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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BEIJO DE SANGUE / J. R. Ward
BEIJO DE SANGUE / J. R. Ward

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Glossário de Termos e Nomes Próprios


Ahstrux nohtrum: Guarda particular com licença para matar, nomeado(a) pelo Rei.
Ahvenge: Cometer um ato de retribuição mortal, geralmente realizado por um macho amado.
As Escolhidas: Vampiras criadas para servirem à Virgem Escriba. São consideradas membros da aristocracia, embora sejam voltadas mais para assuntos espirituais que temporais. Têm pouca ou nenhuma interação com os machos, mas podem se acasalar com os Irmãos a fim de reproduzir sua espécie, segundo a orientação da Virgem Escriba.
Algumas têm a capacidade de predizer o futuro. No passado, eram utilizadas para satisfazer a necessidade de sangue de membros solteiros da Irmandade, e tal costume foi recolocado em prática pelos Irmãos.
Chrih: Símbolo de morte honrosa no Antigo Idioma.
Cio: Período fértil das vampiras. Em geral, dura dois dias e é acompanhado por intenso desejo sexual. Ocorre pela primeira vez aproximadamente cinco anos após a transição da fêmea e, a partir daí, uma vez a cada dez anos. Todos os machos respondem em certa medida se estiverem perto de uma fêmea no cio. Pode ser uma época perigosa, com conflitos e lutas entre os machos, especialmente se a fêmea não tiver companheiro.
Conthendha: Conflito entre dois machos que competem pelo direito de ser o companheiro de uma fêmea.
Dhunhd: Inferno.
Doggen: Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens seguem as antigas e conservadoras tradições de servir seus superiores, obedecendo a códigos formais no comportamento e no vestir. Podem sair durante o dia, mas envelhecem relativamente rápido. Sua expectativa de vida é de aproximadamente quinhentos anos.
Ehnclausuramento: Status conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia em resposta a uma petição de seus familiares. Subjuga uma fêmea à autoridade de um responsável único, o tuhtor, geralmente o macho mais velho da casa. Seu tuhtor, então, tem o direito legal de determinar todos os aspectos de sua vida, restringindo, segundo sua vontade, toda e qualquer interação dela com o mundo.
Ehros: Uma Escolhida treinada em artes sexuais.
Escravo de sangue: Vampiro macho ou fêmea que foi subjugado para satisfazer a necessidade de sangue de outros vampiros. A prática de manter escravos de sangue recentemente foi proscrita.
Exhile dhoble: O gêmeo mau ou maldito, o segundo a nascer.
Fade: Reino atemporal onde os mortos reúnem-se com seus entes queridos e ali passam toda a eternidade.
Ghia: Equivalente a padrinho ou madrinha de um indivíduo.
Glymera: A nata da aristocracia, equivalente à corte no período de Regência na Inglaterra.
Hellren: Vampiro macho que tem uma companheira. Os machos podem ter mais de uma fêmea.
Hyslop: Termo que se refere a um lapso de julgamento, tipicamente resultando no comprometimento das operações mecânicas ou da posse legal de um veículo ou transporte motorizado de qualquer tipo. Por exemplo, deixar as chaves no contato de um carro estacionado do lado de fora da casa da família durante a noite.
Inthocada: Uma virgem.
Irmandade da Adaga Negra: Guerreiros vampiros altamente treinados para proteger sua espécie contra a Sociedade Redutora. Resultado de cruzamentos seletivos dentro da raça, os membros da Irmandade possuem imensa força física e mental, assim como a capacidade de recuperarem-se rapidamente de ferimentos. Não é constituída majoritariamente por irmãos de sangue. São iniciados na Irmandade por indicação de seus membros. Agressivos, autossuficientes e reservados por natureza, vivem apartados dos vampiros civis e têm pouco contato com membros das outras classes, a não ser quando precisam se alimentar. Tema para lendas, são reverenciados no mundo dos vampiros. Só podem ser mortos por ferimentos muito graves, como tiros ou uma punhalada no coração.
Leelan: Termo carinhoso que pode ser traduzido aproximadamente por “muito amada”.
Lhenihan: Fera mítica reconhecida por suas proezas sexuais. Atualmente, se refere a um macho de tamanho sobrenatural e vigor sexual.
Lewlhen: Presente.
Lheage: Um termo respeitoso utilizado por uma submissa sexual para referir-se a seu dominante.
Libhertador: Salvador.
Lídher: Pessoa com poder e influência.
Lys: Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
Mahmen: Mãe. Usado como um termo identificador e de afeto.
Mhis: O disfarce de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
Nalla/nallum: Um termo carinhoso que significa “amada”/“amado”.
Ômega: Figura mística e maligna que almeja a extinção dos vampiros devido a um ressentimento contra a Virgem Escriba. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes, dentre os quais, no entanto, não se encontra a capacidade de criar.
Perdição: Refere-se a uma fraqueza crítica em um indivíduo. Pode ser interna, como um vício, ou externa, como uma paixão.
Primeira Família: O Rei e a Rainha dos vampiros e sua descendência.
Princeps: O nível mais elevado da aristocracia dos vampiros, só suplantado pelos membros da Primeira Família ou pelas Escolhidas da Virgem Escriba. O título é hereditário e não pode ser outorgado.
Redutor: Membro da Sociedade Redutora, é um humano sem alma empenhado na exterminação dos vampiros. Os redutores só morrem se forem apunhalados no peito; do contrário, vivem eternamente, sem envelhecer. Não comem nem bebem e são impotentes. Com o tempo, seus cabelos, pele e íris perdem toda a pigmentação. Cheiram a talco de bebê.
Depois de iniciados na Sociedade por Ômega, conservam uma urna de cerâmica na qual seu coração foi depositado após ter sido removido.
Ríhgido: Termo que se refere à potência do órgão sexual masculino. A tradução literal seria algo aproximado de “digno de penetrar uma fêmea”.
Rytho: Forma ritual de lavar a honra, oferecida pelo ofensor ao ofendido. Se aceito, o ofendido escolhe uma arma e ataca o ofensor, que se apresenta desprotegido perante ele.
Shellan: Vampira que tem um companheiro. Em geral, as fêmeas não têm mais de um macho, devido à natureza fortemente territorial deles.
Sociedade Redutora: Ordem de assassinos constituída por Ômega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
Symphato: Espécie dentro da raça vampírica, caracterizada pela capacidade e desejo de manipular emoções nos outros (com o propósito de trocar energia), entre outras peculiaridades. Historicamente, foram discriminados e, em certas épocas, caçados pelos vampiros. Estão quase extintos.
Transição: Momento crítico na vida dos vampiros, quando ele ou ela transforma-se em adulto. A partir daí, precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviver e não suportam a luz do dia. Geralmente ocorre por volta dos 25 anos. Alguns vampiros não sobrevivem à transição, sobretudo os machos. Antes da mudança, os vampiros
são fisicamente frágeis, inaptos ou indiferentes ao sexo, e incapazes de se desmaterializar.
Trahyner: Termo usado entre machos em sinal de respeito e afeição. Pode ser traduzido como “querido amigo”.
Tuhtor: Guardião de um indivíduo. Há vários graus de tuhtors, sendo o mais poderoso aquele responsável por uma fêmea ehnclausurada.
Tumba: Cripta sagrada da Irmandade da Adaga Negra. Usada como local de cerimônias e como depósito das urnas dos redutores. Entre as cerimônias ali realizadas estão iniciações, funerais e ações disciplinadoras contra os Irmãos. O acesso a ela é vedado, exceto aos membros da Irmandade, à Virgem Escriba ou aos candidatos à iniciação.
Vampiro: Membro de uma espécie à parte do Homo sapiens. Os vampiros precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano os mantêm vivos, mas sua força não dura muito tempo. Após sua transição, que geralmente ocorre aos 25 anos, são incapazes de sair à luz do dia e devem alimentar-se na veia regularmente.
Os vampiros não podem “converter” os humanos por meio de uma mordida ou transferência de sangue, embora, ainda que raramente, sejam capazes de procriar com a outra espécie. Podem se desmaterializar por meio da vontade, mas precisam estar calmos e concentrados para consegui-lo, e não podem levar consigo nada pesado. São capazes de apagar as lembranças das pessoas, desde que recentes. Alguns vampiros são capazes de ler a mente. Sua expectativa de vida ultrapassa os mil anos, sendo que, em certos casos, vai além disso.
Viajante: Um indivíduo que morreu e voltou vivo do Fade. Inspiram grande respeito e são reverenciados por suas façanhas.
Virgem Escriba: Força mística conselheira do Rei. Também é guardiã dos registros vampíricos e distribui privilégios. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes. Capaz de um único ato de criação, que usou para trazer os vampiros à existência.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1
Casa de Audiências do Rei, Caldwell, NY
ALGUNS TIPOS DE FORMATURA aconteciam em particular.
Alguns desses marcos importantes para a fase seguinte em nossas vidas não incluíam chapéus e becas, nenhuma orquestra humana tocando “Pompa e Circunstância”. Não
havia um palco para atravessar, tampouco um diploma para pendurar na parede. Também não existiam testemunhas.
Algumas graduações eram marcadas por coisas simples, corriqueiras, nada especiais, como uma pessoa esticando a mão até o monitor da Dell para apertar o botãozinho
azul no canto inferior direito da tela. Uma ação tão comum, feita tantas vezes numa semana, num mês, num ano, mas, ainda assim, naquele momento em especial, um divisor
de águas.
Enquanto Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, Rei de todos os vampiros, estava sentada em sua cadeira de escritório
e encarava a tela preta diante dela. Inacreditável. A noite que ela tanto esperava estava quase chegando.
Em grande parte, as últimas oito semanas se arrastaram, mas nessas derradeiras noites tudo mudou, passando para um modo catapulta. De repente, depois de ter passado
por sete mil horas de espera para que a lua se erguesse no céu, ela sentia que queria que as coisas desacelerassem de novo.
O seu primeiro emprego agora já era coisa do passado.
Olhando por sobre a escrivaninha, rearranjou o aparelho de telefone em um centímetro. Endireitou o vitral com desenho de libélula da luminária da Tiffany. Certificou-se
de que as canetas azuis estivessem num porta-canetas e as vermelhas, num outro. Alisou a palma sobre a superfície limpa do mata-borrão e do topo do monitor.
A sala de espera estava vazia; as cadeiras forradas de seda, desocupadas; as revistas, ordenadas nas mesinhas auxiliares; os copos com as bebidas servidas pelos
doggens àqueles que ali estiveram, já retirados.
O último civil se retirara meia hora antes. O alvorecer seria dali a duas horas. Considerando-se tudo, era o fim normal de uma noite de trabalho duro, a hora em
que ela e o pai voltariam para a propriedade da família para desfrutar de uma refeição completa regada com conversas, planos e respeito mútuo.
Paradise se inclinou para a frente e espiou na curva do arco de entrada para a sala de estar. Do lado oposto ao vestíbulo, as portas duplas que antes davam para
uma sala de jantar formal da mansão estavam fechadas.
Sim, apenas mais uma noite normal, a não ser pela reunião informal que estava acontecendo ali. Assim que a última audiência terminara, seu pai fora chamado à sala
de audiências e aquelas portas foram fechadas.
Ele estava lá dentro com o Rei e dois membros da Irmandade da Adaga Negra.
– Não façam isso comigo – ela disse. – Não tirem isso de mim.
Paradise se levantou e começou a andar, reorganizando as revistas, reafofando as almofadas, parando diante do retrato a óleo de um monarca francês.
Voltou à arcada, olhou para as portas fechadas da sala de jantar, ficou atenta às batidas fortes do seu coração.
Erguendo as mãos, inspecionou os calos nas palmas. Eles não foram provocados pelo seu trabalho ali junto ao pai e à Irmandade nos últimos meses, organizando a agenda,
pesquisando casos, resoluções e acontecimentos subsequentes. Não, pela primeira vez na vida, ela vinha se exercitando. Levantando pesos. Correndo na esteira. Fazendo
step. Barras suspensas, flexões, abdominais. Remo seco.
Antes, ela sequer sabia o que era remo seco.
E tudo como preparo para a noite seguinte.
Desde que aquele grupo de machos na sala de audiências do Rei não lhe tirasse tal perspectiva.
Na noite seguinte, à meia-noite, ela deveria se juntar a outros machos e fêmeas sabe-se a Virgem Escriba onde, na qual ela tentaria passar pelo teste de aceitação
no programa de treinamento de soldados da Irmandade da Adaga Negra.
Era um bom plano. Algo que ela decidira perseguir, uma possibilidade de independência e de descer o cacete nos inimigos para provar que ela era mais do que simplesmente
o seu pedigree. O problema? Filhas de puro sangue da glymera, ainda mais de uma das Famílias Fundadoras, não treinavam para se tornar soldados. Não lidavam com adagas
e pistolas. Não aprendiam a lutar para se defender. Sequer sabiam o que era um redutor.
Tampouco se associavam com soldados.
Filhas como ela eram ensinadas a fazer ponto cruz, educadas em música clássica e canto, boas maneiras, e a administrar uma mansão repleta de doggens. Esperava-se
que elas entendessem o complicado calendário social e os ciclos dos festivais, mantivessem-se atualizadas no quesito guarda-roupa e soubessem diferenciar Van Cleef
& Arpels, Boucheron e Cartier. Eram ehnclausuradas, protegidas e adoradas assim como todas as joias o eram.
A única coisa perigosa que lhes era permitido fazer? Procriar. Com um hellren escolhido pela família a fim de garantir a santidade de suas linhagens.
Era um milagre que o pai estivesse permitindo que ela fizesse aquilo.
Definitivamente ele não estivera de acordo assim que ela lhe mostrara o formulário de inscrição. Mas acabara mudando de ideia, permitindo que ela se inscrevesse.
Os ataques ocorridos alguns anos antes, quando tantos vampiros foram assassinados pela Sociedade Redutora, provaram que Caldwell, em Nova York, era um lugar perigoso.
E ela lhe dissera que não era sua intenção sair para lutar nas ruas, só queria aprender a se defender.
Depois de apresentar a questão sob o ponto de vista de sua segurança? Foi então que seu pai mudou de ideia.
A verdade, no entanto, era que ela queria algo que fosse seu, apenas. Uma identidade originária de outro lugar que não somente aquela que o seu nascimento lhe forçava.
Além disso, Peyton lhe dissera que ela não conseguiria.
Porque era uma fêmea.
Ele que se danasse!
Paradise olhou uma vez mais para as portas.
– Vamos lá…
Andando de um lado para o outro, acabou indo parar no vestíbulo, mas não quis se aproximar muito do lugar onde os machos conversavam… Como se aquilo pudesse dar
azar.
Deus, o que estariam conversando ali?
Normalmente, o Rei saía assim que a última audiência se encerrava. Se ele e a Irmandade tinham assuntos particulares ou de guerra para discutir, isso era conduzido
na residência da Primeira Família, um lugar tão secreto que nem mesmo o seu pai era convidado a ir até lá.
Portanto, aquilo só podia estar acontecendo por sua causa.
De volta à sala de espera, foi até a escrivaninha e contou as horas em que estivera sentada ali. Fazia apenas uns dois meses que o emprego era seu, mas gostava
do trabalho. Até certo ponto. Ao se ausentar, desde que fosse aceita no programa de treinamento da IAN, uma prima sua assumiria seu posto, e ela passara as últimas
sete noites mostrando toda a rotina, explicando os procedimentos que ela própria estabelecera, a fim de garantir que a transição acontecesse de maneira suave.
Recostando-se na cadeira, abriu a gaveta do meio e pegou a sua inscrição, como se isso pudesse, de algum modo, garantir que aquilo ainda aconteceria.
Ao segurar o documento, ficou imaginando quem mais estaria na orientação da noite seguinte… E pensou no macho que aparecera ali na casa de audiências, em busca
de uma versão impressa do formulário de inscrição.
Alto, ombros largos, voz grave. Usando um boné de basebol do Syracuse e jeans puídos pelo que aparentava ter sido causado por trabalho de verdade.
A comunidade dos vampiros era pequena, e ela nunca o vira antes. Mas talvez ele fosse apenas um civil? Essa era outra mudança no programa de treinamento. Antes,
somente machos da aristocracia eram convidados a trabalhar com a Irmandade.
Ele lhe dera seu nome, mas recusara-se a apertar a mão dela.
Craeg. Era só o que ela sabia.
Contudo, ele não fora rude. Na verdade, até apoiara a sua decisão de enviar a inscrição.
Também fora… cativante de um modo que a chocara, a ponto de ela ter esperado semanas inteiras para que ele retornasse com o formulário em mãos. Ele não voltara.
Talvez o tivesse escaneado e enviado eletronicamente.
Ou, talvez, tivesse resolvido não se inscrever, no fim das contas.
Parecia loucura ficar desapontada com a possibilidade de nunca mais encontrá-lo.
Quando seu celular emitiu um trinado, ela se sobressaltou e pegou o aparelho. Peyton. De novo.
Ela o veria na orientação na noite seguinte, e isso já seria cedo demais. Depois da discussão que tiveram quanto a ela se juntar ao programa, ela teve que se afastar
daquela amizade.
Mas, pensando bem, e se a Irmandade se recusasse a admiti-la? A indignação que ela sentia em relação ao rapaz de nada serviria. Mas a questão era que era permitido
às fêmeas se inscreverem.
O problema maior era que não se tratava de uma fêmea “normal”.
Caramba, não sabia o que faria se o pai recuasse. Mas com certeza a Irmandade não esperaria até o último minuto para rejeitar a sua inscrição.
Certo?
Do outro lado da cidade, Marissa, a shellan vinculada do Irmão da Adaga Negra Dhestroyer, também conhecido como Butch O’Neal, estava sentada à sua escrivaninha
no Lugar Seguro. Quando a poltrona emitiu um rangido, ela bateu a ponta da sua caneta Bic no calendário que cobria a mesa e passou o telefone para a outra orelha.
Interrompendo a torrente de palavras, ela disse:
– Garanto que aprecio o convite, porém, não posso…
A fêmea do outro lado da ligação não perdeu o ritmo. Continuou falando, sua entonação aristocrática preenchendo o espaço, até parecer admirável que o bairro inteiro
não sofresse uma sobrecarga.
– … e consegue entender o motivo de precisarmos da sua ajuda. Será o primeiro Festival Dançante do Décimo Segundo Mês a acontecer após os ataques. Como shellan
de um Irmão e membro de uma das Famílias Fundadoras, você seria a anfitriã perfeita para tal evento…
Tentando dar mais uma chance à recusa, Marissa a interrompeu:
– Não sei se é de seu conhecimento, porém, eu trabalho em tempo integral como diretora do Lugar Seguro e…
– … e o seu irmão disse que você seria uma boa escolha.
Marissa se calou.
Seu primeiro pensamento foi o de que era quase improvável que Havers, o médico da raça e seu irmão muito, mas muito distanciado, a tivesse recomendado para qualquer
coisa que não fosse um túmulo precoce. O segundo envolvia exclusivamente cálculos matemáticos… Há quanto tempo não falava com ele? Dois anos? Três? Não desde que
ele a expulsara da casa deles, uns cinco minutos antes do nascer do sol, quando ficara sabendo do seu interesse por um mero humano.
Que acabaram descobrindo se tratar de um primo de Wrath e a encarnação da lenda do Dhestroyer.
Tá gostando de mim agora?, ela ouviu em sua cabeça.
– Dito isso, você tem que presidir o evento – concluiu a fêmea. Como se o assunto estivesse resolvido.
– Você precisa me desculpar. – Marissa pigarreou. – Mas o meu irmão não está em posição de oferecer o meu nome para nada, considerando que ele e eu não nos vemos
já há algum tempo.
Quando apenas um silêncio absoluto se fez na conversa, ela concluiu que devia ter mencionado os podres da família uns dez minutos antes: os membros da glymera observavam
um código de comportamento muito rígido, e expor a colossal fissura em sua linhagem, mesmo ela sendo amplamente conhecida, era algo que simplesmente não se fazia.
Era muito mais apropriado deixar que os outros cochichassem a respeito às suas costas.
Infelizmente, a fêmea se recobrou e mudou de tática:
– De todo modo, é de importância vital que todos os membros da nossa classe retomem os festivais…
Uma batida à porta do seu escritório fez com que Marissa desviasse o olhar.
– Sim?
No telefone, a fêmea exclamou:
– Maravilha! Você pode vir à minha propriedade…
– Não, não. Alguém está precisando de mim – ela disse mais alto. – Pode entrar.
No instante em que viu a expressão de Mary, imprecou. Não eram boas notícias. A shellan de Rhage era sempre absolutamente profissional, e para ela estar daquele
jeito? Era algum problema grave…
Aquilo na blusa dela era sangue?
Marissa deixou seu tom de voz mais grave e abandonou qualquer sinal de boa educação.
– A minha resposta é não. O meu trabalho consome todo o meu tempo. Além do mais, se está tão interessada nisso, você mesma deveria assumir o posto. Passar bem.
Recolocando o fone no gancho, levantou-se.
– O que aconteceu?
– Acabamos de acolher alguém que precisa de cuidados médicos imediatos. Não estou conseguido encontrar a doutora Jane e nem Ehlena em lugar nenhum. Não sei o que
fazer.
Marissa apressou-se para a frente da escrivaninha.
– Onde ela está?
– Lá embaixo.
As duas desceram as escadas correndo, Marissa na frente.
– Como ela chegou?
– Não sei. Uma das câmeras de segurança pegou a imagem dela no jardim, se arrastando.
– O quê?
– O meu celular disparou o alarme, e eu corri para fora com Rhym. Nós a carregamos até a sala de estar.
Fazendo a curva no andar de baixo, Marissa derrapou num dos tapetes.
E parou de pronto.
Quando viu a condição da fêmea sobre o sofá, levou a mão à boca.
– Ah, meu Deus… – sussurrou.
Sangue. Havia sangue em todo lugar, pingando no chão, encharcando as toalhas brancas pressionadas sobre os ferimentos, empoçando-se sob um dos pés da fêmea sobre
o carpete.
A jovem fora surrada tão violentamente que não havia como identificá-la, suas feições estavam inchadas e, se não fosse pelos cabelos longos e pela saia rasgada,
não saberia determinar o seu sexo. Um braço estava evidentemente deslocado, pendurado a partir do ombro… e ela só estava calçando o sapato de salto esquerdo, as
meias de seda rasgadas.
A respiração dela era muito, muito superficial. Apenas um ruído no peito, como se estivesse se afogando no próprio sangue.
Rhym, a supervisora, levantou o olhar de sua posição agachada ao lado do sofá. Em meio às lágrimas, sussurrou:
– Não acho que ela vá sobreviver. Como poderia…?
Marissa tinha que se recompor. Era a única opção.
– Não conseguiram localizar nem a doutora Jane nem Ehlena?
– Tentei na mansão – Mary respondeu. – Na clínica. Os celulares delas. Duas vezes em todos os lugares.
Por uma fração de segundo, Marissa se aterrorizou com o que aquilo podia significar para a sua própria vida. Os Irmãos estavam feridos? Butch estaria bem?
Isso durou apenas um segundo.
– Me dê o seu celular… E levem as residentes para o anexo Wellsie. Quero todas lá, para o caso de eu ter que trazer um macho.
Mary lhe passou o telefone e assentiu.
– Já vou cuidar disso.
O Lugar Seguro era exatamente isso: um espaço seguro para as fêmeas vítimas de violência doméstica em busca de abrigo e reabilitação junto a seus filhos. E depois
de Marissa ter passado incontáveis séculos inúteis na glymera, sendo apenas a noiva não reclamada do Rei, encontrara a sua vocação ali, a serviço daquelas que tinham
sido, na melhor das hipóteses, abusadas verbalmente, e na pior, tratadas de maneira horrenda.
Não era permitida a entrada de machos ali.
Mas, para salvar a vida daquela fêmea, ela teria que infringir a regra.
Atenda o telefone, Manny, pensou no primeiro toque. Atenda o seu maldito telefone…
Capítulo 2
NÃO ERA A IRMANDADE INTEIRA.
Na verdade, só havia dois Irmãos com o Rei.
Enquanto Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, entrava na sala de audiências para se postar diante de seu governante, estava muito
ciente da presença dos outros machos. Nunca vira aqueles machos serem outra coisa que não apenas protetores e civilizados, mas, levando-se em consideração que estava
para entregar sua única filha para eles, seus outros atributos mais evidentes eram como gritos na noite.
O Irmão Vishous o encarava com seus olhos de diamante que não piscavam. Aquelas tatuagens na têmpora esquerda pareciam particularmente sinistras, o corpo musculoso
envolvido em couro preto e coberto por armas. Ao seu lado estava Butch, também conhecido como Dhestroyer – um antigo humano com sotaque de Boston que fora infectado
por Ômega e deixado para morrer, só para se revelar um dos poucos a sobreviver a uma transição forçada.
Os dois raramente se desgrudavam, e era tentador atribuir-lhes os papéis de policial malvado e policial bonzinho. Naquele instante, contudo, o paradigma estava
alterado. Butch, o macho que tendia a sorrir e conversar com as pessoas, parecia ser aquele a quem evitar num beco escuro: seu olhar castanho estava estreitado e
decidido.
– Pois não? – Abalone disse ao Rei. – Posso servi-lo de algum modo?
Wrath afagou a cabeçorra aloirada de seu cão guia, George.
– Os meus rapazes precisam falar com você.
Ah, pensou Abalone. Já suspeitava do que aquilo se tratava.
Butch sorriu por um átimo de segundo. Como se desejasse antecipadamente atenuar a patada do que estava para sair de sua boca.
– Queremos ter certeza de que você sabe do que se trata o programa de treinamento.
Abalone limpou a garganta.
– Sei que isso é muito importante para Paradise. E espero que haja aulas de defesa pessoal no programa. Eu gostaria que ela ficasse… mais segura.
Esse benefício em potencial fora o único motivo que o ajudara a aceitar a discrepância entre aquilo que esperava para a vida dela e o que ela própria parecia escolher.
Quando não houve nenhuma resposta, Abalone olhou de um Irmão para outro.
– O que vocês não estão me contando?
Vishous abriu a boca, mas Butch levantou a mão para calá-lo.
– A sua função junto a Wrath vem em primeiro lugar.
Abalone se retraiu.
– Está dizendo que Paradise não poderá participar por causa da minha posição aqui? Santa Virgem Escriba, por que não nos disseram…
– Precisamos que entenda que o que vai acontecer não serão apenas aulas expositivas. Isto é um preparo para a guerra.
– Mas os candidatos não têm necessariamente que lutar nos becos durante o treinamento, correto?
– O que nos preocupa está aqui. – O Irmão indicou a sala. – Não podemos permitir que nada afete o seu relacionamento com Wrath e o que você faz para o Rei. Paradise
é bem-vinda no programa assim como qualquer outro, mas não se a perspectiva de ela desistir ou ser cortada puder criar tensão entre nós.
Abalone exalou aliviado.
– Não se preocupem com isso. Ela será bem-sucedida ou fracassará por mérito próprio. Não espero um tratamento especial para ela… E se ela não conseguir acompanhar?
Então terá que ser dispensada.
Na verdade, ainda que jamais dissesse isso em voz alta, ele tanto rezava quanto esperava que esse fosse o caso. Não queria que Paradise se desapontasse com seu
empenho, mas… a última coisa que queria era que sua filha fosse exposta a qualquer podridão – ou, Deus proibisse, que de fato tentasse combater na guerra.
Sequer conseguia imaginar essa última possibilidade.
– Não se preocupem – reiterou, olhando para os Irmãos e para o Rei. – Tudo ficará bem.
O Irmão Butch olhou para Vishous. Depois voltou a olhar para ele.
– Você leu o formulário de inscrição, certo?
– Ela o preencheu.
– Então não o leu?
– Isso é algo que ela está fazendo por conta própria. Como seu pai e tuhtor, eu deveria ter assinado?
Vishous acendeu um cigarro enrolado à mão.
– Talvez queira estar preparado, não?
Abalone assentiu.
– Estou. Juro, estou preparado.
Paradise era uma fêmea educada apropriadamente dentro das tradições da aristocracia. Vinha trabalhando em seu condicionamento físico nos dois últimos meses – de
fato, com bastante empenho –, e ele sentia a empolgação emanando dela enquanto concluía seu trabalho ali e se preparava para deixar o seu posto. No entanto, havia
boas chances de que depois da orientação na noite seguinte, quando o trabalho de verdade começasse, ela se visse desistindo… ou sendo dispensada.
Testemunhar o seu fracasso o mataria por dentro.
Mas antes isso a vê-la morrendo no campo de batalha só para provar que ela era muito mais do que aquilo ditado pela sua posição aristocrática.
Enquanto o par de Irmãos continuava a olhar para ele, Abalone abaixou a cabeça.
– Sei que não vai terminar bem para ela. Estou mais do que preparado para enfrentar isso. Não sou ingênuo.
Depois de um instante, Butch disse:
– Ok. É justo.
– Mais alguma coisa, meu senhor? – Abalone perguntou ao Rei.
Quando Wrath meneou a cabeça, Abalone fez uma reverência a cada um deles.
– Agradeço a preocupação. Paradise é o que tenho de mais precioso… É tudo o que me restou de minha amada shellan. Sei que ela estará em mãos justas e gentis amanhã.
Quando ele se virou para se retirar, os Irmãos continuaram sérios, mas, pensando bem, ele não sabia o que se desenrolava na guerra. E sempre havia algo acontecendo.
As lutas e as estratégias não eram coisas com as quais ele se envolvia, o que o deixava extremamente grato.
Assim como ficaria caso Paradise saísse do programa.
Na verdade, o que mais desejava era que a mahmen dela ainda estivesse viva. Talvez tudo aquilo fosse desnecessário se sua shellan estivesse presente para enfiar
um pouco de juízo na cabeça da jovem.
Abrindo as portas, ouviu um barulho na sala de espera.
– Paradise?
Ele caminhou pelo vestíbulo e, ao fazer a curva para entrar na sala de espera, sua filha se endireitava ao apanhar canetas vermelhas que derrubara da mesa.
– Está tudo bem? – ele perguntou.
O olhar dela encontrou o seu.
– Está? O senhor vai permitir que eu vá amanhã à noite?
Abalone sorriu, e tentou esconder a tristeza do olhar e da voz.
– Claro. Você está no programa, isso foi decidido meses atrás.
Ela correu para o pai e o abraçou, segurando-o com firmeza, como se estivesse convencida de que lhe negariam aquilo que ela tanto queria.
Abraçando a filha, Abalone teve leve ciência dos Irmãos e do Rei saindo pela porta da frente. Não prestou atenção neles.
Estava ocupado demais desejando poupar a filha de todo e qualquer desapontamento. No entanto, isso não estava entre as habilidades parentais que lhe foram concedidas
no momento de seu nascimento.
Ah, como queria que sua shellan estivesse ali e não no Fade.
Ela teria lidado muito melhor com tudo.
De pé junto à tão maltratada fêmea, Marissa fechou os olhos ao ouvir a voz gravada de Manny em sua caixa de mensagens pela terceira vez. Que diabos estava acontecendo
na clínica?
Bem quando ela estava prestes a ligar novamente, o seu telefone tocou.
– Graças a Deus! Manny? Manny?
Algo no tom da sua voz fez com que a fêmea se mexesse, o rosto ensanguentado se movendo ao encontro das almofadas do sofá. Deus, o chiado daquela respiração bastava
para que seu coração saísse do compasso.
– Não, é Ehlena – disse a voz ao seu ouvido. – Manny e Jane estão fazendo uma cirurgia de emergência em Tohr. Ele está com uma fratura múltipla no fêmur e eu tenho
que voltar para a sala de cirurgia. Algum problema?
– Quanto tempo isso vai demorar? – ela perguntou.
– Acabaram de começar.
Marissa fechou os olhos.
– Ok, por favor, peça que me liguem assim que puderem, por favor. Tenho um… – Virou-se de costas e abaixou a voz. – Tenho um trauma que acabou de chegar aqui. Não
sei se temos tempo suficiente.
Ehlena praguejou.
– Não podemos dispensar ninguém. Não pode ligar para Vishous? Ele tem treinamento médico, pode conseguir estabilizar o paciente.
Marissa tentou visualizar o Irmão entrando na casa. Não era a sua primeira escolha, e não por não confiar no macho. O melhor amigo do seu hellren era um vampiro
formidável em todos os sentidos.
A sua aparência é que era aterrorizante.
Mas, pensando bem, se todas estavam no Anexo Wellsie…
– Boa ideia. Obrigada.
– Pedirei que liguem para você assim que terminarem.
– Por favor, faça isso.
Encerrando a ligação, ela ligou para V. e foi atendida pela maldita caixa de mensagens.
– Merda.
Rhym perguntou ao pressionar uma toalha em um ferimento aberto no ombro da fêmea:
– Quando eles vêm?
O fim da noite se aproximava. V. poderia estar em trânsito entre os becos do centro de Caldwell e a mansão. Ou… poderia estar ocupado lutando contra o que quer
que tenha ferido Tohr daquela maneira.
Quando a fêmea deitada no sofá começou a tossir sangue, sua decisão foi tomada numa fração de segundo. A última coisa que desejava era pedir ajuda de seu irmão,
mas não poderia viver com sua consciência se seus problemas pessoais custassem a vida de alguém.
Marissa ligou para o celular de Havers que sabia de cabeça, com a esperança de que ele não tivesse trocado o número. Um toque… Dois toques…
– Alô? – atendeu sua voz.
– Sou eu. – Antes que houvesse espaço para um silêncio constrangedor ou sequer um olá, ela disse: – Temos uma emergência médica no Lugar Seguro. Preciso que venha
imediatamente, ou que mande alguém. Os médicos da Irmandade estão na sala de cirurgia e não temos muito tempo.
Houve uma ligeira pausa, como se o principal médico da raça estivesse passando do modo “pessoal” para o “profissional”.
– Levarei apenas um instante para chegar. É algum trauma?
– Sim. – Marissa voltou a abaixar a voz. – Ela foi surrada terrivelmente e… violentada. Há muito sangue. Não sei…
– Vou levar uma enfermeira. Já afastou os outros moradores?
– Sim.
– Destranque a porta da frente.
– Encontro você lá.
Foi só isso.
Pelo visto, o universo estava determinado a colocar o irmão no seu radar aquela noite. Primeiro aquele telefonema idiota da socialite, agora…
Marissa acenou para Rhym.
– A ajuda está a caminho.
Através do olho que não estava completamente obstruído pelo inchaço, a fêmea ferida tentou focar o olhar.
Marissa se inclinou na direção dela e tomou-lhe a mão ensanguentada.
– O meu irmão está vindo para cuidar muito bem de você.
Por um momento, ela se perguntou se deveria não ter mencionado que seria um macho que a trataria. Mas a fêmea não parecia estar compreendendo.
Santa Virgem Escriba, e se ela morresse antes da chegada dele?
Marissa se agachou, ajeitando o cabelo loiro atrás da orelha.
– Você está segura aqui e vai ficar tudo bem. – Aquele único olho aberto perscrutou o seu rosto. – Você tem algum parente para quem podemos ligar? Há alguém que
podemos mandar chamar para você?
A cabeça da fêmea se moveu de um lado para o outro.
– Não? Tem certeza? – O olho se fechou. – Pode me dizer quem fez isso com você?
O rosto se virou.
Merda.
Recuando, Marissa foi para o corredor na frente da casa. Havia janelas estreitas e compridas nas laterais da porta, e ela ficou olhando para o jardim. As árvores
que há poucas semanas estavam tão coloridas despejavam suas folhas rubras, douradas e amarelas, revelando os galhos espigados como os ossos de um cão magro demais.
Foi impossível não espiar o reflexo no espelho ao lado da porta e verificar se os cabelos estavam ajeitados e a maquiagem ainda se sustentava após uma jornada de
quase dez horas de trabalho.
Na época em que vivia com o irmão, usava vestidos de seda e joias pesadas, e os cabelos ficavam sempre bem penteados no alto da cabeça. Agora? Ela estava com calças
Ann Taylor, uma camisa com gola alta e um par de sapatos Cole Haan que usava para dirigir por serem confortáveis. Nenhuma joia a adornava exceto o pequeno crucifixo
de ouro que usava porque o deus de Butch era importante para ele e seu hellren lhe dera aquele colar em sua última celebração de Natal. Ah, e ela também estava com
um par de brincos de pérola nas orelhas.
Apesar de a transição de Butch ter sido induzida e do seu status como membro da Irmandade e parente do Rei, seu macho permanecia fundamentalmente humano, desde
seu sistema de crenças católicas e seu gosto por cinema e literatura até suas opiniões quanto ao que queria numa “esposa”, um resultado de sua criação em meio aos
Homo sapiens.
Tocando na correntinha de ouro no pescoço, franziu a testa quando lutou contra a necessidade de tirá-la porque seu irmão não a aprovaria.
Mas, convenhamos, quer o símbolo da sua vinculação estivesse ou não em seu pescoço, aquilo não mudaria absolutamente nada. Aos olhos do irmão, ela tomara um rato
cotó como hellren, e essa desgraça jamais seria perdoada.
Uma fração de segundo depois, duas sombras se materializaram do nada na calçada. Uma mais alta e masculina, vestindo um jaleco branco, a outra menor e feminina
num tradicional uniforme de enfermeira.
Quando se aproximaram e foram iluminados pelas luzes de segurança, Marissa esfregou as palmas suadas nas calças. Havers estava exatamente igual ao que sempre fora,
desde a gravata borboleta e os óculos de armação de casco de tartaruga até os cabelos escuros repartidos de lado, mantidos no lugar como um personagem de Mad Men.
No último instante, Marissa girou o crucifixo para a nuca e abriu a porta. Tentando não parecer nervosa, anunciou:
– Ela está na sala de estar.
Nenhum “olá, como tem passado?”, tampouco um “ei, já deixou de ser um cretino preconceituoso?”, mas, pensando bem, aquela era uma emergência médica, não uma visita
social.
– Marissa – disse o irmão, acenando com a cabeça e parando ao seu lado. – Esta é Cannest, minha chefe de enfermagem.
– É um prazer – disse educadamente a enfermeira.
Marissa assentiu para a fêmea.
– É por aqui.
Suas pernas estavam rijas ao acompanhá-los pela casa modesta com sua mobília comum. Por algum motivo absurdo, ela se visualizou como um flamingo, com os joelhos
virados para o lado errado. Nesse meio-tempo, todos os tipos de recordações fervilhavam sob a superfície do seu consciente, apenas o peso psíquico da tragédia que
se desenrolava na sala ao lado mantendo a tampa fechada sobre as suas emoções.
Seu irmão parou no arco de entrada da sala e entregou sua maleta de médico à assistente.
– A minha enfermeira fará a triagem, e me informará sobre as condições dela. Será melhor que um macho não faça esse primeiro exame.
Marissa deslizou o olhar para o de Havers pela primeira vez e notou que os olhos dele ainda eram do exato tom de azul dos seus. Como se isso pudesse mudar, não?
– É muita consideração da sua parte – ela comentou antes de olhar para a auxiliar. – Me acompanhe.
Na sala, a enfermeira foi direto para o sofá, e foi gentil com Rhym ao substituí-la ao lado da paciente. A vítima se mexeu como se reconhecesse uma presença nova
diante dela e depois gemeu quando teve a pulsação e a pressão examinadas.
Marissa ficou de lado, cruzando os braços sobre o peito, com a boca coberta pela mão. Os movimentos eram um bom sinal, disse a si mesma. Significavam que a pobre
moça ainda estava viva.
– Tome cuidado – ela disse de repente, quando a enfermeira apalpou o braço e lágrimas se misturaram ao sangue do rosto surrado.
Bom Deus, quem havia feito aquilo? Só podia ser um membro da raça… Não conseguia captar nenhum cheiro humano impregnado nela.
Marissa teve que baixar o olhar quando o exame se tornou mais íntimo, e gesticulou para que Rhym se juntasse a ela na arcada, como se protegesse a privacidade que
seu irmão já estava respeitando.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, a enfermeira conversou em voz baixa com a fêmea e aproximou-se deles, acenando para que Marissa a seguisse até onde Havers
aguardava com as mãos entrelaçadas atrás das costas. Ele curvou a cabeça enquanto ouvia o que a enfermeira dizia num tom baixo:
– Ela tem extensos danos internos – a fêmea relatou. – Terá que ser operada imediatamente para ter chances de sobreviver. O braço é o menor dos problemas dela.
Havers assentiu e relanceou para Marissa.
– Tomei a liberdade de providenciar um transporte. Ele deve chegar em aproximadamente quinze minutos.
– Irei com ela. – Marisa estava pronta para discutir. – Até encontrarmos um parente, serei sua thutora.
– Sim, claro.
– E arcarei com os custos do tratamento.
– Não será necessário.
– Certamente é necessário. Vou pegar as minhas coisas.
Afastando-se, ela falou com Rhym, depois apressou-se até o seu escritório e pegou o celular, a bolsa e o casaco.
Pensou em telefonar para Butch, pois havia a possibilidade de não conseguir voltar para casa, mas ainda não tinha certeza quanto a isso. E, infelizmente, se ela
ligasse para seu hellren toda vez que surgisse uma emergência no trabalho? Ela acabaria desgastando o toque de chamada do celular dele.
A meio caminho descendo a escada, ela percebeu que havia outro motivo para não falar com ele.
Aquilo era muito semelhante ao que acontecera com sua irmã.
E existia a possibilidade de ser exatamente a mesma coisa, caso a fêmea viesse a morrer em decorrência dos ferimentos.
Não, pensou ao voltar para o térreo. Ele já tinha muitos afazeres sem ter que disparar aquele gatilho em sua massa cinzenta uma vez mais.
– Estou pronta – disse ao irmão, como se o desafiasse a fazê-la mudar de ideia.
– A ambulância chegará em dois minutos. Terei que acompanhá-la também... Ela vai precisar se alimentar de sangue para ter alguma chance de sobrevivência.
Havers curvou-se ligeiramente e refez seus passos até a porta de entrada. Quando dobrou no corredor, Marissa sacudiu a cabeça.
A ideia de que ele daria o próprio sangue para ajudar uma fêmea desconhecida, que não devia passar de uma cidadã comum, era tanto incrível… quanto uma fonte de
frustração.
Que o macho pudesse ser tão gentil com seus pacientes e tão cruel com ela pessoalmente parecia-lhe uma contradição insuportável.
Mas assim era a glymera. Dois pesos, duas medidas em abundância.
E não raramente estavam acostumados a ferrar as filhas, as irmãs e as mães.
Capítulo 3
PARADO NO AMPLO E COLORIDO vestíbulo da mansão da Irmandade da Adaga Negra, Butch franziu a testa ao olhar para o celular. Consultara as horas em seu relógio de
pulso Audemars Piguet uns três minutos antes, mas imaginou que, quem sabe, o seu Samsung sei-lá-o-quê lhe desse uma resposta mais satisfatória.
Negativo.
E seu sétimo telefonema para Marissa tampouco fora atendido. Assim como os seis anteriores.
Ao longe, a conversa e os barulhos sutis da Última Refeição sendo consumida borbulhavam na sala de jantar.
Sem nenhum bom motivo, relembrou a primeira vez que ouvira sons como aqueles. Fora no que agora era a casa de audiências. Na época, era um detetive de homicídios
descontrolado e à procura de uma fonte de destruição completa a fim de dar cabo de vez à sua vida.
E foi então que um turbilhão de eventos inesperados aconteceu.
Beth foi a primeira a ser levada pelo vento, sua herança genética mista de meio humana, meio vampira tragando-a. Já a sua entrada fora algo completamente diferente.
Se forem sangrar o humano, teriam a gentileza de fazê-lo no pátio dos fundos?
– Conseguiu falar com ela?
Butch fechou os olhos ante a familiar voz masculina. Mesmo não sendo nem mesmo parcialmente verdade, às vezes ele sentia como se os resmungos ásperos de Vishous
estivessem em sua mente a vida inteira.
– Não.
Conforme o Irmão se aproximava, o cheiro de tabaco turco o antecedeu, e Butch inspirou fundo. Talvez tivesse ficado chapado por tabela, ou quem sabe fosse a presença
desagradável do maldito, mas o volume dos gritos de pânico em seus ouvidos diminuiu um pouco.
– Já ligou pro escritório dela no Lugar Seguro? – V. perguntou, exalando fumaça.
– Caixa postal. E liguei para a Mary também. Nada.
– Cacete…
O toque sutil do monitor de segurança fez com que sua cabeça guinasse. Quando viu a imagem na tela, avançou em direção à porta do vestíbulo, quase arrancando-a
das dobradiças.
– Ah, Deus… Por onde você andou…
Apossou-se de sua Marissa com tamanha velocidade e determinação que o resto das besteiras que saíam da sua boca se perdeu enquanto a abraçava.
– Desculpe – ela disse com a voz abafada. – Eu estava cuidando de um caso. Não me dei ao trabalho de te ligar porque quase não tinha tempo hábil para voltar para
casa.
Afastando-se um pouco, amparou-lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela.
– Você está bem?
– Sim, claro. E eu sinto muito…
Ele a beijou, estremecendo quando sentiu as mãos subirem por suas costas.
– Não, não. Sou eu quem pede desculpas. Só o que importa é que você está bem.
Diabos, o sol era algo aterrorizante. Um vampiro apanhado ao amanhecer não passava de uma fogueira com roupas, e por mais que Marissa estivesse bem protegida no
Lugar Seguro, coisas ruins podiam acontecer: os humanos eram idiotas imprevisíveis e os assassinos eram absolutamente letais.
Quando se separaram, ela sorriu.
– Estou bem, estou bem.
Ah, tá, ele pensou quando os olhos dela evitaram os seus.
Ele a puxou pelo braço.
– Vem comigo.
– Mas a Última Refeição já foi servida…
– E quem se importa?
Atraindo-a para a sala de bilhar, ele os teria fechado ali caso houvesse portas para se fechar.
– O que aconteceu? – exigiu saber.
Ela vagueou um pouco, seu corpo incrível transformando as roupas simples em alta-costura.
– Nada que já não tenha ouvido falar, infelizmente.
Butch fechou os olhos. Às vezes, odiava o trabalho dela. Odiava mesmo. Contudo, quanto mais difícil ele se mostrava, mais ela lutava, e por mais que o afetasse
vê-la cansada, abatida, até mesmo desencorajada vez ou outra, ele a respeitava pra cacete pelo que fazia pela raça. E nem tudo era ruim. Quando as pessoas que ela
ajudava voltavam a ter vidas independentes, sua shellan reluzia como o sol.
Os olhos dela passearam pelo cômodo, mas ele permaneceu concentrado nela. E, Jesus, mesmo depois de uma longa e extenuante noite, ela ainda lhe roubava o fôlego.
Sua beleza era lendária na raça, algo de que se comentava há gerações e ainda era reverenciado, e o motivo era evidente. O rosto era uma compilação de ângulos perfeitos;
a pele, suave e luminosa como uma pérola; os olhos azuis, da cor de uma manhã gloriosa; aqueles lábios, tão rosados e macios. E também havia o cabelo loiro passando
dos ombros e, sim, ah sim, a silhueta, do tipo que deixava os machos de joelhos – e os mantinha ali embaixo.
Às vezes ainda não acreditava que ela estava com ele. Ele. Um cara do sul de Boston, de origem irlandesa, com um dente da frente lascado, um passado ruim e uma
infinidade de vícios que não fora capaz de subjugar até antes de conhecê-la.
E também havia aquela merda de Ômega.
Todavia, sua shellan o amava, por algum motivo inexplicável.
– Você não está falando comigo – ele sussurrou, afastando o cabelo dela para as costas e massageando seu pescoço, seus ombros rígidos, seus braços tensos. – Você
sabe que detesto quando não sei o que está acontecendo.
Quando um coro de risadas explodiu do lado oposto ao vestíbulo, Marissa se aninhou nele, o quadril se chocando contra todo tipo de diversão.
E, que surpresa, a ereção foi instantânea, o pau engrossando e se alongando por trás da braguilha da calça de couro.
Envolvendo-o pelo pescoço, ela se apoiou nele e encostou os seios em seu peito.
– Não está com fome?
Rugindo no fundo da garganta, ele passou os braços por trás e a segurou pelas nádegas. Uma palma cheia em cada banda, nada mais, firmes como as de uma ginasta…
Ah, Deus, estava começando a suar.
Só que ele sacudiu a cabeça.
– Isso não vai funcionar. Você não vai me distrair…
Em seguida, porém, Marissa abriu a boca e estendeu as presas. Aproximando-se, resvalou os caninos no lábio inferior dele, a sensação da ponta afiada em sua pele
arrancando-lhe um gemido.
– Parece que você está precisando de alguma coisa – ela sussurrou ao encontro da boca dele. – Quer me dizer o que é? – A língua dela se esticou e abriu caminho
com uma lambida. – O que é, Butch? Pode me contar do que você precisa…
– De você – ele grunhiu. – Eu preciso de você.
Depois da transição, quando o corpo se desenvolveu por completo e se transformou naquela demonstração de poder, ele se acostumara às façanhas da força física, e
também àquela fraqueza ressonante no que se referia à sua fêmea e ao sexo. Precisara de mulheres de tempos em tempos na época em que fora estritamente humano, mas
nada comparado à luxúria estrondosa que Marissa lhe provocava num piscar de olhos. Num olhar. Num toque. Numa ou duas frases… Às vezes, bastava apenas a pura fragrância
de oceano dela…
Bum! Era como se alguém tivesse explodido seus miolos.
– Marissa…
Sua pélvis circundou a ereção dele e logo ela se distanciou.
– Vem cá.
Ela poderia ter mandado ele fazer uma série de coisas – fique de ponta-cabeça, raspe as sobrancelhas, arranque seu braço –, que ele teria obedecido em um átimo.
Segui-la? Com a possibilidade de fazê-la alcançar um orgasmo? Ou seis?
Sim, senhora, por favor, obrigado, como posso servi-la?
Marissa o conduziu para trás do bar e o empurrou contra as prateleiras de bebidas. Com mãos apressadas, correu os dedos até o zíper e, que Deus o ajudasse, ele
se agarrou à bancada de granito enquanto a via soltar cada um dos botões, a extensão da ereção forçando o tecido a se abrir conforme ela descia.
E logo ela o segurou.
– Caraaaaalho… – Sua cabeça pendeu para trás, mas ele queria olhar para ela…
Seu corpo inteiro vacilou quando a mão dela acariciou o mastro.
– Gosta de ver quando faço isso com você? – Ela o manejava com maestria, para cima e para baixo. – Gosta, Butch?
– Sim – ele sussurrou, expelindo a palavra. – Gosto… de te ver… com as mãos em mim…
– E quanto à minha boca?
As bolas dele se contraíram e um orgasmo disparou para a cabeça do pau, pronto para explodir, e isso foi antes de ela se ajoelhar diante dele, desaparecendo por
trás da proteção da frente do bar.
Não conseguiria aguentar muito, mas, que se foda, ele queria aquela sensação, aquele calor, a sugada úmida, mesmo que por um segundo só… Mas sem ver. Teve que fechar
os olhos. Se a visse assim, com a boca bem aberta, os lindos cabelos espalhados sobre sua calça de couro, o olhar azul encarando-o como se ela apreciasse o seu gosto…
O que, evidentemente, não podia ser verdade. Mas aquela seria uma mentira que ele não contestaria…
Quando o nome dela reverberou em sua garganta, aquela sucção era exatamente o que ele buscava, deslizante, suave, tão sensual que ele teve que abrir os olhos. Com
a cabeça para a frente, teve a visão desimpedida dos sofás de couro, das mesas de bilhar, da arcada de entrada. Se alguém por acaso aparecesse ali – algo improvável
por causa da Última Refeição –, só o veria com uma expressão pornográfica no rosto. Marissa estava escondida atrás da bancada longa e alta do bar. E outra notícia
boa? O cheiro da vinculação estava muito espalhado, os aromas picantes tão fortes que serviriam de alerta para o que estava acontecendo ali, e de que o pessoal precisaria
lhes dar um tantinho de privacidade.
Marissa trabalhou na cabeça e no tronco com a boca, fustigando-o do jeito que ele gostava, e ele fechou os olhos de novo – pensando nos Patriots jogando contra
os Giants… Naquilo que estava sendo servido na sala de jantar… Na possibilidade de Lassiter obrigá-los a assistir The Bachelor ou talvez a porra da Rachael Ray e
seu maldito azeite de oliva extravirgem no programa de culinária.
A imagem da pequena chef tirana foi o filtro que melhor funcionou, bloqueando parte das sensações, ou pelo menos o suficiente para não gozar em cima da sua shellan.
Na verdade, seu temor quanto a esse resultado funcionou ainda melhor.
Inferno do cacete, o horror que ele sentiria se gozasse na boca dela ou, Deus do céu, no rosto dela…
Não, não. Nada disso. Isso não aconteceria.
Despregando as garras da bancada atrás de si, desceu as mãos e, com gentileza, puxou-a pelos ombros.
– Para… – grasnou. – Você tem que parar agora.
As sensações abaixo da cintura estavam ficando tão fortes quanto uma detonação, a ponto de, apesar de todas as distrações e da sua vigilância, elas estarem bem
próximas de assumir o controle, submergindo-o em grandes ondas de êxtase de alta octanagem.
Cerrando os dentes, seu rosto se retorceu.
– Hora de parar… Hora de parar…
No último momento possível, ele forçou a cabeça dela para trás, girou o quadril para o lado e ejaculou sobre os armários onde grandes caixas com embalagens dos
peixinhos dourados da Pepperidge Farm eram guardados. Enquanto ele gozava, ela se debateu contra a pegada dele, como se quisesse voltar para a ereção, mas ele não
permitiu até que seu quadril parasse de se sacudir e seu corpo todo relaxasse.
– Você devia ter me deixado terminar – ela disse baixinho. – Você nunca me deixa ir até o fim.
Voltando a se concentrar em sua companheira, suspendeu o corpo dela, o pau ainda rijo topando contra os seios, o abdômen, as coxas…
O som da campainha do vestíbulo fez com que virassem as cabeças, e Butch refreou um xingamento. Jesus, como permitira que acontecesse num local tão público? Pareceu-lhe
uma ideia perfeitamente aceitável enquanto estivera cego pelo desejo, mas aquele não era lugar para uma dama como ela pagar um boquete para um sujeito insignificante
como ele, mesmo ambos estando vinculados.
Butch rapidamente alisou os cabelos dela e depois começou a fechar os botões da braguilha.
– Precisamos continuar isso em casa.
– Até que foi divertido.
– Não.
Enquanto Fritz abria a porta para Xhex e Trez, Butch voltou para a realidade.
– … está me devendo uma! – Xhex disse ao entrar.
– Devo mesmo – respondeu Butch. – Pode cobrar quando quiser.
Xhex o dispensou com um gesto, depois mirou nele com a ponta do dedo.
– Vou cobrar a sua promessa.
– É melhor mesmo.
Butch teve que sorrir, mas logo voltou a se concentrar em sua shellan.
– Deixe-me te alimentar. E depois te levar nua para a cama.
– Que bom. – Ela o beijou e depois se virou para limpar o que ele havia…
– Não. – Butch segurou as mãos dela sobre o papel toalha. – Eu faço isso.
Enquanto ele a afastava do caminho, sentia que era observado, mas a ignorou. De onde ele vinha, existiam dois tipos de mulheres, e a sua companheira pertencia à
categoria das que eram idolatradas.
Ele devia saber disso. Tivera mais do que sua cota de vadias.
A última coisa que jamais faria era desrespeitar a sua Marissa. Seria o mesmo que incendiar uma igreja, esquartejar a Mona Lisa, ou jogar um Porsche 918 numa ribanceira
sem motivo algum.
Portanto, não. Ela não limparia a sujeira que ele causara.
Marissa tinha mais com que se preocupar.
Visto que Butch insistiu em limpar tudo sozinho, saiu do seu caminho e balançou a cabeça. Nunca entendera suas manias em relação ao sexo, mas as aceitava. O que
mais restava fazer? Ele se recusava a discuti-las; toda vez que ela trazia o assunto à baila, o fato de afastar sua boca sempre que ele se aproximava do clímax,
não tinha papo.
Além disso, naquele instante, a questão recorrente entre eles estava lá embaixo em sua lista de prioridades.
A fêmea terrivelmente ferida mal saíra viva da mesa de operações, e Marissa só voltara para casa porque não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar sentada
do lado de fora da UTI, à espera da notícia da falência dos órgãos dela. Ou de que eles voltaram a funcionar sozinhos. Deus, a cirurgia lhe pareceu tão complicada
quando a enfermeira lhe explicara o procedimento, mas reparar os órgãos internos e remover o baço não levara mais do que uma hora.
Infelizmente, ela perdera sangue demais, e mesmo depois de Havers ter lhe dado a sua veia, os sinais vitais eram instáveis.
Quando seu irmão saíra da sala de operações, olhara diretamente nos olhos de Marissa e lhe disse que tinha feito o melhor que podia.
Deixando de lado seus assuntos pessoais, acreditou nele.
De fato, havia praticamente tragédia demais para suportar no caso. Era triste que ainda não soubessem o nome da fêmea, e ninguém tinha vindo procurar por ela. Abalone,
o Primeiro Conselheiro do Rei, verificara as mensagens de e-mail e a secretária eletrônica da casa de audiências a seu pedido. Também não houve nenhuma procura,
tanto na clínica como no Lugar Seguro.
A moça era um fantasma no sentido figurado… a caminho de possivelmente se transformar em um literalmente.
– Vamos? – Butch disse ao oferecer-lhe seu braço.
Marissa saiu de seus pensamentos e sorriu para o companheiro.
– Sim, vamos.
Segurando-o, caminhou ao seu lado pelo vestíbulo e entraram na sala de jantar formal. Depois do momento de privacidade que haviam acabado de ter, todo aquele falatório,
riso e movimentação parecia um fuso horário social completamente diverso, e ela se sentiu um tanto oprimida. Isso é que era capacidade máxima. Ainda que o pé-direito
fosse imenso, e o piso maior do que uma pista de boliche, com a mesa de doze metros centralizada repleta de Irmãos, suas shellans, e outros soldados e residentes
da casa, ali estava um alegre congestionamento.
Havia dois lugares vagos na extremidade oposta, e eles avançaram até lá, Butch puxando a cadeira para ela.
Quando se acomodou ao seu lado, ele se inclinou e a beijou na boca.
– Coma rápido.
– Pode apostar – ela disse, mesmo não estando com fome.
E, tinha que admitir, não estava com pressa de retornar ao Buraco. A verdade era que insistira em seduzi-lo porque sabia que era o único modo de evitar que seu
macho se preocupasse com ela.
Quando um prato com filé mignon foi depositado na sua frente por um doggen, Marissa remexeu nele, cortou pedaços de carne que não experimentou, revolveu o purê
de batatas, espalhou as vagens. E depois pegou seu copo de cabernet sauvignon e se recostou, observando a todos, ouvindo as suas histórias.
– … vai me obrigar a fazer?
Concentrando-se em seu macho enquanto ele falava, viu quando ele se inclinou ao redor de John Matthew para fazer essa pergunta a Xhex.
A lutadora gargalhou.
– É melhor mesmo você ficar com medo de mim.
– Qualquer um que não fique é um tolo.
– Ah, você diz coisas tão calorosas… E não tenho pressa alguma em cobrar o meu favor. É muito bom ter um macho como você me devendo.
Sem nenhum motivo, Marissa observou como o corpo de Xhex era potente, os ombros e o tronco entalhados com músculos ressaltados debaixo de sua camiseta colante enfiada
dentro das calças de couro pretas. Considerando-se os cabelos muito curtos e os olhos cinza-escuros, ela, definitivamente, era alguém que devia ser levada a sério.
Por outro lado, Marissa trajava suas calças de escritório e uma blusa saída de uma escola inglesa.
Enquanto Butch levantava a palma para um cumprimento, Xhex bateu a dela, produzindo um estalo alto o bastante apesar de todos os barulhos de fundo.
– É disso que estou falando! – Butch disse ao se recostar na cadeira. – Inacreditável.
– O que é? – perguntou Marissa.
– Xhex foi… Bem, antes de tudo, eu estava nesse beco… Hum, me deixe voltar um pouco na história. – Cortou o ar com a palma. – Na verdade, é muita coisa para explicar.
Resumindo, eu estava acuado com dois redutores na minha frente, e Xhex estava com o celular do JM quando mandei uma mensagem pedindo apoio. Ela apareceu num segundo
e… – Butch parou de repente e só balançou a cabeça. – É isso.
Marissa esperou que ele continuasse.
– É isso…? O que aconteceu?
Butch pigarreou e sorveu um gole do Lagavulin em seu copo.
– Não importa. Foi o de sempre, sabe?
– Você estava em apuros, não estava?
Ele bebeu mais um gole.
– No fim deu tudo certo.
– Graças a Xhex.
– Você não comeu nada.
Ela baixou o olhar para seu prato.
– Ah, é. Eu comi antes de sair do Lugar Seguro.
Os dois se calaram.
Enquanto farpas e piadas eram trocadas entre os Irmãos, Marissa se sentiu recuando, indo para trás de uma tela invisível que abafava os sons e os sentidos.
– Pronta para ir? – Butch perguntou pouco depois, quando as pessoas começavam a se levantar da mesa.
– Sim. Sim, claro. Obrigada.
No meio do caminho até o arco de entrada, Butch parou para falar com V., os dois aproximaram as cabeças e murmuraram algo. Nesse ínterim, Xhex saiu da mesa com
seu companheiro, a mão de John trafegando pelas nádegas firmes, apertando-as e trazendo-a para junto dele. Ele só tinha olhos para sua companheira, o corpo de guerreiro
obviamente necessitando de uma válvula de escape.
A resposta?
Xhex emitiu um grunhido, os olhos da fêmea se fixaram nos de John Matthew enquanto ela revelava suas presas, como uma leoa montando o cenário do que, sem dúvida,
seria uma maratona de sexo.
Evidentemente, ela também tinha umas arestas que desejava aparar com seu hellren.
– Estamos combinados para amanhã, então, certo? – V. disse ao oferecer a palma para Butch.
– Certo. – Butch segurou a mão do Irmão e suas cabeças se aproximaram uma vez mais, as vozes se abaixaram de modo que ela ouviu apenas trechos da conversa.
– Isso. Certo. Aham. Te vejo lá no Buraco?
– Pode apostar.
Butch deu um apertão no ombro enorme de Vishous antes de se virar para Marissa.
– Vamos?
– Aham.
Quando Marissa foi seguindo com ele, percebeu que ainda segurava seu copo de vinho.
– Espere, deixe-me colocar isto na mesa.
Indo contra a maré, sorriu para Autumn e Tohr, acenou com a cabeça para Payne e Manny e com a mão para Bella e Nalla do lado oposto da mesa. Inclinando-se sobre
o prato ainda cheio, mas todo remexido, abaixou seu copo e desejou que Fritz e sua equipe deixassem que todos os ajudassem a retirar a mesa.
Quando se virou, parou.
Butch estava parado sob a arcada, as pernas naquelas calças de couro afastadas, as sobrancelhas unidas. Nada daquilo era estranho. Mas ele pegara a enorme cruz
de ouro debaixo da camisa e estava mexendo nela, esfregando o peso entre seus dedos.
E um mau presságio a acometeu.
– Marissa? – uma voz feminina a chamou.
Sobressaltando-se, sorriu para Bella.
– Oi. Vi vocês do outro lado da mesa. Você não é uma gracinha? – Afagou a bochecha de Nalla. – Acho que é sim… Claro que é.
– Está pesada demais para ser carregada. – Bella se inclinou para baixo e deixou a filha de pé nas perninhas agora firmes. – E estou pensando em comprar tênis de
corrida.
– Para você ou para ela?
Nalla disparou, mas na metade do caminho seu pai já a seguia de perto. Mesmo que ele parecesse um monstro assustador com o rosto marcado por cicatrizes, o crânio
raspado e as tatuagens de escravo, Nalla riu deliciada, relanceando para trás e sorrindo para seu pai enquanto corria, corria e corria ao redor da mesa, desviando
dos doggens que retiravam os pratos.
– Preciso de Nikes para nós duas – Bella sorriu. – Escuta, eu queria conversar com você. Ouvi rumores de que você organizaria o Festival Dançante do Décimo Segundo
Mês…
– O quê?
Bella pareceu confusa.
– Espere, pensei que… Será que entendi errado?
– Não, tudo bem. – Maravilha. – O que você ia dizer?
– Eu só queria te dizer que gostaria de ajudar da forma que eu puder. Fiquei surpresa em ouvir que você assumiria a tarefa, mas entendo por que o fez. Nós precisamos…
Não sei, acho que é hora de a raça reestabelecer as tradições que davam certo. Havia muitas que de nada serviam, mas os festivais são importantes…
Um grito infeliz inundou a sala agora vazia quando Nalla tropeçou e foi amparada pelo pai bem a tempo.
– Droga, tenho que ir – disse Bella. – Ela tem sentido dores de crescimento. Vou te dizer, estes últimos dias não têm sido fáceis. Só se lembre de que estou aqui
para ajudar, ok?
Bella seguiu atrás da família, estendendo os braços para Nalla, que, por sua vez, esticou um bracinho para sua mahmen. O outro ficou com o pai… de modo que os três
ficaram unidos.
Sim, dores de crescimento eram uma fase difícil, Marissa concordou. Por algum motivo, os vampiros jovens passavam por estirões de crescimento intensos, em comparação
com o crescimento lento e constante até a altura adulta da qual os humanos se beneficiavam.
Apenas mais um aspecto divertido da espécie.
Assim como os festivais.
Marissa esfregou as têmporas ao voltar para junto de Butch.
– Deus, a minha cabeça está latejando.
– Está? – ele perguntou. – Bem, vamos levá-la para a cama.
– Boa ideia. Acho que preciso dormir um pouco.
– É, você me parece cansada.
– Estou mesmo.
E esse foi basicamente o fim da noite: dez minutos depois, ela já estava na cama, de olhos fechados, com as imagens das últimas horas pipocando em sua cabeça como
flashes de luzes estroboscópicas.
Enquanto Butch voltava para a sala de estar do Buraco.
Sozinho.
Capítulo 4
NA NOITE SEGUINTE, Paradise pegou o ônibus escolar.
Por assim dizer.
Na verdade, havia dois “ônibus”, cada um com aproximadamente trinta pessoas, e quaisquer semelhanças entre eles e o onipresente transporte amarelo dos mini-humanos
terminavam com o nome compartilhado. Os veículos que a Irmandade usou para apanhar os candidatos ao programa de treinamento pareciam saídos do filme O Ataque, todos
negros por dentro e por fora, com vidros escuros e grossos nas janelas, certamente à prova de balas, pneus como das máquinas limpa-neves e para-choques que a fizeram
lembrar dos dinossauros T-Rex.
Como todos os outros, ela se desmaterializara para um trecho de terreno vazio a oeste dos subúrbios de Caldwell. Seu pai quis acompanhá-la, mas lhe pareceu importante
começar da mesma forma como pretendia continuar. Aquela era a sua decisão independente; precisava fazer o que todos os outros faziam. E ela tinha bastante certeza
de que ninguém ali traria um acompanhante.
Ainda mais um acompanhante que, por acaso, era o Primeiro Conselheiro do Rei.
Ver quase sessenta pessoas que não reconhecia fora uma surpresa. Em retrospecto, o formulário deixara claro que qualquer um poderia se inscrever; portanto, havia
muitos civis. Na verdade, parecia que todos eram civis e a proporção machos/fêmea devia ser de dez para um.
Mas pelo menos seu sexo era permitido.
Voltando a se concentrar, Paradise se mexeu no banco para garantir que o cotovelo não importunasse o macho que estava sentado ao seu lado. Fora a troca de nomes
– o dele era Axe –, não disseram mais nada, e o jeitão calado e taciturno combinava com o seu visual à perfeição: o macho tinha “assassino” escrito em todo ele,
com aquele cabelo negro espetado, todos aqueles piercings negros de um lado do rosto e a tatuagem de algo maligno lhe subindo até a metade do pescoço.
Imagine só se seu pai soubesse que ela estava perto assim de um macho como aquele? Teriam que colocar Abalone num aparato de suporte de vida.
E esse era exatamente o motivo pelo qual desejou entrar no programa. Era hora de se desligar das restrições impostas por sua posição, e dar um fim à vida de flor
de estufa. Se trabalhar para o Rei lhe ensinara algo, foi que não importava a sua classe social, a tragédia não discriminava, a justiça sempre podia ser feita e
ninguém sai desta vida vivo.
– Então você vai mesmo seguir com isso.
Paradise olhou para o vidro escuro da janela ao seu lado. Refletido na superfície espelhada, Princeps Peyton, primogênito de Peythone, estava exatamente como ela
se lembrava: belo de uma maneira clássica, com aqueles intensos olhos azuis e os espessos cabelos loiros escovados para trás da testa. Estava usando óculos de sol
sem aro com lentes cor safira que eram a sua marca registrada para esconder o fato de que provavelmente estava doidão, e suas roupas caras e descoladas eram feitas
sob medida para ressaltar o corpo musculoso. Com uma voz aristocrática e rascante, e um cérebro que, de algum modo, conseguia contrabalancear todo aquele THC, ele
era considerado um dos solteiros mais cobiçados da glymera, uma mistura de Grande Gatsby com Jack Sparrow.
Ao inspirar fundo, ela sentiu o perfume da colônia dele e um resquício de fumaça.
– Como tem passado, Peyton? – murmurou.
– Você saberia se atendesse a porra do telefone.
Paradise revirou os olhos. Mesmo sendo apenas amigos, o maldito era completamente irresistível às fêmeas. E um dos seus problemas, dentre tantos, era o fato de
ele saber disso.
– Ei. Oooi? – ele a chamou.
Paradise se virou de frente para ele.
– Não tenho muita coisa para te dizer. Visto que você me reduziu a um par de ovários para reprodução, não deveria ser uma grande surpresa. Não tenho muito mais
a oferecer, não é mesmo?
– Pode nos dar licença? – ele pediu para o macho sentado ao lado dela.
– Pode crer. – Axe, o cara durão, saiu dali como se estivesse fugindo de uma bomba de fedor. Ou de uma fêmea grasnante com um vestido rosa repleto de laços e fitas.
Peyton se sentou.
– Já pedi desculpas. Pelo menos para o seu telefone. O que mais quer de mim?
Ela meneou a cabeça, pensando no primeiro ano após os ataques. Tantos da espécie deles foram mortos pela Sociedade Redutora durante aquele ataque horrendo à raça,
e os afortunados o bastante para escapar com vida abandonaram Caldwell, retirando-se para suas casas seguras fora da cidade, fora do Estado, fora da Nova Inglaterra.
Peyton fora para o sul com a família. Ela fora para o oeste com o pai. E os dois passaram dias incontáveis insones conversando pelo telefone só para permanecerem
sãos e processarem o medo, a tristeza, o horror, as perdas. Nesse tempo, ele se tornara alguém com quem ela conversava não apenas uma vez à noite, mas durante as
infindáveis vinte e quatro horas dos ciclos dos dias, das semanas, dos meses.
Ele se tornara a sua família.
Claro, se a época tivesse sido remotamente normal, eles não teriam se aproximado daquela maneira, ainda mais se o contato tivesse sido pessoal. Como fêmea solteira
de uma das Famílias Fundadoras, ela não teria permissão para confraternizar tão livremente com qualquer macho descompromissado sem uma acompanhante.
– Sabe todas aquelas horas que passamos ao telefone? – ela perguntou.
– Sei.
– Senti como se você fosse a minha retaguarda. Que você não me julgava quando eu estava com medo, ou fraca, ou nervosa. Você era… uma voz do outro lado da linha
que mantinha a minha sanidade. Às vezes, você era a única razão que me fazia suportar até o cair da noite. – Balançou a cabeça. – E então isto aconteceu, e você
veio pra cima de mim com toda essa asneira da glymera…
– Não, espere um instante…
– Você fez isso, sim. Riu de mim e me disse que eu não conseguiria. – Cobriu a boca dele com a mão para silenciá-lo. – Pare de falar, ok? Deixa eu desabafar tudo
que está entalado. Quem sabe você até tenha razão: pode ser que eu não consiga entrar no programa. Tudo bem, posso me estatelar de bunda no chão, mas tenho permissão
de estar aqui neste ônibus, e tenho a mesma oportunidade que todos os outros. E justo você, que sempre zombou das fêmeas idiotas da sociedade que a sua família tentou
empurrar para você, que me disse que considera os festivais estúpidos, que rejeitou as expectativas de negócios que o seu pai deposita em você… Você é a última pessoa
que eu pensei que viria me atacar com essas regras antiquadas.
Ele se recostou e a fitou por trás das lentes azuladas.
– Terminou? Acabou seu sermão?
– Para a sua informação, dar uma de engraçadinho não vai te ajudar em nada aqui.
– Só quero saber se você vai deixar essa merda feminista de lado e me ouvir de verdade.
– Tá de brincadeira?
– Você não me deu uma chance sequer de explicar. Está ocupada demais preenchendo o meu lado da conversa com todas essas asneiras de queimar sutiãs. Por que se dar
ao trabalho de deixar a outra pessoa participar da conversa quando você sozinha está se divertindo tanto sendo preconceituosa e superior? Nunca pensei que você fosse
assim.
Bem-vindo a um universo paralelo, Paradise pensou.
Antes que conseguisse se segurar, ela rebateu:
– E eu aqui pensando que você fosse apenas viciado. Não sabia que também era misógino.
Peyton balançou a cabeça e se levantou.
– Sabe de uma coisa, Parry? Você e eu temos mesmo que dar um tempo.
– Concordo plenamente.
Do alto de sua enorme estatura, ele baixou o olhar para ela.
– Que tremendo idiota eu fui em pensar que você iria precisar de um amigo nisto aqui.
– Alguém que deseja o seu fracasso não é um amigo.
– Eu nunca disse isso. Nem uma única vez.
Quando ele se virou, Paradise quase lhe berrou algo, mas o deixou se afastar. Não que uma conversa os fosse levar a algum lugar. Mas o que aconteceu, em vez disso?
Praticamente todo mundo estava olhando para eles.
Caramba, as coisas estavam começando mesmo com o pé direito.
Uma hora após o pôr do sol, Marissa se desmaterializou numa área de floresta do outro lado do rio Hudson. O vento frio que soprava em meio aos pinheiros a fez estremecer,
e ela fechou o casaco de lã Burberry bem junto ao corpo. Respirando fundo, suas narinas zuniram com a falta de umidade e o ar incrivelmente limpo do anticiclone
que soprava do norte.
Olhando ao redor, pensou que existia algo fundamentalmente fúnebre no mês de novembro. As coloridas folhas do outono estavam caídas e ressecavam no chão, a grama
e a vegetação rasteira estavam murchas e acinzentadas, e os alegres e falsamente convidativos flocos de neve ainda tinham que cair para criar o manto branco.
Era a transição medíocre entre uma versão fabulosa e a seguinte.
Aquilo não era nada além de frio e vazio.
Ao girar em volta, sua visão aguçada se fixou numa estrutura de concreto sem nenhum atrativo, uns cinquenta metros mais adiante. Com um único andar, sem janelas
e apenas uma porta azul-escura, parecia algo que a prefeitura de Caldwell construíra com o propósito de tratar a água e posteriormente abandonara.
Ao dar um passo à frente, um galho se partiu sob seu pé com um ruído, e ela se deteve, virando para trás para se certificar de que não havia ninguém atrás dela.
Maldição, deveria ter dito a Butch aonde ia. Porém, ele estava tão ocupado se preparando para a orientação dos novos recrutas que ela não quis incomodá-lo.
Tudo bem, disse a si mesma. Sempre haveria a Última Refeição.
Falaria com ele, então.
Cruzando a distância até a porta, suas palmas começaram a suar dentro das luvas, e seu peito ficou tão apertado que parecia que estava usando um corpete.
Deus, quanto tempo fazia que não vestia um desses?
Enquanto tentava calcular, pensou no tempo antes de conhecer Butch. Tivera todo o status, mas não uma posição que alguém da glymera poderia desejar. Na qualidade
de noiva prometida e não reclamada de Wrath, filho de Wrath, não passava de um fruto proibido, uma bela maldição, lastimada e evitada nos eventos e nos festivais
da aristocracia.
Contudo, seu irmão sempre cuidara dela, uma fonte de conforto na maior parte do tempo silenciosa, mas mesmo assim leal. Ele odiara o fato de Wrath tê-la sempre
ignorado a não ser quando precisava se alimentar e, no fim, esse ódio levara seu irmão a tentar matar o Rei.
Como se constatou mais tarde, aquele seria apenas um dos vários atentados à vida de Wrath.
Ela se arrastava e sofria em sua infeliz existência, sem esperar mais nada, meramente desejando poder viver a própria vida… até que numa noite conheceu Butch na
antiga casa de Darius. Seu destino mudara para sempre ao ver o então humano parado na sala de estar, o destino lhe dando o amor que ela sempre buscara, mas que jamais
tivera. No entanto, houve repercussões. Talvez como parte do equilíbrio ditado pela Virgem Escriba, todo esse bem viera a um grande custo: seu irmão acabou por expulsá-la
de casa e de sua vida momentos antes do alvorecer de certa manhã.
Que era o que acontecia quando a filha de uma das Famílias Fundadoras está namorando o que se acredita ser apenas um simples humano.
No fim, revelou-se que havia muito mais em Butch, claro, mas seu irmão não ficara por perto tempo suficiente para saber disso tudo. E Marissa não se importara.
Teria assumido o seu macho de qualquer forma que ele se apresentasse a ela.
A não ser pela vez em que se deparara com Havers numa reunião do Conselho, ela, de fato, nunca mais vira o irmão desde então.
Isto é, até a noite anterior.
O engraçado é que ela não desperdiçara tempo algum pensando no que um dia tivera, onde estivera, como vivera. Distanciara-se de tudo o que acontecera antes de seu
companheiro, vivendo apenas no presente e no futuro.
Agora, porém, ao passar pela soleira da nova clínica de ponta do irmão, percebeu que aquela ruptura definitiva não passara de uma ilusão. Só porque seguimos em
frente não significa que nos despimos de nossa história pessoal como quem troca de roupa.
O passado de alguém é como a própria pele: permanece com você por toda a vida, tanto as proverbiais marcas de beleza… quanto as cicatrizes.
No caso de Marissa, basicamente as cicatrizes.
Muito bem, onde estava a campainha? A recepção? Na noite anterior, entraram com a ambulância por uma entrada diferente… Mas Havers lhe dissera para vir por ali
se viesse se materializando.
– Veio se consultar com algum médico? – uma voz feminina perguntou por um alto-falante.
Sobressaltada, afastou os cabelos e tentou encontrar a câmera de segurança.
– Hum… Na verdade, não tenho hora marcada. Vim ver…
– Não tem problema, meu bem. Entre.
Houve um som metálico e uma barra surgiu na superfície da porta. Empurrando-a, ela emergiu num espaço aberto de uns 6 metros de largura por 6 de comprimento. Com
luzes embutidas no teto e paredes de concreto pintadas de branco, parecia a cela de uma prisão.
Olhando ao redor, ficou se perguntando…
O facho vermelho do laser era largo como a palma da mão, mas tinha a espessura de um fio de cabelo, no máximo, e ela o notou apenas pelo calor, e não por sua visão
tê-lo percebido. Percorrendo-a dos pés à cabeça com lentidão, ele procedia de um canto à direita, de um meio globo escuro afixado no teto.
– Por favor, siga em frente – a voz feminina disse por outro alto-falante escondido.
Antes que Marissa levantasse a questão de não haver lugar para ir, a parede diante dela se partiu ao meio e deslizou para os lados, desaparecendo para revelar um
elevador que se abriu silenciosamente.
– Que chique – disse baixinho ao entrar.
O trajeto durou mais do que o esperado e o elevador parecia se mover para baixo, por isso ela concluiu que não havia exagero em chamar a construção de subterrânea.
Quando o elevador por fim parou, a porta se abriu novamente e…
Trabalho, trabalho, trabalho, ela pensou ao sair.
Parecia haver pessoas por todos os lados, sentadas em cadeiras ao redor de uma TV de tela plana à esquerda, dirigindo-se a uma bancada de recepção à direita, movendo-se
apressadas pela imensa sala. Trajavam jalecos brancos e uniformes de enfermagem.
– Olá! Você tem hora marcada?
Levou um instante para ela perceber que uma fêmea uniformizada sentada atrás do primeiro balcão se dirigia a ela.
– Ah! Não, desculpe, não tenho. – Aproximou-se e baixou a voz. – Sou tuhtora designada de uma fêmea que foi transferida do Lugar Seguro na noite passada. Vim ver
como ela está passando.
No ato, a recepcionista ficou paralisada. Em seguida, os olhos percorreram Marissa de alto a baixo, como o feixe de laser no andar térreo.
Marissa sabia exatamente que narrativa estava se passando pela mente da fêmea: noiva não reclamada de Wrath, hoje vinculada ao Dhestroyer e, acima de tudo, a irmã
distanciada de Havers.
– Poderia avisar o meu irmão que estou aqui?
– Já estou ciente da sua presença – Havers disse atrás dela. – Eu a vi na câmera de segurança.
Marissa fechou os olhos por um breve segundo. E depois se virou para encará-lo.
– Como está a paciente?
Ele se curvou de leve. O que foi uma surpresa.
– Não muito bem… Por favor, venha por aqui.
Enquanto seguia seu jaleco branco em direção a uma pesada porta dupla fechada, tinha consciência dos muitos pares de olhos sobre eles.
Encontros familiares eram divertidos. Ainda mais em público.
Depois de Havers passar seu cartão por um leitor magnético, as portas metálicas se abriram para revelar um espaço médico tão sofisticado e intenso quanto qualquer
um imaginado por Shonda Rhimes:* quartos hospitalares repletos de equipamentos médicos estavam agrupados ao redor de um espaço administrativo central com enfermeiras,
computadores e vários tipos de suporte, enquanto três corredores partiam em direções diferentes para o que ela deduziu serem unidades de tratamento especializado.
E seu irmão administrava tudo aquilo sozinho.
Se Marissa não soubesse do que o irmão era capaz, ficaria maravilhada com ele.
– Esta é uma instalação e tanto – observou ao seguirem em frente.
– O projeto levou um ano, a construção mais do que isso. – Ele limpou a garganta. – O Rei tem sido muito generoso.
Marissa lançou-lhe um olhar de surpresa.
– Wrath? – Como se houvesse outro monarca! Dã! – Quero dizer…
– Eu presto serviços essenciais à raça.
Foi poupada de sustentar a conversa por mais tempo quando ele parou diante de uma unidade envidraçada que tinha as cortinas fechadas pela parte interna.
– Você precisa se preparar para isto.
Marissa olhou fixamente para o irmão.
– Até parece que eu nunca testemunhei o resultado de violência antes…
A ideia de que ele desejasse protegê-la de qualquer coisa àquela altura era ofensiva.
Havers inclinou a cabeça, desconcertado.
– Sim, claro.
Com um movimento, ele abriu a porta de vidro e depois afastou as cortinas verdes claras.
O coração de Marissa gelou, e ela teve que combater certa hesitação. Tantos tubos e máquinas entravam e saíam da fêmea que aquilo mais parecia um filme de ficção
científica, o comando daquele fiapo de vida assumido por funções mecânicas.
– Ela está respirando sem auxílio – Havers informou ao se inclinar e verificar a leitura de alguma coisa. – Retiramos o tubo de traqueotomia umas cinco horas atrás.
Marissa se recompôs e forçou os pés a se moverem até a cama. Havers estivera certo ao alertá-la… Mas o que ela esperava ver? Vira os ferimentos pessoalmente.
– Alguém… – Marissa se concentrou no rosto judiado. Os hematomas haviam descolorido o rosto ainda mais, grandes faixas de roxo e vermelho marcando as faces inchadas,
os olhos, a mandíbula. – Alguém da família… veio procurá-la?
– Não. E ela não tem se mantido suficientemente consciente para nos dizer seu nome.
Marissa se aproximou da cabeceira da cama. Os bipes e os sussurros suaves do equipamento pareciam altos demais, e sua visão estava nítida demais ao olhar para a
bolsa de soro pingando constantemente, e o modo como os cabelos castanhos da fêmea estavam emaranhados sobre a fronha branca, e a textura da manta azul sobre os
lençóis.
Curativos em toda parte, pensou ela. E isso apenas nos braços e ombros expostos.
A mão pálida e delgada estava apoiada ao lado do quadril, e Marissa esticou a sua para segurá-la. Fria demais, pensou. A pele estava fria demais e não tinha a coloração
correta: estava branca acinzentada, em vez de castanha dourada.
– Está voltando a si?
Marissa ficou confusa com o comentário do irmão, mas logo percebeu que os olhos da fêmea estavam tremelicando, as pálpebras inchadas se abrindo e fechando.
Inclinando-se na direção dela, Marissa disse:
– Você está bem. Está na clínica do meu ir… na clínica da raça. Está segura aqui.
Um gemido sofrido a fez se retrair. E depois houve uma série de murmúrios.
– O que disse? – Marissa perguntou. – O que está tentando me contar?
As sílabas foram repetidas com pausas nos mesmos lugares, e Marissa tentou compreender o padrão, desvendar a série de palavras, apanhar o significado.
– Repita uma vez mais…
De repente, os bipes ao fundo se aceleraram num alarme. E Havers afastou a cortina e escancarou a porta, gritando para o corredor.
– O que foi? – Marissa perguntou, curvando-se mais sobre o leito. – O que está dizendo?
Enfermeiras entraram apressadas, e um carrinho foi trazido. Quando alguém tentou se colocar entre ela e a paciente, Marissa sentiu vontade de lhes dizer que parassem,
mas logo a agitação no quarto prevaleceu.
A conexão entre Marissa e a paciente foi rompida, as mãos das duas se afastaram, e mesmo assim os olhos da fêmea permaneceram fixos em Marissa, mesmo quando mais
pessoas e equipamentos ficaram entre elas.
– Comece as compressões – Havers disse quando uma enfermeira subiu na cama. – Carregue a máquina.
Marissa recuou um pouco mais, ainda mantendo contato visual.
– Eu vou encontrá-lo – ouviu-se dizendo em meio à confusão. – Eu prometo…
– Todos para trás – Havers ordenou. Quando a equipe se afastou, ele apertou um botão e a caixa torácica da fêmea se arqueou.
O coração de Marissa batia forte, como se tentasse compensar o que fraquejava sobre o leito.
– Vou encontrar quem fez isso com você! – ela exclamou. – Fique conosco! Não desista! Nos ajude!
– Sem pulsação – Havers anunciou. – Vamos repetir. Afastem-se!
– Não! – Marissa gritou quando os olhos da fêmea se reviraram. – Não…!
Shonda Rhimes é roteirista, cineasta e produtora norte-americana, criadora, entre outras séries, do drama médico Grey’s Anatomy. (N.T.)
Capítulo 5
AQUILO ERA… UM COQUETEL?
Enquanto Paradise entrava no ginásio que parecia ser tão grande quanto um campo de futebol profissional, surpreendeu-se em ver doggens uniformizados segurando bandejas
de prata repletas de canapés com as mãos cobertas por luvas brancas, um bar montado sobre uma mesa com toalha adamascada e música clássica tocando ao fundo.
As sonatas de violino de Mozart.
Das que seu pai ouvia diante da lareira após a Última Refeição.
À esquerda, havia um balcão de inscrição, para onde, após um instante de aglomeração, todos os sessenta candidatos formaram uma fila diante de uma doggen com um
sorriso contente estampado no rosto e um laptop diante de si. Não querendo parecer alguém que desejava tratamento especial, Paradise entrou na fila e esperou pacientemente
até informar seu nome, confirmar seu endereço, ter sua foto tirada e seguir para o lado onde entregou o casaco e a mochila.
– Gostaria de um canapé? – um doggen lhe ofereceu.
– Ah, não, obrigada, mas agradeço a gentileza.
O doggen se curvou até a cintura e abordou o macho que estivera atrás dela na fila. Relanceando por sobre o ombro, cumprimentou com a cabeça o colega candidato,
e o reconheceu dos festivais que a glymera organizara antes dos ataques. Como todos os membros da aristocracia, eram primos distantes, apesar de não ter convívio
com ele nem com seus familiares.
Seu nome era Anslam, se bem se lembrava.
Depois de retribuir o aceno, ele enfiou um canapé na boca.
Girando sobre os calcanhares, Paradise deu uma olhada nos equipamentos de ginástica espalhados pelo espaço aberto. Barras paralelas, barras simples, colchões para
amortecer as quedas, um cavalo de alças, leg press… ah, que bom, eles também tinham um aparelho de remo seco.
Pelo menos não fracassaria num dos equipamentos.
Espiando por cima do ombro, descobriu que muitos dos recrutas pareciam se esquivar constrangidos dos doggens, como se nunca tivessem visto criados antes. Peyton
atacava os aperitivos com fervor… O que não era uma surpresa. E Axe, o assassino serial latente, estava na periferia de tudo aquilo, com os braços cruzados diante
do peito, os olhos inspecionando o cenário como se talvez escolhesse suas vítimas.
Ficou se perguntando o que significavam todas aquelas tatuagens… E os piercings?
Tanto faz.
E, puxa, veja só, parecia haver apenas uma única outra fêmea até o momento. Considerando-se a expressão forte como aço no rosto magro, e os ombros amplos, ela provavelmente
seria mais adequada ao programa do que boa parte dos machos ali.
Esfregando as palmas úmidas nas coxas, Paradise desvencilhou-se de uma sensação de desapontamento: aquele macho, Craeg, que fora à casa de audiências atrás de um
formulário de inscrição, não estava no grupo.
Mas, convenhamos, devia ser uma coisa boa. Ele se mostrara uma distração absoluta no instante em que se aproximara da sua escrivaninha; e ela precisaria de toda
a sua concentração para passar por aquilo.
Desde que aquela noite revolvesse em torno de algo além de canapés.
Onde estavam os Irmãos?, perguntou-se.
Um movimento chamou a sua atenção pelo canto do olho. Um dos machos saltara no cavalo com alças e lentamente girava a parte inferior do corpo em círculos enquanto
os braços impressionantes mantinham seu peso suspenso. O som das palmas batendo no couro formou uma batida que rapidamente acelerou mais e mais conforme sua velocidade
aumentava.
– Nada mal… – murmurou enquanto o tronco incrivelmente forte lançava as pernas para fora e ao redor num borrão.
Ele não perdeu o compasso. Nem uma única vez. E quanto mais ele girava, mais convencida ela ficava de que deveria ter passado oito anos na academia, e não apenas
oito semanas. E se o restante dos candidatos fosse como ele? Estava ferrada.
Mas, olhando bem, ela não parecia ser a única intimidada. A turma inteira parara de passear para olhar para ele, hipnotizada pela excelência da atuação solitária
naquele imenso ginásio.
Tum.
O som da porta se fechando fez com que ela olhasse por sobre o ombro… E arfou antes de se conter.
Lá estava ele, aquele por quem ela esperava, aquele que ela tinha esperanças de reencontrar.
Paradise afofou o rabo de cavalo, algum receptor ligado ao estrogênio enlouquecendo e fazendo-a regredir aos dezesseis anos, enquanto o macho se aproximava do balcão
de inscrição.
Mais alto. Ele era muito mais alto do que ela se lembrava. Mais largo também – seus ombros esticavam a costura do moletom do Syracuse. Mais uma vez, vestia calça
jeans, diferente da anterior, mas também com rasgos. O calçado era um par puído e sujo de Nikes. Estava sem boné desta vez.
Lindos cabelos negros.
Devia tê-los cortado recentemente, pois as laterais estavam tão batidas que ela via o couro cabeludo por baixo da penugem escura ao redor das orelhas e da nuca,
e o topo estava curto o bastante para ficar espetado. O seu rosto… Bem, não devia ser de parar o trânsito para outras pessoas, o nariz era um pouquinho grande demais,
o queixo, um pouco pontudo, os olhos, um pouco afundados demais para parecerem receptivos. Mas, para ela, ele era Clark Gable; era Marlon Brando; era o The Rock;
era Channing Tatum.
Era como se estivesse embriagada sem ter bebido, imaginou alguma química dentro dela transformando-o em algo muito além do que ele era.
Inspirando fundo, tentou captar seu perfume… E se sentiu uma perseguidora.
Bem, porque talvez fosse uma perseguidora.
Depois que tiraram a sua foto, ele se virou para o restante da turma, os olhos varrendo o grupo, sem demonstrar nenhuma reação. Ao longe, ela percebeu que a doggen
que os recepcionara arrumava seus pertences e partia, juntamente a todos os outros criados, que provavelmente se afastavam para voltar a encher as bandejas.
Mas será que ela se importava com isso?
Olhe para mim, ela pensou olhando na direção do macho. Olhe para mim…
E foi o que ele fez.
Seus olhos passaram por ela, mas, em seguida, voltaram e ali se detiveram. Quando um raio de eletricidade atravessou o corpo inteiro de Paradise, ela…
De repente, o ginásio ficou escuro.
Breu. Sinistro. Total.
De volta à clínica subterrânea de Havers, se Marissa não estivesse apoiada no vidro, teria caído.
Ainda mais quando viu o irmão puxar o lençol branco por cima da expressão congelada da fêmea.
Santa Virgem Escriba, não estava preparada para o silêncio da morte… Para como, quando Havers anunciou a hora do óbito, tudo e todos pararam, os alarmes silenciaram,
os esforços cessaram, a vida acabara. Também não estava preparada para a retirada do equipamento que tentara manter a fêmea viva: um a um, os tubos no peito, nos
braços, no abdômen foram removidos, assim como os eletrodos do monitor cardíaco. A última coisa que tiraram foram as faixas de compressão ao redor das canelas finas.
Marissa acompanhava perplexa a movimentação das mãos gentis das enfermeiras. Foram cuidadosas com a paciente na morte assim como haviam sido em vida.
Quando a equipe se preparava para ir embora, ela sentiu vontade de agradecer às fêmeas de roupas brancas e sapatos levemente rangentes. Dar-lhes a mão. Abraçá-las.
Em vez disso, ficou onde estava, paralisada pela sensação de que a morte ocorrida não deveria ter sido testemunhada por ela. Era a família que deveria estar ali,
pensou apavorada. Deus, onde encontraria a família dela?
– Sinto muito – Havers disse.
Marissa estava prestes a perguntar por que estava se desculpando com ela quando percebeu que o irmão se dirigia à paciente morta: estava curvado sobre o leito,
uma das mãos sobre o ombro inerte debaixo do lençol, as sobrancelhas franzidas por trás dos óculos de aro tipo casco de tartaruga.
Quando ele se endireitou e recuou, levantou os óculos e pareceu enxugar os olhos, ainda que, ao se voltar para ela, parecesse completamente composto.
– Cuidarei para que os restos dela sejam tratados adequadamente.
– E isso significa…
– Que ela será cremada de acordo com um ritual adequado.
Marissa concordou com um aceno de cabeça.
– Quero ficar com as cinzas dela.
Enquanto Havers assentia e ambos combinavam que ela apanharia as cinzas na noite seguinte, Marissa estava bem ciente de que seu tempo estava se acabando. Se não
se afastasse do irmão, daquele quarto, daquele corpo, da clínica… acabaria desmoronando diante dele.
E isso simplesmente não era uma opção.
– Se me der licença – ela o interrompeu. – Tenho que cuidar de alguns assuntos no Lugar Seguro.
– Sim, claro.
Marissa olhou para a fêmea, notando sem pensar as manchas vermelhas em alguns pontos do lençol, sem dúvida resultantes da remoção dos tubos.
– Marissa, eu…
– O que foi? – ela disse com voz cansada.
No silêncio tenso que se seguiu, ela pensou em todo o tempo que passara furiosa com ele, odiando-o, embora, naquele instante, não conseguisse reunir nenhuma dessas
emoções. Apenas ficou ali parada diante de seu parente, aguardando numa postura que não era nem de força nem de fraqueza.
A porta se abriu e a cortina foi afastada. Uma enfermeira, que não estivera envolvida na tentativa de reanimação da paciente morta, inseriu a cabeça pela abertura.
– Doutor, estaremos prontos em quatro minutos.
Havers assentiu.
– Obrigado. – Quando a enfermeira se afastou, ele disse: – Pode me dar licença? Eu preciso…
– Cuide dos seus pacientes. Pode ir. É o que você faz de melhor, e é muito bom nisso.
Marissa saiu do quarto, e depois de um instante de hesitação quanto a que direção tomar, lembrou-se de ir pela esquerda. Era mais fácil recobrar a compostura do
lado de fora e manter a máscara no lugar ao retornar para a recepção, com todos os olhares fixos nela quando ela partiu, como se a notícia tivesse se espalhado pelos
funcionários. Estranho não ter reconhecido nenhum rosto. Isso a fez perceber mais uma vez quantos haviam sido mortos nos ataques, e quanto tempo se passara desde
que circulara pelo ambiente de trabalho do irmão.
E como os dois, apesar dos laços sanguíneos, eram, essencialmente, estranhos um para o outro.
Pegando o elevador para subir à superfície, desembarcou no recinto parecido com uma cela da construção superior e seguiu caminho em direção à floresta.
Ao contrário da noite anterior, a lua brilhava forte, iluminando as árvores… e a ausência de qualquer estrada. Percebeu que, de fato, existiam entradas múltiplas
para o complexo subterrâneo, algumas para entregas, outras para pacientes que conseguiam se desmaterializar, e outra ainda para as ambulâncias.
Tudo isso logicamente projetado, sem dúvida segundo as diretrizes e influência do irmão.
Por que Wrath não lhe contara que estava ajudando Havers com tudo aquilo?
Pensando bem, isso não era da sua conta, era?
Será que Butch sabia?, perguntou-se.
Sinto muito.
Enquanto ouvia a voz do irmão em sua mente, sua raiva voltou multiplicada por dez, a ponto de ter que esfregar a queimação que sentia no esterno.
– Águas passadas não movem moinhos – disse a si mesma. – Hora de voltar ao trabalho.
No entanto, ela não parecia capaz de partir. De fato, a ideia de regressar ao Lugar Seguro fez com que quisesse seguir na direção oposta. Não poderia contar às
suas funcionárias o que acabara de acontecer. A morte da fêmea era como uma negação de tudo o que tentavam fazer debaixo daquele teto: interceder, proteger, educar,
fortalecer.
Não. Não conseguiria ir direto para lá.
A questão era… Não fazia ideia de onde ir.
Capítulo 6
NA ESCURIDÃO TÃO DENSA quanto a de um túmulo, Paradise só conseguia ouvir o próprio coração batendo forte atrás das costelas. Estreitando os olhos, tentou ajustar
a vista, mas não havia nenhuma fonte de luz em parte alguma: nenhum brilho ao redor das portas, nenhum sinal luminoso em vermelho indicando a saída, nenhuma luz
de emergência. O vazio era absolutamente aterrorizante e parecia desafiar as leis da gravidade, a sensação de que talvez estivesse flutuando no ar apesar de seu
peso permanecer sobre os pés a confundia e a nauseava.
A música clássica também não tocava mais.
Mas o ambiente estava longe de estar silencioso. Ao forçar os ouvidos a não priorizar as castanholas dentro do peito, conseguiu ouvir murmúrios, respirações, imprecações.
Alguns deviam estar se movendo um pouco, pois ouvia o farfalhar das roupas, os raspar dos calçados, como barulho de fundo para sons vocais mais proeminentes.
Eles não podem nos machucar, pensou. De modo algum a Irmandade os feriria de verdade. Sim, claro, assinara um termo de consentimento e de exoneração de culpa na
parte de trás da inscrição – não que tivesse dado muita atenção às letras miúdas – mas, de toda forma, assassinato era assassinato.
Não se podia assinar um documento abrindo mão do direito de permanecer vivo.
Aquilo só podia ser a Irmandade fazendo a sua grande entrada. A qualquer momento. Isso mesmo, eles surgiriam debaixo de algum holofote, suas silhuetas destacadas
como as de super-heróis contra um fundo de fumaça, seu incrível arsenal dependurado nos corpos imensos.
Aham.
A qualquer instante…
Enquanto a escuridão prosseguia, seu medo deu as caras de novo, e era muito difícil não ceder a ele e correr. Mas para onde ir? Tinha vaga noção de onde estavam
as portas, o bar e o balcão de recepção. Também se lembrava de onde aquele macho, Craeg, estava – não, espere, ele tinha se mexido. Estava se mexendo.
Por algum motivo, ela o sentia em meio a todos os outros, como se ele fosse algum tipo de farol…
Uma brisa passou pelo seu corpo, sobressaltando-a. Mas era apenas ar fresco. Uma corrente de ar fresco.
Bem, isso excluía a possibilidade de uma queda de energia, se o sistema de ventilação estava funcionando.
Ok, era ridículo.
E, evidentemente, não era a única se frustrando ali. Outros praguejavam mais, se movimentavam mais, batiam os pés no chão, impacientes.
– Prepare-se.
Paradise gritou na escuridão, mas se acalmou ao reconhecer a voz de Craeg, seu cheiro, sua presença.
– O que disse? – sussurrou.
– Prepare-se. É aqui que o teste começa. Abriram uma saída, a pergunta é como nos farão ir até lá.
Ela desejou parecer tão esperta e calma quanto ele.
– Por que simplesmente não voltamos pelas portas que usamos para entrar?
– Não é uma boa ideia.
Bem nessa hora, ocorreu uma movimentação coordenada na direção pela qual entraram, como se um grupo tivesse se formado, concordado com uma estratégia, e colocasse
o plano em ação.
E foi nesse instante que ela ouviu os primeiros gritos da noite.
Agudos, e evidentemente de dor, não de surpresa, os sons horríveis vinham acompanhados de um zunido que ela não compreendia.
Às cegas, literalmente, esticou a mão e segurou Craeg… Só que pegou na extensão dura e plana do seu abdômen e não no braço.
– Ah, Deus… desculpe, eu…
– Eletrificaram as portas – ele disse, sem comentar a gafe dela, tampouco seu pedido de desculpas. – Podemos concluir que nada aqui é seguro. Bebeu o que serviram?
Comeu alguma coisa daquelas bandejas?
– Hum… Não, eu…
Da esquerda, ouviram o som inconfundível de alguém vomitando em meio ao caos. E dois segundos depois, como um passarinho respondendo a um trinado da sua espécie,
outra pessoa começou a vomitar.
– Eles não podem nos fazer passar mal – ela disse de súbito. – Espere, isto é… isto é uma escola! Não podem…
– Isto aqui é sobrevivência – disse o macho com seriedade. – Não se engane. Não confie em ninguém, ainda mais se for algum suposto professor. E não tenha esperanças
de passar por isto, não por ser uma fêmea, mas porque os Irmãos vão estabelecer um padrão tão alto que somente dez de nós terão uma chance de ainda permanecer de
pé até o fim da noite. Quando muito.
– Não pode estar falando sério.
– Preste atenção – ele disse. – Ouviu isto?
– Os vômitos? – O estômago dela se revolveu em empatia. – Difícil não ouvir.
Difícil suportar o cheiro também.
– Não, o tique-taque.
– O que… – E foi aí que ela também ouviu… ao fundo, o equivalente sonoro a alguém se movendo atrás de cortinas, havia um tique-taque ritmado. – O que é isso?
– Não nos resta muito tempo. O intervalo entre os ruídos está ficando cada vez mais curto. Boa sorte.
– Aonde você vai? – O que ela queria dizer era: não me deixe. – Aonde…
– Vou atrás do ar fresco. É para lá que todos irão. Não toque nos aparelhos de exercício. E, como já disse, boa sorte.
– Espere! – Mas ele já se afastara, um fantasma sumindo na escuridão.
De repente, Paradise se sentiu completamente apavorada, seu corpo tremia incontrolavelmente, as mãos e os pés entorpecendo, suor frio se formando em cada centímetro
quadrado de sua pele.
Papai estava certo, pensou. Não posso fazer isto. No que eu estava pensando…
E foi nesse momento que tudo começou.
Do alto e de todos os lados, aconteciam explosões como se o ginásio tivesse sido preparado para ser detonado. Os sons eram tão altos que seus ouvidos os registraram
como dor, não apenas barulho, e os flashes de luz tão brilhantes que ela passou de uma versão da cegueira para outra.
Gritando em meio ao caos, ela levou as mãos aos ouvidos e se abaixou, procurando cobertura.
À frente dela, viu pessoas no chão, algumas num agachado defensivo como o seu, outras vomitavam, e junto àquelas portas, pessoas se retorciam e abraçavam a si mesmas
apertado, como se a dor fosse grande demais para permanecerem de pé.
Só havia uma pessoa de pé se movimentando.
Craeg.
Nos flashes intermitentes, ela acompanhou seu avanço para o canto oposto. Sim, parecia existir uma abertura, uma porta que ofereceria nada além de mais escuridão…
Mas devia ser melhor do que ser explodido.
Deu um punhado de passos à frente, mas logo percebeu que aquilo seria uma cretinice. Correr. Ela precisava correr. E não havia nada detendo-a, e ela não queria
ser atingida pelos destroços que caíssem.
Não toque nos equipamentos.
Levando-se em consideração o que acontecera com aqueles que tentaram sair pelas portas metálicas? Só podia ser verdade.
Foi um grande alívio disparar adiante, porém ela teve que diminuir o passo porque sua visão não conseguia acompanhá-lo; ela precisava esperar pelos flashes de luz.
Era o único modo de avançar com segurança.
Pense numa caminhada desajeitada. Tropeços, arrastos, escorregadas, ela começou a abrir caminho em meio ao barulho e à luz atordoantes, à ameaça à sua vida, ao
terror que a acompanhava.
Acabara de entrar no labirinto de equipamentos quando se deparou com a primeira pessoa caída no chão. Era um macho que gemia e apertava a barriga. Seu instinto
foi o de tentar ajudá-lo, mas conteve-se.
Isto aqui é sobrevivência.
Algo passou zunindo por sua orelha – uma bala? Estavam atirando neles?
Jogando-se no chão, foi deslizando pelo chão escorregadio de barriga, e depois foi avançando agachada em meio ao tremendo caos.
Estava indo bem até chegar ao macho seguinte que estava deitado se contorcendo, os braços agarrados ao abdômen.
Era Peyton.
Continue, disse a si mesma. Vá para a segurança.
Enquanto outra explosão acontecia, bem do lado direito da sua cabeça, ela grudou a barriga no chão e gritou em meio à confusão:
– Merda!
Enquanto Craeg, filho de Brahl, o Jovem, avançava pelo ginásio, surpreendeu-se com o fato de que deixar aquela fêmea para trás o incomodasse tanto. Não a conhecia,
não lhe devia nada. Ela era Paradise, a recepcionista da casa de audiências do Rei, aquela que lhe entregara o formulário de inscrição impresso havia várias semanas.
De que ele precisava por ser pobre demais para ter acesso à internet, quanto mais a um computador e uma impressora.
Lá naquela sala, ela se mostrara… deslumbrante demais para que ele a fitasse. E quando ficou sabendo que ela queria participar do programa? A única coisa que lhe
passou pela mente era o que os humanos poderiam fazer com ela caso a apanhassem. Ou os redutores. Ou o tipo errado de vampiro.
Alguém tão linda quanto ela não estava segura neste mundo.
Entretanto, ela parecia ingênua quanto à severidade das provas que todos enfrentariam como trainees. Os Irmãos haviam orquestrado cada parte daquele ambiente. Nada
fora deixado ao acaso, e nada aconteceria a favor dos candidatos. Dizer a ela o que ela já deveria saber pareceu-lhe o único modo de ajudá-la de alguma maneira,
mas não poderia desperdiçar sequer um instante se perguntando o que podia ter acontecido com ela.
Precisava era se concentrar nos flashes.
Ainda que a princípio parecessem aleatórios, na verdade existia um padrão sutil neles, e assim como os tique-taques antes que o show de barulhos e luzes começasse,
os intervalos estavam ficando cada vez menores; portanto, seu tempo estava acabando.
Não fazia ideia de qual seria a segunda fase, mas sabia muito bem que era bom estar preparado para ela.
Pelo menos nenhum deles morreria.
Apesar da atmosfera de perigo, ele tinha a sensação de que a Irmandade não feriria nenhum deles de verdade. As “explosões” eram apenas muito barulho e luzes: não
havia destroços, nenhuma estrutura estava caindo, não havia cheiro de fumaça. Do mesmo modo, o que quer que estivesse fazendo mal às pessoas não devia ser algo fatal.
Os camaradas deitados no chão não estavam num momento feliz em suas vidas, claro, mas em meio aos flashes, ele notou que os primeiros a caírem já estavam ficando
de pé.
Aquele era um teste, um teste elaborado e só Deus sabia quanto duraria e, pelo andar da carruagem, a proporção de sucesso entre os candidatos devia ser ainda mais
baixa do que aquela que dissera a Paradise.
Craeg parou e olhou para trás por um segundo. Não conseguiu evitar.
Contudo, não havia como saber onde ela estava no meio daquela confusão. A luz não se sustentava por tempo suficiente e havia muitos corpos ali.
Apenas siga em frente, disse a si mesmo.
Já fez isso antes, vai fazer hoje de novo.
Seguindo em frente, abriu seu caminho ao largo dos equipamentos de exercício. Não era uma boa ideia tentar se proteger atrás deles. De tempos em tempos, ele via
pelo canto dos olhos alguma pobre alma tentar isso, só para parecer ser eletrocutada, os corpos se retorcendo em ângulos esquisitos na luz estroboscópica ao serem
lançados para trás e caírem.
Desejou muito que ela tivesse lhe dado ouvidos.
Abaixando a cabeça e se movimentando com rapidez, acabou chegando à porta de entrada do lado oposto. O cheiro de ar fresco era inebriante, um respiro que renovou
as forças do seu corpo. Mas ele não conseguia enxergar o que havia do outro lado, e recriminou-se por não ter dado razão ao impulso de trazer uma lanterna consigo.
Ok, tudo bem, então nem ele mesmo imaginara que as coisas ali podiam ficar tão intensas.
– É por aí que temos que ir.
Ao som daquela voz grave, ele olhou para trás, e ficou surpreso ao ver uma fêmea parada tão perto dele. Não era a loira adorável, nem perto disso. Na verdade, aquela
parecia sugerir que o termo “sexo frágil” era um grande equívoco de nomeação. Era quase tão alta quanto ele, musculosa debaixo das roupas de ginástica e, pelo modo
como o encarava direto nos olhos, ele entendeu que ela era tão inteligente quanto forte.
– Craeg – apresentou-se, estendendo a mão.
– Novo.
Como esperado, o aperto de mãos foi breve e forte.
– Agora vem isso. – Ela apontou para o vazio com a cabeça. – Por que diabos eu não trouxe a minha lanterna?
– Acabei de pensar a mesma coisa…
– Por aqui! – alguém exclamou. – É por aqui!
Em meio à luz forte, Craeg viu um grupo de três machos disparando pela passagem, conduzido por um grandalhão que trazia uma expressão de triunfo antecipado no rosto,
que Craeg tinha muita certeza que não duraria muito tempo mais.
Craeg sacudiu a cabeça e recuou um passo. Qualquer que fosse a maneira de entrar ali, não seria em disparada. Pelo que sabiam…
Um… Dois… Três… O trio passou por ele e pela fêmea, que havia parado ao seu lado.
De súbito a porta se fechou num baque forte. Em seguida, gritos do lado oposto.
Craeg olhou ao redor. Talvez outra saída fosse aberta? Ou talvez devesse pensar mais amplamente? Seria possível existir outra resposta…
Naquele instante, viu um par de cordas penduradas do teto uns nove metros mais à frente. Podia jurar que elas não estavam ali antes… Quem podia saber?
– Essa é a próxima opção – comentou.
– Vamos lá.
Os dois se afastaram, correndo ao redor dos equipamentos, na direção das cordas antes que mais alguém o fizesse. Não havia como saber onde elas os levariam, não
dava para enxergar tão alto, mas as luzes pipocavam com maior intensidade, e não havia opção.
– Pedra, papel, tesoura para ver quem vai escolher antes – ela disse, mostrando o punho.
Ele fez o mesmo.
– Um, dois, três. – Craeg escolheu pedra; ela, papel. – Você escolhe.
– Ok.
Craeg segurou a da esquerda e puxou com tanta força que suas palmas arderam. Parecia ser forte o bastante. Mas e se estivesse errado? A queda seria bem longa, e
não havia acolchoados embaixo.
Ele e a fêmea avançaram lado a lado, segurando, puxando, usando os pés para prender a ponta solta que deixavam para trás ao subirem. E ela era quase tão rápida
quanto ele, não que gastasse muito tempo para medir o seu progresso. Para cima, para cima, para cima… Até que os alto-falantes dos quais saíam os barulhos de explosão
estivessem logo acima da sua cabeça e as caixas de luz que geravam os flashes brilhantes os cegassem logo adiante.
– E agora? – exclamou quando estava a menos de dois metros do teto.
– Andaimes – ela gritou de volta, mudando de mão na corda e apontando.
E lá estava algum tipo de passarela suspensa por fios de metal. Olhando para baixo, rezou mais uma vez para que a plataforma fosse forte o bastante para suportar
o peso.
– Vou na frente.
– Pedra, papel, tesoura – ela gritou. – Um, dois, três.
Ele escolheu tesoura; ela, papel.
– Eu primeiro – ele anunciou.
Só que a passarela ainda estava um tanto distante, mesmo quando ele chegou à sua altura. Segurando-se à corda grossa, usou a parte inferior do corpo para criar
um movimento pendular… que passou a um balanço completo. Seria necessária uma perfeita cronometragem para fazer aquilo do jeito certo, teria que soltar as mãos por,
pelo menos, um metro e meio em pleno ar, sem rede de proteção embaixo. E quem é que sabia o que encontraria ali quando aterrissasse?
Mais metal com corrente elétrica correndo por ele?
Craeg avançou com a pelve uma vez mais, ergueu os joelhos e afastou o peso da passarela; em seguida, quando o movimento o levou para a frente uma vez mais, ele
arqueou as costas e jogou os pés adiante.
E, bem na hora certa, soltou a corda, desistindo da segurança que ela oferecia.
Pelo menos, ele desejou que fosse na hora certa.
Capítulo 7
– LEVANTA, PEYTON! LEVANTA… AGORA!
Quando Paradise perdeu a luta com seu instinto de sobrevivência e rolou o amigo – ou inimigo, ou que diabos fosse ele agora – de costas, praguejou contra ele, contra
si mesma, contra a Irmandade, contra mais ou menos tudo que fosse um substantivo.
A nova posição não demorou muito. Quando ele voltou a vomitar, ela o empurrou de bruços de novo a fim de que não aspirasse o vômito.
Olhando ao redor, viu… tantos caídos no chão. Como se fosse um campo de batalha.
– Vou morrer – Peyton gemeu.
Nos recessos da mente, Paradise notou que, apesar de os sons serem calamitosos, havia mais iluminação, os flashes surgiam mais rapidamente e permaneciam por mais
tempo.
– Venha. – Paradise o puxou pelo braço. – Não podemos ficar aqui.
– Pode me deixar… só me deixe ficar aqui…
Quando Peyton vomitou de novo e pouca coisa foi expelida, ela olhou para a extremidade oposta do ginásio. Havia algumas pessoas paradas ao redor da abertura escura
na direção que Craeg lhe dissera para tomar.
– Peyton…
– Vamos todos morrer…
– Não, não vamos.
E foi um choque perceber que de fato ela acreditava nisso, que não fora apenas uma frase feita para dar falsas esperanças ao senhor Gostosão com problemas estomacais.
A questão era que todo aquele barulho e aquelas luzes não provocavam nenhum escombro, nenhuma fumaça, tampouco poeira, nenhuma estrutura estava pensa, nada de fato
ameaçava o lugar e nem as pessoas ali dentro. Era um espetáculo de som e luzes, como uma tempestade de trovões ao longe ou uma produção teatral, e só.
Também teve a sensação de que as luzes estavam mudando, e isso devia ter algum significado.
Provavelmente um nada bom.
– Peyton. – Agarrou seu braço e voltou a posicioná-lo de costas. – Levanta o traseiro do chão. Temos que chegar ao canto.
– Não consigo… está muito…
Sim, ela o esbofeteou. Não sentiu orgulho disso nem ficou satisfeita com o contato rude.
– Levanta.
Os olhos dele se abriram.
– Parry?
– Com quem diabos você achou que estava falando? Taylor Swift? – Ele suspendeu o torso do chão. – Fica de pé.
– Posso acabar vomitando em você.
– E eu não tenho problemas mais sérios? Já deu uma olhada neste lugar?
Peyton começou a balbuciar coisas sem sentido, e foi então que ela decidiu que já bastava. Passando por cima das pernas dele, segurou-o por debaixo das axilas e
usou sua força recém-descoberta para andar para trás arrastando-o até colocá-lo de pé em seu par de Adidas.
– Paradise, eu vou…
Fantástico.
Agora, a parte da frente da roupa dela estava toda vomitada.
E ele estava tão cambaleante que andar em linha reta seria um desafio. Correr? Nem sonhando.
– Que droga… – murmurou, segurando-o ao redor da cintura e suspendendo-o do chão como se fosse uma barra de pesos.
Pesado. Muito pesado para os seus ombros.
Agora era ela quem estava cambaleando. Era como se estivesse tentando equilibrar um piano, situação piorada pelo fato de que o peso estava discutindo com ela e
vomitando na parte de trás da sua perna direita.
Paradise começou a se mover, ignorando tudo a não ser o seu objetivo de chegar até a maldita porta do outro lado. A cabeça estava virada para um lado; o pescoço,
tão tenso que ardia; o ombro, entorpecido pela falta de circulação; e as coxas já tremiam pelo peso adicional sobre elas.
A tentação de se perder em todas as sensações físicas era forte, ainda mais depois que elas ficaram mais intensas e insistentes. Mas ela queria… Bem, ela queria
chegar à porta, ao ar fresco, ao fim daquela situação de completo caos. Então poderia respirar fundo, colocar o peso morto reclamante de Peyton no chão e se sentar
numa sala de aula limpa e agradável.
Talvez partilhar algumas risadas com a Irmandade por ela ter passado pela pior parte e agora as aulas teóricas e de autodefesa poderiam começar.
Para conseguir continuar em frente, tentou se lembrar do aspecto das salas de aula que vira quando ela e os demais foram conduzidos a partir do estacionamento.
Tinham luzes fluorescentes e cadeiras e mesas posicionados ordenadamente voltadas para a frente.
– Pare… – disse Peyton. – Eu vou morrer…
– Pode calar a boca e ficar parado? – disse ela num resmungo.
– Eu vou…
Ah, pelo amor de Deus, ela pensou quando ele vomitou de novo.
Conforme avançava a duras penas e ofegava devido ao esforço, o labirinto de equipamentos de atletismo era um completo pesadelo, as diversas estações parecendo ter
sido espaçadas e anguladas de modo a dificultar a passagem, o contorno, a superação.
Ainda mais com Peyton dobrado sobre ela.
Sem falar nas tantas pessoas espalhadas pelo chão.
Toda vez que passava ao lado de alguém ou tinha que passar o pé por cima de uma cabeça, mão, pé ou perna, queria parar, perguntar se estavam bem, chamar ajuda…
enfim, fazer alguma coisa. O fato de não poder salvar ninguém a não ser a si mesma e a Peyton a fazia gritar internamente, os pulmões queimando dentro do peito,
uma estranha raiva motivando-a.
Ficou procurando por sangue. Obsessivamente.
Mas não havia sinais dele: nenhuma mancha vermelha nas roupas, nada de fios rubros sobre a pele ou poças sobre as tábuas amarelo douradas do piso. Também não havia
nenhum cheiro dele que lhe fosse perceptível, embora houvesse diversos outros, nenhum deles agradável. Mas nada de sangue. E isso tinha que ser bom… Certo?
– Ahhhh! – ela berrou, ao sentir uma dor lancinante.
Nada é tão ruim que não possa piorar.
A dor no cotovelo esquerdo desestabilizou tudo, seu corpo se comportando como uma mesa dobrável que teve uma perna chutada… e, bem como um cesto de frutas sobre
uma superfície previamente nivelada, Peyton despencou no chão, seus membros frouxos quicando como se fossem maçãs.
– Ai, meu Deus – ela cerrou os dentes e agarrou o braço, massageando-o onde a corrente elétrica a atingira.
Aproximara-se demais do aparelho de supino horizontal. E ao avaliar a quantidade de equipamentos que ainda tinha que ultrapassar, pensou: Não consigo fazer isso…
não consigo…
– Consegue se levantar? – perguntou.
Peyton respondeu de forma não verbal com mais do que um não: foi uma afirmativa enfática de que isso ainda não era minimamente possível.
Deus, como ainda podia restar alguma coisa no estômago dele?
– Não consigo fazer isso – ela gemeu ao olhar ao redor e massagear o cotovelo.
Enquanto seus olhos iam de um lado a outro, percebeu que estava procurando por ajuda, algum tipo de boia salva-vidas, um salvador. Devia existir alguém a quem poderia
recorrer…
Pela segunda vez em sua vida, rezou à Virgem Escriba, cerrando os olhos com força, tentando encontrar as palavras certas contra a confusão ao fundo, os estrondos,
os cheiros, as visões e os espasmos desordenados de adrenalina em seu interior. De algum modo, ela conseguiu suplicar à deidade da raça que enviasse alguém para
por um fim àquilo, para cuidar de Peyton, para resgatar todas as outras pessoas abatidas, para que todos saíssem daquele inferno…
Pare de perder tempo, uma voz interior comandou.
Foi um choque tão grande que ela se virou para trás, esperando encontrar alguém atrás dela. Não havia ninguém ali.
Talvez tivesse sido anunciado nos alto-falantes?
Pare de perder tempo! Vá!
– Não consigo levantá-lo de novo!
É melhor encontrar um jeito de fazer isso, porra!
– Não consigo!
É melhor fazer essa porra de uma vez!
– Ok, tudo bem, ok, tudo bem.
Murmurou essas palavras repetidamente ao voltar a erguer Peyton e recolocá-lo na posição anterior. A segunda vez que o suspendeu foi ainda mais descoordenada que
a primeira, o corpo frouxo em partes que não ajudavam em nada, nada mesmo, mas Peyton parecia estar recobrando as forças, e suas mãos a seguraram pelo quadril.
Quando ultrapassou a parte dos obstáculos, estava ficando sem forças. Fez um rápido cálculo mental para medir a distância até a porta, acrescentando outros fatores
como o quanto o seu ombro estava se deformando debaixo de todo aquele peso, e o fato de que, inconvenientemente, precisava tanto urinar que sentia como se alguém
estivesse apunhalando o seu baixo ventre.
Passando a galopar, os pés deslizavam sobre o piso abençoadamente desobstruído; quanto menos chacoalhasse, melhor para o passageiro que carregava e seu próprio
corpo.
Espere um instante.
A porta estava fechada.
Ao chegar ao seu destino, franziu o cenho e forçou a visão a se focar nos instantes de iluminação. Merda, a porta estava fechada. Mas não havia pessoas paradas
junto a ela apenas momentos atrás?
Aproximando-se do painel, deixou Peyton escorregar para trás e mal lhe deu uma olhada quando ele caiu esparramado no chão.
O que acontecera com a maldita porta?
Não havia maçaneta de nenhum tipo. Nenhuma dobradiça. Nenhum vidro para quebrar.
Girando para o outro lado, perscrutou o ambiente… Jesus, havia cordas penduradas no teto, e duas pessoas penduradas nelas, subindo com uma velocidade que fez com
que ela quisesse se sentar e desistir bem ali onde estava.
– Peyton? – ela o chamou ao inclinar a cabeça mais para trás para acompanhar a subida daquele par. – Não vou conseguir te carregar numa daquelas ali.
Inferno, ela não achava que conseguiria arrastar o próprio peso por aquelas cordas flexíveis.
Aonde aqueles dois estavam indo?, perguntou-se quando eles sumiram de vista.
– Peyton, vamos precisar…
Uma depois da outra, as longas cordas torcidas caíram no chão pesadamente, provocando um baque tão alto que ela pôde ouvir mesmo com todo o barulho ao fundo.
Onde foram parar aqueles dois?
Esfregando os olhos, quis gritar. Em vez disso, cerrou os dentes e disse:
– Que diabos vamos fazer ag…
Uma corrente renovada de ar fresco fez com que voltasse a se girar. A porta voltara a se abrir, revelando um denso vazio negro.
Como se já tivesse consumido os outros recrutas e estivesse pronto para mais uma refeição.
Peyton se esforçou para ficar de pé, limpando o rosto com as mãos trêmulas.
– Consigo andar.
– Graças a Deus.
Ele olhou-a de relance.
– Te devo uma.
– Primeiro, vamos ver se indo por aqui vamos parar em algum lugar.
– Vamos juntos. – Os olhos dele ardiam quando lhe ofereceu o cotovelo, como se eles fossem entrar num salão de baile, ela de vestido de gala, ele de smoking. –
Não vou te deixar.
Paradise o encarou por um instante.
– Juntos.
Entrelaçando o braço no dele, não se surpreendeu quando ele a usou para se equilibrar. Ainda assim, aquilo representava uma incrível melhora em relação ao antigo
estado quase comatoso… a não ser pela náusea.
Avançaram ao mesmo tempo, pois a soleira era larga o bastante para deixar passar os dois…
A porta bateu atrás deles e apagou qualquer fonte de luz, e ela abriu a boca para gritar, mas conteve a saída do som. A sensação do chão escorregando debaixo dos
seus pés voltou a acontecer, uma lição quanto à importância da visão em relação ao equilíbrio e à orientação espacial de braços, pernas e tronco.
Ao seu lado, Peyton ofegava.
Do nada, mãos rudes a seguraram pelos cabelos, puxando-o com força. E ela desatou a gritar conforme o medo a fazia se contorcer e se debater contra quem a segurava.
– Paradise!
Foram separados e algo foi colocado sobre a sua cabeça, prendendo-se em seu pescoço. Forçada ao chão, suas pernas foram amarradas e depois usadas para puxá-la de
costas. Debatendo-se, tentando chutar, respirar, permanecer ainda que minimamente calma o bastante para poder pensar, sentiu-se sufocar.
Sentiu como… se fosse morrer.
No alto do andaime, Craeg descobriu do jeito mais difícil que era melhor se equilibrar, pois os choques que levava toda vez que seus braços encostavam em algo metálico
faziam seu coração acelerar e bloqueavam sua mente por uma fração de segundo que ele não podia se dar ao luxo de desperdiçar.
E, naturalmente, a maldita plataforma era tão desequilibrada quanto um velhinho caquético, indo de um lado para o outro, balançando como um bastão de basebol.
– Entre no ritmo! – gritou para Novo. – Siga meus passos!
Mãos fortes o seguraram pela cintura.
– Tô contigo.
Passaram a andar a passos largos, rápidos, porém cautelosos, indo de um lado a outro, o calor das luzes e o grupo de pessoas abaixo fazendo-o suar. Esticando os
braços, ele equilibrava a si mesmo e a ela, e os dois começaram a avançar num ritmo bom, dirigindo-se só Deus sabe para onde…
De repente, a passarela ficou estável, e isso foi uma notícia bem ruim. O que dava certo numa superfície instável não funcionou muito bem na firme, e os dois se
meteram numa série de choques elétricos que os mandou de um lado a outro, os corpos se chocando e depois voltando a acertar os apoios de metal, só para receberem
mais choques. Os músculos começaram a se enrijecer com cãibras e se recusaram a relaxar, os membros incapazes de seguir os comandos mentais.
– Cacete! – Craeg exclamou ao tentar fazer o corpo parar de reagir ao estímulo.
– Mas que porra…? – Novo berrou.
Ou algo parecido.
Em pleno ar.
Em seguida, ele se viu caindo da beirada da qual não notara se aproximar, uma queda livre que fez com que até ele berrasse a plenos pulmões. Ao seu redor, o ar
se movia rápido, passando por suas roupas, agitando-as, correndo por seus cabelos, pele do rosto e das costas, atordoando os seus ouvidos com um som impactante.
Acabaria fraturando as pernas se caísse de pé, mas não havia tempo, tampouco distância – sequer um motivo – para tentar amortecer a queda que não seria devastadora…
Splash!
Ele atingiu de lado uma inesperada superfície líquida, seu corpo sendo capturado por aquele volume de água limpa e fria. O alívio por não ter acabado com os dois
fêmures saindo pelo topo dos ombros durou pouco. Após tantos choques elétricos, seus músculos torturados e hiperaquecidos imediatamente se retesaram com cãibras,
tudo se imobilizou, a ausência de gordura corporal transformando-o numa âncora, não numa boia.
O choque da queda inesperada fez com que ele enchesse os pulmões de ar, porém esse oxigênio não duraria muito. Precisava retornar à superfície.
Com mãos fechadas em garras e mobilidade em apenas uma perna, ele lutou e se debateu na direção que esperava que fosse para cima. Não tinha absolutamente nenhuma
orientação visual, nada além do abismo negro que o consumiria caso não se salvasse.
A superfície da piscina, da lagoa, do lago, do que quer que aquilo fosse, surgiu inesperadamente, sem aviso, surpreendendo-o da mesma forma que antes, quando mergulhara
nela. Tossir e inspirar eram duas atividades mutuamente excludentes, e ele teve que forçar seu primordial senso de sobrevivência a fim de regular as reações espasmódicas
do diafragma.
Cloro. Estavam numa piscina.
Não passou muito tempo pensando nisso. A dor das cãibras era inacreditável: era como se tivesse adagas cravadas nas coxas, nas nádegas, no abdômen, e ele começou
a afundar antes de recobrar o fôlego, e isso não seria nada bom. Acabaria morrendo assim.
Lutando contra os impulsos do corpo, usou a mente para sobrepujar o sistema nervoso simpático: inspirando uma enorme quantidade de ar e prendendo depois o fôlego,
mexeu os braços para fora e para baixo, criando uma correnteza artificial que correu pelo seu tronco na superfície da água. Depois parou… cacete… de se mexer.
E deixou o ar dentro dos pulmões ser o colete salva-vidas que não estava usando.
Não era uma boia perfeita. As pernas continuavam a afundar, e ele tinha que agitá-las de vez em quando para permanecer à tona, mas era infinitamente melhor do que
bater no fundo e se afogar.
De tempos em tempos, expelia o ar e voltava a inalar.
Não tinha certeza de quanto tempo aguentaria aquilo. Mas logo descobriria.
Deus… Seus músculos enrijecidos eram uma tortura a suportar e, para se distrair, reviveu os momentos no alto daquela passarela. Os Irmãos eram brilhantes, concluiu.
Ir do calor para aquele frio? Depois de todos os choques?
Era um ambiente planejado, garantido para colocá-los exatamente onde ele se encontrava: lutando contra as reações naturais do corpo a certos estímulos e ambientes.
O que estaria acontecendo com todos os outros?, imaginou.
Onde estaria aquela fêmea?
Não a que estivera com ele no alto… mas a outra? Paradise?
Enquanto a água obstruía os seus ouvidos, era como aquele espetáculo de luzes no ginásio, obscurecendo e depois permitindo estímulos sensoriais. Ouvia a agitação
da água, tanto perto quanto longe… Muitos gritos e arquejos de outros na piscina… ecos – deviam estar em um lugar amplo com um teto relativamente baixo e muitos
azulejos.
Libertando o ar nos pulmões, imediatamente os encheu outra vez…
… e esperou pelo que viria em seguida.

 

CONTINUA

Glossário de Termos e Nomes Próprios
Ahstrux nohtrum: Guarda particular com licença para matar, nomeado(a) pelo Rei.
Ahvenge: Cometer um ato de retribuição mortal, geralmente realizado por um macho amado.
As Escolhidas: Vampiras criadas para servirem à Virgem Escriba. São consideradas membros da aristocracia, embora sejam voltadas mais para assuntos espirituais que temporais. Têm pouca ou nenhuma interação com os machos, mas podem se acasalar com os Irmãos a fim de reproduzir sua espécie, segundo a orientação da Virgem Escriba.
Algumas têm a capacidade de predizer o futuro. No passado, eram utilizadas para satisfazer a necessidade de sangue de membros solteiros da Irmandade, e tal costume foi recolocado em prática pelos Irmãos.
Chrih: Símbolo de morte honrosa no Antigo Idioma.
Cio: Período fértil das vampiras. Em geral, dura dois dias e é acompanhado por intenso desejo sexual. Ocorre pela primeira vez aproximadamente cinco anos após a transição da fêmea e, a partir daí, uma vez a cada dez anos. Todos os machos respondem em certa medida se estiverem perto de uma fêmea no cio. Pode ser uma época perigosa, com conflitos e lutas entre os machos, especialmente se a fêmea não tiver companheiro.
Conthendha: Conflito entre dois machos que competem pelo direito de ser o companheiro de uma fêmea.
Dhunhd: Inferno.
Doggen: Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens seguem as antigas e conservadoras tradições de servir seus superiores, obedecendo a códigos formais no comportamento e no vestir. Podem sair durante o dia, mas envelhecem relativamente rápido. Sua expectativa de vida é de aproximadamente quinhentos anos.
Ehnclausuramento: Status conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia em resposta a uma petição de seus familiares. Subjuga uma fêmea à autoridade de um responsável único, o tuhtor, geralmente o macho mais velho da casa. Seu tuhtor, então, tem o direito legal de determinar todos os aspectos de sua vida, restringindo, segundo sua vontade, toda e qualquer interação dela com o mundo.
Ehros: Uma Escolhida treinada em artes sexuais.
Escravo de sangue: Vampiro macho ou fêmea que foi subjugado para satisfazer a necessidade de sangue de outros vampiros. A prática de manter escravos de sangue recentemente foi proscrita.
Exhile dhoble: O gêmeo mau ou maldito, o segundo a nascer.
Fade: Reino atemporal onde os mortos reúnem-se com seus entes queridos e ali passam toda a eternidade.
Ghia: Equivalente a padrinho ou madrinha de um indivíduo.
Glymera: A nata da aristocracia, equivalente à corte no período de Regência na Inglaterra.
Hellren: Vampiro macho que tem uma companheira. Os machos podem ter mais de uma fêmea.
Hyslop: Termo que se refere a um lapso de julgamento, tipicamente resultando no comprometimento das operações mecânicas ou da posse legal de um veículo ou transporte motorizado de qualquer tipo. Por exemplo, deixar as chaves no contato de um carro estacionado do lado de fora da casa da família durante a noite.
Inthocada: Uma virgem.
Irmandade da Adaga Negra: Guerreiros vampiros altamente treinados para proteger sua espécie contra a Sociedade Redutora. Resultado de cruzamentos seletivos dentro da raça, os membros da Irmandade possuem imensa força física e mental, assim como a capacidade de recuperarem-se rapidamente de ferimentos. Não é constituída majoritariamente por irmãos de sangue. São iniciados na Irmandade por indicação de seus membros. Agressivos, autossuficientes e reservados por natureza, vivem apartados dos vampiros civis e têm pouco contato com membros das outras classes, a não ser quando precisam se alimentar. Tema para lendas, são reverenciados no mundo dos vampiros. Só podem ser mortos por ferimentos muito graves, como tiros ou uma punhalada no coração.
Leelan: Termo carinhoso que pode ser traduzido aproximadamente por “muito amada”.
Lhenihan: Fera mítica reconhecida por suas proezas sexuais. Atualmente, se refere a um macho de tamanho sobrenatural e vigor sexual.
Lewlhen: Presente.
Lheage: Um termo respeitoso utilizado por uma submissa sexual para referir-se a seu dominante.
Libhertador: Salvador.
Lídher: Pessoa com poder e influência.
Lys: Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
Mahmen: Mãe. Usado como um termo identificador e de afeto.
Mhis: O disfarce de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
Nalla/nallum: Um termo carinhoso que significa “amada”/“amado”.
Ômega: Figura mística e maligna que almeja a extinção dos vampiros devido a um ressentimento contra a Virgem Escriba. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes, dentre os quais, no entanto, não se encontra a capacidade de criar.
Perdição: Refere-se a uma fraqueza crítica em um indivíduo. Pode ser interna, como um vício, ou externa, como uma paixão.
Primeira Família: O Rei e a Rainha dos vampiros e sua descendência.
Princeps: O nível mais elevado da aristocracia dos vampiros, só suplantado pelos membros da Primeira Família ou pelas Escolhidas da Virgem Escriba. O título é hereditário e não pode ser outorgado.
Redutor: Membro da Sociedade Redutora, é um humano sem alma empenhado na exterminação dos vampiros. Os redutores só morrem se forem apunhalados no peito; do contrário, vivem eternamente, sem envelhecer. Não comem nem bebem e são impotentes. Com o tempo, seus cabelos, pele e íris perdem toda a pigmentação. Cheiram a talco de bebê.
Depois de iniciados na Sociedade por Ômega, conservam uma urna de cerâmica na qual seu coração foi depositado após ter sido removido.
Ríhgido: Termo que se refere à potência do órgão sexual masculino. A tradução literal seria algo aproximado de “digno de penetrar uma fêmea”.
Rytho: Forma ritual de lavar a honra, oferecida pelo ofensor ao ofendido. Se aceito, o ofendido escolhe uma arma e ataca o ofensor, que se apresenta desprotegido perante ele.
Shellan: Vampira que tem um companheiro. Em geral, as fêmeas não têm mais de um macho, devido à natureza fortemente territorial deles.
Sociedade Redutora: Ordem de assassinos constituída por Ômega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
Symphato: Espécie dentro da raça vampírica, caracterizada pela capacidade e desejo de manipular emoções nos outros (com o propósito de trocar energia), entre outras peculiaridades. Historicamente, foram discriminados e, em certas épocas, caçados pelos vampiros. Estão quase extintos.
Transição: Momento crítico na vida dos vampiros, quando ele ou ela transforma-se em adulto. A partir daí, precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviver e não suportam a luz do dia. Geralmente ocorre por volta dos 25 anos. Alguns vampiros não sobrevivem à transição, sobretudo os machos. Antes da mudança, os vampiros
são fisicamente frágeis, inaptos ou indiferentes ao sexo, e incapazes de se desmaterializar.
Trahyner: Termo usado entre machos em sinal de respeito e afeição. Pode ser traduzido como “querido amigo”.
Tuhtor: Guardião de um indivíduo. Há vários graus de tuhtors, sendo o mais poderoso aquele responsável por uma fêmea ehnclausurada.
Tumba: Cripta sagrada da Irmandade da Adaga Negra. Usada como local de cerimônias e como depósito das urnas dos redutores. Entre as cerimônias ali realizadas estão iniciações, funerais e ações disciplinadoras contra os Irmãos. O acesso a ela é vedado, exceto aos membros da Irmandade, à Virgem Escriba ou aos candidatos à iniciação.
Vampiro: Membro de uma espécie à parte do Homo sapiens. Os vampiros precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano os mantêm vivos, mas sua força não dura muito tempo. Após sua transição, que geralmente ocorre aos 25 anos, são incapazes de sair à luz do dia e devem alimentar-se na veia regularmente.
Os vampiros não podem “converter” os humanos por meio de uma mordida ou transferência de sangue, embora, ainda que raramente, sejam capazes de procriar com a outra espécie. Podem se desmaterializar por meio da vontade, mas precisam estar calmos e concentrados para consegui-lo, e não podem levar consigo nada pesado. São capazes de apagar as lembranças das pessoas, desde que recentes. Alguns vampiros são capazes de ler a mente. Sua expectativa de vida ultrapassa os mil anos, sendo que, em certos casos, vai além disso.
Viajante: Um indivíduo que morreu e voltou vivo do Fade. Inspiram grande respeito e são reverenciados por suas façanhas.
Virgem Escriba: Força mística conselheira do Rei. Também é guardiã dos registros vampíricos e distribui privilégios. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes. Capaz de um único ato de criação, que usou para trazer os vampiros à existência.

 

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Capítulo 1
Casa de Audiências do Rei, Caldwell, NY
ALGUNS TIPOS DE FORMATURA aconteciam em particular.
Alguns desses marcos importantes para a fase seguinte em nossas vidas não incluíam chapéus e becas, nenhuma orquestra humana tocando “Pompa e Circunstância”. Não
havia um palco para atravessar, tampouco um diploma para pendurar na parede. Também não existiam testemunhas.
Algumas graduações eram marcadas por coisas simples, corriqueiras, nada especiais, como uma pessoa esticando a mão até o monitor da Dell para apertar o botãozinho
azul no canto inferior direito da tela. Uma ação tão comum, feita tantas vezes numa semana, num mês, num ano, mas, ainda assim, naquele momento em especial, um divisor
de águas.
Enquanto Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, Rei de todos os vampiros, estava sentada em sua cadeira de escritório
e encarava a tela preta diante dela. Inacreditável. A noite que ela tanto esperava estava quase chegando.
Em grande parte, as últimas oito semanas se arrastaram, mas nessas derradeiras noites tudo mudou, passando para um modo catapulta. De repente, depois de ter passado
por sete mil horas de espera para que a lua se erguesse no céu, ela sentia que queria que as coisas desacelerassem de novo.
O seu primeiro emprego agora já era coisa do passado.
Olhando por sobre a escrivaninha, rearranjou o aparelho de telefone em um centímetro. Endireitou o vitral com desenho de libélula da luminária da Tiffany. Certificou-se
de que as canetas azuis estivessem num porta-canetas e as vermelhas, num outro. Alisou a palma sobre a superfície limpa do mata-borrão e do topo do monitor.
A sala de espera estava vazia; as cadeiras forradas de seda, desocupadas; as revistas, ordenadas nas mesinhas auxiliares; os copos com as bebidas servidas pelos
doggens àqueles que ali estiveram, já retirados.
O último civil se retirara meia hora antes. O alvorecer seria dali a duas horas. Considerando-se tudo, era o fim normal de uma noite de trabalho duro, a hora em
que ela e o pai voltariam para a propriedade da família para desfrutar de uma refeição completa regada com conversas, planos e respeito mútuo.
Paradise se inclinou para a frente e espiou na curva do arco de entrada para a sala de estar. Do lado oposto ao vestíbulo, as portas duplas que antes davam para
uma sala de jantar formal da mansão estavam fechadas.
Sim, apenas mais uma noite normal, a não ser pela reunião informal que estava acontecendo ali. Assim que a última audiência terminara, seu pai fora chamado à sala
de audiências e aquelas portas foram fechadas.
Ele estava lá dentro com o Rei e dois membros da Irmandade da Adaga Negra.
– Não façam isso comigo – ela disse. – Não tirem isso de mim.
Paradise se levantou e começou a andar, reorganizando as revistas, reafofando as almofadas, parando diante do retrato a óleo de um monarca francês.
Voltou à arcada, olhou para as portas fechadas da sala de jantar, ficou atenta às batidas fortes do seu coração.
Erguendo as mãos, inspecionou os calos nas palmas. Eles não foram provocados pelo seu trabalho ali junto ao pai e à Irmandade nos últimos meses, organizando a agenda,
pesquisando casos, resoluções e acontecimentos subsequentes. Não, pela primeira vez na vida, ela vinha se exercitando. Levantando pesos. Correndo na esteira. Fazendo
step. Barras suspensas, flexões, abdominais. Remo seco.
Antes, ela sequer sabia o que era remo seco.
E tudo como preparo para a noite seguinte.
Desde que aquele grupo de machos na sala de audiências do Rei não lhe tirasse tal perspectiva.
Na noite seguinte, à meia-noite, ela deveria se juntar a outros machos e fêmeas sabe-se a Virgem Escriba onde, na qual ela tentaria passar pelo teste de aceitação
no programa de treinamento de soldados da Irmandade da Adaga Negra.
Era um bom plano. Algo que ela decidira perseguir, uma possibilidade de independência e de descer o cacete nos inimigos para provar que ela era mais do que simplesmente
o seu pedigree. O problema? Filhas de puro sangue da glymera, ainda mais de uma das Famílias Fundadoras, não treinavam para se tornar soldados. Não lidavam com adagas
e pistolas. Não aprendiam a lutar para se defender. Sequer sabiam o que era um redutor.
Tampouco se associavam com soldados.
Filhas como ela eram ensinadas a fazer ponto cruz, educadas em música clássica e canto, boas maneiras, e a administrar uma mansão repleta de doggens. Esperava-se
que elas entendessem o complicado calendário social e os ciclos dos festivais, mantivessem-se atualizadas no quesito guarda-roupa e soubessem diferenciar Van Cleef
& Arpels, Boucheron e Cartier. Eram ehnclausuradas, protegidas e adoradas assim como todas as joias o eram.
A única coisa perigosa que lhes era permitido fazer? Procriar. Com um hellren escolhido pela família a fim de garantir a santidade de suas linhagens.
Era um milagre que o pai estivesse permitindo que ela fizesse aquilo.
Definitivamente ele não estivera de acordo assim que ela lhe mostrara o formulário de inscrição. Mas acabara mudando de ideia, permitindo que ela se inscrevesse.
Os ataques ocorridos alguns anos antes, quando tantos vampiros foram assassinados pela Sociedade Redutora, provaram que Caldwell, em Nova York, era um lugar perigoso.
E ela lhe dissera que não era sua intenção sair para lutar nas ruas, só queria aprender a se defender.
Depois de apresentar a questão sob o ponto de vista de sua segurança? Foi então que seu pai mudou de ideia.
A verdade, no entanto, era que ela queria algo que fosse seu, apenas. Uma identidade originária de outro lugar que não somente aquela que o seu nascimento lhe forçava.
Além disso, Peyton lhe dissera que ela não conseguiria.
Porque era uma fêmea.
Ele que se danasse!
Paradise olhou uma vez mais para as portas.
– Vamos lá…
Andando de um lado para o outro, acabou indo parar no vestíbulo, mas não quis se aproximar muito do lugar onde os machos conversavam… Como se aquilo pudesse dar
azar.
Deus, o que estariam conversando ali?
Normalmente, o Rei saía assim que a última audiência se encerrava. Se ele e a Irmandade tinham assuntos particulares ou de guerra para discutir, isso era conduzido
na residência da Primeira Família, um lugar tão secreto que nem mesmo o seu pai era convidado a ir até lá.
Portanto, aquilo só podia estar acontecendo por sua causa.
De volta à sala de espera, foi até a escrivaninha e contou as horas em que estivera sentada ali. Fazia apenas uns dois meses que o emprego era seu, mas gostava
do trabalho. Até certo ponto. Ao se ausentar, desde que fosse aceita no programa de treinamento da IAN, uma prima sua assumiria seu posto, e ela passara as últimas
sete noites mostrando toda a rotina, explicando os procedimentos que ela própria estabelecera, a fim de garantir que a transição acontecesse de maneira suave.
Recostando-se na cadeira, abriu a gaveta do meio e pegou a sua inscrição, como se isso pudesse, de algum modo, garantir que aquilo ainda aconteceria.
Ao segurar o documento, ficou imaginando quem mais estaria na orientação da noite seguinte… E pensou no macho que aparecera ali na casa de audiências, em busca
de uma versão impressa do formulário de inscrição.
Alto, ombros largos, voz grave. Usando um boné de basebol do Syracuse e jeans puídos pelo que aparentava ter sido causado por trabalho de verdade.
A comunidade dos vampiros era pequena, e ela nunca o vira antes. Mas talvez ele fosse apenas um civil? Essa era outra mudança no programa de treinamento. Antes,
somente machos da aristocracia eram convidados a trabalhar com a Irmandade.
Ele lhe dera seu nome, mas recusara-se a apertar a mão dela.
Craeg. Era só o que ela sabia.
Contudo, ele não fora rude. Na verdade, até apoiara a sua decisão de enviar a inscrição.
Também fora… cativante de um modo que a chocara, a ponto de ela ter esperado semanas inteiras para que ele retornasse com o formulário em mãos. Ele não voltara.
Talvez o tivesse escaneado e enviado eletronicamente.
Ou, talvez, tivesse resolvido não se inscrever, no fim das contas.
Parecia loucura ficar desapontada com a possibilidade de nunca mais encontrá-lo.
Quando seu celular emitiu um trinado, ela se sobressaltou e pegou o aparelho. Peyton. De novo.
Ela o veria na orientação na noite seguinte, e isso já seria cedo demais. Depois da discussão que tiveram quanto a ela se juntar ao programa, ela teve que se afastar
daquela amizade.
Mas, pensando bem, e se a Irmandade se recusasse a admiti-la? A indignação que ela sentia em relação ao rapaz de nada serviria. Mas a questão era que era permitido
às fêmeas se inscreverem.
O problema maior era que não se tratava de uma fêmea “normal”.
Caramba, não sabia o que faria se o pai recuasse. Mas com certeza a Irmandade não esperaria até o último minuto para rejeitar a sua inscrição.
Certo?
Do outro lado da cidade, Marissa, a shellan vinculada do Irmão da Adaga Negra Dhestroyer, também conhecido como Butch O’Neal, estava sentada à sua escrivaninha
no Lugar Seguro. Quando a poltrona emitiu um rangido, ela bateu a ponta da sua caneta Bic no calendário que cobria a mesa e passou o telefone para a outra orelha.
Interrompendo a torrente de palavras, ela disse:
– Garanto que aprecio o convite, porém, não posso…
A fêmea do outro lado da ligação não perdeu o ritmo. Continuou falando, sua entonação aristocrática preenchendo o espaço, até parecer admirável que o bairro inteiro
não sofresse uma sobrecarga.
– … e consegue entender o motivo de precisarmos da sua ajuda. Será o primeiro Festival Dançante do Décimo Segundo Mês a acontecer após os ataques. Como shellan
de um Irmão e membro de uma das Famílias Fundadoras, você seria a anfitriã perfeita para tal evento…
Tentando dar mais uma chance à recusa, Marissa a interrompeu:
– Não sei se é de seu conhecimento, porém, eu trabalho em tempo integral como diretora do Lugar Seguro e…
– … e o seu irmão disse que você seria uma boa escolha.
Marissa se calou.
Seu primeiro pensamento foi o de que era quase improvável que Havers, o médico da raça e seu irmão muito, mas muito distanciado, a tivesse recomendado para qualquer
coisa que não fosse um túmulo precoce. O segundo envolvia exclusivamente cálculos matemáticos… Há quanto tempo não falava com ele? Dois anos? Três? Não desde que
ele a expulsara da casa deles, uns cinco minutos antes do nascer do sol, quando ficara sabendo do seu interesse por um mero humano.
Que acabaram descobrindo se tratar de um primo de Wrath e a encarnação da lenda do Dhestroyer.
Tá gostando de mim agora?, ela ouviu em sua cabeça.
– Dito isso, você tem que presidir o evento – concluiu a fêmea. Como se o assunto estivesse resolvido.
– Você precisa me desculpar. – Marissa pigarreou. – Mas o meu irmão não está em posição de oferecer o meu nome para nada, considerando que ele e eu não nos vemos
já há algum tempo.
Quando apenas um silêncio absoluto se fez na conversa, ela concluiu que devia ter mencionado os podres da família uns dez minutos antes: os membros da glymera observavam
um código de comportamento muito rígido, e expor a colossal fissura em sua linhagem, mesmo ela sendo amplamente conhecida, era algo que simplesmente não se fazia.
Era muito mais apropriado deixar que os outros cochichassem a respeito às suas costas.
Infelizmente, a fêmea se recobrou e mudou de tática:
– De todo modo, é de importância vital que todos os membros da nossa classe retomem os festivais…
Uma batida à porta do seu escritório fez com que Marissa desviasse o olhar.
– Sim?
No telefone, a fêmea exclamou:
– Maravilha! Você pode vir à minha propriedade…
– Não, não. Alguém está precisando de mim – ela disse mais alto. – Pode entrar.
No instante em que viu a expressão de Mary, imprecou. Não eram boas notícias. A shellan de Rhage era sempre absolutamente profissional, e para ela estar daquele
jeito? Era algum problema grave…
Aquilo na blusa dela era sangue?
Marissa deixou seu tom de voz mais grave e abandonou qualquer sinal de boa educação.
– A minha resposta é não. O meu trabalho consome todo o meu tempo. Além do mais, se está tão interessada nisso, você mesma deveria assumir o posto. Passar bem.
Recolocando o fone no gancho, levantou-se.
– O que aconteceu?
– Acabamos de acolher alguém que precisa de cuidados médicos imediatos. Não estou conseguido encontrar a doutora Jane e nem Ehlena em lugar nenhum. Não sei o que
fazer.
Marissa apressou-se para a frente da escrivaninha.
– Onde ela está?
– Lá embaixo.
As duas desceram as escadas correndo, Marissa na frente.
– Como ela chegou?
– Não sei. Uma das câmeras de segurança pegou a imagem dela no jardim, se arrastando.
– O quê?
– O meu celular disparou o alarme, e eu corri para fora com Rhym. Nós a carregamos até a sala de estar.
Fazendo a curva no andar de baixo, Marissa derrapou num dos tapetes.
E parou de pronto.
Quando viu a condição da fêmea sobre o sofá, levou a mão à boca.
– Ah, meu Deus… – sussurrou.
Sangue. Havia sangue em todo lugar, pingando no chão, encharcando as toalhas brancas pressionadas sobre os ferimentos, empoçando-se sob um dos pés da fêmea sobre
o carpete.
A jovem fora surrada tão violentamente que não havia como identificá-la, suas feições estavam inchadas e, se não fosse pelos cabelos longos e pela saia rasgada,
não saberia determinar o seu sexo. Um braço estava evidentemente deslocado, pendurado a partir do ombro… e ela só estava calçando o sapato de salto esquerdo, as
meias de seda rasgadas.
A respiração dela era muito, muito superficial. Apenas um ruído no peito, como se estivesse se afogando no próprio sangue.
Rhym, a supervisora, levantou o olhar de sua posição agachada ao lado do sofá. Em meio às lágrimas, sussurrou:
– Não acho que ela vá sobreviver. Como poderia…?
Marissa tinha que se recompor. Era a única opção.
– Não conseguiram localizar nem a doutora Jane nem Ehlena?
– Tentei na mansão – Mary respondeu. – Na clínica. Os celulares delas. Duas vezes em todos os lugares.
Por uma fração de segundo, Marissa se aterrorizou com o que aquilo podia significar para a sua própria vida. Os Irmãos estavam feridos? Butch estaria bem?
Isso durou apenas um segundo.
– Me dê o seu celular… E levem as residentes para o anexo Wellsie. Quero todas lá, para o caso de eu ter que trazer um macho.
Mary lhe passou o telefone e assentiu.
– Já vou cuidar disso.
O Lugar Seguro era exatamente isso: um espaço seguro para as fêmeas vítimas de violência doméstica em busca de abrigo e reabilitação junto a seus filhos. E depois
de Marissa ter passado incontáveis séculos inúteis na glymera, sendo apenas a noiva não reclamada do Rei, encontrara a sua vocação ali, a serviço daquelas que tinham
sido, na melhor das hipóteses, abusadas verbalmente, e na pior, tratadas de maneira horrenda.
Não era permitida a entrada de machos ali.
Mas, para salvar a vida daquela fêmea, ela teria que infringir a regra.
Atenda o telefone, Manny, pensou no primeiro toque. Atenda o seu maldito telefone…
Capítulo 2
NÃO ERA A IRMANDADE INTEIRA.
Na verdade, só havia dois Irmãos com o Rei.
Enquanto Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, entrava na sala de audiências para se postar diante de seu governante, estava muito
ciente da presença dos outros machos. Nunca vira aqueles machos serem outra coisa que não apenas protetores e civilizados, mas, levando-se em consideração que estava
para entregar sua única filha para eles, seus outros atributos mais evidentes eram como gritos na noite.
O Irmão Vishous o encarava com seus olhos de diamante que não piscavam. Aquelas tatuagens na têmpora esquerda pareciam particularmente sinistras, o corpo musculoso
envolvido em couro preto e coberto por armas. Ao seu lado estava Butch, também conhecido como Dhestroyer – um antigo humano com sotaque de Boston que fora infectado
por Ômega e deixado para morrer, só para se revelar um dos poucos a sobreviver a uma transição forçada.
Os dois raramente se desgrudavam, e era tentador atribuir-lhes os papéis de policial malvado e policial bonzinho. Naquele instante, contudo, o paradigma estava
alterado. Butch, o macho que tendia a sorrir e conversar com as pessoas, parecia ser aquele a quem evitar num beco escuro: seu olhar castanho estava estreitado e
decidido.
– Pois não? – Abalone disse ao Rei. – Posso servi-lo de algum modo?
Wrath afagou a cabeçorra aloirada de seu cão guia, George.
– Os meus rapazes precisam falar com você.
Ah, pensou Abalone. Já suspeitava do que aquilo se tratava.
Butch sorriu por um átimo de segundo. Como se desejasse antecipadamente atenuar a patada do que estava para sair de sua boca.
– Queremos ter certeza de que você sabe do que se trata o programa de treinamento.
Abalone limpou a garganta.
– Sei que isso é muito importante para Paradise. E espero que haja aulas de defesa pessoal no programa. Eu gostaria que ela ficasse… mais segura.
Esse benefício em potencial fora o único motivo que o ajudara a aceitar a discrepância entre aquilo que esperava para a vida dela e o que ela própria parecia escolher.
Quando não houve nenhuma resposta, Abalone olhou de um Irmão para outro.
– O que vocês não estão me contando?
Vishous abriu a boca, mas Butch levantou a mão para calá-lo.
– A sua função junto a Wrath vem em primeiro lugar.
Abalone se retraiu.
– Está dizendo que Paradise não poderá participar por causa da minha posição aqui? Santa Virgem Escriba, por que não nos disseram…
– Precisamos que entenda que o que vai acontecer não serão apenas aulas expositivas. Isto é um preparo para a guerra.
– Mas os candidatos não têm necessariamente que lutar nos becos durante o treinamento, correto?
– O que nos preocupa está aqui. – O Irmão indicou a sala. – Não podemos permitir que nada afete o seu relacionamento com Wrath e o que você faz para o Rei. Paradise
é bem-vinda no programa assim como qualquer outro, mas não se a perspectiva de ela desistir ou ser cortada puder criar tensão entre nós.
Abalone exalou aliviado.
– Não se preocupem com isso. Ela será bem-sucedida ou fracassará por mérito próprio. Não espero um tratamento especial para ela… E se ela não conseguir acompanhar?
Então terá que ser dispensada.
Na verdade, ainda que jamais dissesse isso em voz alta, ele tanto rezava quanto esperava que esse fosse o caso. Não queria que Paradise se desapontasse com seu
empenho, mas… a última coisa que queria era que sua filha fosse exposta a qualquer podridão – ou, Deus proibisse, que de fato tentasse combater na guerra.
Sequer conseguia imaginar essa última possibilidade.
– Não se preocupem – reiterou, olhando para os Irmãos e para o Rei. – Tudo ficará bem.
O Irmão Butch olhou para Vishous. Depois voltou a olhar para ele.
– Você leu o formulário de inscrição, certo?
– Ela o preencheu.
– Então não o leu?
– Isso é algo que ela está fazendo por conta própria. Como seu pai e tuhtor, eu deveria ter assinado?
Vishous acendeu um cigarro enrolado à mão.
– Talvez queira estar preparado, não?
Abalone assentiu.
– Estou. Juro, estou preparado.
Paradise era uma fêmea educada apropriadamente dentro das tradições da aristocracia. Vinha trabalhando em seu condicionamento físico nos dois últimos meses – de
fato, com bastante empenho –, e ele sentia a empolgação emanando dela enquanto concluía seu trabalho ali e se preparava para deixar o seu posto. No entanto, havia
boas chances de que depois da orientação na noite seguinte, quando o trabalho de verdade começasse, ela se visse desistindo… ou sendo dispensada.
Testemunhar o seu fracasso o mataria por dentro.
Mas antes isso a vê-la morrendo no campo de batalha só para provar que ela era muito mais do que aquilo ditado pela sua posição aristocrática.
Enquanto o par de Irmãos continuava a olhar para ele, Abalone abaixou a cabeça.
– Sei que não vai terminar bem para ela. Estou mais do que preparado para enfrentar isso. Não sou ingênuo.
Depois de um instante, Butch disse:
– Ok. É justo.
– Mais alguma coisa, meu senhor? – Abalone perguntou ao Rei.
Quando Wrath meneou a cabeça, Abalone fez uma reverência a cada um deles.
– Agradeço a preocupação. Paradise é o que tenho de mais precioso… É tudo o que me restou de minha amada shellan. Sei que ela estará em mãos justas e gentis amanhã.
Quando ele se virou para se retirar, os Irmãos continuaram sérios, mas, pensando bem, ele não sabia o que se desenrolava na guerra. E sempre havia algo acontecendo.
As lutas e as estratégias não eram coisas com as quais ele se envolvia, o que o deixava extremamente grato.
Assim como ficaria caso Paradise saísse do programa.
Na verdade, o que mais desejava era que a mahmen dela ainda estivesse viva. Talvez tudo aquilo fosse desnecessário se sua shellan estivesse presente para enfiar
um pouco de juízo na cabeça da jovem.
Abrindo as portas, ouviu um barulho na sala de espera.
– Paradise?
Ele caminhou pelo vestíbulo e, ao fazer a curva para entrar na sala de espera, sua filha se endireitava ao apanhar canetas vermelhas que derrubara da mesa.
– Está tudo bem? – ele perguntou.
O olhar dela encontrou o seu.
– Está? O senhor vai permitir que eu vá amanhã à noite?
Abalone sorriu, e tentou esconder a tristeza do olhar e da voz.
– Claro. Você está no programa, isso foi decidido meses atrás.
Ela correu para o pai e o abraçou, segurando-o com firmeza, como se estivesse convencida de que lhe negariam aquilo que ela tanto queria.
Abraçando a filha, Abalone teve leve ciência dos Irmãos e do Rei saindo pela porta da frente. Não prestou atenção neles.
Estava ocupado demais desejando poupar a filha de todo e qualquer desapontamento. No entanto, isso não estava entre as habilidades parentais que lhe foram concedidas
no momento de seu nascimento.
Ah, como queria que sua shellan estivesse ali e não no Fade.
Ela teria lidado muito melhor com tudo.
De pé junto à tão maltratada fêmea, Marissa fechou os olhos ao ouvir a voz gravada de Manny em sua caixa de mensagens pela terceira vez. Que diabos estava acontecendo
na clínica?
Bem quando ela estava prestes a ligar novamente, o seu telefone tocou.
– Graças a Deus! Manny? Manny?
Algo no tom da sua voz fez com que a fêmea se mexesse, o rosto ensanguentado se movendo ao encontro das almofadas do sofá. Deus, o chiado daquela respiração bastava
para que seu coração saísse do compasso.
– Não, é Ehlena – disse a voz ao seu ouvido. – Manny e Jane estão fazendo uma cirurgia de emergência em Tohr. Ele está com uma fratura múltipla no fêmur e eu tenho
que voltar para a sala de cirurgia. Algum problema?
– Quanto tempo isso vai demorar? – ela perguntou.
– Acabaram de começar.
Marissa fechou os olhos.
– Ok, por favor, peça que me liguem assim que puderem, por favor. Tenho um… – Virou-se de costas e abaixou a voz. – Tenho um trauma que acabou de chegar aqui. Não
sei se temos tempo suficiente.
Ehlena praguejou.
– Não podemos dispensar ninguém. Não pode ligar para Vishous? Ele tem treinamento médico, pode conseguir estabilizar o paciente.
Marissa tentou visualizar o Irmão entrando na casa. Não era a sua primeira escolha, e não por não confiar no macho. O melhor amigo do seu hellren era um vampiro
formidável em todos os sentidos.
A sua aparência é que era aterrorizante.
Mas, pensando bem, se todas estavam no Anexo Wellsie…
– Boa ideia. Obrigada.
– Pedirei que liguem para você assim que terminarem.
– Por favor, faça isso.
Encerrando a ligação, ela ligou para V. e foi atendida pela maldita caixa de mensagens.
– Merda.
Rhym perguntou ao pressionar uma toalha em um ferimento aberto no ombro da fêmea:
– Quando eles vêm?
O fim da noite se aproximava. V. poderia estar em trânsito entre os becos do centro de Caldwell e a mansão. Ou… poderia estar ocupado lutando contra o que quer
que tenha ferido Tohr daquela maneira.
Quando a fêmea deitada no sofá começou a tossir sangue, sua decisão foi tomada numa fração de segundo. A última coisa que desejava era pedir ajuda de seu irmão,
mas não poderia viver com sua consciência se seus problemas pessoais custassem a vida de alguém.
Marissa ligou para o celular de Havers que sabia de cabeça, com a esperança de que ele não tivesse trocado o número. Um toque… Dois toques…
– Alô? – atendeu sua voz.
– Sou eu. – Antes que houvesse espaço para um silêncio constrangedor ou sequer um olá, ela disse: – Temos uma emergência médica no Lugar Seguro. Preciso que venha
imediatamente, ou que mande alguém. Os médicos da Irmandade estão na sala de cirurgia e não temos muito tempo.
Houve uma ligeira pausa, como se o principal médico da raça estivesse passando do modo “pessoal” para o “profissional”.
– Levarei apenas um instante para chegar. É algum trauma?
– Sim. – Marissa voltou a abaixar a voz. – Ela foi surrada terrivelmente e… violentada. Há muito sangue. Não sei…
– Vou levar uma enfermeira. Já afastou os outros moradores?
– Sim.
– Destranque a porta da frente.
– Encontro você lá.
Foi só isso.
Pelo visto, o universo estava determinado a colocar o irmão no seu radar aquela noite. Primeiro aquele telefonema idiota da socialite, agora…
Marissa acenou para Rhym.
– A ajuda está a caminho.
Através do olho que não estava completamente obstruído pelo inchaço, a fêmea ferida tentou focar o olhar.
Marissa se inclinou na direção dela e tomou-lhe a mão ensanguentada.
– O meu irmão está vindo para cuidar muito bem de você.
Por um momento, ela se perguntou se deveria não ter mencionado que seria um macho que a trataria. Mas a fêmea não parecia estar compreendendo.
Santa Virgem Escriba, e se ela morresse antes da chegada dele?
Marissa se agachou, ajeitando o cabelo loiro atrás da orelha.
– Você está segura aqui e vai ficar tudo bem. – Aquele único olho aberto perscrutou o seu rosto. – Você tem algum parente para quem podemos ligar? Há alguém que
podemos mandar chamar para você?
A cabeça da fêmea se moveu de um lado para o outro.
– Não? Tem certeza? – O olho se fechou. – Pode me dizer quem fez isso com você?
O rosto se virou.
Merda.
Recuando, Marissa foi para o corredor na frente da casa. Havia janelas estreitas e compridas nas laterais da porta, e ela ficou olhando para o jardim. As árvores
que há poucas semanas estavam tão coloridas despejavam suas folhas rubras, douradas e amarelas, revelando os galhos espigados como os ossos de um cão magro demais.
Foi impossível não espiar o reflexo no espelho ao lado da porta e verificar se os cabelos estavam ajeitados e a maquiagem ainda se sustentava após uma jornada de
quase dez horas de trabalho.
Na época em que vivia com o irmão, usava vestidos de seda e joias pesadas, e os cabelos ficavam sempre bem penteados no alto da cabeça. Agora? Ela estava com calças
Ann Taylor, uma camisa com gola alta e um par de sapatos Cole Haan que usava para dirigir por serem confortáveis. Nenhuma joia a adornava exceto o pequeno crucifixo
de ouro que usava porque o deus de Butch era importante para ele e seu hellren lhe dera aquele colar em sua última celebração de Natal. Ah, e ela também estava com
um par de brincos de pérola nas orelhas.
Apesar de a transição de Butch ter sido induzida e do seu status como membro da Irmandade e parente do Rei, seu macho permanecia fundamentalmente humano, desde
seu sistema de crenças católicas e seu gosto por cinema e literatura até suas opiniões quanto ao que queria numa “esposa”, um resultado de sua criação em meio aos
Homo sapiens.
Tocando na correntinha de ouro no pescoço, franziu a testa quando lutou contra a necessidade de tirá-la porque seu irmão não a aprovaria.
Mas, convenhamos, quer o símbolo da sua vinculação estivesse ou não em seu pescoço, aquilo não mudaria absolutamente nada. Aos olhos do irmão, ela tomara um rato
cotó como hellren, e essa desgraça jamais seria perdoada.
Uma fração de segundo depois, duas sombras se materializaram do nada na calçada. Uma mais alta e masculina, vestindo um jaleco branco, a outra menor e feminina
num tradicional uniforme de enfermeira.
Quando se aproximaram e foram iluminados pelas luzes de segurança, Marissa esfregou as palmas suadas nas calças. Havers estava exatamente igual ao que sempre fora,
desde a gravata borboleta e os óculos de armação de casco de tartaruga até os cabelos escuros repartidos de lado, mantidos no lugar como um personagem de Mad Men.
No último instante, Marissa girou o crucifixo para a nuca e abriu a porta. Tentando não parecer nervosa, anunciou:
– Ela está na sala de estar.
Nenhum “olá, como tem passado?”, tampouco um “ei, já deixou de ser um cretino preconceituoso?”, mas, pensando bem, aquela era uma emergência médica, não uma visita
social.
– Marissa – disse o irmão, acenando com a cabeça e parando ao seu lado. – Esta é Cannest, minha chefe de enfermagem.
– É um prazer – disse educadamente a enfermeira.
Marissa assentiu para a fêmea.
– É por aqui.
Suas pernas estavam rijas ao acompanhá-los pela casa modesta com sua mobília comum. Por algum motivo absurdo, ela se visualizou como um flamingo, com os joelhos
virados para o lado errado. Nesse meio-tempo, todos os tipos de recordações fervilhavam sob a superfície do seu consciente, apenas o peso psíquico da tragédia que
se desenrolava na sala ao lado mantendo a tampa fechada sobre as suas emoções.
Seu irmão parou no arco de entrada da sala e entregou sua maleta de médico à assistente.
– A minha enfermeira fará a triagem, e me informará sobre as condições dela. Será melhor que um macho não faça esse primeiro exame.
Marissa deslizou o olhar para o de Havers pela primeira vez e notou que os olhos dele ainda eram do exato tom de azul dos seus. Como se isso pudesse mudar, não?
– É muita consideração da sua parte – ela comentou antes de olhar para a auxiliar. – Me acompanhe.
Na sala, a enfermeira foi direto para o sofá, e foi gentil com Rhym ao substituí-la ao lado da paciente. A vítima se mexeu como se reconhecesse uma presença nova
diante dela e depois gemeu quando teve a pulsação e a pressão examinadas.
Marissa ficou de lado, cruzando os braços sobre o peito, com a boca coberta pela mão. Os movimentos eram um bom sinal, disse a si mesma. Significavam que a pobre
moça ainda estava viva.
– Tome cuidado – ela disse de repente, quando a enfermeira apalpou o braço e lágrimas se misturaram ao sangue do rosto surrado.
Bom Deus, quem havia feito aquilo? Só podia ser um membro da raça… Não conseguia captar nenhum cheiro humano impregnado nela.
Marissa teve que baixar o olhar quando o exame se tornou mais íntimo, e gesticulou para que Rhym se juntasse a ela na arcada, como se protegesse a privacidade que
seu irmão já estava respeitando.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, a enfermeira conversou em voz baixa com a fêmea e aproximou-se deles, acenando para que Marissa a seguisse até onde Havers
aguardava com as mãos entrelaçadas atrás das costas. Ele curvou a cabeça enquanto ouvia o que a enfermeira dizia num tom baixo:
– Ela tem extensos danos internos – a fêmea relatou. – Terá que ser operada imediatamente para ter chances de sobreviver. O braço é o menor dos problemas dela.
Havers assentiu e relanceou para Marissa.
– Tomei a liberdade de providenciar um transporte. Ele deve chegar em aproximadamente quinze minutos.
– Irei com ela. – Marisa estava pronta para discutir. – Até encontrarmos um parente, serei sua thutora.
– Sim, claro.
– E arcarei com os custos do tratamento.
– Não será necessário.
– Certamente é necessário. Vou pegar as minhas coisas.
Afastando-se, ela falou com Rhym, depois apressou-se até o seu escritório e pegou o celular, a bolsa e o casaco.
Pensou em telefonar para Butch, pois havia a possibilidade de não conseguir voltar para casa, mas ainda não tinha certeza quanto a isso. E, infelizmente, se ela
ligasse para seu hellren toda vez que surgisse uma emergência no trabalho? Ela acabaria desgastando o toque de chamada do celular dele.
A meio caminho descendo a escada, ela percebeu que havia outro motivo para não falar com ele.
Aquilo era muito semelhante ao que acontecera com sua irmã.
E existia a possibilidade de ser exatamente a mesma coisa, caso a fêmea viesse a morrer em decorrência dos ferimentos.
Não, pensou ao voltar para o térreo. Ele já tinha muitos afazeres sem ter que disparar aquele gatilho em sua massa cinzenta uma vez mais.
– Estou pronta – disse ao irmão, como se o desafiasse a fazê-la mudar de ideia.
– A ambulância chegará em dois minutos. Terei que acompanhá-la também... Ela vai precisar se alimentar de sangue para ter alguma chance de sobrevivência.
Havers curvou-se ligeiramente e refez seus passos até a porta de entrada. Quando dobrou no corredor, Marissa sacudiu a cabeça.
A ideia de que ele daria o próprio sangue para ajudar uma fêmea desconhecida, que não devia passar de uma cidadã comum, era tanto incrível… quanto uma fonte de
frustração.
Que o macho pudesse ser tão gentil com seus pacientes e tão cruel com ela pessoalmente parecia-lhe uma contradição insuportável.
Mas assim era a glymera. Dois pesos, duas medidas em abundância.
E não raramente estavam acostumados a ferrar as filhas, as irmãs e as mães.
Capítulo 3
PARADO NO AMPLO E COLORIDO vestíbulo da mansão da Irmandade da Adaga Negra, Butch franziu a testa ao olhar para o celular. Consultara as horas em seu relógio de
pulso Audemars Piguet uns três minutos antes, mas imaginou que, quem sabe, o seu Samsung sei-lá-o-quê lhe desse uma resposta mais satisfatória.
Negativo.
E seu sétimo telefonema para Marissa tampouco fora atendido. Assim como os seis anteriores.
Ao longe, a conversa e os barulhos sutis da Última Refeição sendo consumida borbulhavam na sala de jantar.
Sem nenhum bom motivo, relembrou a primeira vez que ouvira sons como aqueles. Fora no que agora era a casa de audiências. Na época, era um detetive de homicídios
descontrolado e à procura de uma fonte de destruição completa a fim de dar cabo de vez à sua vida.
E foi então que um turbilhão de eventos inesperados aconteceu.
Beth foi a primeira a ser levada pelo vento, sua herança genética mista de meio humana, meio vampira tragando-a. Já a sua entrada fora algo completamente diferente.
Se forem sangrar o humano, teriam a gentileza de fazê-lo no pátio dos fundos?
– Conseguiu falar com ela?
Butch fechou os olhos ante a familiar voz masculina. Mesmo não sendo nem mesmo parcialmente verdade, às vezes ele sentia como se os resmungos ásperos de Vishous
estivessem em sua mente a vida inteira.
– Não.
Conforme o Irmão se aproximava, o cheiro de tabaco turco o antecedeu, e Butch inspirou fundo. Talvez tivesse ficado chapado por tabela, ou quem sabe fosse a presença
desagradável do maldito, mas o volume dos gritos de pânico em seus ouvidos diminuiu um pouco.
– Já ligou pro escritório dela no Lugar Seguro? – V. perguntou, exalando fumaça.
– Caixa postal. E liguei para a Mary também. Nada.
– Cacete…
O toque sutil do monitor de segurança fez com que sua cabeça guinasse. Quando viu a imagem na tela, avançou em direção à porta do vestíbulo, quase arrancando-a
das dobradiças.
– Ah, Deus… Por onde você andou…
Apossou-se de sua Marissa com tamanha velocidade e determinação que o resto das besteiras que saíam da sua boca se perdeu enquanto a abraçava.
– Desculpe – ela disse com a voz abafada. – Eu estava cuidando de um caso. Não me dei ao trabalho de te ligar porque quase não tinha tempo hábil para voltar para
casa.
Afastando-se um pouco, amparou-lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela.
– Você está bem?
– Sim, claro. E eu sinto muito…
Ele a beijou, estremecendo quando sentiu as mãos subirem por suas costas.
– Não, não. Sou eu quem pede desculpas. Só o que importa é que você está bem.
Diabos, o sol era algo aterrorizante. Um vampiro apanhado ao amanhecer não passava de uma fogueira com roupas, e por mais que Marissa estivesse bem protegida no
Lugar Seguro, coisas ruins podiam acontecer: os humanos eram idiotas imprevisíveis e os assassinos eram absolutamente letais.
Quando se separaram, ela sorriu.
– Estou bem, estou bem.
Ah, tá, ele pensou quando os olhos dela evitaram os seus.
Ele a puxou pelo braço.
– Vem comigo.
– Mas a Última Refeição já foi servida…
– E quem se importa?
Atraindo-a para a sala de bilhar, ele os teria fechado ali caso houvesse portas para se fechar.
– O que aconteceu? – exigiu saber.
Ela vagueou um pouco, seu corpo incrível transformando as roupas simples em alta-costura.
– Nada que já não tenha ouvido falar, infelizmente.
Butch fechou os olhos. Às vezes, odiava o trabalho dela. Odiava mesmo. Contudo, quanto mais difícil ele se mostrava, mais ela lutava, e por mais que o afetasse
vê-la cansada, abatida, até mesmo desencorajada vez ou outra, ele a respeitava pra cacete pelo que fazia pela raça. E nem tudo era ruim. Quando as pessoas que ela
ajudava voltavam a ter vidas independentes, sua shellan reluzia como o sol.
Os olhos dela passearam pelo cômodo, mas ele permaneceu concentrado nela. E, Jesus, mesmo depois de uma longa e extenuante noite, ela ainda lhe roubava o fôlego.
Sua beleza era lendária na raça, algo de que se comentava há gerações e ainda era reverenciado, e o motivo era evidente. O rosto era uma compilação de ângulos perfeitos;
a pele, suave e luminosa como uma pérola; os olhos azuis, da cor de uma manhã gloriosa; aqueles lábios, tão rosados e macios. E também havia o cabelo loiro passando
dos ombros e, sim, ah sim, a silhueta, do tipo que deixava os machos de joelhos – e os mantinha ali embaixo.
Às vezes ainda não acreditava que ela estava com ele. Ele. Um cara do sul de Boston, de origem irlandesa, com um dente da frente lascado, um passado ruim e uma
infinidade de vícios que não fora capaz de subjugar até antes de conhecê-la.
E também havia aquela merda de Ômega.
Todavia, sua shellan o amava, por algum motivo inexplicável.
– Você não está falando comigo – ele sussurrou, afastando o cabelo dela para as costas e massageando seu pescoço, seus ombros rígidos, seus braços tensos. – Você
sabe que detesto quando não sei o que está acontecendo.
Quando um coro de risadas explodiu do lado oposto ao vestíbulo, Marissa se aninhou nele, o quadril se chocando contra todo tipo de diversão.
E, que surpresa, a ereção foi instantânea, o pau engrossando e se alongando por trás da braguilha da calça de couro.
Envolvendo-o pelo pescoço, ela se apoiou nele e encostou os seios em seu peito.
– Não está com fome?
Rugindo no fundo da garganta, ele passou os braços por trás e a segurou pelas nádegas. Uma palma cheia em cada banda, nada mais, firmes como as de uma ginasta…
Ah, Deus, estava começando a suar.
Só que ele sacudiu a cabeça.
– Isso não vai funcionar. Você não vai me distrair…
Em seguida, porém, Marissa abriu a boca e estendeu as presas. Aproximando-se, resvalou os caninos no lábio inferior dele, a sensação da ponta afiada em sua pele
arrancando-lhe um gemido.
– Parece que você está precisando de alguma coisa – ela sussurrou ao encontro da boca dele. – Quer me dizer o que é? – A língua dela se esticou e abriu caminho
com uma lambida. – O que é, Butch? Pode me contar do que você precisa…
– De você – ele grunhiu. – Eu preciso de você.
Depois da transição, quando o corpo se desenvolveu por completo e se transformou naquela demonstração de poder, ele se acostumara às façanhas da força física, e
também àquela fraqueza ressonante no que se referia à sua fêmea e ao sexo. Precisara de mulheres de tempos em tempos na época em que fora estritamente humano, mas
nada comparado à luxúria estrondosa que Marissa lhe provocava num piscar de olhos. Num olhar. Num toque. Numa ou duas frases… Às vezes, bastava apenas a pura fragrância
de oceano dela…
Bum! Era como se alguém tivesse explodido seus miolos.
– Marissa…
Sua pélvis circundou a ereção dele e logo ela se distanciou.
– Vem cá.
Ela poderia ter mandado ele fazer uma série de coisas – fique de ponta-cabeça, raspe as sobrancelhas, arranque seu braço –, que ele teria obedecido em um átimo.
Segui-la? Com a possibilidade de fazê-la alcançar um orgasmo? Ou seis?
Sim, senhora, por favor, obrigado, como posso servi-la?
Marissa o conduziu para trás do bar e o empurrou contra as prateleiras de bebidas. Com mãos apressadas, correu os dedos até o zíper e, que Deus o ajudasse, ele
se agarrou à bancada de granito enquanto a via soltar cada um dos botões, a extensão da ereção forçando o tecido a se abrir conforme ela descia.
E logo ela o segurou.
– Caraaaaalho… – Sua cabeça pendeu para trás, mas ele queria olhar para ela…
Seu corpo inteiro vacilou quando a mão dela acariciou o mastro.
– Gosta de ver quando faço isso com você? – Ela o manejava com maestria, para cima e para baixo. – Gosta, Butch?
– Sim – ele sussurrou, expelindo a palavra. – Gosto… de te ver… com as mãos em mim…
– E quanto à minha boca?
As bolas dele se contraíram e um orgasmo disparou para a cabeça do pau, pronto para explodir, e isso foi antes de ela se ajoelhar diante dele, desaparecendo por
trás da proteção da frente do bar.
Não conseguiria aguentar muito, mas, que se foda, ele queria aquela sensação, aquele calor, a sugada úmida, mesmo que por um segundo só… Mas sem ver. Teve que fechar
os olhos. Se a visse assim, com a boca bem aberta, os lindos cabelos espalhados sobre sua calça de couro, o olhar azul encarando-o como se ela apreciasse o seu gosto…
O que, evidentemente, não podia ser verdade. Mas aquela seria uma mentira que ele não contestaria…
Quando o nome dela reverberou em sua garganta, aquela sucção era exatamente o que ele buscava, deslizante, suave, tão sensual que ele teve que abrir os olhos. Com
a cabeça para a frente, teve a visão desimpedida dos sofás de couro, das mesas de bilhar, da arcada de entrada. Se alguém por acaso aparecesse ali – algo improvável
por causa da Última Refeição –, só o veria com uma expressão pornográfica no rosto. Marissa estava escondida atrás da bancada longa e alta do bar. E outra notícia
boa? O cheiro da vinculação estava muito espalhado, os aromas picantes tão fortes que serviriam de alerta para o que estava acontecendo ali, e de que o pessoal precisaria
lhes dar um tantinho de privacidade.
Marissa trabalhou na cabeça e no tronco com a boca, fustigando-o do jeito que ele gostava, e ele fechou os olhos de novo – pensando nos Patriots jogando contra
os Giants… Naquilo que estava sendo servido na sala de jantar… Na possibilidade de Lassiter obrigá-los a assistir The Bachelor ou talvez a porra da Rachael Ray e
seu maldito azeite de oliva extravirgem no programa de culinária.
A imagem da pequena chef tirana foi o filtro que melhor funcionou, bloqueando parte das sensações, ou pelo menos o suficiente para não gozar em cima da sua shellan.
Na verdade, seu temor quanto a esse resultado funcionou ainda melhor.
Inferno do cacete, o horror que ele sentiria se gozasse na boca dela ou, Deus do céu, no rosto dela…
Não, não. Nada disso. Isso não aconteceria.
Despregando as garras da bancada atrás de si, desceu as mãos e, com gentileza, puxou-a pelos ombros.
– Para… – grasnou. – Você tem que parar agora.
As sensações abaixo da cintura estavam ficando tão fortes quanto uma detonação, a ponto de, apesar de todas as distrações e da sua vigilância, elas estarem bem
próximas de assumir o controle, submergindo-o em grandes ondas de êxtase de alta octanagem.
Cerrando os dentes, seu rosto se retorceu.
– Hora de parar… Hora de parar…
No último momento possível, ele forçou a cabeça dela para trás, girou o quadril para o lado e ejaculou sobre os armários onde grandes caixas com embalagens dos
peixinhos dourados da Pepperidge Farm eram guardados. Enquanto ele gozava, ela se debateu contra a pegada dele, como se quisesse voltar para a ereção, mas ele não
permitiu até que seu quadril parasse de se sacudir e seu corpo todo relaxasse.
– Você devia ter me deixado terminar – ela disse baixinho. – Você nunca me deixa ir até o fim.
Voltando a se concentrar em sua companheira, suspendeu o corpo dela, o pau ainda rijo topando contra os seios, o abdômen, as coxas…
O som da campainha do vestíbulo fez com que virassem as cabeças, e Butch refreou um xingamento. Jesus, como permitira que acontecesse num local tão público? Pareceu-lhe
uma ideia perfeitamente aceitável enquanto estivera cego pelo desejo, mas aquele não era lugar para uma dama como ela pagar um boquete para um sujeito insignificante
como ele, mesmo ambos estando vinculados.
Butch rapidamente alisou os cabelos dela e depois começou a fechar os botões da braguilha.
– Precisamos continuar isso em casa.
– Até que foi divertido.
– Não.
Enquanto Fritz abria a porta para Xhex e Trez, Butch voltou para a realidade.
– … está me devendo uma! – Xhex disse ao entrar.
– Devo mesmo – respondeu Butch. – Pode cobrar quando quiser.
Xhex o dispensou com um gesto, depois mirou nele com a ponta do dedo.
– Vou cobrar a sua promessa.
– É melhor mesmo.
Butch teve que sorrir, mas logo voltou a se concentrar em sua shellan.
– Deixe-me te alimentar. E depois te levar nua para a cama.
– Que bom. – Ela o beijou e depois se virou para limpar o que ele havia…
– Não. – Butch segurou as mãos dela sobre o papel toalha. – Eu faço isso.
Enquanto ele a afastava do caminho, sentia que era observado, mas a ignorou. De onde ele vinha, existiam dois tipos de mulheres, e a sua companheira pertencia à
categoria das que eram idolatradas.
Ele devia saber disso. Tivera mais do que sua cota de vadias.
A última coisa que jamais faria era desrespeitar a sua Marissa. Seria o mesmo que incendiar uma igreja, esquartejar a Mona Lisa, ou jogar um Porsche 918 numa ribanceira
sem motivo algum.
Portanto, não. Ela não limparia a sujeira que ele causara.
Marissa tinha mais com que se preocupar.
Visto que Butch insistiu em limpar tudo sozinho, saiu do seu caminho e balançou a cabeça. Nunca entendera suas manias em relação ao sexo, mas as aceitava. O que
mais restava fazer? Ele se recusava a discuti-las; toda vez que ela trazia o assunto à baila, o fato de afastar sua boca sempre que ele se aproximava do clímax,
não tinha papo.
Além disso, naquele instante, a questão recorrente entre eles estava lá embaixo em sua lista de prioridades.
A fêmea terrivelmente ferida mal saíra viva da mesa de operações, e Marissa só voltara para casa porque não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar sentada
do lado de fora da UTI, à espera da notícia da falência dos órgãos dela. Ou de que eles voltaram a funcionar sozinhos. Deus, a cirurgia lhe pareceu tão complicada
quando a enfermeira lhe explicara o procedimento, mas reparar os órgãos internos e remover o baço não levara mais do que uma hora.
Infelizmente, ela perdera sangue demais, e mesmo depois de Havers ter lhe dado a sua veia, os sinais vitais eram instáveis.
Quando seu irmão saíra da sala de operações, olhara diretamente nos olhos de Marissa e lhe disse que tinha feito o melhor que podia.
Deixando de lado seus assuntos pessoais, acreditou nele.
De fato, havia praticamente tragédia demais para suportar no caso. Era triste que ainda não soubessem o nome da fêmea, e ninguém tinha vindo procurar por ela. Abalone,
o Primeiro Conselheiro do Rei, verificara as mensagens de e-mail e a secretária eletrônica da casa de audiências a seu pedido. Também não houve nenhuma procura,
tanto na clínica como no Lugar Seguro.
A moça era um fantasma no sentido figurado… a caminho de possivelmente se transformar em um literalmente.
– Vamos? – Butch disse ao oferecer-lhe seu braço.
Marissa saiu de seus pensamentos e sorriu para o companheiro.
– Sim, vamos.
Segurando-o, caminhou ao seu lado pelo vestíbulo e entraram na sala de jantar formal. Depois do momento de privacidade que haviam acabado de ter, todo aquele falatório,
riso e movimentação parecia um fuso horário social completamente diverso, e ela se sentiu um tanto oprimida. Isso é que era capacidade máxima. Ainda que o pé-direito
fosse imenso, e o piso maior do que uma pista de boliche, com a mesa de doze metros centralizada repleta de Irmãos, suas shellans, e outros soldados e residentes
da casa, ali estava um alegre congestionamento.
Havia dois lugares vagos na extremidade oposta, e eles avançaram até lá, Butch puxando a cadeira para ela.
Quando se acomodou ao seu lado, ele se inclinou e a beijou na boca.
– Coma rápido.
– Pode apostar – ela disse, mesmo não estando com fome.
E, tinha que admitir, não estava com pressa de retornar ao Buraco. A verdade era que insistira em seduzi-lo porque sabia que era o único modo de evitar que seu
macho se preocupasse com ela.
Quando um prato com filé mignon foi depositado na sua frente por um doggen, Marissa remexeu nele, cortou pedaços de carne que não experimentou, revolveu o purê
de batatas, espalhou as vagens. E depois pegou seu copo de cabernet sauvignon e se recostou, observando a todos, ouvindo as suas histórias.
– … vai me obrigar a fazer?
Concentrando-se em seu macho enquanto ele falava, viu quando ele se inclinou ao redor de John Matthew para fazer essa pergunta a Xhex.
A lutadora gargalhou.
– É melhor mesmo você ficar com medo de mim.
– Qualquer um que não fique é um tolo.
– Ah, você diz coisas tão calorosas… E não tenho pressa alguma em cobrar o meu favor. É muito bom ter um macho como você me devendo.
Sem nenhum motivo, Marissa observou como o corpo de Xhex era potente, os ombros e o tronco entalhados com músculos ressaltados debaixo de sua camiseta colante enfiada
dentro das calças de couro pretas. Considerando-se os cabelos muito curtos e os olhos cinza-escuros, ela, definitivamente, era alguém que devia ser levada a sério.
Por outro lado, Marissa trajava suas calças de escritório e uma blusa saída de uma escola inglesa.
Enquanto Butch levantava a palma para um cumprimento, Xhex bateu a dela, produzindo um estalo alto o bastante apesar de todos os barulhos de fundo.
– É disso que estou falando! – Butch disse ao se recostar na cadeira. – Inacreditável.
– O que é? – perguntou Marissa.
– Xhex foi… Bem, antes de tudo, eu estava nesse beco… Hum, me deixe voltar um pouco na história. – Cortou o ar com a palma. – Na verdade, é muita coisa para explicar.
Resumindo, eu estava acuado com dois redutores na minha frente, e Xhex estava com o celular do JM quando mandei uma mensagem pedindo apoio. Ela apareceu num segundo
e… – Butch parou de repente e só balançou a cabeça. – É isso.
Marissa esperou que ele continuasse.
– É isso…? O que aconteceu?
Butch pigarreou e sorveu um gole do Lagavulin em seu copo.
– Não importa. Foi o de sempre, sabe?
– Você estava em apuros, não estava?
Ele bebeu mais um gole.
– No fim deu tudo certo.
– Graças a Xhex.
– Você não comeu nada.
Ela baixou o olhar para seu prato.
– Ah, é. Eu comi antes de sair do Lugar Seguro.
Os dois se calaram.
Enquanto farpas e piadas eram trocadas entre os Irmãos, Marissa se sentiu recuando, indo para trás de uma tela invisível que abafava os sons e os sentidos.
– Pronta para ir? – Butch perguntou pouco depois, quando as pessoas começavam a se levantar da mesa.
– Sim. Sim, claro. Obrigada.
No meio do caminho até o arco de entrada, Butch parou para falar com V., os dois aproximaram as cabeças e murmuraram algo. Nesse ínterim, Xhex saiu da mesa com
seu companheiro, a mão de John trafegando pelas nádegas firmes, apertando-as e trazendo-a para junto dele. Ele só tinha olhos para sua companheira, o corpo de guerreiro
obviamente necessitando de uma válvula de escape.
A resposta?
Xhex emitiu um grunhido, os olhos da fêmea se fixaram nos de John Matthew enquanto ela revelava suas presas, como uma leoa montando o cenário do que, sem dúvida,
seria uma maratona de sexo.
Evidentemente, ela também tinha umas arestas que desejava aparar com seu hellren.
– Estamos combinados para amanhã, então, certo? – V. disse ao oferecer a palma para Butch.
– Certo. – Butch segurou a mão do Irmão e suas cabeças se aproximaram uma vez mais, as vozes se abaixaram de modo que ela ouviu apenas trechos da conversa.
– Isso. Certo. Aham. Te vejo lá no Buraco?
– Pode apostar.
Butch deu um apertão no ombro enorme de Vishous antes de se virar para Marissa.
– Vamos?
– Aham.
Quando Marissa foi seguindo com ele, percebeu que ainda segurava seu copo de vinho.
– Espere, deixe-me colocar isto na mesa.
Indo contra a maré, sorriu para Autumn e Tohr, acenou com a cabeça para Payne e Manny e com a mão para Bella e Nalla do lado oposto da mesa. Inclinando-se sobre
o prato ainda cheio, mas todo remexido, abaixou seu copo e desejou que Fritz e sua equipe deixassem que todos os ajudassem a retirar a mesa.
Quando se virou, parou.
Butch estava parado sob a arcada, as pernas naquelas calças de couro afastadas, as sobrancelhas unidas. Nada daquilo era estranho. Mas ele pegara a enorme cruz
de ouro debaixo da camisa e estava mexendo nela, esfregando o peso entre seus dedos.
E um mau presságio a acometeu.
– Marissa? – uma voz feminina a chamou.
Sobressaltando-se, sorriu para Bella.
– Oi. Vi vocês do outro lado da mesa. Você não é uma gracinha? – Afagou a bochecha de Nalla. – Acho que é sim… Claro que é.
– Está pesada demais para ser carregada. – Bella se inclinou para baixo e deixou a filha de pé nas perninhas agora firmes. – E estou pensando em comprar tênis de
corrida.
– Para você ou para ela?
Nalla disparou, mas na metade do caminho seu pai já a seguia de perto. Mesmo que ele parecesse um monstro assustador com o rosto marcado por cicatrizes, o crânio
raspado e as tatuagens de escravo, Nalla riu deliciada, relanceando para trás e sorrindo para seu pai enquanto corria, corria e corria ao redor da mesa, desviando
dos doggens que retiravam os pratos.
– Preciso de Nikes para nós duas – Bella sorriu. – Escuta, eu queria conversar com você. Ouvi rumores de que você organizaria o Festival Dançante do Décimo Segundo
Mês…
– O quê?
Bella pareceu confusa.
– Espere, pensei que… Será que entendi errado?
– Não, tudo bem. – Maravilha. – O que você ia dizer?
– Eu só queria te dizer que gostaria de ajudar da forma que eu puder. Fiquei surpresa em ouvir que você assumiria a tarefa, mas entendo por que o fez. Nós precisamos…
Não sei, acho que é hora de a raça reestabelecer as tradições que davam certo. Havia muitas que de nada serviam, mas os festivais são importantes…
Um grito infeliz inundou a sala agora vazia quando Nalla tropeçou e foi amparada pelo pai bem a tempo.
– Droga, tenho que ir – disse Bella. – Ela tem sentido dores de crescimento. Vou te dizer, estes últimos dias não têm sido fáceis. Só se lembre de que estou aqui
para ajudar, ok?
Bella seguiu atrás da família, estendendo os braços para Nalla, que, por sua vez, esticou um bracinho para sua mahmen. O outro ficou com o pai… de modo que os três
ficaram unidos.
Sim, dores de crescimento eram uma fase difícil, Marissa concordou. Por algum motivo, os vampiros jovens passavam por estirões de crescimento intensos, em comparação
com o crescimento lento e constante até a altura adulta da qual os humanos se beneficiavam.
Apenas mais um aspecto divertido da espécie.
Assim como os festivais.
Marissa esfregou as têmporas ao voltar para junto de Butch.
– Deus, a minha cabeça está latejando.
– Está? – ele perguntou. – Bem, vamos levá-la para a cama.
– Boa ideia. Acho que preciso dormir um pouco.
– É, você me parece cansada.
– Estou mesmo.
E esse foi basicamente o fim da noite: dez minutos depois, ela já estava na cama, de olhos fechados, com as imagens das últimas horas pipocando em sua cabeça como
flashes de luzes estroboscópicas.
Enquanto Butch voltava para a sala de estar do Buraco.
Sozinho.
Capítulo 4
NA NOITE SEGUINTE, Paradise pegou o ônibus escolar.
Por assim dizer.
Na verdade, havia dois “ônibus”, cada um com aproximadamente trinta pessoas, e quaisquer semelhanças entre eles e o onipresente transporte amarelo dos mini-humanos
terminavam com o nome compartilhado. Os veículos que a Irmandade usou para apanhar os candidatos ao programa de treinamento pareciam saídos do filme O Ataque, todos
negros por dentro e por fora, com vidros escuros e grossos nas janelas, certamente à prova de balas, pneus como das máquinas limpa-neves e para-choques que a fizeram
lembrar dos dinossauros T-Rex.
Como todos os outros, ela se desmaterializara para um trecho de terreno vazio a oeste dos subúrbios de Caldwell. Seu pai quis acompanhá-la, mas lhe pareceu importante
começar da mesma forma como pretendia continuar. Aquela era a sua decisão independente; precisava fazer o que todos os outros faziam. E ela tinha bastante certeza
de que ninguém ali traria um acompanhante.
Ainda mais um acompanhante que, por acaso, era o Primeiro Conselheiro do Rei.
Ver quase sessenta pessoas que não reconhecia fora uma surpresa. Em retrospecto, o formulário deixara claro que qualquer um poderia se inscrever; portanto, havia
muitos civis. Na verdade, parecia que todos eram civis e a proporção machos/fêmea devia ser de dez para um.
Mas pelo menos seu sexo era permitido.
Voltando a se concentrar, Paradise se mexeu no banco para garantir que o cotovelo não importunasse o macho que estava sentado ao seu lado. Fora a troca de nomes
– o dele era Axe –, não disseram mais nada, e o jeitão calado e taciturno combinava com o seu visual à perfeição: o macho tinha “assassino” escrito em todo ele,
com aquele cabelo negro espetado, todos aqueles piercings negros de um lado do rosto e a tatuagem de algo maligno lhe subindo até a metade do pescoço.
Imagine só se seu pai soubesse que ela estava perto assim de um macho como aquele? Teriam que colocar Abalone num aparato de suporte de vida.
E esse era exatamente o motivo pelo qual desejou entrar no programa. Era hora de se desligar das restrições impostas por sua posição, e dar um fim à vida de flor
de estufa. Se trabalhar para o Rei lhe ensinara algo, foi que não importava a sua classe social, a tragédia não discriminava, a justiça sempre podia ser feita e
ninguém sai desta vida vivo.
– Então você vai mesmo seguir com isso.
Paradise olhou para o vidro escuro da janela ao seu lado. Refletido na superfície espelhada, Princeps Peyton, primogênito de Peythone, estava exatamente como ela
se lembrava: belo de uma maneira clássica, com aqueles intensos olhos azuis e os espessos cabelos loiros escovados para trás da testa. Estava usando óculos de sol
sem aro com lentes cor safira que eram a sua marca registrada para esconder o fato de que provavelmente estava doidão, e suas roupas caras e descoladas eram feitas
sob medida para ressaltar o corpo musculoso. Com uma voz aristocrática e rascante, e um cérebro que, de algum modo, conseguia contrabalancear todo aquele THC, ele
era considerado um dos solteiros mais cobiçados da glymera, uma mistura de Grande Gatsby com Jack Sparrow.
Ao inspirar fundo, ela sentiu o perfume da colônia dele e um resquício de fumaça.
– Como tem passado, Peyton? – murmurou.
– Você saberia se atendesse a porra do telefone.
Paradise revirou os olhos. Mesmo sendo apenas amigos, o maldito era completamente irresistível às fêmeas. E um dos seus problemas, dentre tantos, era o fato de
ele saber disso.
– Ei. Oooi? – ele a chamou.
Paradise se virou de frente para ele.
– Não tenho muita coisa para te dizer. Visto que você me reduziu a um par de ovários para reprodução, não deveria ser uma grande surpresa. Não tenho muito mais
a oferecer, não é mesmo?
– Pode nos dar licença? – ele pediu para o macho sentado ao lado dela.
– Pode crer. – Axe, o cara durão, saiu dali como se estivesse fugindo de uma bomba de fedor. Ou de uma fêmea grasnante com um vestido rosa repleto de laços e fitas.
Peyton se sentou.
– Já pedi desculpas. Pelo menos para o seu telefone. O que mais quer de mim?
Ela meneou a cabeça, pensando no primeiro ano após os ataques. Tantos da espécie deles foram mortos pela Sociedade Redutora durante aquele ataque horrendo à raça,
e os afortunados o bastante para escapar com vida abandonaram Caldwell, retirando-se para suas casas seguras fora da cidade, fora do Estado, fora da Nova Inglaterra.
Peyton fora para o sul com a família. Ela fora para o oeste com o pai. E os dois passaram dias incontáveis insones conversando pelo telefone só para permanecerem
sãos e processarem o medo, a tristeza, o horror, as perdas. Nesse tempo, ele se tornara alguém com quem ela conversava não apenas uma vez à noite, mas durante as
infindáveis vinte e quatro horas dos ciclos dos dias, das semanas, dos meses.
Ele se tornara a sua família.
Claro, se a época tivesse sido remotamente normal, eles não teriam se aproximado daquela maneira, ainda mais se o contato tivesse sido pessoal. Como fêmea solteira
de uma das Famílias Fundadoras, ela não teria permissão para confraternizar tão livremente com qualquer macho descompromissado sem uma acompanhante.
– Sabe todas aquelas horas que passamos ao telefone? – ela perguntou.
– Sei.
– Senti como se você fosse a minha retaguarda. Que você não me julgava quando eu estava com medo, ou fraca, ou nervosa. Você era… uma voz do outro lado da linha
que mantinha a minha sanidade. Às vezes, você era a única razão que me fazia suportar até o cair da noite. – Balançou a cabeça. – E então isto aconteceu, e você
veio pra cima de mim com toda essa asneira da glymera…
– Não, espere um instante…
– Você fez isso, sim. Riu de mim e me disse que eu não conseguiria. – Cobriu a boca dele com a mão para silenciá-lo. – Pare de falar, ok? Deixa eu desabafar tudo
que está entalado. Quem sabe você até tenha razão: pode ser que eu não consiga entrar no programa. Tudo bem, posso me estatelar de bunda no chão, mas tenho permissão
de estar aqui neste ônibus, e tenho a mesma oportunidade que todos os outros. E justo você, que sempre zombou das fêmeas idiotas da sociedade que a sua família tentou
empurrar para você, que me disse que considera os festivais estúpidos, que rejeitou as expectativas de negócios que o seu pai deposita em você… Você é a última pessoa
que eu pensei que viria me atacar com essas regras antiquadas.
Ele se recostou e a fitou por trás das lentes azuladas.
– Terminou? Acabou seu sermão?
– Para a sua informação, dar uma de engraçadinho não vai te ajudar em nada aqui.
– Só quero saber se você vai deixar essa merda feminista de lado e me ouvir de verdade.
– Tá de brincadeira?
– Você não me deu uma chance sequer de explicar. Está ocupada demais preenchendo o meu lado da conversa com todas essas asneiras de queimar sutiãs. Por que se dar
ao trabalho de deixar a outra pessoa participar da conversa quando você sozinha está se divertindo tanto sendo preconceituosa e superior? Nunca pensei que você fosse
assim.
Bem-vindo a um universo paralelo, Paradise pensou.
Antes que conseguisse se segurar, ela rebateu:
– E eu aqui pensando que você fosse apenas viciado. Não sabia que também era misógino.
Peyton balançou a cabeça e se levantou.
– Sabe de uma coisa, Parry? Você e eu temos mesmo que dar um tempo.
– Concordo plenamente.
Do alto de sua enorme estatura, ele baixou o olhar para ela.
– Que tremendo idiota eu fui em pensar que você iria precisar de um amigo nisto aqui.
– Alguém que deseja o seu fracasso não é um amigo.
– Eu nunca disse isso. Nem uma única vez.
Quando ele se virou, Paradise quase lhe berrou algo, mas o deixou se afastar. Não que uma conversa os fosse levar a algum lugar. Mas o que aconteceu, em vez disso?
Praticamente todo mundo estava olhando para eles.
Caramba, as coisas estavam começando mesmo com o pé direito.
Uma hora após o pôr do sol, Marissa se desmaterializou numa área de floresta do outro lado do rio Hudson. O vento frio que soprava em meio aos pinheiros a fez estremecer,
e ela fechou o casaco de lã Burberry bem junto ao corpo. Respirando fundo, suas narinas zuniram com a falta de umidade e o ar incrivelmente limpo do anticiclone
que soprava do norte.
Olhando ao redor, pensou que existia algo fundamentalmente fúnebre no mês de novembro. As coloridas folhas do outono estavam caídas e ressecavam no chão, a grama
e a vegetação rasteira estavam murchas e acinzentadas, e os alegres e falsamente convidativos flocos de neve ainda tinham que cair para criar o manto branco.
Era a transição medíocre entre uma versão fabulosa e a seguinte.
Aquilo não era nada além de frio e vazio.
Ao girar em volta, sua visão aguçada se fixou numa estrutura de concreto sem nenhum atrativo, uns cinquenta metros mais adiante. Com um único andar, sem janelas
e apenas uma porta azul-escura, parecia algo que a prefeitura de Caldwell construíra com o propósito de tratar a água e posteriormente abandonara.
Ao dar um passo à frente, um galho se partiu sob seu pé com um ruído, e ela se deteve, virando para trás para se certificar de que não havia ninguém atrás dela.
Maldição, deveria ter dito a Butch aonde ia. Porém, ele estava tão ocupado se preparando para a orientação dos novos recrutas que ela não quis incomodá-lo.
Tudo bem, disse a si mesma. Sempre haveria a Última Refeição.
Falaria com ele, então.
Cruzando a distância até a porta, suas palmas começaram a suar dentro das luvas, e seu peito ficou tão apertado que parecia que estava usando um corpete.
Deus, quanto tempo fazia que não vestia um desses?
Enquanto tentava calcular, pensou no tempo antes de conhecer Butch. Tivera todo o status, mas não uma posição que alguém da glymera poderia desejar. Na qualidade
de noiva prometida e não reclamada de Wrath, filho de Wrath, não passava de um fruto proibido, uma bela maldição, lastimada e evitada nos eventos e nos festivais
da aristocracia.
Contudo, seu irmão sempre cuidara dela, uma fonte de conforto na maior parte do tempo silenciosa, mas mesmo assim leal. Ele odiara o fato de Wrath tê-la sempre
ignorado a não ser quando precisava se alimentar e, no fim, esse ódio levara seu irmão a tentar matar o Rei.
Como se constatou mais tarde, aquele seria apenas um dos vários atentados à vida de Wrath.
Ela se arrastava e sofria em sua infeliz existência, sem esperar mais nada, meramente desejando poder viver a própria vida… até que numa noite conheceu Butch na
antiga casa de Darius. Seu destino mudara para sempre ao ver o então humano parado na sala de estar, o destino lhe dando o amor que ela sempre buscara, mas que jamais
tivera. No entanto, houve repercussões. Talvez como parte do equilíbrio ditado pela Virgem Escriba, todo esse bem viera a um grande custo: seu irmão acabou por expulsá-la
de casa e de sua vida momentos antes do alvorecer de certa manhã.
Que era o que acontecia quando a filha de uma das Famílias Fundadoras está namorando o que se acredita ser apenas um simples humano.
No fim, revelou-se que havia muito mais em Butch, claro, mas seu irmão não ficara por perto tempo suficiente para saber disso tudo. E Marissa não se importara.
Teria assumido o seu macho de qualquer forma que ele se apresentasse a ela.
A não ser pela vez em que se deparara com Havers numa reunião do Conselho, ela, de fato, nunca mais vira o irmão desde então.
Isto é, até a noite anterior.
O engraçado é que ela não desperdiçara tempo algum pensando no que um dia tivera, onde estivera, como vivera. Distanciara-se de tudo o que acontecera antes de seu
companheiro, vivendo apenas no presente e no futuro.
Agora, porém, ao passar pela soleira da nova clínica de ponta do irmão, percebeu que aquela ruptura definitiva não passara de uma ilusão. Só porque seguimos em
frente não significa que nos despimos de nossa história pessoal como quem troca de roupa.
O passado de alguém é como a própria pele: permanece com você por toda a vida, tanto as proverbiais marcas de beleza… quanto as cicatrizes.
No caso de Marissa, basicamente as cicatrizes.
Muito bem, onde estava a campainha? A recepção? Na noite anterior, entraram com a ambulância por uma entrada diferente… Mas Havers lhe dissera para vir por ali
se viesse se materializando.
– Veio se consultar com algum médico? – uma voz feminina perguntou por um alto-falante.
Sobressaltada, afastou os cabelos e tentou encontrar a câmera de segurança.
– Hum… Na verdade, não tenho hora marcada. Vim ver…
– Não tem problema, meu bem. Entre.
Houve um som metálico e uma barra surgiu na superfície da porta. Empurrando-a, ela emergiu num espaço aberto de uns 6 metros de largura por 6 de comprimento. Com
luzes embutidas no teto e paredes de concreto pintadas de branco, parecia a cela de uma prisão.
Olhando ao redor, ficou se perguntando…
O facho vermelho do laser era largo como a palma da mão, mas tinha a espessura de um fio de cabelo, no máximo, e ela o notou apenas pelo calor, e não por sua visão
tê-lo percebido. Percorrendo-a dos pés à cabeça com lentidão, ele procedia de um canto à direita, de um meio globo escuro afixado no teto.
– Por favor, siga em frente – a voz feminina disse por outro alto-falante escondido.
Antes que Marissa levantasse a questão de não haver lugar para ir, a parede diante dela se partiu ao meio e deslizou para os lados, desaparecendo para revelar um
elevador que se abriu silenciosamente.
– Que chique – disse baixinho ao entrar.
O trajeto durou mais do que o esperado e o elevador parecia se mover para baixo, por isso ela concluiu que não havia exagero em chamar a construção de subterrânea.
Quando o elevador por fim parou, a porta se abriu novamente e…
Trabalho, trabalho, trabalho, ela pensou ao sair.
Parecia haver pessoas por todos os lados, sentadas em cadeiras ao redor de uma TV de tela plana à esquerda, dirigindo-se a uma bancada de recepção à direita, movendo-se
apressadas pela imensa sala. Trajavam jalecos brancos e uniformes de enfermagem.
– Olá! Você tem hora marcada?
Levou um instante para ela perceber que uma fêmea uniformizada sentada atrás do primeiro balcão se dirigia a ela.
– Ah! Não, desculpe, não tenho. – Aproximou-se e baixou a voz. – Sou tuhtora designada de uma fêmea que foi transferida do Lugar Seguro na noite passada. Vim ver
como ela está passando.
No ato, a recepcionista ficou paralisada. Em seguida, os olhos percorreram Marissa de alto a baixo, como o feixe de laser no andar térreo.
Marissa sabia exatamente que narrativa estava se passando pela mente da fêmea: noiva não reclamada de Wrath, hoje vinculada ao Dhestroyer e, acima de tudo, a irmã
distanciada de Havers.
– Poderia avisar o meu irmão que estou aqui?
– Já estou ciente da sua presença – Havers disse atrás dela. – Eu a vi na câmera de segurança.
Marissa fechou os olhos por um breve segundo. E depois se virou para encará-lo.
– Como está a paciente?
Ele se curvou de leve. O que foi uma surpresa.
– Não muito bem… Por favor, venha por aqui.
Enquanto seguia seu jaleco branco em direção a uma pesada porta dupla fechada, tinha consciência dos muitos pares de olhos sobre eles.
Encontros familiares eram divertidos. Ainda mais em público.
Depois de Havers passar seu cartão por um leitor magnético, as portas metálicas se abriram para revelar um espaço médico tão sofisticado e intenso quanto qualquer
um imaginado por Shonda Rhimes:* quartos hospitalares repletos de equipamentos médicos estavam agrupados ao redor de um espaço administrativo central com enfermeiras,
computadores e vários tipos de suporte, enquanto três corredores partiam em direções diferentes para o que ela deduziu serem unidades de tratamento especializado.
E seu irmão administrava tudo aquilo sozinho.
Se Marissa não soubesse do que o irmão era capaz, ficaria maravilhada com ele.
– Esta é uma instalação e tanto – observou ao seguirem em frente.
– O projeto levou um ano, a construção mais do que isso. – Ele limpou a garganta. – O Rei tem sido muito generoso.
Marissa lançou-lhe um olhar de surpresa.
– Wrath? – Como se houvesse outro monarca! Dã! – Quero dizer…
– Eu presto serviços essenciais à raça.
Foi poupada de sustentar a conversa por mais tempo quando ele parou diante de uma unidade envidraçada que tinha as cortinas fechadas pela parte interna.
– Você precisa se preparar para isto.
Marissa olhou fixamente para o irmão.
– Até parece que eu nunca testemunhei o resultado de violência antes…
A ideia de que ele desejasse protegê-la de qualquer coisa àquela altura era ofensiva.
Havers inclinou a cabeça, desconcertado.
– Sim, claro.
Com um movimento, ele abriu a porta de vidro e depois afastou as cortinas verdes claras.
O coração de Marissa gelou, e ela teve que combater certa hesitação. Tantos tubos e máquinas entravam e saíam da fêmea que aquilo mais parecia um filme de ficção
científica, o comando daquele fiapo de vida assumido por funções mecânicas.
– Ela está respirando sem auxílio – Havers informou ao se inclinar e verificar a leitura de alguma coisa. – Retiramos o tubo de traqueotomia umas cinco horas atrás.
Marissa se recompôs e forçou os pés a se moverem até a cama. Havers estivera certo ao alertá-la… Mas o que ela esperava ver? Vira os ferimentos pessoalmente.
– Alguém… – Marissa se concentrou no rosto judiado. Os hematomas haviam descolorido o rosto ainda mais, grandes faixas de roxo e vermelho marcando as faces inchadas,
os olhos, a mandíbula. – Alguém da família… veio procurá-la?
– Não. E ela não tem se mantido suficientemente consciente para nos dizer seu nome.
Marissa se aproximou da cabeceira da cama. Os bipes e os sussurros suaves do equipamento pareciam altos demais, e sua visão estava nítida demais ao olhar para a
bolsa de soro pingando constantemente, e o modo como os cabelos castanhos da fêmea estavam emaranhados sobre a fronha branca, e a textura da manta azul sobre os
lençóis.
Curativos em toda parte, pensou ela. E isso apenas nos braços e ombros expostos.
A mão pálida e delgada estava apoiada ao lado do quadril, e Marissa esticou a sua para segurá-la. Fria demais, pensou. A pele estava fria demais e não tinha a coloração
correta: estava branca acinzentada, em vez de castanha dourada.
– Está voltando a si?
Marissa ficou confusa com o comentário do irmão, mas logo percebeu que os olhos da fêmea estavam tremelicando, as pálpebras inchadas se abrindo e fechando.
Inclinando-se na direção dela, Marissa disse:
– Você está bem. Está na clínica do meu ir… na clínica da raça. Está segura aqui.
Um gemido sofrido a fez se retrair. E depois houve uma série de murmúrios.
– O que disse? – Marissa perguntou. – O que está tentando me contar?
As sílabas foram repetidas com pausas nos mesmos lugares, e Marissa tentou compreender o padrão, desvendar a série de palavras, apanhar o significado.
– Repita uma vez mais…
De repente, os bipes ao fundo se aceleraram num alarme. E Havers afastou a cortina e escancarou a porta, gritando para o corredor.
– O que foi? – Marissa perguntou, curvando-se mais sobre o leito. – O que está dizendo?
Enfermeiras entraram apressadas, e um carrinho foi trazido. Quando alguém tentou se colocar entre ela e a paciente, Marissa sentiu vontade de lhes dizer que parassem,
mas logo a agitação no quarto prevaleceu.
A conexão entre Marissa e a paciente foi rompida, as mãos das duas se afastaram, e mesmo assim os olhos da fêmea permaneceram fixos em Marissa, mesmo quando mais
pessoas e equipamentos ficaram entre elas.
– Comece as compressões – Havers disse quando uma enfermeira subiu na cama. – Carregue a máquina.
Marissa recuou um pouco mais, ainda mantendo contato visual.
– Eu vou encontrá-lo – ouviu-se dizendo em meio à confusão. – Eu prometo…
– Todos para trás – Havers ordenou. Quando a equipe se afastou, ele apertou um botão e a caixa torácica da fêmea se arqueou.
O coração de Marissa batia forte, como se tentasse compensar o que fraquejava sobre o leito.
– Vou encontrar quem fez isso com você! – ela exclamou. – Fique conosco! Não desista! Nos ajude!
– Sem pulsação – Havers anunciou. – Vamos repetir. Afastem-se!
– Não! – Marissa gritou quando os olhos da fêmea se reviraram. – Não…!
Shonda Rhimes é roteirista, cineasta e produtora norte-americana, criadora, entre outras séries, do drama médico Grey’s Anatomy. (N.T.)
Capítulo 5
AQUILO ERA… UM COQUETEL?
Enquanto Paradise entrava no ginásio que parecia ser tão grande quanto um campo de futebol profissional, surpreendeu-se em ver doggens uniformizados segurando bandejas
de prata repletas de canapés com as mãos cobertas por luvas brancas, um bar montado sobre uma mesa com toalha adamascada e música clássica tocando ao fundo.
As sonatas de violino de Mozart.
Das que seu pai ouvia diante da lareira após a Última Refeição.
À esquerda, havia um balcão de inscrição, para onde, após um instante de aglomeração, todos os sessenta candidatos formaram uma fila diante de uma doggen com um
sorriso contente estampado no rosto e um laptop diante de si. Não querendo parecer alguém que desejava tratamento especial, Paradise entrou na fila e esperou pacientemente
até informar seu nome, confirmar seu endereço, ter sua foto tirada e seguir para o lado onde entregou o casaco e a mochila.
– Gostaria de um canapé? – um doggen lhe ofereceu.
– Ah, não, obrigada, mas agradeço a gentileza.
O doggen se curvou até a cintura e abordou o macho que estivera atrás dela na fila. Relanceando por sobre o ombro, cumprimentou com a cabeça o colega candidato,
e o reconheceu dos festivais que a glymera organizara antes dos ataques. Como todos os membros da aristocracia, eram primos distantes, apesar de não ter convívio
com ele nem com seus familiares.
Seu nome era Anslam, se bem se lembrava.
Depois de retribuir o aceno, ele enfiou um canapé na boca.
Girando sobre os calcanhares, Paradise deu uma olhada nos equipamentos de ginástica espalhados pelo espaço aberto. Barras paralelas, barras simples, colchões para
amortecer as quedas, um cavalo de alças, leg press… ah, que bom, eles também tinham um aparelho de remo seco.
Pelo menos não fracassaria num dos equipamentos.
Espiando por cima do ombro, descobriu que muitos dos recrutas pareciam se esquivar constrangidos dos doggens, como se nunca tivessem visto criados antes. Peyton
atacava os aperitivos com fervor… O que não era uma surpresa. E Axe, o assassino serial latente, estava na periferia de tudo aquilo, com os braços cruzados diante
do peito, os olhos inspecionando o cenário como se talvez escolhesse suas vítimas.
Ficou se perguntando o que significavam todas aquelas tatuagens… E os piercings?
Tanto faz.
E, puxa, veja só, parecia haver apenas uma única outra fêmea até o momento. Considerando-se a expressão forte como aço no rosto magro, e os ombros amplos, ela provavelmente
seria mais adequada ao programa do que boa parte dos machos ali.
Esfregando as palmas úmidas nas coxas, Paradise desvencilhou-se de uma sensação de desapontamento: aquele macho, Craeg, que fora à casa de audiências atrás de um
formulário de inscrição, não estava no grupo.
Mas, convenhamos, devia ser uma coisa boa. Ele se mostrara uma distração absoluta no instante em que se aproximara da sua escrivaninha; e ela precisaria de toda
a sua concentração para passar por aquilo.
Desde que aquela noite revolvesse em torno de algo além de canapés.
Onde estavam os Irmãos?, perguntou-se.
Um movimento chamou a sua atenção pelo canto do olho. Um dos machos saltara no cavalo com alças e lentamente girava a parte inferior do corpo em círculos enquanto
os braços impressionantes mantinham seu peso suspenso. O som das palmas batendo no couro formou uma batida que rapidamente acelerou mais e mais conforme sua velocidade
aumentava.
– Nada mal… – murmurou enquanto o tronco incrivelmente forte lançava as pernas para fora e ao redor num borrão.
Ele não perdeu o compasso. Nem uma única vez. E quanto mais ele girava, mais convencida ela ficava de que deveria ter passado oito anos na academia, e não apenas
oito semanas. E se o restante dos candidatos fosse como ele? Estava ferrada.
Mas, olhando bem, ela não parecia ser a única intimidada. A turma inteira parara de passear para olhar para ele, hipnotizada pela excelência da atuação solitária
naquele imenso ginásio.
Tum.
O som da porta se fechando fez com que ela olhasse por sobre o ombro… E arfou antes de se conter.
Lá estava ele, aquele por quem ela esperava, aquele que ela tinha esperanças de reencontrar.
Paradise afofou o rabo de cavalo, algum receptor ligado ao estrogênio enlouquecendo e fazendo-a regredir aos dezesseis anos, enquanto o macho se aproximava do balcão
de inscrição.
Mais alto. Ele era muito mais alto do que ela se lembrava. Mais largo também – seus ombros esticavam a costura do moletom do Syracuse. Mais uma vez, vestia calça
jeans, diferente da anterior, mas também com rasgos. O calçado era um par puído e sujo de Nikes. Estava sem boné desta vez.
Lindos cabelos negros.
Devia tê-los cortado recentemente, pois as laterais estavam tão batidas que ela via o couro cabeludo por baixo da penugem escura ao redor das orelhas e da nuca,
e o topo estava curto o bastante para ficar espetado. O seu rosto… Bem, não devia ser de parar o trânsito para outras pessoas, o nariz era um pouquinho grande demais,
o queixo, um pouco pontudo, os olhos, um pouco afundados demais para parecerem receptivos. Mas, para ela, ele era Clark Gable; era Marlon Brando; era o The Rock;
era Channing Tatum.
Era como se estivesse embriagada sem ter bebido, imaginou alguma química dentro dela transformando-o em algo muito além do que ele era.
Inspirando fundo, tentou captar seu perfume… E se sentiu uma perseguidora.
Bem, porque talvez fosse uma perseguidora.
Depois que tiraram a sua foto, ele se virou para o restante da turma, os olhos varrendo o grupo, sem demonstrar nenhuma reação. Ao longe, ela percebeu que a doggen
que os recepcionara arrumava seus pertences e partia, juntamente a todos os outros criados, que provavelmente se afastavam para voltar a encher as bandejas.
Mas será que ela se importava com isso?
Olhe para mim, ela pensou olhando na direção do macho. Olhe para mim…
E foi o que ele fez.
Seus olhos passaram por ela, mas, em seguida, voltaram e ali se detiveram. Quando um raio de eletricidade atravessou o corpo inteiro de Paradise, ela…
De repente, o ginásio ficou escuro.
Breu. Sinistro. Total.
De volta à clínica subterrânea de Havers, se Marissa não estivesse apoiada no vidro, teria caído.
Ainda mais quando viu o irmão puxar o lençol branco por cima da expressão congelada da fêmea.
Santa Virgem Escriba, não estava preparada para o silêncio da morte… Para como, quando Havers anunciou a hora do óbito, tudo e todos pararam, os alarmes silenciaram,
os esforços cessaram, a vida acabara. Também não estava preparada para a retirada do equipamento que tentara manter a fêmea viva: um a um, os tubos no peito, nos
braços, no abdômen foram removidos, assim como os eletrodos do monitor cardíaco. A última coisa que tiraram foram as faixas de compressão ao redor das canelas finas.
Marissa acompanhava perplexa a movimentação das mãos gentis das enfermeiras. Foram cuidadosas com a paciente na morte assim como haviam sido em vida.
Quando a equipe se preparava para ir embora, ela sentiu vontade de agradecer às fêmeas de roupas brancas e sapatos levemente rangentes. Dar-lhes a mão. Abraçá-las.
Em vez disso, ficou onde estava, paralisada pela sensação de que a morte ocorrida não deveria ter sido testemunhada por ela. Era a família que deveria estar ali,
pensou apavorada. Deus, onde encontraria a família dela?
– Sinto muito – Havers disse.
Marissa estava prestes a perguntar por que estava se desculpando com ela quando percebeu que o irmão se dirigia à paciente morta: estava curvado sobre o leito,
uma das mãos sobre o ombro inerte debaixo do lençol, as sobrancelhas franzidas por trás dos óculos de aro tipo casco de tartaruga.
Quando ele se endireitou e recuou, levantou os óculos e pareceu enxugar os olhos, ainda que, ao se voltar para ela, parecesse completamente composto.
– Cuidarei para que os restos dela sejam tratados adequadamente.
– E isso significa…
– Que ela será cremada de acordo com um ritual adequado.
Marissa concordou com um aceno de cabeça.
– Quero ficar com as cinzas dela.
Enquanto Havers assentia e ambos combinavam que ela apanharia as cinzas na noite seguinte, Marissa estava bem ciente de que seu tempo estava se acabando. Se não
se afastasse do irmão, daquele quarto, daquele corpo, da clínica… acabaria desmoronando diante dele.
E isso simplesmente não era uma opção.
– Se me der licença – ela o interrompeu. – Tenho que cuidar de alguns assuntos no Lugar Seguro.
– Sim, claro.
Marissa olhou para a fêmea, notando sem pensar as manchas vermelhas em alguns pontos do lençol, sem dúvida resultantes da remoção dos tubos.
– Marissa, eu…
– O que foi? – ela disse com voz cansada.
No silêncio tenso que se seguiu, ela pensou em todo o tempo que passara furiosa com ele, odiando-o, embora, naquele instante, não conseguisse reunir nenhuma dessas
emoções. Apenas ficou ali parada diante de seu parente, aguardando numa postura que não era nem de força nem de fraqueza.
A porta se abriu e a cortina foi afastada. Uma enfermeira, que não estivera envolvida na tentativa de reanimação da paciente morta, inseriu a cabeça pela abertura.
– Doutor, estaremos prontos em quatro minutos.
Havers assentiu.
– Obrigado. – Quando a enfermeira se afastou, ele disse: – Pode me dar licença? Eu preciso…
– Cuide dos seus pacientes. Pode ir. É o que você faz de melhor, e é muito bom nisso.
Marissa saiu do quarto, e depois de um instante de hesitação quanto a que direção tomar, lembrou-se de ir pela esquerda. Era mais fácil recobrar a compostura do
lado de fora e manter a máscara no lugar ao retornar para a recepção, com todos os olhares fixos nela quando ela partiu, como se a notícia tivesse se espalhado pelos
funcionários. Estranho não ter reconhecido nenhum rosto. Isso a fez perceber mais uma vez quantos haviam sido mortos nos ataques, e quanto tempo se passara desde
que circulara pelo ambiente de trabalho do irmão.
E como os dois, apesar dos laços sanguíneos, eram, essencialmente, estranhos um para o outro.
Pegando o elevador para subir à superfície, desembarcou no recinto parecido com uma cela da construção superior e seguiu caminho em direção à floresta.
Ao contrário da noite anterior, a lua brilhava forte, iluminando as árvores… e a ausência de qualquer estrada. Percebeu que, de fato, existiam entradas múltiplas
para o complexo subterrâneo, algumas para entregas, outras para pacientes que conseguiam se desmaterializar, e outra ainda para as ambulâncias.
Tudo isso logicamente projetado, sem dúvida segundo as diretrizes e influência do irmão.
Por que Wrath não lhe contara que estava ajudando Havers com tudo aquilo?
Pensando bem, isso não era da sua conta, era?
Será que Butch sabia?, perguntou-se.
Sinto muito.
Enquanto ouvia a voz do irmão em sua mente, sua raiva voltou multiplicada por dez, a ponto de ter que esfregar a queimação que sentia no esterno.
– Águas passadas não movem moinhos – disse a si mesma. – Hora de voltar ao trabalho.
No entanto, ela não parecia capaz de partir. De fato, a ideia de regressar ao Lugar Seguro fez com que quisesse seguir na direção oposta. Não poderia contar às
suas funcionárias o que acabara de acontecer. A morte da fêmea era como uma negação de tudo o que tentavam fazer debaixo daquele teto: interceder, proteger, educar,
fortalecer.
Não. Não conseguiria ir direto para lá.
A questão era… Não fazia ideia de onde ir.
Capítulo 6
NA ESCURIDÃO TÃO DENSA quanto a de um túmulo, Paradise só conseguia ouvir o próprio coração batendo forte atrás das costelas. Estreitando os olhos, tentou ajustar
a vista, mas não havia nenhuma fonte de luz em parte alguma: nenhum brilho ao redor das portas, nenhum sinal luminoso em vermelho indicando a saída, nenhuma luz
de emergência. O vazio era absolutamente aterrorizante e parecia desafiar as leis da gravidade, a sensação de que talvez estivesse flutuando no ar apesar de seu
peso permanecer sobre os pés a confundia e a nauseava.
A música clássica também não tocava mais.
Mas o ambiente estava longe de estar silencioso. Ao forçar os ouvidos a não priorizar as castanholas dentro do peito, conseguiu ouvir murmúrios, respirações, imprecações.
Alguns deviam estar se movendo um pouco, pois ouvia o farfalhar das roupas, os raspar dos calçados, como barulho de fundo para sons vocais mais proeminentes.
Eles não podem nos machucar, pensou. De modo algum a Irmandade os feriria de verdade. Sim, claro, assinara um termo de consentimento e de exoneração de culpa na
parte de trás da inscrição – não que tivesse dado muita atenção às letras miúdas – mas, de toda forma, assassinato era assassinato.
Não se podia assinar um documento abrindo mão do direito de permanecer vivo.
Aquilo só podia ser a Irmandade fazendo a sua grande entrada. A qualquer momento. Isso mesmo, eles surgiriam debaixo de algum holofote, suas silhuetas destacadas
como as de super-heróis contra um fundo de fumaça, seu incrível arsenal dependurado nos corpos imensos.
Aham.
A qualquer instante…
Enquanto a escuridão prosseguia, seu medo deu as caras de novo, e era muito difícil não ceder a ele e correr. Mas para onde ir? Tinha vaga noção de onde estavam
as portas, o bar e o balcão de recepção. Também se lembrava de onde aquele macho, Craeg, estava – não, espere, ele tinha se mexido. Estava se mexendo.
Por algum motivo, ela o sentia em meio a todos os outros, como se ele fosse algum tipo de farol…
Uma brisa passou pelo seu corpo, sobressaltando-a. Mas era apenas ar fresco. Uma corrente de ar fresco.
Bem, isso excluía a possibilidade de uma queda de energia, se o sistema de ventilação estava funcionando.
Ok, era ridículo.
E, evidentemente, não era a única se frustrando ali. Outros praguejavam mais, se movimentavam mais, batiam os pés no chão, impacientes.
– Prepare-se.
Paradise gritou na escuridão, mas se acalmou ao reconhecer a voz de Craeg, seu cheiro, sua presença.
– O que disse? – sussurrou.
– Prepare-se. É aqui que o teste começa. Abriram uma saída, a pergunta é como nos farão ir até lá.
Ela desejou parecer tão esperta e calma quanto ele.
– Por que simplesmente não voltamos pelas portas que usamos para entrar?
– Não é uma boa ideia.
Bem nessa hora, ocorreu uma movimentação coordenada na direção pela qual entraram, como se um grupo tivesse se formado, concordado com uma estratégia, e colocasse
o plano em ação.
E foi nesse instante que ela ouviu os primeiros gritos da noite.
Agudos, e evidentemente de dor, não de surpresa, os sons horríveis vinham acompanhados de um zunido que ela não compreendia.
Às cegas, literalmente, esticou a mão e segurou Craeg… Só que pegou na extensão dura e plana do seu abdômen e não no braço.
– Ah, Deus… desculpe, eu…
– Eletrificaram as portas – ele disse, sem comentar a gafe dela, tampouco seu pedido de desculpas. – Podemos concluir que nada aqui é seguro. Bebeu o que serviram?
Comeu alguma coisa daquelas bandejas?
– Hum… Não, eu…
Da esquerda, ouviram o som inconfundível de alguém vomitando em meio ao caos. E dois segundos depois, como um passarinho respondendo a um trinado da sua espécie,
outra pessoa começou a vomitar.
– Eles não podem nos fazer passar mal – ela disse de súbito. – Espere, isto é… isto é uma escola! Não podem…
– Isto aqui é sobrevivência – disse o macho com seriedade. – Não se engane. Não confie em ninguém, ainda mais se for algum suposto professor. E não tenha esperanças
de passar por isto, não por ser uma fêmea, mas porque os Irmãos vão estabelecer um padrão tão alto que somente dez de nós terão uma chance de ainda permanecer de
pé até o fim da noite. Quando muito.
– Não pode estar falando sério.
– Preste atenção – ele disse. – Ouviu isto?
– Os vômitos? – O estômago dela se revolveu em empatia. – Difícil não ouvir.
Difícil suportar o cheiro também.
– Não, o tique-taque.
– O que… – E foi aí que ela também ouviu… ao fundo, o equivalente sonoro a alguém se movendo atrás de cortinas, havia um tique-taque ritmado. – O que é isso?
– Não nos resta muito tempo. O intervalo entre os ruídos está ficando cada vez mais curto. Boa sorte.
– Aonde você vai? – O que ela queria dizer era: não me deixe. – Aonde…
– Vou atrás do ar fresco. É para lá que todos irão. Não toque nos aparelhos de exercício. E, como já disse, boa sorte.
– Espere! – Mas ele já se afastara, um fantasma sumindo na escuridão.
De repente, Paradise se sentiu completamente apavorada, seu corpo tremia incontrolavelmente, as mãos e os pés entorpecendo, suor frio se formando em cada centímetro
quadrado de sua pele.
Papai estava certo, pensou. Não posso fazer isto. No que eu estava pensando…
E foi nesse momento que tudo começou.
Do alto e de todos os lados, aconteciam explosões como se o ginásio tivesse sido preparado para ser detonado. Os sons eram tão altos que seus ouvidos os registraram
como dor, não apenas barulho, e os flashes de luz tão brilhantes que ela passou de uma versão da cegueira para outra.
Gritando em meio ao caos, ela levou as mãos aos ouvidos e se abaixou, procurando cobertura.
À frente dela, viu pessoas no chão, algumas num agachado defensivo como o seu, outras vomitavam, e junto àquelas portas, pessoas se retorciam e abraçavam a si mesmas
apertado, como se a dor fosse grande demais para permanecerem de pé.
Só havia uma pessoa de pé se movimentando.
Craeg.
Nos flashes intermitentes, ela acompanhou seu avanço para o canto oposto. Sim, parecia existir uma abertura, uma porta que ofereceria nada além de mais escuridão…
Mas devia ser melhor do que ser explodido.
Deu um punhado de passos à frente, mas logo percebeu que aquilo seria uma cretinice. Correr. Ela precisava correr. E não havia nada detendo-a, e ela não queria
ser atingida pelos destroços que caíssem.
Não toque nos equipamentos.
Levando-se em consideração o que acontecera com aqueles que tentaram sair pelas portas metálicas? Só podia ser verdade.
Foi um grande alívio disparar adiante, porém ela teve que diminuir o passo porque sua visão não conseguia acompanhá-lo; ela precisava esperar pelos flashes de luz.
Era o único modo de avançar com segurança.
Pense numa caminhada desajeitada. Tropeços, arrastos, escorregadas, ela começou a abrir caminho em meio ao barulho e à luz atordoantes, à ameaça à sua vida, ao
terror que a acompanhava.
Acabara de entrar no labirinto de equipamentos quando se deparou com a primeira pessoa caída no chão. Era um macho que gemia e apertava a barriga. Seu instinto
foi o de tentar ajudá-lo, mas conteve-se.
Isto aqui é sobrevivência.
Algo passou zunindo por sua orelha – uma bala? Estavam atirando neles?
Jogando-se no chão, foi deslizando pelo chão escorregadio de barriga, e depois foi avançando agachada em meio ao tremendo caos.
Estava indo bem até chegar ao macho seguinte que estava deitado se contorcendo, os braços agarrados ao abdômen.
Era Peyton.
Continue, disse a si mesma. Vá para a segurança.
Enquanto outra explosão acontecia, bem do lado direito da sua cabeça, ela grudou a barriga no chão e gritou em meio à confusão:
– Merda!
Enquanto Craeg, filho de Brahl, o Jovem, avançava pelo ginásio, surpreendeu-se com o fato de que deixar aquela fêmea para trás o incomodasse tanto. Não a conhecia,
não lhe devia nada. Ela era Paradise, a recepcionista da casa de audiências do Rei, aquela que lhe entregara o formulário de inscrição impresso havia várias semanas.
De que ele precisava por ser pobre demais para ter acesso à internet, quanto mais a um computador e uma impressora.
Lá naquela sala, ela se mostrara… deslumbrante demais para que ele a fitasse. E quando ficou sabendo que ela queria participar do programa? A única coisa que lhe
passou pela mente era o que os humanos poderiam fazer com ela caso a apanhassem. Ou os redutores. Ou o tipo errado de vampiro.
Alguém tão linda quanto ela não estava segura neste mundo.
Entretanto, ela parecia ingênua quanto à severidade das provas que todos enfrentariam como trainees. Os Irmãos haviam orquestrado cada parte daquele ambiente. Nada
fora deixado ao acaso, e nada aconteceria a favor dos candidatos. Dizer a ela o que ela já deveria saber pareceu-lhe o único modo de ajudá-la de alguma maneira,
mas não poderia desperdiçar sequer um instante se perguntando o que podia ter acontecido com ela.
Precisava era se concentrar nos flashes.
Ainda que a princípio parecessem aleatórios, na verdade existia um padrão sutil neles, e assim como os tique-taques antes que o show de barulhos e luzes começasse,
os intervalos estavam ficando cada vez menores; portanto, seu tempo estava acabando.
Não fazia ideia de qual seria a segunda fase, mas sabia muito bem que era bom estar preparado para ela.
Pelo menos nenhum deles morreria.
Apesar da atmosfera de perigo, ele tinha a sensação de que a Irmandade não feriria nenhum deles de verdade. As “explosões” eram apenas muito barulho e luzes: não
havia destroços, nenhuma estrutura estava caindo, não havia cheiro de fumaça. Do mesmo modo, o que quer que estivesse fazendo mal às pessoas não devia ser algo fatal.
Os camaradas deitados no chão não estavam num momento feliz em suas vidas, claro, mas em meio aos flashes, ele notou que os primeiros a caírem já estavam ficando
de pé.
Aquele era um teste, um teste elaborado e só Deus sabia quanto duraria e, pelo andar da carruagem, a proporção de sucesso entre os candidatos devia ser ainda mais
baixa do que aquela que dissera a Paradise.
Craeg parou e olhou para trás por um segundo. Não conseguiu evitar.
Contudo, não havia como saber onde ela estava no meio daquela confusão. A luz não se sustentava por tempo suficiente e havia muitos corpos ali.
Apenas siga em frente, disse a si mesmo.
Já fez isso antes, vai fazer hoje de novo.
Seguindo em frente, abriu seu caminho ao largo dos equipamentos de exercício. Não era uma boa ideia tentar se proteger atrás deles. De tempos em tempos, ele via
pelo canto dos olhos alguma pobre alma tentar isso, só para parecer ser eletrocutada, os corpos se retorcendo em ângulos esquisitos na luz estroboscópica ao serem
lançados para trás e caírem.
Desejou muito que ela tivesse lhe dado ouvidos.
Abaixando a cabeça e se movimentando com rapidez, acabou chegando à porta de entrada do lado oposto. O cheiro de ar fresco era inebriante, um respiro que renovou
as forças do seu corpo. Mas ele não conseguia enxergar o que havia do outro lado, e recriminou-se por não ter dado razão ao impulso de trazer uma lanterna consigo.
Ok, tudo bem, então nem ele mesmo imaginara que as coisas ali podiam ficar tão intensas.
– É por aí que temos que ir.
Ao som daquela voz grave, ele olhou para trás, e ficou surpreso ao ver uma fêmea parada tão perto dele. Não era a loira adorável, nem perto disso. Na verdade, aquela
parecia sugerir que o termo “sexo frágil” era um grande equívoco de nomeação. Era quase tão alta quanto ele, musculosa debaixo das roupas de ginástica e, pelo modo
como o encarava direto nos olhos, ele entendeu que ela era tão inteligente quanto forte.
– Craeg – apresentou-se, estendendo a mão.
– Novo.
Como esperado, o aperto de mãos foi breve e forte.
– Agora vem isso. – Ela apontou para o vazio com a cabeça. – Por que diabos eu não trouxe a minha lanterna?
– Acabei de pensar a mesma coisa…
– Por aqui! – alguém exclamou. – É por aqui!
Em meio à luz forte, Craeg viu um grupo de três machos disparando pela passagem, conduzido por um grandalhão que trazia uma expressão de triunfo antecipado no rosto,
que Craeg tinha muita certeza que não duraria muito tempo mais.
Craeg sacudiu a cabeça e recuou um passo. Qualquer que fosse a maneira de entrar ali, não seria em disparada. Pelo que sabiam…
Um… Dois… Três… O trio passou por ele e pela fêmea, que havia parado ao seu lado.
De súbito a porta se fechou num baque forte. Em seguida, gritos do lado oposto.
Craeg olhou ao redor. Talvez outra saída fosse aberta? Ou talvez devesse pensar mais amplamente? Seria possível existir outra resposta…
Naquele instante, viu um par de cordas penduradas do teto uns nove metros mais à frente. Podia jurar que elas não estavam ali antes… Quem podia saber?
– Essa é a próxima opção – comentou.
– Vamos lá.
Os dois se afastaram, correndo ao redor dos equipamentos, na direção das cordas antes que mais alguém o fizesse. Não havia como saber onde elas os levariam, não
dava para enxergar tão alto, mas as luzes pipocavam com maior intensidade, e não havia opção.
– Pedra, papel, tesoura para ver quem vai escolher antes – ela disse, mostrando o punho.
Ele fez o mesmo.
– Um, dois, três. – Craeg escolheu pedra; ela, papel. – Você escolhe.
– Ok.
Craeg segurou a da esquerda e puxou com tanta força que suas palmas arderam. Parecia ser forte o bastante. Mas e se estivesse errado? A queda seria bem longa, e
não havia acolchoados embaixo.
Ele e a fêmea avançaram lado a lado, segurando, puxando, usando os pés para prender a ponta solta que deixavam para trás ao subirem. E ela era quase tão rápida
quanto ele, não que gastasse muito tempo para medir o seu progresso. Para cima, para cima, para cima… Até que os alto-falantes dos quais saíam os barulhos de explosão
estivessem logo acima da sua cabeça e as caixas de luz que geravam os flashes brilhantes os cegassem logo adiante.
– E agora? – exclamou quando estava a menos de dois metros do teto.
– Andaimes – ela gritou de volta, mudando de mão na corda e apontando.
E lá estava algum tipo de passarela suspensa por fios de metal. Olhando para baixo, rezou mais uma vez para que a plataforma fosse forte o bastante para suportar
o peso.
– Vou na frente.
– Pedra, papel, tesoura – ela gritou. – Um, dois, três.
Ele escolheu tesoura; ela, papel.
– Eu primeiro – ele anunciou.
Só que a passarela ainda estava um tanto distante, mesmo quando ele chegou à sua altura. Segurando-se à corda grossa, usou a parte inferior do corpo para criar
um movimento pendular… que passou a um balanço completo. Seria necessária uma perfeita cronometragem para fazer aquilo do jeito certo, teria que soltar as mãos por,
pelo menos, um metro e meio em pleno ar, sem rede de proteção embaixo. E quem é que sabia o que encontraria ali quando aterrissasse?
Mais metal com corrente elétrica correndo por ele?
Craeg avançou com a pelve uma vez mais, ergueu os joelhos e afastou o peso da passarela; em seguida, quando o movimento o levou para a frente uma vez mais, ele
arqueou as costas e jogou os pés adiante.
E, bem na hora certa, soltou a corda, desistindo da segurança que ela oferecia.
Pelo menos, ele desejou que fosse na hora certa.
Capítulo 7
– LEVANTA, PEYTON! LEVANTA… AGORA!
Quando Paradise perdeu a luta com seu instinto de sobrevivência e rolou o amigo – ou inimigo, ou que diabos fosse ele agora – de costas, praguejou contra ele, contra
si mesma, contra a Irmandade, contra mais ou menos tudo que fosse um substantivo.
A nova posição não demorou muito. Quando ele voltou a vomitar, ela o empurrou de bruços de novo a fim de que não aspirasse o vômito.
Olhando ao redor, viu… tantos caídos no chão. Como se fosse um campo de batalha.
– Vou morrer – Peyton gemeu.
Nos recessos da mente, Paradise notou que, apesar de os sons serem calamitosos, havia mais iluminação, os flashes surgiam mais rapidamente e permaneciam por mais
tempo.
– Venha. – Paradise o puxou pelo braço. – Não podemos ficar aqui.
– Pode me deixar… só me deixe ficar aqui…
Quando Peyton vomitou de novo e pouca coisa foi expelida, ela olhou para a extremidade oposta do ginásio. Havia algumas pessoas paradas ao redor da abertura escura
na direção que Craeg lhe dissera para tomar.
– Peyton…
– Vamos todos morrer…
– Não, não vamos.
E foi um choque perceber que de fato ela acreditava nisso, que não fora apenas uma frase feita para dar falsas esperanças ao senhor Gostosão com problemas estomacais.
A questão era que todo aquele barulho e aquelas luzes não provocavam nenhum escombro, nenhuma fumaça, tampouco poeira, nenhuma estrutura estava pensa, nada de fato
ameaçava o lugar e nem as pessoas ali dentro. Era um espetáculo de som e luzes, como uma tempestade de trovões ao longe ou uma produção teatral, e só.
Também teve a sensação de que as luzes estavam mudando, e isso devia ter algum significado.
Provavelmente um nada bom.
– Peyton. – Agarrou seu braço e voltou a posicioná-lo de costas. – Levanta o traseiro do chão. Temos que chegar ao canto.
– Não consigo… está muito…
Sim, ela o esbofeteou. Não sentiu orgulho disso nem ficou satisfeita com o contato rude.
– Levanta.
Os olhos dele se abriram.
– Parry?
– Com quem diabos você achou que estava falando? Taylor Swift? – Ele suspendeu o torso do chão. – Fica de pé.
– Posso acabar vomitando em você.
– E eu não tenho problemas mais sérios? Já deu uma olhada neste lugar?
Peyton começou a balbuciar coisas sem sentido, e foi então que ela decidiu que já bastava. Passando por cima das pernas dele, segurou-o por debaixo das axilas e
usou sua força recém-descoberta para andar para trás arrastando-o até colocá-lo de pé em seu par de Adidas.
– Paradise, eu vou…
Fantástico.
Agora, a parte da frente da roupa dela estava toda vomitada.
E ele estava tão cambaleante que andar em linha reta seria um desafio. Correr? Nem sonhando.
– Que droga… – murmurou, segurando-o ao redor da cintura e suspendendo-o do chão como se fosse uma barra de pesos.
Pesado. Muito pesado para os seus ombros.
Agora era ela quem estava cambaleando. Era como se estivesse tentando equilibrar um piano, situação piorada pelo fato de que o peso estava discutindo com ela e
vomitando na parte de trás da sua perna direita.
Paradise começou a se mover, ignorando tudo a não ser o seu objetivo de chegar até a maldita porta do outro lado. A cabeça estava virada para um lado; o pescoço,
tão tenso que ardia; o ombro, entorpecido pela falta de circulação; e as coxas já tremiam pelo peso adicional sobre elas.
A tentação de se perder em todas as sensações físicas era forte, ainda mais depois que elas ficaram mais intensas e insistentes. Mas ela queria… Bem, ela queria
chegar à porta, ao ar fresco, ao fim daquela situação de completo caos. Então poderia respirar fundo, colocar o peso morto reclamante de Peyton no chão e se sentar
numa sala de aula limpa e agradável.
Talvez partilhar algumas risadas com a Irmandade por ela ter passado pela pior parte e agora as aulas teóricas e de autodefesa poderiam começar.
Para conseguir continuar em frente, tentou se lembrar do aspecto das salas de aula que vira quando ela e os demais foram conduzidos a partir do estacionamento.
Tinham luzes fluorescentes e cadeiras e mesas posicionados ordenadamente voltadas para a frente.
– Pare… – disse Peyton. – Eu vou morrer…
– Pode calar a boca e ficar parado? – disse ela num resmungo.
– Eu vou…
Ah, pelo amor de Deus, ela pensou quando ele vomitou de novo.
Conforme avançava a duras penas e ofegava devido ao esforço, o labirinto de equipamentos de atletismo era um completo pesadelo, as diversas estações parecendo ter
sido espaçadas e anguladas de modo a dificultar a passagem, o contorno, a superação.
Ainda mais com Peyton dobrado sobre ela.
Sem falar nas tantas pessoas espalhadas pelo chão.
Toda vez que passava ao lado de alguém ou tinha que passar o pé por cima de uma cabeça, mão, pé ou perna, queria parar, perguntar se estavam bem, chamar ajuda…
enfim, fazer alguma coisa. O fato de não poder salvar ninguém a não ser a si mesma e a Peyton a fazia gritar internamente, os pulmões queimando dentro do peito,
uma estranha raiva motivando-a.
Ficou procurando por sangue. Obsessivamente.
Mas não havia sinais dele: nenhuma mancha vermelha nas roupas, nada de fios rubros sobre a pele ou poças sobre as tábuas amarelo douradas do piso. Também não havia
nenhum cheiro dele que lhe fosse perceptível, embora houvesse diversos outros, nenhum deles agradável. Mas nada de sangue. E isso tinha que ser bom… Certo?
– Ahhhh! – ela berrou, ao sentir uma dor lancinante.
Nada é tão ruim que não possa piorar.
A dor no cotovelo esquerdo desestabilizou tudo, seu corpo se comportando como uma mesa dobrável que teve uma perna chutada… e, bem como um cesto de frutas sobre
uma superfície previamente nivelada, Peyton despencou no chão, seus membros frouxos quicando como se fossem maçãs.
– Ai, meu Deus – ela cerrou os dentes e agarrou o braço, massageando-o onde a corrente elétrica a atingira.
Aproximara-se demais do aparelho de supino horizontal. E ao avaliar a quantidade de equipamentos que ainda tinha que ultrapassar, pensou: Não consigo fazer isso…
não consigo…
– Consegue se levantar? – perguntou.
Peyton respondeu de forma não verbal com mais do que um não: foi uma afirmativa enfática de que isso ainda não era minimamente possível.
Deus, como ainda podia restar alguma coisa no estômago dele?
– Não consigo fazer isso – ela gemeu ao olhar ao redor e massagear o cotovelo.
Enquanto seus olhos iam de um lado a outro, percebeu que estava procurando por ajuda, algum tipo de boia salva-vidas, um salvador. Devia existir alguém a quem poderia
recorrer…
Pela segunda vez em sua vida, rezou à Virgem Escriba, cerrando os olhos com força, tentando encontrar as palavras certas contra a confusão ao fundo, os estrondos,
os cheiros, as visões e os espasmos desordenados de adrenalina em seu interior. De algum modo, ela conseguiu suplicar à deidade da raça que enviasse alguém para
por um fim àquilo, para cuidar de Peyton, para resgatar todas as outras pessoas abatidas, para que todos saíssem daquele inferno…
Pare de perder tempo, uma voz interior comandou.
Foi um choque tão grande que ela se virou para trás, esperando encontrar alguém atrás dela. Não havia ninguém ali.
Talvez tivesse sido anunciado nos alto-falantes?
Pare de perder tempo! Vá!
– Não consigo levantá-lo de novo!
É melhor encontrar um jeito de fazer isso, porra!
– Não consigo!
É melhor fazer essa porra de uma vez!
– Ok, tudo bem, ok, tudo bem.
Murmurou essas palavras repetidamente ao voltar a erguer Peyton e recolocá-lo na posição anterior. A segunda vez que o suspendeu foi ainda mais descoordenada que
a primeira, o corpo frouxo em partes que não ajudavam em nada, nada mesmo, mas Peyton parecia estar recobrando as forças, e suas mãos a seguraram pelo quadril.
Quando ultrapassou a parte dos obstáculos, estava ficando sem forças. Fez um rápido cálculo mental para medir a distância até a porta, acrescentando outros fatores
como o quanto o seu ombro estava se deformando debaixo de todo aquele peso, e o fato de que, inconvenientemente, precisava tanto urinar que sentia como se alguém
estivesse apunhalando o seu baixo ventre.
Passando a galopar, os pés deslizavam sobre o piso abençoadamente desobstruído; quanto menos chacoalhasse, melhor para o passageiro que carregava e seu próprio
corpo.
Espere um instante.
A porta estava fechada.
Ao chegar ao seu destino, franziu o cenho e forçou a visão a se focar nos instantes de iluminação. Merda, a porta estava fechada. Mas não havia pessoas paradas
junto a ela apenas momentos atrás?
Aproximando-se do painel, deixou Peyton escorregar para trás e mal lhe deu uma olhada quando ele caiu esparramado no chão.
O que acontecera com a maldita porta?
Não havia maçaneta de nenhum tipo. Nenhuma dobradiça. Nenhum vidro para quebrar.
Girando para o outro lado, perscrutou o ambiente… Jesus, havia cordas penduradas no teto, e duas pessoas penduradas nelas, subindo com uma velocidade que fez com
que ela quisesse se sentar e desistir bem ali onde estava.
– Peyton? – ela o chamou ao inclinar a cabeça mais para trás para acompanhar a subida daquele par. – Não vou conseguir te carregar numa daquelas ali.
Inferno, ela não achava que conseguiria arrastar o próprio peso por aquelas cordas flexíveis.
Aonde aqueles dois estavam indo?, perguntou-se quando eles sumiram de vista.
– Peyton, vamos precisar…
Uma depois da outra, as longas cordas torcidas caíram no chão pesadamente, provocando um baque tão alto que ela pôde ouvir mesmo com todo o barulho ao fundo.
Onde foram parar aqueles dois?
Esfregando os olhos, quis gritar. Em vez disso, cerrou os dentes e disse:
– Que diabos vamos fazer ag…
Uma corrente renovada de ar fresco fez com que voltasse a se girar. A porta voltara a se abrir, revelando um denso vazio negro.
Como se já tivesse consumido os outros recrutas e estivesse pronto para mais uma refeição.
Peyton se esforçou para ficar de pé, limpando o rosto com as mãos trêmulas.
– Consigo andar.
– Graças a Deus.
Ele olhou-a de relance.
– Te devo uma.
– Primeiro, vamos ver se indo por aqui vamos parar em algum lugar.
– Vamos juntos. – Os olhos dele ardiam quando lhe ofereceu o cotovelo, como se eles fossem entrar num salão de baile, ela de vestido de gala, ele de smoking. –
Não vou te deixar.
Paradise o encarou por um instante.
– Juntos.
Entrelaçando o braço no dele, não se surpreendeu quando ele a usou para se equilibrar. Ainda assim, aquilo representava uma incrível melhora em relação ao antigo
estado quase comatoso… a não ser pela náusea.
Avançaram ao mesmo tempo, pois a soleira era larga o bastante para deixar passar os dois…
A porta bateu atrás deles e apagou qualquer fonte de luz, e ela abriu a boca para gritar, mas conteve a saída do som. A sensação do chão escorregando debaixo dos
seus pés voltou a acontecer, uma lição quanto à importância da visão em relação ao equilíbrio e à orientação espacial de braços, pernas e tronco.
Ao seu lado, Peyton ofegava.
Do nada, mãos rudes a seguraram pelos cabelos, puxando-o com força. E ela desatou a gritar conforme o medo a fazia se contorcer e se debater contra quem a segurava.
– Paradise!
Foram separados e algo foi colocado sobre a sua cabeça, prendendo-se em seu pescoço. Forçada ao chão, suas pernas foram amarradas e depois usadas para puxá-la de
costas. Debatendo-se, tentando chutar, respirar, permanecer ainda que minimamente calma o bastante para poder pensar, sentiu-se sufocar.
Sentiu como… se fosse morrer.
No alto do andaime, Craeg descobriu do jeito mais difícil que era melhor se equilibrar, pois os choques que levava toda vez que seus braços encostavam em algo metálico
faziam seu coração acelerar e bloqueavam sua mente por uma fração de segundo que ele não podia se dar ao luxo de desperdiçar.
E, naturalmente, a maldita plataforma era tão desequilibrada quanto um velhinho caquético, indo de um lado para o outro, balançando como um bastão de basebol.
– Entre no ritmo! – gritou para Novo. – Siga meus passos!
Mãos fortes o seguraram pela cintura.
– Tô contigo.
Passaram a andar a passos largos, rápidos, porém cautelosos, indo de um lado a outro, o calor das luzes e o grupo de pessoas abaixo fazendo-o suar. Esticando os
braços, ele equilibrava a si mesmo e a ela, e os dois começaram a avançar num ritmo bom, dirigindo-se só Deus sabe para onde…
De repente, a passarela ficou estável, e isso foi uma notícia bem ruim. O que dava certo numa superfície instável não funcionou muito bem na firme, e os dois se
meteram numa série de choques elétricos que os mandou de um lado a outro, os corpos se chocando e depois voltando a acertar os apoios de metal, só para receberem
mais choques. Os músculos começaram a se enrijecer com cãibras e se recusaram a relaxar, os membros incapazes de seguir os comandos mentais.
– Cacete! – Craeg exclamou ao tentar fazer o corpo parar de reagir ao estímulo.
– Mas que porra…? – Novo berrou.
Ou algo parecido.
Em pleno ar.
Em seguida, ele se viu caindo da beirada da qual não notara se aproximar, uma queda livre que fez com que até ele berrasse a plenos pulmões. Ao seu redor, o ar
se movia rápido, passando por suas roupas, agitando-as, correndo por seus cabelos, pele do rosto e das costas, atordoando os seus ouvidos com um som impactante.
Acabaria fraturando as pernas se caísse de pé, mas não havia tempo, tampouco distância – sequer um motivo – para tentar amortecer a queda que não seria devastadora…
Splash!
Ele atingiu de lado uma inesperada superfície líquida, seu corpo sendo capturado por aquele volume de água limpa e fria. O alívio por não ter acabado com os dois
fêmures saindo pelo topo dos ombros durou pouco. Após tantos choques elétricos, seus músculos torturados e hiperaquecidos imediatamente se retesaram com cãibras,
tudo se imobilizou, a ausência de gordura corporal transformando-o numa âncora, não numa boia.
O choque da queda inesperada fez com que ele enchesse os pulmões de ar, porém esse oxigênio não duraria muito. Precisava retornar à superfície.
Com mãos fechadas em garras e mobilidade em apenas uma perna, ele lutou e se debateu na direção que esperava que fosse para cima. Não tinha absolutamente nenhuma
orientação visual, nada além do abismo negro que o consumiria caso não se salvasse.
A superfície da piscina, da lagoa, do lago, do que quer que aquilo fosse, surgiu inesperadamente, sem aviso, surpreendendo-o da mesma forma que antes, quando mergulhara
nela. Tossir e inspirar eram duas atividades mutuamente excludentes, e ele teve que forçar seu primordial senso de sobrevivência a fim de regular as reações espasmódicas
do diafragma.
Cloro. Estavam numa piscina.
Não passou muito tempo pensando nisso. A dor das cãibras era inacreditável: era como se tivesse adagas cravadas nas coxas, nas nádegas, no abdômen, e ele começou
a afundar antes de recobrar o fôlego, e isso não seria nada bom. Acabaria morrendo assim.
Lutando contra os impulsos do corpo, usou a mente para sobrepujar o sistema nervoso simpático: inspirando uma enorme quantidade de ar e prendendo depois o fôlego,
mexeu os braços para fora e para baixo, criando uma correnteza artificial que correu pelo seu tronco na superfície da água. Depois parou… cacete… de se mexer.
E deixou o ar dentro dos pulmões ser o colete salva-vidas que não estava usando.
Não era uma boia perfeita. As pernas continuavam a afundar, e ele tinha que agitá-las de vez em quando para permanecer à tona, mas era infinitamente melhor do que
bater no fundo e se afogar.
De tempos em tempos, expelia o ar e voltava a inalar.
Não tinha certeza de quanto tempo aguentaria aquilo. Mas logo descobriria.
Deus… Seus músculos enrijecidos eram uma tortura a suportar e, para se distrair, reviveu os momentos no alto daquela passarela. Os Irmãos eram brilhantes, concluiu.
Ir do calor para aquele frio? Depois de todos os choques?
Era um ambiente planejado, garantido para colocá-los exatamente onde ele se encontrava: lutando contra as reações naturais do corpo a certos estímulos e ambientes.
O que estaria acontecendo com todos os outros?, imaginou.
Onde estaria aquela fêmea?
Não a que estivera com ele no alto… mas a outra? Paradise?
Enquanto a água obstruía os seus ouvidos, era como aquele espetáculo de luzes no ginásio, obscurecendo e depois permitindo estímulos sensoriais. Ouvia a agitação
da água, tanto perto quanto longe… Muitos gritos e arquejos de outros na piscina… ecos – deviam estar em um lugar amplo com um teto relativamente baixo e muitos
azulejos.
Libertando o ar nos pulmões, imediatamente os encheu outra vez…
… e esperou pelo que viria em seguida.

 

CONTINUA

Glossário de Termos e Nomes Próprios
Ahstrux nohtrum: Guarda particular com licença para matar, nomeado(a) pelo Rei.
Ahvenge: Cometer um ato de retribuição mortal, geralmente realizado por um macho amado.
As Escolhidas: Vampiras criadas para servirem à Virgem Escriba. São consideradas membros da aristocracia, embora sejam voltadas mais para assuntos espirituais que temporais. Têm pouca ou nenhuma interação com os machos, mas podem se acasalar com os Irmãos a fim de reproduzir sua espécie, segundo a orientação da Virgem Escriba.
Algumas têm a capacidade de predizer o futuro. No passado, eram utilizadas para satisfazer a necessidade de sangue de membros solteiros da Irmandade, e tal costume foi recolocado em prática pelos Irmãos.
Chrih: Símbolo de morte honrosa no Antigo Idioma.
Cio: Período fértil das vampiras. Em geral, dura dois dias e é acompanhado por intenso desejo sexual. Ocorre pela primeira vez aproximadamente cinco anos após a transição da fêmea e, a partir daí, uma vez a cada dez anos. Todos os machos respondem em certa medida se estiverem perto de uma fêmea no cio. Pode ser uma época perigosa, com conflitos e lutas entre os machos, especialmente se a fêmea não tiver companheiro.
Conthendha: Conflito entre dois machos que competem pelo direito de ser o companheiro de uma fêmea.
Dhunhd: Inferno.
Doggen: Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens seguem as antigas e conservadoras tradições de servir seus superiores, obedecendo a códigos formais no comportamento e no vestir. Podem sair durante o dia, mas envelhecem relativamente rápido. Sua expectativa de vida é de aproximadamente quinhentos anos.
Ehnclausuramento: Status conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia em resposta a uma petição de seus familiares. Subjuga uma fêmea à autoridade de um responsável único, o tuhtor, geralmente o macho mais velho da casa. Seu tuhtor, então, tem o direito legal de determinar todos os aspectos de sua vida, restringindo, segundo sua vontade, toda e qualquer interação dela com o mundo.
Ehros: Uma Escolhida treinada em artes sexuais.
Escravo de sangue: Vampiro macho ou fêmea que foi subjugado para satisfazer a necessidade de sangue de outros vampiros. A prática de manter escravos de sangue recentemente foi proscrita.
Exhile dhoble: O gêmeo mau ou maldito, o segundo a nascer.
Fade: Reino atemporal onde os mortos reúnem-se com seus entes queridos e ali passam toda a eternidade.
Ghia: Equivalente a padrinho ou madrinha de um indivíduo.
Glymera: A nata da aristocracia, equivalente à corte no período de Regência na Inglaterra.
Hellren: Vampiro macho que tem uma companheira. Os machos podem ter mais de uma fêmea.
Hyslop: Termo que se refere a um lapso de julgamento, tipicamente resultando no comprometimento das operações mecânicas ou da posse legal de um veículo ou transporte motorizado de qualquer tipo. Por exemplo, deixar as chaves no contato de um carro estacionado do lado de fora da casa da família durante a noite.
Inthocada: Uma virgem.
Irmandade da Adaga Negra: Guerreiros vampiros altamente treinados para proteger sua espécie contra a Sociedade Redutora. Resultado de cruzamentos seletivos dentro da raça, os membros da Irmandade possuem imensa força física e mental, assim como a capacidade de recuperarem-se rapidamente de ferimentos. Não é constituída majoritariamente por irmãos de sangue. São iniciados na Irmandade por indicação de seus membros. Agressivos, autossuficientes e reservados por natureza, vivem apartados dos vampiros civis e têm pouco contato com membros das outras classes, a não ser quando precisam se alimentar. Tema para lendas, são reverenciados no mundo dos vampiros. Só podem ser mortos por ferimentos muito graves, como tiros ou uma punhalada no coração.
Leelan: Termo carinhoso que pode ser traduzido aproximadamente por “muito amada”.
Lhenihan: Fera mítica reconhecida por suas proezas sexuais. Atualmente, se refere a um macho de tamanho sobrenatural e vigor sexual.
Lewlhen: Presente.
Lheage: Um termo respeitoso utilizado por uma submissa sexual para referir-se a seu dominante.
Libhertador: Salvador.
Lídher: Pessoa com poder e influência.
Lys: Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
Mahmen: Mãe. Usado como um termo identificador e de afeto.
Mhis: O disfarce de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
Nalla/nallum: Um termo carinhoso que significa “amada”/“amado”.
Ômega: Figura mística e maligna que almeja a extinção dos vampiros devido a um ressentimento contra a Virgem Escriba. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes, dentre os quais, no entanto, não se encontra a capacidade de criar.
Perdição: Refere-se a uma fraqueza crítica em um indivíduo. Pode ser interna, como um vício, ou externa, como uma paixão.
Primeira Família: O Rei e a Rainha dos vampiros e sua descendência.
Princeps: O nível mais elevado da aristocracia dos vampiros, só suplantado pelos membros da Primeira Família ou pelas Escolhidas da Virgem Escriba. O título é hereditário e não pode ser outorgado.
Redutor: Membro da Sociedade Redutora, é um humano sem alma empenhado na exterminação dos vampiros. Os redutores só morrem se forem apunhalados no peito; do contrário, vivem eternamente, sem envelhecer. Não comem nem bebem e são impotentes. Com o tempo, seus cabelos, pele e íris perdem toda a pigmentação. Cheiram a talco de bebê.
Depois de iniciados na Sociedade por Ômega, conservam uma urna de cerâmica na qual seu coração foi depositado após ter sido removido.
Ríhgido: Termo que se refere à potência do órgão sexual masculino. A tradução literal seria algo aproximado de “digno de penetrar uma fêmea”.
Rytho: Forma ritual de lavar a honra, oferecida pelo ofensor ao ofendido. Se aceito, o ofendido escolhe uma arma e ataca o ofensor, que se apresenta desprotegido perante ele.
Shellan: Vampira que tem um companheiro. Em geral, as fêmeas não têm mais de um macho, devido à natureza fortemente territorial deles.
Sociedade Redutora: Ordem de assassinos constituída por Ômega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
Symphato: Espécie dentro da raça vampírica, caracterizada pela capacidade e desejo de manipular emoções nos outros (com o propósito de trocar energia), entre outras peculiaridades. Historicamente, foram discriminados e, em certas épocas, caçados pelos vampiros. Estão quase extintos.
Transição: Momento crítico na vida dos vampiros, quando ele ou ela transforma-se em adulto. A partir daí, precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviver e não suportam a luz do dia. Geralmente ocorre por volta dos 25 anos. Alguns vampiros não sobrevivem à transição, sobretudo os machos. Antes da mudança, os vampiros
são fisicamente frágeis, inaptos ou indiferentes ao sexo, e incapazes de se desmaterializar.
Trahyner: Termo usado entre machos em sinal de respeito e afeição. Pode ser traduzido como “querido amigo”.
Tuhtor: Guardião de um indivíduo. Há vários graus de tuhtors, sendo o mais poderoso aquele responsável por uma fêmea ehnclausurada.
Tumba: Cripta sagrada da Irmandade da Adaga Negra. Usada como local de cerimônias e como depósito das urnas dos redutores. Entre as cerimônias ali realizadas estão iniciações, funerais e ações disciplinadoras contra os Irmãos. O acesso a ela é vedado, exceto aos membros da Irmandade, à Virgem Escriba ou aos candidatos à iniciação.
Vampiro: Membro de uma espécie à parte do Homo sapiens. Os vampiros precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano os mantêm vivos, mas sua força não dura muito tempo. Após sua transição, que geralmente ocorre aos 25 anos, são incapazes de sair à luz do dia e devem alimentar-se na veia regularmente.
Os vampiros não podem “converter” os humanos por meio de uma mordida ou transferência de sangue, embora, ainda que raramente, sejam capazes de procriar com a outra espécie. Podem se desmaterializar por meio da vontade, mas precisam estar calmos e concentrados para consegui-lo, e não podem levar consigo nada pesado. São capazes de apagar as lembranças das pessoas, desde que recentes. Alguns vampiros são capazes de ler a mente. Sua expectativa de vida ultrapassa os mil anos, sendo que, em certos casos, vai além disso.
Viajante: Um indivíduo que morreu e voltou vivo do Fade. Inspiram grande respeito e são reverenciados por suas façanhas.
Virgem Escriba: Força mística conselheira do Rei. Também é guardiã dos registros vampíricos e distribui privilégios. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes. Capaz de um único ato de criação, que usou para trazer os vampiros à existência.

 

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Capítulo 1
Casa de Audiências do Rei, Caldwell, NY
ALGUNS TIPOS DE FORMATURA aconteciam em particular.
Alguns desses marcos importantes para a fase seguinte em nossas vidas não incluíam chapéus e becas, nenhuma orquestra humana tocando “Pompa e Circunstância”. Não
havia um palco para atravessar, tampouco um diploma para pendurar na parede. Também não existiam testemunhas.
Algumas graduações eram marcadas por coisas simples, corriqueiras, nada especiais, como uma pessoa esticando a mão até o monitor da Dell para apertar o botãozinho
azul no canto inferior direito da tela. Uma ação tão comum, feita tantas vezes numa semana, num mês, num ano, mas, ainda assim, naquele momento em especial, um divisor
de águas.
Enquanto Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, Rei de todos os vampiros, estava sentada em sua cadeira de escritório
e encarava a tela preta diante dela. Inacreditável. A noite que ela tanto esperava estava quase chegando.
Em grande parte, as últimas oito semanas se arrastaram, mas nessas derradeiras noites tudo mudou, passando para um modo catapulta. De repente, depois de ter passado
por sete mil horas de espera para que a lua se erguesse no céu, ela sentia que queria que as coisas desacelerassem de novo.
O seu primeiro emprego agora já era coisa do passado.
Olhando por sobre a escrivaninha, rearranjou o aparelho de telefone em um centímetro. Endireitou o vitral com desenho de libélula da luminária da Tiffany. Certificou-se
de que as canetas azuis estivessem num porta-canetas e as vermelhas, num outro. Alisou a palma sobre a superfície limpa do mata-borrão e do topo do monitor.
A sala de espera estava vazia; as cadeiras forradas de seda, desocupadas; as revistas, ordenadas nas mesinhas auxiliares; os copos com as bebidas servidas pelos
doggens àqueles que ali estiveram, já retirados.
O último civil se retirara meia hora antes. O alvorecer seria dali a duas horas. Considerando-se tudo, era o fim normal de uma noite de trabalho duro, a hora em
que ela e o pai voltariam para a propriedade da família para desfrutar de uma refeição completa regada com conversas, planos e respeito mútuo.
Paradise se inclinou para a frente e espiou na curva do arco de entrada para a sala de estar. Do lado oposto ao vestíbulo, as portas duplas que antes davam para
uma sala de jantar formal da mansão estavam fechadas.
Sim, apenas mais uma noite normal, a não ser pela reunião informal que estava acontecendo ali. Assim que a última audiência terminara, seu pai fora chamado à sala
de audiências e aquelas portas foram fechadas.
Ele estava lá dentro com o Rei e dois membros da Irmandade da Adaga Negra.
– Não façam isso comigo – ela disse. – Não tirem isso de mim.
Paradise se levantou e começou a andar, reorganizando as revistas, reafofando as almofadas, parando diante do retrato a óleo de um monarca francês.
Voltou à arcada, olhou para as portas fechadas da sala de jantar, ficou atenta às batidas fortes do seu coração.
Erguendo as mãos, inspecionou os calos nas palmas. Eles não foram provocados pelo seu trabalho ali junto ao pai e à Irmandade nos últimos meses, organizando a agenda,
pesquisando casos, resoluções e acontecimentos subsequentes. Não, pela primeira vez na vida, ela vinha se exercitando. Levantando pesos. Correndo na esteira. Fazendo
step. Barras suspensas, flexões, abdominais. Remo seco.
Antes, ela sequer sabia o que era remo seco.
E tudo como preparo para a noite seguinte.
Desde que aquele grupo de machos na sala de audiências do Rei não lhe tirasse tal perspectiva.
Na noite seguinte, à meia-noite, ela deveria se juntar a outros machos e fêmeas sabe-se a Virgem Escriba onde, na qual ela tentaria passar pelo teste de aceitação
no programa de treinamento de soldados da Irmandade da Adaga Negra.
Era um bom plano. Algo que ela decidira perseguir, uma possibilidade de independência e de descer o cacete nos inimigos para provar que ela era mais do que simplesmente
o seu pedigree. O problema? Filhas de puro sangue da glymera, ainda mais de uma das Famílias Fundadoras, não treinavam para se tornar soldados. Não lidavam com adagas
e pistolas. Não aprendiam a lutar para se defender. Sequer sabiam o que era um redutor.
Tampouco se associavam com soldados.
Filhas como ela eram ensinadas a fazer ponto cruz, educadas em música clássica e canto, boas maneiras, e a administrar uma mansão repleta de doggens. Esperava-se
que elas entendessem o complicado calendário social e os ciclos dos festivais, mantivessem-se atualizadas no quesito guarda-roupa e soubessem diferenciar Van Cleef
& Arpels, Boucheron e Cartier. Eram ehnclausuradas, protegidas e adoradas assim como todas as joias o eram.
A única coisa perigosa que lhes era permitido fazer? Procriar. Com um hellren escolhido pela família a fim de garantir a santidade de suas linhagens.
Era um milagre que o pai estivesse permitindo que ela fizesse aquilo.
Definitivamente ele não estivera de acordo assim que ela lhe mostrara o formulário de inscrição. Mas acabara mudando de ideia, permitindo que ela se inscrevesse.
Os ataques ocorridos alguns anos antes, quando tantos vampiros foram assassinados pela Sociedade Redutora, provaram que Caldwell, em Nova York, era um lugar perigoso.
E ela lhe dissera que não era sua intenção sair para lutar nas ruas, só queria aprender a se defender.
Depois de apresentar a questão sob o ponto de vista de sua segurança? Foi então que seu pai mudou de ideia.
A verdade, no entanto, era que ela queria algo que fosse seu, apenas. Uma identidade originária de outro lugar que não somente aquela que o seu nascimento lhe forçava.
Além disso, Peyton lhe dissera que ela não conseguiria.
Porque era uma fêmea.
Ele que se danasse!
Paradise olhou uma vez mais para as portas.
– Vamos lá…
Andando de um lado para o outro, acabou indo parar no vestíbulo, mas não quis se aproximar muito do lugar onde os machos conversavam… Como se aquilo pudesse dar
azar.
Deus, o que estariam conversando ali?
Normalmente, o Rei saía assim que a última audiência se encerrava. Se ele e a Irmandade tinham assuntos particulares ou de guerra para discutir, isso era conduzido
na residência da Primeira Família, um lugar tão secreto que nem mesmo o seu pai era convidado a ir até lá.
Portanto, aquilo só podia estar acontecendo por sua causa.
De volta à sala de espera, foi até a escrivaninha e contou as horas em que estivera sentada ali. Fazia apenas uns dois meses que o emprego era seu, mas gostava
do trabalho. Até certo ponto. Ao se ausentar, desde que fosse aceita no programa de treinamento da IAN, uma prima sua assumiria seu posto, e ela passara as últimas
sete noites mostrando toda a rotina, explicando os procedimentos que ela própria estabelecera, a fim de garantir que a transição acontecesse de maneira suave.
Recostando-se na cadeira, abriu a gaveta do meio e pegou a sua inscrição, como se isso pudesse, de algum modo, garantir que aquilo ainda aconteceria.
Ao segurar o documento, ficou imaginando quem mais estaria na orientação da noite seguinte… E pensou no macho que aparecera ali na casa de audiências, em busca
de uma versão impressa do formulário de inscrição.
Alto, ombros largos, voz grave. Usando um boné de basebol do Syracuse e jeans puídos pelo que aparentava ter sido causado por trabalho de verdade.
A comunidade dos vampiros era pequena, e ela nunca o vira antes. Mas talvez ele fosse apenas um civil? Essa era outra mudança no programa de treinamento. Antes,
somente machos da aristocracia eram convidados a trabalhar com a Irmandade.
Ele lhe dera seu nome, mas recusara-se a apertar a mão dela.
Craeg. Era só o que ela sabia.
Contudo, ele não fora rude. Na verdade, até apoiara a sua decisão de enviar a inscrição.
Também fora… cativante de um modo que a chocara, a ponto de ela ter esperado semanas inteiras para que ele retornasse com o formulário em mãos. Ele não voltara.
Talvez o tivesse escaneado e enviado eletronicamente.
Ou, talvez, tivesse resolvido não se inscrever, no fim das contas.
Parecia loucura ficar desapontada com a possibilidade de nunca mais encontrá-lo.
Quando seu celular emitiu um trinado, ela se sobressaltou e pegou o aparelho. Peyton. De novo.
Ela o veria na orientação na noite seguinte, e isso já seria cedo demais. Depois da discussão que tiveram quanto a ela se juntar ao programa, ela teve que se afastar
daquela amizade.
Mas, pensando bem, e se a Irmandade se recusasse a admiti-la? A indignação que ela sentia em relação ao rapaz de nada serviria. Mas a questão era que era permitido
às fêmeas se inscreverem.
O problema maior era que não se tratava de uma fêmea “normal”.
Caramba, não sabia o que faria se o pai recuasse. Mas com certeza a Irmandade não esperaria até o último minuto para rejeitar a sua inscrição.
Certo?
Do outro lado da cidade, Marissa, a shellan vinculada do Irmão da Adaga Negra Dhestroyer, também conhecido como Butch O’Neal, estava sentada à sua escrivaninha
no Lugar Seguro. Quando a poltrona emitiu um rangido, ela bateu a ponta da sua caneta Bic no calendário que cobria a mesa e passou o telefone para a outra orelha.
Interrompendo a torrente de palavras, ela disse:
– Garanto que aprecio o convite, porém, não posso…
A fêmea do outro lado da ligação não perdeu o ritmo. Continuou falando, sua entonação aristocrática preenchendo o espaço, até parecer admirável que o bairro inteiro
não sofresse uma sobrecarga.
– … e consegue entender o motivo de precisarmos da sua ajuda. Será o primeiro Festival Dançante do Décimo Segundo Mês a acontecer após os ataques. Como shellan
de um Irmão e membro de uma das Famílias Fundadoras, você seria a anfitriã perfeita para tal evento…
Tentando dar mais uma chance à recusa, Marissa a interrompeu:
– Não sei se é de seu conhecimento, porém, eu trabalho em tempo integral como diretora do Lugar Seguro e…
– … e o seu irmão disse que você seria uma boa escolha.
Marissa se calou.
Seu primeiro pensamento foi o de que era quase improvável que Havers, o médico da raça e seu irmão muito, mas muito distanciado, a tivesse recomendado para qualquer
coisa que não fosse um túmulo precoce. O segundo envolvia exclusivamente cálculos matemáticos… Há quanto tempo não falava com ele? Dois anos? Três? Não desde que
ele a expulsara da casa deles, uns cinco minutos antes do nascer do sol, quando ficara sabendo do seu interesse por um mero humano.
Que acabaram descobrindo se tratar de um primo de Wrath e a encarnação da lenda do Dhestroyer.
Tá gostando de mim agora?, ela ouviu em sua cabeça.
– Dito isso, você tem que presidir o evento – concluiu a fêmea. Como se o assunto estivesse resolvido.
– Você precisa me desculpar. – Marissa pigarreou. – Mas o meu irmão não está em posição de oferecer o meu nome para nada, considerando que ele e eu não nos vemos
já há algum tempo.
Quando apenas um silêncio absoluto se fez na conversa, ela concluiu que devia ter mencionado os podres da família uns dez minutos antes: os membros da glymera observavam
um código de comportamento muito rígido, e expor a colossal fissura em sua linhagem, mesmo ela sendo amplamente conhecida, era algo que simplesmente não se fazia.
Era muito mais apropriado deixar que os outros cochichassem a respeito às suas costas.
Infelizmente, a fêmea se recobrou e mudou de tática:
– De todo modo, é de importância vital que todos os membros da nossa classe retomem os festivais…
Uma batida à porta do seu escritório fez com que Marissa desviasse o olhar.
– Sim?
No telefone, a fêmea exclamou:
– Maravilha! Você pode vir à minha propriedade…
– Não, não. Alguém está precisando de mim – ela disse mais alto. – Pode entrar.
No instante em que viu a expressão de Mary, imprecou. Não eram boas notícias. A shellan de Rhage era sempre absolutamente profissional, e para ela estar daquele
jeito? Era algum problema grave…
Aquilo na blusa dela era sangue?
Marissa deixou seu tom de voz mais grave e abandonou qualquer sinal de boa educação.
– A minha resposta é não. O meu trabalho consome todo o meu tempo. Além do mais, se está tão interessada nisso, você mesma deveria assumir o posto. Passar bem.
Recolocando o fone no gancho, levantou-se.
– O que aconteceu?
– Acabamos de acolher alguém que precisa de cuidados médicos imediatos. Não estou conseguido encontrar a doutora Jane e nem Ehlena em lugar nenhum. Não sei o que
fazer.
Marissa apressou-se para a frente da escrivaninha.
– Onde ela está?
– Lá embaixo.
As duas desceram as escadas correndo, Marissa na frente.
– Como ela chegou?
– Não sei. Uma das câmeras de segurança pegou a imagem dela no jardim, se arrastando.
– O quê?
– O meu celular disparou o alarme, e eu corri para fora com Rhym. Nós a carregamos até a sala de estar.
Fazendo a curva no andar de baixo, Marissa derrapou num dos tapetes.
E parou de pronto.
Quando viu a condição da fêmea sobre o sofá, levou a mão à boca.
– Ah, meu Deus… – sussurrou.
Sangue. Havia sangue em todo lugar, pingando no chão, encharcando as toalhas brancas pressionadas sobre os ferimentos, empoçando-se sob um dos pés da fêmea sobre
o carpete.
A jovem fora surrada tão violentamente que não havia como identificá-la, suas feições estavam inchadas e, se não fosse pelos cabelos longos e pela saia rasgada,
não saberia determinar o seu sexo. Um braço estava evidentemente deslocado, pendurado a partir do ombro… e ela só estava calçando o sapato de salto esquerdo, as
meias de seda rasgadas.
A respiração dela era muito, muito superficial. Apenas um ruído no peito, como se estivesse se afogando no próprio sangue.
Rhym, a supervisora, levantou o olhar de sua posição agachada ao lado do sofá. Em meio às lágrimas, sussurrou:
– Não acho que ela vá sobreviver. Como poderia…?
Marissa tinha que se recompor. Era a única opção.
– Não conseguiram localizar nem a doutora Jane nem Ehlena?
– Tentei na mansão – Mary respondeu. – Na clínica. Os celulares delas. Duas vezes em todos os lugares.
Por uma fração de segundo, Marissa se aterrorizou com o que aquilo podia significar para a sua própria vida. Os Irmãos estavam feridos? Butch estaria bem?
Isso durou apenas um segundo.
– Me dê o seu celular… E levem as residentes para o anexo Wellsie. Quero todas lá, para o caso de eu ter que trazer um macho.
Mary lhe passou o telefone e assentiu.
– Já vou cuidar disso.
O Lugar Seguro era exatamente isso: um espaço seguro para as fêmeas vítimas de violência doméstica em busca de abrigo e reabilitação junto a seus filhos. E depois
de Marissa ter passado incontáveis séculos inúteis na glymera, sendo apenas a noiva não reclamada do Rei, encontrara a sua vocação ali, a serviço daquelas que tinham
sido, na melhor das hipóteses, abusadas verbalmente, e na pior, tratadas de maneira horrenda.
Não era permitida a entrada de machos ali.
Mas, para salvar a vida daquela fêmea, ela teria que infringir a regra.
Atenda o telefone, Manny, pensou no primeiro toque. Atenda o seu maldito telefone…
Capítulo 2
NÃO ERA A IRMANDADE INTEIRA.
Na verdade, só havia dois Irmãos com o Rei.
Enquanto Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, entrava na sala de audiências para se postar diante de seu governante, estava muito
ciente da presença dos outros machos. Nunca vira aqueles machos serem outra coisa que não apenas protetores e civilizados, mas, levando-se em consideração que estava
para entregar sua única filha para eles, seus outros atributos mais evidentes eram como gritos na noite.
O Irmão Vishous o encarava com seus olhos de diamante que não piscavam. Aquelas tatuagens na têmpora esquerda pareciam particularmente sinistras, o corpo musculoso
envolvido em couro preto e coberto por armas. Ao seu lado estava Butch, também conhecido como Dhestroyer – um antigo humano com sotaque de Boston que fora infectado
por Ômega e deixado para morrer, só para se revelar um dos poucos a sobreviver a uma transição forçada.
Os dois raramente se desgrudavam, e era tentador atribuir-lhes os papéis de policial malvado e policial bonzinho. Naquele instante, contudo, o paradigma estava
alterado. Butch, o macho que tendia a sorrir e conversar com as pessoas, parecia ser aquele a quem evitar num beco escuro: seu olhar castanho estava estreitado e
decidido.
– Pois não? – Abalone disse ao Rei. – Posso servi-lo de algum modo?
Wrath afagou a cabeçorra aloirada de seu cão guia, George.
– Os meus rapazes precisam falar com você.
Ah, pensou Abalone. Já suspeitava do que aquilo se tratava.
Butch sorriu por um átimo de segundo. Como se desejasse antecipadamente atenuar a patada do que estava para sair de sua boca.
– Queremos ter certeza de que você sabe do que se trata o programa de treinamento.
Abalone limpou a garganta.
– Sei que isso é muito importante para Paradise. E espero que haja aulas de defesa pessoal no programa. Eu gostaria que ela ficasse… mais segura.
Esse benefício em potencial fora o único motivo que o ajudara a aceitar a discrepância entre aquilo que esperava para a vida dela e o que ela própria parecia escolher.
Quando não houve nenhuma resposta, Abalone olhou de um Irmão para outro.
– O que vocês não estão me contando?
Vishous abriu a boca, mas Butch levantou a mão para calá-lo.
– A sua função junto a Wrath vem em primeiro lugar.
Abalone se retraiu.
– Está dizendo que Paradise não poderá participar por causa da minha posição aqui? Santa Virgem Escriba, por que não nos disseram…
– Precisamos que entenda que o que vai acontecer não serão apenas aulas expositivas. Isto é um preparo para a guerra.
– Mas os candidatos não têm necessariamente que lutar nos becos durante o treinamento, correto?
– O que nos preocupa está aqui. – O Irmão indicou a sala. – Não podemos permitir que nada afete o seu relacionamento com Wrath e o que você faz para o Rei. Paradise
é bem-vinda no programa assim como qualquer outro, mas não se a perspectiva de ela desistir ou ser cortada puder criar tensão entre nós.
Abalone exalou aliviado.
– Não se preocupem com isso. Ela será bem-sucedida ou fracassará por mérito próprio. Não espero um tratamento especial para ela… E se ela não conseguir acompanhar?
Então terá que ser dispensada.
Na verdade, ainda que jamais dissesse isso em voz alta, ele tanto rezava quanto esperava que esse fosse o caso. Não queria que Paradise se desapontasse com seu
empenho, mas… a última coisa que queria era que sua filha fosse exposta a qualquer podridão – ou, Deus proibisse, que de fato tentasse combater na guerra.
Sequer conseguia imaginar essa última possibilidade.
– Não se preocupem – reiterou, olhando para os Irmãos e para o Rei. – Tudo ficará bem.
O Irmão Butch olhou para Vishous. Depois voltou a olhar para ele.
– Você leu o formulário de inscrição, certo?
– Ela o preencheu.
– Então não o leu?
– Isso é algo que ela está fazendo por conta própria. Como seu pai e tuhtor, eu deveria ter assinado?
Vishous acendeu um cigarro enrolado à mão.
– Talvez queira estar preparado, não?
Abalone assentiu.
– Estou. Juro, estou preparado.
Paradise era uma fêmea educada apropriadamente dentro das tradições da aristocracia. Vinha trabalhando em seu condicionamento físico nos dois últimos meses – de
fato, com bastante empenho –, e ele sentia a empolgação emanando dela enquanto concluía seu trabalho ali e se preparava para deixar o seu posto. No entanto, havia
boas chances de que depois da orientação na noite seguinte, quando o trabalho de verdade começasse, ela se visse desistindo… ou sendo dispensada.
Testemunhar o seu fracasso o mataria por dentro.
Mas antes isso a vê-la morrendo no campo de batalha só para provar que ela era muito mais do que aquilo ditado pela sua posição aristocrática.
Enquanto o par de Irmãos continuava a olhar para ele, Abalone abaixou a cabeça.
– Sei que não vai terminar bem para ela. Estou mais do que preparado para enfrentar isso. Não sou ingênuo.
Depois de um instante, Butch disse:
– Ok. É justo.
– Mais alguma coisa, meu senhor? – Abalone perguntou ao Rei.
Quando Wrath meneou a cabeça, Abalone fez uma reverência a cada um deles.
– Agradeço a preocupação. Paradise é o que tenho de mais precioso… É tudo o que me restou de minha amada shellan. Sei que ela estará em mãos justas e gentis amanhã.
Quando ele se virou para se retirar, os Irmãos continuaram sérios, mas, pensando bem, ele não sabia o que se desenrolava na guerra. E sempre havia algo acontecendo.
As lutas e as estratégias não eram coisas com as quais ele se envolvia, o que o deixava extremamente grato.
Assim como ficaria caso Paradise saísse do programa.
Na verdade, o que mais desejava era que a mahmen dela ainda estivesse viva. Talvez tudo aquilo fosse desnecessário se sua shellan estivesse presente para enfiar
um pouco de juízo na cabeça da jovem.
Abrindo as portas, ouviu um barulho na sala de espera.
– Paradise?
Ele caminhou pelo vestíbulo e, ao fazer a curva para entrar na sala de espera, sua filha se endireitava ao apanhar canetas vermelhas que derrubara da mesa.
– Está tudo bem? – ele perguntou.
O olhar dela encontrou o seu.
– Está? O senhor vai permitir que eu vá amanhã à noite?
Abalone sorriu, e tentou esconder a tristeza do olhar e da voz.
– Claro. Você está no programa, isso foi decidido meses atrás.
Ela correu para o pai e o abraçou, segurando-o com firmeza, como se estivesse convencida de que lhe negariam aquilo que ela tanto queria.
Abraçando a filha, Abalone teve leve ciência dos Irmãos e do Rei saindo pela porta da frente. Não prestou atenção neles.
Estava ocupado demais desejando poupar a filha de todo e qualquer desapontamento. No entanto, isso não estava entre as habilidades parentais que lhe foram concedidas
no momento de seu nascimento.
Ah, como queria que sua shellan estivesse ali e não no Fade.
Ela teria lidado muito melhor com tudo.
De pé junto à tão maltratada fêmea, Marissa fechou os olhos ao ouvir a voz gravada de Manny em sua caixa de mensagens pela terceira vez. Que diabos estava acontecendo
na clínica?
Bem quando ela estava prestes a ligar novamente, o seu telefone tocou.
– Graças a Deus! Manny? Manny?
Algo no tom da sua voz fez com que a fêmea se mexesse, o rosto ensanguentado se movendo ao encontro das almofadas do sofá. Deus, o chiado daquela respiração bastava
para que seu coração saísse do compasso.
– Não, é Ehlena – disse a voz ao seu ouvido. – Manny e Jane estão fazendo uma cirurgia de emergência em Tohr. Ele está com uma fratura múltipla no fêmur e eu tenho
que voltar para a sala de cirurgia. Algum problema?
– Quanto tempo isso vai demorar? – ela perguntou.
– Acabaram de começar.
Marissa fechou os olhos.
– Ok, por favor, peça que me liguem assim que puderem, por favor. Tenho um… – Virou-se de costas e abaixou a voz. – Tenho um trauma que acabou de chegar aqui. Não
sei se temos tempo suficiente.
Ehlena praguejou.
– Não podemos dispensar ninguém. Não pode ligar para Vishous? Ele tem treinamento médico, pode conseguir estabilizar o paciente.
Marissa tentou visualizar o Irmão entrando na casa. Não era a sua primeira escolha, e não por não confiar no macho. O melhor amigo do seu hellren era um vampiro
formidável em todos os sentidos.
A sua aparência é que era aterrorizante.
Mas, pensando bem, se todas estavam no Anexo Wellsie…
– Boa ideia. Obrigada.
– Pedirei que liguem para você assim que terminarem.
– Por favor, faça isso.
Encerrando a ligação, ela ligou para V. e foi atendida pela maldita caixa de mensagens.
– Merda.
Rhym perguntou ao pressionar uma toalha em um ferimento aberto no ombro da fêmea:
– Quando eles vêm?
O fim da noite se aproximava. V. poderia estar em trânsito entre os becos do centro de Caldwell e a mansão. Ou… poderia estar ocupado lutando contra o que quer
que tenha ferido Tohr daquela maneira.
Quando a fêmea deitada no sofá começou a tossir sangue, sua decisão foi tomada numa fração de segundo. A última coisa que desejava era pedir ajuda de seu irmão,
mas não poderia viver com sua consciência se seus problemas pessoais custassem a vida de alguém.
Marissa ligou para o celular de Havers que sabia de cabeça, com a esperança de que ele não tivesse trocado o número. Um toque… Dois toques…
– Alô? – atendeu sua voz.
– Sou eu. – Antes que houvesse espaço para um silêncio constrangedor ou sequer um olá, ela disse: – Temos uma emergência médica no Lugar Seguro. Preciso que venha
imediatamente, ou que mande alguém. Os médicos da Irmandade estão na sala de cirurgia e não temos muito tempo.
Houve uma ligeira pausa, como se o principal médico da raça estivesse passando do modo “pessoal” para o “profissional”.
– Levarei apenas um instante para chegar. É algum trauma?
– Sim. – Marissa voltou a abaixar a voz. – Ela foi surrada terrivelmente e… violentada. Há muito sangue. Não sei…
– Vou levar uma enfermeira. Já afastou os outros moradores?
– Sim.
– Destranque a porta da frente.
– Encontro você lá.
Foi só isso.
Pelo visto, o universo estava determinado a colocar o irmão no seu radar aquela noite. Primeiro aquele telefonema idiota da socialite, agora…
Marissa acenou para Rhym.
– A ajuda está a caminho.
Através do olho que não estava completamente obstruído pelo inchaço, a fêmea ferida tentou focar o olhar.
Marissa se inclinou na direção dela e tomou-lhe a mão ensanguentada.
– O meu irmão está vindo para cuidar muito bem de você.
Por um momento, ela se perguntou se deveria não ter mencionado que seria um macho que a trataria. Mas a fêmea não parecia estar compreendendo.
Santa Virgem Escriba, e se ela morresse antes da chegada dele?
Marissa se agachou, ajeitando o cabelo loiro atrás da orelha.
– Você está segura aqui e vai ficar tudo bem. – Aquele único olho aberto perscrutou o seu rosto. – Você tem algum parente para quem podemos ligar? Há alguém que
podemos mandar chamar para você?
A cabeça da fêmea se moveu de um lado para o outro.
– Não? Tem certeza? – O olho se fechou. – Pode me dizer quem fez isso com você?
O rosto se virou.
Merda.
Recuando, Marissa foi para o corredor na frente da casa. Havia janelas estreitas e compridas nas laterais da porta, e ela ficou olhando para o jardim. As árvores
que há poucas semanas estavam tão coloridas despejavam suas folhas rubras, douradas e amarelas, revelando os galhos espigados como os ossos de um cão magro demais.
Foi impossível não espiar o reflexo no espelho ao lado da porta e verificar se os cabelos estavam ajeitados e a maquiagem ainda se sustentava após uma jornada de
quase dez horas de trabalho.
Na época em que vivia com o irmão, usava vestidos de seda e joias pesadas, e os cabelos ficavam sempre bem penteados no alto da cabeça. Agora? Ela estava com calças
Ann Taylor, uma camisa com gola alta e um par de sapatos Cole Haan que usava para dirigir por serem confortáveis. Nenhuma joia a adornava exceto o pequeno crucifixo
de ouro que usava porque o deus de Butch era importante para ele e seu hellren lhe dera aquele colar em sua última celebração de Natal. Ah, e ela também estava com
um par de brincos de pérola nas orelhas.
Apesar de a transição de Butch ter sido induzida e do seu status como membro da Irmandade e parente do Rei, seu macho permanecia fundamentalmente humano, desde
seu sistema de crenças católicas e seu gosto por cinema e literatura até suas opiniões quanto ao que queria numa “esposa”, um resultado de sua criação em meio aos
Homo sapiens.
Tocando na correntinha de ouro no pescoço, franziu a testa quando lutou contra a necessidade de tirá-la porque seu irmão não a aprovaria.
Mas, convenhamos, quer o símbolo da sua vinculação estivesse ou não em seu pescoço, aquilo não mudaria absolutamente nada. Aos olhos do irmão, ela tomara um rato
cotó como hellren, e essa desgraça jamais seria perdoada.
Uma fração de segundo depois, duas sombras se materializaram do nada na calçada. Uma mais alta e masculina, vestindo um jaleco branco, a outra menor e feminina
num tradicional uniforme de enfermeira.
Quando se aproximaram e foram iluminados pelas luzes de segurança, Marissa esfregou as palmas suadas nas calças. Havers estava exatamente igual ao que sempre fora,
desde a gravata borboleta e os óculos de armação de casco de tartaruga até os cabelos escuros repartidos de lado, mantidos no lugar como um personagem de Mad Men.
No último instante, Marissa girou o crucifixo para a nuca e abriu a porta. Tentando não parecer nervosa, anunciou:
– Ela está na sala de estar.
Nenhum “olá, como tem passado?”, tampouco um “ei, já deixou de ser um cretino preconceituoso?”, mas, pensando bem, aquela era uma emergência médica, não uma visita
social.
– Marissa – disse o irmão, acenando com a cabeça e parando ao seu lado. – Esta é Cannest, minha chefe de enfermagem.
– É um prazer – disse educadamente a enfermeira.
Marissa assentiu para a fêmea.
– É por aqui.
Suas pernas estavam rijas ao acompanhá-los pela casa modesta com sua mobília comum. Por algum motivo absurdo, ela se visualizou como um flamingo, com os joelhos
virados para o lado errado. Nesse meio-tempo, todos os tipos de recordações fervilhavam sob a superfície do seu consciente, apenas o peso psíquico da tragédia que
se desenrolava na sala ao lado mantendo a tampa fechada sobre as suas emoções.
Seu irmão parou no arco de entrada da sala e entregou sua maleta de médico à assistente.
– A minha enfermeira fará a triagem, e me informará sobre as condições dela. Será melhor que um macho não faça esse primeiro exame.
Marissa deslizou o olhar para o de Havers pela primeira vez e notou que os olhos dele ainda eram do exato tom de azul dos seus. Como se isso pudesse mudar, não?
– É muita consideração da sua parte – ela comentou antes de olhar para a auxiliar. – Me acompanhe.
Na sala, a enfermeira foi direto para o sofá, e foi gentil com Rhym ao substituí-la ao lado da paciente. A vítima se mexeu como se reconhecesse uma presença nova
diante dela e depois gemeu quando teve a pulsação e a pressão examinadas.
Marissa ficou de lado, cruzando os braços sobre o peito, com a boca coberta pela mão. Os movimentos eram um bom sinal, disse a si mesma. Significavam que a pobre
moça ainda estava viva.
– Tome cuidado – ela disse de repente, quando a enfermeira apalpou o braço e lágrimas se misturaram ao sangue do rosto surrado.
Bom Deus, quem havia feito aquilo? Só podia ser um membro da raça… Não conseguia captar nenhum cheiro humano impregnado nela.
Marissa teve que baixar o olhar quando o exame se tornou mais íntimo, e gesticulou para que Rhym se juntasse a ela na arcada, como se protegesse a privacidade que
seu irmão já estava respeitando.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, a enfermeira conversou em voz baixa com a fêmea e aproximou-se deles, acenando para que Marissa a seguisse até onde Havers
aguardava com as mãos entrelaçadas atrás das costas. Ele curvou a cabeça enquanto ouvia o que a enfermeira dizia num tom baixo:
– Ela tem extensos danos internos – a fêmea relatou. – Terá que ser operada imediatamente para ter chances de sobreviver. O braço é o menor dos problemas dela.
Havers assentiu e relanceou para Marissa.
– Tomei a liberdade de providenciar um transporte. Ele deve chegar em aproximadamente quinze minutos.
– Irei com ela. – Marisa estava pronta para discutir. – Até encontrarmos um parente, serei sua thutora.
– Sim, claro.
– E arcarei com os custos do tratamento.
– Não será necessário.
– Certamente é necessário. Vou pegar as minhas coisas.
Afastando-se, ela falou com Rhym, depois apressou-se até o seu escritório e pegou o celular, a bolsa e o casaco.
Pensou em telefonar para Butch, pois havia a possibilidade de não conseguir voltar para casa, mas ainda não tinha certeza quanto a isso. E, infelizmente, se ela
ligasse para seu hellren toda vez que surgisse uma emergência no trabalho? Ela acabaria desgastando o toque de chamada do celular dele.
A meio caminho descendo a escada, ela percebeu que havia outro motivo para não falar com ele.
Aquilo era muito semelhante ao que acontecera com sua irmã.
E existia a possibilidade de ser exatamente a mesma coisa, caso a fêmea viesse a morrer em decorrência dos ferimentos.
Não, pensou ao voltar para o térreo. Ele já tinha muitos afazeres sem ter que disparar aquele gatilho em sua massa cinzenta uma vez mais.
– Estou pronta – disse ao irmão, como se o desafiasse a fazê-la mudar de ideia.
– A ambulância chegará em dois minutos. Terei que acompanhá-la também... Ela vai precisar se alimentar de sangue para ter alguma chance de sobrevivência.
Havers curvou-se ligeiramente e refez seus passos até a porta de entrada. Quando dobrou no corredor, Marissa sacudiu a cabeça.
A ideia de que ele daria o próprio sangue para ajudar uma fêmea desconhecida, que não devia passar de uma cidadã comum, era tanto incrível… quanto uma fonte de
frustração.
Que o macho pudesse ser tão gentil com seus pacientes e tão cruel com ela pessoalmente parecia-lhe uma contradição insuportável.
Mas assim era a glymera. Dois pesos, duas medidas em abundância.
E não raramente estavam acostumados a ferrar as filhas, as irmãs e as mães.
Capítulo 3
PARADO NO AMPLO E COLORIDO vestíbulo da mansão da Irmandade da Adaga Negra, Butch franziu a testa ao olhar para o celular. Consultara as horas em seu relógio de
pulso Audemars Piguet uns três minutos antes, mas imaginou que, quem sabe, o seu Samsung sei-lá-o-quê lhe desse uma resposta mais satisfatória.
Negativo.
E seu sétimo telefonema para Marissa tampouco fora atendido. Assim como os seis anteriores.
Ao longe, a conversa e os barulhos sutis da Última Refeição sendo consumida borbulhavam na sala de jantar.
Sem nenhum bom motivo, relembrou a primeira vez que ouvira sons como aqueles. Fora no que agora era a casa de audiências. Na época, era um detetive de homicídios
descontrolado e à procura de uma fonte de destruição completa a fim de dar cabo de vez à sua vida.
E foi então que um turbilhão de eventos inesperados aconteceu.
Beth foi a primeira a ser levada pelo vento, sua herança genética mista de meio humana, meio vampira tragando-a. Já a sua entrada fora algo completamente diferente.
Se forem sangrar o humano, teriam a gentileza de fazê-lo no pátio dos fundos?
– Conseguiu falar com ela?
Butch fechou os olhos ante a familiar voz masculina. Mesmo não sendo nem mesmo parcialmente verdade, às vezes ele sentia como se os resmungos ásperos de Vishous
estivessem em sua mente a vida inteira.
– Não.
Conforme o Irmão se aproximava, o cheiro de tabaco turco o antecedeu, e Butch inspirou fundo. Talvez tivesse ficado chapado por tabela, ou quem sabe fosse a presença
desagradável do maldito, mas o volume dos gritos de pânico em seus ouvidos diminuiu um pouco.
– Já ligou pro escritório dela no Lugar Seguro? – V. perguntou, exalando fumaça.
– Caixa postal. E liguei para a Mary também. Nada.
– Cacete…
O toque sutil do monitor de segurança fez com que sua cabeça guinasse. Quando viu a imagem na tela, avançou em direção à porta do vestíbulo, quase arrancando-a
das dobradiças.
– Ah, Deus… Por onde você andou…
Apossou-se de sua Marissa com tamanha velocidade e determinação que o resto das besteiras que saíam da sua boca se perdeu enquanto a abraçava.
– Desculpe – ela disse com a voz abafada. – Eu estava cuidando de um caso. Não me dei ao trabalho de te ligar porque quase não tinha tempo hábil para voltar para
casa.
Afastando-se um pouco, amparou-lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela.
– Você está bem?
– Sim, claro. E eu sinto muito…
Ele a beijou, estremecendo quando sentiu as mãos subirem por suas costas.
– Não, não. Sou eu quem pede desculpas. Só o que importa é que você está bem.
Diabos, o sol era algo aterrorizante. Um vampiro apanhado ao amanhecer não passava de uma fogueira com roupas, e por mais que Marissa estivesse bem protegida no
Lugar Seguro, coisas ruins podiam acontecer: os humanos eram idiotas imprevisíveis e os assassinos eram absolutamente letais.
Quando se separaram, ela sorriu.
– Estou bem, estou bem.
Ah, tá, ele pensou quando os olhos dela evitaram os seus.
Ele a puxou pelo braço.
– Vem comigo.
– Mas a Última Refeição já foi servida…
– E quem se importa?
Atraindo-a para a sala de bilhar, ele os teria fechado ali caso houvesse portas para se fechar.
– O que aconteceu? – exigiu saber.
Ela vagueou um pouco, seu corpo incrível transformando as roupas simples em alta-costura.
– Nada que já não tenha ouvido falar, infelizmente.
Butch fechou os olhos. Às vezes, odiava o trabalho dela. Odiava mesmo. Contudo, quanto mais difícil ele se mostrava, mais ela lutava, e por mais que o afetasse
vê-la cansada, abatida, até mesmo desencorajada vez ou outra, ele a respeitava pra cacete pelo que fazia pela raça. E nem tudo era ruim. Quando as pessoas que ela
ajudava voltavam a ter vidas independentes, sua shellan reluzia como o sol.
Os olhos dela passearam pelo cômodo, mas ele permaneceu concentrado nela. E, Jesus, mesmo depois de uma longa e extenuante noite, ela ainda lhe roubava o fôlego.
Sua beleza era lendária na raça, algo de que se comentava há gerações e ainda era reverenciado, e o motivo era evidente. O rosto era uma compilação de ângulos perfeitos;
a pele, suave e luminosa como uma pérola; os olhos azuis, da cor de uma manhã gloriosa; aqueles lábios, tão rosados e macios. E também havia o cabelo loiro passando
dos ombros e, sim, ah sim, a silhueta, do tipo que deixava os machos de joelhos – e os mantinha ali embaixo.
Às vezes ainda não acreditava que ela estava com ele. Ele. Um cara do sul de Boston, de origem irlandesa, com um dente da frente lascado, um passado ruim e uma
infinidade de vícios que não fora capaz de subjugar até antes de conhecê-la.
E também havia aquela merda de Ômega.
Todavia, sua shellan o amava, por algum motivo inexplicável.
– Você não está falando comigo – ele sussurrou, afastando o cabelo dela para as costas e massageando seu pescoço, seus ombros rígidos, seus braços tensos. – Você
sabe que detesto quando não sei o que está acontecendo.
Quando um coro de risadas explodiu do lado oposto ao vestíbulo, Marissa se aninhou nele, o quadril se chocando contra todo tipo de diversão.
E, que surpresa, a ereção foi instantânea, o pau engrossando e se alongando por trás da braguilha da calça de couro.
Envolvendo-o pelo pescoço, ela se apoiou nele e encostou os seios em seu peito.
– Não está com fome?
Rugindo no fundo da garganta, ele passou os braços por trás e a segurou pelas nádegas. Uma palma cheia em cada banda, nada mais, firmes como as de uma ginasta…
Ah, Deus, estava começando a suar.
Só que ele sacudiu a cabeça.
– Isso não vai funcionar. Você não vai me distrair…
Em seguida, porém, Marissa abriu a boca e estendeu as presas. Aproximando-se, resvalou os caninos no lábio inferior dele, a sensação da ponta afiada em sua pele
arrancando-lhe um gemido.
– Parece que você está precisando de alguma coisa – ela sussurrou ao encontro da boca dele. – Quer me dizer o que é? – A língua dela se esticou e abriu caminho
com uma lambida. – O que é, Butch? Pode me contar do que você precisa…
– De você – ele grunhiu. – Eu preciso de você.
Depois da transição, quando o corpo se desenvolveu por completo e se transformou naquela demonstração de poder, ele se acostumara às façanhas da força física, e
também àquela fraqueza ressonante no que se referia à sua fêmea e ao sexo. Precisara de mulheres de tempos em tempos na época em que fora estritamente humano, mas
nada comparado à luxúria estrondosa que Marissa lhe provocava num piscar de olhos. Num olhar. Num toque. Numa ou duas frases… Às vezes, bastava apenas a pura fragrância
de oceano dela…
Bum! Era como se alguém tivesse explodido seus miolos.
– Marissa…
Sua pélvis circundou a ereção dele e logo ela se distanciou.
– Vem cá.
Ela poderia ter mandado ele fazer uma série de coisas – fique de ponta-cabeça, raspe as sobrancelhas, arranque seu braço –, que ele teria obedecido em um átimo.
Segui-la? Com a possibilidade de fazê-la alcançar um orgasmo? Ou seis?
Sim, senhora, por favor, obrigado, como posso servi-la?
Marissa o conduziu para trás do bar e o empurrou contra as prateleiras de bebidas. Com mãos apressadas, correu os dedos até o zíper e, que Deus o ajudasse, ele
se agarrou à bancada de granito enquanto a via soltar cada um dos botões, a extensão da ereção forçando o tecido a se abrir conforme ela descia.
E logo ela o segurou.
– Caraaaaalho… – Sua cabeça pendeu para trás, mas ele queria olhar para ela…
Seu corpo inteiro vacilou quando a mão dela acariciou o mastro.
– Gosta de ver quando faço isso com você? – Ela o manejava com maestria, para cima e para baixo. – Gosta, Butch?
– Sim – ele sussurrou, expelindo a palavra. – Gosto… de te ver… com as mãos em mim…
– E quanto à minha boca?
As bolas dele se contraíram e um orgasmo disparou para a cabeça do pau, pronto para explodir, e isso foi antes de ela se ajoelhar diante dele, desaparecendo por
trás da proteção da frente do bar.
Não conseguiria aguentar muito, mas, que se foda, ele queria aquela sensação, aquele calor, a sugada úmida, mesmo que por um segundo só… Mas sem ver. Teve que fechar
os olhos. Se a visse assim, com a boca bem aberta, os lindos cabelos espalhados sobre sua calça de couro, o olhar azul encarando-o como se ela apreciasse o seu gosto…
O que, evidentemente, não podia ser verdade. Mas aquela seria uma mentira que ele não contestaria…
Quando o nome dela reverberou em sua garganta, aquela sucção era exatamente o que ele buscava, deslizante, suave, tão sensual que ele teve que abrir os olhos. Com
a cabeça para a frente, teve a visão desimpedida dos sofás de couro, das mesas de bilhar, da arcada de entrada. Se alguém por acaso aparecesse ali – algo improvável
por causa da Última Refeição –, só o veria com uma expressão pornográfica no rosto. Marissa estava escondida atrás da bancada longa e alta do bar. E outra notícia
boa? O cheiro da vinculação estava muito espalhado, os aromas picantes tão fortes que serviriam de alerta para o que estava acontecendo ali, e de que o pessoal precisaria
lhes dar um tantinho de privacidade.
Marissa trabalhou na cabeça e no tronco com a boca, fustigando-o do jeito que ele gostava, e ele fechou os olhos de novo – pensando nos Patriots jogando contra
os Giants… Naquilo que estava sendo servido na sala de jantar… Na possibilidade de Lassiter obrigá-los a assistir The Bachelor ou talvez a porra da Rachael Ray e
seu maldito azeite de oliva extravirgem no programa de culinária.
A imagem da pequena chef tirana foi o filtro que melhor funcionou, bloqueando parte das sensações, ou pelo menos o suficiente para não gozar em cima da sua shellan.
Na verdade, seu temor quanto a esse resultado funcionou ainda melhor.
Inferno do cacete, o horror que ele sentiria se gozasse na boca dela ou, Deus do céu, no rosto dela…
Não, não. Nada disso. Isso não aconteceria.
Despregando as garras da bancada atrás de si, desceu as mãos e, com gentileza, puxou-a pelos ombros.
– Para… – grasnou. – Você tem que parar agora.
As sensações abaixo da cintura estavam ficando tão fortes quanto uma detonação, a ponto de, apesar de todas as distrações e da sua vigilância, elas estarem bem
próximas de assumir o controle, submergindo-o em grandes ondas de êxtase de alta octanagem.
Cerrando os dentes, seu rosto se retorceu.
– Hora de parar… Hora de parar…
No último momento possível, ele forçou a cabeça dela para trás, girou o quadril para o lado e ejaculou sobre os armários onde grandes caixas com embalagens dos
peixinhos dourados da Pepperidge Farm eram guardados. Enquanto ele gozava, ela se debateu contra a pegada dele, como se quisesse voltar para a ereção, mas ele não
permitiu até que seu quadril parasse de se sacudir e seu corpo todo relaxasse.
– Você devia ter me deixado terminar – ela disse baixinho. – Você nunca me deixa ir até o fim.
Voltando a se concentrar em sua companheira, suspendeu o corpo dela, o pau ainda rijo topando contra os seios, o abdômen, as coxas…
O som da campainha do vestíbulo fez com que virassem as cabeças, e Butch refreou um xingamento. Jesus, como permitira que acontecesse num local tão público? Pareceu-lhe
uma ideia perfeitamente aceitável enquanto estivera cego pelo desejo, mas aquele não era lugar para uma dama como ela pagar um boquete para um sujeito insignificante
como ele, mesmo ambos estando vinculados.
Butch rapidamente alisou os cabelos dela e depois começou a fechar os botões da braguilha.
– Precisamos continuar isso em casa.
– Até que foi divertido.
– Não.
Enquanto Fritz abria a porta para Xhex e Trez, Butch voltou para a realidade.
– … está me devendo uma! – Xhex disse ao entrar.
– Devo mesmo – respondeu Butch. – Pode cobrar quando quiser.
Xhex o dispensou com um gesto, depois mirou nele com a ponta do dedo.
– Vou cobrar a sua promessa.
– É melhor mesmo.
Butch teve que sorrir, mas logo voltou a se concentrar em sua shellan.
– Deixe-me te alimentar. E depois te levar nua para a cama.
– Que bom. – Ela o beijou e depois se virou para limpar o que ele havia…
– Não. – Butch segurou as mãos dela sobre o papel toalha. – Eu faço isso.
Enquanto ele a afastava do caminho, sentia que era observado, mas a ignorou. De onde ele vinha, existiam dois tipos de mulheres, e a sua companheira pertencia à
categoria das que eram idolatradas.
Ele devia saber disso. Tivera mais do que sua cota de vadias.
A última coisa que jamais faria era desrespeitar a sua Marissa. Seria o mesmo que incendiar uma igreja, esquartejar a Mona Lisa, ou jogar um Porsche 918 numa ribanceira
sem motivo algum.
Portanto, não. Ela não limparia a sujeira que ele causara.
Marissa tinha mais com que se preocupar.
Visto que Butch insistiu em limpar tudo sozinho, saiu do seu caminho e balançou a cabeça. Nunca entendera suas manias em relação ao sexo, mas as aceitava. O que
mais restava fazer? Ele se recusava a discuti-las; toda vez que ela trazia o assunto à baila, o fato de afastar sua boca sempre que ele se aproximava do clímax,
não tinha papo.
Além disso, naquele instante, a questão recorrente entre eles estava lá embaixo em sua lista de prioridades.
A fêmea terrivelmente ferida mal saíra viva da mesa de operações, e Marissa só voltara para casa porque não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar sentada
do lado de fora da UTI, à espera da notícia da falência dos órgãos dela. Ou de que eles voltaram a funcionar sozinhos. Deus, a cirurgia lhe pareceu tão complicada
quando a enfermeira lhe explicara o procedimento, mas reparar os órgãos internos e remover o baço não levara mais do que uma hora.
Infelizmente, ela perdera sangue demais, e mesmo depois de Havers ter lhe dado a sua veia, os sinais vitais eram instáveis.
Quando seu irmão saíra da sala de operações, olhara diretamente nos olhos de Marissa e lhe disse que tinha feito o melhor que podia.
Deixando de lado seus assuntos pessoais, acreditou nele.
De fato, havia praticamente tragédia demais para suportar no caso. Era triste que ainda não soubessem o nome da fêmea, e ninguém tinha vindo procurar por ela. Abalone,
o Primeiro Conselheiro do Rei, verificara as mensagens de e-mail e a secretária eletrônica da casa de audiências a seu pedido. Também não houve nenhuma procura,
tanto na clínica como no Lugar Seguro.
A moça era um fantasma no sentido figurado… a caminho de possivelmente se transformar em um literalmente.
– Vamos? – Butch disse ao oferecer-lhe seu braço.
Marissa saiu de seus pensamentos e sorriu para o companheiro.
– Sim, vamos.
Segurando-o, caminhou ao seu lado pelo vestíbulo e entraram na sala de jantar formal. Depois do momento de privacidade que haviam acabado de ter, todo aquele falatório,
riso e movimentação parecia um fuso horário social completamente diverso, e ela se sentiu um tanto oprimida. Isso é que era capacidade máxima. Ainda que o pé-direito
fosse imenso, e o piso maior do que uma pista de boliche, com a mesa de doze metros centralizada repleta de Irmãos, suas shellans, e outros soldados e residentes
da casa, ali estava um alegre congestionamento.
Havia dois lugares vagos na extremidade oposta, e eles avançaram até lá, Butch puxando a cadeira para ela.
Quando se acomodou ao seu lado, ele se inclinou e a beijou na boca.
– Coma rápido.
– Pode apostar – ela disse, mesmo não estando com fome.
E, tinha que admitir, não estava com pressa de retornar ao Buraco. A verdade era que insistira em seduzi-lo porque sabia que era o único modo de evitar que seu
macho se preocupasse com ela.
Quando um prato com filé mignon foi depositado na sua frente por um doggen, Marissa remexeu nele, cortou pedaços de carne que não experimentou, revolveu o purê
de batatas, espalhou as vagens. E depois pegou seu copo de cabernet sauvignon e se recostou, observando a todos, ouvindo as suas histórias.
– … vai me obrigar a fazer?
Concentrando-se em seu macho enquanto ele falava, viu quando ele se inclinou ao redor de John Matthew para fazer essa pergunta a Xhex.
A lutadora gargalhou.
– É melhor mesmo você ficar com medo de mim.
– Qualquer um que não fique é um tolo.
– Ah, você diz coisas tão calorosas… E não tenho pressa alguma em cobrar o meu favor. É muito bom ter um macho como você me devendo.
Sem nenhum motivo, Marissa observou como o corpo de Xhex era potente, os ombros e o tronco entalhados com músculos ressaltados debaixo de sua camiseta colante enfiada
dentro das calças de couro pretas. Considerando-se os cabelos muito curtos e os olhos cinza-escuros, ela, definitivamente, era alguém que devia ser levada a sério.
Por outro lado, Marissa trajava suas calças de escritório e uma blusa saída de uma escola inglesa.
Enquanto Butch levantava a palma para um cumprimento, Xhex bateu a dela, produzindo um estalo alto o bastante apesar de todos os barulhos de fundo.
– É disso que estou falando! – Butch disse ao se recostar na cadeira. – Inacreditável.
– O que é? – perguntou Marissa.
– Xhex foi… Bem, antes de tudo, eu estava nesse beco… Hum, me deixe voltar um pouco na história. – Cortou o ar com a palma. – Na verdade, é muita coisa para explicar.
Resumindo, eu estava acuado com dois redutores na minha frente, e Xhex estava com o celular do JM quando mandei uma mensagem pedindo apoio. Ela apareceu num segundo
e… – Butch parou de repente e só balançou a cabeça. – É isso.
Marissa esperou que ele continuasse.
– É isso…? O que aconteceu?
Butch pigarreou e sorveu um gole do Lagavulin em seu copo.
– Não importa. Foi o de sempre, sabe?
– Você estava em apuros, não estava?
Ele bebeu mais um gole.
– No fim deu tudo certo.
– Graças a Xhex.
– Você não comeu nada.
Ela baixou o olhar para seu prato.
– Ah, é. Eu comi antes de sair do Lugar Seguro.
Os dois se calaram.
Enquanto farpas e piadas eram trocadas entre os Irmãos, Marissa se sentiu recuando, indo para trás de uma tela invisível que abafava os sons e os sentidos.
– Pronta para ir? – Butch perguntou pouco depois, quando as pessoas começavam a se levantar da mesa.
– Sim. Sim, claro. Obrigada.
No meio do caminho até o arco de entrada, Butch parou para falar com V., os dois aproximaram as cabeças e murmuraram algo. Nesse ínterim, Xhex saiu da mesa com
seu companheiro, a mão de John trafegando pelas nádegas firmes, apertando-as e trazendo-a para junto dele. Ele só tinha olhos para sua companheira, o corpo de guerreiro
obviamente necessitando de uma válvula de escape.
A resposta?
Xhex emitiu um grunhido, os olhos da fêmea se fixaram nos de John Matthew enquanto ela revelava suas presas, como uma leoa montando o cenário do que, sem dúvida,
seria uma maratona de sexo.
Evidentemente, ela também tinha umas arestas que desejava aparar com seu hellren.
– Estamos combinados para amanhã, então, certo? – V. disse ao oferecer a palma para Butch.
– Certo. – Butch segurou a mão do Irmão e suas cabeças se aproximaram uma vez mais, as vozes se abaixaram de modo que ela ouviu apenas trechos da conversa.
– Isso. Certo. Aham. Te vejo lá no Buraco?
– Pode apostar.
Butch deu um apertão no ombro enorme de Vishous antes de se virar para Marissa.
– Vamos?
– Aham.
Quando Marissa foi seguindo com ele, percebeu que ainda segurava seu copo de vinho.
– Espere, deixe-me colocar isto na mesa.
Indo contra a maré, sorriu para Autumn e Tohr, acenou com a cabeça para Payne e Manny e com a mão para Bella e Nalla do lado oposto da mesa. Inclinando-se sobre
o prato ainda cheio, mas todo remexido, abaixou seu copo e desejou que Fritz e sua equipe deixassem que todos os ajudassem a retirar a mesa.
Quando se virou, parou.
Butch estava parado sob a arcada, as pernas naquelas calças de couro afastadas, as sobrancelhas unidas. Nada daquilo era estranho. Mas ele pegara a enorme cruz
de ouro debaixo da camisa e estava mexendo nela, esfregando o peso entre seus dedos.
E um mau presságio a acometeu.
– Marissa? – uma voz feminina a chamou.
Sobressaltando-se, sorriu para Bella.
– Oi. Vi vocês do outro lado da mesa. Você não é uma gracinha? – Afagou a bochecha de Nalla. – Acho que é sim… Claro que é.
– Está pesada demais para ser carregada. – Bella se inclinou para baixo e deixou a filha de pé nas perninhas agora firmes. – E estou pensando em comprar tênis de
corrida.
– Para você ou para ela?
Nalla disparou, mas na metade do caminho seu pai já a seguia de perto. Mesmo que ele parecesse um monstro assustador com o rosto marcado por cicatrizes, o crânio
raspado e as tatuagens de escravo, Nalla riu deliciada, relanceando para trás e sorrindo para seu pai enquanto corria, corria e corria ao redor da mesa, desviando
dos doggens que retiravam os pratos.
– Preciso de Nikes para nós duas – Bella sorriu. – Escuta, eu queria conversar com você. Ouvi rumores de que você organizaria o Festival Dançante do Décimo Segundo
Mês…
– O quê?
Bella pareceu confusa.
– Espere, pensei que… Será que entendi errado?
– Não, tudo bem. – Maravilha. – O que você ia dizer?
– Eu só queria te dizer que gostaria de ajudar da forma que eu puder. Fiquei surpresa em ouvir que você assumiria a tarefa, mas entendo por que o fez. Nós precisamos…
Não sei, acho que é hora de a raça reestabelecer as tradições que davam certo. Havia muitas que de nada serviam, mas os festivais são importantes…
Um grito infeliz inundou a sala agora vazia quando Nalla tropeçou e foi amparada pelo pai bem a tempo.
– Droga, tenho que ir – disse Bella. – Ela tem sentido dores de crescimento. Vou te dizer, estes últimos dias não têm sido fáceis. Só se lembre de que estou aqui
para ajudar, ok?
Bella seguiu atrás da família, estendendo os braços para Nalla, que, por sua vez, esticou um bracinho para sua mahmen. O outro ficou com o pai… de modo que os três
ficaram unidos.
Sim, dores de crescimento eram uma fase difícil, Marissa concordou. Por algum motivo, os vampiros jovens passavam por estirões de crescimento intensos, em comparação
com o crescimento lento e constante até a altura adulta da qual os humanos se beneficiavam.
Apenas mais um aspecto divertido da espécie.
Assim como os festivais.
Marissa esfregou as têmporas ao voltar para junto de Butch.
– Deus, a minha cabeça está latejando.
– Está? – ele perguntou. – Bem, vamos levá-la para a cama.
– Boa ideia. Acho que preciso dormir um pouco.
– É, você me parece cansada.
– Estou mesmo.
E esse foi basicamente o fim da noite: dez minutos depois, ela já estava na cama, de olhos fechados, com as imagens das últimas horas pipocando em sua cabeça como
flashes de luzes estroboscópicas.
Enquanto Butch voltava para a sala de estar do Buraco.
Sozinho.
Capítulo 4
NA NOITE SEGUINTE, Paradise pegou o ônibus escolar.
Por assim dizer.
Na verdade, havia dois “ônibus”, cada um com aproximadamente trinta pessoas, e quaisquer semelhanças entre eles e o onipresente transporte amarelo dos mini-humanos
terminavam com o nome compartilhado. Os veículos que a Irmandade usou para apanhar os candidatos ao programa de treinamento pareciam saídos do filme O Ataque, todos
negros por dentro e por fora, com vidros escuros e grossos nas janelas, certamente à prova de balas, pneus como das máquinas limpa-neves e para-choques que a fizeram
lembrar dos dinossauros T-Rex.
Como todos os outros, ela se desmaterializara para um trecho de terreno vazio a oeste dos subúrbios de Caldwell. Seu pai quis acompanhá-la, mas lhe pareceu importante
começar da mesma forma como pretendia continuar. Aquela era a sua decisão independente; precisava fazer o que todos os outros faziam. E ela tinha bastante certeza
de que ninguém ali traria um acompanhante.
Ainda mais um acompanhante que, por acaso, era o Primeiro Conselheiro do Rei.
Ver quase sessenta pessoas que não reconhecia fora uma surpresa. Em retrospecto, o formulário deixara claro que qualquer um poderia se inscrever; portanto, havia
muitos civis. Na verdade, parecia que todos eram civis e a proporção machos/fêmea devia ser de dez para um.
Mas pelo menos seu sexo era permitido.
Voltando a se concentrar, Paradise se mexeu no banco para garantir que o cotovelo não importunasse o macho que estava sentado ao seu lado. Fora a troca de nomes
– o dele era Axe –, não disseram mais nada, e o jeitão calado e taciturno combinava com o seu visual à perfeição: o macho tinha “assassino” escrito em todo ele,
com aquele cabelo negro espetado, todos aqueles piercings negros de um lado do rosto e a tatuagem de algo maligno lhe subindo até a metade do pescoço.
Imagine só se seu pai soubesse que ela estava perto assim de um macho como aquele? Teriam que colocar Abalone num aparato de suporte de vida.
E esse era exatamente o motivo pelo qual desejou entrar no programa. Era hora de se desligar das restrições impostas por sua posição, e dar um fim à vida de flor
de estufa. Se trabalhar para o Rei lhe ensinara algo, foi que não importava a sua classe social, a tragédia não discriminava, a justiça sempre podia ser feita e
ninguém sai desta vida vivo.
– Então você vai mesmo seguir com isso.
Paradise olhou para o vidro escuro da janela ao seu lado. Refletido na superfície espelhada, Princeps Peyton, primogênito de Peythone, estava exatamente como ela
se lembrava: belo de uma maneira clássica, com aqueles intensos olhos azuis e os espessos cabelos loiros escovados para trás da testa. Estava usando óculos de sol
sem aro com lentes cor safira que eram a sua marca registrada para esconder o fato de que provavelmente estava doidão, e suas roupas caras e descoladas eram feitas
sob medida para ressaltar o corpo musculoso. Com uma voz aristocrática e rascante, e um cérebro que, de algum modo, conseguia contrabalancear todo aquele THC, ele
era considerado um dos solteiros mais cobiçados da glymera, uma mistura de Grande Gatsby com Jack Sparrow.
Ao inspirar fundo, ela sentiu o perfume da colônia dele e um resquício de fumaça.
– Como tem passado, Peyton? – murmurou.
– Você saberia se atendesse a porra do telefone.
Paradise revirou os olhos. Mesmo sendo apenas amigos, o maldito era completamente irresistível às fêmeas. E um dos seus problemas, dentre tantos, era o fato de
ele saber disso.
– Ei. Oooi? – ele a chamou.
Paradise se virou de frente para ele.
– Não tenho muita coisa para te dizer. Visto que você me reduziu a um par de ovários para reprodução, não deveria ser uma grande surpresa. Não tenho muito mais
a oferecer, não é mesmo?
– Pode nos dar licença? – ele pediu para o macho sentado ao lado dela.
– Pode crer. – Axe, o cara durão, saiu dali como se estivesse fugindo de uma bomba de fedor. Ou de uma fêmea grasnante com um vestido rosa repleto de laços e fitas.
Peyton se sentou.
– Já pedi desculpas. Pelo menos para o seu telefone. O que mais quer de mim?
Ela meneou a cabeça, pensando no primeiro ano após os ataques. Tantos da espécie deles foram mortos pela Sociedade Redutora durante aquele ataque horrendo à raça,
e os afortunados o bastante para escapar com vida abandonaram Caldwell, retirando-se para suas casas seguras fora da cidade, fora do Estado, fora da Nova Inglaterra.
Peyton fora para o sul com a família. Ela fora para o oeste com o pai. E os dois passaram dias incontáveis insones conversando pelo telefone só para permanecerem
sãos e processarem o medo, a tristeza, o horror, as perdas. Nesse tempo, ele se tornara alguém com quem ela conversava não apenas uma vez à noite, mas durante as
infindáveis vinte e quatro horas dos ciclos dos dias, das semanas, dos meses.
Ele se tornara a sua família.
Claro, se a época tivesse sido remotamente normal, eles não teriam se aproximado daquela maneira, ainda mais se o contato tivesse sido pessoal. Como fêmea solteira
de uma das Famílias Fundadoras, ela não teria permissão para confraternizar tão livremente com qualquer macho descompromissado sem uma acompanhante.
– Sabe todas aquelas horas que passamos ao telefone? – ela perguntou.
– Sei.
– Senti como se você fosse a minha retaguarda. Que você não me julgava quando eu estava com medo, ou fraca, ou nervosa. Você era… uma voz do outro lado da linha
que mantinha a minha sanidade. Às vezes, você era a única razão que me fazia suportar até o cair da noite. – Balançou a cabeça. – E então isto aconteceu, e você
veio pra cima de mim com toda essa asneira da glymera…
– Não, espere um instante…
– Você fez isso, sim. Riu de mim e me disse que eu não conseguiria. – Cobriu a boca dele com a mão para silenciá-lo. – Pare de falar, ok? Deixa eu desabafar tudo
que está entalado. Quem sabe você até tenha razão: pode ser que eu não consiga entrar no programa. Tudo bem, posso me estatelar de bunda no chão, mas tenho permissão
de estar aqui neste ônibus, e tenho a mesma oportunidade que todos os outros. E justo você, que sempre zombou das fêmeas idiotas da sociedade que a sua família tentou
empurrar para você, que me disse que considera os festivais estúpidos, que rejeitou as expectativas de negócios que o seu pai deposita em você… Você é a última pessoa
que eu pensei que viria me atacar com essas regras antiquadas.
Ele se recostou e a fitou por trás das lentes azuladas.
– Terminou? Acabou seu sermão?
– Para a sua informação, dar uma de engraçadinho não vai te ajudar em nada aqui.
– Só quero saber se você vai deixar essa merda feminista de lado e me ouvir de verdade.
– Tá de brincadeira?
– Você não me deu uma chance sequer de explicar. Está ocupada demais preenchendo o meu lado da conversa com todas essas asneiras de queimar sutiãs. Por que se dar
ao trabalho de deixar a outra pessoa participar da conversa quando você sozinha está se divertindo tanto sendo preconceituosa e superior? Nunca pensei que você fosse
assim.
Bem-vindo a um universo paralelo, Paradise pensou.
Antes que conseguisse se segurar, ela rebateu:
– E eu aqui pensando que você fosse apenas viciado. Não sabia que também era misógino.
Peyton balançou a cabeça e se levantou.
– Sabe de uma coisa, Parry? Você e eu temos mesmo que dar um tempo.
– Concordo plenamente.
Do alto de sua enorme estatura, ele baixou o olhar para ela.
– Que tremendo idiota eu fui em pensar que você iria precisar de um amigo nisto aqui.
– Alguém que deseja o seu fracasso não é um amigo.
– Eu nunca disse isso. Nem uma única vez.
Quando ele se virou, Paradise quase lhe berrou algo, mas o deixou se afastar. Não que uma conversa os fosse levar a algum lugar. Mas o que aconteceu, em vez disso?
Praticamente todo mundo estava olhando para eles.
Caramba, as coisas estavam começando mesmo com o pé direito.
Uma hora após o pôr do sol, Marissa se desmaterializou numa área de floresta do outro lado do rio Hudson. O vento frio que soprava em meio aos pinheiros a fez estremecer,
e ela fechou o casaco de lã Burberry bem junto ao corpo. Respirando fundo, suas narinas zuniram com a falta de umidade e o ar incrivelmente limpo do anticiclone
que soprava do norte.
Olhando ao redor, pensou que existia algo fundamentalmente fúnebre no mês de novembro. As coloridas folhas do outono estavam caídas e ressecavam no chão, a grama
e a vegetação rasteira estavam murchas e acinzentadas, e os alegres e falsamente convidativos flocos de neve ainda tinham que cair para criar o manto branco.
Era a transição medíocre entre uma versão fabulosa e a seguinte.
Aquilo não era nada além de frio e vazio.
Ao girar em volta, sua visão aguçada se fixou numa estrutura de concreto sem nenhum atrativo, uns cinquenta metros mais adiante. Com um único andar, sem janelas
e apenas uma porta azul-escura, parecia algo que a prefeitura de Caldwell construíra com o propósito de tratar a água e posteriormente abandonara.
Ao dar um passo à frente, um galho se partiu sob seu pé com um ruído, e ela se deteve, virando para trás para se certificar de que não havia ninguém atrás dela.
Maldição, deveria ter dito a Butch aonde ia. Porém, ele estava tão ocupado se preparando para a orientação dos novos recrutas que ela não quis incomodá-lo.
Tudo bem, disse a si mesma. Sempre haveria a Última Refeição.
Falaria com ele, então.
Cruzando a distância até a porta, suas palmas começaram a suar dentro das luvas, e seu peito ficou tão apertado que parecia que estava usando um corpete.
Deus, quanto tempo fazia que não vestia um desses?
Enquanto tentava calcular, pensou no tempo antes de conhecer Butch. Tivera todo o status, mas não uma posição que alguém da glymera poderia desejar. Na qualidade
de noiva prometida e não reclamada de Wrath, filho de Wrath, não passava de um fruto proibido, uma bela maldição, lastimada e evitada nos eventos e nos festivais
da aristocracia.
Contudo, seu irmão sempre cuidara dela, uma fonte de conforto na maior parte do tempo silenciosa, mas mesmo assim leal. Ele odiara o fato de Wrath tê-la sempre
ignorado a não ser quando precisava se alimentar e, no fim, esse ódio levara seu irmão a tentar matar o Rei.
Como se constatou mais tarde, aquele seria apenas um dos vários atentados à vida de Wrath.
Ela se arrastava e sofria em sua infeliz existência, sem esperar mais nada, meramente desejando poder viver a própria vida… até que numa noite conheceu Butch na
antiga casa de Darius. Seu destino mudara para sempre ao ver o então humano parado na sala de estar, o destino lhe dando o amor que ela sempre buscara, mas que jamais
tivera. No entanto, houve repercussões. Talvez como parte do equilíbrio ditado pela Virgem Escriba, todo esse bem viera a um grande custo: seu irmão acabou por expulsá-la
de casa e de sua vida momentos antes do alvorecer de certa manhã.
Que era o que acontecia quando a filha de uma das Famílias Fundadoras está namorando o que se acredita ser apenas um simples humano.
No fim, revelou-se que havia muito mais em Butch, claro, mas seu irmão não ficara por perto tempo suficiente para saber disso tudo. E Marissa não se importara.
Teria assumido o seu macho de qualquer forma que ele se apresentasse a ela.
A não ser pela vez em que se deparara com Havers numa reunião do Conselho, ela, de fato, nunca mais vira o irmão desde então.
Isto é, até a noite anterior.
O engraçado é que ela não desperdiçara tempo algum pensando no que um dia tivera, onde estivera, como vivera. Distanciara-se de tudo o que acontecera antes de seu
companheiro, vivendo apenas no presente e no futuro.
Agora, porém, ao passar pela soleira da nova clínica de ponta do irmão, percebeu que aquela ruptura definitiva não passara de uma ilusão. Só porque seguimos em
frente não significa que nos despimos de nossa história pessoal como quem troca de roupa.
O passado de alguém é como a própria pele: permanece com você por toda a vida, tanto as proverbiais marcas de beleza… quanto as cicatrizes.
No caso de Marissa, basicamente as cicatrizes.
Muito bem, onde estava a campainha? A recepção? Na noite anterior, entraram com a ambulância por uma entrada diferente… Mas Havers lhe dissera para vir por ali
se viesse se materializando.
– Veio se consultar com algum médico? – uma voz feminina perguntou por um alto-falante.
Sobressaltada, afastou os cabelos e tentou encontrar a câmera de segurança.
– Hum… Na verdade, não tenho hora marcada. Vim ver…
– Não tem problema, meu bem. Entre.
Houve um som metálico e uma barra surgiu na superfície da porta. Empurrando-a, ela emergiu num espaço aberto de uns 6 metros de largura por 6 de comprimento. Com
luzes embutidas no teto e paredes de concreto pintadas de branco, parecia a cela de uma prisão.
Olhando ao redor, ficou se perguntando…
O facho vermelho do laser era largo como a palma da mão, mas tinha a espessura de um fio de cabelo, no máximo, e ela o notou apenas pelo calor, e não por sua visão
tê-lo percebido. Percorrendo-a dos pés à cabeça com lentidão, ele procedia de um canto à direita, de um meio globo escuro afixado no teto.
– Por favor, siga em frente – a voz feminina disse por outro alto-falante escondido.
Antes que Marissa levantasse a questão de não haver lugar para ir, a parede diante dela se partiu ao meio e deslizou para os lados, desaparecendo para revelar um
elevador que se abriu silenciosamente.
– Que chique – disse baixinho ao entrar.
O trajeto durou mais do que o esperado e o elevador parecia se mover para baixo, por isso ela concluiu que não havia exagero em chamar a construção de subterrânea.
Quando o elevador por fim parou, a porta se abriu novamente e…
Trabalho, trabalho, trabalho, ela pensou ao sair.
Parecia haver pessoas por todos os lados, sentadas em cadeiras ao redor de uma TV de tela plana à esquerda, dirigindo-se a uma bancada de recepção à direita, movendo-se
apressadas pela imensa sala. Trajavam jalecos brancos e uniformes de enfermagem.
– Olá! Você tem hora marcada?
Levou um instante para ela perceber que uma fêmea uniformizada sentada atrás do primeiro balcão se dirigia a ela.
– Ah! Não, desculpe, não tenho. – Aproximou-se e baixou a voz. – Sou tuhtora designada de uma fêmea que foi transferida do Lugar Seguro na noite passada. Vim ver
como ela está passando.
No ato, a recepcionista ficou paralisada. Em seguida, os olhos percorreram Marissa de alto a baixo, como o feixe de laser no andar térreo.
Marissa sabia exatamente que narrativa estava se passando pela mente da fêmea: noiva não reclamada de Wrath, hoje vinculada ao Dhestroyer e, acima de tudo, a irmã
distanciada de Havers.
– Poderia avisar o meu irmão que estou aqui?
– Já estou ciente da sua presença – Havers disse atrás dela. – Eu a vi na câmera de segurança.
Marissa fechou os olhos por um breve segundo. E depois se virou para encará-lo.
– Como está a paciente?
Ele se curvou de leve. O que foi uma surpresa.
– Não muito bem… Por favor, venha por aqui.
Enquanto seguia seu jaleco branco em direção a uma pesada porta dupla fechada, tinha consciência dos muitos pares de olhos sobre eles.
Encontros familiares eram divertidos. Ainda mais em público.
Depois de Havers passar seu cartão por um leitor magnético, as portas metálicas se abriram para revelar um espaço médico tão sofisticado e intenso quanto qualquer
um imaginado por Shonda Rhimes:* quartos hospitalares repletos de equipamentos médicos estavam agrupados ao redor de um espaço administrativo central com enfermeiras,
computadores e vários tipos de suporte, enquanto três corredores partiam em direções diferentes para o que ela deduziu serem unidades de tratamento especializado.
E seu irmão administrava tudo aquilo sozinho.
Se Marissa não soubesse do que o irmão era capaz, ficaria maravilhada com ele.
– Esta é uma instalação e tanto – observou ao seguirem em frente.
– O projeto levou um ano, a construção mais do que isso. – Ele limpou a garganta. – O Rei tem sido muito generoso.
Marissa lançou-lhe um olhar de surpresa.
– Wrath? – Como se houvesse outro monarca! Dã! – Quero dizer…
– Eu presto serviços essenciais à raça.
Foi poupada de sustentar a conversa por mais tempo quando ele parou diante de uma unidade envidraçada que tinha as cortinas fechadas pela parte interna.
– Você precisa se preparar para isto.
Marissa olhou fixamente para o irmão.
– Até parece que eu nunca testemunhei o resultado de violência antes…
A ideia de que ele desejasse protegê-la de qualquer coisa àquela altura era ofensiva.
Havers inclinou a cabeça, desconcertado.
– Sim, claro.
Com um movimento, ele abriu a porta de vidro e depois afastou as cortinas verdes claras.
O coração de Marissa gelou, e ela teve que combater certa hesitação. Tantos tubos e máquinas entravam e saíam da fêmea que aquilo mais parecia um filme de ficção
científica, o comando daquele fiapo de vida assumido por funções mecânicas.
– Ela está respirando sem auxílio – Havers informou ao se inclinar e verificar a leitura de alguma coisa. – Retiramos o tubo de traqueotomia umas cinco horas atrás.
Marissa se recompôs e forçou os pés a se moverem até a cama. Havers estivera certo ao alertá-la… Mas o que ela esperava ver? Vira os ferimentos pessoalmente.
– Alguém… – Marissa se concentrou no rosto judiado. Os hematomas haviam descolorido o rosto ainda mais, grandes faixas de roxo e vermelho marcando as faces inchadas,
os olhos, a mandíbula. – Alguém da família… veio procurá-la?
– Não. E ela não tem se mantido suficientemente consciente para nos dizer seu nome.
Marissa se aproximou da cabeceira da cama. Os bipes e os sussurros suaves do equipamento pareciam altos demais, e sua visão estava nítida demais ao olhar para a
bolsa de soro pingando constantemente, e o modo como os cabelos castanhos da fêmea estavam emaranhados sobre a fronha branca, e a textura da manta azul sobre os
lençóis.
Curativos em toda parte, pensou ela. E isso apenas nos braços e ombros expostos.
A mão pálida e delgada estava apoiada ao lado do quadril, e Marissa esticou a sua para segurá-la. Fria demais, pensou. A pele estava fria demais e não tinha a coloração
correta: estava branca acinzentada, em vez de castanha dourada.
– Está voltando a si?
Marissa ficou confusa com o comentário do irmão, mas logo percebeu que os olhos da fêmea estavam tremelicando, as pálpebras inchadas se abrindo e fechando.
Inclinando-se na direção dela, Marissa disse:
– Você está bem. Está na clínica do meu ir… na clínica da raça. Está segura aqui.
Um gemido sofrido a fez se retrair. E depois houve uma série de murmúrios.
– O que disse? – Marissa perguntou. – O que está tentando me contar?
As sílabas foram repetidas com pausas nos mesmos lugares, e Marissa tentou compreender o padrão, desvendar a série de palavras, apanhar o significado.
– Repita uma vez mais…
De repente, os bipes ao fundo se aceleraram num alarme. E Havers afastou a cortina e escancarou a porta, gritando para o corredor.
– O que foi? – Marissa perguntou, curvando-se mais sobre o leito. – O que está dizendo?
Enfermeiras entraram apressadas, e um carrinho foi trazido. Quando alguém tentou se colocar entre ela e a paciente, Marissa sentiu vontade de lhes dizer que parassem,
mas logo a agitação no quarto prevaleceu.
A conexão entre Marissa e a paciente foi rompida, as mãos das duas se afastaram, e mesmo assim os olhos da fêmea permaneceram fixos em Marissa, mesmo quando mais
pessoas e equipamentos ficaram entre elas.
– Comece as compressões – Havers disse quando uma enfermeira subiu na cama. – Carregue a máquina.
Marissa recuou um pouco mais, ainda mantendo contato visual.
– Eu vou encontrá-lo – ouviu-se dizendo em meio à confusão. – Eu prometo…
– Todos para trás – Havers ordenou. Quando a equipe se afastou, ele apertou um botão e a caixa torácica da fêmea se arqueou.
O coração de Marissa batia forte, como se tentasse compensar o que fraquejava sobre o leito.
– Vou encontrar quem fez isso com você! – ela exclamou. – Fique conosco! Não desista! Nos ajude!
– Sem pulsação – Havers anunciou. – Vamos repetir. Afastem-se!
– Não! – Marissa gritou quando os olhos da fêmea se reviraram. – Não…!
Shonda Rhimes é roteirista, cineasta e produtora norte-americana, criadora, entre outras séries, do drama médico Grey’s Anatomy. (N.T.)
Capítulo 5
AQUILO ERA… UM COQUETEL?
Enquanto Paradise entrava no ginásio que parecia ser tão grande quanto um campo de futebol profissional, surpreendeu-se em ver doggens uniformizados segurando bandejas
de prata repletas de canapés com as mãos cobertas por luvas brancas, um bar montado sobre uma mesa com toalha adamascada e música clássica tocando ao fundo.
As sonatas de violino de Mozart.
Das que seu pai ouvia diante da lareira após a Última Refeição.
À esquerda, havia um balcão de inscrição, para onde, após um instante de aglomeração, todos os sessenta candidatos formaram uma fila diante de uma doggen com um
sorriso contente estampado no rosto e um laptop diante de si. Não querendo parecer alguém que desejava tratamento especial, Paradise entrou na fila e esperou pacientemente
até informar seu nome, confirmar seu endereço, ter sua foto tirada e seguir para o lado onde entregou o casaco e a mochila.
– Gostaria de um canapé? – um doggen lhe ofereceu.
– Ah, não, obrigada, mas agradeço a gentileza.
O doggen se curvou até a cintura e abordou o macho que estivera atrás dela na fila. Relanceando por sobre o ombro, cumprimentou com a cabeça o colega candidato,
e o reconheceu dos festivais que a glymera organizara antes dos ataques. Como todos os membros da aristocracia, eram primos distantes, apesar de não ter convívio
com ele nem com seus familiares.
Seu nome era Anslam, se bem se lembrava.
Depois de retribuir o aceno, ele enfiou um canapé na boca.
Girando sobre os calcanhares, Paradise deu uma olhada nos equipamentos de ginástica espalhados pelo espaço aberto. Barras paralelas, barras simples, colchões para
amortecer as quedas, um cavalo de alças, leg press… ah, que bom, eles também tinham um aparelho de remo seco.
Pelo menos não fracassaria num dos equipamentos.
Espiando por cima do ombro, descobriu que muitos dos recrutas pareciam se esquivar constrangidos dos doggens, como se nunca tivessem visto criados antes. Peyton
atacava os aperitivos com fervor… O que não era uma surpresa. E Axe, o assassino serial latente, estava na periferia de tudo aquilo, com os braços cruzados diante
do peito, os olhos inspecionando o cenário como se talvez escolhesse suas vítimas.
Ficou se perguntando o que significavam todas aquelas tatuagens… E os piercings?
Tanto faz.
E, puxa, veja só, parecia haver apenas uma única outra fêmea até o momento. Considerando-se a expressão forte como aço no rosto magro, e os ombros amplos, ela provavelmente
seria mais adequada ao programa do que boa parte dos machos ali.
Esfregando as palmas úmidas nas coxas, Paradise desvencilhou-se de uma sensação de desapontamento: aquele macho, Craeg, que fora à casa de audiências atrás de um
formulário de inscrição, não estava no grupo.
Mas, convenhamos, devia ser uma coisa boa. Ele se mostrara uma distração absoluta no instante em que se aproximara da sua escrivaninha; e ela precisaria de toda
a sua concentração para passar por aquilo.
Desde que aquela noite revolvesse em torno de algo além de canapés.
Onde estavam os Irmãos?, perguntou-se.
Um movimento chamou a sua atenção pelo canto do olho. Um dos machos saltara no cavalo com alças e lentamente girava a parte inferior do corpo em círculos enquanto
os braços impressionantes mantinham seu peso suspenso. O som das palmas batendo no couro formou uma batida que rapidamente acelerou mais e mais conforme sua velocidade
aumentava.
– Nada mal… – murmurou enquanto o tronco incrivelmente forte lançava as pernas para fora e ao redor num borrão.
Ele não perdeu o compasso. Nem uma única vez. E quanto mais ele girava, mais convencida ela ficava de que deveria ter passado oito anos na academia, e não apenas
oito semanas. E se o restante dos candidatos fosse como ele? Estava ferrada.
Mas, olhando bem, ela não parecia ser a única intimidada. A turma inteira parara de passear para olhar para ele, hipnotizada pela excelência da atuação solitária
naquele imenso ginásio.
Tum.
O som da porta se fechando fez com que ela olhasse por sobre o ombro… E arfou antes de se conter.
Lá estava ele, aquele por quem ela esperava, aquele que ela tinha esperanças de reencontrar.
Paradise afofou o rabo de cavalo, algum receptor ligado ao estrogênio enlouquecendo e fazendo-a regredir aos dezesseis anos, enquanto o macho se aproximava do balcão
de inscrição.
Mais alto. Ele era muito mais alto do que ela se lembrava. Mais largo também – seus ombros esticavam a costura do moletom do Syracuse. Mais uma vez, vestia calça
jeans, diferente da anterior, mas também com rasgos. O calçado era um par puído e sujo de Nikes. Estava sem boné desta vez.
Lindos cabelos negros.
Devia tê-los cortado recentemente, pois as laterais estavam tão batidas que ela via o couro cabeludo por baixo da penugem escura ao redor das orelhas e da nuca,
e o topo estava curto o bastante para ficar espetado. O seu rosto… Bem, não devia ser de parar o trânsito para outras pessoas, o nariz era um pouquinho grande demais,
o queixo, um pouco pontudo, os olhos, um pouco afundados demais para parecerem receptivos. Mas, para ela, ele era Clark Gable; era Marlon Brando; era o The Rock;
era Channing Tatum.
Era como se estivesse embriagada sem ter bebido, imaginou alguma química dentro dela transformando-o em algo muito além do que ele era.
Inspirando fundo, tentou captar seu perfume… E se sentiu uma perseguidora.
Bem, porque talvez fosse uma perseguidora.
Depois que tiraram a sua foto, ele se virou para o restante da turma, os olhos varrendo o grupo, sem demonstrar nenhuma reação. Ao longe, ela percebeu que a doggen
que os recepcionara arrumava seus pertences e partia, juntamente a todos os outros criados, que provavelmente se afastavam para voltar a encher as bandejas.
Mas será que ela se importava com isso?
Olhe para mim, ela pensou olhando na direção do macho. Olhe para mim…
E foi o que ele fez.
Seus olhos passaram por ela, mas, em seguida, voltaram e ali se detiveram. Quando um raio de eletricidade atravessou o corpo inteiro de Paradise, ela…
De repente, o ginásio ficou escuro.
Breu. Sinistro. Total.
De volta à clínica subterrânea de Havers, se Marissa não estivesse apoiada no vidro, teria caído.
Ainda mais quando viu o irmão puxar o lençol branco por cima da expressão congelada da fêmea.
Santa Virgem Escriba, não estava preparada para o silêncio da morte… Para como, quando Havers anunciou a hora do óbito, tudo e todos pararam, os alarmes silenciaram,
os esforços cessaram, a vida acabara. Também não estava preparada para a retirada do equipamento que tentara manter a fêmea viva: um a um, os tubos no peito, nos
braços, no abdômen foram removidos, assim como os eletrodos do monitor cardíaco. A última coisa que tiraram foram as faixas de compressão ao redor das canelas finas.
Marissa acompanhava perplexa a movimentação das mãos gentis das enfermeiras. Foram cuidadosas com a paciente na morte assim como haviam sido em vida.
Quando a equipe se preparava para ir embora, ela sentiu vontade de agradecer às fêmeas de roupas brancas e sapatos levemente rangentes. Dar-lhes a mão. Abraçá-las.
Em vez disso, ficou onde estava, paralisada pela sensação de que a morte ocorrida não deveria ter sido testemunhada por ela. Era a família que deveria estar ali,
pensou apavorada. Deus, onde encontraria a família dela?
– Sinto muito – Havers disse.
Marissa estava prestes a perguntar por que estava se desculpando com ela quando percebeu que o irmão se dirigia à paciente morta: estava curvado sobre o leito,
uma das mãos sobre o ombro inerte debaixo do lençol, as sobrancelhas franzidas por trás dos óculos de aro tipo casco de tartaruga.
Quando ele se endireitou e recuou, levantou os óculos e pareceu enxugar os olhos, ainda que, ao se voltar para ela, parecesse completamente composto.
– Cuidarei para que os restos dela sejam tratados adequadamente.
– E isso significa…
– Que ela será cremada de acordo com um ritual adequado.
Marissa concordou com um aceno de cabeça.
– Quero ficar com as cinzas dela.
Enquanto Havers assentia e ambos combinavam que ela apanharia as cinzas na noite seguinte, Marissa estava bem ciente de que seu tempo estava se acabando. Se não
se afastasse do irmão, daquele quarto, daquele corpo, da clínica… acabaria desmoronando diante dele.
E isso simplesmente não era uma opção.
– Se me der licença – ela o interrompeu. – Tenho que cuidar de alguns assuntos no Lugar Seguro.
– Sim, claro.
Marissa olhou para a fêmea, notando sem pensar as manchas vermelhas em alguns pontos do lençol, sem dúvida resultantes da remoção dos tubos.
– Marissa, eu…
– O que foi? – ela disse com voz cansada.
No silêncio tenso que se seguiu, ela pensou em todo o tempo que passara furiosa com ele, odiando-o, embora, naquele instante, não conseguisse reunir nenhuma dessas
emoções. Apenas ficou ali parada diante de seu parente, aguardando numa postura que não era nem de força nem de fraqueza.
A porta se abriu e a cortina foi afastada. Uma enfermeira, que não estivera envolvida na tentativa de reanimação da paciente morta, inseriu a cabeça pela abertura.
– Doutor, estaremos prontos em quatro minutos.
Havers assentiu.
– Obrigado. – Quando a enfermeira se afastou, ele disse: – Pode me dar licença? Eu preciso…
– Cuide dos seus pacientes. Pode ir. É o que você faz de melhor, e é muito bom nisso.
Marissa saiu do quarto, e depois de um instante de hesitação quanto a que direção tomar, lembrou-se de ir pela esquerda. Era mais fácil recobrar a compostura do
lado de fora e manter a máscara no lugar ao retornar para a recepção, com todos os olhares fixos nela quando ela partiu, como se a notícia tivesse se espalhado pelos
funcionários. Estranho não ter reconhecido nenhum rosto. Isso a fez perceber mais uma vez quantos haviam sido mortos nos ataques, e quanto tempo se passara desde
que circulara pelo ambiente de trabalho do irmão.
E como os dois, apesar dos laços sanguíneos, eram, essencialmente, estranhos um para o outro.
Pegando o elevador para subir à superfície, desembarcou no recinto parecido com uma cela da construção superior e seguiu caminho em direção à floresta.
Ao contrário da noite anterior, a lua brilhava forte, iluminando as árvores… e a ausência de qualquer estrada. Percebeu que, de fato, existiam entradas múltiplas
para o complexo subterrâneo, algumas para entregas, outras para pacientes que conseguiam se desmaterializar, e outra ainda para as ambulâncias.
Tudo isso logicamente projetado, sem dúvida segundo as diretrizes e influência do irmão.
Por que Wrath não lhe contara que estava ajudando Havers com tudo aquilo?
Pensando bem, isso não era da sua conta, era?
Será que Butch sabia?, perguntou-se.
Sinto muito.
Enquanto ouvia a voz do irmão em sua mente, sua raiva voltou multiplicada por dez, a ponto de ter que esfregar a queimação que sentia no esterno.
– Águas passadas não movem moinhos – disse a si mesma. – Hora de voltar ao trabalho.
No entanto, ela não parecia capaz de partir. De fato, a ideia de regressar ao Lugar Seguro fez com que quisesse seguir na direção oposta. Não poderia contar às
suas funcionárias o que acabara de acontecer. A morte da fêmea era como uma negação de tudo o que tentavam fazer debaixo daquele teto: interceder, proteger, educar,
fortalecer.
Não. Não conseguiria ir direto para lá.
A questão era… Não fazia ideia de onde ir.
Capítulo 6
NA ESCURIDÃO TÃO DENSA quanto a de um túmulo, Paradise só conseguia ouvir o próprio coração batendo forte atrás das costelas. Estreitando os olhos, tentou ajustar
a vista, mas não havia nenhuma fonte de luz em parte alguma: nenhum brilho ao redor das portas, nenhum sinal luminoso em vermelho indicando a saída, nenhuma luz
de emergência. O vazio era absolutamente aterrorizante e parecia desafiar as leis da gravidade, a sensação de que talvez estivesse flutuando no ar apesar de seu
peso permanecer sobre os pés a confundia e a nauseava.
A música clássica também não tocava mais.
Mas o ambiente estava longe de estar silencioso. Ao forçar os ouvidos a não priorizar as castanholas dentro do peito, conseguiu ouvir murmúrios, respirações, imprecações.
Alguns deviam estar se movendo um pouco, pois ouvia o farfalhar das roupas, os raspar dos calçados, como barulho de fundo para sons vocais mais proeminentes.
Eles não podem nos machucar, pensou. De modo algum a Irmandade os feriria de verdade. Sim, claro, assinara um termo de consentimento e de exoneração de culpa na
parte de trás da inscrição – não que tivesse dado muita atenção às letras miúdas – mas, de toda forma, assassinato era assassinato.
Não se podia assinar um documento abrindo mão do direito de permanecer vivo.
Aquilo só podia ser a Irmandade fazendo a sua grande entrada. A qualquer momento. Isso mesmo, eles surgiriam debaixo de algum holofote, suas silhuetas destacadas
como as de super-heróis contra um fundo de fumaça, seu incrível arsenal dependurado nos corpos imensos.
Aham.
A qualquer instante…
Enquanto a escuridão prosseguia, seu medo deu as caras de novo, e era muito difícil não ceder a ele e correr. Mas para onde ir? Tinha vaga noção de onde estavam
as portas, o bar e o balcão de recepção. Também se lembrava de onde aquele macho, Craeg, estava – não, espere, ele tinha se mexido. Estava se mexendo.
Por algum motivo, ela o sentia em meio a todos os outros, como se ele fosse algum tipo de farol…
Uma brisa passou pelo seu corpo, sobressaltando-a. Mas era apenas ar fresco. Uma corrente de ar fresco.
Bem, isso excluía a possibilidade de uma queda de energia, se o sistema de ventilação estava funcionando.
Ok, era ridículo.
E, evidentemente, não era a única se frustrando ali. Outros praguejavam mais, se movimentavam mais, batiam os pés no chão, impacientes.
– Prepare-se.
Paradise gritou na escuridão, mas se acalmou ao reconhecer a voz de Craeg, seu cheiro, sua presença.
– O que disse? – sussurrou.
– Prepare-se. É aqui que o teste começa. Abriram uma saída, a pergunta é como nos farão ir até lá.
Ela desejou parecer tão esperta e calma quanto ele.
– Por que simplesmente não voltamos pelas portas que usamos para entrar?
– Não é uma boa ideia.
Bem nessa hora, ocorreu uma movimentação coordenada na direção pela qual entraram, como se um grupo tivesse se formado, concordado com uma estratégia, e colocasse
o plano em ação.
E foi nesse instante que ela ouviu os primeiros gritos da noite.
Agudos, e evidentemente de dor, não de surpresa, os sons horríveis vinham acompanhados de um zunido que ela não compreendia.
Às cegas, literalmente, esticou a mão e segurou Craeg… Só que pegou na extensão dura e plana do seu abdômen e não no braço.
– Ah, Deus… desculpe, eu…
– Eletrificaram as portas – ele disse, sem comentar a gafe dela, tampouco seu pedido de desculpas. – Podemos concluir que nada aqui é seguro. Bebeu o que serviram?
Comeu alguma coisa daquelas bandejas?
– Hum… Não, eu…
Da esquerda, ouviram o som inconfundível de alguém vomitando em meio ao caos. E dois segundos depois, como um passarinho respondendo a um trinado da sua espécie,
outra pessoa começou a vomitar.
– Eles não podem nos fazer passar mal – ela disse de súbito. – Espere, isto é… isto é uma escola! Não podem…
– Isto aqui é sobrevivência – disse o macho com seriedade. – Não se engane. Não confie em ninguém, ainda mais se for algum suposto professor. E não tenha esperanças
de passar por isto, não por ser uma fêmea, mas porque os Irmãos vão estabelecer um padrão tão alto que somente dez de nós terão uma chance de ainda permanecer de
pé até o fim da noite. Quando muito.
– Não pode estar falando sério.
– Preste atenção – ele disse. – Ouviu isto?
– Os vômitos? – O estômago dela se revolveu em empatia. – Difícil não ouvir.
Difícil suportar o cheiro também.
– Não, o tique-taque.
– O que… – E foi aí que ela também ouviu… ao fundo, o equivalente sonoro a alguém se movendo atrás de cortinas, havia um tique-taque ritmado. – O que é isso?
– Não nos resta muito tempo. O intervalo entre os ruídos está ficando cada vez mais curto. Boa sorte.
– Aonde você vai? – O que ela queria dizer era: não me deixe. – Aonde…
– Vou atrás do ar fresco. É para lá que todos irão. Não toque nos aparelhos de exercício. E, como já disse, boa sorte.
– Espere! – Mas ele já se afastara, um fantasma sumindo na escuridão.
De repente, Paradise se sentiu completamente apavorada, seu corpo tremia incontrolavelmente, as mãos e os pés entorpecendo, suor frio se formando em cada centímetro
quadrado de sua pele.
Papai estava certo, pensou. Não posso fazer isto. No que eu estava pensando…
E foi nesse momento que tudo começou.
Do alto e de todos os lados, aconteciam explosões como se o ginásio tivesse sido preparado para ser detonado. Os sons eram tão altos que seus ouvidos os registraram
como dor, não apenas barulho, e os flashes de luz tão brilhantes que ela passou de uma versão da cegueira para outra.
Gritando em meio ao caos, ela levou as mãos aos ouvidos e se abaixou, procurando cobertura.
À frente dela, viu pessoas no chão, algumas num agachado defensivo como o seu, outras vomitavam, e junto àquelas portas, pessoas se retorciam e abraçavam a si mesmas
apertado, como se a dor fosse grande demais para permanecerem de pé.
Só havia uma pessoa de pé se movimentando.
Craeg.
Nos flashes intermitentes, ela acompanhou seu avanço para o canto oposto. Sim, parecia existir uma abertura, uma porta que ofereceria nada além de mais escuridão…
Mas devia ser melhor do que ser explodido.
Deu um punhado de passos à frente, mas logo percebeu que aquilo seria uma cretinice. Correr. Ela precisava correr. E não havia nada detendo-a, e ela não queria
ser atingida pelos destroços que caíssem.
Não toque nos equipamentos.
Levando-se em consideração o que acontecera com aqueles que tentaram sair pelas portas metálicas? Só podia ser verdade.
Foi um grande alívio disparar adiante, porém ela teve que diminuir o passo porque sua visão não conseguia acompanhá-lo; ela precisava esperar pelos flashes de luz.
Era o único modo de avançar com segurança.
Pense numa caminhada desajeitada. Tropeços, arrastos, escorregadas, ela começou a abrir caminho em meio ao barulho e à luz atordoantes, à ameaça à sua vida, ao
terror que a acompanhava.
Acabara de entrar no labirinto de equipamentos quando se deparou com a primeira pessoa caída no chão. Era um macho que gemia e apertava a barriga. Seu instinto
foi o de tentar ajudá-lo, mas conteve-se.
Isto aqui é sobrevivência.
Algo passou zunindo por sua orelha – uma bala? Estavam atirando neles?
Jogando-se no chão, foi deslizando pelo chão escorregadio de barriga, e depois foi avançando agachada em meio ao tremendo caos.
Estava indo bem até chegar ao macho seguinte que estava deitado se contorcendo, os braços agarrados ao abdômen.
Era Peyton.
Continue, disse a si mesma. Vá para a segurança.
Enquanto outra explosão acontecia, bem do lado direito da sua cabeça, ela grudou a barriga no chão e gritou em meio à confusão:
– Merda!
Enquanto Craeg, filho de Brahl, o Jovem, avançava pelo ginásio, surpreendeu-se com o fato de que deixar aquela fêmea para trás o incomodasse tanto. Não a conhecia,
não lhe devia nada. Ela era Paradise, a recepcionista da casa de audiências do Rei, aquela que lhe entregara o formulário de inscrição impresso havia várias semanas.
De que ele precisava por ser pobre demais para ter acesso à internet, quanto mais a um computador e uma impressora.
Lá naquela sala, ela se mostrara… deslumbrante demais para que ele a fitasse. E quando ficou sabendo que ela queria participar do programa? A única coisa que lhe
passou pela mente era o que os humanos poderiam fazer com ela caso a apanhassem. Ou os redutores. Ou o tipo errado de vampiro.
Alguém tão linda quanto ela não estava segura neste mundo.
Entretanto, ela parecia ingênua quanto à severidade das provas que todos enfrentariam como trainees. Os Irmãos haviam orquestrado cada parte daquele ambiente. Nada
fora deixado ao acaso, e nada aconteceria a favor dos candidatos. Dizer a ela o que ela já deveria saber pareceu-lhe o único modo de ajudá-la de alguma maneira,
mas não poderia desperdiçar sequer um instante se perguntando o que podia ter acontecido com ela.
Precisava era se concentrar nos flashes.
Ainda que a princípio parecessem aleatórios, na verdade existia um padrão sutil neles, e assim como os tique-taques antes que o show de barulhos e luzes começasse,
os intervalos estavam ficando cada vez menores; portanto, seu tempo estava acabando.
Não fazia ideia de qual seria a segunda fase, mas sabia muito bem que era bom estar preparado para ela.
Pelo menos nenhum deles morreria.
Apesar da atmosfera de perigo, ele tinha a sensação de que a Irmandade não feriria nenhum deles de verdade. As “explosões” eram apenas muito barulho e luzes: não
havia destroços, nenhuma estrutura estava caindo, não havia cheiro de fumaça. Do mesmo modo, o que quer que estivesse fazendo mal às pessoas não devia ser algo fatal.
Os camaradas deitados no chão não estavam num momento feliz em suas vidas, claro, mas em meio aos flashes, ele notou que os primeiros a caírem já estavam ficando
de pé.
Aquele era um teste, um teste elaborado e só Deus sabia quanto duraria e, pelo andar da carruagem, a proporção de sucesso entre os candidatos devia ser ainda mais
baixa do que aquela que dissera a Paradise.
Craeg parou e olhou para trás por um segundo. Não conseguiu evitar.
Contudo, não havia como saber onde ela estava no meio daquela confusão. A luz não se sustentava por tempo suficiente e havia muitos corpos ali.
Apenas siga em frente, disse a si mesmo.
Já fez isso antes, vai fazer hoje de novo.
Seguindo em frente, abriu seu caminho ao largo dos equipamentos de exercício. Não era uma boa ideia tentar se proteger atrás deles. De tempos em tempos, ele via
pelo canto dos olhos alguma pobre alma tentar isso, só para parecer ser eletrocutada, os corpos se retorcendo em ângulos esquisitos na luz estroboscópica ao serem
lançados para trás e caírem.
Desejou muito que ela tivesse lhe dado ouvidos.
Abaixando a cabeça e se movimentando com rapidez, acabou chegando à porta de entrada do lado oposto. O cheiro de ar fresco era inebriante, um respiro que renovou
as forças do seu corpo. Mas ele não conseguia enxergar o que havia do outro lado, e recriminou-se por não ter dado razão ao impulso de trazer uma lanterna consigo.
Ok, tudo bem, então nem ele mesmo imaginara que as coisas ali podiam ficar tão intensas.
– É por aí que temos que ir.
Ao som daquela voz grave, ele olhou para trás, e ficou surpreso ao ver uma fêmea parada tão perto dele. Não era a loira adorável, nem perto disso. Na verdade, aquela
parecia sugerir que o termo “sexo frágil” era um grande equívoco de nomeação. Era quase tão alta quanto ele, musculosa debaixo das roupas de ginástica e, pelo modo
como o encarava direto nos olhos, ele entendeu que ela era tão inteligente quanto forte.
– Craeg – apresentou-se, estendendo a mão.
– Novo.
Como esperado, o aperto de mãos foi breve e forte.
– Agora vem isso. – Ela apontou para o vazio com a cabeça. – Por que diabos eu não trouxe a minha lanterna?
– Acabei de pensar a mesma coisa…
– Por aqui! – alguém exclamou. – É por aqui!
Em meio à luz forte, Craeg viu um grupo de três machos disparando pela passagem, conduzido por um grandalhão que trazia uma expressão de triunfo antecipado no rosto,
que Craeg tinha muita certeza que não duraria muito tempo mais.
Craeg sacudiu a cabeça e recuou um passo. Qualquer que fosse a maneira de entrar ali, não seria em disparada. Pelo que sabiam…
Um… Dois… Três… O trio passou por ele e pela fêmea, que havia parado ao seu lado.
De súbito a porta se fechou num baque forte. Em seguida, gritos do lado oposto.
Craeg olhou ao redor. Talvez outra saída fosse aberta? Ou talvez devesse pensar mais amplamente? Seria possível existir outra resposta…
Naquele instante, viu um par de cordas penduradas do teto uns nove metros mais à frente. Podia jurar que elas não estavam ali antes… Quem podia saber?
– Essa é a próxima opção – comentou.
– Vamos lá.
Os dois se afastaram, correndo ao redor dos equipamentos, na direção das cordas antes que mais alguém o fizesse. Não havia como saber onde elas os levariam, não
dava para enxergar tão alto, mas as luzes pipocavam com maior intensidade, e não havia opção.
– Pedra, papel, tesoura para ver quem vai escolher antes – ela disse, mostrando o punho.
Ele fez o mesmo.
– Um, dois, três. – Craeg escolheu pedra; ela, papel. – Você escolhe.
– Ok.
Craeg segurou a da esquerda e puxou com tanta força que suas palmas arderam. Parecia ser forte o bastante. Mas e se estivesse errado? A queda seria bem longa, e
não havia acolchoados embaixo.
Ele e a fêmea avançaram lado a lado, segurando, puxando, usando os pés para prender a ponta solta que deixavam para trás ao subirem. E ela era quase tão rápida
quanto ele, não que gastasse muito tempo para medir o seu progresso. Para cima, para cima, para cima… Até que os alto-falantes dos quais saíam os barulhos de explosão
estivessem logo acima da sua cabeça e as caixas de luz que geravam os flashes brilhantes os cegassem logo adiante.
– E agora? – exclamou quando estava a menos de dois metros do teto.
– Andaimes – ela gritou de volta, mudando de mão na corda e apontando.
E lá estava algum tipo de passarela suspensa por fios de metal. Olhando para baixo, rezou mais uma vez para que a plataforma fosse forte o bastante para suportar
o peso.
– Vou na frente.
– Pedra, papel, tesoura – ela gritou. – Um, dois, três.
Ele escolheu tesoura; ela, papel.
– Eu primeiro – ele anunciou.
Só que a passarela ainda estava um tanto distante, mesmo quando ele chegou à sua altura. Segurando-se à corda grossa, usou a parte inferior do corpo para criar
um movimento pendular… que passou a um balanço completo. Seria necessária uma perfeita cronometragem para fazer aquilo do jeito certo, teria que soltar as mãos por,
pelo menos, um metro e meio em pleno ar, sem rede de proteção embaixo. E quem é que sabia o que encontraria ali quando aterrissasse?
Mais metal com corrente elétrica correndo por ele?
Craeg avançou com a pelve uma vez mais, ergueu os joelhos e afastou o peso da passarela; em seguida, quando o movimento o levou para a frente uma vez mais, ele
arqueou as costas e jogou os pés adiante.
E, bem na hora certa, soltou a corda, desistindo da segurança que ela oferecia.
Pelo menos, ele desejou que fosse na hora certa.
Capítulo 7
– LEVANTA, PEYTON! LEVANTA… AGORA!
Quando Paradise perdeu a luta com seu instinto de sobrevivência e rolou o amigo – ou inimigo, ou que diabos fosse ele agora – de costas, praguejou contra ele, contra
si mesma, contra a Irmandade, contra mais ou menos tudo que fosse um substantivo.
A nova posição não demorou muito. Quando ele voltou a vomitar, ela o empurrou de bruços de novo a fim de que não aspirasse o vômito.
Olhando ao redor, viu… tantos caídos no chão. Como se fosse um campo de batalha.
– Vou morrer – Peyton gemeu.
Nos recessos da mente, Paradise notou que, apesar de os sons serem calamitosos, havia mais iluminação, os flashes surgiam mais rapidamente e permaneciam por mais
tempo.
– Venha. – Paradise o puxou pelo braço. – Não podemos ficar aqui.
– Pode me deixar… só me deixe ficar aqui…
Quando Peyton vomitou de novo e pouca coisa foi expelida, ela olhou para a extremidade oposta do ginásio. Havia algumas pessoas paradas ao redor da abertura escura
na direção que Craeg lhe dissera para tomar.
– Peyton…
– Vamos todos morrer…
– Não, não vamos.
E foi um choque perceber que de fato ela acreditava nisso, que não fora apenas uma frase feita para dar falsas esperanças ao senhor Gostosão com problemas estomacais.
A questão era que todo aquele barulho e aquelas luzes não provocavam nenhum escombro, nenhuma fumaça, tampouco poeira, nenhuma estrutura estava pensa, nada de fato
ameaçava o lugar e nem as pessoas ali dentro. Era um espetáculo de som e luzes, como uma tempestade de trovões ao longe ou uma produção teatral, e só.
Também teve a sensação de que as luzes estavam mudando, e isso devia ter algum significado.
Provavelmente um nada bom.
– Peyton. – Agarrou seu braço e voltou a posicioná-lo de costas. – Levanta o traseiro do chão. Temos que chegar ao canto.
– Não consigo… está muito…
Sim, ela o esbofeteou. Não sentiu orgulho disso nem ficou satisfeita com o contato rude.
– Levanta.
Os olhos dele se abriram.
– Parry?
– Com quem diabos você achou que estava falando? Taylor Swift? – Ele suspendeu o torso do chão. – Fica de pé.
– Posso acabar vomitando em você.
– E eu não tenho problemas mais sérios? Já deu uma olhada neste lugar?
Peyton começou a balbuciar coisas sem sentido, e foi então que ela decidiu que já bastava. Passando por cima das pernas dele, segurou-o por debaixo das axilas e
usou sua força recém-descoberta para andar para trás arrastando-o até colocá-lo de pé em seu par de Adidas.
– Paradise, eu vou…
Fantástico.
Agora, a parte da frente da roupa dela estava toda vomitada.
E ele estava tão cambaleante que andar em linha reta seria um desafio. Correr? Nem sonhando.
– Que droga… – murmurou, segurando-o ao redor da cintura e suspendendo-o do chão como se fosse uma barra de pesos.
Pesado. Muito pesado para os seus ombros.
Agora era ela quem estava cambaleando. Era como se estivesse tentando equilibrar um piano, situação piorada pelo fato de que o peso estava discutindo com ela e
vomitando na parte de trás da sua perna direita.
Paradise começou a se mover, ignorando tudo a não ser o seu objetivo de chegar até a maldita porta do outro lado. A cabeça estava virada para um lado; o pescoço,
tão tenso que ardia; o ombro, entorpecido pela falta de circulação; e as coxas já tremiam pelo peso adicional sobre elas.
A tentação de se perder em todas as sensações físicas era forte, ainda mais depois que elas ficaram mais intensas e insistentes. Mas ela queria… Bem, ela queria
chegar à porta, ao ar fresco, ao fim daquela situação de completo caos. Então poderia respirar fundo, colocar o peso morto reclamante de Peyton no chão e se sentar
numa sala de aula limpa e agradável.
Talvez partilhar algumas risadas com a Irmandade por ela ter passado pela pior parte e agora as aulas teóricas e de autodefesa poderiam começar.
Para conseguir continuar em frente, tentou se lembrar do aspecto das salas de aula que vira quando ela e os demais foram conduzidos a partir do estacionamento.
Tinham luzes fluorescentes e cadeiras e mesas posicionados ordenadamente voltadas para a frente.
– Pare… – disse Peyton. – Eu vou morrer…
– Pode calar a boca e ficar parado? – disse ela num resmungo.
– Eu vou…
Ah, pelo amor de Deus, ela pensou quando ele vomitou de novo.
Conforme avançava a duras penas e ofegava devido ao esforço, o labirinto de equipamentos de atletismo era um completo pesadelo, as diversas estações parecendo ter
sido espaçadas e anguladas de modo a dificultar a passagem, o contorno, a superação.
Ainda mais com Peyton dobrado sobre ela.
Sem falar nas tantas pessoas espalhadas pelo chão.
Toda vez que passava ao lado de alguém ou tinha que passar o pé por cima de uma cabeça, mão, pé ou perna, queria parar, perguntar se estavam bem, chamar ajuda…
enfim, fazer alguma coisa. O fato de não poder salvar ninguém a não ser a si mesma e a Peyton a fazia gritar internamente, os pulmões queimando dentro do peito,
uma estranha raiva motivando-a.
Ficou procurando por sangue. Obsessivamente.
Mas não havia sinais dele: nenhuma mancha vermelha nas roupas, nada de fios rubros sobre a pele ou poças sobre as tábuas amarelo douradas do piso. Também não havia
nenhum cheiro dele que lhe fosse perceptível, embora houvesse diversos outros, nenhum deles agradável. Mas nada de sangue. E isso tinha que ser bom… Certo?
– Ahhhh! – ela berrou, ao sentir uma dor lancinante.
Nada é tão ruim que não possa piorar.
A dor no cotovelo esquerdo desestabilizou tudo, seu corpo se comportando como uma mesa dobrável que teve uma perna chutada… e, bem como um cesto de frutas sobre
uma superfície previamente nivelada, Peyton despencou no chão, seus membros frouxos quicando como se fossem maçãs.
– Ai, meu Deus – ela cerrou os dentes e agarrou o braço, massageando-o onde a corrente elétrica a atingira.
Aproximara-se demais do aparelho de supino horizontal. E ao avaliar a quantidade de equipamentos que ainda tinha que ultrapassar, pensou: Não consigo fazer isso…
não consigo…
– Consegue se levantar? – perguntou.
Peyton respondeu de forma não verbal com mais do que um não: foi uma afirmativa enfática de que isso ainda não era minimamente possível.
Deus, como ainda podia restar alguma coisa no estômago dele?
– Não consigo fazer isso – ela gemeu ao olhar ao redor e massagear o cotovelo.
Enquanto seus olhos iam de um lado a outro, percebeu que estava procurando por ajuda, algum tipo de boia salva-vidas, um salvador. Devia existir alguém a quem poderia
recorrer…
Pela segunda vez em sua vida, rezou à Virgem Escriba, cerrando os olhos com força, tentando encontrar as palavras certas contra a confusão ao fundo, os estrondos,
os cheiros, as visões e os espasmos desordenados de adrenalina em seu interior. De algum modo, ela conseguiu suplicar à deidade da raça que enviasse alguém para
por um fim àquilo, para cuidar de Peyton, para resgatar todas as outras pessoas abatidas, para que todos saíssem daquele inferno…
Pare de perder tempo, uma voz interior comandou.
Foi um choque tão grande que ela se virou para trás, esperando encontrar alguém atrás dela. Não havia ninguém ali.
Talvez tivesse sido anunciado nos alto-falantes?
Pare de perder tempo! Vá!
– Não consigo levantá-lo de novo!
É melhor encontrar um jeito de fazer isso, porra!
– Não consigo!
É melhor fazer essa porra de uma vez!
– Ok, tudo bem, ok, tudo bem.
Murmurou essas palavras repetidamente ao voltar a erguer Peyton e recolocá-lo na posição anterior. A segunda vez que o suspendeu foi ainda mais descoordenada que
a primeira, o corpo frouxo em partes que não ajudavam em nada, nada mesmo, mas Peyton parecia estar recobrando as forças, e suas mãos a seguraram pelo quadril.
Quando ultrapassou a parte dos obstáculos, estava ficando sem forças. Fez um rápido cálculo mental para medir a distância até a porta, acrescentando outros fatores
como o quanto o seu ombro estava se deformando debaixo de todo aquele peso, e o fato de que, inconvenientemente, precisava tanto urinar que sentia como se alguém
estivesse apunhalando o seu baixo ventre.
Passando a galopar, os pés deslizavam sobre o piso abençoadamente desobstruído; quanto menos chacoalhasse, melhor para o passageiro que carregava e seu próprio
corpo.
Espere um instante.
A porta estava fechada.
Ao chegar ao seu destino, franziu o cenho e forçou a visão a se focar nos instantes de iluminação. Merda, a porta estava fechada. Mas não havia pessoas paradas
junto a ela apenas momentos atrás?
Aproximando-se do painel, deixou Peyton escorregar para trás e mal lhe deu uma olhada quando ele caiu esparramado no chão.
O que acontecera com a maldita porta?
Não havia maçaneta de nenhum tipo. Nenhuma dobradiça. Nenhum vidro para quebrar.
Girando para o outro lado, perscrutou o ambiente… Jesus, havia cordas penduradas no teto, e duas pessoas penduradas nelas, subindo com uma velocidade que fez com
que ela quisesse se sentar e desistir bem ali onde estava.
– Peyton? – ela o chamou ao inclinar a cabeça mais para trás para acompanhar a subida daquele par. – Não vou conseguir te carregar numa daquelas ali.
Inferno, ela não achava que conseguiria arrastar o próprio peso por aquelas cordas flexíveis.
Aonde aqueles dois estavam indo?, perguntou-se quando eles sumiram de vista.
– Peyton, vamos precisar…
Uma depois da outra, as longas cordas torcidas caíram no chão pesadamente, provocando um baque tão alto que ela pôde ouvir mesmo com todo o barulho ao fundo.
Onde foram parar aqueles dois?
Esfregando os olhos, quis gritar. Em vez disso, cerrou os dentes e disse:
– Que diabos vamos fazer ag…
Uma corrente renovada de ar fresco fez com que voltasse a se girar. A porta voltara a se abrir, revelando um denso vazio negro.
Como se já tivesse consumido os outros recrutas e estivesse pronto para mais uma refeição.
Peyton se esforçou para ficar de pé, limpando o rosto com as mãos trêmulas.
– Consigo andar.
– Graças a Deus.
Ele olhou-a de relance.
– Te devo uma.
– Primeiro, vamos ver se indo por aqui vamos parar em algum lugar.
– Vamos juntos. – Os olhos dele ardiam quando lhe ofereceu o cotovelo, como se eles fossem entrar num salão de baile, ela de vestido de gala, ele de smoking. –
Não vou te deixar.
Paradise o encarou por um instante.
– Juntos.
Entrelaçando o braço no dele, não se surpreendeu quando ele a usou para se equilibrar. Ainda assim, aquilo representava uma incrível melhora em relação ao antigo
estado quase comatoso… a não ser pela náusea.
Avançaram ao mesmo tempo, pois a soleira era larga o bastante para deixar passar os dois…
A porta bateu atrás deles e apagou qualquer fonte de luz, e ela abriu a boca para gritar, mas conteve a saída do som. A sensação do chão escorregando debaixo dos
seus pés voltou a acontecer, uma lição quanto à importância da visão em relação ao equilíbrio e à orientação espacial de braços, pernas e tronco.
Ao seu lado, Peyton ofegava.
Do nada, mãos rudes a seguraram pelos cabelos, puxando-o com força. E ela desatou a gritar conforme o medo a fazia se contorcer e se debater contra quem a segurava.
– Paradise!
Foram separados e algo foi colocado sobre a sua cabeça, prendendo-se em seu pescoço. Forçada ao chão, suas pernas foram amarradas e depois usadas para puxá-la de
costas. Debatendo-se, tentando chutar, respirar, permanecer ainda que minimamente calma o bastante para poder pensar, sentiu-se sufocar.
Sentiu como… se fosse morrer.
No alto do andaime, Craeg descobriu do jeito mais difícil que era melhor se equilibrar, pois os choques que levava toda vez que seus braços encostavam em algo metálico
faziam seu coração acelerar e bloqueavam sua mente por uma fração de segundo que ele não podia se dar ao luxo de desperdiçar.
E, naturalmente, a maldita plataforma era tão desequilibrada quanto um velhinho caquético, indo de um lado para o outro, balançando como um bastão de basebol.
– Entre no ritmo! – gritou para Novo. – Siga meus passos!
Mãos fortes o seguraram pela cintura.
– Tô contigo.
Passaram a andar a passos largos, rápidos, porém cautelosos, indo de um lado a outro, o calor das luzes e o grupo de pessoas abaixo fazendo-o suar. Esticando os
braços, ele equilibrava a si mesmo e a ela, e os dois começaram a avançar num ritmo bom, dirigindo-se só Deus sabe para onde…
De repente, a passarela ficou estável, e isso foi uma notícia bem ruim. O que dava certo numa superfície instável não funcionou muito bem na firme, e os dois se
meteram numa série de choques elétricos que os mandou de um lado a outro, os corpos se chocando e depois voltando a acertar os apoios de metal, só para receberem
mais choques. Os músculos começaram a se enrijecer com cãibras e se recusaram a relaxar, os membros incapazes de seguir os comandos mentais.
– Cacete! – Craeg exclamou ao tentar fazer o corpo parar de reagir ao estímulo.
– Mas que porra…? – Novo berrou.
Ou algo parecido.
Em pleno ar.
Em seguida, ele se viu caindo da beirada da qual não notara se aproximar, uma queda livre que fez com que até ele berrasse a plenos pulmões. Ao seu redor, o ar
se movia rápido, passando por suas roupas, agitando-as, correndo por seus cabelos, pele do rosto e das costas, atordoando os seus ouvidos com um som impactante.
Acabaria fraturando as pernas se caísse de pé, mas não havia tempo, tampouco distância – sequer um motivo – para tentar amortecer a queda que não seria devastadora…
Splash!
Ele atingiu de lado uma inesperada superfície líquida, seu corpo sendo capturado por aquele volume de água limpa e fria. O alívio por não ter acabado com os dois
fêmures saindo pelo topo dos ombros durou pouco. Após tantos choques elétricos, seus músculos torturados e hiperaquecidos imediatamente se retesaram com cãibras,
tudo se imobilizou, a ausência de gordura corporal transformando-o numa âncora, não numa boia.
O choque da queda inesperada fez com que ele enchesse os pulmões de ar, porém esse oxigênio não duraria muito. Precisava retornar à superfície.
Com mãos fechadas em garras e mobilidade em apenas uma perna, ele lutou e se debateu na direção que esperava que fosse para cima. Não tinha absolutamente nenhuma
orientação visual, nada além do abismo negro que o consumiria caso não se salvasse.
A superfície da piscina, da lagoa, do lago, do que quer que aquilo fosse, surgiu inesperadamente, sem aviso, surpreendendo-o da mesma forma que antes, quando mergulhara
nela. Tossir e inspirar eram duas atividades mutuamente excludentes, e ele teve que forçar seu primordial senso de sobrevivência a fim de regular as reações espasmódicas
do diafragma.
Cloro. Estavam numa piscina.
Não passou muito tempo pensando nisso. A dor das cãibras era inacreditável: era como se tivesse adagas cravadas nas coxas, nas nádegas, no abdômen, e ele começou
a afundar antes de recobrar o fôlego, e isso não seria nada bom. Acabaria morrendo assim.
Lutando contra os impulsos do corpo, usou a mente para sobrepujar o sistema nervoso simpático: inspirando uma enorme quantidade de ar e prendendo depois o fôlego,
mexeu os braços para fora e para baixo, criando uma correnteza artificial que correu pelo seu tronco na superfície da água. Depois parou… cacete… de se mexer.
E deixou o ar dentro dos pulmões ser o colete salva-vidas que não estava usando.
Não era uma boia perfeita. As pernas continuavam a afundar, e ele tinha que agitá-las de vez em quando para permanecer à tona, mas era infinitamente melhor do que
bater no fundo e se afogar.
De tempos em tempos, expelia o ar e voltava a inalar.
Não tinha certeza de quanto tempo aguentaria aquilo. Mas logo descobriria.
Deus… Seus músculos enrijecidos eram uma tortura a suportar e, para se distrair, reviveu os momentos no alto daquela passarela. Os Irmãos eram brilhantes, concluiu.
Ir do calor para aquele frio? Depois de todos os choques?
Era um ambiente planejado, garantido para colocá-los exatamente onde ele se encontrava: lutando contra as reações naturais do corpo a certos estímulos e ambientes.
O que estaria acontecendo com todos os outros?, imaginou.
Onde estaria aquela fêmea?
Não a que estivera com ele no alto… mas a outra? Paradise?
Enquanto a água obstruía os seus ouvidos, era como aquele espetáculo de luzes no ginásio, obscurecendo e depois permitindo estímulos sensoriais. Ouvia a agitação
da água, tanto perto quanto longe… Muitos gritos e arquejos de outros na piscina… ecos – deviam estar em um lugar amplo com um teto relativamente baixo e muitos
azulejos.
Libertando o ar nos pulmões, imediatamente os encheu outra vez…
… e esperou pelo que viria em seguida.

 

CONTINUA

Glossário de Termos e Nomes Próprios
Ahstrux nohtrum: Guarda particular com licença para matar, nomeado(a) pelo Rei.
Ahvenge: Cometer um ato de retribuição mortal, geralmente realizado por um macho amado.
As Escolhidas: Vampiras criadas para servirem à Virgem Escriba. São consideradas membros da aristocracia, embora sejam voltadas mais para assuntos espirituais que temporais. Têm pouca ou nenhuma interação com os machos, mas podem se acasalar com os Irmãos a fim de reproduzir sua espécie, segundo a orientação da Virgem Escriba.
Algumas têm a capacidade de predizer o futuro. No passado, eram utilizadas para satisfazer a necessidade de sangue de membros solteiros da Irmandade, e tal costume foi recolocado em prática pelos Irmãos.
Chrih: Símbolo de morte honrosa no Antigo Idioma.
Cio: Período fértil das vampiras. Em geral, dura dois dias e é acompanhado por intenso desejo sexual. Ocorre pela primeira vez aproximadamente cinco anos após a transição da fêmea e, a partir daí, uma vez a cada dez anos. Todos os machos respondem em certa medida se estiverem perto de uma fêmea no cio. Pode ser uma época perigosa, com conflitos e lutas entre os machos, especialmente se a fêmea não tiver companheiro.
Conthendha: Conflito entre dois machos que competem pelo direito de ser o companheiro de uma fêmea.
Dhunhd: Inferno.
Doggen: Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens seguem as antigas e conservadoras tradições de servir seus superiores, obedecendo a códigos formais no comportamento e no vestir. Podem sair durante o dia, mas envelhecem relativamente rápido. Sua expectativa de vida é de aproximadamente quinhentos anos.
Ehnclausuramento: Status conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia em resposta a uma petição de seus familiares. Subjuga uma fêmea à autoridade de um responsável único, o tuhtor, geralmente o macho mais velho da casa. Seu tuhtor, então, tem o direito legal de determinar todos os aspectos de sua vida, restringindo, segundo sua vontade, toda e qualquer interação dela com o mundo.
Ehros: Uma Escolhida treinada em artes sexuais.
Escravo de sangue: Vampiro macho ou fêmea que foi subjugado para satisfazer a necessidade de sangue de outros vampiros. A prática de manter escravos de sangue recentemente foi proscrita.
Exhile dhoble: O gêmeo mau ou maldito, o segundo a nascer.
Fade: Reino atemporal onde os mortos reúnem-se com seus entes queridos e ali passam toda a eternidade.
Ghia: Equivalente a padrinho ou madrinha de um indivíduo.
Glymera: A nata da aristocracia, equivalente à corte no período de Regência na Inglaterra.
Hellren: Vampiro macho que tem uma companheira. Os machos podem ter mais de uma fêmea.
Hyslop: Termo que se refere a um lapso de julgamento, tipicamente resultando no comprometimento das operações mecânicas ou da posse legal de um veículo ou transporte motorizado de qualquer tipo. Por exemplo, deixar as chaves no contato de um carro estacionado do lado de fora da casa da família durante a noite.
Inthocada: Uma virgem.
Irmandade da Adaga Negra: Guerreiros vampiros altamente treinados para proteger sua espécie contra a Sociedade Redutora. Resultado de cruzamentos seletivos dentro da raça, os membros da Irmandade possuem imensa força física e mental, assim como a capacidade de recuperarem-se rapidamente de ferimentos. Não é constituída majoritariamente por irmãos de sangue. São iniciados na Irmandade por indicação de seus membros. Agressivos, autossuficientes e reservados por natureza, vivem apartados dos vampiros civis e têm pouco contato com membros das outras classes, a não ser quando precisam se alimentar. Tema para lendas, são reverenciados no mundo dos vampiros. Só podem ser mortos por ferimentos muito graves, como tiros ou uma punhalada no coração.
Leelan: Termo carinhoso que pode ser traduzido aproximadamente por “muito amada”.
Lhenihan: Fera mítica reconhecida por suas proezas sexuais. Atualmente, se refere a um macho de tamanho sobrenatural e vigor sexual.
Lewlhen: Presente.
Lheage: Um termo respeitoso utilizado por uma submissa sexual para referir-se a seu dominante.
Libhertador: Salvador.
Lídher: Pessoa com poder e influência.
Lys: Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
Mahmen: Mãe. Usado como um termo identificador e de afeto.
Mhis: O disfarce de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
Nalla/nallum: Um termo carinhoso que significa “amada”/“amado”.
Ômega: Figura mística e maligna que almeja a extinção dos vampiros devido a um ressentimento contra a Virgem Escriba. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes, dentre os quais, no entanto, não se encontra a capacidade de criar.
Perdição: Refere-se a uma fraqueza crítica em um indivíduo. Pode ser interna, como um vício, ou externa, como uma paixão.
Primeira Família: O Rei e a Rainha dos vampiros e sua descendência.
Princeps: O nível mais elevado da aristocracia dos vampiros, só suplantado pelos membros da Primeira Família ou pelas Escolhidas da Virgem Escriba. O título é hereditário e não pode ser outorgado.
Redutor: Membro da Sociedade Redutora, é um humano sem alma empenhado na exterminação dos vampiros. Os redutores só morrem se forem apunhalados no peito; do contrário, vivem eternamente, sem envelhecer. Não comem nem bebem e são impotentes. Com o tempo, seus cabelos, pele e íris perdem toda a pigmentação. Cheiram a talco de bebê.
Depois de iniciados na Sociedade por Ômega, conservam uma urna de cerâmica na qual seu coração foi depositado após ter sido removido.
Ríhgido: Termo que se refere à potência do órgão sexual masculino. A tradução literal seria algo aproximado de “digno de penetrar uma fêmea”.
Rytho: Forma ritual de lavar a honra, oferecida pelo ofensor ao ofendido. Se aceito, o ofendido escolhe uma arma e ataca o ofensor, que se apresenta desprotegido perante ele.
Shellan: Vampira que tem um companheiro. Em geral, as fêmeas não têm mais de um macho, devido à natureza fortemente territorial deles.
Sociedade Redutora: Ordem de assassinos constituída por Ômega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
Symphato: Espécie dentro da raça vampírica, caracterizada pela capacidade e desejo de manipular emoções nos outros (com o propósito de trocar energia), entre outras peculiaridades. Historicamente, foram discriminados e, em certas épocas, caçados pelos vampiros. Estão quase extintos.
Transição: Momento crítico na vida dos vampiros, quando ele ou ela transforma-se em adulto. A partir daí, precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviver e não suportam a luz do dia. Geralmente ocorre por volta dos 25 anos. Alguns vampiros não sobrevivem à transição, sobretudo os machos. Antes da mudança, os vampiros
são fisicamente frágeis, inaptos ou indiferentes ao sexo, e incapazes de se desmaterializar.
Trahyner: Termo usado entre machos em sinal de respeito e afeição. Pode ser traduzido como “querido amigo”.
Tuhtor: Guardião de um indivíduo. Há vários graus de tuhtors, sendo o mais poderoso aquele responsável por uma fêmea ehnclausurada.
Tumba: Cripta sagrada da Irmandade da Adaga Negra. Usada como local de cerimônias e como depósito das urnas dos redutores. Entre as cerimônias ali realizadas estão iniciações, funerais e ações disciplinadoras contra os Irmãos. O acesso a ela é vedado, exceto aos membros da Irmandade, à Virgem Escriba ou aos candidatos à iniciação.
Vampiro: Membro de uma espécie à parte do Homo sapiens. Os vampiros precisam beber sangue do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano os mantêm vivos, mas sua força não dura muito tempo. Após sua transição, que geralmente ocorre aos 25 anos, são incapazes de sair à luz do dia e devem alimentar-se na veia regularmente.
Os vampiros não podem “converter” os humanos por meio de uma mordida ou transferência de sangue, embora, ainda que raramente, sejam capazes de procriar com a outra espécie. Podem se desmaterializar por meio da vontade, mas precisam estar calmos e concentrados para consegui-lo, e não podem levar consigo nada pesado. São capazes de apagar as lembranças das pessoas, desde que recentes. Alguns vampiros são capazes de ler a mente. Sua expectativa de vida ultrapassa os mil anos, sendo que, em certos casos, vai além disso.
Viajante: Um indivíduo que morreu e voltou vivo do Fade. Inspiram grande respeito e são reverenciados por suas façanhas.
Virgem Escriba: Força mística conselheira do Rei. Também é guardiã dos registros vampíricos e distribui privilégios. Existe em um reino atemporal e possui grandes poderes. Capaz de um único ato de criação, que usou para trazer os vampiros à existência.

 

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Capítulo 1
Casa de Audiências do Rei, Caldwell, NY
ALGUNS TIPOS DE FORMATURA aconteciam em particular.
Alguns desses marcos importantes para a fase seguinte em nossas vidas não incluíam chapéus e becas, nenhuma orquestra humana tocando “Pompa e Circunstância”. Não
havia um palco para atravessar, tampouco um diploma para pendurar na parede. Também não existiam testemunhas.
Algumas graduações eram marcadas por coisas simples, corriqueiras, nada especiais, como uma pessoa esticando a mão até o monitor da Dell para apertar o botãozinho
azul no canto inferior direito da tela. Uma ação tão comum, feita tantas vezes numa semana, num mês, num ano, mas, ainda assim, naquele momento em especial, um divisor
de águas.
Enquanto Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, Rei de todos os vampiros, estava sentada em sua cadeira de escritório
e encarava a tela preta diante dela. Inacreditável. A noite que ela tanto esperava estava quase chegando.
Em grande parte, as últimas oito semanas se arrastaram, mas nessas derradeiras noites tudo mudou, passando para um modo catapulta. De repente, depois de ter passado
por sete mil horas de espera para que a lua se erguesse no céu, ela sentia que queria que as coisas desacelerassem de novo.
O seu primeiro emprego agora já era coisa do passado.
Olhando por sobre a escrivaninha, rearranjou o aparelho de telefone em um centímetro. Endireitou o vitral com desenho de libélula da luminária da Tiffany. Certificou-se
de que as canetas azuis estivessem num porta-canetas e as vermelhas, num outro. Alisou a palma sobre a superfície limpa do mata-borrão e do topo do monitor.
A sala de espera estava vazia; as cadeiras forradas de seda, desocupadas; as revistas, ordenadas nas mesinhas auxiliares; os copos com as bebidas servidas pelos
doggens àqueles que ali estiveram, já retirados.
O último civil se retirara meia hora antes. O alvorecer seria dali a duas horas. Considerando-se tudo, era o fim normal de uma noite de trabalho duro, a hora em
que ela e o pai voltariam para a propriedade da família para desfrutar de uma refeição completa regada com conversas, planos e respeito mútuo.
Paradise se inclinou para a frente e espiou na curva do arco de entrada para a sala de estar. Do lado oposto ao vestíbulo, as portas duplas que antes davam para
uma sala de jantar formal da mansão estavam fechadas.
Sim, apenas mais uma noite normal, a não ser pela reunião informal que estava acontecendo ali. Assim que a última audiência terminara, seu pai fora chamado à sala
de audiências e aquelas portas foram fechadas.
Ele estava lá dentro com o Rei e dois membros da Irmandade da Adaga Negra.
– Não façam isso comigo – ela disse. – Não tirem isso de mim.
Paradise se levantou e começou a andar, reorganizando as revistas, reafofando as almofadas, parando diante do retrato a óleo de um monarca francês.
Voltou à arcada, olhou para as portas fechadas da sala de jantar, ficou atenta às batidas fortes do seu coração.
Erguendo as mãos, inspecionou os calos nas palmas. Eles não foram provocados pelo seu trabalho ali junto ao pai e à Irmandade nos últimos meses, organizando a agenda,
pesquisando casos, resoluções e acontecimentos subsequentes. Não, pela primeira vez na vida, ela vinha se exercitando. Levantando pesos. Correndo na esteira. Fazendo
step. Barras suspensas, flexões, abdominais. Remo seco.
Antes, ela sequer sabia o que era remo seco.
E tudo como preparo para a noite seguinte.
Desde que aquele grupo de machos na sala de audiências do Rei não lhe tirasse tal perspectiva.
Na noite seguinte, à meia-noite, ela deveria se juntar a outros machos e fêmeas sabe-se a Virgem Escriba onde, na qual ela tentaria passar pelo teste de aceitação
no programa de treinamento de soldados da Irmandade da Adaga Negra.
Era um bom plano. Algo que ela decidira perseguir, uma possibilidade de independência e de descer o cacete nos inimigos para provar que ela era mais do que simplesmente
o seu pedigree. O problema? Filhas de puro sangue da glymera, ainda mais de uma das Famílias Fundadoras, não treinavam para se tornar soldados. Não lidavam com adagas
e pistolas. Não aprendiam a lutar para se defender. Sequer sabiam o que era um redutor.
Tampouco se associavam com soldados.
Filhas como ela eram ensinadas a fazer ponto cruz, educadas em música clássica e canto, boas maneiras, e a administrar uma mansão repleta de doggens. Esperava-se
que elas entendessem o complicado calendário social e os ciclos dos festivais, mantivessem-se atualizadas no quesito guarda-roupa e soubessem diferenciar Van Cleef
& Arpels, Boucheron e Cartier. Eram ehnclausuradas, protegidas e adoradas assim como todas as joias o eram.
A única coisa perigosa que lhes era permitido fazer? Procriar. Com um hellren escolhido pela família a fim de garantir a santidade de suas linhagens.
Era um milagre que o pai estivesse permitindo que ela fizesse aquilo.
Definitivamente ele não estivera de acordo assim que ela lhe mostrara o formulário de inscrição. Mas acabara mudando de ideia, permitindo que ela se inscrevesse.
Os ataques ocorridos alguns anos antes, quando tantos vampiros foram assassinados pela Sociedade Redutora, provaram que Caldwell, em Nova York, era um lugar perigoso.
E ela lhe dissera que não era sua intenção sair para lutar nas ruas, só queria aprender a se defender.
Depois de apresentar a questão sob o ponto de vista de sua segurança? Foi então que seu pai mudou de ideia.
A verdade, no entanto, era que ela queria algo que fosse seu, apenas. Uma identidade originária de outro lugar que não somente aquela que o seu nascimento lhe forçava.
Além disso, Peyton lhe dissera que ela não conseguiria.
Porque era uma fêmea.
Ele que se danasse!
Paradise olhou uma vez mais para as portas.
– Vamos lá…
Andando de um lado para o outro, acabou indo parar no vestíbulo, mas não quis se aproximar muito do lugar onde os machos conversavam… Como se aquilo pudesse dar
azar.
Deus, o que estariam conversando ali?
Normalmente, o Rei saía assim que a última audiência se encerrava. Se ele e a Irmandade tinham assuntos particulares ou de guerra para discutir, isso era conduzido
na residência da Primeira Família, um lugar tão secreto que nem mesmo o seu pai era convidado a ir até lá.
Portanto, aquilo só podia estar acontecendo por sua causa.
De volta à sala de espera, foi até a escrivaninha e contou as horas em que estivera sentada ali. Fazia apenas uns dois meses que o emprego era seu, mas gostava
do trabalho. Até certo ponto. Ao se ausentar, desde que fosse aceita no programa de treinamento da IAN, uma prima sua assumiria seu posto, e ela passara as últimas
sete noites mostrando toda a rotina, explicando os procedimentos que ela própria estabelecera, a fim de garantir que a transição acontecesse de maneira suave.
Recostando-se na cadeira, abriu a gaveta do meio e pegou a sua inscrição, como se isso pudesse, de algum modo, garantir que aquilo ainda aconteceria.
Ao segurar o documento, ficou imaginando quem mais estaria na orientação da noite seguinte… E pensou no macho que aparecera ali na casa de audiências, em busca
de uma versão impressa do formulário de inscrição.
Alto, ombros largos, voz grave. Usando um boné de basebol do Syracuse e jeans puídos pelo que aparentava ter sido causado por trabalho de verdade.
A comunidade dos vampiros era pequena, e ela nunca o vira antes. Mas talvez ele fosse apenas um civil? Essa era outra mudança no programa de treinamento. Antes,
somente machos da aristocracia eram convidados a trabalhar com a Irmandade.
Ele lhe dera seu nome, mas recusara-se a apertar a mão dela.
Craeg. Era só o que ela sabia.
Contudo, ele não fora rude. Na verdade, até apoiara a sua decisão de enviar a inscrição.
Também fora… cativante de um modo que a chocara, a ponto de ela ter esperado semanas inteiras para que ele retornasse com o formulário em mãos. Ele não voltara.
Talvez o tivesse escaneado e enviado eletronicamente.
Ou, talvez, tivesse resolvido não se inscrever, no fim das contas.
Parecia loucura ficar desapontada com a possibilidade de nunca mais encontrá-lo.
Quando seu celular emitiu um trinado, ela se sobressaltou e pegou o aparelho. Peyton. De novo.
Ela o veria na orientação na noite seguinte, e isso já seria cedo demais. Depois da discussão que tiveram quanto a ela se juntar ao programa, ela teve que se afastar
daquela amizade.
Mas, pensando bem, e se a Irmandade se recusasse a admiti-la? A indignação que ela sentia em relação ao rapaz de nada serviria. Mas a questão era que era permitido
às fêmeas se inscreverem.
O problema maior era que não se tratava de uma fêmea “normal”.
Caramba, não sabia o que faria se o pai recuasse. Mas com certeza a Irmandade não esperaria até o último minuto para rejeitar a sua inscrição.
Certo?
Do outro lado da cidade, Marissa, a shellan vinculada do Irmão da Adaga Negra Dhestroyer, também conhecido como Butch O’Neal, estava sentada à sua escrivaninha
no Lugar Seguro. Quando a poltrona emitiu um rangido, ela bateu a ponta da sua caneta Bic no calendário que cobria a mesa e passou o telefone para a outra orelha.
Interrompendo a torrente de palavras, ela disse:
– Garanto que aprecio o convite, porém, não posso…
A fêmea do outro lado da ligação não perdeu o ritmo. Continuou falando, sua entonação aristocrática preenchendo o espaço, até parecer admirável que o bairro inteiro
não sofresse uma sobrecarga.
– … e consegue entender o motivo de precisarmos da sua ajuda. Será o primeiro Festival Dançante do Décimo Segundo Mês a acontecer após os ataques. Como shellan
de um Irmão e membro de uma das Famílias Fundadoras, você seria a anfitriã perfeita para tal evento…
Tentando dar mais uma chance à recusa, Marissa a interrompeu:
– Não sei se é de seu conhecimento, porém, eu trabalho em tempo integral como diretora do Lugar Seguro e…
– … e o seu irmão disse que você seria uma boa escolha.
Marissa se calou.
Seu primeiro pensamento foi o de que era quase improvável que Havers, o médico da raça e seu irmão muito, mas muito distanciado, a tivesse recomendado para qualquer
coisa que não fosse um túmulo precoce. O segundo envolvia exclusivamente cálculos matemáticos… Há quanto tempo não falava com ele? Dois anos? Três? Não desde que
ele a expulsara da casa deles, uns cinco minutos antes do nascer do sol, quando ficara sabendo do seu interesse por um mero humano.
Que acabaram descobrindo se tratar de um primo de Wrath e a encarnação da lenda do Dhestroyer.
Tá gostando de mim agora?, ela ouviu em sua cabeça.
– Dito isso, você tem que presidir o evento – concluiu a fêmea. Como se o assunto estivesse resolvido.
– Você precisa me desculpar. – Marissa pigarreou. – Mas o meu irmão não está em posição de oferecer o meu nome para nada, considerando que ele e eu não nos vemos
já há algum tempo.
Quando apenas um silêncio absoluto se fez na conversa, ela concluiu que devia ter mencionado os podres da família uns dez minutos antes: os membros da glymera observavam
um código de comportamento muito rígido, e expor a colossal fissura em sua linhagem, mesmo ela sendo amplamente conhecida, era algo que simplesmente não se fazia.
Era muito mais apropriado deixar que os outros cochichassem a respeito às suas costas.
Infelizmente, a fêmea se recobrou e mudou de tática:
– De todo modo, é de importância vital que todos os membros da nossa classe retomem os festivais…
Uma batida à porta do seu escritório fez com que Marissa desviasse o olhar.
– Sim?
No telefone, a fêmea exclamou:
– Maravilha! Você pode vir à minha propriedade…
– Não, não. Alguém está precisando de mim – ela disse mais alto. – Pode entrar.
No instante em que viu a expressão de Mary, imprecou. Não eram boas notícias. A shellan de Rhage era sempre absolutamente profissional, e para ela estar daquele
jeito? Era algum problema grave…
Aquilo na blusa dela era sangue?
Marissa deixou seu tom de voz mais grave e abandonou qualquer sinal de boa educação.
– A minha resposta é não. O meu trabalho consome todo o meu tempo. Além do mais, se está tão interessada nisso, você mesma deveria assumir o posto. Passar bem.
Recolocando o fone no gancho, levantou-se.
– O que aconteceu?
– Acabamos de acolher alguém que precisa de cuidados médicos imediatos. Não estou conseguido encontrar a doutora Jane e nem Ehlena em lugar nenhum. Não sei o que
fazer.
Marissa apressou-se para a frente da escrivaninha.
– Onde ela está?
– Lá embaixo.
As duas desceram as escadas correndo, Marissa na frente.
– Como ela chegou?
– Não sei. Uma das câmeras de segurança pegou a imagem dela no jardim, se arrastando.
– O quê?
– O meu celular disparou o alarme, e eu corri para fora com Rhym. Nós a carregamos até a sala de estar.
Fazendo a curva no andar de baixo, Marissa derrapou num dos tapetes.
E parou de pronto.
Quando viu a condição da fêmea sobre o sofá, levou a mão à boca.
– Ah, meu Deus… – sussurrou.
Sangue. Havia sangue em todo lugar, pingando no chão, encharcando as toalhas brancas pressionadas sobre os ferimentos, empoçando-se sob um dos pés da fêmea sobre
o carpete.
A jovem fora surrada tão violentamente que não havia como identificá-la, suas feições estavam inchadas e, se não fosse pelos cabelos longos e pela saia rasgada,
não saberia determinar o seu sexo. Um braço estava evidentemente deslocado, pendurado a partir do ombro… e ela só estava calçando o sapato de salto esquerdo, as
meias de seda rasgadas.
A respiração dela era muito, muito superficial. Apenas um ruído no peito, como se estivesse se afogando no próprio sangue.
Rhym, a supervisora, levantou o olhar de sua posição agachada ao lado do sofá. Em meio às lágrimas, sussurrou:
– Não acho que ela vá sobreviver. Como poderia…?
Marissa tinha que se recompor. Era a única opção.
– Não conseguiram localizar nem a doutora Jane nem Ehlena?
– Tentei na mansão – Mary respondeu. – Na clínica. Os celulares delas. Duas vezes em todos os lugares.
Por uma fração de segundo, Marissa se aterrorizou com o que aquilo podia significar para a sua própria vida. Os Irmãos estavam feridos? Butch estaria bem?
Isso durou apenas um segundo.
– Me dê o seu celular… E levem as residentes para o anexo Wellsie. Quero todas lá, para o caso de eu ter que trazer um macho.
Mary lhe passou o telefone e assentiu.
– Já vou cuidar disso.
O Lugar Seguro era exatamente isso: um espaço seguro para as fêmeas vítimas de violência doméstica em busca de abrigo e reabilitação junto a seus filhos. E depois
de Marissa ter passado incontáveis séculos inúteis na glymera, sendo apenas a noiva não reclamada do Rei, encontrara a sua vocação ali, a serviço daquelas que tinham
sido, na melhor das hipóteses, abusadas verbalmente, e na pior, tratadas de maneira horrenda.
Não era permitida a entrada de machos ali.
Mas, para salvar a vida daquela fêmea, ela teria que infringir a regra.
Atenda o telefone, Manny, pensou no primeiro toque. Atenda o seu maldito telefone…
Capítulo 2
NÃO ERA A IRMANDADE INTEIRA.
Na verdade, só havia dois Irmãos com o Rei.
Enquanto Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, filho de Wrath, pai de Wrath, entrava na sala de audiências para se postar diante de seu governante, estava muito
ciente da presença dos outros machos. Nunca vira aqueles machos serem outra coisa que não apenas protetores e civilizados, mas, levando-se em consideração que estava
para entregar sua única filha para eles, seus outros atributos mais evidentes eram como gritos na noite.
O Irmão Vishous o encarava com seus olhos de diamante que não piscavam. Aquelas tatuagens na têmpora esquerda pareciam particularmente sinistras, o corpo musculoso
envolvido em couro preto e coberto por armas. Ao seu lado estava Butch, também conhecido como Dhestroyer – um antigo humano com sotaque de Boston que fora infectado
por Ômega e deixado para morrer, só para se revelar um dos poucos a sobreviver a uma transição forçada.
Os dois raramente se desgrudavam, e era tentador atribuir-lhes os papéis de policial malvado e policial bonzinho. Naquele instante, contudo, o paradigma estava
alterado. Butch, o macho que tendia a sorrir e conversar com as pessoas, parecia ser aquele a quem evitar num beco escuro: seu olhar castanho estava estreitado e
decidido.
– Pois não? – Abalone disse ao Rei. – Posso servi-lo de algum modo?
Wrath afagou a cabeçorra aloirada de seu cão guia, George.
– Os meus rapazes precisam falar com você.
Ah, pensou Abalone. Já suspeitava do que aquilo se tratava.
Butch sorriu por um átimo de segundo. Como se desejasse antecipadamente atenuar a patada do que estava para sair de sua boca.
– Queremos ter certeza de que você sabe do que se trata o programa de treinamento.
Abalone limpou a garganta.
– Sei que isso é muito importante para Paradise. E espero que haja aulas de defesa pessoal no programa. Eu gostaria que ela ficasse… mais segura.
Esse benefício em potencial fora o único motivo que o ajudara a aceitar a discrepância entre aquilo que esperava para a vida dela e o que ela própria parecia escolher.
Quando não houve nenhuma resposta, Abalone olhou de um Irmão para outro.
– O que vocês não estão me contando?
Vishous abriu a boca, mas Butch levantou a mão para calá-lo.
– A sua função junto a Wrath vem em primeiro lugar.
Abalone se retraiu.
– Está dizendo que Paradise não poderá participar por causa da minha posição aqui? Santa Virgem Escriba, por que não nos disseram…
– Precisamos que entenda que o que vai acontecer não serão apenas aulas expositivas. Isto é um preparo para a guerra.
– Mas os candidatos não têm necessariamente que lutar nos becos durante o treinamento, correto?
– O que nos preocupa está aqui. – O Irmão indicou a sala. – Não podemos permitir que nada afete o seu relacionamento com Wrath e o que você faz para o Rei. Paradise
é bem-vinda no programa assim como qualquer outro, mas não se a perspectiva de ela desistir ou ser cortada puder criar tensão entre nós.
Abalone exalou aliviado.
– Não se preocupem com isso. Ela será bem-sucedida ou fracassará por mérito próprio. Não espero um tratamento especial para ela… E se ela não conseguir acompanhar?
Então terá que ser dispensada.
Na verdade, ainda que jamais dissesse isso em voz alta, ele tanto rezava quanto esperava que esse fosse o caso. Não queria que Paradise se desapontasse com seu
empenho, mas… a última coisa que queria era que sua filha fosse exposta a qualquer podridão – ou, Deus proibisse, que de fato tentasse combater na guerra.
Sequer conseguia imaginar essa última possibilidade.
– Não se preocupem – reiterou, olhando para os Irmãos e para o Rei. – Tudo ficará bem.
O Irmão Butch olhou para Vishous. Depois voltou a olhar para ele.
– Você leu o formulário de inscrição, certo?
– Ela o preencheu.
– Então não o leu?
– Isso é algo que ela está fazendo por conta própria. Como seu pai e tuhtor, eu deveria ter assinado?
Vishous acendeu um cigarro enrolado à mão.
– Talvez queira estar preparado, não?
Abalone assentiu.
– Estou. Juro, estou preparado.
Paradise era uma fêmea educada apropriadamente dentro das tradições da aristocracia. Vinha trabalhando em seu condicionamento físico nos dois últimos meses – de
fato, com bastante empenho –, e ele sentia a empolgação emanando dela enquanto concluía seu trabalho ali e se preparava para deixar o seu posto. No entanto, havia
boas chances de que depois da orientação na noite seguinte, quando o trabalho de verdade começasse, ela se visse desistindo… ou sendo dispensada.
Testemunhar o seu fracasso o mataria por dentro.
Mas antes isso a vê-la morrendo no campo de batalha só para provar que ela era muito mais do que aquilo ditado pela sua posição aristocrática.
Enquanto o par de Irmãos continuava a olhar para ele, Abalone abaixou a cabeça.
– Sei que não vai terminar bem para ela. Estou mais do que preparado para enfrentar isso. Não sou ingênuo.
Depois de um instante, Butch disse:
– Ok. É justo.
– Mais alguma coisa, meu senhor? – Abalone perguntou ao Rei.
Quando Wrath meneou a cabeça, Abalone fez uma reverência a cada um deles.
– Agradeço a preocupação. Paradise é o que tenho de mais precioso… É tudo o que me restou de minha amada shellan. Sei que ela estará em mãos justas e gentis amanhã.
Quando ele se virou para se retirar, os Irmãos continuaram sérios, mas, pensando bem, ele não sabia o que se desenrolava na guerra. E sempre havia algo acontecendo.
As lutas e as estratégias não eram coisas com as quais ele se envolvia, o que o deixava extremamente grato.
Assim como ficaria caso Paradise saísse do programa.
Na verdade, o que mais desejava era que a mahmen dela ainda estivesse viva. Talvez tudo aquilo fosse desnecessário se sua shellan estivesse presente para enfiar
um pouco de juízo na cabeça da jovem.
Abrindo as portas, ouviu um barulho na sala de espera.
– Paradise?
Ele caminhou pelo vestíbulo e, ao fazer a curva para entrar na sala de espera, sua filha se endireitava ao apanhar canetas vermelhas que derrubara da mesa.
– Está tudo bem? – ele perguntou.
O olhar dela encontrou o seu.
– Está? O senhor vai permitir que eu vá amanhã à noite?
Abalone sorriu, e tentou esconder a tristeza do olhar e da voz.
– Claro. Você está no programa, isso foi decidido meses atrás.
Ela correu para o pai e o abraçou, segurando-o com firmeza, como se estivesse convencida de que lhe negariam aquilo que ela tanto queria.
Abraçando a filha, Abalone teve leve ciência dos Irmãos e do Rei saindo pela porta da frente. Não prestou atenção neles.
Estava ocupado demais desejando poupar a filha de todo e qualquer desapontamento. No entanto, isso não estava entre as habilidades parentais que lhe foram concedidas
no momento de seu nascimento.
Ah, como queria que sua shellan estivesse ali e não no Fade.
Ela teria lidado muito melhor com tudo.
De pé junto à tão maltratada fêmea, Marissa fechou os olhos ao ouvir a voz gravada de Manny em sua caixa de mensagens pela terceira vez. Que diabos estava acontecendo
na clínica?
Bem quando ela estava prestes a ligar novamente, o seu telefone tocou.
– Graças a Deus! Manny? Manny?
Algo no tom da sua voz fez com que a fêmea se mexesse, o rosto ensanguentado se movendo ao encontro das almofadas do sofá. Deus, o chiado daquela respiração bastava
para que seu coração saísse do compasso.
– Não, é Ehlena – disse a voz ao seu ouvido. – Manny e Jane estão fazendo uma cirurgia de emergência em Tohr. Ele está com uma fratura múltipla no fêmur e eu tenho
que voltar para a sala de cirurgia. Algum problema?
– Quanto tempo isso vai demorar? – ela perguntou.
– Acabaram de começar.
Marissa fechou os olhos.
– Ok, por favor, peça que me liguem assim que puderem, por favor. Tenho um… – Virou-se de costas e abaixou a voz. – Tenho um trauma que acabou de chegar aqui. Não
sei se temos tempo suficiente.
Ehlena praguejou.
– Não podemos dispensar ninguém. Não pode ligar para Vishous? Ele tem treinamento médico, pode conseguir estabilizar o paciente.
Marissa tentou visualizar o Irmão entrando na casa. Não era a sua primeira escolha, e não por não confiar no macho. O melhor amigo do seu hellren era um vampiro
formidável em todos os sentidos.
A sua aparência é que era aterrorizante.
Mas, pensando bem, se todas estavam no Anexo Wellsie…
– Boa ideia. Obrigada.
– Pedirei que liguem para você assim que terminarem.
– Por favor, faça isso.
Encerrando a ligação, ela ligou para V. e foi atendida pela maldita caixa de mensagens.
– Merda.
Rhym perguntou ao pressionar uma toalha em um ferimento aberto no ombro da fêmea:
– Quando eles vêm?
O fim da noite se aproximava. V. poderia estar em trânsito entre os becos do centro de Caldwell e a mansão. Ou… poderia estar ocupado lutando contra o que quer
que tenha ferido Tohr daquela maneira.
Quando a fêmea deitada no sofá começou a tossir sangue, sua decisão foi tomada numa fração de segundo. A última coisa que desejava era pedir ajuda de seu irmão,
mas não poderia viver com sua consciência se seus problemas pessoais custassem a vida de alguém.
Marissa ligou para o celular de Havers que sabia de cabeça, com a esperança de que ele não tivesse trocado o número. Um toque… Dois toques…
– Alô? – atendeu sua voz.
– Sou eu. – Antes que houvesse espaço para um silêncio constrangedor ou sequer um olá, ela disse: – Temos uma emergência médica no Lugar Seguro. Preciso que venha
imediatamente, ou que mande alguém. Os médicos da Irmandade estão na sala de cirurgia e não temos muito tempo.
Houve uma ligeira pausa, como se o principal médico da raça estivesse passando do modo “pessoal” para o “profissional”.
– Levarei apenas um instante para chegar. É algum trauma?
– Sim. – Marissa voltou a abaixar a voz. – Ela foi surrada terrivelmente e… violentada. Há muito sangue. Não sei…
– Vou levar uma enfermeira. Já afastou os outros moradores?
– Sim.
– Destranque a porta da frente.
– Encontro você lá.
Foi só isso.
Pelo visto, o universo estava determinado a colocar o irmão no seu radar aquela noite. Primeiro aquele telefonema idiota da socialite, agora…
Marissa acenou para Rhym.
– A ajuda está a caminho.
Através do olho que não estava completamente obstruído pelo inchaço, a fêmea ferida tentou focar o olhar.
Marissa se inclinou na direção dela e tomou-lhe a mão ensanguentada.
– O meu irmão está vindo para cuidar muito bem de você.
Por um momento, ela se perguntou se deveria não ter mencionado que seria um macho que a trataria. Mas a fêmea não parecia estar compreendendo.
Santa Virgem Escriba, e se ela morresse antes da chegada dele?
Marissa se agachou, ajeitando o cabelo loiro atrás da orelha.
– Você está segura aqui e vai ficar tudo bem. – Aquele único olho aberto perscrutou o seu rosto. – Você tem algum parente para quem podemos ligar? Há alguém que
podemos mandar chamar para você?
A cabeça da fêmea se moveu de um lado para o outro.
– Não? Tem certeza? – O olho se fechou. – Pode me dizer quem fez isso com você?
O rosto se virou.
Merda.
Recuando, Marissa foi para o corredor na frente da casa. Havia janelas estreitas e compridas nas laterais da porta, e ela ficou olhando para o jardim. As árvores
que há poucas semanas estavam tão coloridas despejavam suas folhas rubras, douradas e amarelas, revelando os galhos espigados como os ossos de um cão magro demais.
Foi impossível não espiar o reflexo no espelho ao lado da porta e verificar se os cabelos estavam ajeitados e a maquiagem ainda se sustentava após uma jornada de
quase dez horas de trabalho.
Na época em que vivia com o irmão, usava vestidos de seda e joias pesadas, e os cabelos ficavam sempre bem penteados no alto da cabeça. Agora? Ela estava com calças
Ann Taylor, uma camisa com gola alta e um par de sapatos Cole Haan que usava para dirigir por serem confortáveis. Nenhuma joia a adornava exceto o pequeno crucifixo
de ouro que usava porque o deus de Butch era importante para ele e seu hellren lhe dera aquele colar em sua última celebração de Natal. Ah, e ela também estava com
um par de brincos de pérola nas orelhas.
Apesar de a transição de Butch ter sido induzida e do seu status como membro da Irmandade e parente do Rei, seu macho permanecia fundamentalmente humano, desde
seu sistema de crenças católicas e seu gosto por cinema e literatura até suas opiniões quanto ao que queria numa “esposa”, um resultado de sua criação em meio aos
Homo sapiens.
Tocando na correntinha de ouro no pescoço, franziu a testa quando lutou contra a necessidade de tirá-la porque seu irmão não a aprovaria.
Mas, convenhamos, quer o símbolo da sua vinculação estivesse ou não em seu pescoço, aquilo não mudaria absolutamente nada. Aos olhos do irmão, ela tomara um rato
cotó como hellren, e essa desgraça jamais seria perdoada.
Uma fração de segundo depois, duas sombras se materializaram do nada na calçada. Uma mais alta e masculina, vestindo um jaleco branco, a outra menor e feminina
num tradicional uniforme de enfermeira.
Quando se aproximaram e foram iluminados pelas luzes de segurança, Marissa esfregou as palmas suadas nas calças. Havers estava exatamente igual ao que sempre fora,
desde a gravata borboleta e os óculos de armação de casco de tartaruga até os cabelos escuros repartidos de lado, mantidos no lugar como um personagem de Mad Men.
No último instante, Marissa girou o crucifixo para a nuca e abriu a porta. Tentando não parecer nervosa, anunciou:
– Ela está na sala de estar.
Nenhum “olá, como tem passado?”, tampouco um “ei, já deixou de ser um cretino preconceituoso?”, mas, pensando bem, aquela era uma emergência médica, não uma visita
social.
– Marissa – disse o irmão, acenando com a cabeça e parando ao seu lado. – Esta é Cannest, minha chefe de enfermagem.
– É um prazer – disse educadamente a enfermeira.
Marissa assentiu para a fêmea.
– É por aqui.
Suas pernas estavam rijas ao acompanhá-los pela casa modesta com sua mobília comum. Por algum motivo absurdo, ela se visualizou como um flamingo, com os joelhos
virados para o lado errado. Nesse meio-tempo, todos os tipos de recordações fervilhavam sob a superfície do seu consciente, apenas o peso psíquico da tragédia que
se desenrolava na sala ao lado mantendo a tampa fechada sobre as suas emoções.
Seu irmão parou no arco de entrada da sala e entregou sua maleta de médico à assistente.
– A minha enfermeira fará a triagem, e me informará sobre as condições dela. Será melhor que um macho não faça esse primeiro exame.
Marissa deslizou o olhar para o de Havers pela primeira vez e notou que os olhos dele ainda eram do exato tom de azul dos seus. Como se isso pudesse mudar, não?
– É muita consideração da sua parte – ela comentou antes de olhar para a auxiliar. – Me acompanhe.
Na sala, a enfermeira foi direto para o sofá, e foi gentil com Rhym ao substituí-la ao lado da paciente. A vítima se mexeu como se reconhecesse uma presença nova
diante dela e depois gemeu quando teve a pulsação e a pressão examinadas.
Marissa ficou de lado, cruzando os braços sobre o peito, com a boca coberta pela mão. Os movimentos eram um bom sinal, disse a si mesma. Significavam que a pobre
moça ainda estava viva.
– Tome cuidado – ela disse de repente, quando a enfermeira apalpou o braço e lágrimas se misturaram ao sangue do rosto surrado.
Bom Deus, quem havia feito aquilo? Só podia ser um membro da raça… Não conseguia captar nenhum cheiro humano impregnado nela.
Marissa teve que baixar o olhar quando o exame se tornou mais íntimo, e gesticulou para que Rhym se juntasse a ela na arcada, como se protegesse a privacidade que
seu irmão já estava respeitando.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, a enfermeira conversou em voz baixa com a fêmea e aproximou-se deles, acenando para que Marissa a seguisse até onde Havers
aguardava com as mãos entrelaçadas atrás das costas. Ele curvou a cabeça enquanto ouvia o que a enfermeira dizia num tom baixo:
– Ela tem extensos danos internos – a fêmea relatou. – Terá que ser operada imediatamente para ter chances de sobreviver. O braço é o menor dos problemas dela.
Havers assentiu e relanceou para Marissa.
– Tomei a liberdade de providenciar um transporte. Ele deve chegar em aproximadamente quinze minutos.
– Irei com ela. – Marisa estava pronta para discutir. – Até encontrarmos um parente, serei sua thutora.
– Sim, claro.
– E arcarei com os custos do tratamento.
– Não será necessário.
– Certamente é necessário. Vou pegar as minhas coisas.
Afastando-se, ela falou com Rhym, depois apressou-se até o seu escritório e pegou o celular, a bolsa e o casaco.
Pensou em telefonar para Butch, pois havia a possibilidade de não conseguir voltar para casa, mas ainda não tinha certeza quanto a isso. E, infelizmente, se ela
ligasse para seu hellren toda vez que surgisse uma emergência no trabalho? Ela acabaria desgastando o toque de chamada do celular dele.
A meio caminho descendo a escada, ela percebeu que havia outro motivo para não falar com ele.
Aquilo era muito semelhante ao que acontecera com sua irmã.
E existia a possibilidade de ser exatamente a mesma coisa, caso a fêmea viesse a morrer em decorrência dos ferimentos.
Não, pensou ao voltar para o térreo. Ele já tinha muitos afazeres sem ter que disparar aquele gatilho em sua massa cinzenta uma vez mais.
– Estou pronta – disse ao irmão, como se o desafiasse a fazê-la mudar de ideia.
– A ambulância chegará em dois minutos. Terei que acompanhá-la também... Ela vai precisar se alimentar de sangue para ter alguma chance de sobrevivência.
Havers curvou-se ligeiramente e refez seus passos até a porta de entrada. Quando dobrou no corredor, Marissa sacudiu a cabeça.
A ideia de que ele daria o próprio sangue para ajudar uma fêmea desconhecida, que não devia passar de uma cidadã comum, era tanto incrível… quanto uma fonte de
frustração.
Que o macho pudesse ser tão gentil com seus pacientes e tão cruel com ela pessoalmente parecia-lhe uma contradição insuportável.
Mas assim era a glymera. Dois pesos, duas medidas em abundância.
E não raramente estavam acostumados a ferrar as filhas, as irmãs e as mães.
Capítulo 3
PARADO NO AMPLO E COLORIDO vestíbulo da mansão da Irmandade da Adaga Negra, Butch franziu a testa ao olhar para o celular. Consultara as horas em seu relógio de
pulso Audemars Piguet uns três minutos antes, mas imaginou que, quem sabe, o seu Samsung sei-lá-o-quê lhe desse uma resposta mais satisfatória.
Negativo.
E seu sétimo telefonema para Marissa tampouco fora atendido. Assim como os seis anteriores.
Ao longe, a conversa e os barulhos sutis da Última Refeição sendo consumida borbulhavam na sala de jantar.
Sem nenhum bom motivo, relembrou a primeira vez que ouvira sons como aqueles. Fora no que agora era a casa de audiências. Na época, era um detetive de homicídios
descontrolado e à procura de uma fonte de destruição completa a fim de dar cabo de vez à sua vida.
E foi então que um turbilhão de eventos inesperados aconteceu.
Beth foi a primeira a ser levada pelo vento, sua herança genética mista de meio humana, meio vampira tragando-a. Já a sua entrada fora algo completamente diferente.
Se forem sangrar o humano, teriam a gentileza de fazê-lo no pátio dos fundos?
– Conseguiu falar com ela?
Butch fechou os olhos ante a familiar voz masculina. Mesmo não sendo nem mesmo parcialmente verdade, às vezes ele sentia como se os resmungos ásperos de Vishous
estivessem em sua mente a vida inteira.
– Não.
Conforme o Irmão se aproximava, o cheiro de tabaco turco o antecedeu, e Butch inspirou fundo. Talvez tivesse ficado chapado por tabela, ou quem sabe fosse a presença
desagradável do maldito, mas o volume dos gritos de pânico em seus ouvidos diminuiu um pouco.
– Já ligou pro escritório dela no Lugar Seguro? – V. perguntou, exalando fumaça.
– Caixa postal. E liguei para a Mary também. Nada.
– Cacete…
O toque sutil do monitor de segurança fez com que sua cabeça guinasse. Quando viu a imagem na tela, avançou em direção à porta do vestíbulo, quase arrancando-a
das dobradiças.
– Ah, Deus… Por onde você andou…
Apossou-se de sua Marissa com tamanha velocidade e determinação que o resto das besteiras que saíam da sua boca se perdeu enquanto a abraçava.
– Desculpe – ela disse com a voz abafada. – Eu estava cuidando de um caso. Não me dei ao trabalho de te ligar porque quase não tinha tempo hábil para voltar para
casa.
Afastando-se um pouco, amparou-lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela.
– Você está bem?
– Sim, claro. E eu sinto muito…
Ele a beijou, estremecendo quando sentiu as mãos subirem por suas costas.
– Não, não. Sou eu quem pede desculpas. Só o que importa é que você está bem.
Diabos, o sol era algo aterrorizante. Um vampiro apanhado ao amanhecer não passava de uma fogueira com roupas, e por mais que Marissa estivesse bem protegida no
Lugar Seguro, coisas ruins podiam acontecer: os humanos eram idiotas imprevisíveis e os assassinos eram absolutamente letais.
Quando se separaram, ela sorriu.
– Estou bem, estou bem.
Ah, tá, ele pensou quando os olhos dela evitaram os seus.
Ele a puxou pelo braço.
– Vem comigo.
– Mas a Última Refeição já foi servida…
– E quem se importa?
Atraindo-a para a sala de bilhar, ele os teria fechado ali caso houvesse portas para se fechar.
– O que aconteceu? – exigiu saber.
Ela vagueou um pouco, seu corpo incrível transformando as roupas simples em alta-costura.
– Nada que já não tenha ouvido falar, infelizmente.
Butch fechou os olhos. Às vezes, odiava o trabalho dela. Odiava mesmo. Contudo, quanto mais difícil ele se mostrava, mais ela lutava, e por mais que o afetasse
vê-la cansada, abatida, até mesmo desencorajada vez ou outra, ele a respeitava pra cacete pelo que fazia pela raça. E nem tudo era ruim. Quando as pessoas que ela
ajudava voltavam a ter vidas independentes, sua shellan reluzia como o sol.
Os olhos dela passearam pelo cômodo, mas ele permaneceu concentrado nela. E, Jesus, mesmo depois de uma longa e extenuante noite, ela ainda lhe roubava o fôlego.
Sua beleza era lendária na raça, algo de que se comentava há gerações e ainda era reverenciado, e o motivo era evidente. O rosto era uma compilação de ângulos perfeitos;
a pele, suave e luminosa como uma pérola; os olhos azuis, da cor de uma manhã gloriosa; aqueles lábios, tão rosados e macios. E também havia o cabelo loiro passando
dos ombros e, sim, ah sim, a silhueta, do tipo que deixava os machos de joelhos – e os mantinha ali embaixo.
Às vezes ainda não acreditava que ela estava com ele. Ele. Um cara do sul de Boston, de origem irlandesa, com um dente da frente lascado, um passado ruim e uma
infinidade de vícios que não fora capaz de subjugar até antes de conhecê-la.
E também havia aquela merda de Ômega.
Todavia, sua shellan o amava, por algum motivo inexplicável.
– Você não está falando comigo – ele sussurrou, afastando o cabelo dela para as costas e massageando seu pescoço, seus ombros rígidos, seus braços tensos. – Você
sabe que detesto quando não sei o que está acontecendo.
Quando um coro de risadas explodiu do lado oposto ao vestíbulo, Marissa se aninhou nele, o quadril se chocando contra todo tipo de diversão.
E, que surpresa, a ereção foi instantânea, o pau engrossando e se alongando por trás da braguilha da calça de couro.
Envolvendo-o pelo pescoço, ela se apoiou nele e encostou os seios em seu peito.
– Não está com fome?
Rugindo no fundo da garganta, ele passou os braços por trás e a segurou pelas nádegas. Uma palma cheia em cada banda, nada mais, firmes como as de uma ginasta…
Ah, Deus, estava começando a suar.
Só que ele sacudiu a cabeça.
– Isso não vai funcionar. Você não vai me distrair…
Em seguida, porém, Marissa abriu a boca e estendeu as presas. Aproximando-se, resvalou os caninos no lábio inferior dele, a sensação da ponta afiada em sua pele
arrancando-lhe um gemido.
– Parece que você está precisando de alguma coisa – ela sussurrou ao encontro da boca dele. – Quer me dizer o que é? – A língua dela se esticou e abriu caminho
com uma lambida. – O que é, Butch? Pode me contar do que você precisa…
– De você – ele grunhiu. – Eu preciso de você.
Depois da transição, quando o corpo se desenvolveu por completo e se transformou naquela demonstração de poder, ele se acostumara às façanhas da força física, e
também àquela fraqueza ressonante no que se referia à sua fêmea e ao sexo. Precisara de mulheres de tempos em tempos na época em que fora estritamente humano, mas
nada comparado à luxúria estrondosa que Marissa lhe provocava num piscar de olhos. Num olhar. Num toque. Numa ou duas frases… Às vezes, bastava apenas a pura fragrância
de oceano dela…
Bum! Era como se alguém tivesse explodido seus miolos.
– Marissa…
Sua pélvis circundou a ereção dele e logo ela se distanciou.
– Vem cá.
Ela poderia ter mandado ele fazer uma série de coisas – fique de ponta-cabeça, raspe as sobrancelhas, arranque seu braço –, que ele teria obedecido em um átimo.
Segui-la? Com a possibilidade de fazê-la alcançar um orgasmo? Ou seis?
Sim, senhora, por favor, obrigado, como posso servi-la?
Marissa o conduziu para trás do bar e o empurrou contra as prateleiras de bebidas. Com mãos apressadas, correu os dedos até o zíper e, que Deus o ajudasse, ele
se agarrou à bancada de granito enquanto a via soltar cada um dos botões, a extensão da ereção forçando o tecido a se abrir conforme ela descia.
E logo ela o segurou.
– Caraaaaalho… – Sua cabeça pendeu para trás, mas ele queria olhar para ela…
Seu corpo inteiro vacilou quando a mão dela acariciou o mastro.
– Gosta de ver quando faço isso com você? – Ela o manejava com maestria, para cima e para baixo. – Gosta, Butch?
– Sim – ele sussurrou, expelindo a palavra. – Gosto… de te ver… com as mãos em mim…
– E quanto à minha boca?
As bolas dele se contraíram e um orgasmo disparou para a cabeça do pau, pronto para explodir, e isso foi antes de ela se ajoelhar diante dele, desaparecendo por
trás da proteção da frente do bar.
Não conseguiria aguentar muito, mas, que se foda, ele queria aquela sensação, aquele calor, a sugada úmida, mesmo que por um segundo só… Mas sem ver. Teve que fechar
os olhos. Se a visse assim, com a boca bem aberta, os lindos cabelos espalhados sobre sua calça de couro, o olhar azul encarando-o como se ela apreciasse o seu gosto…
O que, evidentemente, não podia ser verdade. Mas aquela seria uma mentira que ele não contestaria…
Quando o nome dela reverberou em sua garganta, aquela sucção era exatamente o que ele buscava, deslizante, suave, tão sensual que ele teve que abrir os olhos. Com
a cabeça para a frente, teve a visão desimpedida dos sofás de couro, das mesas de bilhar, da arcada de entrada. Se alguém por acaso aparecesse ali – algo improvável
por causa da Última Refeição –, só o veria com uma expressão pornográfica no rosto. Marissa estava escondida atrás da bancada longa e alta do bar. E outra notícia
boa? O cheiro da vinculação estava muito espalhado, os aromas picantes tão fortes que serviriam de alerta para o que estava acontecendo ali, e de que o pessoal precisaria
lhes dar um tantinho de privacidade.
Marissa trabalhou na cabeça e no tronco com a boca, fustigando-o do jeito que ele gostava, e ele fechou os olhos de novo – pensando nos Patriots jogando contra
os Giants… Naquilo que estava sendo servido na sala de jantar… Na possibilidade de Lassiter obrigá-los a assistir The Bachelor ou talvez a porra da Rachael Ray e
seu maldito azeite de oliva extravirgem no programa de culinária.
A imagem da pequena chef tirana foi o filtro que melhor funcionou, bloqueando parte das sensações, ou pelo menos o suficiente para não gozar em cima da sua shellan.
Na verdade, seu temor quanto a esse resultado funcionou ainda melhor.
Inferno do cacete, o horror que ele sentiria se gozasse na boca dela ou, Deus do céu, no rosto dela…
Não, não. Nada disso. Isso não aconteceria.
Despregando as garras da bancada atrás de si, desceu as mãos e, com gentileza, puxou-a pelos ombros.
– Para… – grasnou. – Você tem que parar agora.
As sensações abaixo da cintura estavam ficando tão fortes quanto uma detonação, a ponto de, apesar de todas as distrações e da sua vigilância, elas estarem bem
próximas de assumir o controle, submergindo-o em grandes ondas de êxtase de alta octanagem.
Cerrando os dentes, seu rosto se retorceu.
– Hora de parar… Hora de parar…
No último momento possível, ele forçou a cabeça dela para trás, girou o quadril para o lado e ejaculou sobre os armários onde grandes caixas com embalagens dos
peixinhos dourados da Pepperidge Farm eram guardados. Enquanto ele gozava, ela se debateu contra a pegada dele, como se quisesse voltar para a ereção, mas ele não
permitiu até que seu quadril parasse de se sacudir e seu corpo todo relaxasse.
– Você devia ter me deixado terminar – ela disse baixinho. – Você nunca me deixa ir até o fim.
Voltando a se concentrar em sua companheira, suspendeu o corpo dela, o pau ainda rijo topando contra os seios, o abdômen, as coxas…
O som da campainha do vestíbulo fez com que virassem as cabeças, e Butch refreou um xingamento. Jesus, como permitira que acontecesse num local tão público? Pareceu-lhe
uma ideia perfeitamente aceitável enquanto estivera cego pelo desejo, mas aquele não era lugar para uma dama como ela pagar um boquete para um sujeito insignificante
como ele, mesmo ambos estando vinculados.
Butch rapidamente alisou os cabelos dela e depois começou a fechar os botões da braguilha.
– Precisamos continuar isso em casa.
– Até que foi divertido.
– Não.
Enquanto Fritz abria a porta para Xhex e Trez, Butch voltou para a realidade.
– … está me devendo uma! – Xhex disse ao entrar.
– Devo mesmo – respondeu Butch. – Pode cobrar quando quiser.
Xhex o dispensou com um gesto, depois mirou nele com a ponta do dedo.
– Vou cobrar a sua promessa.
– É melhor mesmo.
Butch teve que sorrir, mas logo voltou a se concentrar em sua shellan.
– Deixe-me te alimentar. E depois te levar nua para a cama.
– Que bom. – Ela o beijou e depois se virou para limpar o que ele havia…
– Não. – Butch segurou as mãos dela sobre o papel toalha. – Eu faço isso.
Enquanto ele a afastava do caminho, sentia que era observado, mas a ignorou. De onde ele vinha, existiam dois tipos de mulheres, e a sua companheira pertencia à
categoria das que eram idolatradas.
Ele devia saber disso. Tivera mais do que sua cota de vadias.
A última coisa que jamais faria era desrespeitar a sua Marissa. Seria o mesmo que incendiar uma igreja, esquartejar a Mona Lisa, ou jogar um Porsche 918 numa ribanceira
sem motivo algum.
Portanto, não. Ela não limparia a sujeira que ele causara.
Marissa tinha mais com que se preocupar.
Visto que Butch insistiu em limpar tudo sozinho, saiu do seu caminho e balançou a cabeça. Nunca entendera suas manias em relação ao sexo, mas as aceitava. O que
mais restava fazer? Ele se recusava a discuti-las; toda vez que ela trazia o assunto à baila, o fato de afastar sua boca sempre que ele se aproximava do clímax,
não tinha papo.
Além disso, naquele instante, a questão recorrente entre eles estava lá embaixo em sua lista de prioridades.
A fêmea terrivelmente ferida mal saíra viva da mesa de operações, e Marissa só voltara para casa porque não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar sentada
do lado de fora da UTI, à espera da notícia da falência dos órgãos dela. Ou de que eles voltaram a funcionar sozinhos. Deus, a cirurgia lhe pareceu tão complicada
quando a enfermeira lhe explicara o procedimento, mas reparar os órgãos internos e remover o baço não levara mais do que uma hora.
Infelizmente, ela perdera sangue demais, e mesmo depois de Havers ter lhe dado a sua veia, os sinais vitais eram instáveis.
Quando seu irmão saíra da sala de operações, olhara diretamente nos olhos de Marissa e lhe disse que tinha feito o melhor que podia.
Deixando de lado seus assuntos pessoais, acreditou nele.
De fato, havia praticamente tragédia demais para suportar no caso. Era triste que ainda não soubessem o nome da fêmea, e ninguém tinha vindo procurar por ela. Abalone,
o Primeiro Conselheiro do Rei, verificara as mensagens de e-mail e a secretária eletrônica da casa de audiências a seu pedido. Também não houve nenhuma procura,
tanto na clínica como no Lugar Seguro.
A moça era um fantasma no sentido figurado… a caminho de possivelmente se transformar em um literalmente.
– Vamos? – Butch disse ao oferecer-lhe seu braço.
Marissa saiu de seus pensamentos e sorriu para o companheiro.
– Sim, vamos.
Segurando-o, caminhou ao seu lado pelo vestíbulo e entraram na sala de jantar formal. Depois do momento de privacidade que haviam acabado de ter, todo aquele falatório,
riso e movimentação parecia um fuso horário social completamente diverso, e ela se sentiu um tanto oprimida. Isso é que era capacidade máxima. Ainda que o pé-direito
fosse imenso, e o piso maior do que uma pista de boliche, com a mesa de doze metros centralizada repleta de Irmãos, suas shellans, e outros soldados e residentes
da casa, ali estava um alegre congestionamento.
Havia dois lugares vagos na extremidade oposta, e eles avançaram até lá, Butch puxando a cadeira para ela.
Quando se acomodou ao seu lado, ele se inclinou e a beijou na boca.
– Coma rápido.
– Pode apostar – ela disse, mesmo não estando com fome.
E, tinha que admitir, não estava com pressa de retornar ao Buraco. A verdade era que insistira em seduzi-lo porque sabia que era o único modo de evitar que seu
macho se preocupasse com ela.
Quando um prato com filé mignon foi depositado na sua frente por um doggen, Marissa remexeu nele, cortou pedaços de carne que não experimentou, revolveu o purê
de batatas, espalhou as vagens. E depois pegou seu copo de cabernet sauvignon e se recostou, observando a todos, ouvindo as suas histórias.
– … vai me obrigar a fazer?
Concentrando-se em seu macho enquanto ele falava, viu quando ele se inclinou ao redor de John Matthew para fazer essa pergunta a Xhex.
A lutadora gargalhou.
– É melhor mesmo você ficar com medo de mim.
– Qualquer um que não fique é um tolo.
– Ah, você diz coisas tão calorosas… E não tenho pressa alguma em cobrar o meu favor. É muito bom ter um macho como você me devendo.
Sem nenhum motivo, Marissa observou como o corpo de Xhex era potente, os ombros e o tronco entalhados com músculos ressaltados debaixo de sua camiseta colante enfiada
dentro das calças de couro pretas. Considerando-se os cabelos muito curtos e os olhos cinza-escuros, ela, definitivamente, era alguém que devia ser levada a sério.
Por outro lado, Marissa trajava suas calças de escritório e uma blusa saída de uma escola inglesa.
Enquanto Butch levantava a palma para um cumprimento, Xhex bateu a dela, produzindo um estalo alto o bastante apesar de todos os barulhos de fundo.
– É disso que estou falando! – Butch disse ao se recostar na cadeira. – Inacreditável.
– O que é? – perguntou Marissa.
– Xhex foi… Bem, antes de tudo, eu estava nesse beco… Hum, me deixe voltar um pouco na história. – Cortou o ar com a palma. – Na verdade, é muita coisa para explicar.
Resumindo, eu estava acuado com dois redutores na minha frente, e Xhex estava com o celular do JM quando mandei uma mensagem pedindo apoio. Ela apareceu num segundo
e… – Butch parou de repente e só balançou a cabeça. – É isso.
Marissa esperou que ele continuasse.
– É isso…? O que aconteceu?
Butch pigarreou e sorveu um gole do Lagavulin em seu copo.
– Não importa. Foi o de sempre, sabe?
– Você estava em apuros, não estava?
Ele bebeu mais um gole.
– No fim deu tudo certo.
– Graças a Xhex.
– Você não comeu nada.
Ela baixou o olhar para seu prato.
– Ah, é. Eu comi antes de sair do Lugar Seguro.
Os dois se calaram.
Enquanto farpas e piadas eram trocadas entre os Irmãos, Marissa se sentiu recuando, indo para trás de uma tela invisível que abafava os sons e os sentidos.
– Pronta para ir? – Butch perguntou pouco depois, quando as pessoas começavam a se levantar da mesa.
– Sim. Sim, claro. Obrigada.
No meio do caminho até o arco de entrada, Butch parou para falar com V., os dois aproximaram as cabeças e murmuraram algo. Nesse ínterim, Xhex saiu da mesa com
seu companheiro, a mão de John trafegando pelas nádegas firmes, apertando-as e trazendo-a para junto dele. Ele só tinha olhos para sua companheira, o corpo de guerreiro
obviamente necessitando de uma válvula de escape.
A resposta?
Xhex emitiu um grunhido, os olhos da fêmea se fixaram nos de John Matthew enquanto ela revelava suas presas, como uma leoa montando o cenário do que, sem dúvida,
seria uma maratona de sexo.
Evidentemente, ela também tinha umas arestas que desejava aparar com seu hellren.
– Estamos combinados para amanhã, então, certo? – V. disse ao oferecer a palma para Butch.
– Certo. – Butch segurou a mão do Irmão e suas cabeças se aproximaram uma vez mais, as vozes se abaixaram de modo que ela ouviu apenas trechos da conversa.
– Isso. Certo. Aham. Te vejo lá no Buraco?
– Pode apostar.
Butch deu um apertão no ombro enorme de Vishous antes de se virar para Marissa.
– Vamos?
– Aham.
Quando Marissa foi seguindo com ele, percebeu que ainda segurava seu copo de vinho.
– Espere, deixe-me colocar isto na mesa.
Indo contra a maré, sorriu para Autumn e Tohr, acenou com a cabeça para Payne e Manny e com a mão para Bella e Nalla do lado oposto da mesa. Inclinando-se sobre
o prato ainda cheio, mas todo remexido, abaixou seu copo e desejou que Fritz e sua equipe deixassem que todos os ajudassem a retirar a mesa.
Quando se virou, parou.
Butch estava parado sob a arcada, as pernas naquelas calças de couro afastadas, as sobrancelhas unidas. Nada daquilo era estranho. Mas ele pegara a enorme cruz
de ouro debaixo da camisa e estava mexendo nela, esfregando o peso entre seus dedos.
E um mau presságio a acometeu.
– Marissa? – uma voz feminina a chamou.
Sobressaltando-se, sorriu para Bella.
– Oi. Vi vocês do outro lado da mesa. Você não é uma gracinha? – Afagou a bochecha de Nalla. – Acho que é sim… Claro que é.
– Está pesada demais para ser carregada. – Bella se inclinou para baixo e deixou a filha de pé nas perninhas agora firmes. – E estou pensando em comprar tênis de
corrida.
– Para você ou para ela?
Nalla disparou, mas na metade do caminho seu pai já a seguia de perto. Mesmo que ele parecesse um monstro assustador com o rosto marcado por cicatrizes, o crânio
raspado e as tatuagens de escravo, Nalla riu deliciada, relanceando para trás e sorrindo para seu pai enquanto corria, corria e corria ao redor da mesa, desviando
dos doggens que retiravam os pratos.
– Preciso de Nikes para nós duas – Bella sorriu. – Escuta, eu queria conversar com você. Ouvi rumores de que você organizaria o Festival Dançante do Décimo Segundo
Mês…
– O quê?
Bella pareceu confusa.
– Espere, pensei que… Será que entendi errado?
– Não, tudo bem. – Maravilha. – O que você ia dizer?
– Eu só queria te dizer que gostaria de ajudar da forma que eu puder. Fiquei surpresa em ouvir que você assumiria a tarefa, mas entendo por que o fez. Nós precisamos…
Não sei, acho que é hora de a raça reestabelecer as tradições que davam certo. Havia muitas que de nada serviam, mas os festivais são importantes…
Um grito infeliz inundou a sala agora vazia quando Nalla tropeçou e foi amparada pelo pai bem a tempo.
– Droga, tenho que ir – disse Bella. – Ela tem sentido dores de crescimento. Vou te dizer, estes últimos dias não têm sido fáceis. Só se lembre de que estou aqui
para ajudar, ok?
Bella seguiu atrás da família, estendendo os braços para Nalla, que, por sua vez, esticou um bracinho para sua mahmen. O outro ficou com o pai… de modo que os três
ficaram unidos.
Sim, dores de crescimento eram uma fase difícil, Marissa concordou. Por algum motivo, os vampiros jovens passavam por estirões de crescimento intensos, em comparação
com o crescimento lento e constante até a altura adulta da qual os humanos se beneficiavam.
Apenas mais um aspecto divertido da espécie.
Assim como os festivais.
Marissa esfregou as têmporas ao voltar para junto de Butch.
– Deus, a minha cabeça está latejando.
– Está? – ele perguntou. – Bem, vamos levá-la para a cama.
– Boa ideia. Acho que preciso dormir um pouco.
– É, você me parece cansada.
– Estou mesmo.
E esse foi basicamente o fim da noite: dez minutos depois, ela já estava na cama, de olhos fechados, com as imagens das últimas horas pipocando em sua cabeça como
flashes de luzes estroboscópicas.
Enquanto Butch voltava para a sala de estar do Buraco.
Sozinho.
Capítulo 4
NA NOITE SEGUINTE, Paradise pegou o ônibus escolar.
Por assim dizer.
Na verdade, havia dois “ônibus”, cada um com aproximadamente trinta pessoas, e quaisquer semelhanças entre eles e o onipresente transporte amarelo dos mini-humanos
terminavam com o nome compartilhado. Os veículos que a Irmandade usou para apanhar os candidatos ao programa de treinamento pareciam saídos do filme O Ataque, todos
negros por dentro e por fora, com vidros escuros e grossos nas janelas, certamente à prova de balas, pneus como das máquinas limpa-neves e para-choques que a fizeram
lembrar dos dinossauros T-Rex.
Como todos os outros, ela se desmaterializara para um trecho de terreno vazio a oeste dos subúrbios de Caldwell. Seu pai quis acompanhá-la, mas lhe pareceu importante
começar da mesma forma como pretendia continuar. Aquela era a sua decisão independente; precisava fazer o que todos os outros faziam. E ela tinha bastante certeza
de que ninguém ali traria um acompanhante.
Ainda mais um acompanhante que, por acaso, era o Primeiro Conselheiro do Rei.
Ver quase sessenta pessoas que não reconhecia fora uma surpresa. Em retrospecto, o formulário deixara claro que qualquer um poderia se inscrever; portanto, havia
muitos civis. Na verdade, parecia que todos eram civis e a proporção machos/fêmea devia ser de dez para um.
Mas pelo menos seu sexo era permitido.
Voltando a se concentrar, Paradise se mexeu no banco para garantir que o cotovelo não importunasse o macho que estava sentado ao seu lado. Fora a troca de nomes
– o dele era Axe –, não disseram mais nada, e o jeitão calado e taciturno combinava com o seu visual à perfeição: o macho tinha “assassino” escrito em todo ele,
com aquele cabelo negro espetado, todos aqueles piercings negros de um lado do rosto e a tatuagem de algo maligno lhe subindo até a metade do pescoço.
Imagine só se seu pai soubesse que ela estava perto assim de um macho como aquele? Teriam que colocar Abalone num aparato de suporte de vida.
E esse era exatamente o motivo pelo qual desejou entrar no programa. Era hora de se desligar das restrições impostas por sua posição, e dar um fim à vida de flor
de estufa. Se trabalhar para o Rei lhe ensinara algo, foi que não importava a sua classe social, a tragédia não discriminava, a justiça sempre podia ser feita e
ninguém sai desta vida vivo.
– Então você vai mesmo seguir com isso.
Paradise olhou para o vidro escuro da janela ao seu lado. Refletido na superfície espelhada, Princeps Peyton, primogênito de Peythone, estava exatamente como ela
se lembrava: belo de uma maneira clássica, com aqueles intensos olhos azuis e os espessos cabelos loiros escovados para trás da testa. Estava usando óculos de sol
sem aro com lentes cor safira que eram a sua marca registrada para esconder o fato de que provavelmente estava doidão, e suas roupas caras e descoladas eram feitas
sob medida para ressaltar o corpo musculoso. Com uma voz aristocrática e rascante, e um cérebro que, de algum modo, conseguia contrabalancear todo aquele THC, ele
era considerado um dos solteiros mais cobiçados da glymera, uma mistura de Grande Gatsby com Jack Sparrow.
Ao inspirar fundo, ela sentiu o perfume da colônia dele e um resquício de fumaça.
– Como tem passado, Peyton? – murmurou.
– Você saberia se atendesse a porra do telefone.
Paradise revirou os olhos. Mesmo sendo apenas amigos, o maldito era completamente irresistível às fêmeas. E um dos seus problemas, dentre tantos, era o fato de
ele saber disso.
– Ei. Oooi? – ele a chamou.
Paradise se virou de frente para ele.
– Não tenho muita coisa para te dizer. Visto que você me reduziu a um par de ovários para reprodução, não deveria ser uma grande surpresa. Não tenho muito mais
a oferecer, não é mesmo?
– Pode nos dar licença? – ele pediu para o macho sentado ao lado dela.
– Pode crer. – Axe, o cara durão, saiu dali como se estivesse fugindo de uma bomba de fedor. Ou de uma fêmea grasnante com um vestido rosa repleto de laços e fitas.
Peyton se sentou.
– Já pedi desculpas. Pelo menos para o seu telefone. O que mais quer de mim?
Ela meneou a cabeça, pensando no primeiro ano após os ataques. Tantos da espécie deles foram mortos pela Sociedade Redutora durante aquele ataque horrendo à raça,
e os afortunados o bastante para escapar com vida abandonaram Caldwell, retirando-se para suas casas seguras fora da cidade, fora do Estado, fora da Nova Inglaterra.
Peyton fora para o sul com a família. Ela fora para o oeste com o pai. E os dois passaram dias incontáveis insones conversando pelo telefone só para permanecerem
sãos e processarem o medo, a tristeza, o horror, as perdas. Nesse tempo, ele se tornara alguém com quem ela conversava não apenas uma vez à noite, mas durante as
infindáveis vinte e quatro horas dos ciclos dos dias, das semanas, dos meses.
Ele se tornara a sua família.
Claro, se a época tivesse sido remotamente normal, eles não teriam se aproximado daquela maneira, ainda mais se o contato tivesse sido pessoal. Como fêmea solteira
de uma das Famílias Fundadoras, ela não teria permissão para confraternizar tão livremente com qualquer macho descompromissado sem uma acompanhante.
– Sabe todas aquelas horas que passamos ao telefone? – ela perguntou.
– Sei.
– Senti como se você fosse a minha retaguarda. Que você não me julgava quando eu estava com medo, ou fraca, ou nervosa. Você era… uma voz do outro lado da linha
que mantinha a minha sanidade. Às vezes, você era a única razão que me fazia suportar até o cair da noite. – Balançou a cabeça. – E então isto aconteceu, e você
veio pra cima de mim com toda essa asneira da glymera…
– Não, espere um instante…
– Você fez isso, sim. Riu de mim e me disse que eu não conseguiria. – Cobriu a boca dele com a mão para silenciá-lo. – Pare de falar, ok? Deixa eu desabafar tudo
que está entalado. Quem sabe você até tenha razão: pode ser que eu não consiga entrar no programa. Tudo bem, posso me estatelar de bunda no chão, mas tenho permissão
de estar aqui neste ônibus, e tenho a mesma oportunidade que todos os outros. E justo você, que sempre zombou das fêmeas idiotas da sociedade que a sua família tentou
empurrar para você, que me disse que considera os festivais estúpidos, que rejeitou as expectativas de negócios que o seu pai deposita em você… Você é a última pessoa
que eu pensei que viria me atacar com essas regras antiquadas.
Ele se recostou e a fitou por trás das lentes azuladas.
– Terminou? Acabou seu sermão?
– Para a sua informação, dar uma de engraçadinho não vai te ajudar em nada aqui.
– Só quero saber se você vai deixar essa merda feminista de lado e me ouvir de verdade.
– Tá de brincadeira?
– Você não me deu uma chance sequer de explicar. Está ocupada demais preenchendo o meu lado da conversa com todas essas asneiras de queimar sutiãs. Por que se dar
ao trabalho de deixar a outra pessoa participar da conversa quando você sozinha está se divertindo tanto sendo preconceituosa e superior? Nunca pensei que você fosse
assim.
Bem-vindo a um universo paralelo, Paradise pensou.
Antes que conseguisse se segurar, ela rebateu:
– E eu aqui pensando que você fosse apenas viciado. Não sabia que também era misógino.
Peyton balançou a cabeça e se levantou.
– Sabe de uma coisa, Parry? Você e eu temos mesmo que dar um tempo.
– Concordo plenamente.
Do alto de sua enorme estatura, ele baixou o olhar para ela.
– Que tremendo idiota eu fui em pensar que você iria precisar de um amigo nisto aqui.
– Alguém que deseja o seu fracasso não é um amigo.
– Eu nunca disse isso. Nem uma única vez.
Quando ele se virou, Paradise quase lhe berrou algo, mas o deixou se afastar. Não que uma conversa os fosse levar a algum lugar. Mas o que aconteceu, em vez disso?
Praticamente todo mundo estava olhando para eles.
Caramba, as coisas estavam começando mesmo com o pé direito.
Uma hora após o pôr do sol, Marissa se desmaterializou numa área de floresta do outro lado do rio Hudson. O vento frio que soprava em meio aos pinheiros a fez estremecer,
e ela fechou o casaco de lã Burberry bem junto ao corpo. Respirando fundo, suas narinas zuniram com a falta de umidade e o ar incrivelmente limpo do anticiclone
que soprava do norte.
Olhando ao redor, pensou que existia algo fundamentalmente fúnebre no mês de novembro. As coloridas folhas do outono estavam caídas e ressecavam no chão, a grama
e a vegetação rasteira estavam murchas e acinzentadas, e os alegres e falsamente convidativos flocos de neve ainda tinham que cair para criar o manto branco.
Era a transição medíocre entre uma versão fabulosa e a seguinte.
Aquilo não era nada além de frio e vazio.
Ao girar em volta, sua visão aguçada se fixou numa estrutura de concreto sem nenhum atrativo, uns cinquenta metros mais adiante. Com um único andar, sem janelas
e apenas uma porta azul-escura, parecia algo que a prefeitura de Caldwell construíra com o propósito de tratar a água e posteriormente abandonara.
Ao dar um passo à frente, um galho se partiu sob seu pé com um ruído, e ela se deteve, virando para trás para se certificar de que não havia ninguém atrás dela.
Maldição, deveria ter dito a Butch aonde ia. Porém, ele estava tão ocupado se preparando para a orientação dos novos recrutas que ela não quis incomodá-lo.
Tudo bem, disse a si mesma. Sempre haveria a Última Refeição.
Falaria com ele, então.
Cruzando a distância até a porta, suas palmas começaram a suar dentro das luvas, e seu peito ficou tão apertado que parecia que estava usando um corpete.
Deus, quanto tempo fazia que não vestia um desses?
Enquanto tentava calcular, pensou no tempo antes de conhecer Butch. Tivera todo o status, mas não uma posição que alguém da glymera poderia desejar. Na qualidade
de noiva prometida e não reclamada de Wrath, filho de Wrath, não passava de um fruto proibido, uma bela maldição, lastimada e evitada nos eventos e nos festivais
da aristocracia.
Contudo, seu irmão sempre cuidara dela, uma fonte de conforto na maior parte do tempo silenciosa, mas mesmo assim leal. Ele odiara o fato de Wrath tê-la sempre
ignorado a não ser quando precisava se alimentar e, no fim, esse ódio levara seu irmão a tentar matar o Rei.
Como se constatou mais tarde, aquele seria apenas um dos vários atentados à vida de Wrath.
Ela se arrastava e sofria em sua infeliz existência, sem esperar mais nada, meramente desejando poder viver a própria vida… até que numa noite conheceu Butch na
antiga casa de Darius. Seu destino mudara para sempre ao ver o então humano parado na sala de estar, o destino lhe dando o amor que ela sempre buscara, mas que jamais
tivera. No entanto, houve repercussões. Talvez como parte do equilíbrio ditado pela Virgem Escriba, todo esse bem viera a um grande custo: seu irmão acabou por expulsá-la
de casa e de sua vida momentos antes do alvorecer de certa manhã.
Que era o que acontecia quando a filha de uma das Famílias Fundadoras está namorando o que se acredita ser apenas um simples humano.
No fim, revelou-se que havia muito mais em Butch, claro, mas seu irmão não ficara por perto tempo suficiente para saber disso tudo. E Marissa não se importara.
Teria assumido o seu macho de qualquer forma que ele se apresentasse a ela.
A não ser pela vez em que se deparara com Havers numa reunião do Conselho, ela, de fato, nunca mais vira o irmão desde então.
Isto é, até a noite anterior.
O engraçado é que ela não desperdiçara tempo algum pensando no que um dia tivera, onde estivera, como vivera. Distanciara-se de tudo o que acontecera antes de seu
companheiro, vivendo apenas no presente e no futuro.
Agora, porém, ao passar pela soleira da nova clínica de ponta do irmão, percebeu que aquela ruptura definitiva não passara de uma ilusão. Só porque seguimos em
frente não significa que nos despimos de nossa história pessoal como quem troca de roupa.
O passado de alguém é como a própria pele: permanece com você por toda a vida, tanto as proverbiais marcas de beleza… quanto as cicatrizes.
No caso de Marissa, basicamente as cicatrizes.
Muito bem, onde estava a campainha? A recepção? Na noite anterior, entraram com a ambulância por uma entrada diferente… Mas Havers lhe dissera para vir por ali
se viesse se materializando.
– Veio se consultar com algum médico? – uma voz feminina perguntou por um alto-falante.
Sobressaltada, afastou os cabelos e tentou encontrar a câmera de segurança.
– Hum… Na verdade, não tenho hora marcada. Vim ver…
– Não tem problema, meu bem. Entre.
Houve um som metálico e uma barra surgiu na superfície da porta. Empurrando-a, ela emergiu num espaço aberto de uns 6 metros de largura por 6 de comprimento. Com
luzes embutidas no teto e paredes de concreto pintadas de branco, parecia a cela de uma prisão.
Olhando ao redor, ficou se perguntando…
O facho vermelho do laser era largo como a palma da mão, mas tinha a espessura de um fio de cabelo, no máximo, e ela o notou apenas pelo calor, e não por sua visão
tê-lo percebido. Percorrendo-a dos pés à cabeça com lentidão, ele procedia de um canto à direita, de um meio globo escuro afixado no teto.
– Por favor, siga em frente – a voz feminina disse por outro alto-falante escondido.
Antes que Marissa levantasse a questão de não haver lugar para ir, a parede diante dela se partiu ao meio e deslizou para os lados, desaparecendo para revelar um
elevador que se abriu silenciosamente.
– Que chique – disse baixinho ao entrar.
O trajeto durou mais do que o esperado e o elevador parecia se mover para baixo, por isso ela concluiu que não havia exagero em chamar a construção de subterrânea.
Quando o elevador por fim parou, a porta se abriu novamente e…
Trabalho, trabalho, trabalho, ela pensou ao sair.
Parecia haver pessoas por todos os lados, sentadas em cadeiras ao redor de uma TV de tela plana à esquerda, dirigindo-se a uma bancada de recepção à direita, movendo-se
apressadas pela imensa sala. Trajavam jalecos brancos e uniformes de enfermagem.
– Olá! Você tem hora marcada?
Levou um instante para ela perceber que uma fêmea uniformizada sentada atrás do primeiro balcão se dirigia a ela.
– Ah! Não, desculpe, não tenho. – Aproximou-se e baixou a voz. – Sou tuhtora designada de uma fêmea que foi transferida do Lugar Seguro na noite passada. Vim ver
como ela está passando.
No ato, a recepcionista ficou paralisada. Em seguida, os olhos percorreram Marissa de alto a baixo, como o feixe de laser no andar térreo.
Marissa sabia exatamente que narrativa estava se passando pela mente da fêmea: noiva não reclamada de Wrath, hoje vinculada ao Dhestroyer e, acima de tudo, a irmã
distanciada de Havers.
– Poderia avisar o meu irmão que estou aqui?
– Já estou ciente da sua presença – Havers disse atrás dela. – Eu a vi na câmera de segurança.
Marissa fechou os olhos por um breve segundo. E depois se virou para encará-lo.
– Como está a paciente?
Ele se curvou de leve. O que foi uma surpresa.
– Não muito bem… Por favor, venha por aqui.
Enquanto seguia seu jaleco branco em direção a uma pesada porta dupla fechada, tinha consciência dos muitos pares de olhos sobre eles.
Encontros familiares eram divertidos. Ainda mais em público.
Depois de Havers passar seu cartão por um leitor magnético, as portas metálicas se abriram para revelar um espaço médico tão sofisticado e intenso quanto qualquer
um imaginado por Shonda Rhimes:* quartos hospitalares repletos de equipamentos médicos estavam agrupados ao redor de um espaço administrativo central com enfermeiras,
computadores e vários tipos de suporte, enquanto três corredores partiam em direções diferentes para o que ela deduziu serem unidades de tratamento especializado.
E seu irmão administrava tudo aquilo sozinho.
Se Marissa não soubesse do que o irmão era capaz, ficaria maravilhada com ele.
– Esta é uma instalação e tanto – observou ao seguirem em frente.
– O projeto levou um ano, a construção mais do que isso. – Ele limpou a garganta. – O Rei tem sido muito generoso.
Marissa lançou-lhe um olhar de surpresa.
– Wrath? – Como se houvesse outro monarca! Dã! – Quero dizer…
– Eu presto serviços essenciais à raça.
Foi poupada de sustentar a conversa por mais tempo quando ele parou diante de uma unidade envidraçada que tinha as cortinas fechadas pela parte interna.
– Você precisa se preparar para isto.
Marissa olhou fixamente para o irmão.
– Até parece que eu nunca testemunhei o resultado de violência antes…
A ideia de que ele desejasse protegê-la de qualquer coisa àquela altura era ofensiva.
Havers inclinou a cabeça, desconcertado.
– Sim, claro.
Com um movimento, ele abriu a porta de vidro e depois afastou as cortinas verdes claras.
O coração de Marissa gelou, e ela teve que combater certa hesitação. Tantos tubos e máquinas entravam e saíam da fêmea que aquilo mais parecia um filme de ficção
científica, o comando daquele fiapo de vida assumido por funções mecânicas.
– Ela está respirando sem auxílio – Havers informou ao se inclinar e verificar a leitura de alguma coisa. – Retiramos o tubo de traqueotomia umas cinco horas atrás.
Marissa se recompôs e forçou os pés a se moverem até a cama. Havers estivera certo ao alertá-la… Mas o que ela esperava ver? Vira os ferimentos pessoalmente.
– Alguém… – Marissa se concentrou no rosto judiado. Os hematomas haviam descolorido o rosto ainda mais, grandes faixas de roxo e vermelho marcando as faces inchadas,
os olhos, a mandíbula. – Alguém da família… veio procurá-la?
– Não. E ela não tem se mantido suficientemente consciente para nos dizer seu nome.
Marissa se aproximou da cabeceira da cama. Os bipes e os sussurros suaves do equipamento pareciam altos demais, e sua visão estava nítida demais ao olhar para a
bolsa de soro pingando constantemente, e o modo como os cabelos castanhos da fêmea estavam emaranhados sobre a fronha branca, e a textura da manta azul sobre os
lençóis.
Curativos em toda parte, pensou ela. E isso apenas nos braços e ombros expostos.
A mão pálida e delgada estava apoiada ao lado do quadril, e Marissa esticou a sua para segurá-la. Fria demais, pensou. A pele estava fria demais e não tinha a coloração
correta: estava branca acinzentada, em vez de castanha dourada.
– Está voltando a si?
Marissa ficou confusa com o comentário do irmão, mas logo percebeu que os olhos da fêmea estavam tremelicando, as pálpebras inchadas se abrindo e fechando.
Inclinando-se na direção dela, Marissa disse:
– Você está bem. Está na clínica do meu ir… na clínica da raça. Está segura aqui.
Um gemido sofrido a fez se retrair. E depois houve uma série de murmúrios.
– O que disse? – Marissa perguntou. – O que está tentando me contar?
As sílabas foram repetidas com pausas nos mesmos lugares, e Marissa tentou compreender o padrão, desvendar a série de palavras, apanhar o significado.
– Repita uma vez mais…
De repente, os bipes ao fundo se aceleraram num alarme. E Havers afastou a cortina e escancarou a porta, gritando para o corredor.
– O que foi? – Marissa perguntou, curvando-se mais sobre o leito. – O que está dizendo?
Enfermeiras entraram apressadas, e um carrinho foi trazido. Quando alguém tentou se colocar entre ela e a paciente, Marissa sentiu vontade de lhes dizer que parassem,
mas logo a agitação no quarto prevaleceu.
A conexão entre Marissa e a paciente foi rompida, as mãos das duas se afastaram, e mesmo assim os olhos da fêmea permaneceram fixos em Marissa, mesmo quando mais
pessoas e equipamentos ficaram entre elas.
– Comece as compressões – Havers disse quando uma enfermeira subiu na cama. – Carregue a máquina.
Marissa recuou um pouco mais, ainda mantendo contato visual.
– Eu vou encontrá-lo – ouviu-se dizendo em meio à confusão. – Eu prometo…
– Todos para trás – Havers ordenou. Quando a equipe se afastou, ele apertou um botão e a caixa torácica da fêmea se arqueou.
O coração de Marissa batia forte, como se tentasse compensar o que fraquejava sobre o leito.
– Vou encontrar quem fez isso com você! – ela exclamou. – Fique conosco! Não desista! Nos ajude!
– Sem pulsação – Havers anunciou. – Vamos repetir. Afastem-se!
– Não! – Marissa gritou quando os olhos da fêmea se reviraram. – Não…!
Shonda Rhimes é roteirista, cineasta e produtora norte-americana, criadora, entre outras séries, do drama médico Grey’s Anatomy. (N.T.)
Capítulo 5
AQUILO ERA… UM COQUETEL?
Enquanto Paradise entrava no ginásio que parecia ser tão grande quanto um campo de futebol profissional, surpreendeu-se em ver doggens uniformizados segurando bandejas
de prata repletas de canapés com as mãos cobertas por luvas brancas, um bar montado sobre uma mesa com toalha adamascada e música clássica tocando ao fundo.
As sonatas de violino de Mozart.
Das que seu pai ouvia diante da lareira após a Última Refeição.
À esquerda, havia um balcão de inscrição, para onde, após um instante de aglomeração, todos os sessenta candidatos formaram uma fila diante de uma doggen com um
sorriso contente estampado no rosto e um laptop diante de si. Não querendo parecer alguém que desejava tratamento especial, Paradise entrou na fila e esperou pacientemente
até informar seu nome, confirmar seu endereço, ter sua foto tirada e seguir para o lado onde entregou o casaco e a mochila.
– Gostaria de um canapé? – um doggen lhe ofereceu.
– Ah, não, obrigada, mas agradeço a gentileza.
O doggen se curvou até a cintura e abordou o macho que estivera atrás dela na fila. Relanceando por sobre o ombro, cumprimentou com a cabeça o colega candidato,
e o reconheceu dos festivais que a glymera organizara antes dos ataques. Como todos os membros da aristocracia, eram primos distantes, apesar de não ter convívio
com ele nem com seus familiares.
Seu nome era Anslam, se bem se lembrava.
Depois de retribuir o aceno, ele enfiou um canapé na boca.
Girando sobre os calcanhares, Paradise deu uma olhada nos equipamentos de ginástica espalhados pelo espaço aberto. Barras paralelas, barras simples, colchões para
amortecer as quedas, um cavalo de alças, leg press… ah, que bom, eles também tinham um aparelho de remo seco.
Pelo menos não fracassaria num dos equipamentos.
Espiando por cima do ombro, descobriu que muitos dos recrutas pareciam se esquivar constrangidos dos doggens, como se nunca tivessem visto criados antes. Peyton
atacava os aperitivos com fervor… O que não era uma surpresa. E Axe, o assassino serial latente, estava na periferia de tudo aquilo, com os braços cruzados diante
do peito, os olhos inspecionando o cenário como se talvez escolhesse suas vítimas.
Ficou se perguntando o que significavam todas aquelas tatuagens… E os piercings?
Tanto faz.
E, puxa, veja só, parecia haver apenas uma única outra fêmea até o momento. Considerando-se a expressão forte como aço no rosto magro, e os ombros amplos, ela provavelmente
seria mais adequada ao programa do que boa parte dos machos ali.
Esfregando as palmas úmidas nas coxas, Paradise desvencilhou-se de uma sensação de desapontamento: aquele macho, Craeg, que fora à casa de audiências atrás de um
formulário de inscrição, não estava no grupo.
Mas, convenhamos, devia ser uma coisa boa. Ele se mostrara uma distração absoluta no instante em que se aproximara da sua escrivaninha; e ela precisaria de toda
a sua concentração para passar por aquilo.
Desde que aquela noite revolvesse em torno de algo além de canapés.
Onde estavam os Irmãos?, perguntou-se.
Um movimento chamou a sua atenção pelo canto do olho. Um dos machos saltara no cavalo com alças e lentamente girava a parte inferior do corpo em círculos enquanto
os braços impressionantes mantinham seu peso suspenso. O som das palmas batendo no couro formou uma batida que rapidamente acelerou mais e mais conforme sua velocidade
aumentava.
– Nada mal… – murmurou enquanto o tronco incrivelmente forte lançava as pernas para fora e ao redor num borrão.
Ele não perdeu o compasso. Nem uma única vez. E quanto mais ele girava, mais convencida ela ficava de que deveria ter passado oito anos na academia, e não apenas
oito semanas. E se o restante dos candidatos fosse como ele? Estava ferrada.
Mas, olhando bem, ela não parecia ser a única intimidada. A turma inteira parara de passear para olhar para ele, hipnotizada pela excelência da atuação solitária
naquele imenso ginásio.
Tum.
O som da porta se fechando fez com que ela olhasse por sobre o ombro… E arfou antes de se conter.
Lá estava ele, aquele por quem ela esperava, aquele que ela tinha esperanças de reencontrar.
Paradise afofou o rabo de cavalo, algum receptor ligado ao estrogênio enlouquecendo e fazendo-a regredir aos dezesseis anos, enquanto o macho se aproximava do balcão
de inscrição.
Mais alto. Ele era muito mais alto do que ela se lembrava. Mais largo também – seus ombros esticavam a costura do moletom do Syracuse. Mais uma vez, vestia calça
jeans, diferente da anterior, mas também com rasgos. O calçado era um par puído e sujo de Nikes. Estava sem boné desta vez.
Lindos cabelos negros.
Devia tê-los cortado recentemente, pois as laterais estavam tão batidas que ela via o couro cabeludo por baixo da penugem escura ao redor das orelhas e da nuca,
e o topo estava curto o bastante para ficar espetado. O seu rosto… Bem, não devia ser de parar o trânsito para outras pessoas, o nariz era um pouquinho grande demais,
o queixo, um pouco pontudo, os olhos, um pouco afundados demais para parecerem receptivos. Mas, para ela, ele era Clark Gable; era Marlon Brando; era o The Rock;
era Channing Tatum.
Era como se estivesse embriagada sem ter bebido, imaginou alguma química dentro dela transformando-o em algo muito além do que ele era.
Inspirando fundo, tentou captar seu perfume… E se sentiu uma perseguidora.
Bem, porque talvez fosse uma perseguidora.
Depois que tiraram a sua foto, ele se virou para o restante da turma, os olhos varrendo o grupo, sem demonstrar nenhuma reação. Ao longe, ela percebeu que a doggen
que os recepcionara arrumava seus pertences e partia, juntamente a todos os outros criados, que provavelmente se afastavam para voltar a encher as bandejas.
Mas será que ela se importava com isso?
Olhe para mim, ela pensou olhando na direção do macho. Olhe para mim…
E foi o que ele fez.
Seus olhos passaram por ela, mas, em seguida, voltaram e ali se detiveram. Quando um raio de eletricidade atravessou o corpo inteiro de Paradise, ela…
De repente, o ginásio ficou escuro.
Breu. Sinistro. Total.
De volta à clínica subterrânea de Havers, se Marissa não estivesse apoiada no vidro, teria caído.
Ainda mais quando viu o irmão puxar o lençol branco por cima da expressão congelada da fêmea.
Santa Virgem Escriba, não estava preparada para o silêncio da morte… Para como, quando Havers anunciou a hora do óbito, tudo e todos pararam, os alarmes silenciaram,
os esforços cessaram, a vida acabara. Também não estava preparada para a retirada do equipamento que tentara manter a fêmea viva: um a um, os tubos no peito, nos
braços, no abdômen foram removidos, assim como os eletrodos do monitor cardíaco. A última coisa que tiraram foram as faixas de compressão ao redor das canelas finas.
Marissa acompanhava perplexa a movimentação das mãos gentis das enfermeiras. Foram cuidadosas com a paciente na morte assim como haviam sido em vida.
Quando a equipe se preparava para ir embora, ela sentiu vontade de agradecer às fêmeas de roupas brancas e sapatos levemente rangentes. Dar-lhes a mão. Abraçá-las.
Em vez disso, ficou onde estava, paralisada pela sensação de que a morte ocorrida não deveria ter sido testemunhada por ela. Era a família que deveria estar ali,
pensou apavorada. Deus, onde encontraria a família dela?
– Sinto muito – Havers disse.
Marissa estava prestes a perguntar por que estava se desculpando com ela quando percebeu que o irmão se dirigia à paciente morta: estava curvado sobre o leito,
uma das mãos sobre o ombro inerte debaixo do lençol, as sobrancelhas franzidas por trás dos óculos de aro tipo casco de tartaruga.
Quando ele se endireitou e recuou, levantou os óculos e pareceu enxugar os olhos, ainda que, ao se voltar para ela, parecesse completamente composto.
– Cuidarei para que os restos dela sejam tratados adequadamente.
– E isso significa…
– Que ela será cremada de acordo com um ritual adequado.
Marissa concordou com um aceno de cabeça.
– Quero ficar com as cinzas dela.
Enquanto Havers assentia e ambos combinavam que ela apanharia as cinzas na noite seguinte, Marissa estava bem ciente de que seu tempo estava se acabando. Se não
se afastasse do irmão, daquele quarto, daquele corpo, da clínica… acabaria desmoronando diante dele.
E isso simplesmente não era uma opção.
– Se me der licença – ela o interrompeu. – Tenho que cuidar de alguns assuntos no Lugar Seguro.
– Sim, claro.
Marissa olhou para a fêmea, notando sem pensar as manchas vermelhas em alguns pontos do lençol, sem dúvida resultantes da remoção dos tubos.
– Marissa, eu…
– O que foi? – ela disse com voz cansada.
No silêncio tenso que se seguiu, ela pensou em todo o tempo que passara furiosa com ele, odiando-o, embora, naquele instante, não conseguisse reunir nenhuma dessas
emoções. Apenas ficou ali parada diante de seu parente, aguardando numa postura que não era nem de força nem de fraqueza.
A porta se abriu e a cortina foi afastada. Uma enfermeira, que não estivera envolvida na tentativa de reanimação da paciente morta, inseriu a cabeça pela abertura.
– Doutor, estaremos prontos em quatro minutos.
Havers assentiu.
– Obrigado. – Quando a enfermeira se afastou, ele disse: – Pode me dar licença? Eu preciso…
– Cuide dos seus pacientes. Pode ir. É o que você faz de melhor, e é muito bom nisso.
Marissa saiu do quarto, e depois de um instante de hesitação quanto a que direção tomar, lembrou-se de ir pela esquerda. Era mais fácil recobrar a compostura do
lado de fora e manter a máscara no lugar ao retornar para a recepção, com todos os olhares fixos nela quando ela partiu, como se a notícia tivesse se espalhado pelos
funcionários. Estranho não ter reconhecido nenhum rosto. Isso a fez perceber mais uma vez quantos haviam sido mortos nos ataques, e quanto tempo se passara desde
que circulara pelo ambiente de trabalho do irmão.
E como os dois, apesar dos laços sanguíneos, eram, essencialmente, estranhos um para o outro.
Pegando o elevador para subir à superfície, desembarcou no recinto parecido com uma cela da construção superior e seguiu caminho em direção à floresta.
Ao contrário da noite anterior, a lua brilhava forte, iluminando as árvores… e a ausência de qualquer estrada. Percebeu que, de fato, existiam entradas múltiplas
para o complexo subterrâneo, algumas para entregas, outras para pacientes que conseguiam se desmaterializar, e outra ainda para as ambulâncias.
Tudo isso logicamente projetado, sem dúvida segundo as diretrizes e influência do irmão.
Por que Wrath não lhe contara que estava ajudando Havers com tudo aquilo?
Pensando bem, isso não era da sua conta, era?
Será que Butch sabia?, perguntou-se.
Sinto muito.
Enquanto ouvia a voz do irmão em sua mente, sua raiva voltou multiplicada por dez, a ponto de ter que esfregar a queimação que sentia no esterno.
– Águas passadas não movem moinhos – disse a si mesma. – Hora de voltar ao trabalho.
No entanto, ela não parecia capaz de partir. De fato, a ideia de regressar ao Lugar Seguro fez com que quisesse seguir na direção oposta. Não poderia contar às
suas funcionárias o que acabara de acontecer. A morte da fêmea era como uma negação de tudo o que tentavam fazer debaixo daquele teto: interceder, proteger, educar,
fortalecer.
Não. Não conseguiria ir direto para lá.
A questão era… Não fazia ideia de onde ir.
Capítulo 6
NA ESCURIDÃO TÃO DENSA quanto a de um túmulo, Paradise só conseguia ouvir o próprio coração batendo forte atrás das costelas. Estreitando os olhos, tentou ajustar
a vista, mas não havia nenhuma fonte de luz em parte alguma: nenhum brilho ao redor das portas, nenhum sinal luminoso em vermelho indicando a saída, nenhuma luz
de emergência. O vazio era absolutamente aterrorizante e parecia desafiar as leis da gravidade, a sensação de que talvez estivesse flutuando no ar apesar de seu
peso permanecer sobre os pés a confundia e a nauseava.
A música clássica também não tocava mais.
Mas o ambiente estava longe de estar silencioso. Ao forçar os ouvidos a não priorizar as castanholas dentro do peito, conseguiu ouvir murmúrios, respirações, imprecações.
Alguns deviam estar se movendo um pouco, pois ouvia o farfalhar das roupas, os raspar dos calçados, como barulho de fundo para sons vocais mais proeminentes.
Eles não podem nos machucar, pensou. De modo algum a Irmandade os feriria de verdade. Sim, claro, assinara um termo de consentimento e de exoneração de culpa na
parte de trás da inscrição – não que tivesse dado muita atenção às letras miúdas – mas, de toda forma, assassinato era assassinato.
Não se podia assinar um documento abrindo mão do direito de permanecer vivo.
Aquilo só podia ser a Irmandade fazendo a sua grande entrada. A qualquer momento. Isso mesmo, eles surgiriam debaixo de algum holofote, suas silhuetas destacadas
como as de super-heróis contra um fundo de fumaça, seu incrível arsenal dependurado nos corpos imensos.
Aham.
A qualquer instante…
Enquanto a escuridão prosseguia, seu medo deu as caras de novo, e era muito difícil não ceder a ele e correr. Mas para onde ir? Tinha vaga noção de onde estavam
as portas, o bar e o balcão de recepção. Também se lembrava de onde aquele macho, Craeg, estava – não, espere, ele tinha se mexido. Estava se mexendo.
Por algum motivo, ela o sentia em meio a todos os outros, como se ele fosse algum tipo de farol…
Uma brisa passou pelo seu corpo, sobressaltando-a. Mas era apenas ar fresco. Uma corrente de ar fresco.
Bem, isso excluía a possibilidade de uma queda de energia, se o sistema de ventilação estava funcionando.
Ok, era ridículo.
E, evidentemente, não era a única se frustrando ali. Outros praguejavam mais, se movimentavam mais, batiam os pés no chão, impacientes.
– Prepare-se.
Paradise gritou na escuridão, mas se acalmou ao reconhecer a voz de Craeg, seu cheiro, sua presença.
– O que disse? – sussurrou.
– Prepare-se. É aqui que o teste começa. Abriram uma saída, a pergunta é como nos farão ir até lá.
Ela desejou parecer tão esperta e calma quanto ele.
– Por que simplesmente não voltamos pelas portas que usamos para entrar?
– Não é uma boa ideia.
Bem nessa hora, ocorreu uma movimentação coordenada na direção pela qual entraram, como se um grupo tivesse se formado, concordado com uma estratégia, e colocasse
o plano em ação.
E foi nesse instante que ela ouviu os primeiros gritos da noite.
Agudos, e evidentemente de dor, não de surpresa, os sons horríveis vinham acompanhados de um zunido que ela não compreendia.
Às cegas, literalmente, esticou a mão e segurou Craeg… Só que pegou na extensão dura e plana do seu abdômen e não no braço.
– Ah, Deus… desculpe, eu…
– Eletrificaram as portas – ele disse, sem comentar a gafe dela, tampouco seu pedido de desculpas. – Podemos concluir que nada aqui é seguro. Bebeu o que serviram?
Comeu alguma coisa daquelas bandejas?
– Hum… Não, eu…
Da esquerda, ouviram o som inconfundível de alguém vomitando em meio ao caos. E dois segundos depois, como um passarinho respondendo a um trinado da sua espécie,
outra pessoa começou a vomitar.
– Eles não podem nos fazer passar mal – ela disse de súbito. – Espere, isto é… isto é uma escola! Não podem…
– Isto aqui é sobrevivência – disse o macho com seriedade. – Não se engane. Não confie em ninguém, ainda mais se for algum suposto professor. E não tenha esperanças
de passar por isto, não por ser uma fêmea, mas porque os Irmãos vão estabelecer um padrão tão alto que somente dez de nós terão uma chance de ainda permanecer de
pé até o fim da noite. Quando muito.
– Não pode estar falando sério.
– Preste atenção – ele disse. – Ouviu isto?
– Os vômitos? – O estômago dela se revolveu em empatia. – Difícil não ouvir.
Difícil suportar o cheiro também.
– Não, o tique-taque.
– O que… – E foi aí que ela também ouviu… ao fundo, o equivalente sonoro a alguém se movendo atrás de cortinas, havia um tique-taque ritmado. – O que é isso?
– Não nos resta muito tempo. O intervalo entre os ruídos está ficando cada vez mais curto. Boa sorte.
– Aonde você vai? – O que ela queria dizer era: não me deixe. – Aonde…
– Vou atrás do ar fresco. É para lá que todos irão. Não toque nos aparelhos de exercício. E, como já disse, boa sorte.
– Espere! – Mas ele já se afastara, um fantasma sumindo na escuridão.
De repente, Paradise se sentiu completamente apavorada, seu corpo tremia incontrolavelmente, as mãos e os pés entorpecendo, suor frio se formando em cada centímetro
quadrado de sua pele.
Papai estava certo, pensou. Não posso fazer isto. No que eu estava pensando…
E foi nesse momento que tudo começou.
Do alto e de todos os lados, aconteciam explosões como se o ginásio tivesse sido preparado para ser detonado. Os sons eram tão altos que seus ouvidos os registraram
como dor, não apenas barulho, e os flashes de luz tão brilhantes que ela passou de uma versão da cegueira para outra.
Gritando em meio ao caos, ela levou as mãos aos ouvidos e se abaixou, procurando cobertura.
À frente dela, viu pessoas no chão, algumas num agachado defensivo como o seu, outras vomitavam, e junto àquelas portas, pessoas se retorciam e abraçavam a si mesmas
apertado, como se a dor fosse grande demais para permanecerem de pé.
Só havia uma pessoa de pé se movimentando.
Craeg.
Nos flashes intermitentes, ela acompanhou seu avanço para o canto oposto. Sim, parecia existir uma abertura, uma porta que ofereceria nada além de mais escuridão…
Mas devia ser melhor do que ser explodido.
Deu um punhado de passos à frente, mas logo percebeu que aquilo seria uma cretinice. Correr. Ela precisava correr. E não havia nada detendo-a, e ela não queria
ser atingida pelos destroços que caíssem.
Não toque nos equipamentos.
Levando-se em consideração o que acontecera com aqueles que tentaram sair pelas portas metálicas? Só podia ser verdade.
Foi um grande alívio disparar adiante, porém ela teve que diminuir o passo porque sua visão não conseguia acompanhá-lo; ela precisava esperar pelos flashes de luz.
Era o único modo de avançar com segurança.
Pense numa caminhada desajeitada. Tropeços, arrastos, escorregadas, ela começou a abrir caminho em meio ao barulho e à luz atordoantes, à ameaça à sua vida, ao
terror que a acompanhava.
Acabara de entrar no labirinto de equipamentos quando se deparou com a primeira pessoa caída no chão. Era um macho que gemia e apertava a barriga. Seu instinto
foi o de tentar ajudá-lo, mas conteve-se.
Isto aqui é sobrevivência.
Algo passou zunindo por sua orelha – uma bala? Estavam atirando neles?
Jogando-se no chão, foi deslizando pelo chão escorregadio de barriga, e depois foi avançando agachada em meio ao tremendo caos.
Estava indo bem até chegar ao macho seguinte que estava deitado se contorcendo, os braços agarrados ao abdômen.
Era Peyton.
Continue, disse a si mesma. Vá para a segurança.
Enquanto outra explosão acontecia, bem do lado direito da sua cabeça, ela grudou a barriga no chão e gritou em meio à confusão:
– Merda!
Enquanto Craeg, filho de Brahl, o Jovem, avançava pelo ginásio, surpreendeu-se com o fato de que deixar aquela fêmea para trás o incomodasse tanto. Não a conhecia,
não lhe devia nada. Ela era Paradise, a recepcionista da casa de audiências do Rei, aquela que lhe entregara o formulário de inscrição impresso havia várias semanas.
De que ele precisava por ser pobre demais para ter acesso à internet, quanto mais a um computador e uma impressora.
Lá naquela sala, ela se mostrara… deslumbrante demais para que ele a fitasse. E quando ficou sabendo que ela queria participar do programa? A única coisa que lhe
passou pela mente era o que os humanos poderiam fazer com ela caso a apanhassem. Ou os redutores. Ou o tipo errado de vampiro.
Alguém tão linda quanto ela não estava segura neste mundo.
Entretanto, ela parecia ingênua quanto à severidade das provas que todos enfrentariam como trainees. Os Irmãos haviam orquestrado cada parte daquele ambiente. Nada
fora deixado ao acaso, e nada aconteceria a favor dos candidatos. Dizer a ela o que ela já deveria saber pareceu-lhe o único modo de ajudá-la de alguma maneira,
mas não poderia desperdiçar sequer um instante se perguntando o que podia ter acontecido com ela.
Precisava era se concentrar nos flashes.
Ainda que a princípio parecessem aleatórios, na verdade existia um padrão sutil neles, e assim como os tique-taques antes que o show de barulhos e luzes começasse,
os intervalos estavam ficando cada vez menores; portanto, seu tempo estava acabando.
Não fazia ideia de qual seria a segunda fase, mas sabia muito bem que era bom estar preparado para ela.
Pelo menos nenhum deles morreria.
Apesar da atmosfera de perigo, ele tinha a sensação de que a Irmandade não feriria nenhum deles de verdade. As “explosões” eram apenas muito barulho e luzes: não
havia destroços, nenhuma estrutura estava caindo, não havia cheiro de fumaça. Do mesmo modo, o que quer que estivesse fazendo mal às pessoas não devia ser algo fatal.
Os camaradas deitados no chão não estavam num momento feliz em suas vidas, claro, mas em meio aos flashes, ele notou que os primeiros a caírem já estavam ficando
de pé.
Aquele era um teste, um teste elaborado e só Deus sabia quanto duraria e, pelo andar da carruagem, a proporção de sucesso entre os candidatos devia ser ainda mais
baixa do que aquela que dissera a Paradise.
Craeg parou e olhou para trás por um segundo. Não conseguiu evitar.
Contudo, não havia como saber onde ela estava no meio daquela confusão. A luz não se sustentava por tempo suficiente e havia muitos corpos ali.
Apenas siga em frente, disse a si mesmo.
Já fez isso antes, vai fazer hoje de novo.
Seguindo em frente, abriu seu caminho ao largo dos equipamentos de exercício. Não era uma boa ideia tentar se proteger atrás deles. De tempos em tempos, ele via
pelo canto dos olhos alguma pobre alma tentar isso, só para parecer ser eletrocutada, os corpos se retorcendo em ângulos esquisitos na luz estroboscópica ao serem
lançados para trás e caírem.
Desejou muito que ela tivesse lhe dado ouvidos.
Abaixando a cabeça e se movimentando com rapidez, acabou chegando à porta de entrada do lado oposto. O cheiro de ar fresco era inebriante, um respiro que renovou
as forças do seu corpo. Mas ele não conseguia enxergar o que havia do outro lado, e recriminou-se por não ter dado razão ao impulso de trazer uma lanterna consigo.
Ok, tudo bem, então nem ele mesmo imaginara que as coisas ali podiam ficar tão intensas.
– É por aí que temos que ir.
Ao som daquela voz grave, ele olhou para trás, e ficou surpreso ao ver uma fêmea parada tão perto dele. Não era a loira adorável, nem perto disso. Na verdade, aquela
parecia sugerir que o termo “sexo frágil” era um grande equívoco de nomeação. Era quase tão alta quanto ele, musculosa debaixo das roupas de ginástica e, pelo modo
como o encarava direto nos olhos, ele entendeu que ela era tão inteligente quanto forte.
– Craeg – apresentou-se, estendendo a mão.
– Novo.
Como esperado, o aperto de mãos foi breve e forte.
– Agora vem isso. – Ela apontou para o vazio com a cabeça. – Por que diabos eu não trouxe a minha lanterna?
– Acabei de pensar a mesma coisa…
– Por aqui! – alguém exclamou. – É por aqui!
Em meio à luz forte, Craeg viu um grupo de três machos disparando pela passagem, conduzido por um grandalhão que trazia uma expressão de triunfo antecipado no rosto,
que Craeg tinha muita certeza que não duraria muito tempo mais.
Craeg sacudiu a cabeça e recuou um passo. Qualquer que fosse a maneira de entrar ali, não seria em disparada. Pelo que sabiam…
Um… Dois… Três… O trio passou por ele e pela fêmea, que havia parado ao seu lado.
De súbito a porta se fechou num baque forte. Em seguida, gritos do lado oposto.
Craeg olhou ao redor. Talvez outra saída fosse aberta? Ou talvez devesse pensar mais amplamente? Seria possível existir outra resposta…
Naquele instante, viu um par de cordas penduradas do teto uns nove metros mais à frente. Podia jurar que elas não estavam ali antes… Quem podia saber?
– Essa é a próxima opção – comentou.
– Vamos lá.
Os dois se afastaram, correndo ao redor dos equipamentos, na direção das cordas antes que mais alguém o fizesse. Não havia como saber onde elas os levariam, não
dava para enxergar tão alto, mas as luzes pipocavam com maior intensidade, e não havia opção.
– Pedra, papel, tesoura para ver quem vai escolher antes – ela disse, mostrando o punho.
Ele fez o mesmo.
– Um, dois, três. – Craeg escolheu pedra; ela, papel. – Você escolhe.
– Ok.
Craeg segurou a da esquerda e puxou com tanta força que suas palmas arderam. Parecia ser forte o bastante. Mas e se estivesse errado? A queda seria bem longa, e
não havia acolchoados embaixo.
Ele e a fêmea avançaram lado a lado, segurando, puxando, usando os pés para prender a ponta solta que deixavam para trás ao subirem. E ela era quase tão rápida
quanto ele, não que gastasse muito tempo para medir o seu progresso. Para cima, para cima, para cima… Até que os alto-falantes dos quais saíam os barulhos de explosão
estivessem logo acima da sua cabeça e as caixas de luz que geravam os flashes brilhantes os cegassem logo adiante.
– E agora? – exclamou quando estava a menos de dois metros do teto.
– Andaimes – ela gritou de volta, mudando de mão na corda e apontando.
E lá estava algum tipo de passarela suspensa por fios de metal. Olhando para baixo, rezou mais uma vez para que a plataforma fosse forte o bastante para suportar
o peso.
– Vou na frente.
– Pedra, papel, tesoura – ela gritou. – Um, dois, três.
Ele escolheu tesoura; ela, papel.
– Eu primeiro – ele anunciou.
Só que a passarela ainda estava um tanto distante, mesmo quando ele chegou à sua altura. Segurando-se à corda grossa, usou a parte inferior do corpo para criar
um movimento pendular… que passou a um balanço completo. Seria necessária uma perfeita cronometragem para fazer aquilo do jeito certo, teria que soltar as mãos por,
pelo menos, um metro e meio em pleno ar, sem rede de proteção embaixo. E quem é que sabia o que encontraria ali quando aterrissasse?
Mais metal com corrente elétrica correndo por ele?
Craeg avançou com a pelve uma vez mais, ergueu os joelhos e afastou o peso da passarela; em seguida, quando o movimento o levou para a frente uma vez mais, ele
arqueou as costas e jogou os pés adiante.
E, bem na hora certa, soltou a corda, desistindo da segurança que ela oferecia.
Pelo menos, ele desejou que fosse na hora certa.
Capítulo 7
– LEVANTA, PEYTON! LEVANTA… AGORA!
Quando Paradise perdeu a luta com seu instinto de sobrevivência e rolou o amigo – ou inimigo, ou que diabos fosse ele agora – de costas, praguejou contra ele, contra
si mesma, contra a Irmandade, contra mais ou menos tudo que fosse um substantivo.
A nova posição não demorou muito. Quando ele voltou a vomitar, ela o empurrou de bruços de novo a fim de que não aspirasse o vômito.
Olhando ao redor, viu… tantos caídos no chão. Como se fosse um campo de batalha.
– Vou morrer – Peyton gemeu.
Nos recessos da mente, Paradise notou que, apesar de os sons serem calamitosos, havia mais iluminação, os flashes surgiam mais rapidamente e permaneciam por mais
tempo.
– Venha. – Paradise o puxou pelo braço. – Não podemos ficar aqui.
– Pode me deixar… só me deixe ficar aqui…
Quando Peyton vomitou de novo e pouca coisa foi expelida, ela olhou para a extremidade oposta do ginásio. Havia algumas pessoas paradas ao redor da abertura escura
na direção que Craeg lhe dissera para tomar.
– Peyton…
– Vamos todos morrer…
– Não, não vamos.
E foi um choque perceber que de fato ela acreditava nisso, que não fora apenas uma frase feita para dar falsas esperanças ao senhor Gostosão com problemas estomacais.
A questão era que todo aquele barulho e aquelas luzes não provocavam nenhum escombro, nenhuma fumaça, tampouco poeira, nenhuma estrutura estava pensa, nada de fato
ameaçava o lugar e nem as pessoas ali dentro. Era um espetáculo de som e luzes, como uma tempestade de trovões ao longe ou uma produção teatral, e só.
Também teve a sensação de que as luzes estavam mudando, e isso devia ter algum significado.
Provavelmente um nada bom.
– Peyton. – Agarrou seu braço e voltou a posicioná-lo de costas. – Levanta o traseiro do chão. Temos que chegar ao canto.
– Não consigo… está muito…
Sim, ela o esbofeteou. Não sentiu orgulho disso nem ficou satisfeita com o contato rude.
– Levanta.
Os olhos dele se abriram.
– Parry?
– Com quem diabos você achou que estava falando? Taylor Swift? – Ele suspendeu o torso do chão. – Fica de pé.
– Posso acabar vomitando em você.
– E eu não tenho problemas mais sérios? Já deu uma olhada neste lugar?
Peyton começou a balbuciar coisas sem sentido, e foi então que ela decidiu que já bastava. Passando por cima das pernas dele, segurou-o por debaixo das axilas e
usou sua força recém-descoberta para andar para trás arrastando-o até colocá-lo de pé em seu par de Adidas.
– Paradise, eu vou…
Fantástico.
Agora, a parte da frente da roupa dela estava toda vomitada.
E ele estava tão cambaleante que andar em linha reta seria um desafio. Correr? Nem sonhando.
– Que droga… – murmurou, segurando-o ao redor da cintura e suspendendo-o do chão como se fosse uma barra de pesos.
Pesado. Muito pesado para os seus ombros.
Agora era ela quem estava cambaleando. Era como se estivesse tentando equilibrar um piano, situação piorada pelo fato de que o peso estava discutindo com ela e
vomitando na parte de trás da sua perna direita.
Paradise começou a se mover, ignorando tudo a não ser o seu objetivo de chegar até a maldita porta do outro lado. A cabeça estava virada para um lado; o pescoço,
tão tenso que ardia; o ombro, entorpecido pela falta de circulação; e as coxas já tremiam pelo peso adicional sobre elas.
A tentação de se perder em todas as sensações físicas era forte, ainda mais depois que elas ficaram mais intensas e insistentes. Mas ela queria… Bem, ela queria
chegar à porta, ao ar fresco, ao fim daquela situação de completo caos. Então poderia respirar fundo, colocar o peso morto reclamante de Peyton no chão e se sentar
numa sala de aula limpa e agradável.
Talvez partilhar algumas risadas com a Irmandade por ela ter passado pela pior parte e agora as aulas teóricas e de autodefesa poderiam começar.
Para conseguir continuar em frente, tentou se lembrar do aspecto das salas de aula que vira quando ela e os demais foram conduzidos a partir do estacionamento.
Tinham luzes fluorescentes e cadeiras e mesas posicionados ordenadamente voltadas para a frente.
– Pare… – disse Peyton. – Eu vou morrer…
– Pode calar a boca e ficar parado? – disse ela num resmungo.
– Eu vou…
Ah, pelo amor de Deus, ela pensou quando ele vomitou de novo.
Conforme avançava a duras penas e ofegava devido ao esforço, o labirinto de equipamentos de atletismo era um completo pesadelo, as diversas estações parecendo ter
sido espaçadas e anguladas de modo a dificultar a passagem, o contorno, a superação.
Ainda mais com Peyton dobrado sobre ela.
Sem falar nas tantas pessoas espalhadas pelo chão.
Toda vez que passava ao lado de alguém ou tinha que passar o pé por cima de uma cabeça, mão, pé ou perna, queria parar, perguntar se estavam bem, chamar ajuda…
enfim, fazer alguma coisa. O fato de não poder salvar ninguém a não ser a si mesma e a Peyton a fazia gritar internamente, os pulmões queimando dentro do peito,
uma estranha raiva motivando-a.
Ficou procurando por sangue. Obsessivamente.
Mas não havia sinais dele: nenhuma mancha vermelha nas roupas, nada de fios rubros sobre a pele ou poças sobre as tábuas amarelo douradas do piso. Também não havia
nenhum cheiro dele que lhe fosse perceptível, embora houvesse diversos outros, nenhum deles agradável. Mas nada de sangue. E isso tinha que ser bom… Certo?
– Ahhhh! – ela berrou, ao sentir uma dor lancinante.
Nada é tão ruim que não possa piorar.
A dor no cotovelo esquerdo desestabilizou tudo, seu corpo se comportando como uma mesa dobrável que teve uma perna chutada… e, bem como um cesto de frutas sobre
uma superfície previamente nivelada, Peyton despencou no chão, seus membros frouxos quicando como se fossem maçãs.
– Ai, meu Deus – ela cerrou os dentes e agarrou o braço, massageando-o onde a corrente elétrica a atingira.
Aproximara-se demais do aparelho de supino horizontal. E ao avaliar a quantidade de equipamentos que ainda tinha que ultrapassar, pensou: Não consigo fazer isso…
não consigo…
– Consegue se levantar? – perguntou.
Peyton respondeu de forma não verbal com mais do que um não: foi uma afirmativa enfática de que isso ainda não era minimamente possível.
Deus, como ainda podia restar alguma coisa no estômago dele?
– Não consigo fazer isso – ela gemeu ao olhar ao redor e massagear o cotovelo.
Enquanto seus olhos iam de um lado a outro, percebeu que estava procurando por ajuda, algum tipo de boia salva-vidas, um salvador. Devia existir alguém a quem poderia
recorrer…
Pela segunda vez em sua vida, rezou à Virgem Escriba, cerrando os olhos com força, tentando encontrar as palavras certas contra a confusão ao fundo, os estrondos,
os cheiros, as visões e os espasmos desordenados de adrenalina em seu interior. De algum modo, ela conseguiu suplicar à deidade da raça que enviasse alguém para
por um fim àquilo, para cuidar de Peyton, para resgatar todas as outras pessoas abatidas, para que todos saíssem daquele inferno…
Pare de perder tempo, uma voz interior comandou.
Foi um choque tão grande que ela se virou para trás, esperando encontrar alguém atrás dela. Não havia ninguém ali.
Talvez tivesse sido anunciado nos alto-falantes?
Pare de perder tempo! Vá!
– Não consigo levantá-lo de novo!
É melhor encontrar um jeito de fazer isso, porra!
– Não consigo!
É melhor fazer essa porra de uma vez!
– Ok, tudo bem, ok, tudo bem.
Murmurou essas palavras repetidamente ao voltar a erguer Peyton e recolocá-lo na posição anterior. A segunda vez que o suspendeu foi ainda mais descoordenada que
a primeira, o corpo frouxo em partes que não ajudavam em nada, nada mesmo, mas Peyton parecia estar recobrando as forças, e suas mãos a seguraram pelo quadril.
Quando ultrapassou a parte dos obstáculos, estava ficando sem forças. Fez um rápido cálculo mental para medir a distância até a porta, acrescentando outros fatores
como o quanto o seu ombro estava se deformando debaixo de todo aquele peso, e o fato de que, inconvenientemente, precisava tanto urinar que sentia como se alguém
estivesse apunhalando o seu baixo ventre.
Passando a galopar, os pés deslizavam sobre o piso abençoadamente desobstruído; quanto menos chacoalhasse, melhor para o passageiro que carregava e seu próprio
corpo.
Espere um instante.
A porta estava fechada.
Ao chegar ao seu destino, franziu o cenho e forçou a visão a se focar nos instantes de iluminação. Merda, a porta estava fechada. Mas não havia pessoas paradas
junto a ela apenas momentos atrás?
Aproximando-se do painel, deixou Peyton escorregar para trás e mal lhe deu uma olhada quando ele caiu esparramado no chão.
O que acontecera com a maldita porta?
Não havia maçaneta de nenhum tipo. Nenhuma dobradiça. Nenhum vidro para quebrar.
Girando para o outro lado, perscrutou o ambiente… Jesus, havia cordas penduradas no teto, e duas pessoas penduradas nelas, subindo com uma velocidade que fez com
que ela quisesse se sentar e desistir bem ali onde estava.
– Peyton? – ela o chamou ao inclinar a cabeça mais para trás para acompanhar a subida daquele par. – Não vou conseguir te carregar numa daquelas ali.
Inferno, ela não achava que conseguiria arrastar o próprio peso por aquelas cordas flexíveis.
Aonde aqueles dois estavam indo?, perguntou-se quando eles sumiram de vista.
– Peyton, vamos precisar…
Uma depois da outra, as longas cordas torcidas caíram no chão pesadamente, provocando um baque tão alto que ela pôde ouvir mesmo com todo o barulho ao fundo.
Onde foram parar aqueles dois?
Esfregando os olhos, quis gritar. Em vez disso, cerrou os dentes e disse:
– Que diabos vamos fazer ag…
Uma corrente renovada de ar fresco fez com que voltasse a se girar. A porta voltara a se abrir, revelando um denso vazio negro.
Como se já tivesse consumido os outros recrutas e estivesse pronto para mais uma refeição.
Peyton se esforçou para ficar de pé, limpando o rosto com as mãos trêmulas.
– Consigo andar.
– Graças a Deus.
Ele olhou-a de relance.
– Te devo uma.
– Primeiro, vamos ver se indo por aqui vamos parar em algum lugar.
– Vamos juntos. – Os olhos dele ardiam quando lhe ofereceu o cotovelo, como se eles fossem entrar num salão de baile, ela de vestido de gala, ele de smoking. –
Não vou te deixar.
Paradise o encarou por um instante.
– Juntos.
Entrelaçando o braço no dele, não se surpreendeu quando ele a usou para se equilibrar. Ainda assim, aquilo representava uma incrível melhora em relação ao antigo
estado quase comatoso… a não ser pela náusea.
Avançaram ao mesmo tempo, pois a soleira era larga o bastante para deixar passar os dois…
A porta bateu atrás deles e apagou qualquer fonte de luz, e ela abriu a boca para gritar, mas conteve a saída do som. A sensação do chão escorregando debaixo dos
seus pés voltou a acontecer, uma lição quanto à importância da visão em relação ao equilíbrio e à orientação espacial de braços, pernas e tronco.
Ao seu lado, Peyton ofegava.
Do nada, mãos rudes a seguraram pelos cabelos, puxando-o com força. E ela desatou a gritar conforme o medo a fazia se contorcer e se debater contra quem a segurava.
– Paradise!
Foram separados e algo foi colocado sobre a sua cabeça, prendendo-se em seu pescoço. Forçada ao chão, suas pernas foram amarradas e depois usadas para puxá-la de
costas. Debatendo-se, tentando chutar, respirar, permanecer ainda que minimamente calma o bastante para poder pensar, sentiu-se sufocar.
Sentiu como… se fosse morrer.
No alto do andaime, Craeg descobriu do jeito mais difícil que era melhor se equilibrar, pois os choques que levava toda vez que seus braços encostavam em algo metálico
faziam seu coração acelerar e bloqueavam sua mente por uma fração de segundo que ele não podia se dar ao luxo de desperdiçar.
E, naturalmente, a maldita plataforma era tão desequilibrada quanto um velhinho caquético, indo de um lado para o outro, balançando como um bastão de basebol.
– Entre no ritmo! – gritou para Novo. – Siga meus passos!
Mãos fortes o seguraram pela cintura.
– Tô contigo.
Passaram a andar a passos largos, rápidos, porém cautelosos, indo de um lado a outro, o calor das luzes e o grupo de pessoas abaixo fazendo-o suar. Esticando os
braços, ele equilibrava a si mesmo e a ela, e os dois começaram a avançar num ritmo bom, dirigindo-se só Deus sabe para onde…
De repente, a passarela ficou estável, e isso foi uma notícia bem ruim. O que dava certo numa superfície instável não funcionou muito bem na firme, e os dois se
meteram numa série de choques elétricos que os mandou de um lado a outro, os corpos se chocando e depois voltando a acertar os apoios de metal, só para receberem
mais choques. Os músculos começaram a se enrijecer com cãibras e se recusaram a relaxar, os membros incapazes de seguir os comandos mentais.
– Cacete! – Craeg exclamou ao tentar fazer o corpo parar de reagir ao estímulo.
– Mas que porra…? – Novo berrou.
Ou algo parecido.
Em pleno ar.
Em seguida, ele se viu caindo da beirada da qual não notara se aproximar, uma queda livre que fez com que até ele berrasse a plenos pulmões. Ao seu redor, o ar
se movia rápido, passando por suas roupas, agitando-as, correndo por seus cabelos, pele do rosto e das costas, atordoando os seus ouvidos com um som impactante.
Acabaria fraturando as pernas se caísse de pé, mas não havia tempo, tampouco distância – sequer um motivo – para tentar amortecer a queda que não seria devastadora…
Splash!
Ele atingiu de lado uma inesperada superfície líquida, seu corpo sendo capturado por aquele volume de água limpa e fria. O alívio por não ter acabado com os dois
fêmures saindo pelo topo dos ombros durou pouco. Após tantos choques elétricos, seus músculos torturados e hiperaquecidos imediatamente se retesaram com cãibras,
tudo se imobilizou, a ausência de gordura corporal transformando-o numa âncora, não numa boia.
O choque da queda inesperada fez com que ele enchesse os pulmões de ar, porém esse oxigênio não duraria muito. Precisava retornar à superfície.
Com mãos fechadas em garras e mobilidade em apenas uma perna, ele lutou e se debateu na direção que esperava que fosse para cima. Não tinha absolutamente nenhuma
orientação visual, nada além do abismo negro que o consumiria caso não se salvasse.
A superfície da piscina, da lagoa, do lago, do que quer que aquilo fosse, surgiu inesperadamente, sem aviso, surpreendendo-o da mesma forma que antes, quando mergulhara
nela. Tossir e inspirar eram duas atividades mutuamente excludentes, e ele teve que forçar seu primordial senso de sobrevivência a fim de regular as reações espasmódicas
do diafragma.
Cloro. Estavam numa piscina.
Não passou muito tempo pensando nisso. A dor das cãibras era inacreditável: era como se tivesse adagas cravadas nas coxas, nas nádegas, no abdômen, e ele começou
a afundar antes de recobrar o fôlego, e isso não seria nada bom. Acabaria morrendo assim.
Lutando contra os impulsos do corpo, usou a mente para sobrepujar o sistema nervoso simpático: inspirando uma enorme quantidade de ar e prendendo depois o fôlego,
mexeu os braços para fora e para baixo, criando uma correnteza artificial que correu pelo seu tronco na superfície da água. Depois parou… cacete… de se mexer.
E deixou o ar dentro dos pulmões ser o colete salva-vidas que não estava usando.
Não era uma boia perfeita. As pernas continuavam a afundar, e ele tinha que agitá-las de vez em quando para permanecer à tona, mas era infinitamente melhor do que
bater no fundo e se afogar.
De tempos em tempos, expelia o ar e voltava a inalar.
Não tinha certeza de quanto tempo aguentaria aquilo. Mas logo descobriria.
Deus… Seus músculos enrijecidos eram uma tortura a suportar e, para se distrair, reviveu os momentos no alto daquela passarela. Os Irmãos eram brilhantes, concluiu.
Ir do calor para aquele frio? Depois de todos os choques?
Era um ambiente planejado, garantido para colocá-los exatamente onde ele se encontrava: lutando contra as reações naturais do corpo a certos estímulos e ambientes.
O que estaria acontecendo com todos os outros?, imaginou.
Onde estaria aquela fêmea?
Não a que estivera com ele no alto… mas a outra? Paradise?
Enquanto a água obstruía os seus ouvidos, era como aquele espetáculo de luzes no ginásio, obscurecendo e depois permitindo estímulos sensoriais. Ouvia a agitação
da água, tanto perto quanto longe… Muitos gritos e arquejos de outros na piscina… ecos – deviam estar em um lugar amplo com um teto relativamente baixo e muitos
azulejos.
Libertando o ar nos pulmões, imediatamente os encheu outra vez…
… e esperou pelo que viria em seguida.

 

 

CONTINUA