Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
BIZÂNCIO
Segunda Parte
Que o Cristo Eterno
Possa estar sempre convosco,
E que vos guarde no seu abraço de amor
Quer enfrenteis os tempestuosos
Mares Ocidentais
Ou estejais a percorrer as ruas,
Escuras e mortíferas,
Das Cidades Douradas do Oriente.
Tanto quanto eu pudesse ver, o Mar Negro não era mais escuro do que qualquer outro e a superfície das suas águas brilhava como jade polido sempre que o Sol o iluminava. Contudo, o Sol era uma visão rara uma vez que os dias eram frequentemente cinzentos e os nevoeiros matinais que se espessavam sobre a água não se dissolviam até bem depois do meio-dia. Mesmo assim, o ar era mais quente do que eu imaginara. Por vezes refrescava durante a noite mas de dia, quando o Sol brilhava, tornava-se quase agradável.
Pelo que podia ver da amurada do navio, tínhamos chegado a uma terra de apertadas serranias. As serras com um baço tom castanho que se erguiam para lá da costa irregular não eram muito elevadas mas estavam cobertas por um denso matagal de pequenas árvores e de arbustos espinhosos. Por vezes conseguia avistar ovelhas magricelas a escolherem o caminho por entre os ramos cheios de espinhos, em busca de alimento, mas nunca notei a presença de pessoas.
Harald, que considerava que a sua frota era capaz de enfrentar qualquer inimigo, avançava ousadamente, navegando durante o dia e procurando abrigo durante a noite. Numa dessas noites, os homens que haviam ido em busca de lenha regressaram ao acampamento com algumas daquelas ovelhas peculiares. Eram altas, esguias, de espáduas estreitas e longos pescoços, e estavam cobertas por peles malhadas de castanho e cinzento. Na verdade, eram mais parecidas com cabras do que com ovelhas. Matámos os animais e pusemo-los a assar em espetos por cima das fogueiras. A sua carne era forte e dura e a gordura a arder punha-nos os olhos a chorar. Nenhum dos homens a conseguiu comer e até o próprio Hrothgar acabou por desistir passado muito pouco tempo, dizendo que o seu cinto de couro era com certeza mais tenro e deveria ter um sabor mais agradável. Depois de uma refeição tão miserável, nunca mais ninguém se lembrou de incomodar aquelas ovelhas.
A experiência recordou-me a parábola de Cristo. Não seria tarefa fácil distinguir as ovelhas das cabras, e para isso seria preciso um pastor que conhecesse o seu rebanho e conseguisse chamá-las pelos nomes. Na verdade, teria necessariamente de ser um pastor muito bom.
Durante a manhã, por várias vezes, avistámos algumas embarcações de pescadores. Eram pequenos barcos que transportavam apenas dois ou três homens, que sulcavam as águas com a ajuda de compridos remos e que não apresentavam qualquer interesse para os Lobos do Mar, que prosseguiram o seu caminho sem os molestar. Só avistámos a primeira povoação depois de três dias de navegação mas Harald deu ordens para que ninguém se entregasse à pilhagem. Agora que a perspectiva de riquezas ilimitadas se encontrava quase ao seu alcance, o monarca não queria desperdiçar esforços num saque de tão pequena importância.
- Não devem ter nada que valha a pena levar - declarou, franzindo a testa com desdém. - Para além disso, podemos sempre saqueá-los quando formos a caminho de casa.
Os povoados tornaram-se mais numerosos ao longo dos dias seguintes. Sentindo que já devia encontrar-se perto de Miklagard, o monarca revelou-se muito cuidadoso na aproximação. Por isso mesmo, passávamos os dias abrigados em enseadas de onde só emergíamos ao crepúsculo para navegarmos nas águas enevoadas até de madrugada. Ocupei o meu lugar ao lado de Thorkel, ao leme, observando o céu que brilhava com um número incontável de estrelas embora o mar permanecesse envolto em neblina e oculto sob um manto branco e denso como o algodão.
Passávamos a noite inteira a observar o céu incandescente, salpicado de estrelas que não nos eram familiares. A contemplação daquela maravilha fez-me recordar as palavras de Dugal: até as estrelas do céu são diferentes.
Oh, Dugal, se ao menos as pudesses ver, pensei. Daria tudo para que estivesses neste convés, a meu lado, com os olhos virados para o céu e com a luz das estrelas a iluminar o teu rosto simpático.
- Estamos perto - declarou Thorkel, apontando para oeste por cima da amurada.
Olhei e vi as luzes de uma povoação de bom tamanho. Eram os clarões de lareiras e de velas, os lampejos de uma centena ou mais de habitações, algumas amontoadas em baixo, junto à costa, enquanto as outras se espalhavam pelas colinas.
Não compreendi por que motivo a existência de uma tal povoação significava que nos encontrávamos perto do nosso destino.
- Conheces este sítio? - interroguei-me.
Não, respondeu Thorkel, nunca antes o vira. Por isso, perguntei-lhe porque razão pensava que um povoado junto ao mar era indício de estarmos perto de Miklagard.
- Para um Lobo do Mar... ainda tens muito que aprender - retorquiu Thorkel. - As pessoas não constróem um povoado junto à água a não ser que se sintam seguras por trás da protecção de uma muralha.
Semicerrei os olhos e investiguei a costa, que me pareceu desolada sob a luz prateada das estrelas.
- Estás enganado, Thorkel. Não vejo nenhuma muralha.
- Miklagard... - ripostou o piloto, com um sorriso - é a sua muralha.
O piloto falava verdade. Na noite seguinte passámos no meio de dois promontórios apertados e entrámos num canal estreito, com margens muito íngremes. Quando o dia nasceu a oeste, no meio de uma neblina leitosa, a grande cidade revelou-se aos nossos olhos e todos nos amontoámos na amurada para observarmos aquela tremenda visão. Olhei através do mar enevoado pela humidade da manhã e vi uma povoação de enormes dimensões, espalhada sobre os dorsos corcovados de sete colinas, onde as grandes cúpulas dos palácios se erguiam por cima de apertados amontoados de casas brancas, e os topos arredondados das montanhas pairavam por cima das nuvens... e tudo aquilo brilhava sob a luz da madrugada como estrelas semeadas numa espécie de firmamento terrestre.
Olhei para a cidade por cima da superfície da água... e comecei a sentir-me invadido por uma estranha sensação de reconhecimento que fez com que um medo obscuro começasse a pulsar através de mim mesmo, ao ritmo cada vez mais acelerado do meu coração.
Virei-me para Thorkel e disse:
- Isto não pode ser Miklagard.
- E por que não? - replicou. - Não há duas cidades como esta em todo o mundo.
- Mas... eu conheço este sítio - insisti, num reconhecimento cada vez mais forte.
- É possível... - admitiu o piloto, com toda a sensatez - porque esta cidade tem muitos nomes. - Levantou a mão na direcção da povoação espalhada pelas colinas. - Esta é a famosa Cidade do Ouro, a Cidade de Constantino!
- Constantinopla... - murmurei, sentindo-me entorpecido da cabeça aos pés.
- Heya! - concordou Thorkel, afável.
- Bizâncio... - A palavra era um sussurro de incredulidade nos meus lábios rígidos de medo.
- Essa é uma palavra que não conheço - disse o timoneiro. - Para os dinamarqueses, foi sempre Miklagard.
Passei uma das minhas trémulas mãos pelo rosto. Tinha a certeza de que era um homem condenado... e também muito estúpido. Pensara ter escapado às terríveis consequências do meu sonho enquanto, no fim de contas, navegava directamente para ele.
. Contudo, não tinha tempo para meditar no meu destino. Harald, vendo-se próximo da sua presa, ordenou aos guerreiros que se preparassem para o ataque. A sua voz de touro disparou uma estonteante fiada de ordens que foram repetidas nos outros navios. Num espaço de instantes já todos os bárbaros se precipitavam para um lado e para o outro nos conveses dos quatro navios, enfiando armaduras e vestindo-se para o combate. O estrondear daquela agitação era horrendo.
Vi Gunnar a correr no meio da confusão e chamei-o.
- Aeddan! - gritou-me. - É hoje que vamos encher as nossas arcas de tesouros, heya!
Sim... e é também o dia da minha morte, pensei. A morte esperava-me em Bizâncio. Virei-me para Gunnar e comentei:
- Harald está a pensar em atacar a cidade a esta hora? Não seria melhor esperar pela noite?
- Nay - respondeu, apertando com força as fivelas da sua camisa de cota-de-malha. - No escuro, numa cidade tão grande como esta, acabávamos por nos perder. Como iríamos encontrar as casas dos tesouros? É melhor atacar agora enquanto a cidade dorme.
- Mas... os guardas vão avistar-nos - avisei, numa voz que ganhara um tom agudo e frenético aos meus próprios ouvidos.
- Sim, e ficarão tão assustados quando nos virem que nos abrirão as portas da cidade de par em par!
- E quando te virem, Gunnar Maço-de-Guerra... - declarou um bárbaro que se encontrava perto de nós - de certeza que nos trarão os seus tesouros às carradas!
Os guerreiros começaram a discutir quem iria conseguir carregar mais tesouros das pilhagens do dia, qual deles era o mais corajoso e qual o mais tímido, quem iria ganhar fama e quem cairia em desgraça. Também se interrogaram sobre o que seria mais pesado: um elmo de guerra ou um ceptro de ouro? Toda esta conversa foi acompanhada por grandes gritos e por gabarolices verdadeiramente ultrajantes. Contudo, reparei que ficavam cada vez mais excitados e veio-me à mente que se estavam a incitar uns aos outros para o calor dos combates. Quando chegássemos à costa já seriam Lobos do Mar a babarem-se de entusiasmo.
Retirei-me para o meu lugar junto ao mastro e agachei-me. Não sabia que mais poderia fazer. Era claro que não me cabia lutar ou participar nas pilhagens. Tudo o que tinha em mente - se é que tinha alguma coisa -, era uma grande vontade de permanecer a bordo do navio e manter-me fora das vistas. Se não pusesse os pés em solo bizantino... então talvez não morresse.
Todavia, até essa pequena esperança me foi roubada quando o rei Harald, magnífico no seu traje de batalha, emergiu da tenda montada sobre a plataforma e me viu agachado junto ao mastro.
- Tu! - gritou. - Aeddan, vem cá!
Levantei-me e fui ter com ele. Oh, o monarca estava esplêndido: tinha os cabelos presos por baixo de um elmo de couro, tiras de ferro a rodearem-lhe os braços e envergara uma camisa de uma malha muito fina. Usava uma espada e um punhal numa das ancas e tinha um machado de guerra suspenso do cinto. Para além disso transportava uma lança curta numa das mãos e um elmo de guerra na outra.
- Quero-te ao meu lado - declarou, num resmungo. - Quando me apoderar do governante de Miklagard... irei precisar de ti para me traduzires a sua rendição.
O coração caiu-me aos pés e senti-me invadido por um grande desânimo. Não só iria desembarcar em Bizâncio como o faria logo nas primeiras fileiras. Para além disso, no meio de todos aqueles guerreiros era eu o único que não tinha armas, e nem sequer um escudo com que me pudesse defender.
É assim que vou ser morto, pensei. Vou ser abatido logo na frente do ataque. Serei um dos primeiros a cair assim que as lanças e setas dos defensores começarem a assobiar em volta das nossas cabeças.
Harald lançou uma olhadela para o céu.
- Está um belo dia para uma luta - anunciou, colocando o elmo de guerra na cabeça. - Vamos, homens! - gritou, avançando para o mastro. - Aos remos! Aos remos! Façamos com que os fracos tremam nas suas camas e amaldiçoem o dia em que nasceram! Façamos com que os fortes preparem os seus próprios túmulos! Façamos com que todos os homens temam o grito dos Lobos do Mar!
A febre do ouro já os invadira. Saltaram para os remos e começaram a remar para a costa. Agachei-me ao lado do mastro, encostando-me ao sólido carvalho em busca de um pouco da sua força, rezando o Kyrie uma e outra vez, por entredentes. "Senhor, tem piedade! Cristo, tem piedade! Senhor, tem piedade! Cristo, tem piedade!..."
A toda a minha volta, reluzentes no seu equipamento de guerra, os homens dobravam-se sobre os remos e impulsionavam os navios ao ritmo das rápidas batidas dos nossos corações... e as colinas de Bizâncio ficavam mais perto a cada puxão nesses mesmos remos.
Harald Berro-de-Touro permaneceu na sua plataforma, de pernas bem abertas, agitando o machado de guerra por cima da cabeça e marcando a cadência aos remadores. Berrou com uma voz tão profunda como o estrondo de um tambor, espevitando a coragem dos guerreiros e inflamando a sua ânsia de sangue com exortações grosseiras.
- As frias tábuas cortam as ondas! - gritou. - O Portador do Machado desliza veloz! O casco curvo abre caminho nas águas! As espadas apressam-se para a tempestade das armas!
"Os crânios rolam! Os membros cortados contorcem-se! Bebam da grande taça vermelha no salão do Rei dos Vermes!
Desvairado, como um louco, o monarca rugia, incitando-se a si mesmo e aos seus para o frenesim da batalha.
- Sou o jarl Harald Berro-de-Touro, Dador do Ouro, Fornecedor da Cerveja, o Provedor de Mãos-Largas! Sigam-me, Fazedores de Cadáveres.
Destruidores de Homens, porque colocarei as riquezas nas vossas mãos! Farei com que rios de ouro corram aos pés do campeão, e que a prata chova dos céus!
"Homens de Aço, que quebrais espadas e fabricais viúvas...! Apressem-se rumo à Glória! Sigam o vosso Provedor de Tesouros à Toca dos heróis, onde o frio do ouro extinguirá o calor da batalha! Voem! Voem! Sim, voávamos cada vez mais depressa, com a afiada proa de cabeça de dragão a cortar as águas calmas. Alguma vez terão existido homens que se apressassem tanto ao encontro da morte?
Constantinopla, confiante sob a madrugada leitosa, estava cada vez mais próxima... e era quase como se fosse a cidade a voar para nós e não o contrário. Parecia-me ver a morte a deslizar para mim a cada remada, mas, no entanto, não era capaz de desviar os olhos daquele lugar.
Quanto mais próximo, maior se tornava. Era um colosso, uma maravilha . com sete corcovas, espalhadas pelo vasto dedo de uma península que apontava o mar. Não precisei de esperar muito para começar a distinguir as costuras negras das ruas, que eram como cordas embaraçadas umas nas outras, contorcendo-se por entre as massas de habitações quadradas e brancas. Havia uma nuvem suja sobre as suas alturas, formada pelo fumo de incontáveis lareiras, fumo que subia para o alto e se acumulava numa espessa mancha castanha que girava sobre si mesma. Continuámos a avançar velozmente, direitos à margem mais próxima. Contudo, já conseguíamos ver, mesmo a partir do mar, que a cidade estava rodeada por uma alta muralha de protecção que parecia erguer-se das águas. Harald não se mostrou desencorajado e mandou avançar os navios para a poder examinar de mais perto. Todavia, o que viu foi um verdadeiro balde de água fria atirado sobre um plano demasiado ardente, isto porque toda a cidade se encontrava rodeada por uma espessa cortina de tijolos e pedra com a altura de dez homens, que se erguia da própria água e se estendia a perder de vista para ambos os lados. Em baixo, na água, inúmeros pequenos barcos de transporte carregavam artigos de comércio para um lado e para o outro, ao longo da costa.
Bastou uma só mirada às dimensões e extensão das muralhas de Bizâncio para que os Lobos do Mar se mostrassem abalados. Senti o choque daquela descoberta a percorrer o navio como uma vaga inesperada. Harald soltou um berro para mandar parar os navios... e os remadores viram-se forçados a arrastar os remos dentro de água numa tentativa desesperada para abrandar o impulso que nos empurrava para a frente. O último navio só recebeu a ordem de Harald quando já era demasiado tarde, o que o levou a colidir com o que seguia na sua frente. O embate fez saltar e quebrar uma dúzia de remos em ambas as embarcações. Os respectivos remadores soltaram pragas e contorceram-se de dor, agarrados aos membros magoados, e a barafunda daí resultante provocou autênticos uivos de ultraje.
Harald, de pé no alto da sua plataforma, ignorou toda aquela confusão e examinou a muralha. Alguns dos barcos mais pequenos, ao notarem a nossa súbita aproximação, apressaram-se a vir ao nosso encontro empurrando-se uns aos outros para serem os primeiros a chegar. Suponho que pensavam que tínhamos bens comerciais para descarregar... e todos eles queriam ser os primeiros a fornecer esse serviço.
As embarcações aproximaram-se e os homens que se encontravam a bordo dirigiram-se-nos em grego. Há muito que não ouvia ninguém a pronunciar aquela língua em voz alta, pelo que os meus ouvidos a acharam estranha. Mesmo assim, consegui entender algumas palavras e frases no meio da algaraviada de vozes.
De repente, muito zangado, Harald chamou-me.
- Que estão eles a dizer? - inquiriu.
- Oferecem-se para descarregarem os nossos navios - repliquei, aproximando-me da amurada. - Dizem que o farão por cinquenta nomismi.
- Descarregar os navios! - exclamou o monarca. - E o que são esses nomismi?
- Não faço ideia... mas deve tratar-se de dinheiro.
- Explica-lhes quem somos! - ordenou o monarca. - Diz-lhes que viemos saquear a cidade, em busca de riquezas e de pilhagem!
Debrucei-me sobre a amurada e gritei para o barco mais próximo, onde dois homens com turbantes de lã branca nos faziam barulhentas súplicas. Disse-lhes que aqueles navios pertenciam a lorde Harald, um guerreiro feroz, e que tínhamos vindo da Dinamarca em busca de riquezas. Os barqueiros riram-se e chamaram alguns dos seus amigos nos outros barcos, que também se riram. Ouvi a palavra barbari a ser transmitida de barco para barco. A seguir explicaram-me algumas coisas básicas a respeito do porto do Imperador.
- Que estão eles a dizer? - perguntou Harald, desabrido, com a paciência a esgotar-se.
- Afirmam que toda a gente vem a Bizâncio em busca de riquezas - afirmei. - Também dizem que já não há ancoradouros vagos e que não nos podemos atrever a seguir em frente a não ser que estejamos preparados para enfrentar os guardas do Mestre do Porto.
- O Mestre do Porto que vá para o hei! - grunhiu Harald. Deu meia volta e ordenou aos remadores que seguissem o canal ao longo da costa norte.
Continuámos o nosso caminho, mas agora mais lentamente, sem nunca deixarmos de ser seguidos por uma multidão de pequenas embarcações cujos barqueiros gritavam e nos chamavam com vozes agudas. Havia inúmeros navios, grandes e pequenos, espalhados pelo canal, pelo que Thorkel teve de se esforçar muito para navegar por entre todos esses obstáculos sem colidir com um ou outro. Tivemos de navegar no meio de muitos gritos, pragas e braços agitados no ar, utilizando os remos tanto para afastar as embarcações da nossa frente como para remar. A barulheira que acompanhava o nosso lento avanço era ensurdecedora e a confusão era completa.
Contudo, ainda os navios não tinham conseguido avançar muito quando deparámos com uma enorme corrente de ferro. Estava fixa a gigantescos anéis encravados na parede e os seus elos - cada um deles tão grande como um boi! - estendiam-se através de todo o canal de uma margem à outra, impedindo a passagem a todas as embarcações de grande porte. Os barcos pequenos passavam facilmente por baixo daquela corrente mas os navios dos Lobos do Mar tiveram de se deter à vista de muitas belas casas e de vários palácios.
Perplexo, frustrado, Harald Berro-de-Touro, rei dos Dinamarqueses, ficou a olhar para a corrente com a boca aberta de incredulidade. Sem saber que mais poderia fazer, ordenou a alguns dos guerreiros que a destruíssem. Debruçando-se sobre as amuradas, os bárbaros começaram a golpear os elos mais próximos com os seus machados. Como é óbvio, os golpes não produziram qualquer efeito sobre a pesada barreira, pelo que os homens em breve tiveram de desistir. Tentaram empurrá-la com os remos mas nem sequer a conseguiram fazer oscilar.
O rei Harald ordenou ao piloto que virasse os navios e seguisse ao longo da margem sul, pensando que talvez desse lado pudesse vir a encontrar uma qualquer fraqueza nas defesas da cidade. Os remadores retomaram o seu labor, embora com um pouco menos de zelo do que anteriormente uma vez que aquelas águas interiores estavam muito mais cheias de navios e de barcos. Abrir caminho por entre eles requeria uma táctica tortuosa, mas os Lobos do Mar perseveraram e acabaram eventualmente por rodear a península para descobrirem uma baía não com um único porto mas sim com três ou mais, o maior dos quais também era protegido por uma muralha, tal como o resto da cidade.
Harald ordenou a Thorkel que se dirigisse ao primeiro daqueles portos e em breve ficámos à vista do cais mas não conseguimos avançar por causa do número de navios e de pequenos barcos amontoados à entrada. O monarca ainda estava sem saber como deveria proceder quando um grande navio de casco quadrado se aproximou de nós. Transportava dez ou mais homens vestidos com belas capas vermelhas, armados com lanças e pequenos escudos redondos. Tinham as cabeças cobertas por elmos ornamentados, feitos de bronze polido, e usavam calções vermelhos que terminavam logo acima das suas altas botas de couro.
O homem na frente do grupo era baixo mas fazia-se parecer mais alto graças à grande crista de crinas de cavalo que usava no cimo do elmo. Mantinha-se na proa do navio e empunhava uma vara com uma bola de bronze na extremidade. O indivíduo começou a chamar-nos e a gesticular com a vara, enquanto os que o acompanhavam gritavam com vozes zangadas.
Alguns dos Lobos do Mar riram-se da presunção daqueles homens. Pensando que tinham vindo para lutar connosco, os dinamarqueses começaram a provocá-los, gritando coisas como "Será esta a poderosa hoste de guerra de Miklagard?" ou, "Quem são as donzelas que vemos à nossa frente? Terão vindo receber-nos com beijos?"
O jarl Harald observava os homens do barco com os olhos semicerrados pela desconfiança.
- Descobre o que estão a dizer - ordenou, empurrando com rudeza para a amurada.
Dirigi-me ao chefe daqueles homens em grego e tive uma resposta razoável. Implorei-lhe que falasse de um modo simples e devagar porque a minha língua não estava acostumada a uma tal fala, e disse-lhe que transmitiria as suas palavras ao monarca.
- Sou o quaestor do porto de Hormidas - declarou o homem com um ar importante. A seguir explicou-me, com palavras simples e directas, o que eu deveria transmitir ao rei Harald. - Então? - murmurou Harald, impaciente. O suor escorria-lhe pela cara e pelo pescoço porque o Sol já subira para lá do meio da manhã e brilhava agora como um disco quente e sujo num céu branco-acinzentado.
- Diz que temos de pagar a taxa portuária - afirmei, explicando que os homens no navio faziam parte da guarda do porto e estavam encarregues de receber o dinheiro e manter a ordem.
- Disseste-lhe quem eu sou? - grunhiu Harald.
- Disse-lhe... e respondeu que não faz diferença nenhuma e que temos de pagar a taxa como toda a gente.
- A taxa que vá para o inferno! - rugiu Harald, dando finalmente vazão à sua frustração. - Montaremos cerco à cidade e vamos submetê-los pela fome!
Este sentimento provocou resmungos e grunhidos de aprovação por parte dos bárbaros que assistiam à cena e que, tal como o seu senhor, se sentiam frustrados e ansiosos. A dimensão da cidade desanimara-os e procuravam libertar-se da consternação por intermédio de uma qualquer espécie de acção louca que lhes fosse familiar.
- Um cerco seria uma bela coisa, claro... - comentou Thorkel com suavidade - mas é uma grande cidade, jarl Harald, e só trouxemos cento e sessenta homens. Receio que não nos fosse fácil cercá-la mesmo que tivéssemos dez vezes mais.
Harald exibiu uma expressão dura e fez um sinal para afastar o piloto, mas um dos karlar da casa do rei resolveu intervir:
- Talvez fosse melhor... - sugeriu, com gentileza - se pagássemos essa taxa e procurássemos outra maneira de entrarmos nas casas dos tesouros.
- Sou um rei! - berrou Harald. - Recebo tributos de jarls e de homens livres e não pago tributos a ninguém!
Thorkel acenou, compreensivo, e aproximou-se do seu senhor.
- Nay, jarl- sugeriu. - Não consideres este pagamento como um tributo... mas sim como um pouco de milho para engordar o ganso para o festim...
Harald examinou as enormes muralhas e lançou uma olhadela à movimentada vastidão do porto. Nesse instante ouviu-se o som de qualquer coisa pesada a embater no casco do navio. Espreitei por cima da amurada e vi o guardião do porto a bater nos flancos da embarcação com a esfera do seu bastão.
- Não podemos ficar aqui todo o dia - declarou. - Paguem a taxa ou chamarei o navio da guarda.
Respondi que estávamos a discutir qual a melhor maneira de efectuar o pagamento e pedi-lhe mais alguns instantes para podermos tomar uma decisão. Virei-me para o monarca e acrescentei:
- Exigem uma resposta, jarl Harald. Que vamos fazer?
Ficou paralisado pela indecisão, olhando para as muralhas da cidade que pareciam pairar sobre nós como uma alta cordilheira de montanhas que nos impedia de chegar ao nosso destino. Passados alguns instantes o guarda voltou a agredir o casco do nosso navio e gritou, afirmando que estávamos a despertar a ira do Imperador e que corríamos o perigo de um aumento da taxa por nos recusarmos a pagar, ameaças que transmiti a Harald.
- Agh! - exclamou este, frustrado. - Um homem nem consegue pensar no meio de tanta barulheira! Quanto? - gritou. - Quanto é que ele quer para se ir embora?
Voltei a inclinar-me sobre a amurada e transmiti a pergunta.
- Quatrocentos e cinquenta nomismi- respondeu o guarda. - Cem por cada um dos navios mais pequenos e cento e cinquenta pelo maior.
Harald concordou com relutância e entregou-me uma moeda de prata que retirou do cinto.
- Pergunta-lhe quanto é que isto vale - ordenou-me, pedindo a um dos karlar para ir buscar uma bolsa de moedas à sua arca.
Aproximei-me da amurada e mostrei a moeda.
- Estamos prontos para pagar a taxa - declarei. - Por favor, diz-me quanto vale esta moeda de prata.
O quaestor rolou os olhos com um ar aborrecido e retorquiu:
- Vou subir a bordo do vosso navio.
Ele e dois dos seus homens, ajudados pelos que ficaram na embarcação, treparam à amurada e viram-se na presença do rei bárbaro.
- A moeda! - pediu o cobrador da taxa, estendendo a mão. - Mostrem-ma!
Coloquei a moeda na sua mão esticada e disse:
- O homem que vês na tua frente é Harald, rei dos Dinamarqueses da Escandinávia, que veio apresentar os seus respeitos ao vosso Imperador.
O guarda do porto emitiu um som pelo nariz, como se, para ele, aquela informação não tivesse qualquer significado.
- Pode apresentar o que quiser ao Imperador... - retorquiu, examinando a prata que tinha na mão - mas primeiro terá de pagar ao quaestor. - Levantou a moeda e afirmou: - Este denário de prata vale dez nomismi.
Contei as vinte moedas de prata que Harald me dera e virei-me para o monarca:
- Já pagámos duzentos... - expliquei-lhe - e ainda temos de pagar mais duzentos e cinquenta.
Harald exibiu uma tremenda carranca, despejou as moedas restantes na mão, contou-as e mandou buscar mais uma bolsa, de onde extraiu sete moedas que também me entregou. Os Lobos do Mar observavam a cena, espantados e zangados por verem o seu soberano a entregar a sua prata a um homenzinho tão insignificante.
Quando contei mais vinte e cinco denários de prata, que depus na mão do cobrador, este pediu:
- Mais duas!
- Mais duas? - interroguei-me. - Ter-me-ei enganado nas contas?
- Não, contaste bem. - Meteu os dedos na minha mão e pegou numa moeda. - Esta... - explicou - é por me terem feito esperar. - Apoderou-se de nova moeda e continuou: - E esta é por terem perturbado a paz do porto!
- Peço muitas desculpas - respondi - mas não conhecíamos os costumes deste lugar.
- Agora já os conheces - replicou o quaestor, enfiando as moedas na bolsa. Meteu os dedos no cinto e fez aparecer um fino disco de cobre. - Preguem-no na proa - explicou. - Serve para comprovar que pagaram a taxa.
Fez um gesto com a mão, virou-se e começou a descer da nossa amurada, ajudado pelos seus dois homens. Olhei para o disco, gravado com a imagem de um navio de velas içadas, e perguntei:
- Por favor, quero saber quando temos de voltar a pagar.
- Podem entrar e sair do porto à vossa vontade até ao fim do ano - respondeu o homem sem sequer olhar para trás. - Terão de voltar a pagar se regressarem a Constantinopla depois dessa data.
Transmiti a informação a Harald, que exibiu uma careta feroz e declarou que no fim do ano já estaria no seu próprio salão a gozar as riquezas saqueadas em Miklagard, saque esse que, conforme jurou, iria começar sem mais demoras.
O monarca agarrou-me pelo braço e encostou o seu rosto suado ao meu:
- E tu, Cabeça-Rapada - grunhiu, com uma voz carregada de ameaças - vais conduzir-nos à casa de tesouros mais próxima!
Para ser possível saquear uma casa de tesouros era necessário ir à cidade para a descobrir. Foram discutidas várias maneiras de concretizar esta estratégia e no fim acabou por se decidir que, para evitar despertar as suspeitas da populaça, só três ou quatro guerreiros deveriam desembarcar para irem à procura dos melhores lugares para serem atacados. Para além disso, também foi decidido que devia ser eu a dirigir o grupo uma vez que era o único falava a língua local, embora o fizesse muito mal.
Por estranho que possa parecer, a ideia de pôr os pés em Bizâncio não me alarmou excessivamente. O choque de ter descoberto que chegara ao local da minha morte desaparecera rapidamente e em seu lugar surgira uma sensação de resignação perante o inevitável. Sentia-me como se estivesse a ser puxado por acontecimentos demasiado complexos para serem compreendidos e demasiado poderosos para que lhes pudesse resistir. Era como uma folha a esvoaçar num vento ciclónico, ou como uma pena lançada para um mar enlouquecido pela tempestade.
Rezei ao Pai dos Céus para que fizesse comigo o que quisesse. Por outro lado, também rezei para que pudesse de algum modo poupar-me à necessidade de ajudar o rei Harald no seu odioso plano de pilhagem e matança. Depois de me ter esforçado tanto para conseguir ser um bom monge, digno dos Céle Dé, não queria ser obrigado a iniciar uma vida de crimes, e ainda por cima numa altura em que sabia que me encontrava muito perto do Julgamento Final. Cheguei à firme conclusão de que seria muito melhor morrer a opondo-me a Harald do que ter de me apresentar perante o Trono dos Céus fedendo a pecado e com as mãos sujas do sangue de inocentes.
Ocorreu-me que seria assim que morreria: com a espada do rei na minha garganta, como castigo por me recusar a acompanhá-lo a terra. O pensamento não me produziu qualquer espécie de medo mas sim de desespero, porque me pareceu tratar-se de um fim com uma cruel falta de significado. Deus seja louvado, porque esse meu desespero foi de curta duração. O jarl Harald considerou que uma expedição de exploração o diminuiria, e preferiu ficar no navio a aguardar o nosso regresso.
- Três dos meus karlar irão prestar-me esse serviço - declarou, virando a sua atenção para a escolha dos guerreiros.
Harald começou por chamar o homem que lhe sugerira o pagamento da taxa portuária, que se chamava Hefni e em quem o monarca confiava por causa da sagacidade dos seus conselhos. Também mandou avançar um guerreiro chamado Orm, o Vermelho, que para além de ser muito hábil com a lança e a espada era também muito ligeiro de pés e furtivo. O monarca preparava-se para escolher o terceiro membro do grupo quando lhe sugeri que poderia ser útil para os nossos fins que fôssemos acompanhados pelo menos por um homem que eu conhecesse e em quem confiasse, e que pudesse falar com os outros se tal viesse a ser necessário.
Harald, com a paciência novamente a esgotar-se-lhe, perguntou-me se conhecia um tal homem. Disse-lhe que sim e mencionei o Gunnar.
- Muito bem - concordou o jarl, impulsivamente. - Gunnar Maço-de-Guerra também irá convosco.
Foi desse modo que nós os quatro nos descobrimos a trepar por cima da amurada do navio e a embarcar num dos muitos pequenos barcos que se empurravam uns aos outros para nos prestarem os seus serviços. Saltei para o barco e disse ao barqueiro que queríamos ser conduzidos a terra, junto da porta da cidade que se encontrasse mais perto.
- Foi uma escolha sensata, meu amigo... - declarou o barqueiro, num tom agradável. - Descansem e não se preocupem. Estarão lá num instante. Chamo-me Didimus Psidia e estou ao vosso serviço. Escolheram bem, porque este é o melhor barco em toda Bizâncio. Rezo a Deus para que a vossa sabedoria seja recompensada cem vezes.
- Obrigado, amigo Didimus - respondi. A seguir confidenciei-lhe que, como nada sabíamos de Constantinopla, lhe ficaria muito grato pelos conselhos que me pudesse dar.
- Ah, és o mais afortunado dos homens... - replicou o barqueiro - porque estás na presença de alguém para quem a cidade é um Jardim de Delícias. Podes depor toda a tua confiança em mim. Nada temas, de certeza que serei o melhor guia que poderias desejar!
Hnefi e Orm desceram para o barco naquele momento. Orm, talvez supondo que tinha a obrigação de me recordar qual era a minha posição, empurrou-me com rudeza. Desequilibrei-me no pequeno barco e fui cair contra um dos seus lados.
- Nem uma palavra! - avisou-me. - Não desviarei os olhos de ti! Gunnar, que vinha atrás deles, intercedeu a meu favor, afirmando:
- Deixa-o em paz, Orm. É um escravo do rei e não teu.
- Diz a este homem para nos conduzir à porta da cidade que ficar mais próxima - ordenou Hefni, instalando-se no fundo do barco.
- Já o fiz - repliquei. - Era precisamente o que estava a fazer quando o Orm me bateu.
Hefni respondeu com um aceno brusco.
- Agora, sou eu o chefe... - declarou - e farás o que eu te disser. - Fez um gesto na direcção de Didimus, que nos observava, e acrescentou: - Diz a esse tipo sem préstimo para começar a trabalhar ou estripá-lo-ei como a um peixe.
Virei-me para Didimus e disse-lhe:
- Estamos prontos para seguir, por favor.
- Com todo o gosto - respondeu o barqueiro, afastando-se do navio com um empurrão das mãos. - Sentem-se, meus amigos, e não se preocupem. Este é o melhor barco de toda Bizâncio. - Colocou um longo remo à popa, manteve-se de pé sobre um banco e começou a agitar o remo para um lado e para o outro. O barco virou e afastou-se do navio.
Os que nos observavam a partir da amurada gritaram-nos que não ficássemos com todos os tesouros e deixássemos alguma coisa para eles pilharem. Orm respondeu-lhes com uma cuspidela para a água e Hnefi disse-lhes que mais valia que aproveitassem o tempo para cuidarem das armas em vez de estarem a preocupar-se connosco.
Gunnar instalou-se a meu lado, contra os flancos curvos do barco.
- Por que foi que me escolheste? - perguntou.
- Pensei que podia ser útil ter a meu lado alguém em que pudesse confiar. - Como não fez comentários, inquiri: - Porquê? Preferias ter ficado para trás?
- Nay - retorquiu, encolhendo os ombros. - Isso não me diz respeito. - Olhou para a cidade por instantes mas acabou por me mirar de esguelha. - Pensei que pudesses ter uma razão diferente.
- Cala-te! - rosnou Orm, dando-me um pontapé com a biqueira da bota.
- Orm... - interveio Hnefi - agora, o chefe sou eu. Se não conseguires lembrar-te disso, deixo-te no barco enquanto vamos à procura do tesouro.
Orm resmungou, puxou pela faca e começou a polir-lhe a lâmina nos calções. Hnefi virou-se para mim.
- Mantém a boca fechada. Avisar-te-ei quando quiser que fales.
Virei a minha atenção para a cidade, que se aproximava a cada movimento do remo de Didimus. A partir do ponto em que nos encontrávamos era muito pouco o que se podia ver de Constantinopla e só se tinha uma pequena visão da cidade nos locais onde as cabeças das colinas espreitavam por cima das muralhas. Pelo seu lado, as muralhas propriamente ditas eram impressionantes. Os tijolos e as pedras haviam sido dispostos em camadas sucessivas de modo a criar um cercado que era simultaneamente alto e resistente, e que ostentava nítidas faixas vermelhas e brancas, o que fazia com que a muralha fosse diferente de todas as que eu já vira. Ao longo do topo da muralha podiam ver-se pessoas em movimento, talvez guardas da cidade, mas encontravam-se demasiado longe para se poder ter a certeza. Aqui e acolá avistavam-se copas de árvores, algumas das quais eram pinheiros, bem como os ramos nus de outras que já haviam perdido a folhagem.
O mar estendia-se até às próprias fundações da muralha, deixando apenas uma estreita passagem que dava acesso a uma muito variada colecção de cais de pedra e de madeira, grandes e pequenos, novos e velhos, em torno dos quais os navios se amontoavam como leitões em volta das tetas da mãe.
E que navios! Vi embarcações com dois e três mastros, e algumas outras que possuíam mais do que um convés. Havia ali velas de tantas cores diferentes que em breve lhes perdi a conta, e as cargas dos navios era ainda mais variadas. Avistei sacos e arcas, barris, potes e cestos em números incontáveis. Se uma determinada mercadoria podia ser transportada por mar, então era certo e sabido que a podíamos encontrar na cidade de Constantinopla.
Didimus mantinha um rumo serpenteante através do apinhado porto. Avançámos ao longo dos infindáveis cais, desviando-nos dos barcos maiores e procurando um local onde pudéssemos desembarcar. Tornei-me consciente do mau cheiro à medida que nos fomos aproximando dos cais. A água estava coberta de lixo, excrementos e refugo de todo o tipo porque os despejos eram continuamente lançados borda fora, para a baía, e constituíam efluentes tão ofensivos que soltavam o odor mais potente e desagradável que eu jamais tivera de suportar.
Contudo, o nosso barqueiro parecia não se preocupar com isso. Manobrava o remo com os braços, sorria e cantava durante todo o tempo, e para além disso apontava para vários locais característicos sempre que lhe ocorria fazê-lo. Orm e Hnefi olhavam-no com desconfiança e com um desprezo injustificado, e mantinham as bocas firmemente fechadas como se receassem poder vir a revelar o odioso plano do rei Harald.
Quando embatemos finalmente contra o lanço de escadas de pedra de um cais, em frente de uma das enormes portas da cidade, fiquei muito satisfeito por me poder libertar daquele cheiro nauseabundo. Virei-me para agradecer ao barqueiro mas recordei-me do aviso de Hefni e fiquei calado, tal como competia a um bom escravo. Orm saltou do barco, logo seguido por Gunnar, ambos aparentemente esquecidos de Didimus, que nos chamou e estendeu a mão à espera do pagamento.
Hnefi ignorou o barqueiro e disse:
- Vamos, Cabeça-Rapada, seguirás à nossa frente. Não quero que desapareças das nossas vistas.
- Perdoa-me, jarl... - repliquei - mas temos de lhe pagar.
O bárbaro olhou para o barqueiro com uma expressão impassível e respondeu:
- Nay! - Virou as costas ao homem e desembarcou sem mais uma palavra, pelo que não tive outra escolha e fui obrigado a correr atrás dele.
- Por favor! Por favor, meus amigos! - implorou Didimus. - Prestei-lhes um serviço leal. Têm de me pagar! Por favor, escutem-me, têm de me pagar! São dez nomismi! Apenas dez!
Parei nos degraus o tempo suficiente para lhe dizer: - Desculpa, Didimus, gostaria de te pagar mas não tenho dinheiro. Vendo que não ia ser pago, Didimus começou a gritar-nos pragas e a chamar os guardas do porto para nos virem espancar. Subi os degraus de pedra a correr perseguido pelos gritos de "Ladrões! Ladrões!" que me deixaram as orelhas a arder.
Os três dinamarqueses aguardavam-me no alto das escadas.
- Não está certo! - queixei-me, dirigindo-me a Hnefi. - Devíamos ter-lhe pago!
Hnefi limitou-se a virar-me as costas.
- O homem podia ter-nos ajudado! - insisti. - Agora, está a chamar os guardas para nos virem dar uma lição! Devíamos dar-lhe qualquer coisa!
Senti o punho de Orm a embater nos meus dentes ainda antes de perceber que o bárbaro levantara a mão.
- Faz o que te dizem, escravo - ordenou-me, empurrando-me com força. Caí pelos degraus de pedra e teria mergulhado na água se Gunnar não me tivesse agarrado por um braço e impedido de rolar por cima da beira.
Voltei a pôr-me de pé e segui-os pelas escadas. Avançámos em direcção à muralha, com os dinamarqueses a movimentarem-se cautelosamente e sem nunca tirarem as mãos dos punhos das espadas. Parámos junto à entrada da cidade, onde Hnefi se virou para mim:
- Vai à frente. Nós seguimos-te.
A entrada da cidade tinha uma enorme porta dupla, em madeira cintada a ferro. Eram imensas as pessoas que passavam através dela, muitas das quais carregadas com fardos dos mais variados tipos. Algumas empurravam pequenos carrinhos de duas rodas, outros puxavam carroças, mas a maioria transportava os fardos às costas. Por cima da porta havia um triângulo de pano vermelho com um símbolo cosido a branco. Não reconheci o símbolo e não consegui entender o seu significado.
Juntámo-nos à multidão que atravessava a porta mas quando lá chegámos fomos detidos por um homem numa capa verde, que usava um chapéu de lã preta e transportava um pequeno bastão de latão.
- Disca! - gritou-nos, sem entusiasmo, estendendo a mão com um ar impaciente.
- Perdoe-me, senhor... - disse-lhe - mas não sei o que pretende de nós.
Lançou-me um olhar fatigado e observou os bárbaros. Se a aparência deles o alarmou, então ocultou muito bem o medo. Reparou na minha coleira de escravo e perguntou:
- Qual deste homens é o teu amo?
- Ele - respondi, apontando para Hnefi.
- Então diz-lhe que os barbari precisam de ir ter com o Prefeito da Lei para obterem uma autorização para entrarem na cidade.
- Dir-lho-ei... - repliquei - mas talvez possa ser suficientemente amável para me informar onde poderei encontrar o Prefeito da Lei.
Dominando um bocejo, o homem levantou o bastão de latão e apontou para uma tenda montada nas sombras da entrada.
- Além!
Agradeci ao homem e expliquei aos Lobos do Mar o que ele me dissera. Dirigimo-nos à tenda e deparámos com um homem pequeno e careca, sentado numa cadeira almofadada ao lado de uma mesa onde se viam balanças e uma pilha de pequenos discos de cobre. Fiquei na frente dele por instantes sem que me prestasse atenção. O homem parecia completamente concentrado numa nódoa castanha nos seus calções verdes e estava a raspá-la com uma comprida unha.
- Por favor... - comecei - disseram-me para pedir autorização de entrada...
- Dez nomismi - retorquiu o homem, sem sequer olhar para cima. Virei-me para Hnefi e traduzi o que o Prefeito da Lei acabara de me dizer. Hnefi soltou um grunhido de desaprovação e começou a afastar-se. Orm e Gunnar hesitaram, encolheram os ombros e seguiram-no... o que provocou uma reacção imediata.
O Prefeito levantou os olhos, viu os bárbaros a entrar na cidade e gritou, numa voz muito alta:
- Parem! - berrou. Pôs-se de pé num salto e correu atrás de Hnefi. - Têm de pagar! - insistiu o careca. - São dez nomismi! - repetiu, agitando um dos pequenos discos de cobre na frente do rosto do Lobo do Mar.
Hnefi agarrou a mão do homem, aliviou-o do disco, guardou-o no cinto e continuou a andar. O homem ficou a olhar para ele, incrédulo, e começou a gritar:
- Guardas! Guardas!
Ignorando a barulheira, os Lobos do Mar seguiram em frente e não tive outro remédio se não ir atrás deles. Contudo, ainda não tínhamos dado dez passos quando fomos detidos por oito guardas com capas vermelhas que apareceram no nosso caminho. Usavam elmos de bronze e empunhavam lanças curtas e grossas. O chefe também transportava uma vara de latão, não muito diferente da do Mestre do Porto mas que era encimada por uma cabeça de leão e não por uma bola.
- Alto! - ordenou o soldado que se encontrava mais à frente. Era um jovem, pouco mais do que imberbe, mas que não deixava de se comportar com um ar de plácida autoridade.
- Não pagaram! - guinchou o velho careca. - Não pagaram pelo disca!
O guarda olhou primeiro para os bárbaros e depois para mim. Deve ter pensado que era mais provável que eu lhe respondesse, porque me perguntou:
- É verdade?
- Tenho de vos pedir perdão, senhor - respondi. - Acabámos de chegar à cidade e nada sabemos sobre os vossos costumes. Pode ser que, por ignorância, tenhamos...
- Paguem-lhe - ordenou o soldado, nada interessado em explicações.
- Dez nomismi - disse o Prefeito, de mão estendida. Virei-me para Hnefi e disse-lhe:
- Dizem que temos de pagar pelo disco de cobre, que é a nossa autorização para entrarmos na cidade. Sem ele, fazem-nos prisioneiros e atiram-nos para o poço dos reféns. - Não sabia se esta última afirmação era verdadeira mas pensei que talvez resumisse melhor a situação e de uma maneira que o Lobo do Mar conseguisse compreender.
- Se pagarmos - perguntou Hnefi - ficamos em liberdade?
- Sim.
Carrancudo, Hnefi meteu a mão no cinto e fez aparecer um denário de prata, que me entregou. Dei-o ao Prefeito, que encheu as bochechas de ar, exasperado.
- Não têm mais nada? - perguntou.
- Por favor, não compreendo! - expliquei. - . Esse dinheiro não é suficiente?
O jovem guarda interveio antes do Prefeito ter tempo para responder.
- É demasiado - declarou. Indicou a moeda e disse: - O denário de prata vale cem nomismi. - Virou-se para o Prefeito e acrescentou: - Vê se lhes dás o troco correcto.
O careca resmungou, mirou o guarda com alguma irritação e puxou-me pela manga.
- Vem comigo.
Arrastou-me de volta à sua tenda. Aí chegados, colocou a solitária moeda de prata numa balança, ajustou os pesos... e transformou todas essas manobras num grande espectáculo. Depois de confirmar que a moeda de prata tinha o peso correcto, meteu a mão por baixo da mesa e fez aparecer um saco de cabedal cheio de moedas, de bronze, cobre, prata e ouro, e começou a contar moedas de bronze e de prata que foi metendo na minha mão. As moedas de bronze estavam marcadas com letras gregas, algumas com um E, outras com um K, e outras ainda com Mel. Supus que as letras serviam para indicar os valores, mas o homem contou-as tão depressa que não os consegui entender.
Os Lobos do Mar, sempre interessados em tudo o que fosse negócios, observaram a operação com interesse. Quando o Prefeito terminou, Hnefi fez-me sinal para lhe entregar o dinheiro.
- Primeiro dez e agora cem... - comentou. - Ao que parece, o valor das nossas moedas de prata está sempre a aumentar. O jarl Harald tem de ser informado...
Pensei em toda a prata que tínhamos entregue ao guarda do porto, mas achei melhor não me manifestar. Contudo, Orm não precisou que lhe recordassem o assunto.
- Creio que o Mestre do Porto também vai ouvir falar no assunto... A seguir, o Prefeito da Lei contou mais dois discos, que deu a Orm e
Gunnar. Quando estendi a mão para lhe pedir um para mim, o homem abanou a cabeça.
- São apenas para os barbari - explicou, dizendo que os discos lhes davam o direito, até ao fim do ano, de entrarem na cidade sempre que o desejassem. - Contudo... - avisou, com um tom ácido - só podem utilizar a Magnaura e todas as outras portas lhes estão vedadas.
- Compreendo - respondi. - Agora, diga-me, qual é a porta Magnaura?
O careca olhou-me com uma expressão de desagrado.
- Aquela! - atirou-me, indicando a porta por trás de nós. - É a única porta que devem usar. Desapareçam daqui!
Mandou-nos embora com um gesto breve e voltou a instalar-se na sua cadeira. Continuámos o nosso caminho, passando rapidamente pelos guardas que nos observavam. Agora que tinham liberdade para entrarem em Bizâncio, os bárbaros estavam desejosos de descobrir até onde poderiam aproveitar essa mesma liberdade.
Afastámo-nos da porta da cidade... e perdemo-nos. Contudo, esse facto só nos chamou a atenção muito mais tarde porque continuámos a caminhar pelas ruas estreitas e serpenteantes, vagueando para onde a curiosidade nos levava mas sem deixarmos de procurar a principal casa de tesouros da cidade. O que a bordo do navio parecera um problema muito simples e directo em breve se revelou monumentalmente complicado quando nos vimos parados no meio de uma rua repleta de pessoas que iam e vinham numa aparente maré sem fim. As nossas primeiras tentativas para nos orientarmos provocaram gritos zangados de pessoas que nos queriam fora do seu caminho.
- Mexam-se! Mexam-se! - gritou um guarda que ia a passar. - Não podem parar aqui! Continuem!
- Está a dizer que temos de continuar a andar - expliquei, para os dinamarqueses.
- Para onde? - interrogou-se Gunnar.
- Vamos seguir aquele homem - sugeriu Orm, apontando para um gordo que arrastava atrás de si uma longa capa púrpura. - De certeza que nos conduzirá a uma casa de tesouros.
- O chefe sou eu - recordou-lhe Hnefi - e digo que vamos pelo outro lado.
Foi assim que continuámos, avançando cada vez mais para o interior da cidade até atingirmos uma rua muito larga, flanqueada por habitações que, tanto nas dimensões como no custo da construção, não tinham igual em lado nenhum. Eram verdadeiros palácios.
- Estão a ver? - perguntou Hnefi, orgulhoso. - Sei como encontrar bons tesouros. Sigam-me!
Os gananciosos Lobos do Mar avançaram com ousadia, manifestando-se ruidosamente sobre o palácio que deveria ser assaltado em primeiro lugar e sobre qual deveria conter mais riquezas... o que na verdade não era uma tarefa fácil porque cada nova casa que descobríamos parecia possuir uma grandeza que excedia tudo o que já havíamos encontrado. Os Lobos do Mar paravam na rua em frente de cada uma delas, olhavam para os imponentes edifícios e faziam juramentos solenes em que afirmavam que era ali mesmo, na frente deles, se encontrava a maior casa de tesouros de toda a cidade... e ficavam felizes com essa ideia até chegarmos à casa seguinte.
Uma das ruas era flanqueada por mansões com uma altura de dois e três andares. Enquanto as paredes dos andares mais baixos eram de tijolo nu e sem aberturas, as superiores exibiam janelas de ventilação cobertas por vidro. Nunca tinha visto janelas de vidro em toda a minha vida... mas elas ali estavam! Ainda por cima, todas as casas daquela rua as tinham! Muitas das mansões, se na verdade o eram, possuíam portas com ornamentos esculpidos e ombreiras pintadas. Uma ou duas dessas estruturas até ostentavam estátuas, montadas em plintos ao lado das janelas. Muitas delas eram encimadas por coberturas inclinadas, cobertas por telhas, mas as maiores possuíam coberturas planas onde se via folhagem verde. Já ouvira dizer que os romanos ricos tinham casas assim, mas nunca deparara com tamanha riqueza. Como se isso não fosse suficiente, quase todas as casas possuíam uma outra característica que me era desconhecida: uma extensão do último andar, que sobressaía sobre a rua. Essas protuberâncias - muitas das quais eram notavelmente substanciais - estavam fechadas com biombos de madeira que, ao que suponho, podiam ser abertos para que o ar fresco da noite penetrasse nas divisões superiores.
Era de esperar que uma cidade como Constantinopla contivesse mansões e palácios... mas eram tantas! Eram às centenas! Sentia-me a caminhar envolto numa neblina de incredulidade. Não conseguia compreender uma tal riqueza, nem era capaz de imaginar de onde ela viria.
Os dinamarqueses estavam fora de si de excitação. Discutiam continuamente sobre qual o palácio que deveria conter mais tesouros e qual deveria ser o primeiro a ser pilhado. Orm queria lançar-se ousadamente sobre um deles - ou todos! - para roubar todos os objectos valiosos que lhe aparecessem pela frente. Pela sua parte, Hnefi era da opinião que devia ser o rei Harald a decidir qual a casa a saquear.
- Mas o jarl Harald não está aqui! - queixava-se Orm, e o seu raciocínio, como sempre, era inatacável.
- Então esperamos, até que chegue. - Hnefi mostrou-se firme, afirmando que não devíamos levantar suspeitas entre os habitantes da cidade. Argumentou que iríamos alertar as pessoas se começássemos a entrar nas casas, pelo que já estariam prevenidas quando regressássemos para um assalto em grande escala. - Cabe-nos procurar e localizar os sítios onde poderão ser encontrados os melhores tesouros - declarou. - Podemos voltar amanhã, para os levarmos.
Orm acabou por concordar, embora com alguma relutância, e afirmou:
- Continuo a pensar que devíamos levar qualquer coisa para mostrar ao rei.
Gunnar concordou com Hnefi e admitiu que as coisas podiam correr mal se despertássemos a ira do povo. Entre os dinamarqueses, só ele parecia intimidado pelas enormes dimensões da cidade e passara a mostrar-se cada vez mais silencioso, como se tivesse vontade de desaparecer nas sombras.
Continuámos o nosso caminho, vagueando para aqui e para acolá, olhando para as casas e observando as pessoas. Naquela parte da cidade não se viam muitos habitantes e os que encontrámos pareciam andar a tratar dos seus negócios com uma pressa indecorosa. Talvez o aspecto dos bárbaros os assustasse, mas não posso ter a certeza.
De qualquer modo vimos um número suficiente de cidadãos para concluirmos que os habitantes de Constantinopla eram, sob todos os aspectos, uma raça média: não eram nem demasiado altos nem excessivamente baixos, as suas peles não eram nem muito escuras nem muito claras e o seu aspecto não podia ser considerado nem feio... nem bonito. Pareciam possuir físicos fortes, com membros curtos e corpos compactos, que sugeriam mais vigor do que força bruta, mais resistência do que graciosidade.
Quanto às preferências, as mulheres usavam os cabelos compridos, que penteavam em tranças oleadas, e os homens tinham tendência para as barbas, também oleadas e trabalhosamente encaracoladas. Os trajes, na sua maior parte, eram compostos por uma simples capa que usavam sobre camisas ou túnicas compridas, com volumosos calções para os homens e saias para as mulheres. Os tecidos desses trajes eram simples, quase sempre de cores claras, e adornavam-se com pregadores ou com outras peças de joalharia do mesmo género. Para além disso, todos eles, tanto os homens como as mulheres, parecia ter um gosto descomedido pelos chapéus.
Nunca vi gente tão dada aos chapéus como o povo de Bizâncio. Todos os que se podiam permitir esse luxo usavam qualquer coisa na cabeça, nem que se tratasse de algo de muito rudimentar, desde um farrapo de um pesado tecido de lã dobrado em bico, ou palhas tecidas entre si para formarem um chapéu amarrado com trapos. Muitos desses chapéus pareciam possuir uma sanção oficial e eram usados como símbolos de cargos. Outros pareciam seguir os ditames de uma qualquer convenção cujo sentido não consegui penetrar.
Marchávamos pelas ruas no meio de devaneios de estupefacção, olhando para tudo o que nos aparecia pela frente, até ao momento em que Gunnar nos deteve:
- Escutem! - murmurou.
Os Lobos do Mar pararam de repente e sustiveram a respiração, à escuta.
- O que será aquilo? - perguntou Orm, após alguns instantes.
- Parecem os sons de um animal - comentou Hnefi. - Um animal muito grande...
- Nay - retorquiu Gunnar. - São pessoas!
- Nesse caso, devem ser muitas - admitiu Orm.
- É uma batalha! - exclamou Hnefi. - Por aqui! Depressa! Partiram em corrida em direcção ao som, de armas em punho, na esperança de conseguirem obter um tipo qualquer de saque. Apressei-me atrás deles para não ser deixado para trás. A rua começou a alargar na nossa frente e comecei a avistar movimentos e cor sob a luz.
De repente descobri-me à entrada de uma praça de mercado. Na verdade, aquele era mercado maior, mais agitado e mais barulhento que eu jamais vira, repleto de verdadeiras hordas de pessoas que berravam com toda a força dos seus pulmões. Os mercadores, instalados por baixo de toldos ricamente tecidos, gritavam as virtudes dos seus produtos a toda a gente, tentando atrair clientes em seis línguas diferentes, isto enquanto os compradores em perspectiva passavam por eles lentamente, observando os produtos e regateando com desmesurado fervor. Estranha batalha aquela que, no entanto, não deixava de ser um combate em que os vários sons do comércio se fundiam para formar a monstruosa barulheira que tínhamos ouvido.
Arrastados para o remoinho, os dinamarqueses cambalearam para a frente, sempre agarrados às armas. Quando a mim, ainda mal dera meia dúzia de passos quando os meus olhos se encheram de água e comecei a espirrar. Directamente à minha frente havia uma banca repleta de especiarias de que nunca tinha ouvido falar, vermelhas-escuras, amarelas do tom da poeira, pretas, alaranjadas, verdes-claras e brancas. Aquelas misteriosas especiarias estavam amontadas em pirâmides, numa abundância casual, desde montes de um pó que cheirava a mel quente e que se chamava canela, como vim a saber mais tarde, a pequenas sementes escuras, com bicos e um cheiro pungente, que eram cravinhos, três ou quatro tipos diferentes de pimenta, açafrão-da-índia amarelo, montanhas de cominhos e de salsa da cor da terra, brilhantes pimentões vermelhos moídos até não passarem de um pó, montes de amêndoas moídas e de pequenos feijões arredondados, com a cor das pedras, a que chamavam grão-de-bico. A mistura de todos aqueles aromas criava um odor tão pungente que me cegava e me obrigou a afastar-me à pressa.
Ao lado do mercado de especiarias encontrava-se a primeira das muitas bancas que vendiam verduras. Parei e fiquei a olhar para a longa linha de bancas de vegetais de todos os tipos existentes sobre a Terra: alhos-porros, cebolas, alhos, lentilhas, pequenos objectos vermelhos denominados capsicum, pepinos, pequenas coisas verdes semelhantes a dedos e a que davam o nome de okra, couves, dúzias de variedades de feijões, abóboras e melões. E não era tudo! Na verdade, nem sequer era uma mínima parte do que vi! Era como se todo o mundo tivesse enviado bens para aquele mercado, desde o ouro e a prata, ao sal e à pimenta, aos animais vivos, coiros egípcios, cerâmicas macedónias, vinhos da Síria, poções mágicas e ícones Sagrados abençoados pelo bispo de Antióquia. Bastava pensar numa coisa qualquer... e de certeza que havia alguém a vendê-la naquele mercado!
Deparei com um mercador que vendia apenas azeitonas... e que tinha quinze ou vinte variedades diferentes, facto que me espantou mais do que qualquer outra coisa. Claro que não as conseguia distinguir umas das outras porque nunca tinha visto uma azeitona em toda a minha vida. Porém, ao olhar para tigela após tigela de azeitonas - verdes, pretas, púrpuras e muitas outras - ocorreu-me que uma civilização que se preocupava com tais pormenores a respeito de um fruto tão pequeno e insignificante deveria possuir poderes muito para além da minha imaginação.
Vinte variedades de azeitonas! Pensem bem nisso!
Por muito poderoso ou rico que pudesse ser, nenhum monarca do Eire jamais vira, e muito menos provara, uma única azeitona solitária. Empreender o transporte daquele fruto seria desperdiçar quase todos os recursos e energias do Eire. No entanto, ali, na grande Bizâncio, até os mendigos podiam comer azeitonas cultivadas nas mais longínquas paragens do Império. Fiz uma pergunta a mim mesmo: como medir uma tal realização? Confesso que não consegui uma resposta.
Para mim, pouco habituado a tão casuais exibições de riqueza, o mercado constituía mais uma revelação de uma magnificência sem rival quando comparado com tudo o que eu vira anteriormente do que propriamente um local de comércio. Passados alguns momentos deixei de conseguir de compreender as coisas. Embora continuasse a percorrê-lo e a olhar para tudo o que era oferecido, a minha mente recusava-se a acreditar.
De súbito, quando passávamos em frente de uma banca onde se vendiam tigelas e taças de latão, para além de outros pequenos objectos, o mercador gritou-nos, em dinamarquês:
- Heya! Heya! Venham cá, meus amigos!
Os Lobos do Mar pararam e olharam para o homem.
- É dinamarquês! - exclamou Orm.
- Se o é... então é diferente de todos os que já conheci - comentou Gunnar.
- É, sim, digo-vos eu! - insistiu Orm, que se virou e começou a falar rapidamente com o homem, que se limitou a sorrir, a abrir as mãos e a encolher os ombros.
- O Gunnar tem razão... - concluiu Hnefi - o homem não é dinamarquês.
Desagradados com o que consideraram um truque baixo, os Lobos do Mar afastaram-se. Contudo, o vendedor de peças de latão não foi o único a dirigir-se-lhes na sua própria língua porque houve muitos outros que o fizeram enquanto avançávamos ao longo das bancas, muito juntas umas às outras. Este acontecimento simples, repetido tão frequentemente, começou por deixar os Lobos do Mar desconfiados mas acabou por os encantar quase tanto como as riquezas ali exibidas. Pararam constantemente para se envolverem em conversas com os variados comerciantes, conversas essas que não se prolongaram muito para além das primeiras palavras de saudações por parte dos vendedores antes destes passarem para o grego, para o latim ou para outra qualquer língua.
A fome começou a fazer-se sentir quando ainda continuávamos a vaguear por entre a profusão de bancas. Orm lamentou-se ruidosamente, afirmando que a visão de tanta comida o deixava tonto. Pela sua parte, Gunnar afirmou que saqueadores tão ousados como nós precisavam de sustento para se manterem alerta e para manterem as forças. Hnefi sugeriu que a comida talvez não fosse boa para os nossos estômagos. Não estávamos habituados a ela e poderíamos ficar doentes. Ao ouvirem aquilo, Orm e Gunnar protestaram com tanta violência que Hnefi acabou por ceder. Era preferível ter uma dor de barriga, afirmou, do que ver-se obrigado a aturar os seus queixumes a respeito da fome que sentiam.
Hnefi decidiu que não deveríamos comer nada mais invulgar do que peixe salgado. Os outros concordaram e fomos em busca de um dos vendedores de peixes que havíamos visto antes. Contudo, enquanto o procurávamos, aconteceu passarmos por um homem de pé junto a um braseiro de carvões ardentes sobre o qual assavam longas tiras de carne enfiadas em compridos espetos de madeira. A carne estralejava sobre o lume e soltava um aroma de fazer crescer água na boca.
O cheiro chegou ao nariz de Orm, que se deteve imediatamente. Ele e Gunnar ficaram lado a lado, hipnotizados com a visão e o odor da carne assada. O vendedor, com o rosto a brilhar sob o calor dos carvões, viu que estávamos interessados nos seus produtos e chamou-nos.
- Heya! Heya!
- Quanto custam? - perguntou Hnefi, apontando para os espetos. O homem abanou a cabeça.
- Quanto? - insistiu Hnefi, falando ainda mais alto.
O vendedor exibiu um grande sorriso e encolheu os ombros.
- Perdoa-me, meu amigo, mas não compreendo... - declarou, em grego.
- Está a perguntar quanto custa cada um dos espetos que tens a assar - expliquei.
- Ah! - exclamou o homem - Temos aqui um escravo com conhecimentos! Bem-vindo à grande cidade de Constantinopla, meu amigo!
- Como sabes que somos recém-chegados? - perguntei-lhe.
O homem riu-se outra vez e disse que toda a gente sabia que os espetos custavam dois nomismi.
- Quantos vão querer, meus amigos? - perguntou.
- Quatro - respondi, dizendo a Hnefi para lhe entregar oito das pequenas moedas de latão.
Depois de contado o dinheiro, o homem permitiu que escolhêssemos os espetos. Os dinamarqueses engoliram a carne à pressa e exigiram mais, que o vendedor forneceu com toda a satisfação em troca de mais oito moedas. Pegámos nos espetos e continuámos através do labirinto de bancas do mercado, mastigando a carne e olhando em volta. Os Lobos do Mar pareciam homens a moverem-se num sonho.
Passávamos ao longo de uma fileira de bancas onde se vendia incenso e perfumes quando o nosso avanço foi detido pela visão da mulher mais bela jamais nascida, que estava a ser transportada através do mercado numa cadeira suspensa em varas. Tinha quatro escravos para carregarem a cadeira e um quinto para segurar num pára-sol redondo feito de um pano esticado, preso a uma cana fina. A mulher - que era de certeza uma rainha - usava um vestido de rebrilhante seda azul, tinha os cabelos elegantemente encaracolados e amontoados em cima da delicada cabeça, e um rosto pintado que permanecia impassível enquanto olhava para o que se passava por baixo dela.
Os Lobos do Mar decidiram segui-la para ver para onde ia, na esperança de assinalarem o local para lá voltarem mais tarde a fim de o saquearem. Foi por isso que seguimos os escravos que transportavam a cadeira logo que os vimos sair do mercado para começarem a descer uma das muitas ruas que irradiavam da praça.
A rua era estreita e escura, com as casas tão em cima umas das outras que pouca era a luz do Sol ou do céu que conseguia atingir o pavimento. Os transeuntes apressavam-se para um lado e para o outro, ou amontoavam-se em grupos, conversando uns com os outros. Alguns lançavam-nos uma olhadela quando nos viam passar mas a maioria ignorava-nos. Aparentemente, os bárbaros selvagens a vaguear pelas ruas não eram nenhuma novidade, embora naquele dia ainda não tivéssemos visto outros Lobos do Mar.
As casas da zona em que nos encontrávamos eram de construção mais humilde, com telhados muito inclinados e fachadas menos ornamentadas do que as que tínhamos visto anteriormente. Via-se muito pouco vidro e nenhuma estátua. A rua propriamente dita não estava pavimentada, excepto no que se referia a uma estreita faixa de pedras achatadas ao longo do seu centro. Continuámos o nosso caminho e acabámos por chegar a um cruzamento. Nesse local, a rua estava tão cheia de carros e de carregadores que rapidamente perdemos de vista a rainha e a sua cadeira. Parámos no centro do cruzamento, tentando decidir qual a direcção a tomar. Pensando que regressaria ao bairro rico que havíamos atravessado pouco antes, Hnefi escolheu o caminho da direita, embora fosse ainda mais escuro e estreito do que o anterior.
Talvez tivéssemos dado uma dúzia de passos quando uma porta baixa e larga se abriu subitamente numa parede, deixando sair uma baforada de ar quente e um carro de madeira puxado por dois homens, nus até à cintura e a suar. O carro estava cheio de pães acabados de cozer e o cheiro que saía daquela porta fez-nos parar de repente.
- Bròd! - exclamou Orm, correndo atrás dos homens. Alcançou-os, obrigou-os a parar e apoderou-se de um dos pães empilhados no carro. Os homens gritaram-lhe, arrancaram-lhe o pão das mãos e afastaram-se à pressa, continuando a berrar enquanto andavam.
Vendo o que sucedera a Orm, Hnefi virou-se para mim:
- Arranja-nos algum daquele pão! - ordenou, mandando-me correr atrás do carro.
Alcancei os homens e acertei o meu passo com o deles.
- Por favor - disse - gostaríamos de comprar um pouco do vosso pão.
- Não! Não é para venda! - gritou um dos padeiros, irritado.
- Temos dinheiro... - expliquei-lhe.
- Impossível! - retorqui o outro padeiro. - Este pão é para os theme...
- Desculpem, mas não compreendo...
- Pão para os theme - repetiu o primeiro padeiro. - É pão para os soldados e não estamos autorizados a vender nas ruas. Ainda nos metem em sarilhos! Vão-se embora!
- Temos fome. Talvez nos possam dizer onde podemos comprar pão igual a este.
- Fora daqui! - murmurou o primeiro padeiro, afastando-se. Contudo, o outro homem deteve-se durante o tempo suficiente para me dizer:
- Experimentem ali! - Apontou para uma porta aberta, um pouco mais adiante, na mesma rua.
Gritei os meus agradecimentos aos homens e regressei ao local onde os dinamarqueses estavam à espera.
- Dizem que podemos comprar pão além... - declarei, indicando-lhes a casa que o padeiro me apontara. Dirigimo-nos para lá enquanto Hnefi retirava um punhado de moedas da bolsa, escolhia uma marcada com um "K" e ma entregava.
- Vai comprar-nos o pão - ordenou.
Olhei para a pequena moeda com algumas dúvidas, prometi fazer o possível e penetrei na escura entrada. O interior do edifício estava quente e era iluminado apenas pelo fogo de um enorme forno. Um homem grande e gordo, na companhia de um rapaz magricela, atiçava as chamas com bocados de lenha cortada. No chão, ao lado deles, havia uma pequena montanha de pães ainda quentes do forno.
Saudei-os e expliquei-lhes que queria comparar pão. O homem limpou as mãos ao avental de couro e estendeu a mão para a moeda.
- Isto tudo? - perguntou.
- Sim - respondi.
Encolheu os ombros, debruçou-se para o montão de pães quentes, escolheu três e entregou-mos. Recebi-os e agradeci-lhe... enquanto o homem escolhia três outros pães, que também me entregou. Voltei a agradecer-lhe... e recebi mais três pães. Os pães não eram muito grandes mas nove eram 270 o bastante para ficar com os braços cheios. Agradeci-lhe a sua generosidade... e o homem colocou dois outros pães em cima dos restantes e despediu-se.
Cambaleei de volta à rua e juntei-me aos espantados Lobos do Mar.
- Todo este pão... - perguntou Hnefi - apenas por uma moeda?
- Sim - disse-lhe. - Já não conseguia carregar nem mais um.
- Nesta terra podíamos viver como reis... - comentou Orm.
Os Lobos do Mar serviram-se dos pães, ficando cada um com três e deixando-me dois, o que era mais do que o suficiente. Seguimos o nosso caminho muito satisfeitos, arrancando pedaços aos pães e comendo enquanto andávamos.
O fraco calor daquele dia começou a desaparecer logo que o Sol se afundou e surgiram as primeiras nuvens da noite. As ruas tornaram-se sombrias e o céu ganhou um tom púrpura. Hnefi começou a ficar preocupado com o facto de necessitarmos de regressar ao navio para relatarmos o que tínhamos aprendido a respeito da cidade. Porém, descobrimos que enfrentávamos um problema complicado logo que pensámos em voltar para trás para tentarmos refazer os nossos passos. Tínhamos vagueado tanto e ao longo de um percurso tão labiríntico que essa ideia em breve se revelou completamente fútil.
- Vais perguntar o caminho para o porto - declarou Hnefi. Encontrávamo-nos parados num espaço aberto e pavimentado, perto de um amontoado de bancas que vendiam tecidos e lãs tingidas. A pequena praça tinha duas saídas: uma rua que subia a colina numa direcção que nos parecia ser para oeste, e uma outra que descia para o norte. Não nos parecia provável que qualquer delas nos conduzisse ao porto, que imaginávamos jazer algures para o sul. Todavia, nenhum de nós tinha a certeza, uma vez que Gunnar dizia que o porto ficava para leste, e Orm afirmava que ficava para oeste.
- Pergunta àquele homem - Hnefi, apontando um velho que se apressava com um molho de lenha às costas.
Dirigi-me ao homem e chamei-o:
- Perdoe-me, senhor! - disse-lhe - Pode indicar-me o caminho para o porto?
O velho olhou para mim e respondeu, sem sequer parar:
- Segue o teu nariz!
- Que estranha resposta... - comentou Hnefi, quando lha traduzi. - Tens de voltar a perguntar.
Experimentei junto de outra pessoa, que me disse que devíamos seguir pela rua que subia a colina. Embora nos apressássemos, o céu já estava a escurecer quando chegámos ao alto da colina, onde descobrimos outra praça rodeada por vários grandes edifícios e com uma boa vista para leste e sul.
- Heya! - gritou Orm, apontando para leste. - O Gunnar tinha razão. Ali está o porto.
Gunnar não respondeu. Quando me virei para ele, verifiquei que toda a sua atenção estava concentrada num grande edifício branco que se encontrava mesmo por trás de nós.
- Olha! - disse, indicando-me o telhado.
Vi para onde estava a apontar e o meu coração deu um salto. Havia uma cruz dourada no cimo do telhado, brilhando sob as últimas luzes do Sol poente, facto que despertara a atenção de Gunnar.
Fui instantaneamente dominado pelo avassalador desejo de correr para o local para me ajoelhar em frente ao altar. Fiquei a olhar para a cruz e pensei: Cheguei, finalmente! Atravessei muitos oceanos para chegar aqui... e cá estou. Também me lembrei que devia falar com alguém a respeito da peregrinação. Os irmãos sacerdotes de Constantinopla precisavam de saber. Tinha de os informar.
Sem pensar, avancei na direcção da igreja. Infelizmente, ainda nem sequer dera três passos quando Hnefi me agarrou brutalmente por um braço.
- Fica aqui! - rosnou.
Orm interpretou mal o significado do interesse de Gunnar pela cruz.
- Não é ouro - declarou.
- O mais provável é ser de latão - acrescentou Hnefi. - Não vale a pena levá-la.
Gunnar ignorou-os e afirmou:
- É o sinal... tal como tu disseste, Aeddan...
- Sim, e serve para assinalar uma igreja... - expliquei-lhe. - Um lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo é venerado.
Estávamos envolvidos nesta conversa quando vimos as grandes portas duplas a abrirem-se. Ouviu-se o som de uma campainha vindo do interior da igreja e apareceu uma procissão de sacerdotes, empunhando velas e estandartes de pano montados em altas varas. Avançaram para a rua vestidos com os seus compridos hábitos negros, enquanto entoavam um salmo num cântico lento e ondulante. A tonsura era do tipo latino, diferente da minha. Contudo, as roupas eram semelhantes às usadas pelos sacerdotes ocidentais, embora com uma ornamentação mais rica. Vários deles usavam compridos lenços de seda ao pescoço - o orarion - com cruzes bordadas a fio de ouro. As mangas dos hábitos eram compridas e também com padrões ornamentais.
A frente da procissão seguia um bispo, que usava uma mitra e transportava um báculo encimado por uma cabeça de águia. Era seguido por um par de monges com casulas brancas, um dos quais carregava uma grande cruz de madeira e o outro uma imagem de Cristo pintada num painel de madeira. A pintura representava Cristo pregado na cruz, com os olhos levantados para o céu, implorando piedade para os que o tinham crucificado.
O som das vozes sacerdotais erguidas num cântico encheu-me de satisfação. Parecia-me que já se passara toda uma vida desde que ouvira um salmo cantado, embora o cântico fosse em grego. Mesmo assim, senti um arrepio a percorrer-me o corpo ao escutar as palavras tão familiares: "Louvai Deus nas alturas, oh, homens! Louvai o Senhor das Hostes, oh criaturas da Terra!"
Gunnar encostou a cabeça à minha.
- É ele! - sussurrou. - É o Deus Pendurado de que nos falaste! É o mesmo, heya?
Disse-lhe que era o mesmo, e que a cruz se tornara no símbolo de Cristo.
- Mesmo em Miklagard?! - interrogou-se Gunnar. - Como pode ser isso?
- Está em todo o lado - repliquei - e é o mesmo em todo o lado.
- Então, é verdade... - concluiu. - Tudo o que disseste dele era verdade!
Orm ouviu-o e decidiu conceder-nos o benefício dos seus vastos conhecimentos sobre assuntos religiosos.
- Está enganado, Gunnar - declarou, com brusquidão - Não deixes que esse Cabeça-Rapada te engane. Trata-se certamente de outro Deus. Como é possível que o mesmo Deus esteja em dois lugares ao mesmo tempo?
- Não podem existir dois deuses iguais - insistiu Gunnar. - Aeddan disse que os Romanos o tinham pendurado numa cruz. Ali está ele... e a cruz...
- Os Romanos matavam toda a gente na cruz... - replicou Orm, muito satisfeito com a sua inteligência superior - e nem todos podiam ser deuses!
Hnefi começou a ficar impaciente com a conversa.
- Os Cabeças-Rapadas estão a descer a colina - declarou, indicando a procissão de sacerdotes. - Vamos segui-los. Talvez nos conduzam até ao porto.
Os sacerdotes deslocavam-se lentamente e seguimo-los a curta distância, mantendo-os à vista graças à luz das velas. Enquanto caminhava, tentei descobrir uma maneira de conseguir falar com eles. No fim de contas éramos todos irmãos em Cristo e já que chegara até ali devia de algum modo declarar a minha presença aos dirigentes da Igreja. De súbito ocorreu-me que talvez eles, como sacerdotes, tivessem notícias dos meus irmãos de peregrinação e essa perspectiva fez com que o meu coração batesse um pouco mais depressa.
Seguimos a procissão ao longo da colina, passando por mais casas cujas janelas brilhavam com uma quente luz amarela interior. A seguir passámos por uma segunda praça de mercado, agora vazia excepto quanto à presença de alguns cães vadios que lutavam por restos. Num certo local caminhámos ao lado de um aqueduto verdadeiramente grande, em volta de cujas muralhas se amontoava um grande número de abrigos rudimentares que pareciam ser feitos de madeiras velhas e refugo, unidos entre si de qualquer maneira. Na frente de alguns deles havia pessoas dobradas sobre pequenas fogueiras, cozinhando bocados de comida espetados em paus. Observaram-nos silenciosamente quando nos viram passar.
Quando os sacerdotes chegaram ao seu destino já as estrelas brilhavam no céu. Era outra igreja, um pouco maior do que a anterior, com um telhado arredondado e fileiras de janelas com vidros, bem no alto das paredes. A luz das velas tremeluzia nos vidros, atraindo-me para o interior. Senti a dor da saudade e ansiei por poder entrar e acompanhar a missa do anoitecer. O simples facto de me encontrar entre os meus pares teria sido uma bênção. Porém, o cheiro do Porto já chegara às narinas dos Lobos do Mar e nada seria capaz de os deter durante o tempo suficiente para me permitirem entrar na igreja.
- Talvez devêssemos perguntar a alguém qual é o melhor caminho para os navios... - sugeri, dirigindo-me a Hnefi, embora também já sentisse o odor húmido e o cheiro a peixe das águas do porto.
- Nay - replicou Hnefi, metendo por nova rua escura. - Agora já sou capaz de descobrir o porto. Por aqui!
- Mas... está a ficar escuro! Podemos perder-nos!
Respondeu com um grunhido. Orm interveio, colocando-se atrás de mim e dando-me um empurrão para a frente.
- Mexe-te, escravo!
- Deixa-o em paz - pediu Gunnar, intercedendo por mim. A seguir acrescentou: - Vem Aeddan, não os irrites. Tal como as coisas estão, creio que o jarl Harald não vai ficar nada satisfeito quando souber como passámos o dia.
O infalível nariz de Hnefi acabou por nos levar ao porto. A porta da cidade estava fechada mas havia uma guarda de quatro homens junto da porta pequena. Os guardas deixaram-nos sair depois de nos pedirem para apresentarmos os discos de cobre. A baía estava escura e calma, e as águas brilhavam com as luzes das lareiras das cozinhas e das lanternas dos navios fundeados. Caminhámos para um lado e para o outro ao longo do cais em busca de um barco que nos levasse ao navio, mas não havia nenhum.
- Vamos ter de nadar - declarou Hnefi.
- Não sabemos qual é o nosso navio - salientou Orm e não podemos nadar até junto de cada uma das embarcações que se encontram na baía.
Começaram a discutir sobre qual seria a melhor maneira de resolver o problema quando Gunnar disse:
- Escutem! Está alguém a chamar!
Ouvimos uma voz vinda da água. Aproximámo-nos da beira do cais, olhámos para baixo e vimos um pequeno barco com um homem sentado à popa, segurando uma lanterna no alto de um pau. Reconheci o rosto virado para cima.
Ao ver-nos, voltou a chamar-nos e respondi-lhe:
- Saudações, Didimus! Lembras-te de nós?
- Lembro-me de toda a gente, meu amigo... mas muito em especial daqueles que não me pagam!
- Sim, foi uma infelicidade - retorqui. - Lamento muito... mas talvez a nossa disposição, neste momento, já seja melhor. Levas-nos de volta ao nosso navio?
Hnefi colocou-se a meu lado. - Que está ele a dizer?
- Diz que nos levará ao navio com toda a satisfação, mas que temos de lhe pagar.
- Quanto? - inquiriu Hnefi, desconfiado.
- Vinte nomisrni - respondeu Didimus quando lhe fiz a pergunta.
- Duas moedas... - expliquei, dirigindo-me a Hnefi - mas temos de lhe pagar antes de embarcarmos.
- Sempre é melhor do que nadar - comentou Orm, esperançado.
- Heya! - concordou Hnefi. - Diz-lhe que pagamos. Uma moeda agora e outra quando chegarmos ao navio.
- Então, desçam a escada - retorquiu o barqueiro quando lhe transmiti a proposta de Hnefi.
Dirigimo-nos para a escada onde Didimus já nos aguardava com o barco. Hnefi retirou cinco ou seis moedas de bronze da sua bolsa, seleccionou duas e disse-me para pagar ao barqueiro.
- Hnefi diz que te tenho de te dar uma agora... - expliquei ao barqueiro - e a outra quando chegarmos ao navio.
Levando a moeda à luz, o homem viu a marca do "K" e afirmou:
- Mas... isto é demasiado...
- Estou certo de que quer que a aceites... - menti - como agradecimento por teres esperado!
- Que Deus seja bom para ti, meu amigo! - respondeu o barqueiro, guardando a moeda.
Trepámos para bordo e instalámo-nos tal como anteriormente. Os Lobos do Mar permaneceram em silêncio mas Didimus, satisfeito com a recompensa, mostrou-se conversador.
- Sabia que vos voltaria a ver - afirmou. - Correu bem, o vosso primeiro dia na Cidade do Ouro?
- É uma grande cidade - comentei.
- Sim, mas talvez seja mais latão do que ouro, não é?
- Talvez... - admiti. - Estiveste todo o dia à nossa espera?
- Não todo o dia... - retorquiu o barqueiro, sorrindo por causa da sua própria esperteza - mas sabia que mais cedo ou mais tarde tinham de voltar ao vosso navio e vigiei a porta da cidade até a fecharem.
Manobrando o longo remo com movimentos rápidos e eficientes, o barqueiro conduziu-nos rapidamente até ao navio. Hnefi chamou os que se encontravam a bordo e alguns dos homens debruçaram-se sobre a amurada para nos puxarem para bordo. Entreguei a segunda parte do pagamento a Didimus enquanto os outros subiam.
- Que Deus recompense a tua paciência e perseverança -. disse-lhe. O barqueiro observou a moeda sob a luz da lanterna e o seu rosto abriu-se num grande sorriso de satisfação.
- Já o fez, meu amigo - retorquiu Didimus, feliz. - Deus já o fez! Ergui os braços, fui puxado pelo flanco do navio e arrastado por cima da amurada.
- Até amanhã, meus amigos bárbaros! - gritou Didimus quando já me virava para enfrentar um monarca extremamente irritado.
O jarl Harald Berro-de-Touro, rei dos Dinamarqueses da Escandinávia, não conseguia compreender por que motivo tivera de esperar a bordo do navio durante todo o dia enquanto vagueávamos pela cidade e gastávamos as suas moedas. Localizar o tesouro fora assim tão difícil? Trovejou Harald. Permanecia de pé, iluminado pelas tochas tremeluzentes, mantinha os braços cruzados sobre o peito e exibia uma carranca poderosa enquanto exigia uma resposta para aquele mistério. Gunnar e eu permanecemos em silêncio sob a sua ira fervilhante enquanto Hnefi e Orm se esforçavam por lhe dar explicações.
- É muito difícil, jarl Harald - disse Hnefi. - Esta Miklagard é muito maior do que pensávamos. Não é fácil encontrar uma casa de tesouros.
- No entanto, encontrar um salão de bebidas não foi assim tão difícil, heya?
- Não descobrimos nenhum salão, jarl - respondeu Orm. - Só conseguimos encontrar vinho.
- Ah! Então estiveram a beber vinho! - grunhiu o monarca, num tom perigoso.
- Nay, jarl- interveio Hnefi rapidamente. - Andámos em busca da principal casa de tesouros, tal como nos ordenaste. Vimos muitas coisas, incluindo muitas belas casas. Estou certo que devem ter muito que saquear.
Como Harald gostou do som da afirmação, Orm embelezou-a:
- É verdade, jarl Harald. Há centenas de casas dessas... ou talvez milhares! Os tesouros que contêm são muito mais do que poderíamos levar mesmo que tivéssemos dez navios!
- Viram esses tesouros? - inquiriu o monarca. - Viram muito ouro e prata?
- Nay, jarl Harald - replicou Orm. - Não vimos o ouro ou a prata mas aquelas casas são certamente salões de reis.
- Salões de reis! - troçou Harald. - Às centenas ou aos milhares? Então, pergunto-vos: como é que esta Miklagard pode ter tantos reis?
- Talvez nem todos sejam reis... - admitiu Hnefi, judiciosamente - mas as casas são de homens ricos. Quem mais poderia construir tais palácios?
O monarca fez uma careta para os seus batedores e puxou pelas pontas do bigode enquanto tentava decidir o que fazer. Por fim, virou-se para Gunnar e para mim e perguntou:
- Então? Que têm a dizer a este respeito?
- É tal como Hnefi e Orm te contaram, jarl Harald - replicou Gunnar. - Os palácios eram tantos que não os conseguimos contar e alguns deles devem conter tesouros que vale a pena pilhar.
- Alguns deles, heya... - grunhiu o monarca, num resmungo de assentimento. - Em geral, é o que acontece. E que mais?
- Não bebemos nem öl nem vinho - afirmou Gunnar - embora tenhamos comido um pouco de pão e alguns bocados de carne no espeto. Para além disso, vimos um mercado capaz de fazer com que Jomsburg e Kiev pareçam pocilgas...
- Aí está uma coisa que eu gostaria de ver... - murmurou Harald.
- Na verdade, esta Miklagard deve ser a maior cidade que jamais existiu - acrescentou Orm, entusiástico. - É diferente de todas as outras!
O monarca lançou-lhe um olhar carregado e deu preferência ao relato de Gunnar, um pouco mais plausível. Virou-se novamente para ele e continuou:
- Até eu posso ver que é um povoado muito grande, embora não tenha entrado na cidade. Há muitos guardas nas portas?
- Jarl, há mais gente de todos os tipos do que eu jamais vi num só lugar, e há guardas em todas as portas. São pelo menos oito e não duvido que tenham muitos mais noutros sítios.
- Se assim é, como conseguiram entrar?
- Fizeram-nos pagar para entrarmos na cidade. - Gunnar fez aparecer o disco de cobre que lhe havia sido dado. Harald pegou-lhe examinou-o com atenção.
- Custou dez nomismi - explicou Gunnar.
- Há uma outra coisa que precisas de saber - afirmou Hnefi, de repente. - As moedas de prata que trazemos connosco valem cem no-tnismi e não apenas dez.
O monarca virou-se de Hnefi para Gunnar em busca de uma confirmação.
- É verdade, jarl - declarou Gunnar. - Foi o que nos disseram na porta da cidade. Pergunta ao Cabeça-Rapada, que falou com eles sobre isso.
O rosto de Harald fechou-se como um punho quando a enormidade do roubo que fora praticado contra ele se tornou aparente.
- É verdade? - perguntou, numa voz abafada pela raiva contida.
- Sim, senhor! - respondi, explicando-lhe o que o soldado na porta da cidade e o Prefeito da Lei me tinham dito.
- Vou pregar a cabeça desse ladrão no mastro - resmungou o monarca. - Eu, Harald Berro-de-Touro, faço essa jura!
Todas as ideias a respeito das pilhagens foram imediatamente esquecidas quando a discussão se focou sobre como poderia Harald executar a sua vingança sobre o desonesto Mestre do Porto. Esboçaram rapidamente um plano rudimentar mas eficiente que os Lobos do Mar poderiam executar com toda a facilidade. Para celebrar aquele seu odioso plano, o monarca resolveu partilhar a sua öl e todos beberam a que quiseram. Contudo, não bebi com eles. Encolhi-me à proa, por baixo da cabeça de dragão e fiquei a observar os bárbaros que espevitavam a sua coragem com liberais goles de cerveja.
O porto de Hormisdas começou a ganhar vida pouco depois do nascer do Sol e um dos Lobos do Mar trepou ao alto do mastro para poder avistar um navio qualquer que estivesse a entrar no porto. Contudo, como não havia navios no horizonte, voltou a descer e aguardámos. Passado algum tempo, Harald mandou-o subir ao mastro pela segunda vez e a busca repetiu-se, mas o resultado foi o mesmo.
Depois da terceira tentativa, Harald declarou:
- Não podemos esperar mais!
O monarca ordenou que o ferro fosse içado. A seguir, servindo-se dos remos, os dinamarqueses dirigiram o navio para uma das embarcações mais próximas, que Harald já assinalara. O navio foi manobrado de um modo muito furtivo, para dar a sensação de que se encontrava à deriva, e procederam desse modo a fim de não levantarem suspeitas uma vez que o que pretendiam fazer era perverso e cruel.
Aproximaram-se o suficiente da outra embarcação e lançaram-lhe ganchos de ferro para o segurarem, após o que seis Lobos do Mar saltaram para bordo do navio capturado e incendiaram-lhe as velas servindo-se de archotes acesos especialmente para aquela ocasião.
Felizmente, havia muito pouca gente a bordo do outro navio, uma vez que o mercador, o piloto e a maior parte da tripulação tinham ido para a cidade no dia anterior para comerciarem os seus produtos. Contudo, as chamas e o fumo acordaram os restantes tripulantes. Como o seu número era muito reduzido, os estrangeiros viram que não tinham hipóteses de resistir e nem sequer tentaram fazê-lo. Limitaram-se a sentar-se no convés, entregando-se às mãos do destino.
O facto agradou a Harald, que não estava interessado em perder nenhum homem. A vela incendiada soltou um fumo negro, o que deixou o monarca ainda mais satisfeito.
- Heya! - gritou. - Vejam! Aí vêm eles! Soltem os cabos!
Tal como o monarca esperara, os guardas do porto, alertados pelo fogo, apressavam-se em direcção à perturbação e chegaram a tempo de ver os Lobos do Mar a regressarem ao seu navio e a afastarem-se do outro. Vendo que os guardas do porto se aproximavam para os ajudar, os tripulantes da embarcação em chamas puseram-se de pé num salto e começaram a gritar, pedindo ao barco dos guardas que impedisse a fuga dos bárbaros.
Harald fingiu que tentava virar o seu navio, como que para fugir, mas foi facilmente apanhado pela embarcação dos guardas, que gritavam para os Lobos do Mar e agitavam as lanças.
- Cabeça-Rapada! - gritou Harald. - Que estão eles a dizer?
- Dizem que temos de parar imediatamente ou enfrentaremos a frota de guerra do Imperador.
O monarca dos Lobos do Mar sorriu ao ouvir aquilo e disse:
- Então, suponho que temos de parar. - Virou-se para Thorkel, ordenou-lhe que recolhesse os remos e gritou numa voz trovejante: - Preparem-se para sermos abordados! - Para mim, acrescentou: - Diz a esse nosso amigo ladrão que vamos parar.
Ocupei o meu lugar junto à amurada e debrucei-me para o Mestre do Porto, que se encontrava na proa da sua embarcação:
- Vamos parar! -- disse-lhe. - Harald, rei dos Dinamarqueses, autoriza que o seu navio seja abordado.
- Então, afastem-se! - ordenou o quaestor, zangado. Fez um sinal com a mão, ordenando aos seus homens que escalassem o flanco do nosso navio. O Mestre do Porto trazia consigo oito guardas armados com lanças e com espadas curtas, de lâmina larga.
Quando já se encontravam todos no convés, o Mestre do Porto avançou com um ar arrogante para onde Harald o aguardava, e exigiu saber por que motivo atacara a outra embarcação. Depois de lhe ter traduzido a pergunta, o monarca respondeu com placidez:
- Porque a visão dele me desagradava.
- E não sabem que é uma ofensa molestar um navio no porto do Imperador? - inquiriu o Mestre do Porto.
Transmiti as palavras do homem e Harald replicou:
- E roubar a prata de um homem não será também uma ofensa no porto do Imperador?
- Claro que é! - replicou o guarda. - Afirmam que estavam a tentar roubar-vos a vossa prata?
- Nay! - confessou Harald. - Os ladrões não são eles. Foste tu quem roubou a minha prata.
Ainda aquelas palavras mal lhe tinham saído da boca quando todo o grupo de bárbaros se ergueu com um grito terrível e se lançou contra os guardas. A luta foi breve e os Lobos do Mar conseguiram desarmar os seus oponentes - em inferioridade numérica -, sem grande esforço e sem derramamento de sangue.
Harald agarrou o quaestor, atirou o ladrão para o convés e colocou-lhe um pé em cima do pescoço. Os guardas esbracejaram ao verem o seu chefe a ser tratado daquele modo... mas já estavam desarmados e bem seguros pelas mãos de ferro dos Lobos do Mar inflamados por uma ira justa, pelo que nada puderam fazer.
O quaestor gritou e agitou-se, exigindo ser libertado. O jarl Harald, com o pé bem posicionado e pronto para lhe esmagar a garganta, ignorou a agitação e pediu que lhe entregassem a espada. A lâmina apareceu e foi deposta na sua mão estendida.
- O que é isto? - grasnou o quaestor, estendido no convés do navio. - Mas que...? - Virando-se para mim, o cativo guinchou miseravelmente: - Diz-lhe... agh... que tem de me libertar imediatamente... a ira do Imperador! Diz-lhe!
Harald fez sinal de que deveria transmitir-lhe as palavras do prisioneiro. Convenci o monarca a aliviar a garganta do homem apenas o suficiente para que o infeliz pudesse falar e repeti a ameaça do quaestor. Harald riu-se.
- Óptimo! Já não mato um ladrão há muito tempo! Vou gostar de dizer ao seu amo por que motivo o fiz. - Harald calou-se e levantou a espada.
- Esperem! - gritou o cativo, a contorcer-se.
- Diz-lhe para estar quieto - ordenou-me Harald - ou não conseguirei um golpe limpo...
- O quê? O quê? - ofegou o quaestor.
- Está a dizer para ficares quieto ou o corte não será limpo...
- Diz-lhe que foi um engano! - gritou o Mestre do Porto. - Diz-lhe que lhe devolverei tudo!
- É demasiado tarde - respondi. - Harald decidiu vingar-se por causa do modo como ontem o enganaste. Já não está interessado no dinheiro. - Então o que quer?
- Quer pregar a tua cabeça no mastro deste navio - respondi - e acredito que o fará.
Harald retirou o pé de cima do homem e pousou o gume da sua afiada espada contra a carne macia. A pele delicada abriu-se, deixando escorrer algumas grandes gotas de sangue que deslizaram pelo pescoço do condenado e caíram sobre o convés.
- O teu amo sabe quem eu sou...? - guinchou o cativo.
- Sabe que foste tu quem o fez passar por tolo em frente dos seus homens e que lhe roubaste a prata - repliquei.
- Estão a cometer um erro! - uivou o Mestre do Porto.
Harald pousou o pé nas costas do homem e levantou a espada acima da cabeça, preparando-se para o golpe final.
- Não! Não! - guinchou o quaestor. - Esperem! Escutem! Sou um homem importante, um homem rico! Podem pedir um resgate!
- Que está ele a dizer agora? - perguntou Harald, semicerrando os olhos enquanto avaliava o sítio em que a lâmina iria cair.
- Afirma que é uma pessoa de alguma importância e que podes prendê-lo em troca de um resgate. - E quem iria pagar? - inquiriu Harald, levantando uma sobrancelha.
Transmiti a pergunta ao cativo, que respondeu:
- O Imperador! Sou um dos homens do Imperador, que pagará pela minha libertação! - Escorriam lágrimas pelo rosto avermelhado e manchado do desgraçado e o cheiro do medo erguia-se do seu corpo como um perfume muito desagradável.
O rei Harald escutou atentamente enquanto eu lhe traduzia as palavras do Mestre do Porto... e resolveu tomar em consideração a nova possibilidade que se lhe apresentava.
- Quanto?
- O nosso rei quer saber quanto pode vir a receber pelo teu resgate... - expliquei, dirigindo-me ao cativo, que já suava tanto que as gotas haviam formado uma poça sob a sua cabeça.
- O dobro do que lhe tirei! - afirmou o homem.
Harald sacudiu a cabeça com firmeza quando lhe comuniquei as palavras do Mestre do Porto.
- Nay!- respondeu, recusando a oportunidade. - Diz a este ignorante que tenho escravos que valem muito mais do que isso. Para além do mais, vou levar toda a prata que conseguir carregar quando saquear a cidade, e vou pregar a sua cabeça no mastro como um aviso a todos os que pensarem em roubar a prata de Harald Berro-de-Touro.
Transmiti a afirmação ao quaestor do Porto de Hormisdas, que balbuciou de raiva e frustração.
- É impossível! Compreendes o que estou a dizer-te? Esta cidade nunca foi pilhada por nenhum bárbaro! Serão todos mortos ainda antes
de conseguirem ultrapassar a porta da cidade! Libertem-me imediatamente e pedirei ao Imperador que seja clemente para convosco!
- Será melhor que peças clemência pelos teus homens... - respondi-lhe. - Se não deres a este dinamarquês uma boa razão para que te poupe a vida... então tu e os teus já estarão mortos antes da frota do Imperador conseguir manobrar um único remo. - Os homens do Mestre do Porto agitaram-se, inquietos, e murmuraram imprecações dirigidas ao seu superior. Contudo, verifiquei que as minhas palavras não o tinham conseguido persuadir e fui forçado a acrescentar: - Acredita no que te digo, porque estou a dizer a verdade. Sou um escravo que, de qualquer modo, irá morrer nesta cidade. A minha vida está nas mãos de Deus e isso basta-me. Porém, tu... ainda tens o poder necessário para te salvares, bem como aos teus homens.
O Mestre do Porto fechou os olhos com força.
- Digo-vos que o Imperador pagará! Conceder-vos-á tudo o que pedirem! Poupem-me!
Expliquei a Harald o que o cativo desesperado acabara de me dizer e acrescentei:
- Pensa bem nisso, jarl... O próprio Imperador a pagar tributo a Harald, rei dos Dinamarqueses! Seria uma maravilha, não é verdade?
Surgiu um sorriso no rosto do rei... e Harald admitiu que sim, que seria uma coisa maravilhosa ver o Imperador a vergar-se na sua frente, com o resgate nas mãos... e essa ideia levou-o a tomar uma decisão imediata.
- Vou fazê-lo!
Tirou o pé de cima do homem, levantou-o à força, libertou-o do cinto e das botas, e arrancou-lhe o anel de um dedo. A seguir pegou no elmo com a crina de cavalo e no bastão com a extremidade de bronze que era o símbolo do seu cargo, e todos aqueles objectos foram embrulhados na capa vermelha do quaestor. Quando o embrulho ficou pronto, o monarca deu ordens para que, se não o vissem regressar antes do pôr do Sol, então os cativos deveriam ter as gargantas cortadas, as cabeças pregadas no mastro e os corpos lançados para as águas do porto. A seguir escolheu doze homens para o acompanharem a terra. Hnefi, Orm e Gunnar, que já haviam desembarcado no dia anterior, bem como eu, como intérprete, éramos os mais importantes do grupo. Virei-me para o quaestor enquanto o monarca tratava dos preparativos.
- É verdade que respondes perante o Imperador?
- É verdade - murmurou, solene.
- Então reza para que o Imperador considere que a tua vida vale a pena ser salva.
Harald exultava com o seu triunfo e estava deliciado com a ideia de forçar a mão ao Imperador. Era uma possibilidade que apelava tanto ao seu sentido de justiça como à vaidade, uma vez que imaginava que apanhar um servidor do Imperador a cometer um roubo lhe daria um certo domínio sobre o grande governante, que se iria sentir obrigado, por uma questão de honra, a redimir a injustiça.
O facto de Harald e dos Lobos do Mar terem chegado a Constantinopla com a única finalidade de roubar tanto o Imperador como o maior número possível dos seus súbditos não passava de um pequeno pormenor que não tinha qualquer influência sobre a mente do bárbaro. De qualquer modo, não havia dúvida que os dinamarqueses possuíam um muito forte sentido de honra, que podia ser peculiar mas que eu já vira amplamente demonstrado. Na verdade, não fazia ideia sobre qual seria o resultado daquela acção mas entendi que não seria inteiramente má se servisse para impedir o derramamento de sangue.
O Rei do Mar ordenou às suas três outras embarcações que se aproximassem e protegessem o navio-dragão no caso de alguém tentar interferir. Mandou buscar homens aos outros navios para vigiarem os reféns e encarregou os Lobos do Mar de se armarem para a batalha e esperarem pelo seu regresso mantendo a mais atenta das vigilâncias.
- Vou cobrar uma dívida de honra... - proclamou Harald quando já se preparava para a partida - e serei o primeiro rei dinamarquês a receber um tributo do Imperador de Miklagard!
Na realidade, o homem estava bêbado de arrogância.
O monarca, depois de envergar os mais belos trajes que possuía, ocupou o seu lugar no barco do quaestor e ordenou aos homens que remassem. Os Lobos do Mar não tiveram qualquer dificuldade para manobrar a pequena embarcação no porto a abarrotar de navios, e em breve desembarcávamos nos degraus por baixo da Porta Magnaura e tratávamos de a atravessar. A nossa missão quase fracassou ainda antes de pormos os pés na cidade. Logo que avistou os bárbaros, o Prefeito da Lei saltou da sua mesa e exigiu ver os nossos disci. Harald, a caminho de cobrar um resgate, não estava com disposição para pagar o privilégio de entrar na cidade e recusou-se a fazê-lo.
Vendo que o monarca continuava a avançar, o Prefeito chamou os guardas, gritando:
- Detenham-nos! Detenham-nos!
Só se calou quando os guardas apareceram com as armas em punho e bloquearam a nossa passagem com as lanças. Harald estava disposto a lutar, mas avistei o jovem guarda que nos ajudara no dia anterior e implorei ao rei que se contivesse enquanto tentava explicar o assunto ao oficial.
- Ah, és tu, outra vez! - exclamou o guarda. - Pensei que o dia de ontem te tivesse ensinado melhores maneiras...
- Desta vez a coisa é mais grave... - respondi. A seguir expliquei-lhe, o mais depressa que fui capaz, que o quaestor do porto e os seus homens tinham sido feitos reféns.
- Podes prová-lo? - inquiriu. Fiz sinal a Gunnar para avançar com o fardo. Desamarrou-o sob os olhos vigilantes de Harald, que permitiu que o guarda espreitasse o seu conteúdo. Ao ver os pertences do Mestre do Porto, o guarda comentou: - Bom, então é verdade que o apanharam! Queres explicar-me por que o fizeram?
- Esse é um assunto que só diz respeito ao rei - retorqui. Agora que já conhecia um pouco os costumes da cidade, pensei que a melhor maneira de obtermos a atenção do Imperador era dizendo o menos possível a todos os outros, uma vez que os homens são curiosos por natureza e gostam de ver os mistérios resolvidos.
- Aeddan! - trovejou Harald que, conforme pude observar, começava a perder a paciência com as restrições triviais que a cidade erguia no seu caminho. Verguei-me perante o monarca e pedi-lhe que me concedesse uma oportunidade para negociar uma passagem em segurança até ao palácio do Imperador. Em troca, implorei-lhe apenas o luxo de alguns momentos. O monarca resmungou a sua aprovação àquele plano, pelo que voltei a fazer uma vénia ao meu bárbaro amo e virei-me novamente para o guarda.
- O nosso rei está a ficar impaciente. Pretende cobrar um resgate em troca do quaestor e dos seus homens e é por isso que quer ver o Imperador imediatamente.
- Nunca o conseguirão! - informou-me o guarda. - Os guardas do palácio nunca vos deixarão entrar no recinto... e matar-vos-ão se tentarem abrir caminho à força.
- Então, por favor, ajuda-nos... - pedi.
- Eu?! - protestou o jovem oficial. - O assunto não me diz respeito!
- Se não nos ajudares, o quaestor e oito dos seus homens morrerão antes que o Sol se ponha. Harald Berro-de-Touro decretou que as cabeças dos cativos servirão para adornar o mastro do seu navio se não regressar a tempo com o resgate, e tem quatro navios cheios de guerreiros prontos para executar esse acto vil. Mesmo que os vossos soldados tentem evitá-lo, será derramado muito sangue de ambos os lados e o Mestre do Porto não se salvará.
- Ah, então é essa a situação... - murmurou o guarda, olhando com cuidado para os bárbaros e avaliando a questão apenas por instantes. - O quaestor Antonius é um pedante que se considera um patriarca - acabou por afirmar. - Estou disposto a partir do princípio de que têm bons motivos para o manterem prisioneiro. De qualquer modo, devo informá-los que o homem possui uma certa medida de influência junto das autoridades. Se a razão não estiver do vosso lado, então acabarão acorrentados... ou pior. - Antes de poder protestar, garantindo que tínhamos boas razões para o nosso acto precipitado, o guarda levantou a mão. - Nem mais uma palavra! Tal como disseste, trata-se de um assunto que só diz respeito ao Imperador. Contudo dou-te um conselho de amigo: se querem ganhar os favores do Imperador, devem levar-lhe uma garantia de segurança.
- Não compreendo - confessei. - O que quer isso dizer?
- É um penhor - respondeu. - Um sinal de boa fé para indicar a elevada posição do teu amo e para transmitir a importância da vossa petição.
- E para que precisaríamos de um tal penhor? - inquiri. - O anel, a vara e o elmo do quaestor parecem-me prova suficiente da importância do assunto. Por seu lado, Harald é tal como o vês, um verdadeiro rei. A sua posição não levanta dúvidas.
- O que dizes é verdade, claro... - admitiu o guarda - mas o quaestor Antonius é bem conhecido e respeitado na corte... e vocês não o são. Se conseguirem chegar até ao Imperador, e aviso-vos que isso é muito improvável, para pedirem um resgate pelo mestre do Porto de Sua Majestade, então a vossa causa terá muito mais força se provarem que são homens de riqueza e poder, de acordo com os costumes desta cidade. Para o conseguirem, o melhor caminho é o tal penhor...
- Mas... se temos o Mestre do Porto e os seus homens como reféns...
- Sim, e quanto menos falarem nisso, melhor será... - aconselhou o guarda - se na verdade quiserem ser recebidos pelo Imperador.
Comecei a compreender.
- Nesse caso, quanto mais valioso for o objecto dado como penhor, maior será a credibilidade da nossa palavra...
- Exactamente - concordou o jovem guarda.
- E se o Imperador não redimir o seu homem? - perguntei.
- Nesse caso... - concluiu o guarda - que Deus vos proteja... e também ao Mestre do Porto.
Senti-me intimidado, porque a ideia de extrair um resgate ao Imperador estava a transformar-se num verdadeiro desafio. Como que para dar ainda mais força ao seu ponto de vista, o guarda acrescentou:
- Para além disso, meu amigo, não abusem da paciência do Imperador. A prisão é o menor dos tormentos à espera dos que fazem falsas acusações. - Fez uma pausa e olhou-me com uma expressão duvidosa. - É um risco, sim... Porém, de qualquer modo, é assim que os assuntos desta natureza são conduzidos em Constantinopla. Pensei que precisavas de saber...
Fitei o guarda, olhos nos olhos.
- Por que me estás a dizer isto? Por que motivo nos estás a ajudar, contra os teus próprios compatriotas?
O guarda baixou a voz mas aguentou o meu olhar com toda a firmeza.
- Digamos que, ao contrário do que acontece com muita gente desta cidade, preocupo-me com coisas como a honestidade e a justiça.
- Meu amigo - perguntei-lhe - como te chamas?
- Chamo-me Justin e sou o Chefe dos scholarii da Porta Magnaura. Se quiserem dar andamento ao assunto... posso levá-los até à corte do Imperador mas é duvidoso que vos deixem entrar.
- Nesse caso, ficará tudo nas mãos de Deus... - disse-lhe.
- Amém!
Dirigi-me a Harald, que já fumegava por ser obrigado a esperar enquanto homens menos importantes do que ele davam à língua.
- Então? - inquiriu. - Fala! Que foi que ele disse?
- O homem é o chefe dos guardas e diz que nos conduzirá à corte do Imperador. Contudo, avisou-nos: as coisas irão correr-nos mal se não levarmos um penhor que ateste a vossa posição e a importância do caso. Algo que prove que sois de confiança.
- Provas! Apresentar-lhe-ei a cabeça do ladrão como prova! - declarou o monarca.
- Nay, jarl Harald - disse-lhe. - Isso de nada servirá. Expliquei-lhe, o melhor que pude, a estratégia delineada por Justin, incluindo o que poderia acontecer se o Imperador ficasse desagradado com o nosso pedido de resgate. Numa inspiração súbita, comentei que talvez o Imperador não estivesse disposto a redimir o seu servidor mas pudesse ser persuadido a compensar os prejuízos causados pelo roubo e a devolver a prata.
A testa do monarca franziu-se em pensamentos. Embaraçado pelas estranhas formalidades da cidade, pareceu disposto a considerar a hipótese de uma simples restituição.
- Penso... - sugeri - que nada temos a recear, uma vez que estamos seguros da veracidade do nosso protesto.
O monarca hesitou. O que começara por ser a cobrança de uma simples dívida de honra estava rapidamente a transformar-se numa questão legal que já não conseguia entender.
- Jarl Harald... - interveio Gunnar - será que preferes que um qualquer outro rei dos Dinamarqueses seja o primeiro a conseguir receber um tributo das mãos do Imperador? Seria bom que pensasses nisso... - Fez uma pausa, dando tempo ao monarca para sentir a presa a escapar-se-lhe, e acrescentou: - Procede como o Aeddan te está a dizer... e a tua história será cantada em todos os salões da Dinamarca. Ganharás mais renome do que Eric Calções-Peludos. Será uma vitória digna de toda a prata de Miklagard!
- Vou fazê-lo! - gritou Harald, numa decisão imediata. Virou-se para Hnefi e disse: - Leva quatro homens contigo e vai buscar o cofre do tesouro ao navio.
Naquele momento, se por acaso estivesse a pensar com mais clareza, teria compreendido o significado de uma tal ordem. Infelizmente, estava tão preocupado com a manobra do nosso navio de preocupações através dos escolhos que tínhamos de enfrentar que o significado das palavras de Harald me escapou.
Informei Justin que o monarca ia enviar homens de volta ao navio para trazerem o necessário penhor, e o guarda respondeu:
- Então, venham comigo. Vou deixar aqui alguns dos meus homens para os escoltarem quando regressarem. O palácio não é longe e esperaremos por eles quando lá chegarmos.
O Chefe da Porta Magnaura nomeou vários dos seus soldados para escoltarem os homens de Harald até ao navio e durante todo o percurso de regresso ao palácio do Imperador. A seguir fez-nos sinal para que o seguíssemos e o nosso estranho grupo foi autorizado a atravessar a porta
da cidade sem que um só nomismi tivesse mudado de mãos. Justin e eu marchávamos lado a lado, na frente do grupo, conduzindo uma procissão de bárbaros simultaneamente orgulhosos e espantados, acompanhados por uma escolta de soldados que protegia a retaguarda. Tal como Justin dissera, o palácio não se encontrava a grande distância da porta por onde havíamos entrado na cidade, mas ficava na direcção oposta à que tínhamos seguido no dia anterior pelo que não reconheci nada do que vi.
Harald, com um ar muito régio mas algo atordoado, marchava pelas ruas de Constantinopla como um conquistador, embora estivesse muito impressionado com tudo o que via. Virava a cabeça para um lado e para o outro mas mantinha a boca firmemente fechada, ao contrário dos restantes Lobos do Mar, que soltavam altas exclamações a cada nova maravilha que surgia perante os seus olhos. As grandes e belas casas provocavam muitas especulações sobre as riquezas que lá poderiam estar dentro, e o primeiro relance do anfiteatro originou exclamações de maravilha e delícia... para grande divertimento dos cidadãos de Constantinopla, muitos dos quais se detiveram para verem passar o nosso curioso grupo.
Contudo, creio que não se teriam sentido tão divertidos se compreendessem o que os bárbaros estavam a dizer. Os Lobos do Mar espantavam-se perante a visão de tantas riquezas e discutiam acaloradamente quais os melhores métodos para as conseguirem. Interrogavam-se sobre se seria melhor matar imediatamente os ocupantes das casas para se apoderarem dos seus valores, ou se seria preferível matar apenas os que resistissem. Também se interrogavam sobre se deviam pegar fogo a casas isoladas ou incendiar toda a cidade... Fiquei muito satisfeito com o facto dos espectadores, que tanto se divertiam com o espectáculo dado pelos Lobos do Mar, não perceberem nada do que eles estavam a dizer...
Chegámos à vista das muralhas do palácio e as conversas passaram a ser sobre as melhores estratégias para saquear um local tão imponente como aquele. A dificuldade, do ponto de vista dos bárbaros, estava no facto do palácio não se apresentar como um único edifício ou habitação mas sim como um conjunto de construções dispersas no interior de um complexo muralhado, ou seja, como uma verdadeira cidade dentro da cidade. A opinião prevalecente era a de que o palácio deveria ser saqueado como qualquer outra habitação, provocando incêndios e abatendo os ocupantes à medida que fossem fugindo das chamas para depois poderem pilhar à vontade... desde que os soldados não interviessem. Os Lobos do Mar não faziam ideia sobre quantos soldados teria o Imperador sob o seu comando mas calculavam que, a julgar pelo aspecto dos guardas da porta da cidade, a sua maior força e estatura seriam mais do que suficientes para enfrentarem um número qualquer de defensores, mais pequenos e com um equipamento de combate mais leve. A aparência algo benigna da nossa pequena escolta de guardas com capas vermelhas também não contribuía para moderar a descontrolada avareza dos bárbaros.
Curiosamente, à medida que nos aproximávamos do palácio, as casas à nossa volta exibiam um tipo de construção mais tosco e desigual. As grandes villas dos ricos estavam a ser substituídas por habitações de menor porte e desenho mais irregular, com cada uma delas mais rudimentar do que a anterior, até não serem mais do que barracas feitas com bocados de madeira encostados a uma parede e cobertos com ramos e trapos. Toda a extensão da muralha do palácio, nos dois sentidos, servia de apoio a essas patéticas estruturas, repletas de um verdadeiro enxame de sujos mendigos.
De repente, ainda antes de percebermos muito bem o que estava a acontecer, vimo-nos rodeados por uma massa agitada de pessoas sujas e esfarrapadas que pediam esmola. Alguns desses desgraçados agitavam membros ressequidos ou cotos na frente das nossas caras, enquanto outros expunham feridas gangrenadas de onde escorria pus. Os bárbaros, embora também fossem incultos, ficaram assombrados com a pobreza daquela multidão malcheirosa e lançavam golpes irados sempre que algum dos pedintes se aproximava demasiado. Os guardas, já acostumados ao mau cheiro e ao barulho, passaram para a frente e abriram caminho por entre a multidão com os escudos e com os cabos das lanças. Por fim, acabámos por conseguir chegar ao portão do palácio e fomos recebidos por um grupo de guardas de capas azuis que - depois de darem uma única a olhadela aos bárbaros -, puxaram pelas armas e nos enfrentaram com as pontas das lanças.
- Alto! - gritou o chefe do grupo. - Alto ou morrem!
Os dinamarqueses, vendo as lanças apontadas para eles, lançaram-se para a frente prontos para a batalha, o que levou a que a nossa escolta de guardas se fosse juntar aos seus compatriotas. Justin ergueu a voz por cima do entrechocar dos escudos e gritou:
- Scholare Titus! Deixa-nos passar! Estes homens estão comigo e vou escoltá-los para uma audiência com o Imperador!
O guarda chamado Titus fez sinal aos seus homens para deterem o ataque e pediu:
- Explica-me esta procissão!
- Bom, nós vamos... numa espécie de missão diplomática. É uma questão da maior importância!
- Não posso autorizar! - retorquiu Titus, examinando os bárbaros.
- Escuta-me... - insistiu Justin, aproximando-se do outro. - Há vidas em perigo e foi o quaestor do Porto de Hormisdas quem nos enviou - declarou, mentindo. - Temos de passar imediatamente. - Fez-me sinal para avançar com o fardo, que retirei das mãos de Gunnar. Justin desamarrou a capa e abriu-a para o seu camarada a poder inspeccionar. - Espero resolver este incidente sem derramamento de sangue.
Titus remexeu nos objectos contidos no fardo.
- Estão armados! - retorquiu, com firmeza. - Não posso permitir a entrada a bárbaros armados. É a minha cabeça que está em jogo... e também a considero da maior importância!
Justin virou-se para mim e declarou:
- O vosso rei tem de concordar em entregar as armas.
Fiz sinal a Harald para se nos juntar e expliquei-lhe rapidamente as condições para a entrada no palácio. Fez uma careta e abanou a cabeça com uma expressão perigosa, respondendo:
- Nay! Não entrarei desarmado! Prefiro queimar o palácio. Diz-lhe isso.
Virei-me para Justin e disse-lhe:
- Lorde Harald pergunta quais as garantias de que não será atacado se ele e os seus entregarem as armas.
Justin, que vira o movimento do queixo do rei, dirigiu-se ao outro guarda. Conversaram um com o outro por instantes após o que Justin me mandou aproximar.
- O meu amigo Titus pede que digas ao teu rei que, no interior do recinto do palácio, a força bruta foi substituída pelas influências e pelas negociações. Não somos bárbaros. Se o teu rei quer conversar com o Imperador, então terá de deixar as armas e avançar em paz.
Transmiti a frase a Harald que analisou a situação por instantes e acabou por perguntar:
- Será uma armadilha?
- Não me parece, jarl Harald - declarei. - De qualquer modo, continuas a ter o quaestor como refém. A vida dele e dos seus homens permanecem nas tuas mãos quer estejas ou não a empunhar uma espada. Na verdade, se queres cobrar a tua dívida de honra, penso que terás de fazer a vontade a estes guardas.
- Assim farei - replicou o monarca, tomando uma decisão rápida.
- Muito bem - declarou Titus quando lhe transmiti o assentimento de Harald. - Diz-lhe para entregarem as armas.
O monarca ordenou aos dinamarqueses que entregassem os machados espadas e maços-de-guerra aos soldados, para serem guardados, o que fizeram no meio de muitos resmungos e desconfianças. Contudo, reparei que as pequenas facas que os Lobos do Mar usavam junto ao corpo - debaixo dos cintos ou nas botas - não se encontravam entre as armas entregues aos guardas. A seguir, Justin deu instruções a Titus a respeito da prevista chegada dos bárbaros com o penhor. Resolvida essa questão, o scho-larae Titus fez sinal aos porteiros, que se desviaram para o lado e abriram o enorme portão, permitindo-nos passar rapidamente, deixando os pedintes e o ruído para trás das costas.
Uma vez no interior das muralhas, descobrimo-nos no que parecia ser num enorme jardim na extremidade de uma comprida alameda flanqueada por árvores. Altas muralhas dividiam o recinto do palácio em secções mais pequenas pelo que, para onde quer que nos virássemos, os nossos olhos deparavam com as vastidões vazias de uma ou outra muralha. Aqui e acolá, por cima delas, viam-se os ramos de árvores e os topos arredondados de cúpulas, muitas delas encimadas por cruzes.
O solo erguia-se suavemente, como se o palácio do Imperador se encontrasse situado no alto de uma colina com vista para o Mar de Mármara, cujo tom azul reluzia ao longe, para sul. Conduzidos por Justin, o nosso variado grupo, que agora era composto por oito bárbaros, nove guardas, Justin, Titus e eu próprio, encaminhou-se na direcção de outra muralha em que se via um portão suficientemente grande para deixar passar, lado a lado, quatro homens a cavalo. Para além disso, por cima daquele enorme portão fora construída toda uma casa onde viviam os guardas e os porteiros.
Passámos esse portão e entrámos noutro jardim com mais alamedas de mármore flanqueadas por árvores. Havia pequenos amontoados de construções espalhadas ao acaso naquele complexo interior, que incluíam cozinhas, armazéns, habitações de vários tipos e várias grandes capelas. Os edifícios eram quase todos de pedra, de um belo mármore colorido vindo das pedreiras de todo o Império, e na sua maioria tinham janelas cobertas com vidros, mas não só, porque a maior parte também ostentava azulejos coloridos em azul e verde colados à zonas superiores, pelo que a inclinação do Sol fazia com que os topos dessas habitações brilhassem como jóias.
Avistei seis belos cavalos negros a pastarem nas ervas, soltos e sem qualquer vigilância. Quando fiz um comentário a esse respeito, Justin limitou-se a responder que o Imperador, um antigo moço de estábulo, gostava dos seus cavalos.
Não há dúvida de que o próprio Céu tocou neste lugar com a sua glória, pensei. A magnificência daquele sítio causava inveja a todo o mundo e quase não queria acreditar que caminhava nos seus jardins.
Dentro do recinto existiam nada menos do que quatro palácios e três capelas adicionais. Enquanto caminhávamos, Justin foi-me explicando o que eram.
- Aquele é o Octógono - disse, apontando uma das estruturas. - São os aposentos privados do Imperador. Além... - declarou, referindo-se a outro imponente palácio - é o Panteão, que é utilizado pela Imperatriz e pelas mulheres da corte. Ali está o Palácio Daphne e ao lado encontra-se a Igreja de Santo Estêvão.
- E aquele além, o que é? - perguntei, apontando um grande edifício de pedra com uma tripla cúpula de telhas vermelhas que se destacavam por cima das copas das árvores.
''- É o Palácio Triconchus - replicou o guarda. - Contém a nova sala do trono, construída por Teófilo. Contudo, o Imperador prefere a velha sala do trono, instalada no salão do Chrysotriclinium. - Indicou mais um edifício enorme, construído em pedra amarela. - É para lá que vamos.
- E o que é aquilo, por trás daquela alta muralha? - interroguei-me, apontando para lá do salão do trono.
- Aquilo, meu amigo... - respondeu Justin com um sorriso - é o Hipódromo. Se sobreviverem a este dia, então talvez possam assistir às corridas de cavalos que ali têm lugar. O Imperador é um grande apreciador de cavalos, como já disse, e também gosta de corridas.
O jarl Harald, desconfiado da minha conversa com o guarda, grunhiu para mim e exigiu que traduzisse ou que ficasse calado. Disse-lhe que Justin me estava a informar a respeito do apreço que o Imperador tinha pelas corridas de cavalos. Harald fez uma careta de desprezo e afirmou:
- Os cavalos são dispendiosos e comem demasiado.
O conjunto de belos edifícios e de jardins era espantoso. O recinto interior, por si só, era muitas vezes maior do que toda a Abadia de Kells. Em breve perdi todo o sentido de orientação ao ver-me confrontado com tantas muralhas e edifícios. Continuámos a andar, passando por portões e entradas que pareciam que nunca mais acabavam, e comecei a tomar consciência de um pormenor que até ali me escapara: o Grande Palácio, por baixo do lustro aparente, entrara em decadência.
Apesar de todas as suas riquezas, o recinto tinha um ar de fadiga. Era como se os edifícios estivessem velhos, cansados e tristes por baixo da patina da opulência. O brilhante fogo do seu esplendor inicial apagara-se e estava reduzido a um leve clarão. O caminho sob os nossos pés era de mármore branco mas as dispendiosas pedras encontravam-se descoloridas e rachadas, com tufos de ervas a crescerem por entre as fendas. As cruzes de bronze por cima das capelas tinham um tom verde-baço, e não dourado, e faltavam muitos azulejos às fachadas coloridas. Para além disso, também havia várias árvores mortas ao longo do caminho.
Aqui e acolá, como que para contrariar a aparência decrépita, os pedreiros atarefavam-se no alto de andaimes de madeira, restaurando secções danificadas de alguns edifícios e renovando as fachadas e tectos de outros. Na verdade, quando se prestava atenção, o principal som que se ouvia era o dos martelos a baterem nos cinzéis.
O caminho de mármore terminava num grande edifício quadrado de pedra amarela-clara, que suportava uma enorme cúpula flanqueada por duas outras mais pequenas. Havia duas árvores plantadas de cada lado da entrada em arco, árvores essas que, sob a fraca luz do Outono, projectavam pálidas sombras azuis sobre um adro pavimentado. Directamente em frente da porta via-se uma fonte de pedra com a forma de uma taça, e foi aí que nos detivemos.
- Diz ao vosso rei que pode escolher dois homens para virem connosco - disse Titus, esclarecendo que os restantes deveriam esperar à entrada, com os guardas. - Um dos meus guardas irá avisar-nos quando os outros chegarem com o penhor.
Transmiti estas instruções ao rei, que escolheu Hnefi e Gunnar para o acompanharem e deu instruções aos outros para atacarem e incendiarem o palácio se ouvissem o seu grito de guerra. Os Lobos do Mar juraram fazê-lo e deitaram-se nas ervas, à espera. Justin olhou para mim e perguntou:
- Têm a certeza de que querem continuar? Se o fizerem, podem ter muito a perder...
. Lancei uma olhadela para Harald, que dominara rapidamente todo o seu espanto. Não seria preciso muito para que começasse novamente a calcular, em sangue, o valor da ofensa que lhe fora feita.
- Também podemos ter muito a ganhar... - respondi. - Por isso mesmo, continuaremos... e veremos onde o caminho nos irá levar...
- Olha, vai levar-vos para ali... - replicou, indicando a maciça porta central por baixo dos altos arcos de pedra. - É por trás destas portas que bate o coração do Império.
Titus avançou e bateu na porta com a sua vara de bronze. Um instante depois entreabriu-se uma pequena porta dentro da porta grande e vimos um porteiro a espreitar.
- Sou o scholarae Titus, Chefe da Guarda da Porta Bucoleon, e trago emissários para o Imperador.
O porteiro olhou para os bárbaros, encolheu os ombros e abriu a porta. Titus fez-nos sinal para o seguirmos e fomos admitidos num pátio pavimentado com os quatro lados rodeados por altas muralhas. Tinha frondosas vinhas a crescerem pelas paredes mas as suas folhas já haviam ganho cor e começavam a cair. A brisa remoinhava no pátio, fazendo estralejar as folhas contra as pedras do pavimento, e esse som dava-nos a sensação de que nos encontrávamos num lugar desolado e vazio.
O porteiro fechou a porta por trás das nossas costas e conduziu-nos para uma outra, numa das muralhas. Também era de madeira mas estava fortemente reforçada por espessas faixas de ferro da largura da mão de um homem, cravadas com grandes pregos de bronze. Os guardas com capas azuis e lanças com lâminas longas que se encontravam de cada lado dessa porta miraram-nos com uma curiosidade aborrecida. O porteiro agarrou num anel de ferro e empurrou um dos grandes painéis, abrindo-o. Chegou-se para o lado e fez-nos sinal para avançarmos.
Agora que já cumprira o que prometera, Titus deixou-nos entregues à nossa sorte.
- Vou voltar para o portão e enviar-vos-ei o penhor assim que chegar - disse, dirigindo-se a Justin, para logo se afastar.
A sala em que entrámos era imensa. A luz entrava por quatro janelas circulares e iluminava quatro grandes quadros, um de São Pedro, um de São Paulo e dois outros que, a julgar pelos trajes púrpura, eram de personagens reais. Representavam um homem e uma mulher e pensei que deveria tratar-se de um imperador e de uma imperatriz, embora nem sequer imaginasse quem poderiam ter sido. As paredes tinham um tom vermelho-claro e o pavimento era de mármore branco.
A sala estava nua de mobiliário, excepto no que se referia a uns quantos bancos baixos dispostos ao longo das paredes norte e sul, mas não se encontrava vazia porque havia ali um bom número de homens que envergavam os mais variados trajes. Alguns conversavam baixinho, entre si, enquanto os outros se limitavam a olhar. Viram-nos entrar e lançaram-nos miradas aguçadas e pouco convidativas. Entre eles viam-se homens com o aspecto lívido e desesperado das pessoas que passaram longos anos na prisão. Contudo, outros pareciam astutos e calculistas, como se estivessem a avaliar o nosso valor potencial. Todavia, a visão de três bárbaros e de um monge esfarrapado pelas viagens, com um guarda a reboque, não os impressionou e voltaram rapidamente a prestar atenção aos seus próprios assuntos.
A sala, não obstante as dimensões, era abafada, com uma atmosfera pesada, bafienta e ligeiramente ácida. Pensei que, se a ambição tivesse cheiro... então era isso o que eu estava a cheirar naquele momento.
No centro da antecâmara erguia-se um par de grandes portas de bronze com o dobro da altura de um homem e cobertas com imagens de cavaleiros a perseguirem a caça. No meio de cada uma dessas portas havia um enorme anel de bronze, por baixo do qual se encontrava um homem empunhando um machado-de-guerra de dois gumes com um comprido cabo. Tinham crinas de cavalo vermelhas presas aos cabos dos machados, transportavam pequenos escudos redondos aos ombros e usavam túnicas vermelhas, sem mangas, seguras com cintos negros. Usavam os cabelos rapados, excepto no que se referia a uma única madeixa que lhes caía para as têmporas. O aspecto que apresentavam ao mundo era na verdade feroz, e todo os que abriam a boca dentro daquela sala ficavam sujeitos ao seu impiedoso escrutínio.
Reparando no meu olhar, Justin disse:
- Aqueles são os farghanese, que fazem parte da guarda pessoal do Imperador.
Acabara de me dar aquela explicação quando fomos abordados por um funcionário que segurava numa placa de cera e num estilete. Olhou para mim com um ar desdenhoso e observou os bárbaros antes de se virar para o Chefe da Guarda.
- Quem são estes e o que estão aqui a fazer? - perguntou.
- Este homem é rei do seu povo e veio em busca de uma audiência com o Imperador.
- Hoje já não haverá mais audiências com o Imperador - replicou a pomposa personagem.
- Com todo o respeito, prefeito, ocorreram alguns problemas no porto...
- E são problemas... - fungou o prefeito - que requerem a atenção do Imperador? Pensei que esses assuntos eram da responsabilidade da guarda do Imperador.
- Estes homens tomaram reféns, nas pessoas do quaestor do Porto de Hormisdas e do seu pessoal - replicou Justin. - Qualquer intervenção por parte da guarda resultará na morte de todos os envolvidos. Como sou apenas um scholarae, não tenho autoridade para pôr a vida do quaestor em perigo. Contudo, se desejardes ser vós a tomar essa decisão, vergar-me-ei perante a vossa superioridade.
O funcionário, que se preparava para escrever qualquer coisa na placa de cera, levantou a cabeça e olhou para Justin. A seguir virou-se para os bárbaros, pesou os prós e os contras e tomou uma decisão.
- Guardas! - gritou.
Os dois farghaneses ouviram o grito do prefeito e avançaram rapidamente. Harald rugiu uma ordem, os Lobos do Mar puxaram pelas facas e prepararam-se para enfrentar o ataque. Os cortesãos que se encontravam mais próximos levantaram as mãos e fugiram para todos os lados no meio de uma grande agitação.
- Parem! - ordenou Justin. Agarrou-me por um braço e gritou: - Fá-los parar! Diz-lhes que é um engano! - A seguir virou-se para o prefeito: - Queres que nos matem a todos? Manda-os parar!
Atirei-me para a frente de Harald e disse-lhe:
- Espere! Espere! É um engano! Mande guardar as vossas lâminas, jarl Harald!
- Avisei-vos que o assunto era sério! - murmurou Justin para o prefeito. - Por amor de Deus, homem, deixe que seja o Imperador a lidar com estes homens!
O prefeito pareceu reconsiderar a sua acção apressada. Pronunciou uma palavra e os farghaneses descontraíram-se, voltaram a assentar os cabos dos machados no chão e o perigo passou.
Sacudindo os trajes com gestos muito agitados, o prefeito olhou em volta como um amo que acabasse de descobrir os servos a discutirem.
- Vou fazer queixa de si, scholarae. O senhor sabe muito bem qual é a conduta apropriada... - declarou, num tom ácido. - Não preciso de lhe recordar que os protocolos oficiais existem precisamente para estas ocasiões. Sugiro que se vá embora daqui imediatamente e que leve os bárbaros consigo.
- Sim, prefeito. E quanto ao quaestor?
O homem baixou os olhos para a placa e comprimiu o estilete contra a cera macia.
- Como já lhe disse, o Imperador não recebe ninguém. Está a preparar uma embaixada a Trebizonda e vai passar os próximos dias na companhia dos seus conselheiros. Todos os assuntos da corte foram suspensos. Por isso, aconselho-o a apresentar as suas preocupações ao magister officiorum...
- Segundo sei, o magister está na Trácia... -- salientou Justin - e não se espera que volte à cidade antes da Missa de Cristo.
- Quanto a isso, nada posso fazer - respondeu o prefeito, manejando o estilete contra a cera com gestos hábeis. - De qualquer modo, é o melhor conselho que lhe posso dar. - Levantou os olhos para mim e para os dinamarqueses e acrescentou: - Isso irá dar-lhes algum tempo para se lavarem e vestirem convenientemente.
Transmiti as palavras do prefeito a Harald, que se limitou a grunhir:
- Não vou esperar - declarou, avançando e retirando uma moeda de ouro do cinto.
Segurando na placa, Harald comprimiu a moeda de ouro contra a cera. O prefeito olhou para o dinheiro e para Harald e passou os seus compridos dedos por cima da moeda. Quando se preparava para fechar os dedos sobre o ouro, Harald segurou-o pelo pulso e apertou-lho com força. O prefeito soltou um grito de surpresa e deixou cair o estilete. Harald apontou calmamente para a entrada.
- Creio que lhe está a dizer que quer ver o Imperador... agora mesmo! - comentou Justin.
Os farghaneses avançaram mais uma vez para defenderem o prefeito mas o homem agitou a mão livre para os afastar.
- Em nome de Cristo, abram as portas! - ordenou-lhes.
Os dois guardas chegaram-se para o lado e puxaram pelos anéis de bronze. As portas abriram-se e Harald largou a mão do funcionário. O prefeito conduziu-nos a uma pequena sala com biombos, o vestibulum, onde veio imediatamente ao nosso encontro um homem com um comprido traje branoo, que empunhava um fino bastão de prata e a que chamavam magister sacrum. O homem, que nos mirou com severidade, era alto, macilento, tinha cabelos grisalhos e um rosto muito marcado e cheio de cicatrizes.
- Qual é o significado desta indecorosa intrusão? - perguntou.
- Houve problemas no Porto de Hormisdas... - respondeu o prefeito - e estes homens foram os responsáveis. O assunto exige a atenção do Imperador.
O magister fez uma careta como se lhe cheirasse a algo muito desagradável.
- Não abrirão a boca até que falem convosco... - entoou, dirigindo-se aos visitantes indesejados - e as vossas respostas deverão ser tão sucintas quanto possível. Quando se dirigirem ao Imperador poderão tratá-lo pelo seu título oficial, basileu, ou por soberano senhor. Qualquer das duas designações é aceitável. Para além disso, os visitantes devem desviar os olhos quando não estiverem a falar com ele. Compreenderam?
Harald olhou para mim, em busca de explicações e transmiti-lhe as regras impostas pelo magister. Para minha surpresa, o monarca exibiu um grande sorriso ao ser informado a respeito das normas do protocolo bizantino. Soltou um "Heya!" verdadeiramente sincero e deu uma palmada nas costas do magister com a sua enorme mão.
Contudo, o cortesão conservou a sua rigorosa dignidade e conduziu-nos para o salão do Imperador sem pronunciar mais uma palavra. Saímos do vestíbulo e entrámos num salão sem igual em todo o mundo. O espaço por baixo do tecto em cúpula era vasto, alto e largo, e estava cheio da luz de dez mil velas. As paredes, pavimentos e colunas eram de um mármore azul-escuro, tão bem polido que as suas superfícies reflectiam a luz como espelhos. Os nossos olhos deparavam com o brilho do ouro por todo o lado. Havia ouro entretecido nos panejamentos e nos mosaicos que cobriam as paredes. Naquela sala, todas as peças de mobiliário e acessórios eram em ouro, desde as árvores-de-velas às arcas, cadeiras, mesas, taças, jarros e urnas. Até o próprio trono era de ouro maciço, o que fazia com que toda a sala fosse banhada pelo brilho meloso do mais precioso dos metais.
Que poderei eu dizer sobre as maravilhas de um tal salão e sobre o seu famoso ocupante? No centro da vasta sala erguia-se um trono de ouro colocado sobre uma plataforma com vários degraus, e que se encontrava coberto por uma espécie de tenda feita com um tecido de ouro. Três degraus - esculpidos em porfirite, segundo me disseram, e polidos até ficarem lisos como o vidro, davam acesso à plataforma, e era no cimo do degrau mais alto que jazia o apoio de pés do Imperador. O trono real propriamente dito, mais sofá do que trono, com duplas costas e suficientemente grande para dois homens se sentarem nele à vontade, situava-se precisamente por baixo da grande cúpula central. Na abside dessa cúpula resplandecia a maior imagem que jamais vi, um mosaico do Cristo Ressuscitado, ardente de glória, tendo por baixo dos pés as palavras "Rei dos Reis" escrita em grego.
Em volta do trono havia uma verdadeira multidão de pessoas dispostas em filas compactas. Conclui que deveriam ser cortesãos de vários tipos, uma vez que quase todos usavam trajes verdes, ou brancos, ou negros, com a excepção dos farghaneses, que se encontravam mais perto do trono e que, tal como os guerreiros de guarda à porta, estavam armados com machados de guerra e escudos.
Demos os primeiros passos naquele salão e começamos imediatamente a apercebermo-nos de uma espécie de sopro de vento, para logo de seguida todo o salão se encher com os sons incríveis da mais requintada das melodias. Era como uma música tocada simultaneamente por gaitas-de-foles e por flautas, mas a que tivesse sido adicionado o som de todas as brisas e ventos que eu escutara ao longo da vida. Sim, também se ouviam os trovões e tudo o mais que pudesse ressoar sob os céus. Nunca ouvira uma música assim e nunca mais voltei a ouvi-la. Era, pelo menos assim o penso, o som da majestade divina tornado audível aos ouvidos . humanos, e que parecia provir de uma grande arca dourada um pouco atrás e ao lado do trono.
Talvez pudesse ter descoberto mais a respeito da fonte daquela música gloriosa, mas na verdade só tinha olhos para o trono e para o homem nele instalado. O Imperador Basil, envergando trajes com um profundo tom púrpura que brilhavam e tremeluziam sob a luz, permanecia sentado num dos lados do vasto trono e olhava-nos com toda a frontalidade.
O esplendor do salão e a opulência de tudo o que me rodeava combinaram-se para me fazerem ganhar consciência da minha própria aparência. Olhei para baixo e reparei, para meu grande embaraço, que o hábito outrora tão bom estava manchado e rasgado, e que tinha uma capa suja e esfarrapada nos rebordos. Levei a mão à cabeça, senti que o cabelo me crescera, que a tonsura necessitava de ser renovada, que a barda estava emaranhada e suja, e que usava uma coleira de ferro em volta do pescoço. Em resumo, parecia-me mais com um dos mendigos que enxameavam as muralhas do grande palácio do que com um emissário da Igreja irlandesa. Contudo, não era um emissário. Na verdade, não era mais do que aquilo que parecia ser, ou seja, um escravo.
Foi desse modo que me apresentei perante o Imperador, não vestido com o traje branco e com a capa dos peregini, mas sim com farrapos desfeitos por uma longa viagem e com uma coleira de escravo, não na companhia do abençoado bispo Cadoc, mas sim ao lado de um monarca dinamarquês e pagão. Para além disso não fora ali para entregar uma dádiva preciosa mas sim para regatear a vida de um refém.
Ah, a vaidade! Deus, que não tem qualquer utilidade para o orgulho, providenciara para que a minha postura se mantivesse humilde na presença do seu Vice-Regente sobre a Terra.
Levantei os olhos mais uma vez e vi-me a enfrentar o rosto do homem mais poderoso do mundo... que era como o rosto de um macaco inteligente. Contudo antes de conseguir abarcar inteiramente aquela visão, o magister sacrum ergueu o bastão e fê-lo embater no chão com toda a força.
Nesse mesmo instante, o trono dourado começou a erguer-se no ar! Juro, por Miguel, o Valente, que estou a dizer a verdade! O trono, que se parecia com uma cadeira de acampamento romano, embora fosse muito maior e feito de ouro, ergueu-se no ar e ficou a pairar na nossa frente... como se tivesse sido levantado pelos sons da soberba melodia que saía da caixa dourada a que chamavam órgão, tal como vim a saber mais tarde.
Antes de conseguir compreender o artifício daquela nova maravilha, o magister vestido de branco bateu mais uma vez no chão com o seu bastão e fez um movimento com a mão aberta, na horizontal. Justin caiu de joelhos, para logo se prostrar com o rosto virado para baixo. Segui o exemplo do guarda mas os bárbaros que se encontravam comigo permaneceram de pé, sem perceberem que insultavam o Imperador. A música aumentou de tom e calou-se. Sustive a respiração, sem sequer saber porquê.
A voz que ouvi a seguir foi a do próprio Imperador.
- Quem perturba a serenidade destes procedimentos com uma agitação tão imprópria? - inquiriu. A sua voz era regular e profunda e provinha de um ponto por cima de nós.
Para meu grande susto, Justin sussurrou:
- É a tua oportunidade, Aeddan. Diz-lhe quem vocês são. Pus-me rapidamente de pé, endireitei os ombros, engoli em seco e respondi:
- Senhor e Imperador, tendes perante vós o jarl Harald Berro-de-Touro, rei dos Dinamarqueses da Escandinávia, bem como este seu escravo e dois dos seus muitos guerreiros.
Esta minha saudação foi seguida por um leve sussurro de gargalhadas, que se apagou imediatamente quando o Imperador murmurou:
- Silêncio!
- Basileu... - interveio o magister sacrum, ansioso por se absolver sem parecer irresponsável - aparentemente, estes homens conseguiram chegar até aqui graças à perfídia.
- Assim parece. - O Imperador observou os bárbaros e ordenou: - O rei que se aproxime. Falarei com ele cara a cara.
O funcionário bateu com o bastão no chão e fez sinal ao rei para obedecer. Coloquei-me imediatamente ao lado de Harald.
- Vai falar contigo - disse-lhe, e avançámos os dois.
O trono flutuante desceu lentamente para a sua base e vimos o Imperador Basil na nossa frente. Era um homem pequeno e careca, com uma pele cor de azeitona, tal como a dos seus compatriotas Macedónios, e com os membros curtos e a estrutura compacta de um soldado de cavalaria. Tinha olhos negros e muito vivos, e as mãos - pousadas nos braços do trono, com os dedos pendentes por causa do peso dos seus anéis de patriarca - eram pequenas e elegantes.
- As minhas saudações, Senhor dos Dinamarqueses, em nome de Cristo, Soberano dos Céus - declarou, estendendo a mão coberta de jóias a Harald, que estava a conseguir comportar-se com uma dignidade régia.
Justin tocou-me no ombro, indicando que devia transmitir as palavras do Imperador ao rei, o que fiz, acrescentando:
- Quer que lhe beijes a mão, num sinal de amizade.
- Nay! - replicou Harald. - Não o farei! - A seguir ordenou-me que perguntasse ao Imperador se estava disposto a oferecer um resgate pela vida do seu servidor, ou se queria ver o corpo do homem, sem cabeça, a flutuar no porto.
- Que diz ele? - perguntou-me o Imperador. - Podes falar em seu nome.
- Soberano e senhor... - repliquei rapidamente - Harald Berro-de-Touro, jarl da Dinamarca e da Escandinávia, diz que lamenta não poder observar nenhum gesto de amizade para convosco até vos ter apresentado o propósito da sua missão.
- Assim seja! - replicou Basil, sem mais delongas. Falou com cordialidade mas as suas maneiras deram-me a entender que não estava disposto a desperdiçar mais delicadezas com aqueles rudes bárbaros. - Qual é a natureza das suas preocupações?
- Quer saber o que te trouxe aqui - expliquei, para Harald.
- Então diz-lhe - ordenou o monarca, zangado - que lhe ofereço uma oportunidade para redimir a vida do ladrão a que chamam Capitão do Porto.
- Imperador e lorde... - comecei - o nosso rei deseja informá-lo que tomou como reféns o quaestor Antonius e os seus homens, e que aguarda agora um resgate pelas suas vidas. - Prossegui, explicando como tínhamos sido imediatamente enganados pelo quaestor logo depois da nossa chegada a Constantinopla. - O meu senhor Harald capturou o Capitão do Porto e pretendia cortar-lhe a cabeça, bem como aos seus homens... - expliquei - mas o quaestor disse-nos que tinha a certeza que o Imperador pagaria uma grande recompensa pela sua vida, e foi por isso que o meu senhor Harald, jarl dos Dinamarqueses da Escandinávia, veio à vossa presença requerer esse mesmo resgate.
Basil não respondeu. Na verdade, o seu rosto não revelou qualquer reacção, pelo que fiz sinal a Gunnar para avançar mais uma vez com o seu fardo. Pousei-o no chão, desamarrei-o e abri a capa vermelha. Ali, à vista de toda a gente, estava o elmo do quaestor, o bastão do seu cargo e o anel oficial. O Imperador inclinou-se ligeiramente para a frente, observou os objectos e voltou a recostar-se, dando um ligeiro sinal de agitação.
- Onde está o quaestor Antonius? - perguntou.
- A bordo do navio de Harald, basileu, bem como os seus homens. Virando ligeiramente a cabeça, o Imperador pediu para chamarem o prefeito. O magister apressou-se a ir buscá-lo e o homem aproximou-se do trono. Basil virou-se para mim e disse:
- Diz ao teu senhor que vou mandar este homem para trazer o quaestor à minha presença. Têm de o entregar ao prefeito e só depois poderemos resolver este assunto. - A seguir ordenou a Justin que acompanhasse o prefeito.
Harald protestou logo que lhe transmiti as palavras do Imperador:
- Nay! - berrou. - O Imperador terá de pagar o resgate se desejar ver o seu homem libertado. Toda a gente sabe que é assim que as coisas funcionam!
Vi-me forçado a explicar ao basileu que os guerreiros de Harald não libertariam o seu cativo enquanto o jarl não lhes comunicasse que o resgate fora pago. Falei com muito mais coragem do que a que sentia e recuei para ver o que aconteceria a seguir.
Contudo, em vez de mostrar desagrado, o basileu limitou-se a acenar e deu ordem ao prefeito para ir buscar uma taça a uma das mesas. O funcionário assim fez e pegou numa bela taça de ouro que colocou na frente do trono.
- Entrega-a ao rei - ordenou Basil, após o que o prefeito colocou a taça nas mãos do rei dos bárbaros.
Satisfeito com o peso e com a arte da taça, Harald deu o seu assentimento. Chamou Hnefi e encarregou-o de acompanhar o prefeito para irem buscar o quaestor.
- Diz aos meus karlar que o resgate foi pago... - declarou Harald, para logo acrescentar, num sussurro - mas não libertem os homens do ladrão. Esta taça não chega para pagar as suas vidas.
Os três homens partiram imediatamente e o magister conduziu-nos de volta à antecâmara onde todos os outros continuavam à disposição do Imperador.
Titus, acompanhado pelos quatro bárbaros a quem Harald mandara regressar ao navio para trazerem o penhor, surgiu algum tempo depois quando ainda estávamos à espera. Os recém-chegados vinham cheios de admiração pelas riquezas que haviam visto ao longo do percurso e quiseram saber quanto fora que o Imperador pagara pela vida do quaestor.
- É difícil de dizer... - retorquiu Harald alegremente, com o seu tesouro bem escondido por baixo da capa. - Neste sítio, nada é tão simples como parece...
O magister acabou por aparecer, para nos conduzir de volta à sala do trono. Quando entrámos, já Justin e o quaestor se encontravam na presença do Imperador.
- Quaestor Antonius... - entoou o Imperador num tom grave, quando regressámos aos nossos lugares - já fomos informados a respeito de algumas das tuas actividades mais recentes. Tens alguma coisa dizer a esse respeito?
- Soberano e senhor... - respondeu Antonius imediatamente, com uma voz e uma expressão de puro desafio - estes homens cometeram um erro grave. Como não tinham conhecimentos sobre o valor das moedas de Constantinopla, calcularam erradamente o valor das suas próprias moedas e agora pensam que foram enganados.
- É uma explicação razoável... - respondeu o Imperador com suavidade. Contraiu os lábios como se estivesse mergulhado em pensamentos, entrelaçou os dedos das mãos e levou-as ao queixo. Só voltou a falar alguns momentos depois e dirigiu a sua pergunta para Harald.
- A taxa do porto é paga em prata. Têm mais moedas iguais às que entregaste ao quaestor Antonius?
- Tenho, sim - replicou Harald, através de mim. Puxou pela bolsa que tinha no cinto, abriu-a e despejou alguns denánios de prata na mão.
Passou-os ao Imperador, que examinou as moedas rapidamente, escolheu uma e comentou:
- Não foram cunhadas em Constantinopla... mas creio que estas moedas são muito vulgares, tanto aqui como em todo o lado. - Mostrou a moeda a Harald e perguntou: - Qual é o seu valor?
- Cem dos vossos nomismi - replicou o monarca dinamarquês quando lhe traduzi a pergunta.
- E quem te disse isso? - inquiriu o Imperador tranquilamente.
- Aquele homem. - Traduzi as palavras do rei e Harald apontou para Justin. - Na verdade, se não fosse a ajuda do scholarae, não tenho dúvidas que teria havido derramamento de sangue e perda de vidas. - Tratou-se de uma afirmação que eu próprio acrescentei por pensar que era importante que o papel de Justin também fosse reconhecido.
O Imperador limitou-se a acenar e continuou a examinar as moedas. Levantou uma e perguntou:
- E tu, que me dizes, quaestor Antonius? Qual é o valor desta moeda?
- Cem nomismi, basileu - respondeu Antonius, rígido.
- Muito bem... - comentou Basil, com um sorriso. -Já resolvemos a questão do valor. - Virou-se para o Capitão do Porto e afirmou: - Harald, rei da Escandinávia, apresentou uma queixa contra ti, Antonius. Afirma que deste um valor de dez nomismi a cada denário. É verdade?
- Exaltado basileu... - replicou o quaestor- não foi assim. Um erro desses era impossível. O bárbaro deve estar enganado.
- Então, a culpa é toda do rei... - murmurou Basil, contraindo os lábios.
- Lorde e Imperador... - respondeu o quaestor, adoptando um tom mais razoável - não estou a lançar culpas sobre ninguém. Na verdade, penso que ninguém é culpado. Os costumes de Bizâncio podem ser confusos para alguém que chegou há tão pouco tempo. Já lho expliquei, mas o bárbaro prefere não acreditar na minha explicação.
- Pronto... - disse o Imperador, abrindo as mãos como se estivesse satisfeito por ter conseguido finalmente resolver aquele mistério. - Tratou-se de um simples erro de cálculo. Como não resultou daí qualquer mal, ficamos satisfeito por podermos encerrar esta questão e enviar-vos de volta aos vossos assuntos, com os nossos melhores desejos de boa sorte. - Fez uma pausa, para observar o efeito das suas palavras. - Desculpamos a vossa ignorância, tal como perdoamos a perturbação da nossa paz. Devolvam-me a taça e não se falará mais neste assunto. Que me dizem?
O rosto de Harald ensombrou-se quando lhe transmiti o que Capitão do Porto dissera e lhe expliquei as palavras do Imperador.
- Com todo o respeito, jarl Harald, o imperador está dar-te uma oportunidade para retirares a queixa sem incorreres na ira do Império. Ao que parece, o julgamento virou-se contra ti.
- Fala-lhe no penhor - ordenou-me Harald.
- Lorde e soberano... - comecei, sentindo a apreensão a invadir-me - Harald, rei dos Dinamarqueses, trouxe um penhor que gostaria de vos apresentar em consideração pela sua queixa.
A afirmação voltou a despertar o interesse do Imperador.
- Há mais bárbaros à espera na antecâmara, basileu... - informou o prefeito. - Deverei admiti-los?
- Sem dúvida, prefeito - declarou o Imperador. - Ao que parece, vamos ser inundados por bárbaros enquanto o assunto não for resolvido.
Alguns dos cortesãos riram-se educadamente e o prefeito apressou-se a ir convocar os restantes dinamarqueses. As portas de bronze abriram-se alguns momentos depois e os quatro Lobos do Mar surgiram do vestíbulo, com dois eles a carregarem o cofre de tesouro com a tampa em bico. Avistei o cofre e o meu coração bateu mais depressa. Os dinamarqueses aproximaram-se de Harald e colocaram o cofre a seus pés.
- Bom...? - disse o Imperador, impaciente.
- Basileu... - respondi, esforçando-me por afastar os olhos do cofre - Harald, rei dos Dinamarqueses, coloca perante vós a sua garantia de honra quanto a esta questão.
- Ah, sim? - Com um mero movimento do pulso, Basil chamou o magister, que abriu a tampa do cofre e pôs à vista - que Jesus me ajude!
- a cumtach de prata. Claro que Harald tinha de entregar aquilo como penhor de fé e honestidade! O livro desaparecera mas, mesmo assim, a capa sagrada descobrira o seu caminho até ao Imperador. Contudo, não fora daquele modo que imaginara a sua entrega...
O funcionário ajoelhou-se, extraiu a preciosa capa do seu local de repouso e colocou-a aos pés do Imperador, mantendo-se sempre sobre os joelhos dobrados. Basil inclinou-se para a frente, permitiu que os seus olhos imperiais pousassem no requintado trabalho da prata e nas jóias da capa. Nesse momento, Harald avançou e colocou a taça de ouro do Imperador ao lado da cumtach de prata.
- Vemos que dás um grande valor à tua palavra, rei dos Dinamarqueses - afirmou o Imperador.
O quaestor olhava com incredulidade para aquele tesouro e imaginei que estivesse prestes a renegar a sua versão dos acontecimentos... mas o momento passou e o Capitão do Porto manteve a boca firmemente fechada.
- Magister! - chamou o Imperador, fazendo sinal ao funcionário para se aproximar. Murmurou-lhe qualquer coisa junto ao ouvido e o homem acenou e afastou-se, saindo da sala a recuar.
- Iremos saber a verdade muito em breve... - declarou Basil, acrescentando logo de seguida: - ... se for essa a vontade de Deus.
O Imperador ordenou que a música tocasse e escutámos novamente as notas do maravilhoso órgão que tínhamos ouvido quando da nossa entrada na sala. Esperámos, encantados com os sons celestiais daquele extraordinário instrumento. Contudo, a pouco e pouco, os dinamarqueses foram revelando a sua inquietação. Pouco acostumados a passarem tanto tempo sem gritar, beber ou lutar, começaram a mudar o peso do corpo de um pé para o outro, no meio de uma agitação crescente.
- Quanto tempo vamos ter de ficar aqui, de pé? - inquiriu Harald, num tom muito alto.
- Paz, jarl Harald - respondi, procurando acalmá-lo. - Creio que o Imperador pôs um plano em prática...
Calou-se, mas não sem soltar um grunhido, e contentou-se em observar todo o ouro que se encontrava à vista. Hnefi e Gunnar conversavam abertamente sobre a comichão que os seus dedos sentiam por se encontrarem tão perto de tais riquezas... e por se verem impossibilitados de roubar qualquer coisa para eles próprios. Podia ter-me sentido embaraçado com aquela conversa, mas na verdade não me fez diferença porque ninguém mais entendia o que os bárbaros diziam.
O Imperador, pelo seu lado, fingiu não reparar no grosseiro comportamento dos seus hóspedes bárbaros. Recostou-se no trono, cruzou as mãos sobre o estômago e fechou os olhos. Contudo, quando eu já pensava que devia estar a dormir, o Imperador endireitou-se e ordenou:
- Escravo, aproxima-te.
Não havia escravos por perto, pelo menos que eu pudesse ver. Por isso mesmo, apanhou-me de surpresa quando levantou a mão e me chamou.
- Perdoa-me, basileu... - murmurei, dando um hesitante passo em frente.
O Imperador fez sinal para que me aproximasse ainda mais e estendeu a mão para que lha beijasse. Respeitei aquele costume e fiquei parado na sua frente, com os olhos baixos, tal como vira o magister a fazer.
- Apercebemo-nos de que és um homem com conhecimentos... - declarou Basil. - Como é possível que sejas escravo destes bárbaros?
- Lorde Imperador, participava numa peregrinação com os meus irmãos monges quando o nosso navio foi atacado pelos Lobos do Mar... - Expliquei-lhe brevemente como havíamos sobrevivido ao naufrágio do navio e encontrado a povoação gaulesa. Concluí, dizendo: - A povoação foi atacada nessa mesma noite e fui tomado como cativo. - Apontei a cumtach que descansava no cofre, aos pés do trono, e acrescentei: - Outrora, esta capa de prata que hoje vos foi oferecida como penhor... era nossa.
- Ah, sim? - interrogou-se o Imperador. - E os teus irmãos sacerdotes? Que foi feito deles?
-- Soberano senhor... - respondi - quem me dera saber! Acontece que esperava que fosse o Imperador a dizer-mo.
Basil olhou-me com uma estudada expressão de espanto.
- Esperavas que te pudéssemos dizer? - repetiu, com uma gargalhada. - Embora os conhecimentos do Imperador a respeito do Império sejam exaustivos, não são de modo nenhum infinitos. O que levou um homem com os teus conhecimentos a pensar que te poderíamos dar uma explicação para um tão obscuro acontecimento?
- Perdoe a minha presunção, basileu... - retorqui - mas a peregrinação de que estou a falar era a Constantinopla. Tratava-se, de facto, de vos pedir uma audiência e de vos presentear com uma dádiva simultaneamente rara e preciosa.
- Ah, sim? - O Imperador declarou-se fascinado e ordenou que me explicasse melhor. - Conseguiste captar o interesse dos ouvidos imperiais, ousado sacerdote... pelo menos até ao regresso do magister. Conta-nos mais coisas dessa história maravilhosa.
Durante todo o meu tempo de cativeiro nunca me atrevera a pensar, nem sequer por capricho, que viria a encontrar-me perante o Imperador, a entretê-lo com o relato das minhas desventuras. Todavia, estava ansioso por me informar sobre a sorte dos meus irmãos e foi por isso que falei, pondo de lado todo o nervosismo. Referi-me à abadia de Kells e à criação do livro. Narrei-lhe como haviam sido escolhidos os treze que iriam fazer a peregrinação, todos os preparativos para a viagem e a tempestade que nos arrastara através dos mares e nos colocara no caminho dos Lobos do Mar.
Parti do princípio de que a peregrinação prosseguiria sem mim... - afirmei. - Porém, se o Imperador me disser que não os recebeu, terei de concluir que os amigos voltaram para trás ou que foram mortos no ataque, tal como receei.
O Imperador Basil ficou calado por instantes, a pensar, e depois perguntou-me:
- Qual é o teu nome, sacerdote? - Soberano senhor... - respondi - chamo-me Aidan mac Cainnech.
- Aidan, entristece-me ter de te dizer que os teus irmãos sacerdotes nunca chegaram a Constantinopla. Nunca estiveram na nossa presença. Bem desejaria que as coisas tivessem corrido de outro modo porque, a julgar apenas pela capa, seria uma dádiva merecedora de veneração e um tributo à devoção do vosso mosteiro. Lamentamos muito.
O magister sacrum regressou naquele momento e o Imperador convocou-o. Preparei-me para me afastar mas o Imperador disse-me:
- Fica, sacerdote - e foi assim que permanecia ao lado do trono.
- Basileu - declarou o magister, os komes já regressaram.
- Vai buscá-los - ordenou Basil. O magister retirou-se e o Imperador exibiu um sorriso astuto e afirmou: - É agora que iremos ver que espécie de verme apanhámos...
O magister reapareceu, conduzindo três homens jovens, todos vestidos do mesmo modo. Usavam longas túnicas justas em tons de amarelo e azul, com mangas largas, calções amarelos com as pernas enfiadas nas botas altas e tinham espadas curtas, com punhos de ouro, suspensas dos cintos. O que vinha à frente, delgado como uma espada, com cabelos pretos e feições aguçadas e perfeitas, avançou rapidamente para o trono e prostrou-se.
- Levanta-te, Nikos - disse o Imperador, reconhecendo o cortesão. - Levanta e relata-nos, na presença de toda esta ilustre assembleia, o que foi que descobriste.
- Basileu... - respondeu o homem chamado Nikos, depois de se pôr de pé - segundo parece, o nosso quaestor tem sido um homem muito industrioso e ricamente abençoado por Deus em todos os seus negócios.
- Sim? Então esclarece-nos... - O Imperador desviou os olhos do cortesão e pousou-os no rosto preocupado do Capitão do Porto.
O komes Nikos, um jovem de cabelos escuros com olhos negros e inteligentes num rosto macio e simpático, fez um sinal e mandou avançar os outros dois cortesãos que haviam entrado com ele e que transporta- vam um grande vaso de barro. Nikos pegou no vaso, ergueu-o e manteve-o no ar.
- Lorde e Imperador, com Deus e estes homens como testemunhas, afirmo que este vaso foi encontrado na casa do quaestor Antonius - anunciou, com a voz a tremer-lhe ligeiramente por causa do esforço, uma vez que o vaso parecia ser pesado. - Com a vossa autorização, basileu...
O Imperador acenou e Nikos deixou cair o vaso. O recipiente de barro embateu no polido chão de mármore e desfez-se em bocados, libertando uma cascata de ouro e de prata formada por centenas de solidi de ouro e denários de prata que se espalharam pelo pavimento.
Nikos baixou-se, encheu as mãos com as moedas e deixou-as escorrer por entre os dedos.
- Sinto-me intrigado, basileu... - declarou. - Ou o nosso estimado quaestor é um homem muito frugal, ou é muito desonesto. - Olhou para o rosto cor de cinza do quaestor. - Gostaria de saber como adquiriu tais riquezas.
- Quaestor Antonius... - ordenou o Imperador - avança e explica-nos como obtiveste tantas riquezas, uma vez que estamos persuadidos que um homem com um salário de dois solidi por ano nunca poderia acumular tanto dinheiro. Talvez tenhas vendido propriedades? - sugeriu Basil, num tom razoável. - Talvez tenhas apostado numa corrida? Ou ter-te-ão entregue o dinheiro do festival, para que o guardasses?
Taciturno, Antonius olhava para o dinheiro espalhado pelo chão.
- Não tinhas o direito... - murmurou para o cortesão.
- O decreto do Imperador deu-me esse direito - replicou Nikos, sucinto. As suas maneiras eram as de um homem que sentia uma imensa satisfação mas que fazia um grande esforço para a conter.
- Estamos à espera, quaestor Antonius... - insistiu o Imperador, levantando a voz. - Como obtiveste este dinheiro? Exigimos uma resposta.
Antonius conseguiu erguer a cabeça não obstante o seu aspecto abalado e receoso.
- Soberano senhor, o dinheiro que foi encontrado em minha casa é uma herança de família. Entrou na minha posse aquando da morte do meu pai, há oito anos.
- Não há duvida de que provéns de uma família muito rica, quaestor Antonius - comentou Nikos com um tom insinuante e acusador. - Pelo aspecto dessa pilha, o teu pai devia ser proprietário de metade de Pêra.
- O meu pai era um astuto homem de negócios - admitiu Antonius. - Todos o sabem. Perguntem a alguém que tenha lidado com ele.
- Sem dúvida que era astuto - declarou Nikos. Voltou a baixar-se para a pilha e agarrou numa mão-cheia de moedas. - Parece ter poupado muito para o futuro... e também no futuro. Ora repara! - exclamou, levantando uma moeda. - Este solidus foi cunhado apenas no ano passado... e este é do ano anterior. De facto... - remexeu nas moedas que tinha na mão, examinando-as atentamente - agora que olho bem para eles, não consigo encontrar um único solidus com mais de três anos. No entanto, dizes que os recebeste há oito anos.
- Tenho andado a trocar os novos pelos velhos - explicou Antonius, com presunção. - Prefiro as moedas novas porque têm um peso mais uniforme.
O escorregadio quaestor parecia estar a safar-se. A sua explicação, embora fosse difícil de acreditar, não deixava de ser plausível. Mais importante ainda era o facto de não poder ser desmentida. Sem dúvida que antecipara mil vezes aquele dia e preparara bem a sua história.
Olhei para as moedas no chão... e foi como se visse a cumtach de prata nas mãos do pouco honesto quaestor. A prata!
- Soberano senhor... - comecei, surpreendendo-me a mim mesmo com a minha acção precipitada - se me permitirdes que fale...
O Imperador acenou lentamente, sempre com os olhos postos no quaestor.
- Há moedas de prata no meio do ouro. Talvez também possam ser examinadas... - Debrucei-me e estendi a mão para o monte de moedas.
O komes Nikos deteve-me. Segurou-me pelo pulso e declarou:
- Permite-me que te ajude, meu amigo... - Embora falasse de uma maneira educada, o aperto no meu pulso era significativo e não havia qualquer simpatia nos seus olhos.
Recuei, permitindo ao cortesão remexer na pilha em busca dos denários de prata. Conseguiu uma mão-cheia em pouco tempo e virou-se para mim.
- Não há tantas moedas de prata como de ouro... - declarou - mas ainda são bastantes. Por que estás tão interessado nelas?
- Por isto... - respondi, avançando para onde Harald permanecia em silêncio e ligeiramente confuso. Estendi a mão para ele:
- A tua prata, jarl Harald - pedi, em dinamarquês. - Dá-me algumas moedas.
- Que se passa aqui? - perguntou, enquanto retirava a bolsa do cinto. - Que estão eles a dizer?
- Paciência, senhor. O assunto ficará resolvido em breve e depois conto-te tudo.
Foi com relutância que o monarca colocou o saco de moedas na minha mão, após o que voltei para junto do trono. Nikos já percebera o que eu tinha em mente e disse:
- Mete a mão na bolsa e tira uma moeda. Também pegarei numa destas. Agora, mostra-a ao Imperador.
Estendemos as nossas mãos e cada uma delas tinha uma moeda na palma. O Imperador Basil examinou-as com atenção.
- São iguais.
Nikos pegou em várias das moedas que retirara do monte e inspeccionou-as uma a uma.
- São todas iguais, basileu. - Quaestor Antonius, gostaria de saber... - disse o Imperador - como foi que as moedas do rei dinamarquês foram parar à tua posse. Continuas a afirmar que faziam parte da herança do teu astuto pai?
- Senhor e Imperador... - retorquiu o Mestre do Porto - como toda a gente sabe, esses denários são uma das moedas mais vulgares em todo o Império. Talvez fosse melhor que perguntassem ao rei bárbaro onde é que foi arranjar moedas cunhadas em Constantinopla...
- Não foram cunhadas em Constantinopla, quaestor Antonius... - declarou o komes. - Foram cunhadas em Roma e todas comemoram Theophilus. - Baixou-se novamente para o monte, remexeu nas moedas, retirou todas as que eram de prata e contou-as. - Basileu... - anunciou, levantando-se - gostaria de o informar que há aqui quarenta e cinco denários romanos.
O Imperador lançou uma olhadela furiosa para o seu cobrador de taxas.
- Ao que parece, tinhas em teu poder o número exacto de denários, moeda a moeda, que este rei te acusou de roubar. Para além disso, todas eles são moedas romanas, com uma cunhagem exactamente igual às da bolsa do bárbaro. Se consegues explicar isso, então faz-me esse favor...
O Mestre do Porto, descarado até ao fim, limitou-se a encolher os ombros.
- Trata-se apenas de uma coincidência infeliz, basileu, e nada mais - declarou.
- Oh, pensamos que se trata de muito mais do que uma coincidência - afirmou Basil, incisivo. O Imperador olhou para o seu infeliz quaestor com uma satisfação cruel e acrescentou: - Permite-me que te sugira outra hipótese muito mais lógica: roubaste a prata a estes homens e guardaste-a no vaso com a intenção de a trocares por solidi, juntamente com todos os outros denários que tens andado a roubar no decurso das tuas funções. Para além disso, quaestor Antonius, pensamos que, a julgar pelo número considerável de provas que temos na frente, há muito que andas a abusar da tua posição como Mestre do Porto de Hormisdas. - O Imperador Basil endireitou-se no seu enorme trono. - Vamos pôr fim a isso.
- Soberano senhor... - declarou Antonius, muito rapidamente - o ouro é meu, juro-o, pelo Santo Nome. Estou a dizer a verdade e foi uma herança. Com todo o respeito, não pode acreditar na palavra desses bárbaros...
- Respeito? - inquiriu Basil. - Admira-nos que utilizes uma tal palavra. Mostraste muito pouco respeito por nós, ou pela nossa posição. Contudo... - acrescentou o Imperador com secura - embora a questão já não seja a prata, não está provado que roubaste o ouro...
Basil fez sinal ao magister para se aproximar. O funcionário da corte pegou numa placa de cera semelhante à do prefeito e entregou-a ao Imperador. Basil pegou no estilete e começou a escrever.
- Basileu... - arriscou o quaestor, hesitante - foi apenas uma pequena transgressão. De certeza que não é caso para prisão...
- Estamos de acordo, quaestor Antonius, em que não é caso para prisão. Seria um cruel desperdício de um homem com os teus impressionantes talentos, para além de uma perda para o Império. Contudo, também se tornou claro que a tua presente posição está, digamos que... a limitar-te as capacidades...
O Imperador levantou os olhos da escrita e permitiu-se um leve sorriso.
- As minas imperiais estão sempre com falta de homens como tu... homens com um grande apetite pela riqueza e com bons olhos para o brilho da prata. Estou certo que a companhia de outros como tu te dará um novo vigor...
O antigo Mestre do Porto abriu a boca de espanto, para logo a fechar e engolir em seco.
- Não... não... Por favor. Santo Jesus, não... - murmurou.
Basil, depois de dispensar a justiça ao seu gosto, encerrou definitivamente a questão:
- O transporte já foi providenciado. Serás hóspede do Imperador até à partida do navio. - Fez um sinal com as mãos e foi o bastante para que cinco dos farghanese avançassem imediatamente. Basil passou a placa de cera ao magister, agitou as mãos na direcção da porta de bronze e ordenou: - Levem-no daqui.
- O meu dinheiro! - exclamou o quaestor, tentando avançar enquanto os guardas o agarravam. - Esse dinheiro é meu!
- O teu ouro irá ficar connosco - replicou Basil. - Uma riqueza com uma tal magnitude podia ser um perigo no local para onde vais. Quanto a isso, estamos a revelar muito mais caridade do que a que revelaste para connosco.
As portas de bronze abriram-se e o prisioneiro foi arrastado para a antecâmara. Fez uma última tentativa para protestar mas o chefe dos farghanese silenciou-o com um golpe seco na boca e o homem resignou-se ao seu destino e permitiu que o levassem.
O Imperador Basil fez um gesto para que o ouro e o vaso partido fossem levados dali. O komes Nikos aproximou-se do rei Harald e entregou-lhe as moedas de prata que haviam sido recuperadas.
- Aqui tem os seus denários, senhor... - declarou.
Harald aceitou a prata e a seguir, num acto em que tenho meditado muito, avançou para a base do trono, e pediu-me para traduzir as suas palavras e disse:
- Nobre Imperador, vou dizer-vos a verdade. Vim aqui para saquear os vossos tesouros e para me apoderar de tudo o que pudesse levar comigo para a Escandinávia.
O Imperador recebeu aquela confissão com bons modos.
- Não sois o primeiro a ter tais noções, lorde Harald.
O monarca dos Lobos do Mar prosseguiu depois de eu lhe ter transmitido as palavras do Imperador.
- Agora encontro-me perante vós, olho à minha volta... - lançou uma olhadela em volta com os olhos arregalados de admiração - e vejo riquezas que os homens da minha terra nem sequer conseguem imaginar. - Fazendo um gesto para a pilha de moedas de ouro que se encontravam no chão, Harald acrescentou: - Para além disso, verifico que os homens ao vosso serviço são recompensados com muito mais riquezas do que seria de esperar.
O Imperador acenou com satisfação.
- Tiveste apenas um mero relance do poder e da riqueza do Sacro Império Romano e compreendeste a futilidade de entrar em colisão com esse poder. Sob esse aspecto, revelas a tua sabedoria, lorde Harald.
- É verdade... - concordou Harald prontamente quando lhe traduzi as palavras do Imperador - e pergunto a mim mesmo: se um simples servo pode acumular tais riquezas, então o que poderá um rei conseguir? Tenho comigo quatro navios e cento e sessenta homens. Viemos em busca de pilhagem, mas prefiro obter riquezas e fama numa relação de amizade para convosco, Grande jarl. Por isso, Nobre Imperador, coloco-me ao teu serviço, bem como aos meus homens e navios.
Maravilhei-me com a audácia de Harald mesmo enquanto estava a traduzir as suas palavras. Seria tão confiante e arrogante para acreditar que todos os seus homens o seguiriam naquele gesto grandioso? Seria tão inocente que acreditasse que o Imperador iria aceitar a sua oferta, e recompensá-lo por isso?
Porém, neste caso, o inocente era eu, isto porque, maravilha das maravilhas, o Sacro Imperador Romano, Senhor Soberano de Toda a Cristandade, olhou para Harald Berro-de-Touro, monarca bárbaro e saqueador, e examinou-o com atenção, como um homem a calcular o valor de um cavalo, e tomou uma decisão imediata.
- Aceitamos a vossa oferta, lorde Harald. Já deve ter visto que os homens de valor são bem-vindos ao nosso serviço e que são na verdade bem pagos. O facto de serem homens do mar é um forte argumento a vosso favor. Necessitamos, neste preciso momento, de mensageiros rápidos, uma vez que as águas do sul se tornaram perigosas por causa dos ataques dos árabes.
"Desse modo, iremos pôr a vossa lealdade à prova. Estamos a preparar um enviado a Trebizonda, que irá necessitar de uma escolta. Aceita esse serviço e passarás a pertencer à frota imperial. Acontece que as convenções da guerra no mar permitem que o vencedor guarde para si todos os despojos que adquirir durante o combate com um inimigo. Como é natural, esse privilégio também vos será concedido... e até rezaremos pela vossa prosperidade.
Harald aprovou calorosamente aquele plano logo que entendeu o significado das palavras do Imperador.
- Passaremos o vosso teste de lealdade, Soberano e Imperador - garantiu. - Os vossos inimigos serão os nossos inimigos. As nossas vitórias serão as vossas vitórias. Eu, jarl Harald Berro-de-Touro, garanto-o com a minha vida e com as vidas dos meus homens.
É possível que o jarl Harald, ele próprio um homem de autoridade, tivesse reconhecido um poder muito maior do que o seu e isso o levasse a adoptar a posição mais sensata. Apercebendo-se do poderio que o Império poderia lançar contra ele se prosseguisse com o seu plano de pilhagens, a sua astuta mente bárbara divisara a melhor solução possível. Ou então, talvez Deus, operando de uma maneira invisível e desconhecida no fértil solo da alma imortal de Harald, tivesse plantado uma semente que produzia agora os seus frutos inesperados. Fosse como fosse, o resultado maravilhou-me e surpreendeu-me.
- Aceitamos o vosso compromisso, lorde Harald... - replicou o Imperador com graciosidade - e rezaremos para que o Pai Celestial recompense ricamente a vossa lealdade. Regressem aos vossos navios e preparem-se. - Fez um gesto para o magister, que lhe entregou nova placa de cera. O Imperador pegou no estilete e começou a escrever. - Amanhã, enviar-vos-emos o protospatharius para tratar do vosso aprovisionamento. O nosso enviado partirá dentro de três dias. - Basil entregou a placa de cera ao magister e estendeu a mão a Harald, para que o rei lha beijasse.
Dessa vez, o jarl Harald Berro-de-Touro dobrou o pescoço e selou a sua obediência com um beijo. O Imperador levantou-se do seu trono, recuperou a taça de ouro que se encontrava a seus pés e ofereceu-a ao astuto dinamarquês. A seguir desceu do estrado, baixou-se e foi com a sua própria mão que apanhou um punhado de moedas de ouro da pilha que se encontrava no chão e as despejou na taça de Harald com um magnífico tilintar, como se fosse um mercador rico a dar uma esmola ao seu mendigo preferido. O monarca bárbaro exibiu um sorriso tão amplo e uma delícia tão manifesta que o Imperador repetiu o gesto. Contudo, não pude deixar de reparar que a cumtach de prata não voltou a ser mencionada e ficou esquecida aos pés do trono.
Basil mandou embora o seu novo aliado, dizendo:
- Serve-nos bem, rei da Escandinávia, e a glória e os tesouros que procuras serão teus, se Deus assim o desejar.
Harald agradeceu ao Imperador e despediu-se, afirmando que regressaria aos navios e ficaria à espera das ordens do Imperador. Seguimos o magister e fomos conduzidos para longe da presença do Imperador, de olhos baixos e recuando lentamente. Quando já nos encontrávamos ao pé da porta resolvi fazer uma pausa para uma última olhadela àquele salão maravilhoso... e foi nesse momento que o magister pousou a mão no meu ombro.
- O basileu deseja falar contigo, a sós - declarou, apontando-me o trono. Levantei os olhos e vi o Imperador Basil a chamar-me. - Informa o teu rei que lhe serás devolvido logo que o Imperador já não precise de ti.
Harald, feliz com o seu ouro, grunhiu uma aprovação. Refiz os meus passos em direcção ao trono, perguntando a mim mesmo o que pretenderia de mim o Vice-Regente de Deus sobre a Terra.
- Vivemos tempos incertos, irmão Aidan... - disse o Imperador, com um tom simultaneamente familiar e imperioso - tal como pudeste ver hoje mesmo. Funcionários em quem confiamos servem-se dos seus poderes para roubarem e para obterem lucros, enquanto saqueadores bárbaros exigem justiça e juram lealdade.
O Imperador mandara embora todos os que se encontravam na sala do trono, excepto os membros da guarda imperial. Esses homens permaneciam alinhados em volta do trono, com rostos inexpressivos, sem olharem... e sem deixarem de olhar. Ninguém mais ouviria o que o imperador tinha para me dizer.
Levantando a mão na direcção dos seus guardas farghaneses, Basil acrescentou:
- Olha bem e diz-nos: quem é que se encontra mais perto do Imperador?
Como pareceu ficar à espera de uma resposta, perguntei-lhe:
- Também são bárbaros, lorde Soberano?
- O teu amo é um bárbaro e já vimos muitos como ele. Não nos deixamos levar por ilusões, irmão Aidan, e sabíamos que enfrentávamos um inimigo que veio para roubar e matar. Disse a verdade a esse respeito, é verdade, mas já sabíamos. No entanto, quando lhe foi dada essa oportunidade - e nós sabemos muito bem quem a colocou ao seu alcance, Subtil Sacerdote - este rude bárbaro demonstrou ser merecedor de maior confiança do que o homem nascido e criado para as suas funções.
"Aqui, a confiança é o cerne da questão. Em quem confia o Imperador? Nos seus amigos? Em amigos doentes de inveja e repletos com o veneno do rancor, que mais facilmente lhe cortarão a garganta do que vergarão os joelhos? Confiará nos seus funcionários, nesse número imenso de homens sem nome e cobiçosos, que mais facilmente lhe envenenariam a bebida do que lhe beijariam o anel? Confiará talvez nos filhos, demasiado jovens para suportarem o fardo do estado, ou demasiado ambiciosos e ansiosos pela coroa?
Avaliou o efeito das suas palavras e acenou, com uma satisfação sombria.
- Começas a compreender como são as coisas. Sempre que o Império necessita que uma tarefa seja executada... vemo-nos forçados a avaliar a lealdade do homem a quem pedimos que a execute. A lealdade requerida não é muita para a maior parte dos cargos, pelo que se torna indiferente se nomeei este ou aquele. Contudo, algumas tarefas exigem uma grande lealdade... e é nesses casos que as escolhas têm de ser muito mais exigentes.
Escutei as palavras do Imperador e comecei a sentir uma estranha sensação no estômago, talvez semelhante ao medo, ou ao terror, mas que não era nenhuma dessas coisas. Era como se tivesse feito uma aposta gigantesca e estivesse prestes a descobrir se ganhara ou perdera.
- O komes Nikos, como pudeste ver, é um servo leal e de confiança... - continuou o Imperador Basil - e está muito perto do trono. O scholarae Justin está pronto para uma promoção rápida. A sua diligência e honestidade serão particularmente recompensadas. Temos sempre necessidade de homens desses e é por isso que os agarramos sempre que os encontramos e onde quer que os encontremos.
"Irmão Aidan... - prosseguiu o Imperador, observando-me com os seus olhos escuros e inteligentes - vemos na nossa frente um desses homens e detestamos ter de o perder de vista.
- Então também podeis ver, Soberano Lorde... - declarei, levando a mão à coleira de ferro que me rodeava o pescoço - que não passo de um escravo.
A resposta do Imperador foi seca e carregada de desprezo.
- Desapontas-nos, sacerdote! Se imaginas que isso possa ser um impedimento... então parece que não entendes muito bem todo o poder de um Imperador. Permite que te tranquilizemos, irmão monge: a capacidade para recompensar os amigos do Império está perfeitamente ao nosso alcance.
- Perdoai-me, Soberano Lorde - implorei - mas pouco sei a respeito das maneiras da corte. Falei quando devia ter ficado calado.
O Imperador voltou a recostar-se contra os estofos do trono.
- Nada receies, pois não te forçaremos contra a tua própria vontade. O que anseio por conseguir é a tua lealdade e não a obediência - declarou, alisando a seda púrpura do seu traje imperial.
"A tua peregrinação não foi em vão, irmão sacerdote. Estás bem colocado para nos poderes ser útil... e até pode acontecer que o que temos em mente seja precisamente a tarefa para que Deus te chamou. Escuta-nos, irmão Aidan, os teus trabalhos só agora começaram...
- Soberano Lorde... - repliquei, com os pensamentos num torvelinho de confusão - ordenai o que vos aprouver. Sou um vosso servo.
Basil esboçou um sorriso tão ligeiro que nem sequer lhe tocou nos lábios.
- Óptimo. Estamos satisfeitos, irmão monge. - Chamou-me para mais perto dele e disse: - Escuta com cuidado, pois vamos dizer-te o que queremos que faças...
Escutei com a maior das atenções enquanto Basil me explicava que todas as preocupações imperiais se encontravam concentradas no envio da embaixada a Trebizonda. Tratava-se, afirmou, de um caso da maior delicadeza.
- Como é natural, o Império tem inimigos de todos os tipos e cujas finalidades nem sempre são fáceis de discernir. É por isso que somos obrigados, para o bem do Império, a servirmo-nos de todas as protecções possíveis. - Olhou para mim com uma candura que me desarmou e disse: - O segredo tem a sua utilidade, irmão sacerdote. Se conseguires guardar um segredo, a tua presença em Trebizonda será muito bem recebida. Para além disso, também a recompensaríamos.
Repliquei que a discrição era uma virtude, e que a mesma me servira bem durante o meu tempo na abadia. A seguir, o Imperador partilhou comigo as suas preocupações secretas e pediu-me para ser os seus olhos e ouvidos em Trebizonda. Deveria observar tudo o que pudesse, para depois o informar quando regressasse a Bizâncio. Quando terminou, perguntou-me se tinha compreendido. Garantido que sim e levantou-se abruptamente. Os farghaneses recuaram todos um passo. Fazendo um gesto a mandar-me embora, acrescentou:
- Vem ver-nos quando a tua jornada estiver completa.
- Farei como desejas, basileu - respondi. Baixei a cabeça e afastei-me a recuar, tal como vira que os outros tinham feito.
O Imperador chamou o magister para me conduzir ao exterior do palácio.
- O guarda do portão... - perguntou Basil - ainda está connosco?
- Aguarda as tuas ordens na antecâmara, basileu - replicou o cortesão vestido de branco.
- Nesse caso, diz-lhe para conduzir este homem ao seu navio... - ordenou o Imperador, para logo acrescentar, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia: - Porém, como creio que não há pressa, diz ao guarda que deve mostrar a este nosso servidor tudo o que ele quiser ver ou experimentar na nossa cidade. - Olhou para mim e continuou: - Para além disso, o guarda que lhe dê de comer. Entrega-lhe um solidus para esse fim, magister.
- Assim será feito, basileu - replicou o cortesão.
Fui mandado embora e conduzido para fora do salão. Já me encontrava perto da porta quando o Imperador Basil acrescentou:
- Que Deus te conceda uma viagem em segurança, irmão sacerdote, e um rápido regresso. Até lá, contentemo-nos em antecipar o prazer de discutir o que poderemos fazer pela tua liberdade.
Quando emergi da minha audiência encontrei Justin à espera, sozinho, na antecâmara. Todos os outros se tinham ido embora. O magister chamou-o, colocou-lhe uma moeda de ouro na mão e transmitiu-lhe as ordens do Imperador. A seguir virou-nos as costas e desapareceu no vestíbulo, deixando-nos a responsabilidade de sairmos do palácio.
- Ah! - exclamou Justin, quando nos vimos no exterior. - Foi um dia de que não me esquecerei tão depressa!
Foi com toda a convicção que admiti que também eu nunca passara por um dia como aquele.
- És uma pessoa notável, meu amigo... - O guarda olhou-me com uma admiração genuína. - O quaestor foi enviado para as minas e o bárbaro foi contratado como mercenário... Os meus scholarii nem vão acreditar! - Parou e olhou para a moeda que o magister lhe entregara. - Um solidus, inteirinho... - comentou, respirando fundo - e ainda é dia! Bom, que prazeres é que pretendes para esta tarde? Estou à tua disposição... por ordem do Imperador!
- Há muito tempo que não ponho os pés numa capela... Se não for muito difícil, gostaria de ir a uma igreja para rezar.
- A única dificuldade está na escolha da igreja que vais favorecer com a tua presença. Em Constantinopla há centenas de igrejas. Podemos ir à de Santo Estêvão - disse, apontando a cruz mais próxima, que se erguia por cima da muralha - onde o Imperador e a sua família vão rezar em certos dias. Ou então, posso levar-te à Hagia Sophia, onde todos os visitantes da cidade querem ir.
- Por favor, se não der muito trabalho, gostaria de ir onde tu rezas...
- Onde eu rezo? - admirou-se Justin. - Ora, é apenas uma pequena igreja, junto da minha casa... Não tem nada de notável... e tu tens toda Constantinopla à tua disposição, meu amigo! - Embora protestasse, não era difícil de ver que ficara satisfeito com a minha escolha. - Deixa-me levar-te a Santa Sofia...
- Prefiro ver a tua igreja. Levas-me lá?
- Claro, se é isso que queres... - Afastámo-nos do Grande Palácio e caminhámos pelo recinto muralhado, de onde saímos por uma das pequenas portas junto do Hipódromo. Seguimos por um caminho estreito, cheio de curvas e rodeado por muralhas que passavam por trás dessa enorme construção e fomos dar a uma rua larga, flanqueada por árvores.
- Esta é a Mese - disse Justin. - É a rua mais comprida do mundo, e começa ali, no Milion. - Apontou para uma alta coluna isolada, no meio de uma praça, a curta distância.
- E onde termina?
- No Fórum, em Roma - respondeu, num tom grandioso. - Vamos por aqui, a minha igreja não fica longe.
Virámos para oeste e seguimos ao longo daquela larga rua que era, segundo me informou, a principal rota cerimonial da cidade.
- Todos os imperadores e exércitos marcham ao longo da Mese e passam através do Arco Dourado quando partem em campanha. Depois, quer regressem vitoriosos ou derrotados, voltam pelo mesmo caminho.
A Mese enxameava de gente que caminhava sob o fresco da tarde. Era como se, depois de um dia de trabalho, toda a população da cidade estivesse agora a regressar a casa. A maioria daquelas pessoas levava consigo os produtos necessários para um jantar frugal, um pão, alguns ovos, uma ou duas cebolas e oleosos embrulhos contendo azeitonas temperadas com especiarias. Todavia, os mais afortunados tinham a possibilidade de fazer uma pausa e apreciar uma refeição num dos inumeráveis locais de comidas e bebidas existentes ao longo da Mese, a que davam o nome de tabernas, tal como Justin me informou.
Podiam ser reconhecidas pelas tabuletas brilhantemente coloridas e com nomes pintados, nomes como Casa de Baco, Cocheiro Verde ou Cotovia Saltitante. Havia estátuas de deuses gregos e romanos no exterior da maior parte dessas tabernas, bem como fumegantes braseiras assentes em tripés.
Como se a visão dos brilhantes carvões numa noite gelada não fosse suficiente para atrair as pessoas esfomeadas, os proprietários daqueles lugares permaneciam ao lado das suas braseiras, cozinhando carne em espetos e implorando aos passantes que parassem e aproveitassem a hospitalidade que lhes era oferecida. "Entrem, entrem!" chamavam. "Meu amigo, há calor lá dentro. O vinho é bom. Esta noite temos porco assado e figos. Vão adorar a comida! Entrem agora, porque ainda há espaço para vocês!"
Os aromas vindos das braseiras e das cozinhas invisíveis combinavam-se para formarem vagas de odores, opulentas e densas, que fluíam para cima e para baixo à nossa volta enquanto descíamos a rua mais comprida do mundo. Passámos por um certo número dessas tabernas e começou a crescer-me água na boca e senti o meu estômago a grunhir.
Contudo, Justin continuava em frente, aparentemente indiferente tanto ao aroma das comidas como aos rogos dos homens das tabernas, ignorando tudo menos o caminho que tínhamos de percorrer. Passámos por uma magnífica igreja - dos Mártires Sagrados, conforme Justin me informou -, e foi nesse momento que os sinos começaram a tocar. Soou um primeiro sino, provavelmente de Santa Sofia, logo seguido por outro, de uma igreja mais distante, e por outro, e por muitos mais, de perto e de longe, até toda Constantinopla retinir com aquele som. Embora fosse uma pessoa há muito acostumada à labuta do dia-a-dia, não pude deixar de me maravilhar com aquela multidão de sinos com os mais variados tons, desde os mais altos, com a clareza das vozes celestiais, até aos mais profundos, capazes de fazer tremer a terra. Os sons abençoados chegavam-nos vindos de todos os cantos da cidade, como uma dádiva de paz ao fim de um dia de trabalho.
Virámos para uma rua estreita e juntámo-nos à multidão que se encaminhava para a igreja que se erguia no fim do caminho de terra batida. As portas estavam abertas e a luz das velas escorria para as ruas e sobre as cabeças dos que se amontoavam à porta, à espera de poderem entrar.
- É a igreja de Santa Eutímia e São Nicolau, onde costumo vir rezar - explicou Justin. - Há outras mais bonitas, mas poucas são tão frequentadas como esta.
Avançámos para a multidão e esprememo-nos para conseguirmos arranjar lugares junto a uma das colunas. Havia velas a arder em todos os recantos e candeias penduradas em complicadas grelhas suspensas por cima da cabeça dos fiéis. Na verdade, as pessoas eram tantas e estavam tão apertadas que pouco conseguia ouvir do que o sacerdote dizia. Mesmo assim, sei que se fizeram muitas orações e reconheci a leitura como fazendo parte do Evangelho de S. Lucas.
Sob esse aspecto, o serviço era muito semelhante aos que eram realizados na abadia, mas as similaridades terminaram quando os fiéis começaram a cantar. O seu canto era diferente de tudo aquilo que eu jamais ouvira. Não sei como conseguiam aquela música, mas enchia toda a igreja com um som flutuante e exaltado composto por muitas partes que de algum modo se misturavam e uniam para formarem uma única voz com uma força admirável. Fiquei consideravelmente comovido e impressionado, e senti o meu coração cheio de saudades dos monges de Cenannus na Ríg. Os filhos de DeDanaan's gozam das melhores vozes do mundo e daria muito para os ouvir a cantar daquela nova maneira.
Para além da música, o serviço era, como já disse, muito semelhante aos que conhecera antes, excepto quanto ao facto de as pessoas permanecerem de pé para rezarem em vez de se ajoelharem ou prostrarem, e de levantarem as mãos ao alto em vez de as unirem. Por outro lado, os sacerdotes usavam muito mais incenso do que seria permitido na nossa abadia. Na realidade, pareciam querer encher toda a igreja com nuvens de fumos fragrantes.
No fim, foi isso que acabou por ser demais para mim. Talvez que os acontecimentos do dia, bem como as luzes, sons, fumo e aperto da multidão, se tenham combinado para me dominarem. O certo foi que, num determinado momento me encontrava ao lado de Justin... e no momento seguinte me descobri caído contra a coluna com o guarda agachado a meu lado, exibindo uma expressão preocupada.
- Senti-me um pouco tonto... - disse-lhe, logo que nos encontrámos novamente no exterior. Fazia escuro e soprava um vento gelado vindo do mar. - Contudo, já me sinto melhor. O ar fresco fez-me bem.
- Não me admira que tenhas desmaiado - replicou. - Percorreste metade da cidade ao longo do dia de hoje, e sempre com o estômago vazio. - Fez uma careta de desaprovação. - Está na hora de ires comer.
Voltámos à Mese e continuámos um pouco para oeste até chegarmos a um cruzamento. Justin virou para a rua da direita, íngreme, escura e tranquila, e conduziu-me ao longo de uma dúzia de passos até uma pequena casa com uma porta baixa e um grande degrau. Ouvimos gargalhadas vindas do interior logo que nos aproximámos e na ombreira da porta havia uma tabuleta pintada com as imagens de uma ave assada e uma ânfora de vinho.
Justin bateu na porta com a palma da mão.
- Sou de Chipre - disse-me, fazendo uma pausa no seu assalto à porta. - O dono desta casa também é de Chipre... e é daí que vem toda a melhor comida. É verdade, pergunta a quem quiseres!
De repente, a porta abriu-se para revelar um homem com uma barba negra e um aro de ouro numa orelha.
- Justin! - gritou imediatamente. - Ah! Afinal, não nos esqueceste! Pretendes uma refeição, não é? Pois irás tê-la! - Justin mostrou ao barbudo a moeda que o prefeito de lhe dera... e o homem exibiu um grande sorriso. - Que estou eu a dizer? Uma refeição? Vais ter um festim! Vou oferecer-te um banquete! - Virou-se para mim e acrescentou: - Bem-vindo à minha casa! Não te conheço, meu amigo, mas posso afirmar que foste duplamente abençoado!
- Então como? - admirei-me, encantado tanto com a recepção efusiva como pelos requintados aromas que nos envolviam, vindos das salas do interior.
- É simples! Escolheste visitar a melhor taberna de toda Constantinopla e vieste na companhia do mais excelente soldado do Império! Oh, mas a noite está fria! Entrem, meus amigos! - gritou, enquanto quase nos arrastava para o interior.
Fechou a porta rapidamente atrás de nós e disse-me:
- Chamo-me Theodorou Zakis e sinto-me honrado por te ter na minha casa. As preocupações do dia não te incomodarão aqui dentro. Por favor, segue-me.
Fez-nos subir um estreito lanço de escadas e levou-nos para uma grande sala com uma bela braseira de bronze a brilhar no seu centro, como se fosse uma lareira, e em torno da qual se encontrava um certo número de sofás baixos. Vários desses sofás estavam ocupados por homens reclinados em grupos de dois ou três, que se debruçavam sobre bandejas repletas dos mais variados pratos. Havia também algumas mesas instaladas em alcovas formadas por biombos de madeira, bem como uma outra colocada naquela parte da sala que ficava suspensa sobre a rua, e foi para aí que Theo nos levou.
- Como vês, Justin, guardei esta mesa para ti. Sei que é a tua preferida. - Virou-se para mim e acrescentou, como que em segredo: - Os soldados preferem sempre as mesas... e nunca consegui perceber porquê. - Puxou a mesa e ajeitou os dois bancos baixos, com três pernas. - sentem-se, sentem-se! Vou buscar-lhes vinho!
- E pão, Theo! Montes de pão! - pediu Justin. - Não comemos nada durante todo o dia!
A nossa chegada despertou pouco interesse aos restantes comensais, que continuaram a sua refeição como se não existíssemos. Pensei que se tratava de algo muito invulgar até ao momento em que Justin me explicou que era o costume e que ninguém o considerava como uma falta de educação.
- No leme não têm tabernas? - inquiriu.
- Não. São uma coisa nova para mim... tal como tudo o mais nesta cidade.
- Cheguei a Constantinopla há quatro anos. Não tinha amigos, pelo que vinha aqui muitas vezes, embora nem sempre pudesse fazê-lo com tanta facilidade porque na altura não passava de um legionário.
- Tens família?
- Apenas a mãe e uma irmã - replicou - que continuam a viver em Chipre. Não as vejo há sete anos mas sei que estão bem. Escrevemo-nos com frequência. Essa é uma das bênçãos da vida no exército do Imperador. Um soldado pode enviar cartas para qualquer lado do mundo e tem a certeza que chegarão ao seu destino.
Theo regressou com uma bilha com duas asas, semelhante a uma pequena ânfora mas com um fundo achatado.
- Para vocês, meus amigos, reservei o melhor! Vinho de Chios! - anunciou, fazendo aparecer duas taças de madeira que colocou ao lado da bilha. - Bebam isto... e esqueçam-se de todos os vinhos que já provaram até hoje!
- Se o bebermos todo... - retorquiu Justin com uma gargalhada - vamos esquecer-nos de tudo.
- E seria uma coisa assim tão terrível? - Theo riu-se e bateu em retirada, para regressar um instante depois com quatro pães num cesto de verga. Os pães ainda estavam quentes.
- Diz-me, Aidan... - pediu Justin, despejando o vinho nas duas taças de madeira - que pensaste do Imperador?
- É um grande homem - respondi, pegando num dos pães e entregando-o a Justin.
- Ah, sem dúvida! - admitiu, bem-disposto e partindo o pão ao meio. - Nem sequer é preciso dizê-lo! Fez muito para benefício da cidade e do Império.
À maneira de Constantinopla, Justin murmurou uma oração pela refeição, oração que nem sequer foi muito diferente das que eu poderia ter ouvido no mosteiro. Terminada a oração, peguei noutro pão e parti-o ao meio, libertando um odor a fermento que me fez crescer a água na boca. Comemos e bebemos durante algum tempo, saboreando o pão e aquecendo para o vinho.
Passado um bocado, Justin comentou:
- Podemos estar numa cidade romana, mas Constantinopla tem um coração bizantino e os corações bizantinos são, acima de tudo, desconfiados.
- E desconfiados porquê?
- Precisas de perguntar? - retorquiu Justin, com um sorriso que se tornou mais secreto e astuto. - Aqui, nada é simples, meu amigo. Todos os acordos ocultam traições, e toda as amabilidades são astúcias disfarçadas. As virtudes são calculadas até ao mais pequeno pormenor e negociadas em busca de vantagens. Tem cuidado! Em Bizâncio nada é o que parece!
Pareceu-me improvável e disse-lho, mas só serviu para que Justin se tornasse mais insistente.
- Olha à tua volta, sacerdote. As desconfianças andam à solta em todos os locais onde exista riqueza e o poder. Até Roma, nos seus momentos de maior glória, não conseguiu ultrapassar a riqueza e o poder que Constantinopla possui neste momento. Nesta cidade, as desconfianças são uma necessidade. São a faca que escondes na manga e o escudo que te protege as costas.
- Mas... somos cristãos... e dispensámos esses conceitos terrenos... - salientei.
- Tens razão, é claro - concedeu Justin, esvaziando a taça pela segunda ou terceira vez. - Talvez eu tenha vivido demasiado tempo nesta cidade. No entanto, também os cristãos ouvem os boatos... - Inclinou-se para a frente, por cima da mesa, e baixou a voz. - Diz-se que o nosso antigo imperador, o basileu Miguel, morreu de uma queda. Contudo, será que um homem perde as duas mãos pelos pulsos... por ter escorregado no banho? Até os amigos do Imperador afirmam que a ascensão de Basil, o Macedónio, se deveu mais ao hábil uso da lâmina do que à interferência divina. - Justin calou-se e serviu-se do indicador para desenhar uma linha sobre a garganta.
O Rei dos Reis, Eleito de Cristo, Vice-Regente de Deus sobre a Terra... envolvido num assassínio? Como era possível que houvesse alguém capaz de pensar numa tal hipótese... e de a pronunciar em voz alta? Era assim que os cidadãos de Constantinopla passavam os seus dias, envolvidos em especulações vis e em calúnias maldosas? Ah, mas o homem bebera uma tão grande quantidade daquele forte vinho que lhe perdoei as calúnias e não liguei ao que me disse.
O proprietário da taberna regressou e pousou na nossa frente duas malgas com um caldo leitoso e duas colheres de madeira. Foi-se embora sem uma palavra, encaminhando-se para outro grupo de três, reclinados nos sofás. Momentos depois, os quatro homens riam-se à gargalhada. Levei a malga aos lábios para beber mas Justin mexeu a sopa com a colher, o que me fez ver até que ponto me adaptara às maneiras dos bárbaros.
- Contudo, penso que todos os possíveis desgostos pelo falecimento de Miguel foram sepultados juntamente com o seu corpo ensanguentado - afirmou Justin com ligeireza, levando a colher aos lábios e soprando a sopa. - Era um libertino e um bêbado, que quase levou a cidade à ruína com as suas extravagâncias e dissipações. Toda a gente sabe que seduziu a mulher de Basil e que a levou para a cama, não apenas uma mas sim muitas vezes... e que Basil sabia. Na verdade, até há quem afirme que um dos filhos do Imperador não é dele, e que foi graças ao facto da mulher do cornudo ter produzido um bastardo real que o infeliz Basil conseguiu envergar a púrpura e transformar-se em co-regente.
Olhei rapidamente em volta para ver se alguém o ouvira e vi, para meu grande alívio, que os outros convivas pareciam indiferentes à nossa conversa.
- Como podes dizer coisas dessas? - perguntei, num sussurro áspero e ofendido.
Justin encolheu os ombros e engoliu o caldo.
- Não estou a dizer que o basileu Miguel era um mau homem... mas sim que era um fraco.
- Um fraco! - ofeguei.
O meu companheiro levantou os cantos da boca, num sorriso sombrio.
- Já tivemos papas e patriarcas que, em comparação, fariam com que o pobre tonto do Miguel parecesse um santo. Diz-se que Phocus manteve dois rapazes abissínios como amantes e que torturou heréticos só para divertir os seus convidados para o jantar. Por outro lado, também se diz que Theophilus matou dois irmãos e um filho para conseguir o trono... e o próprio Basil tem o filho encerrado numa prisão neste preciso momento.
Justin levou a malga para mais perto da boca e começou a comer a sopa. Fiquei a olhá-lo, de boca aberta, incrédulo. - Não estás a comer, Aidan... - comentou, por cima da sua malga.
- Não gostas da sopa?
- Não é por falta de apetite que me contenho... - retorqui, com secura. - Estou horrorizado com os modos desumanos que estás a utilizar para caluniar o Sacro Imperador, e com a facilidade com que repetes as mais vis difamações. Mesmo se uma pequena parte do que dizes fosse verdade, tal deveria levar-te a rezar pelo perdão para o nosso soberano caído, e não à repetição de boatos maliciosos.
Justin pousou a malga da sopa.
- Vejo que te perturbei... As minhas palavras foram mal escolhidas. Perdoa-me, irmão, mas é a nossa maneira de falar. Juro-te, pela minha vida, que não pretendia ofender-te. Peço desculpa.
A sua contrição suavizou a minha ira e acalmei-me.
- Talvez as minhas objecções tenham sido exageradas. No fim de contas, sou um estranho nesta terra. Se falo quando deveria escutar... então és tu quem terá de me perdoar.
- Não, fizeste bem em recordar-me os meus deveres de caridade - replicou Justin, pondo a malga de lado. Voltou a pegar nas taças e entregou-me uma. - O melhor, para bem desta bela refeição, é lançarmos todas essas coisas desagradáveis para trás das costas e fazermos uma saúde. - Levantou a taça e imitei-o. - À amizade entre homens cristãos! - proclamou.
- À amizade entre cristãos! - respondi, levando a taça aos lábios. Comemos em silêncio durante algum tempo, bebericando o vinho e molhando o pão no caldo dourado. Comecei a sentir-me genuinamente renascido. Justin estava novamente a encher-nos as taças quando a mulher do proprietário apareceu junto à nossa mesa trazendo uma travessa de madeira... com um frango assado para cada um de nós! A travessa cobria quase toda a mesa e obrigou Justin a pousar os copos e a bilha do vinho no chão. A mulher colocou-a na nossa frente e ficou parada a admirar o seu trabalho antes de nos incitar a comer e a divertirmo-nos.
- Agora... - declarou Justin com ligeireza - demonstremos o nosso respeito para com estas negligenciadas aves. - Tirou a faca do cinto e começou a cortar o frango, indicando-me que deveria fazer o mesmo. Quando hesitei, perguntou: - Não tens faca? - Contudo, acrescentou imediatamente, ainda antes de lhe conseguir responder: - Claro que não tens! Olha, usa a minha! - disse, estendendo-me a faca. - Perdoa-me, Aidan, mas nunca me lembro que és um escravo.
As aves estavam recheadas com amêndoas e carne doce condimentada com cominhos e mel, e vinham rodeadas por pequenos embrulhos feitos com folhas, que continham carne de borrego temperada com menta, lentilhas e cevada. Cada boca cheia, cada pedaço, eram uma verdadeira revelação de maravilhas. Cada dentada era uma delícia que - e envergonho-me de o dizer -, devorei avidamente, deixando-me arrastar por aqueles sabores exóticos. Sabem, nunca tinha provado limões mas discerni o seu esplêndido aroma e sabor em quase todos os pratos, incluindo a sopa. Também nunca provara folhas de videira, sementes de anis, azeitonas... nem metade de todas as especiarias utilizadas naquela refeição.
Estou convicto de que nunca saboreei comida tão boa e sumptuosa, e poder fazê-lo na companhia de outro cristão foi para mim uma verdadeira bênção. Recordei as refeições na mesa da abadia e censurei-me a mim mesmo por todas aquelas vezes que me sentira pouco caridoso para com um qualquer dos meus irmãos, mas muito em particular para com o Diarmot.
Essa recordação fez-me pensar no Éire e senti uma vaga de saudade pelos monges de Kells. Sentia falta deles, do ritmo firme e regular da roda dos dias, dos Salmos, das orações e da leitura dos Evangelhos durante a refeição da noite. Tinha saudades do abade Fraoch, de Ruadh e de Cellach, do scriptorium e da sensação de ter uma pena na mão. Ah, que Deus o abençoasse... como sentia a falta do Dugal!
Ah, mo croi, pensei, que terá sido feito de ti?
- Não comia tão bem e em tão boa companhia desde que saí de Kells - comentei para o Justin depois de termos extinguido os primeiros ardores da fome.
- Tenho-me interrogado a esse respeito... - retorquiu. - Como foi que um sacerdote de Ierne acabou como escravo no meio dos bárbaros selvagens?
Foi nessa altura que, enquanto escolhíamos os bocados mais apetitosos da travessa que tínhamos na nossa frente, lhe narrei a minha estada entre os Lobos do Mar da Escandinávia. Falei-lhe da abadia, do trabalho que lá executava, do facto de ter sido escolhido para a peregrinação e do livro que havíamos feito para o Imperador e cuja capa vira naquele mesmo dia.
- Foi fabricada pelos irmãos de Hy... - expliquei - mas os bárbaros destruíram o livro.
- Pertences a uma seita?
- Pertenço aos Célé Dé. As palavras significam Servo de Deus - disse-lhe, acrescentando que éramos uma pequena comunidade de monges que viviam de um modo simples, rezavam continuamente, trabalhavam para se sustentarem e para manterem a abadia, e que serviam o povo da sua região das mais variadas maneiras.
Justin escutou atentamente tudo o que lhe disse, fazendo perguntas de vez em quando mas contentando-se, durante a maior parte do tempo, em escutar. O vinho soltou-me a língua e falei - muito mais do que teria julgado possível - ao longo de todo o resto da refeição e muito para além dela.
Chegado o momento de abandonarmos a taberna, Justin pagou ao proprietário, que se despediu, nos desejou as boas-noites e nos brindou com alguns pequenos bolos doces para comermos durante o caminho de regresso a casa.
- Ainda não me contaste como foi que passaste a ser escravo de Harald - declarou Justin, quando já nos encontrávamos de regresso à Mese. - É uma história que gostaria muito de ouvir.
Satisfiz-lhe a curiosidade enquanto caminhámos pela rua quase vazia e contei-lhe tudo. Descrevi-lhe todo o trabalho que envolvera três mosteiros no fabrico do livro e da sua capa de prata, bem como na infeliz peregrinação a Constantinopla. Concluí, dizendo:
- Fui muito afortunado porque, pelo menos, consegui chegar até aqui. Não faço ideia sobre o que aconteceu aos outros e temo o pior.
- Quanto a isso... - replicou Justin - tenho amigos entre os scholarii das portas da cidade. Falarei com eles. É muito pouco o que entra ou sai da nossa cidade sem que eles dêem por isso, e é possível que alguém da minha coorte tenha ouvido alguma coisa a respeito dos teus irmãos. - Virou-se e levantou a mão para a Porta Magnaura, que se encontrava na nossa frente. - Chegámos ao fim do caminho. Vamos procurar um barco para ti para te levar ao navio.
Justin conversou brevemente com o guarda e o homem deixou-nos sair pela porta da noite. Apesar de ser tarde, ainda se encontravam algumas pequenas embarcações à espera no fundo das escadas. Justin regateou com um dos barqueiros e pagou-lhe.
- Vai levar-te ao navio. Boa noite para ti, Aidan - disse, ajudando-me a embarcar.
- Obrigado, Justin - respondi. - E obrigado também por todo o que fizeste por mim ao longo deste dia. Rezarei a Deus para que pague a tua bondade e te recompense mil vezes...
- Por favor, não digas mais nada... - respondeu. - Já tive a minha recompensa. O Imperador favoreceu-me com o seu ouro, e para além disso comi o pão e bebi o vinho com um irmão. Foi um óptimo dia para mim. - Levantou a mão numa despedida e acrescentou: - Lembra-te que vou procurar notícias dos teus amigos... e que é possível que já saiba qualquer coisa dentro de um ou dois dias. Vem ver-me quando puderes.
- E como é que te encontro? - gritei, quando o barco se afastava do cais.
- Estou sempre na porta da cidade. Adeus, meu amigo, e que Deus te acompanhe!
- E a ti também. Adeus, Justin!
Na manhã seguinte, muito cedo, Harald iniciou os preparativos para receber o protospatharius a bordo do navio... e maravilhei-me com a ansiedade com que aquele saqueador de barbas vermelhas se apressava a adoptar as aparências da civilização. Observei-o a andar de um lado para o outro no convés, ordenando que o navio fosse preparado para a inspecção pelo Superintendente da Frota, e pensei para comigo: ontem não passavas de um patife pronto para a pilhagem, mas hoje já és um leal defensor do Império.
O aguardado funcionário chegou ao meio-dia numa pequena embarcação e apareceu na companhia de quatro homens que envergavam capas azuis. Todos eles usavam cintos castanhos, chapéus pretos de copas baixas e abas largas, e traziam sacolas de pano preto suspensas junto aos flancos, penduradas nos ombros por uma correia de couro. Como se tratava de um funcionário da corte imperial, o protospatharius também empunhava um bastão de marfim com uma bola de bronze em cada extremidade.
O superintendente e os seus homens subiram a bordo trazendo saudações do basileu e um documento redigido num pergaminho em que se reconhecia que o jarl e os seus homens eram mercenários ao serviço do imperador.
- Sou Jovians, protospatharius da Frota Imperial - disse-nos, entregando o pergaminho selado a Harald, que o recebeu com genuína gratidão e se sentou com uma expressão quase abençoada enquanto lho lia. A seguir, os dois homens instalaram-se em frente de uma refeição de pão escuro, peixe e öl, comeram e conversaram amigavelmente, e só depois se lançaram na discussão dos negócios, ou seja, na discussão dos valores e métodos de remuneração pelos serviços a prestar por Harald.
O Imperador, como vim a saber, avaliara o valor dos serviços de Harald em mil nomismi por mês. No entanto, verificou-se alguma confusão a este respeito até ficar esclarecido que o termo "mês" devia ser entendido como o espaço de tempo entre duas Luas Cheias.
- São cem denários de prata por mês - esclareci. - Acho que é muito bom, jarl Harald.
Hnefi e Orm, que se encontravam sentados ali perto, ouviram o número e nem quiseram acreditar na sua boa sorte.
- Jarl Harald... - exclamaram - isso é mais do que conseguimos obter com as pilhagens de todo o Verão passado!
Todavia, o saqueador dinamarquês não estava habituado a aceitar imediatamente a primeira proposta que lhe fizessem.
- Talvez seja suficiente pelos meus serviços e pelo uso dos navios - retorquiu, astuto. - No entanto, tenho quatro navios e cento e sessenta homens. Quanto é que lhes vou dar?
- Não sabia que tinha tantos homens... - respondeu Jovian. - Talvez seja possível acrescentar mais qualquer coisa... - Levou a cabo uma breve conferência com os seus subordinados e acrescentou: - Nesse caso, dois mil nomismi serão suficientes? Mil por si e pelos seus navios, e outros mil pelos homens. Que me dizem?
- São menos de dez denários por homem... - queixou-se Harald.
- Mas é mais do que a maioria deles jamais teve nas mãos de uma só vez... - salientou Hnefi.
- Não! - declarou Harald, abanando a cabeça de um modo lento e obstinado. - Dez por cada homem!
Transmiti a resposta ao superintendente da frota.
- Bom, talvez oito... - respondeu este, cauteloso. - Para além disso, permitirei que os vossos homens também partilhem o pão dos theme.
Harald escutou a proposta, analisou-a e estendeu a mão ao homem, à maneira dos bárbaros. O protospatharius olhou para a mão do monarca dinamarquês com uma expressão confusa.
- Está a dizer-lhe que concorda... - informei o funcionário. - Se estiver de acordo, aperte a mão dele e faça assim... - expliquei, fazendo um movimento com as mãos para lhe mostrar como era.
Jovian pegou na mão do Rei dos Mares e o acordo ficou selado. Depois daquele assunto ter ficado esclarecido, passaram a discutir os direitos, privilégios e deveres dos dinamarqueses como novos súbditos do Império. Por fim, decidiram como, onde e quando iriam buscar as provisões para a viagem, bem como os métodos a utilizar pelos Lobos do Mar para se juntarem aos navios da frota Imperial que iriam partir para Trebizonda. Escusado será dizer que passei todo o dia a traduzir o que diziam um ao outro. Foi uma tarefa aborrecida mas aprendi muito, tanto sobre a frota do Imperador como sobre a natureza da viagem que ia ser empreendida.
Compreendi que não se tratava apenas de uma viagem de comércio, embora este também estivesse incluído uma vez que Trebizonda - dado o facto de se encontrar no extremo mais longínquo da fronteira oriental -, há muito que abastecia Bizâncio com as suas sedas, especiarias, jóias e outros luxos essenciais que, como vim a aprender rapidamente, eram controlados pelos árabes. Uma vez por ano, partia de Bizâncio uma grande frota de navios de mercadores que se dirigiam a Trebizonda para participarem no grande festival comercial que tinha lugar na Primavera, onde se encontravam com delegações de mercadores vindas de todo o mundo.
Contudo, recentemente, a delegação bizantina começara a ter problemas com os piratas árabes que atacavam os navios de passagem para o mercado tanto na viagem de ida como na de volta, o que criara a necessidade do envio de uma escolta de navios de guerra para proteger os mercadores. Tratava-se de uma acção dispendiosa, que a marinha imperial preferia evitar, tanto mais que essas embarcações eram cada vez mais necessárias noutros sítios. Era por esse motivo que o Imperador ia arriscar os seus navios nos mares invernosos, a fim de enviar um emissário que se reuniria em conselho com uma entidade chamada Califa de Samarra. Se a reunião tivesse êxito e os actos de pirataria pudessem ser controlados, então evitar-se-iam muitas despesas e perdas de sangue por altura do festival do ano seguinte.
Já era tarde quando o protospatharius concluiu as negociações e se foi embora. Pedi autorização para regressar à cidade, pensando que poderia voltar a rezar numa das igrejas de Constantinopla ou ter alguma notícia de Justin quanto ao destino dos meus irmãos monges, mas o jarl Harald não mo permitiu e aproveitou para exigir que o informasse sobre o que : se passara entre mim e o imperador no dia anterior. Acalentara a esperança de que não mo perguntasse mas já decidira, caso isso viesse a acontecer, que lhe diria a verdade, ou pelo menos aquela parte da verdade que me era possível transmitir-lhe sem trair a confiança do Imperador.
- Era muito tarde quando regressaste ao navio - salientou o monarca. - Pergunto a mim mesmo que espécie de utilidade terá o Imperador descoberto no meu escravo...
- Jarl Harald... - respondi - é verdade que estive longe de ti durante muito tempo. O Imperador quis falar comigo a respeito da viagem a Trebizonda.
- Estou a ver... - respondeu, de um modo que sugeria que não compreendia de modo nenhum porque motivo o Imperador se dera ao trabalho de falar comigo.
- Creio que te ficou grato por teres levado o Capitão do Porto a enfrentar a justiça... - sugeri, fugindo um pouco ao assunto.
- Ah, sim... - replicou Harald como se já quase não se recordasse do incidente - ... o Capitão do Porto. Mais nada?
- O Imperador pensa que não pode confiar em muitos dos seus funcionários da corte - continuei - e é por isso que faz um uso tão liberal de mercenários, homens que prosperam com os seus êxitos e nada têm a ganhar com a sua morte... e mostra-se disposto a recompensar amplamente todos aqueles que lhe agradarem.
- Acho que esse Basil é um homem esperto, que se sabe servir muito bem das ferramentas da sua arte... - murmurou Harald. - Perguntou alguma coisa a meu respeito?
- A teu respeito, jarl Harald? Não, não me perguntou nada a teu respeito, nem sobre os teus negócios. No entanto posso afirmar-te que pareceu ter ficado muito satisfeito com o acordo entre os dois. De qualquer modo, não falou mais no assunto... excepto para dizer que considerava estas alianças como muito úteis, uma vez que não podia confiar nos outros.
- Heya... - retorquiu Harald, distraído. Era óbvio que eu não lhe estava a dizer o que ele queria ouvir. Permaneceu em silêncio durante um bocado e acrescentou: - Ficarás a bordo até partirmos. Está decidido!
Mandou-me embora, pelo que me dirigi para a proa e me instalei no recanto muito agudo formado pela elevação da quilha e pelas amuradas. Foi aí, por baixo da feroz cabeça pintada de um dragão, que virei o rosto para as tábuas, fechei os olhos e tentei impor alguma ordem ao caos dos meus pensamentos. Aqueles últimos dias haviam sido muito confusos para mim e sofria os efeitos de todo o esforço despendido a tentar navegar contra uma verdadeira maré de acontecimentos.
Para começar, chegara à cidade da minha morte. Por estranho que pudesse parecer, o facto deixara de me meter medo. Suponho que vivera o suficiente com esse conhecimento para que todo o medo desaparecesse. Agora que ali estava já pouco sentia, excepto talvez uma curiosidade ambígua. Contudo, os meus sonhos lúcidos nunca faziam previsões falsas e uma longa experiência nesse campo há muito que me ensinara que aquilo que neles via nunca deixava de acontecer. Mesmo assim, chegara a Constantinopla, caminhara pela cidade e continuava vivo... e não fazia ideia sobre o que deveria pensar a esse respeito.
Também não sabia o que pensar acerca da sugestão de Justin de que talvez conseguisse ter notícias dos meus irmãos monges. Se tivessem chegado a Constantinopla, então de certeza que o Imperador o saberia uma vez que lhe teriam pedido uma audiência mesmo que não o pudessem presentear com o livro. A lógica sugeria que a peregrinação falhara, mas a esperança argumentava em contrário.
E depois... havia o segredo do Imperador. Que deveria pensar a esse respeito?
- Neste momento, temos uma hipótese de paz com os maometanos do Abássida - dissera-me o Imperador logo que havíamos ficado a sós. Apesar da paz ser uma meta louvável e digna de ser perseguida em todas as circunstâncias, não fazia ideia sobre quem ou o que seriam esses tais maometanos... e fora precisamente por causa disso que o Imperador quisera incluir-me na embaixada a Trebizonda. - Necessitamos de uma testemunha imparcial, astuto monge - afirmara o Imperador. - Precisamos de alguém que observe e recorde o que lá se passar, de uma pessoa desconhecida e de quem ninguém desconfie...
A seguir, o basileu deixara implícito que me libertaria do cativeiro de Harald se estivesse de acordo em informá-lo sobre o andamento das reuniões entre os seus emissários e os do califa. Que homem escolheria continuar como escravo, nem que fosse apenas por um momento, se lhe dessem a oportunidade de se ver livre da escravatura com uma única palavra?
Oh, mas eu também era cauteloso! Por muito que tentasse, não conseguia discernir os motivos do Imperador. Talvez pretendesse apenas ajudar-me, ou recompensar-me com a liberdade por ter ajudado a colocar um quaestor desonesto perante a justiça. Contudo, se fosse isso o que tivera em mente, então podia tê-lo feito logo ali, no momento...
Meditei nas palavras do Imperador, dando-lhes voltas na minha mente. Também prestara uma atenção especial a tudo o que se passara entre Harald e o Superintendente da Frota, na esperança de captar uma sugestão, por muito pequena que fosse, sobre os receios do Imperador a respeito de alguém ou de alguma coisa, receios esses que o tinham levado a tomar precauções tão ilícitas. Ficara a saber muita coisa, mas nada que justificasse quaisquer apreensões nem que respondesse à interrogação mais vexatória: porque fora que o imperador me escolhera?
Talvez, como sugerira, não pudesse dispensar nenhum dos seus homens de confiança para aquela missão e tivesse chegado à conclusão de que eu, como escravo de Harald, tinha de seguir nos navios e podia préstar-lhe um serviço útil. Contudo, não deixei de me interrogar: seria de facto tão difícil encontrar homens leais?
Provavelmente agira apenas por impulso e nada mais. Foi o que repeti para mim mesmo... mas mesmo assim não consegui deixar de pensar que havia algo muito mais sinistro por trás de tudo aquilo. Sem dúvida que estava a ser influenciado pela vil má-língua de Justin, pois tenho de confessar que a mesma me perturbara grandemente. Falar daquele modo fora uma atitude muito descuidada da sua parte. Fosse eu um melhor sacerdote e ter-lhe-ia imposto uma penitência para o inibir de repetir boatos sempre que, no futuro, voltasse a sentir-se tentado a fazê-lo.
Estes pensamentos rodopiavam sem descanso na minha mente inquieta, sem nunca se deterem. Contudo, no fim, cheguei a uma conclusão: fora o próprio Sacro Imperador quem pedira os meus serviços e eu, como sacerdote da igreja, era obrigado a obedecer-lhe ou faltaria ao meu juramento.
As desconfianças, dissera Justin, são a faca escondida na tua manga e o escudo a proteger-te as costas. Tentei afastar aquela ideia da cabeça mas não conseguia deixar de recordar as palavras do guarda: As desconfianças andam à solta em todos os locais onde exista riqueza e o poder.
Tais eram os pensamentos, que me enxameavam no cérebro como vespas. Acabei por abandonar a ideia de lhes impor alguma ordem e limitei-me a aliviar o meu coração na presença de Deus. Rezei durante muito tempo mas não obtive nenhuma espécie de alívio. Desisti e sentei-me tranquilamente, ouvindo as conversas dos homens à minha volta. Instantes depois, levantei-me e entretive-me a tratar de outras coisas.
No dia seguinte, o Superintendente da Frota enviou-nos um homem com um mapa que indicava o nosso destino e a rota que deveríamos seguir. O monarca e o piloto estudaram o mapa, serviram-se de mim como intérprete e interrogaram o homem durante muito tempo. O mapa era muito mais pormenorizado e preciso do que qualquer outro que Thorkel já tivesse visto, e revelava muito a respeito dos mares do sul, até ali completamente desconhecidos para os dinamarqueses. Depois de se sentirem esclarecidos sobre tudo o que puderam, Harald mandou o homem embora... e ainda mal este acabara de descer do convés e já o monarca me ordenava que lhe fizesse uma cópia do mapa. Perseverei, não obstante ter de me servir das ferramentas mais primitivas - tal como uma pena de ave para escrever! - e acabei por descobrir que aquele trabalho me era agradável. Não consegui resistir à tentação e desenhei algumas espirais e nós entrelaçados num dos lados do pergaminho. A pena, embora rudimentar, serviu-me bem. Gostei tanto de praticar a minha antiga arte que também desenhei um ganso selvagem - símbolo do Espírito Santo - por cima do vazio dos mares do sul, numa bênção a todos os que viessem a pegar naquele mapa em anos , futuros. O trabalho ocupou-me durante o resto do dia e afastou-me a mente do meu desejo de ir a terra.
Na manhã seguinte, os navios foram transferidos para o Porto de Theo-dosius, que servia a frota do Imperador e se encontrava mais perto dos armazéns e dos celeiros. Passei toda aquela desagradável manhã de chuva a ver as carroças que rolavam para o cais e os sacos e cestos de provisões que eram descarregados para os navios que os aguardavam, sempre à espera de uma oportunidade para abandonar o navio. Não obstante as ordens de Harald, ainda tinha a esperança de conseguir trocar algumas palavras com Justin. Algum tempo depois a chuva parou e surgiu um sol baço e enevoado. As gaivotas rodopiaram no ar, mergulhando nas águas do porto em busca de restos. O meio-dia aproximou-se e comecei a recear que Harald mantivesse a sua decisão e que não me desse uma última oportunidade de ir à cidade.
Felizmente, Gunnar veio ter comigo quando os últimos sacos de provisões já estavam a ser armazenados.
- Heya, Aeddan! - declarou, à maneira de saudação - O jarl Harald disse que eu e o Hnefi temos de ir buscar a nossa parte do pão. - Passou-me para as mãos um pequeno quadrado de pergaminho com o selo imperial, em que alguém escrevera um número. - Também disse que tens de ir connosco para o caso de sermos questionados pelos que detêm a autoridade sobre o pão.
Era a oportunidade por que eu tanto ansiara. Enfiei o pergaminho no cinto e respondi:
- Quando o jarl ordena, devemos obedecer. Vamos, depressa!
- Heya! - concordou Gunnar, olhando-me com uma expressão dúbia.
Chamámos duas das inúmeras pequenas embarcações que trabalhavam no porto e partimos com um grupo de dez homens para irmos buscar o pão para os navios. Um dos pequenos privilégios do serviço nas forças imperiais era aquela ração de pão que podia ser obtida em qualquer das várias padarias imperiais espalhadas pela cidade. Embora os quatro navios de Harald se encontrassem completamente carregados de provisões, o monarca tinha a intenção de exigir tudo o que lhe era devido. Se o acordo com o Superintendente da Frota incluíra o pão, e se o Imperador decretara pão gratuito para os que o serviam... então Harald queria receber esse mesmo pão até à última migalha.
Não obstante estarmos agora ao serviço do Imperador, continuávamos a ser bárbaros e tínhamos de utilizar a Porta Magnaura. Este facto significava um regresso ao Porto de Hormisdas, mas os barqueiros não se importaram porque iriam ganhar mais. Não perdi tempo a dirigir-me à porta logo que desembarcámos. Deixei Gunnar e Hnefi com o prefeito da porta, para adquirirem os disci para os outros, e corri até ao posto dos guardas. Justin não se encontrava entre eles e não o vi em lado nenhum.
- Onde está o scholarae Justin? - perguntei, dirigindo-me ao soldado mais próximo.
O homem olhou-me com uma expressão de desprezo.
- Põe-te a andar - grunhiu.
- Por favor... - insisti. - É importante. Fiquei de me encontrar com ele aqui e preciso de saber para onde foi.
- Não tens nada com isso! - retorquiu o guarda. Preparava-se para me afastar dali à força quando um dos outros intercedeu por mim.
- Lucca, diz-lhe o que ele quer saber - pediu o outro. - Não faz mal nenhum...
- Então diz-lho tu! - replicou o primeiro soldado, franzindo o nariz para mim e virando-me as costas.
- Se sabes onde ele está - disse, apelando ao segundo soldado - ficaria muito grato pela tua ajuda.
- O scholarae Justin foi recolocado - declarou o homem. Olhou-me com mais atenção e perguntou: - És tu o sacerdote chamado Aidan?
- Sim, sou eu.
O soldado acenou um assentimento e declarou:
- Disse-me para te informar que o poderás encontrar no Grande Palácio.
- No palácio...? Mas onde...? - Senti o coração a cair-me aos pés ante a perspectiva de ter de o localizar no meio daquele labirinto de muralhas, salões, residências e escritórios, isto partindo do princípio de que me deixariam entrar. - Em que parte do palácio?
- Não mo disse - retorquiu o guarda, encolhendo os ombros. - Provavelmente, está num dos portões.
Agradeci ao guarda e afastei-me, interrogando-me sobre quando teria a hipótese de regressar ao Grande Palácio, e sobre como iria localizar o Justin mesmo que conseguisse lá chegar.
Gunnar e Tolar estavam à minha espera quando regressei à tenda do prefeito.
- Bom... - disse Gunnar, olhando para a rua cheia de gente - agora só temos de descobrir um sítio onde façam o pão.
Olhei em volta e reparei nas pessoas que entravam e saíam pela porta da cidade. Eram muitas as que transportavam fardos, mas algumas eram conduzidas por outras que seguiam à frente e abriam o caminho. Tive uma inspiração súbita e comentei:
- É mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Todos sabemos o que aconteceu da outra vez, quando andámos a vaguear pela cidade.
- Sim, e o jarl Harald não ficou tão contente connosco como esperávamos... - admitiu Gunnar enquanto Tolar acenava com um ar sombrio.
- Pois não, não ficou - concordei. - A melhor maneira de evitarmos a ira do rei é arranjando alguém que nos sirva de guia.
- Tens boas ideias, Aeddan - afirmou Gunnar - mas não me parece que Hnefi nos autorize a fazê-lo.
Pensei rapidamente e perguntei:
- Quantas moedas de prata tens contigo?
- Não mais de dez moedas - retorquiu, olhando-me com desconfiança.
- Óptimo! - exclamei. - Devem ser suficientes... e talvez nem sequer venham a fazer falta. - Olhei para os outros, à espera a uns dez passos de distância. - Vamos perguntar ao Hnefi.
Seguiu-se uma curta consulta, com Gunnar e Hnefi a argumentarem a respeito da ideia de contratação de um guia.
- Esta Miklagard é uma povoação muito grande e confusa, tal como sabes - salientou Gunnar. - Se o jarl estivesse aqui, de certeza que se serviria de um guia.
- O jarl Harald nunca se serviria de um guia - insistiu Hnefi - e eu também não o farei. Somos Lobos do Mar e não precisamos da ajuda de ninguém para descobrirmos o caminho.
Os dinamarqueses que nos olhavam acenaram a sua concordância e percebi que as suas opiniões eram em grande parte a favor da posição de Hnefi.
- Estás enganado, Hnefi. Num sítio como este, é bem melhor termos alguém que nos indique o caminho - insisti.
- Da última vez andámos sozinhos e as coisas não nos correram bem - acrescentou Gunnar. - O jarl ficou muito zangado connosco. Acho que vale a pena recordares-te disso.
- Serve-te tu de um guia - troçou Hnefi, como se se tratasse de um insulto. - Nunca me rebaixarei ao ponto de aceitar uma tal indignidade.
- Muito bem! Arranjaremos um guia... - declarei - e entregaremos o pão nos navios antes de vocês.
- Falas demais! - grunhiu Hnefi. - Não dou ouvidos ao palavreado de escravos!
Aproveitei a oportunidade e lancei o meu desafio:
- Então façamos uma aposta e veremos quem tem razão!
- Foi por tua culpa que o jarl ficou zangado - replicou Hnefi, num tom descuidado. - Não estou interessado em dar-te ouvidos.
- Só dizes isso porque não queres separar-te da tua prata - comentei, embora com algum receio de ser agredido. - Sabes que tenho razão mas não queres admiti-lo em frente dos teus amigos. - Indiquei os dinamarqueses que nos olhavam com um interesse crescente.
Tal como esperava, Hnefi mordeu o isco.
- Não faço apostas com escravos - declarou, endireitando-se com um ar altivo. - Para além disso, não tens prata.
- É verdade - admiti. - Contudo, Gunnar tem a bolsa bem recheada.
- Mas não tão recheada que não possa levar mais moedas - acrescentou Gunnar num tom grandioso. - Vamos Hnefi, façamos essa aposta... se não tiveres medo de perder. Três peças de pra...
- Dez peças de prata! - declarei, intervindo rapidamente. - Dez denários para os primeiros a chegarem ao navio com metade da ração de pão.
Gunnar hesitou e olhou-me com algumas dúvidas.
- Ah! Já não pareces muito convencido, Gunnar Gabarolas? - exclamou o altivo Hnefi, rindo-se. - Dez peças de prata é demasiado para ti, heya?
- Estava apenas a pensar em como irei gastar os meus ganhos - respondeu Gunnar calmamente. - É difícil saber o que fazer com tanta prata, toda de uma só vez. Essas coisas precisam de ser planeadas... e vou ter de comprar uma bolsa maior.
Tolar soltou uma risadinha.
- Sigam o vosso caminho! - troçou Hnefi. - Veremos quem chega primeiro aos navios. - Hnefi virou-se para os restantes bárbaros. - São livres de escolher. Querem ir com o Gunnar ou comigo?
O convite deu origem a uma breve discussão sobre os méritos de cada um dos lados. Alguns deles sentiam-se intrigados e talvez fossem capazes de alinhar com Gunnar, mas a aposta mais segura era ao lado de Hnefi. Os bárbaros, ao que parecia, confiavam mais no seu chefe de batalha do que num escravo e num guia desconhecido.
- Talvez seja melhor entregares-me já a tua prata - riu-se Hnefi. - Parece-me que vais ficar sozinho com o teu amigo escravo.
- Tolar também fica comigo - replicou Gunnar.
- Sim, mas os outros vão comigo.
- Como é que vocês três vão conseguir carregar tanto pão? - perguntou um dos bárbaros.
- Ora, isso não os preocupa... - troçou Hnefi - porque nunca o encontrarão! - Fez um gesto para que o grupo o seguisse e afastaram-se, muito bem-dispostos, discutindo como deveriam ajudar Hnefi a gastar o dinheiro que iria ganhar com a aposta.
- O Hnefi tem razão... - comentou Gunnar, pesaroso. - Mesmo que sejamos os primeiros a encontrar o pão, nunca o conseguiremos transportar. Fiz uma aposta estúpida.
- Não sejas tão pessimista, Gunnar - retorqui, com ligeireza. - Não te preocupes e nada temas. Deus está pronto para ajudar todos os que o invocarem em momentos de necessidade.
- Então, é melhor que o invoques agora, Aeddan - incitou-me Gunnar. - Somos três... contra dez.
De pé, no meio da rua, rezei a Deus para que nos conduzisse rapidamente ao padeiro mais próximo e nos concedesse a vitória. A oração deixou Gunnar muito agradado... e afirmou que um deus que ajudava um homem a ganhar apostas era um deus que valia a pena conhecer. - Agora... - disse-lhe - só temos de descobrir um guia.
Corri de volta ao cais... e uma rápida vista de olhos pela baía produziu rapidamente os resultados desejados.
- Ali! Ali está ele! - exclamei. - Depressa, ajudem-me a chamá-lo!
Gunnar, Tolar e eu parámos no cais, agitámos os braços e gritámos como loucos. Não foi preciso esperar muito para termos o pequeno barqueiro na nossa frente.
- Saudações, Didimus - disse-lhe. - Precisamos de um guia. Podes arranjar-nos alguém?
- Meu amigo... - retorquiu o homem, feliz - dizem ao Didimus para "arranjar um guia", e eu digo-vos: não procurem mais. Têm na vossa frente o melhor guia de toda Bizâncio. A cidade não tem segredos para Didimus. Podem colocar toda a vossa confiança em mim, meus amigos bárbaros, e em breve vos levarei onde quiserem ir.
Desceu os degraus à pressa para regressar à sua embarcação, amarrou-a a um anel de ferro na muralha do cais e regressou imediatamente, ansioso por nos conduzir. - Vejamos, onde é que querem ir? Talvez uma visita à Hagia Sophia? Ou à Igreja da Sagrada Sabedoria? Posso levá-los lá. Querem ir ao Hipódromo? Também vos levo até lá. Sigam-me, meus amigos, e em breve vos mostrarei tudo o que há de mais interessante nesta cidade.
Tive de o deter porque o barqueiro queria partir imediatamente.
- Didimus, espera um momento, por favor - pedi-lhe. - Temos um assunto urgente para resolver e precisamos da tua ajuda.
- Sou um vosso servo... e é como se esse vosso assunto já estivesse resolvido. - Sorriu, desviou os olhos para o Gunnar e voltou a fitar-me.
- Onde querem que vos leve?
- A padaria imperial mais próxima.
- Uma padaria! - exclamou o pequeno barqueiro, fazendo uma careta de desconsolo. - Têm toda a cidade à vossa disposição e querem ir a uma padaria! Levo-vos à Hagia Sophia! Vão gostar de a visitar!
- Com certeza, leva-nos à Igreja de Santa Sofia... - repliquei - mas primeiro é da maior importância que encontremos uma padaria para podermos levar a ração de pão para os navios.
- Se é isso o que querem... - respondeu Didimus, encolhendo os ombros - então o vosso desejo em breve será satisfeito. Sigam-me!
Avançou com vivacidade, gritando às pessoas que se afastassem do nosso caminho. Entretanto, Gunnar parecia preocupado.
- Não tens nada a recear - disse-lhe, logo que começámos a andar.
- Vamos ganhar. Como podes ver, Deus já respondeu às nossas orações.
Fomos atrás do nosso guia palrador, que parecia decidido a que apreciássemos todos os possíveis pontos de interesse que avistávamos ao longo do caminho enquanto percorríamos ruas estreitas e cheias de gente. Aconteceu que a padaria imperial mais próxima ficava perto dos celeiros e a pouca distância do porto, pelo que não tivemos de andar muito.
- Meus amigos, aqui têm a padaria - anunciou Didimus, apontando para o edifício pintado de branco que se encontrava na nossa frente.
Se não fosse a coluna de fumo que saía do tubo de barro erguido no telhado, aquilo até poderia ser um estábulo. Didimus avançou para a porta pintada de azul e bateu-lhe com a palma da mão. Ouvimos uma voz a ressoar no interior.
- Diz para esperarmos - informou-nos um barqueiro.
Ficámos na rua, observando as pessoas que se apressavam à nossa volta. O vestuário e a aparência dos bizantinos mais ricos voltou a divertir-me e a espantar-me. A sua atenção excessiva e extraordinária a cada uma das peças de vestuário e a cada caracol do penteado era espantosa. Vi três homens a passarem por perto, mergulhados numa viva conversa, com o que seguia à frente a esmurrar a palma de uma das mãos. Todos eles envergavam compridas capas com cores brilhantes, bem como túnicas ricamente bordadas e com ombros estufados para os fazerem parecer mais largos, o que me parecia ser um absurdo. Usavam os cabelos compridos e muito oleados, dispostos em caracóis bem ordenados, tal como acontecia com as barbas. Passaram por nós e notaram a presença de Gunnar e Tolar. Levantaram os narizes e viraram os rostos para o outro lado, apressando-se como se estivessem a farejar um qualquer odor repelente. Pessoalmente senti-me ligeiramente ofendido, mas o Gunnar riu-se da pomposidade daqueles homens.
A porta azul abriu-se alguns instantes depois.
- Pronto! - exclamou um homem gordo, com um traje castanho muito justo. Os seus cabelos e roupas estavam quase brancos de farinha. - Lançou-nos uma única olhadela e gritou: - Desapareçam! Vão-se embora daqui!
Nem sequer nos deu tempo para abrirmos as bocas. Voltou a meter a cabeça para dentro e bateu com a porta.
- É um homem muito pouco amigável... - comentou Didimus. Fez tenção de voltar a bater na porta mas Gunnar avançou, indicando-lhe que se desviasse. Fez um sinal a Tolar, mandando-o colocar-se junto à porta, e bateu com força.
Aguardámos algum tempo. Gunnar insistiu nas suas batidas, servindo-se do cabo da faca e fazendo com que a porta vibrasse nas dobradiças. Momentos depois, o homem voltou a meter a cabeça de fora, já muito zangado.
- Eh, vocês! Acabem com isso! Já -lhes disse para desaparecerem daqui! - berrou, enquanto fazia um gesto com a mão a mandar-nos embora.
Rápido como um pestanejo, Gunnar agarrou o padeiro pelo seu gordo pulso e puxou-o para o exterior, para a rua. O padeiro resmungou de ira e virou-se, mas Tolar colocara-se rapidamente por trás dele e bloqueara a porta, impedindo-lhe a retirada.
- Meu amigo... - disse-lhe - temos negócios a discutir contigo...
- Mentiroso! - rosnou o homem. - Só faço fornadas para o Imperador! Os pagãos e os bárbaros não provam o meu pão! Desapareçam antes que chame os scholares!
- Estes homens também estão ao serviço do Imperador - declarei, num tom já irritado - que os enviou aqui para receberem a sua ração de pão.
- Volto a dizer que és um mentiroso! - fungou o homem, cujo rosto se tornara muito vermelho e parecia prestes a explodir. - Nunca vos vi! Acham que roubar-me o pão é assim tão fácil? Não sou como os outros, que entregam os politikói ao primeiro que aparece, para depois cobrarem preços exorbitantes ao estado! O meu pão é um pão honesto, e eu sou um homem honesto!
- Nesse caso, nada tens a temer de nós... - declarei, tentando acalmá-lo. - Os homens que vês na tua presença prestam serviço na guarda de bárbaros. Vieram buscar os politikói, tal como dizes, para os navios que vão escoltar a delegação comercial que vai partir para Trebizonda.
O padeiro gordo ficou a olhar para mim.
- Chamo-me Constantius - afirmou, acalmando-se um pouco. - Se vêm por ordem do Imperador, onde está a sakka? - estendeu a mão para mim, com a palma virada para cima.
- O que é isso? - perguntei-lhe.
- Ladrões! - gritou o padeiro. - Bem me parecia! Já sabia! Ponham-se a andar, seus ladrões!
- Por favor... - insisti - o que é a sakka?
- Ah! Não conheces os politikói e nunca ouviste falar na sakka! Se fossem realmente farghaneses... - troçou - então tinham a obrigação de saber o que isso é eu não precisava de lhes explicar...
Gunnar acompanhava aquela troca de palavras com uma expressão perplexa, observava todos os nossos movimentos com atenção e não tirava a mão do punho da faca.
- Somos homens do Imperador - insisti - mas nunca fizemos isto. Os costumes de Bizâncio são novos para todos nós.
- A sakka é fornecida pelo loghotete e indica o número de pães a que têm direito - explicou o padeiro. - Se não a têm, não podem levar o pão. Agora, saiam da minha frente. Já me fizeram perder demasiado tempo!
A compreensão atingiu-me repentinamente. Meti a mão no cinto e fiz aparecer o pequeno quadrado de pergaminho que Gunnar me entregara.
- Será isto a sakka de que falas, ou não?
Constantius arrancou-me o pergaminho das mãos, lançou-lhe uma olhadela e devolveu-mo.
- É impossível. Não tenho tanto pão. Voltem amanhã!
- Precisamos dele hoje - declarei. - Há mais alguma padaria a que possamos ir?
- Há mais padarias... - afirmou Constantius, rígido - mas não vos servirá de nada. Ninguém tem tanto pão pronto para ser levado. - Podes cozê-lo?
- Claro que o posso cozer - exclamou - mas não todo ao mesmo :' tempo! Se querem levar tantos pães de uma só vez... então terão de esperar.
- Não nos importamos de esperar - declarei.
- Pois esperem... - resmungou - mas não aqui! Não quero bárbaros a pairar junto à minha padaria. Não seria próprio...
- Está bem - concordei. - Diz-nos quando devemos voltar... e regressaremos quando os pães estiverem prontos.
- Vocês, os quatro?! - admirou-se o homem. Não conseguirão levar tantos pães.
- Porquê? - perguntei, sentindo o coração a cair-me aos pés. - Quantos pães são?
O padeiro lançou uma segunda olhadela para o pergaminho e respondeu:
- São trezentos e quarenta pães.
- Traremos mais bárbaros para nos ajudarem... - repliquei. - Iremos buscá-los agora.
- Dizes que têm navios - murmurou Constantius. - Onde estão esses navios?
- No Porto de Theodosius - respondeu o barqueiro.
- Não é longe - declarou o padeiro. - Vou lá levá-los quando estiverem prontos.
- Não há necessidade. Nós próprios os transportaremos...
- Não, insisto! Deixem esse assunto comigo - ripostou o padeiro. - Desse modo, tenho a certeza de que não os vendem pelo caminho quando os levarem para o porto.
- Está bem, só queríamos poupar-te trabalho... Ficaremos muito gratos pelos teus serviços. São quatro navios dinamarqueses... daqueles muito compridos...
- Ah, sim, são fáceis de descobrir. - O homem baixou a cabeça e virou-se abruptamente. Tolar continuava a bloquear a porta.
- Deixa-o passar - pedi-lhe. - Este homem vai ter de trabalhar muito para nós. - Tolar desviou-se e deixou passar o padeiro.
Constantius desapareceu novamente no interior da sua padaria, afirmando:
- Sou um homem honesto e faço pães honestos. Encontrar-me-ão no cais... mas não esperem por mim antes do pôr do Sol! - declarou, batendo com a porta.
- Que se passou aqui? - perguntou Gunnar. Expliquei-lhe toda a nossa conversa. Ouviu-a e abanou a cabeça.
- Não devia ter apostado todo aquele dinheiro - resmungou, pesaroso. - O pôr do Sol ainda vem longe. É quase certo que Hnefi e os outros vão chegar antes de nós...
- Esqueces-te que somos nós quem tem a sakka. - Expliquei-lhe qual era a finalidade do pequeno mas muito importante bocado de pergaminho que ele me dera e que eu entregara ao padeiro. - Ninguém lhes dará pão sem ela!
- Heya! - Exclamou Gunnar, com a carranca a transformar-se num grande sorriso. - Nesse caso, devia ter apostado mais!
- Gunnar Gabarolas! - comentou Tolar, rindo-se.
- Hnefi e os outros nem sequer se aperceberão do erro... - acrescentei - a não ser que aprendam o grego muito rapidamente. Quando se lembrarem de vir à nossa procura já estaremos a bordo, com os pães.
- Foste muito astuto, meu amigo - murmurou Didimus. - Um verdadeiro Hércules do intelecto. Os meus cumprimentos... - Levantou a mão, numa grosseira imitação da saudação imperial. - Agora, como não podemos ficar aqui, mostrar-lhe-ei o que quiserem.
- Por favor, podes levar-nos ao Palácio Imperial? Preciso de falar com uma pessoa.
- Descansem, levo-vos lá... - replicou Didimus - e a seguir também vos levo à Hagia Sophia, onde acenderás uma vela por mim, pedindo ao Deus Todo-Poderoso que me conceda uma astúcia igual à tua. Sigam-me!
Os guardas do Palácio Real correram connosco. Nem sequer tinham ouvido falar de Justin e tinham a certeza de que não se encontrava no contingente dos portões porque havia mais de um ano que não se verificavam novas nomeações. Contudo, um deles sugeriu que Justin talvez fizesse agora parte dos scholare do palácio interior.
- Podes procurá-lo lá - disse-me o guarda.
- Seguirei o teu conselho... se me fizeres o favor de me dizer onde me devo dirigir - repliquei, mas fui imediatamente informado que era impossível, a não ser que tivesse um assunto oficial para tratar no interior dos portões.
- O meu assunto é com o próprio scholarae - expliquei.
- Ninguém pode entrar no recinto interior sem uma convocação oficial - insistiu o porteiro.
Agradeci-lhe a ajuda e resignei-me à perspectiva de abandonar a cidade sem conseguir falar com Justin.
- Agora, vamos à Igreja da Divina Sabedoria... - afirmou Didimus, guiando-nos de volta através do enxame de mendigos que tinham feito as suas casas contra as muralhas do palácio - e acenderemos uma vela pelo teu amigo, ou talvez muitas velas.
Gunnar parecia preparado para dar uma última vista de olhos pelos pontos de maior interesse da cidade antes da partida dos navios. Pela sua parte, Tolar nada vira de Constantinopla e ficava contente por nos seguir para onde quer que fôssemos.
- Não me interessa onde vamos - afirmou Gunnar - desde que chegue a tempo de receber a prata que vou ganhar ao Hnefi.
- Não é longe daqui - declarou Didimus. - Nada receiem, pois têm muito tempo para regressarem aos navios. Estão a falar com o melhor guia de toda Bizâncio. Vamos, meus amigos, e pelo caminho também lhes mostro o Hipódromo e o Fórum de Augustus...
O Hipódromo era impressionante. O Fórum era um espaço vazio rodeado por duzentas colunas, quase todas retiradas a templos gregos, explicou-nos Didimus, porque já ninguém se recordava como as mesmas se faziam. Não acreditei naquilo, mas as colunas eram definitivamente mais antigas do que o fórum, pelo que talvez houvesse um grão de verdade nas suas palavras. Todavia, por muito imponentes que aquelas estruturas pudessem ser, tornavam-se insignificantes ao lado da espantosa realização da Hagia Sophia.
Que o céu me abençoe, mas a Igreja da Santa Sabedoria é uma revelação sagrada tornada visível, um verdadeiro testamento de fé em pedra e argamassa. É uma oração em vidro, azulejos e metais preciosos. É uma verdadeira maravilha do mundo, capaz de envergonhar os tão gabados espectáculos arquitecturais da antiguidade. De certeza que foi o próprio Deus quem inspirou aquela igreja e que guiou os passos de cada um dos que nela trabalharam, desde os que manejaram trolhas e barrotes aos que conceberam e desenharam os planos.
Depois do Fórum acertámos o passo com as pessoas que entravam na igreja e passámos directamente para a primeira das duas grandes salas. Tal como muitos outros também faziam, parámos numa banca de vendas para que Didimus pudesse comprar velas e incenso, e em seguida avançámos rapidamente para a segunda sala, muito maior do que a primeira e inteiramente forrada a grandes placas de mármore vermelho e verde. O tecto em abóbada por cima de nós estava decorado com milhares de estrelas e cruzes de ouro. No alto das gigantescas portas de bronze que se abriam na nossa frente via-se um mosaico da Virgem e do Menino. A criança divina segurava numa pequena cruz, como se quisesse abençoar todos aqueles que passavam sob o seu olhar benevolente.
Fomos arrastados pela multidão, passámos por baixo do mosaico e da porta a que dão o nome de Maravilhosa e entrámos na nave da igreja. O imponente colosso avermelhado de Hagia Sophia pode parecer pesado quando visto do exterior, como se fosse uma verdadeira montanha de tijolos e pedras cujas enormes vertentes se erguem muito acima das copas das árvores que a rodeiam, e com uma cúpula enorme envolvida por maciças muralhas de pedra e por gigantescos botaréus de apoio, mas o interior é precisamente o oposto, todo leveza e espaços abertos.
Entrar pelas grandes portas de bronze é como entrar num dos grandes salões do céu. Os feixes de luz dourada provenientes de milhares de aberturas provocam reflexos e brilhos em todas as superfícies, e descem sobre nós vindos de uma cúpula tão vasta e aberta como o próprio céu.
Milagre dos milagres, não há nenhuma espécie de colunas de suporte por baixo da cúpula de Santa Sofia e nada impede os olhares ou obstrui a visão quando erguemos os olhos para aquelas alturas exaltadas. A majestosa cúpula paira lá no alto, sobre o chão de mármore, como se tivesse sido suspensa do próprio céu por mãos angélicas.
O pavimento, tão vasto como uma planície, é todo feito com um belo mármore polido. As duas galerias com dois pisos, muito acima do chão, também são inteiramente em mármore, mas com um tom escuro e atraente para os olhos. Há biombos e painéis de mármore, trabalhosamente esculpidos com todo o tipo de desenhos; formas geométricas intrincadas, cruzes, sóis, luas, aves, flores, plantas, animais, peixes. De facto, incluem tudo o que existe tanto nos céus como na Terra. As galerias são flanqueadas por enormes colunas de pórfiro cujos capitéis foram esculpidos com a forma de plantas. Os escultores praticaram a sua arte com tanta astúcia que é como se essas mesmas colunas suportassem massas de videiras de folhagem luxuriante.
As galerias e corredores pareciam-me intermináveis. Os arcos suportados por pilares erguem-se em camadas sobrepostas. Por cima deles podiam ver-se centenas e centenas de janelas em arco que admitiam a luz vinda do céu. Embora dentro do corpo principal da igreja se encontrassem talvez mil pessoas, as suas dimensões são tais que podem acomodar facilmente o dobro ou o triplo.
Os tectos e frontões estão quase todos cobertos por mosaicos com os desenhos mais complicados. Os monges do scriptorium eram adeptos ferventes dos padrões altamente complexos, sofisticados e intrincados... mas até o nosso bom mestre de Kells poderia ter aprendido muito se pudesse fazer um estudo aprofundado dos painéis e tectos de Santa Sofia. Na verdade, a majestade daquela igreja era tal que sustinha a respiração nas nossas bocas. Gunnar, Tolar e eu sentíamo-nos incapazes de proferir uma palavra e limitávamo-nos a olhar, de boca aberta, observando maravilha após maravilha, com as mentes entorpecidas pelo espanto. Mesmo assim, continuávamos a olhar, bebendo cada uma daquelas visões incríveis como se fosse a última coisa que iríamos ver neste mundo.
Gunnar tornou-se cada vez mais abatido, mas não por aborrecimento ou por incapacidade de apreciação. Longe disso! Olhava maravilhado para tudo o que o rodeava e de tempos a tempos chegava a apontar-me pormenores artísticos que eu deixara escapar. Todavia, os seus comentários passaram ser cada vez menos e mais espaçados. Embora parecesse ansioso por abarcar tudo o que os olhos lhe revelavam, essa sua apreciação ganhara uma qualidade diferente, quase de encantamento. Uma vez, quando me virei para ver se ainda me acompanhava, vi-o de pé na frente de um dos enormes biombos esculpidos, que examinava como se estivesse em transe. Tinha uma das mãos levantada para a figura de uma cruz esculpida no painel como parte do desenho e acompanhava os seus contornos com um dedo, repetindo constantemente os mesmos movimentos.
Gunnar parecia especialmente fascinado pela cruz. Quando passámos sob o centro da cúpula, senti um toque no ombro, olhei em volta e deparei com o corpulento bárbaro a olhar directamente para cima, para um mosaico dourado com a maior cruz que eu jamais vira.
- É o sinal... - sussurrou Gunnar, numa voz trémula de espanto. - Está por todo o lado...
- Sim - confirmei. Expliquei-lhe que a cruz era reverenciada em lugares tão distantes como o Éire, o extremo limite do Império. - Embora a cruz dos bizantinos seja ligeiramente diferente da cruz dos celtas, e também da dos romanos, todas elas honram o auto-sacrifício do Senhor Jesus Cristo por todos os homens.
- E tanto ouro... - comentou Gunnar, provocando um aceno sombrio da parte de Tolar.
Didimus conduziu-nos para o lado esquerdo da nave, onde fora erguido um painel que suportava um grande número de imagens pintadas em placas de madeira. Aqueles ícones exibiam figuras de Cristo, bem como dos vários apóstolos e santos por quem o povo de Bizâncio tinha uma veneração especial. Na frente do painel, que Didimus designou por iconostasis, encontrava-se uma série de tábuas dispostas em degraus que serviam para segurar as velas aí colocadas pelos fiéis. Pegando nas suas velas, Didimus acendeu uma na chama de outra já acesa e colocou-a num dos poucos orifícios vazios. A seguir ficou parado por instantes, oscilando levemente para a frente e para trás antes de largar um pouco de pó de incenso sobre a chama, o que provocou uma nuvem de fumo perfumado.
- Pronto... - declarou, virando-se para nós - enviei uma oração através de Elias, pedindo ao Santo Jesus que me conceda a tua astúcia, e outra através de Barnabé, pedindo a Deus que me conceda a força deste teu amigo bárbaro.
Traduzi aquelas palavras para Gunnar, que pareceu muito impressionado com o procedimento e estendeu a mão para Didimus, pedindo-lhe uma vela. Enquanto Tolar e eu o olhávamos, espantados, Gunnar acendeu a vela e executou pequenos movimentos balanceados, imitando o barqueiro. Perguntei a mim mesmo o que o teria levado a rezar - e o que dissera - mas pensei que não seria correcto interrogá-lo a esse respeito.
Gunnar e Tolar mostravam-se confundidos com a grandeza da igreja, e muito em particular com a sua extravagante exibição de prata e ouro, que não deixava de os espantar. Não é exagero dizer que o brilho desses metais raros atraía os olhos em todo o lado, mas muito em particular quando nos aproximávamos do santuário, para onde Didimus nos conduziu a seguir. No pavimento erguia-se uma plataforma circular, o ambo, a que se subia por dois lanços de escadas baixas e largas, à esquerda e à direita. O ambo estava rodeado por uma série de pilares com capitéis dourados, que suportavam uma prateleira onde se via uma multidão de lanternas e de cruzes, algumas em prata, outras em ouro, muitas das quais adornadas com pérolas e pedras preciosas.
- Não podemos avançar mais - explicou-me Didimus, logo que chegámos à beira da plataforma. - Só os clérigos e os altos funcionários podem seguir para além do ambo.
- No Éire... - disse-lhe - toda a gente se pode aproximar do altar. É a mesa de Deus, onde todos são bem-vindos.
O pequeno barqueiro olhou-me com curiosidade, como se nunca tivesse ouvido nada tão peculiar.
- O coro instala-se ali... - prosseguiu. - Nos dias de festa, há sempre um coro. - Apontou para lá do ambo e indicou uma passagem elevada. - Aquela é a solea, que só pode ser utilizada pelos sacerdotes e pelo Imperador, quando se aproximam do altar. Dizem que o biombo do coro é em prata maciça...
O coro era rodeado por três lados por um biombo rendilhado que emitia um brilho branco e radiante sob a luz de toda as lanternas e velas, e tinha uma série de colunas que suportavam um parapeito baixo onde se podia ver um certo número de sacerdotes e de funcionários da corte, todos vestidos com as cores das suas funções: os sacerdotes de branco, e os cortesãos de vermelho e negro. As colunas e o parapeito eram forradas a prata e a luz das velas e lanternas suspensas no alto permitiam que os olhos se regalassem com os belos trabalhos em metal, que incluíam imagens de Cristo, da Virgem, dos profetas, de santos, anjos e serafins, bem como monogramas imperiais.
O coro, com o seu biombo e parapeito, formava uma espécie de santuário interior separado do altar, instalado mesmo por baixo. Os fiéis não podiam passar para além do ambo e da solea, mas o parapeito era baixo e o altar relativamente alto, o que permitia que a congregação pudesse assistir às cerimónias que decorriam no altar.
Este era de mármore-rosado e estava rodeado por uma espécie de tenda de ouro.
- É o ciborium - disse-me Didimus, quando o interroguei. - As pedras vieram de Damasco... - declarou, mas fez uma pausa e acrescentou: - ou talvez fosse de Atenas.
O tecido daquela espécie de tenda fora feito com fios de ouro e enfeitado com jóias, rubis, esmeraldas, topázios e safiras - dispostas em padrões. A luz das lanternas e velas, bem como a luz do Sol que entrava pelas aberturas no alto das paredes, iluminava o ciborium e banhava todo o altar com um clarão celestial. Todo o santuário parecia irradiar um clarão puro e dourado, que banhava e engolfava não apenas o altar como todo os que lá se encontravam, incluindo o próprio basileu, que avistei instalado num trono dourado ao lado do altar. Segurava uma vela acesa nas mãos e parecia aborrecido e perturbado. Era flanqueado por dois homens jovens, com longos trajes púrpura, e ao lado destes últimos viam-se outros dois, envergando o branco dos sacerdotes. Gunnar apontou o Imperador a Tolar, que pareceu algo desapontado com o aspecto do novo amo do jarl. Contudo, guardou os comentários para si mesmo.
No altar podia ver-se um sacerdote com uma longa estola bordada com cruzes, que segurava num turíbulo que balouçava para um lado e para o outro, suspenso numa corrente. Completada aquela tarefa, o sacerdote recuou e fez uma vénia perante o altar. A seguir, outro sacerdote - um homem mais velho, com um pequeno chapéu achatado na cabeça branca - aproximou-se do altar. Fez três vénias, levantou as mãos e começou a falar muito depressa e num tom baixo. Sempre a falar, executou uma espécie qualquer de serviço religioso. Os fiéis pareciam muito atentos aos gestos do sacerdote, mas não consegui perceber o que ele estava a fazer.
Passado algum tempo, também aquele sacerdote se foi embora e ouviu-se o som de uma campainha.
- Temos de ir... - declarou Didimus abruptamente - ou seremos apanhados no meio da multidão e não chegaremos a tempo ao vosso navio.
Lancei um último olhar para o magnífico altar, verifiquei que o serviço terminara e que os que ali se encontravam tinham iniciado a sua procissão ao longo da solea. As pessoas à nossa volta já avançavam pela nave da igreja. Apressámo-nos tanto quanto possível mas a multidão era tão grande que em breve fomos detidos pelo aperto junto às portas. - Há outra saída - disse Didimus. - Vamos, depressa!
Conduziu-nos através da nave até uma das galerias, onde virámos e corremos por um longo corredor até chegarmos a uma comprida rampa em ziguezague. Juntámo-nos às pessoas que saíam pela rampa e acabámos por ir dar a uma rua estreita, por trás da igreja. Na nossa frente erguia-se uma alta muralha flanqueada por árvores. Uma dupla fileira de soldados formara uma barreira através da rua, que se estendia para a esquerda e para a direita. Mantinham os bastões com extremidades de bronze atravessados sobre o peito e bloqueavam o lado direito da rua para impedirem que a multidão seguisse o Imperador e os seus cortesãos, que tinham formado uma procissão e caminhavam de volta ao Grande Palácio.
A maior parte das pessoas esforçava-se para conseguir ver o Imperador, e eram muitas as que o chamavam, em busca de uma audiência improvisada. Todavia, quando a multidão avançou, o que mais me chamou a atenção não foi o Imperador. Lancei uma olhadela para a fileira de soldados e virei-me para Gunnar e Tolar.
- Fiquem aqui, os dois, e esperem por mim - pedi-lhes. A seguir expliquei, dirigindo-me a Didimus. - Encontrei o meu amigo! Espera por mim!
Lancei-me para o meio da multidão, abrindo caminho à cotovelada até à fila da frente e aguentando muitas pancadas e pragas enquanto avançava. Apesar de estar a ser muito apertado, consegui levantar um braço e comecei a acenar e a gritar:
- Justin! Estou aqui!
Justin virou-se, viu-me e fez-me sinal para que me aproximasse enquanto afastava as pessoas com o bastão.
- Tenho andado à tua procura - disse-lhe, logo que o consegui alcançar.
Justin pegou-me por um braço e puxou-me para o lado.
- Não podemos conversar aqui. Vai ter comigo amanhã... ao portão leste. Estarei à tua espera.
- Não posso! Vou partir de madrugada... - expliquei - e estava com medo de não te voltar a ver!
Acenou e olhou em volta, como se receasse estar a ser observado por alguém.
- Finge que estás a resistir-me... - sussurrou.
- O quê?! - perguntei, sem compreender. - Por que havia de...
- Faz de conta que estás a tentar passar por mim para ires atrás do Imperador... - acrescentou, com um tom urgente, enquanto levantava o bastão e o atravessava sobre o peito com as duas mãos. - Afasta-te! - gritou, empurrando-me para trás. - Afasta-te daqui!
Recuei um ou dois passos e Justin seguiu-me, empurrando-me ainda mais para trás. Só voltou a falar quando já me tinha feito recuar cinco ou seis passos.
- Aidan, escuta, tenho notícias dos teus amigos.
- O quê? - senti o coração a contrair-se-me no peito. - Diz-me, que foi que soubeste?
- Está calado, não devemos ser visto juntos. - Olhou em volta rapidamente e continuou: - Estiveram aqui...
- Aqui!? Em Constantinopla!?
- Shhh! - sussurrou. - Cala-te e escuta. Estiveram aqui e foram vistos...
- Quando?
- Creio que logo depois dos Primeiros Frutos. Eles...
- Quantos eram?
- Oito... ou talvez dez. Não tenho a certeza. Eram conduzidos por um bispo e foram levados para o mosteiro de Cristo Pantocrator logo que chegaram. Foi aí que ficaram, na companhia dos monges.
- E que lhes aconteceu?
- Foram-se embora outra vez.
- Sem falarem com o Imperador? Não acredito!
- Houve quem assistisse à sua partida... - afirmou Justin, encolhendo os ombros.
- Quem foi que os viu? Como sabes tudo isso? - inquiri, sentindo que começava a ficar frenético.
- Cala-te! - ordenou, empurrando-me com o bastão. - Tenho alguns amigos...
Um dos scholarii interessou-se pela troca de palavras entre mim e Justin e avançou na nossa direcção.
- Há algum problema? - perguntou.
- Não é nada! - replicou Justin por cima do ombro. - Este fulano está bêbado e já estou a resolver o assunto. - Voltou a dar-me um empurrão e continuou: - Escuta. Aidan, o komes está a par deste assunto.
- O komes... Nikos?
- Sim, aquele que ajudou a apanhar o quaestor - confirmou Justin. - O tal meu amigo diz que Nikos se encontrou com eles por duas vezes... e que a última foi no dia em que se foram embora. Foi tudo o que consegui descobrir. - Lançou nova mirada à sua volta. - Agora, tenho de ir. Tentarei saber mais qualquer coisa, se puder...
O chefe dos guardas voltou a chamar. Os outros soldados já se afastavam.
- Não confies em ninguém, Aidan! - disse Justin, afastando-se rapidamente. - Cuidado com o Nikos! Tem amigos importantes e é muito perigoso. Mantém-te longe dele!
Ainda tentei agradecer-lhe e despedir-me mas já corria pela estreita rua para se juntar aos outros soldados. Dei meia volta e dirigi-me para onde Didimus e os dinamarqueses me esperavam. Abri caminho por entre a multidão e pensei: Estão vivos! Os meus amigos estão vivos! Estão quase todos vivos e conseguiram chegar a Constantinopla!
- Aquele era o guerreiro do portão - disse Gunnar, quando me juntei a eles. - Era o amigo de quem andavas à procura?
- Sim, era ele.
- Disse-te o que querias saber?
- Sim - respondi, conciso. Não queria discutir o assunto, e muito menos com os Lobos do Mar que haviam sido responsáveis pela ruína da peregrinação e por todos os outros problemas da minha vida. Virei-lhes as costas e comecei a andar.
- Venham - disse. - Temos de nos apressar se quisermos estar no cais quando o pão chegar.
- Heya! - concordou Gunnar. - Quanto mais depressa receber os meus ganhos, mais feliz ficarei.
- Didimus - chamei - leva-nos de volta aos navios. Depressa! Não quero faltar ao nosso encontro com o Constantius.
- És um homem afortunado... - gritou o pequeno barqueiro alegremente - porque estás na companhia de alguém que antecipa todos os teus caprichos. Já tinha pensado nisso e preparei um percurso especial. Não iremos de barco, mas nada temas porque chegaremos ao porto antes do pôr do Sol.
Cumprindo a sua palavra, Didimus levou-nos ao porto precisamente quando o Sol se escondia por trás dos montes ocidentais.
- Estão a ver! - exclamou. - O navio está ali, vocês estão aqui e o Sol só agora começou a pôr-se. Agora, tenho de ir para casa comer o meu jantar. Despeço-me de todos vós, meus amigos... e vou-me embora. Se os meus serviços vos foram úteis, então fico feliz e não preciso de mais nada. - Sorriu de antecipação ante a possibilidade de uma recompensa, e acrescentou: - Contudo, quando as pessoas querem demonstrar a sua apreciação...
- Prestaste-nos bons serviços, Didimus... - disse-lhe - pelo que te estamos muito gratos.
Virei-me para Gunnar e expliquei-lhe que tínhamos de pagar a ajuda que o barqueiro nos dera e recordei-lhe que, sem Didimus, nunca teria conseguido ganhar a aposta.
- Não digas mais nada - replicou Gunnar, bem-disposto. - Estou a sentir-me generoso.
Abriu a bolsa de couro, fez aparecer um punhado de nomismi e começou a contá-los.
O rosto de Didimus esmoreceu quando viu as moedas. Dei uma cotovelada a Gunnar e disse-lhe:
- Olha que ele foi na verdade muito útil...
Gunnar retirou um denário de prata do meio das moedas e estendeu-o a Didimus. O sorriso do barqueiro regressou instantaneamente.
- Que Deus vos abençoe, meus amigos! - ofegou, agarrando na moeda e fazendo-a desaparecer rapidamente. Segurou-me na mão, levou-a aos lábios e beijou-a. A seguir também beijou a mão de Gunnar e afastou-se, dizendo: - Da próxima vez que precisarem de um guia, chamem o Didimus e fiquem descansados porque terão o melhor guia de toda Bizâncio!
- Até à próxima! - disse-lhe. - Didimus desapareceu rapidamente por entre os trabalhadores e barqueiros que se dirigiam para a cidade e nós apressámo-nos para o navio ainda atracado junto ao cais.
Tínhamos acabado de chegar junto dele e preparávamo-nos para embarcar quando ouvimos Hnefi a chamar-nos.
- Heya! Não vale a pena esconderem-se, já vos vimos!
- Heya! - replicou Gunnar, afável. - Conseguiram encontrar o caminho de volta ao navio! Foi um verdadeiro triunfo para ti, Hnefi! Deves estar muito satisfeito!
- Sim, estou satisfeito - declarou Hnefi, avançando como se fosse o dono do porto - mas sim porque vos vejo de mãos a abanar. Deviam ter ficado connosco.
Naquele momento apareceram alguns dos outros Lobos do Mar, ligeiramente cambaleantes e com um aspecto algo entontecido pelas experiências do dia.
- Ah! Descobriram um salão de bebidas! - comentou Gunnar. - Tenho a certeza de que a õl vos deve ter ajudado a suportar a derrota.
- Vinho! - gritou Hnefi. - Estivemos a beber vinho... e a celebrar a nossa vitória! Já me podes entregar a tua prata!
Alguns dos dinamarqueses que se encontravam a bordo do navio amontoaram-se na amurada para observarem aquela troca de palavras. Chamaram os companheiros que se encontravam em baixo e foram informados a respeito da aposta entre Hnefi e Gunnar por causa do pão.
- Estou admirado contigo, Hnefi... - replicou Gunnar, sacudindo a cabeça com tristeza. - Deves ter-te esquecido da parte mais importante da aposta. Olho para ti... mas não vejo nenhum pão.
- Estarás cego, homem? - retorquiu Hnefi. - Abre bem esses olhos!
Virou-se e fez um sinal aos restantes cinco Lobos do Mar do seu grupo que chegavam naquele momento. Verifiquei que transportavam grandes sacos de pano às costas. Aproximaram-se de onde nos encontrávamos e atiraram os sacos para o cais.
- Vejam! - gritou Hnefi, abrindo o saco mais próximo. Meteu a mão no interior e fez aparecer um pequeno pão castanho. - Aqui está o vosso pão!
Gunnar avançou para o saco e espreitou para o interior. Era verdade que o saco estava cheio de pequenos pães castanhos.
- É pão... - confirmou Gunnar - mas pergunto a mim mesmo como foi que o conseguiste.
Os Lobos do Mar no cais e os que se encontravam a bordo começaram a reclamar a liquidação da aposta. Tal como eu suspeitava, tinham sido feitas muitas outras apostas e os vencedores queriam o seu dinheiro.
- Não compreendo... - murmurou Gunnar, abanando a cabeça. - Como foi que fizeram?
Contudo, não tivemos de nos interrogar durante muito mais tempo porque foi naquele momento que se ouviu um grito no cais. Virei-me e vi Constantius, o padeiro, empurrando um carro com um grande monte de pães redondos, frescos e perfumados. Por trás dele vinha um homem jovem a empurrar um segundo carro, igualmente a abarrotar de pães.
- Ah! - gritou. - Estão aí! Já vos encontrei!
Abriu caminho com o carro pelo meio dos bárbaros, gritando-lhes que saíssem da frente.
- Tal como prometi... - declarou, em voz alta - trouxe-vos os politikoi. Disse-vos para não se preocuparem e sou um homem de palavra. Como vêm, estava a falar verdade. Sou um homem honesto. Aqui está o vosso pão.
Agradeci ao padeiro e disse-lhe:
- Estes dinamarqueses não entendem o teu discurso. Se me permitires, vou traduzir-lhes o que estás a dizer.
- Com certeza, deves fazê-lo! Servirá para aumentar a compreensão entre nós.
Virei-me para Hnefi e para os outros e expliquei:
- Como podem ver, Constantius, o padeiro, trouxe a nossa doação de pão. Não apenas metade... mas toda!
- Heya! - admitiu Hnefi, confiante - mas é uma pena que tenha chegado demasiado tarde!
- Então porquê? - desafiou-o Gunnar. - Estás a ver os pães na tua frente!
- Nós também trouxemos pão e chegámos antes de vocês - replicou Hnefi. - Por isso, ganhámos a aposta.
- Não tenhas tantas certezas - declarou Gunnar. - Não sei o que transportam nesses vossos sacos, mas de certeza que não é o pão que nos mandaram trazer para bordo.
- Sabes bem que é pão! - protestou Hnefi. - Viste-o com os teus próprios olhos!
Harald aproximou-se da amurada e exigiu saber por que motivo estavam ali tantos homens sem fazer nada quando ainda havia provisões à espera de serem carregadas no navio. Hnefi explicou-lhe rapidamente a aposta, acrescentando:
- Acontece que ganhei... mas este dinamarquês inútil recusa-se a admitir a derrota e a pagar-me o que me deve!
- Isso é verdade? - perguntou o monarca.
- Recuso-me, sim, jarl... - respondeu Gunnar, num tom de desafio - porque não tenho o hábito de pagar quando ganho uma aposta. Só pago quando perco. Contudo, Hnefi insiste em ver as coisas de outro modo.
A resposta deliciou os Lobos do Mar que assistiam à cena, muitos dos quais se riram e começaram a aplaudi-lo.
- Mas que agitação vem a ser esta? - interrogou-se o espantado Constantius, que se via rodeado de bárbaros aos gritos.
Expliquei-lhe a disputa enquanto o monarca avançava para o cais para ir para pôr fim à confusão.
- É óbvio que a aposta não pode ter sido ganha pelos dois - declarou Harald, judicioso. - Um de vocês ganhou e o outro perdeu. É assim que as coisas funcionam. - Vendo que conseguira um consenso geral quanto àquela questão fundamental, continuou: - Ao que parece, Hnefi foi o primeiro a regressar com o pão.
- É verdade que Hnefi regressou primeiro... - admitiu Gunnar - mas não trouxe o pão que lhe mandaram que trouxesse.
- No entanto, tenho perante mim vários sacos cheios de pão - salientou Harald tranquilamente.
- Não, jarl Harald, as coisas não são bem assim. Pode haver pão dentro desses sacos, mas não se trata do pão que nos foi dado pelo Imperador. Fui eu o único que regressou com o pão correcto, tal como este padeiro poderá confirmar. Por isso, ganhei a aposta e é o Hnefi quem tem de me pagar.
- O pão correcto? - uivou Hnefi, com as cores a subirem-lhe ao rosto já corado. - Pão é pão. Fui o primeiro a chegar e ganhei.
- Qualquer um podia meter pães bolorentos num saco, na esperança de reclamar o prémio - afirmou Gunnar com desdém. - Isso não tem qualquer significado.
Harald hesitou, olhando pensativamente para os carros cheios de pão e para os sacos que jaziam no cais. O problema que apenas um momento antes lhe parecera tão fácil de resolver dera uma reviravolta inesperada e já não sabia muito bem o que fazer.
Constantius, que se encontrava ao meu lado, confundiu erroneamente a hesitação do monarca por má vontade em aceitar o seu pão e sussurrou-me uma sugestão. Ouvi-o e surgiu-me uma ideia para a resolução do dilema.
- Se me permitires, jarl Harald... - intervim, avançando - penso que há uma maneira simples de descobrir quem ganhou a aposta.
- Então, fala... - ordenou o monarca, sem grande entusiasmo.
- Prova o pão - aconselhei-o. - Como vamos ter de o comer durante muitos dias, parece-me correcto que só levemos connosco o que for melhor e só há uma maneira de saber qual é o melhor. Prova-o e veremos.
Gunnar aclamou a sugestão.
- É um excelente conselho! - Retirou um pão da pilha que se encontrava no carro mais próximo e entregou-o ao rei. - Por favor, jarl Harald. Respeitaremos a tua decisão.
Expliquei a Constantius o que se estava a passar enquanto Harald arrancava um bocado ao pão.
- Não foi isso o que quis dizer... - afirmou o padeiro - mas não faz nenhuma diferença. O meu pão é um pão honesto, como toda a gente pode ver.
Retirando um pão do saco de Hnefi, o monarca partiu-o e arrancou-lhe um bocado, embora com alguma dificuldade. Mastigou-o por um momento e engoliu-o, mas também com uma certa dificuldade porque o pão era velho e duro.
- Então? - perguntou Hnefi, impaciente. - Qual vai ser?
- Como rei... - começou Harald, levantando o pão castanho que retirara do saco de Hnefi - considero este pão suficientemente bom para homens do mar. Na verdade, até já provei pão muito pior do que este...
- Heya! - concordou Hnefi, enchendo o peito. - Era o que vos estava a dizer...
- Porém... - prosseguiu o monarca - este outro pão é muito superior sob todos os aspectos. - Arrancou mais um bocado ao pão branco, meteu-o na boca e mastigou-o, pensativo. - Sim, isto é comida para reis e para nobres. Por isso, pergunto a mim mesmo: qual dos dois prefiro comer?
Virou-se para Hnefi e continuou:
- Os pães que trouxeste só servem para dar de comer aos peixes - declarou, atirando o resto do pão castanho para a água. Encarou Gunnar e ordenou: - Embarca os teus pães, pois são os que iremos comer durante a viagem!
Os pães recém-cozidos foram rapidamente retirados dos carros, passados aos Lobos do Mar que se encontravam na amurada e armazenados, enquanto outros homens se reuniam em volta de Hnefi e Gunnar para assistirem à liquidação da aposta.
- Alegra-te... - disse Gunnar - porque as coisas até decorreram bem. Surpreende-me que tenhas conseguido arranjar pão... mas o destino estava contra ti.
- O destino! - murmurou Hnefi, puxando pela sua bolsa de couro. Começou a contar denários de prata, que foi pondo na mão de Gunnar. - Para a próxima, levo o Cabeça-Rapada comigo - acrescentou, num resmungo - e depois veremos como te correm as coisas.
Foi a primeira vez que Hnefi revelou algum respeito ou consideração por mim, o que me agradou muito.
- Não foi o Aeddan quem me ajudou... - replicou Gunnar, largando as moedas, uma a uma, na sua própria bolsa - mas sim o seu deus. Acendi uma vela a esse tal Senhor Jesus e rezei para que ganhássemos. Podes ver por ti mesmo qual foi o resultado.
- Tiveste sorte, mais nada! - afirmou Hnefi. Ele e os que o acompanhavam afastaram-se para se irem consolar o melhor que pudessem.
- Mesmo que não receba nem mais uma moeda de prata... - comentou Gunnar - esta viagem já foi compensadora. A minha Karin e o Ulf podem viver durante três ou quatro anos com o dinheiro que tenho agora.
- Com tanta prata na tua bolsa... - comentou Tolar - a partir de agora vamos passar a chamar-te Gunnar Bolsa-de-Prata.
Logo que os carros ficaram descarregados, Constantius mostrou-se ansioso por se ir embora porque já estava a escurecer. Despedi-me dele e agradeci-lhe a ajuda. Gunnar, que agora ainda se sentia mais generoso por ter ganho a aposta, deu dez nomismi ao padeiro.
- Diz ao teu amigo para guardar o dinheiro - declarou o padeiro. - O meu trabalho já é suficientemente bem pago pelo Imperador.
Traduzi a resposta para Gunnar e o Lobo do Mar abanou a cabeça e meteu as moedas na mão do homem.
- Isto é pelos carros e pelo rapaz - disse Gunnar. Transmiti as palavras ao padeiro e acrescentei:
- Toma uma ou duas bebidas depois dos teus labores. Ou então, acende uma vela a Jesus em meu nome.
- Meu amigo... - ripostou Constantius, satisfeito - diz-lhe que farei ambas as coisas. - Despediu-se de nós e foi-se embora à pressa na companhia do rapaz, arrastando os carros vazios atrás deles.
Mais do que satisfeito com a sua boa sorte, Gunnar também meteu um denário de prata na minha mão.
- Aeddan, se não tivesses sido tu - afirmou - nunca teria conseguido ganhar a aposta.
- Se não fosse eu... - retorqui, enfiando o total das minhas riquezas terrenas da bainha da capa - nem sequer terias feito a aposta!
- Heya! - exclamou, rindo-se. - Também é verdade! Trepámos para bordo do navio e vimos o Sol a pôr-se no meio de baços clarões vermelhos e dourados enquanto as sombras violeta ocultavam lentamente as sete colinas da cidade. Só então me ocorreu que estivera na maior igreja do mundo, onde nem sequer murmurara uma oração e onde não tivera um único pensamento de fé, algo que nunca me teria acontecido na abadia. Que se passava comigo? Foi uma ideia que me deixou acordado durante a maior parte da noite.
Na madrugada da manhã seguinte, quando os remos mergulharam na água e os navios deslizaram silenciosamente para fora do porto, mantive-me junto à amurada e olhei pela última vez - ainda com vida -, para a cidade da minha morte...
E foi assim que chegámos a Trebizonda. Nada direi sobre a viagem, salvo que foi monótona e sem nada de especial. Até o tempo permaneceu indiferente: dias baços, nem bons nem maus, nem quentes nem frios, nem completamente húmidos nem completamente secos. Partimos em grupo com sete outros navios, cinco grandes embarcações mercantes e duas outras mais pequenas pertencentes à frota imperial. Correu o boato de que um dos navios imperiais transportava o enviado e que no outro seguiam vastos tesouros. Os quatro navios de Harald forneceram uma escolta eficiente e nem sequer sou capaz de imaginar piratas suficientemente audaciosos para atacarem toda uma matilha de Lobos do Mar.
Pouco depois de sairmos de Constantinopla comecei a sentir uma profunda melancolia a instalar-se no meu coração e a encher-me de tristeza. Não tinha nada de importante para fazer a bordo do navio e passei muitos dias a meditar sobre tudo o que me acontecera desde que partira da abadia.
Ao princípio ainda cheguei a pensar que os meus sentimentos doloridos derivavam de uma falha qualquer minha mas, por muito que tentasse, não consegui determinar qual poderia ser essa falha. A seguir ocorreu-me que fora Deus quem falhara e não eu. Fizera tudo o que se encontrava ao meu alcance para continuar a ser um seu servo fiel, suportara as minhas desventuras com toda a coragem e toda a graça que possuía e até tentara aumentar a divulgação do Seu Reino neste mundo. Sob esse aspecto, admito com toda a franqueza que talvez outros tivessem ousado e conseguido mais, mas fizera o que pudera, chegando até ao ponto de deixar de me preocupar com a minha vida para Sua maior glória.
Era isto, creio, o que lançava uma sombra sobre a minha alma. Estivera disposto a morrer e enfrentara o dia da morte sem receios ou remorsos. Todavia não morrera. É estranho ter de o dizer, mas o facto não me dera qualquer alívio ou alegria e considerara-o antes como um logro cruel, isto porque, se a minha vida não era exigida, então por que fora que Deus me permitira sonhar daquele modo? Por outro lado, se decidira poupar-me a vida, então por que me forçara a sofrer o lento tormento da iminência da morte sem me conceder o conforto que teria retirado do conhecimento de que a minha vida já não se encontrava em perigo?
Para mim, nada disto fazia sentido. Deus, por muito que eu pensasse no assunto, surgia-me sempre como uma personagem pequena e intratável, de modo nenhum merecedora da minha devoção. Estivera disposto a dar-lhe - e na verdade dera até ao máximo das minhas capacidades - o meu coração, a minha mente e a minha alma. Dedicara toda a minha vida a Deus e Ele nem sequer reconhecera essa dádiva. Longe disso, ignorara-a completamente.
Esse pensamento fez com que me sentisse mais solitário do que nunca ao longo de toda a minha vida. Era um homem perdido, principalmente porque chegara a pensar que estava envolvido numa qualquer finalidade sagrada e que Deus se preocupava comigo. A verdade, segundo dizem, é uma beberagem fria e muito amarga... e são muito poucos os que a bebem diluída. De facto, daquela vez, engolira toda a minha taça até ao fim.
Outrora imaginara-me como sendo um vaso feito propositadamente para ser destruído... mas agora sabia que a destruição que eu temera já se completara. Estava desfeito. Até a sombria esperança do martírio me fora negada. Estivera disposto a morrer e considerara que sofrer o Martírio Vermelho seria algo nobre e pio. Contudo, já não pensava da mesma maneira. A santidade, a consolação da fé, a graça... tudo me tinha sido recusado. Em desespero, passei as mãos pelos cabelos. Tinham crescido e a minha tonsura desaparecera. Olhei para baixo, para as roupas, que pouco mais eram do que farrapos. A minha transformação estava completa e parecia-me com o Scop!
Voltei a ouvir, mergulhado na amargura daquela odiosa realização, as palavras do velho adivinho, palavras abomináveis, palavras trocistas, mas que não deixavam de ser verdadeiras: Deus abandonou-me, meu amigo, e agora, Aidan, o Inocente, também te abandonou a ti.
Era essa, no fundo, a causa do meu desespero: Deus abandonara-me no meio de estranhos e de bárbaros. Pusera-me de lado logo que deixara de ter qualquer utilidade para Ele. Apesar das gloriosas promessas do texto sagrado - em que, para além de tudo o mais, se dizia que nunca abandonaria ou esqueceria o seu povo, que todos os que o adorassem seriam salvos, que cuidaria dos seus filhos e responderia às suas orações, que elevaria os que o honrassem e derrubaria os que praticassem o mal -, esquecera-me completamente.
As grandes promessas das Sagradas Escrituras eram palavras vazias, meros sons ao vento. Pior ainda: eram mentiras. Os que praticavam o mal prosperavam, as orações dos homens honestos ficavam sem resposta, os homens tementes a Deus eram humilhados perante o mundo, ninguém era salvo nem sequer do menor dos tormentos, os bons sofriam injustiças, doenças, violência e morte. Os poderes celestiais não intervinham e nem sequer mitigavam os sofrimentos. O povo de Deus gritava aos céus, pedindo que o libertassem... mas era como se os céus não passassem de um túmulo silencioso.
Oh, agora já via tudo com clareza! Via, a estender-se na minha frente, a mesma desolação severa que o Scop já havia visto, uma desolação tão vasta e vazia como o mar. A amargura e a confusão envolveram-me com as suas espirais de serpente. A alegria e a esperança tornaram-se em cinzas no meu coração. Desperdiçara a minha devoção para com um senhor que não merecia ser venerado? Se assim era, então não via como poderia continuar a viver. Na verdade, porque haveria de querer continuar a viver num mundo governado por um tal Deus?
Ah, se ao menos tivesse encontrado a minha morte em Constantinopla, então, pelo menos, teria sido poupado à agonia dos tormentos por que estava a passar. É verdade que teria morrido como um ignorante... mas teria morrido como um ignorante feliz.
Os dinamarqueses não conseguiam entender a minha perturbação. Quando as suas tarefas lho permitiam, Gunnar, e às vezes também Tolar e Thorkel, vinham sentar-se junto de mim, à proa. Conversávamos e tentavam alegrar-me, mas a podridão negra apoderara-se da minha alma e nada do que dissessem me aliviava a dor. Os restantes bárbaros não prestavam a mínima atenção à minha provação. Harald e os seus karlar estavam deliciados com a sua nova proeminência como defensores do Império. Por isso mesmo, e na esperança de aumentarem os seus lucros com pilhagens, os Lobos do Mar mantinham-se sempre atentos, uma vez que tinham em mente apoderarem-se de qualquer navio que tentasse um ataque. Porém, para além dos clarões de algumas velas que desapareceram rapidamente no horizonte, não avistámos nenhum navio de piratas, pelo que os nossos onze navios chegaram em segurança ao porto de destino dezasseis dias depois de terem partido de Constantinopla.
Foi com grande resignação e relutância que me virei para a tarefa que tinha pela frente logo que as serranias rochosas por cima de Trebizonda surgiram perante os nossos olhos. Concluí que se o Imperador precisava de um espião... então iria tê-lo. Como já não era um sacerdote podia pelo menos tentar ganhar a liberdade que me fora prometida. Bem vistas as coisas, pareceu-me que seria esse o procedimento mais sensato embora não tivesse a mínima ideia sobre como ou por onde começar, e muito menos como me iria insinuar nos procedimentos que se seguiriam.
Sentindo-me como me sentia - solitário e esquecido, num mundo sem deus -, decidi que deixaria que fosse o destino a encaminhar-me os passos. Para mim, tanto me fazia que as coisas corressem de uma ou outra maneira.
O enviado do Imperador enviou um recado ao rei Harald assim que as pranchas tocaram no longo cais de pedra, dizendo-lhe que a sua presença era necessária. Deveria levar consigo vinte dos seus guerreiros mais ferozes e leais, uma vez que os emissários do Imperador desejavam uma guarda pessoal, que sem dúvida se destinava a aumentar o seu prestígio. Os restantes dinamarqueses deveriam permanecer no porto para fornecerem protecção aos navios mercantes. Aparentemente, os piratas árabes mais atrevidos operavam a partir do próprio cais e saqueavam a carga dos navios ainda antes destes conseguirem sair do porto.
Os dinamarqueses estabeleceram rapidamente os turnos de vigilância, distribuindo-se ao longo do cais em grupo de três ou mais. Entretanto, em resposta às ordens recebidas, reunimo-nos no cais ao lado do navio do enviado, num grupo formado por vinte guerreiros, pelo jarl Harald e por mim, para recebermos instruções do enviado imperial. Este era um homem de idade, alto, de pernas magricelas, com grandes orelhas e um rosto semelhante ao de um bode, que até incluía uma rala barba branca a crescer-lhe no queixo. Chamava-se Nicephorus e servia como eparch, termo que, tal como me esclareceram com claro desdém pela minha ignorância, se referia a um tipo de alto funcionário que ocupava a décima oitava posição na hierarquia imperial.
Permanecemos no cais, à espera de conduzir o eparch e os membros do seu grupo até ao local da reunião, e fiquei surpreendido e desanimado ao ver o komes Nikos a emergir do navio do enviado. Avançou directamente para Harald, olhou para mim, esboçou um muito ligeiro mas perceptível sinal de reconhecimento e dirigiu-se ao monarca:
- O eparch envia as suas saudações... - declarou Nikos, com frieza - e espera que se coloquem sob as suas ordens enquanto permanecermos nesta cidade. Os desejos do eparch serão, muito frequentemente, transmitidos por meu intermédio. Isto satisfaz-vos? - Embora tivesse feito uma pergunta, as maneiras deixavam implícito que as coisas seriam assim quer Harald as achasse satisfatórias ou não.
Transmiti aquelas palavras ao meu amo, que acenou e grunhiu uma aprovação.
- Heya!-respondeu.
- Então, vão acompanhar-me... - ordenou Nikos num tom imperioso - e escoltaremos o eparch Nicephorus até à sua residência.
Abandonámos o cais, caminhando lentamente para que os mercadores e dignitários que nos seguiam não ficassem muito para trás. Foi desse modo que entrámos na cidade, deslocando-nos numa procissão faustosa ao longo de uma estreita rua central.
Vista do mar, a cidade parecera ser pouco mais do que uma aldeia de pescadores excessivamente grande e a sua origem fora na verdade essa. Embora, pelo menos aparentemente, se pudesse gabar de alguns dos mais variados e importante mercados do Império, ainda possuía algo da sua velha natureza nas ruas pequenas, limpas e tranquilas, flanqueadas pelas casas simples, quadradas e caiadas de branco, do tipo grego, que encontrávamos por todo o lado desde que havíamos penetrado no Mar Negro.
Para os meus olhos inexperientes, a cidade parecia compacta, confinada como estava às colinas baixas existentes entre os penhascos que se erguiam por trás dela e o mar que se abria na sua frente. Tinha um belo fórum com uma colunata, uma larga rua central rodeada por casas, uma basílica, dois banhos públicos, um pequeno colosseum, um teatro, numerosos poços, uma taberna e três belas igrejas, uma das quais fora um antigo templo a Afrodite. O conjunto era rodeado por uma muralha baixa e por um fosso profundo de construção romana.
A medida que fui conhecendo a cidade acabei por lhe descobrir uma característica que me encantou mais do que qualquer das outras coisas que vi. Tratava-se de pequenos lagos que atiravam água para o ar apenas por causa do prazer do som e da visão da água. Acabaria por descobrir que a cidade possuía uma grande profusão dessas fontes, algumas das quais com estatuária esculpida em mármore, outras apenas com pedras vulgares sobre as quais a água brincava, mas quase todos no meio de pequenas zonas verdes ou de jardins bem cuidados, onde as pessoas se podiam sentar em bancos de pedra ao lado das fontes, para conversarem ou apenas para gozarem um momento de paz nas suas actividades diárias.
No dia da nossa chegada, o eparch Nicephorus foi recebido no fórum pelo magister e pelo spatharius, que se encontravam à frente de um pequeno grupo de funcionários menores e lhes estenderam as mãos num gesto de amizade e de saudação.
- Dou-vos as boas-vindas em nome do eparch Honorius e dos cidadãos de Trebizonda... - declarou o magister, um homem baixo e de pernas fortes, com um rosto redondo e uma barba negra. - Sua eminência o governador envia as suas saudações e deseja-vos uma frutífera estada na cidade. Lamenta ter sido inevitavelmente detido em Sebastea mas garante que fará todos os possíveis para se vos juntar antes da vossa missão ter chegado ao fim. Entretanto, preparámos uma casa para uso do enviado. Serão conduzidos à mesma em devido tempo, mas pensámos que, em primeiro lugar, talvez gostassem de algum refresco depois de uma tão longa jornada.
"Chamo-me Sergius e coloco-me ao vosso serviço durante a vossa estada aqui.
O magister falou de uma maneira suficientemente bem-educada, num grego muito preciso e polido. Contudo, pensei que lhe faltava um calor genuíno e que não revelava uma qualquer luz de amizade nos seus olhos ou entusiasmo na voz. Era como um músico fatigado que executava uma velha canção com muito pouco interesse por aqueles que deveria estar a entreter.
Pelo seu lado, o spatharius mais do que compensou a falta de zelo do seu superior com uma superabundância de boa-vontade. Era um homem jovem, com muitos pêlos brancos nos cabelos negros e na barba, e com uma bela pança sob a capa. Quase tremia com a sua vontade de ser útil. O seu nome, disse-nos, era Marian, e tratou de bajular o eparch de uma maneira untuosa e obsequiosa que me fez lembrar um cachorrinho demasiado ansioso por agradar ao dono.
Os dois homens - o menestrel fatigado e o seu cachorrinho alcoviteiro, pois não passava disso - conduziram-nos ao longo de uma larga rua flanqueada pelas fachadas altas e simples de belas casas com as janelas fechadas contra o calor do dia. O magister parou na frente de uma grande casa quadrada um pouco afastada das outras. Ao princípio ainda pensei que era ali que iríamos ficar, perspectiva que me agradou pois tratava-se na verdade da melhor casa em que jamais tivera o prazer de entrar.
Nikos ordenou a uma dúzia de Lobos do Mar que montassem guarda no exterior, embora não se visse ninguém na rua. A seguir, Sergius fez-nos subir as escadas, atravessar uma larga porta e entrar num grande vestíbulo. As paredes estavam pintadas de verde-claro e o chão era formado por um único mosaico enorme representando um deus grego - Zeus, creio, a julgar pelo tridente - rodeado por uma dança das estações. Atravessámos essa sala, passámos por um grande salão de mármore inteiramente vazio e fomos dar a um pequeno quadrado, pavimentado a pedra e aberto para o céu. Embora o dia não estivesse quente, o Sol que se reflectia nas superfícies brancas produzia um calor agradável. No centro do quadrado existia uma fonte que emitia um som suave e calmante. Aí chegados, os altos funcionários instalaram-se em cadeiras enquanto escravos vestidos com túnicas verdes pairavam à sua volta com tabuleiros de comida e de bebida.
Como chefe da escolta do eparch, Harald também estava incluído naquela recepção de boas-vindas, embora não participasse nela e ninguém se dignasse dirigir-se-lhe. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira, atrás da qual me coloquei, mas os únicos que revelaram algum interesse por ele foram os escravos que lhe levaram taças de vinho. Não me parece que Harald tenha dado pela ofensa, entretido como estava com o vinho e os doces.
O komes Nikos falou prolongadamente a respeito do que se passava em Constantinopla, fornecendo aos seus hospedeiros todos os boatos íntimos que estes tanto desejavam, e fazendo-o de uma maneira divertida, se não depreciativa. Por mais do que uma vez, as suas descrições espirituosas a respeito de pessoas conhecidas dos seus ouvintes ou de acontecimentos de interesse geral provocaram algumas gargalhadas.
- De que estão eles a rir-se? - perguntou-me Harald, depois de uma dessas explosões. Expliquei-lhe que Nikos acabara de fazer uma observação inteligente a respeito de um dos funcionários do palácio, e o monarca, por instantes, observou Nikos através dos olhos semicerrados.
- É uma raposa... - comentou, voltando a prestar atenção ao vinho. Reparei que o eparch falava muito pouco e que, quando falava, os seus comentários se restringiram às finalidades da visita, uma qualidade que o fez parecer ensosso e aborrecido ao pé da conversa fácil e da efervescência, por vezes manhosa, de Nikos. Era como se se visse forçado a suportar a recepção, em vez de a apreciar. Por fim, esgotada a sua resistência, Nicephorus levantou-se abruptamente e declarou:
- Terão de me desculpar, mas estou fatigado.
O spatharius pôs-se de pé num salto e quase caiu com a pressa de ir ajudar o eparch. O magister levantou-se mais languidamente e com um ar de resignação.
- É claro... - afirmou. - Que estupidez a nossa, ficarmos aqui a dar à língua. Espero que não o tenhamos deixado exausto. Vou levar-vos à vossa residência. Não é longe, mas chamarei uma cadeirinha...
- Para mim não, por favor. Passei demasiados dias confiando às tábuas nuas de um navio - replicou o eparch. - Iremos a pé.
- Será como deseja... - replicou o magister, deixando de algum modo implícito que se tratava de mais uma exigência a que teria de se acomodar, embora isso o fatigasse.
A casa reservada para o eparch era a do próprio governador, e era na verdade magnífica. Mais palácio do que casa, estava equipada com mobiliário requintado, disposto com gosto e inteiramente colocado à disposição do eparch e do seu grupo. O vestíbulo de entrada era em mármore branco, tal como o salão, que exibia um mosaico com Baco, Cupido e Afrodite num vale arborizado. Construída ao estilo de uma villa romana - com um pátio central rodeado por longas alas - a casa continha quartos suficientes para todos nós.
- Esperamos que seja ao vosso gosto, eparch - declarou o magister, com um tom e uma expressão que implicavam precisamente o oposto das suas palavras. - Esforçámo-nos por antecipar as vossas necessidades. Como é natural, se precisar de mais alguma coisa... - Deixou que aquelas palavras ficassem a pairar, como se terminar o seu pensamento fosse um incómodo demasiado grande.
Nikos tomou a seu cargo pôr ordem na casa, informando-me que deveria explicar as suas disposições a Harald.
- A escolta irá permanecer na ala norte. Contudo, nunca haverá menos de dez guardas de vigia, tanto de noite como de dia. Compreendido?
Transmiti as instruções a Harald, que afirmou ter compreendido.
- Muito bem... - prosseguiu o komes - o eparch e eu ficaremos na ala sul, e tu... - estas últimas palavras eram para mim - também ficarás na ala sul. De facto, não irás regressar aos navios. O eparch quere-te por perto para o caso de desejar transmitir algumas ordens aos guardas.
O jarl Harald não ficou satisfeito com este desenvolvimento, mas acabou por resmungar a sua concordância quando lhe fizeram ver que não tinha por onde escolher. Pela minha parte, considerava desnecessária toda aquela protecção. A cidade parecera-me suficientemente pacífica e não vira, em lado nenhum, fosse o que fosse que pudesse justificar tão fastidiosas precauções. Porém, comecei a compreender as preocupações de Nikos logo que a bagagem descarregada do navio começou a chegar, isto porque o Imperador mandara o seu enviado na companhia de todo um carregamento de cestos, caixas e caixotes. Foram todos transportados para a casa e colocados numa sala que fora preparada para os receber, ou seja, que fora esvaziada de todos os seus móveis, sala essa cuja única porta passou a ser vigiada por dois homens tanto de dia como de noite.
Compreendi que todas aquelas caixas e caixotes continham valores, e não fui o único. Harald também percebera para que lado soprava o vento em Trebizonda. Tanto ele como os seus Lobos do Mar se mostraram diligentes em extremo, embora eu pense que devem ter ficado muito incomodados por terem de guardar precisamente aquilo que anteriormente haviam tido a esperança de roubar. Mesmo assim, desde o momento em que o eparch Nicephorus pôs os seus pés na residência naquele dia, nunca mais deu um passo sem ser acompanhado por uma escolta completa de bárbaros armados. De certeza que nunca houve bárbaros mais zelosos.
A minha própria posição era ambígua. O komes Nikos dissera que o eparch me queria por perto. Para além disso, nada mais tinha para fazer. Na verdade, servia como intérprete de Harald, mas parecia que não viria a ter outras obrigações. Fiquei com a sensação que Nikos pura e simplesmente me queria por perto para me poder vigiar, embora não fosse capaz de dizer porque motivo se preocupava assim tanto comigo.
Pondo o tédio de parte, aquela situação até me convinha. Não me esquecera do aviso de Justin para que me mantivesse longe de Nikos. Por outro lado, Justin era possivelmente a única pessoa que sabia o que se passara com os meus irmãos monges durante a sua estada em Constantinopla, e também os motivos que os tinham levado a saírem da cidade sem completarem a peregrinação, ou seja, sem terem falado com o Imperador. Para mim, esse facto parecia-me um mistério e calculei que a melhor maneira de o resolver seria mantendo-me perto de Nikos. Foi com esse fim em vista que comecei a tentar descobrir qual a melhor maneira de me introduzir nos procedimentos em curso.
Aconteceu que não foi tão difícil como imaginara. Como intérprete de Harald estava frequentemente presente quando eram dadas ordens ou transmitidas instruções. Consequentemente, tinha a possibilidade de me encontrar com o eparch de vez em quando, pelo que não deixei passar a mínima oportunidade de me insinuar junto dele, não de uma maneira descarada, é claro, mas com modos subtis e alguma astúcia, para que Nikos não tivesse razões para suspeitar de mim.
As minhas ferramentas foram uma palavra aqui e outra acolá, ou uma simples saudação. Admiti que o eparch pudesse ser um homem devoto e consegui entoar um ou dois versos de um salmo na sua presença, mas só naqueles momentos em que, aparentemente, nem sequer sabia que ele se encontrava por perto. De outra vez consegui que passasse pelo pátio e me apanhasse a rezar em latim. Apesar de não ter feito comentários, parou e ficou a ouvir-me durante um bocado antes de prosseguir o seu caminho.
Gradualmente, começou a reparar em mim. Soube que estava a ter êxito quando entrei numa sala onde o eparch já se encontrava e o vi virar os olhos na minha direcção. Foi um pequeno gesto, sem dúvida, mas nunca deixei de recompensar a atenção que prestava à minha pessoa com um sorriso ou com uma vénia reverente feita com a cabeça, tal como seria normal no caso de se tratar de um qualquer superior estimado. Receio que não me fique muito bem afirmar que consegui o que pretendia sem dar a entender que fizera fosse o que fosse para o conseguir. Na verdade, o meu êxito foi muito superior ao que esperara.
Um dia, quando caminhava pelo corredor a caminho do meu próprio quarto, passei pela porta que dava para o pátio, que se encontrava aberta. O eparch encontrava-se ali e chamou-me, dizendo:
- Irmão, chega aqui!
Fui imediatamente ter com ele, como me competia e como se essa fosse uma minha função habitual.
- Chamei-te irmão - declarou - porque foste, ou és, um sacerdote. Estarei enganado?
- De modo nenhum, eparch - respondi, com todo o respeito.
- Foi o que pensei - afirmou, permitindo-se um sorriso satisfeito. - Raramente me engano a respeito das pessoas. Ouvi-te rezar e cantar, sabes? Tens uma bela voz e gosto de a ouvir.
- Lisonjeia-me, eparch.
- Como te chamas? - perguntou.
- Chamo-me Aidan - retorqui, com toda a simplicidade.
- Onde é que nasceste, se é que posso ser tão indiscreto? Reparei no seu tom paternal, disse-lhe que nascera no Éire e que fora educado quase inteiramente pelos monges do mosteiro de Kells.
- Conhece o Éire? - inquiri.
- Não, infelizmente - declarou. - Não tive o privilégio de poder viajar até tão longe.
Falámos durante algum tempo disto e daquilo e acabou por me mandar embora, para as minhas obrigações. Porém, a partir daquele dia, Nicephorus começou a incluir-me nas suas actividades das mais variadas maneiras, ao princípio de uma maneira lenta, para poder ver como eu reagia ao trabalho, e depois com maior frequência ao perceber que gostava de o executar. Não foi preciso muito tempo para que me descobrisse a actuar como servo pessoal de Nicephorus. Na verdade, o eparch até teve pena da minha aparência miserável e comprou-me roupas novas: uma capa cinzenta, calções, e um comprido manto num tom verde-claro com uma túnica a condizer. Eram roupas muito simples, mas bem feitas e bonitas.
"O eparch não quer que te confundam com um mendigo," disse o servo que me levou as roupas.
Harald, já desagradado com a nossa separação forçada, não gostou e disse-mo.
- Não está certo! Vou falar com o jarl eparch para lhe dizer que arranje o seu próprio escravo ou que pague para se poder servir do meu.
- Ah, sim, deves fazê-lo, é claro, jarl Harald - concordei. - No entanto pode haver alguma vantagem no facto de me encontrar tão perto da cadeira do eparch.
- Que queres dizer? - perguntou, olhando-me com uma mirada desconfiada.
- O eparch é um homem de autoridade, com muito poder e influência junto do Imperador. Um escravo bem colocado pode aprender muitas coisas de interesse para o seu amo enquanto estiver ao serviço de um homem tão importante.
A sugestão agradou a Harald, uma vez que voltava a colocá-lo no centro dos acontecimentos. Ele próprio admitira que achava os serviços de guarda um pouco aborrecidos e que começara a pensar em como poderia aproveitar-se melhor da sua posição. Como a minha actividade junto do eparch me permitia comunicar ao jarl assuntos de interesse que, de outro modo, nunca viria a conhecer, Harald ficou mais do que satisfeito com a continuação desses meus serviços.
Contudo, o ponto de vista de Nikos foi muito diferente. O komes deu-me a entender, por intermédio de uma centena de pequenos sinais, tal como a inflexão da voz, os olhares contidos e as pequenas desconsiderações, que encarava a situação como sendo imprópria e inaceitável. Todavia, como o eparch podia proceder como lhe aprouvesse, permaneci ligado a muitas das deliberações que se seguiram.
Foi desse modo que acabei por conhecer o eparch bastante bem e por respeitar os seus profundos conhecimentos e a ainda mais profunda sagacidade. É verdade que já encontrei muitos homens inteligentes, mas nunca nenhum tão lido e tão conhecedor dos temas mais diversificados. Os seus conhecimentos não admitiam barreiras. Também concluí que era um astuto avaliador de homens, tal como afirmara, facto que mais ninguém parecia ser capaz de apreciar.
Descobri-me, com cada vez mais frequência, de pé por trás da cadeira do eparch sempre que este se reunia com uma delegação oficial ou com um grupo de mercadores. Harald, como já afirmei, tolerava a minha presença nesses conselhos preliminares desde que, mais tarde, lhe transmitisse qualquer coisa para seu benefício. Interrogava-me insistentemente sempre que nos encontrávamos sozinhos e era frequente que fizesse perguntas excepcionalmente perceptivas a respeito dos vários assuntos discutidos. Para além disso prestava sempre uma atenção especial a rotas de viagens, a fronteiras, à força das várias tribos locais e assim por diante.
Contudo, estou a precipitar-me. O enviado do califa só chegou à cidade vinte dias mais tarde, e só o conheci sete dias depois disso, pelo que esse período me permitiu uma apreciação prolongada e constante sobre o nosso amigo Nikos. O que vi confirmou o que Justin me dissera do cortesão aparentemente leal e dedicado, ou seja, que era um homem impiedoso e perigoso.
Tal como disse, o emir J'Amal Sadiq chegou vinte dias depois do nosso desembarque. Aproximou-se da cidade a cavalo, à frente de um séquito formado por nobres, escravos e outros servos, num total de centenas de pessoas, isto para além de rebanhos de ovelhas, gado e manadas de cavalos. Ao ter notícia da sua aproximação, Nikos tratou imediatamente de enviar a guarda imperial para a porta da cidade, para escoltar os árabes.
O emir avançou à cabeça do seu grupo, directamente para a sombra da porta, e deteve-se. Era o primeiro rosto árabe que eu via e pareceu-me o rosto de uma ave de rapina com feições aguçadas, senhoriais e orgulhosas. A sua pele era muito trigueira e os olhos, cabelo e barba eram extremamente negros. Vestia-se de branco desde o alto da cabeça, envolta num longo pano enrolado chamado turbante, até às solas dos pés, protegidas por belas botas de couro branco. O brilho daquele traje branco de neve contra os tons escuros da pele e da barba davam-lhe uma aparência surpreendente.
O enviado não entrou na cidade logo naquele primeiro dia. Mandou um mensageiro ao magister, para pedir autorização para ocupar as terras planas à beira do rio, por baixo da muralha ocidental da cidade, isto porque os árabes não queriam ficar no interior da cidade e insistiram em montar as suas tendas no exterior das muralhas. Eram tendas, sim, mas não se tratava de rudimentares estruturas de peles esticadas, montadas sobre paus e presas com cordas. Estavam tão longe disso como as cabanas de barro estão dos palácios. As tendas do emir eram feitas de bom pano, tecido numa profusão de cores, e a maior parte delas possuía várias divisões separadas no seu interior.
Ergueram essas tendas nas margens do rio que corria ao lado da cidade e aí permaneceram durante três dias sem nunca saírem do acampamento. Depois, no princípio da manhã do quarto dia surgiu um mensageiro vindo do acampamento, que apareceu à porta do palácio do eparch trazendo consigo uma pequena caixa de esmalte azul.
Aconteceu que Nikos se encontrava na cidade e que o eparch tomava o pequeno-almoço no pátio. As primeiras pessoas que o mensageiro encontrou foram os dez bárbaros que Nikos insistia que permanecessem de guarda, tanto de dia como de noite. Sem saberem o que fazer, chamaram-me para falar com o homem. Desde Constantinopla que os Lobos do Mar me apreciavam como mediador entre eles e os falantes do grego, que consideravam como sendo uma algaraviada. Como não podiam dirigir-se a mais ninguém, o guarda que se encontrava à porta foi à minha procura.
- Chegou um homem, Aeddan... - disse-me o dinamarquês chamado Sig.
Saí ao encontro de um árabe montado num cavalo muito claro, cor de areia. Vendo que eu era um escravo, dispensou uma saudação formal e limitou-se a dizer:
- Que a paz de Alá seja contigo! Trago saudações em nome do meu amo, o emir.
O mensageiro pronunciou as palavras num grego preciso e sem hesitações e perguntou-me se o momento seria conveniente para falar com o eparch.
- Se me quiseres acompanhar... - repliquei - posso conduzir-te até junto dele.
O homem deslizou da sela e seguiu-me, caminhando um passo atrás e à direita de mim. Levei-o até ao pátio, onde saudou o eparch de uma maneira mais formal, pediu desculpa por lhe perturbar a refeição e colocou a caixa azul nas mãos do enviado do Imperador, dizendo:
- Um presente de lorde Sadiq, que terá muito prazer em receber o eparch amanhã, à hora que este achar mais propícia.
- Por favor, diz ao teu amo que o visitarei com toda a satisfação e que o irei ter com ele ao meio-dia.
- Será como desejais. - O mensageiro levantou as mãos à altura dos ombros, com as palmas para fora, fez uma vénia e partiu sem mais uma palavra.
O eparch ganhara o hábito de comer a sua primeira refeição do dia sozinho, numa pequena mesa instalada no pátio. Por vezes havia uma braseira ao lado da mesa para cortar o fresco da manhã. Embora o Sol fosse fraco e os dias não aquecessem muito, preferia sempre o ar livre do pátio a qualquer outra sala, com ou sem braseira. Dei meia volta para o deixar em paz, logo que o mensageiro se afastou. Contudo, estendeu a mão para mim e disse:
- Fica, Aidan. Veremos o que foi que o emir me enviou.
Ocupei o meu lugar habitual ao lado do eparch e perguntei:
- O que vem a ser aquela hora de que ele falou?
O eparch Nicephorus virou-se na cadeira e dirigiu-se-me como se fosse um professor a falar com um aluno muito estimado:
- Ah! - exclamou, apontando um indicador para o céu. - Os árabes concebem o dia como estando dividido em doze partes, tal como uma roda com doze raios, com cada uma dessas partes a corresponder às fases do zodíaco. Acreditam que o Sol passa através dessas doze fases à medida que se move pelo céu, e que cada uma das divisões contém os aspectos mais favoráveis para as diversas actividades. Nunca fazem nada sem começarem por consultar os céus a fim de determinarem qual é a melhor altura para as acções que querem empreender.
Nesse caso, era óbvio que os árabes estendiam ao eparch a mesma cortesia que eles próprios esperavam. O eparch compreendera-o e soubera apreciar a nobreza do gesto. Empurrando o prato para o lado, pegou na caixa de esmalte e abriu-a. No seu interior havia um único diamante com as dimensões de um ovo de carriça, que jazia no interior de um ninho de seda vermelha. Pegou na pedra preciosa e ergueu-a na sua frente, viran-do-a para o Sol nascente. A gema brilhou com um fogo duro na ainda fraca luz do pátio.
Nikos apareceu naquele momento, viu-nos a conversar e ficou rígido. Contudo, o sorriso já lhe regressara ao rosto quando se aproximou da mesa.
- Vejo que as saudações já chegaram, finalmente... - declarou, indicando a caixa azul com a sua preciosa gema.
- O emir irá receber-nos amanhã - respondeu o eparch. - Penso que iremos ter com ele ao meio-dia. Consideram que é um momento propício.
- Com todo o respeito, eparch... - replicou Nikos, novamente rígido - mas não seria melhor convocá-los para se reunirem connosco aqui... e num momento por nós escolhido? Não devemos dar a entender que obedecemos às suas exigências...
- Levantas uma boa questão - admitiu o eparch - mas que é inaplicável nas presentes circunstâncias.
- Pelo contrário - afirmou Nikos - é perfeitamente pertinente. Com todo o respeito, eparch, não queremos que a nossa indulgência seja interpretada como vacilação ou fraqueza. Devemos ser nós a ordenar-lhe que venham ter connosco... e não o contrário.
- Mostrar boa vontade para com aqueles que esperamos persuadir nunca é uma manifestação de fraqueza - replicou Nicephorus com suavidade. - O emir reconhecerá a generosidade da nossa aceitação e irá tomá-la em conta. - O eparch levantou um dedo admonitório. - Estes árabes são uma raça orgulhosa e não é com facilidade que aceitam ficar em débito ou obrigação seja para quem for. Seria bom que te lembrasses disso.
- Com certeza, eparch - Nikos inclinou a cabeça numa vénia forçada e retirou-se. Não voltei a vê-lo até ao dia seguinte, quando reunimos o grupo que iria cumprimentar o emir Sadiq, e só então percebi porquê: Nikos dera-se ao trabalho, provavelmente com grandes dificuldades, de mobilizar um certo número de carros puxados por cavalos para nos conduzirem ao acampamento dos Árabes.
O eparch Nicephorus emergiu da casa, lançou uma olhadela à longa linha de carros que nos aguardavam na rua e ordenou:
- Manda-os embora, Nikos! Manda-os embora! Iremos a pé até ao acampamento do emir.
O komes pestanejou de incredulidade e exclamou:
- Ir a pé?! Com todo o respeito, eparch, não podem ver-nos a andar a pé!
- E por que não? - retorquiu Nicephorus com ligeireza. - As pessoas andam a pé em todo o lado da Terra quando têm de tratar dos seus assuntos. Já o verifiquei com os meus próprios olhos. Por muito que tente, não vejo nisso qualquer vergonha.
- Mas... o magister e os funcionários... vão considerar que caminhar é impróprio e pouco digno...
- Ah, não sabia que estávamos aqui para tentar impressionar o magister e os seus lacaios com a nossa exaltada posição!
- Eparch, por favor, nunca esperei que adoptasse esse tom. Acredite que a opinião do magister me interessa tanto como a si. O que temos de ter em conta é a opinião do emir.
- Então, permite-me que te garanta... - respondeu Nicephorus - que essa é a minha única preocupação.
- E não é menor do que a minha, eparch...
- Será? - A voz do eparch tornou-se firme e os seus olhos ganharam vida. - Por vezes, interrogo-me a esse respeito, Nikos. - Abandonou o assunto e continuou: - Bom, não interessa, o emir está à nossa espera. Vamos. Tragam os presentes.
Nicephorus começou a caminhar ao longo da rua, sozinho. Nikos observou-o por um instante e vi a raiva a fervilhar dentro dele ao ponto de quase o fazer tremer de fúria. Todavia, dominou rapidamente a sua ira, que desapareceu tão depressa como surgira. Virou-se e fez sinal a Harald para enviar os guardas à frente.
O magister, que aguardava a alguma distância na companhia de um grupo de funcionários da cidade, aproveitou para se aproximar.
- Vejo que o eparch mudou de ideias - declarou, olhando para o homem velho, magro e desengonçado que descia a rua.
- Sim, infelizmente - concordou Nikos com uma aparente relutância. - Receio que tenhamos de nos acostumar aos seus humores imprevisíveis.
Foi tudo o que disse, mas as dúvidas semeadas com aquelas poucas palavras iriam em breve transformar-se numa grande colheita.
Quando o nosso grupo chegou à porta oriental de Trebizonda já Nikos nos dispusera em filas bem ordenadas, numa tentativa para conseguir a pompa que pretendera inspirar. Passámos a porta, atravessámos a ponte do fosso e avançámos em direcção ao acampamento numa verdadeira procissão. Vendo que nos aproximávamos a pé, o emir Sadiq organizou um grupo de boas-vindas a cavalo e veio ao nosso encontro.
Nunca esquecerei a visão daquele homem, sentado no seu belo cavalo cinzento e completamente coberto com trajes brancos que reluziam sob o pálido sol de Inverno. Deteve a montada, deslizou da sela num único movimento fluido e avançou de mão estendida para cumprimentar o eparch. O enviado do califa não era um homem grande mas exsudava um ar de tão grande dignidade e domínio que fazia com que parecesse pairar acima de todos os outros à sua volta. Era delgado em vez de musculoso, e movia-se com a graça e a subtileza de um gato.
Embora nunca se tivessem encontrado, o emir caminhou directamente para o Nicephorus e fez uma vénia. Disse qualquer coisa em arábico que me soou a Al Wallah e depois, sem a mínima hesitação, declarou:
- Saudações em nome do Grande AFMuamid, califa dos Abássidas por Vontade de Alá. Sou J'Amal Sadig, emir dos Sarracenos Abássidas, e dou-vos as boas-vindas ao meu acampamento.
O eparch inclinou a cabeça, num reconhecimento dos cumprimentos.
- Saudações, emir Sadiq, em nome do nobre Basil, Eleito dos Céus, Co-Regente de Deus sobre a Terra e Imperador dos Romanos pela Graça de Deus - replicou o eparch. - Sou Nicephorus, um vosso servidor.
- Deverá perdoar-me, eparch Nicephorus - afirmou o emir - mas já esgotei a minha pequena reserva de palavras gregas. A partir de agora servir-me-ei da ajuda do meu conselheiro. - Levantou as mãos, bateu-as duas vezes e chamou: - Faysal!
Um jovem, apenas ligeiramente mais velho do que eu, surgiu ao lado do seu amo como que vindo de lado nenhum. Reconheci-o imediatamente como sendo o mensageiro que nos levara o convite no dia anterior. Fazendo uma profunda vénia, Faysal começou a transmitir as palavras do amo a todos os que ali se encontravam presentes e falavam grego. O eparch e o emir, virados um para o outro, trocaram as saudações tradicionais durante algum tempo, logo seguidas pelos dos funcionários menores de ambos os grupos. A seguir verificou-se a troca de presentes: braçadeiras de ouro para o emir e uma taça de ouro para o eparch.
- A esta hora do dia... - declarou J'Amal Sadiq por intermédio do intérprete - é costume tomarmos alguns refrescos. Seria para mim a maior das honras se consentísseis em juntar-vos a nós na minha tenda.
- A honra, emir Sadiq, será inteiramente nossa - replicou o eparch - mas nem sequer pensaremos em pôr os pés na vossa tenda sem vos extrair a promessa de jantarem connosco num outro dia.
- Com certeza - respondeu o emir. - Ficarei à espera desse dia com uma enorme ansiedade.
A delegação avançou então para a tenda, erguida no meio do acampamento. Como Harald deveria ficar no exterior com os seus guardas bárbaros, ocupei o meu lugar a seu lado, pronto para ficar à espera. Estava convencido de que não teria qualquer hipótese de me aproximar mais das cerimónias que se iriam seguir, mas o eparch virou-se um pouco quando ia a entrar na tenda, olhou em volta, viu o magister, o spatharius, Nikos e os outros que faziam parte do seu grupo, e reparou que me encontrava de pé ao lado de Harald.
- Eh, tu, sacerdote! - chamou, num tom mais áspero do que era habitual quando não havia ninguém por perto. - Vem cá! Vais assistir-me.
- Não precisamos dele - declarou Nikos rapidamente. - O escravo que fique cá fora, junto dos bárbaros a que pertence!
Quase furioso, o eparch virou-se repentinamente para Nikos e perguntou-lhe:
- Sabes falar arábico?
- Sabeis bem que não - respondeu Nikos, fazendo uma careta ante a pergunta - mas...
- Então não precisas de te incomodar mais com a minha decisão - retorquiu o eparch, malicioso. - Virou-se mais uma vez para mim e ordenou-me: - Segue-me!
Vi os olhos do komes a semicerrarem-se quando passei por ele. Uma vez no interior da tenda confessei, num murmúrio, para não ser ouvido por mais ninguém:
- Eparch, não falo arábico...
- Ah, não? - respondeu, distraído, num tom que não me deixou entender se estava ou não a par do facto antes de eu lho dizer. - Não te preocupes, não faz diferença.
No seu conjunto, a delegação era formada por perto de trinta pessoas, para além dos cerca de quinze árabes presentes. A tenda acomodava-nos a todos e ainda sobrava espaço. Sentámo-nos no chão, o que não quer dizer que nos sentássemos no solo. Nada disso, porque o chão, que anteriormente fora apenas de ervas e terra, estava agora transformado numa manta de retalhos de cores brilhantes devido ao hábito que os árabes têm de cobrir o fundo das tendas com espessos tecidos com os mais espantosos tons e cores, diria até que com todas as cores conhecidas pela arte dos tecelões. O efeito dessas coberturas, ou tapetes, era um encanto para os olhos, enquanto os seus desenhos eram uma delícia para o intelecto. Para além dos tapetes, que formavam um belíssimo chão, a tenda também tinha almofadas para nos reclinarmos ou sentarmos, pelo que o conjunto era tão confortável e satisfatório como qualquer outra casa que eu já tivesse visto.
O emir ordenou que servissem os refrescos logo que nos reunimos todos no interior. Foi uma façanha que realizou sem uma única palavra, porque lhe bastou bater as palmas para que aparecesse imediatamente uma dúzia de servos transportando bandejas de prata, cada uma maior do que a anterior, e todas elas carregadas com alimentos como eu nunca vira. A maior dessas bandejas continha todo um borrego assado e o seu transporte requeria a força de dois escravos.
As bandejas foram colocadas sobre pequenos tripés baixos, em madeira, instalados ao alcance dos convivas, após o que os servos bateram em retirada para serem imediatamente substituídos por outros que transportavam jarros de prata e tabuleiros com taças de prata. Foi servida uma bebida quente e as taças foram distribuídas a toda a gente, incluindo eu. O emir pegou na sua taça, ergueu-a, disse qualquer coisa breve em arábico, e bebeu. Todos nós lhe seguimos o exemplo, levando as taças aos lábios para bebericarmos o líquido fumegante, que sabia a flores e a mel. Era quente e doce, mas não deixava de ser refrescante.
A seguir, o emir mostrou-nos como nos deveríamos servir das bandejas, segurando as mangas com a mão esquerda e usando os dedos da mão direita para escolhermos os melhores bocados. Alguns membros da delegação de Trebizonda resmungaram perante aquela maneira de comer, quei-xando-se da falta de facas, debicando a comida como aves desdenhosas e revelando-se muito pouco corteses nos seus comentários, como se não se preocupassem, tal como me pareceu, com a possibilidade de ofenderem os seus anfitriões. Contudo, Nicephorus comportou-se regiamente, lambendo os dedos e dando estalos com os lábios, numa apreciação das iguarias que tinha à sua frente. Tratava-se na verdade de iguarias e não tenho a mínima dúvida quanto a isso.
Pela sua parte, o emir mostrou-se satisfeito com o facto de o eparch se mostrar tão deliciado. Foram várias as vezes em que foi ele próprio quem escolheu um petisco mais delicado e o ofereceu ao eparch. Isto, como aprendi rapidamente, era um gesto de amizade. Entre os árabes, ser servido pela mão de um nobre governante era considerado como uma honra muito especial.
Foi apenas depois dos apetites dos funcionários e dos seus seguidores terem sido satisfeitos que chegou a minha vez - e a dos outros servos - de provar vários daqueles pratos. Achei-os estranhos para o meu gosto mas não inteiramente desagradáveis. Um ou dois incluíam uma especiaria muito forte que me produziu calor na boca e me aqueceu de tal modo que me rebentou o suor na testa. Cheguei a pensar que ia desmaiar mas essa sensação passou.
Enquanto comiam, o eparch e o emir começaram a conversar. Infelizmente, não me encontrava suficientemente perto para escutar o que diziam mas pareceu-me que os dois homens se mediram rapidamente um ao outro e não ficaram desagrados com as conclusões a que chegaram. A conversa e a refeição prosseguiram de um modo preguiçoso até ao momento em que ouvimos o som de alguém a ulular no exterior da tenda. A voz erguia-se num cântico ondulante e todos nos calámos para a ouvir, excepto o emir, que se levantou, fez uma vénia para o eparch, pronunciou uma palavra e saiu. Os seus homens seguiram-no, deixando para trás apenas os servos e o tradutor.
- Por favor... - disse o jovem - o meu senhor Sadiq pede que lhe perdoem, mas chegou a hora da oração. Contudo, sois seus hóspedes respeitados e podeis ficar enquanto o desejardes. Comei e bebei à vossa vontade.
O eparch levantou-se e declarou:
- Transmite os nossos agradecimentos ao teu senhor. Diz-lhe que apreciámos muito a sua companhia e que é com o mais profundo pesar que chegou o momento de nos retirarmos.
Abandonámos o campo e regressámos à cidade e ao palácio do governador, onde o eparch deu imediatamente início aos preparativos para receber os árabes.
Foi desse modo que teve lugar o meu primeiro contacto com os muçulmanos que, como vim a saber, não era pagãos tal como eu pensara inicialmente mas sim um povo que adorava o mesmo Deus que os Cristãos e Judeus e que, também como estes, reverenciavam a Palavra Sagrada. Sabiam qualquer coisa a respeito de Jesus mas, tal como os judeus, não o consideravam como sendo o Cristo. De qualquer modo eram extremamente devotos e muito cumpridores no seu comportamento, e viviam de acordo com um conjunto de regras descritas num livro, o Qur'an, escrito por um tal Muhammed, que fora na verdade um poderoso profeta. A doutrina principal da sua crença era, como acabei por perceber, uma completa e total submissão à vontade de Deus, estado esse a que davam o nome de islam.
Nessa noite, quando jazia na minha cama na casa apalaçada de Trebizonda, voltei a sonhar.
Foi naquele lugar onde o estado desperto e o sono se encontram que me descobri no meio da escuridão. Não conseguia distinguir as características do local mas era frio e húmido, e para além disso conseguia ouvir gritos e choros de homens que pareciam ecoar, como que vindos de uma grande distância, ao longo de corredores de pedra. A sala em que me encontrava empestava com o cheiro a urina, a excrementos e a fumo acre.
Não sabia como fora ali parar nem que espécie de sítio era aquele. Também não me recordava há quanto tempo estava naquela sala, se é que se tratava de uma sala. Todavia, escutava os gritos de homens à minha volta e tive a sensação, embora não fosse capaz de dizer porquê, de que estava à espera, talvez à espera há muito, muito tempo, pela chegada de alguém.
Tornei-me consciente de outra presença na sala. Levantei os olhos e vi um homem na minha frente. Pertencia à raça de pele acastanhada e olhava-me, com os braços cruzados sobre o peito, como se o facto de me ver o ofendesse.
- Por favor... - arrisquei-me a perguntar - por que motivo estou aqui? Que foi que fiz? - Pronunciei as palavras e surgiu-me a ideia de que era um cativo numa prisão.
- Silêncio! - replicou o homem. A sua voz era, por si só, uma ordem. Descruzou os braços e verifiquei que segurava num rolo de pergaminho. Atirou-me e disse: - Lê-o em voz alta.
Peguei no pergaminho, desenrolei-o e comecei a ler, não obstante as palavras serem estranhas à minha boca e me soarem mal aos ouvidos. Li, cuspindo aquelas palavras estrangeiras para a escuridão da sala até ao momento em que o homem de pele acastanhada me gritou:
- Basta!
Arrancou o rolo de pergaminho das minhas mãos e perguntou:
- Compreendeste o que acabaste de ler?
- Não, meu senhor - respondi.
- E compreendes onde estás? - inquiriu.
- Quanto a isso, não estou muito certo... - disse-lhe - mas parece-me uma espécie de prisão. Nesse caso, sou um cativo?
O homem de pele acastanhada riu-se de mim.
- Uma prisão? - troçou. - Achas que isto se parece realmente com uma prisão?
Bateu as palmas e já não me encontrava num quarto húmido, mal-cheiroso e escuro. Na verdade, estava agora sentado numa almofada de brocado dourado, numa sala muito maior do que um salão. Na minha frente encontravam-se tabuleiros de comida e estava vestido com trajes da mais bela seda.
- Come - disse o homem. Mais uma vez, tratava-se de uma ordem e não de um simples convite amável. - Leva o tempo que quiseres.
Estendi a mão para o tabuleiro de comida mais próximo porque, de súbito, me sentia invadido por uma fome poderosa. Porém, quando estendi a mão para o tabuleiro, vi o pulso a sair da manga de seda. A carne do pulso estava vermelha e cheia de cicatrizes. Puxei a mão para trás e observei-a. A seguir examinei o outro pulso. Também tinha cicatrizes mas na minha cabeça não havia qualquer recordação sobre o modo como aquelas cicatrizes haviam aparecido ali.
Ouvi o som de um cavalo a relinchar. Desviei os olhos da minha surpreendida inspecção e vi outro homem de pele castanha montado num cavalo branco. Estava vestido com um traje e um turbante num tom azul-celeste e empunhava uma lança. Ao ver-me, ergueu a lança, apontou-a para mim, esporeou a montada e incitou-a a avançar.
O cavalo deu um salto sob o efeito das esporas e atirou-se para a frente. O cavalo e o cavaleiro lançaram-se contra mim ainda antes de me conseguir mover. Vi as narinas do cavalo a abrirem-se ao máximo, ouvi o som oco de cascos rápidos a ressoarem sobre o pavimento de mármore e o zumbido da afiada ponta da lança a cortar o ar.
Virei-me e tentei fugir mas houve qualquer coisa que me agarrou e verifiquei que tinha os braços presos por dois homens enormes com peles da cor do ébano. Seguravam-me com força e atiraram-me para o chão, obrigando-me a ajoelhar. Nesse momento, o cavaleiro surgiu na minha frente. O cavalo desaparecera e o homem já não empunhava a lança mas sim uma espada que começou a aquecer num braseiro. Enfiou a espada no meio dos carvões ardentes e puxou-a para um lado e para o outro ao longo do seu comprimento. O metal ficou baço, para logo a seguir ganhar cor e ficar a brilhar. O homem retirou a espada do fogo e avançou para onde eu me debatia, no chão.
Pronunciou uma palavra que não consegui compreender. Um dos homens negros agarrou num punhado dos meus cabelos e puxou-me a cabeça para cima, enquanto o outro me apertava as maxilas e me forçava a abrir a boca.
A escuridão voltara... e tudo o que conseguia ver enquanto a espada de fogo se aproximava de mim era o seu aço ardente.
Sentia o calor da lâmina no meu rosto. Conseguia ouvir o suspiro do metal quente no ar frio.
Puxaram-me a língua para fora da boca.
A espada ergueu-se de repente e ficou a pairar antes de descer. Nesse preciso instante vi a face do guerreiro iluminada pelo fraco clarão da lâmina em brasa. Era a face do emir, J'Amal Sadiq.
Observou-me com um olhar desapaixonado antes de vibrar o golpe, sem ira, sem ódio, mas apenas com uma severidade sombria enquanto a lâmina descia e me cortava a língua. Gritei, continuei a gritar e a boca encheu-se-me de sangue.
Acordei com o eco de um grito ainda a reverberar no corredor vazio no exterior do meu quarto e com o sabor do sangue na boca.
Os dias seguintes foram dedicados aos preparativos para o festim com que o eparch daria as boas-vindas ao emir e aos seus nobres. Verificaram-se muitas e prolongadas consultas sobre o que os maometanos podiam ou não podiam comer. Ao que parecia, os árabes não suportavam a carne de porco sob nenhuma das suas formas, nem os mariscos - um produto em que o mercado de peixe de Trebizonda se destacava -, nem certos tipos de vegetais. Para além disso, não bebiam vinho nem öl.
Estas limitações ocasionaram infindáveis discussões entre aqueles que tinham por obrigação prepararem a refeição. Vim a descobri-lo porque o eparch me pediu para dar uma olhadela às cozinhas a fim de o informar sobre os progressos dos preparativos. O mestre da cozinha era um homem amargo, chamado Flautus, que ficava ressentido com todas as exigências que o eparch lhe impunha. Para ele, tudo constituía uma ofensa e aproveitava todas as oportunidades para resmungar. Entretanto, desse modo, ia instilando ódio pelos árabes muito antes destes aparecerem, tanto nos seus ajudantes como em todos os outros que trabalhavam na cozinha.
Nunca vim a descobrir porque se queixava daquele modo. Todavia, Nikos reconheceu a qualidade no homem e não perdeu tempo a inflamar ao máximo essa animosidade. Descobri-o quando, ao ser mandado à cozinha com um pequeno recado, vi Nikos a conversar com o mestre da cozinha. Este último cortava um bocado de carne com um cutelo e obrigava o instrumento a desferir golpes cada vez mais violentos. Ao ver-me, Nikos interrompeu a sua conversa e aproximou-se de mim.
- Irmão Aidan... - disse, num tom ligeiramente ameaçador - é agradável vê-lo a interessar-se tanto pelos assuntos do eparch. Espero que esse fardo não seja demasiado pesado para si...
- Não, komes - respondi. - Estou satisfeito.
- E o rei Harald não fica ressentido com o facto de haver outra pessoa a aproveitar-se do seu servo?
- O jarl Harald fica satisfeito por eu poder ajudar. Se não fosse assim, estou certo de que se queixaria.
- Óptimo! - Olhou para mim por instantes, como se tentasse ler os meus pensamentos. - Sabes, Aidan - prosseguiu, numa espécie de confidência íntima - não me esqueci que ajudaste a levar aquele traiçoeiro quaestor perante a justiça. Não esqueci esse dia...
- Nem eu.
- Continuo a perguntar a mim mesmo o que te levou a fazê-lo. Tenho a certeza que o assunto não te dizia respeito.
- Ah, mas dizia, komes Nikos - repliquei. - Era um assunto do meu senhor Harald... e eu sirvo o meu amo.
- Pois é... e ao servires o teu senhor, ganhaste os favores do meu senhor e a liberdade para ti, não é verdade?
- Mas... eu não sou livre! - salientei. - Continuo a ser um escravo.
- Contudo, presumo que entreténs esperanças de liberdade.
- É verdade, komes - admiti, acrescentando: - É uma esperança acalentada pela maior parte dos escravos.
- É louvável que mantenhas essa esperança bem viva, meu amigo Aidan. - O seu porte tornou-se ameaçador, embora não levantasse a voz nem alterasse o seu discurso. - Se me permites a audácia de to sugerir, posso vir-te a ser útil, sacerdote. Gozo de uma certa influência no que se refere ao imperador...
- Terei isso em mente, komes Nikos.
- Estou certo que sim...
Abandonou a cozinha e Flautus ficou a vê-lo a afastar-se. Quando me virei para o cozinheiro, este desviou imediatamente os olhos e fingiu que não estivera à escuta. Retomou a sua tarefa de partir a carne, atirando o cutelo com toda a força contra os ossos e cartilagens como se se tratassem de inimigos. Concluí rapidamente a tarefa que me levara à cozinha e saí, com a esperança de poder evitar futuras discussões com Nikos.
Completados os preparativos, foi enviado um convite ao emir Sadiq para aparecer no dia seguinte, depois das orações da tarde. O mensageiro regressou, transmitiu as palavras de concordância do emir e acrescentou:
- Vai trazer cinquenta dos seus homens e duas esposas.
- Duas esposas? - interrogou-se o eparch. - Nada sei a respeito das suas esposas. Disse mais alguma coisa a esse respeito?
- Nada. Apenas que as trará consigo... - replicou o mensageiro.
O emir e a sua comitiva chegaram no dia seguinte, um pouco depois do pôr do Sol. O jarl Harald e quarenta dos seus melhores bárbaros dispuseram-se ao longo da rua, em frente da casa, e saudaram o emir à medida que este passava. Perguntei a mim mesmo quem lhes teria ensinado a fazer aquilo e calculei que a ideia tivesse sido de Nikos. Quando chegou à porta, foi o próprio rei Harald quem lha abriu para o deixar passar.
Lorde Saliq entrou no salão de banquetes seguido pela sua própria guarda pessoal de quinze altos sarracenos, que transportavam pequenos escudos redondos, em prata, bem como compridas lanças também de prata. No centro das fileiras, rodeadas pelos sarracenos, caminhavam as duas mulheres... se é que se tratavam de mulheres, isto porque se encontravam cobertas da cabeça aos pés com longos trajes flutuantes de seda num tom amarelo muito pálido, e usavam os rostos cobertos por um véu que só deixava ver os grandes olhos escuros.
Fiquei intrigado. Nunca na vida vira mulheres tão cativantes e tão acarinhadas. Eram delgadas e graciosas como varas de salgueiro, estavam envoltas em trajes onde brilhavam os fios de ouro, moviam-se com uma elegância silenciosa e faziam o ar vibrar com o suave som de minúsculas campainhas. Captei uma fragrância quando passaram por mim, docemente exótica, seca, mas rica e cheia como o perfume de uma flor do deserto. Era uma fragrância que atraía e que fez com que o coração se me agitasse no peito.
Tinham um ar distante embora estivessem perto de nós, e eram como verdadeiras deusas. Estavam suficientemente próximas para lhes podermos tocar mas eram inatingíveis. Eram tão vulneráveis como cordeiros mas estavam rodeadas por guerreiros carregados de intenções letais. Precisei de todas as minhas forças para desviar os olhos delas, para não se dar o caso de ofender o emir. Mesmo assim, lançava-lhes olhadelas sempre que podia.
Embora não conseguisse ver-lhe os rostos, imaginava que aquelas suas belas formas só podiam ser acompanhadas por uma beleza e encanto próprias de anjos... e tenho que confessar que a minha imaginação ultrapassou um pouco as marcas...
Os árabes foram recebidos com bons modos pelo eparch, que lhe estendeu as mãos num sinal de respeito. O emir tomou as mãos do eparch nas suas e os dois homens trocaram saudações. Nicephorus presenteou Sadiq com uma corrente de ouro para usar ao pescoço, bem como com três anéis de ouro para cada uma das suas esposas. Por seu lado, cada um dos nobres do emir recebeu uma taça de prata.
O emir também trazia presentes. Chamou os seus servos, que avançaram com arcas de madeira. Depois de abertas, as arcas revelaram magníficos trajes de seda, frascos de alabastro com óleos preciosos e belas caixas de esmalte, cada uma das quais continha um rubi. Enquanto este e outros presentes eram distribuídos, Sadiq presenteou Nicephorus com um traje de seda púrpura de um tipo muito apreciado em Bizâncio. As orlas era de ouro e tinham pequenas cruzes de ouro inseridas no próprio tecido. Para além disso, também ofereceu ao eparch uma espada semelhante à usada pelos seus próprios guardas, em prata, com uma lâmina delgada e encurvada.
Maravilhei-me com a generosidade dos presentes do emir e não deixei de perguntar a mim mesmo que motivos estariam ocultos por trás daquelas ofertas. Os presentes do eparch haviam sido muito bons, mas os do emir eram verdadeiramente requintados. Contudo, o eparch não revelou nenhum sinal de se sentir incomodado com uma troca tão desequilibrada.
Depois da aceitação formal dos presentes, chegou finalmente o momento de todo o grupo se sentar para a refeição. Os bizantinos instalaram-se em sofás baixos e os árabes em almofadas dispostas no chão, e ficaram a observar-se atentamente uns aos outros através das estreitas passagens por onde os servos trouxeram tabuleiros e bandejas com comida. Descrever aquele banquete seria diminuí-lo, uma vez que as palavras nunca seriam suficientes para o fazer e só conseguiram transmitir a mais ligeira das ideias sobre o festim que foi servido naquela noite. Como ninguém me disse o contrário, juntei-me à festa com a maior das boas vontades. A refeição foi uma maravilha e cada dentada uma delícia, desde as pequenas azeitonas verdes de salmoura até às codornizes assadas com mel. Ah, e o vinho! Tão Perfumado como um bálsamo e tão leve como uma nuvem, enchia-nos a boca com a frescura dos frutos e com a suavidade de uma noite de Verão. Os árabes também beberam, não vinho mas sim uma bebida doce feita com mel, especiarias e água, que Nikos mandara preparar especialmente para eles.
Os grandes senhores de Trebizonda fingiram-se pouco impressionados. Reclinaram-se nos seus sofás e debicaram estoicamente com as suas facas, como se um jantar tão magnífico não passasse de mais um dever desagradável. Digo-vos a verdade: o modo como se comportaram ante a fartura daquela mesa foi um verdadeiro pecado. Contudo, pela minha parte, mais do que compensei essa transgressão. Fiz o melhor que pude, saboreando cada bocado como só um homem repleto de gratidão consegue fazer.
Nicephorus e o emir sentaram-se juntos, em almofadas, uma vez que o eparch abandonara o seu sofá habitual por deferência para com o seu hóspede. Instalados sobre uma plataforma baixa, os dois homens dominavam a festa rodeados pelas personagens de maior nível e que gozavam de privilégios mais elevados. Nikos era segundo em relação ao eparch, logo seguido pelo magister e pelo spatharius, que exibiam a expressão de homens obrigados a assistir a um funeral. A meio da festa, Nikos levantou-se e saiu, para regressar pouco depois seguido por quatro homens que transportavam uma enorme ânfora de ouro sobre um estrado de madeira esculpida. As pessoas soltaram exclamações perante a aparência daquele impossivelmente dispendioso objecto e o salão ressoou com as aclamações.
Nikos conduziu os servos até ao centro do salão e deteve-se junto à base da plataforma.
- O Imperador Basil envia as suas saudações ao emir - declarou, falando numa voz suficientemente forte para ser ouvida por todo o salão - e encarregou-me de vos entregar esta ânfora em seu nome, para ser enviada ao califa como penhor da alta estima que atribui ao seu futuro amigo.
Este anúncio provocou uma onda de murmúrios rápidos por todo o salão. Houve quem ficasse de boca aberta perante a generosidade, para não dizer prodigalidade, daquela dádiva, cujo valor deveria ser espantoso.
Por ordem de Nikos, os servos transferiram a bebida contida na grande ânfora, bebida essa que fora especialmente preparada para os árabes, para jarros de prata, com os quais passaram a encher as taças dos convivas. Quando todo o elixir já fora servido, Nikos levantou a sua taça e disse:
- Bebo à saúde e longa vida do Imperador e do califa, e à amizade e paz entre os nossos dois povos!
Toda a gente levantou as taças e bebeu. Foi nesse momento, quando todos estavam ocupados, que se ouviu um grito vindo do vestíbulo da entrada e vimos oito ou dez homens a precipitarem-se para o salão. Envergavam os longos trajes negros dos sarracenos e tinham as partes inferiores dos rostos bem tapadas. Correram pela passagem central por entre os convivas, soltando grandes gritos e agitando as espadas e lanças que brilharam sob a luz das velas. Sem a menor hesitação, apoderaram-se da ânfora de ouro e fugiram com ela na frente de toda a gente. Os homens que se encontravam presentes debateram-se para se levantarem e tentarem detê-los, mas os ladrões e a sua presa já haviam desaparecido antes de alguém ter tempo para reagir.
O eparch ficou siderado. O magister e o spatharius permaneceram imóveis, paralisados pelo espanto. O rosto do emir ganhou um profundo tom vermelho, de vergonha e raiva pelo facto de homens da sua raça terem cometido um crime tão descarado na própria casa em que fora recebido como convidado. Levantou-se imediatamente e ordenou ao seu corpo de guardas que perseguisse os ladrões, que os matassem e trouxessem de volta a ânfora de ouro. Os sarracenos levantaram-se como um só homem e empunharam as armas.
Contudo, Nikos deteve-os. Levantou os braços e gritou:
- Por favor! Por favor, sentem-se! Imploro-vos que voltem a sentar-se! Os ladrões foram-se embora e ninguém ficou magoado. Não há motivos para alarme. Permitir que esses ladrões interrompam esta nossa festa seria um crime muito pior! Por isso, peço-vos: não liguem ao que se passou aqui esta noite. Não foi nada, apenas uma simples ninharia. Não se deixem desanimar!
Virou-se para os servos que continuavam com os jarros de prata nas mãos, chamou o que se encontrava mais próximo e disse qualquer coisa junto ao ouvido do homem. O servo fez sinal aos outros e todos abandonaram o salão.
- Meus amigos... - insistiu Nikos - continuem com a vossa festa como se nada tivesse acontecido! - Levantou um braço e apontou para a entrada do salão, onde os servos tinham reaparecido carregados com uma ânfora ainda maior do que a que havia sido roubada. - Vêm? - exclamou. - O acontecimento desta noite nada teve de especial! A largueza do Imperador é mais do que suficiente! Comam! Bebam! Divirtam-se!
Se a visão da primeira ânfora maravilhara e deliciara os convivas, então a visão da segunda emudeceu-os de espanto. Mesmo assim, conseguia ouvir os seus pensamentos tão bem como se os tivessem escritos no rosto: como era possível que existissem dois objectos daqueles? E eram ambos oferecidos ao califa! Que despesa extravagante! Só um deus se podia permitir fazer tais dádivas!
A segunda ânfora também estava cheia com a bebida doce, que foi distribuída pelo salão para encher as taças. Nikos renovou as suas afirmações de boa vontade e o banquete recomeçou a pouco e pouco, mas agora com muito mais interesse do que anteriormente.
No dia seguinte toda a cidade borbulhava com a excitação do ousado roubo e comentava o modo como a reacção rápida do komes e o seu gesto extraordinário haviam salvo a honra do emir. Fora um acto de pura nobreza, afirmavam, e uma largueza a uma escala sem precedentes. O magister e o spatharius andaram muito atarefados de manhã à noite propagandeando o roubo e oferecendo uma recompensa pela captura dos ladrões e pela devolução da ânfora.
Só o eparch pareceu desagradado com o comportamento do komes ao longo de todo o caso. Encontrei-o logo depois do meio-dia, na sala que costumava utilizar para as reuniões do conselho.
- Eparch... - disse-lhe, aproximando-me de onde se encontrava sentado, com os punhos cerrados sobre os braços da cadeira - pediu-me para o informar quando o komes Nikos regressasse. Já cá está.
- Nesse caso, informa-o que o quero ver imediatamente.
Dei meia volta e comecei a afastar-me, mas Nikos entrou naquele momento, cheio de zelo e de palavras tranquilizadoras.
- Encontraremos a ânfora, não se preocupe! - afirmou. - Tenho homens a procurarem-na por toda a cidade e confio que será devolvida em breve.
- E a dignidade dos nossos convidados? - perguntou o eparch. - Também nos vai ser devolvida?
- Está ofendido, eparch - comentou Nikos. - Garanto-lhe que estou a fazer todo o possível para resolver este infeliz incidente.
- Sim, estou ofendido! - replicou o eparch com secura. - E tam-' I bém estou zangado! A ofensa aos nossos convidados foi imperdoável.
O emir foi suficientemente gracioso para aceitar as minhas garantias de que o assunto irá ser seriamente investigado.
- Assim será - declarou o komes. - Tem a minha palavra. Os responsáveis serão apanhados e levados à justiça. Se quiser aceitar um conselho... acho que seria melhor não confiar demasiado nos dinamarqueses. São os únicos que devemos responsabilizar por tudo isto! Se não fosse a sua negligência, este crime nunca teria sido cometido.
- Então como? - inquiriu o eparch. - Permaneceram sempre nos seus postos, exactamente onde os colocaste. Até os escravos afirmam que ninguém entrou nesta casa depois dos dinamarqueses ocuparem as suas posições. Penso que devemos procurar os responsáveis em qualquer outro lado...
Nikos ia começar a protestar mas o eparch calou-o com um movimento exasperado da mão.
- Podes ir, komes Nikos - ordenou. - Vai dar as tuas garantias ao magister e ao seu macaco de estimação. Estou certo que se deixarão persuadir com muito mais facilidade. Vai e deixa-me só! Preciso de pensar!
O komes exibiu um ar ofendido ante aquele tratamento brusco.
- Eparch, lamento muito, se lhe desagradei de qualquer maneira. Só pretendo recordar-lhe que se trata, no fim de contas, de uma situação muito delicada e invulgar. Temos de proceder com cautela e circunspecção.
- Ah, sim, estou certo disso... - replicou Nicephorus com uma irritação crescente. - Podes ir andando, com toda a cautela e circunspecção... mas vai-te embora daqui!
Nikos abandonou a sala. O eparch ficou a vê-lo afastar-se e disse:
- Ouviste-o, Aidan?
- Sim, eparch.
- Afirmou que a ânfora em breve será devolvida. Pergunto a mim mesmo onde a irão encontrar... Na cozinha? Nos estábulos?
- Eparch?
- Está metido nisto, tenho a certeza. - Virou-se para mim e acrescentou: - Obrigado, Aidan. Podes ir. Estou cansado e vou deitar-me um bocado.
Levantou-se da cadeira com um ar fatigado, caminhou para a porta, fez uma pausa e perguntou:
- Aidan, posso confiar em ti?
- Espero que possa - retorqui.
- Então vou dizer-te uma coisa - prosseguiu, fazendo-me sinal para me aproximar. Quando o fiz, pousou uma das mãos no meu ombro, num gesto paternal que me fez lembrar o abade Fraoch. Encostou a boca ao meu ouvido e sussurrou:
- Tem cuidado com o komes, Aidan. Considera-te como um seu inimigo.
A afirmação não foi nenhuma surpresa para mim mas respondi:
- Acredito em si, eparch... mas porque iria ele considerar-me um inimigo?
Nicephorus esboçou um sorriso fraco e sem alegria.
- Porque descobriste a sua duplicidade. Ser descoberto é uma das coisas que mais teme... e é a única que a traição não consegue suportar.
A ânfora de ouro apareceu um ou dois dias depois. Fora descoberta, segundo disseram, num fosso no exterior das muralhas da cidade. Encontrava-se quase incólume, excepto quanto a uma amolgadela num lado e a uma asa torcida, que parecia indicar que alguém a tentara arrancar. O rei Harald resmungou quando lhe falei na recuperação do tesouro.
- Largaram-na onde sabiam que seria encontrada... - rosnou. Desde o primeiro instante que o jarl encarara muito mal todo o acontecimento. Afirmava que o roubo ofendia a sua honra e a dos seus homens, e que fora organizado apenas para o desgraçar.
- Não houve quaisquer ladrões - argumentara. - Ninguém entrou ou saiu depois da chegada do emir. Ninguém se aproximou do salão.
- Talvez os ladrões já se encontrassem dentro de casa - sugerira-lhe. - Podiam estar escondidos.
- Heya! - concordara. - Os ladrões estavam no interior da casa. Podes estar certo disso. Pela barba de Thor, aquela ânfora nunca foi roubada!
- Mas eu vi! Estava lá! Entraram de repente e levaram-na!
- Nay - replicara, com a voz transformada num murmuro baixo. - Alguma vez ouviste falar de ladrões que se livrassem de um tal tesouro depois de o terem nas mãos?
- Talvez receassem ser perseguidos - sugerira-lhe. - Esconderam-na no fosso para a irem buscar mais tarde... quando ninguém estivesse a olhar.
O bárbaro abanara a cabeça com firmeza.
- Foi quando ninguém estava a olhar que a deitaram fora... - replicara o jarl, e eu fora forçado a admitir que, no que se referia a tesouros roubados, os seus conhecimentos e experiência eram muito maiores do que os meus.
Gunnar e Tolar tinham os seus próprios pontos de vista.
- Quem lucrou com o roubo? - perguntara Gunnar incisivamente. - Procurem esse homem e encontrarão o ladrão.
Aconteceu que os responsáveis pelo suposto roubo nunca foram descobertos. Como a ânfora havia sido recuperada, as buscas terminaram, as especulações cessaram e as atenções viraram-se para as conversações de paz entre o eparch e o emir, que se iniciaram alguns dias depois. Alternaram os locais de reunião, por vezes no interior da cidade e outras vezes no acampamento árabe. Houve alturas em que o magister e certos cidadãos proeminentes também participaram, outras em que essa participação incluiu vários mercadores de Costantinopla, e outras ainda em que só estiveram presentes o eparch e o emir, bem como os respectivos intérpretes e conselheiros. Também participei nalgumas das discussões mas achei-as extremamente aborrecidas.
Entretanto, o Inverno foi-se aprofundando à nossa volta. Contudo, os dias, embora frescos e frequentemente húmidos, nunca foram frios. Também não nevou, excepto nos altos picos das longínquas montanhas, para norte e leste. Por vezes surgia um vento vindo do sul que agitava os ramos sem folhas e que tornava o dia quase quente. Mesmo assim, com a aproximação da Missa de Cristo, Trebizonda começou a sacudir alguma da sua letargia sazonal e reparei numa corrente constante de recém-chegados que entravam na cidade. Quando comentei o facto com um dos mercadores, que ocasionalmente também era incluído na delegação do eparch graças ao facto de negociar pedras preciosas e mármore em Trebizonda há mais de vinte anos, afirmou que se tratava apenas de um gotejar que acabaria por se transformar numa inundação.
- Espera e verás... - disse-me. - Por volta do Dia de Santo Eutémio não haverá um único quarto vago em toda a cidade... e todos os portais se irão transformar em camas. É verdade!
Na nossa abadia, tal como em qualquer outra comunidade religiosa, honrávamos certos santos com festividades que tinham lugar em dias determinados, e o dia do Santo Colum Cille era muito especial para os monges de Kells. Embora existissem muitos santos orientais desconhecidos no Ocidente, continuava a parecer-me estranho que pudesse existir um dia mais importante do que o da Missa de Cristo.
- Não fazia ideia que o dia do santo era tão respeitado... - comentei.
- Oh, suponho que alguns vêm para a cidade por causa da festa de Santo Eutémio... - admitiu, com uma certa indiferença - mas a maioria vem por causa da feira.
Já ouvira aquela palavra anteriormente, é claro, mas o sentido em que a utilizavam era-me estranho. Fiz perguntas e disseram-me que uma feira era uma reunião, não muito diferente de um mercado, onde as pessoas podiam comprar e vender, para além de poderem gozar entretimentos e diversões especiais ao longo de muitos dias.
- A feira de Trebizonda é bem conhecida - garantiu-me o mercador. - As pessoas vêm dos extremos mais longínquos do Império, e até de terras para lá dele, para poderem participar. Não importa que sejam cristãos ou pagãos, toda a gente aqui vem.
Falou verdade e sem qualquer espécie de exagero. O dia da Missa de Cristo veio e passou, tendo sido estritamente observado, mas com muito pouco entusiasmo. Fui a uma missa, mais por curiosidade do que por desejo, pois o meu coração não acalentava nenhuma vontade de rezar. O serviço pareceu-me descuidado e até os cânticos tiveram falta de interesse. Bem vistas as coisas, achei que fora uma cerimónia desoladora, embora a minha percepção pudesse estar a ser colorida pelos meus próprios sentimentos de desolação. Continuava amargamente desapontado com Deus e tinha muito pouca disposição para celebrar o nascimento do Seu filho, com quem já não falava.
É possível que - bem no fundo da minha alma - tivesse entretido a noção de que o milagre da reconciliação iria ter lugar durante a celebração mais santificada e mais cheia de alegria, e que o meu Senhor Jesus Cristo poderia olhar-me lá do alto com piedade e misericórdia, tomar-me nos braços e abraçar-me como a um filho, para depois me devolver ao lugar que me competia do seu Grande Reino. Porém, não foi isso o que aconteceu. Deus, sempre distante, permaneceu oculto no seu obscuro céu, tão silencioso e descuidado como de costume. Ou então, se por acaso favoreceu a humanidade com a luz da sua presença, foi brilhar para um qualquer outro canto da Terra. As novas de alegria foram, ao que suponho, concedidas a outros.
A única sugestão de algo vagamente parecido com felicidade ou alegria acabou por surgir dos bárbaros. Os Lobos do Mar realizaram uma tentativa nobre e determinada para organizarem uma celebração. Era a jultide, como lhe chamaram, uma orgia de sete dias de comida, bebida e lutas. Conseguiram fabricar a sua própria öl e arranjaram seis ovelhas e quatro novilhos para assar, embora tivessem preferido um ou dois bois e alguns porcos. Como nada mo impedia, juntei-me a eles durante parte das celebrações no porto, onde se haviam apoderado de uma boa parte do cais para erguerem grandes tendas feitas com as velas dos navios.
- Sinto falta da rõt skinka da Karin... - confidenciou-me Gunnar depois de três ou quatro dias de festa. - E também dos seus lutfisk e tuunbrod. A minha Karin faz o melhor tuunbrod. Não é verdade, Tolar?
- Heya! - replicou Tolar. Depois, talvez por pensar que já falara demasiado, levantou-se de repente e foi à procura de um jarro para encher os copos.
Thorkel e dois outros dinamarqueses apareceram naquele momento a cambalear e instalaram-se à mesa connosco.
- Aeddan, meu velho Lobo do Mar! - gritou Thorkel. - Já não te via há cinquenta anos!
- Ora, viste-me ontem, Thorkel.
- Ah, sim, é verdade! - exclamou, sorrindo de felicidade. - Esta é a melhor jul de sempre, excepto no que se refere à neve. - Fez uma pausa, com o sorriso a apagar-se-lhe do rosto sob uma súbita vaga de melancolia. - É uma pena não haver neve... - murmurou, abanando a cabeça com tristeza. - Sinto falta dela.
- Mas não do frio... - corrigiu-o Gunnar.
Tolar, que regressava à mesa, ouviu o comentário e abanou a cabeça com solenidade. Também ele não sentia falta do frio.
- Nay, o frio não... - concordou Thorkel, tristonho. - Podes ficar com ele para ti. - Fitou-me com os olhos turvos, emborcou a bebida e perguntou: - Que fazem as pessoas da Irlanda no jultide?
Embora não tivesse grande vontade de conversar com bárbaros bêbados, foi precisamente o que acabei por fazer.
- Não temos jul mas celebramos a Missa de Cristo - disse, começando a explicar-lhes do que se tratava.
- E esse deus é o mesmo que foi pendurado no patíbulo? - interrogou-se o piloto. - Aquele de que o Gunnar está sempre a falar?
- Chama-se uma cruz - corrigiu-o Gunnar - e é o mesmo deus. Não é verdade, Aeddan?
- É verdade - concordei. - É Jesus, e chamaram-lhe Cristo.
- Como é que sabes tanto a esse respeito? - perguntou um dos dinamarqueses que se encontravam com o Thorkel.
- Aeddan foi um sacerdote desse deus, e era meu escravo antes do Jarl Harald o apanhar. Sabe tudo o que há para saber desses assuntos.
- Cuidado, Gunnar... - acautelou-o outro dinamarquês - ou ainda acabas por te transformar num sacerdote!
- Bah! - exclamou Gunnar, trocista. - No entanto digo-vos uma coisa: este Cristo do Aeddan ajudou-me a ganhar a aposta do pão comtra o Hnefi e os outros. Foram dez moedas de prata, se bem se lembram!
Os outros ficaram muito impressionados com a revelação de Gunnar e quiseram saber se o tal Jesus também os ajudaria a ganhar apostas.
- Não, não o fará - disse-lhes, com amargura a trepar dentro de mim como um veneno. - Não ajuda ninguém! Faz o que lhe apetece e não se rala com os homens ou com as suas orações. É um deus egoísta e cheio de desprezo, que exige tudo e nada dá em troca. É volúvel e inconstante. É melhor rezarem às vossas pedras das runas. Pelo menos, as pedras escutar-vos-ão.
Espantado com aquela súbita e acalorada explosão, os meus companheiros ficaram a olhar-me por momentos. A seguir, Gunnar, com um sorriso lento e desconfiado a espalhar-se-lhe pelo rosto largo, declarou:
- Dizes isso só porque queres esse deus só para ti. Não queres que saibamos coisas a seu respeito para ficares com ele.
Todos concordaram que aquela afirmação justificava a minha súbita oposição ao tal Cristo e acabaram por decidir, entre eles, que dissesse eu o que dissesse, a verdade deveria ser precisamente o oposto.
- Não nos consegues enganar com tanta facilidade! - declarou Thorkel - Percebemos muito bem que nesta história há muito mais do que queres dizer... - Levantou a mão para a cidade atrás de nós e apontou para a cruz no alto de uma das igrejas maiores. - Os homens não levantam salões daqueles a deuses que não fazem nada por eles. Creio que estás a tentar enganar-nos... mas somos demasiado espertos para isso!
A conversa foi interrompida naquele momento por causa de uma luta. Dois enormes dinamarqueses libertaram-se das roupas, esfregaram azeite por cima dos corpos e agarraram-se um ao outro no cais. A multidão amontoou-se rapidamente à sua volta e foram feitas apostas. Contudo, o combate acabou por se transformar numa peleja desanimadora e sem interesse. Os espectadores estavam quase a perder o interesse quando um dos lutadores se aproximou demasiado da beira do cais e caiu à água. O seu opositor, apercebendo-se da oportunidade, mergulhou atrás dele, agarrou-o, empurrou-o para baixo de água e manteve-o nessa posição até ao momento em que o infeliz se foi abaixo por falta de ar. Ter-se-ia afogado se o outro não o puxasse para cima quando o sentiu desmaiar.
Este facto produziu consequências notáveis, pois mal o primeiro lutador havia sido puxado para fora da água e já outro Lobo do Mar se libertara das roupas e saltara para o porto. Também ele foi derrotado, acabando por ser arrastado, já inconsciente, para fora da fria água do mar. O homem que apareceu a seguir teve melhor sorte, venceu o primeiro oponente e os três que se lhe seguiram, mas foi vencido pelo quarto, que passou a enfrentar os lutadores que o desafiaram.
A luta na água provou ser extremamente popular junto dos Lobos do Mar, ao ponto de levar o próprio rei Harald a tentar a sua sorte. Aguentou três opositores antes de sucumbir. A cada nova luta eram feitas apostas e havia dinheiro que mudava de mãos. Foi um desporto que prosseguiu por mais dois dias, até se fartarem, e toda a gente concordou que aquele fora um dos melhores jogos do jultide em que já tinham participado.
Foi desse modo que passámos o Inverno em Trebizonda. A pouco e pouco, os dias tornaram-se maiores e o tempo começou a mudar. Finalmente, as estradas marítimas voltaram a abrir-se e começaram a chegar navios vindos de outros pontos do Império. O eparch e o emir prepararam-se para concluir as suas conversações e os mercadores para o regresso a casa. Entretanto havia toda uma torrente de pessoas a confluir para a cidade nos mais variados meios de transporte, pertencentes a tantas tribos e nações quantas as que se quisessem contar.
A cidade tornou-se num enorme mercado e ficou com as ruas transformadas em estábulos. As pessoas ofereciam locais para dormir nas suas casas e essa hospitalidade era muito bem paga. As rameiras também surgiram em grande número para exercerem o seu tipo particular de comércio entre os frequentadores da feira. Consequentemente, a visão de homens e mulheres a copularem em pórticos e por trás das bancas dos mercados transformou-se num lugar-comum à medida que tais actividades se iam sucedendo.
O fórum era uma confusão de pessoas, muitas das quais se congregavam em volta dos seus favoritos, fossem eles um professor, um vidente ou um adivinho. Havia ali Magi vindos do Oriente cujos conhecimentos sobre as estrelas e seus movimentos eram tão vastos como o próprio céu. Defendiam as suas observações e argumentavam entre eles, em busca de uma supremacia. Se alguém lhes pedia conselhos, então esses homens tam- bém forneciam estudos atentos dos movimentos das estrelas e de outros sinais celestiais, a que muitos davam grande importância. Aparentemente, uma única dessas consultas era o suficiente para produzir uma leitura de confiança sobre o futuro de um indivíduo.
Devo confessar, e faço-o sem qualquer espécie de pejo, que esse facto me fascinou uma vez que os meus próprios sonhos já me haviam demonstrado que existiam maneiras de saber e ver coisas que estavam para lá das capacidades normais da maior parte das pessoas. Para além disso sentia uma certa curiosidade por descobrir o que um estranho poderia dizer sobre as circunstâncias em que me encontrava. Fora condenado a uma morte em que não morrera, era escravo de um soberano bárbaro e era um espião a trabalhar para o Imperador... Seria possível que a minha vida fosse ordenada pelos céus e estivesse escrita nas estrelas?
A curiosidade acabou por se sobrepor ao bom senso, ganhei coragem e apresentei-me para uma dessas consultas junto de um velho árabe ressequido chamado Amet, cujo rosto se mostrava tão encarquilhado e escuro que mais se parecia com um figo seco. Era, segundo afirmou, um Magus dos Umaídas e aprendera a sua arte depois de longos e árduos estudos em Bagdade e Atenas.
- Alá seja louvado, bem como o seu Glorioso Profeta - declarou, num grego cantado. - Servi fielmente dois emires e um califa. Senta-te junto de mim, meu amigo. Digo-te a verdade: só eu fui capaz de inventar um método que nos revela o futuro com a maior clareza! Podes confiar nas minhas observações, entendes? Não me sirvo da palavra previsões, tal como fazem tantos outros, isto porque descrever o que foi escrito para todos verem não é uma previsão nem uma adivinhação, mas sim uma simples leitura. Podes confiar no meu escrutínio com toda a confiança. Agora, tens de me dizer o que pretendes saber.
Sentámo-nos juntos em almofadas, no interior da banca semelhante a uma tenda que o homem erigira ao lado de uma coluna do lado oriental do fórum. Disse-lhe que tinha razões para inquirir sobre o meu futuro, não por qualquer desejo de ganhos pessoais ou até de felicidade, mas apenas por um certo sentido do dever.
- Porquê dever? - perguntou, inclinando a cabeça para um lado. - Falas em dever, que implica obediência? Porque utilizaste essa palavra?
A pergunta apanhou-me de surpresa.
- Não sei. - Pensei um pouco e acrescentei: - Suponho que foi por sempre ter desejado ser um servo obediente.
- Um servo precisa de um amo. Quem é o teu amo?
- Sou escravo de um soberano da Dinamarca.
O velho árabe desdenhou a minha resposta com um gesto impaciente.
- Creio que esse não é o teu verdadeiro amo... mas apenas uma mera desculpa.
- Desculpa? - Achei que a utilização que dera à palavra era desajeitada mas não deixei de ficar intrigado. - Não compreendo.
Amet exibiu um sorriso misterioso.
- Estás a ver? Já sei muito a teu respeito e ainda só começámos a falar um com o outro. Talvez queiras informar-me sobre a data do teu nascimento...
Disse-lho e perguntou-me:
- E o momento do dia, qual foi? Sê tão preciso quanto possível porque pode ser importante.
- Não sei qual foi o momento exacto... - repliquei.
Deu um estalo com a língua e sacudiu a cabeça perante a minha ignorância a respeito de um pormenor com uma tão significativa importância.
- Dá-me a tua mão - pediu, e eu obedeci. Lançou-lhe uma olhadela apressada, virou-a e largou-a.
- Foi de manhã - declarou. - Penso que perto da madrugada, porque o Sol ainda não tinha nascido.
- O tempo-entre-tempos! - exclamei quando as memórias regressaram até mim através dos anos. - A minha mãe sempre disse que nasci no tempo-entre-tempos, quando a noite já terminara mas o dia ainda não nascera!
- Sim... - replicou Amet - deve ter sido essa a hora. O dia já o sabemos... - Apontou um dedo ossudo para o telhado da tenda. - Agora, vamos olhar para as estrelas.
Embora não abandonasse a sua almofada, lançou-se numa grande actividade. O velho magus puxou por uma bolsa de pano coberta de contas que usava num cordel em volta do pescoço e fez aparecer um objecto em latão rebrilhante, com a forma de um disco. Passou a mão por cima dele num gesto de deferência, ajeitou aqui e empurrou acolá, e ergueu dois apêndices adicionais que ajustou com habilidade. Segurou no objecto com a ajuda de um pequeno anel de latão, colocou um dos olhos num orifício, executou algumas pequenas manobras inexplicáveis e virou o rosto para o céu no exterior da tenda.
- Chama-se um astrolabus... - disse-me, baixando o disco, dobrando-lhe os braços e voltando a guardá-lo na bolsa. - É um engenho que revela maravilhas aos que conhecerem os seus segredos. Como te chamas?
- Sou Aidan - respondi. - Esse teu engenho revelou algumas maravilhas a meu respeito?
Levou a ponta de um dedo aos lábios e virou-se para um achatado recipiente de barro que utilizava para guardar um certo número de rolos de pergaminho. Escolheu um, desenrolou-o e segurou-o na sua frente por momentos. Olhou para mim, franziu a cara, atirou o pergaminho para um lado e escolheu outro.
- Aedan... - repetiu, pronunciando o meu nome à maneira dos gregos.
O segundo rolo de pergaminho pareceu satisfazê-lo, porque sorriu e declarou:
- Não me disseste que eras um vidente, Aedan.
- Mas... não sou nenhum vidente! - protestei. Mesmo assim, o choque do reconhecimento percorreu-me todo o corpo.
- As estrelas nunca mentem - afirmou, numa espécie de repreensão. - Talvez sejas um vidente e ainda não tenhas descoberto esse dom. - Voltou a pegar no primeiro pergaminho, estudou-o e acabou por o pôr de lado a favor de um terceiro que retirou do jarro de barro cozido. - É estranho... - disse - encontrar um senhor que também é um escravo. A sabedoria levou-me a duvidar disso, mas a experiência ensinou-me que a verdade se opõe muitas vezes à sabedoria.
- Fui um príncipe da minha tribo... - expliquei-lhe - mas há muito que pus de lado a nobreza para me tornar num servo de Deus. Fui sacerdote durante muitos anos.
- Ah, estou a ver! Um servo do Mais Alto, Alá seja louvado! Sim, servo e escravo. Isto é importante... - Colocou o pergaminho de lado e cruzou as mão sobre o colo. - Vou ter de meditar muito sobre este assunto. Adeus, meu amigo.
- Devo ir-me embora?
- Sim, vai-te embora, mas regressa amanhã e voltaremos a conversar se for essa a vontade de Deus.
- Muito bem... - concordei, pondo-me de pé. - Um bom dia para ti, Amet.
- Que Deus te acompanhe, Aedan, meu amigo. - Tocou na testa com as pontas dos dedos, fechou os olhos e colocou-se numa atitude de meditação, com as pernas cruzadas e as mãos pousadas sobre os joelhos.
Deixei-o assim, como uma pequena ilha de calma no meio dos remoinhos do agitado mercado. Contudo, durante o percurso de volta para a residência do eparch perguntei a mim mesmo se valeria a pena voltar a vê-lo, uma vez que começara a duvidar que pudesse surgir algo de bom do que Amet tivesse para me dizer. Quando cheguei à porta do eparch já concluíra que as minhas próprias premonições do futuro eram, por si sós, suficientemente confusas, e que mais valia não querer saber mais do que aquilo que sabia.
Repeti essa convicção para mim mesmo pelo menos uma centena de vezes e decidi manter-me afastado do magus. Contudo, o coração é desesperadamente fraco e os homens nem sempre fazem o que é melhor para eles. Infelizmente, aquela minha decisão aparentemente tão firme acabou enfezar e enfraquecer... e no dia seguinte escapuli-me da casa do eparch e dirigi-me, com passos apressados, para a tenda do magus.
O bispo de Trebizonda não aprovava a feira. Na verdade, detestava-a completamente porque pensava que a mesma empurrava os mais vulneráveis filhos de Deus para a dúvida e para o terror. O que mais lhe desagradava, muito em particular, eram os vendedores de poções que viviam à custa dos estéreis, dos aleijados e dos que se deixavam enganar com facilidade.
- São piores do que veneno! - era a sua opinião sobre os preparados que esses homens forneciam. - Mijo de cão e vinagre são provavelmente muito melhores para a saúde - concluía - e não custam dinheiro! Vendem as suas vis poções a preços exorbitantes precisamente aos que menos podem pagar, e ainda obrigam as suas pobres vítimas a engolirem mentiras perniciosas a par com os seus malcheirosos elixires! Adivinhos! Mágicos! Videntes! Condeno-os a todos!
Não obstante as objecções do bispo, as pessoas acorriam à feira e a maioria pareciam gostar, em particular os agricultores e os habitantes das aldeias, muitos dos quais levavam os seus animais para a cidade para os venderem ou trocarem. Com todo o respeito, lembrei ao bispo que não podíamos culpar aqueles que não tinham acesso a sacerdotes capazes de os educar ou de servirem como exemplos. - Não tenho nem nojo nem simpatia pelos pagani... - garantiu o bispo Arius com algum vigor.
O bispo fora à residência do eparch para apresentar os seus cumprimentos ao enviado do Imperador, verificara que eu era um monge - pois fora assim que me encarara - e mandara-me chamar enquanto esperava que Nicephorus o recebesse. Começámos a conversar sobre o excesso de gente na cidade e um assunto conduzira a outro, tal como é habitual.
- Não tenho nada a ver com os descrentes - continuou, que podem fazer o que lhes apetecer. Porém, os cristãos não deviam ser vistos a darem apoio a essas aldrabices. O mal que estas feiras podem provocar nunca será demasiadamente exagerado!
- É verdade... - admiti - mas também há cristãos entre os astrólogos e videntes, embora sempre me tivessem ensinado que tais práticas são uma abominação.
- Então, ensinaram-te bem! - replicou o bispo, com severidade. - Todas essas artes do demónio são uma abominação aos olhos de Deus. Os cristãos que vires misturados com videntes e astrólogos não são verdadeiros cristãos!
- Não são?
- Não te deixes enganar, meu filho, são Paulicianos. - Pronunciou a palavra como se se tratasse o nome de uma doença particularmente hedionda.
Nunca tinha ouvido falar naquela seita e disse-o a Arius.
- Seria preferível que nunca ninguém tivesse ouvido falar nela! - retorquiu, incisivo. - Como prevenir é remediar, é melhor que fiques a saber o seguinte: são membros de uma seita herética que promulga os ensinamentos de um apóstata desencaminhado, um homem que se considerou a si próprio como um mestre mas cujos ensinamentos estavam muito, muito longe, dos do abençoado santo que também usou o seu nome.
Falou com uma tal violência que perguntei a mim mesmo em que poderiam esses homens acreditar que fosse suficientemente grave para provocar uma tal ira.
- Esses Paulicianos... - inquiri - acreditam nalguma falsa doutrina? Ou desviaram outros do bom caminho com os seus ensinamentos? De qualquer modo, por que não se limitam a excomungá-los e a proibir a sua crença?
- Isso já foi feito... - afirmou o bispo - e levado a fim com um admirável vigor. Porém, como por vezes acontece, a sua expulsão da Igreja só serviu para fazer com que a seita ficasse ainda mais forte. Já não se trata apenas de uma questão de crenças. A sua própria existência é uma ofensa contra os céus e contra todos os verdadeiros cristãos. Para além disso, alcançaram um tal poder em certas áreas que conseguem abafar a Própria verdade. A doutrina que defendem - se é que se pode utilizar essa palavra - é um perverso conjunto de erros, mentiras e meias verdades. - Arius parecia ter engolido qualquer coisa muito amarga. - Esses Paulicianos propõem que Deus criou os céus e as luzes celestiais, e que foi o Maligno quem criou a Terra e tudo o que existe nela. Todos os outros dogmas da sua doutrina são baseados nisso.
Comentei que eram muitas as pessoas que defendiam tais pontos de vista, embora não o fizessem abertamente. Era o que se podia concluir a partir das suas reacções tácitas ao mundo.
- Muito dos que se dizem cristãos... - sugeri - comportam-se de tal modo que acabam por revelar uma verdadeira crença não muito diferente dessa que os Paulicianos ensinam.
O bispo rolou os olhos.
- Então, julgas que não o sei, meu amigo? Repara que estou na Igreja há vinte e oito anos. Não, não! A afirmação de que existiu um criador maléfico nem sequer é a parte mais ofensiva das suas doutrinas! Só Deus sabe quantas infelicidades teriam sido evitadas se ao menos tivessem ficado por aí! Todavia, não se limitaram a isso e multiplicaram os seus pecados com mentira atrás de mentira!
"Por exemplo, dizem que Nosso senhor Jesus Cristo era apenas um anjo enviado pelo Céu para fazer a guerra contra o Maléfico - prosseguiu o bispo Arius, com a boca a contorcer-lhe de desprezo. - Insistem que a Virgem Maria não passou de uma mulher vulgar, de modo nenhum merecedora de devoção, veneração, ou de qualquer consideração especial. Não respeitam as Sagradas Escrituras e pregam que todos os homens são livres para seguirem os seus próprios ditames uma vez que as leis impostas por Deus se aplicavam apenas aos hebreus de antigamente e nada têm a ver com seres humanos capazes de pensar. De acordo com isso, não acreditam no casamento nem ou em qualquer outro sacramento, nem na primazia da Igreja... e nem sequer no baptismo.
- Sim, é chocante, não há dúvida... - admiti, aquecendo para o debate. Quanto tempo se passara desde que discutira assuntos de doutrina de uma maneira culta? - Mesmo assim, parecem-me suficientemente inofensivos. - As heresias eram abundantes no Oriente, tal como toda a gente sabia, e muitas delas eram provavelmente piores do que as dos ignorantes Paulicianos.
- É nisso que te enganas! - corrigiu-me o clérigo. - Não só não se contentam em pregar e ensinar como persistem em criar motins e revoltas nas províncias.
- Por causa do baptismo? - interroguei-me, em voz alta.
- Não, por causa dos impostos - retorquiu o bispo. - Da última vez foram mortos quatro mil camponeses e agricultores... e foi por isso, e por tudo o mais, que foram expurgados de Constantinopla. Para nossa infelicidade, fugiram para leste e residem agora, na sua quase totalidade, nesses muito disputados territórios. Pelo menos, é o que se diz. Contudo, tenho motivos para acreditar que muitos residem secretamente em Constantinopla, roendo a substância da Santa Igreja como se fossem ratos. Corre o boato de que alguns até conseguiram introduzir-se junto dos próprios pés do trono.
- E que querem eles de Trebizonda? - perguntei.
- Vieram pela feira, como toda a gente - replicou Arius. - Vêm de Tarsus, de Marash e de Raqqa, no sul, onde se afirma que fizeram uma aliança com os maometanos. O califa permite-lhes que pratiquem a sua abominável religião em troca de fidelidade e andam sempre em busca de conversões entre os descontentes.
Preparava-me para lhe pedir uma descrição desses maometanos quando Nicephorus apareceu e fui mandado embora, após o que saí e me apressei a ir à minha consulta com Amet.
Ao caminhar ao longo da muito apinhada rua que se dirigia para o fórum não pude deixar de reflectir no facto de, não obstante tudo o que o bispo Arius pudesse dizer, a feira ser muito frequentada pelos humildes fiéis da igreja de Trebizonda. As pequenas cruzes douradas eram compradas a par com os amuletos de vidro utilizados como protecção contra o mau olhado, isto porque, se os anjos estavam sempre prontos para ajudar os tementes a Deus, os demónios também se mostravam igualmente ansiosos por os prejudicarem. Por outro lado, se os cristãos podiam invocar os anjos, então também os iníquos podiam invocar os demónios.
Era por causa disso e de outras coisas que me parecia que a maior parte do rebanho do bispo se encontrava muito mais perto daqueles Pau-licianos que tanto desprezava do que da sua própria ortodoxia. De qualquer modo, para mim, tratava-se apenas de uma mera questão de interesse momentâneo, e disse a mim mesmo que essas aborrecidas questões de fé já nada tinham com a minha pessoa. A ascensão ou queda de uma obscura seita não me dizia respeito.
Estes pensamentos ocuparam-me enquanto abria caminho por entre as bancas dos mágicos que se tinham instalado no fórum: cristalomantes, fabricantes de poções, homens que prediziam o futuro nos fígados de animais recentemente mortos, fornecedores de incenso, leitores de ossos e de pauzinhos gravados.
Encontrei o magus Amet na sua tenda, praticamente na posição em que o deixara no dia anterior. Abriu os olhos quando me ouviu chegar, saudou-me e mandou-me sentar, batendo na almofada que se encontrava a seu lado. A seguir virou-se para o pote de cobre que fervilhava sobre uma pequena fogueira, levantou-o e despejou um ralo líquido castanho-claro em duas minúsculas taças de vidro pousadas sobre uma bandeja de latão. Segurou na travessa, ofereceu-me uma taça e disse:
- Refresca-te, meu amigo.
Aceitei a taça e levei-a aos lábios. Verifiquei que estava muito quente e hesitei.
- Bebe! Bebe! Não te fará mal! - afirmou Amet. Pegou na sua taça e sorveu ruidosamente o líquido quente para a boca. - Ah! Vais verificar que é muito refrescante!
O líquido tinha um vago cheiro a ervas. Beberiquei-o e descobri que o gosto não era desagradável, semelhante ao de pétalas de rosa combinadas com casca de árvore e com qualquer outra coisa com um vago sabor a frutos.
- É muito agradável, Amet - disse-lhe, mas ainda estava a engolir o elixir quando o meu coração começou a bater mais depressa na expectativa do que o homem teria para me dizer.
- Interrogas-te... - afirmou - sobre se terei descoberto alguma coisa de interesse para ti.
- É verdade - confirmei - embora deva confessar que tudo o que me foi ensinado até este momento me avisou a respeito dos perigos das interferências com as força da escuridão.
- Forças da escuridão? - repetiu Amet, erguendo as sobrancelhas. - Oh! As coisas que tu dizes! Se é isso o que pensas, então afasta-te de mim! Vai-te embora!
- Na verdade... - disse-lhe - já não sei no que acredito.
- Então permite-me que te assegure, meu céptico amigo, que não passei toda a minha vida em busca de bagatelas, nem a interferir com as forças da escuridão. - O Deus que pôs as estrelas em movimento é o mesmo que guia a minha visão ao longo dos caminhos do futuro. Pelo menos, é essa a minha crença.
Bebericámos o líquido em silêncio por algum tempo até Amet pôr a sua taça de lado e bater nos joelhos com as palmas das mãos.
- Descobri muitas coisas a teu respeito, meu amigo - afirmou. - Todavia, saber se te interessam ou não é uma questão completamente diferente... e só a ti te caberá decidir. Deverei dizer-te?
- Sim, diz-me, não tenho medo.
Os olhos do velho semicerraram-se enquanto me observava.
- O medo introduz-se muito depressa na tua mente. Quando te disse que eras um vidente, protestaste e disseste que não. No entanto, sabes que o és e que já viste o que o futuro te reserva. Caso contrário, os teus pensamentos não teriam lugar para o medo.
- Poderá ser como dizes - admiti, num tom vago, tentando não lhe revelar mais nada para além daquilo. Se as suas capacidades fossem genuínas, e esperava, com toda a sinceridade, que o fossem, então queria saber coisas provenientes de uma fonte não contaminada.
- Se é esse o caso... - prosseguiu Amet - que te posso eu dizer que ainda não saibas?
Pareceu-me tratar-se de um truque, de uma maneira de levar os ignorantes e os crédulos a revelarem mais pormenores a respeito deles mesmos, pormenores esses que o vidente poderia a seguir apresentar como prova da sua veracidade e arte.
- Faz de conta que nada sei do que dizes porque, com todo o respeito, Amet, ainda não me disseste nada.
As rugas do velho reordenaram-se numa expressão da mais profunda piedade.
- Muito bem - declarou, escolhendo um pergaminho do meio dos que se encontravam no vaso. Desenrolou-o e estudou-o por momentos, para depois começar a ler em voz alta:
- Todos os louvores para Alá, Sábio e Magnífico, Governante dos Reinos, Progenitor dos Povos e Nações! Abençoados sejam todos os que honrarem o Seu nome. - Dito aquilo, fez três vénias com a cabeça, olhou para mim e afirmou: - Tu, meu amigo, estás destinado à grandeza. - Levantou um dedo e avisou:
- Contudo, não será ganha sem grandes sacrifícios. É esse o decreto de Deus: a virtude é adquirida no mercado dos sofrimentos. Aquele que irá ser grande entre os homens tem de ser feito descer muito baixo. Amém, assim seja.
Aquela declaração do velho vidente foi inesperada e desapontadora. De facto, era consideravelmente menos do que esperara. Senti o coração a afundar-se no peito ante o que considerei como um anúncio suficientemente pacífico e vulgar, nada mais do que uma declaração dúbia e ambígua unida a um já muito velho aforismo. Seria aquela a sabedoria concedida pelo Governante do Universo?
- Agradeço-te, Amet - respondi, tentando ocultar o meu desapontamento. Pousei a taça na bandeja de latão e preparei-me para sair. - Terei em conta as tuas palavras.
- Estás desapontado - declarou o magus. - Vejo-o nos teus olhos. Pensas que sou um parvo...
- Não - retorqui rapidamente. - Penso... ou seja, esperava que me dissesses qualquer coisa que eu não soubesse.
- E eu já te disse que não te posso dizer nada que tu ainda não saibas, não é verdade? - ripostou, com uma careta feroz. - Fala com franqueza, sacerdote. Porque motivo vieste ter comigo?
- Pensei que me poderias dizer algo sobre a minha morte. Estudou o meu rosto como se se tratasse de um dos seus pergaminhos.
- Chegámos finalmente ao cerne da questão... - comentou.
- Viste a minha morte?
- Falar da morte é tentar o destino. Contudo, como insistes, falaremos dela...
Fechou os olhos, pousou as palmas das mãos sobre a face e começou a oscilar lentamente para a frente e para trás. Continuou assim por alguns momentos e sussurrou:
- Amém.
Abriu os olhos e fitou-me com uma expressão estranha.
- Escapaste à morte recentemente e voltarás a escapar-lhe. Os teus inimigos nunca são o que parecem, mas deixo-te um aviso: o teu verdadeiro inimigo está por perto, a sua mão mantém-se oculta mas está pronta para golpear.
Senti uma tremura de reconhecimento, embora aquilo fosse apenas um pouco menos vago do que dissera anteriormente.
- És um cativo, mas irás trocar um cativeiro por outro antes que a tua verdadeira natureza seja revelada. Não tens de te interrogar a esse respeito e não tens nada a recear, porque a salvação está garantida, embora a tua segurança esteja sempre em dúvida. - Levando as mãos a cada um dos lados do rosto, com as palmas para fora, Amet fez três vénias e afirmou: - Foi isto o que vi. Que Alá, o sempre Misericordioso, seja louvado!
Despedimo-nos e quis oferecer ao velho magus a moeda de prata que Gunnar me dera.
- É tudo o que tenho - disse-lhe - mas entrego-ta com toda a boa vontade.
Todavia, Amet recusou, afirmando que não podia aceitar dinheiro de outro vidente, e muito menos de um escravo.
- Gasta-o contigo mesmo, Aedan - declarou o vidente quando eu já ia a sair. - Goza a pequena alegria que isso te poderá trazer porque será a última que irás conhecer durante muito, muito tempo.
Como não tinha qualquer outra ideia em mente, decidi seguir a sugestão e fiquei mais animado. Raramente tivera algum dinheiro meu e nunca o gastara comigo mesmo. Fiquei a olhar em volta, perguntando a mim mesmo qual seria a melhor maneira de gastar a moeda. Naquele mercado era possível comprar de tudo, desde poções para as verrugas a pergaminhos persas e a papagaios vermelhos.
Que podia eu fazer com o dinheiro? A pergunta colocava-me perante uma espécie de dilema. Para mim, a experiência de gastar era tão peculiar que, mesmo com todo o mercado na minha frente, me sentia inibido tanto pela multiplicidade das escolhas como pela singularidade da experiência.
Vagueei pelo mercado e pelas ruas próximas mergulhado em pensamentos a respeito daquele problema inesperado. Examinei macios sapatos de couro e tapetes de seda. Pensei em comprar uma faca, mas depois achei que talvez gostasse mais de uma pequena bolsa de bom couro. Contudo, se a adquirisse nada teria para lá meter dentro.
Goza-a, sugerira Amet. Sim, mas goza o quê?
Foi precisamente quando me pus esta pergunta que os meus olhos caíram sobre uma jovem mulher de pé ao lado de um pilar, por baixo de uma colunada coberta. Estava envolta nas mais finas sedas vermelhas e amarelas e tinha os pés calçados com sandálias brancas com tiras de ouro entrançado. Os cabelos eram negros e caíam-lhe sobre os ombros numa massa de apertados caracóis. Devo ter olhado para ela demasiado abertamente porque deu por isso, sorriu e chamou-me com um gesto que eu já vira muitas vezes desde que chegara a Trebizonda.
Na verdade, foi apenas depois de ver o gesto feito com o dedo encurvado daquela maneira especial que soube qual era o comércio que a mulher praticava. Embora não me honre dizê-lo, decidi aproveitar os seus serviços logo que dei o meu primeiro passo para ela. Como nunca o fizera anteriormente - na verdade, nunca me deitara com uma mulher - não sabia como se acertava o negócio e fui instantaneamente avassalado pela mais deliciosa das incertezas. O coração começou a bater mais depressa no meu peito e senti as palmas das mãos a ficarem húmidas. Abri a boca para falar mas as palavras eram completamente estranhas para a minha língua.
Capaz de reconhecer a inexperiência quando a via, a jovem mulher sorriu, deslocou ligeiramente o traje e revelou-me um ombro branco, macio e bem feito. Os meus olhos deslocaram-se até à rotundidade de um seio e tiveram um relance da ponta rosada do mamilo antes da jovem voltar a ajeitar as roupas.
- Gostarias de vir comigo? - perguntou. A sua voz não era tão melodiosa ou doce como eu imaginara, mas não deixava de ser agradável.
Como não confiava na minha própria voz, limitei-me a acenar. Segui-a, quase a tremer de excitação, e reparei que havia outras mulheres à espera, mais para o interior das sombras. Não nos prestaram a mínima atenção.
- Tens dinheiro? - perguntou a jovem mulher, estendendo a mão para me tocar no braço.
- Sim - respondi, com novo aceno.
Voltou a sorrir e levou a mão à minha face. O toque provocou-me um arrepio nas carnes. Pensando que era assim que o acto se iniciava, também levantei a mão para lhe tocar na face... e a jovem puxou as roupas para o lado para expor os seios.
- Primeiro, deixa-me ver o dinheiro.
Meti a mão no cinto e puxei pela moeda. A jovem ficou rígida.
- Mais... - pediu. - Deixa-me ver mais!
- É tudo o que tenho... - respondi, perplexo.
Voltou a colocar as roupas no seu lugar e empurrou-me para longe dela.
- Dez denários! - troçou. - Nem sequer me dobro por menos de cinquenta!
Fiquei espantado com aquela súbita mudança de comportamento e repeti:
- É tudo o que tenho.
Observou-me com os olhos firmes e duros de um juiz e deve ter concluído que estava a dizer-lhe a verdade.
- Vem comigo - disse, avançando mais para o interior das sombras da colunata. Seguia-a, sentindo-me cada vez mais excitado a cada passo. Passámos por três ou quatro outras prostitutas - mas nenhuma tão bela como a que me conduzia - e continuámos até chegarmos a um local bem longe das vistas da rua. Pensei que iria ter pena de mim, mas acabei por ficar desapontado.
A jovem parou e virou-se para mim.
- Ali... - disse, apontando para um recesso quase envolto em escuridão. - A Delilah vai atender-te.
Espreitei para as sombras e vi uma forma humana encolhida contra uma pedra.
- Delilah! - chamou a jovem prostituta - trouxe-te um belo jovem! - Virou-se e foi-se embora, rindo-se. - Adeus, dez denários!
A figura encolhida na escuridão ergueu-se e avançou. Vi um rosto a emergir das sombras. A idosa prostituta, que pouco mais era do que uma massa de cabelos acinzentados e rugas, olhou-me com uma aprovação matreira.
- São dez denários - disse, abrindo a boca para mostrar que não tinha dentes. Delilah lançou-me um sorriso desdentado e acrescentou, num arrulho: - Sou como um bebé. São só dez denários.
Arrastou-se para mais perto de mim e ganhei consciência de um cheiro desagradável e enjoativo. No entanto, o que me fez recuar foi mais o nojo do que o cheiro. A velha prostituta seguiu-me, agarrando-me pelas roupas.
- Fazes o que quiseres... - guinchou - apenas por dez denários.
Enojado com a ideia de copular com uma tal criatura, continuei a recuar, já desesperado por me ver longe dali, mas a mulher não queria largar-me as roupas. Virei-lhe as costas e fugi, correndo ao longo das colunas e das mulheres que esperavam. Riram-se e troçaram de mim enquanto eu fugia sem olhar para a esquerda ou para a direita.
Foi com o rosto a arder de vergonha que emergi novamente na rua, a cambalear. Continuei com as gargalhadas trocistas das prostitutas a ressoarem-me nas orelhas muito depois das ter perdido de vista, embora isso se devesse, sem qualquer espécie de dúvida, à minha imaginação. Andei sem destino durante algum tempo, desejoso de me perder no meio da multidão do mercado até conseguir recuperar a compostura.
É claro que me sentia humilhado e profundamente desgostoso comigo mesmo apenas por ter pensado em comportar-me de uma maneira tão vergonhosa. A repulsa caiu sobre mim e espojei-me no meu próprio lamaçal de asco, censurando-me pela minha ignorância e estupidez, bem como pela loucura das minhas desgraçadas acções.
Todavia, curiosamente, esses sentimentos não se mantiveram por muito tempo e pouco tive de esperar para começar a pensar que, afinal de contas, nada acontecera e ninguém saíra prejudicado. Quanto a mim, pouco mais sofrera do que um embaraço. Recordei-me disso, consegui recuperar um pouco da auto-estima e concluí que, acima de tudo... ainda tinha a minha moeda.
Foi desse modo que, embora desgostoso, retomei a minha inspecção às bancas do mercado. Porém, era impossível. Por muito que tentasse não conseguia lembrar-me de nada que gostasse de fazer com o dinheiro. Por fim tive a ideia de ir procurar uma refeição numa taberna, semelhante àquela que Justin comprara para mim. Porém, para a apreciar devidamente precisava da companhia de um amigo para partilhar o festim... e não tinha nenhum. Também pensei em comprar vinho e levá-lo para o cais, para beber com Gunnar, Thorkel e Tolar. Se o Gunnar aqui estivesse, pensei, saberia o que fazer.
Por momentos ainda encarei a possibilidade de ir procurá-lo. Porém, quanto mais pensava nisso mais a ideia se tornava ofensiva. Tornara-me tão vazio de vontade criativa que necessitava da ajuda e aprovação de um amo para uma coisa tão simples como gastar uma moeda? Abraçara tão completamente a escravidão que já não conseguia decidir por mim mesmo?
Senti-me perseguido por estes pensamentos e decidi-me pela compra de uma refeição, pois fora essa a última coisa que na verdade apreciara. O fórum não era o melhor local para a conseguir, pelo que fui em busca da taberna que vira no próprio dia em que entrara em Trebizonda. Encontrei a rua central e comecei a percorrê-la em direcção ao porto. A estreita rua estava repleta de gente, uma vez que se aproximava o meio-dia, a hora de mais movimento para os mercadores, pelo que tive de me esforçar muito para encontrar o local. Finalmente, quando consegui abrir caminho até à porta, descobri-a fechada. Ninguém respondeu às minhas batidas mas, quando insisti, houve um rapaz que meteu a cabeça numa janela por cima da rua e me disse para voltar ao fim da tarde, hora a que o patrão teria todo o gosto em servir-me.
Desencorajado, continuei a descer a rua, acabando por encontrar um homem que vendia pão e outro que vendia aves assadas, costeletas de porco e outras coisas do mesmo género. Comprei dois pães e uma ave assada, e prossegui até deparar com uma mulher que vendia vinho. Comprei um jarro do doce vinho tinto da Anatólia e gastei o resto do dinheiro na aquisição de azeitonas. Como já me encontrava muito perto da baía, decidi ir até à costa, onde pensei que talvez conseguisse arranjar um lugar para me sentar e comer em paz e sossego.
Na verdade, cheguei ao porto e instalei-me num grande rolo de corda e num monte de redes de pesca, mesmo à beira da água. Pousei cuidadosamente o jarro de vinho no cais, para não o entornar, desembrulhei a ave assada e comecei a comer. Parecia-me estranho estar ali sentado, sozinho, mas continuei a comer e a observar os navios a entrarem e saírem do porto e acabei por tirar prazer daquela refeição simples. A comida era boa, o dia estava bonito, podia olhar para o porto onde os navios dos dinamarqueses se encontravam fundeados, e quase conseguia distinguir pessoas entre as figuras que se moviam no cais.
Muito rapidamente, o Sol, o vinho, e um estômago bem cheio de pão e de ave assada combinaram-se para me encherem de sonolência. As minhas pálpebras tornaram-se tão pesadas que não as consegui manter abertas, pelo que me deitei no meu ninho de corda e de redes para dormir.
Quando acordei já era tarde. O Sol descera muito, incendiava o mar ocidental e tingia o céu com um profundo tom amarelo. Levantei-me com uma grande dor de cabeça, refiz o meu caminho de volta à casa do governador através das ruas já sombrias e escapuli-me silenciosamente para o interior, esperando que ninguém se tivesse queixado da minha ausência. Para além de sentir uma fugidia sensação de culpa por causa da pequena transgressão, concluí que, afinal de contas, até passara um bom bocado.
Porém, logo a seguir, perguntei a mim mesmo o que teria Amet visto para me incitar a um dia de prazer. Aquele seria realmente o meu último dia de paz e de felicidade?
As negociações entre o eparch e o emir chegaram ao fim quando todos os envolvidos concordaram em honrar a segurança dos viajantes, mas muito em particular dos mercadores e similares que, em geral, tinham de atravessar fronteiras em disputa. As rotas propriamente ditas poderiam continuar a ser um pomo de discórdia, mas foi reconhecido que seria melhor para todos que o comércio continuasse sem impedimentos. Para além disso, tanto o Imperador como o califa juraram - por intermédio dos seus emissários, que levariam a fim os passos necessários para acabarem com a pirataria e os ataques de ambos os lados.
Para finalizar, concordaram que aquelas medidas, se fossem estritamente defendidas, poderiam constituir fundamentos sólidos para um aumento da cooperação e para uma possível reconciliação no futuro. Com isso em vista, propuseram voltar a reunir-se no ano seguinte para planearem um conselho em que o Imperador e o califa se pudessem encontrar frente-a-frente para trocarem penhores e assinarem tratados de paz.
A Primavera, que chega mais cedo nesta parte do mundo, caiu sobre nós não muito depois e a sua chegada era o sinal para o início do ano comercial. Por isso mesmo, Nicephorus estava ansioso por regressar para junto do Imperador com informações sobre o sucesso da embaixada, isto porque quanto mais cedo as notícias sobre o acordo de paz chegassem a Constantinopla, mais cedo os mercadores poderiam retomar as suas actividades com confiança e mais depressa os cofres imperiais gozariam de novas infusões de dinheiro dos impostos, tanto estrangeiros como domésticos.
- Peço o vosso perdão, eparch... - disse Nikos, no dia a seguir à partida do emir Sadiq. Realizara-se uma grande festa de despedida para comemorar a conclusão com êxito do conselho, após o que o emir se fora embora com dádivas que constituíam penhores de compromisso e de boa vontade, e que não eram mais do que o tesouro que os Lobos do Mar tinham ficado encarregues de guardar. Pelo seu lado, o eparch preparava-se para partir no dia seguinte.
- Sim, sim, o que é, komes? - replicou Nicephorus, impaciente. Encontrava-se sentado na mesa pequena, no pátio, e estudava vários documentos que tinham a ver com as negociações que acabara de concluir.
- Vejo que está ocupado. Por isso, vou falar com toda a franqueza...
- Com certeza!
- Penso que é um erro regressarmos imediatamente a Constantinopla. - Nikos estava tão concentrado no seu argumento que nem sequer reparou que me encontrava logo atrás da porta. Levava a capa ao eparch. O dia tornara-se enevoado e Nicephorus pedira-me para a ir buscar.
- Então porquê? - interrogou-se o eparch, pondo de lado o pergaminho que estava a ler.
- Anteriormente também tivemos juras e promessas que, no entanto, não impediram os ataques.
- Estás a sugerir que o emir mentiu, ou que nos esteve a enganar?
- De modo nenhum! - retorquiu o komes rapidamente. - Estou tão certo como vós de que o emir Sadiq é um homem justo e honrado.
- Então, que estás tu a sugerir? - O eparch olhou para Nikos. - Vamos, despacha-te! Propuseste-te falar com franqueza! Então, fala!
- Estou apenas a sugerir... - continuou Nikos com uma paciência forçada - que as notícias sobre o que conseguimos alcançar poderão não ser tão bem recebidas como mereciam.
- E por que imaginas uma coisa dessas? - retorquiu o eparch, já a expulsar o komes da sua mente, se não da sala. Virou-se novamente para o pergaminho que estivera a examinar.
- Pela simples razão de que ninguém irá acreditar.
O eparch levantou os olhos do trabalho, olhou Nikos e comentou:
- Ridículo!
- Será? - contrapôs o komes rapidamente. - Quem irá ser o primeiro a pôr à prova a validade do tratado? Se o senhor fosse um mercador, não me parece que se mostrasse demasiado disposto a arriscar a vida e os bens apenas com base nas garantias dadas por um... - Nikos hesitou.
- Di-lo, komes... - exigiu o eparch. - Apenas com base nas garantias dadas por um velho tonto. Não era isso o que ias dizer?
- Arriscar a vida e os bens apenas com base nas garantias dadas por um emissário árabe completamente desconhecido - corrigiu-o Nikos, com toda a tranquilidade. - Parece-me que o acordo que levamos connosco poderá ser encarado, na ausência de garantias adicionais, como mais uma promessa vazia saída da boca dúplice dos maometanos, uma promessa que será prontamente quebrada logo que os primeiros navios mercantes saiam do Bósforo.
A afirmação captou a atenção do eparch, que levantou a cabeça devagar e se virou para o komes.
- Bom, estou a ouvir-te. O que propões?
- Uma pequena demonstração... - respondeu Nikos.
- Uma demonstração... - repetiu o eparch numa voz sem tonalidades. - Que espécie de demonstração tens em mente, komes?
- Uma viagem, nada mais.
Os cantos da boca do eparch descaíram ligeiramente.
- Estou desapontado, komes. Esperava qualquer coisa mais criativa e inteligente da tua parte. - Nicephorus fez um gesto de recusa e acrescentou: - Está fora de questão. As tuas preocupações chegaram demasiado atrasadas e partiremos logo que os navios estiverem aprovisionados e prontos. Os mercadores estão ansiosos por regressarem a Constantinopla... e eu também. O Imperador está à nossa espera.
- Não necessita de ser nada muito complicado ou até muito longe... - continuou Nikos, como se não tivesse escutado a decisão do eparch. - Haverá melhor maneira de anunciar o êxito do tratado na presença do Imperador e dos príncipes-mercadores reunidos no seu salão, do que afirmar que inauguraste pessoalmente a nova paz com uma jornada ao longo de uma das rotas comerciais mais inseguras... e que a achaste inteiramente satisfatória?
O eparch observou Nikos com atenção. Já vira a mesma expressão no rosto de um homem que tentava determinar a idade do cavalo que estava a comprar.
- E tens um destino em mente, presumo?
- Uma viagem curta, até Theodosiopolis, seria o suficiente. Duraria apenas alguns dias e satisfaria plenamente a finalidade...
O eparch ficou a pensar, tamborilando com os dedos. De súbito, afirmou:
- É uma ideia com mérito, komes Nikos. Creio que devias...
- Óptimo! - replicou Nikos rapidamente. - Tratarei imediatamente dos preparativos...
- ... fazer essa viagem sozinho - prosseguiu o eparch, com mais firmeza. - Isso permitir-me-ia ficar aqui a preparar o conselho do próximo ano. O governador deve chegar dentro de poucos dias, o que me permitirá cumprimentá-lo e pô-lo a par dos pormenores do acordo a que chegámos. Seria um tempo bem gasto. Vai tu, Nikos. Trata disso.
- Mas... eu não sou o eparch - salientou o komes. - Nunca poderia...
- Não faz qualquer diferença. No fim de contas, a viagem é em grande parte simbólica e terá o mesmo significado quer seja eu a fazê-la, quer não.
O komes Nikos pareceu querer levantar mais uma objecção. Quase vi o protesto a formar-se nos seus lábios. Contudo, conteve-se e respondeu:
- Muito bem, se é essa a vossa decisão.
- É a minha decisão - replicou Nicephorus com precisão.
- Partirei pela manhã. Um bom dia para si, eparch. - Virou-se de repente e só então me viu de pé junto à porta. O seu rosto ficou rígido. Atravessou a sala com passadas largas e rápidas e murmurou por entre-dentes quando passou por mim: - Tem cuidado, sacerdote intrometido. Tem muito cuidado...
- Ah, Aidan, estás aí! - exclamou o eparch, fazendo-me sinal para entrar. - O dia tornou-se frio. Estou gelado até aos ossos.
Desdobrei a capa e coloquei-lha sobre os ombros.
- Posso acender-lhe a braseira... - sugeri.
- Dá demasiado trabalho... - respondeu - e não ficarei aqui muito mais tempo. A luz está a desaparecer. - Olhou para a entrada, como se esperasse ver Nikos. - Ouviste o que ele disse?
- Sim, eparch.
- E que pensas?
- Nada sei sobre esses assuntos - respondi.
- Não, mas conheces o Nikos - salientou o eparch. - Conhece-lo e não só: desconfias dele, tal como eu. - Nicephorus fez uma pausa para pôr os pensamentos em ordem. - Desconfio dele porque não sei para que lado se viram as suas verdadeiras lealdades. Penso que é ambicioso. Há por aí muitos jovens ambiciosos e já vi mais que a minha parte. Porém, no nosso amigo Nikos, a ambição serve uma finalidade que não descortino. - Virou-se para mim, rígido, e inquiriu: - Achas que estava a mentir?
- O senhor deverá sabê-lo melhor do que eu, eparch - retorqui. A desconfiança, dissera Justin, é a faca na tua manga e o escudo que te protege as costas.
- Acho que devemos assumir que estava. Contudo, se assim é, não entendo o que poderá ganhar com isso... para ele ou seja para quem for. E tu, entendes?
- Não, eparch... - Pronunciei aquelas palavras e senti-me rodeado pela humidade da cela da prisão que vira no meu sono. Estremeci e olhei em volta. A luz do dia desaparecia e o pátio tornara-se mais escuro. - Está a ficar escuro. Não será melhor acender a braseira para si?
- Não, não será necessário - respondeu o eparch, levantando-se.
- Vou para o meu quarto. - Dobrou o pergaminho, meteu-o debaixo do braço e avançou para a porta. - Vem comigo, Aidan.
Acertei o meu passo com o dele e passámos para o corredor.
- Não sei como acabaste como escravo dos dinamarqueses - declarou - mas quero que saibas que pretendo falar com o Imperador logo que regressarmos.
- Falar com o Imperador, eparch...?
- A respeito da tua liberdade, meu filho - explicou, num tom paternal. - Passares o resto da vida a traduzir grego para os bárbaros seria um triste desperdício dos teus talentos. Penso que temos de fazer qualquer coisa a esse respeito.
- Obrigado, eparch - respondi, por não conseguir pensar em mais nada para lhe dizer.
- É melhor que este assunto fique apenas entre nós - avisou-me. - Tornará as coisas menos embaraçosas quando chegar o momento.
- Claro, eparch.
- Diz ao Flautus que tomarei a minha refeição no quarto - ordenou-me Nicephorus. - Já tive festins de celebração mais do que suficientes... pelo menos por enquanto. - Tínhamos chegado à sua porta. Abriu-a e mandou-me embora com um gesto, mas voltou a chamar-me, acrescentando: - Queres pedir ao jarl Harald que coloque um guarda à minha porta, esta noite? Creio que talvez consiga dormir melhor...
- Sim, eparch, tratarei disso imediatamente.
Agradeceu-me e afastei-me. Fui à procura de Harald para lhe dar instruções a respeito do guarda. A seguir resolvi levar as preocupações do eparch muito a sério e também me mantive fora das vistas durante essa noite. Comportei-me como um escravo obediente e permaneci perto de Harald. Contudo, nada aconteceu e a casa passou uma noite tranquila. Fui para a cama a pensar: Nikos parte amanhã e já não teremos de nos preocupar com ele.
No dia seguinte, Nikos preparou-se para a partir à frente de um grupo de trinta guardas bárbaros e de uma dúzia de mercadores oportunistas que aproveitavam para fazer a viagem, com escolta, até Theodosiopolis. Conversou brevemente com o eparch e abanou a casa, após o que Nicephorus foi tomar o seu pequeno-almoço tal como era habitual. Era meu costume servi-lo à mesa sempre que tal me era possível, para que pudesse tratar dos seus assuntos em privado.
O eparch ainda se encontrava sentado à mesa quando Nikos regressou.
- Surgiu um assunto urgente... - declarou, entrando rapidamente no pátio - que requer a vossa atenção imediata!
A expressão de ira do eparch foi substituída por uma de espanto quando viu o magister e outro homem aparecerem à porta, por trás de Nikos. O eparch pôs-se de pé e mandou-os entrar.
- Perdoe-me a intrusão, eparch - declarou o magister rapidamente. - Ainda bem que consegui chegar antes que fosse demasiado tarde.
- Demasiado tarde? - interrogou-se Nicephorus.
- Ah... - exclamou o magister- demasiado tarde para impedir a partida do komes.
- Pergunto a mim mesmo por que haveria isso de o preocupar...?
- comentou o eparch, franzindo a testa.
- Eu explico... - sugeriu o magister.
- Seria uma boa ideia... - retorquiu o eparch.
- O cônsul Psellon.. - começou, apontando o homem a seu lado - acabou de chegar de junto do governador com uma mensagem para si.
- Compreendo. Posso vê-la, por favor? - Nicephorus estendeu a mão. O magister Sergius deu uma cotovelada no homem, que meteu a mão numa dobra da capa e fez aparecer um espesso quadrado de pergaminho amarrado com uma tira de seda preta e selado com lacre vermelho.
- É o selo do exarch, como pode ver - esclareceu Sergius.
- Obrigado por esse esclarecimento, magister - entoou o eparch.
- De certeza que eu não teria reparado nesse pequeno pormenor. Como sempre, fico em dívida para consigo.
Sergius corou e quis aprofundar as suas explicações, mas Nikos impediu-o, dizendo:
- Obrigado, magister. Ceio que somos perfeitamente capazes de avaliar a importância deste documento sem a sua ajuda.
- Oh, é claro... - O magister calou-se, grato pela intervenção.
O eparch pegou no pergaminho enquanto lançava olhadelas ao magister e ao cônsul. Desamarrou-o, quebrou o selo, desdobrou-o e começou a ler com os lábios a moverem-se ao longo das palavras que ia encontrando no documento.
- Isto é muito interessante... - comentou, logo que terminou a leitura. - É na verdade muito interessante...
Sem esperar que lho pedissem, Nikos arrancou-lhe o pergaminho das mãos e começou a ler.
- É do governador - comentou, ainda a ler.
- Assim parece... - murmurou Nicephorus, fitando o magister e o cônsul com uma expressão de consumado cepticismo.
- Pede-nos que nos juntemos a ele em Sebastea - prosseguiu Nikos. - Diz que se fala em... - interrompeu-se de repente, olhando para o eparch. - É um assunto de extrema urgência - concluiu, num tom pouco convincente.
- Aparentemente... - admitiu o eparch, sempre a olhar para os dois homens que tinha pela frente. - Quando foi que receberam esta mensagem? - perguntou.
- Esta manhã - declarou o magister. - Vim directamente para aqui logo que Psellon chegou.
- Estou a ver... - Os olhos do eparch semicerraram-se. - Nesse caso, já sabiam qual era o conteúdo da mensagem?
- De modo nenhum, eparch! - O magister quase guinchou ante as implicações da pergunta. - No entanto sabia que era importante. Foi o próprio Psellon quem mo disse.
O cônsul Psellon acenou com vigor.
- A mensagem veio directamente das mãos do governador - confirmou.
- Oh, de certeza que sim - concordou o eparch num tom ácido. - No entanto, viajaste noite e dia para ma entregares, sem nada saberes a respeito da mensagem, excepto que era importante...
- Claro, eparch - replicou Psellon.
- Quantos mais viajaram contigo?
Psellon hesitou e os seus olhos desviaram-se para o magister, que continuou a olhar em frente.
- Ora, vamos lá! - insistiu o eparch com secura. - A questão é perfeitamente simples. Quantas pessoas viajaram contigo?
- Quatro - respondeu Psellon, inseguro.
- Compreendo. Podem ir, os dois. - Nicephorus mandou embora Sergius e Psellon com um gesto de desdém e ficou a observá-los até saírem da sala. - Que me dizes disto? - perguntou, virando-se para Nikos logo que os outros se afastaram.
- Creio que foi uma sorte ter sido detido a tempo - replicou o komes. - Uma vez que já estou pronto, pouco mais é preciso fazer. Podemos sair da cidade por volta do meio-dia. Vou tratar dos preparativos.
- Parto do princípio, por essa tua resposta, que acreditas que esta mensagem é genuína, não é verdade?
- Sem dúvida! - afirmou Nikos. - Creio que é seguro afirmar que o exarch Honorius procura apenas o bem do Império.
- Sim, quanto a isso não tenho dúvidas - concordou o eparch. - Nenhuma dúvida... se é que foi Honorius quem a escreveu.
- Não vejo razões para pôr em causa a veracidade do documento... - declarou o komes suavemente. - No fim de contas, foi escrito pela mão do governador e exibe o seu selo.
- Sim, é verdade. É o seu selo... - O eparch sentou-se lentamente na sua cadeira exibindo uma expressão de dúvida e confusão.
- Agora, se me der licença, vou tratar dos necessários preparativos. Presumo que quer que os dinamarqueses nos acompanhem?
- Sim, sim - respondeu Nicephorus, com uma expressão vazia. Era óbvio que pensava em assuntos completamente diferentes. - Está bem, trata dos preparativos.
Nikos desapareceu com três passadas sem sequer lançar uma olhadela na minha direcção, embora devesse saber que eu estivera ali durante todo o tempo. O eparch ficou sentado na cadeira a olhar para o pergaminho meio dobrado como se se tratasse de um objecto que nunca antes vira. Como não havia mais ninguém por perto, resolvi aproximar-me dele.
- Eparch? Posso ajudá-lo de algum modo?
- Honorius envia-nos palavras de traição... - anunciou, distraído. - Diz que temos de ir ter com ele.
Como o eparch estava profundamente preocupado, ganhei coragem e pedi-lhe:
- Posso ver a mensagem?
- Se quiseres... - Não fez qualquer tentativa para ma entregar mas observou-me enquanto a lia.
A mensagem era concisa mas pomposa, e informava que o califa planeava aproveitar a conclusão do conselho de paz para renovar as hostilidades entre os Árabes e Bizâncio. Como os pormenores sobre a traição eram demasiado sensíveis para serem transmitidos por um portador, o governador pedia ao eparch que fosse imediatamente ter com ele a Sebas-a e sugeria-lhe que viajasse com uma escolta.
- És uma pessoa com alguma experiência na palavra escrita - disse Nicephorus, quando terminei. - Consegues dizer-me alguma coisa a respeito do homem que escreveu isso?
A mensagem fora escrita em grego, com letras desenhadas por mãos seguras e confiantes. As letras estavam perfeitamente formadas e alinhadas, embora fossem um pouco pequenas.
- Pela letra, diria que se trata de um escriba... - arrisquei - ou talvez até um monge. Escreve com clareza e com palavras bem escolhidas. É realmente a caligrafia do governador?
- É, sim... - confirmou Nicephorus - e é isso o que me mais me preocupa.
- Nesse caso, não compreendo, eparch.
- Conheço o Honorius, sabes? Servimos juntos na Gália e também no Efeso, há muito tempo... - confidenciou. - Não me parece que o Nikos ou alguém de Trebizonda o saibam, e não o disse a ninguém desde que cheguei aqui. Por isso mesmo, preferia cortar a língua a ter de jurar que foi ele quem escreveu esta carta!
"Olha para ela! - exclamou, cada vez mais agitado. - A saudação está completamente errada. O Honorius e eu somos velhos amigos. Sabia que eu vinha para aqui e que ia ficar na sua casa. No entanto, envia esta mensagem não directamente para mim mas sim por intermédio do magis-ter. Para além disso, dirige-se-me não como a um homem que conhece há quarenta anos, mas apenas pelo título, como se eu fosse um mero funcionário do Imperador que nunca tivesse conhecido.
Comecei a compreender o que preocupava o eparch e concordei que tudo aquilo parecia estranho. A escolha das palavras da carta fora estritamente formal e precisa, mas distante.
- Desconfia de uma falsificação?
- Não - declarou o eparch, abanando a cabeça. - Foi ele quem a escreveu... mas não posso acreditar que a tenha escrito a mim.
- Talvez não quisesse trair a vossa amizade... não fosse dar-se o caso da carta se perder.
- Talvez... - O tom de Nicephorus sugeria que pensava de outro modo. - Na minha opinião, essa carta revela muito pouco...
- Quer dizer que suspeita de outros motivos para o envio de uma mensagem como esta? Quais poderiam ser?
- É isso o que pergunto a mim mesmo - retorquiu, abanando a cabeça devagar. Levantou-se da cadeira sem ter tocado na comida. - Receio que tenhamos de nos preparar para partir, Aidan - declarou, atravessando o pátio. - Por favor, informa Harald.
- E a carta? - perguntei, indicando o pergaminho que jazia sobre a mesa.
O eparch interpretou mal a minha pergunta e respondeu: - De certeza que tudo se esclarecerá quando chegarmos a Sebastea. Abandonou o pátio e regressou ao seu quarto. Peguei na carta e voltei a examiná-la. Não me pareceu nem mais nem menos estranha do que anteriormente e pensei: no fim de contas, até pode ser genuína. Dobrei-a com cuidado, voltei a atar a fita negra e enfiei o documento debaixo do manto com a intenção de o devolver ao eparch. A seguir apressei-me a ir em busca de Harald, para o alertar quanto à inesperada mudança de planos.
As portas de Trebizonda estavam inteiramente abertas e a estrada estendia-se na nossa frente. Passava um pouco do meio-dia e o Sol brilhava num céu de finais do Inverno. O ar estava fresco mas o Sol aquecia-nos as faces e as costas. A estrada para Sebastea era muito usada, mas estava cheia de raízes a descoberto por causa das chuvas e da recente invasão de visitantes a caminho da feira.
Nikos viajava a cavalo e o eparch deslocava-se numa carroça fechada puxada por uma parelha de cavalos. Para além disso, a coluna incluía três outras carroças e parelhas, que transportavam as provisões. Os Lobos do Mar, num total de mais de cem, marchavam em duas longas colunas de cada lado das carroças, empunhando lanças e machados, e transportando os escudos às costas.
Embora Nikos tivesse insistido que não precisávamos de tantos homens, o eparch decidira pôr sob o seu comando a maior escolta possível. Harald, satisfeito com a mudança na rotina, deixara para trás apenas os homens necessários para guardar os navios e organizara um verdadeiro exército para nos escoltar até Sebastea. Para além disso, também éramos acompanhados por outros. Um bom número dos comerciantes e mercadores que participavam na feira pagã haviam encarado uma escolta armada gratuita como uma oportunidade a não perder e tinham decidido partir alguns dias antes, aumentando consideravelmente as nossas fileiras. Assim, no conjunto, formávamos um grupo de duzentas ou mais pessoas.
O tempo manteve-se bom nos primeiros dois dias, que foram bonitos e brilhantes, com um céu sem nuvens. O terceiro dia amanheceu cinzento, com uma chuva fina e desagradável empurrada por um forte vento do norte. Os Lobos do Mar pareceram não se importar com o frio e a humidade, cantavam de vez em quando e falavam entre eles com vozes fortes e roufenhas. As próprias carroças rumorejavam ao longo do percurso no meio de muitos resmungos e gritos dos cocheiros, por vezes na estrada, mas mais frequentemente fora dela porque as raízes dificultavam o avanço dos cavalos.
Mantive-me no meu lugar junto ao jarl Harald, que caminhava ao lado da carroça do eparch. Tolar e Thorkel haviam ficado para trás, com os navios, mas Gunnar fora escolhido para nos acompanhar e por vezes caminhava comigo e aproveitávamos para conversar. A conversa, embora trivial, afastava o tédio mas não era o suficiente para distrair a minha mente do frio que sentia. Habituara-me a um Inverno com um clima suave e aquela humidade gelada penetrava-me nos ossos e fazia-me tremelicar não obstante a capa e o manto.
Marchámos desde o nascer do Sol até ao meio-dia, altura em que parámos para descansar e comer no local onde a estrada era atravessada por um rio. Conforme me disseram, o rio, que naquela época do ano era pouco mais do que um riacho lamacento, transformava-se numa torrente no final da Primavera e acabava por se juntar ao Tigre, mais para sul. Do outro lado, a estrada dividia-se. Theodosiopholis ficava a dois dias de viagem para leste e Sebastea a quatro ou cinco dias de distância para sul e oeste.
Passámos o rio a vau depois de comermos e descansarmos e prosseguimos a nossa jornada. As pequenas aldeias de pastores que havíamos encontrado até ali tornaram-se mais pequenas e mais afastadas umas das outras à medida que o terreno se transformava gradualmente e passava a ser mais acidentado, com colinas mais íngremes e vales mais profundos. As pequenas árvores e as ervas ralas deram lugar a rochas e a arbustos espinhosos de vários tipos. O vento começou a guinchar e a gemer enquanto soprava pelas colinas rochosas e nuas, provocando um som frio e solitário. O grupo de viajantes, tão bem-disposto nos primeiros dias, mergulhou no silêncio e na melancolia.
O dia seguinte ainda foi pior. A chuva transformou-se num martelar constante que prosseguiu durante todo o dia. Embrulhei-me na minha capa encharcada e pensei na quente segurança do scriptorium iluminado pelo clarão avermelhado de um fogo de turfa. Ah, mo croi!
O fim do dia descobriu-nos numa pequena ravina apertada entre duas íngremes serras. Como a última subida fora árdua e ainda não nos sentíamos preparados para enfrentar a vertente seguinte, parámos para montar o acampamento, gratos por, no mínimo, nos encontrarmos protegidos do vento. O chão era rochoso, irregular e completamente livre de vegetação, excepto quanto a alguns minúsculos pinheiros ensopados. De um dos lados da estrada erguia-se uma falésia rochosa quase vertical e do outro havia uma estreita e profunda ravina no fundo da qual corria um rio que começara a ganhar força graças às chuvas recentes.
Não havia ali nada que pudesse ser usado como lenha e o pouco combustível que ainda possuíamos era necessário para cozinhar as refeições, pelo que passámos uma noite muito fria apertados contra a parede rochosa, onde a chuva não nos podia atingir com tanta facilidade. Um pouco antes da madrugada fui despertado por gotas que escorriam de uma rocha directamente por cima de mim e me caíam no pescoço, pelo que me levantei, cambaleei para a carroça do eparch e rastejei para baixo dela.
Foi isso, segundo creio, o que me salvou.
Ainda mal fechara os olhos quando ouvi um som semelhante ao estalar de raízes de árvores. Escutei por instante e voltei a ouvi-lo, mas não consegui perceber de onde provinha. Logo a seguir ouvi um rumor semelhante a um trovão, mas muito mais nítido e mais perto. Abriu os olhos... e o ruído transformou-se instantaneamente num tremendo estrondo enquanto à nossa volta começavam a cair objectos que faziam estremecer o próprio solo.
Verifiquei, sob a meia-luz de uma madrugada nublada, que a parede da falésia por cima de nós se encontrava em movimento. As rochas e pedras deslizavam, trambolhavam e caíam sobre a estrada. Arrastei-me ainda mais para baixo da carroça, puxei as pernas para dentro e encolhi-me por trás de uma resistente roda no preciso momento em que uma enorme pedra atingiu a carroça, empurrando-a para o lado.
Os homens apanhados na avalancha acordaram a gritar de terror e de alarme enquanto as rochas caíam sobre eles. Contudo, muitos foram esmagados durante o sono e nem sequer perceberam o que os matou.
A queda de pedras deteve-se quase tão depressa como começara. As últimas rochas estrondearam no solo e tudo ficou silencioso e mortiferamente tranquilo.
Logo a seguir, o silêncio deu o lugar aos gemidos dos feridos. Rastejei para fora do abrigo da carroça e verifiquei que a base da falésia tinha sido obliterada pela avalancha de pedras. Pus-me de pé muito devagar, procurando ver alguma coisa através do negrume do ar repleto de poeira e constatei que me encontrava rodeado por montões de pedras partidas.
Avancei com todo o cuidado e tentei ver se haveria por ali alguns homens a quem pudesse ajudar. Dei dois passos e ouvi, muito por cima de mim, o ruído de pedras a soltarem-se da falésia e a caírem à nossa volta. Receei uma nova avalancha, olhei para cima e tive um relance de uma figura a afastar-se rapidamente da beira da falésia. No mesmo instante senti, mais do que ouvi, um movimento súbito, e dei um salto para um lado a tempo de me desviar de um cavalo a galope. Havia alguém na sela... e era Nikos. Passou por mim como um vento maléfico e desapareceu no meio da poeira e da escuridão para lá dela.
Não tive tempo para me interrogar sobre aquela estranha atitude porque ouvi um grande grito, logo seguido pelo rugido de toda uma multidão ou, pelo menos, foi isso o que me pareceu. Virei-me e vi enxames de homens que desciam, a correr, a íngreme vertente na nossa frente.
Lentamente, o acampamento começou a ganhar vida. O eparch apareceu e precipitei-me para ele. Nicephorus olhou-me sob a sombria luz da madrugada.
- Onde está o Nikos? - perguntou.
- Vi-o seguir para aquele lado, a cavalo... - respondi, apontando para trás de mim. - Estamos a ser atacados!
Harald apareceu de repente na nossa frente, de machado em punho, como se tivesse surgido do nada. Saltou para cima da carroça mais próxima e começou a soltar o seu grito de batalha. Instantes depois já se viam Lobos do Mar por todo o lado - embora em menor número do que anteriormente - correndo, gritando e chamando os irmãos de armas, para que se levantassem e lutassem.
Com as armas a soltarem um brilho baço, os guerreiros lançaram-se na batalha logo que os primeiros inimigos chegaram ao acampamento. O tilintar de aço contra aço e os gritos dos homens que combatiam encheram o vale e ecoaram pela ravina. Não dispunha de nenhuma arma - nem saberia o que fazer com ela se a tivesse - mas decidi manter-me junto do eparch Nicephorus para o proteger, se pudesse. Contudo, acabei por concluir que a tarefa não era nada fácil porque insistia em lançar-se directamente para o mais espesso da peleja para dar a sua ajuda.
- Aqui! Por aqui! - gritei-lhe, puxando-o para trás e afastando-o dos corpos que se agitavam na nossa frente. Apontei-lhe a carroça de provisões que se encontrava mais perto e disse-lhe: - Podemos ver melhor ali de cima! Apressámo-nos para a carroça, fiz uma pausa para ajudar o eparch a subir para a caixa e segui-o. Ficámos juntos, a observar o tremendo embate.
Os inimigos não eram corpulentos - pelo menos em comparação com os Lobos do Mar - mas eram muitos e estavam vestidos com capas e turbantes negros, o que fazia com que fossem difíceis de ver sob a luz da falsa madrugada. Mesmo assim, naqueles primeiros e desesperados momentos da batalha, pareceu-me que a maior força física dos dinamarqueses e a sua habilidade no combate acabariam por alcançar a supremacia. Os Lobos do Mar enfrentavam a sua desagradável tarefa dispostos ombro a ombro, com cada homem a proteger o flanco do seu vizinho, e iam obrigando os inimigos a recuarem passo a passo.
- Veja, eparchf - gritei. - Estão a expulsá-los!
O eparch, esforçando os olhos no meio da escuridão, não fez comentários. Agarrou-se aos lados da carroça e continuou a observar a terrível dança de morte que se desenrolava na nossa frente.
Foi em vão que tentei avistar Gunnar. Não o consegui ver em lado nenhum e receei que se encontrasse entre os que haviam sido mortos pela avalancha de pedras.
Os dinamarqueses soltavam o seu grito de batalha a plenos pulmões e compreendi porque motivo lhes chamavam lobos. O som era sinistro, incutia medo nos corações e era capaz de enfraquecer até a vontade mais férrea. O jarl Harald mostrava-se indómito e permanecia na primeira fila com o seu machado a golpear para um lado e para o outro com uma precisão que a prática tornara mortífera. Os homens caíam na sua frente, com alguns deles a gritar de agonia e outros a tombarem em silêncio, mas sempre com uma rapidez espantosa. A lâmina daquele machado mordia fundo e tinha um apetite insaciável.
Depois dos primeiros ardores da batalha tornou-se cada vez mais evidente que os Lobos do Mar se encontravam numa inferioridade numérica muito maior do que eu imaginara inicialmente. Era muito possível que estivessem a chegar mais guerreiros, talvez reservas não utilizadas no ataque inicial, isto porque parecia que o número de inimigos vestidos de negro não parava de aumentar.
Devagar, dolorosamente, o fluxo da batalha virou-se contra nós. O eparch e eu mantivemo-nos na carroça e verificámos, com um horror crescente, que os Lobos do Mar eram engolidos e envolvidos pela sempre crescente maré de inimigos.
- Reza por eles, sacerdote! - gritou Nicephorus, agarrando-me pelo braço. - Reza por todos nós!
Infelizmente, não podia fazê-lo. Deus esquecera-me e as minhas orações seriam como sementes estéreis no solo do seu duro coração de pedra. A utilidade das minhas orações era tal que teria muito mais hipóteses de nos salvar a todos se pegasse numa lança... embora soubesse muito bem que eu, como guerreiro, não valia nada.
Contudo, fui poupado a mais meditações sobre a minha impotência pela súbita aparição de um guerreiro de rosto sombrio que agitava um maço-de-guerra ensanguentado.
- Que estão vocês a fazer? - gritou-nos o guerreiro. - Saiam daí! Fui feito cair, para logo ser puxado da caixa da carroça e atirado para o chão, onde fiquei a contorcer-me numa tentativa para me afastar. O eparch também foi arrancado da carroça a espernear e largado a meu lado, embora com um pouco mais de suavidade.
- Aeddan! - gritou Gunnar - ainda vos matam se continuarem de pé! - Antes de conseguir dizer qualquer coisa, o Lobo do Mar empurrou-nos, ao eparch e a mim, para baixo da carroça. - Escondam-se - ordenou, com firmeza - e não saiam daí até que os venha buscar!
Desapareceu outra vez antes de ter conseguido pronunciar uma palavra. O eparch perguntou:
- Que foi que ele disse?
- Ordenou-nos que nos mantivéssemos fora das vistas até nos vir buscar.
- Mas... aqui em baixo não vou conseguir ver nada! - queixou-se o eparch. Aguentou a ignomínia daquela posição durante mais um momento ou dois mas, quando se ouviu um grande berro vindo do campo de batalha, Nicephorus saltou de debaixo da carroça e gritou: - Ninguém me verá escondido como um cobarde!
Corri atrás dele, agarrei-o e puxei-o de volta para a carroça. Contudo, não voltámos a meter-nos debaixo dela e permanecemos de pé a seu lado, assistindo à batalha... mas o que vimos encheu-nos as bocas de bílis. Os dinamarqueses estavam a ser obrigados a recuar em todo o lado. As fileiras do inimigo haviam aumentado ainda mais e preparavam-se para subjugar toda a resistência.
Enquanto observávamos, ouviu-se outro grande grito e os inimigos de negro avançaram como um só homem, fazendo com que os defensores se vissem obrigados a recuar dez passos. Outro grito, outro impulso para a frente... e a fileira da frente cedeu. A resistência fora quebrada e os nossos guerreiros viram-se na iminência de serem subjugados.
Todavia, Harald era um astuto chefe-de-batalha que não ia permitir que o cercassem com tanta facilidade. Apercebendo-se do perigo, soltou o seu berro de touro e ordenou a retirada. Os guerreiros viquingues recuaram e em breve passavam na estrada à nossa frente. Gunnar correu para junto de nós.
- A batalha está perdida! - declarou, respirando com dificuldade. - Temos de fugir enquanto podemos. Venham, por aqui!
Dito aquilo, obrigou-me a dar meia volta e começou a empurrar-me à sua frente.
- Por aqui! - gritei, para o eparch. - Ele vai proteger-nos! Corremos para trás ao longo da estrada, para lá dos montes de pedras que agora assinalavam os túmulos de dinamarqueses, de mercadores e das suas famílias, fugindo para salvarmos as nossas vidas. Os mercadores sobreviventes tinham-se apercebido da viragem da sorte da batalha e já fugiam pela colina. Conseguia vê-los na nossa frente, dobrados sob os fardos que ainda procuravam salvar.
O primeiro desses mercadores atingiu o cimo da colina e precipitou-se para o outro lado. Vendo que se conseguira escapar, todos nós corremos ainda mais depressa para o imitarmos.
Infelizmente, tal não iria acontecer!
Mal os mercadores em fuga haviam desaparecido do outro lado da colina quando os vimos reaparecer, voando pela vertente e gritando para voltarmos para trás. Não compreendemos imediatamente o significado dos seus gritos e avançámos mais alguns passos... mas bastou o tempo de dois batimentos do coração para vermos aparecer uma hoste inimiga tão grande ou maior do que a que se aproximava por trás. Esses novos inimigos pareciam pular por cima do alto da elevação para se atirarem rapidamente sobre nós.
- Fiquem deitados! - gritou Gunnar, empurrando-me para o chão quando já se precipitava para enfrentar os atacantes. Estendi um braço e puxei o eparch para baixo, para junto de mim e ali ficámos, meio agachados junto à estrada, enquanto os mercadores e comerciantes voltavam para trás uivando de terror. Alguns ainda transportavam os seus produtos às costas.
Apanhados entre duas forças inimigas, uma por trás e outra ainda maior pela frente, os dinamarqueses não tinham escolha: ou lutavam até ao último homem ou rendiam-se.
Todavia, os Lobos do Mar não admitiam a rendição.
Harald reuniu os seus homens - que, segundo calculei, já deviam ser menos de oitenta -, e retomou a luta. Berrou como um touro enlouquecido e apelou a Odin para que testemunhasse o seu valor, após o que ele e os karlar que lhe restavam se lançaram contra a nova ameaça com tanta ferocidade que os inimigos ficaram momentaneamente surpreendidos. As fileiras atacantes detiveram-se e nalguns pontos até mergulharam na confusão quando os uivantes Lobos do Mar, impulsionados pela ânsia de sangue, se lançaram de cabeça contra elas. O som do embate foi ensurdecedor, com os homens a berrar, a praguejar e a gritar enquanto lutavam e morriam.
Oh, foi uma matança terrível! Os dinamarqueses combateram com uma coragem espantosa, levando repetidamente a cabo actos extraordinários de selvajaria e de maravilhosa ousadia. Vi Hnefi - guerreiro arrogante e orgulhoso que era - lutar sem uma única arma quando a espada já quebrada lhe foi arrancada das mãos. Em vez de recuar para procurar outra lâmina, preferiu atirar-se para a frente, agarrar o seu inimigo, erguê-lo no ar e lançá-lo contra um grupo de outros. Caíram quatro homens... e Hnefi saltou sobre eles e matou-os a todos com as suas próprias lanças.
Outro dinamarquês, rodeado por seis ou mais inimigos, já com a espada quebrada e sabendo que enfrentava a morte, pegou no escudo por um rebordo, soltou um violento grito de desafio e começou a rodopiar sobre si mesmo com o escudo a descrever um largo arco. Dois atacantes que tentaram passar por baixo do escudo para o ferirem com as lanças ficaram com os crânios despedaçados pelo rebordo de ferro, enquanto um outro perdia a arma e saltava para um lado, mesmo a tempo. Os três que restavam bateram em retirada para uma distância segura e atiraram as lanças ao mesmo tempo. O viquingue foi atingido duas vezes mas virou uma das lanças contra os seus atacantes. Conseguiu ferir um e matar outro antes de sucumbir.
Tive um relance de Gunnar no meio do calor da matança, saltando e rodopiando como um animal selvagem, com o maço-de-guerra transformado numa simples mancha indistinta de aço e sangue por cima da sua cabeça. Escutei o terrível som dos ossos a serem partidos e esmagados sob a fúria dos golpes que desfechava. Carregou e voltou a carregar contra os inimigos. Dois deles caíram sob um único golpe do maço... e foram logo seguidos por um terceiro quando o segundo ainda não atingira o chão.
Os adversários vestidos de negro enxameavam à nossa volta, lançando-se na luta, soltando gritos agudos e penetrantes enquanto manejavam as delgadas espadas. O eparch e eu continuámos abraçados à terra, com os inimigos a fluírem por cima de nós e à nossa volta. Eram cada vez mais, vindos de todos os lados, mas os valentes Lobos do Mar não deixaram de se esforçar para os conter. Nunca homens lutaram e morreram com tanto abandono. Se a batalha pudesse ter sido ganha apenas com a intrepidez, então os dinamarqueses teriam acabado vitoriosos naquele campo empapado em sangue. Todavia, os atacantes eram demasiado numerosos e os defensores eram demasiado poucos. Um a um, os bravos dinamarqueses foram sendo derrubados e mortos.
A última coisa que vi foi Harald Berro-de-Touro a cambalear sob o Peso de dois inimigos sobre as costas. Libertou-se deles com um violento safanão mas foi atacado por outros dois, e por mais dois, e caiu sob o peso dos adversários. Os inimigos de negro dominaram o campo de batalha e a luta terminou.
Por instantes tudo ficou em silêncio, mas logo os inimigos entoaram o seu canto de vitória. Juntaram-se no campo de batalha, com as armas erguidas ao alto, aplaudindo-se a si mesmos e troçando das vítimas. Contudo, bastou que lançasse um simples olhar para a colina para verificar que não tinham grandes razões para se alegrarem. Os homens de negro haviam pago um preço terrível pela sua dúbia vitória.
Os corpos dos inimigos mortos jaziam aos montões sob a terra ensopada com o seu sangue. Os feridos, que eram muitos, gemiam nos próprios locais onde haviam caído ou cambaleavam para um lado e para o outro sobre os corpos, confusos e abalados, com expressões perplexas nos rostos cor de cinza, enquanto alguns outros permaneciam sentados e choravam sobre os seus ferimentos.
O cântico calou-se e os vencedores viraram a sua atenção para uma busca aos corpos. O instinto disse-me que deveria ficar perfeitamente imóvel. Pensei que talvez não dessem por mim se me parecesse apenas como mais um corpo caído no meio de tantos outros.
- Não se mexa - sussurrei para o eparch. - Podem pensar que estamos mortos e deixam-nos em paz...
Como não me ouviu, sussurrei um pouco mais alto e dei-lhe um leve empurrão com o braço.
- Ouviu o que lhe disse, eparch? - perguntei, olhando-lhe para o rosto. Tinha os olhos abertos e continuavam a observar o topo da colina, onde a luta fora mais feroz. - Nicephorus?
Foi então que vi a lança a sobressair entre os ombros do eparch e soube que o enviado estava morto. Incrédulo, fiquei a olhar para aquela maligna lança. Como épossível, interroguei-me, que um homem morra tão silenciosamente? E porquê ele... e não eu?
A vida fora-lhe retirada violentamente no meio do tumulto da batalha e eu, que jazia mesmo a seu lado, nem sequer dera por isso. Senti vergonha, desgosto e ultraje, tudo ao mesmo tempo. Queria dar um salto e começar a correr... Queria correr, correr e continuar a correr até deixar o odioso campo de batalha e a terra ensopada em sangue muito para trás de mim.
Inesperadamente, comecei a tremer. Os meus membros tremiam, o corpo sacudia-se e não conseguia parar. Fora atacado por paroxismos e tremia, no meio de convulsões incontroláveis. Tudo o que conseguia fazer era comprimir o rosto contra a terra e esperar que os inimigos não reparassem em mim.
Alguém me deve ter visto a tremer porque, de repente, senti que me agarravam pelos braços, me punham de pé e me arrastavam para a colina no meio de dois dos atacantes. Chegámos a um local onde um grande número de inimigos se amontoava, em fileiras apertadas, em volta de um grupo encolhido no chão. As fileiras de árabes abriram-se e fui atirado para o meio dos homens ali ajoelhados. Vi Harald, de cabeça baixa, sangrando do nariz e da boca, e compreendi que aqueles poucos homens, comigo incluído, eram os últimos sobreviventes.
Ainda a tremer, examinei rapidamente o grupo e contei vinte e um homens. Entre os que eu conhecia, só Harald e Hnefi se contavam entre os sobreviventes. Restavam vinte e uma pessoas de um grupo de mais de uma centena de guerreiros e de sabe-se lá quantos mercadores... todos mortos. Porém, infelizmente, a matança ainda não terminara.
Um dos vencedores vestidos de negro, com uma espada cheia de bocas e a pingar sangue, caminhou para o dinamarquês mais próximo, agarrou-o por um punhado de cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás e cortou a garganta à sua vítima para grande divertimento dos seus companheiros. O Lobo do Mar caiu para um lado, fechou os olhos e morreu sem soltar um murmúrio. O guerreiro que se encontrava ao lado do Lobo do Mar moribundo, pouco desejoso de perder a vida para divertimento dos inimigos, debateu-se para se pôr de pé e atirou-se ao homem que lhe matara o amigo. De algum modo, conseguiu lançar as mãos ao pescoço do seu adversário. Os restantes Lobos do Mar incitaram-no entusiasticamente. Foram preciso três violentos golpes na traseira do pescoço para o matar.
Depois de verem um terceiro Lobo do Mar com a garganta cortada, os restantes calaram-se e resignaram-se ao seu destino.
É assim que vou morrer, pensei. É assim, finalmente, que vou morrer... assassinado por um inimigo desconhecido, ao lado de bárbaros.
- Que Cristo tenha piedade! - murmurei. As palavras saíram-me da boca antes de perceber o que estava a dizer. Fora apenas um reflexo devido a um longo hábito. Já não era um crente e nem sequer esperava que o Senhor Jesus Cristo ouvisse a minha oração, e ainda menos que a atendesse.
Contudo, o homem que se encontrava ao meu lado ouviu-me e disse:
- Sim, reza ao teu Deus, Aeddan. Isso é bom. Agora, creio que só o teu Cristo nos poderá salvar.
Virei-me para o homem e fiquei a olhar para ele. Reconhecia-lhe a voz mas não sabia a quem pertencia aquele rosto amachucado.
- Gunnar? - Um dos olhos estava horrivelmente inchado e escorria-lhe sangue pela cara e pelo pescoço, vindo de um corte no crânio. Tinha os lábios rasgados e a sangrar, uma das orelhas estava quase arrancada e havia um hediondo alto num tom azul-negro na sua testa. - Gunnar... - quase fiquei sem saber o que dizer - ... estás vivo!
- Sim, por enquanto - sussurrou, limpando o sangue dos olhos. - Se desta vez o teu Cristo nos salvar... também eu passarei a adorá-lo.
Nesse momento, um quarto prisioneiro era posto de pé à força para que um inimigo trajado de negro o pudesse empalar com a lança. Dois guerreiros inimigos seguraram no Lobo do Mar enquanto o terceiro lhe enfiava a lança na barriga.
- Já ninguém nos pode salvar... - declarei, com amargura.
- Então adeus, Aeddan - disse Gunnar.
O infeliz dinamarquês ainda se contorcia no solo quando o chefe dos homens de negro chegou, montado num cavalo castanho. Suponho que conduzira a batalha de uma distância segura e que, agora que a mesma terminara, já sentia a coragem suficiente para se aproximar e inspeccionar os despojos.
Encaminhou-se directamente para onde os prisioneiros estavam a ser massacrados e deslizou da sela. Agarrou no homem que assassinara o último prisioneiro, golpeou-o duas vezes no rosto e empurrou-o com força. A seguir virou-se, começou a gritar para os outros... e vi a satisfação a desaparecer dos seus rostos. Baixaram as armas e a matança terminou imediatamente.
- Esse teu Cristo trabalha depressa... - sussurrou Gunnar, impressionado. - Que está aquele a dizer?
- Não sei!
- Serão árabes?
- Talvez... - respondi - mas não falam como o emir e a sua gente.
O chefe dos homens de negro gritou mais ordens, subiu para o cavalo e afastou-se. Os poucos prisioneiros restantes foram então amarrados aos pares, com as mãos unidas com cordas feitas de tiras de couro. Serviram-se das pontas das lanças para nos obrigarem a pôr de pé e começámos a descer a vertente da colina a cambalear, passando por cima dos corpos ainda quentes dos caídos. Os mortos jaziam no chão em verdadeiros montões. Havia ali famílias inteiras abatidas enquanto fugiam, bem como apertados grupos de Lobos do Mar caídos uns em cima dos outros. Era como se alguém tivesse abatido uma floresta e deixado as árvores nos sítios onde tinham caído. As mulheres, as crianças e os mercadores jaziam em grupos silenciosos sobre o chão ensanguentado. Tinham sido perseguidos e chacinados e os seus corpos estavam cortados, quebrados e abandonados. O cheiro a sangue fez com que a bílis me subisse à boca, provocando-me vómitos e engasgando-me. Vi-me forçado a fechar os olhos para não ter de ver tudo aquilo.
Meu Deus, lamentei-me, dentro de mim, porquê?
Continuei a caminhar como um cego pelo terreno irregular e acabei por tropeçar e cair sobre um corpo morto. Era uma mãe com uma criança ainda bem presa nos braços... e tinham ambas sido atravessadas pela mesma lança. Cristo tenha piedade! Gritei. Todavia, naquele dia não haveria piedade, nem para eles, nem para ninguém. Deus abandonara-os, tal como acabava sempre por abandonar toda a gente.
Passei pelo corpo do eparch, ainda caído com a lança espetada nas costas e uma expressão de contemplação no rosto. Ouvi o chamamento estrangulado de um corvo e olhei para a colina coberta de corpos onde as aves necrófagas já tinham dado início ao seu cruel festim. Deixei cair a cabeça, chorei... e foi assim que iniciei a minha longa e tortuosa caminhada para as minas do califa.
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