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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BEIJO DE SANGUE
BEIJO DE SANGUE

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 8
– … UM PAR NA BOCA. Hora estimada, quatro minutos. Entrada desobstruída e extremidade direita da piscina…
Apertando o botão do fio que partia do fone de ouvido e descia pela lateral do pescoço, Butch disse com tranquilidade:
– Entendi.
Ao caminhar ao longo da beira da piscina, acompanhou os movimentos dos candidatos na água com o auxílio dos seus óculos de visão noturna. Mais dois haviam acabado
de cair mais à frente; ambos subiram à superfície e estavam boiando, por isso estavam bem e relativamente sossegados. Nem sempre era assim. Ele e Tohr tiveram que
resgatar quatro candidatos, o que valia dizer que só restavam três machos com aquele novo casal ali.
Todos estavam longe da entrada B à direita. Muito bom.
Butch consultou o relógio. O tempo de quem ainda estivesse no ginásio acabaria em seis minutos. E tudo era apenas o preâmbulo para o que ele e seus Irmãos se referiam
como Destino Final. Essa última parada terminaria ao nascer do sol, portanto, era crítico para a missão que o grupo passasse pelos testes iniciais com bastante tempo
de sobra.
A clínica da doutora Jane e de Manny estava enchendo. As ervas eméticas suaves atingiram seu objetivo, e também aconteceram pequenos cortes, esfoladuras, distensões
musculares e queimaduras leves. Duas levas de desistentes já estavam saindo da propriedade, e mais se seguiriam.
Assim era a meritocracia: as coisas tinham que acontecer bem rápido porque nem ele nem V. desperdiçariam tempo com alguém que não estivesse talhado para o programa.
– Já chegou a minha hora? – Lassiter falou no aparelho auricular. – Nasci pronto para isso.
– Dentre tanta gente para ser imortal – V. resmungou –, por que você é uma delas?
– Porque sou maravilhooooso – o anjo caído cantarolou. – E faço parte da equipe…
– Não, não faz, não…
– … vivendo o sonho!
A cabeça de Butch começou a latejar ainda mais.
– Cala a boca, Lass. Não vou te aguentar cantando agora.
– Mas é do Meu Malvado Favorito – comentou o anjo. Como se isso fosse adiantar alguma coisa.
– Fecha a matraca – V. o interrompeu.
– Cala a boca. – Butch se controlou para manter a voz baixa. – Temos mais quatro minutos no ginásio. Eu te aviso quando…
– Estou ficando sem ar aqui, sabe – Lassiter reclamou. – A minha boia está desinflando.
V. praguejou.
– É porque não quer ficar ao seu redor, assim como a gente.
– Continue assim e vou começar a pensar que a nossa inimizade é mútua.
– Já não era sem tempo.
Está certo que Butch não estava se divertindo muito arrastando idiotas encharcados para fora daquela piscina, mas, na boa: estava feliz da vida por não estar nos
fundos da casa com aqueles dois discutindo.
– Fique aí, Lass – disse. – Manterei contato. E, V., pelo amor de Deus, vê se desliga o maldito microfone del…
– Ai! Ei! Mas que porra, V…
E… foi assim que tudo ficou abençoadamente silencioso.
Quando sua dor de cabeça ameaçou virar uma enxaqueca, Butch desejou arrancar os óculos e esfregar as pálpebras, mas não desgrudaria os olhos daqueles candidatos
nem mesmo por um instante. A última coisa que o programa precisava era que alguém acabasse seriamente ferido, ou pior, morto.
Além disso, já estava bastante distraído por si só, mesmo com aquele aparato na cabeça.
Havia alguma coisa errada com Marissa.
Ele próprio passara tempo suficiente como um zumbi ambulante durante seus dias de humano para reconhecer o entorpecimento de preocupação pelo qual ela passava.
A questão era que ela não lhe dizia nada de concreto. Toda vez que lhe perguntava no que ela estava pensando ou se ela estava bem, ela lhe sorria e vinha com alguma
desculpa esfarrapada quanto a estar ocupada no Lugar Seguro.
Indubitavelmente isso era verdade, mas era o normal. E nem sempre ela ficava como esteve na noite anterior e durante o dia também.
Talvez simplesmente precisassem de uma noite de descanso – e não só do trabalho. A mansão era um lugar maravilhoso de se viver: a comida, uma delícia; a companhia,
ainda melhor. O problema era que não se tinha muita privacidade. A não ser quando se retirava para o próprio quarto, que no caso dele era um espaço do tamanho de
uma caixa de sapato com porta e paredes finas lá no Buraco, nunca se estava verdadeiramente sozinho. Intromissões aconteciam sem aviso de qualquer um da equipe de
empregados, dos outros Irmãos, das companheiras deles.
O irlandês católico de uma grande família dentro dele adorava isso.
A sua porção de hellren preocupado não ficava tão entusiasmada assim.
Precisamos de uma escapada romântica, pensou.
– Para onde vamos? – V. perguntou em sua orelha.
Merda, falara em voz alta.
– Não com você.
– Cara. Isso doeu. De verdade – foi a resposta curta.
– Marissa e eu precisamos…
– Se for educação sexual, eu podia jurar que vocês dois já tinham descoberto tudo a esse respeito. A menos que todos aqueles sons sejam vocês dois fazendo briga
de polegares.
– Fala sério.
– Quer dizer que é origami? Tá explicado, os cortes provocados pelo papel devem doer… quem haveria de imaginar, hein?
– Para.
– É o que a Marissa nunca diz.
– Não tem sido o caso ultimamente – Butch replicou.
– Está com problemas?
– Não sei.
Houve uma longa pausa silenciosa.
– Tenho uma ideia.
– Estou aberto para…
– Foi isso mesmo que ela disse! – Lassiter se meteu na conversa.
– V., pensei que você tivesse tirado o… – Os sons dos machos se batendo no microfone fez com que ele arrancasse o fone de ouvido com uma careta.
Lassiter obviamente estava levando a surra pela qual vinha implorando e, em qualquer outra circunstância, Butch teria se juntado aos dois, e não para bancar o juiz.
Mas tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Ainda mais quando dois novos convidados acabavam de chegar para a etapa líquida da festa.
Quando V. voltasse a falar, talvez Butch recebesse algum conselho que prestasse. Desde que seu melhor amigo pensasse além do mundo das coleiras de espinhos, da
cera de velas pretas e dos prendedores de mamilos.
Merda.
Paradise se debatia contra quem a prendia pelos tornozelos, girando o tronco tal qual um peixe fora d’água no chão pelo qual era arrastada de costas, as mãos como
garras tentando se segurar. Dentro do saco ao redor da cabeça, a respiração quente a sufocava, ou talvez ela tivesse simplesmente aspirado todo o oxigênio.
Em resposta, o pânico se espalhou por todo o seu corpo, retesando-lhe os músculos e transformando o seu cérebro numa pista de alta velocidade para uma vertiginosa
sucessão de pensamentos que nem de perto a tranquilizavam ou ajudavam. Uma parte sua queria chamar Peyton, mas ele não conseguiria salvá-la. Também o tinham pegado.
Sua outra metade antevia todo tipo de resultados ruins.
O que vem depois? O que vem depois? Oquevemdepoisoquevem…
O “depois” chegou sem dar aviso como todo o resto: pararam de arrastá-la, uma segunda pessoa se aproximou, segurou-a pelos ombros e a ergueu do chão.
Paradise berrou de novo dentro do saco e tentou se soltar. Impossível. Seguravam-na com tamanha força que ela bem podia estar com tornos prendendo-lhe a pele e
os ossos…
Balanço.
Ela estava sendo balançada para a direita e para a esquerda, o movimento acelerando, como se fosse ser lançada.
– Não!
Bem quando foi solta no alto do arco à esquerda, o saco lhe foi arrancado da cabeça. Duas incríveis inspirações e logo ela foi caindo, caindo, caindo, no meio da
escuridão pontuada por sons estranhos.
Splaaash!
Água por todos os lados. Entrando no nariz, na boca, envolvendo seu corpo. O instinto assumiu o comando, seus sentidos automaticamente avaliaram que “para cima”
era a direção oposta à da que seguia afundando. Abrindo pernas e braços, descobriu que o que a prendia pelos tornozelos havia sido retirado.
Irrompeu à superfície com tanta força que seu corpo quicou como uma rolha, e ela tossiu com tanta violência que quase perdeu a consciência. Em meio a tudo aquilo,
porém, conseguiu respirar… e logo se viu inspirando grandes quantidades de oxigênio, o simples luxo de conseguir respirar enchendo-a com uma gratidão que lhe levou
lágrimas aos olhos. Isso não durou muito. Em toda a sua volta, ouvia pessoas se debatendo na água, sons de tossidas, de respiração laboriosa, de mãos e pernas se
movimentando para que boiassem.
Quantos seriam?
Aquela era a segunda parte?
Avançando na água, desejou localizar Peyton, mas não tinha certeza de que chamar a atenção para si seria uma boa ideia. Pelo tanto que sabia…
– Paradise!
O som da voz de Peyton estava próximo e à direita.
– Aqui! – disse com voz estrangulada. – Estou aqui. Estou bem…
– Você está bem?
– Estou bem aqui – disse um pouco mais alto. – Estou bem…
Em seguida, sentiu uma mão forte segurando-a pelo braço e puxando-a pela água.
– Aqui dá pé pra mim – disse Peyton. – Deixa eu te segurar.
– Não preciso…
– Você tem que conservar suas forças. Isto é apenas o começo.
Ele pareceu tão sensato, como se o choque com a água o tivesse deixado sóbrio. Em seguida, as mãos deslizaram pela sua cintura de modo a girá-la de costas para
ele.
– Te peguei – ele sussurrou.
Os braços dele a prendiam, e a sensação do corpo forte atrás dela a deixou tensa. Quando constatou que tudo o que ele estava fazendo era respirar para se recobrar
também, ela começou a relaxar um pouco, mesmo não conseguindo enxergar nada e sentindo suas pernas roçando nas dele.
Nunca antes estivera tão perto de um macho.
Embora, levando-se em consideração a situação em que se encontravam, aquele dificilmente era o momento de pensar em tais besteiras; Peyton não tinha nada além de
sobrevivência na cabeça.
Com um tênue alívio, relaxou contra ele, permitindo-se ser amparada. Seus instintos permaneceram em alerta máximo, mas, pelo menos, seu corpo teve uma breve trégua;
os batimentos cardíacos estavam se aquietando, aquela ardência horrorosa nos pulmões se extinguindo…
Splash! Splash!
Dois outros candidatos – ou vítimas – bateram na água, porém bem longe dela, dando-lhe exatamente a ideia de como aquela piscina, ou lago, ou lagoa, devia ser grande.
Não, não era um lago. A água era clorada.
Uma piscina. Estavam numa piscina subterrânea. Provavelmente não muito distante do ginásio, porque não fora arrastada por quilômetros.
– O que vem depois? – ela perguntou.
– Não sei. Mas sei que vamos ficar juntos.
– Isso. – Ficou surpresa com o tanto que a presença dele a acalmava, apesar de ainda não conseguirem enxergar nada, e ela não fazer a mínima ideia do que os atingiria
em seguida…
Splash! Splash! Splash!
– Em quantos estamos aqui? – perguntou.
– Cinco acabaram de chegar. Então, somos pelo menos sete.
– De sessenta? Deve haver mais. – Como ela podia fazer parte de um número tão pequeno que chegara até ali? – Por certo, deve…
Mais quatro chegaram, um caindo perto deles, os outros três do lado oposto.
– Estou pesada demais para você? – perguntou.
– Para com isso.
Quando ele mudou as mãos de posição, o corpo dela se moveu na água, as costas pressionando a pelve dele. Ela não sentiu nada ali… Mas também não saberia com que
se preocupar caso ele estivesse excitado.
Outra pessoa mergulhou na piscina.
E depois…
… um longo período sem nenhum acréscimo. Na verdade, devem ter sido apenas uns dois minutos, mas lhe pareceram horas… dias.
O medo continuou presente, mas como nada o alimentava de imediato, a ansiedade começou a canibalizar o seu lado racional, todos os tipos de loucura percorrendo
sua mente. E se aquilo não fosse um programa de treinamento? E se fosse algum tipo de… experimento social? Um sequestro para extrair os órgãos… ou uma tentativa
de… puxa, ela não sabia.
Uma onda de terror a assolou. Não enxergava nada, o rugido em sua cabeça abafava os sons na piscina, e seu corpo estava cansado demais para processar o tremor que
a afligia.
– O que vem agora? – ela gemeu.
– Eu…
Antes que Peyton conseguisse responder, ela ficou ciente de que algo havia mudado ao redor deles. Os outros também notaram, os corpos mergulhados na água se imobilizando
como se tentassem avaliar o que estava diferente.
O nível da água estava descendo.
A superfície agitada da água estivera na altura dos seus ombros, mas agora já lhe batia nos braços, depois nos cotovelos.
Seus batimentos voltaram a acelerar, uma tontura fazia sua cabeça rodar.
– O que vão fazer com a gente agora? – ela arfou.
A altura da água descendo… descendo… Até que seus pés bateram no fundo da piscina, como os de Peyton. Contudo, ela permaneceu aninhada nos braços dele; pelo menos,
com o corpanzil dele por trás, ela tinha a retaguarda coberta.
Eu só quero enxergar, ela pensou na escuridão completa. Pelo amor de Deus… por favor, me deixem ver alguma coisa…
Num dos cantos, uma luz brilhante, quase ofuscante, surgiu.
Era tão forte que ela teve que suspender o braço contra aquele fulgor e, assim, conseguiu ver que sim, estavam numa piscina, uma muito limpa e com uma bela borda
azulejada em azul e verde-claro. E lá estava Peyton, com aparência cansada atrás dela. E os outros candidatos na água.
Afastando o cabelo molhado do rosto, fez uma careta tentando focalizar…
Mas que…
– … porra é essa? – Peyton terminou por ela.
Do lado oposto da piscina que ainda se esvaziava, um macho imenso com cabelos loiros e negros entrou no espaço e, a princípio, ela pensou que ele tivesse levado
uma iluminação consigo. Na verdade, o corpo dele era a luz. Ele reluzia como se fosse uma lâmpada incandescente viva, que respirava.
Mas a loucura era que aquilo não foi o que mais a chocou.
Ele usava uma máscara de mergulho com snorkel acoplado afastada de seu belo rosto… um par de nadadeiras que estalavam sobre o piso molhado e escorregadio conforme
ele se aproximava da beirada… um traje de banho em forma de estilingue rosa-choque… e uma boia infantil amarela e azul ao redor da cintura.
Cada um dos quase mortos encharcados na piscina o encarava como se ele fosse o retorno do Messias num universo paralelo em que o Bob Esponja se encontrava com Magic
Mike.
Avançando até o trampolim, parou, demorou-se para ajustar a máscara e o snorkel e pigarreou.
Depois de um punhado de “mi-mi-mi-mi” como se estivesse se aquecendo para um solo, inspirou fundo e…
– Jerônimooooo! – berrou e correu até a ponta.
Alçando voo na extremidade, manteve a boia firme no lugar e executou uma cambalhota primorosa, acertando a água que baixava como uma perfeita bola de canhão que
espalhou água até o teto.
Enquanto Paradise abaixava a cabeça para não ser atingida no rosto pelo tsunami, pensou: ponto para a Irmandade.
O que tinha esperado?
Com certeza tudo, menos aquilo.
Capítulo 9
OS TÊNIS DE CRAEG chegaram ao fundo da piscina bem quando o… bem, sim, aquilo era um macho… atingiu a água com um impacto como se um sedã tivesse sido jogado ali.
Depois que o dilúvio se acalmou, o ambiente se tornou uniformemente iluminado, pois a luz que emanava daquele corpo imenso ridiculamente vestido criava um fulgor
que transformava a piscina olímpica numa lâmpada.
O cara era uma mistura de lutador profissional com brinquedo da Toys “R” Us.
Mas Craeg não perderia nem um minuto analisando aquela combinação.
Enxugando o rosto, primeiro identificou as possíveis rotas de fuga: havia quatro ou cinco portas, incluindo aquela pela qual a figura com corselete inflável entrara,
mas estava disposto a apostar que estariam todas trancadas. Nada no teto. Nas paredes. No fundo da piscina.
A segunda verificação era ver se havia “terceiros” participando da encenação. Bingo. Na periferia, havia dois machos imensos vestidos de preto com as cabeças cobertas
com capuzes e usando óculos de visão noturna. Estavam bem armados, mas as armas estavam guardadas… E pareciam estar monitorando todos dentro da piscina como se à
procura de sinais de fraqueza ou de perigo.
A terceira avaliação foi para ver quem mais havia conseguido chegar àquele estágio. Dez – não, doze… espere, treze estavam na piscina com ele, incluindo a fêmea
com quem caíra daquela passarela suspensa.
E a recepcionista loira, Paradise.
Embora não estivesse sozinha.
Nada disso, ela estava recostada em um dos machos, a mão repousando sobre o braço protetor que a cingia pela cintura.
Dificilmente uma surpresa. Fêmeas como ela não ficavam sem alguém do sexo oposto por perto. Mariposas atraídas por uma chama e baboseiras do tipo.
Craeg forçou os olhos a se desviarem do par. E isso funcionou, talvez, por um minuto. Em seguida, viu-se avaliando o cara para um possível combate, anotando a altura
do macho, a força dos ombros, a determinação em sua mandíbula.
Como se os dois fossem se digladiar.
O que era insano, claro.
Não tinha direito algum sobre aquela fêmea e, mais precisamente, a única coisa com que tinha que se preocupar era cruzar a linha de chegada que o aguardava ao fim
de tudo aquilo…
Luzes convencionais foram acesas ao redor do ambiente, pondo um fim a todas as sombras, revelando todos os cantos que não escondiam nenhuma ameaça adicional.
Mas ele ainda não acreditava que tivessem terminado. Ele, por certo, não pararia se fosse um dos Irmãos. Ainda havia muitas pessoas de pé.
A porta na extrema direita se escancarou como se a tivessem chutado.
E foi então que a nova onda apareceu.
Um a um, um grupo de quase doze guerreiros marchou para perto. A Irmandade, concluiu ele. Aquilo só podia ser a Irmandade. Seus corpos eram gigantescos, apequenando
até mesmo ele e, assim como os dois guardas, tinham máscaras sobre os rostos e couro negro cobrindo-os das cabeças às botas.
Diferentemente dos outros dois, traziam armas nas mãos.
Num flash, aquele que fizera a apresentação com os acessórios infantis desapareceu. E o restante da água foi tragada pelos ralos na parte mais baixa da piscina.
Em toda a sua volta, candidatos estavam de pé, encharcados e relativamente exaustos. Ele permaneceu parado, assim como Novo, que parecia pressentir, como ele, que
a situação se complicaria.
Aquelas armas eram um mau sinal.
Num clássico pensamento grupal, os outros candidatos se juntaram, as pessoas na parte rasa recuando conforme os guerreiros avançavam ao longo da piscina, contornando
a escadinha que estava escorregadia e que conduzia a nada a não ser concreto e poças.
Em seguida, aqueles machos ameaçadores armados desceram para a piscina, os coturnos aterrissando como trovões, o sacolejar de seus coldres produzindo rangidos.
Quando pararam, foi impossível determinar em quem se concentravam, visto que suas cabeças estavam todas viradas para o grupo, mas os olhos permaneciam cobertos.
Triangulando sua posição, Craeg concluiu que, naquele momento, fazer parte do grupo seria melhor, por isso…
Um a um, os Irmãos ergueram as pistolas, apontando diretamente para os trainees. E, então, o mais alto de todos deu um passo à frente, girando o cano num círculo
preguiçoso à procura do seu alvo.
Pense num rebanho em pânico. Os candidatos se assustaram, correndo de um lado para o outro, esforçando-se para ficar atrás de alguém, escorregando, caindo. Uns
dois se ajoelharam, debulhando-se em lágrimas e implorando antes mesmo que qualquer disparo fosse dado.
Craeg não faria nada disso. Se os trainees fossem alvejados com algum tipo de bala, não seria nada letal. Até então, haviam tomado muitas precauções. E estava pronto
para levar uma bala, se fosse necessário para seguir para a fase seguinte.
Que atirassem nele. Não temia a dor.
Aprumando os ombros, encarou-os, e percebeu que provavelmente existia outro motivo pelo qual ele parara. Mas de qualquer modo se recusava a admiti-lo.
Venha, comandou mentalmente. Aqui.
Vem pra cá…
Mas não o queriam.
Não… eles foram em direção a outra pessoa.
Ela não, ele pensou. Merda, Paradise não.
– Ei – chamou alto. – Ei, idiota!
Assim que aqueles machos de negro entraram no ambiente, Paradise reconheceu os Irmãos. Depois de ter passado tanto tempo trabalhando próxima a eles, conhecia seus
cheiros, suas auras, e passara a considerá-los seus protetores, quase pais para ela.
Não era o caso esta noite.
Ainda mais quando desceram para a piscina já seca, ergueram as armas… e um deles a escolheu como alvo.
Rhage. Era Rhage quem mirava sua arma nela e depois começou a avançar. Sabia disso porque o corpo dele era muito maior do que o dos outros.
Não, pensou ela. Você não pode fazer isso. O meu pai…
Mas ele não hesitou. Veio direto na direção dela e de Peyton, apontando a arma, dedo no gatilho.
– Ei! Idiota!
Pelo canto do olho, viu que um dos recrutas dava um passo à frente e balançava os braços.
Era o seu macho – isto é, aquele macho. Craeg…
– Atire em mim! Ei! Filho da puta! Atire em mim em vez dela.
E foi o que o Irmão fez.
Sem desviar o olhar dela, o braço de Rhage virou para o lado e ele apertou o gatilho. Uma bala explodiu do cano.
Paradise gritou e tentou se soltar dos braços de Peyton quando o caos se instalou, as vozes ecoando como o alarido de mil pássaros assustados.
– Não! Meu Deus… Não!
– Cale a boca – Peyton sibilou, mantendo-a firme no lugar. – Só fique quieta!
Mas nem pensar. Quando Craeg caiu de joelhos, ela se soltou e avançou na direção do Irmão. Era o mesmo que um inseto se chocando no para-brisa de um carro, mas
isso não era importante. Simplesmente não toleraria que alguém fosse ferido, ainda mais aquele macho. Estapeando, socando, ela segurou o cano da arma como se disso
dependesse sua vida, tentando controlá-la. Fracassou. Antes de entender o que acontecia, estava de cara no concreto úmido, presa na altura do pescoço e da lombar.
Virando o rosto, procurou freneticamente o lado oposto da piscina para ver se Craeg ainda vivia.
O macho estava no mesmo nível dela, contorcendo-se e apertando o que parecia ser sua coxa. A única outra fêmea do grupo se agachou ao lado dele, afastou com força
suas mãos e inspecionou o ferimento. Em seguida, com um puxão, tirou a camiseta do cós e a despiu, expondo o tronco musculoso e o sutiã esportivo preto. Com um rasgão,
arrancou a bainha em toda a volta da base, produzindo uma tira de pano.
Amarrou um torniquete no alto da coxa dele como se tivesse sido treinada para isso.
– Solte-a – Peyton exigiu, referindo-se a Paradise. – Solte-a já, porra.
– Ou o quê? – disse uma voz distorcida nos alto-falantes no teto, como se alguém tivesse falado num microfone com um sintetizador acoplado.
Foi quando Peyton perdeu a cabeça. Esforçando-se para virar o pescoço, ela teve uma visão inacreditável dele completamente agressivo, socando Rhage, chutando, as
presas arreganhadas enquanto tentava tirar o Irmão de cima dela. Mas, de repente, ele não estava mais sozinho. O macho que demonstrava muita habilidade atlética
no cavalo com alças se juntou a ele.
Tec! Tec!
Ambos foram alvejados por outro Irmão. Assim como outros dois machos que também tentaram se envolver. Nesse meio-tempo, outros tentaram subir pelas paredes, usando
as escadas de aço para sair da piscina… Só para serem eletrocutados e caírem para trás.
Uma porta se abriu.
Do alto, aquela voz anunciou:
– Qualquer um que desejar sair agora pode fazê-lo. Nenhum mal lhes será causado. Isto pode terminar… agora. Tudo o que têm a fazer é correr para a porta.
Nesse instante, ela foi solta, pois Rhage saiu de cima dela e se afastou.
Ela engatinhou para junto de Peyton, e rolou-o de costas de novo.
– É muito ruim? Onde foi atingido?
– No braço… Na porra do meu braço.
Paradise arrancou a camiseta e seguiu o exemplo da outra fêmea, rasgando uma porção com as presas e amarrando a tira logo acima do ferimento sangrento no tríceps.
Encarou os Irmãos.
– Vocês enlouqueceram? Isto é uma escola, não uma guerra, caramba!
– Pode ir embora agora – sugeriu a voz no alto-falante. – Apenas prossiga até as escadas na parte rasa da piscina e liberte-se disto.
Uma onda de fúria cega a fez enxergar tudo branco, e antes que se desse conta, estava diante dos Irmãos.
– Atirem em mim! Vamos! Façam isso, seu bando de covardes malditos!
Ela não fazia ideia de que diabos estava dizendo. Que diabos estava fazendo. Nunca antes vira tantas armas, muito menos se colocara deliberadamente como alvo de
tamanha artilharia, mas estourara e descobrira uma onda renovada de forças junto à explosão.
Não que os Irmãos parecessem se importar. Apenas continuaram ali, sem se mexer, sem reagir, como se não lhes desagradasse aguardar até que ela ficasse sem combustível.
Com isso, ela se virou para os trainees que estavam desistindo.
– O que estão fazendo? Vocês precisam lutar! Isso é errado…
Nisso, a porta se fechou e o som inconfundível de uma barra sendo colocada em seu lugar ricocheteou pelo espaço.
– Agora, será pedido que vocês completem a Primeira Noite – disse a voz do alto. – A última sessão começa em três… dois… um.
Foi quando a luz passou de incandescente para o roxo azulado de uma luz negra.
E também quando a Irmandade abriu fogo sobre eles.
Capítulo 10
BALA DE BORRACHA DÓI PRA CACETE.
Quando o primeiro dos incontáveis disparos atingiu Craeg no peito, ele rolou e ofereceu as costas em vez da sua parte frontal, mais vulnerável. Abaixo da cintura,
o único ferimento verdadeiro era como uma marca de ferro em brasa em sua pele. No entanto, bem como ele previra, o tiro habilidoso não provocara nada mais que uma
esfoladura na pele, de modo que o torniquete era desnecessário. Mas não havia tempo de tirá-lo. Segurou a mão de Novo e a puxou de barriga para baixo no fundo da
piscina. Mantendo as cabeças abaixadas, afastaram-se, se arrastando para a parte com três metros de profundidade da piscina.
Relanceando a vista para trás, descobriu que os Irmãos, que se realinharam para bloquear as escadas da parte rasa da piscina, começaram a avançar como se estivessem
tocando o gado para o corredor da morte de um abatedouro. Inferno, as escadas de metal afixadas na parte mais profunda da piscina, onde estava o trampolim, estavam
eletrificadas, e aqueles guerreiros pareciam ter um estoque interminável de balas de borracha. Mesmo que o impacto se equiparasse a picadas exageradas de abelhas
por cima das roupas, com muitas delas o limiar da dor seria acionado a um ponto que o incapacitaria.
Virando-se novamente, mediu a velocidade do avanço dos Irmãos.
Bastante rápido, o que lhe deixava com talvez uns sessenta segundos para encontrar uma saída.
– Desmaterialização – disse tanto para si quanto para quem estava perto para ouvir. – É a única chance.
Parando seu avanço, fechou os olhos e começou a respirar fundo. A primeira visão que teve foi a da loira magra atacando o absurdamente imenso Irmão armado.
Para defendê-lo depois de ele ter sido atingido.
– Pare – sibilou.
Controle. Precisava controlar a mente e as emoções, concentrar-se e se desmaterializar para fora e para cima. Foco… foco…
Dor em todo o corpo: na coxa e nos outros pontos em que fora atingido, os ombros, a coluna, o quadril. A cabeça latejava. As costelas estavam sensíveis. O cotovelo
ainda pulsava no ponto em que levara o choque no andaime.
À sua volta, as pessoas estavam em pânico, choravam, praguejavam. Tropeçavam. Caíam.
E mais daquelas balas, batendo nele. Em todos eles.
Quanto mais ele tentava ignorar o medo e o pânico, maior se tornava o coro de desconforto e de distração.
Precisava encontrar uma imagem alvo, um lugar para mirar a mente.
Do nada, visualizou a recepcionista onde a vira pela primeira vez. Estava sentada atrás de uma bela escrivaninha numa sala de estar majestosa. Tudo ali o intimidara:
a seda nas paredes, os tapetes elegantes, o cheiro de limpeza… ela.
Mas ela não o tratara como a escória que ele era. Erguera o olhar para ele, e seu coração parara de bater… e ela lhe dissera seu nome.
Paradise.
A voz dela soara tão bela que ele não a ouvira muito bem. E estragara tudo ao não apertar a mão que ela lhe oferecera. O problema foi que seu cérebro havia se congelado
porque ela era tão…
O corpo se desmaterializou sem que ele tivesse percebido. Num momento, estava sofrendo, preso em sua forma corpórea… no seguinte, estava voando para longe da piscina.
Sem nenhum destino em mente, vacilou em pleno ar, como nas primeiras vezes em que tentara aquele truque após a transição, mas logo se controlou e projetou sua forma
para o canto oposto, contra a parede.
Ao reassumir sua forma, Novo já estava ali, alerta e pronta, mas massageando um dos ombros, como se estivesse esfregando um ponto dolorido ou avaliando se ele estava
deslocado.
Um a um, quatro outros trainees molhados saíram da piscina: o macho atlético do cavalo de alça, aquele que parecia um assassino com piercings e tatuagens de um
lado apenas do rosto e pescoço, o cara que estivera com o braço ao redor de Paradise e outro macho alto e forte.
Não fazia ideia do que acontecera com…
A recepcionista foi a última a se materializar, e Craeg teve que desviar o rosto a fim de não exibir uma emoção inaceitável. Para se distrair, tentou ver o que
estava acontecendo na piscina com os cinco que haviam sido deixados para trás…
Uma porta se abriu bem ao lado deles e uma rajada de ar frio entrou, carregando o cheiro de ar livre.
O que quer que estivesse do outro lado estava escuro.
– Quem vai na frente? – Paradise perguntou.
– Eu vou – o macho com aparência gótica respondeu. – Não tenho nada a perder.
Craeg franziu o cenho quando o súbito silêncio ao redor passou a parecer um mau presságio. Os tiros haviam cessado. O que poderia significar que aquela parte do
teste se encerrava… ou que os Irmãos estavam se preparando para voltar a atirar.
Não, eles não estavam mais lá. Só restavam na piscina uns poucos trainees descontrolados, figuras chorosas e encharcadas sentadas no concreto úmido com as cabeças
entre as mãos ou com os corpos em posição fetal.
Merda. Onde estavam os Irmãos?
– Vou com você – Craeg disse ao gótico.
Os dois eram os maiores do grupo, os pontas-de-lança, por assim dizer. E, por mais que ele tivesse entrado naquilo pensando em sobrevivência individual, estava
começando a reconsiderar essa posição radical. Pelo menos no curto prazo.
Se um ataque surgisse, dois eram melhores do que um.
Novo disse:
– Eu fico na retaguarda.
O atleta se pôs ao lado dela.
– Também posso cobrir.
– Vocês três – Craeg ordenou à fêmea loira, ao… companheiro dela? Melhor amigo? E ao outro macho, um cara bem apessoado do tipo “carinha de bebê”. – No meio.
Pelo menos, desse jeito, não teria que se preocupar com ela.
Não que o estivesse.
– Vamos sair – disse Craeg.
Ele e o macho durão foram para a soleira ao mesmo tempo, seus ombros combinados quase preenchendo o que no fim se mostrou um túnel; depois que estavam nele, uma
luz bruxuleante distante passou a ser o rumo para qual seguiram lentamente.
– Qual o seu nome? – o gótico sussurrou.
– Craeg.
– Axe. Porra, cara, prazer em conhecê-lo.
Paradise esperou que qualquer coisa acontecesse quando seguiram como grupo pelo túnel. Comprimida, ansiosa, lenta e exausta, esperou que a desgraça seguinte acontecesse,
algo os atacando, caindo sobre eles, derrubando-os.
Quando simplesmente saíram ao ar livre diante de uma fogueira, seus nervos abalados não sabiam como processar a ausência de um ataque.
Mas o que o seu cérebro não conseguia mesmo entender era o fato de haver uma mesa preparada com garrafas de água mineral, barrinhas de cereal e frutas fatiadas.
Tinha acabado?, pensou ao olhar ao redor para os pinheiros, as moitas, as estrelas no céu.
– Estou morrendo de sede – Peyton disse, esticando a mão para uma garrafa de Poland Springs.
O macho do qual Paradise não conseguia desviar a atenção o deteve.
– Pode ser uma armadilha – disse Craeg, aproximando-se.
– Você está paranoico.
– Experimentou a comida antes? Gostou de vomitar?
Peyton abriu a boca. Fechou-a. Praguejou.
Craeg avaliou o cenário. Bateu de leve no chão com a ponta do tênis molhado. Avançou cautelosamente, deslocando-se de lado e meio agachado. Quando se aproximou,
inclinou-se e nivelou o olhar com as garrafas bem ordenadas. Levantou a ponta da toalha de mesa e espiou embaixo.
Depois, pegou uma das garrafas devagar.
O coração de Paradise batia forte. Também estava desidratada, mesmo depois de ter engolido o que lhe pareceu ser metade da água da piscina. Mas estava com medo
de ser envenenada.
Deus, jamais estivera numa posição como aquela antes: consumida pela sede, diante da bebida, e ainda assim incapaz de pegar o que queria.
– Esta não está lacrada – Craeg anunciou.
Pegou outra. E mais outra. Na terceira, o lacre se rompeu e ele abriu a tampa. Cheirou o conteúdo, deu um golinho.
– Esta está boa. – Passou adiante sem nem olhar e, assim que Peyton a pegou, Craeg voltou a inspecionar as outras, uma a uma, desprezando as já abertas. Era Peyton
quem as distribuía entre o grupo até que todos tivessem água.
Craeg guardou uma garrafa para si, mas não bebeu tudo, enfiando-a no cinto da calça. Então, sem dizer nada, foi olhar as barrinhas de cereal, jogando fora as que
estavam com a embalagem rasgada, dividindo as íntegras.
Paradise comeu mesmo sem estar com fome porque não sabia quando parariam de novo e quanto esforço ainda exigiriam na fase seguinte… e comida era energia. A barrinha
era uma mistura estranha de papelão, guloseima de mentira e uma massa grudenta, mas ela não se importou com isso. Precisaria das calorias.
Nem que fosse apenas para ficar aquecida, pensou, quando sentiu um arrepio. Novembro à noite e roupas molhadas. Nada bom para a temperatura corporal quando se está
parado. Ou exposto aos elementos por muito tempo.
– O que fazemos agora? – perguntou para ninguém especificamente e todos ao mesmo tempo.
Atrás deles, a porta da instalação se fechou e travou.
O assassino serial, Axe, disse arrastado:
– Tudo bem. Eu não estava a fim de outra dose de ação naquela piscina mesmo.
– Tem uma cerca lá adiante – a outra fêmea disse, apontando para a esquerda.
– E ali – acrescentou o atleta.
– Aposto que está eletrificada – murmurou Peyton. – Tudo que era metálico estava.
A dúvida foi solucionada quando alguém pegou um galho, jogou-o no arame e a coisa torrou, emitindo uma chuva de centelhas.
Explorando um pouco mais, descobriram que estavam numa espécie de calha com apenas uma saída: direto em frente, embrenhando-se na floresta escura.
– Vamos juntos – ela disse, olhando além da luz alaranjada da fogueira. – De novo.
– Odeio trabalho em equipe – resmungou Axe.
– E eu estou tão animado em fazer isso com você – Peyton replicou.
Sem falar mais a respeito, os integrantes do grupo assumiram a mesma formação combinada antes da entrada no túnel. Partiram assim, deslocando-se em bloco, atentos
para não se aproximar demais da cerca de arame conforme ela se estreitava de ambos os lados.
Galhos se partiam debaixo dos tênis molhados. Alguém espirrou. Uma brisa soprou de um dos lados e gelou o braço de Paradise.
Mas tudo isso mal foi percebido. Conforme avançava, seu corpo parecia um fio desencapado, a energia fluía por suas veias, os instintos aguçados e prontos para estímulos
de qualquer parte. Agora estava alerta para qualquer coisa anormal, um estalo no chão que fosse alto demais, uma mudança do andar de Peyton ao seu lado, um pio em
um galho à esquerda… e tudo o que não conseguia encaixar de imediato na categoria de não ameaça fazia seus músculos nervosos e o cérebro vigoroso querer parar e
avaliar. Ou sair em disparada.
E mesmo assim seguiram em frente. Em frente… Sempre em frente.
O tempo está passando, ela pensou ao olhar para a posição das estrelas.
E continuaram, o grupo maltrapilho se arrastando, tropeçando, claudicando, cada um deles machucado de alguma maneira, mas ainda assim determinado a ficar de pé.
Muitos quilômetros depois – ou teriam sido cem? – nada os atacara.
Mas ela não se deixava enganar.
Os Irmãos voltariam. Tinham um plano com aquilo.
Ela só precisava ficar firme, se manter com o grupo e…
À frente, Craeg e Axe pararam.
– O que foi? – perguntou ao segurar o braço de Peyton.
Aquele cheiro era… de fumaça?
– Voltamos ao início – Craeg respondeu baixinho. – Foi aqui que começamos.
Quando ele apontou para o chão, ela viu pegadas, as pegadas deles, na terra fofa. Só que a mesa e a comida e a água tinham sido removidos… e a fogueira fora apagada,
o que explicava o cheiro. E a cerca fora colocada numa posição diferente.
– Vão nos fazer andar em círculos? – Peyton reclamou. – Mas que porra…?
– Por quê? – Paradise perguntou, olhando para Craeg como o líder de fato deles. – Por que fariam isso?
Graças aos seus olhos terem se acostumado à escuridão, ela conseguia distinguir-lhe as feições fortes quando ele franziu o cenho e olhou ao redor. Quando ele balançou
a cabeça, ela sentiu um frio no estômago.
– O que foi? – perguntou.
A outra fêmea respondeu:
– Eles vão nos exaurir. É por isso que…
O som de tiros surgiu da esquerda, outra saraivada de disparos iluminando tudo com as explosões dos canos enquanto eles se chocavam uns com os outros, os corpos
colidindo, as balas provocando pontos de dor no ombro e na perna de Paradise.
– Andem! – Craeg exclamou. – Apenas andem que os tiros passarão!
E ele estava certo. No instante em que começaram a se mover na direção de antes, tudo se calou e o silêncio reinou.
Não era preciso ser um gênio para descobrir que, caso parassem, seriam atingidos por outras daquelas balas de borracha.
Paradise inspirou fundo. Aquilo não era tão ruim, disse a si mesma. O ritmo era lento e constante, e ela gostava de caminhar.
Claro que era melhor do que levar um tiro.
Tudo terminaria bem.
Era melhor do que a piscina. Melhor do que ser arrastada pelo chão com a cabeça coberta. Melhor do que as explosões no ginásio.
Só o que ela precisava fazer era por um pé diante do outro.
Para passar o tempo, concentrou-se no corpo de Craeg, à frente, acompanhando os movimentos do corpo grande, dos ombros largos, o modo como o quadril virava a cada
passo dado. Quando o vento mudava de direção de tempos em tempos, ela captava o cheiro dele e o considerava mais gostoso do que qualquer perfume que já sentira.
Quem era a família dele?, ficou imaginando. De onde vinham?
Teria uma companheira?
Interessante como essa última pergunta provocou uma dor em seu peito. Pensando bem, depois de tudo que passara nesta noite, não era de admirar que sua mente e emoções
estivessem todas confusas…
Eles deram voltas e voltas, até ela começar a reconhecer árvores, certos galhos, até os pés formarem uma pista na terra, até que a monotonia começasse a afetá-la.
Ninguém os atacava, nem atirava neles, ou saltava das árvores para aterrorizá-los.
Não significava que isso não pudesse acontecer, mas quanto mais nada acontecia, mais seu cérebro começava a se canibalizar, passando de pensamentos aleatórios sobre
Craeg para um pânico infundado, imagens do pai e… preocupação quanto ao que se seguiria.
Olhando para o céu, desejou saber o significado das posições das estrelas. Não fazia ideia de quanto tempo se passara desde que chegaram ao ginásio, e até mesmo
depois de terem saído para ali. Parecia uma vida desde que se registrara e tiraram sua foto. Mais tempo ainda desde que ela e Peyton discutiram no ônibus. Mas isso,
por certo, não era verdade.
Três horas? Não, isso era pouco. Cinco ou seis, estimou.
A boa notícia era que isso teria que parar na aurora. O sol era inegociável mesmo para os Irmãos e, evidentemente, ninguém seria morto ali. Sim, aquela situação
com as armas tinha sido horrível, mas as pessoas que levaram bala de verdade ainda estavam de pé, os ferimentos, obviamente, superficiais, e o mesmo acontecera com
aqueles que tinham comido e bebido substâncias adulteradas.
Tantos haviam sido eliminados. Quando começaram, eram sessenta. Estavam reduzidos a sete.
E ela estava surpresa em se ver ainda ali. Na verdade, caso soubesse que a coisa toda terminaria com uma caminhada pela floresta, tudo teria lhe parecido muito
mais fácil.
Considerando-se como poderia ter sido muito pior, aquilo era moleza.
Capítulo 11
UM A UM, TODOS ELES FORAM CAINDO.
O primeiro a sair foi o macho que ela conhecia dos eventos dos festivais da glymera, um primo seu muito distante, Anslam. Depois de um tempo, ele começou a diminuir
o ritmo, os passos se tornando um claudicar que gradualmente ficou mais pronunciado, o corpo inteiro sendo afetado por ele. E logo ele simplesmente parou.
O grupo lhe ofereceu certo encorajamento, mas ele apenas sacudiu a cabeça e se sentou para afrouxar os cadarços dos Nikes.
– Chega para mim. Deixe que atirem. Não consigo mais.
Mesmo na escuridão, ela conseguiu ver que havia sangue nas meias brancas.
– Venha, Paradise – disse Peyton, cutucando-a. – Temos que seguir em frente.
Olhando para a floresta densa, ela se perguntou onde estariam os Irmãos. O que aconteceria com ele.
Quando o grupo voltou a andar, ela os seguiu porque não queria desistir, e também – mesmo tendo vergonha de admitir – porque nunca fora muito com a cara dele. Anslam
tinha uma má reputação com as fêmeas.
Não demorou para que o próximo desistisse. Em seguida, um depois do outro, todos desmoronaram. O problema eram os pés. Ou as coxas. Ou os ombros. Um a um… todos
foram ao chão, para o caminho de terra muito batido que eles formaram com suas incontáveis passadas. E Paradise sentiu a necessidade de ajudar a todos, especialmente
quando Peyton começou a cambalear ao seu lado… e depois oscilar como se já não tivesse certeza do que havia diante dele.
No caso dele, o problema foi resultado do vômito. O organismo também rejeitara a água que ele consumira, e a desidratação o fez delirar.
Com ele, ela não tinha como não tentar, e puxou seu braço, procurando colocá-lo de pé quando ele caiu de joelhos.
– … casa – ele balbuciou. – Vou para casa agora. Para a cama… Comida. Preciso… de comida. Já estou em casa. Olha lá.
Foi assustador vê-lo apontar para a floresta à frente, os olhos absortos como se de fato vissem a mansão em que morava.
E foi então que ela entendeu que não poderia forçá-lo.
– Venha – a outra fêmea lhe disse. – Se ainda está de pé, tem que continuar.
Paradise fitou o par de olhos azul petróleo.
– Odeio isto.
– Nada acontecerá com ele. Lembra, nenhum tiro… em ninguém do grupo que desistiu.
– Vá – ordenou Peyton com um súbito foco. – Vou ficar bem.
No fim, ela não saberia dizer por que colocou um pé diante do outro de novo. Talvez a ausência de introspecção fosse um sintoma da própria exaustão. Talvez também
estivesse delirante e seguiu o que restava do grupo porque seu cérebro os confundia com um “lar”, de certa forma.
Talvez seu corpo simplesmente estivesse no piloto automático.
E, algum tempo depois, só restavam dois.
A outra fêmea, aquela com olhos azuis esverdeados, logo seguiu o que Paradise reconhecia agora como sendo o padrão: primeiro, diminuiu o passo e começou a tropeçar,
para, em seguida, parar de uma vez. Como ela não desabou no chão, Paradise retornou, pensando que ainda haveria uma possibilidade.
– Não – disse a fêmea, cortando qualquer conversa. – Vou ficar aqui. Continue você.
Paradise relanceou o único macho que ainda avançava: Craeg ainda estava na liderança. Como estivera o tempo inteiro.
Não parara para ninguém.
Não oferecera nenhum encorajamento.
Simplesmente mantivera o passo sem desvios nem distrações.
– Não desperdice seu tempo nem suas energias comigo – disse a fêmea. – Tomei minha decisão. Já não sinto mais minhas pernas, e acho que meu ombro está fraturado.
Se consegue continuar andando, é o que precisa fazer. Está cansada demais para me carregar, mas mesmo que você pudesse, eu não seria um fardo para ninguém.
Os olhos de Paradise arderam por causa das lágrimas.
– Cara… que merda…
A fêmea teve que sorrir um pouco.
– Você vai ganhar esta.
– O quê?
– Vai. Você consegue, garota.
Ok, mais alguém estava delirando, evidentemente.
A fêmea lhe deu um empurrão e acenou.
– Prove aos rapazes que não somos apenas iguais a eles, somos melhores. Não me desaponte.
Paradise meneou a cabeça. Se alguém devia vencer a guerra dos sexos, a melhor aposta seria a fêmea diante dela.
– Vai. Você consegue.
Paradise estava praguejando ao se virar e retomar a caminhada. Loucura. Simplesmente uma insanidade.
Quando seus pés voltaram a se arrastar sobre o agora caminho de terra batida, ela voltou a olhar para o céu. As estrelas estavam mais brilhantes do que nunca, o
que lhe dizia que a aurora ainda devia estar distante.
Por quanto tempo estavam caminhando? E quanto mais ainda caminhariam?
Àquela altura, Craeg estava bem distante. De tempos em tempos ela captava o cheiro dele na brisa, mas apenas de leve. Vencedores? Se fosse para apostar num vencedor,
seria ele quem acabaria em primeiro lugar naquilo tudo: ele era mais forte e mais resiliente – e ela tinha que acreditar, mesmo indo contra seus princípios éticos
fundamentais, que aquela personalidade determinada, o comprometimento inflexível consigo próprio o faria levar a melhor em relação ao seu interesse compassivo pelo
próximo.
O peso carregado, quer fosse ele físico, mental ou emocional, tornava o andar mais lento.
E, enquanto ela continuava a caminhar, através do vento frio que já não percebia, sentia a perda de cada um do pequeno grupo, e por todos os outros que sofreram
antes, fosse no ginásio, ou na piscina…
Não, aquele macho que seguia à frente seria o último candidato a permanecer de pé.
Ao fazer a curva num trecho do percurso, avistou uma barreira mais adiante. Estava um pouco distante, mas definitivamente era um obstáculo no meio do caminho.
Não apenas um obstáculo.
Era… Craeg.
Seu cérebro acelerou, ordenando que ela se apressasse; seu corpo, contudo, não conseguia responder à descarga de adrenalina. Mesmo quando seu cérebro apertou todo
tipo de botão de alarme, seu passo não se alterou; aquele arrastar dos pés e as guinadas do tronco permaneceram inalterados pelo pânico.
Chegando perto dele, descobriu que ele caíra de cara no chão, com os braços esticados ao longo do corpo, como se houvessem lhe faltado forças ou consciência para
amortecer o impacto da queda. As pernas estavam frouxas, as pontas dos tênis voltadas para dentro.
– Craeg?
Quando foi se agachar, acabou caindo porque seus joelhos recusaram-se a dobrar. E quando tentou rolá-lo de lado, as mãos ficaram escorregando nas roupas dele, no
ombro, no braço.
Ainda que talvez isso se devesse ao fato de ele pesar o dobro de Peyton.
Só conseguiu virá-lo parcialmente de lado e, Deus, ele estava tão pálido que seu rosto parecia o de um fantasma. Pelo menos estava respirando e, depois de um instante,
seus olhos se abriram numa série de piscadas atordoadas.
Foi bizarro, mas seu primeiro pensamento foi o de oferecer-lhe a veia. Algo que não lhe ocorrera até então, mesmo quando Peyton despencou.
O impulso foi tão forte que ela levou o pulso à boca…
Ele a deteve, dando um tapa no braço dela.
– Não – ele conseguiu dizer com dificuldade.
– Você está sangrando. – Ela apontou para a grande mancha vermelha nos jeans dele. – Precisa se fortalecer.
Quando o olhar dele se prendeu no seu, um estranho tipo de visão em túnel reduziu o mundo inteiro a apenas os dois. A floresta ao redor, a construção na qual haviam
enfrentado as provas, as dificuldades que ambos suportavam… Tudo desapareceu juntamente com as dores e desconfortos em seu corpo e em sua mente.
O olhar dele a limpou. Refrescou-a. Energizou-a.
– Deixe-me aqui – ele murmurou, a cabeça indo de um lado para o outro no chão. – Vá em frente. Você é a última…
– Você consegue se levantar. Consegue continuar…
– Pare de perder tempo. Vai…
– Você tem que se levantar.
Ele fechou os olhos e virou a cabeça para longe dela, como se estivesse pondo um fim àquela conversa.
– Isso é a sua sobrevivência. Sobrevivência significa que você continua, não importa o custo, não importa o sacrifício. Por isso, pare de gastar saliva, volte a
ficar de pé e mexa-se.
– Não quero te deixar aqui. – E também não queria analisar muito de perto os motivos pelos quais se afastara de Peyton, mas parecia não conseguir suportar a ideia
de abandonar aquele completo estranho. – Não vou te deixar aqui.
Os olhos dele se voltaram na direção dela e estavam furiosos.
– Que tal assim: não quero ajuda de alguém como você, não quero ser resgatado por uma fêmea burra… Uma fêmea burra, fraca, desajeitada que nem deveria ter tido
permissão para entrar neste programa, pra início de conversa.
Paradise caiu para trás no chão da floresta, uma dor ardente atravessando o seu peito. Só que ela balançou a cabeça.
– Não é nisso que você acredita de verdade. Não foi isso o que me disse naquela noite em que nos vimos pela primeira vez. Você me disse para vir para cá mesmo quando
meu pai não queria me deixar vir.
– Eu menti.
– Está mentindo agora.
Ele voltou a fechar os olhos.
– Você não me conhece.
Quando ele ficou em silêncio, ela sentiu uma onde enorme de exaustão caindo sobre ela.
– Não, não conheço.
Olhando além dele para a trilha que seguia em frente, tentou se imaginar ficando de pé e voltando a andar… e não conseguiu. Em algum momento entre a última vez
que estivera na vertical e aquele atual instante de bunda no chão, sentia-se como se houvesse ganhado uns trezentos quilos – e não só isso. Parecia que alguém batera
nos seus dois pés com um martelo. E na cabeça também. E nos ombros.
Paradise voltou a olhar para o caminho de onde vieram. Pensara mesmo que uma caminhada não seria tão ruim assim?
– O seu lugar não é aqui – ela o ouviu dizer.
Paradise revirou os olhos.
– Estou entediada com essa linha de pensamento. Se acredita mesmo nisso, não teria me dado aquele conselho no começo da noite.
– Senti pena de você. Tive dó.
– Então você tem coração.
– Não.
– Então, como pode sentir pena de mim e de qualquer outro? – Quando ele apenas grunhiu, ela ficou bem ciente de que ambos eram indivíduos teimosos e insistentes,
e que nenhum deles estava raciocinando direito. – Tudo bem, me acompanhe… Se não tem coração, porque se deu ao trabalho de testar as garrafas de água para todos?
As barrinhas de cereais. Não foi só por mim.
– Sim, foi.
Paradise ficou quieta. A cabeça dele estava virada para o outro lado, mas teve a estranha sensação de que acabara de dizer a verdade.
– Mas não passo de uma estranha para você.
– Já disse. Fiquei com pena. Os outros sabiam cuidar de si mesmos e um grupo dá segurança.
– Então espera. Qual dos dois você é: misógino com uma consciência ou companheiro de equipe apesar de eu ser uma garota? Você muda de opinião que nem um político.
Ele grunhiu e levantou um braço.
– Você está fazendo a minha cabeça latejar.
– Acho que isso é culpa do teste de resistência. Não minha.
– Pode ir embora? Um pouco mais desta conversa e vou ficar tão enjoado quanto o seu namorado ficou.
– Meu namor… Peyton? Está falando do Peyton?
Ok, estavam mesmo ali sentados conversando como se nada mais estivesse acontecendo?
Bem… discutindo como se nada mais estivesse acontecendo?
– Faça-me um favor – disse o macho. – Está vendo aquela pedra ali?
Ela olhou para a esquerda.
– Aquela? Do tamanho de uma geladeira portátil?
– Essa mesma. Pode pegá-la e jogá-la na minha cabeça? Isso seria ótimo. Obrigado.
Paradise esfregou os olhos, depois abaixou as mãos quando apoiar os braços nos joelhos se tornou um esforço muito grande.
– Qual o seu nome completo? Se vou te matar atendendo a um pedido seu, preciso saber o que escrever na sua lápide.
Aqueles olhos voltaram a se concentrar nela. Azuis da cor do céu. Eram de um incrível tom de azul.
– Que tal fecharmos um acordo? – ele murmurou. – Você simplesmente me deixa em paz aqui morrendo e não vai ter que se preocupar com sangue nos seus sapatos, ou
qual é o meu nome.
Paradise desviou o olhar.
– A terceira vez não é a da sorte.
– O quê?
Ela esperou que ele lhe dissesse a sua linhagem. Quando não o fez, ela deixou isso por conta da exaustão… e dos seus antepassados plebeus.
– Pode ir embora agora, por favor? – ele sussurrou. – Por mais que eu tenha “apreciado” esta nossa conversa, estou quase desmaiando… e quero acabar logo com isto.
Preciso dormir.
– Você consegue fazer isto… Consegue continuar.
Ele não respondeu nem demonstrou tê-la ouvido e, de modo estúpido, ela sentiu como se ele tivesse rejeitado um presente que ela tentara lhe dar. E isso não era
arrogância?
– Então é isso… – disse, basicamente para si mesma.
Mais uma vez nada; contudo, ela não achava que ele tivesse desmaiado de verdade.
E então, assim como fizera antes, ele falou quando ela não esperava:
– Chegou a hora de você resolver quem você é. Isso acontece em momentos como este. Você é alguém que desiste, ou alguém que segue em frente?
Mas eu sempre pararia para te ajudar, ela pensou consigo. E ajudar ao próximo não é desistir.
– Não quer descobrir quem mais você é… além de uma recepcionista?
Ela franziu a testa.
– Todo tipo de trabalho é honrado.
– E talvez exista grandeza à sua espera, mas só se você se levantar e seguir em frente.
Deus, ela já não sabia… mais de nada àquela altura.
Com o calor da raiva se dissipando, sentiu um tamanho cansaço que parecia que ia desabar ali mesmo.
Quem sou eu?, perguntou-se.
Era uma boa pergunta.
E não fazia ideia de qual era a resposta. O que de fato sabia? Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, o Rei Cego, não era o tipo de pessoa que
ficava sentada ao lado de um desconhecido que não a queria por perto e que não pedia para ser salvo enquanto houvesse uma possibilidade de conseguir erguer o pé,
andar mais cem metros, mais um quilômetro naquele desafio.
Baixou os olhos para Craeg. Assim como com ela, as roupas dele estavam manchadas de sangue, de suor, de terra, o cabelo estava duro por ter secado sem ter sido
escovado, o corpo era um trapo largado de qualquer jeito.
– Cuide-se – disse ela ao se esforçar para se levantar.
Ele não respondeu. Quem sabe tinha realmente desmaiado? Ou talvez só estivesse aliviado por ela finalmente ir embora. De todo modo… não era da sua conta.
Quando foi avançar a perna direita, descobriu que tudo em seu corpo físico – da nuca até a coluna, das panturrilhas a todas as juntas e tudo no meio – era um conjunto
ardente de dor. Mas pôs um pé à frente. E repetiu. E fez de novo. E…
Não tinha a menor ideia do que a fazia ir em frente. Não se importava em vencer. Não fazia aquilo para provar a ninguém que estavam errados, ou que as fêmeas tinham
valor. Sequer sabia se estava tendo pensamentos conscientes.
Paradise só continuou andando… porque era isso o que fazia.
Queimação.
Algum tempo depois, ela só sentia queimação: nas pernas e nos pés… nas entranhas e nos pulmões… na garganta – Deus, a garganta pegava fogo –, no crânio… no rosto.
Fogo ao redor dela, dentro dela, como se as veias tivessem gasolina dentro delas e os músculos estivessem queimando de dentro para fora.
Luzes brilhantes nos olhos também.
Uma luz tão brilhante.
Brilhante demais.
Só que não estava amanhecendo. O céu ainda estava escuro. Pelo menos ela achava que estava.
Bem de leve, um pensamento surgiu em meio à sua agonia. Aquilo seria o Fade? Aquela iluminação, aquela dor, o calor?
Teria morrido de algum modo?
Mas não se lembrava de ter morrido. Sabemos quando morremos? Mas o que mais poderia explicar aquela ardente agonia?
Andando… Ainda estava andando. Ou talvez o mundo estivesse se movendo debaixo dos seus pés e ela só estava parada sem se mexer? Era difícil determinar. Via tudo
em dobro, a floresta se adensando de ambos os lados da cerca eletrificada, a trilha que seguia se bifurcando ao longe, de modo que ela sentia que devia escolher
tomar a direita ou a esquerda, só que quando ela voltou a olhar havia um só caminho outra vez.
Fogo… o Fade.
Não!, pensou atordoada. Deus, seu pai! Ah, aquilo era horrível. Abalone ficaria sozinho agora, sem ninguém mais naquela imensa mansão Tudor, sem as suas duas fêmeas…
Paradise parou.
O caminho à frente não estava mais livre.
Ao se concentrar na barreira alta e sólida diante dela, a visão dupla se agrupou no que era uma representação mais acurada da realidade… e ela viu que era um grupo
de machos.
Devia haver… uma dúzia, talvez mais.
E todos estavam vestidos de preto, com capuzes escondendo os rostos e fortemente armados.
A Irmandade a acolhia no Fade?
Isso não fazia sentido.
Ao vacilar sobre os pés, percebeu que eles se aproximavam, andando numa densa formação de corpos impossivelmente grandes.
Corra!, uma voz interna comandou. Corra! Isso é outro teste!
Só que ela não tinha mais forças. Nenhuma energia sequer para sustentar o pânico por mais tempo do que aquele único pensamento orientado para a ação.
Balançando no ar, pegando fogo por dentro e por fora, ela pensou: que se foda. Violara algum limite de tempo, falhara naquele módulo, fracassara em qualquer que
fosse aquela parte do treinamento e o jogo se encerrava para ela. Não havia como recomeçar, nenhuma motivação estava ao seu dispor, quer interna ou externamente.
Mesmo se atirassem nela, se a picassem em pedacinhos, se a derrubassem e passassem por cima… Não tinha nenhum espírito de combate para lhes oferecer.
Então, esse era o seu fim, hein? Cara, seu pai ficaria furioso quando eles a matassem.
Parando num movimento coordenado, como se funcionassem sob o comando de um só cérebro, a Irmandade se deteve diante dela, e todos ergueram as mãos. Preparando-se
para algo que fosse doer, ela…
Eles começaram a bater palmas.
Um a um, ergueram as mãos grandes, batendo palmas enquanto a fitavam. E enquanto a rodada de aplausos continuava, tiraram suas máscaras, revelando-se para ela.
– O que foi? – ela murmurou. – Não estou entendendo.
Ou melhor, foi o que ela teve a intenção de dizer. Estava sem voz, não lhe restava nada para manifestar as palavras que sua mente desejava que emitisse.
Butch, aquele com o sotaque de Boston, avançou um passo.
– Parabéns – disse com firmeza. – Você é a Primus.
Paradise não fazia ideia do que aquilo significava. E não havia a mínima chance de pedir que ele repetisse.
Como se alguém tirasse um computador da tomada… tudo ficou escuro para ela, entre um batimento do coração e o seguinte.
Capítulo 12
ENQUANTO ESPERAVA DO LADO de fora da sala de exames da doutora Jane, Butch apoiou a bunda na parede de concreto do corredor do centro de treinamento e deixou a
cabeça pender. De tempos em tempos, esfregava os olhos.
O que não ajudava muito.
Na verdade, não ajudava nada. A cada piscada de olhos, ele via Paradise cambaleando no meio da trilha que eles formaram na floresta para os trainees, parecendo
ter saído de uma guerra, o cabelo todo emaranhado, sujeira no rosto, as roupas em farrapos, sangue nas mãos. E quando ela conseguiu focalizar os Irmãos, o olhar
dela estava vazio como um crânio oco; o corpo, uma confusão dissonante de membros desajeitados, frouxos; seu espírito, alquebrado.
Maldição, não conseguia evitar visualizá-la como na noite anterior, enquanto estivera terminando de ajeitar as coisas para seu pai na casa de audiências. Imaculada,
então. Desperta, alerta, feliz, ainda que nervosa com a possibilidade de a sua inscrição ser revogada pelo pai, pela Irmandade, pelo Rei.
Inferno, talvez devessem tê-la deixado de fora.
Mas não teria sido justo.
A boa notícia, supunha, era que o programa projetado por ele e por Vishous dera resultado. O objetivo fora reduzir a classe de sessenta candidatos a abaixo de dez
alunos.
Tinham sete com quem trabalhar.
Todos os que chegaram ao trajeto na floresta estavam dentro.
Mas ele não podia dizer que se sentia bem com isso. Talvez se o último a resistir tivesse sido um dos machos robustos… Como Craeg, aquele líder nato, o tipo de
cara perfeito para a vida de soldado… Se ele tivesse ficado por último, Butch tinha quase certeza de que não estaria tendo uma crise de consciência agora.
Não que ele não acreditasse que as fêmeas pudessem dar conta do recado. Ele só…
A porta para a clínica se abriu, e V. surgiu. Quando o Irmão imediatamente acendeu um dos seus cigarros, Butch se perguntou se o cara também não estaria se debatendo
com tudo o que fizeram. Não que o filho da mãe um dia fosse admiti-lo.
– Ora, isso foi divertido – disse o Irmão com seu imperturbável ar soturno. – Podemos repetir amanhã?
– Ela está bem?
– Está. – V. exalou ao guardar o isqueiro. – Desidratada. Pés machucados. Esfolada em alguns lugares. Está sendo acomodada no quarto dos beliches por Ehlena agora.
– Ainda está inconsciente? – Caralho, aquilo era bem ruim. Muito ruim.
– Indo e vindo. Não queremos que ela nos processe, certo?
– É.
Houve uma pausa.
– O que foi? Olha só, eu disse que ela vai ficar bem.
Butch só balançou a cabeça. Sem dúvida, considerando-se o seu passado “sadomaso”, V. estava acostumado a fêmeas – e machos – acabados, e mesmo assim se safando
da situação sem problemas. Como antigo detetive de homicídios, no entanto, Butch levava as coisas para uma direção diferente: ele enxergava vítimas.
Revivia cenas de crime com corpos de mulheres destroçados como carros envolvidos em acidentes sérios. E, não, elas não saíam andando, não ficavam “bem”.
Pelo amor de Deus, ele se lembrava da imagem da própria irmã ao olhar pela janela de trás do carro de seu assassino, para nunca mais ser vista com vida.
Por isso, sim, as associações não eram as mesmas.
– Quer beber alguma coisa? – V. lhe perguntou.
Entenda-se: você está com a cara péssima.
Butch pegou o celular. Enviara uma mensagem de texto para Marissa assim que levaram Paradise para dentro, mas não houve nenhuma resposta. Pelo visto, era uma noite
ocupada para a sua companheira.
– Tudo bem se eu der uma saída? – perguntou ao colega de quarto.
– Vai para a igreja de novo?
Cara, aquele filho da puta o conhecia bem demais.
– Ainda faltam umas duas horas até o nascer do sol. – Deu um tapa no ombro do melhor amigo. – Te vejo na Última Refeição.
Estava na metade do caminho até o escritório, onde ficava a entrada para o túnel, quando V. o chamou.
– Você não fez nada errado hoje à noite.
Butch assentiu. Depois olhou por cima do ombro.
– Isso não significa que eu esteja contente por apresentar a guerra para um punhado de crianças.
– Ou nós fazemos essa apresentação, ou a própria guerra os encontrará em seus termos.
– É, isso é necessário, pode até ser para o bem deles. Mas não me cai bem.
Quando seguiu em frente, sentia aqueles olhos duros e límpidos de diamante observando-o, e ficou contente por estar se afastando do cara e não indo ao seu encontro.
Vishous era bom demais em interpretá-lo, e ele desejava tudo o que o estava desequilibrando só para si.
E, sim, era por isso que iria para a igreja. Era o que bons moços católicos e tementes a Deus faziam quando estavam com as mentes fodidas.
Paradise despertou de repente, não apenas retornando à consciência lentamente, mas sendo catapultada à total percepção, as mãos batendo no que quer que estivesse
deitada, o tronco se erguendo, os olhos se arregalando…
Estava pronta para qualquer coisa…
Exceto para o ambiente limpo e bem-iluminado repleto de beliches e absolutamente vazio a não ser por ela.
– Mas que…
Ao olhar ao redor, o pescoço estalou, e isso abriu a comporta para todo tipo de sensações desagradáveis represadas: os pés latejavam, o quadril a matava, as coxas
estavam pegando fogo, tinha cãibra numa panturrilha, e seu estômago doía como se tivesse levado um soco no abdômen.
Virando as pernas para o lado do chão, descobriu que estava coberta por uma camisola hospitalar e um roupão leve.
– Não se preocupe, você foi examinada por uma médica e por uma enfermeira.
Ela se virou na direção da porta.
– Peyton?
Seu amigo estava meio para dentro, meio para fora da soleira, sem as roupas sujas e com um roupão frouxo preso à cintura em seu lugar. Evidentemente tomara um banho,
comera e bebera, e estava bem perto do seu normal: a bela aparência, o sorriso sardônico, os olhos sensuais reavivados.
– Ou pode me chamar de Papai Noel. – O amigo avançou e lhe entregou uma xícara de café. – Afinal, eu lhe trouxe um presente.
– Espera, espera… Onde estamos? O que…
– Toma. Beba isto. – Peyton se sentou no beliche ao lado dela. – E antes que me pergunte, não há nada aí além de duas colheres de açúcar e um pouco de leite. Lembro
como você gosta.
– Que horas são? – Aceitou o café, só para ser educada. – Ai, meu Deus, o meu pai…
– Eu mesmo liguei para ele. Estamos no centro de treinamento da Irmandade. Nós sete entramos no programa; você, em especial. Parabéns, Parry. Você conseguiu.
Ela franziu o cenho e deu um golinho. Depois gemeu.
– Ai, meu Deus… Essa é a melhor coisa que já experimentei na vida!
Ele se levantou e se aproximou de uma mesinha lateral.
– Última Refeição, minha senhora.
Quando ele aproximou uma bandeja com pratos cobertos, ela teve que se controlar para não esvaziar a xícara toda num gole só.
– Onde está todo mundo?
– Num refeitório ou sala de descanso bem aqui do lado. A maioria está dormindo. Pedi que a enfermeira te colocasse aqui por motivos óbvios.
– Óbvios… – Ah, certo. – Obrigada.
– Pois é, sem acompanhante… Mas eu tenho te espiado a cada quinze minutos.
Depois de tudo que passara naquela noite, sua virtude parecia a última coisa com que tinha que se preocupar. Mas não era possível se libertar desse tipo de educação
de toda uma vida de uma hora para outra.
– Coma – ele disse. – Tudo fica melhor depois que a gente come.
Apoiou a bandeja ao lado dela na cama e começou a tirar as tampas. Uma olhada para as fatias de rosbife e para o purê e ela ficou faminta.
Mas antes de avançar, teve que perguntar:
– Todos nós sete? Desde que a gente… sabe, saiu junto? Todos nós?
– Axe, Boone, Novo, Anslam e Craeg.
Ela baixou o olhar ao escutar o último nome.
– Então essa é a nossa turma?
– Isso mesmo.
Pegando o garfo e a faca, ela gemeu quando se virou na direção do prato, e suas costelas emitiram um protesto do tipo O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTá FAzENDO?
– Droga, não consigo me mexer sem…
– Advil. Vou te trazer mais. – Peyton foi para a porta e parou. – Eu te devo desculpas.
– Pelo quê?
– Por pensar que você não conseguiria fazer isto. – Olhou para ela. – Teve razão ao brigar comigo no ônibus. Provou que eu estava errado. Lamento muito.
Paradise exalou fundo.
– Obrigada. Isso significa muito para mim.
Ele assentiu.
– Venha para cá quando estiver pronta. Só estamos conversando para passar o tempo.
– Ei, Peyton? – ela o chamou antes que ele pusesse a mão na maçaneta.
– Oi?
– Pode me fazer um favor?
– Manda ver.
– Não conte a ninguém… Você sabe, sobre quem eu sou. Não quero ser tratada de maneira diferente. Só quero ser como todo mundo.
– Anslam sabe. Mas posso falar com ele e mandar ele ficar de bico fechado.
– Obrigada.
Peyton olhou para o chão por um instante.
– Qualquer coisa por você.
Depois que ele saiu, Paradise comeu o quanto pôde, que, no fim, foi tudo o que estava na bandeja, inclusive os pãezinhos frescos e as ervilhas. Terminou o café
e tomou as duas garrafas de água que acompanhavam tudo. Depois claudicou até o banheiro num dos cantos.
A chuveirada estava tão quente que ela se surpreendeu em ver que a tinta não escorria pelas paredes, mas, ah, delícia, seu corpo relaxou debaixo do jato penetrante.
As bolhas nos pés doíam, assim como outros lugares aleatórios, a exemplo do cotovelo direito e do joelho esquerdo que estavam, assim como os ombros, ralados por
algum motivo. Não tinha importância. Era o paraíso.
Pendendo a cabeça, deixou a água escorrer pela nuca.
Estava contente que Peyton tivesse ligado para seu pai. Já estava quase amanhecendo, e não desejava que o macho se preocupasse, mas não estava pronta para falar
sobre tudo o que acontecera. Precisava de tempo para pensar, para processar, para avaliar.
Havia xampu ali. Usou-o sem olhar a marca. O mesmo com o condicionador. E com o sabonete.
Quando saiu, sentiu-se mais perto de ser ela mesma, mas isso mudou quando olhou para seu reflexo no espelho sobre a pia.
Aproximando-se, observou suas feições como se pertencessem a outra pessoa – e lhe pareceram desconhecidas. O rosto estava bem mais magro e, mesmo sem maquiagem,
seus grandes olhos pareciam sobressair sobre todo o resto, como numa criança.
– Quem sou eu? – sussurrou para seu reflexo.
Capítulo 13
A CATEDRAL DE SÃO PATRÍCIO EM CALDWELL era uma velha e imponente senhora, erguendo-se do chão como um testemunho tanto da misericórdia de Deus quanto da habilidade
do homem em cimentar blocos de tijolos. Ao estacionar seu novo Lexus, Butch pensou que era muito engraçado que, de todos os seus traços de humanidade a terem sobrevivido
após a transição para vampiro, o que mais ficara arraigado fora a fé.
Era um católico melhor agora do que fora quando era Homo sapiens.
Abaixando a aba do boné dos Red Sox, passou pela porta dianteira que, sozinha, era maior do que a casa inteira em que crescera, no sul de Boston.
A catedral estava sempre aberta, era uma Starbucks da espiritualidade, pronta para servir o que fosse necessário quando as almas se sentissem perdidas e titubeantes.
Monsenhor, preciso de um “venti”* de perdão, muito obrigado. E um bolinho que magicamente possa me dizer que porra está acontecendo de errado na minha vida.
O segurança sentado numa cadeira no vestíbulo levantou o olhar da sua revista Sports Illustrated e acenou para ele. O cara estava acostumado a vê-lo entrar antes
do amanhecer.
– Noite… – o guarda o cumprimentou.
– Tudo bom?
– Bem. E você?
– Também.
Sempre a mesma conversa, e a troca de sete palavras já fazia parte do ritual.
Cruzando o tapete vermelho grosso, Butch inspirou profundamente e captou a tranquilidade do cheiro familiar de incenso, de velas feitas com cera de abelha, de lustra-móveis
de limão e de flores verdadeiras. Ao empurrar as pesadas portas de madeira entalhada para entrar no santuário majestoso, não gostou de ficar de boné, mas tinha que
esconder o rosto.
No entanto, sua mãe teria um acesso – desde que a demência dela se ausentasse por tempo suficiente para que ela conseguisse entender alguma coisa.
O fato de ela ter meio que enlouquecido fez com que abandonar o mundo humano fosse muito mais fácil. E, de tempos em tempos, ele e Marissa iam visitá-la, materializando-se
no quarto da casa de repouso em Massachusetts porque sabiam que as lembranças não durariam.
Butch parou e inspirou fundo, o sangue bombeando, a pele pinicando. Girando, franziu o cenho ao ver uma figura solitária sentada num dos bancos de trás.
– Marissa?
Mesmo que sua voz não estivesse alta o bastante para ser ouvida, sua companheira levantou a cabeça, pois sua presença fora percebida.
Apressando-se sobre o piso de pedra, entrou de lado na fileira em que ela estava, tentando não tropeçar nas pontas dos genuflexórios.
– O que está fazendo aqui? – ele perguntou ao perceber o cheiro das lágrimas.
Os olhos dela estavam marejados quando ele se aproximou, e ela se esforçou para sorrir, mas não conseguiu ir muito longe.
– Estou bem, de verdade, eu…
Ele se sentou ao lado dela – despencou seria uma melhor descrição –, e segurou suas mãos frias. Ela ainda estava com seu casaco Burberry, e o cabelo estava emaranhado
nas pontas, como se ela tivesse ficado caminhando ao vento.
Butch balançou a cabeça, o coração disparado.
– Marissa, você precisa falar comigo. Está assustando seu maldito marido.
– Desculpe.
Ela não disse mais nada, mas se recostou nele, permitindo que o corpo dele suportasse seu peso, e só isso já era uma explicação: qualquer que fosse o problema,
não era culpa dele.
Butch fechou os olhos e a amparou, esfregando-lhe as costas.
– O que está acontecendo?
A história saiu aos poucos: uma fêmea jovem… o gramado do Lugar Seguro… brutalizada… a operação de Havers… a morte inevitável… nenhuma identificação, nenhuma informação,
nenhuma família.
Deus, odiou que sua shellan preciosa tivesse sido exposta a toda aquela situação horrenda. Ah, e P.S., que aquele irmão dela se fodesse, de verdade.
– E agora não sei o que fazer por ela. – Marissa emitiu um suspiro trêmulo. – Eu só… sinto que não fiz o bastante para salvá-la enquanto ela estava viva e agora
ela se foi… e sei que era uma desconhecida, mas não importa.
Butch permaneceu calado porque quis dar todas as oportunidades para a sua companheira continuar falando. E, enquanto esperava, pensou que conhecia muito bem aquele
maldito sentimento de autorresponsabilização, ainda que indevida. Na época em que trabalhara para a divisão de homicídios na Polícia de Caldwell, sentia exatamente
a mesma coisa por cada uma das vítimas dos casos que investigava. Incrível como completos estranhos podiam se tornar tão próximos.
– É tão injusto para ela. Isso tudo. – Marissa se voltou para a bolsa, tirou um lenço de papel e assoou o nariz. – E eu não queria te contar nada porque sei que
estava muito ocupado…
– Errado – ele a interrompeu. – Não existe nada mais importante do que você.
– Ainda assim…
Virou o rosto dela para si.
– Nada.
Quando ela voltou a chorar, ele enxugou seu rosto.
– Como pode duvidar disso?
– Não sei. Não estou pensando direito. – Pressionou o lenço no nariz. – E vim para cá porque é aqui que você sempre vem.
Muito bem, isso aqueceu demais o coração dele.
– Ajudou?
Ela deu um leve sorriso.
– Bem, isso acabou nos reunindo, não foi?
Acomodando-a ao seu lado, passou o braço ao redor dela e ficou olhando para as fileiras de bancos de madeira encerada até aquele magnífico altar com sua cruz dourada
e a imagem de Jesus de seis metros no crucifixo. Graças às luzes externas, os vitrais brilhavam nas grandes janelas arqueadas que se estendiam até os contrafortes
góticos lá no alto. E as capelas que honravam os santos brilhavam com as velas votivas acesas pelos visitantes da noite, as imagens de mármore representando a Virgem
Maria, João Batista e os arcanjos Gabriel e Miguel oferecendo suas graças para quem precisasse.
Não queria que sua companheira sofresse, mas estava tão aliviado por ela tê-lo procurado… Como macho vinculado, seu primeiro instinto era sempre o de proteger a
sua shellan, e o retraimento dela, mesmo tendo durado apenas um dia, fora uma espécie de amputação.
– Etambémnãoteconteiporcausadasuairmã.
– O quê? – ele murmurou, beijando-a no alto da cabeça.
– A sua irmã…
Butch enrijeceu, mas não pôde evitar. Mas, verdade, qualquer menção àquela porção do seu passado bastava para que ele sentisse como se alguém o tivesse eletrocutado
com a bateria de um carro.
– Tudo bem – ele disse.
Marissa se endireitou.
– Não quis aborrecer você. Quero dizer, você nunca fala… hum, do que aconteceu com ela.
Olhou para as mãos da fêmea. Estavam se retorcendo nervosamente no colo, transformando o lenço de papel numa bolinha.
– Você não tem que se preocupar comigo. – Afastou o cabelo dela para trás dos ombros, acariciando os fios finos e macios. – Essa é a última coisa que precisa fazer.
– Posso perguntar uma coisa?
– Qualquer coisa.
Quando ela não disse nada de imediato, ele moveu o rosto para a linha de visão dela.
– O quê?
– Por que nunca fala comigo sobre a sua vida antes de me conhecer? Quero dizer, sei algumas coisas… Mas você nunca fala disso.
– Você é a minha vida agora.
– Humm.
– Onde quer chegar?
Ela olhou para ele e deu de ombros.
– Não sei o que estou dizendo. Só estou falando sem pensar.
A bolsa dela emitiu um bing!, e ela a colocou no colo. Enquanto pegava o telefone, ele a observou de muito longe, apesar de estar sentada bem ao seu lado.
– É uma mensagem do Havers – disse ela. – Os restos mortais estão prontos para eu pegar.
Butch se pôs de pé.
– Vou com você.
Marissa o fitou.
– Tem certeza de que tem tempo?
Só o que ele pôde fazer foi sacudir a cabeça, desconsiderando a pergunta.
– Venha. Eu te levo de carro para o outro lado do rio. Ainda temos uma hora inteira de escuridão.
Embora Craeg estivesse relativamente confortável num poltrona com assento e braços estofados, tudo nele doía com tamanha intensidade que ele podia muito bem estar
sentado sobre uns atiçadores de lareira. Parte disso era culpa sua. Depois que fora trazido do campo numa maca, recusara os analgésicos que lhe ofereceram após o
exame médico. Contudo, aproveitara a comida, o banheiro e as bebidas.
Mas só. Desde que os seis foram levados até aquele cômodo/refeitório/sala de descanso, com sua decoração de concreto e tapetes ao estilo dos dormitórios universitários,
com TV e cozinha embutida, ele ficara à parte dos demais. Depois de descobrir seus nomes, mantivera-se na periferia do grupo, ouvindo as histórias deles sem dar
nenhum detalhe sobre a sua.
Não que ele tivesse muito para partilhar. Era o único que restava da sua família e não estava disposto a revelar lembranças pessoais sobre os ataques.
No que ele prestou atenção foram as escapadas daquele cara, Peyton. O filho da mãe se levantava do sofá para dar uma espiada no quarto dos beliches a cada dez segundos.
Por que o cara simplesmente não ficava lá?
Daquela vez, quando Peyton enfiou a cabeça pela porta, houve uma troca de palavras. Depois entrou lá e fechou a porta de vez. Quando o macho voltou depois de um
tempo, foi até o cara chamado Anslam e sussurrou alguma coisa. O que quer que tivesse sido, Anslam concordou com um encolher de ombros e um aceno de cabeça.
Depois disso, Peyton voltou a se sentar no meio da sala.
Não muito depois, Paradise saiu de lá. E, no instante em que passou pela soleira, todos olharam para ela, a conversa sobre Tosh.0* parando por completo.
Craeg desviou o olhar dela, mais por se ressentir pra cacete do fato de sua pressão subir e de seus batimentos cardíacos acelerarem só de ver aquela fêmea.
Maldição, nenhuma daquelas pessoas era da sua conta. Principalmente ela.
– Senhora e senhores – disse Peyton. – Eis a nossa Primus.
– Não me chame assim – ela disse entre dentes antes que qualquer tipo de aplauso acontecesse. – Nunca.
– Por quê? – Novo a desafiou. – Você nos venceu. Durou mais tempo. Devia estar orgulhosa pra cacete.
Ok, ali estava uma fêmea por quem poderia se interessar – não que quisesse se envolver sexualmente com ninguém naquele momento. Ainda assim, Novo era o seu tipo
de “dama”: uma que sabia se virar num trajeto com obstáculos e, evidentemente, era do tipo que primeiro batia no agressor e só fazia perguntas depois que a mandíbula
que ela quebrara estava consertada.
Novo também ficava bem atraente com aquela camiseta branca folgada da Hanes e aquelas calças de médico pelas quais trocara as roupas sujas.
Também não era o único a notar isso. Anslam, Axe e até o maldito Peyton ficavam secando-a intensamente, não que ela parecesse se importar ou sequer notar.
A recepcionista, por sua vez, sem dúvida devia estar acostumada que todos a fitassem. Loiras como ela nunca deixavam de chamar a atenção.
O que também as transformava em alvos.
E, sim, foi nisso que ele pensou quando estivera diante da escrivaninha dela e sugerira que ela se inscrevesse no programa. Claro, uma fêmea como ela era protegida
pelos machos da sua família, mas nem sempre isso dava certo, não é mesmo?
Sua própria irmã estaria viva hoje se fosse verdade.
– … com a gente?
Craeg olhou para Novo.
– O que foi?
– Vamos procurar alguém para nos dar mais alguma coisa para comer. Acabamos com o que havia na geladeira e nas prateleiras. Quer vir?
– Não.
– Então pego um pouco daqueles Oreos com recheio duplo para você. Você comeu todos.
– Você não precisa fazer isso.
– Eu sei – ela disse antes de se virar.
Cruzando os braços sobre o peito, fez uma careta ao enfiar ainda mais a bunda na poltrona e esticar as pernas. Fechar os olhos. Era disso que precisava. E, ao ouvir
a porta se fechar, suspirou.
– Não está com fome?
Suas pálpebras se ergueram e ele virou a cabeça. Paradise ainda estava ao lado da porta do quarto com beliches, e parecia relaxada como ele já não se sentia, parada
com os braços ao redor do corpo e as lapelas do roupão apertadas junto ao pescoço.
– Não – ele respondeu, ríspido.
Merda, não havia motivo para arrancar a cabeça dela.
– Quero dizer… Não. – Maravilha. Agora estava parecendo um idiota.
– Como estão os seus pés?
– Bem. – Houve uma pausa, como se ela estivesse esperando que ele lhe perguntasse o mesmo. – Olha só, por que você não vai com os outros…
– Não pode me expulsar daqui, sabe?
Craeg saltou da poltrona e diminuiu a distância entre eles. Invadindo seu espaço pessoal, ele se certificou de lhe dar bastante tempo para medir exatamente o seu
tamanho.
– O que você estava dizendo? – ele sugeriu em voz baixa. – Ou está de saída?
Os olhos azuis dela se arregalaram.
– Está me ameaçando?
– Apenas sugerindo uma realocação que será melhor para nós dois.
– Por que você não sai?
– Cheguei aqui primeiro.
– Porque você perdeu… Certo? Perdeu para uma garota… Não é? – provocou, cantarolando.
Craeg contraiu as mandíbulas.
– Não me provoque, ok? A minha noite foi tão longa quanto a sua.
– Foi você quem veio aqui como um touro enfurecido. E eu sairia, porque, de fato, não gosto de você tanto quanto achei que gostasse. Mas a verdade é que os meus
pés estão doendo tanto que não consigo andar e sou orgulhosa demais para pedir uma cadeira de rodas.
Idiota.
Completo.
E absoluto.
Sim, era mais ou menos assim que ele se sentia ao baixar os olhos para os pés dela e vê-los descalços e vulneráveis em sua deplorável condição: profundos vergões
vermelhos se destacavam nas laterais e no peito dos pés, e o direito estava tão inchado que não parecia pertencer ao fim daquela canela fina.
Fechou os olhos por um instante. Afaste-se. Só volte para o seu lugar, camarada, e se sente, deixe que ela vá mancando para o sofá e se estique… ou volte para o
quarto… ou crie asas e saia voando para longe do seu pobre traseiro.
Em vez disso, ele se viu afundando até o chão. Os dois joelhos rangeram tão alto que foi como se dois gravetos tivessem sido partidos na sala silenciosa, e as coxas
e as panturrilhas gritaram com a mudança de posição.
– Parecem bem ruins – comentou com suavidade.
Não teve a intenção de esticar a mão e tocar na pele. Não mesmo. Mas, de alguma forma, a mão avançou e roçou de leve o peito do pé esquerdo dela, na única região
que não estava vermelha.
Acima dele, ouviu-a inspirar forte e, por algum motivo, não confiou em si mesmo para olhar para ela.
– Eu te machuquei?
Demorou um pouco para ela responder quase sem voz:
– Não.
Ele deslizou as pontas dos dedos médio e indicador com tanta leveza sobre o pé dela que mal conseguiu sentir-lhe o calor da pele.
O corpo de Craeg estremeceu. E sua voz não estava tão firme ao dizer:
– Odeio ver estas marcas em você.
Ela devia ter outras em outros lugares. Contusões, arranhões, esfoladuras. Queria tocar em todas.
Tocar em outras partes do corpo dela também.
Aquilo era ruim, ele pensou. Bom Deus, era muito ruim…
Seu desejo sexual estivera dormente por muito tempo e a última coisa que precisava agora era que ele despertasse, ainda mais naquelas circunstâncias. Ainda mais
com uma fêmea como Paradise.
Não é preciso ser da aristocracia para ser uma dama. Mesmo as plebeias trabalhadoras poderiam ter padrões e se resguardar decorosamente para uma vinculação adequada.
Que não se daria com o filho órfão de um colocador de pisos.
Ah, e evidentemente ela era virgem.
A maneira como ela se continha lhe dizia isso. O modo como Peyton, que obviamente era um conquistador, respeitava o espaço dela também lhe dizia isso.
Mas ele soube principalmente por aquele ar suspenso, aquele “não” sussurrado.
Aquilo era muuuuuito ruim.
O “venti” é um tamanho de bebida nas lojas Starbucks. (N.T.)
Tosh.0 é um programa de TV americano do gênero comédia criado pelo comediante Daniel Tosh que tem como foco vídeos virais da internet. (N.T.)
Capítulo 14
O CORAÇÃO DE PARADISE parecia ter saído de um ensaio de bateria, e as ondas de calor açoitando seu corpo eram tão fortes e reluzentes quanto um conjunto de címbalos.
Craeg estava no chão diante dela, seu grande corpo dobrado numa espécie de posição sentada bastante estranha, os músculos dos ombros esticando-se debaixo da camiseta
branca e fina, a cabeça escura inclinada enquanto ele deslizava as pontas dos dedos com muita leveza sobre o dorso do seu pé.
Mesmo exausta, ela sentia cada nuance do toque dele – e também estava dolorosamente ciente de estar nua debaixo do roupão e da camisola hospitalar.
Caramba… Deixe de lado as dores e os desconfortos. Agonia?
A única coisa registrada por seu corpo era um grande e indefinido potencial que ela não compreendia por completo, mas sobre o qual tampouco era completamente ignorante.
Aquilo era… atração sexual. Luxúria. Desejo.
Naquele exato lugar, naquele exato instante.
Atração química impenitente, inclemente, intransigente.
– Eu não deveria estar tocando em você assim – disse ele com suavidade.
Não, ela pensou. Não deveria.
– Não pare.
A cabeça dele virou num ângulo, e seus olhos se fixaram nos dela.
– Não é uma boa ideia.
Definitivamente não era. Mas não era mesmo, certeza absoluta.
– Sinto-me extasiada.
Craeg fechou os olhos e recuou um pouco.
– Preciso parar.
Mas ele não parou. Continuou deslizando o dedo pelo tornozelo dela, depois subiu pela panturrilha.
– Não estou vestida por baixo disto – ela disse num ímpeto.
Com isso, ele pendeu a cabeça e esfregou o rosto com a mão que não a tocava.
– Por favor, não me diga coisas assim.
– Desculpe. Não sei o que estou dizendo.
– Percebi.
Enquanto o corpo dele estremecia, ela sussurrou:
– É por isso que você não gosta de mim? Por causa desta conexão?
– É.
– Então você também sente.
– Eu teria que estar morto para não sentir – ele murmurou.
– É sobre isso que tanto falam, não é? Essa necessidade.
Ele gemeu e oscilou, apesar de já estar no chão.
– Não…
– Não o quê?
Craeg só sacudiu a cabeça, e afastou-se dela. Erguendo os joelhos, apoiou os antebraços neles e pareceu estar tentando se controlar. Depois de um instante, ajeitou
pouco à vontade a pelve algumas vezes, como se algo estivesse emperrado ali, ou preso.
– Não vou fazer isso com você – disse baixinho. – O programa de treinamento é tudo o que tenho. É o único futuro para mim. Por isso, ficar aqui e me sair bem não
tem a ver com vaidade para mim. Também não estou tentando provar nada para os meus pais, e tampouco sou um louco que quer sair lutando contra o mundo. Não tenho
nada esperando por mim, literalmente. Portanto, não vou deixar que nada nem ninguém fique no meu caminho.
– Não pode fazer os dois? – perguntou ela, mesmo sem ter certeza do que estava sugerindo.
Ah, pro inferno com isso. Ela sabia exatamente o que estava sugerindo: após ter sentido a mão dele em seu tornozelo, ela queria saber exatamente qual seria a sensação
dela em todo o seu corpo.
– Não – ele repetiu. – Não posso fazer os dois.
Praguejando, ele se esforçou para ficar de pé, as palmas cobrindo o seu quadril para se esconder enquanto ele voltava para o lugar onde estivera sentado antes.
No entanto, ele não se sentou. Permaneceu em pé, olhando para as almofadas com o corpo enorme e tenso.
– Você não tem que me proteger – ela disse.
Depois de um momento, ele olhou para ela por sobre o ombro, sua expressão muito séria.
– Que se foda isso tudo. Estou protegendo a mim mesmo.
Enquanto Butch os levava de carro por cima do rio Hudson, Marissa ficou olhando pela janela ao seu lado. Os alicerces da ponte formavam um padrão ao recortar a
vista da água abaixo, fazendo-a pensar no movimento dos limpadores de para-brisa em baixa velocidade. Estavam tão no alto que ela não conseguiria dizer se havia
ondas na superfície. Provavelmente não. No que determinar respeito às condições climáticas, a noite estava muito tranquila.
Por algum motivo, ficava voltando no tempo, para a época em que se apaixonaram, provavelmente porque seu cérebro não conseguia processar para onde estavam indo
e, portanto, fugia para uma parte do seu passado quando reinavam as surpresas, as alegrias e a excitação.
Nada como o primeiro toque. Aquele primeiro beijo. O momento em que se faz sexo pela primeira vez, e você olha para o rosto acima do seu e pensa: não consigo acreditar
que estamos mesmo fazendo isso!
– No que está pensando? – Butch perguntou, apertando-lhe a mão.
– Você se lembra do nosso primeiro beijo?
Seu companheiro riu de leve.
– Nossa, claro. Foi na varanda do segundo andar da casa de Darius. Quebrei o braço daquela poltrona de vime.
Ela sorriu e olhou para ele.
– Quebrou mesmo, não foi? Não pensei que você fosse tão… forte.
Pela luz fraca do painel do carro, as feições dele estavam tão sensuais como sempre foram para ela. E Marissa as visualizou quando ele estava excitado, os olhos
cor de avelã semicerrados, o rosto ficando sério, o corpo imóvel antes de começar a se mexer.
– Quero fazer sexo com você quando chegarmos em casa – ela disse.
A cabeça dele se virou tão rapidamente que o sedã oscilou na pista.
– Ora, veja só. Posso mesmo dar um jeito de isso acontecer.
– Sinto-me culpada por isso.
– Não se sinta. – O olhar dele prendeu-se ao seu. – Isso é muito natural. Quer se sentir viva diante da morte; não significa que não esteja triste pela moça, ou
que não fará justiça. Não são coisas mutuamente excludentes.
– Você é muito inteligente.
– Só tive muita experiência em noites como esta.
Relaxando no assento luxuoso, ela sentiu as sensações eróticas e familiares estimulando o seu corpo… E se imaginou passando por baixo do braço dele, mexendo na
braguilha e sugando-o enquanto ele continuava a dirigir.
Mas ele jamais permitiria que ela fizesse isso.
Além disso, quando chegaram à margem oposta do Hudson, seus pensamentos tomaram outra direção.
– Por favor, não o machuque.
– Quem? O seu irmão?
– É.
– Serei um completo cavalheiro.
Ela relanceou na sua direção.
– Estou falando sério.
– Eu também. – Deu um novo aperto na mão dela. – Você não tem com o que se preocupar. Eu não faria isso com você, e isso faz dele um cara de muita sorte.
Butch seguiu as instruções que foram enviadas a ela pelo celular sobre como chegar lá de carro e, uns quinze minutos mais tarde, estavam sacolejando numa estradinha
de terra que serpenteava pela floresta. Desta vez, a entrada para o prédio era uma modesta casa de campo de dois andares, e havia um punhado de sedãs estacionados
na passagem de carros pavimentada com pedras. Quando saíram, seguiram até a parte de trás do que parecia uma construção externa para tratores e equipamentos, mas
que, na verdade, era o mesmo tipo de quiosque pelo qual ela passara antes naquela mesma noite.
O procedimento era o mesmo: identificação, entrada, escaneamento a laser. Em seguida, uma parede cheia de ferramentas se deslocou, e estavam dentro de um elevador,
descendo para dentro da terra.
– A construção disto deve ter custado uma fortuna – ela murmurou quando ambos olharam para a fileira de botões numerados ao lado da porta. – Quatro andares subterrâneos?
Uau.
– Precisava ser feito.
Ela o fitou.
– Espere, então você sabia desta clínica? Por que não me contou?
Butch encolheu os ombros.
– Não queria te aborrecer mencionando o seu irmão. – Olhou para ela incisivamente. – Diga que Havers se comportou quando você esteve aqui antes.
– Sim, ele se comportou.
Seu companheiro assentiu e ajeitou as elegantes calças pretas que vestia. Como sempre, quando estava fora de serviço, seu hellren policial do sul de Boston estava
vestido com algo saído do catálogo da Neiman Marcus, a camisa branca engomada e a jaqueta fina de camurça tão caras quanto pareciam ser. Ele também cheirava bem,
apesar de isso ser uma cortesia do aroma da vinculação e não causado por algum tipo de colônia – e o relógio Piaget e a pesada cruz de ouro que sempre usava no pescoço
eram sensuais sem exageros.
No entanto, ele tinha razão. Poderia matar o irmão dela apenas com as mãos – e provavelmente era o que queria fazer. Contudo, acreditava nele quando ele dizia que
jamais faria isso na frente dela.
– Ele é incrível com seus pacientes – ouviu-se murmurar.
– Esse nunca foi o problema dele.
Não, não era.
O elevador sacudiu ao parar, e eles saíram para uma área de espera menor e mais reservada que aquela em que ela estivera antes.
A recepcionista à mesa olhou primeiro para Butch e demorou-se o quanto quis, avaliando-o. Não que ele tivesse notado.
– Bem-vindos – ela cumprimentou. – O doutor sabe que estão aqui. Posso lhes oferecer café enquanto esperam?
Ou talvez, quem sabe, algo mais pessoal?, seu tom sugeria.
– Estamos bem, obrigado. – Butch segurou o cotovelo de Marissa e a conduziu para uma fila de cadeiras encostada na parede mais distante.
Ao se sentarem lado a lado, ela ficou contente quando ele lhe segurou a mão.
– Então, como foi a primeira noite do programa? – ela perguntou, tanto para manter uma conversa quanto por se importar.
As sobrancelhas dele se uniram.
– Foi boa. Ninguém se machucou seriamente. Sete conseguiram chegar até o fim. Vão passar o dia conosco, principalmente porque não queremos que os pais deles os
vejam tão abatidos. E também é uma oportunidade para que o grupo se una. Vou dar a primeira aula ao cair da noite, e depois eles poderão voltar para casa após o
treino físico.
– Estou muito feliz que tenha dado tudo certo.
– Veremos. Ei, lembra da filha do Abalone, Paradise? Aquela que nos ajuda na casa de audiências?
– Ah, sim, ela é adorável.
– Foi a que mais aguentou. Aquela garota tem determinação.
– Abalone deve estar muito orgulhoso.
– Ele ficará.
Silenciaram-se. Até ela voltar a falar.
– Eu acho que vou vomitar.
Butch de pronto se levantou, mas ela lhe deu um tapinha em seu braço.
– Não de verdade. É mais um modo de falar do que realmente querer fazer.
– Quer voltar para o carro? Posso levar os restos mortais para você.
Marissa sacudiu a cabeça.
– Não, ela é minha. Até encontrarmos a sua família, ela é minha.
Butch passou o braço ao redor dos ombros dela e a puxou para perto.
– Prepare-se para que isso não mude mesmo quando a devolver à família.
– É assim que você… Quando você trabalhava, era assim que se sentia?
– Com cada uma das minhas vítimas. – Exalou longa e profundamente. – Para mim, isso nunca passava. Mesmo agora, quando não consigo dormir, vejo seus rostos no teto
acima da nossa cama. Lembro-me como eram em vida e não consigo me esquecer de como estavam ao morrer. É uma mancha no meu cérebro.
Fitando-lhe o perfil, aquele perfil forte, belo e imperfeito, ela se conectou a todo o amor que sentia por ele.
– Por que não me acorda para conversarmos quando se sente assim?
O sorriso contraído dele tentava diminuir a tensão.
– Você também tem o seu trabalho.
– Sim, mas eu…
– Não é importante. Já faz parte do passado.
Não se isso ainda o mantém acordado, ela pensou.
– Você e eu somos tão parecidos – ela murmurou. – Nós dois guardamos nossos passados numa prateleira.
– Você faz soar como se fosse uma coisa ruim.
Antes que ela conseguisse dizer algo mais, a porta do lado oposto se abriu e uma enfermeira de uniforme branco se aproximou trazendo uma caixa preta que, absurda
e inapropriadamente, fez Marissa pensar num par de sapatos de salto alto Stuart Weitzman que lhe foram entregues numa noite dessas. Era do mesmo tamanho.
Esperava que a caixa fosse maior. Menor. Diferente.
Deus, ela já nem sabia.
– Lamentamos a sua perda – disse a enfermeira ao estender a caixa para Butch.
Marissa adiantou-se e a segurou. Pesava menos do que imaginava que pesaria. Pensando bem, só estava cheia de cinzas, não?
– Obrigada.
A fêmea corou ante a quebra de protocolo. Como Marissa era uma fêmea de uma das Famílias Fundadoras, concluía-se que ela nunca entraria em contato com nada pertencente
aos mortos. No Antigo País, tal contato era visto como mau agouro, especialmente se a fêmea estivesse grávida ou em idade fértil.
Mas que se dane isso.
– Havia algo mais entre os seus pertences? – Marissa perguntou.
A enfermeira limpou a garganta como se estivesse tentando engolir a desaprovação e se engasgasse.
– Na verdade, havia algo. – Focou os olhos em Butch como se esperasse que ele se prontificasse para que sua companheira fosse sensata e razoável. – Hum…
Em seu benefício, Butch arqueou uma sobrancelha como se não entendesse o que diabos a enfermeira estava pretendendo.
A enfermeira voltou a pigarrear.
– Bem, havia uma coisa. Foi o único objeto pessoal que encontramos… Estava preso no…
– No quê? – Marissa exigiu saber.
– Estava dentro do sutiã. – A enfermeira enfiou a mão dentro do bolso do uniforme e puxou uma fita preta com um laço vermelho. – Tem certeza de que quer…
Marissa arrancou o objeto da mão da enfermeira.
– Obrigada. Vamos embora agora.
Antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita, ela foi em frente e apertou o botão com seta para cima ao lado do elevador. Como se ele os estivesse esperando
para que saíssem o quanto antes, as portas se abriram e ela entrou. Butch, como sempre, estava logo atrás.
Enquanto subiam rumo ao piso térreo, ela olhou para o objeto que apanhara da mão da fêmea.
– O que é isto? – perguntou, virando a peça de metal preta na mão. Havia uma borla de seda vermelha perdurada num buraco numa ponta e, na outra, uma porção pontuda
e chanfrada parecida com algo que pudesse ser inserido numa fechadura. – Isto é uma chave?
Butch o tomou em sua mão e examinou.
– Sabe, pode até ser.

 

CONTINUA

Capítulo 8
– … UM PAR NA BOCA. Hora estimada, quatro minutos. Entrada desobstruída e extremidade direita da piscina…
Apertando o botão do fio que partia do fone de ouvido e descia pela lateral do pescoço, Butch disse com tranquilidade:
– Entendi.
Ao caminhar ao longo da beira da piscina, acompanhou os movimentos dos candidatos na água com o auxílio dos seus óculos de visão noturna. Mais dois haviam acabado
de cair mais à frente; ambos subiram à superfície e estavam boiando, por isso estavam bem e relativamente sossegados. Nem sempre era assim. Ele e Tohr tiveram que
resgatar quatro candidatos, o que valia dizer que só restavam três machos com aquele novo casal ali.
Todos estavam longe da entrada B à direita. Muito bom.
Butch consultou o relógio. O tempo de quem ainda estivesse no ginásio acabaria em seis minutos. E tudo era apenas o preâmbulo para o que ele e seus Irmãos se referiam
como Destino Final. Essa última parada terminaria ao nascer do sol, portanto, era crítico para a missão que o grupo passasse pelos testes iniciais com bastante tempo
de sobra.
A clínica da doutora Jane e de Manny estava enchendo. As ervas eméticas suaves atingiram seu objetivo, e também aconteceram pequenos cortes, esfoladuras, distensões
musculares e queimaduras leves. Duas levas de desistentes já estavam saindo da propriedade, e mais se seguiriam.
Assim era a meritocracia: as coisas tinham que acontecer bem rápido porque nem ele nem V. desperdiçariam tempo com alguém que não estivesse talhado para o programa.
– Já chegou a minha hora? – Lassiter falou no aparelho auricular. – Nasci pronto para isso.
– Dentre tanta gente para ser imortal – V. resmungou –, por que você é uma delas?
– Porque sou maravilhooooso – o anjo caído cantarolou. – E faço parte da equipe…
– Não, não faz, não…
– … vivendo o sonho!
A cabeça de Butch começou a latejar ainda mais.
– Cala a boca, Lass. Não vou te aguentar cantando agora.
– Mas é do Meu Malvado Favorito – comentou o anjo. Como se isso fosse adiantar alguma coisa.
– Fecha a matraca – V. o interrompeu.
– Cala a boca. – Butch se controlou para manter a voz baixa. – Temos mais quatro minutos no ginásio. Eu te aviso quando…
– Estou ficando sem ar aqui, sabe – Lassiter reclamou. – A minha boia está desinflando.
V. praguejou.
– É porque não quer ficar ao seu redor, assim como a gente.
– Continue assim e vou começar a pensar que a nossa inimizade é mútua.
– Já não era sem tempo.
Está certo que Butch não estava se divertindo muito arrastando idiotas encharcados para fora daquela piscina, mas, na boa: estava feliz da vida por não estar nos
fundos da casa com aqueles dois discutindo.
– Fique aí, Lass – disse. – Manterei contato. E, V., pelo amor de Deus, vê se desliga o maldito microfone del…
– Ai! Ei! Mas que porra, V…
E… foi assim que tudo ficou abençoadamente silencioso.
Quando sua dor de cabeça ameaçou virar uma enxaqueca, Butch desejou arrancar os óculos e esfregar as pálpebras, mas não desgrudaria os olhos daqueles candidatos
nem mesmo por um instante. A última coisa que o programa precisava era que alguém acabasse seriamente ferido, ou pior, morto.
Além disso, já estava bastante distraído por si só, mesmo com aquele aparato na cabeça.
Havia alguma coisa errada com Marissa.
Ele próprio passara tempo suficiente como um zumbi ambulante durante seus dias de humano para reconhecer o entorpecimento de preocupação pelo qual ela passava.
A questão era que ela não lhe dizia nada de concreto. Toda vez que lhe perguntava no que ela estava pensando ou se ela estava bem, ela lhe sorria e vinha com alguma
desculpa esfarrapada quanto a estar ocupada no Lugar Seguro.
Indubitavelmente isso era verdade, mas era o normal. E nem sempre ela ficava como esteve na noite anterior e durante o dia também.
Talvez simplesmente precisassem de uma noite de descanso – e não só do trabalho. A mansão era um lugar maravilhoso de se viver: a comida, uma delícia; a companhia,
ainda melhor. O problema era que não se tinha muita privacidade. A não ser quando se retirava para o próprio quarto, que no caso dele era um espaço do tamanho de
uma caixa de sapato com porta e paredes finas lá no Buraco, nunca se estava verdadeiramente sozinho. Intromissões aconteciam sem aviso de qualquer um da equipe de
empregados, dos outros Irmãos, das companheiras deles.
O irlandês católico de uma grande família dentro dele adorava isso.
A sua porção de hellren preocupado não ficava tão entusiasmada assim.
Precisamos de uma escapada romântica, pensou.
– Para onde vamos? – V. perguntou em sua orelha.
Merda, falara em voz alta.
– Não com você.
– Cara. Isso doeu. De verdade – foi a resposta curta.
– Marissa e eu precisamos…
– Se for educação sexual, eu podia jurar que vocês dois já tinham descoberto tudo a esse respeito. A menos que todos aqueles sons sejam vocês dois fazendo briga
de polegares.
– Fala sério.
– Quer dizer que é origami? Tá explicado, os cortes provocados pelo papel devem doer… quem haveria de imaginar, hein?
– Para.
– É o que a Marissa nunca diz.
– Não tem sido o caso ultimamente – Butch replicou.
– Está com problemas?
– Não sei.
Houve uma longa pausa silenciosa.
– Tenho uma ideia.
– Estou aberto para…
– Foi isso mesmo que ela disse! – Lassiter se meteu na conversa.
– V., pensei que você tivesse tirado o… – Os sons dos machos se batendo no microfone fez com que ele arrancasse o fone de ouvido com uma careta.
Lassiter obviamente estava levando a surra pela qual vinha implorando e, em qualquer outra circunstância, Butch teria se juntado aos dois, e não para bancar o juiz.
Mas tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Ainda mais quando dois novos convidados acabavam de chegar para a etapa líquida da festa.
Quando V. voltasse a falar, talvez Butch recebesse algum conselho que prestasse. Desde que seu melhor amigo pensasse além do mundo das coleiras de espinhos, da
cera de velas pretas e dos prendedores de mamilos.
Merda.
Paradise se debatia contra quem a prendia pelos tornozelos, girando o tronco tal qual um peixe fora d’água no chão pelo qual era arrastada de costas, as mãos como
garras tentando se segurar. Dentro do saco ao redor da cabeça, a respiração quente a sufocava, ou talvez ela tivesse simplesmente aspirado todo o oxigênio.
Em resposta, o pânico se espalhou por todo o seu corpo, retesando-lhe os músculos e transformando o seu cérebro numa pista de alta velocidade para uma vertiginosa
sucessão de pensamentos que nem de perto a tranquilizavam ou ajudavam. Uma parte sua queria chamar Peyton, mas ele não conseguiria salvá-la. Também o tinham pegado.
Sua outra metade antevia todo tipo de resultados ruins.
O que vem depois? O que vem depois? Oquevemdepoisoquevem…
O “depois” chegou sem dar aviso como todo o resto: pararam de arrastá-la, uma segunda pessoa se aproximou, segurou-a pelos ombros e a ergueu do chão.
Paradise berrou de novo dentro do saco e tentou se soltar. Impossível. Seguravam-na com tamanha força que ela bem podia estar com tornos prendendo-lhe a pele e
os ossos…
Balanço.
Ela estava sendo balançada para a direita e para a esquerda, o movimento acelerando, como se fosse ser lançada.
– Não!
Bem quando foi solta no alto do arco à esquerda, o saco lhe foi arrancado da cabeça. Duas incríveis inspirações e logo ela foi caindo, caindo, caindo, no meio da
escuridão pontuada por sons estranhos.
Splaaash!
Água por todos os lados. Entrando no nariz, na boca, envolvendo seu corpo. O instinto assumiu o comando, seus sentidos automaticamente avaliaram que “para cima”
era a direção oposta à da que seguia afundando. Abrindo pernas e braços, descobriu que o que a prendia pelos tornozelos havia sido retirado.
Irrompeu à superfície com tanta força que seu corpo quicou como uma rolha, e ela tossiu com tanta violência que quase perdeu a consciência. Em meio a tudo aquilo,
porém, conseguiu respirar… e logo se viu inspirando grandes quantidades de oxigênio, o simples luxo de conseguir respirar enchendo-a com uma gratidão que lhe levou
lágrimas aos olhos. Isso não durou muito. Em toda a sua volta, ouvia pessoas se debatendo na água, sons de tossidas, de respiração laboriosa, de mãos e pernas se
movimentando para que boiassem.
Quantos seriam?
Aquela era a segunda parte?
Avançando na água, desejou localizar Peyton, mas não tinha certeza de que chamar a atenção para si seria uma boa ideia. Pelo tanto que sabia…
– Paradise!
O som da voz de Peyton estava próximo e à direita.
– Aqui! – disse com voz estrangulada. – Estou aqui. Estou bem…
– Você está bem?
– Estou bem aqui – disse um pouco mais alto. – Estou bem…
Em seguida, sentiu uma mão forte segurando-a pelo braço e puxando-a pela água.
– Aqui dá pé pra mim – disse Peyton. – Deixa eu te segurar.
– Não preciso…
– Você tem que conservar suas forças. Isto é apenas o começo.
Ele pareceu tão sensato, como se o choque com a água o tivesse deixado sóbrio. Em seguida, as mãos deslizaram pela sua cintura de modo a girá-la de costas para
ele.
– Te peguei – ele sussurrou.
Os braços dele a prendiam, e a sensação do corpo forte atrás dela a deixou tensa. Quando constatou que tudo o que ele estava fazendo era respirar para se recobrar
também, ela começou a relaxar um pouco, mesmo não conseguindo enxergar nada e sentindo suas pernas roçando nas dele.
Nunca antes estivera tão perto de um macho.
Embora, levando-se em consideração a situação em que se encontravam, aquele dificilmente era o momento de pensar em tais besteiras; Peyton não tinha nada além de
sobrevivência na cabeça.
Com um tênue alívio, relaxou contra ele, permitindo-se ser amparada. Seus instintos permaneceram em alerta máximo, mas, pelo menos, seu corpo teve uma breve trégua;
os batimentos cardíacos estavam se aquietando, aquela ardência horrorosa nos pulmões se extinguindo…
Splash! Splash!
Dois outros candidatos – ou vítimas – bateram na água, porém bem longe dela, dando-lhe exatamente a ideia de como aquela piscina, ou lago, ou lagoa, devia ser grande.
Não, não era um lago. A água era clorada.
Uma piscina. Estavam numa piscina subterrânea. Provavelmente não muito distante do ginásio, porque não fora arrastada por quilômetros.
– O que vem depois? – ela perguntou.
– Não sei. Mas sei que vamos ficar juntos.
– Isso. – Ficou surpresa com o tanto que a presença dele a acalmava, apesar de ainda não conseguirem enxergar nada, e ela não fazer a mínima ideia do que os atingiria
em seguida…
Splash! Splash! Splash!
– Em quantos estamos aqui? – perguntou.
– Cinco acabaram de chegar. Então, somos pelo menos sete.
– De sessenta? Deve haver mais. – Como ela podia fazer parte de um número tão pequeno que chegara até ali? – Por certo, deve…
Mais quatro chegaram, um caindo perto deles, os outros três do lado oposto.
– Estou pesada demais para você? – perguntou.
– Para com isso.
Quando ele mudou as mãos de posição, o corpo dela se moveu na água, as costas pressionando a pelve dele. Ela não sentiu nada ali… Mas também não saberia com que
se preocupar caso ele estivesse excitado.
Outra pessoa mergulhou na piscina.
E depois…
… um longo período sem nenhum acréscimo. Na verdade, devem ter sido apenas uns dois minutos, mas lhe pareceram horas… dias.
O medo continuou presente, mas como nada o alimentava de imediato, a ansiedade começou a canibalizar o seu lado racional, todos os tipos de loucura percorrendo
sua mente. E se aquilo não fosse um programa de treinamento? E se fosse algum tipo de… experimento social? Um sequestro para extrair os órgãos… ou uma tentativa
de… puxa, ela não sabia.
Uma onda de terror a assolou. Não enxergava nada, o rugido em sua cabeça abafava os sons na piscina, e seu corpo estava cansado demais para processar o tremor que
a afligia.
– O que vem agora? – ela gemeu.
– Eu…
Antes que Peyton conseguisse responder, ela ficou ciente de que algo havia mudado ao redor deles. Os outros também notaram, os corpos mergulhados na água se imobilizando
como se tentassem avaliar o que estava diferente.
O nível da água estava descendo.
A superfície agitada da água estivera na altura dos seus ombros, mas agora já lhe batia nos braços, depois nos cotovelos.
Seus batimentos voltaram a acelerar, uma tontura fazia sua cabeça rodar.
– O que vão fazer com a gente agora? – ela arfou.
A altura da água descendo… descendo… Até que seus pés bateram no fundo da piscina, como os de Peyton. Contudo, ela permaneceu aninhada nos braços dele; pelo menos,
com o corpanzil dele por trás, ela tinha a retaguarda coberta.
Eu só quero enxergar, ela pensou na escuridão completa. Pelo amor de Deus… por favor, me deixem ver alguma coisa…
Num dos cantos, uma luz brilhante, quase ofuscante, surgiu.
Era tão forte que ela teve que suspender o braço contra aquele fulgor e, assim, conseguiu ver que sim, estavam numa piscina, uma muito limpa e com uma bela borda
azulejada em azul e verde-claro. E lá estava Peyton, com aparência cansada atrás dela. E os outros candidatos na água.
Afastando o cabelo molhado do rosto, fez uma careta tentando focalizar…
Mas que…
– … porra é essa? – Peyton terminou por ela.
Do lado oposto da piscina que ainda se esvaziava, um macho imenso com cabelos loiros e negros entrou no espaço e, a princípio, ela pensou que ele tivesse levado
uma iluminação consigo. Na verdade, o corpo dele era a luz. Ele reluzia como se fosse uma lâmpada incandescente viva, que respirava.
Mas a loucura era que aquilo não foi o que mais a chocou.
Ele usava uma máscara de mergulho com snorkel acoplado afastada de seu belo rosto… um par de nadadeiras que estalavam sobre o piso molhado e escorregadio conforme
ele se aproximava da beirada… um traje de banho em forma de estilingue rosa-choque… e uma boia infantil amarela e azul ao redor da cintura.
Cada um dos quase mortos encharcados na piscina o encarava como se ele fosse o retorno do Messias num universo paralelo em que o Bob Esponja se encontrava com Magic
Mike.
Avançando até o trampolim, parou, demorou-se para ajustar a máscara e o snorkel e pigarreou.
Depois de um punhado de “mi-mi-mi-mi” como se estivesse se aquecendo para um solo, inspirou fundo e…
– Jerônimooooo! – berrou e correu até a ponta.
Alçando voo na extremidade, manteve a boia firme no lugar e executou uma cambalhota primorosa, acertando a água que baixava como uma perfeita bola de canhão que
espalhou água até o teto.
Enquanto Paradise abaixava a cabeça para não ser atingida no rosto pelo tsunami, pensou: ponto para a Irmandade.
O que tinha esperado?
Com certeza tudo, menos aquilo.
Capítulo 9
OS TÊNIS DE CRAEG chegaram ao fundo da piscina bem quando o… bem, sim, aquilo era um macho… atingiu a água com um impacto como se um sedã tivesse sido jogado ali.
Depois que o dilúvio se acalmou, o ambiente se tornou uniformemente iluminado, pois a luz que emanava daquele corpo imenso ridiculamente vestido criava um fulgor
que transformava a piscina olímpica numa lâmpada.
O cara era uma mistura de lutador profissional com brinquedo da Toys “R” Us.
Mas Craeg não perderia nem um minuto analisando aquela combinação.
Enxugando o rosto, primeiro identificou as possíveis rotas de fuga: havia quatro ou cinco portas, incluindo aquela pela qual a figura com corselete inflável entrara,
mas estava disposto a apostar que estariam todas trancadas. Nada no teto. Nas paredes. No fundo da piscina.
A segunda verificação era ver se havia “terceiros” participando da encenação. Bingo. Na periferia, havia dois machos imensos vestidos de preto com as cabeças cobertas
com capuzes e usando óculos de visão noturna. Estavam bem armados, mas as armas estavam guardadas… E pareciam estar monitorando todos dentro da piscina como se à
procura de sinais de fraqueza ou de perigo.
A terceira avaliação foi para ver quem mais havia conseguido chegar àquele estágio. Dez – não, doze… espere, treze estavam na piscina com ele, incluindo a fêmea
com quem caíra daquela passarela suspensa.
E a recepcionista loira, Paradise.
Embora não estivesse sozinha.
Nada disso, ela estava recostada em um dos machos, a mão repousando sobre o braço protetor que a cingia pela cintura.
Dificilmente uma surpresa. Fêmeas como ela não ficavam sem alguém do sexo oposto por perto. Mariposas atraídas por uma chama e baboseiras do tipo.
Craeg forçou os olhos a se desviarem do par. E isso funcionou, talvez, por um minuto. Em seguida, viu-se avaliando o cara para um possível combate, anotando a altura
do macho, a força dos ombros, a determinação em sua mandíbula.
Como se os dois fossem se digladiar.
O que era insano, claro.
Não tinha direito algum sobre aquela fêmea e, mais precisamente, a única coisa com que tinha que se preocupar era cruzar a linha de chegada que o aguardava ao fim
de tudo aquilo…
Luzes convencionais foram acesas ao redor do ambiente, pondo um fim a todas as sombras, revelando todos os cantos que não escondiam nenhuma ameaça adicional.
Mas ele ainda não acreditava que tivessem terminado. Ele, por certo, não pararia se fosse um dos Irmãos. Ainda havia muitas pessoas de pé.
A porta na extrema direita se escancarou como se a tivessem chutado.
E foi então que a nova onda apareceu.
Um a um, um grupo de quase doze guerreiros marchou para perto. A Irmandade, concluiu ele. Aquilo só podia ser a Irmandade. Seus corpos eram gigantescos, apequenando
até mesmo ele e, assim como os dois guardas, tinham máscaras sobre os rostos e couro negro cobrindo-os das cabeças às botas.
Diferentemente dos outros dois, traziam armas nas mãos.
Num flash, aquele que fizera a apresentação com os acessórios infantis desapareceu. E o restante da água foi tragada pelos ralos na parte mais baixa da piscina.
Em toda a sua volta, candidatos estavam de pé, encharcados e relativamente exaustos. Ele permaneceu parado, assim como Novo, que parecia pressentir, como ele, que
a situação se complicaria.
Aquelas armas eram um mau sinal.
Num clássico pensamento grupal, os outros candidatos se juntaram, as pessoas na parte rasa recuando conforme os guerreiros avançavam ao longo da piscina, contornando
a escadinha que estava escorregadia e que conduzia a nada a não ser concreto e poças.
Em seguida, aqueles machos ameaçadores armados desceram para a piscina, os coturnos aterrissando como trovões, o sacolejar de seus coldres produzindo rangidos.
Quando pararam, foi impossível determinar em quem se concentravam, visto que suas cabeças estavam todas viradas para o grupo, mas os olhos permaneciam cobertos.
Triangulando sua posição, Craeg concluiu que, naquele momento, fazer parte do grupo seria melhor, por isso…
Um a um, os Irmãos ergueram as pistolas, apontando diretamente para os trainees. E, então, o mais alto de todos deu um passo à frente, girando o cano num círculo
preguiçoso à procura do seu alvo.
Pense num rebanho em pânico. Os candidatos se assustaram, correndo de um lado para o outro, esforçando-se para ficar atrás de alguém, escorregando, caindo. Uns
dois se ajoelharam, debulhando-se em lágrimas e implorando antes mesmo que qualquer disparo fosse dado.
Craeg não faria nada disso. Se os trainees fossem alvejados com algum tipo de bala, não seria nada letal. Até então, haviam tomado muitas precauções. E estava pronto
para levar uma bala, se fosse necessário para seguir para a fase seguinte.
Que atirassem nele. Não temia a dor.
Aprumando os ombros, encarou-os, e percebeu que provavelmente existia outro motivo pelo qual ele parara. Mas de qualquer modo se recusava a admiti-lo.
Venha, comandou mentalmente. Aqui.
Vem pra cá…
Mas não o queriam.
Não… eles foram em direção a outra pessoa.
Ela não, ele pensou. Merda, Paradise não.
– Ei – chamou alto. – Ei, idiota!
Assim que aqueles machos de negro entraram no ambiente, Paradise reconheceu os Irmãos. Depois de ter passado tanto tempo trabalhando próxima a eles, conhecia seus
cheiros, suas auras, e passara a considerá-los seus protetores, quase pais para ela.
Não era o caso esta noite.
Ainda mais quando desceram para a piscina já seca, ergueram as armas… e um deles a escolheu como alvo.
Rhage. Era Rhage quem mirava sua arma nela e depois começou a avançar. Sabia disso porque o corpo dele era muito maior do que o dos outros.
Não, pensou ela. Você não pode fazer isso. O meu pai…
Mas ele não hesitou. Veio direto na direção dela e de Peyton, apontando a arma, dedo no gatilho.
– Ei! Idiota!
Pelo canto do olho, viu que um dos recrutas dava um passo à frente e balançava os braços.
Era o seu macho – isto é, aquele macho. Craeg…
– Atire em mim! Ei! Filho da puta! Atire em mim em vez dela.
E foi o que o Irmão fez.
Sem desviar o olhar dela, o braço de Rhage virou para o lado e ele apertou o gatilho. Uma bala explodiu do cano.
Paradise gritou e tentou se soltar dos braços de Peyton quando o caos se instalou, as vozes ecoando como o alarido de mil pássaros assustados.
– Não! Meu Deus… Não!
– Cale a boca – Peyton sibilou, mantendo-a firme no lugar. – Só fique quieta!
Mas nem pensar. Quando Craeg caiu de joelhos, ela se soltou e avançou na direção do Irmão. Era o mesmo que um inseto se chocando no para-brisa de um carro, mas
isso não era importante. Simplesmente não toleraria que alguém fosse ferido, ainda mais aquele macho. Estapeando, socando, ela segurou o cano da arma como se disso
dependesse sua vida, tentando controlá-la. Fracassou. Antes de entender o que acontecia, estava de cara no concreto úmido, presa na altura do pescoço e da lombar.
Virando o rosto, procurou freneticamente o lado oposto da piscina para ver se Craeg ainda vivia.
O macho estava no mesmo nível dela, contorcendo-se e apertando o que parecia ser sua coxa. A única outra fêmea do grupo se agachou ao lado dele, afastou com força
suas mãos e inspecionou o ferimento. Em seguida, com um puxão, tirou a camiseta do cós e a despiu, expondo o tronco musculoso e o sutiã esportivo preto. Com um rasgão,
arrancou a bainha em toda a volta da base, produzindo uma tira de pano.
Amarrou um torniquete no alto da coxa dele como se tivesse sido treinada para isso.
– Solte-a – Peyton exigiu, referindo-se a Paradise. – Solte-a já, porra.
– Ou o quê? – disse uma voz distorcida nos alto-falantes no teto, como se alguém tivesse falado num microfone com um sintetizador acoplado.
Foi quando Peyton perdeu a cabeça. Esforçando-se para virar o pescoço, ela teve uma visão inacreditável dele completamente agressivo, socando Rhage, chutando, as
presas arreganhadas enquanto tentava tirar o Irmão de cima dela. Mas, de repente, ele não estava mais sozinho. O macho que demonstrava muita habilidade atlética
no cavalo com alças se juntou a ele.
Tec! Tec!
Ambos foram alvejados por outro Irmão. Assim como outros dois machos que também tentaram se envolver. Nesse meio-tempo, outros tentaram subir pelas paredes, usando
as escadas de aço para sair da piscina… Só para serem eletrocutados e caírem para trás.
Uma porta se abriu.
Do alto, aquela voz anunciou:
– Qualquer um que desejar sair agora pode fazê-lo. Nenhum mal lhes será causado. Isto pode terminar… agora. Tudo o que têm a fazer é correr para a porta.
Nesse instante, ela foi solta, pois Rhage saiu de cima dela e se afastou.
Ela engatinhou para junto de Peyton, e rolou-o de costas de novo.
– É muito ruim? Onde foi atingido?
– No braço… Na porra do meu braço.
Paradise arrancou a camiseta e seguiu o exemplo da outra fêmea, rasgando uma porção com as presas e amarrando a tira logo acima do ferimento sangrento no tríceps.
Encarou os Irmãos.
– Vocês enlouqueceram? Isto é uma escola, não uma guerra, caramba!
– Pode ir embora agora – sugeriu a voz no alto-falante. – Apenas prossiga até as escadas na parte rasa da piscina e liberte-se disto.
Uma onda de fúria cega a fez enxergar tudo branco, e antes que se desse conta, estava diante dos Irmãos.
– Atirem em mim! Vamos! Façam isso, seu bando de covardes malditos!
Ela não fazia ideia de que diabos estava dizendo. Que diabos estava fazendo. Nunca antes vira tantas armas, muito menos se colocara deliberadamente como alvo de
tamanha artilharia, mas estourara e descobrira uma onda renovada de forças junto à explosão.
Não que os Irmãos parecessem se importar. Apenas continuaram ali, sem se mexer, sem reagir, como se não lhes desagradasse aguardar até que ela ficasse sem combustível.
Com isso, ela se virou para os trainees que estavam desistindo.
– O que estão fazendo? Vocês precisam lutar! Isso é errado…
Nisso, a porta se fechou e o som inconfundível de uma barra sendo colocada em seu lugar ricocheteou pelo espaço.
– Agora, será pedido que vocês completem a Primeira Noite – disse a voz do alto. – A última sessão começa em três… dois… um.
Foi quando a luz passou de incandescente para o roxo azulado de uma luz negra.
E também quando a Irmandade abriu fogo sobre eles.
Capítulo 10
BALA DE BORRACHA DÓI PRA CACETE.
Quando o primeiro dos incontáveis disparos atingiu Craeg no peito, ele rolou e ofereceu as costas em vez da sua parte frontal, mais vulnerável. Abaixo da cintura,
o único ferimento verdadeiro era como uma marca de ferro em brasa em sua pele. No entanto, bem como ele previra, o tiro habilidoso não provocara nada mais que uma
esfoladura na pele, de modo que o torniquete era desnecessário. Mas não havia tempo de tirá-lo. Segurou a mão de Novo e a puxou de barriga para baixo no fundo da
piscina. Mantendo as cabeças abaixadas, afastaram-se, se arrastando para a parte com três metros de profundidade da piscina.
Relanceando a vista para trás, descobriu que os Irmãos, que se realinharam para bloquear as escadas da parte rasa da piscina, começaram a avançar como se estivessem
tocando o gado para o corredor da morte de um abatedouro. Inferno, as escadas de metal afixadas na parte mais profunda da piscina, onde estava o trampolim, estavam
eletrificadas, e aqueles guerreiros pareciam ter um estoque interminável de balas de borracha. Mesmo que o impacto se equiparasse a picadas exageradas de abelhas
por cima das roupas, com muitas delas o limiar da dor seria acionado a um ponto que o incapacitaria.
Virando-se novamente, mediu a velocidade do avanço dos Irmãos.
Bastante rápido, o que lhe deixava com talvez uns sessenta segundos para encontrar uma saída.
– Desmaterialização – disse tanto para si quanto para quem estava perto para ouvir. – É a única chance.
Parando seu avanço, fechou os olhos e começou a respirar fundo. A primeira visão que teve foi a da loira magra atacando o absurdamente imenso Irmão armado.
Para defendê-lo depois de ele ter sido atingido.
– Pare – sibilou.
Controle. Precisava controlar a mente e as emoções, concentrar-se e se desmaterializar para fora e para cima. Foco… foco…
Dor em todo o corpo: na coxa e nos outros pontos em que fora atingido, os ombros, a coluna, o quadril. A cabeça latejava. As costelas estavam sensíveis. O cotovelo
ainda pulsava no ponto em que levara o choque no andaime.
À sua volta, as pessoas estavam em pânico, choravam, praguejavam. Tropeçavam. Caíam.
E mais daquelas balas, batendo nele. Em todos eles.
Quanto mais ele tentava ignorar o medo e o pânico, maior se tornava o coro de desconforto e de distração.
Precisava encontrar uma imagem alvo, um lugar para mirar a mente.
Do nada, visualizou a recepcionista onde a vira pela primeira vez. Estava sentada atrás de uma bela escrivaninha numa sala de estar majestosa. Tudo ali o intimidara:
a seda nas paredes, os tapetes elegantes, o cheiro de limpeza… ela.
Mas ela não o tratara como a escória que ele era. Erguera o olhar para ele, e seu coração parara de bater… e ela lhe dissera seu nome.
Paradise.
A voz dela soara tão bela que ele não a ouvira muito bem. E estragara tudo ao não apertar a mão que ela lhe oferecera. O problema foi que seu cérebro havia se congelado
porque ela era tão…
O corpo se desmaterializou sem que ele tivesse percebido. Num momento, estava sofrendo, preso em sua forma corpórea… no seguinte, estava voando para longe da piscina.
Sem nenhum destino em mente, vacilou em pleno ar, como nas primeiras vezes em que tentara aquele truque após a transição, mas logo se controlou e projetou sua forma
para o canto oposto, contra a parede.
Ao reassumir sua forma, Novo já estava ali, alerta e pronta, mas massageando um dos ombros, como se estivesse esfregando um ponto dolorido ou avaliando se ele estava
deslocado.
Um a um, quatro outros trainees molhados saíram da piscina: o macho atlético do cavalo de alça, aquele que parecia um assassino com piercings e tatuagens de um
lado apenas do rosto e pescoço, o cara que estivera com o braço ao redor de Paradise e outro macho alto e forte.
Não fazia ideia do que acontecera com…
A recepcionista foi a última a se materializar, e Craeg teve que desviar o rosto a fim de não exibir uma emoção inaceitável. Para se distrair, tentou ver o que
estava acontecendo na piscina com os cinco que haviam sido deixados para trás…
Uma porta se abriu bem ao lado deles e uma rajada de ar frio entrou, carregando o cheiro de ar livre.
O que quer que estivesse do outro lado estava escuro.
– Quem vai na frente? – Paradise perguntou.
– Eu vou – o macho com aparência gótica respondeu. – Não tenho nada a perder.
Craeg franziu o cenho quando o súbito silêncio ao redor passou a parecer um mau presságio. Os tiros haviam cessado. O que poderia significar que aquela parte do
teste se encerrava… ou que os Irmãos estavam se preparando para voltar a atirar.
Não, eles não estavam mais lá. Só restavam na piscina uns poucos trainees descontrolados, figuras chorosas e encharcadas sentadas no concreto úmido com as cabeças
entre as mãos ou com os corpos em posição fetal.
Merda. Onde estavam os Irmãos?
– Vou com você – Craeg disse ao gótico.
Os dois eram os maiores do grupo, os pontas-de-lança, por assim dizer. E, por mais que ele tivesse entrado naquilo pensando em sobrevivência individual, estava
começando a reconsiderar essa posição radical. Pelo menos no curto prazo.
Se um ataque surgisse, dois eram melhores do que um.
Novo disse:
– Eu fico na retaguarda.
O atleta se pôs ao lado dela.
– Também posso cobrir.
– Vocês três – Craeg ordenou à fêmea loira, ao… companheiro dela? Melhor amigo? E ao outro macho, um cara bem apessoado do tipo “carinha de bebê”. – No meio.
Pelo menos, desse jeito, não teria que se preocupar com ela.
Não que o estivesse.
– Vamos sair – disse Craeg.
Ele e o macho durão foram para a soleira ao mesmo tempo, seus ombros combinados quase preenchendo o que no fim se mostrou um túnel; depois que estavam nele, uma
luz bruxuleante distante passou a ser o rumo para qual seguiram lentamente.
– Qual o seu nome? – o gótico sussurrou.
– Craeg.
– Axe. Porra, cara, prazer em conhecê-lo.
Paradise esperou que qualquer coisa acontecesse quando seguiram como grupo pelo túnel. Comprimida, ansiosa, lenta e exausta, esperou que a desgraça seguinte acontecesse,
algo os atacando, caindo sobre eles, derrubando-os.
Quando simplesmente saíram ao ar livre diante de uma fogueira, seus nervos abalados não sabiam como processar a ausência de um ataque.
Mas o que o seu cérebro não conseguia mesmo entender era o fato de haver uma mesa preparada com garrafas de água mineral, barrinhas de cereal e frutas fatiadas.
Tinha acabado?, pensou ao olhar ao redor para os pinheiros, as moitas, as estrelas no céu.
– Estou morrendo de sede – Peyton disse, esticando a mão para uma garrafa de Poland Springs.
O macho do qual Paradise não conseguia desviar a atenção o deteve.
– Pode ser uma armadilha – disse Craeg, aproximando-se.
– Você está paranoico.
– Experimentou a comida antes? Gostou de vomitar?
Peyton abriu a boca. Fechou-a. Praguejou.
Craeg avaliou o cenário. Bateu de leve no chão com a ponta do tênis molhado. Avançou cautelosamente, deslocando-se de lado e meio agachado. Quando se aproximou,
inclinou-se e nivelou o olhar com as garrafas bem ordenadas. Levantou a ponta da toalha de mesa e espiou embaixo.
Depois, pegou uma das garrafas devagar.
O coração de Paradise batia forte. Também estava desidratada, mesmo depois de ter engolido o que lhe pareceu ser metade da água da piscina. Mas estava com medo
de ser envenenada.
Deus, jamais estivera numa posição como aquela antes: consumida pela sede, diante da bebida, e ainda assim incapaz de pegar o que queria.
– Esta não está lacrada – Craeg anunciou.
Pegou outra. E mais outra. Na terceira, o lacre se rompeu e ele abriu a tampa. Cheirou o conteúdo, deu um golinho.
– Esta está boa. – Passou adiante sem nem olhar e, assim que Peyton a pegou, Craeg voltou a inspecionar as outras, uma a uma, desprezando as já abertas. Era Peyton
quem as distribuía entre o grupo até que todos tivessem água.
Craeg guardou uma garrafa para si, mas não bebeu tudo, enfiando-a no cinto da calça. Então, sem dizer nada, foi olhar as barrinhas de cereal, jogando fora as que
estavam com a embalagem rasgada, dividindo as íntegras.
Paradise comeu mesmo sem estar com fome porque não sabia quando parariam de novo e quanto esforço ainda exigiriam na fase seguinte… e comida era energia. A barrinha
era uma mistura estranha de papelão, guloseima de mentira e uma massa grudenta, mas ela não se importou com isso. Precisaria das calorias.
Nem que fosse apenas para ficar aquecida, pensou, quando sentiu um arrepio. Novembro à noite e roupas molhadas. Nada bom para a temperatura corporal quando se está
parado. Ou exposto aos elementos por muito tempo.
– O que fazemos agora? – perguntou para ninguém especificamente e todos ao mesmo tempo.
Atrás deles, a porta da instalação se fechou e travou.
O assassino serial, Axe, disse arrastado:
– Tudo bem. Eu não estava a fim de outra dose de ação naquela piscina mesmo.
– Tem uma cerca lá adiante – a outra fêmea disse, apontando para a esquerda.
– E ali – acrescentou o atleta.
– Aposto que está eletrificada – murmurou Peyton. – Tudo que era metálico estava.
A dúvida foi solucionada quando alguém pegou um galho, jogou-o no arame e a coisa torrou, emitindo uma chuva de centelhas.
Explorando um pouco mais, descobriram que estavam numa espécie de calha com apenas uma saída: direto em frente, embrenhando-se na floresta escura.
– Vamos juntos – ela disse, olhando além da luz alaranjada da fogueira. – De novo.
– Odeio trabalho em equipe – resmungou Axe.
– E eu estou tão animado em fazer isso com você – Peyton replicou.
Sem falar mais a respeito, os integrantes do grupo assumiram a mesma formação combinada antes da entrada no túnel. Partiram assim, deslocando-se em bloco, atentos
para não se aproximar demais da cerca de arame conforme ela se estreitava de ambos os lados.
Galhos se partiam debaixo dos tênis molhados. Alguém espirrou. Uma brisa soprou de um dos lados e gelou o braço de Paradise.
Mas tudo isso mal foi percebido. Conforme avançava, seu corpo parecia um fio desencapado, a energia fluía por suas veias, os instintos aguçados e prontos para estímulos
de qualquer parte. Agora estava alerta para qualquer coisa anormal, um estalo no chão que fosse alto demais, uma mudança do andar de Peyton ao seu lado, um pio em
um galho à esquerda… e tudo o que não conseguia encaixar de imediato na categoria de não ameaça fazia seus músculos nervosos e o cérebro vigoroso querer parar e
avaliar. Ou sair em disparada.
E mesmo assim seguiram em frente. Em frente… Sempre em frente.
O tempo está passando, ela pensou ao olhar para a posição das estrelas.
E continuaram, o grupo maltrapilho se arrastando, tropeçando, claudicando, cada um deles machucado de alguma maneira, mas ainda assim determinado a ficar de pé.
Muitos quilômetros depois – ou teriam sido cem? – nada os atacara.
Mas ela não se deixava enganar.
Os Irmãos voltariam. Tinham um plano com aquilo.
Ela só precisava ficar firme, se manter com o grupo e…
À frente, Craeg e Axe pararam.
– O que foi? – perguntou ao segurar o braço de Peyton.
Aquele cheiro era… de fumaça?
– Voltamos ao início – Craeg respondeu baixinho. – Foi aqui que começamos.
Quando ele apontou para o chão, ela viu pegadas, as pegadas deles, na terra fofa. Só que a mesa e a comida e a água tinham sido removidos… e a fogueira fora apagada,
o que explicava o cheiro. E a cerca fora colocada numa posição diferente.
– Vão nos fazer andar em círculos? – Peyton reclamou. – Mas que porra…?
– Por quê? – Paradise perguntou, olhando para Craeg como o líder de fato deles. – Por que fariam isso?
Graças aos seus olhos terem se acostumado à escuridão, ela conseguia distinguir-lhe as feições fortes quando ele franziu o cenho e olhou ao redor. Quando ele balançou
a cabeça, ela sentiu um frio no estômago.
– O que foi? – perguntou.
A outra fêmea respondeu:
– Eles vão nos exaurir. É por isso que…
O som de tiros surgiu da esquerda, outra saraivada de disparos iluminando tudo com as explosões dos canos enquanto eles se chocavam uns com os outros, os corpos
colidindo, as balas provocando pontos de dor no ombro e na perna de Paradise.
– Andem! – Craeg exclamou. – Apenas andem que os tiros passarão!
E ele estava certo. No instante em que começaram a se mover na direção de antes, tudo se calou e o silêncio reinou.
Não era preciso ser um gênio para descobrir que, caso parassem, seriam atingidos por outras daquelas balas de borracha.
Paradise inspirou fundo. Aquilo não era tão ruim, disse a si mesma. O ritmo era lento e constante, e ela gostava de caminhar.
Claro que era melhor do que levar um tiro.
Tudo terminaria bem.
Era melhor do que a piscina. Melhor do que ser arrastada pelo chão com a cabeça coberta. Melhor do que as explosões no ginásio.
Só o que ela precisava fazer era por um pé diante do outro.
Para passar o tempo, concentrou-se no corpo de Craeg, à frente, acompanhando os movimentos do corpo grande, dos ombros largos, o modo como o quadril virava a cada
passo dado. Quando o vento mudava de direção de tempos em tempos, ela captava o cheiro dele e o considerava mais gostoso do que qualquer perfume que já sentira.
Quem era a família dele?, ficou imaginando. De onde vinham?
Teria uma companheira?
Interessante como essa última pergunta provocou uma dor em seu peito. Pensando bem, depois de tudo que passara nesta noite, não era de admirar que sua mente e emoções
estivessem todas confusas…
Eles deram voltas e voltas, até ela começar a reconhecer árvores, certos galhos, até os pés formarem uma pista na terra, até que a monotonia começasse a afetá-la.
Ninguém os atacava, nem atirava neles, ou saltava das árvores para aterrorizá-los.
Não significava que isso não pudesse acontecer, mas quanto mais nada acontecia, mais seu cérebro começava a se canibalizar, passando de pensamentos aleatórios sobre
Craeg para um pânico infundado, imagens do pai e… preocupação quanto ao que se seguiria.
Olhando para o céu, desejou saber o significado das posições das estrelas. Não fazia ideia de quanto tempo se passara desde que chegaram ao ginásio, e até mesmo
depois de terem saído para ali. Parecia uma vida desde que se registrara e tiraram sua foto. Mais tempo ainda desde que ela e Peyton discutiram no ônibus. Mas isso,
por certo, não era verdade.
Três horas? Não, isso era pouco. Cinco ou seis, estimou.
A boa notícia era que isso teria que parar na aurora. O sol era inegociável mesmo para os Irmãos e, evidentemente, ninguém seria morto ali. Sim, aquela situação
com as armas tinha sido horrível, mas as pessoas que levaram bala de verdade ainda estavam de pé, os ferimentos, obviamente, superficiais, e o mesmo acontecera com
aqueles que tinham comido e bebido substâncias adulteradas.
Tantos haviam sido eliminados. Quando começaram, eram sessenta. Estavam reduzidos a sete.
E ela estava surpresa em se ver ainda ali. Na verdade, caso soubesse que a coisa toda terminaria com uma caminhada pela floresta, tudo teria lhe parecido muito
mais fácil.
Considerando-se como poderia ter sido muito pior, aquilo era moleza.
Capítulo 11
UM A UM, TODOS ELES FORAM CAINDO.
O primeiro a sair foi o macho que ela conhecia dos eventos dos festivais da glymera, um primo seu muito distante, Anslam. Depois de um tempo, ele começou a diminuir
o ritmo, os passos se tornando um claudicar que gradualmente ficou mais pronunciado, o corpo inteiro sendo afetado por ele. E logo ele simplesmente parou.
O grupo lhe ofereceu certo encorajamento, mas ele apenas sacudiu a cabeça e se sentou para afrouxar os cadarços dos Nikes.
– Chega para mim. Deixe que atirem. Não consigo mais.
Mesmo na escuridão, ela conseguiu ver que havia sangue nas meias brancas.
– Venha, Paradise – disse Peyton, cutucando-a. – Temos que seguir em frente.
Olhando para a floresta densa, ela se perguntou onde estariam os Irmãos. O que aconteceria com ele.
Quando o grupo voltou a andar, ela os seguiu porque não queria desistir, e também – mesmo tendo vergonha de admitir – porque nunca fora muito com a cara dele. Anslam
tinha uma má reputação com as fêmeas.
Não demorou para que o próximo desistisse. Em seguida, um depois do outro, todos desmoronaram. O problema eram os pés. Ou as coxas. Ou os ombros. Um a um… todos
foram ao chão, para o caminho de terra muito batido que eles formaram com suas incontáveis passadas. E Paradise sentiu a necessidade de ajudar a todos, especialmente
quando Peyton começou a cambalear ao seu lado… e depois oscilar como se já não tivesse certeza do que havia diante dele.
No caso dele, o problema foi resultado do vômito. O organismo também rejeitara a água que ele consumira, e a desidratação o fez delirar.
Com ele, ela não tinha como não tentar, e puxou seu braço, procurando colocá-lo de pé quando ele caiu de joelhos.
– … casa – ele balbuciou. – Vou para casa agora. Para a cama… Comida. Preciso… de comida. Já estou em casa. Olha lá.
Foi assustador vê-lo apontar para a floresta à frente, os olhos absortos como se de fato vissem a mansão em que morava.
E foi então que ela entendeu que não poderia forçá-lo.
– Venha – a outra fêmea lhe disse. – Se ainda está de pé, tem que continuar.
Paradise fitou o par de olhos azul petróleo.
– Odeio isto.
– Nada acontecerá com ele. Lembra, nenhum tiro… em ninguém do grupo que desistiu.
– Vá – ordenou Peyton com um súbito foco. – Vou ficar bem.
No fim, ela não saberia dizer por que colocou um pé diante do outro de novo. Talvez a ausência de introspecção fosse um sintoma da própria exaustão. Talvez também
estivesse delirante e seguiu o que restava do grupo porque seu cérebro os confundia com um “lar”, de certa forma.
Talvez seu corpo simplesmente estivesse no piloto automático.
E, algum tempo depois, só restavam dois.
A outra fêmea, aquela com olhos azuis esverdeados, logo seguiu o que Paradise reconhecia agora como sendo o padrão: primeiro, diminuiu o passo e começou a tropeçar,
para, em seguida, parar de uma vez. Como ela não desabou no chão, Paradise retornou, pensando que ainda haveria uma possibilidade.
– Não – disse a fêmea, cortando qualquer conversa. – Vou ficar aqui. Continue você.
Paradise relanceou o único macho que ainda avançava: Craeg ainda estava na liderança. Como estivera o tempo inteiro.
Não parara para ninguém.
Não oferecera nenhum encorajamento.
Simplesmente mantivera o passo sem desvios nem distrações.
– Não desperdice seu tempo nem suas energias comigo – disse a fêmea. – Tomei minha decisão. Já não sinto mais minhas pernas, e acho que meu ombro está fraturado.
Se consegue continuar andando, é o que precisa fazer. Está cansada demais para me carregar, mas mesmo que você pudesse, eu não seria um fardo para ninguém.
Os olhos de Paradise arderam por causa das lágrimas.
– Cara… que merda…
A fêmea teve que sorrir um pouco.
– Você vai ganhar esta.
– O quê?
– Vai. Você consegue, garota.
Ok, mais alguém estava delirando, evidentemente.
A fêmea lhe deu um empurrão e acenou.
– Prove aos rapazes que não somos apenas iguais a eles, somos melhores. Não me desaponte.
Paradise meneou a cabeça. Se alguém devia vencer a guerra dos sexos, a melhor aposta seria a fêmea diante dela.
– Vai. Você consegue.
Paradise estava praguejando ao se virar e retomar a caminhada. Loucura. Simplesmente uma insanidade.
Quando seus pés voltaram a se arrastar sobre o agora caminho de terra batida, ela voltou a olhar para o céu. As estrelas estavam mais brilhantes do que nunca, o
que lhe dizia que a aurora ainda devia estar distante.
Por quanto tempo estavam caminhando? E quanto mais ainda caminhariam?
Àquela altura, Craeg estava bem distante. De tempos em tempos ela captava o cheiro dele na brisa, mas apenas de leve. Vencedores? Se fosse para apostar num vencedor,
seria ele quem acabaria em primeiro lugar naquilo tudo: ele era mais forte e mais resiliente – e ela tinha que acreditar, mesmo indo contra seus princípios éticos
fundamentais, que aquela personalidade determinada, o comprometimento inflexível consigo próprio o faria levar a melhor em relação ao seu interesse compassivo pelo
próximo.
O peso carregado, quer fosse ele físico, mental ou emocional, tornava o andar mais lento.
E, enquanto ela continuava a caminhar, através do vento frio que já não percebia, sentia a perda de cada um do pequeno grupo, e por todos os outros que sofreram
antes, fosse no ginásio, ou na piscina…
Não, aquele macho que seguia à frente seria o último candidato a permanecer de pé.
Ao fazer a curva num trecho do percurso, avistou uma barreira mais adiante. Estava um pouco distante, mas definitivamente era um obstáculo no meio do caminho.
Não apenas um obstáculo.
Era… Craeg.
Seu cérebro acelerou, ordenando que ela se apressasse; seu corpo, contudo, não conseguia responder à descarga de adrenalina. Mesmo quando seu cérebro apertou todo
tipo de botão de alarme, seu passo não se alterou; aquele arrastar dos pés e as guinadas do tronco permaneceram inalterados pelo pânico.
Chegando perto dele, descobriu que ele caíra de cara no chão, com os braços esticados ao longo do corpo, como se houvessem lhe faltado forças ou consciência para
amortecer o impacto da queda. As pernas estavam frouxas, as pontas dos tênis voltadas para dentro.
– Craeg?
Quando foi se agachar, acabou caindo porque seus joelhos recusaram-se a dobrar. E quando tentou rolá-lo de lado, as mãos ficaram escorregando nas roupas dele, no
ombro, no braço.
Ainda que talvez isso se devesse ao fato de ele pesar o dobro de Peyton.
Só conseguiu virá-lo parcialmente de lado e, Deus, ele estava tão pálido que seu rosto parecia o de um fantasma. Pelo menos estava respirando e, depois de um instante,
seus olhos se abriram numa série de piscadas atordoadas.
Foi bizarro, mas seu primeiro pensamento foi o de oferecer-lhe a veia. Algo que não lhe ocorrera até então, mesmo quando Peyton despencou.
O impulso foi tão forte que ela levou o pulso à boca…
Ele a deteve, dando um tapa no braço dela.
– Não – ele conseguiu dizer com dificuldade.
– Você está sangrando. – Ela apontou para a grande mancha vermelha nos jeans dele. – Precisa se fortalecer.
Quando o olhar dele se prendeu no seu, um estranho tipo de visão em túnel reduziu o mundo inteiro a apenas os dois. A floresta ao redor, a construção na qual haviam
enfrentado as provas, as dificuldades que ambos suportavam… Tudo desapareceu juntamente com as dores e desconfortos em seu corpo e em sua mente.
O olhar dele a limpou. Refrescou-a. Energizou-a.
– Deixe-me aqui – ele murmurou, a cabeça indo de um lado para o outro no chão. – Vá em frente. Você é a última…
– Você consegue se levantar. Consegue continuar…
– Pare de perder tempo. Vai…
– Você tem que se levantar.
Ele fechou os olhos e virou a cabeça para longe dela, como se estivesse pondo um fim àquela conversa.
– Isso é a sua sobrevivência. Sobrevivência significa que você continua, não importa o custo, não importa o sacrifício. Por isso, pare de gastar saliva, volte a
ficar de pé e mexa-se.
– Não quero te deixar aqui. – E também não queria analisar muito de perto os motivos pelos quais se afastara de Peyton, mas parecia não conseguir suportar a ideia
de abandonar aquele completo estranho. – Não vou te deixar aqui.
Os olhos dele se voltaram na direção dela e estavam furiosos.
– Que tal assim: não quero ajuda de alguém como você, não quero ser resgatado por uma fêmea burra… Uma fêmea burra, fraca, desajeitada que nem deveria ter tido
permissão para entrar neste programa, pra início de conversa.
Paradise caiu para trás no chão da floresta, uma dor ardente atravessando o seu peito. Só que ela balançou a cabeça.
– Não é nisso que você acredita de verdade. Não foi isso o que me disse naquela noite em que nos vimos pela primeira vez. Você me disse para vir para cá mesmo quando
meu pai não queria me deixar vir.
– Eu menti.
– Está mentindo agora.
Ele voltou a fechar os olhos.
– Você não me conhece.
Quando ele ficou em silêncio, ela sentiu uma onde enorme de exaustão caindo sobre ela.
– Não, não conheço.
Olhando além dele para a trilha que seguia em frente, tentou se imaginar ficando de pé e voltando a andar… e não conseguiu. Em algum momento entre a última vez
que estivera na vertical e aquele atual instante de bunda no chão, sentia-se como se houvesse ganhado uns trezentos quilos – e não só isso. Parecia que alguém batera
nos seus dois pés com um martelo. E na cabeça também. E nos ombros.
Paradise voltou a olhar para o caminho de onde vieram. Pensara mesmo que uma caminhada não seria tão ruim assim?
– O seu lugar não é aqui – ela o ouviu dizer.
Paradise revirou os olhos.
– Estou entediada com essa linha de pensamento. Se acredita mesmo nisso, não teria me dado aquele conselho no começo da noite.
– Senti pena de você. Tive dó.
– Então você tem coração.
– Não.
– Então, como pode sentir pena de mim e de qualquer outro? – Quando ele apenas grunhiu, ela ficou bem ciente de que ambos eram indivíduos teimosos e insistentes,
e que nenhum deles estava raciocinando direito. – Tudo bem, me acompanhe… Se não tem coração, porque se deu ao trabalho de testar as garrafas de água para todos?
As barrinhas de cereais. Não foi só por mim.
– Sim, foi.
Paradise ficou quieta. A cabeça dele estava virada para o outro lado, mas teve a estranha sensação de que acabara de dizer a verdade.
– Mas não passo de uma estranha para você.
– Já disse. Fiquei com pena. Os outros sabiam cuidar de si mesmos e um grupo dá segurança.
– Então espera. Qual dos dois você é: misógino com uma consciência ou companheiro de equipe apesar de eu ser uma garota? Você muda de opinião que nem um político.
Ele grunhiu e levantou um braço.
– Você está fazendo a minha cabeça latejar.
– Acho que isso é culpa do teste de resistência. Não minha.
– Pode ir embora? Um pouco mais desta conversa e vou ficar tão enjoado quanto o seu namorado ficou.
– Meu namor… Peyton? Está falando do Peyton?
Ok, estavam mesmo ali sentados conversando como se nada mais estivesse acontecendo?
Bem… discutindo como se nada mais estivesse acontecendo?
– Faça-me um favor – disse o macho. – Está vendo aquela pedra ali?
Ela olhou para a esquerda.
– Aquela? Do tamanho de uma geladeira portátil?
– Essa mesma. Pode pegá-la e jogá-la na minha cabeça? Isso seria ótimo. Obrigado.
Paradise esfregou os olhos, depois abaixou as mãos quando apoiar os braços nos joelhos se tornou um esforço muito grande.
– Qual o seu nome completo? Se vou te matar atendendo a um pedido seu, preciso saber o que escrever na sua lápide.
Aqueles olhos voltaram a se concentrar nela. Azuis da cor do céu. Eram de um incrível tom de azul.
– Que tal fecharmos um acordo? – ele murmurou. – Você simplesmente me deixa em paz aqui morrendo e não vai ter que se preocupar com sangue nos seus sapatos, ou
qual é o meu nome.
Paradise desviou o olhar.
– A terceira vez não é a da sorte.
– O quê?
Ela esperou que ele lhe dissesse a sua linhagem. Quando não o fez, ela deixou isso por conta da exaustão… e dos seus antepassados plebeus.
– Pode ir embora agora, por favor? – ele sussurrou. – Por mais que eu tenha “apreciado” esta nossa conversa, estou quase desmaiando… e quero acabar logo com isto.
Preciso dormir.
– Você consegue fazer isto… Consegue continuar.
Ele não respondeu nem demonstrou tê-la ouvido e, de modo estúpido, ela sentiu como se ele tivesse rejeitado um presente que ela tentara lhe dar. E isso não era
arrogância?
– Então é isso… – disse, basicamente para si mesma.
Mais uma vez nada; contudo, ela não achava que ele tivesse desmaiado de verdade.
E então, assim como fizera antes, ele falou quando ela não esperava:
– Chegou a hora de você resolver quem você é. Isso acontece em momentos como este. Você é alguém que desiste, ou alguém que segue em frente?
Mas eu sempre pararia para te ajudar, ela pensou consigo. E ajudar ao próximo não é desistir.
– Não quer descobrir quem mais você é… além de uma recepcionista?
Ela franziu a testa.
– Todo tipo de trabalho é honrado.
– E talvez exista grandeza à sua espera, mas só se você se levantar e seguir em frente.
Deus, ela já não sabia… mais de nada àquela altura.
Com o calor da raiva se dissipando, sentiu um tamanho cansaço que parecia que ia desabar ali mesmo.
Quem sou eu?, perguntou-se.
Era uma boa pergunta.
E não fazia ideia de qual era a resposta. O que de fato sabia? Paradise, filha de Abalone, Primeiro Conselheiro de Wrath, o Rei Cego, não era o tipo de pessoa que
ficava sentada ao lado de um desconhecido que não a queria por perto e que não pedia para ser salvo enquanto houvesse uma possibilidade de conseguir erguer o pé,
andar mais cem metros, mais um quilômetro naquele desafio.
Baixou os olhos para Craeg. Assim como com ela, as roupas dele estavam manchadas de sangue, de suor, de terra, o cabelo estava duro por ter secado sem ter sido
escovado, o corpo era um trapo largado de qualquer jeito.
– Cuide-se – disse ela ao se esforçar para se levantar.
Ele não respondeu. Quem sabe tinha realmente desmaiado? Ou talvez só estivesse aliviado por ela finalmente ir embora. De todo modo… não era da sua conta.
Quando foi avançar a perna direita, descobriu que tudo em seu corpo físico – da nuca até a coluna, das panturrilhas a todas as juntas e tudo no meio – era um conjunto
ardente de dor. Mas pôs um pé à frente. E repetiu. E fez de novo. E…
Não tinha a menor ideia do que a fazia ir em frente. Não se importava em vencer. Não fazia aquilo para provar a ninguém que estavam errados, ou que as fêmeas tinham
valor. Sequer sabia se estava tendo pensamentos conscientes.
Paradise só continuou andando… porque era isso o que fazia.
Queimação.
Algum tempo depois, ela só sentia queimação: nas pernas e nos pés… nas entranhas e nos pulmões… na garganta – Deus, a garganta pegava fogo –, no crânio… no rosto.
Fogo ao redor dela, dentro dela, como se as veias tivessem gasolina dentro delas e os músculos estivessem queimando de dentro para fora.
Luzes brilhantes nos olhos também.
Uma luz tão brilhante.
Brilhante demais.
Só que não estava amanhecendo. O céu ainda estava escuro. Pelo menos ela achava que estava.
Bem de leve, um pensamento surgiu em meio à sua agonia. Aquilo seria o Fade? Aquela iluminação, aquela dor, o calor?
Teria morrido de algum modo?
Mas não se lembrava de ter morrido. Sabemos quando morremos? Mas o que mais poderia explicar aquela ardente agonia?
Andando… Ainda estava andando. Ou talvez o mundo estivesse se movendo debaixo dos seus pés e ela só estava parada sem se mexer? Era difícil determinar. Via tudo
em dobro, a floresta se adensando de ambos os lados da cerca eletrificada, a trilha que seguia se bifurcando ao longe, de modo que ela sentia que devia escolher
tomar a direita ou a esquerda, só que quando ela voltou a olhar havia um só caminho outra vez.
Fogo… o Fade.
Não!, pensou atordoada. Deus, seu pai! Ah, aquilo era horrível. Abalone ficaria sozinho agora, sem ninguém mais naquela imensa mansão Tudor, sem as suas duas fêmeas…
Paradise parou.
O caminho à frente não estava mais livre.
Ao se concentrar na barreira alta e sólida diante dela, a visão dupla se agrupou no que era uma representação mais acurada da realidade… e ela viu que era um grupo
de machos.
Devia haver… uma dúzia, talvez mais.
E todos estavam vestidos de preto, com capuzes escondendo os rostos e fortemente armados.
A Irmandade a acolhia no Fade?
Isso não fazia sentido.
Ao vacilar sobre os pés, percebeu que eles se aproximavam, andando numa densa formação de corpos impossivelmente grandes.
Corra!, uma voz interna comandou. Corra! Isso é outro teste!
Só que ela não tinha mais forças. Nenhuma energia sequer para sustentar o pânico por mais tempo do que aquele único pensamento orientado para a ação.
Balançando no ar, pegando fogo por dentro e por fora, ela pensou: que se foda. Violara algum limite de tempo, falhara naquele módulo, fracassara em qualquer que
fosse aquela parte do treinamento e o jogo se encerrava para ela. Não havia como recomeçar, nenhuma motivação estava ao seu dispor, quer interna ou externamente.
Mesmo se atirassem nela, se a picassem em pedacinhos, se a derrubassem e passassem por cima… Não tinha nenhum espírito de combate para lhes oferecer.
Então, esse era o seu fim, hein? Cara, seu pai ficaria furioso quando eles a matassem.
Parando num movimento coordenado, como se funcionassem sob o comando de um só cérebro, a Irmandade se deteve diante dela, e todos ergueram as mãos. Preparando-se
para algo que fosse doer, ela…
Eles começaram a bater palmas.
Um a um, ergueram as mãos grandes, batendo palmas enquanto a fitavam. E enquanto a rodada de aplausos continuava, tiraram suas máscaras, revelando-se para ela.
– O que foi? – ela murmurou. – Não estou entendendo.
Ou melhor, foi o que ela teve a intenção de dizer. Estava sem voz, não lhe restava nada para manifestar as palavras que sua mente desejava que emitisse.
Butch, aquele com o sotaque de Boston, avançou um passo.
– Parabéns – disse com firmeza. – Você é a Primus.
Paradise não fazia ideia do que aquilo significava. E não havia a mínima chance de pedir que ele repetisse.
Como se alguém tirasse um computador da tomada… tudo ficou escuro para ela, entre um batimento do coração e o seguinte.
Capítulo 12
ENQUANTO ESPERAVA DO LADO de fora da sala de exames da doutora Jane, Butch apoiou a bunda na parede de concreto do corredor do centro de treinamento e deixou a
cabeça pender. De tempos em tempos, esfregava os olhos.
O que não ajudava muito.
Na verdade, não ajudava nada. A cada piscada de olhos, ele via Paradise cambaleando no meio da trilha que eles formaram na floresta para os trainees, parecendo
ter saído de uma guerra, o cabelo todo emaranhado, sujeira no rosto, as roupas em farrapos, sangue nas mãos. E quando ela conseguiu focalizar os Irmãos, o olhar
dela estava vazio como um crânio oco; o corpo, uma confusão dissonante de membros desajeitados, frouxos; seu espírito, alquebrado.
Maldição, não conseguia evitar visualizá-la como na noite anterior, enquanto estivera terminando de ajeitar as coisas para seu pai na casa de audiências. Imaculada,
então. Desperta, alerta, feliz, ainda que nervosa com a possibilidade de a sua inscrição ser revogada pelo pai, pela Irmandade, pelo Rei.
Inferno, talvez devessem tê-la deixado de fora.
Mas não teria sido justo.
A boa notícia, supunha, era que o programa projetado por ele e por Vishous dera resultado. O objetivo fora reduzir a classe de sessenta candidatos a abaixo de dez
alunos.
Tinham sete com quem trabalhar.
Todos os que chegaram ao trajeto na floresta estavam dentro.
Mas ele não podia dizer que se sentia bem com isso. Talvez se o último a resistir tivesse sido um dos machos robustos… Como Craeg, aquele líder nato, o tipo de
cara perfeito para a vida de soldado… Se ele tivesse ficado por último, Butch tinha quase certeza de que não estaria tendo uma crise de consciência agora.
Não que ele não acreditasse que as fêmeas pudessem dar conta do recado. Ele só…
A porta para a clínica se abriu, e V. surgiu. Quando o Irmão imediatamente acendeu um dos seus cigarros, Butch se perguntou se o cara também não estaria se debatendo
com tudo o que fizeram. Não que o filho da mãe um dia fosse admiti-lo.
– Ora, isso foi divertido – disse o Irmão com seu imperturbável ar soturno. – Podemos repetir amanhã?
– Ela está bem?
– Está. – V. exalou ao guardar o isqueiro. – Desidratada. Pés machucados. Esfolada em alguns lugares. Está sendo acomodada no quarto dos beliches por Ehlena agora.
– Ainda está inconsciente? – Caralho, aquilo era bem ruim. Muito ruim.
– Indo e vindo. Não queremos que ela nos processe, certo?
– É.
Houve uma pausa.
– O que foi? Olha só, eu disse que ela vai ficar bem.
Butch só balançou a cabeça. Sem dúvida, considerando-se o seu passado “sadomaso”, V. estava acostumado a fêmeas – e machos – acabados, e mesmo assim se safando
da situação sem problemas. Como antigo detetive de homicídios, no entanto, Butch levava as coisas para uma direção diferente: ele enxergava vítimas.
Revivia cenas de crime com corpos de mulheres destroçados como carros envolvidos em acidentes sérios. E, não, elas não saíam andando, não ficavam “bem”.
Pelo amor de Deus, ele se lembrava da imagem da própria irmã ao olhar pela janela de trás do carro de seu assassino, para nunca mais ser vista com vida.
Por isso, sim, as associações não eram as mesmas.
– Quer beber alguma coisa? – V. lhe perguntou.
Entenda-se: você está com a cara péssima.
Butch pegou o celular. Enviara uma mensagem de texto para Marissa assim que levaram Paradise para dentro, mas não houve nenhuma resposta. Pelo visto, era uma noite
ocupada para a sua companheira.
– Tudo bem se eu der uma saída? – perguntou ao colega de quarto.
– Vai para a igreja de novo?
Cara, aquele filho da puta o conhecia bem demais.
– Ainda faltam umas duas horas até o nascer do sol. – Deu um tapa no ombro do melhor amigo. – Te vejo na Última Refeição.
Estava na metade do caminho até o escritório, onde ficava a entrada para o túnel, quando V. o chamou.
– Você não fez nada errado hoje à noite.
Butch assentiu. Depois olhou por cima do ombro.
– Isso não significa que eu esteja contente por apresentar a guerra para um punhado de crianças.
– Ou nós fazemos essa apresentação, ou a própria guerra os encontrará em seus termos.
– É, isso é necessário, pode até ser para o bem deles. Mas não me cai bem.
Quando seguiu em frente, sentia aqueles olhos duros e límpidos de diamante observando-o, e ficou contente por estar se afastando do cara e não indo ao seu encontro.
Vishous era bom demais em interpretá-lo, e ele desejava tudo o que o estava desequilibrando só para si.
E, sim, era por isso que iria para a igreja. Era o que bons moços católicos e tementes a Deus faziam quando estavam com as mentes fodidas.
Paradise despertou de repente, não apenas retornando à consciência lentamente, mas sendo catapultada à total percepção, as mãos batendo no que quer que estivesse
deitada, o tronco se erguendo, os olhos se arregalando…
Estava pronta para qualquer coisa…
Exceto para o ambiente limpo e bem-iluminado repleto de beliches e absolutamente vazio a não ser por ela.
– Mas que…
Ao olhar ao redor, o pescoço estalou, e isso abriu a comporta para todo tipo de sensações desagradáveis represadas: os pés latejavam, o quadril a matava, as coxas
estavam pegando fogo, tinha cãibra numa panturrilha, e seu estômago doía como se tivesse levado um soco no abdômen.
Virando as pernas para o lado do chão, descobriu que estava coberta por uma camisola hospitalar e um roupão leve.
– Não se preocupe, você foi examinada por uma médica e por uma enfermeira.
Ela se virou na direção da porta.
– Peyton?
Seu amigo estava meio para dentro, meio para fora da soleira, sem as roupas sujas e com um roupão frouxo preso à cintura em seu lugar. Evidentemente tomara um banho,
comera e bebera, e estava bem perto do seu normal: a bela aparência, o sorriso sardônico, os olhos sensuais reavivados.
– Ou pode me chamar de Papai Noel. – O amigo avançou e lhe entregou uma xícara de café. – Afinal, eu lhe trouxe um presente.
– Espera, espera… Onde estamos? O que…
– Toma. Beba isto. – Peyton se sentou no beliche ao lado dela. – E antes que me pergunte, não há nada aí além de duas colheres de açúcar e um pouco de leite. Lembro
como você gosta.
– Que horas são? – Aceitou o café, só para ser educada. – Ai, meu Deus, o meu pai…
– Eu mesmo liguei para ele. Estamos no centro de treinamento da Irmandade. Nós sete entramos no programa; você, em especial. Parabéns, Parry. Você conseguiu.
Ela franziu o cenho e deu um golinho. Depois gemeu.
– Ai, meu Deus… Essa é a melhor coisa que já experimentei na vida!
Ele se levantou e se aproximou de uma mesinha lateral.
– Última Refeição, minha senhora.
Quando ele aproximou uma bandeja com pratos cobertos, ela teve que se controlar para não esvaziar a xícara toda num gole só.
– Onde está todo mundo?
– Num refeitório ou sala de descanso bem aqui do lado. A maioria está dormindo. Pedi que a enfermeira te colocasse aqui por motivos óbvios.
– Óbvios… – Ah, certo. – Obrigada.
– Pois é, sem acompanhante… Mas eu tenho te espiado a cada quinze minutos.
Depois de tudo que passara naquela noite, sua virtude parecia a última coisa com que tinha que se preocupar. Mas não era possível se libertar desse tipo de educação
de toda uma vida de uma hora para outra.
– Coma – ele disse. – Tudo fica melhor depois que a gente come.
Apoiou a bandeja ao lado dela na cama e começou a tirar as tampas. Uma olhada para as fatias de rosbife e para o purê e ela ficou faminta.
Mas antes de avançar, teve que perguntar:
– Todos nós sete? Desde que a gente… sabe, saiu junto? Todos nós?
– Axe, Boone, Novo, Anslam e Craeg.
Ela baixou o olhar ao escutar o último nome.
– Então essa é a nossa turma?
– Isso mesmo.
Pegando o garfo e a faca, ela gemeu quando se virou na direção do prato, e suas costelas emitiram um protesto do tipo O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTá FAzENDO?
– Droga, não consigo me mexer sem…
– Advil. Vou te trazer mais. – Peyton foi para a porta e parou. – Eu te devo desculpas.
– Pelo quê?
– Por pensar que você não conseguiria fazer isto. – Olhou para ela. – Teve razão ao brigar comigo no ônibus. Provou que eu estava errado. Lamento muito.
Paradise exalou fundo.
– Obrigada. Isso significa muito para mim.
Ele assentiu.
– Venha para cá quando estiver pronta. Só estamos conversando para passar o tempo.
– Ei, Peyton? – ela o chamou antes que ele pusesse a mão na maçaneta.
– Oi?
– Pode me fazer um favor?
– Manda ver.
– Não conte a ninguém… Você sabe, sobre quem eu sou. Não quero ser tratada de maneira diferente. Só quero ser como todo mundo.
– Anslam sabe. Mas posso falar com ele e mandar ele ficar de bico fechado.
– Obrigada.
Peyton olhou para o chão por um instante.
– Qualquer coisa por você.
Depois que ele saiu, Paradise comeu o quanto pôde, que, no fim, foi tudo o que estava na bandeja, inclusive os pãezinhos frescos e as ervilhas. Terminou o café
e tomou as duas garrafas de água que acompanhavam tudo. Depois claudicou até o banheiro num dos cantos.
A chuveirada estava tão quente que ela se surpreendeu em ver que a tinta não escorria pelas paredes, mas, ah, delícia, seu corpo relaxou debaixo do jato penetrante.
As bolhas nos pés doíam, assim como outros lugares aleatórios, a exemplo do cotovelo direito e do joelho esquerdo que estavam, assim como os ombros, ralados por
algum motivo. Não tinha importância. Era o paraíso.
Pendendo a cabeça, deixou a água escorrer pela nuca.
Estava contente que Peyton tivesse ligado para seu pai. Já estava quase amanhecendo, e não desejava que o macho se preocupasse, mas não estava pronta para falar
sobre tudo o que acontecera. Precisava de tempo para pensar, para processar, para avaliar.
Havia xampu ali. Usou-o sem olhar a marca. O mesmo com o condicionador. E com o sabonete.
Quando saiu, sentiu-se mais perto de ser ela mesma, mas isso mudou quando olhou para seu reflexo no espelho sobre a pia.
Aproximando-se, observou suas feições como se pertencessem a outra pessoa – e lhe pareceram desconhecidas. O rosto estava bem mais magro e, mesmo sem maquiagem,
seus grandes olhos pareciam sobressair sobre todo o resto, como numa criança.
– Quem sou eu? – sussurrou para seu reflexo.
Capítulo 13
A CATEDRAL DE SÃO PATRÍCIO EM CALDWELL era uma velha e imponente senhora, erguendo-se do chão como um testemunho tanto da misericórdia de Deus quanto da habilidade
do homem em cimentar blocos de tijolos. Ao estacionar seu novo Lexus, Butch pensou que era muito engraçado que, de todos os seus traços de humanidade a terem sobrevivido
após a transição para vampiro, o que mais ficara arraigado fora a fé.
Era um católico melhor agora do que fora quando era Homo sapiens.
Abaixando a aba do boné dos Red Sox, passou pela porta dianteira que, sozinha, era maior do que a casa inteira em que crescera, no sul de Boston.
A catedral estava sempre aberta, era uma Starbucks da espiritualidade, pronta para servir o que fosse necessário quando as almas se sentissem perdidas e titubeantes.
Monsenhor, preciso de um “venti”* de perdão, muito obrigado. E um bolinho que magicamente possa me dizer que porra está acontecendo de errado na minha vida.
O segurança sentado numa cadeira no vestíbulo levantou o olhar da sua revista Sports Illustrated e acenou para ele. O cara estava acostumado a vê-lo entrar antes
do amanhecer.
– Noite… – o guarda o cumprimentou.
– Tudo bom?
– Bem. E você?
– Também.
Sempre a mesma conversa, e a troca de sete palavras já fazia parte do ritual.
Cruzando o tapete vermelho grosso, Butch inspirou profundamente e captou a tranquilidade do cheiro familiar de incenso, de velas feitas com cera de abelha, de lustra-móveis
de limão e de flores verdadeiras. Ao empurrar as pesadas portas de madeira entalhada para entrar no santuário majestoso, não gostou de ficar de boné, mas tinha que
esconder o rosto.
No entanto, sua mãe teria um acesso – desde que a demência dela se ausentasse por tempo suficiente para que ela conseguisse entender alguma coisa.
O fato de ela ter meio que enlouquecido fez com que abandonar o mundo humano fosse muito mais fácil. E, de tempos em tempos, ele e Marissa iam visitá-la, materializando-se
no quarto da casa de repouso em Massachusetts porque sabiam que as lembranças não durariam.
Butch parou e inspirou fundo, o sangue bombeando, a pele pinicando. Girando, franziu o cenho ao ver uma figura solitária sentada num dos bancos de trás.
– Marissa?
Mesmo que sua voz não estivesse alta o bastante para ser ouvida, sua companheira levantou a cabeça, pois sua presença fora percebida.
Apressando-se sobre o piso de pedra, entrou de lado na fileira em que ela estava, tentando não tropeçar nas pontas dos genuflexórios.
– O que está fazendo aqui? – ele perguntou ao perceber o cheiro das lágrimas.
Os olhos dela estavam marejados quando ele se aproximou, e ela se esforçou para sorrir, mas não conseguiu ir muito longe.
– Estou bem, de verdade, eu…
Ele se sentou ao lado dela – despencou seria uma melhor descrição –, e segurou suas mãos frias. Ela ainda estava com seu casaco Burberry, e o cabelo estava emaranhado
nas pontas, como se ela tivesse ficado caminhando ao vento.
Butch balançou a cabeça, o coração disparado.
– Marissa, você precisa falar comigo. Está assustando seu maldito marido.
– Desculpe.
Ela não disse mais nada, mas se recostou nele, permitindo que o corpo dele suportasse seu peso, e só isso já era uma explicação: qualquer que fosse o problema,
não era culpa dele.
Butch fechou os olhos e a amparou, esfregando-lhe as costas.
– O que está acontecendo?
A história saiu aos poucos: uma fêmea jovem… o gramado do Lugar Seguro… brutalizada… a operação de Havers… a morte inevitável… nenhuma identificação, nenhuma informação,
nenhuma família.
Deus, odiou que sua shellan preciosa tivesse sido exposta a toda aquela situação horrenda. Ah, e P.S., que aquele irmão dela se fodesse, de verdade.
– E agora não sei o que fazer por ela. – Marissa emitiu um suspiro trêmulo. – Eu só… sinto que não fiz o bastante para salvá-la enquanto ela estava viva e agora
ela se foi… e sei que era uma desconhecida, mas não importa.
Butch permaneceu calado porque quis dar todas as oportunidades para a sua companheira continuar falando. E, enquanto esperava, pensou que conhecia muito bem aquele
maldito sentimento de autorresponsabilização, ainda que indevida. Na época em que trabalhara para a divisão de homicídios na Polícia de Caldwell, sentia exatamente
a mesma coisa por cada uma das vítimas dos casos que investigava. Incrível como completos estranhos podiam se tornar tão próximos.
– É tão injusto para ela. Isso tudo. – Marissa se voltou para a bolsa, tirou um lenço de papel e assoou o nariz. – E eu não queria te contar nada porque sei que
estava muito ocupado…
– Errado – ele a interrompeu. – Não existe nada mais importante do que você.
– Ainda assim…
Virou o rosto dela para si.
– Nada.
Quando ela voltou a chorar, ele enxugou seu rosto.
– Como pode duvidar disso?
– Não sei. Não estou pensando direito. – Pressionou o lenço no nariz. – E vim para cá porque é aqui que você sempre vem.
Muito bem, isso aqueceu demais o coração dele.
– Ajudou?
Ela deu um leve sorriso.
– Bem, isso acabou nos reunindo, não foi?
Acomodando-a ao seu lado, passou o braço ao redor dela e ficou olhando para as fileiras de bancos de madeira encerada até aquele magnífico altar com sua cruz dourada
e a imagem de Jesus de seis metros no crucifixo. Graças às luzes externas, os vitrais brilhavam nas grandes janelas arqueadas que se estendiam até os contrafortes
góticos lá no alto. E as capelas que honravam os santos brilhavam com as velas votivas acesas pelos visitantes da noite, as imagens de mármore representando a Virgem
Maria, João Batista e os arcanjos Gabriel e Miguel oferecendo suas graças para quem precisasse.
Não queria que sua companheira sofresse, mas estava tão aliviado por ela tê-lo procurado… Como macho vinculado, seu primeiro instinto era sempre o de proteger a
sua shellan, e o retraimento dela, mesmo tendo durado apenas um dia, fora uma espécie de amputação.
– Etambémnãoteconteiporcausadasuairmã.
– O quê? – ele murmurou, beijando-a no alto da cabeça.
– A sua irmã…
Butch enrijeceu, mas não pôde evitar. Mas, verdade, qualquer menção àquela porção do seu passado bastava para que ele sentisse como se alguém o tivesse eletrocutado
com a bateria de um carro.
– Tudo bem – ele disse.
Marissa se endireitou.
– Não quis aborrecer você. Quero dizer, você nunca fala… hum, do que aconteceu com ela.
Olhou para as mãos da fêmea. Estavam se retorcendo nervosamente no colo, transformando o lenço de papel numa bolinha.
– Você não tem que se preocupar comigo. – Afastou o cabelo dela para trás dos ombros, acariciando os fios finos e macios. – Essa é a última coisa que precisa fazer.
– Posso perguntar uma coisa?
– Qualquer coisa.
Quando ela não disse nada de imediato, ele moveu o rosto para a linha de visão dela.
– O quê?
– Por que nunca fala comigo sobre a sua vida antes de me conhecer? Quero dizer, sei algumas coisas… Mas você nunca fala disso.
– Você é a minha vida agora.
– Humm.
– Onde quer chegar?
Ela olhou para ele e deu de ombros.
– Não sei o que estou dizendo. Só estou falando sem pensar.
A bolsa dela emitiu um bing!, e ela a colocou no colo. Enquanto pegava o telefone, ele a observou de muito longe, apesar de estar sentada bem ao seu lado.
– É uma mensagem do Havers – disse ela. – Os restos mortais estão prontos para eu pegar.
Butch se pôs de pé.
– Vou com você.
Marissa o fitou.
– Tem certeza de que tem tempo?
Só o que ele pôde fazer foi sacudir a cabeça, desconsiderando a pergunta.
– Venha. Eu te levo de carro para o outro lado do rio. Ainda temos uma hora inteira de escuridão.
Embora Craeg estivesse relativamente confortável num poltrona com assento e braços estofados, tudo nele doía com tamanha intensidade que ele podia muito bem estar
sentado sobre uns atiçadores de lareira. Parte disso era culpa sua. Depois que fora trazido do campo numa maca, recusara os analgésicos que lhe ofereceram após o
exame médico. Contudo, aproveitara a comida, o banheiro e as bebidas.
Mas só. Desde que os seis foram levados até aquele cômodo/refeitório/sala de descanso, com sua decoração de concreto e tapetes ao estilo dos dormitórios universitários,
com TV e cozinha embutida, ele ficara à parte dos demais. Depois de descobrir seus nomes, mantivera-se na periferia do grupo, ouvindo as histórias deles sem dar
nenhum detalhe sobre a sua.
Não que ele tivesse muito para partilhar. Era o único que restava da sua família e não estava disposto a revelar lembranças pessoais sobre os ataques.
No que ele prestou atenção foram as escapadas daquele cara, Peyton. O filho da mãe se levantava do sofá para dar uma espiada no quarto dos beliches a cada dez segundos.
Por que o cara simplesmente não ficava lá?
Daquela vez, quando Peyton enfiou a cabeça pela porta, houve uma troca de palavras. Depois entrou lá e fechou a porta de vez. Quando o macho voltou depois de um
tempo, foi até o cara chamado Anslam e sussurrou alguma coisa. O que quer que tivesse sido, Anslam concordou com um encolher de ombros e um aceno de cabeça.
Depois disso, Peyton voltou a se sentar no meio da sala.
Não muito depois, Paradise saiu de lá. E, no instante em que passou pela soleira, todos olharam para ela, a conversa sobre Tosh.0* parando por completo.
Craeg desviou o olhar dela, mais por se ressentir pra cacete do fato de sua pressão subir e de seus batimentos cardíacos acelerarem só de ver aquela fêmea.
Maldição, nenhuma daquelas pessoas era da sua conta. Principalmente ela.
– Senhora e senhores – disse Peyton. – Eis a nossa Primus.
– Não me chame assim – ela disse entre dentes antes que qualquer tipo de aplauso acontecesse. – Nunca.
– Por quê? – Novo a desafiou. – Você nos venceu. Durou mais tempo. Devia estar orgulhosa pra cacete.
Ok, ali estava uma fêmea por quem poderia se interessar – não que quisesse se envolver sexualmente com ninguém naquele momento. Ainda assim, Novo era o seu tipo
de “dama”: uma que sabia se virar num trajeto com obstáculos e, evidentemente, era do tipo que primeiro batia no agressor e só fazia perguntas depois que a mandíbula
que ela quebrara estava consertada.
Novo também ficava bem atraente com aquela camiseta branca folgada da Hanes e aquelas calças de médico pelas quais trocara as roupas sujas.
Também não era o único a notar isso. Anslam, Axe e até o maldito Peyton ficavam secando-a intensamente, não que ela parecesse se importar ou sequer notar.
A recepcionista, por sua vez, sem dúvida devia estar acostumada que todos a fitassem. Loiras como ela nunca deixavam de chamar a atenção.
O que também as transformava em alvos.
E, sim, foi nisso que ele pensou quando estivera diante da escrivaninha dela e sugerira que ela se inscrevesse no programa. Claro, uma fêmea como ela era protegida
pelos machos da sua família, mas nem sempre isso dava certo, não é mesmo?
Sua própria irmã estaria viva hoje se fosse verdade.
– … com a gente?
Craeg olhou para Novo.
– O que foi?
– Vamos procurar alguém para nos dar mais alguma coisa para comer. Acabamos com o que havia na geladeira e nas prateleiras. Quer vir?
– Não.
– Então pego um pouco daqueles Oreos com recheio duplo para você. Você comeu todos.
– Você não precisa fazer isso.
– Eu sei – ela disse antes de se virar.
Cruzando os braços sobre o peito, fez uma careta ao enfiar ainda mais a bunda na poltrona e esticar as pernas. Fechar os olhos. Era disso que precisava. E, ao ouvir
a porta se fechar, suspirou.
– Não está com fome?
Suas pálpebras se ergueram e ele virou a cabeça. Paradise ainda estava ao lado da porta do quarto com beliches, e parecia relaxada como ele já não se sentia, parada
com os braços ao redor do corpo e as lapelas do roupão apertadas junto ao pescoço.
– Não – ele respondeu, ríspido.
Merda, não havia motivo para arrancar a cabeça dela.
– Quero dizer… Não. – Maravilha. Agora estava parecendo um idiota.
– Como estão os seus pés?
– Bem. – Houve uma pausa, como se ela estivesse esperando que ele lhe perguntasse o mesmo. – Olha só, por que você não vai com os outros…
– Não pode me expulsar daqui, sabe?
Craeg saltou da poltrona e diminuiu a distância entre eles. Invadindo seu espaço pessoal, ele se certificou de lhe dar bastante tempo para medir exatamente o seu
tamanho.
– O que você estava dizendo? – ele sugeriu em voz baixa. – Ou está de saída?
Os olhos azuis dela se arregalaram.
– Está me ameaçando?
– Apenas sugerindo uma realocação que será melhor para nós dois.
– Por que você não sai?
– Cheguei aqui primeiro.
– Porque você perdeu… Certo? Perdeu para uma garota… Não é? – provocou, cantarolando.
Craeg contraiu as mandíbulas.
– Não me provoque, ok? A minha noite foi tão longa quanto a sua.
– Foi você quem veio aqui como um touro enfurecido. E eu sairia, porque, de fato, não gosto de você tanto quanto achei que gostasse. Mas a verdade é que os meus
pés estão doendo tanto que não consigo andar e sou orgulhosa demais para pedir uma cadeira de rodas.
Idiota.
Completo.
E absoluto.
Sim, era mais ou menos assim que ele se sentia ao baixar os olhos para os pés dela e vê-los descalços e vulneráveis em sua deplorável condição: profundos vergões
vermelhos se destacavam nas laterais e no peito dos pés, e o direito estava tão inchado que não parecia pertencer ao fim daquela canela fina.
Fechou os olhos por um instante. Afaste-se. Só volte para o seu lugar, camarada, e se sente, deixe que ela vá mancando para o sofá e se estique… ou volte para o
quarto… ou crie asas e saia voando para longe do seu pobre traseiro.
Em vez disso, ele se viu afundando até o chão. Os dois joelhos rangeram tão alto que foi como se dois gravetos tivessem sido partidos na sala silenciosa, e as coxas
e as panturrilhas gritaram com a mudança de posição.
– Parecem bem ruins – comentou com suavidade.
Não teve a intenção de esticar a mão e tocar na pele. Não mesmo. Mas, de alguma forma, a mão avançou e roçou de leve o peito do pé esquerdo dela, na única região
que não estava vermelha.
Acima dele, ouviu-a inspirar forte e, por algum motivo, não confiou em si mesmo para olhar para ela.
– Eu te machuquei?
Demorou um pouco para ela responder quase sem voz:
– Não.
Ele deslizou as pontas dos dedos médio e indicador com tanta leveza sobre o pé dela que mal conseguiu sentir-lhe o calor da pele.
O corpo de Craeg estremeceu. E sua voz não estava tão firme ao dizer:
– Odeio ver estas marcas em você.
Ela devia ter outras em outros lugares. Contusões, arranhões, esfoladuras. Queria tocar em todas.
Tocar em outras partes do corpo dela também.
Aquilo era ruim, ele pensou. Bom Deus, era muito ruim…
Seu desejo sexual estivera dormente por muito tempo e a última coisa que precisava agora era que ele despertasse, ainda mais naquelas circunstâncias. Ainda mais
com uma fêmea como Paradise.
Não é preciso ser da aristocracia para ser uma dama. Mesmo as plebeias trabalhadoras poderiam ter padrões e se resguardar decorosamente para uma vinculação adequada.
Que não se daria com o filho órfão de um colocador de pisos.
Ah, e evidentemente ela era virgem.
A maneira como ela se continha lhe dizia isso. O modo como Peyton, que obviamente era um conquistador, respeitava o espaço dela também lhe dizia isso.
Mas ele soube principalmente por aquele ar suspenso, aquele “não” sussurrado.
Aquilo era muuuuuito ruim.
O “venti” é um tamanho de bebida nas lojas Starbucks. (N.T.)
Tosh.0 é um programa de TV americano do gênero comédia criado pelo comediante Daniel Tosh que tem como foco vídeos virais da internet. (N.T.)
Capítulo 14
O CORAÇÃO DE PARADISE parecia ter saído de um ensaio de bateria, e as ondas de calor açoitando seu corpo eram tão fortes e reluzentes quanto um conjunto de címbalos.
Craeg estava no chão diante dela, seu grande corpo dobrado numa espécie de posição sentada bastante estranha, os músculos dos ombros esticando-se debaixo da camiseta
branca e fina, a cabeça escura inclinada enquanto ele deslizava as pontas dos dedos com muita leveza sobre o dorso do seu pé.
Mesmo exausta, ela sentia cada nuance do toque dele – e também estava dolorosamente ciente de estar nua debaixo do roupão e da camisola hospitalar.
Caramba… Deixe de lado as dores e os desconfortos. Agonia?
A única coisa registrada por seu corpo era um grande e indefinido potencial que ela não compreendia por completo, mas sobre o qual tampouco era completamente ignorante.
Aquilo era… atração sexual. Luxúria. Desejo.
Naquele exato lugar, naquele exato instante.
Atração química impenitente, inclemente, intransigente.
– Eu não deveria estar tocando em você assim – disse ele com suavidade.
Não, ela pensou. Não deveria.
– Não pare.
A cabeça dele virou num ângulo, e seus olhos se fixaram nos dela.
– Não é uma boa ideia.
Definitivamente não era. Mas não era mesmo, certeza absoluta.
– Sinto-me extasiada.
Craeg fechou os olhos e recuou um pouco.
– Preciso parar.
Mas ele não parou. Continuou deslizando o dedo pelo tornozelo dela, depois subiu pela panturrilha.
– Não estou vestida por baixo disto – ela disse num ímpeto.
Com isso, ele pendeu a cabeça e esfregou o rosto com a mão que não a tocava.
– Por favor, não me diga coisas assim.
– Desculpe. Não sei o que estou dizendo.
– Percebi.
Enquanto o corpo dele estremecia, ela sussurrou:
– É por isso que você não gosta de mim? Por causa desta conexão?
– É.
– Então você também sente.
– Eu teria que estar morto para não sentir – ele murmurou.
– É sobre isso que tanto falam, não é? Essa necessidade.
Ele gemeu e oscilou, apesar de já estar no chão.
– Não…
– Não o quê?
Craeg só sacudiu a cabeça, e afastou-se dela. Erguendo os joelhos, apoiou os antebraços neles e pareceu estar tentando se controlar. Depois de um instante, ajeitou
pouco à vontade a pelve algumas vezes, como se algo estivesse emperrado ali, ou preso.
– Não vou fazer isso com você – disse baixinho. – O programa de treinamento é tudo o que tenho. É o único futuro para mim. Por isso, ficar aqui e me sair bem não
tem a ver com vaidade para mim. Também não estou tentando provar nada para os meus pais, e tampouco sou um louco que quer sair lutando contra o mundo. Não tenho
nada esperando por mim, literalmente. Portanto, não vou deixar que nada nem ninguém fique no meu caminho.
– Não pode fazer os dois? – perguntou ela, mesmo sem ter certeza do que estava sugerindo.
Ah, pro inferno com isso. Ela sabia exatamente o que estava sugerindo: após ter sentido a mão dele em seu tornozelo, ela queria saber exatamente qual seria a sensação
dela em todo o seu corpo.
– Não – ele repetiu. – Não posso fazer os dois.
Praguejando, ele se esforçou para ficar de pé, as palmas cobrindo o seu quadril para se esconder enquanto ele voltava para o lugar onde estivera sentado antes.
No entanto, ele não se sentou. Permaneceu em pé, olhando para as almofadas com o corpo enorme e tenso.
– Você não tem que me proteger – ela disse.
Depois de um momento, ele olhou para ela por sobre o ombro, sua expressão muito séria.
– Que se foda isso tudo. Estou protegendo a mim mesmo.
Enquanto Butch os levava de carro por cima do rio Hudson, Marissa ficou olhando pela janela ao seu lado. Os alicerces da ponte formavam um padrão ao recortar a
vista da água abaixo, fazendo-a pensar no movimento dos limpadores de para-brisa em baixa velocidade. Estavam tão no alto que ela não conseguiria dizer se havia
ondas na superfície. Provavelmente não. No que determinar respeito às condições climáticas, a noite estava muito tranquila.
Por algum motivo, ficava voltando no tempo, para a época em que se apaixonaram, provavelmente porque seu cérebro não conseguia processar para onde estavam indo
e, portanto, fugia para uma parte do seu passado quando reinavam as surpresas, as alegrias e a excitação.
Nada como o primeiro toque. Aquele primeiro beijo. O momento em que se faz sexo pela primeira vez, e você olha para o rosto acima do seu e pensa: não consigo acreditar
que estamos mesmo fazendo isso!
– No que está pensando? – Butch perguntou, apertando-lhe a mão.
– Você se lembra do nosso primeiro beijo?
Seu companheiro riu de leve.
– Nossa, claro. Foi na varanda do segundo andar da casa de Darius. Quebrei o braço daquela poltrona de vime.
Ela sorriu e olhou para ele.
– Quebrou mesmo, não foi? Não pensei que você fosse tão… forte.
Pela luz fraca do painel do carro, as feições dele estavam tão sensuais como sempre foram para ela. E Marissa as visualizou quando ele estava excitado, os olhos
cor de avelã semicerrados, o rosto ficando sério, o corpo imóvel antes de começar a se mexer.
– Quero fazer sexo com você quando chegarmos em casa – ela disse.
A cabeça dele se virou tão rapidamente que o sedã oscilou na pista.
– Ora, veja só. Posso mesmo dar um jeito de isso acontecer.
– Sinto-me culpada por isso.
– Não se sinta. – O olhar dele prendeu-se ao seu. – Isso é muito natural. Quer se sentir viva diante da morte; não significa que não esteja triste pela moça, ou
que não fará justiça. Não são coisas mutuamente excludentes.
– Você é muito inteligente.
– Só tive muita experiência em noites como esta.
Relaxando no assento luxuoso, ela sentiu as sensações eróticas e familiares estimulando o seu corpo… E se imaginou passando por baixo do braço dele, mexendo na
braguilha e sugando-o enquanto ele continuava a dirigir.
Mas ele jamais permitiria que ela fizesse isso.
Além disso, quando chegaram à margem oposta do Hudson, seus pensamentos tomaram outra direção.
– Por favor, não o machuque.
– Quem? O seu irmão?
– É.
– Serei um completo cavalheiro.
Ela relanceou na sua direção.
– Estou falando sério.
– Eu também. – Deu um novo aperto na mão dela. – Você não tem com o que se preocupar. Eu não faria isso com você, e isso faz dele um cara de muita sorte.
Butch seguiu as instruções que foram enviadas a ela pelo celular sobre como chegar lá de carro e, uns quinze minutos mais tarde, estavam sacolejando numa estradinha
de terra que serpenteava pela floresta. Desta vez, a entrada para o prédio era uma modesta casa de campo de dois andares, e havia um punhado de sedãs estacionados
na passagem de carros pavimentada com pedras. Quando saíram, seguiram até a parte de trás do que parecia uma construção externa para tratores e equipamentos, mas
que, na verdade, era o mesmo tipo de quiosque pelo qual ela passara antes naquela mesma noite.
O procedimento era o mesmo: identificação, entrada, escaneamento a laser. Em seguida, uma parede cheia de ferramentas se deslocou, e estavam dentro de um elevador,
descendo para dentro da terra.
– A construção disto deve ter custado uma fortuna – ela murmurou quando ambos olharam para a fileira de botões numerados ao lado da porta. – Quatro andares subterrâneos?
Uau.
– Precisava ser feito.
Ela o fitou.
– Espere, então você sabia desta clínica? Por que não me contou?
Butch encolheu os ombros.
– Não queria te aborrecer mencionando o seu irmão. – Olhou para ela incisivamente. – Diga que Havers se comportou quando você esteve aqui antes.
– Sim, ele se comportou.
Seu companheiro assentiu e ajeitou as elegantes calças pretas que vestia. Como sempre, quando estava fora de serviço, seu hellren policial do sul de Boston estava
vestido com algo saído do catálogo da Neiman Marcus, a camisa branca engomada e a jaqueta fina de camurça tão caras quanto pareciam ser. Ele também cheirava bem,
apesar de isso ser uma cortesia do aroma da vinculação e não causado por algum tipo de colônia – e o relógio Piaget e a pesada cruz de ouro que sempre usava no pescoço
eram sensuais sem exageros.
No entanto, ele tinha razão. Poderia matar o irmão dela apenas com as mãos – e provavelmente era o que queria fazer. Contudo, acreditava nele quando ele dizia que
jamais faria isso na frente dela.
– Ele é incrível com seus pacientes – ouviu-se murmurar.
– Esse nunca foi o problema dele.
Não, não era.
O elevador sacudiu ao parar, e eles saíram para uma área de espera menor e mais reservada que aquela em que ela estivera antes.
A recepcionista à mesa olhou primeiro para Butch e demorou-se o quanto quis, avaliando-o. Não que ele tivesse notado.
– Bem-vindos – ela cumprimentou. – O doutor sabe que estão aqui. Posso lhes oferecer café enquanto esperam?
Ou talvez, quem sabe, algo mais pessoal?, seu tom sugeria.
– Estamos bem, obrigado. – Butch segurou o cotovelo de Marissa e a conduziu para uma fila de cadeiras encostada na parede mais distante.
Ao se sentarem lado a lado, ela ficou contente quando ele lhe segurou a mão.
– Então, como foi a primeira noite do programa? – ela perguntou, tanto para manter uma conversa quanto por se importar.
As sobrancelhas dele se uniram.
– Foi boa. Ninguém se machucou seriamente. Sete conseguiram chegar até o fim. Vão passar o dia conosco, principalmente porque não queremos que os pais deles os
vejam tão abatidos. E também é uma oportunidade para que o grupo se una. Vou dar a primeira aula ao cair da noite, e depois eles poderão voltar para casa após o
treino físico.
– Estou muito feliz que tenha dado tudo certo.
– Veremos. Ei, lembra da filha do Abalone, Paradise? Aquela que nos ajuda na casa de audiências?
– Ah, sim, ela é adorável.
– Foi a que mais aguentou. Aquela garota tem determinação.
– Abalone deve estar muito orgulhoso.
– Ele ficará.
Silenciaram-se. Até ela voltar a falar.
– Eu acho que vou vomitar.
Butch de pronto se levantou, mas ela lhe deu um tapinha em seu braço.
– Não de verdade. É mais um modo de falar do que realmente querer fazer.
– Quer voltar para o carro? Posso levar os restos mortais para você.
Marissa sacudiu a cabeça.
– Não, ela é minha. Até encontrarmos a sua família, ela é minha.
Butch passou o braço ao redor dos ombros dela e a puxou para perto.
– Prepare-se para que isso não mude mesmo quando a devolver à família.
– É assim que você… Quando você trabalhava, era assim que se sentia?
– Com cada uma das minhas vítimas. – Exalou longa e profundamente. – Para mim, isso nunca passava. Mesmo agora, quando não consigo dormir, vejo seus rostos no teto
acima da nossa cama. Lembro-me como eram em vida e não consigo me esquecer de como estavam ao morrer. É uma mancha no meu cérebro.
Fitando-lhe o perfil, aquele perfil forte, belo e imperfeito, ela se conectou a todo o amor que sentia por ele.
– Por que não me acorda para conversarmos quando se sente assim?
O sorriso contraído dele tentava diminuir a tensão.
– Você também tem o seu trabalho.
– Sim, mas eu…
– Não é importante. Já faz parte do passado.
Não se isso ainda o mantém acordado, ela pensou.
– Você e eu somos tão parecidos – ela murmurou. – Nós dois guardamos nossos passados numa prateleira.
– Você faz soar como se fosse uma coisa ruim.
Antes que ela conseguisse dizer algo mais, a porta do lado oposto se abriu e uma enfermeira de uniforme branco se aproximou trazendo uma caixa preta que, absurda
e inapropriadamente, fez Marissa pensar num par de sapatos de salto alto Stuart Weitzman que lhe foram entregues numa noite dessas. Era do mesmo tamanho.
Esperava que a caixa fosse maior. Menor. Diferente.
Deus, ela já nem sabia.
– Lamentamos a sua perda – disse a enfermeira ao estender a caixa para Butch.
Marissa adiantou-se e a segurou. Pesava menos do que imaginava que pesaria. Pensando bem, só estava cheia de cinzas, não?
– Obrigada.
A fêmea corou ante a quebra de protocolo. Como Marissa era uma fêmea de uma das Famílias Fundadoras, concluía-se que ela nunca entraria em contato com nada pertencente
aos mortos. No Antigo País, tal contato era visto como mau agouro, especialmente se a fêmea estivesse grávida ou em idade fértil.
Mas que se dane isso.
– Havia algo mais entre os seus pertences? – Marissa perguntou.
A enfermeira limpou a garganta como se estivesse tentando engolir a desaprovação e se engasgasse.
– Na verdade, havia algo. – Focou os olhos em Butch como se esperasse que ele se prontificasse para que sua companheira fosse sensata e razoável. – Hum…
Em seu benefício, Butch arqueou uma sobrancelha como se não entendesse o que diabos a enfermeira estava pretendendo.
A enfermeira voltou a pigarrear.
– Bem, havia uma coisa. Foi o único objeto pessoal que encontramos… Estava preso no…
– No quê? – Marissa exigiu saber.
– Estava dentro do sutiã. – A enfermeira enfiou a mão dentro do bolso do uniforme e puxou uma fita preta com um laço vermelho. – Tem certeza de que quer…
Marissa arrancou o objeto da mão da enfermeira.
– Obrigada. Vamos embora agora.
Antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita, ela foi em frente e apertou o botão com seta para cima ao lado do elevador. Como se ele os estivesse esperando
para que saíssem o quanto antes, as portas se abriram e ela entrou. Butch, como sempre, estava logo atrás.
Enquanto subiam rumo ao piso térreo, ela olhou para o objeto que apanhara da mão da fêmea.
– O que é isto? – perguntou, virando a peça de metal preta na mão. Havia uma borla de seda vermelha perdurada num buraco numa ponta e, na outra, uma porção pontuda
e chanfrada parecida com algo que pudesse ser inserido numa fechadura. – Isto é uma chave?
Butch o tomou em sua mão e examinou.
– Sabe, pode até ser.

 

 

CONTINUA