holandesas. Não trocaria o ouro puro pelo refugo.
- Oh, coronel, é tão galante. Invejo as garotas holandesas de ouro puro que despertam sua fantasia. - Riu, e ele lhe endereçou um olhar mais eloqüente que as palavras que lhe subiram aos lábios, mas que, por força das circunstâncias, continuaram impronunciadas.
Katinka voltou-se de novo para Kleinhans.
- Então, se o pai dela era inglês, ela fala esse idioma? Seria um predicado útil, não?
- Na verdade, ela o fala com grande fluência, porém isso não é tudo. Tem muito jeito com dinheiro e dirige a casa com grande econo-mia e eficiência. Os outros escravos a respeitam e a obedecem. Tem conhecimento íntimo da medicina oriental e de remédios para todas as enfermidades...
- Um modelo! - Katinka interrompeu-lhe a recitação. - Porém o que me diz de sua natureza? É tratável, dócil?
- É o que aparenta - disse Kleinhans, ocultando a evasiva com uma pronta resposta e o semblante aberto. - Eu lhe asseguro, Mevrou eu a tenho faz cinco anos e sempre a julguei absolutamente obediente.
As feições de Sukeena continuavam como se esculpidas em jade, adoráveis e remotas, porém sua alma fervilhava de ultraje diante da mentira. Por cinco anos ela o repelira, e apenas em poucas ocasiões, quando ele a espancara até deixá-la inconsciente, ele fora capaz de lhe invadir o corpo. Porém, isso não representara uma vitória para o governador, ela sabia, e extraía conforto dessa constatação. Por duas vezes ela recobrara os sentidos enquanto Kleinhans ainda grunhia e se postava sobre ela como um animal, forçando-lhe a carne seca e relutante. Sukeena contabilizava essas vezes como uma derrota, nem mesmo admitia para si mesma que ele a conquistara, pois no momento em que ganhara consciência, começara a lutar contra ele de novo, com toda a força e determinação de antes.
"Você não é uma mulher", gritara ele, em desespero, enquanto ela se debatia e chutava e se contorcia para sair de sob ele. "Você é um demônio", e, sangrando nos lugares onde ela o mordera e coberto de profundas estrias e arranhões, ele escapulira, deixando-a batida, porém triunfante. Por fim, Kleinhans desistira de forçá-la à submissão, preferindo tentar todo tipo de agrado.
Certa vez, chorando como uma velha, ele até mesmo lhe oferecera liberdade e casamento, seu documento de emancipação no dia em que o desposasse. Ela chiara como um gato ao pensamento.
Por duas vezes ela tentara matá-lo. Uma, com um punhal, e outra, com veneno. Agora, ele a fazia provar cada prato e tigela que lhe servia, porém Sukeena continuava a acalentar a idéia de que um dia poderia ter sucesso e vê-lo morrer.
- Ela realmente parece ter uma presença angélica - concordou Katinka, sabendo instintivamente que a descrição iria enfurecer o objeto do comentário. - Venha cá, Sukeena - ordenou, e a moça se aproximou, movendo-se como um junco ao vento.
- Ajoelhe-se! - disse Katinka, e Sukeena ajoelhou-se diante dela, mantendo os olhos baixos. - Olhe para mim! - A moça ergueu a cabeça.
Katinka estudou-lhe a face e se dirigiu a Kleinhans sem olhar para o governador.
- Diz que ela é saudável?
- Jovem e saudável, jamais ficou doente um dia de sua vida.
- Está grávida? - perguntou Katinka, e correu a mão ligeiramente pelo ventre da jovem. Era liso e duro.
- Não! Não! - exclamou Kleinhans. - Ela é virgem.
- Nunca há qualquer garantia dessa condição. O demônio entra mesmo na mais fechada fortaleza. - Katinka sorriu. - Mas, aceitarei sua palavra sobre isso. Quero ver-lhe os dentes. Abra a boca!
Por um momento, pensou que Sukeena fosse se recusar, mas então os lábios dela se abriram, e os dentes pequenos luziram à luz do sol, mais brancos que o marfim recém-esculpido.
Katinka pousou a ponta do dedo no lábio inferior da jovem. Era macio como uma pétala de rosa, e Katinka deixou o momento perdurar, extraindo prazer do ato e prolongando a humilhação de Sukeena. Então, com lentidão e voluptuosidade, correu o dedo entre os lábios da garota. O gesto era carregado de sexualidade, uma paródia da penetração masculina de uma mulher. Enquanto observava, a mão de Kleinhans começou a tremer tão violentamente que o doce vinho de Constança derramou-se pela borda do cálice que ele segurava. Cornelius Schreuder franziu a testa e remexeu-se, desconfortável, no assento, cruzando uma perna sobre a outra.
O interior da boca de Sukeena era macio e úmido. As duas mulheres se encaravam. Então Katinka começou a mover o dedo lentamente para a frente e para trás, explorando e sondando a cavidade, enquanto perguntava a Kleinhans:
- O pai dela, aquele inglês, o que aconteceu a ele? Se amava a concubina, como você disse, por que permitiu que a filha fosse vendida no leilão dos escravos?
- Ele era um dos bandidos ingleses que foi executado enquanto eu era governador da Batávia. Estou certo de que teve conhecimento do incidente, não é, Mevrouw?
- Sim, lembro-me bem. Os acusados foram torturados pelo carrasco da companhia para se apurar a extensão de sua vilania - disse Katinka, com suavidade, ainda olhando para os olhos de Sukeena. A profundidade do sofrimento que viu neles a intrigou e divertiu. - Eu não sabia que você era o governador naquela época. O pai da garota foi executado por suas ordens, então? - perguntou Katinka, e os lábios de Sukeena tremeram e se fecharam levemente em torno do longo dedo branco de Katinka.
- Ouvi dizer que foram crucificados - arquejou Katinka, num tom rouco, e os olhos de Sukeena se encheram de lágrimas, embora suas feições continuassem serenas. - Soube que aplicaram chamas de enxofre nos pés deles - continuou Katinka, e sentiu a língua da garota escorregar por seu dedo conforme ela engolia o sofrimento. - E depois as chamas foram erguidas sob as mãos dos condenados. - Os denti-nhos de Sukeena fecharam-se sobre o dedo, não com força suficiente para que doesse e nem para rasgar ou marcar a pele branca, mas a ameaça estava nos olhos dela, cheios de ódio.
- Lamento que isso tenha sido necessário. A obstinação do homem era extraordinária. Deve ser um traço nacional dos ingleses - sugeriu Kleinhans. - Para endossar a punição, ordenei que a concubina do condenado, seu nome era Ashreth, fosse obrigada a presenciar a execução, ela e os dois filhos. Claro, nessa época eu não sabia nada sobre Sukee e seu irmão. Não foi uma crueldade gratuita de minha parte, e sim uma política da companhia. Essa gente não corresponde com gentileza o que toma erroneamente por fraqueza. - Kleinhans soltou um suspiro de tristeza diante de tamanha intransigência.
As lágrimas escorriam silenciosamente pelas faces de Sukeena enquanto Kleinhans continuava:
- Assim que tinham confessado plenamente a culpa, os criminosos foram queimados. As chamas foram lançadas nas achas de lenha a seus pés e tudo o mais se incendiou, o que foi um alívio misericordioso para todos nós.
Com um pequeno arrepio, Katinka tirou o dedo de entre os lábios trêmulos da jovem. Com a ternura de um amante satisfeito, acariciou a face acetinada, o dedo ainda molhado da saliva da garota deixando estrias úmidas pela pele cor de âmbar.
- O que aconteceu à mulher, à concubina? Foi vendida também para a escravatura com as crianças? - perguntou Katinka, sem tirar o olhar dos olhos tristes e marejados de lágrimas à sua frente.
- Não - disse Kleinhans. - Essa é a parte estranha da história. Ashreth lançou-se nas chamas e pereceu na mesma pira que seu amante inglês. Não há como se compreender a mente nativa, não é?
Houve um longo silêncio, e quando uma nuvem passou por sobre o sol, o dia pareceu de repente sombrio e gelado.
- Ficarei com ela - disse Katinka, tão baixinho que Kleinhans levou a mão em concha à orelha.
- Ficarei com ela - repetiu Katinka. - Esta garota, Sukeena, eu a comprarei de você.
- Não acordamos ainda o preço. - Kleinhans pareceu espantado: - Não esperava que fosse assim tão fácil.
- Tenho certeza de que o preço será razoável... isto é, se também deseja me vender os outros escravos de seu plantel.
- É uma dama de grande compaixão. - Kleinhans meneou a cabeça, admirado. - Vejo que a história de Sukeena tocou-lhe o coração e que quer tomá-la a seus cuidados. Obrigado. Sei que a tratará com gentileza.
Hal pendurou-se no gradil da janela da cela e informou o que via a Aboli, que o segurava nos ombros. - Voltaram na carruagem do governador. Os três, Kleinhans,Schreuder e a esposa do governador van de Velde. Estão subindo a escadaria...-Interrompeu-se e exclamou: - Espere! Há mais alguém descendo dacarruagem. Alguém que não conheço. Uma mulher.
Daniel, que estava no portão gradeado, repassou a mensagem pela escada até as celas da solitária, acima.
- Descreva essa mulher estranha - gritou Sir Francis. Naquele momento, a mulher voltou-se para dizer alguma coisa a Fredricus, o cocheiro, e, num estalo, Hal a reconheceu como a escrava que se postara na multidão enquanto eles eram levados em marcha pelo passeio.
- Ela é pequena e jovem, quase uma criança. Balinesa, talvez, ou malacana, pela aparência. - Hesitou. - É provável que tenha sangue misturado, e quase com certeza é uma criada ou uma escrava. Kleinhans e Schreuder caminham à frente dela.
Daniel passou a informação, e, de súbito, a voz de Althuda chegou até eles pela escada.
- É muito bonita? Longos cabelos negros torcidos no alto da cabeça, com flores? Usa um ornamento verde de jade no pescoço?
- Tudo isso - gritou Hal de volta. - Só que ela não é apenas bonita, é adorável além das palavras. Você a conhece? Quem é?
- Seu nome é Sukeena. Ela é uma daquelas pelas quais voltei das montanhas. É minha irmãzinha.
Hal ficou a olhar Sukeena subir as escadas, movendo-se com a leveza e a suavidade de uma folha de outono ao sabor do vento. De alguma forma, enquanto observava aquela garota, seus pensamentos sobre Katinca não eram tão exaustivos. Quando a jovem desapareceu de sua vista, a luz que se filtrava para as masmorras pareceu reduzir-se em intensidade, e as paredes de pedra de repente se tornaram mais úmidas e frias.
A princípio, ficaram intrigados com o tratamento reservado a eles nos calabouços do castelo. Tinham permissão para esvaziar a barrica da latrina toda manhã, fazendo o sorteio para o privilégio. Ao fim da primeira semana, uma carga de palha fresca foi entregue por um dos escravos de campo da companhia, que dirigia um carro de bois, e puderam jogar fora a palha velha cheia de vermes que cobria o chão. Através de um cano de cobre, a água da cisterna era alimentada continuamente por um dos riachos que descia das montanhas, e portanto não sofreram nenhuma provação pela sede. Toda noite, um pão de textura áspera, do tamanho de uma roda de carroça, e um grande caldeirão de ferro eram enviados para baixo, das cozinhas. O caldeirão estava cheio de peles e talos de vegetais, fervidos com a carne de focas capturadas na ilha Robben. Aquele ensopado era mais rico e mais saboroso que muitas das comidas que tinham comido a bordo do navio.
Althuda riu quando os ouviu discutindo sobre isso.
- Eles também alimentam bem seus bois. Animais estúpidos trabalham melhor quando são fortes.
- Não estamos trabalhando muito aqui e agora - comentou Daniel,satisfeito, e esfregou a barriga. Althuda riu de novo.
- Olhe para fora da janela - avisou-os. - Há um forte a construir. Não ficarão sentados aqui por muito tempo. Acreditem no que lhes digo.
- Ei, Althuda - gritou Daniel -, sua irmã não é inglesa, portanto você também não deve ser inglês. Como é que fala como um?
- Meu pai era de Plymouth. Nunca estive lá. Conhece o lugar? Houve uma explosão de risadas e comentários e palmas, e Hal falou por todos:
- Por Deus, a não ser por Aboli e os outros escravos africanos, somos todos de Devon, na verdade. Você é um de nós, então, Althuda?
- Vocês nunca me viram. Devo avisá-los de que não me pareço com um de vocês - advertiu-os Althuda.
- Se tem metade da boa aparência de sua irmãzinha, então já é o suficiente - retrucou Hal, e os homens irromperam em risadas.
Durante a primeira semana no cativeiro, viram o sargento carcereiro, de nome Manseer, apenas quando o caldeirão de ensopado era trazido ou quando a cama de palha fora trocada. Então, de repente, na oitava manhã, a porta de ferro no topo da escada se abriu com um estalo, e Manseer berrou pelo vão:
- Dois de cada vez, em formação para cima. Vamos levá-los para lavar um pouco do fedor em vocês, ou o juiz ficará sufocado antes que tenha a chance de mandá-los para Stadige Jan. Agora, vamos, sacudam esses ossos.
Com uma dúzia de guardas a manter vigia sobre eles, foram levados aos pares, obrigados a se despir e lavar os corpos e as roupas sob a bomba, atrás dos estábulos.
Na manhã seguinte, foram retirados novamente das masmorras com a alvorada, e, desta vez, o armeiro do castelo esperava com sua forja e abigorna, para agrilhoá-los juntos, não mais em uma longa fila desajeitada, porém aos pares.
Quando a porta chapeada de ferro para a cela de Sir Francis foi aberta, e seu pai emergiu com os cabelos pendendo lisos até os ombros e uma barba grisalha a lhe cobrir o rosto, Hal avançou para a frente, para que fossem algemados juntos.
- Como está, papai? - perguntou Hal com preocupação, pois nunca vira o pai com aparência tão abatida.
Antes que Sir Francis pudesse responder, um acesso de tosse assaltou-o. Quando passou, ele respondeu, com voz rouca:
- Prefiro um bom vendaval no canal ao ar aqui embaixo, porém estou bem o suficiente para o que tem de ser feito.
- Eu não poderia gritar ao senhor, mas Aboli e eu estamos trabalhando num plano para escapar - sussurrou-lhe Hal. - Demos um jeito de erguer uma das lajes do chão no fundo da cela e vamos cavar um túnel sob as muralhas.
- Com as mãos nuas? - Sir Francis sorriu para o filho.
- Precisamos achar uma ferramenta - admitiu Hal -, mas quando acharmos...
Meneou a cabeça com séria determinação, e Sir Francis sentiu que o coração poderia estourar de orgulho e amor. Eu o ensinei a ser um lutador, pensou, e a continuar lutando mesmo quando a batalha está perdida. Deus do céu, espero que os holandeses o poupem da sina que reservaram para mim.
No meio da manhã, os guardas os levaram em marcha do pátio acima da escada para o saguão principal do castelo, que fora convertido num tribunal. Algemados dois a dois, foram conduzidos para as quatro fileiras de baixos bancos de madeira no centro do aposento e neles sentados, Sir Francis e Hal no meio da fila da frente. Os guardas, com espadas desembainhadas, alinharam-se ao longo da parede, atrás deles.
Uma plataforma fora construída contra a parede diante deles, e nela, de frente para os bancos dos prisioneiros, havia uma mesa pesada e uma cadeira de espaldar alto de teca escura. Era o trono do juiz. Numa ponta da mesa, havia uma banqueta, na qual o escrivão da corte já estava sentado, ocupado a escrever em seus papéis. Abaixo da plataforma, havia outro par de mesas e cadeiras. Numa delas, sentava-se alguém que Hal vira muitas vezes através da janela da cela. De acordo com Althuda, era o escrivão assistente da administração da companhia. Seu nome era Jacobus Hop, que, depois de um olhar nervoso aos prisioneiros, não os fitou novamente. Agitava e rebuscava um maço de documentos, parando de vez em quando para enxugar a face suada com um grande lenço branco.
Na segunda mesa, sentava-se o coronel Cornelius Schreuder. Era a imagem poético-romântica do galante e afável soldado, todo luzidio com seus medalhões e estrelas e o largo galão atravessado num ombro. Sua peruca fora lavada fazia pouco, os cachos a penderem até seus ombros. Suas pernas estavam esticadas à frente, as botas de cano alto de couro macio cruzadas nos tornozelos. No tampo da mesa defronte a ele estavam espalhados livros e papéis e, pousados displicentemente sobre eles, o chapéu emplumado e a espada de Netuno. Conforme se balançava para trás e para a frente na cadeira, olhava fixamente para Hal, e embora Hal tentasse enfrentar-lhe o olhar, foi forçado por fim a baixar os olhos.
Houve um súbito burburinho nas portas principais, e quando elas se abriram, a multidão da cidade irrompeu por elas e se apressou em tomar assento nos bancos de cada lado do saguão. Assim que o último lugar foi ocupado, as portas foram fechadas à força nas caras dos pouco afortunados na retaguarda. Agora, o saguão ressoava com o clamor dos comentários e com a ansiedade, enquanto os felizes espectadores estudavam os prisioneiros e emitiam em voz alta a opinião que tinham deles, um para o outro.
De um lado, uma área fora reservada, e dois soldados de gibões verdes com espadas fora da bainha postavam-se para guardá-la. Atrás da grade, fora disposta uma fila de cadeiras estofadas confortáveis. O burburinho cresceu e a atenção da multidão voltou-se dos acusados para os digni-tários que passavam pelas portas da câmara de audiência. O governador Kleinhans os liderava, com Katinka van de Velde pelo braço, seguido por lorde Cumbrae e o capitão Limberger, a conversar casualmente, ignorando a comoção que sua entrada provocava entre a gente comum.
Katinka tomou a cadeira no centro da fila. Hal fitou-a, desejando que ela olhasse em sua direção, para lhe dar um sinal de reconhecimento e conforto. E tentou sustentar dentro de si a crença de que ela jamais o abandonaria, e que já usara da influência e intercedera junto ao marido por misericórdia. Ela, contudo, estava imersa em conversação com o governador Kleinhans, e, quando muito, relanceou o olhar pelas filas de marinheiros ingleses. Não queria que os outros percebessem preferência e preocupação em relação a eles, Hal consolou-se; quando chegar a hora de prestar depoimento, pensou, certamente ela falará por nós.
O coronel Schreuder descruzou as pernas, bateu com os calcanhares pesadamente no chão e se levantou. Olhou para o saguão lotado com imenso desdém, e as mulheres presentes deixaram escapar pequenos suspiros e gritinhos de admiração.
- Este tribunal foi convocado em virtude do poder conferido à honorável Companhia Holandesa das índias Orientais nos termos do decreto expedido para a citada companhia pelo governo da República da Holanda e das Terras Baixas. Façam silêncio e levantem-se para o presidente do tribunal, Sua Excelência o governador Petrus van de Velde.
Os presentes ficaram de pé, com um murmúrio abafado, e fitaram, em antecipada ansiedade, a porta atrás da plataforma. Alguns dos prisioneiros se ergueram, tilintando suas correntes, porém, quando viram Sir Francis Courtney e Hal sentados, imóveis, caíram de volta nos bancos.
Pela porta traseira, apareceu o presidente da corte. Ele subiu pesadamente para a plataforma e fuzilou com os olhos as fileiras sentadas de prisioneiros.
- Façam esses rufiões ficarem de pé! -berrou, de súbito, e a multidão encolheu-se diante daquela expressão assassina.
No silêncio espantado que se seguiu àquela explosão, Sir Francis falou claramente, em holandês:
- Nem eu nem qualquer de meus homens reconhecemos a autoridade desta assembléia, nem aceitamos o direito do auto-indicado presidente para examinar e sentenciar ingleses nascidos livres, sujeitos apenas a Sua Majestade, o Rei Carlos II.
Van de Velde pareceu inchar como um enorme sapo. Sua face tornou-se uma escura e furiosa sombra de escarlate, e ele rugiu:
- Você é um pirata e um assassino. Pela soberania da República e o decreto da Companhia, pelo direito da moral e das leis internacionais, temos autoridade para conduzir este tribunal. - Interrompeu-se, arquejante, para recuperar o fôlego, e depois continuou, mais alto ainda: - Eu o julgo culpado de grosseiro e flagrante desrespeito a esta corte, e o sentencio a dez golpes de vara a serem aplicados em seguida. - Olhou para o comandante da guarda. - Mestre-de-armas, leve o prisioneiro para o pátio e execute a sentença de imediato.
Quatro soldados avançaram dos fundos do saguão e ergueram Sir Francis de pé. Hal, algemado ao pai, foi arrastado com ele para as port principais. Atrás deles, homens e mulheres saltaram dos bancos e esticaram o pescoço para enxergar e, depois, correram como um bloco para a soleira da porta e janelas, enquanto Sir Francis e Hal eram empurrados pelas escadas até o pátio.
Sir Francis manteve-se calado, a cabeça altiva e as costas eretas, enquanto era levado até o gradil de amarrar os cavalos dos oficiais à entrada da armaria. Com as ordens gritadas pelo sargento, ele e Hal foram colocados de cada lado do gradil, de frente um para o outro, seus pulsos algemados pendurados em anéis de ferro.
Hal se via impotente para intervir. O sargento colocou o indicador no verso do colarinho da camisa de Sir Francis e puxou, rasgando o algodão até a cintura. Depois, recuou um passo e estalou sua leve bengala de cana-da-índia.
- Você fez um juramento em sua admissão à cavalaria. Você o mantém por sua honra? - murmurou Sir Francis para o filho.
- Mantenho, papai. A bengala sibilou e estalou na carne nua, e Sir Francis pestanejou.
- Esta surra é apenas uma coisinha, uma brincadeira de criança comparada ao que deve se seguir. Compreende isso?
- Compreendo muito bem. O sargento vibrou a bengala novamente. Desferia as pancadas uma sobre a outra, a dor a se multiplicar a cada golpe.
- Não importa o que você faça ou diga, nada e ninguém pode mudar o vôo do cometa vermelho. As estrelas determinaram meu destino, e você não pode interferir.
A bengala novamente assobiou e desceu cantando, e o corpo de Sir Francis se retesou para depois relaxar.
- Se você for forte e resoluto, irá persistir. Essa será minha recompensa.
Desta vez, deixou escapar um arquejo rouco quando a vara acertou-lhe os músculos retesados das costas.
- Você é minha carne e meu sangue. Através de você, eu também persistirei.
A bengala sibilava e estalava, vezes seguidas.
- Jure a mim pela última vez. Reforce seu voto de que jamais revelará qualquer coisa a essas pessoas numa fútil tentativa de salvar-me.
- Papai, juro ao senhor - murmurou Hal de volta, sua face branca como um osso descorado, conforme a bengala cantava, numa sucessão de golpes cruéis.
- Ponho toda a minha fé e confiança em você - disse Sir Francis, e os soldados o tiraram do gradil.
Conforme seguiam de volta para a escada, Sir Francis apoiou-se ligeiramente sobre o braço de Hal. Quando tropeçou, Hal o sustentou, de maneira que sua cabeça estivesse ainda alta e as costas ensangüentadas eretas ao entrarem no saguão e marcharem juntos para os assentos no primeiro banco.
O governador van de Velde estava agora sentado na plataforma. Uma bandeja de prata fora colocada perto de seu cotovelo, cheia de pequenas tigelas de porcelana com aperitivos e petiscos condimentados. Ele mastigava satisfeito um daqueles antepastos e bebia cerveja fraca numa caneca de peltre, enquanto conversava com o coronel Schreuder, à mesa, abaixo. Assim que Sir Francis e Hal foram novamente empurrados para o banco, a expressão amistosa do governador mudou drasticamente. Ergueu a voz, e um denso e imediato silêncio caiu sobre a assembléia.
- Creio que deixei claro que não permitirei mais obstáculos a estes procedimentos. - Encarou Sir Francis com fúria e depois ergueu os olhos para varrer o saguão. - Isso vale para todas as pessoas reunidas aqui. Quem quer que seja que de alguma maneira faça uma tentativa de ridicularizar este tribunal, receberá o mesmo tratamento do prisioneiro. - Olhou para Schreuder. - Quem se apresenta pela promotoria?
Schreuder levantou-se.
- O coronel Cornelius Schreuder, a seu serviço, Excelência.
- Quem se apresenta pela defesa? - Van de Velde fuzilou Jacobus Hop, e o escriturário saltou de pé, mandando metade dos documentos à sua frente pelo chão.
- Eu, Excelência.
- Especifique seu nome, homem! - rosnou van de Velde para ele, e Hop encolheu-se como um cachorrinho. Gaguejou:
- Jacobus Hop, escriturário e copista da honorável Companhia Holandesa das índias Orientais. - Essa declaração demorou para ser enunciada.
- Doravante, fale claro e em bom tom - avisou-o van de Velde e, em seguida, voltou-se de novo para Schreuder. - Pode iniciar os procedimentos para apresentar o caso, coronel.
- Esta é uma matéria sobre pirataria em altos-mares, juntamente com assassinato e seqüestro. Os acusados são em número de vinte e quatro. Cada prisioneiro se levantará quando seu nome for lido, para que a corte possa reconhecê-lo. - Da manga da túnica, tirou um rolo de pergaminho e estendeu-o à distância do braço. - A pessoa primeiramente acusada é Francis Courtney, capitão da nau pirata Lady Edwina. Excelência, ele é o líder e o instigador de todos os atos criminosos perpetrado pelo bando de lobos-do-mar e corsários. -Van de Velde meneou a cabeça em concordância, e Schreuder prosseguiu: - Henry Courtney, oficial e imediato. Ned Tyler, contramestre. Daniel Pescador, contramestre... Recitou o nome e o posto de cada homem nos bancos, e cada um levantou brevemente, alguns inclinando as cabeças e sorrindo sem graça para van de Velde. Os últimos quatro nomes na lista de Schreuder eram dos marinheiros negros. "- Matesi, um escravo negro.
- Jiri, um escravo negro.
- Kimatti, um escravo negro.
- Aboli, um escravo negro.
- A promotoria provará que no quarto dia de setembro no ano de Nosso Senhor de mil seiscentos e sessenta e sete, Francis Courtney, no comando da caravela de nome Lady Edwina, de cuja tripulação os outros prisioneiros eram todos membros, investiu contra o galeão De Standvastigheid, sob o comando do capitão Limberger... - Schreuder falava sem referência a notas ou papéis, e Hal sentiu uma admiração relutante pela minúcia e clareza de suas acusações.
- E agora, Excelência, se me permitir, eu gostaria de chamar minha primeira testemunha. - Van de Velde concordou com a cabeça, e Schreuder voltou-se e olhou pelo saguão. - Chamo o capitão Limberger."
O capitão do galeão deixou a confortável cadeira no recinto, dirigiu-se à plataforma e subiu nela. A cadeira da testemunha ficava ao lado da mesa do juiz, e Limberger se sentou.
- Compreende a gravidade desta matéria e jura em nome de Deus Todo-poderoso dizer a verdade diante desta corte? - inquiriu-o van de Velde.
- Juro, Excelência.
- Muito bem, coronel, pode questionar sua testemunha. Schreuder conduziu Limberger rapidamente por um recital de nome,
posto e deveres para com a companhia. Depois, pediu-lhe uma descrição do Standvastigheid, de seus passageiros e sua carga. Limberger leu as respostas da lista que havia preparado. Quando terminou, Schreuder lhe perguntou:
- Quem era o proprietário desse navio e da carga que carregava?
- A honorável Companhia Holandesa das índias Orientais.
- Agora, capitão Limberger, em quatro de setembro deste ano, seu navio viajava perto da latitude de 34 graus sul e longitude de quatro graus leste, isto é, aproximadamente cinqüenta léguas ao sul do cabo Agulhas?
- Sim.
- Isso foi algum tempo depois da cessação das hostilidades entre Holanda e Inglaterra?
- Sim, foi.
Schreuder pegou um diário de bordo com capa de couro da mesa à sua frente e passou-o para cima, para Limberger.
- É este o diário que mantinha a bordo de seu navio durante aquela viagem?
Limberger examinou o livro brevemente.
- Sim, coronel, este é o meu diário. Schreuder olhou para van de Velde.
- Excelência, creio que deveria informá-lo de que o diário foi encontrado na posse do pirata Courtney após sua captura pelas tropas da companhia. - Van de Velde concordou, e Schreuder olhou para Limberger. - Poderia, por favor, ler para nós o último registro de seu diário?
Limberger virou as páginas e depois leu, em voz alta:
- Quatro de setembro de mil seiscentos e sessenta e sete. Dois sinos no turno da manhã. Cálculo de posição de 4 graus, 23 minutos de latitude sul, 34 graus, 45 minutos de longitude leste. Vela estranha à vista rumando de sul-sudeste. Ostentando cores amistosas. -Limberger fechou o diário e ergueu os olhos. - O registro termina aqui - disse.
- Essa estranha vela notada em seu diário era da caravela Lad Edwina, e ostentava as cores da república e da companhia?
- Sim, para ambas as questões.
- Poderá contar os acontecimentos que tiveram lugar depois que senhor avistou o Lady Edwina, por favor?
Limberger fez uma clara descrição da captura de seu navio, com Schreuder fazendo-o enfatizar o uso de falsas cores por Sir Francis para se colocar em distância de ataque. Depois de Limberger ter contado da abordagem e da luta dentro do galeão, Schreuder pediu-lhe uma conta detalhada do número de marinheiros holandeses feridos e mortos. Limberger tinha uma lista preparada por escrito e estendeu-a para a corte.
- Obrigado, capitão. Pode nos dizer o que aconteceu ao senhor, sua tripulação e a seus passageiros assim que os piratas assumiram controle de seu navio?
Limberger continuou a descrever como tinham velejado para leste sob a escolta do Lady Edwina, falou da transferência da carga e equipamentos da caravela para o galeão, e do despacho do Lady Edwina sob o comando de Schreuder para o cabo, com cartas de exigência de resgate, da viagem a bordo do galeão capturado para a lagoa do Elefante e do cativeiro dele e de seus eminentes passageiros ali até o resgate pela força expedicionária vinda do cabo, liderada por Schreuder e lorde Cumbrae.
Quando Schreuder havia terminado a inquirição, van de Velde olhou para Hop.
Tem alguma pergunta, Mijnheer.
Com ambas as mãos cheias de papéis, Hop levantou-se e corou violentamente; depois, respirou fundo e saiu-se com um longo e ininterrupto palavrório incompreensível pela gaguice. Todos no saguão ficaram a observar sua agonia com interesse, e, por fim, van de Velde falou:
- O capitão Limberger pretende partir para a Holanda dentro de duas semanas. Acha que terá feito sua inquirição a ele até lá, Hop?
Hop meneou a cabeça.
- Sem perguntas - conseguiu gaguejar, e sentou-se pesadamente.
- Quem é sua próxima testemunha, coronel? - perguntou van de Velde, tão logo Limberger deixara a cadeira de testemunha e voltava a sentar-se no recinto.
- Gostaria de chamar a esposa do governador, Mevrouw Katinka van de Velde. Isto é, se não houver inconveniente para ela.
Houve um burburinho masculino de aprovação quando Katinka seguiu farfalhando as sedas e as rendas para a cadeira de testemunha. Sir Francis sentiu Hal empertigar-se a seu lado, porém não se voltou para fitá-lo na face. Dias apenas antes da captura, quando Hal estivera ausente do acampamento por longos períodos e começara a negligenciar os deveres, ele percebera que o filho caíra no laço da prostituta loura. Já então, era muito tarde para intervir, e, de qualquer modo, ele recordara o que era ser jovem e apaixonado, mesmo com uma mulher absolutamente inadequada, e compreendera a futilidade de tentar evitar o que já acontecera. Havia esperado pelo momento correto e os meios certos de terminar a ligação, quando Schreuder e o Gavião atacaram o acampamento.
Com grande deferência, Schreuder conduziu Katinka gentilmente pelo ritual de proclamar o nome e posição e depois lhe pediu para que descrevesse a viagem a bordo do Standvastigheid e como fora feita prisioneira. Ela respondeu numa voz doce e clara que palpitava de emoção, e Schreuder prosseguiu:
- Por favor, diga-nos, madame, como foi tratada por seus captores. Katinka começou a soluçar baixinho.
- Tentei expulsar isso de minha memória, pois era por demais doloroso de se suportar. Porém, jamais poderei esquecer. Fui tratada como um nimal enjaulado, xingada e cuspida, mantida trancada numa tapera de mato.
Mesmo van de Velde pareceu admirado com aquele testemunho, porém percebeu que pareceria impressionante no relatório que enviaria a Amsterdã. Depois de lê-lo, o pai de Katinka e os outros membros dos Dezesset não teriam outra opção a não ser aprovar mesmo a mais dura punição aos prisioneiros.
Sir Francis estava ciente do torvelinho de emoções que assaltava Hal enquanto ele ouvia a mulher em quem depositava tanta confiança desfiar aquelas mentiras. E sentiu que o filho descaía fisicamente à medida que Katinka seguia destruindo sua fé nela.
- Tenha o coração firme, meu rapaz - disse, baixinho, pelo canto da boca, e sentiu que Hal se sentava ereto no banco.
- Minha cara senhora, sabemos que sofreu um calvário terrível nas mãos desses monstros inumanos. -Já então Schreuder tremia de raiva por ouvir aquela experiência penosa. Katinka meneou a cabeça e enxugou os olhos com um lencinho de renda. - Acredita que animais como esses deveriam ser tratados com piedade, ou deveriam ficar sujeitos à plena força e majestade da lei?
- O doce Jesus sabe que sou apenas uma pobre mulher, com um coração brando e amoroso para toda a criação de Deus. - A voz de Katinka se quebrou dolorosamente. - Mas sei que todos nesta assembléia concordarão comigo que um simples enforcamento é bom demais para essa escória inominável. - Um murmúrio de assentimento espalhou-se lentamente pelos bancos dos espectadores e em seguida se transformou num profundo burburinho. Como um buraco cheio de ursos na hora da comida, eles queriam sangue.
- Queime-os! - gritou uma mulher. - Não podem ser chamados de homens.
Katinka ergueu a cabeça e, pela primeira vez desde que entrara no saguão, olhou diretamente para Hal, a fitá-lo através das lágrimas que lhe marejavam os olhos.
Hal ergueu o queixo e a encarou. Sentiu o amor e o respeito que nutrira por ela definharem, como a hera tenra atingida pelo bolor negro. Sir Francis sentiu também e voltou-se para fitar o filho. Viu o brilho glacial nos olhos de Hal e quase pôde sentir o calor das chamas em seu coração.
- Ela jamais o mereceu - disse baixinho Sir Francis. - Agora que renunciou a ela, deu outro grande passo para a maturidade.
Será que seu pai realmente compreendia? imaginou Hal. Será que sabia o que havia acontecido? Conhecia os seus sentimentos? Voltou-se olhou dentro dos olhos de Sir Francis, com receio de ver ali escárnio e repulsa. Porém, o olhar do pai era impregnado de compreensão. Hal deu conta de que ele sabia de tudo, e provavelmente desde longo tempo. Muito longe de rejeitá-lo, o pai lhe oferecia força e redenção.
Cometi adultério e desgracei minha condição de cavaleiro -
murmurou Hal. - Não mais sou merecedor de ser chamado de seu filho. A algema de seu pulso tilintou quando Sir Francis pousou a mão no joelho do rapaz.
Foi essa meretriz que o conduziu para o mau caminho. A culpa não é sua. Você será sempre meu filho e sempre me orgulharei de você - murmurou ele.
Van de Velde fechou o cenho e encarou Sir Francis.
- Silêncio! Nada de resmungos! É outra surra de vara que está querendo? - Voltou-se para a esposa. - Mevrouw, você foi muito corajosa. Tenho certeza que o Mijnheer Hop não desejará aborrecê-la mais. - Desviou o olhar para o infeliz escrevente, que saltou de pé.
- Mevrouw! - A palavra saiu aguda e clara como um tiro de pistola, surpreendendo Hop tanto quanto todos na corte. - Agradecemos por seu testemunho, e não temos nenhuma pergunta. - Houve apenas um engasgo, na palavra "testemunho", e Hop sentou-se outra vez, triunfante.
- Muito bem, Hop - cumprimentou-o van de Velde com um ar amistoso, e depois voltou um sorriso tonto de amor para a esposa. - Pode voltar a seu assento, Mevrouw. - Instalou-se um silêncio carregado de sensualidade, e cada homem no saguão baixou o olhar quando Katinka ergueu as saias o suficiente para expor os tornozelos perfeitos vestidos em seda branca e desceu da plataforma.
Assim que ela se sentou, Schreuder disse:
- Agora, lorde Cumbrae, posso aborrecê-lo?
Com todas as suas insígnias reais, o Gavião subiu na plataforma e, conforme prestava o juramento, colocou a mão no reluzente remate cheio de pedras preciosas amarelas de sua adaga. Assim que estabelecera quem e o que ele era, Schreuder perguntou-lhe:
- Conhece o capitão pirata, Courtney?
- Como a um irmão. - Cumbrae sorriu para Sir Francis. - Certa vez fomos próximos.
Não mais? - perguntou Schreuder, com voz ferina.
- Ai de mim! É algo doloroso... porém, quando meu velho amigo começou a mudar, houve uma separação em nossos caminhos, embora eu ainda sinta grande afeição por ele.
- Como ele mudou?
- Bem, ele sempre fora um sujeito agradável, sem dúvida. Viajamos juntos muitas vezes, em dias de tempestade e em dias amenos. Não há homem algum que eu tenha amado mais, justo como era e honesto bravo e generoso com os amigos... - Cumbrae interrompeu-se, e uma expressão de profunda tristeza vincou-lhe a testa.
- Fala no tempo pretérito, meu senhor; o que mudou?
- Foi Francis quem mudou. A princípio, em coisinhas: mostrava-se cruel com seus cativos e duro com a tripulação, fustigando e enforcando quando não era necessário. Depois, mudou com relação aos velhos amigos, mentindo e enganando-os na partilha do que era apreendido. Tornou-se um homem duro e amargo.
- Obrigado por sua honestidade - disse Schreuder. - Posso ver que não lhe causa nenhum prazer revelar essas verdades.
- Nenhum mesmo - confirmou Cumbrae com tristeza. - Detesto ver meu velho amigo em algemas, embora o Todo-poderoso saiba bem que ele não merece nenhuma misericórdia por seu comportamento desumano em relação a honestos marinheiros holandeses e mulheres inocentes.
- Quando foi a última vez que viajou em companhia de Courtney?
- Não faz muito tempo, em abril deste ano. Nossos dois navios estavam em patrulha, juntos, ao largo de Agulhas, esperando para interceptar os galeões da companhia quando eles rodeassem o cabo para vir para cá, para a baía da Mesa. - Houve um murmúrio de raiva patriótica dos espectadores, que van de Velde ignorou.
- Era o senhor, então, também um pirata? - Schreuder encarouo com olhos agudos. - Também ia apresar um navio holandês?
- Não, coronel Schreuder, não sou um pirata. Durante a recente guerra entre nossos dois países, fui um corsário comissionado.
- Por favor, meu senhor,explicite a diferença entre um pirata e um corsário.
- Simplesmente, um corsário navega sob as Cartas de Marca outorgadas por seu soberano em tempos de guerra, sendo, portanto, um legítimo soldado. Um pirata é um ladrão e um fora-da-lei, levando a efeito suas depredações sem qualquer aprovação, além daquela do Senhor das Trevas, o próprio Satã.
- Compreendo. Portanto, o senhor tinha uma Carta de Marca quando estava em incursão contra a navegação holandesa?
- Sim, coronel, eu tinha.
Pode nos mostrar esse documento?
Naturalmente! - Cumbrae levou a mão para dentro da manga tirou um rolo de pergaminho. Inclinou-se e estendeu-o para Schreuder.
Obrigado. - Schreuder desenrolou-o e ergueu-o ao alto para todos verem; era pesado, com fitas escarlates e lacres de cera. Leu em voz alta Saibam por este presente documento que nosso caro e amado Angus Cochran, conde de Cumbrae...
- Muito bem, coronel - interrompeu-o van de Velde, irritado. - Não há necessidade de ler a coisa toda. Deixe-me ver o documento aqui, por favor.
Schreuder inclinou-se numa mesura.
Como quiser, Excelência. - Estendeu-lhe o documento. Van de Velde relanceou os olhos pelo texto e colocou-o de lado. - Por favor, prossiga com as perguntas.
- Meu senhor, tinha Courtney, o prisioneiro, também uma dessas Cartas de Marca?
- Bem, se ele tinha, eu não estava ciente disso. - O Gavião sorriu ostensivamente para Sir Francis.
- Teria esperado ter ciência disso, se ela de fato existisse?
- Sir Francis e eu éramos muito próximos. Não havia segredos entre nós. Sim, ele teria me dito.
- Ele nunca conversou sobre a carta com o senhor? - Schreuder pareceu aborrecido, como um professor cujo aluno tivesse se esquecido das lições. - Nunca?
- Oh, sim. Agora eu me recordo de uma ocasião. Perguntei-lhe se tinha uma comissão real.
- E qual foi a resposta?
- Ele disse: "Isso não passa de um pedaço de papel. Não me preocupo com bobagens como essa!
Então o senhor sabia que ele não tinha nenhuma carta e não obstante viajava em sua companhia?
Cumbrae deu de ombros.
- Era tempo de guerra, e aquilo não me dizia respeito.
Portanto, o senhor estava ao largo do cabo Agulhas com o prisioneiro depois que a paz fora assinada e, mesmo assim, em incursão contra a navegação holandesa. Pode explicar isso para nós?
É simples, coronel. Não sabíamos da paz até que cruzei com uma caravela portuguesa que rumava de Lisboa para Goa. Eu a abordei e o capitão me contou que a paz fora assinada.
- Qual era o nome desse navio português?
- Dragão.
- Estava o prisioneiro Courtney presente a esse encontro?
- Não, seu posto de patrulha era ao norte do meu. Estava além do horizonte e fora da vista na ocasião.
Schreuder assentiu, inclinando a cabeça.
- Onde está esse navio agora?
- Tenho aqui uma cópia de um boletim informativo de Londres de apenas três meses atrás. Chegou há três dias no navio da companhia que está na baía neste momento. - O Gavião tirou o boletim da manga com um floreio de mágico. - O Dragão se perdeu com todos os tripulantes numa tempestade na baía de Biscaia enquanto fazia sua viagem de volta.
- Isso significa que jamais teremos como anular a prova de seu encontro com essa nau ao largo do cabo Agulhas?
- Terá de aceitar minha palavra quanto a isso, coronel. - Cumbrae alisou a enorme barba ruiva.
- O que o senhor fez quando soube da paz entre a Inglaterra e a Holanda?
- Como um homem honesto, só havia uma coisa a fazer. Interrompi minha patrulha e fui em busca do Lady Edwina.
- Para avisar que a guerra havia terminado? - sugeriu Schreuder.
- Claro, e para dizer a Franky que minha Carta de Marca não mais era válida e que eu iria para casa.
- Encontrou Courtney? Deu-lhe essa mensagem?
- Encontrei-o dentro de poucas horas de viagem. Estava ao norte de minha posição, a cerca de vinte léguas.
- O que ele disse quando o senhor lhe contou que a guerra havia acabado?
- Disse: "Pode estar acabada para você, não para mim. Chuva ou sol, vento ou calmaria, guerra ou paz, vou pegar eu mesmo um gordo cabeça-de-queijo.
Houve um feroz retinir de algemas, e Daniel Grande levantou-se, arrastando a diminuta figura de Ned Tyler para fora do banco com ele.
- Não há uma palavra de verdade nisso, seu escocês mentiroso e bastardo - trovejou.
Van de Velde saltou de pé e sacudiu o dedo para Daniel.
Sente-se, seu animal inglês, ou será chicoteado, e não com uma vara leve.
Francis voltou-se e estendeu a mão para agarrar o braço de Daniel.
Calma, mestre Daniel - disse, baixinho. - Não dê ao Gavião o prazer de vê-lo se remoer.
Daniel Grande afundou-se no banco, resmungando furioso consigo mesmo, porém não ousou desobedecer seu capitão.
Tenho certeza de que o governador van de Velde irá perceber a desregrada e desesperada natureza desses vilões - disse Schreuder, e depois voltou a atenção de novo para o Gavião. - Viu Courtney alguma vez antes do dia de hoje?
- Sim, vi. Quando eu soube que, a despeito de meu aviso, ele apresara um galeão da companhia, fui encontrá-lo e protestar com ele. Pedi-lhe para liberar o navio e sua carga, e para soltar os reféns que mantinha para resgate.
- Como ele respondeu a seu pedido?
- Voltou suas armas contra meu navio, matando doze de meus marinheiros, e atacou-me com embarcações em chamas. - O Gavião meneou a cabeça com a lembrança daquele tratamento pérfido por parte de um velho amigo e companheiro. - Foi quando vim para cá, para a baía de Mesa, para informar o governador Kleinhans do paradeiro do galeão e me oferecer para liderar uma expedição para recapturar o navio e a carga dos piratas.
- Como um soldado que sou, só posso cumprimentá-lo, meu senhor, por sua conduta exemplar. Não tenho mais perguntas, Excelência. - Schreuder inclinou-se para van de Velde.
- Hop, tem alguma pergunta? - inquiriu van de Velde. Hop pareceu confuso e relanceou os olhos para Sir Francis.
- Excelência - tartamudeou -, eu poderia falar com Sir Francis sozinho, nem que seja por um minuto?
Por um instante, pareceu que van de Velde poderia recusar o pedido, porém ele juntou as sobrancelhas com ar feroz.
- Se insistir em manter esse procedimento durante todo o tempo, op, ficaremos aqui por toda a semana. Muito bem, homem, pode falar com o prisioneiro, porém tente ser rápido.
Hop correu até Sir Francis e inclinou-se para perto dele. Fez uma Pergunta e ouviu a resposta com uma expressão de crescente horror na face Pálida. Meneou a cabeça e continuou a sacudi-la enquanto Sir Francis e cochichava ao ouvido e em seguida, voltou para sua mesa.
Olhou para os papéis, respirando como um pescador de pérolas preste a pular da canoa para vinte braças de água. Finalmente ergueu os olhos e exclamou para Cumbrae:
- A primeira vez que soube do fim da guerra foi quando tentou se apossar do Andorinha na fortaleza, aqui na baía da Mesa, e isso lhe foi contado pelo coronel Schreuder.
As palavras saíram numa única enxurrada, sem trégua nem pausa porém foi uma frase longa, e Hop recuou, arquejante pelo esforço.
- Perdeu o juízo, Hop? - berrou van de Velde. - Está acusando um nobre de mentir, seu monte de excremento?
Hop puxou outro fôlego, pegou a frágil coragem em ambas as mãos e gritou outra vez:
- O senhor segurou a Carta de Marca do capitão Courtney em suas próprias mãos e depois a brandiu na face dele enquanto a queimava até as cinzas. - De novo aquilo lhe saiu com fluência, porém Hop estava esgotado. Ficou resfolegando por ar.
Van de Velde já estava de pé, então.
- Se quiser avançar na companhia, Hop, está seguindo um caminho muito estranho. Fica aí postado a berrar acusações malucas contra um homem de alta hierarquia. Não sabe seu lugar, seu inútil apanhador de papel? Como se atreve a se comportar assim? Sente-se, antes que eu tenha de mandar retirá-lo e flagelá-lo.
Hop caiu no assento como se tivesse recebido uma bala de mosquete na cabeça. A fungar, van de Velde inclinou a cabeça, numa ligeira reverência, para o Gavião.
- Devo pedir escusas, meu senhor. Todos aqui sabem que o senhor foi vital no resgate dos reféns e na salvação do Standvastigheid das garras desses vilões. Por favor, ignore essas colocações insultantes e retorne para sua cadeira. Estamos gratos por sua ajuda nesta questão.
Enquanto Cumbrae atravessava o espaço, van de Velde tomou ciência, subitamente, de que o escrivão parecia extremamente ocupado, a seu lado.
- Não escreva isso, seu idiota. Não foi parte dos procedimentos da corte. Deixe-me ver sua transcrição. - Arrancou a ata do escrivão e, conforme lia, sua face se escureceu. Inclinou-se e tomou a pena da mão do escriturado. Com uma série de largos golpes, expurgou aquelas partes do texto que o ofendiam. Depois, empurrou o livro de volta para o homem. - Use sua inteligência. Papel é um bem muito caro. Não o desperdice escrevendo bobagens sem importância. - Em seguida, transferiu atenção para os dois advogados. - Cavalheiros, gostaria de ver esta matéria resolvida hoje. Não quero impor à companhia uma despesa desnecessária perdendo mais tempo. Coronel Schreuder, julgo que o senhor fez uma profunda e convincente apresentação do caso contra os piratas. Espero que não pretenda aprimorar as coisas chamando mais alguma testemunha, não é?
Como quiser Excelência. Eu tinha intenção de chamar mais dés...
Pelos céus! - Van de Velde pareceu horrorizado. - Isso não será necessário, em absoluto.
Schreuder inclinou-se profundamente e se sentou. Van de Velde baixou a cabeça como um touro pronto a atacar e olhou para o advogado de defesa.
Hop! - rosnou. - Você acabou de ver como o coronel Schreuder se mostrou razoável, e que excelente exemplo deu a esta corte na economia de palavras e tempo. Quais são suas intenções?
- Posso chamar Sir Francis para prestar depoimento? - gaguejou.
Hop.
- Eu me oponho veementemente a isso - objetou van de Velde com voz sombria. - Certamente não trará nenhum bem ao caso.
- Quero demonstrar que ele não sabia que a guerra terminara e que navegava sob uma comissão do rei inglês - tartamudeou Hop com obstinação, e van de Velde tornou-se escarlate.
- Maldição, Hop. Não ouviu uma palavra do que eu disse? Sabemos tudo acerca dessa linha de defesa e a tomarei em consideração quando ponderar sobre minha decisão. Não precisa regurgitar todas essas mentiras de novo.
- Eu gostaria de ouvir o prisioneiro se manifestar apenas para os registros da corte. - Hop estava à beira das lágrimas, e suas palavras lhe saíam penosamente pela língua travada.
- Está testando minha paciência, Hop. Continue assim e estará no próximo navio de volta a Amsterdã. Não posso ter um funcionário desleal da companhia a espalhar dissensão e sedição pela colônia.
Hop pareceu alarmado ao se ouvir descrito em tais termos, e capitulou com humildade.
Peço desculpas por retardar o funcionamento desta honrada corte encerro o caso pela defesa.
- Bom sujeito! Realizou um belo trabalho, Hop. Farei uma anotação sobre isso em meu próximo despacho para os Dezessete. - A face de van de Velde readquiriu sua coloração natural, e ele voltou-se para o salão com ar jovial. - Vamos fazer um recesso para a refeição do meio-dia e para a corte considerar seu veredicto. Voltaremos a nos reunir às quatro da tarde. Levem os prisioneiros de volta aos calabouços.
Para não retirar os grilhões, Manseer, o carcereiro, colocou Hal que ainda estava algemado ao pai, dentro da cela solitária perto do topo da escada em espiral, enquanto os demais prisioneiros eram levados para baixo. Hal e Sir Francis sentaram-se lado a lado na saliência de pedra que servia como cama. Assim que ficaram sozinhos, Hal exclamou, aflito.
- Papai, quero explicar sobre Katinka... quero dizer, a esposa do governador.
Sir Francis abraçou-o de uma forma desajeitada, impedido pelos grilhões.
- Diferentemente do que parece, certa vez eu fui jovem, meu filho. Não precisa falar outra vez sobre aquela rameira. Ela não merece sua consideração.
- Jamais amarei outra mulher, não enquanto eu viver - murmurou Hal, com amargura.
- O que você sentiu por aquela mulher não foi amor, meu filho. - Sir Francis meneou a cabeça. - Seu amor é um bem precioso. Gaste-o apenas no mercado onde não será enganado de novo.
Nesse instante, ouviu-se uma batida nas barras de ferro da cela próxima, e Althuda gritou:
- Como vai o julgamento, Sir Francis? Já lhe deram uma boa amostra da justiça da companhia?
Sir Francis ergueu a voz para responder:
- Vai como você disse que iria. É óbvio que você também a experimentou.
- O governador é o único deus neste pequeno céu chamado Boa Esperança. Aqui, justiça é aquilo que dá lucro para a Companhia Holandesa das índias Orientais ou paga propina para seus empregados. O júri já o declarou culpado?
- Ainda não. Van de Velüe foi encher a pança.
- O senhor deve rezar para que ele valorize mais o trabalho para o forte do que a vingança. Assim, poderia escapar das mãos de João Lento. Há alguma coisa que esteja escondendo deles? Alguma coisa que querem do senhor: trair um companheiro, quem sabe? - perguntou Althuda. - Se não há, então talvez ainda possa escapar do pequeno quarto sob a armaria, onde João Lento faz seu trabalho.
- Não estamos escondendo nada - disse Sir Francis. - Estamos, Hal?
Nada - concordou Hal, por lealdade.
- Mas - continuou Sir Francis - van de Velde acredita que estamos.
Então, tudo o que eu posso dizer, meu amigo, é que o Todo-poderoso tenha piedade do senhor.
Aquelas últimas horas juntos passaram muito depressa para Hal. Ele e o pai ficaram o tempo todo conversando baixinho. E muitas vezes Sir Francis se interrompia, tomado por um acesso de tosse. Seus olhos luziam de febre na claridade débil, e quando Hal o tocava, sua pele estava quente e pegajosa. Sir Francis falava de High Weald como alguém que sabia que jamais veria sua casa de novo. Quando descreveu o rio e a colina, Hal recordou-se deles de uma forma nebulosa, dos salmões a subir corrente acima na primavera e dos veados berrando no cio. Quando falou da esposa, Hal tentou se lembrar da face da mãe, porém visualizou apenas a mulher na pintura em miniatura que havia enterrado na lagoa do Elefante, e não a verdadeira pessoa viva.
- Nestes últimos anos, ela havia se desvanecido em minha memória - admitiu Sir Francis. - Porém, agora, sua face me voltou de forma vivida, tão jovem e fresca como sempre foi. Fico a imaginar, será porque logo estaremos juntos novamente? Será que ela está esperando por mim?
- Sei que está, papai. - Hal deu-lhe a confiança de que ele precisava. - Mas, eu preciso muito do senhor e sei que ficaremos juntos por muitos anos mais, antes que o senhor vá se juntar à mamãe.
Sir Francis sorriu com tristeza e olhou para a pequena janela assentada no alto da muralha de pedra.
- Na noite passada, subi e olhei pelas barras, e o cometa vermelho ainda estava no signo de Virgem. Pareceu mais próximo e mais vigoroso, pois sua cauda poderosa obliterava completamente minha estrela.
Ouviram o tropel dos guardas que se aproximavam e o tilintar de chaves na porta de ferro. Sir Francis voltou-se para Hal.
- Pela última vez, deixe-me beijá-lo, meu filho.
Os lábios do pai estavam secos e quentes com a febre em seu sangue. O contato foi breve, e, então, a porta da cela foi aberta.
Não façam o governador e João Lento esperarem agora - disse o sargento Manseer, num tom jovial. - Fora com vocês dois.
A atmosfera entre os presentes na sala do tribunal era como a de uma rinha, antes que os galos com esporas fossem soltos para se atacarem numa nuvem de penas arrancadas.
Sir Francis e Hal lideravam a longa fila de prisioneiros, e, antes que pudesse se impedir, Hal olhou rapidamente para a área reservada na ponta oposta do saguão. Katinka sentava-se em seu lugar, no centro da primeira fila, com Zelda logo atrás. A criada olhou de soslaio para Hal com maldade, porém um leve sorriso de contentamento surgiu na face de Katinka, e seus olhos reluziram de luzes violeta que pareceram iluminar os sombrios recessos do aposento.
Hal desviou o olhar depressa, espantado com o ódio fervente e repentino que substituíra a adoração que até recentemente sentira por aquela mulher. Como poderia ter acontecido assim, tão rapidamente, pensou, e soube que, se tivesse uma espada na mão, não hesitaria em colocar a ponta entre os picos daqueles macios seios brancos.
Ao se afundar no banco, sentiu-se compelido a erguer os olhos novamente para o grupo de espectadores. Desta vez, ficou gelado ao encontrar outro par de olhos, pálidos e observadores como os de um leopardo, fixos na face de Sir Francis.
João Lento sentava-se na primeira fila da galeria. Parecia um religioso em seus trajes pretos puritanos, o chapéu de aba larga assentado reto na cabeça.
- Não olhe para ele - disse Sir Francis, baixinho, e Hal percebeu que o pai também estava profundamente ciente do escrutínio daqueles estranhos olhos desbotados.
Assim que o salão se acomodou num silêncio de expectativa, van de Velde apareceu à porta da câmara de audiência. Quando se instalou no assento, seu sorriso era expansivo e a peruca estava ligeiramente fora de lugar. Ele arrotou discretamente, pois era evidente que comera bem. Então, baixou os olhos para os prisioneiros com uma expressão tão benigna, que Hal sentiu uma onda de esperança inundá-lo.
- Considerei as evidências que foram trazidas diante desta corte - começou o governador, sem preâmbulos - e quero dizer de princípio que fiquei impressionado com a maneira com que ambos os advogados apresentaram o caso. O coronel Schreuder foi um paradigma de concisão... - Tropeçou nas palavras e então arrotou novamente. Hal julgou ter detectado um toque de cominho e alho no bafo quente que chegou até ele poucos segundos depois.
Van de Velde voltou, em seguida, um olhar paternal para Jacobus Hop.
- O advogado de defesa comportou-se admiravelmente e fez um bom trabalho num caso irremediável, e eu farei uma notação quanto a isso em seu registro da companhia.
Hop inclinou a cabeça e enrubesceu de gratidão.
- Não obstante! - O governador agora olhava incisivamente para o banco de prisioneiros. - Analisando as evidências, pensei muito sobre a defesa levantada por Mijnheer Hop, ou seja, que os piratas operavam sob uma Carta de Marca concedida pelo rei de Inglaterra e que quando atacaram o galeão da companhia, o Standvastigheid, não estavam cientes da cessação das hostilidades entre os beligerantes na guerra recente. Fui forçado pelas irrefutáveis evidências a rejeitar, inteiramente essa linha de defesa. Assim sendo, julgo todas as vinte e quatro das pessoas acusadas culpadas de pirataria em altos-mares, roubo, sequestro e assassinato.
Os marinheiros nos bancos o encararam em pálido silêncio.
- Há alguma coisa que queiram dizer antes que eu pronuncie a sentença? - perguntou van de Velde, e abriu sua caixa prateada de rapé.
Sir Francis falou numa voz que percorreu o comprimento e a largura da sala:
- Somos prisioneiros de guerra. O senhor não tem o direito de algemar-nos como escravos. Nem tem o direito de nos julgar ou passar uma sentença sobre nós.
Van de Velde levou uma pitada de rapé até cada narina e depois espirrou deliciado, em cima do escrivão da corte, que se sentava a seu lado. O escrivão fechou um olho do lado mais próximo do governador, mas manteve a pena a voar pela página, num esforço para registrar todos os procedimentos.
- Creio que o senhor e eu já tenhamos discutido esse ponto de vista antes. - Van de Velde meneou a cabeça e olhou com ar de zombaria para Sir Francis. - Procederei à sentença desses piratas. Primeiramente, cuidarei dos quatro negros. Façam as seguintes pessoas dar um passo à frente: Aboli! Matesi! Jiri! Kimatti!
Os quatro estavam algemados aos pares, e, agora, os guardas os obrigavam a ficar de pé. Foram empurrados para a frente e se postaram abaixo da plataforma. Van de Velde os encarou então, com ar sombrio.
- Levei em conta que vocês são selvagens ignorantes e que por conseguinte, não se pode esperar que se comportem como cristãos decentes. Embora seus crimes infectem os céus e clamem por retribuição, estou inclinado à misericórdia. Eu os condeno à escravidão perpétua. Serão vendidos pelo leiloeiro da Companhia Holandesa das índias Orientais Pelo maior lance em leilão, e o dinheiro arrecadado pela venda será integrado aos cofres da companhia. Leve-os, sargento.
Conforme eram conduzidos para fora do salão, Aboli olhou para Sir Francis e Hal. Sua face negra estava impassível por trás da máscara de tatuagens, porém seus olhos enviavam a eles uma mensagem do coração.
- A seguir, cuidarei dos piratas brancos - anunciou van de Velde - Façam os seguintes prisioneiros se adiantarem: Henry Courtney, oficial e imediato. Ned Tyler, contramestre. Daniel Pescador, contramestre. William Rogers, marinheiro... - Leu cada nome, exceto o de Sir Francis. Quando Sir Francis se levantou ao lado do filho, van de Velde esbravejou:
- Você não! Você é o capitão e o instigador desse bando de rufiões. Tenho outros planos para você. Façam com que o armeiro o separe do outro prisioneiro.
O homem correu dos fundos da corte com o saco de couro contendo suas ferramentas e trabalhou com rapidez para abrir as algemas que prendiam Hal ao pai.
Sir Francis sentou-se sozinho no banco enquanto Hal o deixava e seguia em frente para tomar lugar à frente dos prisioneiros em fila, abaixo do tablado. Van de Velde estudou-lhes as faces, começando pelo fim da fila e movendo o olhar sombrio lentamente até chegar a Hal.
- Um bando de corta-gargantas assassino como jamais vi antes. Nenhum homem ou mulher honestos está a salvo quando criaturas como vocês andam por aí. Vocês servem apenas para o cadafalso.
Ao fitar Hal, ocorreu-lhe um pensamento súbito, e ele olhou para o Gavião, que se sentava ao lado da adorável Katinka, do lado do salão.
- Meu senhor! - exclamou. - Posso aborrecê-lo com uma pequena conversa em particular? - Deixando os prisioneiros postados, van de Velde ergueu o corpanzil de pé e rumou para as portas da câmara de audiência, aos fundos.
O Gavião inclinou-se numa mesura floreada para Katinka e seguiu o governador. Ao entrar na câmara, encontrou van de Velde escolhendo um petisco na bandeja de prata sobre a polida mesa de madeira amarela. O governador voltou-se para o Gavião, a boca já cheia.
- Um pensamento súbito me ocorreu. Se estou para mandar Francis Courtney para o carrasco, para ser interrogado sobre o paradeiro da carga desaparecida, não deveria o filho dele ir também? Certamente Courtney teria dito ao filho, ou o levou consigo quando escondeu o tesouro. O que acha, meu senhor?
O Gavião ficou muito sério e cofiou a barba, ao fingir considerar a pergunta. Imaginara quanto tempo levaria aquele grande porco para chegar a essa maneira de pensar, e, de longa data, tinha preparado a resposta. Sabia que poderia confiar no fato de que Sir Francis Courtney jamais revelaria o paradeiro de sua fortuna, nem mesmo para o mais pérfido e persistente torturador. Era muito obstinado e cabeça-dura, a menos que - e ali estava o único possível caso em que poderia capitular para salvar o filho.
- Excelência, creio que não precisa ter nenhum receio de que algum ser vivente saiba onde o tesouro está, afora o próprio pirata. Ele é muito avarento e suspeitoso para confiar em outro ser humano.
Van de Velde pareceu duvidoso e serviu-se de outro acepipe cheio de curry da travessa de prata. Enquanto ele mastigava, o Gavião elaborou a melhor linha de argumentos, caso van de Velde insistisse em continuar a debater o assunto. Não havia dúvidas, na mente do Gavião, de que Hal Courtney sabia onde estava o tesouro do Standvastigheid. Mais ainda, quase certamente saberia do outro butim do Heerlycke Nacht. Diferentemente de seu pai, o rapaz seria incapaz de suportar o interrogatório de João Lento, e, mesmo que se comprovasse mais durão do que o Gavião acreditava, o pai certamente cederia quando visse o filho sob tortura. De um jeito ou de outro, os dois conduziriam os holandeses ao tesouro, e essa era a última coisa nesta terra que o Gavião queria que acontecesse.
Sua expressão grave quase se abriu num sorriso quando ele se deu conta da ironia de ser forçado a salvar Henry Courtney das atenções de João Lento. Porém, se quisesse o tesouro para si próprio, precisaria assegurar-se de que nem pai nem filho o conduzissem primeiro aos cabeças-de-queijo. O melhor lugar para Sir Francis era o patíbulo, e o melhor lugar para seu filhote era o calabouço sob as muralhas do castelo.
Dessa vez, não pôde impedir o sorriso que lhe subiu aos lábios ao pensar que, enquanto João Lento estivesse esfriando os ferros em brasa no sangue de Sir Francis, o Gull estaria voando de volta à lagoa do Elefante para desentocar aqueles sacos de guinéus e aquelas barras de ouro de qualquer que fosse a fresta ou greta em que ele as tivesse enfiado. Voltou o sorriso agora para van de Velde.
- Não, Excelência, eu lhe garanto que Francis Courtney é o único homem vivo que sabe onde o tesouro está. Ele pode parecer duro e falar com coragem, mas vai rolar de costas e abrir as coxas como uma meretriz a quem ofereceram um guinéu de ouro assim que João Lento começar a trabalhar com ele. Meu conselho é que mande Henry Courtney Para trabalhar no castelo e se concentre no pai para conduzi-lo ao butim.
- Ja! - concordou van de Velde. - Foi isso mesmo que pensei. Só queria que o senhor confirmasse o que eu já sabia. - Enfiou o último petisco na boca e falou, com voz enrolada: - Vamos voltar e encerrar o assunto então.
Os prisioneiros ainda esperavam em seus grilhões, abaixo do tablado, como bois nos varais, enquanto van de Velde se acomodava na cadeira novamente.
- O patíbulo e o cadafalso, esses são seus lugares naturais, porém são muito bons para você. Sentencio até o último homem a uma vida inteira de trabalhos forçados para a Companhia Holandesa das índias Orientais, contra a qual conspiraram para enganar e roubar, e cujos empregados sequestraram e maltrataram. Não pensem que é gentileza de minha parte ou fraqueza. Chegará um dia em que chorarão ao Todo-poderoso, a implorar pela morte fácil que lhes neguei no dia de hoje. Levem-nos e os ponham para trabalhar imediatamente. A vista deles ofende meus olhos e os de todos os homens honestos.
Conforme os prisioneiros eram tocados como rebanho para fora do salão, Katinka resmungou de frustração e fez um gesto de aborrecimento. Cumbrae inclinou-se para mais perto dela e perguntou:
- O que a aborrece, senhora?
- Receio que meu marido tenha cometido um engano. Deveria tê-los mandado para uma pira no campo. -Agora lhe seria negada a emoção de observar João Lento trabalhar no belo rapazinho e ouvir-lhe os gritos. Teria sido um desfecho profundamente satisfatório para aquele romance. O marido prometera isso a ela e agora a privava daquele prazer. Ela o faria sofrer por isso, decidiu.
- Ah, senhora, a vingança é mais bem saboreada como um cachimbo de bom fumo da Virgínia. Não engolida às pressas. A qualquer tempo, no futuro, quando a fantasia assomar, a senhora só precisará erguer os olhos para as muralhas do castelo e lá estarão eles, sendo consumidos lentamente pelo trabalho até a morte.
Hal passou perto de onde Sir Francis se sentava, no banco. O pai parecia abatido e doente, com os cabelos e a barba desgrenhados e sombras negras sob os olhos, num pavoroso contraste com a pele pálida. Hal não conseguiu suportar e gritou, de repente:
- Papai!
Teria corrido para ele se o sargento Manseer não se antecipasse e desse um passo à frente com a longa vara na mão direita. Hal recuou.
Sir Francis não ergueu os olhos, e Hal percebeu que ele lhe enviara o seu adeus e se recolhera para aquele território distante onde apenas João Lento seria capaz de alcançá-lo.
Quando a fila de condenados deixou o salão e as portas foram fechadas atrás deles, instalou-se um profundo silêncio no recinto e cada olhar pousou na figura solitária no banco.
- Francis Courtney - exclamou van de Velde, alto e bom som -, levante-se e dê um passo adiante.
Sir Francis jogou a cabeça para trás, tirando os cabelos grisalhos dos olhos. Livrou-se das mãos dos guardas e ergueu-se nos pés sem ajuda. Conservou a cabeça erguida enquanto caminhava para o tablado e sua camisa rasgada dançava em torno de suas costas nuas. Os golpes de vara tinham começado a secar em feridas de crostas negras.
- Francis Courtney, não é por acaso, tenho certeza, que você ostenta o mesmo nome cristão daquele que é o mais notório de todos os piratas, o patife Francis Drake.
- Tenho a honra de ter sido nomeado pelo famoso homem do mar - disse Sir Francis, com suavidade.
- Então, eu tenho a honra ainda maior de passar a sentença contra você. Eu o sentencio à morte. - Van de Velde esperou que Sir Francis demonstrasse alguma emoção, porém este o encarou sem qualquer expressão. Por fim, o governador foi forçado a prosseguir. - Eu repito, sua sentença é a morte, porém como morrerá será de sua própria escolha. - Abrupta e inesperadamente deixou escapar uma gargalhada bem-humorada. - Não há muitos patifes de seu calibre que sejam tratados com tamanha benemerência e condescendência.
- Com sua permissão, devo conter qualquer expressão de gratidão antes de ouvir o resto de seu veredicto - murmurou Sir Francis, e van de Velde parou de rir.
- Nem toda a carga do Standvastigheid foi recuperada. De longe, a porção mais valiosa ainda está desaparecida e não há dúvida em minha mente de que você foi capaz de escondê-la antes que fosse capturado pelas tropas da honorável companhia. Está preparado para revelar o esconderijo da carga desaparecida para os oficiais da Companhia? Nesse caso, sua execução será por uma decapitação rápida e limpa.
- Não tenho nada a lhe dizer - disse Sir Francis, num tom desinteressado.
- Então, receio que será interrogado sobre a mesma questão sob extrema compulsão pelo carrasco do estado. - Van de Velde estalou os lábios suavemente, como se as palavras soubessem bem à sua língua. -. Caso responda a tudo plenamente e sem reservas, o machado do executor porá um fim a seu sofrimento. Caso continue obstinado, o interrogatório prosseguirá. A qualquer momento, a escolha permanecerá sua.
- Vossa Excelência é um paradigma de misericórdia - Sir Francis inclinou a cabeça, numa reverência -, mas eu não posso responder à pergunta porque não sei nada da carga de que está falando.
- Então, que Deus Todo-poderoso tenha misericórdia de sua alma - disse van de Velde, e voltou-se para o sargento Manseer. - Leve embora o prisioneiro e entregue-o ao encargo do carrasco do estado.
Hal equilibrou-se no alto do andaime na muralha inacabada do bastião leste do castelo. Aquele era apenas o segundo dia dos trabalhos que deveriam durar pelo resto de sua vida natural, e já as palmas de suas mãos e ambos os ombros estavam ralados pelas cordas e os blocos rústicos de pedra. Uma das pontas de seus dedos fora prensada, e a unha tinha a cor de uma uva roxa. Cada bloco de alvenaria pesava uma tonelada ou mais e tinha de ser levado a mão para cima pelo andaime inseguro, feito de bambu e pranchas.
Na turma de condenados que trabalhava com ele estavam Daniel Grande e Ned Tyler, nenhum dos quais se recuperara plenamente dos ferimentos. As marcas eram fáceis de ver, pois todos vestiam apenas calções de lona rasgada.
A bala de mosquete deixara uma cratera funda e de um roxo escuro no peito de Daniel, e uma presa de leão cruzava por suas costas, onde Hal tivera de cortá-lo. As crostas em cima das feridas haviam se rompido com o esforço, fazendo minar uma linfa tingida de sangue.
O ferimento de espada subia como uma videira vermelha pela coxa de Ned, e ele mancava acentuadamente conforme se movimentava no andaime. Depois das privações no convés dos escravos do Gull, estavam todos despojados do último grama de gordura. Pareciam magros como cães de caça, e os músculos fibrosos e os ossos saltavam claramente por baixo da pele avermelhada pelo sol.
Embora o sol ainda brilhasse com força, o vento do inverno soprava de noroeste e parecia raspar seus corpos como vidro moído. Em conjunto, puxavam a ponta da pesada corda de cânhamo, e as roldanas gemiam em seus suportes conforme a grande laje de pedra amarela se erguia da carroça lá embaixo e começava a perigosa ascensão para a estrutura ao alto.
No dia anterior, um andaime no bastião sul desabara sob o peso das pedras e levara consigo três dos condenados que ali trabalhavam para a morte nos paralelepípedos, bem abaixo. Hugo Barnard, o supervisor, ao se postar sobre os três cadáveres esmagados, murmurara:
- Três pássaros com uma só pedra. O próximo bastardo descuidado que se matar será esmigalhado até virar papa - exclamou, e irrompeu numa gargalhada, rindo do próprio humor negro.
Daniel enrolou uma volta da ponta da corda no ombro bom e ancorou-a, enquanto o resto da turma segurava o bloco oscilante e o puxava para o cavalete. Manejaram para enfiá-lo na abertura no topo da muralha, com o pedreiro holandês, com seu avental de couro, a gritar instruções.
Recuaram ofegantes depois de ter colocado a laje no lugar, cada músculo do corpo a doer e tremer pelo esforço, porém não havia tempo para descansar. Do pátio abaixo, Hugo Barnard já gritava:
- Baixem essa prancha para cá. E depressa com isso, ou subirei e lhes darei um toque de persuasão. - E agitou as tiras de couro cheias de nós de seu chicote.
Daniel espiou pela beirada do andaime. De súbito, retesou-se e olhou por sobre o ombro para Hal.
- Lá vão Aboli e os outros rapazes.
Hal postou-se ao lado dele e olhou para baixo. Da porta da masmorra, emergia uma pequena procissão. Os quatro prisioneiros negros eram conduzidos para fora, para o sol hibernal. Mais uma vez usavam grilhões leves.
- Olhe para aqueles bastardos felizardos - resmungou Ned Tyler. Os negros não haviam sido incluídos nas turmas de trabalho, porém tinham ficado no calabouço, descansando e recebendo comida extra a cada dia para engordá-los enquanto esperavam para ir à leilão. Naquela manhã, Manseer ordenara aos quatro que ficassem nus. Depois, o Dr. Saar, o médico da companhia, descera até a cela e os examinara, inspecionando-os e espiando em seus ouvidos e bocas para avaliar o estado de saúde de cada um. Quando o médico se fora, Manseer ordenara que se untassem com o óleo de uma jarra de pedra.
Agora, suas peles brilhavam ao sol como ébano polido. Embora ainda estivessem magros e bem chupados pela estada a bordo do Gull, a cobertura de óleo os fazia parecer lustrosos espécimes humanos da melhor qualidade. Foram conduzidos pelos portões do castelo para o campo, onde uma multidão já se aglomerava.
Antes de passar pelos portões, Aboli ergueu a grande cabeça redonda e olhou para Hal, no andaime ao alto. Por um instante, seus olhos se encontraram. Não foi preciso que nenhum dos dois gritasse uma mensagem, arriscando-se a ser cortado de vara pelos guardas, e Aboli avançou em seguida sem olhar para trás.
O recinto do leilão era uma estrutura temporária que, em outras ocasiões, era usada como um patíbulo sobre o qual os cadáveres dos criminosos executados ficavam em exibição ao público. Os quatro homens foram alinhados na plataforma, e o Dr. Saar subiu com eles e se dirigiu à multidão:
- Examinei todos os quatros escravos que serão vendidos em leilão no dia de hoje - exclamou, baixando a cabeça para olhar por cima dos óculos. - Asseguro que todos gozam de boa saúde. Seus olhos e dentes são saudáveis e eles são robustos de membros e corpos.
A multidão mostrava um ânimo festivo. Todos bateram palmas diante do anúncio do doutor e lhe deram um viva irónico quando ele desceu da plataforma e correu de volta para os portões do castelo.
Jacobus Hop deu um passo à frente e ergueu a mão, pedindo silêncio. Então, leu a proclamação de venda, com a multidão a remedá-lo e imitá-lo a cada vez que gaguejava.
- Por ordem de Sua Excelência, o governador desta colónia da honorável Companhia Holandesa das índias Orientais, estou autorizado a oferecer para venda, pelo mais alto lance, quatro negros escravos...
Interrompeu-se e tirou o chapéu respeitosamente quando a carruagem aberta do governador desceu a avenida, vinda da residência, passando pelos jardins e rumando para o campo, puxada por seis lustrosos cavalos cinzentos. Lorde Cumbrae e a esposa do governador sentavam-se lado a lado nos bancos de couro, e o coronel Schreuder sentava-se do lado oposto.
A multidão abriu-se para deixar que a carruagem se aproximasse da plataforma, ao pé da qual Fredricus, o cocheiro, puxou as rédeas e acionou o breque de mão. Nenhum dos passageiros desceu. Katinka acomodou-se com elegância no assento, a rodar a sombrinha, enquanto continuava a conversar animadamente com os dois homens.
Na plataforma, Hop fora tomado de confusão pela chegada daqueles ilustres visitantes. Ruborizado, ficou a tartamudear e pestanejar ao sol até que Schreuder gritou, impaciente.
- Vamos com isso, homem! Não viemos aqui para vê-lo revirar os olhos e ficar embasbacado.
Hop colocou o chapéu na cabeça e fez uma mesura, primeiro para Schreuder e depois para Katinka. Ergueu a voz:
- O primeiro do lote é o escravo Aboli. Tem cerca de trinta anos e acredita-se que seja membro da tribo Qwanda, da costa leste da África. Como estão cientes, os negros Qwanda são muito apreciados como escravos de campo e pastores. Poderia também ser treinado para ser um excelente condutor de carroças ou cocheiro. - Parou para enxugar a face suada e ajeitar a língua presa, e, em seguida, continuou: - Aboli é tido como um experiente caçador e pescador. Poderia proporcionar uma boa renda para seu proprietário em qualquer dessas ocupações.
- Mijnheer Hop, está escondendo alguma coisa de nós? - exclamou Katinka, e Hop mais uma vez foi tomado de confusão pela pergunta. Sua gagueira tornou-se tão agonizante que ele mal conseguia formular as palavras.
- Reverenciada senhora, mui estimada dama - ele abriu as mãos, impotente -, eu asseguro...
- Iria oferecer à venda um touro vestido? - indagou Katinka. - Espera que façamos lance por algo que não podemos ver?
Ao entender o significado das palavras de Katinka, a face de Hop clareou e ele se voltou para Aboli.
- Dispa-se - ordenou, em voz alta, para ganhar coragem ao encarar o enorme selvagem.
Por um momento, Aboli fitou-o sem se mover, e, depois, desdenhosamente, soltou o nó da tanga e deixou-a cair nas pranchas a seus pés.
Nu e magnífico, ele olhou por sobre as cabeças, para a montanha com tampo de mesa. Houve um sibilante tomar de fôlego por parte da multidão abaixo. Uma das mulheres soltou um gritinho histérico, e outra caiu numa risadinha nervosa, porém ninguém desviou os olhos.
- Nossa! - Cumbrae rompeu a pausa prenhe de lascívia com uma gargalhada. - O comprador fará um bom negócio. Não há contrapeso naquela carga de chouriço. Quinhentos guinéus!
- Cem mais! - gritou Katinka.
O Gavião relanceou os olhos para ela e falou pelo canto da boca:
- Eu não sabia que pretendia dar lances, senhora.
- Terei aquele escravo a qualquer preço, meu senhor - avisou ela, com doçura -, pois ele me diverte.
- Eu não ficaria no caminho de uma bela dama. - O Gavião inclinou a cabeça, numa mesura. - Porém, não vai dar lances contra mim pelos outros três, vai?
- É uma barganha, meu senhor. - Katinka sorriu. -Aquele é meu, pode ficar com os outros.
Cumbrae cruzou os braços no peito e meneou a cabeça quando Hop olhou para ele, à espera que aumentasse o lance.
- Um preço alto demais para minha digestão - disse, e Hop procurou em vão por outro comprador, no resto da multidão.
Ninguém era estúpido o bastante para se opor à mulher do governador. Tinham visto recentemente um vislumbre do temperamento de Sua Excelência no julgamento público.
-- O escravo Aboli é vendido para Mevrouw van de Velde pela soma de seiscentos guinéus - cantou Hop inclinando-se numa reverência na direção da carruagem. - Quer que os grilhões sejam tirados, Mevrouw?
Katinka riu.
- E vê-lo fugir para as montanhas? Não, Mijnheer, esses soldados o escoltarão até o alojamento dos escravos, na residência. - Relanceou os olhos para Schreuder, que deu uma ordem a um destacamento de gibões-verdes que aguardavam sob as ordens de um cabo, à beira da multidão.
Eles abriram caminho às cotoveladas para a frente, puxaram Aboli para baixo da plataforma e o conduziram pela avenida, rumo à residência.
Katinka ficou a observá-lo ir. Então, cutucou o ombro do Gavião com um dedo.
- Obrigada, meu senhor.
- O próximo do lote é o escravo Jiri - disse-lhes Hop, lendo suas anotações. - E, como podem ver, outro belo e forte espécime...
- Quinhentos guinéus! - trovejou o Gavião, e olhou feio para os outros compradores, como que os intimidando. Porém, sem a esposa do governador para competir, os burgueses da colónia se sentiram mais corajosos.
- E mais cem! - berrou um mercador da cidade.
- E cem mais! - gritou um carroceiro com uma jaqueta de pele de leopardo.
Os lances alcançaram rapidamente mil e quinhentos guinéus, só com o carroceiro e Cumbrae no páreo.
- Maldição e praga de sujeito estúpido! - resmungou Cumbrae, e virou a cabeça para lançar um olhar por sobre o ombro para seu contramestre, que, junto com três de seus marujos, encostava-se indolentemente na roda traseira da carruagem. Sam Bowles fez um gesto de concordância e seus olhos luziram. Com seus homens na retaguarda, ele se esgueirou pela aglomeração até se postar atrás do carroceiro.
- Mil e seiscentos guinéus - rugiu o Gavião -, e maldito seja você!
O carroceiro abriu a boca para cobrir o lance e sentiu alguma coisa picá-lo sob as costelas. Olhou para baixo, para a faca no punho fechado de Sam Bowles, cerrou a boca e ficou pálido como cera.
- O lance é contra o senhor, Mijnheer Tromp! - gritou Hop, mas o carroceiro escafedeu-se do campo, de volta à cidade.
Kimatti e Matesi foram ambos arrematados pelo Gavião por bem menos que mil guinéus cada um. Os outros compradores potenciais na multidão tinham visto o pequeno drama entre Sam e o carroceiro, e nenhum deles mostrou mais qualquer interesse em oferecer lances contra Cumbrae.
Os três escravos foram arrastados pelo grupo de Sam Bowles em direção à praia. Quando Matesi lutou para escapar, um violento golpe em seu crânio com um arpão aquietou-o, e, com seus companheiros, ele foi jogado no escaler e levado até onde o Gull jazia ancorado, à beira dos baixios.
- Uma expedição bem-sucedida para ambos de nós, meu senhor. - Katinka sorriu para o Gavião. - Para celebrar nossas aquisições, espero que possa jantar conosco na residência esta noite.
- Nada me daria maior prazer, mas, ai de mim, senhora, eu estava me demorando aqui apenas pela venda e pela oportunidade de conseguir uns poucos marujos de excelente qualidade. Agora, meu navio está pronto na baía, e o vento e a maré vão me levar para longe.
- Sentiremos sua falta, meu senhor. Sua companhia foi muito divertida. Espero que venha nos visitar e que fique um pouco mais de tempo da próxima vez que rodear o cabo da Boa Esperança.
- Não há nenhum poder nesta terra, nenhuma tempestade, vento ruim ou inimigo que possa me impedir de fazer isso - disse Cumbrae, e beijou-lhe a mão.
Cornélius Schreuder fechou o cenho: não conseguia suportar ver outro homem encostar um dedo naquela mulher que começava a regular toda a sua existência.
Assim que os pés do Gavião tocaram o tombadilho do Gull, ele gritou para o leme: - Geordie, meu rapaz, prepare-se para recolher âncora e se pôr a caminho.
Então, cantarolou para Sam Bowles.
- Quero os três negros no convés de popa, e depressa. - Quando foram postados à sua frente, ele os examinou com cuidado. - Será que uma das três belezas pagãs fala a própria língua de Deus? - perguntou, e eles o fitaram com ar alheado. - Então, é apenas a sua linguagem ignorante não é? - Balançou a cabeça com tristeza. - Isso torna minha vida muito mais difícil.
- Peço desculpas - Sam Bowles tocou obsequiosamente o gorro de Monmouth -, mas eu os conheço bem, todos três. Fomos companheiros juntos, sim, fomos. Estão querendo que o senhor faça papel de bobo. Todos três falam um bom inglês.
Cumbrae sorriu para eles com um brilho assassino nos olhos.
- Vocês pertencem a mim agora, meus queridinhos, do cocuruto de suas cabeças felpudas até as solas rosadas de seus pés chatos. Se quiserem manter o costado preto numa só peça, não brinquem comigo outra vez, ouviram? - E, com um giro do enorme punho cabeludo, fez Jiri estatelar-se no convés. - Quando eu falar com vocês, responderão em claro e bom som com doces palavras inglesas. Vamos voltar à lagoa do Elefante, e, para o bem de sua saúde, vocês irão me mostrar onde o capitão Franky escondeu o tesouro. Estão me ouvindo?
Jiri voltou a ficar de pé.
- Sim, capitão, meu senhor! Nós ouvimos. O senhor é nosso pai.
- Eu iria preferir arrancar meu próprio saco com uma espada cega a ser pai de gente como vocês! - O Gavião sorriu para eles. - Agora, subam na verga principal para puxar os panos nela. - E mandou Jiri voando para a frente com um chute no traseiro.
Katinka sentava-se ao sol, num canto protegido do terraço, fora do vento, com Cornélius Schreuder a seu lado. No aparador, Sukeena serviu ela mesma o vinho e levou os dois cálices para a mesa de lanche, com decoração de frutas e flores dos jardins de João Lento. Colocou a taça alta com haste em espiral na frente de Katinka, que estendeu a mão e acariciou-lhe o braço levemente.
- Mandou buscar o novo escravo? - perguntou, com um ronronar na voz.
- Aboli está sendo banhado e vestido com um uniforme, como ordenou, patroa - respondeu Sukeena com suavidade, como se alheia ao toque da outra mulher. Contudo, Schreuder viu o gesto, e divertiu Katinka observá-lo franzir o cenho de ciúmes.
Ela ergueu o cálice e sorriu por sobre a borda.
- Devemos beber por uma rápida viagem para lorde Cumbrae?
- Naturalmente. - O coronel ergueu a taça. - Uma curta e rápida viagem ao fundo do oceano para ele e todos os seus compatriotas.
- Meu caro coronel - ela sorriu -, tão espirituoso. Mas, ora, eis que chega meu novo brinquedo.
Dois gibões-verdes do castelo escoltavam Aboli para o terraço. Ele estava vestido com um par de calças pretas justas e uma camisa branca de corte amplo para conter seu peito largo e os braços musculosos. Parou em silêncio diante dela.
Katinka mudou a fala para o inglês.
- No futuro, irá se inclinar numa reverência quando estiver em minha presença e se dirigirá a mim como patroa, e, se esquecer, pedirei a João Lento que o lembre. Sabe quem é João Lento?
- Sim, patroa - resmungou Aboli, sem olhar para ela.
- Oh, ótimo. Pensei que pudesse se mostrar maçante e eu tivesse de dobrá-lo e domá-lo. Isso torna as coisas mais fáceis para ambos. - Tomou um gole de vinho e depois o examinou detidamente, com a cabeça pendida para o lado. - Eu o comprei num impulso e não decidi ainda o que farei com você. Contudo, o governador Kleinhans levará seu cocheiro para casa quando partir. Precisarei de um novo cocheiro. - Voltou-se para o coronel Schreuder. - Ouvi dizer que esses negros são bons com animais. E o que lhe diz a experiência também, coronel?
- Realmente, Mevrouw. Sendo eles próprios animais, parecem ter uma conexão com todos os bichos selvagens e domésticos - concordou Schreuder e, então estudou Aboli sem pressa. - Ele é um belo espécime físico, porém, é claro, não se deve buscar inteligência neles. Eu a congratulo pela compra.
- Mais tarde, posso cruzá-lo com Sukeena - murmurou Katinka. A escrava continuou imóvel, mas suas costas estavam voltadas, de maneira que não lhe puderam ver a face. - Seria divertido ver como o sangue negro se mistura com o amarelo.
- Uma mistura muito interessante - concordou Schreuder. - Porém, não está preocupada com a possibilidade de que escape? Vi-o lutar no tombadilho do Standvastigheid, e ele é um selvagem truculento. Uma perna de ferro poderia ser um traje adequado para ele, pelo menos até que tenha sido dobrado.
- Não creio que eu precise chegar a esses extremos - disse Katinka. - Pude observá-lo bem durante meu cativeiro. Como um cão fiel, ele é devotado ao pirata Courtney e ainda mais a seu filhote. Creio que não tentará escapar enquanto algum deles estiver vivo nas masmorras do castelo. Claro, será trancado nos alojamentos dos escravos à noite com eles, porém, durante as horas de trabalho, terá permissão para se movimentar livremente para atender a seus deveres.
- Tenho certeza de que sabe o que faz, Mevrouw. Eu, no entanto, não confiaria numa tal criatura - avisou-a Schreuder.
Katinka voltou-se para Sukeena.
- Arranjei com o governador Kleinhans para que Fredricus ensine a Aboli seus deveres como cocheiro e lacaio. O Standvastigheid não zarpará em menos de dez dias. Isso é tempo suficiente. Providencie tudo imediatamente.
Sukeena fez uma graciosa mesura oriental.
- Como a senhora ordenar - disse, e fez um gesto a Aboli para que a seguisse.
Caminhou adiante dele pela trilha para os estábulos, onde Fredricus estacionara o coche, e Aboli se recordou da postura e dos modos das jovens virgens de sua própria tribo. Quando garotinhas, eram treinadas pelas mães a carregar bilhas de água equilibradas nas cabeças. Suas costas ficavam eretas e elas pareciam deslizar pelo chão, como fazia aquela moça.
- Seu irmão, Althuda, lhe manda seu coração. Diz que você ainda é sua orquídea tigrina.
Sukeena parou tão de repente, que Aboli, caminhando atrás, quase se chocou com ela. Ela parecia um beija-flor assustado, empoleirado numa flor de prótea, pronto para voar. Quando se moveu novamente, Aboli percebeu que ela tremia.
- Viu meu irmão? - perguntou, sem voltar a cabeça para encará-lo.
- Nunca lhe vi a face, mas ele fala pela porta da cela onde está. Disse que o nome de sua mãe era Ashreth e que o broche de jade que você usa foi dado à sua mãe por seu pai no dia de seu nascimento. Disse que, se eu lhe contasse essas coisas, você saberia que sou amigo dele.
- Se ele confiou em você, então eu também confio. Eu também serei sua amiga, Aboli.
- E eu serei seu - retrucou Aboli, baixinho.
- Oh, por favor, me conte, como está Althuda? - pediu ela. - Eles o machucaram muito? Entregaram-no a João Lento?
- Althuda está intrigado. Eles não o condenaram ainda. Está nas masmorras faz longos meses e não o maltrataram.
- Ergo meus agradecimentos a Alá! - Sukeena voltou-se e sorriu para ele, a face adorável como a orquídea tigrina à qual Althuda a comparara. - Eu tinha alguma influência com o ex-governador Kleinhans. Consegui persuadi-lo a retardar o julgamento de meu irmão. Porém, agora que ele está de partida, não sei o que acontecerá daqui para a frente. Meu pobre Althuda, tão jovem e tão corajoso. Se o entregarem a João Lento, meu coração morrerá com ele devagar e penosamente.
- Há uma pessoa que eu amo como você ama seu irmão - resmungou Aboli, baixinho. - Os dois partilham o mesmo calabouço.
- Creio que conheço a pessoa de quem fala. Acho que o vi no dia em que os trouxeram para terra em grilhões e os fizeram marchar pelo passeio. Não é um empertigado e orgulhoso como um jovem príncipe?
- Esse mesmo. Como seu irmão, ele merece ser livre.
De novo, os pés de Sukeena vacilaram, mas então ela continuou em frente.
- O que estava dizendo, Aboli, meu amigo?
- Você e eu juntos. Podemos trabalhar para colocá-los em liberdade.
- É possível? - murmurou ela.
- Althuda um dia se libertou. Quebrou suas peias e voou a grande altura, como um falcão. - Aboli ergueu os olhos para o dolorido céu africano. - Com nossa ajuda, ele pode ser livre novamente, e Gundwane com ele.
Chegaram ao estábulo, e Fredricus levantou-se do assento da carruagem. Olhou para Aboli, e seus lábios se curvaram para exibir dentes manchados de marrom de tanto mascar tabaco.
- Como pode um macaco preto aprender a dirigir meu coche e meus seis queridinhos? - perguntou para o nada.
- Fredricus é um inimigo. Não confie nele. - Os lábios de Sukeena mal se moveram quando ela alertou Aboli. - Não confie em ninguém nesta casa até podermos conversar de novo.
Assim como os escravos da casa e a maioria do mobiliário da residência, Katinka comprara de Kleinhans todos os cavalos do plantel e o conteúdo do quarto de equipagem. Dera-lhe uma ordem de pagamento para seus banqueiros em Amsterdã. Era uma grande soma, porém ela sabia que o pai cobriria qualquer falta de fundos.
O mais belo de todos os cavalos era uma égua baia, um animal soberbo com pernas fortes e graciosas e uma lindíssima cabeça bem conformada. Katinka era uma perita amazona, porém não tinha nenhum sentimento ou amor pela criatura sob ela, e suas mãos esguias e pálidas eram fortes e cruéis. Cavalgava com um freio espanhol que machucava horrivelmente a boca da égua, e seu uso do chicote era brutal. Quando tivesse arruinado uma boca, sempre poderia vender o animal e comprar outro.
A despeito dessas falhas, era destemida, e seu estilo era impecável. Quando a égua dançava sob ela e sacudia a cabeça contra a agonia do chicote e do freio, Katinka continuava com facilidade na sela e parecia maravilhosamente elegante. Agora, forçava a égua à plena extensão do passo e esforço, a voar pela trilha íngreme, usando o chicote quando o animal falseava ou quando parecia que fosse se recusar a saltar uma árvore caída que bloqueava o caminho.
O cavalo deitava espuma, ensopado de suor como se tivesse mergulhado dentro de um rio. A baba que escorria de sua boca ofegante tingia-se de rosa de sangue arrancado pelo aço da borda da brida. Espirrava nas botas e nas saias de Katinka, que ria de um modo selvagem conforme galopavam para a depressão da montanha. Ela olhou para trás, por sobre o ombro. Schreuder estava a cinquenta corpos ou mais de distância: viera por outro caminho para encontrá-la em segredo. Seu garanhão negro se esforçava heroicamente sob o peso do coronel, e embora Schreuder usasse o chicote livremente, sua montaria não conseguia se equiparar à égua.
Katinka não parou na depressão, e, com chicote e a espora fina como agulha por baixo do traje de montaria, incitou a égua para a frente e a fez descer uma colina abrupta. Ali, uma queda seria desastrosa, pois o terreno era traiçoeiro e a égua voava. O perigo excitou Katinka. Ela se deliciava com a sensação do poderoso corpo sob o seu e com o couro da sela a bater contras suas coxas suadas e as nádegas.
Desceram resvalando pela colina íngreme e irromperam numa clareira aberta ao lado de um riacho. Ela correu em paralelo com o curso d'água por uma meia légua, mas quando chegou a um bosquete escondido de árvores cor de prata, puxou as rédeas em uma dúzia de estocadas, reduzindo o pleno galope a uma total parada.
Desenroscou a perna de sobre o arção da sela e, num voluteio de saias e anáguas de renda, deslizou com leveza para o chão. Aterrissou como um gato, e enquanto a égua resfolegava como o fole de um ferreiro e dançava nos pés de exaustão, ela se postou de punhos nos quadris, a observar Schreuder, que descia a colina.
Ele chegou à clareira e galopou até onde ela estava. Tinha a face tingida de raiva. Desceu num salto.
- Isso foi loucura, Mevrouw - gritou. - Podia ter caído!
- Mas eu nunca caí, coronel. - Katinka riu na cara dele. - Não, a menos alguém me leve a isso. - Estendeu a mão de repente e enlaçou os dois braços em torno do pescoço de Schreuder. Como uma lampreia, grudou-se aos lábios dele, sugando tão forte que lhe chupou a língua para dentro da própria boca.
Conforme ele a apertava entre os braços, Katinka mordeu-lhe o lábio inferior com força o bastante para arrancar sangue, e saboreou o gosto metálico com a língua. Quando ele rosnou de dor, ela rompeu o abraço e, erguendo as saias, correu pela margem do riacho.
- Pela doce Maria, você pagará caro por isso, seu pequeno demónio! - Ele passou a mão pela boca, e quando viu a mancha de sangue na palma, correu atrás dela.
Naqueles últimos dias, Katinka brincara com ele, impelindo-o para as fronteiras da sanidade, prometendo e depois recuando, provocando e então se esquivando, fria como o vento norte num momento e, em seguida, quente como o sol tropical ao meio-dia. Ele estava aturdido e confuso de luxúria e ansiedade, mas seu desejo a contagiara. Ao atormentá-lo, ela se instigara com a mesma força e ardor. Desejava-o agora quase tanto quanto ele a ela. Queria senti-lo enterrado fundo dentro do corpo, tinha de fazê-lo apagar o incêndio que ela própria acendera nas entranhas. Chegara o momento em que não poderia esperar mais.
Ele alcançou-a, e ela se esquivou. Com as costas contra as árvores de folhas prateadas, encarou-o como uma corça encurralada pelos cães. Viu a raiva tornar os olhos de Schreuder opacos como o mármore. Ele tinha a face inchada e avermelhada, os lábios repuxados a expor os dentes cerrados.
Com um arrepio de terror verdadeiro, ela se deu conta de que aquela raiva para o qual o impelira era um tipo de loucura sobre a qual o coronel não tinha controle. Ela sabia que estava em perigo de vida, e,
sabendo disso, sua própria lascívia transbordou de suas margens como um rio poderoso em plena enchente.
Lançou-se sobre ele e com ambas as mãos agarrou-lhe os laços das calças.
- Quer me matar, não quer?
- Sua cadela - bufou ele, e cerrou as mãos em torno da garganta de Katinka. - Sua vagabunda. Não posso aguentar mais. Eu a farei...
Katinka puxou-lhe o membro para fora pela abertura das calças, duro e grosso, inchado e vermelho, e tão quente que pareceu lhe queimar os dedos.
- Mate-me com isto, então. Enfie-o dentro de mim tão fundo até que espete meu coração. - Inclinou-se para trás sobre a casca rija da árvore e plantou os pés bem separados. Ele ergueu-lhe as saias, e, com ambas as mãos, Katinka o guiou para dentro de si.
Conforme ele investia e se espremia furiosamente contra ela, a árvore em que se apoiavam sacudia como se um vendaval a atingisse. As folhas prateadas choviam sobre eles, luzindo como moedas recém-polidas a girar e volutear ao sol. Ao chegar ao clímax, Katinka se pôs a gritar, e os ecos ressoaram ao longo dos penhascos amarelos, acima deles.
Katinka desceu da montanha como uma fúria, cavalgando nas asas do noroeste que começava a soprar subitamente do ensolarado céu de inverno. Seus cabelos soltaram-se, livres do chapéu, e esvoaçavam como uma bandeira brilhante a flutuar e se embaraçar ao vento. A égua corria como se perseguida por leões. Quando chegou aos vinhedos no alto da colina, Katinka desviou-a para a muralha de pedra e cavalgou por ali, a planar tal qual um falcão.
Galopou pelos pomares até o estábulo. João Lento voltou-se para vê-la passar. As verduras que ele cultivava eram desenraizadas, reviradas e pisoteadas sob as patas voadoras da égua. Quando ela se afastou, João Lento abaixou-se e pegou um broto despedaçado. Levou-o até a boca e mordeu-o de leve, provando o sumo doce. Não sentiu nenhum ressentimento. As plantas que cultivava eram feitas para serem cortadas e destruídas, assim como o homem nasce para morrer. Para João Lento, apenas a maneira de morrer tinha significado. Olhou para a égua e para sua condutora e sentiu a mesma reverência e admiração respeitosa que sempre o dominava no momento em que libertava um de seus pequenos pardais dessa existência mortal. Pensava em todas as almas condenadas que morriam sob suas mãos como seus pequenos pardais. Da primeira vez que pusera os olhos em Katinka van de Velde, caíra completamente dominado pelo feitiço que emanava dela. Sentira que tinha esperado durante a vida toda por aquela mulher. Reconhecera nela aquelas qualidades místicas que lhe ditavam a própria existência, porém, comparado a ela, ele sabia que era uma coisa rastejando no limo primevo.
Ela era uma deusa cruel e intocável, e ele a venerava. E assim, era como se aquelas plantas destroçadas que ele segurava nas mãos fossem um sacrifício para essa deusa. Como se ele as tivesse depositado em seu altar e ela as tivesse aceitado. Estava comovido a ponto das lágrimas pela sua condescendência. Pestanejou aqueles estranhos olhos amarelos e, por uma vez, eles espelharam a emoção que sentia.
- Ordene - murmurou ele. - Não há nada que eu não faria por você.
Katinka incitou a égua a pleno galope pelo caminho até as portas da frente da residência e saltou de seu lombo antes que o animal parasse de todo.
Nem lançou um olhar para Aboli quando este desceu do terraço, pegou as rédeas e levou a égua para o estábulo.
Ele falou gentilmente com o animal na linguagem das florestas.
- Ela a fez sangrar, garota, mas Aboli vai curar sua ferida. - No quintal, ele desafivelou a cilha e enxugou o suor fumegante da égua, caminhando com ela em lentos círculos e depois lhe dando de beber antes de conduzi-la à baia. - Veja onde o chicote e a brida a cortaram. Ela é uma bruxa - murmurou ele, conforme untava com unguento os cantos rasgados e machucados da boca do animal. - Mas Aboli está aqui agora para protegê-la e cuidá-la.
Katinka atravessou os aposentos da residência, cantarolando baixinho para si mesma, a face iluminada com o brilho tardio da paixão. No quarto, chamou por Zelda, e então, sem esperar que a velha chegasse, arrancou as roupas e deixou-as cair num monte no chão. O ar de inverno que entrava pelas venezianas era frio em seu corpo, que estava úmido com o suor e os sucos do ato sexual. Seus pálidos mamilos rosados eriçaram-se em halos de arrepios, e ela gritou novamente:
- Zelda, onde está você? - Quando a criada chegou correndo ao quarto, ela a confrontou: - Pelo doce Jesus, onde esteve, sua velha Preguiçosa? Feche aquelas venezianas! Meu banho está pronto, ou você ficou cochilando de novo na frente do fogo? - Contudo, faltavam a suas palavras o veneno habitual, e quando ela se recostou nas águas fumegantes e perfumadas de sua banheira de cerâmica, que fora retirada da cabine de popa do galeão, sorria calorosa e secretamente para si mesma.
Zelda rodeou a banheira, erguendo os fartos cachos dos cabelos da patroa para longe da espuma cheirosa e prendendo-os no alto da cabeça, para depois lhe ensaboar os ombros com um pano.
- Não me amole assim! Deixe-me em paz por um momento! --ordenou Katinka imperiosamente, e Zelda deixou cair o pano e afastou-se da banheira.
Katinka ficou recostada por algum tempo, cantarolando para si mesma e erguendo um pé de cada vez para inspecionar os tornozelos delicados e os dedinhos rosados. Então, um movimento no espelho embaçado de vapor chamou-lhe a atenção, e ela sentou-se ereta e com um olhar incrédulo. Levantou-se depressa e saiu da banheira, enrolou uma toalha em torno dos ombros para conter as gotas que escorriam por seu corpo e seguiu para a porta do quarto.
O que vira no espelho fora Zelda recolhendo as roupas sujas de onde as deixara no chão. A velha agora tinha as peças íntimas de Katinka nas mãos e examinava as manchas que havia nelas. Enquanto Katinka observava, ela levou o pano até o rosto e cheirou-o, como uma velha cadela a farejar a entrada de uma toca de coelho.
- Gosta do cheiro do creme de um homem adulto, não gosta? - perguntou Katinka, com frieza.
Ao som da voz, Zelda virou-se para encará-la. Escondeu a roupa atrás das costas e suas faces ficaram pálidas como cinza, enquanto ela gaguejava coisas incoerentes.
- Sua velha vaca ressecada, quando foi a última vez que sentiu o cheiro disso? - perguntou Katinka.
Deixou cair a toalha e avançou pelo quarto, esguia e sinuosa como uma cobra ereta, e com o olhar gélido e venenoso. Seu chicote de montaria estava onde o deixara, e ela o apanhou ao passar.
Zelda recuou.
- Patroa - gemeu -, eu estava preocupada apenas que suas belas coisas pudessem estar estragadas.
- Você estava cheirando isso como uma velha porca gorda fareja uma trufa - disse-lhe Katinka, e seu braço com o chicote se ergueu.
O relho apanhou Zelda na boca. Ela gritou e caiu de costas na cama.
Katinka postou-se sobre ela, nua, e aplicou-lhe o chicote pelas costas, braços e pernas, em golpes fortes, e as camadas de gordura bamboleavam e tremiam no corpo da criada conforme o relho as atingia.
- Este é um prazer por longo tempo negado - berrou Katinka, a própria fúria a aumentar conforme a velha urrava e se retorcia na cama.
- Cresci cansada de seus modos de ladra e de glutona. Agora, você me revolta com esse lascivo trespasse em áreas íntimas de minha vida, sua velha dissimulada, bisbilhoteira e chorona.
- Patroa, está me matando!
- Que ótimo! Porém, se viver, estará a bordo do Standvastigheid quando ele zarpar para a Holanda, na próxima semana. Não posso mais suportar você ao meu redor. Eu a mandarei de volta na mais insignificante das cabines, sem um tostão de pensão. Pode passar o resto de seus dias num asilo. - Katinka ofegava penosamente agora, fazendo chover seus golpes sobre a cabeça e os ombros de Zelda.
- Por favor, patroa, a senhora não seria tão cruel com sua velha Zelda, que foi sua ama-de-leite quando a senhora era um bebê.
- A ideia de ter mamado nessas grandes tetas gordas me faz querer vomitar. - Katinka chicoteou-lhe os seios, e Zelda ganiu e cobriu o peito com ambas as mãos. - Quando for embora, vou mandar revistar sua bagagem para que não leve nada que tenha roubado de mim. Não haverá um único guinéu em sua bolsa, eu me certificarei disso. Sua bruxa velha, ladra e mentirosa.
A ameaça transformou Zelda de uma criatura patética e bajuladora numa mulher possessa. Seu braço se esticou, e o punho gordo agarrou o pulso de Katinka, que estava prestes a golpeá-la de novo. Zelda aper-tou-a com uma força que impressionou a patroa, e olhou para a face de Katinka com um ódio terrível.
- Não! - exclamou. - Você não tomará tudo o que tenho. Não vai me transformar em mendiga. Eu a servi por vinte e quatro anos, e você não vai me jogar fora agora. Partirei no galeão, sim, e nada me dará maior alegria que ver pela última vez sua venenosa beleza. Porém, quando eu me for, levarei comigo tudo o que possuo e, além disso, terei em minha bolsa os mil guinéus de ouro que você me dará como pensão.
Katinka estava tão aturdida que esqueceu a raiva, e a encarava com olhar incrédulo.
- Você delira como uma lunática. Mil guinéus? É mais provável que sejam mil lambadas de chicote.
Tentou livrar o braço, mas Zelda o apertou com uma força louca.
- Uma lunática, você diz! Porém, o que fará Sua Excelência quando eu lhe apresentar a prova de como você tem tido relações libidinosas com o coronel?
Katinka franziu a testa diante da ameaça e depois abaixou lentamente o braço do chicote. Sua mente corria, e uma centena de mistérios se desvendara conforme fitava os olhos de Zelda. Confiara naquela bruxa sem questionamento, nunca duvidando de sua completa lealdade, sem nem pensar sobre isso. Sabia agora como o marido sempre parecia ter conhecimento íntimo de seus amantes e de seu comportamento, que deveriam ser secretos.
Pensava com rapidez agora, a expressão impassível a mascarar o ultraje que sentia diante daquela traição. Pouco importava que o marido soubesse daquela nova aventura com Cornélius Schreuder. Seria simplesmente um aborrecimento, pois Katinka ainda não se cansara do coronel. As consequências seriam, é claro, mais sérias para o novo amante.
Olhando para trás, percebeu o quanto Petrus van de Velde poderia ser vingativo: todos os seus amantes tinham sofrido algum grave acidente assim que seu marido deles tomava conhecimento. Como ele sabia, sempre fora um mistério para Katinka, até aquele momento. Devia ter sido estúpida, porém jamais lhe ocorrera que Zelda fora a serpente que aninhara entre os seios.
- Zelda, errei com você - disse Katinka, com suavidade. - Não deveria tê-la tratado com tamanha dureza. - Estendeu a mão e afagou o feio vergão na face gorducha da criada. - Você foi gentil e fiel a mim durante todos estes anos, e é hora de seguir para uma feliz aposentadoria. Falei com raiva. Eu jamais sonharia em lhe negar o que você merece. Quando partir no galeão, levará não mil mas dois mil guinéus em sua bolsa, e meu amor e gratidão irão com você.
Zelda lambeu os lábios machucados e sorriu com malicioso triunfo.
- E tão gentil e boa comigo, minha doce patroa.
- Claro, você não dirá nada a meu marido sobre minhas pequenas indiscrições com o coronel Schreuder, dirá?
- Eu a amo demais para lhe causar mal, e meu coração se partira no dia em que tiver de deixá-la.
João Lento ajoelhava-se no canteiro de flores na ponta do terraço, com a faca de podar nas mãos. Quando uma sombra caiu sobre ele, ergueu os olhos e levantou-se. Tirou o chapéu e colocou-o sobre o peito, respeitosamente.
- Bom dia, patroa - disse, em sua profunda e melodiosa voz.
- Por favor, continue com sua tarefa. Adoro observá-lo trabalhar. Ele se afundou de joelhos novamente, e a lâmina da pequena faca afiada faiscou em suas mãos. Katinka sentou-se num banco ali perto e ficou a observá-lo em silêncio por alguns instantes.
- Admiro suas habilidades - disse, por fim, e embora não erguesse a cabeça, ele sabia que ela não se referia apenas à sua destreza com a faca de podar. - Tenho uma urgente necessidade dessas habilidades, João Lento. Haveria uma bolsa de mil guinéus como recompensa. Fará algo por mim?
- Mevrouw, não há nada que eu não faria por você. - Ele ergueu a cabeça por fim e fitou-a com aqueles pálidos olhos amarelos. - Eu não vacilaria em lhe entregar minha vida, se me pedisse. Não quero pagamento. Saber que cumpri sua ordem é toda a recompensa que eu poderia alguma vez almejar.
As noites de inverno tornaram-se frias, e rajadas de chuva sopravam montanha abaixo, para bater nos painéis das janelas e uivar como chacais nos beirais do telhado de colmo. Zelda puxou a camisola por sobre o corpanzil amplo. Todo o peso que perdera na viagem desde o Oriente voltara a se acomodar em sua pança e nas coxas. Desde que se mudara para a residência, alimentava-se bem no canto da cozinha, devorando os restos saborosos conforme eram retirados da grande mesa no salão principal de jantar, empurran-do-os para baixo com os goles na caneca cheia das sobras dos cálices de vinho dos patrões e convidados, vinho do Reno e tinto misturado com gim e genebra.
Com a barriga cheia de boa comida e bebida, preparou-se para dormir. Primeiro, verificou se os caixilhos da janela do pequeno quarto estavam vedados contra o aguaceiro. Enfiou pedaços de trapos nas frestas e cerrou as cortinas. Empurrou o aquecedor de cobre para debaixo das cobertas da cama e o manteve ali até que sentiu o cheiro do linho começando a queimar. Tirou-o então e apagou a vela, para depois se enfiar sob as grossas cobertas de lã.
Bufando e suspirando, acomodou-se na maciez e no calor, e seus últimos pensamentos foram para a bolsa de moedas de ouro escondida debaixo do colchão. Adormeceu sorrindo.
Uma hora depois da meia-noite, quando toda a casa estava silenciosa e dormia, João Lento apurou os ouvidos à porta do quarto de Zelda. Ao ouvir o ressonar mais forte que o vento nos caixilhos, abriu a porta sem ruído e deslizou para dentro o braseiro de carvões reluzentes. Ouviu por um minuto, porém o ritmo da respiração da velha era regular e uniforme. Fechou a porta suavemente e seguiu em passos silenciosos pela passagem até a porta ao final do corredor.
De manhã, Sukeena veio acordar Katinka uma hora antes da hora determinada. Depois de ajudá-la a vestir um roupão quente, conduziu-a para os alojamentos dos criados, onde um grupo silencioso e assustado de escravos se reunia do lado de fora do quarto de Zelda. Postaram-se de lado para Katinka entrar, e Sukeena murmurou:
- Sei o quanto ela significava para a senhora, patroa. Meu coração se condói.
- Obrigada, Sukeena - respondeu Katinka, com tristeza, e olhou rapidamente pelo quarto minúsculo. O braseiro fora removido. João Lento fora eficiente e confiável.
- Ela parece tão plácida, e que cor adorável tem. - Sukeena postou-se ao lado da cama. - É quase como se ainda estivesse viva.
Katinka veio se colocar ao lado dela. Os fumos venenosos do braseiro tinham enrubescido as faces da velha. Na morte, era mais bonita que já fora alguma vez em vida.
- Deixe-me sozinha com ela por um momento, por favor, Sukeena - disse, baixinho. - Quero fazer uma prece por Zelda. Ela era tão cara para mim.
Enquanto a patroa se ajoelhava ao lado da cama,- Sukeena fechou a porta suavemente atrás de si. Katinka enfiou a mão sob o colchão e puxou a bolsa para fora. Podia dizer, pelo peso, que nenhuma moeda se perdera. Enfiou a bolsa no bolso da camisola, juntou as mãos no peito e fechou os olhos com tanta força que seus longos cílios dourados se entrelaçaram.
- Vá para o inferno, sua velha cadela - resmungou.
João Lento veio por fim. Durante muitos longos dias e noites atormentadas, tinham esperado por ele; fora tanto tempo que Sir Francis Courtney começara a imaginar que ele não viria. A cada noite, quando a escuridão punha um fim ao trabalho nas muralhas do castelo, os grupos de prisioneiros chegavam arrastando os pés. O inverno apertava suas garras no cabo, e eles muitas vezes estavam ensopados pela chuva penetrante e enregelados até os ossos.
Ao final de cada turno, ao passar pelas portas de ferro da cela do pai, Hal chamava:
- Como vai, papai?
A resposta, numa voz rouca e entrecortada pela expectoração de sua doença, era sempre a mesma:
- Melhor hoje, Hal. E você?
- O trabalho foi fácil. Estamos com bom ânimo. Então Althuda dizia, da cela próxima:
- O médico veio esta manhã. Disse que Sir Francis está bem o bastante para ser interrogado por João Lento. - Ou, em outra ocasião: - A febre está pior. Sir Francis ficou tossindo o dia todo.
Tão logo os prisioneiros eram trancados no calabouço inferior, iriam engolir a única refeição do dia, a raspar as tigelas com os dedos para depois cair como mortos na toalha úmida.
Na escuridão antes do alvorecer, Manseer batia nas barras das celas.
- Levantem! Levantem, seus bastardos preguiçosos, antes que Barnard mande seus cães para pô-los de pé.
Trôpegos, iriam se levantar e se alinhar em fila novamente para a chuva e o vento. Ali, Barnard esperava para saudá-los, com seus dois enormes cães negros a rosnar e forçar as correntes. Alguns dos marinheiros tinham encontrado pedaços de saco ou lona com as quais enrolavam os pés descalços ou cobriam suas cabeças, porém mesmo aqueles trapos ainda estavam molhados do dia anterior. A maioria, contudo, ficava descalça e meio despida sob o vento hibernal.
Então, João Lento veio. Ao meio-dia. Os homens nos andaimes mais altos caíram em silêncio e todo o trabalho parou. Mesmo Hugo Barnard postou-se de lado enquanto ele passava pelos portões do castelo. Em seus trajes sombrios, e com o chapéu de aba larga puxado para baixo, sobre os olhos, parecia um pregador a caminho do púlpito.
Parou à entrada dos calabouços, e o sargento Manseer veio correndo pelo pátio, balançando suas chaves. Abriu a porta baixa, recuou de lado para lhe dar passagem e depois o seguiu para dentro. A porta fechou-se atrás dos dois, e os observadores despertaram como se acordados de um pesadelo, voltando a suas tarefas. Porém, enquanto João Lento estava lá dentro, um silêncio profundo e ansioso perdurou sobre as muralhas. Nenhum homem praguejava ou falava, mesmo Hugo Barnard parecia reprimido, e, a cada oportunidade, as cabeças se voltavam para a porta de ferro fechada.
João Lento desceu a escada, com Manseer a iluminar-lhe os passos com uma lanterna, e parou do lado de fora da porta da cela de Sir Francis. O sargento puxou o ferrolho do buraco de espia, e João Lento deu um passo à frente na sua direção. Havia um feixe de luz da janela alta da cela. Sir Francis, sentado na saliência de pedra que servia como cama, ergueu a cabeça e encarou os olhos amarelos de João Lento.
A face de Sir Francis era a de uma caveira embranquecida pelo sol, tão pálida que parecia luminosa sob a parca luz, as longas madeixas de seus cabelos de um negro mortal e os olhos, cavidades escuras.
- Estive esperando por você - disse, e tossiu até que sua boca se encheu de catarro. Cuspiu na palha que recobria o chão.
João Lento não deu resposta. Seus olhos, a luzir pelo buraco, estavam afivelados na face de Sir Francis. Os minutos se arrastaram. Sir Francis foi dominado por um selvagem desejo de gritar-lhe: "Faça o que tem de fazer. Diga o que tem a dizer. Estou pronto para você."
Porém, forçou-se a continuar em silêncio e encarar João Lento de volta.
Por fim, João Lento afastou-se do buraco de espia e fez um gesto a Manseer. Este fechou o postigo e correu de volta pela escada para abrir a porta de ferro para o carrasco. João Lento cruzou o pátio com cada olhar sobre si. Quando saiu pelo portão, os homens respiraram de novo e ouviu-se mais uma vez o grito de ordens e os murmúrios de resposta em forma de pragas e reclamações vindas das muralhas.
- Aquele era João Lento? - falou Althuda baixinho, da cela ao lado da de Sir Francis.
- Ele não disse nada. Não fez nada - murmurou Sir Francis com voz rouca.
- Esse é o jeito dele - disse Althuda. - Estou aqui por tempo bastante para vê-lo jogar o mesmo jogo muitas vezes. Ele vai cansá-lo de tal maneira, que, por fim, você acabará por lhe contar tudo que ele deseja saber antes mesmo que ele o toque. É por isso que o chamam de João Lento.
- Doce Jesus, isso me apavora. Ele veio alguma vez olhar para você, Althuda?
- Ainda não.
- Como foi tão afortunado?
- Não sei. Sei apenas que, um dia, ele virá atrás de mim também. Como o senhor, sei o que é esperar.
Três dias antes de o Standvastigheid estar pronto para zarpar para a Holanda, Sukeena deixou a cozinha da residência com seu chapéu cónico de sol de palha trançada na cabeça elegante, com a sacola no braço. Sua saída não causou qualquer surpresa entre os outros membros da equipe da casa, pois era costume dela ausentar-se várias vezes por semana pelas encostas da montanha, para recolher ervas e raízes. Sua habilidade e conhecimento das plantas curativas eram famosos na colónia.
Da varanda da residência, Kleinhans observou-a sair, e a lâmina da agonia torceu-se em suas entranhas. Era como se uma ferida aberta estivesse sangrando dentro dele, e mesmo suas fezes estavam negras de sangue coagulado. Contudo, não era apenas a dispepsia que o devorava. Ele sabia que assim que o galeão zarpasse, com ele a bordo, nunca mais poria o olho de novo na beleza de Sukeena. Agora que o momento da partida estava próximo, ele não conseguia dormir de noite, e mesmo o leite e o arroz cozido e empapado tornavam-se ácido em seu estômago.
Mevrouw van de Velde, sua hospedeira desde que assumira a residência, fora gentil com ele. Até mesmo mandara Sukeena sair naquela manhã para colher as ervas especiais que, quando fervidas e destiladas sob as mãos peritas da escrava, eram o único remédio que poderia lhe aliviar a agonia, mesmo que por curto espaço de tempo - o suficiente pelo menos para lhe permitir desfrutar de umas poucas horas de sono reparador. Sob as ordens de Katinka, Sukeena iria preparar o suficiente daquela infusão para acompanhá-lo durante a longa viagem ao norte. Ele rezava que, assim que chegasse à Holanda, os médicos fossem capazes de curar aquela aflição pavorosa.
Sukeena seguiu silenciosamente pela vegetação raquítica que cobria as encostas da montanha. Por uma ou duas vezes, olhou para trás, porém ninguém a seguia. Continuou, parando apenas para cortar um galho verde de um dos arbustos florescentes. Enquanto caminhava, arrancou-lhe as folhas e, com a faca, aparou-lhe a ponta numa forquilha.
Por toda parte a seu redor, a vegetação selvagem crescia em profusão esplêndida; mesmo agora que o inverno reinava, uma centena de espécies diferentes estava à vista. Algumas eram tão grandes como cabeças maduras de alcachofra, algumas tão pequenas como minúsculas unhas, todas adoráveis além da imaginação de um artista ou os poderes de sua paleta para retratá-las. Ela as conhecia todas.
Vagando aparentemente sem direção, em realidade ela seguia gradualmente e em círculos rumo a uma profunda ravina que cortava a face da montanha de tampo de mesa. Com um olhar mais atento ao redor, ela se lançou subitamente para baixo, pelo íngreme declive pesadamente coberto de arbustos. Havia um riacho no fundo, a rumorejar através de alegres cascatas e sonhadoras lagoas. Ao se aproximar de uma, ela se moveu com mais suavidade e lentidão. Enfiada numa fenda rochosa ao lado das águas escuras, havia uma pequena tigela de cerâmica. Ela a colocara ali durante sua última visita. Da saliência acima, ela olhou para baixo e viu que o fluido leitoso com a qual ela a enchera fora sorvido. Apenas umas poucas gotas opalescentes continuavam no fundo.
Delicadamente, subiu com cautela para uma posição da qual pudesse olhar mais fundo na fenda da rocha. Conteve o fôlego ao ver as sombras do brilho suave de escamas de um ofídio. Abriu a tampa da cesta, pegou o galho forcado na mão direita e chegou-se para mais perto. A serpente estava enrolada ao lado da tigela. Não era grande, nem mais grossa do que seu indicador. Sua cor era de um bronze reluzente e profundo, cada escama uma pequena maravilha. Quando Sukeena se arrastou para mais perto, a cobra ergueu a cabeça uns centímetros e fitou-a com os negros olhos raiados. Porém não fez nenhuma tentativa de escapar, deslizando para trás para as profundezas da fenda, como fizera da primeira vez em que a descobrira.
Estava preguiçosa e sonolenta, acalentada pela cocção leitosa com que a alimentara. Depois de um momento, baixou a cabeça de novo e pareceu dormir. Sukeena não foi tentada a fazer qualquer movimento súbito ou apressado. Sabia bem que, das agulhas ósseas da mandíbula superior, o pequeno réptil poderia proporcionar a morte em uma de suas mais horríveis e agonizantes manifestações. Estendeu a mão gentilmente com o forcado e de novo a serpente ergueu a cabeça. Sukeena imobilizou-se, o galho apenas alguns centímetros acima do pescoço esguio do réptil. Lentamente, a pequena cobra abaixou-se de novo na terra, e, conforme sua cabeça se esticou, Sukeena prendeu-a contra a rocha. O animal sibilou baixinho e seu corpo curvou e se enrodilhou em torno do galho que a segurava.
Sukeena levou a mão e segurou-a por trás da cabeça, com dois dedos travados contra os ossos duros do crânio. A serpente enrodilhou o longo corpo sinuoso em torno de seu pulso. Ela segurou-a pela cauda e desenrolou-a, e depois deixou a serpente cair dentro da cesta. No mesmo movimento, fechou a tampa sobre a cobra.
O governador aposentado Kleinhans subiu a bordo do galeão na noite anterior à partida. Antes que a carruagem o levasse para beira-mar, toda a equipe da casa se reunira no terraço fronteiro da residência para dizer adeus ao ex-patrão. Ele seguiu pela fila, dizendo uma palavra para cada um. Quando chegou a Sukeena, esta fez um gesto gracioso, os dedos juntos a tocarem os lábios, o que fez seu coração doer de amor e anseio por ela.
- Aboli levou sua bagagem para bordo do navio e colocou-a toda em sua cabine - disse ela suavemente. - Sua caixa de remédios está no fundo do baú maior, porém há uma garrafa cheia em sua valise de viagem, que deve durar por vários dias.
- Eu nunca a esquecerei, Sukeena - disse ele.
- E eu jamais o esquecerei, patrão - respondeu ela.
Por um momento louco, ele quase perdeu o controle das emoções. Estava a ponto de abraçar a escrava, mas, então, ela ergueu os olhos, e Kleinhans encolheu-se ao ver o ódio imorredouro naquele olhar.
Quando o galeão zarpou de manhã, com a maré da alvorada, Fredricus veio acordá-lo e ajudá-lo a sair da cama. Enrolou o grosso casaco forrado de pele em torno dos ombros do patrão, e Kleinhans foi até o convés e postou-se na amurada de popa enquanto o navio capturava o vento noroeste e rumava para o Atlântico. Esperou ali até que a grande montanha de topo plano se afundou abaixo do horizonte e sua vista se nublou de lágrimas.
Durante os próximos quatro dias, a dor em seu estômago foi pior do que jamais a conhecera. Na quinta noite, ele acordou depois da meia-noite, os ácidos a lhe escaldar os intestinos. Acendeu a lamparina e levou a mão para a garrafa marrom que poderia lhe dar algum alívio. Quando a sacudiu, estava quase vazia.
Dobrado com a dor, ele levou a lamparina pela cabine e ajoelhou-se diante do maior dos baús. Ergueu a tampa e achou a caixa de teca com remédios que Sukeena lhe dissera que estava ali. Pegou-a e carregou-a até o tampo da mesa contra a antepara, colocando a lamparina para iluminá-la, a fim de que pudesse encaixar a chave de bronze na fechadura.
Levantou a tampa de madeira e assustou-se. Colocada cuidadosamente sobre o conteúdo da caixa, havia uma folha de papel. Leu os caracteres negros e, intrigado, percebeu que era uma cópia antiga do jornal da companhia. Correu os olhos pela página e, conforme se dava conta, seu estômago revoltou-se de náusea. A proclamação estava assinada por ele mesmo. Era uma ordem de morte. A ordem para o interrogatório e execução de um certo Robert David Renshaw. O inglês que fora o pai de Sukeena.
- Que diabos é isso? - esbravejou em voz alta. - A pequena bruxa colocou isso aqui para me recordar de um ato cometido faz muito tempo. Será que nunca irá se compadecer? Pensei que ela estava fora de minha vida para sempre, porém ainda me faz sofrer.
Levou a mão para pegar o papel e rasgá-lo em pedaços, mas, antes que seus dedos o tocassem, houve um som suave e sibilante por baixo da folha e depois um ligeiro movimento.
Alguma coisa o atingiu num bote leve no pulso, e um corpo reluzente e sinuoso deslizou por sobre a beirada da caixa e caiu no convés. Ele saltou para trás, alarmado, porém a coisa desapareceu nas sombras e ele ficou a procurá-la, abismado. Lentamente, tomou consciência de um leve requeimar no pulso e ergueu-o para a luz da lamparina.
As veias do lado interno do pulso salientavam-se como cordas azuis sob a pele pálida, manchada de sardas senis. Ele olhou mais perto do lugar onde havia a sensação de queimação e viu duas minúsculas gotas de sangue brilhando sob a luz da lanterna, como gemas preciosas conforme minavam das punções gémeas. Cambaleou para trás e sentou-se na beirada do beliche, apertando o pulso e fitando as gotas cor de rubi.
Como uma nuvem lenta, uma imagem de longo tempo atrás se formou diante de seus olhos. Ele viu dois pequenos órfãos solenes de pé, mão na mão, diante das cinzas fumegantes de uma pira funerária. Depois, a dor o engolfou por dentro até que lhe encheu a mente e todo o corpo.
Havia apenas e tão somente a dor agora. Fluía através de suas veias como fogo líquido e enterrava-se até as profundezas de seus ossos. Dilacerava cada ligamento, tendão e nervo em seu corpo. Kleinhans começou a gritar e continuou gritando até o fim.
Algumas vezes, João Lento vinha duas vezes por dia até o calabouço do castelo e se postava no buraco de espia na porta da cela de Sir Francis. Nunca falava. Ficava ali, em silêncio, com uma imobilidade reptiliana, algumas vezes por uns poucos minutos, e outras por uma hora. Por fim, Sir Francis não conseguia olhar para ele. Voltava a face para a parede de pedra, mas ainda assim podia sentir os olhos amarelos cravados em suas costas.
Era um domingo, dia do Senhor, quando Manseer e quatro soldados de gibões verdes vieram buscar Sir Francis. Não disseram nada, porém ele poderia dizer por aquelas faces para onde o levavam. Não conseguiam encará-lo nos olhos, e ostentavam a expressão pesarosa de um grupo de carregadores de féretro.
Fazia um dia frio e ventoso quando Sir Francis pisou no pátio. Embora não chovesse mais, as nuvens que se penduravam baixo pela face da montanha eram de um tenebroso cinza azulado, da cor de uma velha ferida. O calçamento sob seus pés reluzia molhado com o aguaceiro que acabara de passar. Ele tentou controlar o tremer com o vento rude, para que os guardas não pensassem que era de medo.
- Deus o mantenha a salvo! - Uma clara voz juvenil chegou até ele, acima do vento tormentoso, e Sir Francis parou e olhou para o alto. Hal se postava no alto do andaime, os cabelos negros emaranhados e o peito nu molhado e reluzente das gotas de chuva.
Sir Francis ergueu as mãos atadas diante de si e gritou de volta:
- In Arcádia habito! Lembre-se do juramento. Mesmo de tão distante, podia ver a face contraída do filho. Então,
seus guardas o impeliram em direção a uma porta baixa que conduzia ao porão abaixo da armaria do castelo. Manseer levou-o pela passagem e pela escada. No fundo, parou e bateu hesitante diante da porta revestida de ferro. Sem esperar por uma resposta, abriu-a e conduziu Sir Francis para dentro. O quarto além estava bem iluminado, com uma dúzia de velas de cera a bruxulear em seus suportes com a corrente de ar da porta aberta. De um lado, Jacobus Hop sentava-se numa escrivaninha. Havia pergaminho e um tinteiro à sua frente, e uma pena em sua mão direita. Ergueu os olhos para Sir Francis, com uma pálida expressão terrificada. Uma zangada espinha vermelha luzia em sua face. Ele baixou rapidamente o olhar, incapaz de fitar o prisioneiro.
Ao longo da parede dos fundos, estava uma armação de um instrumento de tortura. Sua moldura era de teca maciça, a cama longa o suficiente para acomodar o mais alto dos homens com os membros esticados à plena extensão. Havia rodas fortes em cada ponta, com linguetas de ferro e fendas nas quais as alavancas poderiam ser ajustadas. Na parede lateral oposta à mesa do escrivão, um braseiro fumegava. Em ganchos colocados no teto acima, pendia um arranjo de estranhos e terríveis instrumentos. O fogo irradiava um calor agradável e aconchegante.
João Lento postava-se ao lado da roda. Seu casaco e seu chapéu estavam pendurados num gancho atrás dele. Usava um avental de couro preto de ferreiro.
Uma roda de polia estava fincada no teto e uma corda pendia dele com um gancho de ferro na ponta. João Lento não disse nada enquanto os guardas conduziam Sir Francis para o centro do aposento e passavam o gancho através dos laços que lhe prendiam os pulsos. Manseer puxou a corda pela roldana até que os braços de Sir Francis foram estendidos em pleno comprimento acima de sua cabeça. Embora ambos os pés estivessem firmemente no chão, ele estava indefeso. Manseer saudou João Lento e então ele e seus homens recuaram para fora do quarto e fecharam a porta atrás de si. Os painéis eram de teca sólida, espessa o bastante para impedir que qualquer som passasse por eles.
No silêncio, Hop pigarreou com ruído e leu a transcrição do julgamento pronunciado contra Sir Francis pela corte da companhia. Seu tartamudear era penoso, porém, no fim, ele depositou o documento sobre a mesa e exclamou, com clareza:
- Com Deus por minha testemunha, capitão Courtney, eu desejaria estar a cem léguas deste lugar. Não é um dever que eu aprecie. Imploro ao senhor para que coopere com esta inquisição.
Sir Francis não respondeu, mas olhou com firmeza dentro dos olhos amarelos de João Lento.
Hop pegou o pergaminho mais uma vez, e sua voz tremeu e vacilou conforme ele lia:
- Pergunta número um: está o prisioneiro, Francis Courtney, ciente do paradeiro da carga desaparecida do manifesto do navio da Companhia, o Standvastigheid - Não - retrucou Sir Francis, ainda olhando para os olhos amarelos diante de si. - O prisioneiro não tem conhecimento da carga da qual está falando.
- Imploro para que reconsidere, senhor - murmurou Hop com voz rouca. - Tenho uma disposição delicada. Sofro do estômago.
Para os homens no andaime varrido pelo vento, as horas passavam com agonizante lentidão. Seus olhos se mantinham voltados para a pequena e insignificante porta abaixo dos degraus da armaria. Não havia nenhum som ou movimento vindo dali, até que, de súbito, no meio da fria manhã chuvosa, a porta se abriu e Jacobus Hop saiu precipitadamente para o pátio. Cambaleou até a cerca de prender animais dos oficiais e pendurou-se num dos anéis de ferro como se suas pernas não pudessem mais suportar o peso de seu corpo. Parecia alheio a tudo em torno de si enquanto se postava ofegante como um homem recém-resgatado do afogamento.
Todo o trabalho nas muralhas parou. Hugo Barnard e seus supervisores ficaram calados e tolhidos, a encarar o miserável escrivão. Com cada par de olhos sobre si, Hop dobrou-se subitamente sobre si mesmo e vomitou no calçamento. Enxugou a boca com o verso da mão e olhou ao redor com olhar desvairado como se procurasse uma via de escape.
Arrojou-se para longe da cerca e disparou numa corrida pelo pátio e pelas escadas até os aposentos do governador. Uma das sentinelas no topo das escadas tentou impedi-lo, mas Hop gritou:
- Tenho de falar com Sua Excelência - e lançou-se para a frente, passando por ela.
Irrompeu sem ser anunciado para dentro da câmara de audiência do governador. Van de Velde sentava-se à cabeceira da longa mesa polida. Quatro burgueses da cidade estavam assentados ao lado dele, e ele ria com algo que acabara de lhe ser dito.
A risada morreu em seus lábios gordos quando Hop se postou a tremer no limiar da porta, a face de uma palidez mortal, os olhos cheios de lágrimas. Suas botas estavam lavadas de vómito.
- Como se atreve, Hop? - vociferou van de Velde, enquanto arrancava o corpanzil para fora da cadeira. - Como ousa irromper aqui desse jeito?
- Excelência - gaguejou Hop -, não posso fazer isso. Não posso voltar para aquele quarto. Por favor, não insista que eu o faça. Mande alguma outra pessoa.
- Volte para lá imediatamente - ordenou van de Velde. - Essa é sua última chance, Hop. Eu o advirto, você fará seu dever como um homem ou sofrerá por isso.
- O senhor não compreende. - balbuciava Hop abertamente agora. - Não posso fazer isso. O senhor não tem ideia do que está acontecendo lá. Eu não posso...
- Vá! Vá imediatamente, ou receberá o mesmo tratamento. Hop recuou lentamente, e van de Velde gritou às suas costas:
- Feche essas portas atrás de você, seu verme.
Hop cambaleou de volta pelo pátio silencioso como um cego, os olhos novamente cheios de lágrimas. Diante da pequena porta, parou e encheu-se visivelmente de coragem. Então, lançou-se por ela e desapareceu da vista dos observadores mudos.
No meio da tarde, a porta se abriu novamente, e João Lento saiu para o pátio. Como sempre, estava vestido nos trajes pretos e com o chapéu alto. Sua face estava serena, e o passo lento e firme, quando ele passou pelos portões do castelo e tomou a avenida pelos jardins em direção à residência.
Minutos depois que ele se fora, Hop irrompeu para fora da armaria e pelo bloco principal. Voltou conduzindo o médico da companhia, que carregava sua maleta de couro, e desapareceu pelas escadas da armaria. Um longo tempo depois, o médico surgiu e falou brevemente com Manseer e seus homens, que estavam esperando à porta.
O sargento fez uma continência, e ele e seus homens desceram as escadas. Quando saíram novamente, Sir Francis estava com eles. Não conseguia caminhar sem ajuda, e suas mãos e pés estavam envoltos em bandagens. Manchas vermelhas já ensopavam os panos.
- Oh, doce Jesus, eles o mataram - murmurou Hal, enquanto eles arrastavam seu pai, as pernas balançando e a cabeça pendida, pelo pátio.
Quase como se tivesse ouvido as palavras, Sir Francis ergueu a cabeça e olhou para ele. Então gritou, numa voz alta e clara:
- Hal, lembre-se de seu juramento!
- Eu o amo, papai! - gritou Hal de volta, engasgado de tristeza, e Barnard desferiu-lhe uma chicotada nas costas.
- Volte ao trabalho, seu bastardo.
Naquela noite, conforme a fila de condenados se arrastava pela escada que passava pela porta da cela de seu pai, Hal parou e exclamou, suavemente:
-- Rezo a Deus e a todos os Seus santos para que o protejam, papai.
Ouviu o pai mover-se na palha sussurrante e então, depois de um longo momento, sua voz:
- Obrigado, meu filho. Deus nos conceda a ambos a força para suportar os dias à frente.
Por detrás das venezianas de seu quarto, Katinka viu a alta figura de João Lento caminhar pela avenida, vindo do campo. Passou fora de sua vista por trás do muro de pedra ao fundo dos gramados, e ela soube que ele ia diretamente para sua cabana. Esperara metade do dia por sua volta e estava impaciente. Colocou o chapéu na cabeça, inspecionou a própria imagem no espelho e não ficou satisfeita. Pegou um cacho de cabelo, arrumou-o com cuidado por sobre o ombro e então sorriu para o reflexo e saiu do quarto pela pequena porta que dava para a varanda dos fundos. Seguiu a trilha pavimentada sob as videiras nuas que cobriam a pérgula, destituídas de suas últimas folhas acastanhadas pela chegada dos ventos do inverno.
A cabana de João Lento situava-se sozinha à fímbria da floresta. Não havia pessoa na colónia, não importava quão inferior fosse sua situação, que o quisesse como vizinho. Ao se aproximar, Katinka encontrou a porta da frente aberta e entrou sem um instante de hesitação. O único cómodo era nu como uma cela de eremita. O chão estava coberto com esterco de vaca, e o ar recendia a fumaça e urina e às cinzas frias do fogão aberto. Uma única cama, uma única mesa e uma única cadeira eram a mobília.
Ao parar no centro do cómodo, ouviu o barulho de água no quintal dos fundos e seguiu o som. João Lento estava ao lado do cocho de água. Nu até a cintura, recolhia água do cocho com um balde de couro e a despejava por sobre a cabeça.
Ergueu o olhar para ela, com a água a escorrer dos cabelos ensopados pelo peito e braços. Seus membros estavam cobertos com a musculatura lisa e rija de um lutador profissional, ou, como ela pensou extravagantemente, um gladiador romano.
- Não está surpreso por me ver aqui - constatou Katinka. Não era uma pergunta, pois ela podia ver a resposta naquele olhar direto.
- Eu a estava esperando. Estava esperando a deusa Kali. Ninguém mais ousaria vir aqui - disse ele.
Katinka pestanejou diante daquela forma incomum de tratamento. Sentou-se no muro baixo de pedra ao lado da bomba e ficou calada por um instante. Então, perguntou:
- Por que me chama assim? - A morte de Zelda forjara um elo estranho e místico entre eles.
- Em Trincomalee, na bela ilha do Ceilão, ao lado da sagrada lagoa do Elefante, ergue-se o templo de Kali. Fui lá todos os dias em que estive na colónia. Kali é a deusa hindu da morte e da destruição. Eu a venero.
Ela percebeu então que ele era louco. A constatação intrigou-a e fez os finos pêlos descorados de seus braços se eriçarem.
Ficou sentada por um longo tempo, em silêncio, e observou-o completar a toalete. Ele espargiu a água dos cabelos com ambas as mãos e depois enxugou os braços magros e duros com um pedaço de pano. Puxou as ceroulas e depois pegou o casaco escuro de onde pendurara num gancho sobre a parede, enfiou-se dentro dele e abotoou-o até o queixo.
Por fim, encarou-a.
- Você veio ouvir sobre meu pequeno pardal.
Com aquela bela e melodiosa voz, ele poderia ser um pregador ou um tenor de ópera, pensou ela.
- Sim - disse Katinka. - Foi por isso que vim.
Era como se ele pudesse ler-lhe os pensamentos. Ele sabia exata-mente o que ela queria e começou a falar sem hesitação. Contou-lhe o que acontecera naquele dia no quarto abaixo da armaria. Não omitiu nenhum detalhe. Quase cantava as palavras, fazendo os terríveis atos que descrevia soarem tão nobres e inevitáveis como as letras de alguma tragédia grega. Transportou-a, tanto que ela se abraçou e começou a se embalar lentamente para trás e para a frente no muro, enquanto ouvia.
Quando ele terminou de falar, ela continuou sentada por um longo tempo com uma expressão venturosa na face adorável. Por fim, estremeceu suavemente e disse:
- Pode continuar a me chamar de Kali. Mas somente quando estivermos sozinhos. Ninguém mais deve ouvi-lo pronunciar esse nome.
- Obrigado, deusa.
Os pálidos olhos luziram com um fervor quase religioso enquanto ele a observava seguir pelo portão do muro.
Ali, ela parou e, sem olhar para ele, perguntou:
- Por você o chama de seu pequeno pardal? João Lento deu de ombros.
- Porque, desse dia para frente, pertence a mim. Todos pertencem mim e à deusa Kali, para sempre.
Katinka sentiu um pequeno arrepio de êxtase com as palavras e, então, seguiu pela trilha através do jardim, rumo à residência. A cada passo do caminho, podia sentir o olhar de João Lento sobre si.
Sukeena esperava por ela quando ela retornou à residência. - A senhora mandou me chamar, patroa. - Venha comigo, Sukeena. Conduziu a jovem até seu quarto de vestir e sentou-se na chaise-longue de frente para a janela com venezianas. Fez um gesto a Sukeena para que se postasse diante dela.
- O governador Kleinhans falou muitas vezes sobre suas habilidades como médica - disse Katinka. - Quem lhe ensinou?
- Minha mãe era uma estudiosa. Em tenra idade, eu saía com ela para colher plantas e ervas. Depois de sua morte, estudei com meu tio.
- Conhece as plantas daqui? Não são diferentes daquelas da terra em que nasceu?
- Existem algumas que são as mesmas; outras, eu aprendi a conhecer por mim mesma.
Katinka já sabia de tudo isso por meio de Kleinhans, mas apreciava a música da voz da escrava.
- Sukeena, ontem minha égua tropeçou e quase me lançou fora da ela. Minha perna foi pega no arção e tenho uma marca feia. Minha pele se machuca facilmente. Tem em sua caixa de medicamentos algum que possa me curar?
- Sim, patroa.
- Aqui! - Katinka recostou no sofá e puxou as saias acima dos joelhos. Lenta e sensualmente, enrolou para baixo uma das meias brancas. - Olhe! - ordenou, e Sukeena ajoelhou-se com graça no tapete de seda em frente a ela. Seu toque tão suave sobre a pele era como o de uma borboleta esvoaçando sobre uma flor, e Katinka suspirou. - Posso sentir que você tem mãos que curam.
Sukeena não respondeu, e uma mecha de seus cabelos negros escondeu-lhe os olhos.
- Que idade você tem? - perguntou Katinka.
Os dedos de Sukeena se imobilizaram por um instante e depois se moveram para examinar o hematoma que se espalhava em torno do verso do joelho de sua patroa.
- Nasci no ano do tigre - disse ela - portanto, em meu próximo aniversário terei dezoito anos de idade.
- Você é muito bonita, Sukeena. Mas creio que já sabe disso, não?
- Não me sinto bonita, patroa. Não creio que uma escrava possa alguma vez se sentir bonita.
- Que ideia singular. - Katinka não escondeu a irritação com aquela reviravolta na conversa. - Diga-me, seu irmão é tão bonito como você?
De novo, os dedos de Sukeena tremeram sobre a pele de Katinka. Ah! Aquela cutucada achara seu alvo. Katinka sorriu suavemente em silêncio, e depois indagou:
- Ouviu minha pergunta, Sukeena?
- Para mim, Althuda é o homem mais bonito que já viveu sobre a terra - retrucou baixinho Sukeena, e, em seguida, lamentou-se por dizer aquilo. Sabia instintivamente que era perigoso permitir que aquela mulher descobrisse as áreas em que era mais vulnerável, porém não poderia mais retirar as palavras.
- Que idade tem Althuda?
- Ele é três anos mais velho que eu. - Sukeena manteve os olhos baixos. - Preciso buscar meus remédios, patroa.
- Esperarei - retrucou Katinka. - Seja rápida.
Katinka recostou-se de novo contra as almofadas e sorriu ou franziu a testa diante da vívida procissão de imagens e palavras que lhe correram pela mente. Sentia-se ansiosa e alvoroçada, e, ao mesmo tempo, inquieta e insatisfeita. As palavras de João Lento ressoavam-lhe na cabeça como sinos de catedral. Perturbavam-na. Não conseguia ficar quieta um momento mais. Levantou-se e andou pelo quarto de vestir como um leopardo em caça.
- Onde está aquela garota? - indagou, e, então, teve um vislumbre do próprio reflexo no espelho e voltou-se para estudá-lo. - Kali! - murmurou, e sorriu. - Que nome maravilhoso. Que nome secreto e esplêndido.
Viu a imagem de Sukeena aparecer no espelho atrás de si, porém não se voltou de imediato. Avaliou as duas faces juntas e sentiu a excitação mudar seus nervos e cantar através das veias.
- Tenho unguento para seu machucado, patroa. - Sukeena estava perto, atrás dela, porém seus olhos eram imperscrutáveis.
- Obrigada, meu pequeno pardal - murmurou Katinka. Quero que você pertença a mim para sempre, pensou. Quero que pertença a Kali.
Voltou para o sofá, e Sukeena ajoelhou-se diante dela outra vez. A princípio, o unguento era frio na pele de sua perna e depois um cálido calor se espalhou. Os dedos de Sukeena eram hábeis e capazes.
- Detesto ver algo bonito destruído sem necessidade - murmurou Katinka. - Você disse que seu irmão é bonito. Você o ama muito, Sukeena?
Quando não houve nenhuma resposta, Katinka estendeu a mão e empalmou o queixo de Sukeena. Ergueu-lhe a face para que pudesse fitá-la dentro dos olhos. A agonia que viu ali fez seu pulso disparar.
- Meu pobre e pequeno pardal - disse. Toquei o lugar mais profundo em sua alma, exultou por dentro. Ao tirar a mão, deixou os dedos traçarem uma trilha pela face da garota.
- Vim faz pouco da casa de João Lento - murmurou -, mas você me viu no caminho. Estava me observando, não estava?
- Sim, patroa.
- Devo repetir o que João Lento me contou? Devo lhe falar sobre o seu quarto especial no castelo, e o que acontece lá? - Katinka não esperou pela resposta da garota, e começou a narrativa terrível com tranquilidade. Quando os dedos de Sukeena se imobilizaram, ela interrompeu a narrativa para ordenar: - Não pare o que está fazendo, Sukeena. Você tem um toque mágico.
Quando, por fim, Katinka terminou de falar, Sukeena chorava sem um som. Suas lágrimas eram lentas e viscosas como gotas de óleo espremido das prensas de olivas. Brilhavam contra o ouro avermelhado de suas faces. Depois de alguns instantes, Katinka perguntou:
- Há quanto tempo seu irmão está aqui nno castelo? Ouvi dizer que faz quatro meses que ele voltou das montanhas para buscá-la. Um longo tempo, e ele não foi julgado e nenhuma sentença foi passada contra ele.
Katinka esperou, deixando os momentos se escoarem, numa lenta gota por vez, devagar como as lágrimas da jovem.
- O governador Kleinhans foi negligente, ou foi persuadido por alguém, suponho. Porém, meu marido é um homem enérgico e dedicado. Não deixará a justiça ser negada. Nenhum renegado pode escapar dele por muito tempo.
Agora Sukeena não mais fazia qualquer gesto de fingimento; fitava Katinka com um olhar ferido quando esta continuou:
- Ele mandará Althuda para o quarto secreto com João Lento. Althuda não mais será bonito. Que pena. Podemos evitar que isso aconteça?
- Patroa - murmurou Sukeena -, seu marido, ele tem o poder. Está nas mãos dele.
- Meu marido é um servo da companhia, um servo leal e incorruptível. Não fugirá a seu dever.
- Patroa, a senhora é tão bonita. Nenhum homem pode lhe negar alguma coisa. A senhora pode persuadi-lo. - Sukeena baixou lentamente a cabeça e pousou-a sobre o joelho nu de Katinka. - Com todo meu coração, com toda minha alma, eu lhe imploro, patroa.
- O que faria para salvar a vida de seu irmão? - perguntou Katinka. - Que preço pagaria, meu pequeno pardal?
- Não há nenhum preço demasiado alto, nenhum sacrifício ao qual eu pudesse me recusar. Qualquer coisa e tudo o que pedir de mim, patroa.
- Não podemos esperar que ele seja posto em liberdade, Sukeena. Compreende isso, não compreende? - indagou Katinka, gentilmente. Nem eu jamais desejaria isso, pensou, pois enquanto o irmão estiver no castelo, o pequeno pardal estará em segurança na minha gaiola.
- Eu nem mesmo me permitiria esperar por isso.
Sukeena ergueu a cabeça e de novo Katinka empalmou-lhe o queixo, desta vez com ambas as mãos, e inclinou-se para a frente num gesto lento.
- Althuda não morrerá. Nós o salvaremos de João Lento, você e eu - prometeu, e beijou Sukeena em plena boca. Os lábios da garota estavam molhados de lágrimas. Tinham o sabor quente de sal, quase como o de sangue.
Sukeena abriu lentamente os lábios, como as pétalas de uma orquídea a se afastar para o bico do beija-flor em sua busca pelo néctar.
Althuda. Sukeena fortaleceu-se com o pensamento no irmão, quando, sem romper o beijo, Katinka tomou-lhe a mão e deslizou-a lentamente para baixo das saias até que pousavam em seu macio ventre branco. Althuda, isso é por você e somente por você, disse a si mesma Sukeena em silêncio, enquanto fechava os olhos e obrigava os dedos a correrem timidamente sobre o ventre acetinado e para baixo, para dentro do ninho de finos e densos pêlos dourados, na base.
O dia seguinte amanheceu com um céu sem nuvens. Embora o ar estivesse frio, o sol era brilhante e o vento cessara. Do andaime, Hal vigiava a porta fechada dos calabouços. Daniel se postava perto, a seu lado; ao tomar a parte do trabalho de Hal em seus ombros largos, ele o protegia da chibata de Barnard.
Quando João Lento veio pelos portões e cruzou o pátio para a armaria, com seus passos medidos de agente funerário, Hal encarou-o com olhos rasos d'água. De súbito, quando ele passou por baixo do andaime, Hal apoderou-se do pesado martelo do pedreiro que jazia nas pranchas a seus pés e ergueu-o para girá-lo para baixo e arrebentar o crânio do carrasco. Porém, o punho forte de Daniel se fechou em torno de seu pulso. Daniel soltou o martelo do aperto de Hal como se tomasse um brinquedo de uma criança e colocou-o no topo da muralha, fora de seu alcance.
- Por que fez isso? - protestou Hal. - Eu poderia ter matado o porco.
- Sem nenhuma finalidade - disse-lhe Daniel, com compaixão. - Você não pode salvar Sir Francis matando um subalterno. Iria sacrificar sua própria vida e não conseguiria nada com isso. Eles simplesmente mandariam outro cuidar de seu pai.
Manseer trouxe Sir Francis para cima, dos calabouços. O prisioneiro não conseguia caminhar sem ajuda, com seus pés quebrados e em bandagens, porém sua cabeça estava alta quando o arrastaram pelo pátio.
- Papai! - gritou Hal, atormentado. - Não posso deixar isso acontecer.
Sir Francis ergueu o olhar para ele e gritou numa voz alta o bastante para chegar até ele, no alto da muralha.
- Seja forte, meu filho. Pelo meu bem, seja forte. Manseer forçou-o a descer os degraus para baixo da armaria.
O dia foi longo, mais longo que qualquer um que Hal já tivesse vivido, e o lado norte do pátio estava imerso em sombras profundas quando, por fim, João Lento reapareceu de sob a armaria.
- Desta vez, matarei o porco venenoso - esbravejou Hal, mas Daniel o conteve de novo num aperto do qual ele não pôde se livrar, enquanto o carrasco caminhava lentamente por debaixo do andaime e para fora Pelos portões do castelo.
Hop surgiu precipitadamente no pátio, sua face lívida. Convocou o médico da companhia, e os dois homens desapareceram mais uma vez pelas escadas. Desta vez, os soldados trouxeram Sir Francis para fora numa maca.
- Papai! - gritou Hal para ele, porém não houve nem resposta nem sinal de vida em retorno.
- Eu o avisei por muitas vezes - berrou Hugo Barnard para ele. Seguiu em passos largos pelas pranchas e...
O melhor da literatura para todos os gostos e idades