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CABEÇA DE PAPEL / Paulo Francis
CABEÇA DE PAPEL / Paulo Francis

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CABEÇA DE PAPEL

 

 

A manhã seguinte, 1976

A voz era a mesma de vinte anos atrás, e a dor, desconforto prenunciando dor, que eu impeço, ficando uma inquietação indefinida que converto em retirada, o caminho coberto de fortificações e trincheiras verbais, uma obstrução de movimento.

"Howdy there. Victor here. Long time no see."

Falamos às vezes assim, alguns de nós, desmamados por Hollywood, quando nossos pais liam Anatole France, "ironia fina", e, ao percebermos, lemos Eliot e procuramos absolvição em Auden. Não reconhecemos Machado de Assis e não conhecemos de verdade Drummond e Rosa, ou só como "navios cruzando na noite", ou de escola, decoreba & cola. Glauber pega porque é selvagem. Há nele o criminoso potencial que imitamos em pensamentos e nunca recriamos em atos.

Meu nome é Hugo Mann e emito um "oi" folclórico, sou convidado a beber no Ouro Verde, "assunto importante". Não há assunto ou importância possível entre nós. É um jeito da gente falar. Sim, já houve momentos partilhados, mas vivo no presente por assim dizer. Não somos sérios o bastante para ter passado ou futuro.

De joelhos procuramos o pó na grama careca do Ouro Verde. Havia uma moça que não sabia que tomávamos, e escondida dentro de um Marlboro a grama, de pó, ia e vinha, e fazíamos pipi demais, o banheiro é o altar da cafungagem. Me distraí e joguei o Marlboro fora. Como Nabucodonosores, de quatro, caçamos o tesouro entre as pernas de aeromoças e comissários de bordo, interpretando turistas americanos, e daqueles playboys assimilados posando de melofranco, que andavam mas não casavam com mulher bonita porque tinham medo de ser cornos. Brasileiros comuns nos olhavam, cocando o saco, postura usual em face do inusitado. "Um povo jovem sempre testando manualmente a própria virilidade." Aldous Huxley. Há outras explicações. Thomas Huxley talvez achasse que é um problema de localização do cérebro, uma pequena boutade evolucionária. A moça que tomava, que queria passar camisas a ferro de um marido e produzir bacuris — passou, produziu-se, deu-se mal e continua tomando —, achou e pulamos. Naquele tempo nos divertíamos e naquele tempo a cocaína era boa, não descera à turma do milk shake.

Digo a Victor que me contaram que ele virou fazendeiro, que se casou, que é padre, esqueço qual das três coisas, e que se quer um encontro íntimo no Ouro Verde há aqueles rapazes que me conhecem e vão reconhecê-lo.

"Já se casaram todos e já devem ser todos cornos. Se ainda não forem, você me arranja os endereços que resolvo o assunto. Que que há? Estive dezesseis anos fora daqui, seu comunista filho da puta, isso é maneira de receber a long lost friend?"

Eu quase não saio de casa, está quarenta e dois à sombra, que não há, que que é afinal? Victor acha que ando escrevendo de maneira muito confortável, pau em todo mundo, é o mesmo que elogiar todo mundo. Me lembro que é inteligente, o que jamais lhe passou pela cabeça.

Negociamos um encontro dentro de meia hora no italiano embaixo da minha casa, onde como a comida dos garçons, a única que presta nos restaurantes da cidade, as massas têm lá suas armas secretas, brinquedos, really, feijão, arroz, bife, ou carne-seca desfiada, deixo a abóbora de lado. Bebo água Petrópolis, que importaram "em sua homenagem, doutor", sai bem, os garçons me chamam, pelas costas, de cabeça branca, afetuosamente, me dizem. Dou boas gorjetas.

Victor sempre me tratou OK. Salvei a vida dele em Petrópolis, desviando a baioneta de um soldado do Primeiro Batalhão de Caçadores no baile, as palavras que usamos, do Quitandinha. Me salvou a vida em Teresópolis. É fato. Parece melodrama. Não é melodrama porque não nos demos conta do fato. Acordo às dez, olho as manchetes, o ar-condicionado não pifa há quarenta e cinco dias, tabulo o inevitável, se tem jornais estrangeiros passo a vista, cigarros e cafezinhos, escrevo a coluna em uma hora, quinze minutos a lauda, banho, vomito quando bebo, leio alguns livros, pedaços, pulando, até a hora do almoço, o boy pega a coluna que nunca relerei, porque se não proponho a solução final para os revisores, telefono, me telefonam, editores, gerentes de banco, estes me merecem deferência, pois devo, nego, embrulho, termino embrulhado, as duas ou três moças que às vezes me comem, e grande elenco. Fim de semana aquele hotel em Friburgo onde é fresco e uma sinuquinha em que levo vinte com uma bola do primo da minha mãe que ficou vinte e nove anos noivo não casando antes da mãe dele morrer. Jamais perguntei o que aconteceu durante e depois. Essa é a base da nossa sólida amizade. Perco invariavelmente na sinuca, menos quando ele me deixa ganhar, o que o delicia, uma prestação suave da minha incuriosidade. Represento meu papel. É fácil.

Os boatos de que estou bebendo até morrer, que suspeito espalhados, de sutil sacanagem, pelo meu editor, Paulo Hesse, colaram naturalmente, as pessoas me olham esperando ver estrago ainda maior que o disponível, não sei se correspondo, o que me interessa tanto, entre cinco minutos e uma hora, quanto convites a almoços, estréias de teatro, sessões especiais, fins de semana em Búzios ou Petrópolis, "tá todo mundo lá", ou reuniões aqui mesmo, há sempre algum presunto dependurado nalguma porta e a fila é imensa, se pouco variada.

Sou crítico de cinema, gosto das legendas, o único humor puro, chalaça, que resta na praça, me pagam pelo que acho, é o que eu chamaria minha atividade capitalista, não darei explicações. Se encontro algum "velho companheiro" na rua, disparo comentários adequadamente pessimistas sobre a "situação" e me despeço apressado, "compromisso urgente, sabe como é que é", "a gente precisa jantar juntos um dia desses", never is too soon for me, shorty. Leio a maior parte do verão e vou para a serra no inferno. Sei que me apelidaram de Greta. É melhor que Celi.

Não quero discutir porque estou assim life is awful but don't say it, basta ir ao dicionário. Os melhores me acham sob sofrimento profundo & inexpresso, de que têm certeza conhecem as causas, como o velho A., que, aos oitenta e um anos, acredita em Deus, liberdade e progresso para as massas, que chamaria povo, identificando a origem fascista da palavra "massas", o velho A. até escreve a respeito, e me olha caridoso, silenciosamente se solidarizando com meu chagrin, na língua step dele. Olho-o e me lembro que Hesse só o conserva porque pinga um molho liberal no pasquim reacionário que Hesse edita. Ainda dá para ver Ipanema às seis da manhã. Moro no Leblon. Sabemos o que tínhamos de fazer e não fizemos. Órfãos da tempestade. Talvez nem isso. Falta-nos gravitas. Não escolhemos ou propusemos. Deixamo-nos dispor e depor. Vivemos entre segundos. Não contamos.

Raquel aqui na minha perna esquerda discordaria, se consultada, não é, porque me acha válido. Chegou de maio e toalha enrolada e chaves do VW na mão, o easy rider dela e minha tantalizante limousine com chofer, "às ordens do patrão", depois de quarar na praia depois da Nacional, "eu não me sentiria bem na puc". Já que fumigaram as faculdades de sociologia, aprende a literatura das vacas do Nhonhô ou do cumpadre Ermelindo, ou a classe sem consciência de si própria de Graciliano; pré-1968; hoje, Graciliano virou modelo estruturalista; "deixa a desejar". Raquel estuda sob algum nordestino Casa Tavares Caporal Douradinho que talvez já tenha atingido o Oliu & filtro, ou sob algum mineiro maneiroso, Proust de bolso, um ou outro entupidos de Barthes ao último obscurantista sintético de Paris, ambos ensinando as crianças que é marca de superioridade negar o real e concreto, o conceituado e dinâmico, um conselho prudente, se fosse dado honestamente; não é; pois clareza e movimento não cabem no nosso sarcófago, inquietam e irritam as múmias locadoras, cuja maldição é incontrastável. Serão muito diferentes, porém, dos "nossos", que insistem na existência dessa realidade? Se os modelos divergem, a obscuridade de linguagem é idêntica. No fundo, se dirigem apenas iniciados, a eles próprios, aos portadores do anel de doutor, aos presentes e futuros inquilinos da academia brasileira de túmulo grátis, na vida e na morte'.

Raquel resiste, como pode. Raquel acha João Cabral um grande poeta, ouve Chico e Betânia, adora a musicalidade e as letras contestatórias do Chico, mas o campo de concentração sente mesmo é em Berre, ela quer dizer campo de extermínio, no cib não sabem, ou não ensinam, a diferença, e é comunista, naturalmente, se bem que o Partidão já era, naturalmente.

Raquel tem cancha de maus-tratos, eu disse a ela que a tradição rabínica ortodoxa considera o anti-semitismo parte da natureza do gentio, uma espécie de pecado original, não me acredita, o que é uma reação comum quando digo a verdade. Os maus-tratos na minha casa começam pela empregada que odeia mulheres, "ele não está minha filha e não sei a que horas chega", sabe dos meus movimentos melhor que o exército, é uma mulata que dorme de bunda de fora, esperando, presumo, que eu penetre, olhei, olho sempre, resistindo para não consolidar o poder dela, já considerável; posse absoluta da casa dez horas ao dia, expropriação da tv, partilha de gêneros alimentícios, de Queen Anne, White Horse e outros uísques de carregação que me presenteiam e, calculo, comissão mínima de vinte por cento do meu produto interno bruto. E terminam em mim, que faço piadas destrutivas sobre todo mundo, meus próprios estilhaços sempre em destaque, sou capaz de faturar também um modesto holocausto, "risos doloridos e irônicos", não empatizo, uma palavra favorita de Raquel, troncho-a à la galo, ignorando olhares ternos e carícias post-coitum, e, o que Raquel não suspeita, em geral pensando na mulher de algum amigo meu. Às vezes imagino que seja um critério razoável de saúde sexual pensarmos na mulher com quem trepamos. Não há muita incidência desse fenômeno entre minhas relações, pelo que pude averiguar, sem fazer esforço, pois os pacientes se confessam à menor sugestão.

"Espectros. Nunca falei a você de um Victor quando eu era delinqüente juvenil, já? Ele vem daqui a pouco. Você me espera lá em cima ou tem alguma coisa pra fazer?"

Raquel olhos baixos sorri delicadamente. Não tentemos imitar a delicadeza, quase oito mil anos de tarimba, quase nunca bem recebida, logo reflete uma densidade histórica que contém teses, antíteses e sínteses infinitamente variadas e moduláveis de acordo com a ocasião. O que é excluído no momento permanece latente no que fica. Raquel é, instantaneamente, uma obra de arte, que evoca em mim uma reação de prazer estético, inexpresso, não notado por ela, que quer dizer apenas que já falei de Victor, bêbado, não me lembro, e não quer me lembrar que não me lembro.

Beijo-lhe o rosto. Ela promete voltar. Acredito. Amo Raquel quando me abandona. É raro.

Espero Victor consumindo as colunas sociais em que todas as personagens, como as do nascimento de Cristo, estão sempre onde devem estar, e grato a deus e ao diabo na terra do sol que até agora ninguém me perguntou se vai tudo bem neste vilarejo, ou sucessão de vilarejos, em que vivo, em que nossos ancestrais iam às praças em retreta e nós evoluímos às praias e bares, e nos esfregamos demais, rimos demais, reclamamos demais do trivial e do externo, impedindo o silêncio sobre nós mesmos, nossa linguagem verdadeira. Fechamos as cidades grandes de concreto, nosso lar é nosso castelo, alto e longe "deles", de quem vemos seletivamente a tupiniquinizada miçangueira do carná, de vela e garrafa, e "estuprou o suíno". A altura em que viviam, hélas alguns resistem, nos afrontou tanto que, quando votavam, alguém sugeriu pintá-las, "tudo azul de bolinhas brancas", e, resolvido o problema do voto, foram botinados para os subúrbios porque lá todo mundo é índio e o trem traz e devolve o serviço, com baixas insignificantes, se bem que os filhos "deles" voltaram a pé, nos adulando, de início, e já nos roubam e matam, o que nos deixa perplexos, no que não ousamos pensar, porque um troço leva a outro. E os filhos da gente imitam a linguagem e costumes moleques, fenômeno psicossocial inexplicado no momento, mas não convém subestimar as manhas da Albânia.

Três mulatinhos perguntam se o moço quer comprar isso ou aquilo. Não levanto a cara. À eventual navalha, tenho o braço, pesado — "um braço de pe, uma batida de oficial", me disse um colega de cela —, na amurada do botequim, e olho-os como a um filme, um décimo de atenção. Achataria os narizinhos sujos e já chatos, em segundos. Sociologia tem hora.

Desisto de Victor. Há um filme às duas horas que, não comentado, Marisa, a bunduda e atarracada aspirante a Ms, posando de editora do segundo caderno, me cobrara em silêncio, de olhar compreensivo, Grajaú-condescendente, "eu sei levar ele. Podem deixar comigo", o que acha durrabo. Hesse me assegura que ela é "Brasil", "nanica, bunda de pêra, morena pé na cozinha, o antiblue-jeans, que não tira, se espremendo nas ancas até peidar, fajutando Julie Christie com aquele two-bit peroxide approach, se dizendo gente, quando é chinesa, pés amarrados, pré-Sun Yat-sen. Você não tem senso de humor, Hugo". É possível.

Digo filho da puta para Victor, o que é verdade histórica e talvez seja o X do problema. A mãe dele caçava de coupé Cadillac em frente da Biblioteca Nacional, "lotação de eu", diziam os meninos que apanhava e preferia, e tinha olhar de jibóia, de quem engolia tudo. Nunca nos conhecemos e presumo que haja morrido, não sei. O pai, ginecologista da geração de meus país, Victor posava de bebê-modelo nos livros dele, devotamente consumidos por minha mãe até que viu o autor, mens insana in corpore sano, de cuecas, no alto de um poste, do qual um meganha tentava seduzi-lo a descer. Os cornos que conheço hoje enfrentam melhor as capas de toureiro. Eppur si muove.

"Oi, bichão."

Victor é a única pessoa das minhas relações que usa bichão. Tomou Toddy demais em criança e inflaciona tudo. Sentou tão rápido que nem vi. É bom nisso. Socava, jogava cadeiras, enfiava caco de garrafa na cara dos outros, sem dar tempo de reação. Perdeu a gordurinha de virgem não-comida, a baby fat, que represara de bebê-modelo, vinte anos atrás. Parece esculpido em pedra ou madeira, mais álcool que comida no pandulho, manjo e já pratiquei a dieta. Borbulha, geyser, há um estouro, uma potencial descarga elétrica nele, que quem viu solta não esquece. Os olhos azul-claros, piscando em tique-taque, prontos ao que der e vier.

Eu na varanda do Várzeas, segunda-feira de carnaval, com uma moça da terra, que queria me encontrar na piscina do Higino no dia seguinte, our sentimental friend the moon, não, garras descarnadas escavando os subterrâneos, Victor me disse: "Pula, corre, te esconde no carro que a gente agüenta as pontas". Olhei antes de saltar. Bonito. Victor e Fred, o escudeiro de Victor, oitenta e cinco quilos de massa e energia sem luz, atiravam cadeiras e empurravam mesas contra uma malta de bigodes. Achei a cena boa, sabe como é que é, e comecei a enquadrá-la, long, médium, close, Victor "pula, porra, tem até faca e revólver, caralho". Os bigodes vinham a mim, o que não me surpreendeu, porque sonho sempre, até hoje, só que não há bigodes, nem caras, são gazes reforçadas, musculares, o segredo da múmia. Soco, soco, elas crescem e se multiplicam e chega o ponto em que não consigo mais levantar os braços, de cansaço e dor, vai ser agora, não sei se grito antes de acordar. Raquel diz que falo estranho. Outras nunca ouviram nada. Não é nada. Acontece apenas.

No carro o cheiro do mato entra no nariz igualzinho a pó, faz cosquinhas, o escuro passa por nós correndo, nós na baratinha, eu quero ver é a pé, eu quero ver é a pé, puxo a cabeça de Esteia para o meu ombro direito, não sei namorar no ombro esquerdo, expliquei a ela, seria uma tendência ideológica recôndita? "Está falando sozinho, seu filho da puta? Vira aí — só um gole, porra, the hair of the dog that bit you." Victor sorri, carinhoso, é esta a palavra? sorrio agradecido de volta, é esta a palavra, fico sempre grato pela atenção dispensada. Smirnoff na boquinha que mamãe beijou. Smirnoff não morreu em 1918, quando Dzerjinski justiçava (pouco), "santos ou canalhas", Smirnoff imigrou. Vive em Bangu, onde prospera. Um semi-arroto-soluço de Fred, é um sorriso à la Moinar, menos sentimental, é um sorriso de deboche, tudo conosco era deboche, e ao mesmo tempo os mais altos protestos de estima e consideração do patrício pelo que ousei fazer, seja o que for, que criou o galho, quebrado, na varanda do Várzeas. Sou macho: "Ela é que queria dar pra mim". Nenhuma cobrança. Perdoáva-mo-nos todas as nossas dívidas. Fred is dead.

Paulo Hesse parou o Jaguar na calçada em frente e vem na nossa direção. Victor ri me focalizando. Hesse senta na terceira cadeira da mesa e joga a bolsa que sempre carrega na outra, bolsa cheia de Marlboros, um ocasional pó, e, há quem diga, de uma pistola e de milhares de dólares da cia, que, na ansiedade crítica da nossa esquerda, paga diariamente aos lacaios. Não vou dizer que não sabia que se conheciam, pois estão se divertindo com isso antes que eu abra a boca. O silêncio é de graça, menos na polícia.

"Ois", "his", uísque, vodca, o garçom não entende o bourbon de Hesse, é olhado como um repórter que iniciou uma matéria com "realmente". Hesse explica, insultando pela paciência. O didatismo de Hesse nos fez correr a Fannon, Mandei, Marcuse, Adorno e Benjamin, 1960-1964, quando era o colunista de esquerda da nossa geração. Ele me espia meio sobre os óculos, pesadíssimos, que deixaram marca no septo, olhos parados, de ferrete, boquinha de bebê, "teus lábios não negam", que estica, alargando as bochechas inchadas, o jeito roliço que nenhum alfaiate ou "dieta de astronauta" conseguiriam alongar, alguns acham que é bicha enrustida, duvido, homossexualismo, até em pensamentos, exige um certo abandono, e a maneira impostada de falar, que o álcool e os quatro maços diários de Marlboro aliviam do teatralismo, em troca de bronquite, enfisema e câncer a caminho (esperadíssimo nas esquerdas), o riso é um fecho éclair, que não engasga, abre ou fecha, e uma atenção que acompanha pau a pau a de Victor. Não era meu programa para hoje.

Hesse me paga quinze mil pratas. Pego um free-lance ao menos por mês, dezoito milhas total. Sobrevivo escrevendo sobre cinema, que, em princípio e em geral, detesto. Já houve manifestos de jovens cineastas brasileiros, não tão jovens assim, beiram os quarenta anos, "porque não gosto de nada". Não é bem isso. Admiro-os industrialmente. E cometeram um erro tático, pois o dono do jornal os considera "a serviço do Kremlin", o que me consolidou a posição e o salário acima da tabela. Ninguém mais me empregaria numa base fixa, apesar de eu ser celebridade nesta província. Sou celebridade porque duro e, no Brasil, quem dura, perdura. É que "briguei com todo mundo", pré e pós-1964. Não fiz auto-de-fé. Mas não me lamurio e saudosismo me dá engulhos. Saí fora. Várias prisões depois, perguntas de crediário ou de Pestalozzi, do tipo se escrevi artigos que assinei, me arquivaram, "doutrinário marxista", "membro proeminente do Partido Comunista Brasileiro", o que é falso, tenho visto de entrada nos eu A, e "inofensivo", o que é verdade. De Queimada escrevi: a fome não cura o mau hálito. Nenhuma bronca. A ironia é um vício secreto na pátria amada.

 

Homem de visão, 1965

Hesse se integrou publicamente no sistema já em 1965, e a mulher dele, Sílvia Maria, que chegara a ter sargentos jantando em casa, "dente de ouro não vai com fiapo de galinha", em 1963, reassumiu o que era, o que sempre foi, em verdade, até quando, pré-1964, visitava desproteinizadas future mamans na Santa Casa e similares, estabelecendo lisonjeiras comparações entre o lugar delas e a manjedoura em que Jesus aterrissou. Dizem que se amarrou a Hesse porque achava que o comunismo vinha, garantindo assim a cabeça da família e talvez alguns comissariados, mas, em 1964, grávida, sua mãe recém-morta, e carregando também o peso do exílio do marido, agüentou firme, sem perder a classe, em Paris. A posição nunca esteve em perigo.

Não que Hesse seja pouca porcaria, socialmente. O nome alemão passa, porque os avós foram colonizadores e não imigrantes, Country, Jóquei, "não vamos mais", e, pré-1930, "antes que os gaúchos amarrassem o verdadeiro líder deles no Obelisco", chás de senhoras no Copacabana Palace. A segunda geração casou com dinheiro e nomes respeitáveis, reproduzindo-o e reproduzindo-se, respectivamente, num avanço maciço ao centro do tabuleiro de, xadrez. Encampados em 1943, apud Hess, apesar do baque, fizeram boca de siri sobre os simpatizantes nativos de Adolf Hitler, cujos nomes estavam num banco alemão que providencialmente pegou fogo, permitindo a vários insuspeitados fênixes se alçarem à liderança da luta antinazista. A discrição da família garantiu-lhe graças plenas do "milagre alemão", a partir da Guerra da Coréia, e não do Plano Marshall, fracassado, o que Hesse explicara a pais, sogros, et ai., inutilmente,

claro, pré-1964. E daí a um lugar caboclo de destaque na cruzada anticomunista de Dulles & Adenauer, bem mais lucrativa que as predecessoras medievais, assim como o germanismo foi um excelente cartão de visitas em transas na área árabe da opep, pós-1973. O background familiar, segundo psicanalistas de biribinha de Petrópolis, seria a causa do comunismo do filho, "revolta contra os pais, don't y'e know", e, batatolina, também a explicação marxista da volta de Hesse ao aprisco, pelos esquerdistas rejeitados em 1965. "Ele sempre foi meio nietzschiano", me disse uma moça no Alvaro's, enquanto eu consumia dionisíacos pastéis.

Essa volta, tópico de escândalo imorredouro junto à "nossa gente", não foi um himalaia, e, sim, um modesto, devagar e sempre, dedo de deus. Sílvia Maria, por exemplo, não deu à Nova Ordem. Uma irmã mais moça, Maria Amélia, quimicamente possessa quase todo dia, "muito saída", levou uma coxeada de um alta patente, enquanto a "senhora" do dito se concentrava num fio dental, em jantar de rapprochement, promovido pelo sogro de Hesse. Não passou disso. E ela disse a Hesse, rindo, que achara o general, o coroa, "engraçado, porque ainda vai de coxas, o que é puro retro".

Sílvia Maria se deu, na medida, à Nova Ordem, convidando-a, em substituição aos sargentos de antanho, num salto qualitativo que Trótski entenderia, à casa no Cosme Velho, casa célebre que os colunistas sociais eulogizam sem nunca terem entrado, privilégio, a entrada, em "tempos normais", da família e equivalentes, de alguns nomes antigos que não se alardeiam vulgarmente, de certas fortunas iguais ou maiores, se "legítimas", o que exclui empreiteiros e especuladores na Bolsa, e, às vezes, de íntimos de Hesse, que me incluiu sem consulta prévia, não protestei porque Sílvia Maria me olha como se eu fosse um dedo na goela em manhã de ressaca, o que me diverte, moderadamente. Perdi o direito de acesso, em 1969.

O sogro é um homem triste desde a viuvez, em 1964, na noite precisa do "acionamento do dispositivo militar do governo", que broxou sur place, mas coincidiu com o toque de recolher da mulher, queimada de cobalto, a quem o monsenhor da família garantiu clima mais ameno no céu, onde todos estavam já de prontidão, dispensando-se o R.S.V.P., tal a expectativa. Ela expulsou do quarto família e o chefe do cerimonial divino, recebendo Hesse a sós. Chamou-o, pela primeira e última vez, de "meu filho", coquetemente. Talvez o chamasse de filho de outra coisa, se soubesse o que o genro vira e ouvira no Palácio das Laranjeiras, donde vinha, "volto já, minha sogra está abotoando", a boa notícia infelizmente sendo divulgada dia seguinte quando a mulher fazia hora num terminal do São João Batista, o "meu filho" não comparecendo ao bota-fora, porque se mandara alhures.

Segurando as mãos do genro, ela pediu uma graça (sic). Hesse fica totalmente abúlico em face de doentes, mortos e feridos, uma vez visitara uma ex, recém-torturada, e lhe faltou coragem de entrar no quarto da moça, deixou dinheiro num envelope, devolvido, bilhete anexo, acusando-o de "comer no banquete da ditadura", e, algemado pela sogra, sentiu um calafrio, registrando apenas que sentira mesmo um calafrio, o que só imaginava existir em romances do século XIX, junto com febre cerebral. A mulher queria que Hesse matriculasse o neto ou neta, "que não vou ver", no Santo Inácio, o de 1964, ou no Sacré Coeur de Jesus, para contrapor os ensinamentos da Igreja à avassaladora influência intelectual do pai, sorriso de mágoa deleitosamente assumida, todos nós temos de carregar nossa cruz, etc, etc. Hesse agüentou as unhas na pele, uma vontade passageira de fazer cocô, e, topando tudo, escapuliu, "pensei que depois de me pedir uma graça ela ia cantar a Tosca, fui aluno do Santo Inácio, você também, é uma vacina, what's the fuck, e já comi uma porrada de meninas do Sacré de Jesus, que me perguntavam sobre o Reich".

"Mas não te comoveu picas?"

Quando Hesse e Sílvia Maria iam casar, a velha não jogou o comunismo do noivo na cara da noiva. Louvou, foi dessas que "louvam", o "idealismo da juventude de hoje que procura corrigir injustiças", lamentava que Vargas houvesse impedido a geração do marido de dedicar-se à "coisa pública", obrigando o velho a tornar-se um dos maiores advogados de multinacionais no país, o céu não conhece fúria igual à de um idealista rejeitado, "o problema é discernir o que é justo e possível", Sílvia Maria enfrentaria um casamento difícil esperando Hesse acordada toda noite, ele na redação até de madrugada, e depois nos bares entre políticos e jornalistas, "no álcool e fumaça", ou seguiria "de pacotinho" atrás dele "naquele ambiente estranho", encontrando a gente horrorosa que as celebridades atraem e as ordinárias das liaisons passageiras de Hesse, sem importância, qualquer rapaz solteiro aproveita, "agora essas mulheres são impossíveis de conter, produtos de lares desfeitos, da falta de âncora religiosa ou de tradição social decentemente preservada", não era esnobe, em absoluto "alguns de nossos amigos vieram de lares humildes e subiram na vida à custa do próprio esforço", achava graça nos grupos políticos, pessoas de todos os tipos e procedências, muito educativo, "mas todo dia, a todo momento?" Sílvia Maria estava acostumada a um círculo específico, "não somos melhores que ninguém, somos de uma certa maneira", com valores e ideais entranhados desde o berço, pondo acima do resto a alegria e a riqueza da vida em família, para que Hesse não teria tempo, ou inclinação, como tribuno "populista", "acredito na sinceridade dele. . . gostaria que fosse menos desabrido, nenhum de nós grita aqui em casa nem quando não tem razão", Sílvia Maria, vinte e quatro anos, sempre fora mais adulta que os irmãos, "nos entendemos tão bem porque você é muito parecida comigo".

Sílvia Maria informou à mãe que precisava casar. A mãe, impávida, indagou se o Dr. Pedro Rezende, médico e amigo da família, concordaria. O "tio" Pedro confirmara. Em 1 de março, João Goulart enviou mensagem revolucionária ao congresso nacional. Em 5 de março, os pais de Hesse subiram a primeira vez ao Cosme Velho. O pai exagerou um pouco no "por favor" e no "muito obrigado". A Sra. Hesse procurou descobrir, perplexa, o esquema da decoração, o esquema sendo que não havia esquema. Nada sabiam. Hesse não se dera ao trabalho de avisar do casamento. O pai não se surpreendeu, porque não se surpreendia mais com o filho desde que lhe perguntara o que era aquele resto de sal numa tampa de latrina, "snuff, mein Führer, aliás snow, Erythroxylum cocae, ou cocaína, para você, quer uma prisota?" A Sra. Hesse esboçou um "que bela surpresa", foi interceptada em tempo pelo marido, que levara anos ensinando-a a não bater os calcanhares ao cumprimentar os outros, o que permanecia hábito de famílias menos evoluídas de Blumenau. O pai de Sílvia Maria tinha o talento de falar precisamente no diapasão de cada cliente, e ofereceu a mater Hesse um licor levíssimo de senhoras e a pater Hesse um scotch duplo, temperado em pouca soda, restaurador, contendo, na bica, um eventual über alies que o outro descobrisse na união das duas famílias, que em comum só possuíam dinheiro e um razoável estoque de metralhadoras, rifles, revólveres, munição e mantimentos, que seriam revendidos na baixa depois de 1.° de abril.

Em 10 de março, o casamento ocorreu numa bela igreja dominicana moderna, em São Paulo, escolha do noivo, donde os nubentes se mandaram para a casa de um general do III Exército, no Paraná. "Ninguém" compareceu. O dops, se presciente, teria economizado muito esforço e dinheiro nos doze anos seguintes, recolhendo logo a maioria dos convidados. O pai de Sílvia Maria assistiu a tudo às claras, discreto, ou sorridente, ou delicadamente emocionado, nas deixas certas, que nunca perdera nos tribunais, no jantar do "Homem de Visão", no Colony de Nova York, no Maxim's de Paris, etc, etc. A mãe ficou atrás de uma pilastra, não vendo o altar, mas ouvindo "uma desclassificada vestida de cangaceira", dizendo a "um mestiço cuja carapinha não via água há dois meses", que aquela igreja era legal e daria um teatro do caralho. Dores horríveis na saída confirmaram o que já sabia, sem ter avisado a ninguém da família, mas não telefonou sequer ao Dr. Pedro Rezende, que, mesmo depois de ela morta, nunca mais foi convidado ao Cosme Velho, ouvido ou cheirado, porque não alcagüetara à velha a gravidez de Sílvia Maria.

Não fiquei sabendo se Hesse se comoveu na morte da sogra. Não sei de muitas coisas.

Hesse passou pela Iugoslávia, não lhe deram pelota, não era sequer membro do Partido e, sim, um "ultra", e foi para o apartamento dos sogros, em Paris, os primeiros seis meses, sozinho. Exilado voluntário, preventivo, evitou exilados compulsórios, "quando ouço a palavra 'autocrítica' sinto vontade de puxar o revólver", excetuando algumas meninas que queriam comer o "nosso guru", que se comeu, comeu quieto.

O sogro, no Rio, explicava a nova situação a clientes americanos, "I think material inducements won't be neces-sary anymore. You are now dealing with serious and idealistic people". E absorvia as nuances da nova situação, trazendo ao Cosme Velho generais, almirantes, brigadeiros e udenistas sobreviventes, nuances que guardava para si próprio ou distribuía seletivamente (a need to know basis) aos americanos, era um mestre na dosagem. "Afogou as mágoas" da viuvez no trabalho e apoiando Sílvia Maria, e ela se ocupava recebendo em lugar da mãe, "essa moça frágil em estado interessante, órfã de mãe e privada do marido" impressionando vivamente os líderes revolucionários, o que não decepcionou o velho. Todos admiravam a coragem de pai e filha na adversidade. Coragem que no caso do velho não seria tolerada pelos jacobinos do movimento se soubessem que dava fuga a torto e a direito a oponentes do sistema, fiel à máxima nacional de que não há nada como um dia atrás do outro.

Ele comboiou Sílvia Maria e uma tia disponível a Paris, "na primeira oportunidade". Encontraram o apartamento vazio, cartas e telegramas fechados, na mão da concierge. Sílvia Maria caiu em pânico imaginando Hesse sob a cortina de ferro. Hesse telefonou de Zurique, "eu quis ficar um pouco sozinho, pensando". "Ótimo, meu filho", e o velho que sempre tinha o que fazer em Zurique, visitou-o, a sós, quando conversaram muito. A neta, Tereza Maria, foi matriculada, no berço, no Sacré Coeur de Jesus.

Hesse reapareceu na imprensa duas semanas depois da quarta-feira de cinzas de 1965, sugerindo que a "tecnocracia triunfante" poderia "escrever certo por linhas tortas". E "Os problemas políticos brasileiros nasceram com a Velha República. Rui não só falava mal várias línguas como lia pior. Resolveu copiar a Constituição dos eu A, descentralizando o que o império centralizara corretamente, quando o necessário era modernizar-lhe a estrutura e torná-la eficiente, o que os EUA começaram a fazer desde Jackson e o que Lincoln concluíra a fórceps. Nenhum estado moderno, da Alemanha de Bismarck à urss de Stálin, escapou desse processo quase sempre doloroso de centralização. A revolução de 1930 e o Estado Novo, ideologia à parte, foram avanços nesse rumo, mas na carroça do populismo. Já a tecnocracia triunfante abjurara sentimentalismos. Arrancava em pista aberta e confiante no seu modus operandi específico. O importante seria definir os objetivos da inevitável e desejável centralização e nada mais prematuro e voluntarista do que a esquerda recusá-la in limine. Se a tecnocracia completasse a revolução capitalista brasileira, já estaria historicamente justificada. E é o que se propunha sob o impulso bonapartista das Forças Armadas".

"Esse cara quer restaurar a monarquia", disse uma atriz que Hesse esnobara, na Montenegro. O PC do b declarou que Hesse tinha aderido. O pcb aconselhou prudência e análise. No Cosme Velho, o sogro fez "judiciosos comentários", enquanto lia o artigo em voz alta a um grupo escolhido de oficiais, se demorando em detalhes sugestivos de verbetes sobre a palavra "voluntarista" e a personalidade de Jackson, este passível de ser confundido com o homônimo do pandeiro, e a "complexa analogia" entre Bismarck e Stálin. Peidava feio em silêncio, enxofre puro, o que jamais ousara de público quando a mulher era viva, mas os convidados ouviram em impassividade estóica, permeada de latidos de presumível protesto do cocker spaniel da família, a quem tudo se permitia pois companheiro inseparável do viúvo. O velho arrancou de um general a opinião de que sempre considerara Rui "um moleque pernóstico, um demagogo que caluniara as Forças Armadas". Os outros não se comprometeram, dizendo-se apenas agradavelmente surpreendidos que Hesse compreendesse tão bem os objetivos da Revolução na área política e econômica, embora fizessem a ressalva de que continuavam empenhados em restaurar a democracia no país, uma vez cauterizados os bolsões subversivos, o que imaginavam levaria uns trinta anos.

Quando o primeiro ditador insistiu em eleições diretas, Hesse respeitosamente discordou. Revolução a prazo fixo "é quimera, o que os bolcheviques nos ensinaram melhor que ninguém". Lênin, em 1921, quisera consolidar a "revolução política de 1917, conciliando antagonismos, via a nep" — copiosas notas ao pé de página começaram a aparecer nesse tempo. "Mas, em 1929, Stálin fora forçado a desencadear uma segunda revolução, modernizando industrialmente a urss. E uma terceira, nos expurgos de 1934-1939, em que sintetizou as duas anteriores, extirpando o negativo, o retrógrado e o aventureiro do aparelho do Estado. No Brasil, a revolução de 1930 se esvaiu no populismo autoritário do Estado Novo e no pseudoliberalismo pós-1945. Os homens de 1964 retomavam a penosa cirurgia, apenas demarcada pelos tenentes, e adiada sine die por Vargas e sucessores com cataplasmas e analgésicos, enquanto a lesão estrutural da miséria e do atraso permanecia intocada."

A Esquerda caiu sobre Hesse. No Cosme Velho, a maioria dos oficiais já o reconhecia um "fino intelecto", e o sogro apresentou-o a empresários americanos. Gringos discretos e até humildes, pois admitiam que capital e know-how eram insuficientes sem o elemento humano. "Os brasileiros sabem o que é melhor para os brasileiros." E pediram aos revolucionários, esperando não importuná-los, que indicassem nomes de colegas fora da ativa ou "em vias de", que quisessem auxiliá-los, trabalhando na iniciativa privada na grande arrancada pela recuperação nacional. Fez-se fila de candidatos, prontamente atendidos. Business Week dedicou um editorial aos "surprising" e "gratifying managerial skills" de tantos Brazilian officers, atribuindo-os à formação democrática de nossas Forças Armadas, diferentes das do resto do subcontinente, em que o oficialato provém de castas aristocráticas.

Hesse insistia na tecla da revolução capitalista liberal. Comparou o populismo, em caduquice, ao tzarismo. Em 1904, Lênin, na controvérsia sobre quem exploraria o petróleo de Baku, optara pela Shell contra uma eventual "tzar-brás". E Marx apoiara o genocídio dos pele-vermelhas e a anexação de mil milhas quadradas do México, em 1848, pelos civilizados norte-americanos. Não que Hesse sugerisse o infringimento do monopólio da Petrobrás, uma grande conquista das Forças Armadas, "o que o marxista Nelson Werneck Sodré demonstrara de maneira irrefutável". Apenas Marx, Lênin e Hesse acreditavam que modernização e eficiência eram intrinsecamente revolucionárias. No Cosme Velho, o sogro tirava folga dos adendos à metralha intelectual da Europa, ajudando alguns comandantes vitoriosos das províncias, recém-promovidos, a instalar-se no Rio, encontrando-lhes casas baratíssimas com financiamentos a "perder de vista". Reconhecia-se um modesto expert em pechinchas imobiliárias, "a questão é saber onde procurar". Hesse desembarcou no Galeão num dia de pouco movimento e muito calor. Não foi incomodado.

Aceitara uma coluna duas vezes por semana no jornal que agora dirigia a vinte e cinco mil cruzeiros na carteira e trinta e cinco mil sob o balcão. Não procurava ninguém fora

da família, o sogro e ele tornaram-se íntimos. Escrevia o dia inteiro. A diferença entre a revolução comunista e a brasileira é que a "comunista estacionara num hegelianismo meia confecção, de síntese burocrática e coletivista. A brasileira se abrira ao pluralismo e ao experimentalismo". Na noite que a Redentora relegou o Outubro ao Museu Histórico Nacional, Hesse saiu e bebeu. Uma moça que apanhou no Antonio's e comeu, mijou nele, quando Hesse dormia, levando bofetadas fortes e até de cinto, "valeu a pena", ela anunciou, não se sabe se a trepada, o pipi, o sadismo, ou as três coisas. Semanas depois, Hesse foi convidado à primeira de uma série de conferências na Escola Superior de Guerra e em federações industriais.

 

Meu peito está quente e molhado quando acordo, e Raquel, de mão fria, me apalpa protetoramente e me chama de "meu anjinho". Lembro o encontro com Victor e Hesse, enquanto acendo um cigarro. Hesse e eu somos tão diferentes de Victor que a presença dele me inquieta e percebi que Hesse partilhava a inquietação, que não consigo definir. "Que que há, meu anjinho?" "Nada, é o pesadelo habitual, marcando ponto. Dorme. Vou tomar um banho que suei praça." Sempre achei que dois na cama é demais. Meu reino por uma catapulta.

 

A noite anterior, 1976

Nosso mundo é insano e corrupto, não importa o ângulo de visão, e não pode ser analisado ou compreendido, só experimentado, fragmentariamente, no varejo de nossas sensações e emoções. Os modelos sociológicos, o babalaô individual, etc. não alteram a certeza nervosa, central, de que vivemos um apocalipse. Burguês, claro, mas que somos nós, nada gestamos de diferente. E aqui a lógica serve ao irracionalismo. O burguês é senhor de "algo mais", de que nenhuma classe condenada dispôs. Aqueles finos casais de Hollywood, Luiz e Maria, "não, Maria, hoje não quero", dissemos a Norma Shearer, na guilhotina, no Metro Passeio, e Nicolau e Alexandra não hesitariam em mandar que lacaios acionassem o gatilho nuclear, se existisse. Hoje, existe, e lacaios uniformizados e cheios de penduricalhos o acionarão contra classes que queiram substituir o burguês, meu semelhante, e não restará macaco neste vale de lágrimas.

À noite, às vezes, o meu fel me é doce. Bebo e cheiro, logo finjo que existo, que ninguém, porém, espere coerência de mim.

Nenhum efeito tem uma causa só, disse o médico vienense, "sinto falta de uma coisa quente entre os lábios", Schadenfreud, he, he, he, eu juro que não quis comer mamãe, seu padre, cuem cuem, o ruído provém de uma trouxa de roupa suja coberta de carapinha encaracolada, olha aqui, ô nega do cabelo duro, em vez de fazer zeppelin do meu saco, charlando e cartando sobre qual é o pente que te penteia, você poderia escolher um alisa bem ou um afro, aderindo ao novo orgulho da raça, hubris ou hybris? Cuem, cuem, cara e voz de puta de dez anos, "são todas umas putas", a coxa da mulher de alguém encostou na minha, acontece, it's not because I couldn't, meu uísque está chocho, o garçom já colocou outros tracinhos da garrafa, acendeu o cigarro do doutor, minha conta pulou Cr$ 60 ou Cr$ 90, fora o se colar, colou.

"Eu acho este filme último do Bergman meio hermético", me diz a mulher trazida pelo irmão de Sílvia Maria, o chico, todo caixa alta porque exclui os chicos das ordens inferiores, a moça, que eu saiba, não é caso homologado ou promessa daquela capela no subúrbio em que a família e pares casam até que as filhas dos empreiteiros descubram o endereço, ninguém deu uma palavra a ela à parte o "como vai", as outras mulheres computaram rapidamente as medidas, roupas, procedência social e futuro sexual, os resultados da pesquisa só serão conhecidos onde Lubitsch afirmou que nós homens nunca entraríamos, porque não conhecia o que o Nelson Rodrigues andou fazendo no Damas de A Brasileira, hoje banco, et pour cause. O chico agrada a irmã mais velha, Maria Tereza, os nomes da família têm a mesma variedade que os de partidos de esquerda. Maria Tereza é minha chapinha. Veio de Quincas, o Quinquinzinho, o poeta e músico Joaquim, autor de Vocação Mulher, reeditado ad maiorem, etc, segundo admiradores, ad nauseam, segundo os críticos, adiposa e esteatopigiosa ruína baiana, que quando ri dois queixos e duas barrigas entram em erupção. Nenhuma lava. A poesia é o homem.

Maria Tereza encostou o irmão nela de jeito a não amarfanhar o vestido e beija-lhe a fronte, the touch of your lips upon my brow, ele aceita passivamente, bebê que sabe que mamará sempre, dispensando choro. A coxa na minha tem um pé que se enrosca no meu. Tranco. Amanhã a gente esquece de lembrar.

A moça em trânsito mantém olhos luminosos sobre mim, um sorriso de masse de manceuvre, me chama de Winston, he, he, he, na casa dela pergunta é sempre respondida, estou quatro uísques na frente do poeta, que é páreo duro, atrasou-se emaranhado no cabelo duro da nega, que acha "do caralho", Maria Tereza já se habituou à ubiqüidade e versatilidade do "caralho", pós-1968, em que fecharam a política e abriram-se os costumes, o que não é acidental.

"Você não acha este último filme do Bergman meio hermético?" Que história é essa, você? Call me madam. Esta criatura de ocasião persiste em me dirigir a palavra. Não sabe que aqui moças desconhecidas espetam que os cavalheiros iniciem a conversa ou lhes concedam o nihil obstat, a menos que tenham pedigree reconhecido ou sejam personalidades por conta própria, como Wandinha Vinde a Mim as Criancinhas, na mesa em frente, que já me viu e fez coelhinho, cheiradíssima, e, quarenta anos, ouve embevecida um rapaz, circa vinte e um, falando de planchar, Wandinha, numa onda que nunca se viu na praia.

"Atendendo a insistentes pedidos, eu acho que o Bergman está inventando que a classe média pensa, sente, que é gente. Só se for na Suécia, mas lá não tem negro, mulato, mestiço, índio, mineiro, nordestino, paulista, cuem cuem, e a embaixada americana cuida exclusivamente de acordos comerciais. Aqui não dá pé. Quem é que mandou você botar outro aí, seu?"

O garçom pediu desculpas ao doutor. O uísque fica assim mesmo. Uma escaramuça vencida na guerra perdida.

"Eu sempre gostei dos seus ensaios, mas agora em pessoa vejo que você é um racista e reacionário."

Nunca houve tanta gente de esquerda como hoje, que não há o menor perigo de que a esquerda chegue ao poder.

O Chico emergiu da Electra do Cosme Velho, ora sita no Morro da Viúva, e está de pé exatinho atrás da cadeira da moça, as mãos esfregando de leve os braços dela, o pescoço caído languidamente a direita, sorriso para mim que pode ser manifestação rotineira de charme, ou déjà vu tolerante, que minha vítima não vê, segura o braço dele, absorvendo o dengo quente, protetor. "Hugo, meu querido, manéra cumpade."

Saem e fazem macacadas discretas na pista. Ela declara que sou grosso, o chico, "que nada, o Hugo é ótimo, esquece", a moça é iniciada na permissividade intergrupal, de que conhecerá outros exemplos interessantes, se se demorar, o que dormirá no ombro dela, babando, o' que encarnará em alguém ou algum assunto à histeria ou ao sono profundo sobre a mesa, o íntimo instantâneo, "você não quer dar uma trepadinha?", e os diversos serviços secretos atuando por baixo da toalha.

Cuem Cuem cessou de importunar um certo Antonico. O público aplaude, presumivelmente aliviado. Solto meu pé, já dormente, vou ao banheiro, restaurar energias. Esbarro numa jovem vestida e maquilada como viado vestido e maquilado como mulher, que não ouve nem espera desculpas. O poeta me pega pelo braço e me faz sentar entre Maria Tereza e ele. Tofraco ou será que os profissionais do carinho, do "que coisa linda, que maravilha", sempre agarram a gente?

"Teu amigo Paulo Hesse quer que eu escreva minhas memórias no jornal. Você acha que devo aceitar?"

Maria Tereza solta um Qui-NC-as, ao ponto. O poeta já aceitou. Quer minha cumplicidade. Como trabalho no jornal fica ruim eu dizer não, porque admitiria que sou corrupto. Se disser não explicando que meu caso é especial, anuncio a insignificância do que escrevo, cinema não conta na diretoria, e sublinho minha dependência pessoal de Hesse. E é muito chato discutir Hesse em frente de Maria Tereza que é cunhada dele.

Ensaio alguma sandice do tipo "não é onde se escreve mas o que se escreve que importa". Meu lábio superior se recusa a permitir a evasão. Deduzo mais uma vez que preciso ir ao banheiro carregar as baterias. Maria Tereza põe a mão em cima da minha. Cheira bem. Ela não é o sexy normal da praça. Não aveluda a voz. Não pinoteia. Não usa o cabelo como capa de toureiro. Não ofega de busto prometendo plena satisfação embaixo ou reembolso garantido. Não anuncia com os olhos, "vejam minha vivacidade". Parece uma noiva de vampiro pouco antes da dentada. Debato comigo mesmo se um chicote naquela pele branquíssima, fora de série nos nossos trópicos ostensivos, marcaria vermelho ou violeta, o amor que não ousa dizer o seu nome, desde que o outro deu de berrar. Hesse, há o rumor, é chegado.

Maria Tereza lembra ao poeta que meu cunhado é um amor, que empregou vários hóspedes transitórios das guarnições militares e que não entende essa assinatura contra ele. Quincas presta atenção total. Ouve muito bem mulher. Ouviu tanto as seis que se casaram com ele que algumas se surpreenderam já despidas na cama, ainda falando "do Rilke", enquanto o poeta lhes introduzia o pífaro leiteiro, meia bomba porém constante e funcionalmente retardado nas emissões pelo consumo diário de um litro de uísque, e, no dia seguinte, Quincas mudava-se para a casa das ungidas, continuando atento e compreensivo quando perguntavam, "meu benzinho você acha que vai dar certo, hein, sei lá, meu filho só agora deu baixa do sanatório por causa da minha separação do pai dele", o poeta sorria, terno, apenas um queixo e uma barriga trepidando, e afogava as dúvidas no violão, com o último som universal que compusera, cujos acordes e letras todo o Brasil conhece.

Voltei do banheiro para agora cheirar Maria Tereza que continua doutrinando Quincas. Dou apoio, embora saiba que Quincas dispensa a promoção do liberalismo trabalhista de Hesse, ditado pela virtual impossibilidade técnica de se fazer um jornal com redação direitista, no que instruiu o dono, "Noite Ilustrada", ou, pós-opep, Sadat, o patrão tendo defendido o copidesque de um general que o acusara de permitir no jornal "um golpe de mão dos comunistas", porque dezenove dos vinte copidesques têm ficha no dops, a que Sadat respondera, "só sai publicado o que eu quero", acrescentando, mentalmente, "e o que a censura deixa", transmitindo a resposta altiva, não o pensamento "roupa suja se lava em casa", a colegas de reuniões da sip, lendo o discurso de sempre, escrito por Hesse, em que afirma não se sentir pessimista quanto ao futuro da imprensa livre no Brasil, "apesar de alguns obstáculos reais, porém, acredito, passageiros, prefiro ressaltar os aspectos positivos da Revolução, o saneamento financeiro, o volume crescente de investimentos produtivos da iniciativa privada, a confiança de que o Brasil goza na comunidade mundial de negócios e o ritmo inabalado de desenvolvimento do país", coisas assim, de que os cucarachas, menos os venezuelanos petrolíferos, se babam de inveja.

Quincas tem medo é dos mandarins da ética esquerdista que estabelecem cotações de radicalismo no perímetro que vai do Nino's ao Antonio's, que partilham a mesa do poeta, ou se alojam nas vizinhanças, ou se dependuram momentaneamente no pescoço dele, qual cobras, na romaria do pipi, "tudo bem meu querido queria bater um papinho com você".

As cotações são orais, exclusivamente, e o tema invariável, o "livro texto", é a produção nossa, dos esquerdistas com acesso ao público. Os mandarins não dão essa confiança a ninguém, de se fazerem publicar, de ficarem on the record. Atingiram tal sofisticação política que simplesmente ignoram a classe dominante. O que se pode esperar de capitalistas exceto que se comportem a caráter? Alguns nem trabalham, reservando energias para o advento do socialismo.

Não que todos sejam vagabundos. Há os poetas e cronistas da mulher, dos vilarejos de onde vieram, cheios de delícias simples, de que se privam vivendo na cidade grande, adoram a praia ou a montanha, divulgam um estoque aparentemente inesgotável de bons mots de figuras exóticas masculinas, ou promovem mocinhas "carne fresca", em pouco tempo convertidas em picadinho, agonizam nas derrotas do Fia, ou do Flu, ou do Botafogo, e participam de todas as alegrias do povo, das cabrochas estalando na Avenida à espirituosidade de garçons favoritos e respectivas empregadas. Detestam o diretor do trânsito, qualquer um, e empreiteiros em geral, espinafram a crueldade de síndicos e a estupidez de técnicos de futebol. Enganaram completamente a repressão. Nunca foram presos.

Guardam exclusivamente para nós o didatismo crítico e a inabalável coerência política. Já nos desprezavam pré-1964, quando havia a escolha livre, na prática, no "nosso lado", entre populismo, caudilhismo, liberalismo, ou misturas. "Tudo reformismo burguês, desconversa." O PC desmoronara em 1956, certo, "agora e o Fidel?" Conciliávamos, estava na cara. Em 31 de março, Hesse, desesperado, numa coluna, "incitou" os marinheiros a prenderem os oficiais revoltosos. Recebera o telefonema da mulher de um banqueiro, mandarim-adjunta, "já é tarde demais, não custa nada, não é seu filho da puta? eu te manjo". Depois de 1964, então, em que "todos tiraram a máscara", nem pensar. Em 1967, escrevi um editorial desmontando, pulverizando, eu achava, uma lei de exceção. Tentei discuti-lo numa cobertura da Vieira Souto. O mandarim dono da casa, recém-casado com a proprietária do imóvel, nem lera, e sugeriu que "uma pessoa do seu talento e combatividade" esquecesse "essas coisas", e, ao me servir um manjar cremoso, declarou, "a solução é a luta armada", no que foi secundado por um especialista em relações públicas e publicidade, futuro consultor técnico da campanha "Brasil grande", em que expropria-ria dinheiro do sistema, "o que é válido".

Quincas, de formação PC-Front Populaire da II Guerra, desengajou-se do "clube" no terremoto anti-stalinista de 1956, sem amargura confessa e mantendo-se sob o cabresto das "forças populares". Em 1969, recusou o novo freio nos dentes, negando-se a submeter um livro de versos à censura, e deu uma entrevista na Bahia, de repercussão internacional, porque era publicado em "n" línguas. O governo desistiu e não puniu.

Os mandarins interromperam alguns minutos a celebração da guerrilha urbana, que dias antes matara um lacaio da burguesia, o guarda de um banco, a salário mínimo, mulher e onze filhos num subúrbio distante de Ipanema, e comentaram que o sistema usara a entrevista do Quincas no mundo para mistificar que não existia censura no país.

Pagamos e nos mandamos, e uma mesa grande, que reconheceu Maria Tereza dos jornais, notou que era a coisa a fazer, sob o protesto tímido e ignorado de algumas mulheres que queriam se espalhar um pouco, o chico e aquela moça continuarão dançando em botequim idêntico mas não o mesmo, o que talvez encerre uma sutileza digna de Wittgenstein, e um casal, ela o meu ex-pé enroscado, se despede, pois o bebê os acorda no eu da matina, o marido me confidencia, ao nos abraçarmos. Ele é um advogado craque em corporações, que gostaria de ser pintor, vivendo em agônica dicotomia, a que resiste bem, parece linho novo, nunca amassado, embora na sinuquinha do Country às vezes fale de "alienação" e da inevitabilidade do socialismo, a longo prazo. Maria Tereza quer comer, Quincas e eu beber, e seguimos os três, ela guiando, não sei, e ninguém fora do pinel confiaria um carro a Quincas, depois das duas da tarde, quando acorda, lavando a boca no uísque debaixo da cama.

Escurinha e pequenininha a cidade, do que não se deve informar aos que não conhecem outras, melhor servidas, 99,7% da população, porque os desencoraja, o ar-condicionado no carro exclui o bafo quente, mas está sempre lá, se botarmos o pé de fora. Deus é um artista acadêmico, nós o transformamos num grafiteiro, jogando lixo nas praias, arrasando montanhas ao nosso nível, enchendo o mar de merda.

Maria Tereza é precisa e cautelosa no volante, como em pessoa. Há esquizofrênicos aos montes, à solta. Carros esguicham à direita e contra nós, somem rápidos, antes se fazendo notar, pois metem farol alto, nos envolvendo e nos ofuscando, Maria Tereza reduz, impassível, farol baixo, eles insistem, aceleram o ronco, socam as buzinas, berram desafiadoramente alegres das janelas, o tupiniquim rasgando a fantasia urbana e de urbanidade que lhe enfiaram, uma camisa-de-força. Em aviões ao estrangeiro cantam "cidade maravilhosa", carregam sempre a taba no coração.

Um porteiro foi encostar o carro de Maria Tereza e entramos "aonde todo mundo vai", umas mil pessoas que se conhecem pessoalmente, ou de vista, ou de ouvir falar, e que dispõem de crédito, ou, mais raro, de dinheiro, ou que se incorporam à nota do próximo, em troca de drogas, adulação, sexo, ou, se muito jovens, a promessa de cessão de prazeres, e, esse o denominador comum, nenhum tem hora certa de dormir. Quincas declara amor a seis tipos sexualmente diversificados, adicionando de quebra um "tudo bem", improbabilidade filosófica superada pela licença poética. Maria Tereza cumprimenta dois de cabeça, deixa-se beijar por um adolescente, ele vem, ela parada, olhos fechados, recebe, não transmite. Eu distribuo alguns "ois" e "obas", sou fluente na língua nativa, sou nativo.

Milagre, milagre, arranjamos uma mesa na casa cheia. Dona Maria Tereza e os doutores Joaquim e Hugo passam pelos aspirantes a habitues, esperando de pé, que fingem não notar. Várias pessoas afirmam que precisam falar muito comigo, concordo, prometo, vamos em frente e sentamos, e Maria Tereza indaga do maître o que ele sugere, o maître maltrata algumas palavras em francês, traduzíveis por bife com batata e molhos e legumes dignos do caldeirão das feiticeiras de Macbeth, um garçom coloca Cr$ 90 no meu copo e no de Quincas, Maria Tereza tapa o dela, Quincas sorri ecumenicamente, bato uma continência avacalhada ao pianista e contrabaixo, Maria Tereza não vê ninguém, todo mundo olha, olhou e olhará para ela, uma vez no mínimo, as mulheres reterão na memória a roupa e maquilagem, material de estudo, os homens se perguntarão "quem está trepando", se consideram os candidatos ideais, se quisessem, "pegava ela pela bunda e essa pose toda virava logo pudim", ao pensamento levantam e alargam os ombros e suspendem o cinto, ou equivalente, e encolhem o estômago. O conjunto toca "mulata assanhada", as moças mais jovens sacodem os ombros e assobiam de leve, um cacarejo multissex se dispersa na sala como vento num castelo de filme de horror.

Maria Tereza se desligou de nós, morde uma azeitona preta e velha, que examina curiosa tentando descobrir o que é, e passa em revista o ambiente, olhos semicerrados, atentos a nada em particular, só encara íntimos, ocasionalmente.

O Quincas duvida que a censura deixe passar o que Hesse pediu, vida política, o "clube", o Front Populaire, quando a coisa esquentou depois da Bocetona de 1935, e "minhas mulheres". Picas. Nenhum de nós coroas fala muito a verdade. Faliríamos ao peso de nossas dívidas conosco e com o próximo.

Quero perguntar ao Quincas o que nunca entendi, por que o pc tentou tomar o poder, em 1935, ano em que Stálin decretou a política do Front Populaire, não-revolucionária, apaziguando partidos antifascistas, depois que se estrepou no pseudo-radicalismo do "Terceiro Período" na Alemanha, em 1933. Falha dos Correios e Telégrafos? Um trotsquismo submerso dentro do Partido? E Harry Berger era mesmo um bukharinista que Stálin entregou a Filinto Müller via o MI-6? Seria inútil. Se Quincas soubesse, não me diria e não que saiba, necessariamente, o poeta foi base, tropa, pior, Gunga Din, intelectual do Partido, a mais baixa espécie comunista, um amigo meu, matemático brilhante, só conseguiu ser empacotador de impressos, em quinze anos de devotada militância. Hoje, calcula pela Standard Oil, de secretária, ar-condicionado, e faz peregrinações luxuosas à corte e outras províncias.

Maria Tereza "voltou", "hi, Quinquinzinho, você vai escrever sobre as mulheres que viveram com você?" Maria Tereza é católica. Casa-se uma única vez, peca-se perdoavelmente em ocasiões selecionadas. Quincas responde que jamais feriria alguém, não é do temperamento dele. Talvez influa no pacifismo do poeta que o contra-ataque seria o aparecimento em cartório, ou na justiça, de uma cordilheira de pensões alimentícias devidas, jóias perdidas em pregos de quatro continentes, contas de colégios e universidades de meia dúzia de filhos, e, até hoje, a nota de internação de uma filha na Vila Pinheiro, onde tentam lhe frear o consumo de bolinhas, o que, manjando eu a moça, eqüivale a conter as bolas.de um "31" depois da tacada inicial. "Quinquim, é melhor você contar as tuas viagens. Se lembra aquela noite no Coach House, em Nova York?" Maria Tereza deixou dois terços da comida no prato, o que é praxe. Alguém é contestado alto, perto de nós, com um "no eu".

"É, eu tinha uns troços engraçados sobre Cambridge. Você sabia que eu estive uma temporada em Cambridge, Huguinho?" O intelectual brasileiro não é marceneiro, nem estofador. É uma bordadeira. Fica sempre no periférico. Uma cantorinha ensaia, em inglês, People, trocando, pres-cientemente, "hunger" por "anger". Anger ali se pode ter de juiz de futebol, ou, nem tanto, dos próprios chifres. Hunger é tabu no território nacional. Quinquim pegou corda, "o inglês, o reitor, Warden, na hora do Deo Gratias deles, troço de protestante, não sei como é que é, em vez de bater o martelo na madeira, acertou o prato e partiu, tal o pileque. . ."

 

Brasileiro profissão esperança, 1960-1976

Hesse, que odeia bares, jantara com o embaixador dos eua, três membros da "Sorbonne", uma dupla americana, o presidente local do que foi truste, passou a conglomerado, a multinacional e ameaça converter-se em transacional, a rose by any other name, e um gregário political officer, dado a ousadias ocasionais contra o regime, offiderrécordi, naturalmente, Sadat, o Dono e o Editor-Chefe do Outro Jornal da cidade, num castelo de pedra, early nothing, na Gávea, onde é impossível apagar um cigarro em menos de cinco mil cruzeiros de cinzeiro, em que o claro ofusca, a sombra é breu, o leve, pesado, o pesado, leve, o excesso despudorado do mau gosto, filho inabortável e incorrigível da riqueza nova, vazia a casa parece inabitada, ou sala de museu interiorano em dia de faxina, é propriedade de um desses empresários que não se sabe ao certo o que empresam, que sonham a vida inteira ser ministros, dando longos plantões ao telefone nas mudanças nos governos, que terminam presidentes de federações de indústria e comércio, "encabeçando" assinaturas sob lista de "sugestões construtivas" aos poderes do momento, móveis e utensílios de banquetes e solenidades de "cooperação internacional", retransmitindo a amigos no Clube Comercial as últimas de cocheira sobre isso e aquilo, têm a memória de um computador de science-fiction, recrutam e orientam neófitos ao "pensamento da comunidade de negócios", compram o silêncio de colunistas irresponsáveis que, felizmente, sempre precisam de dinheiro, são, em suma, pontes, úteis, necessárias, talvez indispensáveis, mas ninguém respeita, depois de pago o pedágio, pisa-se.

As mulheres vieram também. As Sorbonesas ainda não sc acostumaram às alturas apesar de já terem deitado trouxa & mochila há algum tempo, fincam o olho em tudo, tentando adivinhar o preço, conferem e confabulam, infelizes na incerteza, saudosas da simplicidade instrutiva das vitrines da Barbosa Freitas, e, se ignoram as "senhoras" do Outro Dono e Editor-Chefe, virgens de colunas sociais, "não se vexam" de perguntar à Sílvia Maria ou à Sra. Sadat a origem das roupas, de que nunca viram nada igual nos moldes de Gil Brandão ou nos desfiles expostos em Manchete, com as criações dos invertidos em voga. Isso obriga as depoentes a prodígios de acrobacia diplomática, a referências vagas à generosidade de tias recém-chegadas de Paris, pois "sinais ostensivos de riqueza" são um dos tabus do sistema. As Sorbonesas deixam em paz a embaixatriz e a senhora poli-tical officer, porque é sabido que a mulher americana não chega aos pés da brasileira em elegância.

Sílvia Maria não aprova muito as companheiras, exceto a Sra. Sadat, bem-nascida, católica praticante, se encontram em caridades, mãe e esposa excelente, de quem tem pena, porque, não há como negar, é um abantesma, na palavra brutal de Hesse, que nunca mais repetiu, a pedidos, depois que Sílvia Maria perguntou o significado a meu pai, e Sadat, "aquele mulato pachola", gosta de "ordinárias", "ele é definitivamente cacomaníaco, você precisava ver o material que pinta lá no jornal, deve ser parente do Jânio", na definição críptica do marido, que resultou noutra consulta a meu pai, um Aurélio ambulante, enciclopédico, e com uma finesse inencontrável em dicionários.

Sílvia Maria não toma conhecimento da hostess, "que só se nota na entrada ou quando se precisa ou oferece alguma coisa", e a companheira do Outro é idosa e "boazinha", não fede nem cheira, ex-secretária Dele, que ocupou o lugar da mulher legítima, desertora do lar, arrastando com ela um adolescente, antes, curiosamente, amigo inseparável do filho da mãe, imagem que se forma sem malícia na cabeça de Sílvia Maria, que reserva todas as pedras, uma imensa pedreira, para a mãe & esposa pecadora, em Paris, que tem o desplante de mostrar a cara no Plaza Athenée, "não vai durar muito", o escândalo sacudiu a alta hierarquia da sociedade carioca, e felizmente a imprensa mostrou bom gosto nunca trazendo a público a mais leve menção a esse tópico deprimente.

Sílvia Maria considera as Sorbonesas gente "boa e simples", não as receberia "sem mais nem menos", por inexistir mutualidade de interesses imediatos, mas as respeita muito, pela falta de egoísmo e devoção ao patriotismo dos maridos, típicas, aliás, de famílias de militares revolucionários. A embaixatriz é importante, porque é embaixatriz dos eua, se bem que Sílvia Maria reduziria "sombras e luzes" na maquilagem e eliminaria certos adereços, sem falar daquele turbante, "parece Cármen Miranda", e a political officer, cara lavada e escovada e o cabelo amarrado a vassoura para trás, cujo reverso tradicional é o excesso de pintura e o bolo de casamento da Colombo na cabeça, e a loura, enfiada num amarelo, "será que na cia não ensinam a se vestir"?, perguntou a Hesse na descida da casa, surpreendendo-o, o que o enerva ligeiramente, porque presume saber sempre o que se passa na cabeça da mulher, lubrificando periodicamente os antolhos conjugais.

Sílvia Maria não tem opinião formada sobre Adriana, mulher do José Carlos, o rival de Hesse, e a examina e analisa quando pode, a distância, dispensando intimidades, moça baixinha e tostada como as costelas de boi que meu pai devora escondido dela, é o que ele pensa, que lhe fazem mal à pressão, já altíssima, será "segunda infância"? não, é um homem tão sábio e lúcido. Sílvia Maria sente em Adriana uma agressividade submersa, de periscópio à vista, provavelmente gaucherie misturada a pretensões de liberada de classe média, usa "síndrome", "aferir" e palavras no gênero, fala toda excitada e interminavelmente de filmes, música, livros e teatro, coisas que Sílvia Maria considera meros divertimentos nas horas vagas de esposa, mãe, hostess e guardiã dos irmãos, encargo pesado que a Mãe lhe confiara no leito de morte.

Adriana acha Sílvia Maria "careta, carola e coroa" e de um esnobismo revoltante. Não pensa melhor, se admite outros flancos de ataque, das marchadeiras e respectivos gorilas, "o Reich diz que militar nunca tem bom orgasmo", dos agentes do imperialismo, e o pior é Hesse, que traiu. E Hesse a encara de maneira fechada e sonsa, ela se lembra da peste do Tulinho, um menino que lhe beliscava a bunda no primário, e, quando se virava indignada contra ele, encontrava uma cara de santo contemplativo. Não entende porque o Zeca é tão charmoso com esse Hess, um dos apelidos que o "nosso pessoal botou nele", e o Zeca, liberal mineiro, disserta pela enésima vez sobre a latitude do liberalismo.

Adriana é de esquerda, "como todo mundo na praia", ri e esculhamba quando a censura proíbe as músicas do Chico e filmes do Serginho ou do Julinho, que "gozaram os censores sem eles perceberem", ouve, grave e solidária, histórias de capuz, tortura e humilhações outras, juntando o seu "são mesmo uns filhos da puta" ao coro, e redramatiza os papos em benefício do marido, depois que os filhos, Pedrinho e Suzana, finalmente foram dormir. O Zeca se abstém de corrigir certos equívocos de pessoa e tratamento e de adicionar explicações e detalhes substantivos, contrapondo uma simpatia sóbria cuja coda é "nós publicaríamos se não fosse a censura, apesar de o jornal apoiar a Revolução. Sou editor de notícias, você se esquece, não me meto em opinião, seguimos a linha do New York Times, separando noticiário de editorial, rigorosamente". E Adriana esquenta a comida ela própria, empregada àquela hora nem pensar, e o Zeca não agüenta comer no jornal porque pegou uma úlcera desde que assumiu a editoria-chefe, "cafezinho e cigarro o tempo todo, sanduíches gordurosos, problemas permanentes da redação à oficina". Ele sonha em se mudarem para uma casa, o terreno já comprado em Itaipava, que construirão assim que terminarem as prestações do apartamento cá embaixo, e onde o Zeca se dedicaria às paixões da juventude, Machado e Fitzgerald, um glossário crítico-sociológico de Machado, aspecto que só aquele calhorda caolho da Academia abordou, e "nas coxas", e uma tradução decente de The Great Gatsby, "pelo prazer de ter e partilhar", e "talvez cometa um romance sobre minha gente de São João del-Rey, andei fuçando uns arquivos aí, o material é tão interessante quanto o de Cem Anos de Solidão, menos na violência, e não estou me comparando ao Garcia Márquez, que é um gênio". Alugariam o apartamento, "espaçoso e bem situado", a executivo americano, o tipo brota em cada esquina, uns dois mil dólares mensais, o Zeca arrumaria free-lances, "as revistas de São Paulo pagam direitinho", e os meninos, pronta a nova Rio—Juiz de Fora—Brasília, poderiam estudar na cidade a meia hora de casa. Adriana não acredita que o Zeca resista morar longe do "asfalto selvagem" e não quer sair nem amarrada da Rainha Elizabeth, mas moita e lava os pratos porque é chato que a cozinheira reclame na manhã seguinte que emporcalharam a cozinha que ela deixou jóia.

As mulheres conferem à conversa o tom informal em que o embaixador se sente mais à vontade e sabem o momento preciso de deixar os homens entregues aos "assuntos deles", exceto Adriana, que hesita, se irrita, mas termina maria-vai-com-as-outras, "por falta de apoio dessas cricris". Não há falta de espaço.

O Conglomerado receberia incomparavelmente melhor, se fosse essa a questão, tem um apartamento no Morro da Viúva em que Hesse descobriu até um Chardin, que suspeita não ser reprodução, pois checou o proprietário, é Choate, Yale & Skull and Bonés, se chamando Jack Ainsworth, nome que jamais passou pelos doze milhões de imigrantes em Ellis Island, pelo contrário, a família ajudou a "orientar" Ellis "Island, quando o excesso de mão-de-obra barata, "your poor, your huddled masses", precisou de controle em função da capacidade de absorção do mercado. E Jack não ofereceria vatapá precedido de uma moqueca de camarão, que os americanos, algo chumbados, equilibram estoicamente nas pernas, alimentados uma vez só, não se esquecendo de exclamar entre cada três garfadas à hostess, "this is really delicious", enquanto que os brasileiros falam menos e repetem bastante, excetuando Hesse, que detesta tudo que não seja bife e fritas e, preferivelmente, o que não é fácil de conseguir, na banha, o que nega, em vão, porque larga dois terços do resto no prato, o que desespera a cozinheira do Cosme Velho que se sente desprestigiada pelo doutor.

O serviço à americana permite liberdade de movimentos ao embaixador e ele atrai um brasileiro ao sofá, parecendo consultá-lo sobre assunto sério, ouvindo-o atentamente. É um experimentado diplomata de carreira. Outros brasileiros se aproximam, "como quem não quer nada", são bem recebidos, sentam-se e palpitam também. Nunca todos, ao mesmo tempo. A conversa segue até certo ponto, quando o embaixador diz "excuse me a minute", se levanta e pede ao host um pouco mais do "seu excelente Mathieu d'Anjou", o que tira o host, temporariamente, do meio do caminho,

cm que ora participa do papo masculino, ora vai às mulheres, onde a hostess mostra a última aquisição cara, antiga e horrenda, o host é o divisor de águas, um Moisés pescado nas cercanias da Sudene.

Os grupos se dissolvem momentaneamente, os brasileiros exclamam "então, como é que é", ou, no caso de Sadat e do Outro, os militares lhes perguntam o que acharam do último decreto do governo, Sadat e o Outro aprovaram, "apesar de certas restrições", o que os Sorboneses recebem com naturalidade, prometendo até levar a opinião dos paisanos às autoridades competentes, pois consideram a crítica construtiva indispensável ao aperfeiçoamento da obra revolucionária. O embaixador comenta em francês a última viagem de Sílvia Maria a Paris, ela sorri mais que de costume, a embaixatriz açode uma família militar, o political officer puxa um general a um canto, gesticulando enquanto fala, hábito que adquiriu dos nativos, ou talvez porque o inexpresso precise se expressar de alguma forma, Adriana fica sozinha, meio perdida no centro do salão, mordendo o lábio e olhando o Zeca que endossa, enfático, em silêncio, sacudindo a cabeça, "observações" de Sadat, a hostess orienta os garçons na distribuição do cafezinho, pondo o dietil em maior evidência, o Conglomerado serve, sorrindo, um bourbon duplo a Hesse, que já ultrapassa o sexto, e enche o copo dele próprio de scotch e água, ignorando a Lindóia. O host descansa, sentando, no intervalo, a boca incompleta sem um cigarro de palha.

Hesse diz ao Conglomerado que houve uma melhoria extraordinária na habilidade lingüística do Departamento de Estado nos anos sessenta, depois que a urss reatou relações diplomáticas en masse nas esferas de influência dos eua. Russos e derivados, sabendo-se incompreensíveis, reapareceram fluentes nas línguas do III Mundo, se bem que um embaixador do Leste, que "desconhece" Hesse pós-1964, fala um português inimitável, "Chovéva no Itamaráti" é um bom exemplo, mas ainda assim os comunistas forçaram um sputnik lingüístico em Washington, do qual Jack é um autêntico Apollo, "what's the number, by the way? I never seem to get these things right", Jack manejando expressões idiomáticas e gírias com um sotaque imperceptível quase. O Conglomerado sorri, silenciosamente, como de costume, e gesticula uma estocadela, omitindo, porém, o vulgar touché, o que Hesse previra. Eles se entendem. Em parte é uma semelhança superficial de verbetes. Hesse doutorou-se em Yale também, e agradou, apesar de algumas surpresas e dificuldades iniciais e da mágoa inconfessa de não ter entrado na cobiçadíssima fraternidade Skull and Bonés, "se me propusessem, recusaria", irritando-se quando um dos melhores amigos que fez lá, Dick, usava o lingo "how are things in High Street?" dos iniciados, junto a outro membro, excluindo-o. Vingou-se de Dick. Paga todas as contas. Já o Conglomerado é bicha, afobando, ocasionalmente, o que se descobriu numa casa em Búzios, em que chupou um dos mancebos, numa noite fumadíssima, bebidíssima e cheiradíssima, o que deu um pouco o que falar na praia, até que a hostess encerrou o papo, lapidarmente: "Jack bebeu mal ontem". Jack está em todas, deve ser aceito pelo Country este ano e ama a liberdade das praias e montanhas brasileiras.

O embaixador quer a candid opinion de todos os brasileiros quanto ao progresso da liberalização sob o quarto governo revolucionário, processo que acompanha com "absorção integral", e sempre que alguém do Planalto lhe pede opinião, informalmente, claro, tem "uma boa palavra" a dizer sobre a descompressão, o que os três Sorboneses ratificam de cabeça, pois também acreditam que já é passado o tempo de permitir que minorias extremistas das Forças Armadas, que chamam, na intimidade, de ss, ajam independentemente do poder central.

O embaixador ouviu desse political officer, os dois a sós, naturalmente, que não há conexão aparente entre os brucutus militares, que chamam de weirdos, e os supostos "nasseristas" das Forças Armadas, e nem motivo de pressupor que sejam "pontas-de-lança" de um movimento que vise a estatizar a economia brasileira, que, pelo contrário, os weirdos são ligadíssimos a "bons amigos nossos" nos meios financeiros de São Paulo, os quais se opõem às tentativas de "integração social" do quarto governo revolucionário, aumento salarial do insignificante ao ínfimo, diálogo civil-militar, etc, política reformista que a embaixada aprova, pois "distenderia tensões", lamentando a falta de visão dos bons amigos paulistas e a gente bestial que alugam para frustrar o "produtivo gradualismo" do atual presidente. O embaixador, porém, não confia em geral na capacidade de political officers. Servia no Cairo em 1956 quando Nasser nacionalizou Suez e ninguém mais surpreendido na embaixada que os political officers, que não falavam ou liam árabe e passavam a maior parte do tempo subornando tipos marginais, sírios ou armênios, "what do you mean? aren't ali Arabs the same?", ou em recepções diplomáticas exibindo uma dúbia expertise em vinhos e namorando secretárias da missão francesa. O serviço foi radicalmente recauchutado depois do desastre em Cuba, mas não custa ao embaixador fundamentar o briefing recebido com "bons amigos na imprensa do Rio", melhor informados e que, sob o estímulo do tema proposto, automaticamente supririam dados novos, se existentes, sobre os adversários da descompressão, militares ressentidos e primitivos, que nem sequer freqüentam o cineminha da embaixada.

Hesse assiste ao espetáculo sem participar, e só se diverte quando o José Carlos, que foi repórter de polícia e não perdeu de todo o faro da espécie, vira, inocentemente, o feitiço contra o feiticeiro, e, sincero e insistente como um são-bernardo, indaga do embaixador qual a verdadeira posição dos eua no Oriente Médio, o que faz o political officer dar um piparote no gelo do copo, outro costume local a que aderiu, provoca um sorriso enigmático do Conglomerado e um olhar de orgulho benevolente do Outro Dono, que gosta da tenacidade mesclada ao bom senso e equilíbrio do Editor-Chefe.

Não que o embaixador se aperte. Escolheram-no a dedo para empalmar a chave da América do Sul, não comprou o cargo financiando campanhas presidenciais nos EUA; e diz tudo, ou seja, nada, é discursivamente diplomático: Washington se comprometeu a garantir a sobrevivência de Israel e a obter uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, porém não vai impor um acordo a Tel-Aviv, se, é bem verdade, seria desejável uma maior flexibilidade do governo israelense, "os senhores me entendem, isso é, como dizemos, not for atribution, off the record. . ."

Du côté de chez les femmes, Adriana pensa na Vera, uma poeta feminista que conheceu na praia, enquanto fuma um Oliu & filtro, algo distante e totalmente desligada das outras, que escutam "Cármen Miranda" contando a recepção que teve da gente "simples e afetuosa" da Bahia, número de repertório de todas as embaixatrizes americanas, que é recebido em graus diferentes de patriotismo pelas ouvintes, e, num índice de 1 a 100, as Sorbonesas estariam a 100, achando pouco, sacolejam como se contidas a bridão numa disparada. A Sra. Sadat, cuja doçura triunfa sobre o tédio e a vicissitude, a 50, a companheira do outro é imensurável, porque, secretária durante vinte anos, desaprendeu a reagir, e Sílvia Maria a 1, mal acompanha o páreo, embora execute o cânter elegante de sempre.

Nos últimos tempos, Adriana vem criticando o Zeca na própria cabeça com intensidade crescente. Sente-se angustiada e se pergunta se já não gosta tanto dele, o que "explicaria a mobilização", como diz o Vilela, no "grupo", de que participa há cinco anos, "o Vilela é o melhor". Naquela noite, por exemplo, queria enfiar um jeans e uma blusa soirée da Elle et Lui, "descontraída", e o Zeca brecou. Não que proibisse. Não é estilo dele. Descreveu o formalismo do ambiente, o tipo de roupa provável de Sílvia Maria, a última pessoa no mundo em face de quem Adriana se deixaria humilhar. Ela, procurando um longo de "enterro" no armário, explodiu, "manjo teu jogo, meu chapa, só vou botar essa merda pra não te envergonhar em frente do Dr. Patrão", e "é o que a Vera chama de tolerância repressiva, o que você aplica em mim". O Zeca declarou dispensar editoriais "daquele sapatão", um golpe baixo, indigno do liberal que vive cagando regra a respeito de "dois pontos de vista em cada questão". A Vera está de fato "fazendo uma experiência homossexual", mas não é verdade que seja a cara do Jean Gabin, o arremate do marido ao encontro de duas cibalenas, além da úlcera padece de migraine, "feito João Cabral", e uma chuveirada, antes escolhendo a camisa da noite, levinha, quase transparente, ela comprou a fazenda, em Ipanema, naquela loja que fechou, uma pena. É típico, notou a Vera, os homens vão de mangas de camisa enroladas, no calor da cidade, e obrigam as mulheres a se empetecarem todas, "a casa de bonecas já virou cascalho de empreiteiro, meu chapa". Inútil. Não sé ouve nada debaixo do chuveiro, americano, fortíssimo, que o Zeca trouxe daquela viagem a Nova York, na companhia do Outro, em que ela não foi e ficou puta da vida.

Adriana detesta longos, sente abafamento apesar de toda a ventilação interna falada, e não se habitua a usá-los sem calcinha e soutien como a Wandinha Vinde a Mim as Criancinhas, que nunca põe, o Zeca estaria fascinado por ela, no Antonio's, aquela noite? Dizem que todos os homens ficam, ainda bem que Wandinha só come garotos, ou será cascata? E os longos, se lhe atenuam a bunda, acentuam a largura do corpo e os malditos 1,55 m, "papai poderia ter casado com uma mulher um pouco mais alta", todo mundo acha Adriana a cara escarrada da mãe.

A Vera diz que essa história de se querer corpo de Audrey Hepburn é colonialismo e exigência patriarcalista. Adriana ouve, "gratificada". E tem de admitir para si própria que o Zeca adora a bunda grande, que chama de "mimo", quando tomou umas e outras, o que é raro, a porra da úlcera.

Os dois se acertam na cama. Ele gosta de sentá-la, nua, no colo, e de "passar a mão" Ela custou um pouco a se acostumar que o Zeca não tirasse também a roupa, de saída, e à luz acesa, mas hoje ama sentir o troço dele pressionando sob as calças, como vê-lo, ao troço, se expandindo, "parece planta daqueles filmes de Walt Disney a que papai me levava no Art-Tijuca". Adriana não usa "caralho, piroca, pau, pica", etc, rindo nervosa, sem confessar, quando ouve das amigas, "um bloqueio meu, deve ser", se bem que solta em conversa "é do caralho", igual a todo mundo.

Casou virgem com o Zeca, inexperiente, quase. Alguns namorados "botaram a mão" no cinema, ou lhe chuparam os seios, o que dava vontade de rir misturada ao medo de serem vistos, porque pareciam bebezões mamando e lhe fazendo cócegas, ficava esfogueada e molhada sentindo falta de alguma coisa, e odiou as vezes que, "para acabar a discussão", sacudiu o troço deles, achava nojenta a frase "tocar uma punhetinha".

Só um dia experimentara o que nem o Zeca lhe dera, e a memória permanecia difusa, inexaminada e enervante. Foi à casa da Berenice, irmã do moleque do Tulinho, estudar. A Bê não estava. Ninguém, fora o Tulinho, que, surpreendentemente, recebeu-a gentilíssimo, mostrando-lhe a

casa toda, até a cama dos pais, de colchão de penas, onde pulou, simpático, sorridente, atencioso, convidando-a a subir. Ela resolveu fazer as pazes, "depois de uma conversa séria". O Tulinho se comprometeria a não mais lhe beliscar na aula e "seriam amigos pro resto da vida". Quando viu, o menino se levantara na cama e lhe espremia os braços, pondo-a de joelhos. E tirara o troço das calças, que era mesmo a cara de um pinto, o que ouvira a mãe chamar o do irmão, o Beto, um pinto enfezado, de briga, todo duro e de cabeça vermelha, o do Tulinho. Ele disse: "Chupa". Adriana, soluçando, implorou um "mamãe", baixinho. Tulinho tacou-lhe um bofete. Ela se sentiu molenga como de manhãzinha, se despedindo do travesseiro. O Tulinho puxou-lhe a cabeça, empurrando-a e trazendo-a de volta sobre o pinto. Veio um gosto salgado na boca de Adriana, que nem engoliu direito, porque "desatou todinha por dentro", e aí esqueceu tudo, hoje se lembra que ao chegar em casa gargarejou um tempão, e mamãe ia achar que a filha fizera pipi nas calças, logo tomou outro banho, a mãe espantada de tanta higiene, dois banhos num dia. Nunca remexera no assunto, nem no grupo. Besteira de criança. Os nervos tremem um tico à memória fugaz. Adriana conhecera o Zeca na faculdade, ela entrando em neolatinas, ele saindo de "comunicações", numa portinhola incrustada na Maison de France, sobre um sanduíche de pernil e guaraná caçula, que preferiam aos sintéticos oferecidos pelos galeguinhos robôs do Bob's vizinho, como, mais tarde, formaram na última trincheira do Moraes de Ipanema contra a inexorável invasão da fórmica e plásticos vários, que o Zeca equiparou a Vampiros de Almas, que Adriana não vira, mas viram My Fair Lady, e louvaram em coro Audrey Hepburn, cujo corpo dá "aquela inveja", e concordaram em que a nossa Bibi não fizera vergonha. As afinidades floresceram mil. Ela morava na Conde de Bonfim, ele na Rua do Bispo. Se encontravam a pé, exercício que gerou relações profundas de Sócrates a Jesus Cristo. O Zeca recitou um Cícero que aprendera dos Maristas em Belzonte, Adriana achando-o eloqüente e "um homão do tamanho de um bonde", descrevendo à melhor amiga, no dia seguinte, em detalhes, a amplitude do novo admirador, o que provocou da Suely um "imagine o que você ainda não viu", o que, entre risinhos, Adriana baniu da cabeça, com certo esforço.

O Zeca era romântico c delicado, destoando daquele peso todo. Emprestou-lhe Machado, Fernando Pessoa, Fitzgerald, o Quincas da primeira fase, e discutia-os fervorosamente. Nunca tentou "botar a mão", nem sequer na "sala de entrada" chez Adriana, um cubículo de proporções monásticas e propício a rituais da Tebaída, jamais executados. Das mãos dadas, passou, timidamente, ao braço no ombro, quando viam um movietone sobre salmões em desova, que, se seguissem o ritmo do Zeca, seriam espécie extinta, ao beijo O na fronte, nas faces, na boca, na língua, levíssimo, "feito óstia entrando". Adriana quis a princípio reagir, estimulando assim a intensificação da ofensiva, mas percebeu cedo que as intenções do Zeca eram "para valer" e seguiu as regras do jogo da época. Intuiu a força que há em nos contermos em face de quem nos deseja, aprendeu a responder na deixa o que o Zeca gostava de ouvir, a assinalar presença só se solicitada, a estender as rédeas ao máximo, "você me telefona quando tiver o primeiro tempinho", trabalhava tanto, o coitado.

O Zeca era sério e esforcadíssimo. No 415, ida e volta, descreveu em capítulos a batalha em curso, o pai morrera ano passado, obrigando-o a assumir a chefia da família, mãe e quatro filhos menores, em idade escolar, a aposentadoria do pai uma mixurucalha, "que não saía, de qualquer jeito", ele agüentando o barco, traduzindo, pegara até um carro de praça num mês que não lhe deram livros, e, de permanente, q salário de tabela de repórter de polícia, emprego que odiava, não o jornalismo, a polícia, pois só enfrentava gente baixa, principalmente os policiais, e importunava famílias pobres e sofredoras à cata de bonecos de entes queridos assassinados. Procurava ser honesto, fatual, "sociológico". O jornal não permitia. Reclamou que o copidesque eliminava as análises dos ambientes horríveis em que quase sempre os crimes ocorriam, substituindo por tidibites sobre a vida sexual das personagens, "Marina hesitou entre seus dois amores" e bobagens no gênero. Adriana conhecera uma Marina que hesitara entre dois amores e terminara tomando um terceiro, o pediatra do bairro, o Dr. Cerqueira, e os dois se arrancaram, deixando os ex-amores, a mulher abandonada e as clientes do médico em fúria e fofoca que renderam meses, mas concluiu rapidamente que se tratava de outra pessoa, e, além disso, jamais interrompia o fluxo do Zeca. Não que o jornal fosse O Dia, isso não, agora faltava um bocado para chegar ao New York Times. E o interessante é que o editor-chefe, apesar de carrancudo, violento, píssico, diziam, revolucionara a primeira página, a nacional, a internacional, o segundo caderno, mudando formato e estilo, banindo centenas de palavras, "insigne", "ilustre", "belonave", "entrementes", "outrossim", "vagar" — "não se vaga, se anda, porra", etc. A polícia fora a única seção intocada.

Adriana necessitaria de um dicionário, glossário e livros de referência para acompanhar todo o monólogo, mas se sentia tão intoxicada pela paixão na voz do Zeca que ficava num pilequinho satisfeito, "que ia até lá embaixo". Debruçava-se nele, sendo recebida pela força da inércia e ocasionais tapinhas nas costas. Precisavam casar logo ou "eu faço uma loucura", relatou à Suely, que solidariamente se omitiu dos habituais comentários pornográficos, entendendo a gravidade da posição estratégica da amiga.

De que jeito? Uma família nas costas, contando os tostões, já antes do casório? Adriana não trabalhava, nunca pensara nisso, e saíra da faculdade dizendo em casa que se convencera que "o tal do latim é muito sobre o chato". Não iludia a ninguém, nem a si própria. Aguardava uma decisão do Zeca. A mãe torcia o nariz e o pai enfiava a cara em O Globo à menção do Zeca. O Beto, menino safado, olhava-a como se soubesse que o Zeca papava a irmã, prometendo o que não cumpriria, casar-se. Um débil mental.

Na casa do Zeca, um dia, os irmãos menores estourando balões e produzindo outros ruídos, a mãe na padaria, Adriana perguntou-lhe diretamente por que não pedia uma chance ao Editor píssico. "Espera aí um minuto, meu bem, primeiro me toma o Machado." O Zeca lera "no Maugham" que a melhor maneira de desenvolver o estilo era decorar trechos dos mestres e reproduzi-los, no papel, de memória. O Zeca não errava. Repetiria o Brás Cubas inteiro na máquina, pontuação inclusive. Adriana, "tomando" atrás dele, de livro aberto, achou o Brás Cubas tão pouco agressivo afetivamente quanto o Zeca, seriam iguais? O débil do Beto, errando no varejo, acertara no atacado, como dizia o papai?

O Zeca entendera perfeitamente o objetivo da pergunta. Num sábado, levou Adriana à Gerbô e, a caminho, com

a naturalidade de quem reclamasse da falta de água na cidade, contou que dezenas de vezes procurara o Editor, em companhia dos colegas, "no bolo", entrando no Aquário, "a sala dele é separada da redação pelo vidro, é um apelido, o Aquário, que o pessoal botou". O Editor nem pelota. "O cara é meio inacessível." Fuçava compulsivamente papéis que parecia nunca encontrar. O Zeca fizera amizades junto ao primeiro time do jornal. Dizia a todos, sinceramente, que queria aprender o ofício. Jornalistas adoram ensinar, a colegas, não a gente de fora, e o Zeca assimilou uma infinidade de técnicas e macetes jamais mencionados pelos pedagogos na faculdade. Os colegas qualificados gostavam dele, rapaz simples, despretensioso, "nada burro", acrescentara o Alcides, o chefe do copidesque, tipo rústico, monossilábico e arredio, que todo sábado entornava firme em pontos do Largo do Machado, famosos junto à boêmia dos anos 30, levando às vezes o Zeca, a quem "adotara", convidando-o inclusive a almoçarem na cafeteria do jornal, rompendo um hábito entranhado de solidão, o que produziu um esgar, que poderia ser um sorriso irônico, até no Editor Chefe.

O Zeca jamais se queixara da indiferença do píssico a ninguém no jornal. Aprendera sob os Maristas o respeito à autoridade. Limitava-se a mencionar ao Alcides e similares que gostaria de variar de trabalho, depois de dois anos na polícia. Nenhuma revolta, nenhuma pressão ostensiva do Zeca. Reconhecia-se um foca em face de treinadores. Eles .que tomassem a iniciativa. Aguardava, atento à primeira chance. Não se resignava a apodrecer na "vala comum".

O que doeu de verdade foi a atitude do Tertuliano, um dos diretores e editorialistas, poeta, raconteur requestadíssimo nos salões e bares da cidade, famoso pelas boutades gravadas nos ladrilhos mentais da gente da moda. O Tertuliano freqüentava assiduamente a corte do Dono do Jornal, "Père Joseph visto por Marivaux", dissera dele ao Zeca um comunista culto que trabalhava no arquivo. O Zeca não entendeu e não consultou enciclopédias, pois decidira apelar ao Tertuliano, conterrâneo, certo, no mínimo, da simpatia do poeta, afabilíssimo com todo mundo, adorado até pelos boys. Já o encontrara no elevador e, apresentando-se, o Tertuliano choveu perguntas sobre tios, primas, todos distantes, do Zeca, gente de São João del-Rey, que o poeta conhecia bem e de quem desejava notícias, obrigando o Zeca a um esforço prodigioso de memória e a alguns exercícios em quiromancia, de que logo se envergonhou. Não que o Tertuliano prestasse muita atenção. De uma pergunta pulava a um comentário espirituoso, não esperando resposta ou adendo, era um malabarista da palavra em show permanente.

Até quando o Zeca elogiou poemas do Tertuliano, que lera todos, achando-os de uma gratuita ferocidade sensual, esquecida ao se fechar o livro, e limitando-se, na sinceridade costumeira, a citar os que gostara, realmente, o poeta intercalou piadas autodepreciativas, "é, dariam uma boa quarta de capa do João Cabral", se bem que os olhos contradiziam o humor, fixos, frios, fotográficos.

"Estabelecido o diálogo", num almoço no Ianque do Brasil, vazio naquele dia, meio feriado, "não, a nota é minha, precisamos preservar nossos repórteres policiais das tentações implícitas na sua temática; vade retro, Satanas", o Zeca lavou a alma, a humilhação de marcar passo na polícia, "são todos uns caras legais na reportagem, não me queixo deles ou de ninguém, quero apenas é uma chance de progredir". E desfiou o cabedal universitário, erro tático de que se deu conta anos depois, ao descobrir o pé atrás de jornalistas competentes contra diplomados em jornalismo, pé que assumiu, as traduções na Civilização e na José Olympio, e já o haviam recomendado à Zahar, a mais exigente, os estudos em profundidade da imprensa estrangeira e nacional, os cursos noturnos e inglês e francês, "pro gasto profissional", e, chato de contar, as obrigações de família e o perigo que corria o noivado, "ela é uma moça maravilhosa, é injusto que perca tempo comigo".

Tertuliano permaneceu em silêncio, despido de graças pela primeira vez desde que o Zeca o conhecera, trinchando delicadamente o pudim do dia. Finalmente, disse: "Uai, você não comeu nada? Esse macarrãozinho aí está com uma boa cara, se não fosse meu peso. . ." O Zeca alegou inapetência passageira, em verdade se entupira de feijoada na casa de Adriana, raramente comia na rua, para economizar. Tomaram o café, o Tertuliano revertendo ao silêncio, no caso, já próximo do surreal, o Zeca tentando ler-lhe a expressão, teria dado um vexame, recorrendo ao conterrâneo? Não sabia aonde enfiar a cara. Tertuliano, ao medir cuidadosamente a gorjeta, acrescentou num tom "à guisa", palavras que o Editor píssico eliminara do jornal: "Olha, Zé Carlos, farei o que puder, pode crer. Agora, não superestime minha influência. A vida é dura, menino. Não, não, não me agradeça. Não custa nada".

O Zeca esperou meses uma resposta, qualquer resposta. Todo dia perguntava ao boy da entrada se havia recado, erguendo ligeiramente o ombro como se indicando a origem, "lá em cima", do chamado. O poeta sempre o cumprimentava amável, a distância, não houve chance de novo papo a dois, e cobrar não dava pé. Até que numa tarde, o Zeca e o Alcides desciam da cafeteria e o elevador parou no andar da diretoria, revelando o Tertuliano e outro editorialista. O poeta "não os viu", coronhando de leve a cabeça, recuou rápido e disse, correndo, "esqueci o endereço do médico da minha mulher, segue que eu pego outro".

Quando o Zeca tomou posse do Aquário, o Tertuliano foi um dos primeiros a visitá-lo, "então, teremos um estilo machadiano-fitzgeraldiano e eu que não consegui sequer driblar os adjetivos do Eça, onde fico, viro bandeirinha?" O Zeca riu, recebeu modesto os parabéns, marcaram jantar e jantares, e o Tertuliano avalizou a entrada dele e de Adriana nas mesas permanentes e desejáveis do Antonio's, em casas grã-fino-boêmias nunca exatamente open e similares. Adriana adora também o Tertuliano, ainda que muita gente na praia o considere um alienado.

A oportunidade do Zeca veio ele não sabe até hoje por quê. O Editor-Chefe chamou-o, a sós, début, oficiando o ritual dos papéis, como de costume. O Zeca, de pé, curvado, resistindo a uma tentação insana de dobrar-se todo, de cair de joelhos, quando veio a pergunta num rosnado rouco, "que que você sabe de nazismo?" O Zeca tomou ar, "bem, foi um movimento criado pelo Adolfo Hitler", ao que uma bic bateu violentamente na mesa, interrompendo o verbete, "livros, análise, o que você leu a respeito?" e, estarrecendo o Zeca, acrescentou, "Sentaípô". O Zeca, se esticando todo numa cadeira, abriu-se em sinceridade sincopada e espumante: "pouca coisa, francamente, jornais, cinema, e, ah, li atentamente e anotei a Ascensão e Queda do III Reich da Civilização", o píssico rugiu, "chega, porra", o Zeca retesou-se

de novo, confuso, ignorando se passara ou fora reprovado no exame. O Editor lhe cravou os olhos: "Há o rumor, o rumor, que um nazista bacano, um sub de Auschwitz, está em Joinvile. Quero que você dê um pulo lá e apure. E não diga nada a ninguém na redação, manjou, porra? Passa na caixa que te dão um vale, passagem e o caralho a quatro, já autorizei". O Zeca arrancou rumo a Joinvile, quando foi freado nos calcanhares, "espera, porra, não acabei. Se for saque, o nazista, nem uma palavra na vala comum ou fora, manjou, porra? Se o cara é batatolina, me telefona, só a mim, manjou, porra? que segue fotógrafo na hora, toma meu telefone de casa. Agora, o mais importante: arruma fatos, fatos, fatos, fatos, fatos. O Alcides afirma que você cava e cheira até o fim. Publico o que vier, doa a quem doer. Esse cara é procurado em três países, mas picas de análises ou opiniões, deixa isso praqueles cabrões do editorial. Jornalismo é notícia e nisso quem pia aqui sou eu. Arranca a vida nos campos de extermínio, as relações da ss e big business, a proteção que o nazista recebeu e de quem antes de pintar solto no país, manjou, porra? ok. Você é casado?" O Zeca, exultante, se nervosamente cipoado da cabeça aos pés, respondeu: "Não, senhor, ainda não". O Editor, de súbito, parecia acometido de violenta dor de dente, que o Zeca deduziu ser o esboço de um sorriso, "que porra de senhor é essa? Tá, te manda, e também moita na rua, à namorada, família, etc, fica entre nós, manjou, porra? Diz que vai viajar a serviço e encerra o papo".

O Zeca recebeu o Prêmio esso. Admite que teve sorte. Servira, pelo tamanhão, na pe, e conhecia três Catarinas de Joinvile, que gostaram dele, porque não lhes gozara o sotaque e até, uma noite, os conduzira a um "puteirra". O trio localizou o nazista, o "Seu Herman", que se disse à espera de uma pessoa "purra" como o Zeca, a fim de purgar a alma. Voltara devotíssimo à religião da juventude, "na campa eu non zinha chtômaga de irr o igreja". Legiões de vizinhos confirmaram as qualidades do "Seu" Herman, trabalhador, prestativo, esposo amantíssimo, pai exemplar, contribuinte generoso das caridades da igreja local, o vigário implorando ao Zeca que "deixasse o pobre homem em paz, ja que Jesus pagou todos nossos pecados", os filhos do nazista se agarravam nos pernões do Zeca, súplices e uníssonos,

"Zenhorr non facerr mall a fater", a Sra. Herman chorava e servia strudels variados, o Zeca engordou dois quilos.

A matéria entrou na primeira página e não saiu mais. O Zeca notou que o copidesque penteava aqui e ali, apenas, permitindo que o drama jorrasse incontido. Estranhou não ouvir instruções ou, o que temia, críticas do Editor-Chefe, a quem nem conseguiu pegar ao telefone, o Alcides, que o atendeu, explicando que píssico entrara em férias compulsórias, três períodos acumulados, e, a melhor notícia, que o Dono ordenara e comandava pessoalmente o destaque ao texto do Zeca, manchete quase diária, o estrelato máximo atingido numa foto na varanda do "Seu" Herman, o repórter segurando no colo o Hans, filhinho louro do casal, muito dado, o menino e o Zeca sorrindo para todo o Brasil.

Na Conde de Bonfim, Adriana se convertera em jornaleira de filme B da Warner, na década de 30, que gritava "read ali about it" nas esquinas. Impunha exemplares à vizinhança, que aceitava de bom grado, pois se sentia remotamente bafejada pela glória. Em casa, o pai preteriu O Globo pelo jornal do Zeca, "é uma história comovente, o rapaz sabe observar", e a mãe se solidarizava alto bom som com a resignada Sra. Herman, "que o teu noivo conta muito bonito". A única nota destoante foi o Beto que usou páginas de uma longa dissertação do Zeca sobre a "solidez do senso comunitário em Joinvile" para forrar a areia dos "números 1 e 2" do gato dele, o "Praga de Mãe", levando uma espinafrada firme da irmã.

O "Seu" Herman, segundo o Zeca, durante um ano não percebeu o que acontecia "na campa". Trabalhara na administração de Auschwitz, papelório, nomes, números, entradas e "saídas", tudo normal, rotineiro, tedioso. Preferia ter ido lutar no front russo, contra a ameaça bolchevique à Europa sobre a qual ouvira sermões inesquecíveis de Sua Santidade, o Papa Pio XII. Um defeito de vista o tornara inaceitável às Waffen ss, ao braço militar da SS, apesar de amigo pessoal do General Steiner, cuja bravura e integridade os próprios americanos reconheceram em 1945, deixando-o, Steiner, em paz, Steiner é hoje um próspero homem de negócios na Alemanha Ocidental. O Zeca descreveu as lentes pesadas do "Seu" Herman, molhadas e embaçadas, quando ele chorava, o que era freqüente. Ao descobrir "a horrorr", pediu transferência imediata e deu corajosamente as razões verdadeiras. Responderam-lhe que se insistisse em desobedecer ordens seria fuzilado. Tinha de pensar na família. Os oficiais mais jovens, em tempo, foram enviados ao Leste, e "Seu" Herman, mero capitão, passou faute de mieux a tenente-coronel, assumindo encargos horríveis que o prostraram de febre, obrigando-o a assinar ordens da cama.

Baixou no copidesque um documento oficial do governo polonês contendo fotocópias autenticadas de ordens do ss Oberstumbanführer Herman Deluege, autorizando o extermínio de cento e noventa mil judeus, em fevereiro de 1945, quando, frisava o redator polonês, o próprio Reiches-führer Himmler já ordenara a suspensão do massacre, pretendendo barganhar com a vida dos judeus os termos de rendição da Alemanha. O vasto documento foi anexado à matéria do Zeca, resumido a "o governo comunista satélite de Varsóvia acusa Herman Deluege de participação na morte de milhares de judeus em Auschwitz".

O Zeca ficou frustradíssimo porque não cobriu a luta pela extradição do "Seu" Herman no Supremo, entre a Alemanha Ocidental e a Polônia, matéria que coube à editoria nacional. O Supremo, na tradição humanitária brasileira, devolveu o "Seu" Herman a Bonn, que abolira a pena de morte, onde foi condenado a cinco anos de cadeia, excluídos os dois anos de detenção no Brasil. Da prisão, ao conquistar liberdade condiciona] em seis meses, o "Seu" Herman enviou um cartão de "boas festas" ao Sr. e Sra. José Carlos Menezes, que Adriana, num acesso irracional, rasgou, atirando na latrina, antes que o marido pudesse contê-la, e, paciente e delicado, lamentou que ela tivesse uma atitude maniqueísta em face da vida.

O sucesso não mudou o Zeca, a redação reconheceu. Os chefes recebiam a deferência que lhes era devida, e o mais humilde boy se sentia, como de costume, um coleguinha. Até reclamou que "não lhe davam nada", na polícia, e, ao voltar finalmente à rotina, saiu denodado à cata de bonecos. Pós-esso os próprios comunistas o cumprimentaram pelo sucesso, apesar da procedência, afeição, uma vez na vida, superando ideologia. O Reader's Digest condensou a matéria, pagando-lhe trezentos e cinqüenta dólares, "uma fortuna", e houve um bônus de setecentas e cinqüenta pra-

tas do jornal, dinheiro que o Zeca pôs numa caderneta de poupança, na Caixa Econômica, em nome de Adriana, a quem nada disse, uma surpresa reservada para o momento propício. Só o Editor-Chefe se portara mal, talvez, o Zeca "não poderia afirmar", tal a inescrutabilidade do sujeito. Foi ao chegar a decisão do esso. Colegas o cercaram, co-brindo-o de tapinhas e perdigotos carinhosos. O Editor, de passagem, nunca parava na "vala comum", falou, "rapaz, se há uma reportagem à altura da esso é a tua". Estaria bêbado? O Zeca, no fundo, sabia que não, porque o cara carregava no puritanismo, o pessoal excluído do Aquário o apelidara de Robespierre. Era apenas um carente completo de calor humano.

Prenúncios de maná precederam o Reader's Digest e o esso. O Dono chamou-o "lá em cima", ao voltar de Joinvile, a primeira vez que o Zeca subia que não fosse à cafeteria. Por sorte, naquela tarde ia a um casamento e envergava beca dominical, o que agradou, de cara, ao Outro, irreconciliado, se bem que em silêncio, com jeans, cabeleiras masculinas e calças compridas femininas. Foi apresentado a um senhor de cabelos grisalhos, corte rente, porte de coronel, o adido cultural da Alemanha democrática, isto é, Ocidental. O alemão cumprimentou-o pelo fair play das reportagens, o Outro interrompeu afável, porém, firme, que em hipótese alguma o jornal pensara encontrar compatibilidade entre Herman "Deluge" e a Alemanha livre, o que o nosso "Carlos Menezes" sabia melhor que ninguém. O Zeca, agradavelmente surpreendido pela própria acuidade política, assentiu enfático, de cabeça, em silêncio, como de hábito. No dia seguinte, escreveu longa carta ao Outro, entregue em mãos à secretária, "lá em cima", pedindo uma chance de ser testado na editoria nacional. Não que menosprezasse a polícia. Deixou claro que "aprendera muito sob a chefia enérgica e competente do companheiro Egberto Amado", mas gostaria de servir ao jornal em outra capacidade, "ampliando horizontes". Anexou extenso resume, desde a formação austera "produto dos esforços e paciência dos meus abnegados mestres Maristas" à "jornada de Joinvile".

Se enquanto aguardava resposta o Zeca permanecia o mesmo, o jornal entrara em terremoto. Na primeira página, invariavelmente, Fidel Castro tinha a palavra, e, no editorial, vozes anônimas advertiam contra o engolfamento da América Latina pelo comunismo, em ofensiva de Havana, a base soviética no Caribe. Já vigorava na época a "separação New York Times", que o Zeca explicara a Adriana, quando esta se politizou na Montenegro, mas culminara ad absurdum na crise dos mísseis soviéticos em Cuba, outubro de 1962, pois o noticiário acusava os eua de cercarem nuclearmente a URSS na Europa, Oriente Próximo, Japão, etc, e de negarem aos revolucionários cubanos o direito de defesa contra novas investidas da cia, e os editoriais respondiam exigindo que o Ocidente "não poupasse esforços que contivessem a invasão militar bolchevista do hemisfério, que na etapa inicial subjugara o povo cubano, amante da liberdade".

Horas antes de Kennedy e Khruchev chegarem a um arreglo, a guerra acabou na redação. Através do Aquário, o Zeca viu o Editor reunido com cumpinchas, Robespierre esbravejava e o resto concordava, de cabeça. Em seguida, gavetas foram ruidosamente esvaziadas, os raros paletós envergados como se fossem bandeiras, as mangas abanando no ar, e, Robespierre à frente, pescoço duro, comandou a saída de dois terços da editoria, movimentando poeira que, à luz da entrada, parecia confete, e chutando laudas que planaram raso alguns segundos no vácuo dos retirantes.

Minutos depois, o Outro desceu à "vala comum", flanqueado por dois oficiais de Marinha, que se sabia os responsáveis pela segurança da "casa". Falou pouco: Robespierre pedira demissão porque discordava da orientação democrática da diretoria e que se alguém ali pensasse igual que se definisse agora porque um jornal é uma instituição pública e precisa da lealdade absoluta de todos a fim de bem servir ao povo e ao país. Silêncio. Alguns pés se moveram, no mesmo lugar. O Dono removeu o casaco, passando-o a um dos oficiais, enrolou simetricamente as mangas da camisa e invadiu o Aquário, convocando o que restava de chefias, depois que acendeu o cachimbo. A redação paralisada e resmungona, até que Ele veio à porta e disse: "favor continuar o trabalho normalmente. Temos um jornal inteiro a tirar". Os teclados das máquinas começaram a encobrir os cochichos. Terminada a reunião no Aquário, o Alcides chamou o Zeca informando que o Dono "queria lhe dar uma palavra".

As duas da manhã, o Beto, só de calça curta de pijama, no quarto dele, que, ao contrário do de Adriana, não tinha ar-condicionado, "isso era proteção", ouviu os murros na porta de entrada da casa, desceu e abriu a porta para o Zeca, emitindo um "porra, a essa hora", o futuro cunhado excitadíssimo insistindo em que Adriana fosse chamada, ela e a mãe já vinham escada abaixo, a mãe repetiu o "a essa hora", sem o porra, e o Zeca pedindo milhões de desculpas puxou Adriana ao living, a noiva de peignoir de algodãozinho, que odiava, "porque é muito miquelino", propôs casamento dentro de um mês. Adriana concordou, concordaria com tudo, semi-adormecida, se dando conta apenas que o corpo dela contra o do Zeca entrava direitinho e, se encostando, percebeu o troço dele em sobressalto, não queria mais sair dali, mas o Zeca sacudiu-a, frenético, "preciso te contar".

O Outro recebera o Zeca de camisa ostensivamente aberta, exibindo o peito cabeludo, com um ar hemingwayano, estilo não do agrado do Zeca, fitzgeraldiano. Boas notícias, porém, criam a sua própria forma. E veio a oferta. O ex-editor da nacional, "comunista notório", seguira o fidelista Robespierre. O Zeca o substituiria, interinamente? Afinal, o Zeca brilhara em Joinvile, se formara em jornalismo e "outras coisas", que a secretária resumira em voz alta, porque o Outro detestava textos de mais de uma lauda, o que Robespierre, visando a irritá-lo, chamava de "matérias em profundidade", "de que essa bosta de consumo aqui precisa para virar imprensa", e fora Robespierre, contou naquele momento ao "meu caro Carlos", que se opusera violentamente à transferência do Zeca à nacional, e o Zeca, numa mistura inextricável de êxtase e mágoa, porque respeitava o profissionalismo de Robespierre, quis saber o motivo. O Outro encerrou o assunto laconicamente, sob um sorriso lorde, "ele só permitia comunistas em postos-chaves", e o Zeca, num acesso de infantilidade de que se arrependeu quase que simultaneamente, disse, "eu sou católico praticante e meu pai lutou contra a Intentona de 1935". O pai bradara "morte aos comunistas" numa confeitaria de São João del-Rey, uma vez esmagado o levante. O Dono sorriu deliciado, não se enganara, "é de jovens como você que o Brasil precisa neste momento de perigo". Decidiu que a interinidade seria apenas pró-forma. E decidiu também não revelar as objeções específicas de Robespierre ao Zeca.

Em férias forçadas, Robespierre reclamava diariamente ao telefone da "desconversa revoltante" sobre o nazista Herman no jornal, "em puta destaque". Perguntava, "onde estivera o puto entre 1945 e 1950, ano em que chegara ao Brasil, na lua, porra?" Ou protegido pela cia, o governo e o Establishment de Bonn? Uma "tal de Arendt", de que o Dono nunca ouvira menção (judia, na certa, pensou), afirmava que Bonn mantinha em liberdade cinco milhões de membros conhecidos do Partido Nazista e alguns em cargos públicos. E quem acreditaria que "filhos de dez e cinco anos, supostamente nascidos no Brasil, falassem aquele português carregado? Aquilo era família de vaudeville, alugada, que o reporterzinho escroto de polícia glorificava, plantando para que o Dono colhesse um tutu firme da Alemanha Ocidental". O Dono concluiu que Robespierre enlouquecera de vez, sempre fora píssico (diziam que guardava um chicote e um revólver na gaveta) e já que a reforma dos dois cadernos terminara, o que escalara circulação e publicidade, resolveu demiti-lo no momento oportuno.

O Zeca foi despachado amavelmente para a editoria com um régio presente de despedida, "amanhã, logo que chegar, me procure, deixo a ordem, entre direto na minha sala, que fixaremos seu novo salário". O Zeca trabalhou como um camelo, apoiadíssimo no Alcides, que conseguiu acalmá-lo, dando-lhe dicas inestimáveis sobre o peso, posição e tamanho das matérias, apesar de ele próprio, o Alcides, ter de coordenar quatro páginas que refletiam a indignação internacional e carioca em face do aventureirismo soviético no Caribe, apoiando a ação profilática do governo Kennedy, exigindo, porém, "medidas mais enérgicas", as quais "extirpassem de vez o câncer comunista que se espraiava de Havana", e o Zeca experimentou na plenitude o suspense e o inesperado na criação jornalística, pois, já na oficina, as exigências de invasão de Cuba foram cortadas e substituídas por retórica menos belicosa, porque o Dono recebeu certos telefonemas de "gente em melhor posição de julgar os acontecimentos do que nós". O Zeca se saiu direito, aproveitando os anos de estudo da mecânica das diretorias, mas confessou a Adriana que, sem o Alcides, amigo certo numa hora incerta, o nervosismo e a nova responsabilidade o teriam derrubado. Um braço, o Alcides, e o Zeca, anos depois, Editor-Chefe, fez das tripas coração ao demiti-lo, motivo de economia, numa reestruturação dos quadros, em conseqüência do aumento brutal do preço do papel.

O embaixador tem as mãos agarradas pelas do host que, num barítono Nelson Gonçalves, anuncia "mais uma vez muito obrigado pela sua presença", a agulha estanque na frase, e, ao fundo, miados da hostess em harmonioso contraponto. Os outros já descem a ladeira à procura dos carros. O political officer foi ao embaixador, enfim liberto, "didn't I tell you it wasn't so? There's absolutely no link-age". O embaixador beija a mão da senhora political officer, sorrindo, e avisa ao subordinado que, dentro de uma semana, em Brasília, voltaria ao assunto.

O Zeca, atrás dos óculos de aro grosso, que põe em cinema e guiando, nota que ainda não conseguiu enfiar uma quarta no Alfa, àquela hora da noite e no Jóquei, "assim não é possível", e a vagareza o deixava aflito, pois Adriana, embolada no outro canto, não abre a boca, "uma fera", por quê? nem desconfiava, a menos que fossem as habituais restrições infanto-juvenis à política do embaixador, do Conglomerado, Hesse e Cia. o que o obrigaria, em casa, tirando a roupa, a repetir que jornalista "fala com todo mundo, o que não quer dizer que aceite todo mundo", afinal recebera e respondera mensagens até do falecido Marighella.

Adriana, no momento, acha que deveria ter esbofeteado Hesse na hora, "a audácia daquele fascista nojento, bochecha de bunda", e cerrava os punhos, repetindo, em pensamento, "F-I-L-H-O D-A P-U-T-A", saborosamente mastigando as sílabas. Por que não pusera a boca no mundo, Sílvia Maria ou não, embaixador ou não? e via o Zeca agarrando o Hesse, empurrando-o contra a parede, esmurrando-o até que o fascista perdesse a consciência, sangue jorrando para todos os lados. Ela pediria, docemente, "chega, pelo amor de Deus, meu bem". Nada. O Zeca mataria ele a socos.

Ao sair do banheiro da casa, Adriana viu-se agarrada no escuro pelas nádegas, suspendida de pés no ar, e uma língua, parecia ferro de dentista, varou-lhe a boca, se mexendo, lambendo todos os cantos, Adriana quase engasgando no chorrilho de saliva, e o troço do cara tão duro e apertando tanto que ela achou que ia furar a musselina. Solta no chão, "todo mundo abusa do meu tamanho", tonta, enxergou Hesse, olhando-a sério, impassível, "cara de peixe morto". Ele passou o dedo na boca, limpando o cuspe, e disse: "depois te telefono".

"F-I-L-H-O D-A P-U-T-A." Sentiu a mão pesada e mole do Zeca no joelho, "tudo bem, meu anjinho?" "Estou muito cansada e amanhã tenho de levar a Susana cedo ao dentista." O Zeca relaxou no volante e percebeu que o tráfego havia melhorado horrores, agora que entravam na Vieira Souto.

No carro, o embaixador olhava, sem ver, o agente do serviço secreto que ruminava discretamente um chiclete no assento spare e o outro que, por via de dúvidas, colou o seu chiclete atrás da gengiva superior. O embaixador concordou tristemente com George Kennan, cujo segundo livro de memórias lia, antes relendo o primeiro, absolutely fascinating, que a carreira nunca mais fora a mesma depois da militarização da política externa americana, quando o Department se convertera num anexo de relações públicas do Pentágono. Kennan saíra em tempo. O Pentágono "queimara os dedos" na catástrofe da Indochina, e, em vez de restaurarem a supremacia do Department, o que seria o lógico e o inteligente, agora o submetiam a Langley, à maldita "company", prestando-se a toda espécie de skullduggery, na palavra bem escolhida do velho Bunker, naquele artigo em Esquire. Não era óbvio que Kissinger valia mil esquadrilhas de B-52s, ou batalhões de psicopatas, posando de James Bond? O embaixador se sentia humilhado na profissão que amara de infância, ao ler sobre a compra da Louisiana e, na juventude, as memórias do tio de George Kennan, na Rússia. Hoje, até aquele pederasta do Ainsworth não o chamava de volta depois de três insistentes telefonemas. Tornamo-nos, nós, diplomatas, meros moços de recados.

O embaixador despertou ao som do que entendeu como "no dunga de mirunga du cabuledê", e a embaixatriz se acompanhava mexendo as costas que ele sabia murchas e cheias de sardas pretas, parecendo um depósito de memorandos incinerados.

Em voz neutra, disse: "Must you really, my dear?"

 

Paulo Hesse, 1935: "Mamãe, quem é Lênin?" Mamãe, 1935: "É um demônio".

 

Educação sentimental, 1944-1969

Hesse baixou em Ann Arbor, Michigan, no inverno de 1944, tinha dezoito anos e o pai queria salvá-lo de um casamento com a filha de um português, raça que, chez les Hesse, se "não fazia jus" a um forno crematório, certamente merecia uma lixeira, e é possível que o velho, ainda se recuperando das encampações de 1943, já previsse a presente e harmoniosa colaboração germânico-americana contra o comunismo, e desejasse iniciar o filho no modus operandi da Novíssima Ordem, que doravante dispensaria mistério e autoridade de Washington, o herdeiro, de qualquer forma, desperdiçado no ambiente de caboclagem indolente, fruto da mistura de raças, em que nascera e se criava.

Deu certo, o aborto do casamento, Hesse parou de escrever à moça em seis meses e não se lembra sequer do nome dela, o que comentávamos incaridosamente na cama da mãe de Sílvia Maria, preservada, e o quarto, intactos, faraonicamente, no Cosme Velho, depois de uma longa noite, às dez da manhã, bebendo champagne Moèt & Chandon, que Hesse acha, irracionalmente, "de negro", dado o monopólio, nos bares da cidade, e não quis temperar estimulantes anteriores com cerveja, "porque fico de pileque, cerveja me deixa tonto, juro, ha, ha".

Naquela noite de 1969 eu debutara socialmente no Cosme Velho, os presentes eram na maioria artistas plásticos, minha mãe colecionara pintura moderna local, "prestigiando", e Sílvia Maria preservara in memoriam uma roda, trimestral, incluindo jovens arquitetos, um dos quais me disse achar "Copacabana do caralho, uma expressão popular autêntica, o que o povo quer e não o que o Oscar e o Lúcio

impõem", os empreiteiros, aparentemente, sendo meros alto-falantes da vox populi, uma senhora tapeceira de motivos baianos matisseados, em que tropecei brutalmente, imóvel e muda ficou, a caráter das criações, um pintor cuja broxa vale qualquer portfólio da Petrobrás, Banco do Brasil e Vale, comunista pré-fundação do pc, em 1922, caquético-energético, parecendo um torno de bolo em que no topo se haviam encardido restos de confeitos, representando número favorito, lembranças de Picasso, "Pablito, mon cher", o crítico de arte de Sadat, rosto rosa cortado de afluentes cinzentos, vulgo Areia Mijada, e o crítico do Outro, estreando na casa em deslumbre inequívoco, doendo um pouco pois lhe faltara coragem de trazer o rapaz dele, o coitado amaria, e Maria Amélia e vários "caras" da idade dela, que não participavam da conversa, não conversavam entre eles também, trocando sorrisos e olhares em código, quando e se se distraíam da contemplação vácua das paredes. Meu pai e o cachorro se solidarizavam contra a invasão em alguma parte da casa, invisíveis e inaudíveis. Sílvia Maria quebrava o gelo dos solitários e a cola dos casais tímidos, "se preferem se namorar por que não ficam em casa, sozinhos?" garantindo o encaminhamento de estimulantes ao convívio humano e de contrapesos sólidos que preservassem civilizado o convívio, formava grupos que abandonava, se consolidados, deslocando-se a flancos menos protegidos, repetindo o processo, enquanto necessário, até que todos estivessem à vontade dela.

Hesse me levou ao jardim. Eu não o via a sós desde 1 de abril de 1964, às três horas da tarde, nós bebendo, ouvindo na televisão uma marchadeira líder berrando "vencemos, vencemos", ele desistira de telefonar a comandantes amigos, que aderiam ou se rendiam, ria e fungava, eu chorava, ou bebera demais, ou as duas coisas.

Nos encontráramos pós-1965 a distância, no Nino's, no Porta do Carmo, etc, depois de trocarmos acenos as mesas de cada um e vizinhanças se entregavam aos cochichos predizíveis, ele me olhando ocasionalmente, boca fechada e re-puxada, expressando a ironia clichê de quem sabia exatamente o que eu estaria pensando e eu tentando responder com a indiferença clichê à altura, um dia me telefonara demonstrando conhecer meus problemas de conseguir emprego fixo, os free-lances anônimos, as sinecuras em enciclopédias, as duas coleções de ensaios publicadas em livros, minha viagem à urss e ao resto da cortina, sem pedir impressões, e, claro, "precisamos jantar juntos um dia desses". Falava sempre bem de mim, "só há um crítico de cultura, geral, no Brasil, Hugo Mann", eu soube e soube que ele soube que eu soube. Num telefonema surgiu nova e longa viagem à Europa ou a Nova York, "você sempre achou do rabo", que me faria bem, o ano que passara em Paris fora desinfetante, do que riu, eu não. A cidade é uma aldeia e Hesse certamente ouvira sobre o meu silêncio nos monótonos e intermináveis festivais de malhação do nome dele. No poder, começou a empregar proscritos de 1964, e, depois do arrastão de 1968, recebeu-os de volta, sem comentários. Não tinha amigos íntimos na redação, isolava-se bastante, cortês e formal no tratamento de todo mundo, e os focas formados já sob o ethos revolucionário chamavam-no de doutor, o que não desencorajava.

Só uma vez, a telefone, falou de política. Na invasão soviética da Tcheco-Eslováquia, em agosto de 1968, escrevi um artigo contra "Voltei", quer dizer, um jornal grande me contratara em meados de 1967, primeiro em anônimos editoriais, depois permitindo um artigo semanal assinado. Nesse tempo já existia uma trégua ambígua e informal entre muitos inimigos políticos, pré-1964. Os militares se demoravam demais no governo, não o entregando às facções civis que os haviam insuflado ao golpe, desapontando horrivelmente as mais cotadas, que, de súbito, se descobriram civilistas de infância, e, apesar de dispostas a uma recaída imediata se chamadas ao dever de dirigir o país, engrossaram temporariamente a oposição. Enquanto durou esse lusco-fusco moral, atribuído ora a maquiavel ora a jesuítas, ora a comunistas, mas que, em verdade, data do primeiro alotamento de cavernas na era neolítica, reemergi como jornalista político.

De vez em quando eu era eu mesmo e escrevi um obituário algo hagiográfico de Guevara, o que violava os limites tácitos da trégua. Hesse telefonou dizendo que Guevara teria aprovado a invasão da Tcheco-Eslováquia e que eu precisava resolver essa contradição. Prometi pensar no assunto. Esse e outros debates se tornaram acadêmicos, em 13 de dezembro de 1968.

Ao sair da cadeia, em janeiro de 1969, recebi, por telefone, o convite ao Cosme Velho, lido pela secretária, "o Dr. Hesse se encontra em São Paulo", e à parte a lista de convidados, a mulher, encabulada, recitou um fecho escrito, "de próprio punho", pelo doutor sobre os plásticos: "They should neither be seen or heard".

No jardim, Hesse me serviu um scotch duplo, pedi água, ele me encarou, expliquei a necessidade, recente, de temperar, age can wither and custon stale, e ouvi, "pois eu continuo o mesmo", e vi o bourbon triplo, ou quádruplo, quase o copo todo.

 

New Haven, 18 de outubro de 1959

Hugo.

Descobri duas coisas sobre mim mesmo, que prefiro bourbon a scotch, você deveria experimentar um troço chamado Kentucky Gentleman, e que sempre fui, sou e serei comunista. Você já leu A Ideologia Alemã, ou o segundo volume do Capital? Minha mãe em 1935. . .

 

Hesse me convidou a pegar a crítica de cinema do jornal de Sadat, este ciente e concorde. "Teu jornal não volta mais. Você precisa, como dizem, sentar pé, não dá esse negócio de free-lance e papagaio, eu manjo, um papagaio cobre o outro, o saldo vira reserva cambial brasileira até que a cobertura desaba na cabeça da gente." Eu já devia setenta milhas e poucas, só mesmo na cadeia meu Diners baixara ao nível da minha realidade econômica. "Te pago seis millias, mil dólares, para começar, há aumento todo ano, viagens à Europa, eu estico a Nova York, e liberdade, absoluta, desde que você não republique o 18 Brumário, falando nisso, os dois processos têm alguma semelhança, o exército, depois do ai-5, é o árbitro único e sem Luís Napoleão, a menos que nossa Madame Sans-Gêne assuma, com aquela bunda atocharia o país inteiro."

Meu jornal, filho porra-louca do liberalismo, fora aleijado em 13 de dezembro de 1968 e seria vendido a alguém do sistema. Nenhum outro me quer. "O Hugo é ótimo, mas", ouvi anos, quando havia resposta, raramente. O coronel que me interrogou na PE, educado, sinceramente aflito pelas minhas condições de desconforto, me avisara que "alguém lá de cima" não permitiria, sob pena de represália imediata, que eu voltasse a escrever sobre política. Se outros esquerdistas manjados já servem a Sadat, nenhum, claro, expressando opinião própria, por que não eu? Aos trinta e nove anos percebi que faria quarenta, que não sou Fitzgerald, Trotski, ou aspirante a Isaac Deutscher, e começava a entender por que certos conhecidos de idade aproximada me falam com volúpia mansa de cabanas na serra e na praia, onde se isolam, só nós mesmos somos capazes de agüentar nossos fracassos, nossa decadência física, nossa exaustão moral. Topei. "Nenhum motivo político ulterior no convite. Da tua máquina à oficina. Cansei de ler fichinhas de filmes e de ver caras de meia soquete fantasia discutindo a alienação do Antonioni." Tudo isso e liberdade também.

E a intimidade raramente morre, sem a separação definitiva de corpos. É uma planta mais resistente do que a amizade, porque natural, cresce à beira das estradas, vivendo do que der e vier, a amizade exige cultivo, dosagem, sujeita a encharcamento ou seca. Habituáramo-nos um ao outro em vinte e seis anos de sensibilidade convergente até quando em choque intelectual, como naquele momento político.

É mais hábito do que conhecimento, reconheço. Sílvia Maria, namorando-o, dependurada no ombro dele, no Château, os cabelos dela caíam à altura dos seios, era redondinha, fofinha, gatée, os olhos líquidos e os sussurros, a voz cheia de espasmos de prazer ou de amuo, o feminino típico da época, matou Hesse na mosca quando ele foi ao pipi e ela veio à frente, na mesa, me oferecendo à vista o colo, não é assim que lera nos romances donde extraíra essa postura? e arfou: "esse teu amigo não é de falar. Faz. Ele mesmo me disse 'don't explain and don't make apologies' ".

Omiti-me de restabelecer a concisão e incisividade do original, preferindo meditar na vitória do conteúdo sobre a forma. No Santo Inácio, enfiaram Hesse numa creche de privilegiados, "Médios", apesar de, no terceiro ano ginasial, ele ser "Maiores". Os jesuítas mantinham frágeis candidatos a "Maiores" numa turma dos "Médios", tentando poupá-los da violência dos grandes. Imaginaram Hesse uma réplica da

mãe, obsessivamente coruja, contribuinte generosa das cari-dades da Sociedade de Jesus, devota a ponto de seguir procissão (o que irritava a família), agressivamente humilde e penitente, sofrendo toda espécie de achaques, em nome de Cristo. Os padres esperavam um filhinho da mamãe.

Hesse, no corredor da entrada do colégio, causou logo sensação. Pesado, cabeludo, 1,80 m, usava calças curtas, já encostadas até pela garotada autêntica dos "Médios". Notei-o impassível sob os comentários predizíveis de outros enfileirados, "passa uma gilete azul nas coxinhas que te dou uma estia, meu bem". De manhã, "Médio", à tarde irreversivelmente "Maior". No futebol de turmas no recreio, botinara três colegas, "aqueles viados", à enfermaria. Embora notícia, integrou-se na divisão superior com a mesma imperturbabilidade em face das provações no corredor. Nunca mais o importunaram.

Na nossa rua em Botafogo, era o membro rico da turma, porém democrático, o quanto os demais não suspeitavam, pois não freqüentavam a casa dele, o que me foi permitido, graças a meu nome, que não é "indústria nacional". Tinha um Jaguar sedan, em 1947, o equivalente, hoje, a um jatinho particular. Generoso in extremis nas caronas, nós o invejávamos sem malícia, pois participava de tudo, dos rachas na rua, em que uma queda forte significava esfola-mento da perna, e o Jaguar serviu bastante de ambulância, e escondendo a bola da dgi, polícia fascista de transição en-• tre a pe do Estado Novo e a de 1964, e na fila das negras que nos chupavam en masse o pau na Rua Icatu, e freqüentando os bordéis da Santo Amaro e Correia Dutra, não raro "inteirando" alguém curto, e nos porres de cerveja e cachaça na Taberna da Glória, e nas idas à praia na cozinha do bonde, privando-se do carro porque não caberíamos uma dúzia.

Não destoava. Certo. Um cara igual? Não. O dinheiro perturbava pouco, pois, de classe média, "não conhecíamos necessidade", e status é coisa de adulto. Presumo que fossem, a) a reserva, que apelidei de impassividade; b) uma falta de meio-termo, saltos da indiferença ao frenesi. Falava sozinho, à "corte", ou ouvia integralmente passivo, nenhum intercâmbio, nem comigo, íntimo. Ia ao fim em tudo, não medindo custo. Menininho, a irmã mais velha deslumbrara a família recitando poesias. Hesse subiu ao quarto dela, decorou-as e desceu horas depois, assumindo o spotlight. Mijara na cama até os sete anos, levando puxões de orelhas e ouvindo questionário da mãe a Deus sobre o que fizera para merecer aquilo. Hesse passou uma noite em claro e não mijou mais. Escreveu numa prova de religião que Judas mereceria respeito se não houvesse se suicidado, enfrentando a parada. Nota zero e uma advertência pessoal do padre-prefeito, o editor-chefe do colégio.

Pré-EUA, a mãe o esbofeteava em público. Nunca o vi reagir de fúria ou vergonha. Nunca o vi reagir. A mãe, senhora "neurastênica", na terminologia em vigor, responsável exclusiva pela educação do filho, entremeava ao relho um excesso de preocupação pelo bem-estar de "Paul", entrando em paroxismos de histeria se ele se atrasava minutos ou fazia algo imprevisto. À noite, púnhamos bonecos' nas camas e íamos ao cassino da Urca, ver os shows de graça, do alto da escada. Enganávamos a idade junto aos porteiros por nosso tamanho, entrando no bolo de amigos adultos. Uma madrugada, Hesse encontrou, na volta, um terço da delegacia local, que a velha convocara, imperiosamente, ela aos guinchos e chovendo sopapos, o que levou um dos meganhas presente a comentar, "tem nego lá no distrito que cagüeta apanhando menos que o bacano aqui". O pai casara-se com os negócios e fazia ponto sexual na Rua Alice, acima das nossas posses.

Hesse tinha quase um ano de EUA quando a irmã, casada e mãe de três filhos, engoliu uma batelada de barbitúricos. Não pedi ou ofereceram explicações. A gente fica sabendo. Ela dera a um cavalheiro num barco do Iate, num "baile" de Carnaval, a sociedade permissiva começou a se expor em público nessas ocasiões festivas. O cavalheiro era desses que falam. Descontando outros e submersos distúrbios, não é difícil deduzir a reação que a autora do "mau passo" esperava dos que lhe prepararam e administravam as prendas domésticas. Hesse veio de Michigan, assistiu ao enterro e voltou no dia seguinte, criando tópico vivo de conversação, a insensibilidade filial e fraternal.

Vi-o em face da cova, olhando-a, abúlico. Nosso padre-prefeito encomendava o corpo, lealmente ignorando as insinuações de suicídio, o que me comoveu. A mãe, que solava

tonitruante, procurava apoiar-se no braço do filho. O pai, de óculos escuros, torcia e retorcia a boca, nele um sinal neutro, cacoete permanente de existência. Hesse, desvencilhando-se das esfuçadelas da mãe, saiu quando começaram a jogar flores, me chamando de cabeça. Fomos ao Luxor, onde tomamos os primeiros e namoramos as primeiras, na infância.

Hesse descreveu a vida em Ann Arbor. O único babado em inglês era o uso de preposições e verbos compostos. Tinha certeza que seria aceito em Yale. Nas casas particulares "penduravam o retrato do velho", Roosevelt. Empresa que fabricasse bidets nos eua enriqueceria. No inverno, as mulheres punham as pernas nos assentos da frente no cinema, como nós, homens, no Brasil, e se estavam de paquete, o odor bastaria para correr os japoneses de Okinawa, sem desperdício de sangue útil. Ann Arbor em si? Madureira universitária e endinheirada. As mulheres que conhecera, todas, davam, principalmente as esposas dos pracinhas no exterior. Havia um ritual idiota, levá-las antes ao cinema, amiga chaperone a tiracolo, nenhum problema nas despesas, o velho Hesse comparecia firme e em excesso. As madames pracinhas choravam alto nas cenas em que "the girl he left behind" fica sabendo que o "dearest one" dela participará de batalha sangrenta. Depois, na casa da amiga, entre manhattans, martínis doces, cerveja e outras abominações, serviam-se dele, não precisava pedir. Post-coitum, nova" choradeira, de culpa, e insistentes apelos a Hesse que nada dissesse a outros estudantes, ridículo, pois lhe haviam sido indicadas pelos próprios. A maçonaria sexual masculina transcende nações, embora mais raramente raças e cores.

Até mulheres de professores, os maridos de corpo presente, atacavam, de pilequinho, dançando com o estudante brasileiro, que não acreditavam latino, pelos olhos azuis, ausência de longos bigodes e de vaselina no cabelo, e a boa vontade comparecer às aulas depois do almoço, prescindindo da sesta, e porque não era gesticulante como o Zé carioca, e, sim, sobriamente nórdico. "Há um desespero sexual na praça, o choque da guerra com o puritanismo, sei lá."

Os professores consideravam Roosevelt superado por Stálin. Sabiam de cor todas as campanhas do exército vermelho que, até na invasão da Normandia, enfrentara cento

e oitenta e uma divisões de elite da Wehrmacht, mais sessenta satélites, enquanto que "nós" lutamos apenas contra vinte e sete das oitenta e uma a oeste, e a maioria de segunda classe. A urss carregava setenta por cento da carga da guerra na Europa. Forneceram a Hesse The New Masses, o Daily Worker, The Nation, pm e uma pilha de autores desconhecidos, os Webbs, Lincoln Steffens, prefácios de Shaw, Joseph Davies, Charles Beard, manifestos de Earl Browder. Hesse não sabia o que dizer. Leu bastante. Lia rápido.

Roosevelt, descobrira, quase perdeu a eleição em 1940, porque o desemprego voltara a quinze por cento. A guerra salvou o New Deal pelo gongo. A economia convertida em arsenal, o fluxo de dinheiro nas mãos de quem nunca tivera, produziram um boom perto do qual a prosperidade dos twenties fora café pequeno. "A História dos eua está no World Almanac, Hugo, em 1941 o Produto Nacional Bruto do país era noventa e seis bilhões de dólares; em 1942, cento e vinte e dois bilhões; em 1943, cento e quarenta e nove bilhões; em 1944, cento e sessenta bilhões. Escrevi ao velho perguntando nosso pnb, respondeu que aqui ninguém perde tempo com "essas invenções americanas bobas e que gastasse o dinheiro dele estudando".

O povo parecia ignorar a participação dominante da urss na guerra, que apaixonava os professores, embora fosse simpático a "nossos galantes aliados soviéticos e a Uncle Joe" e gostasse de Winston Churchill, de V da vitória, ao som daquela "música triste". E populares e intelectuais desconheciam a presença da feb na Itália. Hesse não puxou o assunto, temendo cometer uma gafe, porque talvez nossos pracinhas existissem somente na propaganda do DIP.

Escurecia no Luxor, alguns paulistas passados a ferro e engomados desciam ao bar, a praia trazia uma brisa que os alargamentos de hoje afastaram para sempre. Meninos vendiam amendoim a mil e quinhentos réis o saquinho, que custavam um tostão antes que os americanos pousassem na cidade, e, ao serem roubados, nos legaram os preços inflacionados, a partir de 1943, rumo a Natal e Recife, "onde largaram crianças debaixo de muitas camas", e, ali, naqueles tempos, durante o blackout, muitas meninas de família começaram a imitar as domésticas que as serviam em casa,

servindo também, em baixo dos postes apagados ou em vãos de prédios, comparávamos notas, "me tocou uma bronha", "não botei nas coxas só", e história que se perpetuara em tradição oral, uma jovem assustada ante a proximidade de um vaga-lume, na escuridão do Metro, enfiara as unhas no segundo espadim de um cadete das Agulhas Negras, que urrara uníssono ao cossaco do New Deal, Nelson Eddy, acossado pelos bolcheviques, na tela, e o nosso militar, na platéia, ferido, sentindo mais que ninguém a empatia dramática, talvez tivesse jurado naquela hora jamais permitir que os bolcheviques ameaçassem o solo pátrio. Existiam apenas uma bicha e uma lésbica publicamente conhecidas na Copacabana da época. Ridicularizadas, ainda assim eram reconhecidas parte da família, cuja dissolução próxima principiávamos a intuir. Todas as guerras são intrinsecamente revolucionárias.

Hesse deu um arranque de pescoço, olhando céu e mar, em silêncio. Pensava na irmã? Despejou alguns sacos de amendoim na boca. "Bom pra caralho, não tem igual lá."

"Tenho quatro anos pela frente em Yale, no mínimo, no centro do mundo, em que esta nossa periferia aqui assume a importância e a realidade de um cartão-postal. O meu problema é este casulo dentro de mim, que carrego desde a infância, me pesa e me atormenta, e que lá cresce como um câncer. Preciso de uma cirurgia radical. Você se lembra do Retiro no colégio, a guerra santa contra a punheta? Você parava de bater? Eu parava. Uma semana. De medo do inferno. Até que um dia caguei e li o tempo todo O Vento Levou debaixo da carteira. Agora, à maneira dele, o padre tocava no casulo, forçava a entrada. Nunca ninguém havia feito isso comigo. Você conheceu meu pai minha mãe, minha irmã é mulher e não dá, não dava pé. . . Terminei ignorando o padre porque as perguntas que nos impunha não são as minhas, 'meu reino não é deste mundo', bem, o meu é, logo se é por falta de um adeus, me entenda, posso perfeitamente seguir nossos amigos, me formar em direito, prorrogando seis anos o batente, comendo quem pudesse e entornando firme, depois pegar uma diretoria nas empresas do velho e pendurar um anel numa bocetinha rendosa, cheirosa e vistosa. Faria tudo isso sem esforço. Faço tudo sem esforço, mas sem interesse, puta, I couldn't care less, e a depressão é fora de série. Meu reino, sempre senti nas entranhas, não é também desse mundo. Quero arrebentar o casulo e ver que bicho dá. Não me sinto gente, me acho incompleto, um projeto de homem. E nos States veio de novo o Retiro, no terra a terra, no básico. Americano exige. Quebra pedra. Toma. Os gringos definiram minha indefinição. Não que eu seja loque. Os professorinhos pau menino Jesus pregavam comunismo muito do bem vestidinhos, imitando boêmia de Esquire, écharpe, lencinho quadriculado, fumo e cachimbo inglês, scotch e bourbon do melhor, e o último botão do colete desabotoado. Agora, leram, doutor, leram, sabem o que acontece, dominam a bolsa de valores, que não é a que meu pai pensa. Bombardearam o casulo. Eu não sei nada. Me perguntaram sobre 'nossos problemas'. Quais? Os tamancos do Seu Cabral, Hermes da Fonseca Perna Fina e Bunda Seca? Não se discute assunto de sub-raça na minha casa. Pedi uns livros a minha irmã. Mandou romances. Se passa tudo no mato. Nunca ultrapassei Petrópolis. Charlei que li Huxley, 'alienado', Maugham, 'a woman's magazine writer', e, ha, Karl May, 'fascista'. Me deram Gorki, Maiakóvski, Gold, Wright, Dreiser, as revistas e jornais, fiquei feito naquelas noites que varávamos jogando sete e meio e, de manhã, na cama, só se via carta, e o que eu vi, num estalo, Vieira, pois é, depois dessa leitura toda, queimei pestana, é que nunca enxerguei nada, que o negócio é despedaçar o berço esplêndido a pontapés. Renasci, e não foi em Cristo, meu camaradinha. Pela primeira na vida o que eu pressentia em volta de mim, que me aturdia, se arrumou, minhas baterias se carregaram e, enfim, encontrei mira e alvo. O velho imagina que me formo em business administration. The poor innocent child. Arranjei um amigo holandês, Van Dandt. É um intelectual, um pouco mais velho que nós. É a segunda pessoa com quem converso a sério. A outra é você. Estaremos juntos em Yale. Van escolheu história, sociologia e economia. Embarco na mesma canoa. Ele diz que o intróito é compreender Marx e Lênin. Sabe mais de Brasil que você e eu juntos. Vou dar um jeito nisso."

Na sala, Areia Mijada me disse, "você precisa aparecer mais, menino", a resposta é standard, "estou por aí", os arquitetos e amigas se haviam agrupado no buffet, discutindo de boca cheia a estrutura da casa, de que entendem o modelo e desprezam o propósito, solidez e amplo espaço exclusivos, conceituação elitista, anti-social, as massas se intoxicam em propinqüidade, e "superado", porque as elites imitam as massas, escolhendo, é verdade, o local e armas, uma diferença formal importante, porém o princípio é idêntico, o embolamento, indiferenciação. O crítico do Outro deitava regra a um jovem pintor, ignorando-lhe a companheira, infanto-juvenil e inexperiente, pois "tinha opiniões", e, pior, tentava expressá-las, não percebendo o quanto irritava o jornalista, "já não gosto de mulher, e de babador me funde de vez", erro que o pintorzinho não cometia, "rezando o terço", repetindo, nos lábios, em silêncio, as certezas e sabedoria da imprensa, e calculando mentalmente o montante de assentimento abjeto que lhe renderia indulgências, notas promocionais daquela bichona, cuja coluna inflacionava e deflacionava preços no mercado com precisão que faria inveja a tecnocratas de qualquer governo. Sílvia Maria capitaneava um grupo pequeno nas cercanias do pintor célebre, entregue à la recherche ad nauseam, alguns participantes espalhados no tapete, estudadamente informais, um "cara" de cabeça derreada no colo da dona da casa; it's a fair thought to lie between a maid's legs; não; Sílvia Maria afinara em relação a 1963, não chegando ao esguio, restrita a um meio-termo, apesar da pele sobre os ossos. A roupa parecia cobrir uma estátua e o cabelo não caía mais, fora contido à altura da nuca, ela estabelecera limites medidos palmo a palmo, e as maneiras e a voz, se educadas em trinta anos de tarimba, ofereciam apenas o que exigiam, respeito que é bom, nada de acessível tangível, ou vulnerável à vista. Hesse foi aos arquitetos, que o receberam com a concentração e o sorriso deferentes devidos aos poderosos, se deixando claro que não seriam seduzidos pelo Inimigo, todos de olhar ostensivamente perspicaz, um desperdício, pois Hesse limitou-se a perguntar-lhes se precisavam de alguma coisa, às vezes dava, descuidadamente, uma mãozinha à mulher nas recepções, não ousando jamais, porém, enunciar o nome dos convidados, porque errava quase sempre, e não era indelicado, achava indelicadeza uma perda de tempo. Maria Amélia pôs um dedo na boca e me pegou pela mão, elogio-lhe a performance em The Big Sleep, "meu nome é Doghouse Reilly", ela não tem a mais remota, já não me dói mais descobrir que há gerações posteriores à minha desde que namorei uma moça que nunca ouvira falar de Errol Flynn, Maria Amélia, sorriu em leque "estamos aí", pergunta quem era "aquele cará sentado contigo aquela noite no Antônio's", complexo, complexo, porque no Antônio's só gente de fora goza do privilégio de mesa particular, o resto estando ruidosa e volumosamente comunizado, e "aquela noite" é sempre plural, ninguém sabe quando começa ou acaba, antigamente se distinguia o fim de semana porque sábado serviam feijoada. Maria Amélia parece zonza, prestes a cair, eu a seguro, ela é assim mesmo, perde um pouco o equilíbrio pelo silêncio relativo do ambiente e a pureza relativa do ar, os tímpanos acostumados a uma estabilizante cacetada instrumental, e os pulmões a uma fumaça em que se sente demais, em qualidade, e de menos em quantidade e variedade. Ela é deliciosa. Se algum "cara" pede, dá, não atribuindo maior importância ou sequer se lembrando direito do momento, e some da presença de quem se imagina candidato a proprietário, é patrimônio nacional, que todos devem preservar e respeitar, isenta de impostos e obrigações.

Tirando os noves fora, gente da minha idade, embolotada física ou mentalmente, e carne já largada no prato, deduzo que se trata de uma jovem das províncias, de vinte anos, olhos amendoados, os cabelos negros e finos rolando pescoço abaixo, traços praxitélicos, exceto nos dentes, um "calcanhar" que raramente a beleza natural descuidada disfarça. O rapaz é bad news, de uma série. Amigo íntimo de se pendurar na gente depois do nosso "como vai" e o "muito prazer" dele, e passa a saraivar-nos com um conhecimento enciclopédico da nossa "obra", lamenta enfático a sacanagem de que somos vítimas sob o regime, comprando, de boca, a briga e as dores, garantindo que retornaremos à ribalta em destaque nunca dantes experimentado, acende-nos os cigarros, ri numa clave mais alta que nossas piadas pedem, deslumbra-se diante das análises rotineiras que nos exige da situação, "você é mesmo do caralho", e na hora da nota, da primeira nota, luta na mão conosco e nos vence no acesso ao garçom. É meio filho, meio irmão, meio discípulo, e não nos engana um minuto. Se tivermos sorte, terminaremos apenas avalizando um modesto papagaio de aluguel, dado porque o banqueiro, conhecedor preciso da natureza humana, sabe que pagaremos no departamento jurídico. Se desculpa tão profusamente que concedemos o "você paga quando puder" e, pela persistência, permitimos que se reincorpore a nós, em lugares públicos, ao menos.

A razão dessa tolerância não me é de todo clara. Certo, as mulheres o acham uma uva e o olhar de Maria Amélia é de colheita iminente, faça chuva ou sol. Homossexuais procuram ajudá-lo, vestem-no e o subsidiam, em parte. Se porém o cara é esperto, e não é ele próprio de preferência homossexual, mantém as ligações de "espada a espada" frouxas e ocasionais, sem falar de clandestinas, o quanto possível, pois se catalogado definitivamente, vira bagaço. A variedade permanece o molho da vida. Até aí, tudo bem, mas e os que dispensam o objeto de consumo? Há os senhores feudais, de bares, open houses, fazendas, etc, que dependem de um suprimento constante de companhia jovem e alegre, e o rapaz tapa buraco, indeed, bastando alimentá-lo, dar-lhe de beber, fumar, cheirar, alguns trocados vez ou outra que cubram aluguéis seis meses atrasados e demais ameaças de lhe apertarem a corda que traz sempre no pescoço, marca de nascença. É um preço razoável, que o moço vale, pois completa casal de qualquer sexo, o senhor feudal considerando tabu a solidão de alguém no "grupo", na qual se veria refletido.

Mas e nós, os melhores e os maiores? Essa é a questão. Será que agüentamos o tipo porque não admitimos para nós .próprios a profundidade das nossas feridas e que até lisonjas operacionais nos são analgésicas?

Lembrei-me do nome, Saulo, Paulinho, e contenho a vontade de dizer a Maria Amélia que ele é má notícia, o que a excitaria mais, se conheço o meu gado. A blusa dela, entreaberta, me permite ver a base dos picos, erectos, descobertos, ensolarados. Se eu mostrar interesse, me achará antigo, rindo benevolentemente. Logo sou obrigado a pretensa indiferença, equivalente, na magnitude da impostura, ao respeito demonstrado às "moças de família", trinta anos atrás. Me consolo de saber que fui e continuo gauche, nas duas épocas, rapaz fino, antes, ou, agora, de pau na mão. E não é que eu queira mesmo Maria Amélia, o que fazer dela depois? Me atolaria no tatibitati. Quero é me sentir desejado, poder dispor ou recusar.

Alego amnésia total, ela não insiste, sempre encontra o que procura, me beija de leve na boca, pressinto o registro crítico de Sílvia Maria, e Maria Amélia se desloca para o grupo dela.

Hesse me pediu que esperasse os plásticos se mandarem quando tomaríamos o penúltimo no escritório dele, me pergunto se Sílvia Maria estará presente, ou como se descartará dela, o mais provável.

Sílvia Maria me recebeu mal, abrindo um sorriso sobre olhar vácuo, sinal ostensivo de quem não reconhece outra pessoa e não quer ser indelicado, o que é uma indelicadeza profunda, minha presença a incomoda talvez porque tema uma recaída do marido à Esquerda, ou, possivelmente, faço-a lembrar um tempo que expurgou da cabeça, ou romance com Hesse, em 1963, em que eu era uma das constantes, aumentando mesas em companhia de outras moças, diluindo a atenção que os dois despertavam em lugares públicos, e o único fiel, que eu saiba, à parte a Mãe e o Dr. Pedro Rezende, da gravidez pré-marital, a família é pré-copérnica, arraigada na convicção que tudo gira em torno de si própria, e sou um bólide que perturba a harmonia do universo, nisso Sílvia Maria e Maria Amélia nada diferem, o comportamento de Maria Amélia noutra menina é putaria, nela é coisa dela, e ambas esperam das respectivas cortes obediência cega ao Führerprinzip, a alternativa é o banimento.

Depois da patada inicial, Sílvia Maria arrematou um coice, na ronda de hostess, indagando se Nova York já estava muito fria em janeiro, pois soubera pelo "Paulo" que eu passara uns dias lá. Respondi, de Dean Martin a Jerry Lewis, que minha última pesquisa meteorológica foi feita na Vila Militar, onde não neva, ela fez votos de que minha estada não tivesse sido muito desagradável, e citou vários amigos, politicamente ilustres, colhidos no arrastão do ai-5, o que me leva a crer que devo dar graças a Deus pelo cachê social de uma cana em companhia tão distinta, e, dedo no ar, fisgou um garçom que me atendesse, reconheceu outra pessoal me aboliu dos antolhos.

Em 1963, fui melhor tratado, porque ela não tinha certeza de que seria aceita no meio intelectual, jornalístico, artístico e vagabundo que Hesse informalmente liderava, e, contra a corrente, tomei conhecimento da existência dela, puxava conversa, sentindo-a despreparada para o papel de ornamento de palanque de demagogo, todos nós, então, os homens, monologando sobre nossos programas da Gotha caboclos, inebriados pelo cheiro do poder próximo, vociferantes e cacofônicos, mulher, "companheira", recebendo, e olhe lá, um tapinha no braço e um beijinho no rosto, numa aspirada de ar antes de retomarmos o delírio discursivo. As demais, ao menos, já "pertenciam", pela força do hábito e vaga afinidade ideológica, enquanto que Sílvia Maria, saída do paparico, do "comunismo familiar", na frase de Hesse, visivelmente se afogava na nossa verborragia, e as outras mulheres, no banheiro, não representavam alternativa, e, sim, faziam audiotapes dos respectivos, aproveitando, enfim, a chance de abrirem a boca. O período nos embriagara, esquecidos que eu de bêbado não tem dono, o que nos seria lembrado em tempo e por tempo indeterminado. Não me excluo do pileque, ou da ressaca, mas me canso fácil de tudo. até da minha megalomania, e variava conversando macio com Sílvia Maria, num contraponto de flauta doce, de uma trivialidade revigorante, à cavalgada dos valquírios de carrossel, ela grata e receptiva à lembrança, nunca reclamando da indiferença de Hesse, o orador principal, ou da algazarra constante, exceto ao perguntar, retoricamente, uma noite, "é sempre assim?"

Algo nele a deslumbrara a ponto de torná-la passiva e indiferente ao que só em 1964 se provaria bravata, a conversas resumíveis na frase inelegante "cortar os colhões", nunca especificados, é verdade, mas genericamente reconhecíveis como os da tribo do Cosme Velho e aliadas. Em 1963, esse papo, audível onde a Esquerda se reunisse e se expressasse, soava crível, tanto que ajudou a Direita a mobilizar uma vasta massa de manobra na classe média, a barata tonta de todos os golpes, que confunde espaço com liberdade e termina sempre sob o chinelo alheio. Sílvia Maria, que ouviu as ameaças da boca do lobo, dispunha de amortecedores invisíveis, de uma saudável e imunizante burrice, ou de uma inteligência instintiva que nos colocou, em segredo, no nosso lugar, de quem não ladra não morde.

Não que Hesse e eu fôssemos só farofa e nos entupíssemos à asfixia de nós mesmos. Respirávamos, ocasionalmente, sanidade. Não é desculpa. É um adendo a uma derrota cuja história foi escrita exclusivamente pelos vitoriosos, até o momento. Sabíamos que coronéis "nossos", ideológicos e ativistas, haviam exibido ao presidente um quadro de oficiais pontilhado de maciças transferências a todos os comandos, ordenadas pelo Estado-Maior, de gente que nos era declaradamente hostil, tornando fictício o dispositivo de defesa do governo, já em evidente desvantagem, quantitativa e qualitativa, em meados de 1963. O presidente que, no carnaval daquele ano, fora reassegurado de "absoluta segurança" por uma claque de generais, com quem se tocaiara numa fazenda, recebeu a má notícia, incontrovertível, no estado de placidez dos bois que lhe fizeram a fortuna particular. Não determinou a prisão de conspiradores estrategicamente situados no Alto Comando. Não os levava a sério, pois se viviam lhe pedindo favores, empregos, promoções, etc, e, confrontados, se afirmavam apenas "soldados", eufemismo de apolíticos. Pagaram confucianamente os favores.

A intervenção americana era flagrante, cortando créditos ao executivo federal, fornecendo-os às escancaras a governadores que pregavam abertamente o golpe, mantendo uma vasta e eficiente quinta-coluna em todos os ministérios, financiando "grupos de estudos", que ensinavam ao Establishment econômico as técnicas de agitação e subversão, alimentando de propaganda e subvencionando a imprensa grande, organizando velhotas marchadeiras e outros fronts notórios da cia, estabelecendo o sistema que seria batizado, circa 1973, de "desestabilização". E, decisivo, o estado de sítio de outubro de 1963 não fora sustado por supostos protestos da opinião pública, inclusive a esquerdista, e, sim, pela minoria de que dispúnhamos, escasseando progressivamente, no Estado-Maior, que percebera em tempo que o sitiado seria, em última instância, o presidente, o que Hesse tentou divulgar, mas foi contido pelos militares autores da manobra salvadora, que temiam jogar "colegas em cima do muro", sempre a maioria das gloriosas forças armadas, no quintal da Direita, o que, graças ao silêncio dos cognoscenti, aconteceu apenas cinco meses depois.

E entendemos na plenitude o silêncio e a debandada presidenciais. A alternativa, de que em 1 de abril o líder chamasse os partidários à insurreição, à contra-insurreição, teria sido a guerra civil que ele não quis iniciar, embora existissem condições de resistência, porque percebeu que, se vitorioso, uma incerteza, seria varrido do ar da mesma forma, num processo de radicalização com o qual jamais sintonizara. Jango não era revolucionário. Por afinidade, era "revolucionário", pertencia à classe que o derrubou, a que nunca traiu, em essência, traindo os derrubados, que abandonou, deixando-nos prostrados. O estudantezinho vivendo "existencialmente" a Revolução, os oportunistas e doidos que seguiam a moda populista, as macacas de auditórios, os simpatizantes conscientes, as massas inconscientes que não enxergavam sequer a bandeira que lhes erguemos, não sabem disso, desses "detalhes". Hesse e eu sabíamos tudo. Ele jogou cargas ao mar. Eu naufrago. Partilhamos, porém, o Primeiro Círculo. Se queres um monumento, olha em volta.

Partilhamos também o conhecimento da origem das relações dele com Sílvia Maria, que Hesse, traidor, confia em que eu não traía, o que é outra medida de quanto sou previsível na cabeça do mon frère, mon semblable de infância. Hesse, colunista, pré-1964, almoçava em companhia do seu editor-proprietário, não Sadat, o anterior, "jornalista do povo", no Nino's, quando viram Sílvia Maria enturmada noutra mesa. Suspenderam o mexerico político, passando ao sexual, tradição preferencial brasileira, inquebrantável por golpes, revoluções e até atos de Deus. Hesse, que nem sequer fora apresentado à futura mulher, disse que não seria problema conhecê-la biblicamente. O industrial "esquerdista", cuspindo muito ao falar, hábito levado à tempestade quando o exasperavam, sugeriu que Hesse estava próximo da gargalhada final. Apostaram dez mil pratas, algum dinheiro no ancien regime de dólar a Cr$ 1,20. Hesse cobrou. É possível que dessa base econômica tenham surgido enfeites de superestrutura, da comunhão que gerou três filhos, da sedimentação do prosaico, do rotineiro e do marginal, que, jamais sujeita a contestações profundas não raro sobrevive a intensidades autênticas, físicas ou espirituais. E é certo que, se Sílvia Maria recebesse um briefing posterior, não arrancaria os olhos ou sequer perderia uma lufada de ar que lhe fosse devida, ela é impermeável a qualquer descenso de orgulho, por considerá-lo inconcebível.

A maioria das pessoas se foi, restando o pintor célebre, Areia Mijada e o casalzinho que recebeu a metade exata das atenções do crítico do Outro. O Pintor enrola a língua, oscila, pendular, e fala em rotação retardada, e estaca, se isola alguns segundos, em introversão completa, nunca suficiente, porém, a que os outros passem do estágio de olhar os relógios, de se entreolharem e concluir decisões. Ele volta, reassume, exige atenção, envolve todos, segura manualmente os desatentos próximos, sacode-os e estertora, em ensaio geral do colapso definitivo, mais longo, o ensaio, do que a temporada de A Ratoeira, de Agatha Christie, em Londres. Em tempo desabará no sofá, dormindo e roncando. No dia seguinte, pede uma Coca-Cola à empregada e vai embora sem perturbar ninguém até a próxima performance noturna. O homem é só reprises, o script não sofre a menor alteração. Se alguém sugere um penúltimo delicioso alhures, responde na deixa, "está querendo me enxotar, seu?" Não se deseja outra coisa, porém chovem negativas. Ele se abre num sorriso trabalhadíssimo e rodadíssimo, que, no início da vida, defendeu-o de humilhações de clientes ricos e filisteus e que, hoje, mantendo o formato de cordialidade, usa para humilhar a quem o contraria, tournant permissível a quem se impôs pelo dinheiro, talento, ou personalidade, num meio social em que o único valor real é o poder. Todos o acham um chato, ninguém ousa cortá-lo, temendo represália. Sílvia Maria e ele se entendem, em simbiose perfeita.

O Rio é uma festa.

Olho os postes de luz do Cosme Velho, no janelão que me serve de exaustor da fumaceira, o ar ferino me devolve à serra, a verões quando a escola era risonha se não necessariamente franca, em que eu esticava das bacanais com as coristas do cassino aquele, ao açude do sítio de Victor, em que um dia Victor entrou de carro, num porre federal, transformando e fedendo a água, e confirmou minha firme convicção de ecologista antes que aprendesse o termo e virasse moda, motores e todas as suas obras sempre me pareceram o auge da imundície, a água parada me atraía, como os postes de luz, os demais dormiam dentro da casa, não durmo em olkhozes, não me confio inconsciente a Deus ou ao Diabo, anestesia geral é o meu quarto 101 de 1984, simples, econômico e higiênico, eu preferia uma casquinha da noite em claro. Só. O retorno ao meu natural inconfesso e inaceito por mim mesmo. Estava noutro lugar, estive toda a vida noutro lugar, em exílio permanente, eu e os postes de luz, Hesse me segura o braço, subimos uma escada circular, e, no alto, num corredor restiado de luz, o sob de quem abre uma laje de cemitério a alavanca, o velho desenterrando a velha? avançamos lento, o cão do Pai nos late, não hostilmente, saúda e adverte, e o velho nos encara, imóvel, e imóvel nos ignora e abole, a boca aberta, toda lambuzada de um troço preto, sangue de carne queimada, nas mãos alentado quebrador de gelo e uma prateleira de freezer, onde, petrificadas sob a neve, subsistem arcadas roxas de costelas de boi, o reencontro ancestral de caçador e presa, Hesse e eu competimos em impassividade prenhe e seguimos em frente.

A jornada ainda não acabou. Na altura do escritório, um menino de pijama, esfregando os olhos com os dedos e mumunhando, bloqueia Hesse, que suspende o filho nos braços, antes me indicando a porta, e leva-o de volta à escuridão. É bom pai, como dizem. Carrega as crianças a lugares que desconheço, o zôo, o jardim botânico, o cais do porto, o Pão de Açúcar, o Corcovado, leva-os nas costas à rebentação, faz-se de garupa, e freqüenta, em companhia da mulher, as sessões de "comunicação" entre pais e professores do Souza Leão, ouvindo mudo, atento, assimilando, energia e transportes insuspeitados.

O escritório seria do sogro, que o passou, grato, ao genro, ao enviuvar, pois idéia da Mãe, depois que a pressão alta do marido disparou, para poupá-lo de ir à cidade, é que ela não conhecia a camaradagem respeitosa, entesourada em trinta anos de convivência, distante, porém, consciente, entre os donatários da Travessa do Ouvidor, a exclusividade implicitamente regulamentada da ruela, o único barbeiro no mundo que domina o aparo exato de todas as segundas-feiras, e outras amenidades, ameaçadas, é verdade, pela malta nova e anônima, onipresente e crescente no Rio, os jovens que, apesar de anêmicos, urram tarzanescos, e pilhas de mães nordestinas e ninhadas que converteram a Travessa em ponto, e ao ouvi-los e vê-las, o velho se diz, como Santo Agostinho em face da castidade compulsória: "Ainda não, ó Senhor". A mulher morta, Hesse herdou a sala, em que o sogro não pôs ou o genro dispôs, ambos partilhando um esculhambado informalismo nessas coisas. As estantes "cristaleira" continuam lá, enfileirando livros de direito, formação cerrada e uniforme, ninguém diria que contêm matéria diversa, a marotagem dos iniciados começa pela inofensividade das aparências, revistas forenses modernas e do tempo de Dom João Charuto, sobre as quais, numa mesa, Hesse depositara uma vitrola portátil, que sei dele pelos discos, Wagner tudo, concertos de Beethoven, algum Prokófiev, nenhum Brahms, "aquele açougueiro", e, popular, Bing Crosby, Sinatra, Sara Vaughan e Ella Fitzgerald, tentei fazê-lo ouvir Bob Dylan, sugeriu que o cavalheiro precisava de um otorrinolaringologista e "Eliot disse isso melhor", ou "os pais compreendem muitíssimo bem o que estão criticando, daí criticarem". A Mãe conseguiu assumir espaços nas paredes, que encheu de Dacostas, Dis, José Paulos e outros visitantes da mansão. Parecem rejeitadíssimos, vários perderam o equilíbrio, outros, arrebentaram-lhes as vidraças.

Hesse, de volta, abriu a geladeira perto da escrivaninha, tirando o gelo, e puxou duas garrafas, uma de Kentucky Gentleman e outra de Dimple, que botou em cima de Economists, Euromoneys, Observers, Sunday Times, New York Times, Der Spiegels, Le Mondes e o resto da indústria internacional da mendacidade. Não há prata da casa. O gosto dele pela ironia não vai tão longe.

Está bebendo demais, calculo que um litro naquela noite, não há indício, porém, de que o freio de mão, ao menos, já se foi. Depois de me servir, põe baixinho Bõhm regendo o dueto de Wotan e Fricka no segundo ato de Die Walküre, supremo, sem dúvida, mas o preço da glória em Wagner é sempre o masoquismo, e o meu estoque pessoal, francamente, está encalhado. Não entro nessa briga de marido e mulher e pergunto o que vai acontecer agora, pós-Ai-5. Os rumores de violência, comprovados ou profetizados, invadiam meu mundinho de botequim e gostaria de saber o que a outra metade pensa. Hesse, cantarolando a profundidade inquisitorial de Fricka, acha que a tortura é essencial ao sistema, por três motivos: primeiro, qualquer abertura política levaria num processo natural de encadeamento a reivindicações sindicais, e a violência breca os mais afoitos. Esse, o macroobjetivo, tácita ou conscientemente endossado pelos donatários do poder, e daí o maior entusiasmo de São Paulo, onde o dinheiro grosso se concentra e financia a repressão. Segundo, a tortura distrai o oficialato bronco e ressentido que, na guerra ao comunismo, de mãos cheias, não se sente tentado a desviar as frustrações para cima, pois fascismo, mesmo acaboclado, encerra componentes anticapitalistas, "e aqui não temos a gana e as oportunidades, sem falar da pessoa única de Hitler, que garantam explosões externas de ódios, o caldeirão terminaria se rachando e estourando internamente". E o terceiro, um tanto irrelevante, decorrência dos dois anteriores, a repressão criou interesses próprios, em manter e expandir seu poder, como qualquer burocracia governamental. "Se inexistisse a mais leve oposição, precisariam inventá-la, já é, em boa parte, fictícia, exceto pelos garotos que acreditam em foquismo e outras fantasias guevaristas de hacienda."

E bom ter amigos inteligentes e informados. Hesse acha que devo lie low, não me escondendo, ou me exilando, e, sim, me privatizando. Diversos tipos "quentes" pré-1964 fizeram arranjos semelhantes com o governo e vivem em paz, depois de gramarem anos no exílio, ou "hospitalizados". É, conheço alguns. Faturam de dia no suposto boom, que criticam, em particular, à noite. Dialetas todos. "Botocudo não sobrevive fora da taba", hum, "não que você seja", ah, "nem eu", agora, "vou must", fatos são fatos: "Não te deixa bestificado a irrelevância absoluta deste país no contexto de controle de recursos, de disponibilidade de riqueza, ou de poder? Toda ação meramente interna esbarra em obstáculos externos irremovíveis, até que se ouça his master's voice. E lá fora que se resolvem as coisas, de uma forma ou de outra. . . Enche teu copo e manéra na água. . . Você já pensou se tivéssemos vencido em 1964?"

"Pensei. Mergulharíamos de barrigada no escuro, possivelmente na merda. Apesar de tudo, eu correria o risco."

Hesse se serve de outra talagada, funga, me olha sobre as lentes, e duvida, dizendo que me fuzilariam no ano I, porque sou independente, não me dariam o tempo de correr o risco ou da raia. "Você e o Roberto Marinho ficariam uma gracinha de mãos dadas no paredão, Black & White. E você é Buchanan's puro. Um comunista que abomina o stalinismo, isso é Ibsen, não é Marx, você é um Dr. Stockman depressivo, ninguém te quer."

Vai pôr Götterdammerung desta vez, não é simbolismo, é arte pela arte, se move fácil, a cabeça não balança de um lado a outro, sinal certo e único de porre nele, nunca há engrolações, tombos e troços semelhantes. Alega que aprendeu a beber em Kentucky, em férias de Yale. Sofrerá nessas sorties de elite a primeira das recaídas? Nunca me ficou claro. Em Yale, ao contrário do que me dissera no Luxor, aprendeu business mesmo, e, de visita aqui, deu de falar a linguagem que o reaproximou do pai, que o exibia orgulhoso a amigos em negócios, a quem o jovem impressionara, lançando, talvez, na praça, os prolegômenos, fresquinhos da cátedra, da análise de sistemas e o resto do economês que, pós-1964, entraria em todas as bocas, em alguns casos a boticão.

Never apologize, never explain. Um dia, a sós comigo, chamado ao telefone, me forneceu o pedigree completo da jovem, "adoro sociedade", e saiu correndo feito um veado, ou até viado, para atendê-la. Num almoço gigante, percebi que várias infantas, selecionadas na certa pelos pais, se candidatavam a substituir a renegada portuguesinha, e me repugnaram novamente as expressões de deslumbre do meu suposto Kampfgenosse radical por meninas que usavam todas, na época e classe social ali representadas, a voz de bebê concupiscente que fez a glória satírica de Marilyn Monroe. Terminamos arrastando algumas no carro de Hesse, um Mercedes, então, fruto fresco do "milagre alemão", e, bêbado, entrei no clima, explorando não muito delicadamente o corpo de minha companheira, que se queixava, entre amedrontada e furiosa, menos pelo meu bafo, mistura de uísque, cerveja, cachaça e feijão, do que pela chance perdida de disputar o objeto marital no assento da frente, ao volante. Me irritava a resistência e salvou-a de um troncho eu ouvir Hesse dizer à criatura pulcra à sua esquerda que os americanos eram estúpidos, sim, só tinham dinheiro, compravam talentos estrangeiros, como aquele alemão Oppenheimer, que bolara a bomba atômica, e que até nos cursos de poesia em Yale os professores se prostravam diante dos ingleses Ezra Pound e T. S. Eliot.

A melhor ironia é a não compreendida pela vítima, como a mocinha delectável ao lado de Hesse, que repetira papai e mamãe, os arautos de uma auto-suficiência que chegaria ao epifânico, pós-1964, mas já previsível nos idos de 50. Somos os maiores. Americanos têm apenas mais dinheiro que nós, nos informam os nativos que têm apenas mais dinheiro que nós, inocentes da contradição e da pacholice ignorante.

Descansando da luta corporal, para alívio de minha companheira, que o expressava em baforadas de fole, eu me perguntava quem era Hesse, o debochado que teutonizara Oppenheimer e anglicizara Pound e Eliot, o Hesse que me definira uma forma de vida criadora contra a morte estúpida da irmã, antítese que percebia agora, com tanto atraso, fazendo-me duvidar dos meus supostos poderes superiores de percepção, ou o aspirante a tecnocrata que reassegurara o pai e coterie sobre a necessidade do que chamávamos entreguismo. Eu precisava saber quanto estava o jogo.

Na casa da família, na Avenida Köhler, em Petrópolis, o deboche desceu de nível e significação. Fornecemos Qualquer Coisa, uma cachaça mortífera, com o gosto despistador de suco de laranja, às meninas, elas, antes, prudentemente, recusando bebidas "fortes", uísque e gim, e se entreolhando, de sobreaviso. As moças de família então davam como as de hoje. Precisavam apenas de um bate-bola prévio, ou de estimulantes, amigos delinqüentes, e.g., Victor, pingavam cantárides na Coca-Cola das visitantes. Não é uma generalização excessiva dizer que havendo local, havia crime. A diferença era o mínimo de alardeamento, a maior individualidade no encontro de macho e fêmea, ao contrário do arrastão trombeteado e psicanalisado aos quatro ventos, de nossos dias.

Num intervalo, na copa, perguntei a Hesse "Que fim teve aquele Van Dandt que te politizou?" Ele prosseguiu caçando bourbon no estoque. Repeti. "Van confunde política e auto-afirmação. Organizou uma célula comunista, pública, na faculdade. Não lia nem os jornais, aparentemente. O comunismo é o novo pretexto de manter a economia de arsenal americana. E combatê-lo é garantir os mercados de exportação e importação do país, evitando a emergência de nacionalismos, autarquias econômicas, tudo agora rotulado, para propaganda, a serviço de Moscou. Ir contra essa linha justa custou muitas carreiras nos eua e não há posição mais impopular. E perdoam menos um membro da elite que a traia. Você leu o que fizeram a Alger Hiss, não? Van e eu discutimos a situação. É inútil. Ele é um fanático. Recebeu bilhete azul da universidade, via departamento de imigração, sempre se encontra o recurso que sufoque o inconformismo, dentro da lei. Não entrei nessa. Não me entrego a fés, a Santa Madre me vacinou, uma boa educação imunizante. E minha ignorância me preocupa, não a intelectual, que é fácil de corrigir, ignorância em experiência, toda, considero babaquice me guiar por meia dúzia de livros de gênio se não vivi o que propõem. Van se queimou comigo. Amém. Decido minha vida quando estiver absolutamente certo, decisão particular, de ninguém extra, partidos ou pessoas, get it? O importante é ter acesso aos chamados corredores do poder, se não você termina perdido e é marginalizado. Cunning and silence, sim, exílio, não, é escapismo estético em face da realidade, o que Van adotou e o devolveram, um bagaço, ao buraco na Europa donde saiu. Valeu a bravata? Quanto a mim, permaneço em esplêndida indecisão, à maneira de Nicole Diver, hesitando nas compras. Não se preocupe, sei o preço e o custo da mercadoria. De qualquer forma é essencial que arrume mais uns seis anos fora, nesta província emburreço e enlouqueço, isto aqui é o anti-acesso, e se você me permite encerrar este interrogatório policial, recomendo o acesso à bundinha daquela moreninha, qual é mesmo o nome dela, Wandinha, chora horrores, mas adora. Começo a entender as posições filosóficas do marquês de Sade."

Hesse me falaria do anticomunismo de Yale e grupos outros em que circulara. "Uma religião quase, que não se precisa debater, a fé sublima tudo, prescindindo de argumentos racionais." Ouviu várias vezes que "lutamos do lado errado na guerra", e tiradas intermináveis sobre os judeus pinko influenciando "that man" Roosevelt, que cedera de graça metade da Europa a Stálin. Em 1948, a vitória de Truman contra Dewey enchera de horror os colegas, que consideravam o novo presidente um "intelecto Casa Tavares", frouxo, e um gerente do creeping socialism, o socialismo a passo de cagado que imaginavam a ideologia do New Deal de Roosevelt. "É divertido", disse, "antes do New Deal, um por cento possuía vinte e nove por cento da riqueza do país. Pós-New Deal, um por cento domina trinta por cento. Está documentado."

Não que a política empolgasse o ambiente. Hesse sentiu nos colegas um desprezo generalizado pelo tema. A ênfase era na vida particular, cheia e rica. Ficava subentendido que os eua imporiam ordem ao mundo, substituindo as decrépitas e incompetentes Inglaterra e França, e que a URSS não ia lá das pernas, blefava, um catedrático de economia, prêmio Nobel, Paul Samuelson, rotulara Marx de "pós-Ricardiano menor". "Eu resumiria a posição deles assim: o capital tecnologia e know-how americanos, apoiados, se necessário, no Pentágono, integrarão economicamente o mundo. Acabou essa história de indústria artesanal, nacionalóide, de blocos econômicos, autarquias, etc. É free trade, de Washington aos afluentes, e vice-versa. E chega de socialismo de Irmã Paula, do revolucionarismo sentimental inaugurado em 1789. Estudo atentamente o que pensam me inculcar. Mantenho a porta aberta, repito que me sinto inexperiente, e sugiro que você faça o mesmo, se bem que daqui é difícil, o que desce ao cu-de-mãe-joana é o habitual, sorry."

A vida social em Yale também o impressionara e lisonjeara. O germanismo dele caiu muitíssimo bem, principalmente depois que explicou ser filho de industrial e não de plantador de café. Alguns colegas passaram a chamá-lo de "De Hesse", "parente daquele moço de recados entre Hitler e os junkers, Philip de Hesse". "Você não avalia o anti-semitismo da elite americana. Truman reconheceu o Estado de Israel porque senão teria de asilar os sobreviventes de Auschwitz, etc. E antes dos massacres, o Departamento de Estado fechou a entrada aos judeus, quando havia tempo de salvá-los, pois Hitler os cederia em troca da abstenção dos EUA na guerra. A 'solução final' começou precisamente em dezembro de 1941." Os rapazes, à brasileira, eram cronistas do respectivo machismo, contando a evolução da pegada nos seios, à punheta, ao dedo, à trepada. Hesse ouviu, entediado, o companheiro de quarto, Dick, floreando os mínimos detalhes. "Meus prazeres não são muito eclesiásticos e prefiro mantê-los no sigilo do confessionário, ha, ha." Apesar disso, aprendeu coisas de Dick, a quem invejava a cobiçada participação em Skull and Bonés, sem admiti-la, a inveja, claro, "ser excluído é também uma experiência útil". Um dia, Dick perguntou-lhe se ficaria nos eua, pós-graduação. Hesse respondeu que sim. O amigo, então, espinafrou-lhe o sota-

que. Hesse riu muito: "Essa é a verdadeira herança da decantada fronteira, a dissimulação, elevada à categoria de arte, de um- país conquistado pela escória européia, escoladíssima em esconder crimes passados, mestra na reticência charmosa. Achavam meu inglês excelente. Ao me admitirem 'em casa', virei cucaracha. O desdém deles pelo resto do mundo é orgânico. E por que não? Tomaram tudo que quiseram, na marra ou conto do vigário, Napoleão que o diga". Em todo o caso, Hesse absorveu meticulosamente a fonética de Dick. Novos conhecidos o imaginavam americano.

E Dick era cheio de surpresas. Depois de uma reunião alcoólica nos aposentos de um colega, "os filhos da puta põem preparados para envelhecer as janelas, você acredita? Há vários tipos de saudade da senzala e de senzalas, eles continuam de quatro diante de títulos e tradições", voltaram ao quarto e Hesse caiu exausto na cama. Minutos depois sentiu que lhe seguravam o pau, que lhe abriam a braguilha e que o chupavam. Dick. "Não reagi, talvez porque o porre amortece esse tipo de reflexo hostil, ou porque estivesse gostando, ou porque não quisesse ofendê-lo e, de qualquer forma, why not? Agora, quando acabou, permaneci imóvel, metade cansaço, álcool, e o resto encabulamento. Ele ficou histérico. Deu de gritar 'você tem nojo de mim', bis, encore, ia acordar a casa toda, foi só o que me bateu na cabeça. E aí se mandou. No dia seguinte, mudou-se. Escreveu um bilhete cheio das bobagens de praxe, 'me considere seu amigo', sem tocar nos motivos. Não fiz nada. Cumprimentava sempre em aula, mas me evitou, até em grupos. O bom é que ninguém pergunta nada entre homens, a discrição é compulsória. E a namoradinha dele é uma graça. Casaram assim que Dick tirou o Master. Não me convidaram. Soube que Skull and Bonés compareceu em peso."

Hesse se diplomou em business administration magna cum laude. Deslumbrado pelo ingresso do filho no aprisco, o pai passou a mandar-lhe cheques a pedido, sem perguntar nada, confiando em que Hesse se doutoraria tecnocrata, assumindo, no futuro, as empresas da família. Vi parte de uma cena importante, em Petrópolis, num fim de semana, em que Hesse informava precisar de um Ph.D. "em cultura geral", e o velho, com a condescendência dominadora de um coronel atendendo à puta preferida, concordou prazerosamente, "o que você quiser, agora, veja lá, não vá se empanturrar de teoria, a vida prática é cheia de surpresas e nisso teu pai é mestre. Estou orgulhoso de você, do seu brilho, você é mesmo meu filho, saiu a mim".

Mais tarde, nós dois, no D'Angelo, ao chegarem os martínis secos e chasers de cerveja, mistura com que nos envenenávamos na época, Hesse ergueu o copo e disse: "Você sabe, se Judas tivesse investido as trinta moedas de prata num movimento revolucionário passaria à História como um líder. Afinal, foi para ele que Jesus insultou o proletariado, ao declarar que 'os pobres estarão sempre convosco' ".

Desconheço detalhes do período pós-graduação, em que Hesse pegou história, sociologia e economia, exceto pelo que mencionava ter lido, na coluna que fez nos anos 60, de ultra-esquerda, e cartas raras, politizadíssimas, o inverso da atitude de jeunesse dorée que assumira antes, sempre pontilhadas do espírito esculhambativo sobre coisas, pessoas e costumes, que davam molho à substância política. "Sou um bom aluno, faço provas escrevendo o que me ensinaram. Quero saber como pensam e usar o que aprendo contra eles, quando me convier. O timing é essencial."'Ou: "Vale tudo. Teu amigo Trotski tinha razão nisso. Jesuítas, ou comunistas, nunca disseram que os fins justificam os meios, e, sim, que não se pode julgar meios independentemente dos fins. Q.e.d". Ou: "Nada mais repulsivo que liberais. Enriquecei-vos, disse Bukhárin aos kulaks e, depois de ricos, os expropriaria. Ok. Enriquecei-vos, dizem os liberais americanos e os nossos e, isso feito, acrescentam, 'uma esmola pelo amor de Deus'. É o que passa por reforma no capitalismo e na social-democracia. Tome nota, não há o que eu não seja capaz de fazer para destruir esse sistema. É meu objetivo na vida. É minha vida. Minha única dúvida é tática".

Agora, ali, no escritório, Wellegunde, Wogline e Flosshilde e, inédito em Wagner, Dimple, fazendo coisas nos meus nervos de que amanhã me arrependerei, nenhuma palavra de Hesse, desdenhosa que fosse, pelo que renegou, sobre amigos e companheiros que fizeram dele uma escarradeira onde descarregam as humilhações, "o sentimento de rejeição e de insegurança, que é o pão nosso de cada dia esses anos todos".

"Amigos a gente só tem os de infância e juventude. Sempre quis saber por quê. Por que um ampara o outro, pela presença, comunizando as primeiras vulnerabilidades, quando não se é nada e não dá para disfarçar, e se espera tudo, em geral tudo de pior? Você se lembra a primeira vez que entrou num bar, enfrentando os grandes, como iguais? .Ou rodar num caminhão no escuro, no mato, numa espécie de caixão aberto e volante, em que se ri, meio encagaçado, o riso de volta reassegura que ainda há vida, ou saindo de uma porrada coletiva e se apalpando todo, bestifiçado de estar inteiro? Ou a subida do pau que na entrada do primeiro puteiro parecia encolher cada vez mais? Sempre que encontro alguém daquele tempo, mesmo que não sobre nada de novo em comum, o sentimento de intimidade me volta por baixo da máscara que enfiamos durante os anos. É impressão só, claro, que no papo some logo. A máscara é a cara da gente."

Hesse está de olho no disco, em que Siegfried entoa os lamentos maniqueístas do autor, o ódio de Wagner ao mundo material em glorious technicolor and stereophonic sound, que se resolve quando os heróis morrem, o último gesto de agressão, fascinante, inevitável, mas desde o início em clímax, é como entrar numa briga de amantes no fim, em que se disse e fez o imperdoável e não há retirada possível, em que o intelecto crítico, o articulador da crise, obedecendo a algum impulso inconsciente, perdeu o controle da situação, virou servo do impulso, e se debate, inutilmente, tentando recuperar prumo.

Hesse aciona o fecho éclair: "Infância, primeiras impressões, e daí e daí. Nunca te ocorreu que é apenas uma questão de precedência e, antes que eu me esqueça, de dependência? É claro que um bebê tonto, confuso, impotente, se agarra em mamãe, babá, cachorro, cadeira, o que for, porque estão lá, ocupando o vazio. O resto é literatura e Freud é um grande escritor, ele e Platão ficaram célebres nas disciplinas erradas. E você se lembra, pois esses troços ou pessoas te preencheram antes que você criasse capacidade de analisá-los, de discriminar. Madeleine de matuto é sujeira e cheiro de mato. Vale? Em Paris, comi um doce de laranja e foi aquele retorno do reprimido. Detesto doce de laranja, cuspia fora em criança e minha mãe me esbofeteava, obrigando a engolir. A emoção é forte, não nego, como dessa merda aí, Wagner, corta o discernimento crítico, talvez ele pensasse que assim afugentaria os credores. Você não ia discutir minha traição, meu ostracismo, apesar de sermos íntimos, mas somou os dáblios, whiskey e Wagner, e voltamos à aurora da nossa vida. Esquece. O que há de comum entre nós é que não nos interessamos o bastante pelos outros para dependermos deles, vivemos nossas abstrações particulares mais intensamente que qualquer contato humano. É o nosso 'segredo', que os outros vislumbram, sem entender direito, só percebendo que os exclui, o que é correto. Sílvia Maria te esnobou hoje porque me reconhece em você, um desvio de ressentimento".

"Muito bem, e os madeleines do esquerdismo? Se dói, por que me cortaram? Ou eu os cortei? Continuam indo ao jornal, pedindo matérias promocionais aos meus editores, adulando-os, e sabendo que não sai uma linha sem autorização minha. Logo, é a mim que adulam, de dia, e à noite me esculhambam. Não só a mim, claro, ao Sadat, Brito, Blochs, Civitas, Marinhos, aos Mesquitas. O feudalismo dos Mesquitas. Meu caro, os Mesquitas converteram o esquerdismo bilubilu do teatro paulista num acontecimento nacional. Você conhece algum diretor de cinema novo ou canário contestatório que não tenha se servido de Manchete ou da Abril? Nossa Esquerda quer destruir o Walther Moreira Salles, mas, antes e durante, fica puta se ele não a convidar, R.S.V.P., a drinques. Você pode conceber Lênin tentando penetrar em bailes no Palácio de Inverno?"

"O ideal, a vocação dessa gente, é o PC, o Partido do hímen complacente. Pré-Ai-5, meu chargista fazia uma discreta jeremiada aperturista na página editorial. Nas horas vagas, criou uma campanha para a esso. Censurado, resta a esso. Certo, 'não se deve perder posição e conhece teu inimigo', o que é muito diferente, porém, de fornecer o marquês de rabicó ao inimigo. E há a catarse noturna, as reuniões em que nós, agentes do sistema, somos triturados. São deliciosamente clandestinas. Canapés marxistas deglutidos en famille. Para quê? Para nada. Mas é gostoso, como trepar a própria mulher em rendez-vouz."

"Os milicos puseram em ordem a vida desses tipos. Deram-lhes, de presente, a censura. Não há nada a fazer, reclamam. Você já pensou na facilidade de sabotagem industrial neste país em que segurança é potoca de discurso de general? Ou de assassinatos de líderes, a domicílio, quando qualquer cara de doutor atravessa o porteiro mais desconfiado? Ou da formação de um sistema de propaganda, de Washington a Paris, impondo a imagem da ditadura nas comunicações? Os gregos, sob um pau incomparavelmente pior, estão nessa, ganharam a parada promocional, aliás. Não, nossos jovens terroristas preferem assaltar bancos em que o dinheiro é reembolsado pelo seguro, que é reembolsado pelo Instituto dos Resseguros, com o dinheiro do povo que os terroristas presumem estimular à ação."

"O povo, caixa alta, merece aquele abraço, a distância. Inventamos o abraço verbal, é mais higiênico. A Esquerda nunca soube o que o homem da rua acha, experimenta, percebe e espera. Quantos esquerdistas entraram numa fábrica sem que fosse para comer um churrasco do Silveirinha, ou decorar o centro de recreação, e, infalível, impondo o abstrato desumanizador ou o primitivo condescendente. Imagine um painel descrevendo um dia de trabalho, não à Ia Marx, assunto esgotado, digo o movimento físico. 'Seu' José, meu ascensorista, chamado de 'Seu' porque parece sessenta anos, é mais moço que você, acorda às quatro da matina. É o jeito de chegar no batente às oito. Sai às seis e leva quatro horas voltando. Pinta a consistência, a produtividade, o investimento afetivo desse tempo, que você supera Hogarth."

"A que hora você falaria ao 'Seu' José? Não há hora vaga, de lazer humanizável. Nós dois, num único dia, cagando e lendo no banheiro, vivemos uma existência cultural maior que a vegetação inteira do 'Seu' José. E, tecnicamente, ele já morreu de fome. Os 'Seus' Josés, mulheres e filharadas não sobrevivem de salários, seria impossível. Entraram na economia paralela, do biscate, da costura, guardam carros, consertam eletrodomésticos, enceram, lavam roupa, vendem banana, reciclam os bens de consumo da classe média, estabeleceram uma infra-estrutura artesanal de serviços, de resto preenchendo uma lacuna da nossa pseudo-industria-lização. É ganham sobras de tudo. Somos generosos na distribuição do supérfluo, quando não nos sentimos ameaçados. A Esquerda não afere as afinidades que a 'paralela' cria entre os proles e o sistema. Meu chofer tem uma toca no Rio Comprido. Viraríamos, você e eu, omelete, se entrássemos lá, agora é dele. A visão político-econômica do 'Seu' José atinge a quitanda da esquina. A Esquerda discute multinacionais, os modelos do Celso e do Fernando Henrique. Toda revolta popular no Brasil se alicerçou em babalaô, no nível de percepção das massas mobilizadas. Farrapos, antes que você me interrompa, era liberalismo de elite, canto de galo, galeto bravo, da revolução burguesa. O Julião intuiu essa necessidade de nivelamento. Quiseram forçá-lo a engolir a mistificação leninista da aliança do proletariado e campesinato. Destruíram-no."

"A alma do homem é capitalista. E. M. Forster, ao comprar uma granjota, pensou logo na eventualidade desagradável da expropriação pelos nasty bolshies. A nossa Esquerda fala de fraternidade. Que qué isso? Uma revisão materialista do conceito comunitário cristão? A solidariedade não é fraternidade, só emerge no desespero do despoja-mento total coletivo, quando não há alternativa à violência. A Revolução Russa aconteceu assim, em fevereiro de 1917, no impulso da fome insuportável do povo, no horror da guerra e no desmoronamento estrutural do tzarismo, que os bolcheviques encamparam, ao darem um golpe militar em outubro de 1917. O homem-Rousseau, que a Esquerda ama, de longe, prudentemente, desde criança procura entesourar, acumular, e não repartir. O socialismo é contra a natureza humana, nega o que o teu amigo Freud, corretamente, definiu como o cerne biológico incivilizável do homem. O socialismo é essencialmente uma concepção ética neoplatônica, bafejada de sociologês e economês."

"Você me dirá que a ordem vigente no Brasil merece combate, suicida que seja. Certo, o quadro não mudou. Nada tem de novo, mesmo quando você escrevia livremente e nossos amigos cassados se empossavam. Cessão de matérias-primas das quais, no líquido das exportações, cujo mecanismo não controlamos, nos sobra, no duro, dez por cento, viu, li também os relatórios da ONU que você me reserva na ponta da língua, esperando a réplica. O saque dos empréstimos, em que o déficit é financiado, aumentando aos cornos da lua, e além, o débito total e o serviço, le mot juste, e quarenta por cento da dívida, a palavra sempre comparece, servem às multinacionais. Pagamos para nos endividarmos. A imposição de uma subtecnologia, especulação em ferro velho, inexportável e inabrangente socialmente. O fim do empresariado nacional que não resiste a capital de giro a juros de sessenta por cento ao ano, no mínimo, enquanto as multinacionais, valendo-se do mero aval da matriz, obtêm crédito ilimitado do Banco do Brasil, a "juros de Londres"; metáfora ruim, hoje; já que erva de fora, direta, entra aos fiapos. O Banco do Brasil, o povo, paga todas as contas e arca em sangue, suor e lágrimas, com todos os prejuízos. E os milicos instituíram um super-Estado a fim de servir, again, esse sistema e protegê-lo. Ridículo, concordo. Mas é também didático. Os milicos, a nível e ritmo de cavalo de tração, começam a perceber que instrumento poderoso e flexível é esse super-Estado, que, de tão grande, se basta a si próprio em muitos setores, crescentes. E já que somos a chave da hegemonia dos eua na América Latina, ou seremos a China da América Latina, os milicos vão mais e mais exigir melhores cômodos no pardieiro do III Mundo, até obterem casa própria, totalmente aparelhada. Não precisam sequer renegar a ideologia, a "falsa consciência", do anticomunismo. É sopa no mel. Nossa sobrevivência próspera se tornou indispensável à saúde do imperialismo, logo sirvo ao imperialismo. Não estou sendo irônico. Sou um realista." "A alternativa é o Vietnam, aquela agonia. Você sabe que aqui não dá pé. Viramos mercado neocolonial desde o século XIX, roubaram-nos os estímulos sentimentais das alienações de território, da falta de soberania. E no Vietnam não há lugar para você. A revolução vem de baixo, sanitizada contra pressupostos humanistas de elite. Compare o Vietnam à Espanha. Na Espanha, os intelectuais queriam uma briga de foice que, ao mesmo tempo, fosse limpa. Auden, se cagando nas calças e descobrindo discrepâncias entre o comportamento da GPU e as beatitudes episcopais. Malraux duvidava em Nietzsche. Orwell resmungava ao meter as mãos na merda, quando era da essência da guerra a imersão total. Você leu a carta de Simone Weil a Bernanos? É um dos documentos mais repulsivos do nosso tempo. Ah, esses bananas-ouros do humanismo. Gandhi é um assassino maior que Hitler ou Stálin. No Vietnam cortaram a literatura. Nisso Ho Chi Minh e Platão se encontram. Proibida a entrada de poetas com sensibilidade complexa e intelecto autocrítico. A única pergunta, a única resposta importante, é de que lado você está. Nenhuma cultura se desenvolve sem um estágio de selvageria, de resto uma extensão social do retrato evolucionário do homem. Não há preço que os eu a não paguem a fim de nos manterem no seu quintal. Você imagina a nossa fauna, Flamengo, cabrochas na avenida, marxistas de botequim, agüentando, entendendo sequer o que seria revolucionar esta Animal Farm, à la Vietnam? Se você disser que sim, chega de papo e ponho Churrasco de Mãe na vitrola."

"E se você escolhe o Vietnam, ou, como eu, aceita a condição de acionista menor de Wall Street, o assunto está longe de encerrado. Falta escolher o abrigo entre o guarda-chuva nuclear americano ou soviético. Não há escapatória. Esse jogo não tem limite de aposta. Nenhum império no passado dispôs a capacidade de aniquilar a Terra inteira, de uma porrada. Os eu A e urss monopolizaram esse poder e vão usá-lo, de cacife, quando cessarem as brincadeiras insurrecionais e contra-insurrecionais de nossos dias e a poeira assentar nos tomos tecnocráticos de segurança do Pentágono e no burocratês utópico-marxista soviético, ou dos Althussers e Mandeis da vida, e as duas superpotências chegarem a um acordo final na divisão de espólios. Ou isso, ou o suicídio coletivo, porque a cada mirv ou 'máquina de apocalipse' que uma desenvolve, a outra cobrindo logo atrás, mais fracas se tornam em relação a si próprias, no cara a cara. Sejamos otimistas e, nesse caso, é minha fé inviolável que o verdadeiro ativista hoje serve aos americanos ou aos soviéticos. Faites vos jeux. E é preferível assumirmos conscientes nosso destino a fim de influenciá-lo minimamente que for."

O nariz de Hesse jorrou amarelo. Não deveria ser catarro ou mayonnaise. Ele deu um soluço-tosse e caiu-lhe da boca um meteorito mole, no tapete. Hesse apanhou laudas de máquina, limpou o vômito e saiu da sala.

Mexo meu gelo com o dedo para me lembrar que faço sons e movimentos e que sobrevivi a dois crepúsculos dos deuses, no mínimo. É aquela hora da noite em que a teleologia parece possível, objetos impingem uma existência autônoma aos nossos nervos. Há estátuas de gesso, ou barro, no jardim, que vejo da janela. Profetas, reis, ancestrais, apóstolos, não me dei ao trabalho de verificar, ninguém menos interessado na perpetuação idolatra da nossa imagem, simpatizo secretamente com revoltas mequetrefes e iconoclastas, a possibilidade de um começo da estaca zero, livre dos berliques e berloques e notas promissórias de gerações passadas. Shaw gozou o incêndio na biblioteca de Alexandria. E os outros monumentos? Se houver a guerra entre mundos que Hesse acha plausível, só que entre nós mesmos, nós somos e sempre fomos os marcianos, e resistimos às bactérias no ar, nossas irmãs, o mármore esse todo irá para o brejo e talvez até o verso que se previu sobrevivê-lo.

Os vietnamitas criam da estaca zero porque viajaram pouco. Um reductio que nos é impossível, saturados e supurados de um humanismo que já dispôs de todas as teses e antíteses, como feridas abertas, num organismo em metástase. Eu numa plantação em Pleiku é imagem inconcretizável, exceto em cartão-postal de turista, figura que se explora e joga fora. Nos tornamos irrelevantes.

Nada terei em comum com o que vier, os bárbaros me reconhecerão prisioneiro espiritual, se relutante, da velha ordem. Não sei se me cagaria nas calças na Espanha. A gente se acostuma, presumo, mas certamente partilharia as dúvidas de Malraux e os chiliques de Auden. Afinal, o que faria eu na nossa sonhada Sudene? Acordaria de madrugada e iria cantando aos campos em que se plantando, no espírito certo, tudo brota? O meu bafo de uísque baquearia o resto do coro. E que diríamos uns aos outros? Eu lhes notaria a feiúra acumulada em séculos de má ossificação, a lerdeza mental filha da escassez de proteína, e, vício de civilização, perceberia a besta-fera humana reemergindo e se adaptando às novas regras do "coletivismo fraterno", usando-as dentro da mais perfeita ortodoxia, pelo ganho pessoal. Esta Maria aqui não vai com as outras, porque se conhece bem demais.

O cérebro humano evoluiu de forma idêntica às nações, com diferenças e distâncias irreconciliáveis. À camada pensante só resta planejar utopias, em benefício do próximo, "de pai para filho", ou a autocontemplação decadente. Sou freguês das duas tentações. Sabemos de tudo e não há perdão. A arte do nosso tempo é sobre a arte, porque esgotou a investigação do concreto. Inventa a invenção. É o fim da linha. A crosta se transforma em carcaça. Os vermes esperam a refeição.

Toda cultura dominante chegou a certos limites, ninguém sabe se "naturais", e se autodestruiu. Roma foi derrotada por forças externas apenas tecnicamente. A podridão veio de dentro. Culturas potencialmente fortes que caíram sob impacto externo, a dos cartagineses, etruscos, etc, nunca chegaram, em verdade, ao alto do pau de sebo. I could have been a contender, another Billy Cohn. E a história não as perdoou, o que Auden viu direito e, depois, sentimentalmente, quis passar a borracha. O que leva de Marco Aurélio a Commodus? O retorno do reprimido, o death wish de Freud, ou o fato de que nadamos até certo ponto, quase estourando o coração, e aí sentimos, preferimos, sensorialmente, dormir, afogar. Organismos arrasados aspiram à morte. Todos nós já vimos (nos outros, é verdade) acontecer.

Meu impasse é claro. Moralmente, rejeito a supremacia de uma classe montada em sacrifícios humanos que causariam indigestão a Moloch, o vasto gulag sem arame farpado (às vezes) que bestializa, exaure, mata bilhões, relegando-os a frios relatórios da onu, aqueles que nos informam que quinhentos milhões de pessoas morrem de fome, a qualquer hora do dia, trezentos e sessenta e cinco dias ao ano, um massacre lento que torna a "homogeneização" soviética na Lubianka, em comparação, uma pulha de rapazes. E, no entanto, foi nos confortos dessa classe que eu e semelhantes cultivamos a moralidade antagônica a nossos próprios "interesses". Moralidade que não conseguimos converter em ação, sequer pelo devagar e sempre das diversas modalidades de social-democracia. E gente como a gente que tentou combater fogo com fogo terminou alastrando o incêndio e morrendo queimada. E somos inúteis aos animaux méchants que se defendem atacando, Vietnam, etc, a experiência deles é inadaptável e intransferível à nossa, lembramos os aristocratas de Nicolau II ou de Luís XVI, digo os liberais, que intimamente deveriam admirar a paixão de Trótski e de St. Just, que lhes cortaram o saco. Beckett é o nosso poeta. Nos tornamos ininteligíveis.

"A biografia mantém viva a tradição novelística do século XIX", me afirma Hesse, cara lavada, camisa mudada, "over here we have um bujão Merck legítimo. Arranjei um portador especial. Você tem uma nota nova aí? Acabaram a produção dos filtra-fumos, porra. Você sabia que um dos meus sonhos é escrever uma biografia de Bento Manuel Ribeiro, o único revolucionário realista da nossa História, mas desisto sempre que vejo alguém concentrado em si próprio, como você. O que pode um biógrafo, really? Atos, cartas, documentos, lembranças dos outros que nos dizem menos que a cara da gente refletida no espelho, que já é fajutice. É impossível reproduzir o que Proust sentiu ao escrever sobre os sapatos vermelhos da Duquesa. E mentimos e escondemos, eu diria que setenta por cento da vida são despistes. Do resto, vinte por cento se consomem em gestos, atitudes, etc, com motivações semi-inconscientes. Ficam os dez por cento que você encontra nas boas biografias. Agora vá você convencer a essas solteironas inglesas que cavucam Virginia, Vanessa, etc, que 'cartas reveladoras' não passam de performances, cuidadosamente elaboradas se o autor é profissional, e amateur night na maioria dos casos, o que não impede que o mais banal 'prezado senhor' seja histriônico. O Barão de Charlus não é aquela bichona velha e chata, Montesquiou. É Proust. O negócio é cafungar."

E começou a madrugada que me converteria de cassado da presença de Sílvia Maria em banido. É típico que a droga de pobre seja fumo e a da burguesia, pó. Não é apenas a diferença de preço. É condicionamento de classe. O fumo prostra os já prostrados. Pó faz subir a consciência dos conscientes, dos habituados ao comando, ao serviço do próximo.

Exploramos a casa, senis ou infantis, rindo demais, tão alto que era preciso trocar avisos em silêncio, que provocavam novas convulsões de riso, como no cinema. Subimos nas estátuas, de profetas, descobri enfim, e Hesse, montado em Elias, comandou que decolasse ao paraíso. O profeta broxou, apesar de Hesse lhe oferecer uma cafungada. Elias deve ter sido brasileiro.

Investigamos o quarto da Mãe, já com a aura mágica do humano intocado, o que o cinema nos dá até quando filma lixo, e o que o cinema não nos dá, o cheiro pungente dos santuários, em que existe somente um encontro pacificado de memórias, criando um apogeu em abstração de conflitos pessoais e de desgastes mútuos, a paz de que nos falam os místicos, pura e simples abstenção, isolada num recinto ou dentro de nós mesmos, o onanismo mais requintado porque platônico. O próprio genuflexório da velha fica melhor nu, vazio, mera idéia de devoção, e sem a distância anti-séptica dos museus, mas encenado, pois a luz sobre o rosário refrata em alguns Rouaults na parede, moda, ok, religião nem tanto. Rouault baixou demais a igreja à massa oprimida, da mesma forma que os renascentistas elevaram o corpo humano muito acima da expectativa permissível numa fé que se baseia em desprezar a matéria. Matéria tão atraente nos seduz e prende e oblitera promessas vagas de um futuro eterno. Subversivos, subversivos.

Hesse diz que o velho visita freqüentemente o quarto, acariciando e ajeitando os vestidos, no que o imitamos, roupa boa não só cai bem, mexe bem, ocupada ou vazia, e nos humilha as mãos, pele é tecido inferior. Hesse insiste em que o sogro reza e fala com a mulher. Sugiro que a amaldiçoe. Em absoluto, afirma o genro, ela era a componente maternal e terna na vida do marido, e apesar dos babados de submissão e de auto-restrição ao matriarcado aristocrático, foi o detonador do sucesso do velho, uma lady saída das páginas de Oscar Wilde, ou, talvez, cabocla, de Martins Pena. Quando o sogro, moço e recém-casado, voltava toda noite do bar do Country ou do Jóquei, satisfeito em viver de uma renda acima do razoável e de algumas bocas em advocacia cedidas pelos amigos, entregues, em suma, aos prazeres do convívio indolente, ela não cobrava, como caras-metades de classe média. Sentava-se no colo dele e o adulava, antevendo os degraus que ele subiria, na vida, enchendo de orgulho sua garotinha, apelido íntimo que conquistara pré-altar. Nos jantares em casa, sempre havia o convidado importante sob metralha — provida de silenciador, naturalmente —, a garotinha curiosa de saber o que transforma uma empresa crescente num patrimônio nacional, e a resposta, invariável, "entre outras coisas" impedir o confisco, em nome do populismo demagógico, dos frutos do labor profícuo do empresariado. A garotinha, então, acionava um sorriso iluminado de gostosas recordações de viagens aos EUA, onde conhecera Fords e Rockefellers, amigos de papai e mamãe, e ficara pasma de ver a bateria de advogados de que dispunham contra o confiscador-mor, Franklin Roosevelt. "Sua mulher é muito inteligente", ouvia o velho, em confidencia, do convidado importante, nos licores.

Pergunto se num casal assim o marido, uma noite, comanda: vira. Hesse duvida: "Deformaria a performance, abalaria a estrutura, o papai e mamãe faz parte do formalismo que isola esse tipo de gente do real, do contraditório. O gentleman é antiintelectual por necessidade. Se pensasse, teria de criticar os próprios privilégios. E abandono sexual também humaniza, e daí à insegurança, ao abismo, talvez. Não vale o risco. Se eu fosse pintor, músico, ou escritor à Ia Guimarães Rosa, de renda e bordado, a velha continuaria me considerando offside, mas me toleraria. Já o intelectual assusta pela capacidade de formulações críticas. O susto supera o parti pris ideológico. Eugênio Gudin, ao escrever que o objetivo do capitalismo é l-u-c-r-O, horrorizava minha pranteada sogra. A velha precisava acreditar numa ordem natural das coisas, que é o que é, subentendida, inexplícita, passada de geração a geração, inalterável. Isso exige uma autodisciplina espartana no irracionalismo, a guarda fechada o tempo todo, que conferiam a ela uma presença autocrática, porém não despida de charme, na absoluta recusa que se impunha de descer ao vulgar".

A Mãe tiranizou a família inteira, afetivamente. Foi o juiz, júri, promotor e advogado do clã, não excluindo os mais idosos, ou contemporâneos. O marido provia, ela dispunha. Irmãos, filhos, cunhados, primos, etc, resmungavam contra certos veredictos adversos, mas reconheciam que zelava pelo "bem deles", e se os critérios de julgamento eram severos, nunca aparecia registro, extra-muros. Ela os impulsionou a todos ao sucesso em sociedade, negócios, política e no que achasse conveniente enfiar uma cunha familiar, o que compensava o moralismo intransigente na intimidade do Cosme Velho. Já matrona e senhora do pomar gardé de diversos governos oligárquicos pré-1961, deixara de ser a garotinha insinuante, dava imperiosos "conselhos amigos" a poderosos que, se rejeitados, baniam o "indesejável" da Presença e dos salões que A recebiam, castigo a que poucas pessoas influentes se arriscavam. Hesse não conhecera nenhuma. O poder da sogra se estendia à indústria de comunicações, obviamente. Notícias negativas sobre familiares e satélites só apareciam em O Dia e publicações similares, que "ninguém" lê. Uma irmã que se separara, temporariamente, do marido, cirurgião famoso, "petroleiro" e perfurador craque de empregadinhas, não virou escândalo, graças a telefonemas estratégicos dados no timing exato aos donos dos jornais importantes. Uma colunista de Sadat, pré-Hesse, furou a censura, descendo à oficina, onde cobrou sentimentalmente dos gráficos várias rodadas de cerveja que lhes pagara, e fez sair a nota. Sadat esbofeteou-a, demitiu-a, e tirou um segundo clichê rápido, sanitizado. E na mesma tarde levou flores escolhidas ao Cosme Velho, em pessoa, onde suas desculpas foram graciosamente aceitas, porque os melhores generais reconhecem que, às vezes, guerrilhas suicidas penetram os mais seguros redutos defensivos.

"Eles têm o pé na cozinha", Hesse comenta, mordendo as contas do rosário. "Esse troço daria uma nota no prego. O que é uma família tradicional brasileira, me diga. Toda grande fortuna, como dizem, é montada num crime, mas na Inglaterra, ou na França, o crime foi diluído em séculos de refinamento, da mesma forma que teus amigos comunas admiram o liberalismo dos dominicanos, os pilares da Santa Inquisição, sem entenderem o longo processo de sublimação que os levou da fogueira para os hereges à defesa dos heréticos de hoje. Aqui simplesmente não houve tempo. Estamos na batida da Austrália, de terra desbravada por degredados e desterrados, criminosos que, no poder, não puderam apagar ainda o estigma de origem, ou conter os instintos básicos de agressão. E a vida em família não escapou. Que portuguesa ilustre viria se meter neste mato? Muita negra assumiu a Casa Grande, reproduzindo, aumentando a elite da tribo, numa época em que certidão de casamento e de nascimento, se existentes, eram ditadas a escrivão na folha de pagamento e facilmente fuzilável se desse com a língua nos dentes. Aquela bichona da sociologia se perdeu no droit du seigneur na senzala. Houve outros arranjos, mais profundos e duradouros, que ninguém pesquisou, que eu saiba. Olha o cabelo das mulheres aqui. Não encaracola, certo, se não minha mãe teria subido pelas paredes. É liso, à custa de séculos de alisa bem, o rolo compressor funcionando de geração a geração. Já o tição é menos fácil de remover. Minha filha é morena. Meu filho é louro. Uma divisão socialista de pigmentos. E não adianta pintar os cabelos da menina. Ela viraria uma freak. E as conversas sobre ancestrais são sugestivamente seletivas. Há um tio-avô que considerou os sulistas americanos uns cavalos, quando foi vender-lhes qualquer coisa, provavelmente mau caráter, na guerra civil. Uma vez perguntei se barraram o cara nalgum hotel. Em segundos, só se falava de Paris do fin de siècle, um tournant geográfico digno de Jules Verne."

Mas a velha, tordilha ou não, era sólida, "Mãe Aranha", disse Sílvia Maria a Hesse, soluçando uma noite, grávida já e nem sequer noiva, falando francês, língua que Hesse domina mal, "dá para ler Le Monde", "mère arai-gnée", e o resto, porque inconcebível, na própria língua, traduzir a imagem de "moça fácil", trepando antes do casamento, discutindo aborto. Não é desdouro, acho eu. A Mãe Aranha protege a família dos insetos e outros intrusos, tece e retece garantindo aos dependentes uma prisão confortável. É uma variante bíblica da baleia. Jonas cresceu e multiplicou-se, em mutações várias.

A copa é plena e de gênio, pois reúne aqueles troços de estanho e outros artigos que nunca aprendi o nome em português, ficando na nomenclatura de Wuthering Heights, e tout le confort américain disponível, habilmente mesclado e acessível até'a idiotas manuais da minha estirpe. Estilo, em toda parte. Uma fome fúria de cream crackers, um dos meus madeleines, que ataco voraz. "Espera aí, porra, vamos apanhar um champã de crioulo e caviar e nos instalamos na cama da velha, que é a melhor da casa."

Tiro os sapatos na cama. Hesse não. Sou perdidamente pequeno-burguês, não me gosto de meias ou descalço, meu modesto baudelaireanismo tropicalista fica em chinelos e cuecas. Detonamos mais. É magnífica. Pergunto quem é o portador. "Um amigo. Representa o jornal na Europa, contatos de relações públicas, não é escriba. Pequenos recados, isso e aquilo, nada de importante, e os preciosos malotes, cheios de remédios suíços legitimamente rotulados. Cafunga também, e o bom é que não faz perguntas, não abre pacotes confidenciais e pensa até que a conta em dólares do Sadat, do superfaturamento do papel, é honesta. Tudo em troca de mil dólares, despesas básicas e credenciais. Acha que as credenciais abrem portas, uma das frases mais filhas da puta da língua, de qualquer língua, pois se soubesse o que está por trás de certas portas preferiria gelar na rua, ad infinitum... Diz que te conhece bem, me garante, insiste, mas fala de uma pessoa diferente, completamente, da que eu conheço, logo, no mínimo, você não se lembra dele, algum satélite de colégio que você socraticarnente corrompeu. Puta, essa foi do rabo, pega o restinho, rápido, porra, você é um desastrado, e de meias, quede as ligas? Te contei o que me aconteceu na ponte aérea, cercado de publicitários de São Paulo? Cafunguei no banheiro e, na volta, saiu sangue do nariz. Os publicitários ultra-solícitos, o que só me aumentou o bode, você já viu as cores que esses mulatos e nordestinos vestem? Se imaginam parisienses e parecem índios pintados em volta da fogueira, que é o que são. As massas. Não há saída. Temos de dar um jeito nelas. Você sabe que leio toda memória e autobiografia de 1890 a 1919, as inglesas, de preferência, minha tolerância vai a 1930, quando as massas assumiram o centro do palco e não o largaram mais. Você leu a autobiografia do Bertrand Russell, esplêndida em individualidade e liberdade até o pós-guerra de 1919, depois não escapou das massas, como nenhum de nós. Não há palavra em português para privacy. Vocabulário é destino. Será que ela gemia na hora que o velho entrava ou seria no furo do lençol, à Ia Freyre? Eu gostaria de ter enrabado a velha, make Geórgia howl, ha, ha. Você já imaginou se os crioulos do morro em vez de assaltarem a casa dos ricos, assaltassem a dona da casa? O ibope seria incalculável, porque o tesão delas é homérico. A classe dirigente cansou de manter a dualidade Jekyll, 'no lar', e Hyde, no escritório. Disfarça de Jekyll, mal e porcamente, porque é o adendo 'social aos lucros. Entregou-se sexualmente a Ias putas, a única memória de Ho Chi Minh do Brasil, Ias putas, correta, claro, sempre correto o cavalheiro. Las putas são uma extensão de um dia comum de negócios. Pega-se, come-se, paga-se e chuta-se. A única mulher 'atraente no 'seio da família' é a do próximo, porque se tira de alguém. Nos tornamos o que somos. Eu me sinto exultante, não é pó, juro, é a exultação de viver em nosso tempo, de aventura infinita, você não esqueceu, você recitou, de porre, na hora errada, no Jirau, na posse do Jango, aquela passagem da 'morte de Deus', patatipatatá... Finalmente o horizonte se abre mais uma vez, mesmo que não seja claro. Nossos navios podem, enfim, ir ao mar, enfrentando todos os perigos; qualquer risco é permitido a quem discerne; o mar, nosso mar está completamente exposto diante de nós. Talvez nunca tenha existido um mar tão vasto.

Foi quando Sílvia Maria entrou. Não bateu na porta, o que- é falta de educação.

 

O portador Merck era Victor. Victor Merck, um bom nome de guerra, de marchand. E neste ano da graça em que nos reencontramos, Victor encarnou em mim, "você é a única pessoa, bichão, e o Hesse, que conheço nesta cidade, e o Hesse aqui faz o Caxias, na Europa desbunda. Falando nisso, todo mundo agora parece o Mariozinho baratinado, que que há? Fico tonto. Os índios retomaram Copacabana. Passei no Alvear, onde a gente virava, virou agência de automóvel. Demoliram meu prédio, puseram um o dobro no lugar, as pessoas gritam mais que italiano trambicando turista, isso é progresso, né? Você tem visto o Zequinha?"

"Foi visto a última vez mergulhando de 'volks' na Lagoa, sem bilhete de volta. Deve ter sido tédio. Ninguém mais topa briga de bar."

"É, já era tempo. Vamos dar uma volta pela praia? A areia continua a mesma, espero."

"É, fora as pegadas dos índios e a merda no mar."


Quarta-feira de cinzas, 1976

Hesse respondeu ao "tudo bem, doutor?" do "Seu" José, grato pelo infinitesimal individualismo do ascensorista, que não emite frases à Ia "sim, senhor", inexistentes na língua falada, mas que se tornaram moda via dublagem de televisão. Há o elevador privativo da diretoria, "Concorde", em que já puseram grafite, tímido, "gente fina é diferente", etc, as vacas estão magras demais para que ousem mugir alto. Hesse prefere o parador da malta, pois oferece a única chance de contato, e observa moça pau de virar tripa, o cabelo miriademente encaracolado, sem soutien, a saia enfiada de qualquer jeito, bandeira de protesto à proibição de Sadat às calças compridas femininas. Ela não olha Hesse. Levantou o queixo e instalou beicinho. Deve ser de esquerda. Troca duas vezes de apoio na perna, o pescoço "queimando" na tentação de enfrentar o raio X. Quarto andar, a vala comum. Ela sai rápida e contará que o esh, fascista, chovinista, "ficou me encarando na subida por que não encara aquela Cleópatra de banheiro que é a mulher dele", o gosto da vitória será generosamente repartido com o pessoal, enriquecido de estimativas sobre quanto Hesse apanha da cia, do embagulhamento progressivo de Sílvia Maria e da subserviência revoltante de Sadat ao governo; durará até a primeira matéria, puxada ao telefone, seguida de milho catado na Olivetti 80, e que, na forma final, reescrita, o adjetivo "singela" batendo na cara do leitor, se chamará "Catumbi Agradece Graça de Santo". Um novo dia de informação ao povo começa.

Hesse recebe o "bom dia, Dr. Hesse", de Dona Alzira, a secretária, deferente porém refletindo um pouco a autoridade do amo, nossas secretárias são nossos discretos travestis, dois cafezinhos em sucessão, faróis na neblina matinal, rebatidos pelos cigarros que obrigam a uma redução de marcha, ficando um meio-termo operacional. "Nós temos aí o telefone do José Carlos Menezes?" "O senhor quer que eu ligue para o jornal?" "Não, o de casa. A Sra. Menezes me pediu o nome de um remédio. Manda subir o Audálio." Há três memorandos de Sadat na mesa, em português de professor ginasial de português, em que não se repete palavra, p.q.o.p., é como arrancar cabelo de eu de anão a grampo. O Audálio, editor-executivo, deixou uma "pauta em andamento". O sol, empanado pela vidraça rayban, não disfarça o que acontecerá na rua a quem se atrever enfrentá-lo. Hesse sentiu a camisa de voile pespegando no peito nos poucos passos da garagem ao elevador, até que o ar-condicionado descolasse, o garagista ululando a subordinado "agüenta as pontas aí, ô meu", é quem está no clima, na selva urra-se promovendo a circulação, ou we burn, baby, burn, e a terra não comporta miolos malpassados. Hesse sabe que essa histeria, de que não dá a menor pala à expectante Dona Alzira, é produto de uma batalha interna orgânica e não de uma disposição psicológica específica, da resistência dos restos de bourbon, cocaína, Marlboro, o legítimo e não o cocô de galinha "nacional", toxinas batendo em retirada e disparando os últimos cartuchos na cabeça dele, algumas aspirinas, muita água, muito café e o exercício intelectual readaptarão a espécie ao meio ambiente.

"O Seu Cardoso gostaria de dar uma palavrinha ao senhor. E a Marisa também."

"Mais tarde. Vê o telefone do Zé Carlos e toca o Audálio." Os memos de Sadat não exigem resposta. "Louvam" entrevistas, artigos e reportagens "contra a crescente estatização da economia, em detrimento do setor privado". O crioulo floreia praça na assinatura. O Seu Cardoso é móveis e utensílios e Hesse precisa aposentá-lo, o que fará o velho em casa, aos sessenta e cinco anos, com uma bronquite crônica, lentes de óculos 20 e uma cafuza cujo único interesse na vida é seguir as novelas de tv das seis em diante? O Seu Cardoso é um "secretário", profissional em extinção, pegou o tempo do visor e do suelto e considerava jornalismo harmonizar a alegria esculhambada da redação, as exigências severas dos gráficos e os ressentimentos da revisão e administração. Um Neanderthal, daqueles que punham flores em túmulo. Cedeu o lugar à tirania do Homo sapiens, dos editores, que não têm a desculpa de não saberem o que fazem. Um jornal é uma família, porque se prevalece a divisão de classes, há também uma reificação coletiva de poder, pela presença pública na vida da cidade, que se impinge até no boy que carrega os textos do copidesque à oficina. Redação e gráficos se entendem. Cabeça e corpo. A rejeição está confinada ao pessoal administrativo, que produz "o dinheiro que sustenta esses vagabundos", e à revisão, "amparando esses analfabetos", pois os dois grupos se sabem, embora neguem, parasitários. E são excluídos da camaradagem, compulsória, que os donos concedem aos escribas, que inclui, não raro, o uso mútuo de prenomes, mão no ombro e demais afagos proprietários de quem desfila animais de estimação em concursos. É o medo de que o bicho morda, diluído pelos treinadores, a editoria. É facílimo transformar uma matéria "do interesse da casa" em tédio absoluto, sem infringir uma única regra técnica de jornalismo. O noticiário de um tema pode contradizer, anulando-a, a picareta editorial. A justaposição de notícias, se não controlada centímetro a centímetro, é, ocasionalmente, mais subversiva que manifestos do terrorismo. O Zé Carlos cuja mulher Hesse pretende encaçapar, hoje, caiu numa dessas, quando inexperiente. Permitiu que saísse na primeira página, lado a lado, uma nota sobre escalada na Bolsa, dura e seca, e uma descrição, brilhantemente redigida, de um bando de nordestinos famélicos disputando a urubus uma carniça de boi. O efeito quase custou o emprego ao Zé Carlos, que demitiu o responsável, ora no pasquim de luxo de Sadat, sob vigilância do kgb de editores, de que Hesse é o representante no Politburo.

Marisa quer aumento. O Seu Cardoso, o impossível, que Hesse crie uma coluna semanal cobrindo ranchos, escolas de samba, etc, velha paixão do velho, partilhada, porém, por gente que não lê jornal. A saída é oferecer-lhe espaço no Carnaval, que lhe garanta entrada franca em bailes e quejandos, pago o jeton, naturalmente, uma vez fora da folha de pagamento o desterro é eterno. Marisa será cozinhada dias, até que se sinta desprestigiada, quando Hesse a receberá, de surpresa, encontrando-a murcha e dócil ao argumento habitual, o preço crescente do papel, da tinta, a recessão do país que se reflete na menor centimetragem de propaganda, o custo ainda não absorvido de novas máquinas e de "benfeitorias" na sede. O sistema não permite greves, que retardam o progresso do Brasil, o que facilita a solução pacífica de dissídios.

Audálio subiu. Há uma certa familiaridade entre eles, uma dependência mútua, dos que se sabem acima da cova das serpentes, na condição de domadores. Trocam algumas confidencias, vedadas tanto a Sadat quanto aos que vêm abaixo, sobre o modus operandi do jornal. Jornalismo é uma técnica. Profissionais talentosos, raros, literalmente brincam em serviço, se quiserem. A maioria é discreta, pois é mau negócio revelar os "segredos do ofício" aos patrões, que, apesar de conscientes da natureza única do "ramo", a venda de informações, idéias (mínimas) e sugestões (máximas), resistem atavicamente à idéia de pagar caro a quem, na aparência, ao menos, "não sua a camisa". Assim, editorialistas capazes de produzir "n" linhas de Jesus Cristo ao preço do feijão, com a rapidez e aisance de uma datilografa recordista, fazem pausas fictícias para meditação. Entre um parágrafo e,outro, os dois e os subseqüentes já prontos na cabeça, "pensam", em geral nas coxas da estagiária favorita, ou se dará tempo de pegar a sessão das dez, se vale a pena convidar a estagiária, correndo o risco de levar um fora que será maliciosamente comentado nos banheiros e cafeterias. O espetáculo do ser humano, pensando ou "pensando", é idêntico, seja em coxas ou insumos.

Os editores acumulam toneladas de papel, trazidas pelos subordinados solícitos que suspeitam, porém não ousam afirmar, que por trás do comando neuroticamente intenso, "quero ver tudo", o editor, depois de uma olhada em diagonal na pauta, cai de saber o que virará matéria e o fatalmente destinado ao monturo de press releases. Repórter e copidesque são os únicos braços habituais da lavoura jornalística. Um traz a matéria-prima, o outro manufatura. A editoria meramente dirige o tráfego a maior parte do tempo. A carranca editorial, os silêncios prenhes e olhares críticos sobre a mão-de-obra, as caminhadas energéticas rumo ao escritório do diretor de trânsito, Audálio, ou, em última instância, ao secretário de transportes, Hesse, fazem parte do Mistério da Autoridade, recomendada pelo Grande Inquisidor.

Só uma crise comuniza o trabalho. É preciso então improvisar e assumir responsabilidades. A técnica, porém, permanece a mesma, o que as estrelas do jornal esperam passar despercebido do dono, afinal, menos atento que o de costume, também partícipe do nervosismo dos escribas. O editorialista que leva horas ruminando a última, previsível, banal e inconseqüente diretiva do governo, em minutos, à beira do fechamento, metralha um texto fresco e arriscado, tão conciso e incisivo, ou mais, que o trivial do dia-a-dia, porque, tocado pelo senso de urgência e perigo, aciona as células em ponto morto no seu cérebro. Os editores se vêem obrigados eles próprios a sintetizar, omitir, destacar, ou o que for, por sentido e não mera encheção de lingüiça, fazendo páginas vibrarem, em vez de cobri-las apenas de testículos de consumo fácil e digestivo, tarefa esta que deixam habitualmente ao copidesque, para quem a revolução em Angola ou a visita do cônsul da Suécia ao jornal diferem somente em centimetragem.

Audálio se estica na poltrona em frente da mesa de Hesse. É um permissível "descontraimento", palavra que Hesse baniu do jornal, pois um dos clichês-pau-para-toda-obra da década. Os dois se respeitam. Hesse não desmandaria Audálio de público. Concederia a ele tempo suficiente de pretender reconsiderar decisões da diretoria e de traduzi-las ao dialeto de "cara igual", sine qua non da harmonia na redação, "andei vendo aí, sacumé, não vai dar pé aquele troço não". Os mais cínicos, e não são minoria, sabem a localização exata da fonte de tanta sabedoria, mas se pensarem demais nisso estarão avacalhando a si próprios, porque se Audálio é impotente, o que dizer deles, que o seguem? Os mais jovens e inexperientes alimentam a mística do contrabando. "Consegui enfiar" isso e aquilo, celebram nos bares entre cervejas e bolos de bacalhau, secos. E conseguem mesmo, doses homeopáticas do que imaginam ser realismo crítico. Os editores consentem na prática, porque levanta o moral das tropas, como uma galinha tresloucada que desaba numa trincheira se converte em banquete, sem alterar a ordem das coisas, exceto em que reanima momentaneamente os prisioneiros da fome, da merda e do terror a conviverem melhor com sua sorte. O contrabando é invisível ao leitor comum, ou ao inimigo na trincheira oposta, que só sente o que lhe é maciça e incessantemente martelado na cabeça.

Hesse examina em diagonal o artigo, já composto, do velho A, que, citando Plutarco e Toynbee, declara a tirania inextricável da decadência. Visa. Os dez mil leitores que seguem devotamente os diagnósticos libertários do autor não serão privados de seu antibiótico semanal que, à parte não ter contra-indicação, deixa inafetados os focos infecciosos, é um mero placebo. Hesse começa sempre pelos artigos assinados, porque dão menos trabalho, raramente tocam algum nervo sensível da sociedade. Um dos amigos de Sadat oferece "subsídios" a uma reforma tributária. Outro castiga padres chegados a hippies e freiras pintadas e de mini, que Hesse gostaria de ver, as freiras de mini. Um terceiro reclama de restrições a companhias de seguros. Hesse lê o primeiro parágrafo e verifica se os articulistas respeitaram o espaço predeterminado, apondo o visto ao de editores que antes peneiraram esses detritos de qualquer matéria viva.

No segundo caderno, há o "bazar", criação pessoal de Sadat, moda, cozinha, conselhos médicos a donas-de-casa, correspondência sentimental, fofocas locais e internacionais, astrologia (a Cúria desistiu de protestar, em troca de monótonos editoriais antidivorcistas), histórias em quadrinhos, folhetins históricos e "galantes", palavras cruzadas, etc, etc, que muita gente suspeita constituírem a base da circulação do jornal. Hesse visa sem ler. É adiantamento, será revisto por subeditores, e se houver bronca, ficará no nível da freguesia, inconseqüente e irrelevante, ao contrário de uma ofensa às elites dirigentes, que atacam pelo telefone direto de Sadat, reclamando da editoria nacional, internacional, ou econômica, esta vulgo mágica & milagres, título aceito, e de bom humor, até por Sadat, que o descobriu via uma indiscrição do em geral atento Audálio, dando o que o copidesque chamaria, se Hesse permitisse, e não permite, uma "gostosa" gargalhada. Essas seções-chave Hesse lera atentamente e introduzirá certas matérias, não incluídas na pauta, que o proprietário e ele articularão em conjunto, baixando prontas e invioláveis a Audálio. Não que ofereçam surpresas. Os rendimentos maiores do jornal provêm de ênfases, omissões, nuances, que o leitor comum jamais perceberá. O bolo é rotineiro. Ministros do sistema continuarão afirmando que é saudável o aumento galopante da dívida externa do país, o pagamento de juros, amortizações, fretes, transportes, royalties, patentes, a queda quase mensal do cruzeiro diante do dólar, os déficits gigantescos de orçamentos, de balanços e de balanças, e o jornal lhe reproduzirá fielmente o burocratês, ilegível, incompreensível, e que, se reescrito a sério, apareceria reduzido a três ou quatro parágrafos de inanidades, criando sério problema de espaço ao editor de mágicas & milagres, tático habilidoso que, à margem dos dados da hemorragia crônica nacional, coloca tidibites animadores, a subida dessa ou aquela ação na Bolsa, a inauguração de sofisticada fábrica no nordeste, que absorverá seiscentos operários, importados do sul. As duas últimas informações são suprimidas, fogem ao âmbito da seção de economia.

Na primeira página do segundo caderno há uma panorâmica do sucesso extraordinário de um baladista local em Nova York. Hesse amassa e joga no lixo sem olhar sequer, Audálio, que ri, em silêncio, oferece três matérias de reserva, de agência, Hesse escolhe uma sobre a possibilidade da vida em Marte, a ser checada por bólide da nasa, "pior que aqui é impossível", e anota mentalmente um memo a Marisa, lembrando-lhe pela milésima vez que ninguém faz sucesso em Nova York, exceto a própria cidade, logo desiste, porque a censura pura e simples desmoralizará a editora, é novo breque às pretensões salariais de Marisa, o que vai doer na medida exata, pois Audálio adoçará a pílula, providenciando o pagamento do texto rejeitado à freela fixa, que é uma exilada suspeita de terrorismo, que não ousa voltar temendo o auto-de-fé no codi. Audálio é inestimável, e Hesse serve café ao executivo, virando logo a cara, para evitar a náusea de vê-lo encher metade da xícara de açúcar.

Um cronista comemora peculiaridades de um amigo de quarenta anos atrás, que continua o mesmo, obcecado por um sonho recorrente, em que não ouve os sinos da igreja local, nos acordes da ave-maria. "É um prenuncio de ausência, um augúrio de morte, cumpadre." Hesse conhece o cronista de tempos pré-folclore. Escreveu dois romances numa linguagem em que palavras, gramática e sintaxe emergiam do inferno climatérico, da luta feroz e sem quartel pela escassez de recursos, no reino absoluto da necessidade da terra do autor. Hesse, jovem, se extasiara em face de ato de criação de um mundo que desconhecia, reconhecendo na barbárie a lógica e a dinâmica irrespondíveis da sobrevivência, "ele é melhor que Euclides da Cunha", me dissera, "porque não se escondeu em pseudo-erudição". As famílias evitaram o romancista, "imoral, desclassificado e maluco". Acadêmicos e "vida literária" arremessaram contra os livros um arsenal de bizantinismo formalista. Hoje, o homem é currículo obrigatório nas escolas, modelo de regionalismo pitoresco, fonte fértil de pesquisas semiológicas. Pasteurizado para consumo, à maneira de Swift e Twain, privado sequer da desculpa de estar morto, rendera-se à adulação convencional. Celebra imitadores baratos que lhe copiam os maneirismos, brincando de primitivos sintéticos, substituindo o que, no original, se autogerara nas entranhas, pelo arremedo de salão. Contempla, em crônicas, as simplicidades de vocabulário e costumes da província, arcaico autêntico certo, mas sobras que o arcaico imposto desprezou, pois inofensivas, o verniz do sarcófago que encerra o que já foi potencialmente vital, cujos estertores ele colheu um a um, em palavras, cada qual nascendo, nos parecia, em resistência agônica, desesperada, inútil, à destruição inexorável do organismo. As palavras ficaram, in memoriam, uma forma de imortalidade, a única possível aos derrotados. E é só. O estilo agora é neomachadiano, lógico e mavioso, negando o que é ilógico e clamoroso, correndo rápido e desembaraçado 'sobre o que ficou a meio do caminho, como uma pedra, a laje de gerações consignadas à nossa lixeira histórica.

"Não vai me dizer que o velho mijou fora do penico", Audálio quer saber, e Hesse, saindo do transe, responde semiologicamente, soltando a crônica no bolo que o editor-executivo recolhe.'Audálio só percebe as cismas de Hesse até certo ponto e não arrisca palpites, vive na medida do que pode controlar, já conteve o que hoje chama "caprichos da juventude", que o faziam "vestir o paletó e esvaziar as gavetas" nos jornais cuja linha detestava. É um técnico, dos melhores da praça, o negócio é ser indispensável no trabalho, os que precisam do nosso trabalho terminam notando, pagam direito e nos prestigiam, adolescente é que acredita em se impor no grito, tolera os que tentam, na redação, se promissores, porém não se ilude. O seguro é organizar a vida da gente, pensando duas vezes antes de agir, o primeiro impulso é sempre generoso e portanto estúpido, Hesse citou e Audálio adorou, esquecendo o nome do autor francês, Hesse é uma enciclopédia, mas neurótico, neurótico. Audálio relaxa na casa em Sepetiba, onde nu carrega os quatro garotos nus à água e rola na areia, uma linha de beques do caralho os garotos, a mulher, Doralice, vestida, porque gorda, gorda não exige nada, é boa gente, o Citicard e o Diner's compõem o mundo dela, tudo se ajeita, a menina da Pesquisa que Audálio come, no momento, se virar problema ele chuta, delicadamente, promove a moça dentro do possível, nunca lhe prometeu nada fora os encontros no conjugado no Flamengo que não deixou sequer que ela mobiliasse, "Catete mesmo serve", gato, se dermos sopa, toma conta da casa e mulher também. O lar é na Joaquim Nabuco, à beira de Ipanema, que os colunistas do jornal acham o máximo, Hesse o mínimo, e Audálio ama, porque não é intelectual como Hesse e dispensa. Intelectual é neurótico.

Audálio não lamenta os anos de exaustão, a preço de banana ou de graça, em jornalecos esquerdistas da província e do Rio. Ganhou experiência que agora usa, tecnicamente, e satisfizeram uma afeição monstro, nacional, pela gente igual a ele. Não deu pé. Os pais nunca acharam que daria e temiam pelo filho quando se insurgiu contra a ordem natural das coisas, abençoada por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que, se nos faz sofrer, também nos consola. Audálio se lembra do dia que sacudiu furioso o pai, porque o velho comentou a generosidade de um patrão que lhe pagava dez pratas mensais e fornecia, "de graça", um saco de farinha "extra" aos empregados. Parou de sacudi-lo ao sentir horrorizado que segurava ossos tão frágeis que, apertados, se quebrariam. Padece sempre à lembrança da cena. Hoje, transferiu toda aquela afeição aos quatro beques, decidiu que se formarão em medicina, engenharia, diplomacia e química industrial. Nada de jornalismo. Dói demais. Os pais passaram a admirá-lo, pois é jornalista importante na cidade grande. Não é nem as quatro milhas mensais que lhes manda, ou a casa modesta que lhes construiu. É o respeito social que conquistou que, lhe escreveram, "valeu todos os sacrifícios".

Maturidade é aceitar nossas limitações. Tranqüilidade é ter um lugar garantido no mundo em que não nos achincalhem. Audálio é maduro e tranqüilo. Os filhos o receberão festivamente à noite, festa que nunca chateia ou se esgota, e Doralice trará a janta pronta, não requentada, feita na hora, que ele devorará dando guinadas de braço de chofer de caminhão, gesto que sabe não ser "fino", mas na casa da gente, ora porra. Depois tira os sapatos, desabotoa o cinto e pega o último filme da Globo, deixando os pirralhos verem um pedaço até enxotá-los para a cama, telefona ao chefe da oficina verificando se tudo correu direitinho, correu, e às vezes dorme no sofá, roncando, acorda nos comerciais, relanceando Doralice de olhos gulosos na tela, o preço da paz doméstica, já de cuecas na hora de dormir, dorme nelas, Doralice, cento e dez quilos, conseguindo o prodígio de evitar abalroamentos, o gênio feminino de autopreservação é infinito e cheio de sutilezas que escapam ao cérebro masculino, e Audálio enrosca as coxas no lençol Santista, ninando-se no Phillips a todos os cavalos que ganhou de Sadat. A vida é uma permuta.

Uma certa curiosidade sobre Hesse prevalece no cérebro de Audálio, numa área isolada, "não atrapalha o expediente", como um aquário que vemos todo dia e imaginamos o que fazem os peixes quando ninguém os observa, ou naqueles cantos em que ficam invisíveis. Audálio é bom conhecedor da natureza humana, se algo circunscrito às suas manifestações jornalísticas, expertise indispensável a um editor-executivo. Percebe em Hesse os movimentos bruscos de corpo, em parte a tentativa de exorcizar a intoxicação permanente de álcool e nicotina, em parte um choque no torpor do enfado que resulta da leitura diária de colunas chamadas "movimento" e similares, de um marasmo inalterável, e entende as caretas do editor-chefe, palavrões mudos, contra a timidez dos colunistas, a quem Sadat nada impõe, não se dá ao trabalho, já contrata os tímidos, os acomodatícios e coniventes, sob condições de sobrevivência atadas a pressupostos e limites que ninguém ignora, é mão certeira de decorador a de Sadat, sabendo exatamente o objeto que quer e onde colocá-lo.

Audálio se fascina pelas roupas de Hesse. Não é que não possa comprá-las, e, se quisesse, lhes descobriria a procedência, mas sabe que jamais cairiam tão bem nele, embora mantenha corpo de atleta, enquanto Hesse está entre o roliço e o grosso. É o jeito de usá-las, de quem nunca precisou pensar em roupa para ser recebido como gente, Hesse ficaria à vontade de blue jeans cortado na perna, uniforme que só depois de longa reflexão Audálio permitiu aos futuros engenheiro, médico, diplomata e químico industrial, descobrindo, surpreso e deliciado, que se integravam harmoniosamente no meio ambiente. Ele, vestido assim, as senhoras da redondeza cruzariam a rua a fim de evitá-lo e os tipos mais amáveis lhe passariam cinco pratas, "não vai esbanjar hein ô cara". O chá que se toma em criança, Audálio concluíra, é, em verdade, uma variadíssima adega, que, se conhecemos adultos, nunca aprenderemos a distinguir os paladares disponíveis, até literalmente, porque, fazendo média com a moça da Pesquisa, foram a um restaurante rico, encomendara vinho francês, o mais caro, e já na cerimônia ridícula de degustação sabia que tinha posto dinheiro fora e que uma boa Brahma Extra lhe refrescaria o corpo e esquentaria a alma.

Não é, porém, a diferença de classe social que incomoda Audálio. O berço de ouro de Hesse ele examina como turista a uma ruína milenar que os guias afirmaram ser vista obrigatória, sabendo que não pode nem quer levar para casa. Se orgulha do que subiu, viajou mais que o Seu Cabral dos Tamancos, do mocambo à Joaquim Nabuco, da brisa do Capibaribe ao ar-condicionado do quarto andar, na base exclusiva da tenacidade e do talento.

É o que Hesse pensa no momento, lendo, relaxado e, para variar, atentamente, a coluna de Hugo Mann, que Audálio gostaria de saber. Audálio também leu. Todo mundo lê, no jornal. Hugo é o curinga na mão de Pif engana-trouxa que são os colunistas de arte. Audálio não acreditou quando Hesse disse que ele viria. Esquerdista copidesque, repórter, editorialista, Sadat sempre aceitou, pois executantes e, portanto, moldáveis. Colunista é outro papo. Nenhum topa ser reescrito permanentemente, o que nem interessaria ao proprietário, que compra um molho de individualidade, não importa quão monótono ou rançoso, que esparge sobre a salada dietética do noticiário.

E Hugo, ao contrário de Hesse, não mudou. Audálio admira o crítico de cinema tentando explicar o porquê das coisas, a antítese do resto do jornal, preso ao fato seletivo, à opinião da inércia, ao trivial e ao pessoal. Nunca esqueceu que a moça da Pesquisa levou-o ao Museu, para verem Ana Karênina, Greta Garbo e Frederic March, o chato é que tiveram de sentar separados, ele saiu achando Greta Garbo do rabo e comovido pela história de amor. Hugo montou a crítica no travelling inicial de câmera: "Em 1935, a fome era forte nos eua, em plena depressão econômica, 19,5% de desempregados. Hollywood enriqueceu na década, oferecendo ao preço de alguns centavos a cabeça cenas de luxo ostensivo, comida farta, mobilidade social garantida e instantânea, e uma alegria geral e despreocupada — o período máximo da comédia, afirmam os estudiosos — que permitiam a milhões fugir de realidades e incertezas intoleráveis. Fred Astaire e Ginger Rogers jamais dançaram em cenário remotamente semelhante aos acessíveis à maioria dos americanos. Tolstói começa Ana Karênina comentando em profundidade a diferença entre famílias felizes e infelizes. Hollywood começa com um banquete que, nem hoje, que o país domina quase metade da riqueza da terra, está ao alcance de noventa e cinco por cento do povo. Difundiu nacionalmente uma psicologia de fantasia que ajudou a secar na fonte uma psicologia de revolta. Goebbels e outros supostos gênios da propaganda política não tiveram um milésimo da criatividade demagógica de um bando de imigrantes, todos .de primeira geração, semi-analfabetos, mal falando inglês, que estabeleceram um império de 'entretenimento' em Hollywood, reconstituindo o mito central de uma cultura, o de prosperidade à mão do trabalhador, que fora espatifado em 1929. O happy end obrigatório, na tela, cobria todas as camadas sociais sem diferença de raça, credo e cor, precisamente o oposto do que o americano experimentava na rua. Hollywood expandiu receitas até em 1932, em que o pnb dos eua desceu a nível latino-americano, sessenta bilhões de dólares, e os bancos fecharam temporariamente. Dispensava subsídios. Apossara-se vampirescamente da alma da nação, cujo capital de ilusões, inexaurível, rendeu-lhe lucros que fariam agiotas babar de inveja. E as próprias Igrejas, temi-díssimas por políticos e demais centros de poder terreno, e proponentes elas próprias de um happy end no além, não ousaram contestar a possibilidade infinita de satisfação material neste vale de lágrimas, que Hollywood levou aonde o capitalismo plantasse bandeira, a maior parte do mundo (ora em encolhimento progressivo). Os religiosos e líderes da moralidade engoliram essa usurpação de indulgências em troca de barretadas pró-forma a Deus e aos 'bons costumes', nos desfechos, que as precedentes sugestões de prazer ilimitado contradiziam em gênero, número e grau. Ninguém se iludia. Os sete pecados capitais é que vendiam entradas. E foram tão promovidos que de uma situação potencialmente revolucionária nos eua e no capitalismo abalado, alicerçaram a mística de consumismo que é a verdadeira religião universal de nossos dias".

Audálio se pergunta se Sadat engasga no pão canoa que traça todas as manhãs, ao ler essas coisas. De que maneira Hesse o terá convencido a empregar Hugo, um típico "revanchista", na palavra favorita dos editoriais da casa? O clichê do "Concorde", "gente fina é diferente", não se aplica, porque Hugo é apenas de classe média, classe que se é a espinha dorsal do sistema, gera também dolorosos bicos-de-papagaio, das universidades ao terrorismo. Será uma das jogadas de Sadat, e o negão é cheio de baldas e manhas, concedendo, nos limites da crítica de cinema, uma colher de chá às multidões "revanchistas" em que o jornal, habitualmente, despeja fel? Afinal as Forças Armadas não vão muito a cinema, irmanadas com as massas na devoção às novelas de tv. Cada resposta possível cria novas e difíceis perguntas, levando à central: quais as verdadeiras relações de Hesse e Hugo, entre o que traiu e o que não traiu? Por que não se comem vivos? Faziam uma dobradinha famosa pré-1964, que os próprios adversários respeitavam. Agora, em divergência fundamental, o que na terra de Audálio provocaria um "desenlace", coexistiam; ao darem de cara no jornal, trocavam palavras rápidas numa mistura de línguas e alusões incompreensíveis, que se percebe humorísticas, pois sorriem marotamente.

Audálio entendeu já na adolescência que "riqueza", ou seja, segurança, uma vida sem ameaça constante de destruição, confere ao portador privilégios arraigados na infância, que se torna hábito, segunda natureza. Vê isso nos filhos, ao receberem presentes em dias certos, ou incertos, com a cortesia meramente formal de príncipes a quem se pagam tributos, ou quando se referem desdenhosamente aos moleques do morro, esquecidos que o pai foi recipiente do primeiro par de sapatos aos quatorze anos. Sabe ainda que se Doralice perdesse cinqüenta quilos e se vestisse em Paris jamais exibiria o ar de "visita à copa" de Sílvia Maria no escritório de Sadat, estendendo ao de leve a mão que Sadat bicota pressuroso.

Lembra-se do caso da madame do círculo de Sadat, brutalmente espancada pelo amante cafona, num inferninho, o que rendeu escoriações generalizadas, polícia e hordas de jornalistas. Os repórteres trouxeram os dados todos, fiéis ao enciclopedismo de Hesse. O amante, a bebida descendo, e o delegado, expelindo paralelepípedos de construção complexa, a prosa típica dos semiletrados nos degraus baixos do poder, eram as únicas figuras gaúches. A mulher, roxa de pau, parecia "flutuar na estratosfera", na frase do Zequinha "Tampa de Latrina", o repórter policial estrela de Sadat. O marido a amparava delicadamente, respondendo às perguntas subservientes da autoridade num tom de quem indica a carregadores aonde depositar móveis, ignorando a malta e falação em volta. Nenhuma palavra saiu no jornal, naturalmente, e Audálio viu Sadat e Hesse telefonando a proprietários e a editores-chefes, enunciando o código da maçonaria da imprensa grande a fim de silenciá-los. Só O Dia, como de costume, rompeu o bloqueio, "Cafiola Estupora Divina", mas O Dia é leitura de motorista de táxi, e o casal anda de limousine e chofer particular, que o conduziram ao Galeão, rumo a Paris, onde ele foi tratar de importantes investimentos do Brasil na área do Mercado Comum, e ela rever inúmeras amizades no international set, segundo o colunista social.

Os privilegiados vivem num mundo moral inteiramente estranho a Audálio, não cumprindo um mínimo das leis que fazem, nem mais nas aparências. Mulher passa de mão em mão, ok, acontece, a Gal bem o disse, agora o que Audálio não entende é a indiferença dos chifrados, que não aplicam corretivos na adúltera ou no traidor, ao contrário, não raro saem todos juntos e fica tudo por isso mesmo. Marido recebe a mulher de volta e a presenteia com uma "circulada em Paris". Os rapazes que patolam o pau dos outros não são seguidos e atormentados nas ruas, espetáculo a que assistiu mil vezes no Recife. E mulheres casadas se esfregam "neles", os maridos complacentes, ou, ainda, se alguém, homem, patolado, não gosta, meramente afasta a mão da bicha, de tapinha, nada de socos. Paraíbas freqüentam rodas ilustres e pontificam. Eram corridas de lugares públicos, as que ousavam mostrar a cara, onde Audálio se criou. Audálio se trabalha a fim de compreender a tolerância dessa gente, e a moça da Pesquisa já disse que ele é careta e reprimido, que "precisa de análise". De coração, porém, Audálio continua fiel à máxima que mulher nossa vagabundo nenhum põe um dedo e nega a invertidos direito e perdão de terem nascido. O pessoal do Partido, a quem encontra quando entrega a contribuição, deixou a militância e nem sabe se permanece crente, mas o dinheirinho é sagrado, considera a imoralidade da burguesia um sintoma típico da decadência e extinção próxima do capitalismo. Não enquanto existirem militares capitães-do-mato, ele responde em silêncio, preservou o hábito de não contrariar abertamente a Direção, e lembra o livro do Fast, sempre aparece um general que restabelece a "ordem".

Não ousaria pedir opinião a Hesse. Presume qual seja e viria recheada de ironias e citações obscuras. Horrorizado, já o ouviu dizer, quando visava uma lista de torturados ou assassinados do governo, que os declarara de "paradeiro ignorado", que "a Igreja é contra o aborto e anticoncepcionais e nos fala das alegrias de famílias grandes. De classe média, naturalmente. Hoje toda família de classe média tem um drogado, uma bicha e um terrorista, no mínimo. Quer dizer, promulgando a Humanas Vitee, o papa incentivou o que chama de maus costumes e de subversão". Audálio vigia atentamente a linha de beques, temendo uma desmunhecada ou a inapetência e o nervosismo que o psicólogo da escola avisou ser aviso clássico de consumo de fumo. Tudo bem, até o momento, graças a Deus. A defesa não foi penetrada. Mas nunca se sabe. Não compreende como Hesse, pai também de filhos pequenos, se refere tão levianamente ao assunto. Será que não liga? Será pose? Audálio gostaria de apurar, isso e tantas coisas, que a simples presença de Hesse joga em incerteza caótica. A falha é dele, reconhece. A longa viagem do mocambo à metrópole só se completou fisicamente.

Na alma, ele estacou a meio do caminho, perdido e desorientado.

"Que que há? Alguma cagada aí que você não quer me contar?" Hesse está encarando Audálio, os olhos de ferrete falados que, postos sobre a arraia-miúda da redação, suscitam a posteriori imprecações cuja violência meramente confirma o quanto doeram. Audálio ultrapassou esse nível de insegurança e, acrobaticamente quase, volta à naturalidade de que é capaz, garantindo ao chefe que não há bronca. Hesse larga o último texto, funga, e pergunta macio, a voz granulada, rouca: "Algum problema pessoal que eu possa resolver? Dinheirinho, aaaaa... outra coisa?" Audálio, as têmporas ardendo, é invadido por uma onda de ternura e gratidão, inexplicável, que contém a custo, mantendo na marra a compostura, enquanto reassegura a Hesse que é "só cansaço", o fechamento de seis cadernos especiais, ontem, e discutindo o charme de Hesse, ligado e desligado eletricamente, confessou urna noite à Doralice, "apesar de tudo, se eu fosse mulher dava pra ele". Não ousaria dizer isso à moça da Pesquisa. Ela é radical.

 

Nunca faço perguntas pessoais, a não ser bêbado, o que não vale, bebedeira é um estado de graça, que nos absolve de responsabilidades, nisso sou "inglês", desconheço reclamações de pipi e cocô no tapete da hostess, que, de resto, como todos nós, vive na civilização da Maria, a empregada é quem limpa, passa a borracha nos nossos borrões, o quadro-negro da nossa alma fica limpo de novo até os próximos garranchos e estridências. E boas respostas, de qualquer forma, exigem capacidade de introspecção e análise, que Victor não tem, sempre viveu o presente imediato, preenchendo-o ansiosamente de peripécias, clímaxes, desfechos, reviravoltas, tudo que impeça a gestação de dúvidas, de perguntas sem respostas.

Não é que ele não seja pessoal, como todo mundo, "nunca pensei que você virasse comuna, o Hesse também, mas se mancou em tempo, né? Por que você insiste nesse troço? Quando um negócio não dá mais pé, take the body out. E você precisava ver que vida miquelina os comunas levam. Eu sou doutor no assunto, conheço todos os países comunas, fui à China no tempo em que aqui fingiam que não existia, comi cabeça de ganso, é o filé deles, com Chu En-lai e o resto da turma, me trataram feito industrial brasileiro, palavra, depois eu conto. Rodei mundo, seu. Meu passaporte parece a lista telefônica". Perguntou se apanhei muito na cadeia.

Na praia minhas faculdades entram em recesso. Detesto calor, queimaduras, barata na areia, areia, multidões, aquele vasto açougue onde é raro encontrar um lombo razoável e, muito menos, um filé, ou cabeça de ganso, em que barrigas engravidadas a chope e montanhas de celulite deveriam desmistificar de vez o mito de beleza da raça, não fazem nada disso, naturalmente, a consciência coletiva se apega às exceções, endeusando-as, somos todos editores amadores.

"Também estive preso, sacumé, não por política, sempre caguei pra política. Você ficou assim porque leu demais. Eu só leio guia de turismo. São todos errados e se erram em coisa tão simples assim, imagine os de filosofia, política. Mas o engraçado é que havia conseqüências políticas, puta que o pariu, ouvi isso quinhentas vezes, você se lembra daquele meu tio general, carola escroto que esnobava a velha, a própria irmã, andei querendo sarrafar o puto, preferi botar no rabinho da filha dele, a essa altura deve ser marechal, porque já era caquético na época das 'conseqüências'. O cara compareceu quando me fodi, isso tenho de reconhecer. Foi lá no xadrez de fronteira em que me meteram, disse que minha mãe empanara demais o nome da família e não deixaria que eu completasse o serviço. Me deu vontade de responder olha aqui ô coroa dá uma checada no rabo da tua filha antes de cagar regra de moral, agora acontece que os tiras do mato estavam me olhando daquele jeito, porque não paguei a taxa de proteção pela hospedagem, taxa compulsória, seu, e se emputeciam mais quando eu respondia à cobrantina imitando o sotaque matuto deles, armados até os dentes, and me just with my little hands. Aí engoli os sapos de titio, uma lagoa inteira. A condição de fuga é que eu ficasse fora do Brasil até que o troço prescrevesse e, de preferência, para sempre."

Uma terceira pessoa, à beira d'água, o único refrigerante disponível, e de pé só, me disse que vou matar os peixes de susto. A primeira vez ainda esbocei uma aproximação de sorriso. A segunda foi a mais chata, me arrependi trinta segundos, porque veio de Raquel, que, ao me ver, se desligou de um grupo em que distingui a mulher daquele mineiro lambe-cu dos poderosos, editor-chefe do jornal que compete com o "nosso", e "grande elenco", e saiu correndo, sacolejando, rindo em direção a nós, uma cadelinha em busca desenfreada de afagos, esbarrando numa muralha, digamos, de barro, minha consistência no momento, ainda assim um breve contra a cordialidade e, a custo, emito o "tudo bem", o passe-partout da comunicação nacional, se pianíssimo senza espressione. Victor, sempre atento, dilui o impacto da rejeição olhando-a delicado, interessado, na medida exata, de quem tomou chá em criança, ração mínima do caso, mas ficaram resíduos perceptíveis dos eflúvios, aliados a um charme congênito. Admiro-lhe a técnica e os efeitos em Raquel, e ela se recupera do desvio da atenção que pensa me dever, demonstrando em código visual que não está tão fascinada "assim", o silêncio nos desnuda, falamos tanto para que não notem. E seguimos em frente.

"Mudei a fronteira do país, meu camaradinha." É, "chapa", agora, Victor permanece nos fifties. A falta de variedade na paisagem da praia é total e me fixo na espuma que limpa incessantemente os meus pés, que parecem transparentes, como o corpo do meu irmão que entrara em rigor mortis quando o vi no necrotério. Garoto eu brincava de Netuno, me afundando até o pescoço antes da rebentação, .e encarava a areia, cheia de mortais, distantes. Hoje não acharia mais graça, sonho acordado pratos que minha carne nunca me dá, gestos de que sou incapaz, criações em que fui estéril.

"Avancei sessenta quilômetros adentro da Bolívia. É do caralho. Era terra abandonada, seu. Nunca ninguém usou, que importância tinha? Sempre pensei que esse negócio de fronteira fosse cascata de geografia, que a gente cola no colégio e depois esquece. E estaria lá hoje faturando firme, se o delegado cucaracha não me cagüetasse porque eu não quis aumentar o cala-boca dele. Aí vieram as tropas e me encanaram, um oficial quase me meteu a espada quando botei as mãos no saco e gritei 'aqui, ó'. Meu tio disse que foi um incidente internacional, invasão de país amigo. Não adiantava explicar. Todo mundo entrou no negócio, cucarachas e brasileiros, até que o cagüete estrilou. Meu pai cismou com terra, influência de O Vento Levou. Herdei três fazendas, duas em São Paulo, uma na fronteira da Bolívia. Perdi as de São Paulo no pôquer, pagando um four de reis de full de ases. Claro, eram as boas, que produziam. A que sobrou não brotava nem maconha. Me enfurnei nela meses, feito um idiota, duríssimo, tentando vender. Neca. Uma noite, note bem, um oficial do exército boliviano, Gómez, Armendáriz, Mendoza, um nome desses de cuca-racha, pintou em casa, senor pra cá, senor pra cima e pra baixo, e pôs as cartas na mesa. A fazenda tinha uma localização estratégica. Se eu fechasse os olhos, no galpão, um troço fodido, cheio de aranha, caindo aos pedaços, instalariam um pequeno laboratório, uma refinaria. Eu não precisava mexer um dedo. Cachê de cinqüenta milhas mensais em 1959, sentiu? Vendia a fazenda por um terço. Durante três meses, tudo o fino. Comecei a comer as mulheres melhores das redondezas, importei um jk estalando de São Paulo e, de quebra, pó puro, à vontade, cortesia da firma. E não é que estourou o tiroteio. É que havia várias gangs disputando o mercado. Uma assaltava a outra, em vez de organizarem um pool. Essa é a causa das guerras, seu, ignorância, ignorância. Fuzilaram dois portadores nossos, do lado boliviano, antes da fazenda havia uma puta clareira, uma galeria de tiro ao alvo. Ponha-se no meu lugar, bichão. Peguei uns capangas e estendi meu marco sobre a clareira e adjacências. Porra, um arranjo temporário, cago pra terra, não sou minhoca. O delegado esse, o cagüete, exigiu quinze mil pratas mensais, de aumento. Achei demais e mandei tomar no eu. Resumo da ópera: incidente internacional. O do caralho é que a refinaria nem participou do processo, aposto que juiz, promotor e diplomatas faturavam no ramo. Minha sorte é que a velha me deixou quatro apartamentos alugados, senão morria de fome nas viagens."

As pessoas são as mesmas de sempre, que costumo ver em bares, restaurantes, casas, recintos, aqui também se agrupam, isolando-se do resto, dos índios, a democracia da praia é de acesso e não de oportunidade.

"De que você está reclamando?" De nada, no momento, para ser preciso, mas a pergunta é parte do solilóquio.

"As mulheres nuas e dando, todo mundo faturando. Que que você quer mais, ô cara?"

Victor mergulha de cabeça, volta correndo, empurra a toalha dos meus ombros, "parece uma velha resmungona, uma barata descascada, olha o céu, é sempre mais limpo que a tua cabeça. Minha cor é Saint-Tropez, mas não há lugar como este, pode crer, bichão. Eu sei. Sou catedrático. Você precisava ver o que a gente sofre lá fora, proibido de entrar. Em Paris tem comunista paca, feito você, chinfrando revolução. No fundo, todos pedem pelo amor de Deus uma chance de voltar pra casa, manjo. Onde é que se bebe por aqui agora?"

"Em nenhum lugar em que você entrasse e não quisesse logo arrebentar os outros de irritação. O gado é manso, mas incomoda, muge demais. Há o Antonio's, fora da praia, onde você pode quebrar a cara de todo mundo, no escuro, porque todo mundo merece. Vamos lá?"

O Jornalista Famoso se aproxima de nós. É parte de um grupo que anda toda Ipanema e Leblon, diariamente, faça chuva ou sol, prefere chuvinha porque as hordas anônimas descongestionam o tráfego, pela ausência, devolvendo o terreno a seus legítimos concessionários. O grupo assim se desintoxica per capita da garrafa de uísque, dos cigarros e da papa podre que passa por cozinha internacional nos restaurantes da "gente", e que custa, a festa inteira, dois salários mínimos, se a noite for normal, enquanto discutimos a repressão, a abertura democrática e a marginalização econômica das massas.

O Jornalista Famoso ainda tem o bafo de ontem, que sopra sobre nós sem a menor inibição, afinal tudo que vem dele é coisa pública, e trocamos o "como vai", "este aqui é. . ." "Eu sei quem é você. Minha mulher conhece você", e continua, porque não acredita que alguém cogite de interrompê-lo quando está falando e, de qualquer forma, seria perda de tempo, pois não prestaria a menor atenção. Sugere que eu venha mais à praia. A sério. Economiza palavras. É um editorial.

De costas ao mar, olhamos exclusivamente as pessoas que conhecemos. A praia tem povo saindo pelo ladrão, ou pelo esgoto, se quisermos ser literais. Só vemos, porém, a "nossa" gente, que inclui, a bem da verdade, membros das

Forças Armadas, profiteurs e sicofantas do sistema, que o Jornalista Famoso e eu, se nos fosse dado o poder, trataríamos como nos tratam, mas a quem outorgamos o direito de existir, talvez por vocação dialética, ou sintonia de classe, ou falta de caráter, ou força do hábito, secularmente adquirido, de que uma pequena elite, não importa quão fracionada ou antagônica, é preferível às multidões que atomizam tudo ao contato, não escapando sequer nossas preciosas personalidades. Da massa ignara reconhecemos apenas rabos e adjacências, a presença masculina não penetra a retina do Jornalista Famoso ou a minha, e ele pontifica "se eu já não estivesse broxa, doutor, faria um carnaval", ficando imperiosamente subentendido que é uma boutade, que exige imediatos "âns" de aquiescência no humor, que o próprio Victor, que jamais viu o autor ereto ou em ponto morto, concede, porque veterano dessa cena, passada, presente e futura, em que a impecável virilidade nacional se afirma pela negativa sonsa, não custa nada.

Nossos olhos treinados se detêm na mulher de José Carlos Menezes. Adriana, ou será Susana, ou Marina, já expressa quase que totalmente os méritos através da tanga, mas conga e rumba fora da coreografia das companhias que, se longe da valsa, sugerem, em comparação, coristas. A Sra. Menezes é a estrela. É "brechtiana". O texto é mero acessório do comentário físico do rebolado, o primeiro é dirigido ao grupo em que está, o segundo à praia inteira, digo, aos homens da praia. Fala uma coisa, faz outra, comprovando que Brecht, como todo artista de gênio, descobriu o óbvio, imperceptível apenas aos carentes de gênio, nós, no comportamento humano. Não temos a mais remota do que diz. Sabemos que o corpo dela, tostado, pulando em brasa, é um churrasco à procura de um espeto e do destino normal dos churrascos.

O Jornalista Famoso fornece a nota sociológica: "Esses mineiros ficam até altas horas de papo com o Otto e não comparecem. As mulheres, sozinhas em casa, preparam os chifres". Sinto em Victor curiosidade sobre o "Otto", mas ele é viajado e se abstém, entendendo a música, dispensa o libreto. Não é dado a faux pas. Quebra tudo, antes que escorregue. E o Jornalista Famoso já encerrou o assunto. Convido-o a umas e outras no Antonio's. "Só depois das seis", e brechtianamente consulta o relógio, à Ia juiz de futebol avisando às massas frustradas no Maracanã do inexorável, no caso, em nosso benefício, enfatizando o atrasado da hora. A resposta é mais que uma negativa. É uma advertência.

"Esse cara é militar?" Não vou oferecer a Victor uma míni-história do período, porque não o interessaria, em época alguma, o meu ângulo de visão. Limito-me a identificar o Jornalista Famoso, explico o clanismo dos literatos mineiros, que irrita rejeitados e rivais, intercalo que são bons papos, se restritos a uma colocação irônico-brejeira da realidade provinciana em que vivemos, que elimina os aspectos cruéis e chocantes, o que os torna aceitáveis aos poderes do dia, inclusive os que perseguem intelectuais menos refinados e aquiescentes, "eles sempre se arrumam, é o que você quer dizer", Victor resume minha prolixidade, aponto as mulheres que dão, ou não, a quem, motivações & surpresas, o pão masculino desse e daquele retângulo da areia, figurões e figurinhas, o banqueiro amigo que nos propicia invariavelmente um papagaio a quarenta por cento ao ano, pós-reformas sai em oitenta por cento, e que me acena amabilíssimo, reconhecendo o meai ticket, Victor ama as historietas e eu mesmo me entusiasmo e floreio detalhes, todos nós temos na alma uma pinta de puta que alicia fregueses.

Victor é desses que nunca se sentem deslocados, que possuem uma defesa automática, "dedo no botão", a qualquer ameaça de gaucherie pessoal. Se o bar estava quieto e ele barulhento, em minutos promovia uma reversão geral do ambiente, e vice-versa. É bonito. É rico, ou foi, e não admite a queda, entre Weber e Marx, assumiu no instinto o primeiro, desconhecendo a teoria e a existência. E tem o charme de uma confiança absoluta em si próprio, que desarma e cativa nossa insegurança, porque parece natural e legítima, incontestável. A personalidade do Jornalista Famoso que, em geral, intimida, não o abalou um tico, se uma situação ou conversa lhe é estranha, fica de fora tranqüilamente, não expressa sequer hostilidade, pelo contrário, sugere um entomologista examinando espécie nova. Vê o que quer. Faz o que bem entende. Um líder, ou era, em tempos mais simples.

Um dos nossos companheiros de 1950 chorava, dormindo. Acordado, nos enfiava em posições suicidas, desafiando paradas duríssimas, choferes de táxi, "tiras" e meganhas, brigas que Victor e Fred e Marcos, estes escudeiros, tinham de resolver, ou providenciar retiradas estratégicas. Às vezes, Victor o continha antes da provocação. Se armada, porém, todos nos metíamos, na medida de nossas possibilidades, e o provocador nunca era criticado, a posteriori, nem quando saltou de pés sobre uma patrulha do Primeiro Batalhão dos Caçadores, à porta do "baile" do Quitandinha, cuja missão consistia em barrar a entrada de moleques e cafajestes, nós. Victor ria e passava a mão na cabeça dele.

Dormíamos em geral no chão de apartamentos em Copacabana, que ocupávamos mediante não sei que arranjos, temporariamente, pulando de um a outro. Não era assalto, se bem que não deixávamos pedra sobre pedra, apesar dos esforços de diversas governantas. O menino chorava alto. Bêbados têm sono profundo, mas ainda assim. Um dia perguntei a Victor. Ele me garantiu que não ouvira nada. Uma noite, vi uma governanta, semi-erguida, contemplando o "terror noturno". Não comentou. Não comentei. Seria uma quebra de etiqueta envolvê-la em assuntos de homens.

Elas vinham da praia, trazidas por Victor ou Marcos, junto com a bebida e comida, carregavam a comida, que preparavam e serviam. Mocinhas que Victor e Marcos escolhiam, comiam e passavam aos outros, em comunismo sexual. Não tinham identidade definida. Trocávamos os nomes, confundindo-as. Não protestavam contra a fila à porta do quarto e esperavam quietas a decisão "sobre quem daria a bimbada", referendo nunca muito acalorado, afinal não iam embora mesmo, a não ser quando mandássemos.

Mocinhas capazes de se ajoelharem numa sala cheia de homens e de darem uma chupada em rodízio, não raro tecnicamente instruídas, em pleno ato, pois longe de possuírem o estilo da Betty da Correia Dutra, ou era da Santo Amaro? Mocinhas de família. Nós também de "família". Algo acontecera à família não explicável apenas pela obsessão de papais e mamães contemporâneos pelo Buraco, Biriba e Pif, denunciada dos púlpitos.

Certamente a nossa geração é aquela em que o lar deixou de prover o descanso do guerreiro, em que o burguês podia cultivar afeições e "pureza" que o absolviam, a seus olhos, do comportamento selvagem na rua. Convertemo-nos todos em personagens de L'Éducation Sentimentale, ou já que somos "visuais", de Monsieur Verdoux. As rédeas da virtude não foram afrouxadas, como nos dizem os moralistas, o que pressupõe a possibilidade de recolhê-las de novo. Foram largadas, de vez. A piada americana do pai e mãe de cigarro e martíni na mão, recriminando o filho maconheiro, é correta, porém simplificada, "extremista". É uma árvore na floresta tentacular do consumismo doméstico, estimulado ad absurdum, na crença de que ninguém precisa envelhecer, que a vida é para ser gozada sensorialmente, "boa até a última gota". Começamos a ver nossas mães pintadas de putas, recauchutando a flacidez, escondendo os pés de galinhas, seminuas, enquanto pregavam disciplina e virgindade às filhas. Nossos pais nos falavam da necessidade de acumularmos um capital de ordem e progresso e de nos privarmos de tentações diversas, em nome de deveres de manual. Na prática, afirmavam a primazia do fácil, confortável e comprável, o que incluía comerem as melhores amigas de mamãe, já nos fora difícil admitir que comiam a própria, logo após repelíamos a hipocrisia, satirizando-os à nossa maneira, de tories anarquistas, perpetuando a "brincadeira da vida", extensão da mística do comunismo, no estupro, éter, cantárides, álcool, o predatório gratuito, uma inversão radical das lições de boca. As governantas caricaturavam as mães, interpretando esposas, empregadas, objetos sexuais, utensílios caseiros, uma forma de liberdade na servidão, um refúgio contra o desmoronamento do respaldo familiar, isentando-as da obrigação de escolher e decidir, pois privadas de pontos de referência em que acreditassem, que pudessem respeitar. Cada qual no seu papel. E Victor, cujo passado superava o de todos em contradições intoleráveis, fazendo-o recriar obsessivamente um presente de prazer constante, que o defendesse de memórias, era o nosso líder natural.

Ele caminha a passo largo, que faz um semicírculo antes de pousar na areia. "Sente o terreno", sei, como um felino, e não se permite qualquer distração. É uma forma complexa e densa de equilíbrio mental que me escapa, nem de uma mímica de contingência eu seria capaz, e me lembro quando o pai e o noivo de uma mocinha, Cláudia, a classe média chamava muito suas filhas de Cláudia na época, não se importando com a produção em série, pelo contrário, considerava-a cachê, eles vieram buscar a nossa Cláudia, deles, que pecara feio. Fred entreabriu a porta, encobrindo-nos muscularmente a visão dos dois, "que que vai ser distinto?" e negociações ininteligíveis, acho que ouvi um "bom dia" tímido dos visitantes, sob o antebraço de Fred, um lombo de boi pendurado a gancho, vi barrigas macias, plenas de doce de leite e marmelada, que Fred transformaria rapidamente em mingau, e ele, ainda fechando a visibilidade da porta, chegou se arrastando nos tamancos, "tem um cara aí que diz que é pai da Claudinha e outro cara que diz que é noivo da Claudinha".

Jogávamos pôquer, "stick". Eu estava já de fora, Victor tinha um rei e um dez à mostra, Marcos um ás e um nove, o menino chorão, nada de promissor. Gritou: "Olha a cabeça na porta, ô noivo, baixa os chifres". Victor, "seus mil e mais mil", Marcos encolheu o estômago e respirou fundo, Victor e Fred, "vê se a Dona Justa tocaiou no corredor". Fred saiu e pude espiar os estrangeiros, um senhor de cabelos rentes e grisalhos, a cara severa porém voltada para dentro, como se ausente da cena, segurando o botão central do paletó, saudoso talvez de um talismã. O noivo, de bigodinho fino, o cabelo preto alisadíssimo, boca de coração, um bolo fofo, franzindo a testa, à procura de uma expressão à altura do momento, que escondesse o rosado, as pessoas não ficam vermelhas de medo, e, sim, rosadas, o sangue corre adoidado distribuindo a cor.

E ambos de terno e gravata, arrumadíssimos, "sem perder a linha", nós de calção de banho, tostados, cabelos soltos, sentados no chão, um tamanco perdido no meio do caminho à porta. O velho quer se manifestar, o noivo, atrás dele, faz um movimento de corpo, modesta assessoria física. Fred volta quase derrubando o noivo na passagem, "barra limpa". Victor a Marcos, "você vai ou não, porra?" O menino chorão fecha as cartas e levanta, "toufora", Marcos reclama, "você falou antes da vez". O menino chorão é o mais franzino de nós, apesar disso tem 1,78 m, no mínimo, e olhar de quem enxerga apenas tumulto total, e avança. Cercados agora a dois, o velho e o noivo recuam, no mesmo lugar, "não arredando pé", uma minúscula e ingênua Linha Maginot. Marcos, "ok, mil e. . ." Victor sorri encantado ramente, segura o baralho, é quem dá as cartas, Marcos ri forte, "pago só", Victor, "sabia que tu ia medrar, bichão".

O velho diz, "os senhores. . ." Cláudia entra da cozinha, um avental sobre o maio, pára, reconhece, enrubesce, desvia o olhar a Victor, que botou um ás a Marcos e outro dez a si próprio. Marcos berra "oba". O menino chorão, "Claudinha, você não vai tomar a benção do senhor seu pai e dar uma bicota no corno aqui?" O noivo encolhe a barriga e avança em direção a ela, Fred segura-o pelo fundilho das calças e o repõe no lugar de origem, o rapaz não resiste, não sabe a quem demonstrar maior medo, a Fred, ou ao menino chorão que dança em torno dele, emitindo sons de índios de Hollywood. Cláudia, "não adianta, papai, vocês me deixem em paz, pelo amor de Deus". O velho, "Cláudia, sua mãe está muito preocupada". Marcos, "mesa", Victor, "dois mil". Marcos, "seus dois e mais quatro mil". Victor, "á, tu tá dando pala de trinca de ás, não é, filho de uma puta", e, pela primeira vez, abarca visualmente a cena lateral, "olha aí, comigo não tem peru em pôquer, não, hein, e esse esporro cagou minha concentração. Vocês vão discutir lá fora, caralho, senão baixo sarrafo geral". O velho, "o senhor sabe que essa moça é menor?" Cláudia, "á, papai, pára, fazendo o favor, você e o Teleco não se metam na minha vida". O menino chorão se dobra de rir, "Teleco, puta que me pariu". O riso é infeccioso, até Marcos sorri.

Victor se ergueu de baralho na mão, Marcos, "epa, deixa as cartas aqui", Victor, "não fode, ô cara", e põe a mão no ombro do velho, que relaxa o corpo, como se isso desinfetasse o contato odioso. Sua no queixo. O menino chorão encara o noivo, hipnotizando-o na potencialidade de selvageria. Fred abriu uma cerveja, bebe do gargalo, se encostou numa janela, em frente do palco. Marcos levanta discretamente a carta fechada. Não se abstraiu do jogo um único minuto.

Victor, "escuta, bichão, somos todos democratas nesta casa. Ninguém fica se não quiser. A Claudinha se incorporou livre e desembaraçada, é ou não é, minha filha?" Cláudia concorda, "é", e passa as mãos no avental. Os olhos do velho se molham. O noivo murmura, "Dr. Eraldo", o menino chorão urra "chiiiiu", o noivo volta ao transe. Victor, "Claudinha, quer se mandar?" A moça se mexe toda, negaceia de cabeça. O velho põe as mãos nos olhos, ela se fixa em Victor.

Marcos se levanta dramaticamente, "nessa batida essa porra desse jogo não acaba hoje", enrola o braço no pescoço de Victor e tenta levá-lo a outro canto da sala, Victor, "que que há, porra? não mexi no baralho, não, me abandona", Marcos, "pera aí, né nada disso, me ouve um instante". Confabulam. Victor morde os lábios, atento, e responde afinal, "tá, tá tá. Mas você garante, hein?" Marcos, "batatolina, um mínimo de mão-de-obra e nenhuma condição de novela de rádio, a família mora em Cambuquira".

Victor assumiu o centro da sala. "Claudinha, pensando bem, é melhor cê ir com eles, tua velha tá preocupada, pode abotoar o paletó, e velha a gente tem uma só. Depois eu te telefono, beijos e abraços. Ô Marcos, boneca, pago os quatro mil. E, agora, fim de papo. É falta de educação interromper o jogo dos outros. Fora todo mundo."

Cláudia, Helena de Tróia, entre o lar e o amor, em versão da Rádio Nacional, "mas, meu bem, você não sabe o meu telefone, você não sabe onde eu moro, você nem sabe o meu nome inteiro". Victor, "perfeitamente, deixa aí escrito, o Hugo é intelectual, deve ter papel e caneta, pede a ele". O velho estendeu o braço sobre a filha, reclamando posse. O noivo olha circunspecto. O quê? Nada. Nosso repertório é insuficiente e inadequado à variedade de situações que a vida nos impõe, e, em geral, nas crises, nos tornamos marionetes largados em cena aberta. Todo mundo aguarda, exceto Victor e Marcos, de volta às cartas. Victor vira novo ás a Marcos. Larga o baralho. Cláudia abriu o berreiro, "por favor, meu anjo, idolatrado", Fred, "idolatrado, epa, engrossou, ô Telecoteco, onde está a autoridade?" Cláudia se pendurou no pescoço de Victor, soluçando, ganindo, Victor prostrado diante da trinca de ás de Marcos, até que salta, duro, segura os braços da moça, fechando-os como se fosse um fole e a arrasta ao velho e noivo, "melou, minha filha, tá? Se é por falta de um adeus, pt, saudações. Ô Fred, vê se movimenta o tráfego aí, porra". Fred empurra brutalmente o trio à saída, "amgoa", "amgoa", repetindo o que Tarzan dizia aos elefantes. Fecha violentamente a porta e tranca Marcos, "oito mil pratas, caixinha, obrigado", e explica ao menino chorão e a Fred, que reclamavam do "cu perdido" que engrenou duas meninas novas na praia, irmãs, do interior, falta só ir recolher "sempre que dobro a parada é para ganhar, ha, ha".

Victor namorou normalmente algumas mulheres, quer dizer, sem dividi-las conosco. Não acredito, porém, que as aceitasse como gente, "parte da turma". A vida dele era a gang anárquica, uma continuação obstinada e premeditada da infância.

Wandinha Vinde a Mim as Criancinhas está de olho nele, que não a reconhece. Foi apaixonada e esnobada nos nossos tempos. Era desprezada entre as beldades do Posto 4, onde namorávamos "normalmente", quando e se. As outras casaram, se aburguesaram, sei lá, sumiram do mapa. Wandinha, alta, magra, opinionada, caía mal perto dos brotos tatibitati, rechonchudinhos, Renoir ainda não fora superado pelos cubistas, na época. Ninguém a queria e, muito menos, o principesco Victor, que lhe negou condições de picirico. O mérito de Wandinha é que não tentou imitar as rivais, avacalhando-se num casamento suburbano. Resolveu assumir a própria diferença, desafiadoramente. Gravitou, claro, para o meio intelectual, receptivo a desajustados, onde a meia bomba é comum, dada a alta incidência de álcool e perturbações psíquicas, deu a todos graciosamente, e, decisivo, deu ouvidos aos diversos monólogos permanentemente em curso, pois intelectuais falam sozinhos, ao mesmo tempo, e gostam de uma platéia amiga, atenta e silente. Eles pagaram a dívida celebrizando-a na imprensa, cobrindo-a de charmes misteriosos e inacessíveis às rechonchudas que escolheram aspirantes da escola naval, cadetes, homens de negócios, gente com "futuro". Em pouco tempo, nenhuma festa em que a intelectualidade e grã-finismo se reunissem, dissolvendo quimicamente diferenças, passando a mão na bunda das mulheres uns dos outros, não tira pedaço, ficava completa sem Wandinha, atenta por igual a quaisquer monólogos, rindo alegre, o que os espíqueres achavam inteligentíssimo.

Poderosa é a pena, ou a Olivetti. Em breve, rechonchudas começaram a idealizar Wandinha, que conheciam de ler e ver nas revistas. Emagreceram e se alongaram, e Wandinha, inconscientemente hegeliana, previu a moda behaviorista dos anos 60, expressou-a precursora, quando os costureiros parisienses adaptaram o corpo feminino ao estreito, mais adequado ao corpo masculino, propaganda homossexual dos ditadores da moda, amparados na totalitária difusão das comunicações, que lhes permitia projetar o New Look até a recônditos subúrbios là bas, também conhecidos como Meyer e Cascadura, e Wandinha, claro, ascendeu aos degraus finais da glória. Modelou em pessoa em Paris. Lá experimentou heroína e lesbianismo, "é engraçado", me disse, porém, "não se ateve", é, em verdade, uma versão feminina de Victor, uma predatória natural, em moto-contínuo, e, de volta à pátria amada, casou, fez filhos, descasou, chifrou, comeu quem quis e, mais ou menos, levou à morte um apaixonado célebre, amigo meu, não sei ao certo a medida da influência. Hoje, se especializa em garotos e pó. É uma cidadã de respeito. Respeitamo-la porque exerce bastante controle sobre a própria vida, o que raros de nós podemos pretender. Não é uma biografia plutarquiana, mas nem pensemos nisso.

 

"Dr. Hesse, a Dona Adriana ainda está para a praia. O senhor não quer mesmo deixar recado?"

"Não, tenta de novo, dentro de uma hora. Eu vou falar agora com o Dr. Antônio. Me chama lá. É urgente. Escuta aqui, ô cara, há alguma coisa aí que eu precise saber, Brasília, internacional?"

"Dr. Hesse, Dona Sílvia Maria está no direto." "O Kissínguer ameaça pôr soldados no Líbano, se o pau continuar quebrando. De Brasília, o de sempre, tudo bem, mas não vem que não tem."

"O Kissínguer não vai botar um único soldado americano no Líbano, porque se não os árabes encontram a saída da cangancha que armaram, jogando a culpa da própria incompetência nos States, e sai embargo e o escambal a quatro. Em todo o caso, dá na primeira, a declaração toda, sem comentários. Somos ou não o jornal documento?" "Ok. Tolaimbaixo se você me quiser." "E me avisa se aparecer alguma notícia de verdade, para variar. Sílvia Maria, o que posso fazer pela senhora?" "Paulo, eu não sei o que você pretende hoje à noite." "Nem eu. Você tem alguma idéia? Let it be wonderful, let it be horrible, as long as it is uncommon. Oh, oh, lambent fire."

"Paulo, estou falando sério. Você marcou duas coisas diferentes ao mesmo tempo."

"O teste de uma cultura saudável é manter em equilíbrio duas idéias diametralmente opostas, ao mesmo tempo."

"Paulo, que que eu faço? Jantar para cinco aqui? E a noite de autógrafos da Odaléia?"

"I haven't the remotest, ok, o que que eu fiz errado? Peço desde já minhas apologias. Falando nisso, você já foi àquela loja onde era o Ipanema? De que que é?"

"Eu não tenho a menor noção. . . Paulo, ontem, de pilequinho, você convidou o Jack Ainsworth, aquele homem da cia, como é o nome, Dotson, e aquela loura horrorosa mulher dele, para jantar, hoje, e hoje assumimos o compromisso da Odaléia. O que acontece agora, me diga. Os americanos telefonaram perguntando a hora, eu feito uma pateta, você não teve a cortesia de informar, me safei respondendo que dependia de um telefonema seu, da sua hora de sair do jornal. Olha, eu não quero chegar à Odaléia à meia-noite, entre os bêbados, e jantar em casa, de qualquer forma, com a dieta do meu pai, você sabe a complicação e me faz uma dessas."

"Pilequinho é apelido. Por que você não puxou meu braço, antes de eu fazer o convite?"

"Como se eu pudesse, vocês não dão a menor atenção a nós, mulheres, nem vi."

"Mea culpa. O feminismo virá. Tudo virá, a longo prazo, e até lá estaremos todos mortos, a consumation devoutly to be wished."

"Ummm."

"Ok, pensando bem, pensando no que ocorre no momento, por que a gente não carrega os gringos à Odaléia? Afinal eles não conhecem ninguém, não param de se queixar que vivem num gueto diplomático pior que o de Moscou, e nenhum deles vale um seqüestro. Depois jantamos no Mario, que é, ao menos, quieto."

"Não sei, não. E aqueles comunistas todos? Já basta a maneira que olham você, que, francamente, me incomoda. Eu detesto essa gente e se não gostasse tanto da Odaléia preferia ficar em casa."

"Então, combinado. Agora preciso ir ao beija-mão do meu Führer. E convidamos os gringos aí prum drinque, depois do jantar do teu pai. Pode deixar que eu peço à Dona Alzira, ela telefona ao pessoal e marca tudo. Alguém me ligou?"

"Um Victor. Disse que passaria o dia com o Hugo Mann."

"Epa. A que horas?"

"Não sei, de manhã. Uma empregada é que atendeu."

"Está bom. Eu vejo isso."

"Paulo, você não vai enturmar de novo com o Hugo, vai?"

"Você corta essa marcação, Sílvia Maria. Ele sempre tratou você muitíssimo bem, é um intelectual brilhante e meu amigo, meu único amigo de infância. E nunca falou mal de mim pelas costas."

"Como é que você sabe? Também, pudera, depois de tudo que você fez por ele."

"Olha, o Hugo provavelmente vai estar na Odaléia e quero que você seja cordial, nada de Mary Astor em cima dele."

"Eu não sei quem é Mary Astor e dispenso lições de educação, obrigada. Desde que não se abolete aqui em casa, não me importa o que o Hugo faça ou pense de mim. Já considero incrível que Maria Tereza saia em grupo com ele, um comunista nojento."

"O Hugo não é comunista. É um esquerdista radical platônico. Bem, não adianta. Eu aturo suas amigas, as mais chatas, vou hoje cair em duzentas e quarenta pratas comprando em duplicata o asneirol da Odaléia, espero um mínimo de reciprocidade com meus amigos. O Victor ligou antes das três?"

"A Odaléia se fez por si própria, todo mundo, o Otto, o Tertuliano, o Afonso Arinos, diz que ela escreve maravilhosamente. Você é do contra."

"Sei, põe uma frase bocó atrás da outra, parece uma telegrafísta e assina Gertrude Stein. A que horas o Victor ligou?"

"Espera um momento. . . Lá pelas dez, a criatura que atendeu não cronometrou. Paulo, eu não quero voltar ao inferno daqueles anos. Você ajeitou tudo tão certinho, se dá tão bem com meu pai, é o maior jornalista do Brasil, por que recair no meio daquela gente, que tanto prejudicou você e que nem mais partilha suas idéias políticas? Você viu a cara dessa Adriana para você, ontem à noite? Cuspia fogo, a desclassificada."

"Vamos parar por aqui. Tenho de ir. Chego cedo se não houver complicação no jornal, hoje é dia manso e o Audálio agüenta as pontas. Bye now."

"Está bem. Até logo."

"Dona Alzira, me localiza o Dr. Hugo Mann."

Um casamento que resiste, ou qualquer relação constante entre pessoas, precisa do estímulo de crises falsas, que, falsas, são fáceis de resolver. É um antídoto à rotina, ao tédio, e uma garantia de que diferenças maiores, se existentes, permanecerão submersas. Hesse representava conscientemente seu papel. A mulher gostara dele porque "louco", palavra que, no contexto, não quer dizer nada, sugere atrativos à la carte. Hesse sorria de irritação temperada em humor, quando imaginava o prazer de Sílvia Maria em "ter acertado" sobre a fajutice do radicalismo dele. E admirara a arte dela, no interregno de 1964, antes da guinada em 1965, em não "cobrar" a mancada. Pelo contrário, se tornara mais carinhosa que nunca, respeitando-lhe os longos silêncios deprimidos, as meditações regadas a Bourbon, em que só se ouvia o balanço do gelo.

Na situação de Hesse, era a esposa ideal. Ela não queria intimidades excessivas, sempre o flanco mais exposto da existência, porque dispomos sobre os nossos íntimos de dossiês incriminatórios superiores aos de qualquer polícia secreta. Hesse às vezes "caía em si", na irrealidade do seu relacionamento com Sílvia Maria, essa tendência ao radicalismo crítico é, afinal, bônus e ônus da condição de intelectual, e continha a custo o sarcasmo, que é, também, a reação intelectual ao irracionalismo dos arranjos humanos. Não subestimava um minuto o peso que carregava sozinho, inapelavelmente solitário. Amava, o que é diferente, a solidão.

Solidão. Um bálsamo. Havia momentos em que sentia a tentação obsessiva de desabar num silêncio final, catatônico. Gostava de ficar isolado, mexendo num livro ou outro, lendo um pedaço aqui e ali, ouvindo Wagner, sem concentração, as paredes do escritório, em casa, lhe pareciam suficiente companhia, inexistindo alternativa que o atraísse. Tudo isso, claro, luxo raro para um pai de família e diretor de jornal. Todos o julgavam educadíssimo, o que não era incorreto, porém incompleto. Mantinha tal distância"que se podia permitir uma constante e formal delicadeza no trato do próximo. Os salvos de sarcasmo, que chocavam Sílvia Maria e os poucos privilegiados que os ouviam, representavam uma tentativa de contato direto, e que não os percebessem assim, aumentava-lhe o senso de comédia e de futilidade nas relações humanas que contraíra em criança, e que, adulto, estilizara e sedimentara. "Esplendidamente só", apud o Dr. Antônio Oliveira Salazar.

A companhia do sogro curiosamente o relaxava. Os dois se sentavam na biblioteca, à noite, enquanto Sílvia Maria fazia a ronda da casa. Somente o rabo do cachorro, batendo descompassadamente no chão, quebrava a imobilidade geral. O velho não exigia conversa. Prescindindo de aviso prévio, monologava sobre a Velha República, epígrafe da própria juventude, naturalmente. Hesse ouvia fascinado aquela história de fantasmas, gênero que sempre sobreviveu melhor de viva voz do que em livro, talvez porque os nossos fantasmas prefiram companhia à neutralidade da letra de forma. O sogro participara de tudo sem se envolver, irreversivelmente, em nada. Conhecera Siqueira Campos, Prestes, Eduardo Gomes, Bernardes, Vargas, Washington Luís, e esboçava-lhes traços nítidos, porém inconclusivos, porque recordava o que cada um pensava estar fazendo, omitindo as conseqüências da interação de personalidades, das forças impessoais que lhes definiam possibilidades e limites, o que é História. Não é que o velho não soubesse. Entremeava a narrativa de pausas longas, comentário mudo em que não raro se recolhia o resto da noite, voltando ao assunto na ocasião seguinte, exatamente no lugar que se interrompera, no recesso do júri. Claro, advogava a causa de todos, escrupulosamente, não tomando partido, fornecendo apenas as informações exigidas pelo juiz, deflacionava a componente anárquica das velhas controvérsias e sonegava os custos e sacrifícios humanos decorrentes dos atos dos réus, preparando assim o espírito dos jurados para um.veredicto favorável, esperançoso de que, no dia do Julgamento Final, o único litígio que agora lhe restava, sua imparcialidade e generosidade constassem a seu favor.

Sílvia Maria quebrava o encantamento propondo "um copo d'água", "café", ou outra banalidade qualquer, que sabia, em princípio, rejeitada e supérflua, mas que trazia pai e marido de volta ao terra a terra familiar, de pequenos desejos e contrariedades, de trocas de sinais de identificação e presença, o único terreno em que se sentia segura. O velho se levantava e beijava a filha no rosto, dispensando-lhe os serviços, e seguia, o cachorro ao lado, em jornada pelo jardim ou aposentos da casa, em que era visto murmurando sozinho, manuseando velhos manuscritos e jornais, ou se o cachorro falhava como sentinela, atacando o freezer das geladeiras. Hesse se sacudia de torpor na poltrona, acendia um cigarro e sorria para a mulher. Eram todos bem-educados.

Sílvia Maria, se a palavra penetrasse suas defesas mentais, acharia mórbida a relação entre marido e pai. Adorara de início que, pós-1964, os dois tivessem encontrado tanto em comum, já que o irmão, o chico, talvez por ser garoto demais, de uma geração que desprezara os prazeres da conversa civilizada, preferindo intercalar monossílabos nas pausas orquestrais, mal parecia atingir a retina do pai, que recebia impaciente, movendo os pés, o beijo do filho no rosto, sorria vacuamente e saía em frente, direção ignorada, em geral alguns passos adiante, apenas, que o livrassem da proximidade d'o chico, que ficava sem jeito, também sem saber onde pisar, até que manerava, encaixando-se nos braços sempre carinhosos da irmã ou na mão de Hesse, sempre cordial. O velho toda a vida dera preferência às filhas, as mulheres da família é que paparicavam o chico, mas o pai não precisava exagerar.

Sílvia Maria exultara ao ouvir de Hesse sobre o pai, "nós somos muito parecidos, e, num certo sentido, essencial, somos idênticos", se bem que o marido se mostrara pouco receptivo, alguns instantes, à alegria dela, olhando-a friamente, até que se reaprumou, voltando à delicadeza e atenção habituais. O sogro fornecia ao genro, trancados, a chave, no escritório, copiosas informações que colhia do governo e círculos influentes, apresentara-o ao embaixador dos EUA e aos principais homens de negócios americanos no país, ou ligados ao Brasil, no exterior, cujos interesses, em muitos casos, representava e que, de qualquer maneira, o aceitavam como confidente e conselheiro.

Sílvia Maria sabia que isso não era assunto de mulher, em verdade detestava política e negócios, tolerando o interesse masculino nessas coisas pelo senso assumido de dever conjugai e filial, da mesma forma que repelia a obsessão das pessoas com outra obrigação conjugai, que julgava simples adendo de uma das missões da mulher, a maternidade. Nunca permitiu que Hesse acendesse a luz do quarto, ou variantes do ato normal, e ele, felizmente, desistira. Fora num momento de fraqueza, de que não se perdoara, apesar de confessado, absolvido e sacramentado no casamento, que cedera, virgem, ao noivo, nem isso, namorado. Havia um extra, que obliterara da cabeça, pois pecado de criança inocente e menos grave, portanto, que escondera da mãe, apesar de tudo. E trancava os ouvidos às mais leves sugestões de irregularidades no comportamento de Maria Tereza ou Maria Amélia, esta exigia, infelizmente, apartamento próprio aos vinte e um anos. Expurgava "intrigantes" do convívio, se insistiam.

Respeitando prioridades masculinas, ainda assim achava excessivo que pai e marido a excluíssem horas a fio, à noite, em que se fazia útil e agradável, pelo que lhe deveriam render homenagem e corte. Não reclamou diretamente a Hesse. Fora aluna brilhante da Mãe. Apenas perguntou a ele certa vez, antes de dormirem, se não estaria se cansando demais, estendendo o trabalho longo no jornal à casa. O marido explicou: "Seu pai sabe mais o que se passa neste país do que o presidente, os generais, os tecnocratas, homens de negócios, donos de jornais, etc, juntos. É uma das raras pessoas a circularem em todos os grupos, com direito quase absoluto de acesso, pois todos lhe pedem assessoria e ele não cobra. Esses grupos são rivais em muitas áreas, logo a franqueza entre eles é restrita a necessidades mútuas, porque também existe uma dependência mútua, naturalmente. Ouvindo seu pai uma hora, consigo dados, números, motivações e objetivos que não se encontram, o total, digo, em parte alguma, em livros, relatórios e o resto da papelada, oficial, oficiosa, ou confidencial. Para mim, diretor de jornal, isso não tem preço".

Sílvia Maria nunca duvidara da superioridade do pai sobre o resto dos mortais e reconheceu que fora injusta e egoísta, alegrando-se da missão cumprida, do estabelecimento de uma intimidade entre os dois seres, à parte a Família, que dividiam seu amor. Antes de apagar a luz, porém, lhe ocorreu uma pergunta, que fez, incerta se não estaria dizendo bobagem: "Mas esses, essas informações, notícias, você não pode publicar, pode?" O marido permaneceu um tempo em silêncio, crescendo nela a suspeita de que se metera onde não devia, até que Hesse a aliviou: "É uma boa pergunta. Não, certo que não, meu amor, agora o que eu fico sabendo me permite impedir que o jornal cometa gafes, o que fortalece minha posição junto ao Sadat, compreendeu?" Nada poderia ser mais claro.

E Sílvia Maria preferia, em retrospecto, os conciliábulos que foram quase que ininterruptos de 1966 a 1974, ao que notava hoje, em pessoa, quando sabia que mudavam de assunto. Entreouvira diversas vezes intermináveis recordações do pai, coisas de muito antes do nascimento de Maria Tereza, e a expressão "segunda infância" lhe caía como um raio na cabeça, deixando o terreno estremecido. Por que o marido não cortava, restituindo a conversa ao presente, mantendo o interesse do pai na vida deles, dos filhos, dos netos?

Sílvia Maria jamais perceberia o que era evidente a Hesse, que o velho chegara àquele estágio da existência em que, se sobrevivemos às maiores indignidades do destino, se extraímos termos de um armistício favorável a nós, pelos critérios de valor do mundo, ainda assim sentimos a necessidade obsessiva de um ajuste de contas conosco mesmo, porque, em última análise, é a nossa opinião que importa, se merecemos o descanso da saciedade; ou a náusea, na velhice. Hesse observava fascinado esse processo no sogro, complexo e difuso, assumindo formas diferentes a espectadores diferentes, levando Sílvia Maria a imaginá-lo gagaíce nostálgica; porque Hesse se antevia em situação semelhante dentro de alguns anos. Quantos? Não era relevante. É só enquanto orquestramos cabeça e corpo, na juventude, que o tempo parece ter profundidade, justamente por sofrermos o nosso desajuste a todo instante, puxados a isso e aquilo, sem encontrar a harmonia exata, repetindo acordes, experimentando teclas. Quando a peça musical emerge completa, corre rápida e dura pouco. Às vezes precisava lembrar que atingira a meia-idade, early middle age, no eufemismo idiota, o que lhe dava um choque, pois desde que decidira sua vida, consumia dias, meses, anos, imperceptivelmente, subordinados à visão que o envolvera, ad maiorem.

Como seria o seu ajuste de contas? Só tinha certeza que seria solitário. Nenhuma platéia amiga, se silente, igual à que provia ao sogro. Nenhum público possível, ou aceitável, nada do ombro tradicional. Adulto, relera Dostoiévski, Crime e Castigo. Garoto, o racionalismo crítico libertário de Raskólhnikov o deslumbrara, e achara repulsivos os remorsos e a abjeção final da personagem, um prato de lentilhas solicitado, por requerimento? ao tzarismo. Agora, sem mudar de opinião, descobrira uma certa lógica nesse comportamento. Se nossos motivos para "matar a velha" são meramente pessoais, responderemos pessoalmente, pois permanecemos todos um feixe de nervos e sensações, o casulo em que nascemos, e cedo ou tarde nos esbodegamos, a máquina pifa, e ansiámos, bagaços, pelo amparo, o consolo e o perdão de nossos semelhantes.

Ele próprio experimentava sentimentos que há muito imaginara arquivados definitivamente. Os filhos brincando descuidados, quando pareciam inconscientes de si próprios, e não faziam muito barulho e não se tornavam insolentes, exercendo apenas a integração normal da infância no meio ambiente, cuja intratabilidade nem sequer suspeitavam, o que se chama, oh, God, the clichê, "inocência", os filhos enchiam-no, então, do que definiu ser ternura. A rotina compenetrada de Sílvia Maria, estreita, inimaginosa, pretensiosa, mas tão convicta, tão coerente, tão intransigente, que se autotranscendia na eloqüência das coisas permanentes, dava-lhe, ocasionalmente, uma vontade quase irresistível de acarinhá-la, trazendo de volta a menina que fora um dia, nos braços dele, ao render-se a primeira e única vez. Um pouco de água sempre jorra sobre as represas mais sólidas.

Estaria voltando à bobeira da adolescência, exigindo catarses, "soluções imediatas"? Não, continuava firme, disso tinha certeza, e dois minutos de reflexão fria reforçavam essa certeza à intransponibilidade. No seu tempo e espaço não existia outro caminho, e quando as pernas fraquejavam, ele as e se imergia em álcool, um monge solitário entornando na sacristia, Hugo Mann, dear old Hugo, carregando ranhetamente a cruz de suas indecisões entre o céu e a terra, o intelectual típico do nosso fim de era, nem Cristo, nem Pilatos, nem o soldado romano de lança, pós-Raskólhnikov, pois este, ao menos, é um pouco dos três. Só na cabeça de Sílvia Maria passaria a idéia de que ele quisesse enturmar com Hugo de novo. Tinha medo de Hugo. Uma pessoa assim que vive empilhando bizantinamente dados e aferimentos sobre o que os outros apenas intuem e atuam, Hugo era capaz de esbarrar na realidade, de uma panorâmica. O que Hugo poderia partilhar com um meteoro como Victor? Nada, absolutamente nada que ele percebesse, o que lhe dava um profundo mal-estar, precisava descobrir, conter, conter. Isso, hoje à noite incorporaria os dois ao grupo, Sílvia Maria que se cozinhasse no seu próprio forno, os americanos nunca notam nada irrelacionado a dinheiro, menos, claro, Jack Ainsworth. Hesse suava estupidamente, o estômago em náusea de vômito.

"Dr. Hesse, o senhor pode entrar. O Dr. Antônio está esperando o senhor, Dr. Hesse."

Hesse deu de cara com a secretária de Sadat, que o olhava discretamente espantada, tinha longa experiência das esquisitices dos amos que, no Grajaú, seriam consideradas coisas de louco, ou prova de grande falta de educação, era bom que só precisasse lidar com eles na hora do expediente. Hesse notou que estava de mão na maçaneta do escritório de Sadat, imóvel. Quanto tempo ficara assim? Não sabia e rião podia perguntar. Abriu o fecho éclair e a porta, o bafo de ar-condicionado foi uma bofetada restauradora, e tudo dele voltou ao lugar de que se tornara prisioneiro e carcereiro.


Carnaval, 1976

"Você acha que eu posso voltar?"

"Você quer voltar?"

"A gente sempre termina voltando, ô cara."

É mito. Conheço dezenas que saíram e ficaram. E deve haver milhões que se mandaram com bilhetes de ida, não sabemos. Não sabemos quem entra, quem sai, como vivem. Estatísticas, recém-instaladas na taba, foram logo manipuladas pelos pajés, a serviço dos chefes da tribo, and who cares anyway?

"Não vejo por que não. Você é bem-nascido, conhece um bocado da fauna, nunca se meteu em política. Há conhecidos nossos, provavelmente você os consideraria amigos, que te receberiam de braços abertos. Quantas línguas você fala?"

"Cinco."

"Putz. Já basta pra abrir um hotel de luxo, desses que cobram duas mil pratas o jantar. O governo dá tudo, terreno, financiamento, isenção de impostos, e os ministros vão toda noite, nem é preciso que você deixe assinarem a nota, preferem pagar, mostrando que estão com o dinheiro."

"O país é do caralho."

"Certo. O problema é estar entre os que metem. Há poucos, mas tem vaga, se você souber estacionar."

Quero ver se me safo, depois de um almoço com Victor, sem álcool, se possível, pois quando começo não paro. Amanhã é sexta-feira, subo a serra, os ombros me ardem sob a toalha, não sou definitivamente discípulo de Akenaton, mas sei que será difícil. As obrigações que contraímos naturalmente são as que mais nos pesam, porque viramos juiz, réu e júri, e sempre procuramos justiça para nós mesmos. Não posso plantar Victor sozinho depois de quinze, dezesseis, anos de ausência.

"É difícil enturmar no exterior, bichão. Nunca te aceitam como igual. Até as mulheres com quem vivi se achavam no direito de botar banca, tive de aplicar um corretivo em algumas. São todos cheios de nove-horas. Mostram ruínas à gente, de peito inchado, até parece que construíram. Demoliram, isto sim. Na Grécia os turcos paparam a moçada toda e grego vem de papo de Sófocles e Aristóteles, você sentindo o pé no armarinho."

"Você não fez um grupo de brasileiros?"

"Só há três tipos, grã-fino, terrorista e garçom, que não fazem muito o meu gênero. E é tudo desajustado. Qual é a graça? A gente virava e botava pra quebrar, no nosso tempo, contra a quadratura, e hoje essa é a batida da moda, ficou chato, seu. E as figuras, puta. Que desespero deu nesses grã-finos, rapaz, as mulheres me patolavam de um lado e eles do outro, meu pau não é cinzeiro de hotel, e as meninas do terror matraqueavam de Trótski, Guevara, Marighella e de um tal de foquismo, que que é, falando nisso, não sossegavam nem quando eu metia. E cafungam mal, uma onda erradíssima, nunca fui chegado a festa de amador e acabei engrossando, e tinha uns caras que vinham cobrar, 'companheiros, me ameaçaram de 'justiça revolucionária', deve ser um lustre novo de chifre, no primeiro sopapo o papo mixava. Você acha que estou ficando velho? Estou, agora preciso manerar, uma casa de praia, alguns amigos bebendo com a gente, umas governantas em rodízio, você não casou, né? Cheguei a pensar no assunto, em Paris, moça da Air France, buchê de placa, e eu queria namorar de mãos dadas, juro, pela primeira vez na vida, mas Janine, ela, não podia ver uma braguilha que caía de parafuso. O negócio da Bolívia, meu tio garantiu, ninguém sabe aqui, não vão me receber mal, vão? Cansei, Hugo. A gente brincava, Hugo, era engraçado não era? Que que sobra daquele tempo? Eu... pois é."

Chegamos à calçada do Leblon e sacudo a areia, uma despedida que espero final. "Quer dizer que o negócio do Hesse foi bom pra você?" Minha única pergunta editorial, a "jornada" inteira.

"O Hesse é legal. Me conheceu em Paris, Fouquet, Cloiserie de Lilás e o caralho a quatro. Virou sem pestanejar até o eu da ma tina no Halles e vi logo que era gente boa. Expliquei por que fugia de brasileiro e, em seguida, me ofereceu o controle do malote do jornal, remessa, distribuição, o chato é que é entrega em pessoa, mas mil dólares, limpos de impostos, e despesas, o título de delegado europeu da empresa. Eu precisava dum troço assim, posição, nunca sonhei que fosse sequer pensar nisso. Meu pai tinha posição. No Natal e aniversários chegavam presentes aos caminhões, telefonemas, cartões, as madamas me punham no colo e me apalpavam, 'ele é perfeito, doutor, uma gracinha', a gracinha ficava mais embaixo, elas sabiam e roçavam, as putas, azeitando o material. Até que um dia parou tudo."

"De que você e o Hesse falam?"

"Sem essa, Hugo. De que você e eu falamos? A gente só fala com estranhos. Entre amigos, tudo é legal. O único troço chato do Hesse é aquele sócio dele, um tal de Van Dandt. Foram colegas de universidade nos States, o Hesse me contou uma noite, sozinhos. Sozinhos porque desisti do Van Dandt. O cara é empombado, distante, metido a superior. Tem um escritório Export-Import em Zurique. O Hesse e ele trocam malotes, deve ser algum faturamento lateral do teu amigo, o que acho muito justo. Um mês eu estava duran-go e procurei o Van Dandt. Propus escrever a alguns conhecidos aqui, oferecendo negócios de exportação e importação. Riu na minha cara feito eu fosse um idiota. Fiquei puto. Afinal, se recusasse depois de ouvir, ok, não me deu nem essa colher de chá. Botei o galho dentro em homenagem ao Hesse. Outra vez, eu, meio mamado, encontrei o puto e um coroa, num café. Sentei sem pedir licença, o que é o máximo da grossura naquele feudalismo suíço. O Van Dandt, lívido, da cor da tua toalha. Me apresentei, gozando a situação, e o coroa respondeu, em alemão, que era exportador de Hamburgo. Ri na cara dele, porra, viajei a Europa inteira, o cara paria um sotaque russo grosso como bacalhau, e perguntei pela putaria; o câmbio negro e o resto da zorra ali perto do Hotel Astoria, onde morei em Leningrado. Ele se fingiu de surdo, caí na gargalhada até que o Van Dandt pagou a nota e se mandaram."

"Você contou ao Hesse?"

"Contei, riu muito. Concordou que o Van Dandt se portara como babaca, mas precisava dele, para informações financeiras, foi o que me disse. O negócio do russo, que era russo, claro, matei na mosca, é que a urss montou um banco na Suíça em que faz transações com moedas fortes, o que não quer que se badale, cairia mal junto aos comunas do mundo democrático, e o Van Dandt funciona de intermediário, daí o susto que levaram comigo. Pediu que eu moitasse, pois se não ele, Hesse, seria o prejudicado, perdendo o contato. Topei tudo. Já estava meio envergonhado da cena, por causa do Hesse, pro Van Dandt caguei, e a vantagem é que nunca mais saímos os três juntos. De que você está rindo desse jeito? Parece uma hiena. Endoidou, ô cara, o sol te fez mal?"

"O que à luz do sol encerra. Nada, me lembrei de uma coisa engraçada, de muito tempo atrás. Olha, você quer voltar, certo? Ok, hoje é o dia ideal. Ninguém que te interesse nesta cidade faz nada exceto festejar o próprio marasmo, o que é uma atitude de classe, justíssima, porque a gente que você precisa conhecer é 0,3% da população, a que o resto serve, ou mendiga. E logo mais, os senhores da província se congregam, no que se convencionou chamar noite de autógrafos, de uma subliterata, Odaléia, jornalista que adula essa malta e cobra vendendo livros que ninguém lê. Figuras representativas dos 0,3% comparecerão en masse. Depois a gente estica no Antonio's, Mario e nos vários etc. Não acaba nunca. Já começou. É permanente. Almoçamos, de saída, no Antônio’s, onde vou demonstrar uma diferença que você esqueceu na Europa, entre resistir a uísque falsificado e o legítimo, te dou um banho, I'11 drink you under the table. O Hesse deve ir, também, e a mulher dele, Sílvia Maria, espécime que você tem de ver antes que acabe, como os índios, só que os índios moram longe e fedem, ela perto e é cheirosa. Estou ao seu inteiro dispor."

"Tu endoidou, ô cara, mas tá falando com ele."

 

O quarto bourbon nas pedras já afrouxara os nós internos de Hesse, o estômago lhe parecia manso e receptivo, a novos bourbons, naturalmente, mas ele maneraria, e relaxava sob o clima de Teresópolis do escritório de Sadat, os alemães são supimpas em ar-condicionado, o de Sadat fora importado, precisava conseguir um igual, o seu era americano-paulista, híbrido que não dava para a saída, e no segundo andar do cérebro antegozava Adriana, quede Dona Alzira com o telefonema, no terceiro andar, Hugo, Victor, americanos, Sílvia Maria, Odaléia, etc, se misturavam confusa e desagradavelmente, ele não subia até lá, pensaria nisso amanhã, como Scarlett O'Hara, ou, ao menos, hoje à noite só.

"São mesmo excelentes os seus comentários, Dr. Antônio", dizia um dos dois industriais paulistas que flanqueavam Sadat, que sorria até às orelhas, "noite ilustrada", o contraste completo entre o negrume do rosto e a branquice dos dentes e dos olhos, se bem que o símile primitivo não conjuminava com a experiência, matreirice e ambição do portador, que venderia a própria mãe pelo melhor preço disponível.

"Dr. Camargo, por favor, A. S., a assinatura do nosso articulista, embora coincida com o meu Antônio da Silva, não é minha. A. S. é um dos nossos colaboradores, dos melhores, reconheço."

Todos riram cúmplices, Hesse também, por motivos ligeiramente diferentes. A. S., afinal, era ele, que escrevia contra a "progressiva e contraproducente estatização da economia brasileira", e Sadat, negando ou não autoria, faturava na embaixada americana e nas federações industriais e comerciais do país.

Já interviera no papo uma vez, decisivamente. Os industriais queriam artigos diários, que pressionassem o governo. Hesse explicou-lhes, paciente, que semanalmente era melhor: "Os motivos são psicológicos e técnicos. Sai um numa semana. É comentado, discutido. A ausência, nos dias seguintes, saliva o apetite dos que nos apóiam, aumenta o debate e a platéia do próximo. O governo ganha tempo, porém fica inquieto, à espera de novos argumentos. Prefere não responder antes que tudo venha à luz, o que é, falando nisso, a única tática certa, do lado dele. Se soltarmos a bola de uma vez acabaremos nos repetindo, cansando nosso público e diluindo o incentivo à divulgação de boca, e avançando demais terminaremos expondo algum flanco a um contra-ataque de Brasília, que, afinal, dispõe de um grupo culto de economistas. O negócio é mantê-los na ansiedade, na defensiva, tontos".

Durante essa peroração sobre o óbvio jornalístico, Sadat fechou os olhos, concordando levemente de cabeça e exibindo apenas uma tênue réstia de iluminação dentária. Os industriais, um, pelego de federação, outro, um dos maiores empreiteiros da praça, olhavam Hesse hostilmente, nada de pessoal, é a postura de rigueur em face de qualquer proposta nova, que pode sempre, em potencial, conter algo que lhes seja oneroso, uma prontidão das respectivas bolsas contra quem queira mergulhar as mãos.

"O técnico jornalístico é ele, cavalheiros, e, acreditem, melhor não há. Concordo plenamente com o arrazoado. Eu acrescentaria que se o jornal ficasse todo dia no assunto, o governo encontraria a desculpa de nos caracterizar como inimigos da Revolução. Perderíamos acesso a nossos amigos nos ministérios e ficaríamos malvistos nos quartéis, o que não nos interessa ou às classes produtoras, pois nosso objetivo é persuadir e não irritar. Os senhores conhecem o sentimento de solidariedade entre os militares. A nossa estratégia, acreditem, é a correta."

São umas crianças, Hesse considerava, acariciando o gelo. Se não vigiados, comprariam mesmo a corda com que seriam enforcados. Aceitaram o "arrazoado", em momento algum admitindo para si próprios que Sadat e Hesse lhes haviam torcido as orelhas. Hesse recebeu sorrisos cordiais da dupla e elogios à qualidade do jornal, "todo mundo lê em São Paulo", todo mundo sendo homens iguais a eles que se imaginam o mundo todo.

A secretária de Sadat passou-lhe uma mensagem de Dona Alzira: "Dona Adriana no aparelho". Pediu desculpas e levantou-se indo a uma pequena sala anexa, reservada por Sadat precisamente para esse tipo de contingência. "Adriana."

A voz veio numa clave de soprano ligeiro, indicando a jovem despreocupada colhida em acontecimento imprevisto, "sim, quem fala?" "Você sabe quem está falando porque minha secretária disse. Olha aqui, eu quero que você vá me encontrar à tarde agora, toma nota do endereço, Laranjeiras, 1999, apartamento 601, às 4:30, pontualmente."

"É na casa da sua mulher?"

"É perto. Se alguém me vir lá de dia pensa que se enganou ou que faço uma visitinha a caminho de casa. Às 4:30, em ponto, 1999-601. Mais tarde tenho compromissos."

"Você endoidou, seu. Quem é que você pensa que eu sou? Ligo nesse instante para o meu marido."

"Eu penso que você é uma maravilha e espero não me desapontar. Você contou ao Zé Carlos sobre ontem? Hoje à noite o casal Menezes irá à Odaléia, certo? Você precisará tempo para se vestir, ver o jantar das crianças e cumprir outros deveres de esposa dedicada. 4:30, no cronômetro, que dá e sobra, 1999-601. Laranjeiras."

"Fascista."

"Fascists are a girls best friends. Você foi aluna da Cultura Inglesa, não?"

Hesse voltou ao escritório em que o pelego, massageando a pança, sorvia um uísque e olhava o empreiteiro descrevendo a Sadat os apertos de crédito em São Paulo, que somente seriam aliviados pela privatização completa da economia, reduzindo-se a um mínimo os gastos governamentais, o que Dr. Gudin resumira brilhantemente noutro jornal, reclamando do número crescente de oficiais das Forças Armadas no empresariado, desvirtuados de suas funções, que eram garantir a paz e a ordem contra a subversão, sempre pronta a erguer a cabeça ao menor sinal de afrouxamento, e o surpreendente é que o atual chefe da nação desse ouvidos a um grupelho de teóricos insistentes em promover "aberturas" aos comunistas para agradar a jornais americanos e cardeais gagás. Em suma, business as usual. O chato é que Sadat lhe pedira que ficasse depois da conversa e Hesse não sabia o motivo.

Os industriais se despediram, Hesse olhou o relógio, 3:15. Sadat examinava as unhas lustrosamente manicuradas, o que Hesse achava cafonérrimo, virou a cara, reforçando o bourbon. "Eu preciso levar um dos meus filhos ao médico às 4:30. Será que dá para conversarmos agora?"

"Eles são uns idiotas."

Hesse se surpreendeu com a veemência, incaracterística do estrategista da persuasão. Nada de entrar nessa onda. "Não, são apenas impacientes, como crianças."

Sadat lançou-lhe um olhar de total incompreensão, de pessoa que não nos reconhece, ao cumprimentarmos. "De que que você está falando? Bem, não tem importância. Chegue aqui mais para perto, meu caro Paulo."

Eta, ferro. Something was cooking. Sadat era desses que calculam um ataque pela proximidade do objetivo, talvez antecipando alguma traição, quando ainda poderá atingi-lo, se sair da linha de tiro. É homem do queima-roupa.

"Meu caro Paulo, você sabe que eu não o considero um empregado. Você para mim é como um irmão. Iremos juntos até o fim, dê no que der, venha o que vier, doa a quem doer."

Desde que Hesse assumira a editoria-chefe a circulação do pasquim subira em trinta por cento.

"O que você fez pelo jornal não se mede em dinheiro. Conheço minhas deficiências, melhor que ninguém. Você as supre com sua incrível capacidade. Não é que isso. . . em resumo, resolvi que a partir deste mês você passa de sessenta a noventa mil cruzeiros mensais, continua vinte e cinco mil em carteira e o resto por fora, livrando-o do nosso extorsivo imposto de renda."

E livrando a empresa do fundo de garantia e criando um futuro e quase inevitável problema na hora das indenizações, quando brigassem, pois quem denunciasse o outro estaria garantindo a própria chave de cadeia. Não que Hesse ligasse muito. Não precisava de dinheiro. À parte a comunhão de bens com Sílvia Maria, era herdeiro único das vinte ou trinta bilhas da família, riqueza freqüentemente oferecida a ele, sem sucesso, o que o divertia e magoava o pai, esse o divertimento. Apesar disso, um sentimento vago de inquietação crescia dentro de Hesse. Por que a propina, o suborno? Não se relacionava ao funcionamento do jornal, o que as palavras de Sadat confirmavam. A imagem de Victor e Hugo trocando confidencias num bar passou-lhe rapidamente pela cabeça, seguida da de Vivien Leigh gritando d-a-n-G-e-r no Bonde Chamado Desejo.

"Você não acha que esses psicanalistas são uns idiotas?"

"E picaretas." Nem Lacan nem Marcuse haviam conseguido diluir a hostilidade de Hesse ao individualismo de Freud. Sabia que era correto até onde ia, mas sempre preferira universais, é engraçado, pensava, permaneço um menino religioso, pervertido, como Martinho Lutero, que media a salvação em termos de balanço de empresa.

"Picaretas, isso mesmo. Você não sabe da minha angústia, meu caro Paulo, das minhas noites insones por causa desses tipos."

O que teria acontecido? Algum psicanalista revelara a Sadat o complexo de Édipo, a essa altura da vida? Sadat, à Ia Machado de Assis, guardava a mãe crioula em prisão domiciliar num mocambo no interior do Estado do Rio. O vocabulário da velha continha "nhôs, nhôs", e, pior, reminiscências vividas do pelourinho.

"Se eu puder ajudar."

"Paulo, é o Toninho, meu filho. Fui cometer a besteira de entregá-lo a um psicanalista recomendadíssimo, um tal de Dr. Levy, um extorsionista, quinhentos cruzeiros a sessão, e o judeu, naturalmente, me transmite o que discutem, o que é parte do trato."

Hesse se absteve de dizer que o Dr. Levy deveria baixar cadeia por quebra de ética profissional. Sadat se achava acima da lei e, pensando bem, estava.

"Imagine o que ele me disse, semana passada. Você conhece o histórico do Toninho. Primeiro, drogas. O que que há com essa juventude, meu caro Paulo? Nos nossos tempos, farreávamos, tomávamos nossos pileques, íamos a prostíbulos, mas, no dia seguinte, estávamos no escritório, trabalhando, ganhando a vida. Hoje, esses meninos querem o estupor permanente. Nem mais o Country escapa. O que é isso? Degeneração da raça, subversão dos costumes pelos comunistas, visando a destruir a família? Se batemos neles saem de casa e não voltam. E minha mulher insiste em tratar o Toninho, um marmanjo de vinte e seis anos, como um bebê. É essa a causa? Excesso de carinho maternal? E ele será meu sucessor aqui, o que faço, meu Deus, meu Deus?"

Sadat chorava forte. Hesse, abúlico, o de costume, contra o emocionalismo. Serviu um uísque pesado ao chefe, pôs-lhe a mão no ombro e flertou, ligeiramente, com a idéia de abraçá-lo. A cena o incomodava, só a suportando na anestesia do bourbon, que lhe subia e descia o corpo, á se fosse possível viver assim. D-a-n-g-e-r.

"Antônio, nós não nos criamos problemas que não possamos resolver."

"É verdade, meu caro Paulo, você sempre analisa as

situações de maneira original e lúcida, me ajude, por favor, perdi a iniciativa, não consigo raciocinar direito."

"Mas o que é, afinal? Toninho aderiu à barra pesada? Hoje, no meio em que ele anda não é fácil fugir da tentação. É o que os americanos chamam de peer pressure, pressão de grupo."

"Antes fosse isso, apenas. Já seria o diabo, mas eu preferiria, Deus me perdoe. Você não avalia o que me custou de Vila Pinheiro, médicos e assistentes psiquiátricos e o que tive de mexer no governo para livrá-lo daquele brigadeiro corno e tarado que queria se vingar de mim em cima do garoto."

Urna campainha começou a tocar na cabeça de Hesse, muito de longe. Não convinha, porém, arriscar palpites. Sadat vivia o seu King Lear a todo vapor e incineraria interrupções.

"É pior. Esse sacripanta do Levy, judeu sem-vergonha e chantagista, me disse que o Toninho confessou a ele, que vergonha, meu Deus, que ele, Toninho, é, como direi, um invertido."

Bicha. Só isso? Hesse reconheceu o som da campainha. Vira o Toninho uma tarde no Country ou Concorde, em companhia de vários uranistas notórios, a 1'ombre de jeunes filies en fleur, não dera maior atenção, afinal há muito tempo o tema deixara de ser notícia no ambiente em que vivia, se bem que, agora, imaginava, contendo o riso, o Toninho fazendo número de Butterfly McQueen, Miz Scarlett, Miz Scarlett, por que essa lembrança obsessiva de Vivien Leigh, santa maria, talvez o Dr. Levy pudesse explicar.

"Olha, Antônio, eu não levaria esse tal de Levy muito a sério. Psicanalista brasileiro está, no mínimo, vinte anos atrás em relação ao resto do mundo. O próprio biógrafo de Freud, Ernest Jones, escreveu que o Brasil e o Japão lideram em atraso. Raciocine comigo: o rapaz tem problemas, quais, você, eu e o Dr. Levy não sabemos. Já o Levy, a quinhentos cruzeiros a consulta, precisava prestar contas, logo puxa da cartola, furadíssima, na minha opinião, os coelhos de costume, relações entre pais e filhos, insuficiência sexual, etc. Ninguém é imune a complicações nessa área. A questão é de grau. Suponhamos que o Toninho, na perturbação, de que, repito, desconhecemos as origens, tente homossexualismo. Sei que é duro para você, como pai, admitir essa hipótese, no seu lugar eu reagiria igual, mas é plausível, no estupor das drogas a pessoa perde o controle (Dick). Uma das especialidades de homossexuais é o envolvimento. O Toninho é rico, filho de pai importante. Pense no clima que criaram, de deferência, de simpatia, de atenção constante. O rapaz, importunado pelo Levy, conta a aventura. O Levy enfim encontra uma simplificação altamente faturável e corre a você, sugerindo tratamento interminável. O negócio é não afobar. Calma, sobretudo calma."

Sadat degustava palavra por palavra, o corpo murcho, precariamente de pé, as bochechas caídas como as de um cão dinamarquês, Hesse se deu conta de quanto ele era velho. Que idade teria? Sessenta e cinco, setenta? Casara nos quarenta, ao sentir-se financeiramente inexpugnável e de status irrecusável, ousando, enfim, uma aliança afetiva com as famílias cujos interesses defendia, cão de guarda raivoso, tão eficiente que lhe perdoavam a cor vira-lata.

"Você acha mesmo? Que que eu faço?"

"O menino gosta do Levy?"

"Detesta. Chama de Jacó careta."

"Então, corta o psicanalista. Por que você não traz o menino para o jornal, como assessor seu?"

Hesse se arrependeu quase que simultaneamente ao conselho. Lembrou-se que a idéia não era nova, que fora sugerida pela Sra. Sadat, num jantar a quatro, Sílvia Maria e ele completando. Sadat negaceara. O fato é que tinha tal paixão pelo jornal que não admitia rivais. Os diretores da empresa não passavam de moços de recado. Tolerava a autonomia relativa de Hesse, porque indispensável à produção da matéria jornalística, de que manjava picas. Hesse funcionava como artilheiro do navio pirata. Sadat negara a Toninho o mínimo de preparo sucessório, pois enfrentar o filho eventualmente maduro e atuante na direção realçaria a velhice do pai, a proximidade do capote, da troca geracional. Hesse amaldiçoou em silêncio a própria inabilidade, sabia o que vinha, bebera demais, e Adriana? O relógio marcava quatro horas.

"Já pensei nisso, meu caro Paulo, e agradeço que você tenha ventilado o assunto. Talvez seja a salvação do menino incorporá-lo ao nosso trabalho."

Hesse ouviu, de súbito sóbrio, que os afazeres da diretoria eram "áridos" e exigindo um savoir-faire que jovem da idade do Toninho não poderia, de primeira, assimilar. E o pai queria que o filho aprendesse jornalismo de cabo a rabo, o que só é possível, o ponto de partida, na redação. Pensara em jogá-lo na reportagem, entre os estagiários, mas concluiu que causaria mal-estar, pois os chefes de setor o tratariam bem demais ou mal demais. O preferível seria colocá-lo sob a asa de Hesse, se, claro, o "meu caro Paulo" estivesse de acordo. Fazia sentido que o sucessor do dono do jornal fosse assessor do diretor-editor-chefe. "Não se constranja de enquadrá-lo, considere-o um boy de luxo. Insisto em que trabalhe nos horários e sob obrigações do resto. Ele já me manifestou grande admiração por você e será dócil."

A bicha me coube, Hesse concluiu amargamente. Não que guardasse rancor. Plantamos o que colhemos. E admirava a capacidade de Sadat em compartimentar o cérebro. Faturara, tranqüilo e superior, nos industriais, de quem o jornal depende, em anúncios e subsídios. Entregara-se aos prazeres do desabafo, tranqüilamente se omitindo de qualquer responsabilidade pelo que o filho se convertera, e, na tranqüilidade, aproveitando-se da simpatia irrecusável do diretor-editor-chefe, passara a Hesse o encargo de reformar o Toninho, se possível. Os senhores da terra não o são acidentalmente.

 

O Antônio’s estava a meia casa, na hora do almoço, às quatro da tarde, mas os atores representavam sem quebra de entusiasmo. Victor não teve tempo de examinar a decoração, pois se viu colhido num cath-as-catch-can com um cavalheiro, "VÍC-T-0-R P-O-R-R-A, LUI-S-I-N-H-O P-O-R-R-A", seguido de putas que os pariu, distorcidos num guturalismo que fazia tudo soar como ôôôôs entrecortados de tapas leves nos respectivos rostos, taponas em partes menos vulneráveis, carinhos de massagista, de cima a baixo.

Luisinho engordou uns vinte quilos e está careca. É presidente-herdeiro de uma vasta empresa de seguros, beneficiária do Welfare dos ricos do sistema, que tornou o seguro obrigatório em quase tudo, entregando-o, sem exigir nada em troca, às companhias, que, apesar disso, insistem em formar ao lado da iniciativa privada na corrente batalha de Itararé contra o "estatismo", a ingratidão, essa pantera. Luisinho fala rouco, grosso e alto. Não gosta de mim, e devo dizer, a bem da verdade, que o sentimento não é novo, politicamente determinado. Talvez veja no meu rosto, escrita, a pergunta que faço, mudo, a mim mesmo, se ainda chora dormindo, como nos nossos tempos de delinqüência. A mulher, a mulherzinha, ao lado, é a atual guardiã do segredo, que não revelaria sequer se lhe dessem chance de abrir a boca, o que não acontece. É a chamada "mulher a tiracolo", uma das frases mais sugestivas numa língua pobre em alusões. Mantém um sorriso permanente e pseudoparticipante nos lábios. É de uma família cheia de terras em Santa Catarina, estabelecendo assim, ao unir-se a Luisinho, a aliança entre o campo e a cidade de que nos falavam as esquerdas, pré-1964. Tem uma queda de corpo que traduz placidez, gentileza e submissão, que nem a maquilagem de puta e o tom vistoso em excesso, pompier, das roupas, em suma, o estilo "capa de Manchete" do mulherio local, conseguem anular. Uma cricri semiboneca, as origens obrigam ao prefixo, que maternaliza Luisinho e os filhos que fizeram, "o mais velho é tirânico mas bom no fundo", inconsciente do incesto. A mulher ideal, no contexto. O nome é Marina, ou Marisa, ou Marília.

Noutra mesa, Saulinho, Paulinho, o menino de ouro, acessível a meninos e meninas que conheçam a cotação do ouro, contempla um scotch, piscando os olhos. Não conhece Victor, naturalmente, e me é claro, pela sua contenção, que Luisinho o desconhece, velhos delinqüentes são muito intolerantes de novos delinqüentes, o que obrigará Paulinho a pagar o próprio uísque, daí ralentar o consumo, à espera de outros possíveis investidores, afinal a tarde ainda é um baby, indeed. A mim saudou no delírio efusivo sintético de sempre, mas a distância, respeitando a barreira de imigração de Luisinho.

Minha excitação sombria já se dilui oceanícamente e me ocorre que Luisinho serviria como introdutor diplomático do pródigo Victor ao Establishment, ou teria medo de se comprometer, ou esse medo seria menor que a vaidade de ajudar alguém de quem dependeu tão infantilmente tantos anos, ou essa lembrança pesa contra Victor, não odiámos em geral nossos credores? De qualquer forma não é troço que se mencione no momento de rapprochement, de testar a temperatura da água. Marisa, Marília, Marina sacode futilmente o cotovelo de Luisinho, quer que ele peça uma nova Coca-Cola, intervenho e convoco o garçom, acho falta de respeito interromper o sexo do próximo, o orgasmo que Victor fornece a Luisinho. É melhor encomendar logo o escalopinho ao limão, pièce de resistence da casa, se não engrolo e pifo no meu espetáculo noturno, me levanto em direção ao dono do botequim, dou de cara com a rua, que olhamos dos bares, da rua olhamos os bares, seek and you shall not find, e me encontro nos braços de um publicitário que pergunta pelo estado de saúde do "meu crítico de cinema favorito", "vai bem, obrigado e você", o Jornalista Famoso ocupa o telefone no bar propriamente dito, onde, à espera de linha, até Ele se curva diante desse ato de Deus, analisa criticamente, grelando relógio e platéia, os que entornam, todos, antes das seis, o publicitário adorou minha crítica de Shampoo, que defini "história brasileira, do cara que supõem bicha e papa as mulheres todas", "você se baseou no bom Maria, não vá negar", o Maria a quem odiavam, vivo, porque os estocava onde doía mais, e, morto, rezam-lhe as virtudes, não me baseei coisíssima alguma, a personagem de Shampoo é idêntica ao Saulinho ali, a única arma é a manjuba, o Maria dispunha de um arsenal, um dos problemas nos bares locais é nos safarmos das pessoas que nos agarram, à Ia futebol americano, e concordo a fim de que me abra passagem, ele crente que me adulou na medida, a exemplo dos vendedores de produtos de sovacos e similares, vive disso, de nos pilhar em flagrante no pavor da nossa corrosão física, bebe horrores, é amável como um comercial de tv, de mim jamais receberá absolvição, consigo avançar meia jarda, esbarro em Maria Amélia, de camisa aberta ao paraíso, "alô cara", beijos e carinhos apressados, dispara rumo a Paulinho, ignora, é míope, o Jornalista Famoso, que sorri rápido, testemunhando que não ligou, Paulinho se levanta e esconde-a nos braços, afanando-a da vista alheia, dois mineiros intelectuais, as únicas presenças de paletó no local, entraram e começaram a lisonjear o Jornalista Famoso, não brincam em serviço, um garçom me atira o "tudo bem, doutor", tudo o de costume, sicofanta, inclusive o roubo na nota que espero ser paga por Luisinho que deve sempre posar de senhor da situação em companhia da mulher, de medo que ela conte que ele chora à noite.

Não falta o que ouvir nas vizinhanças, a conversa é um fogo cruzado, de festa de São João, em que quase todo mundo participa, nem que seja apenas como público. Presto atenção ao palavrório de Luisinho, até certo ponto, porque me fascinam motivações e limites culturais. Encontra um amigo velho, que não vê há caralhões de anos, que esteve na Europa, Ásia, África e Oceania, roteiro pleno de possibilidades de aventura, que Victor conseguiu no máximo esboçar, pois Luisinho interrompeu, atolando-o no tédio vitorioso da seguradora que, na medida do comércio mundial, que Victor relanceou no mínimo, eqüivale a uma quitanda. O monólogo de Luisinho é uma mistura de vaidade infantil jamais refreada e um instantâneo nítido, tamanho postal, do horizonte brasileiro. Tudo que passar daquela linha do mar que imaginávamos, crianças, ser uma cachoeira, em que navios desabam, "não vale", é supérfluo. O berço nos parece esplêndido porque desconhecemos outros cenários. E temos raiva de quem conhece.

Maria Amélia e Paulinho se concentram um no outro, esfregação em laconismo quase absoluto. Andam e desandam juntos faz tempo. Ele bem que gostaria de casar, de ter um talão de cheques equivalente a seu saldo bancário, experiência inédita, um Santo Graal, que continuará driblando esse Parsifal de Londrina, porque não haveria recurso que a Família desprezasse a fim de impedir a consumação, o que inclui a polícia, que, instigada pelos legítimos concessionários da sociedade, revela talento e eficiência que fariam inveja a Nero Wolfe, e Paulinho é uma peneira de vulnerabilidades. Maria Amélia não pensa no assunto. Não pensa. Paulinho toma dinheiro dela, naturalmente, financiando a cafungagem e o que for. Ela acha engraçado, pois é a primeira utilidade que encontrou para essas notas feias, impressas em papel ordinário, "franco é que é legal, ô cara". Tudo mais lhe é vendido a crédito, desde o picolé na infância no Cosme Velho.

O Jornalista Famoso se foi, deixando os intelectuais mineiros desocupados, momentaneamente. Um é crítico estruturalista. O outro não é. Se encontrarão esteticamente na Academia Brasileira de Letras, destino certo, que aceitarão humildes e levemente zombeteiros do "crachá". O que trabalha no jornal de Hesse me acena cordialmente, o meu status junto ao poder é impreciso, porém a posição de amigo do diretor-editor-chefe é incontestável, que ele saiba, e sabe, logo não corre riscos. Aceno de volta. Sou parte e parcela. La nuit s'élève.

 

"É Hesse. Me chama o Audálio. É Hesse, me chama o Audálio." "Ah, é Seu Hesse, não é?. . . Quer falar com o Seu Audálio não é?" P.Q.O.P. "Um momento, por favor."

"Audálio? Sou eu. Há alguma coisa que me obrigue a voltar aí? Sei, sei, tá, então você controla o barco. Tenho visitas em casa e depois a noite de assistência social à Odaléia. Pois é. E quero tomar um banho antes. Qualquer coisa, me telefona, em casa, na galeria, ou no Mario. É, vou jantar lá. Beijos."

Na sala, Hesse esperava Adriana. Não queria voltar ao quarto. O post-coitum dele não era triste, e, sim, impaciente. Já decidira que aquela fora a primeira e única vez. No início ficara excitadíssimo, a pose superior-bocó de Adriana, "de quem toma satisfações pelo convite impertinente e indecente", misturada à agitação no rosto, o sangue na disparada do grená "bronze" à palidez, à curiosidade indisfarçada e um certo automatismo nos movimentos, pornográfico, ou seja, sexo sem complicações, o ideal. E sempre preferira gorduchinhas, que gemem mais quando apertadas, negando que o excesso de carne fosse defesa, e a carne de Adriana respondia, ao contrário da de Sílvia Maria, dura, passiva, pensou com desprazer. Ele a despira peça por peça, na sala, permanecendo vestido, isso fazia parte do ritual, deixando-a nua e de salto alto, riu se lembrando de um conhecido que trepava a mulher assim, exigindo ainda forte pintura e jóias.

Ela nua e de pé, ele se sentou numa poltrona, examinando-a, not bad, no gênero, e palavra que banira do vocabulário do jornal, "despojada", sem jeito, não sabendo onde enfiar os pés e as mãos, uma criança que não aprendera a controlar os movimentos, surpreendida aqui e ali por um impulso muscular inconsciente. E o olhar, se mantinha resquícios da petulância inicial, era ansioso, expectante. Apesar de em plena ereção, que já lhe pingava a braguilha, Hesse se perguntou se estava ficando brocha, se precisaria, algum dia, que lhe contassem historinhas, à Ia Jack Nicholson, em Carnal Knowledge.

A obediência dela aos comandos, quase uma precipitação, pondo-se de joelhos, chupando de olhos fechados, como se o pau dele fosse uma Banana Split, lambendo-o por baixo do saco no zelo e acabamento de quem não quer perder nada, e, depois, na cama, de quatro, de costas, gemendo de dor e se agarrando mais a cada arranque dele, tinham sido very satisfactory indeed.

Ela estragara tudo no desligamento final, em que ele acendeu um cigarro. Produziu uma enxurrada suburbana de "meus bens", "meus amados", "eu te quero tanto", "Meu Deus, você gosta de mim um pouquinho só?" "eu te adoro", e o resto do repertório, o que o irritou bastante, tolerando apenas a "idolatria" pelo tempo que julgou taticamente justo.

Agora, na sala, aguardava e ela se demorava. Já eram seis horas, os putos dos americanos chegariam às 7:30, depois do jantar do sogro, e Hesse queria tomar banho, fazer a barba e retomar o consumo do bourbon, cuja madeira quase salivava. Havia no apartamento, mas drinques nessas situações se perpetuam, extraem papos intermináveis. Entrou no quarto e ouviu o chuveiro no banheiro. De repente só sabia que precisava se mandar. Gritou: "Adriana, tenho de ir ao jornal, uma confusão lá dos diabos. Amanhã telefono e explico". Na sala tirou cem cruzeiros do bolso, para o táxi dela. Não seria demais? Hesse não andava de táxi há vinte anos. Ela não interpretaria mal, achando que fosse pagamento, michê? Deixou cinqüenta, talvez vinte bastassem, mas aí sugeriria michê de Vieira Souto. Um bilhete? Não, nothing in writing. Bem, não haveria repeteco, logo, se criasse um clima de humilhação e ofensa, Adriana não insistiria, consolando-se em amor-próprio ferido. Bateu a porta.

No Cosme Velho, Sílvia Maria convidara Maria Tereza para fazer par do conglomerado, Jack,. e como a irmã ia também à Odaléia, o arranjo convinha a todo mundo. Velhas amigas, se entrelaçaram e emitiram as gentilezas de praxe, Maria Tereza se perguntando se Sílvia Maria não ganharia com um pouco mais de allure, se precisava ser sempre tão severa, à Ia Chanel, e Sílvia Maria, reprimindo a consciência do motivo, olhou a irmã toda, aliviando-se de encontrá-la bonita, cheirosa, vestida de maneira a realçar a brancura única, um trunfo original, definitivamente, mas o motivo reprimido, sem indício de desfrutabilidade e de quaisquer marcas ostensivas que o vício, na cabeça da Sílvia Maria, imprime nos praticantes. Tagarelavam sobre filhos, peripécias das últimas semanas, as dignas de nota, de pessoas de quem podiam falar bem em comum, quando o pai entrou de smoking jacket, gravata borboleta, elegante até aí, porém com "chinelos da empregada de Tom & Jerry", uma dissonância grotesca de que pretenderam não tomar conhecimento. Maria Tereza levantou-se e foi beijar o velho, que se submeteu, sorrindo intermitentemente, de olho num manuscrito nas mãos, "minha filha, onde está o Paulo? Quero mostrar a ele uma critique de anos atrás, do tempo que conheci sua mãe, sobre a luta entre o castilhismo e o Partido Libertador, a situação me parece analógica à de hoje". Sílvia Maria anunciou a chegada iminente de Hesse, rezando quieta que o marido delicadamente conseguisse adiar a sessão de retro e que não esnobasse as visitas.

Maria Tereza, porém, não aceitava em silêncio a rejeição daqueles sobre quem tinha direitos. "Meu pai, o senhor está bonzinho?" E segurava o velho, em ofensiva exageradamente brincalhona, o exagero um escudo oculto a qualquer estocada. "Eu vou muito bem, sim, senhora. E o Olímpio? Como vai o Olímpio?"

O Olímpio era o marido de Maria Tereza, separados, sem desquite, há quinze anos. Ministro do Itamarati, quisera prostituí-la em troca de uma embaixada. Houve uma explosão nuclear, subterrânea, naturalmente, a mãe controlando botões e radioatividade. Maria Tereza baixara clínica psiquiátrica na Suíça. O Olímpio continuava ministro, em Togo, Daomé, lugares assim, alcoólatra incurável. Maria Tereza largou o pai, em estado de choque. Sílvia Maria pulava sobre os próprios pés, terror nos olhos.

"Gosto muito do Olímpio, um rapaz muito inteligente, não tanto quanto o nosso Paulo, Sílvia Maria você tirou a sorte grande, minha filha, mas o Olímpio é um belo sujeito, tem uma grande carreira à frente."

Retirou-se da sala, Sílvia Maria em lágrimas, consolada por Maria Tereza, que a advertia sobre os perigos de estragar a pintura, tomando-a carinhosamente nos braços, quando Hesse entrou. "Epa, onde é o enterro? Include me out." Sílvia Maria emitiu um "p-a-u-l-ô-ô", e Maria Tereza, "Paulo, como é que você vai meu querido, não é nada, meu pai saiu-se com uma brincadeira boba comigo e Sílvia Maria interpretou mal".

"Maria Tereza, faça-me o favor de não me tratar como se eu fosse uma pateta enquanto você fica aí sublime, au dessus de la mêlée." "Minha querida, não adianta perder a cabeça. Afinal, se há uma parte ofendida sou eu e estou calma e não vejo motivo para esse estardalhaço, francamente." Hesse resolveu impedir a continuação das hostilidades, segurou o braço branco de Maria Tereza, que gostaria de furar, não, com ela ele é que caíra de joelhos, há quanto tempo, esquecia quase sempre, manipulamos utilitariamente nosso estoque de memórias. Fez Sílvia Maria contar tudo, minuciosamente, porque esmiuçar é exorcizar. Achou divertidíssima a história, dos chinelos ao Olímpio, acalmou a mulher sobre "Tom & Jerry", distração de intelectual, o sogro trabalhava demais coletando reminiscências históricas, ele, Hesse, abafado, fora ao jornal de meias e até de sapatos trocados. Sílvia Maria aceitou gulosamente a isca, e, quanto ao Olímpio, Hesse deduziu que fosse uma forra sutil da ausência de dois meses de Maria Tereza da casa. "Telefono todo dia." Sílvia Maria, que a essa altura engolira o anzol, "não é a mesma coisa". Maria Tereza recuou em mea-culpas sinceros na medida que restabelecessem a paz e prometeu ajudar a irmã a refazer a pintura assim que tomasse um drinque, Sílvia Maria saiu, amnesiada, Hesse serviu um scotch a Maria Tereza e um bourbon triplo que sorveu em talagadas. Maria Tereza o observava. "Você ri só de nós, ou nos despreza também? Eu já vi você vulnerável, lembra? Devo ter sido a única, super-homem", e beijou-lhe levemente a boca.

Eu conseguira arrastar Victor a meu apartamento, ele tomava banho, escolhera entre minhas camisas, cuecas e meias, eu corria os olhos pelo Jornal do Brasil, continuava bebendo porque o escalopinho baixara a zero minha pressãozinha, me deixando saudoso, apesar de firme no propósito de impedir que a panela fervesse, o diabo é que às vezes explode na minha cara. Os jornais brasileiros são ótimos porque é desnecessário lê-los, os títulos e leads das matérias nos dizem tudo, dispensando-nos de ir ao fim dos quatrocentos parágrafos, penso no New York Times, para perceber a jogada. Os nossos urram os próprios planos. Não passamos da pedra fundamental na engenharia da alma humana. Victor no chuveiro canta zum zum zum está faltando um, definindo seu tempo e espaço. Tudo correrá bem, deduzo da conversa com Luisinho, que retomarão no fim da noite, quando Luisinho prometeu vir sozinho, Marisa Marília Marina explicando que não se sente bem se não levar as crianças ao colégio, o que exige que durma cedo, informação aceita no nível de interesse que dedico às do Jornal do Brasil.

Victor saiu do banheiro, se enxugando, metendo a toalha mais vigorosamente no saco, de baixo para cima, outro costume nacional cuja origem desconheço. "Tá de porre, ô cara? Esse scotch na tua mão já virou água. Serve outro pra gente. Que tal a mulher do Hesse, Sílvia Maria, não é?"

"Ela é uma lady." Victor ri. "Agora." Providenciei o uísque. Não vou perguntar, não é preciso.

"Ela foi namorada do Luisinho, ô cara, estou te dizendo. Olha aí, hein, ele nunca falou que comeu e aconteceu muito antes do Hesse, era menina, é mais moça que a gente, rio nosso tempo de viração. Você não lembra que o Fred e o Marcos sacaneavam o Luisinho, pedindo que convidasse a donzela dele ao apartamento, prum picirico geral? Dona Sílvia Maria. Minha memória é de elefante, meu camaradinha. Luisinho engrenava um porre homérico, não conseguia dormir e ia bater na casa dela, no Cosme Velho, certo? Ficava de carro encostado no portão, entrada verboten pela família da moça, que até soltou os cachorros sobre o filho da puta, um dia. Marcavam hora, duas da matina, Dona Sílvia Maria vinha correndo de peignoir, o Luisinho lambia os peitinhos por trás da grade, minete não dava pé, falta de posição, depois, no apartamento, antes do berreiro noturno, o sacaneta, de saco doendo, tocava três punhetas. As mulheres são todas iguais."

"Por que ela não abria o portão?"

"Porra, você só faz pergunta de intelectual. Eu vou lá saber por que não abria o portão? Se você quiser, pergunta a ela hoje à noite. Minha boca é um túmulo e o Hesse foi legalérrimo comigo."

Hesse se barbeava de navalha, desde garoto navalhas o fascinavam, admirando malandros e barbeiros que as manipulavam artisticamente, ganhara também destreza, e, no espelho, observou o velho se aproximando, os chinelos se arrastavam, e uma nota nova, uma mecha de cabelo, branco, platina, lhe caía sobre a testa, um toque de "boêmia". Parou na porta do banheiro. "O Seu Domingos se aposentou outro dia, mandei-lhe um dinheirinho, foi meu barbeiro quarenta anos." Hesse imaginava a estupefação do Seu Domingos ao receber um polpudo cheque, o velho era generosíssimo, ou melhor, reencontrara a generosidade que lhe devia ser natural, depois de viúvo, porque a mulher, viva, segurava a bolsa da casa, justamente por temer que o marido espalhasse benesses fora do círculo familiar, ela entendia de dinheiro, ele apenas ganhava.

"Eles pedem tão pouco. . . Eu queria submeter à sua consideração, meu filho, um opúsculo, uns alfarrábios meus sobre a luta entre o castilhismo e o Partido Libertador, o Agripino queria publicar, o San Thiago admirou muito mas discordou, naturalmente, ele naquela época envergava a camisa verde. . . Respeito as pessoas que mudam de opinião, se são sinceras. . ." Hesse sentiu um tremor ao "meu filho", inédito, e se cortou ligeiramente. "O Seu Domingos não errava, uma mão de veludo. Meu trabalho é mais um aide-mémoire às forças políticas, prisioneiras de seu próprio radicalismo, inatentas às conseqüências, as conseqüências é que importam. . . Eles riem, você já reparou? Menino, passei verões no castelo do Duque de Beaufort, na Escócia, os colonos, os tenants, que gente lúgubre, meu Deus. Nosso povo ri, é alegre. . . Eles pedem tão pouco. . . E o que fizeram à filha de Beatrizinha, uma menina, violaram-na, humilharam-na, urinaram em cima dela, onde já se viu? Carreguei a Beatrizinha no colo, nossas famílias se conhecem há cento e cinqüenta anos, o que eu posso dizer a ela, agora?" O sogro, Hesse sabia, se virará em copas tentando soltar a menina, que "caíra" depois de nove meses fora de casa e de alguns assaltos a bancos, saíra da cadeia um trapo humano, hoje aos cuidados da equipe do Dr. Menninger, de Arkansas.

"Eu ressaltei que sempre houve duas correntes dominantes na nossa História, uma autoritária e violenta, o melhor exemplo é o Floriano, e a da conciliação, da concórdia social entre as classes e tendências, e esta é que nos convi-nha. Ninguém me ouviu, me acusaram de ficar em cima do muro. O resultado foi o Estado Novo, e, agora, veja em que transformaram a Revolução." O velho tivera acesso pleno à primeira ditadura, de 1964, formada por amigos dele, da Escola Superior de Guerra, e ressentidíssima pelos troupiers, que se consideravam os "verdadeiros revolucionários", quando, em verdade, o país lhes caíra no colo, de graça, já que o governo anterior literalmente se desintegrara sob o peso de contradições internas, de um approach meramente oligárquico à questão social, revestido de fraseologia pseudo-revolucionária.

O velho era sofisticadíssimo. Jamais usava os clichês do sistema, "comunismo" ou "corrupção". Acreditava piamente que o caudilhismo autárquico derrubado levaria o país à penúria, ao isolamento, à violência permanente das Banana Republics. Propunha uma revolução capitalista, dependente dos eua, que forneceriam capital, tecnologia e know-how, obtendo a parte de leão dos lucros, porém plantando e alimentando os meios de subsistência nacional, e que esse esquema, embora exigisse sacrifícios do povo, terminaria beneficiando-o, e que a classe política, reeducada numa economia próspera, encontraria o caminho da moderação e convivência, garantindo as liberdades públicas.

Nunca houve, o velho percebera de imediato, a menor chance que terroristas como a filha da Beatrizinha, não importa quantas viagens de treinamento fizessem a Havana ou Praga, ameaçassem o Estado. Jamais lhe ocorrera que as fisgadelas dos terroristas servissem de pretexto a uma repressão sistemática e cruel, de volta à barbárie, que abominava em todas as formas, da censura ao direito subtraído aos operários de reivindicarem, ou que grupos econômicos insaciáveis conseguiriam explorar ressentimentos explosivos nos quartéis, agora repletos de gente que, segundo seus informantes da Escola Superior de Guerra, "mal sabia segurar um garfo à mesa", e que esses oficiais trouxessem a nação inteira a relho, recebendo sabe-se lá que propinas desses grupos econômicos, e ameaçando até presidentes-generais, moralmente indignados com os excessos dos subordinados "ralé", porém sem força militar de contê-los e discipliná-los. O desrespeito chegara a tal nível, que os esforços feitos pela integridade física da filha da Beatrizinha lhe valeram em certos círculos acusações de gagaísmo e, pasmo, de criptocomunismo.

Hesse era a única platéia com que se sentia à vontade, pois, afinal, quando "vira a luz", em 1965, propusera de moto próprio o mesmo tipo de revolução liberal capitalista em que o velho acreditava, o que o surpreendera de início, suspeitou oportunismo ou algo pior, porém aos poucos reconheceu a sinceridade da conversão do genro, que nunca mais recaíra no extremismo e transformara o jornal do Antônio da Silva, antes um boletim de caserna & caverna, na única publicação legível no país. E lisonjeava-o que Hesse, tão culto e inteligente, procurasse sempre a assessoria dele, num momento em que se sentia secretamente frustrado e marginalizado. Abriu o jogo a Hesse, em informações confidenciais, de que os trogloditas do sistema tinham somente conhecimento fragmentário, confiante em que o genro carregaria a bandeira que lhe escapava das mãos.

Hesse viu em diagonal os "alfarrábios" e perguntou se não podia reter o texto e devolvê-lo amanhã, a resposta que o sogro esperava, e se foi satisfeito. Hesse se olhou no espelho, imóvel, ao ruído arrastado dos chinelos do velho, ouvindo-o repetir ao cachorro: "Eles pedem tão pouco".

Estou bêbado e, como de costume, acho que não, porque minha cabeça parece funcionar melhor que nunca, experimentando sutilezas de sensibilidade que me nega, sóbrio, o que me confirma o porre. Sigo o manual: enfiei o dedo na garganta. Nada. Trago rapidamente o cigarro, tusso, um bom impulso ao vômito. Picas. No chuveiro fico alguns minutos de ducha na nuca. Sento na banheira. Preciso comprar um box. Ao me enxugar, reclamo a invenção de um ar-condicionado de banheiro, já que morro de calor de novo. Na sala, Victor põe e repõe meus discos de jazz, o som favorito dele, dele, de Luisinho, Marcos e do resto da gang, a própria anarquia em acordes?

Reapareço e Raquel está na sala, segurando, como sempre, as chaves do carro, a garantia de que pode correr se as coisas ficarem pretas. Victor, dando quedas de ombro às notas de algum pistonista na escala do diabo, explica a etiqueta do nudismo nas praias da Cote d'Azur. Convidei Raquel à Odaléia? Não, porque ela conhece meus hábitos de fim de semana. Uma vez passamos juntos sábado e domingo no Margarida's de Teresópolis, em que se queixou de que eu lia demais, assegurando assim que não haveria outros fins de semana a dois, mas não resistimos a certas oportunidades de nos magoarmos em busca de concessões de quem nos rejeita. Beijamo-nos, Raquel e eu, e sentamos todos no meu razoável ar-condicionado, que parece melhor do que é pois a sala é pequena e a Light se distraiu não me abatendo a voltagem, penso em maneiras de me livrar de Raquel, não quero ficar cuidando de ninguém, ou será que me envergonha levá-la comigo? Ela, se consultada, não é, optaria pela segunda hipótese.

Victor colocou-a bastante à vontade e já responde perguntas sobre com quanto se vive, modestamente, em Paris, o que Victor, se sincero, falando de si próprio, responderia três mil dólares mensais, o que Raquel talvez conseguisse, numa bolsa, anualmente. Victor, porém, é um arguto psicólogo e calcula trezentos dólares, medindo-a pelas terroristas que conheceu no La Coupole ou La Rotonde. É quase hora de ir e digo a Raquel: "Nós vamos à noite de autógrafos da Odaléia".

Raquel muxoxa contra aquela "subliterata". Bem que gostaria de nos acompanhar, pois perto de mim e vendo gente que detesta porém que a fascina, fornecendo tema a longas tiradas sobre a decadência e o ridículo da classe dirigente, no Degrau, junto a amigos que cobrariam de cara a presença dela em tal ambiente, aceitando de bom grado a explicação sociológica, secretamente lamentando não disporem de desculpa igual. Raquel precisa de um pretexto. Só há um: ser gentil com o gentil Victor. Mas o gentil Victor não é bobo. Analisou textualmente minha frase, não continha convite, "eu nem sei quem é essa, como é, Odaléia, vou porque o nosso Hugo aqui me disse que amigos que não vejo há vinte anos me esperam lá". Raquel entendeu: "Estou de carro, deixo vocês". Abraço-a carinhosamente, ela se encaixa carinhosamente. É assim o nosso romance, uma coisa pobre e pequenininha. Me basta.

O José Carlos entrou em casa boxeando e driblando os filhos, "toma lá, seu, deixou a guarda descoberta. . . aplica-lhe uma finta". As crianças emitiam os gritinhos de praxe e o pai encerrou em fundo baritonal: "Onde está mamãe?" "Tirando uma soneca", respondeu o mais velho que assumira as comunicações domésticas na ausência dos pais. O Zé Carlos entrou no quarto na ponta dos pés, ar-condicionado à toda, o que ele achava exagero, por que o robe, ela costumava deitar de calcinha e soutien, do que ele gostava, porque lhe lembrava as mulheres da primeira "casa" que conheceu em São João del-Rei, Deus Nosso Senhor Jesus Cristo que perdoasse a comparação. Tinha uma surpresa que deliciaria a mulher. Passara de editor-chefe a vice-diretor da empresa, aumentado de quarenta a sessenta mil cruzeiros, mais mordomias. Acendeu a luz do armário embutido, longe da cama. "Quer fazer o favor de apagar a luz?" O Zeca obedeceu rápido, a obediência nele era segunda natureza. "Que que há, meu amor, está com dorzi-nha de cabeça?" Nada. Avançou lentamente e sentou-se ao lado dela, que enfiara o rosto nos travesseiros. De leve pôs-lhe a mão no pescoço. "Não, Zeca, eu me sinto muito mal", a voz chorosa e irritada.

"Mas que foi, pelo amor de Deus?" "Nada, nada, me deixa em paz." "Adriana, quer me fazer a fineza de me encarar?" "Não", e aí se mexeu,'frenética, "é a aula de dança moderna. A Dona Nina nos obriga a uns exercícios, no início, que truncam os músculos da gente e ainda por cima levei um tombo e luxei a cadeira. Não é importante. Não tira pedaço." Dança moderna, quanto custaria essa, quando começara? A cabeça metódica e parcimoniosa do Zeca rejeitava instintivamente esses saques na economia da casa, duas empregadas, aulas de bale da menina, aulas na Hípica do menino, não havia dinheiro que chegasse. "Deixa eu ver, meu anjinho." "Não, não, não." "Deixa, deixa, deixa." De repente, Adriana aquietou, deu de olhos nos dele, nossa, furavam a gente, e abriu o roupão, uma mancha vermelha longa, se espraiando como um relevo de fluentes em livro de geografia. "Puxa, que brutalidade, isso é dança ou luta livre? Meu amorzinho, se você preferir, cancelamos a Odaléia, a Maria ainda está aí, passo a conversa nela e nos faz a janta, afinal tem de preparar a dos meninos, e hoje, que eu cheguei cedo, comemos todos juntos." Adriana, em convulsões de choro e soluços, atirou-se nos braços do marido, agarrando-o tão forte que ameaçou o tropical inglês, legítimo, que o Zeca vestira naquele dia, de sobreaviso ao convite da direção. "Meu amor, não e não e não, vamos sim, você ama o que a Odaléia escreve e ela ficaria sentidíssima se não fôssemos, você é a pessoa melhor que existe no mundo, só pensa no bem dos outros, não sei que seria de mim sem você, eu te amo, eu te adoro, meu amor." O Zeca, feliz com o restabelecimento da paz familiar antes até que o início das hostilidades recebesse confirmação, resolveu adiar a história da promoção à diretoria. Começara a papar o aumento a partir de hoje, mas assumiria oficialmente em trinta dias, depois de uma reunião fictícia da assembléia que lhe ratificaria o nome. Enquanto isso, o dinheirinho ficava no banco de investimentos, rendendo juros, era para o próprio bem de Adriana, que nunca pensava no futuro.

Jack, o Conglomerado, cobrira Maria Tereza de beijos, reciprocados discretamente, ela preferia o beijo americano único, na face, aos dois, brasileiros, repetidos à vontade do freguês, mas Jack era o companheiro perfeito, bonito, elegante, rico e inofensivo, talvez um pouco obsessivo, como todo americano, Maria Tereza lhe mostrara algumas antigüidades raras no Cosme Velho, e ele imediatamente exigiu um roteiro artístico total do Estado, e ela, que não punha os pés em Minas há trinta anos, pediu prazo, recorreria a um primo abnegado que lutava por preservar o patrimônio nacional, o que restava, depois da dilapidação desleixada e abrangente, reflexo de um povo sem passado, presente, ou futuro.

Sílvia Maria e Hesse entretinham Dotson, o political officer, e a mulher, Janice ou Janet? Hesse sabia que a resposta partiria de algum comentário casual do marido, improvável, no momento, pois a dupla estabelecera nítida divisão de trabalho, Dotson se concentrava em Sílvia Maria, falando de conhecidos comuns de Georgetown, e Janice Janet em Hesse, prenuncio de penosas incursões intelectuais. O bourbon porém era farto e ele se defenderia até à perda de consciência.

Nenhum dos dois tinha a aisance de Jack, estavam ligeiramente deslumbrados e tesos de penetrarem numa das grandes casas da cidade, era gente de nível médio diplomático, em geral confinada a similares ou a meros coronéis, professores universitários, colunistas amigos e outros defensores secundários do mundo livre. A empresa de Jack figurava entre as "dez mais" de Fortune, cinqüenta por cento de suas vendas se faziam no exterior, e o próprio embaixador se mostrava deferente a tal potência, apesar da "péssima reputação". E, no entanto, Hesse pensava, ignorando os primeiros acordes de Janet Janice sobre Guimarães Rosa, fora a bichice de Jack que lhe abrira as portas da sociedade local, embora levasse uma bola preta inesperada no Country no passado, na próxima não haveria problema, Hesse ouvira, e Jack, bom cabrito, não berrara.

A bichice revelara fragilidade, diluindo o ressentimento subserviente dos nativos aos autênticos donatários da Pax Americana, um sentimento complexo esse, odiámos atavicamente o gringo a que nos submetemos, porque dependemos das sobras à sua mesa. A multinacional de Jack (entre outros negócios) exportava quatro ou cinco vezes mais que o Brasil e, se submetida a uma auditoria séria, e não à mera computação de balanços de Fortune, revelaria em pib o triplo do da pátria amada. Jack, pegando o pau dos nossos garotos, os mais bonitos do mundo, o pau e os garotos, naturalmente, compensava ao gosto caboclo a avassaladora e incontrastável superioridade econômica, dava-nos, machos, um pé, ou pau, ou pedra, permanentemente arremessáveis contra ele. Tornara-se um "cara igual", na balança e medida nacionais, que transcendem o sistema métrico decimal.

Hesse entreouvia o diálogo de Jack e Maria Tereza sobre Ouro Preto, "não, o hotel é uma graça, mas, cuidado, as camas rangem à noite, e as duas velhas, as donas, ficam ouvindo na porta o vai e vem", "but that's extraordinary, absolutely marvelous", "eu creio que depois de Joyce ninguém realizou uma experiência de linguagem tão versátil quanto Guimarães Rosa e foi uma injustiça que vocês perdessem aquele prêmio para Saul Bellow, que é your run of the mill Jewish existencialist", de que adiantaria discutir com essa vaca, pingente de gelo de Minnesota, Hesse reforçou o drinque, "não sei se Bellow é tão run of the mill, é o único romancista americano de primeiro time que se declara conservador, que não faz concessões à ralé, o que pensa da chamada revolução negra é aquele negro em Mr. Sammler's Planet exibindo o pênis ao velho judeu, o que requer coragem, nos States, em que o chique é adular negros, feministas, esquerdistas juvenis e outros inofensivos barulhentos", "I don't follow you", mugiu Janice Janet, Sílvia Maria considerava Gerald Ford simpático, responsável, achando, porém, que talvez Carter trouxesse aos eua uma renovação moral, um retorno à origem puritana do país, à shining city on the hill, Dotson ouvia empaticamente, isso, velho, catuca o balaio da nega, "eu explico se não vou bore you", Hesse persistia. "Bellow rasga a fantasia, à maneira dele. Rosa borda, rendilha, poeta o given, a donnée, a capacidade humana de sobrevivência em condições subumanas. Criou essa linguagem maravilhosa e de que eu agüento três parágrafos, porque se usasse língua de gente comum precisaria ver a realidade, furar a mortalha, shroud that's it, shroud, que cobre o meio ambiente que descreve. Bellow veio do esgoto, o flowering Judas imigrante, enfrentando a resistência cultural dos wasps e de outros étnicos, que possuíam, em comum, ao menos, um anti-semitismo rábido. Aí assimilou Marx, Freud e Hitler, que deram má fama ao anti-semitismo. Marx denunciou divisões de classes, o que inclui tudo, sacramentadas no céu. Freud descobriu um cerne biológico, idêntico, intratável, em todo ser humano. E Hitler encheu dp. culpa os anti-semitas amadores, nós. Bellow expressa o efeito dessa mixórdia na revolução americana, à qual, ao mesmo tempo, reage, pois prisioneiro do tribalismo judaico, e a revolução americana, o capitalismo, arrasou o tribalismo, dinheiro não tem raça, credo, ou cor, Bellow é um condenado profissional, que hoje se agarra nas ruínas dos ex-inimigos. Pulando do esgoto ao meio-fio da classe média, já quer fechar o ralo aos que ficaram embaixo, negros, etc. Mas Bellow vive, balança, chuta nossa cara. Rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa. Aprendo mais de Minas em Bellow." A sala estava em silêncio, ouvindo Hesse, que, no entanto, permanecia inexaltado, bebendo tranqüilamente, entre frases. Janice Janet se encolhera sob o bombardeio intelectual, "bem, nunca tinha analisado as coisas desse ângulo, Dotson, darling, Mr. Hesse considera Bellow melhor escritor que Guimarães Rosa". "Janice, darling, como dizem os brasileiros, santo de casa não faz milagre, eu sou um Updike man myself." Jack riu: "Moral, nunca discuta com um Yale man. Mesmo que esteja errado, leva você na conversa". Dotson e Janice não gostaram da lembrança da hierarquia universitária americana, em que formavam baixo, Mr. Marx não pensara nisso, Janice refletiu, em silêncio humilhado. Maria Tereza abraçou Hesse, pregando-lhe um tapinha na testa, "isso aqui é melhor que o Tesouro da Juventude". Hesse não se sentia gozável. "Haverá literatura neste país o dia que um escritor nos identifique, nos situe, nos destrua e nos recrie, o resto é perfumaria." Sílvia Maria sugeriu irem embora senão jantariam de madrugada. Um latido rouco veio de algum canto da casa. "É o nosso cão dos Baskervilles", Hesse explicou rindo, "e vamos tomar uma saideira, aconselho que ninguém recuse. Janice, hoje você verá um dos protótipos da literatura pátria, Odaléia." Sílvia Maria, "Paulo, por favor".

A galeria era um palco iluminado, Odaléia no centro. É dessas mulheres que jamais se rendem à evidência, tentando transformá-la no grito, uma blanquista inconsciente, e enfiada num longo de costureiro famoso que, se identificado nela, se tornaria infamoso, preside majestosamente os acontecimentos, os compradores de livros se enfileiravam sua-rentos, ela suarenta os assinava, o sorriso inabalável na pele de sessenta, setenta anos, não se sabe ao certo, graças a um cirurgião plástico, pesquisador de bundas femininas e que lhes descobriu mil utilidades, convertendo a pele de Odaléia numa sandália de Cabo Frio, dura e flexível, barro-cinza, cinzento-marrom, é algo impreciso, de que Leonardo seria incapaz, preferindo vulgarmente tirar sangue de pedra, isto" quando vivemos na era do ton sur ton.

O livro se chama Minha Solidão é Minha, Termópila tautológica pela qual os persas passariam ao largo, jamais cogitando contestá-lo. O estilo é de frases curtas. "Abro a janela." Parágrafo. "São seis horas da manhã. Vejo o leiteiro. O leiteiro não me vê." Parágrafo. Um crítico baiano da Academia de Letras já a comparou a Borges, nas ironias profundas que se escondem atrás de acontecimentos rotineiros. Outros preferem Gertrude Stein: "Odaléia restabeleceu o peso concreto, auto-suficiente, da palavra, do vocábulo essência-existência". Os estruturalistas não se manifestaram. Pedem tempo. São os mais recentes amigos de infância de Odaléia, que os tem como comensais freqüentes, apresenta-os a pessoas importantes do governo, das finanças, das editorias de revistas e jornais que "contam". O silêncio estru-turalista é de platina.

Odaléia conhece todo mundo. Jovem, conheceu biblicamente todos os poderes da República, sem preconceitos ideológicos. Ecumenicamente dava ouvidos e o resto aos que falavam da ameaça comunista ou da ameaça fascista. Até 1961, era uma morena comibilíssima, uma das raras plataformas que a direita da udn e o ptb Compacto partilhavam. O marido deixou-a por desclassificada de Carlos Machado, no período Jânio Quadros, deixando as calças à mulher em pensões e propriedades. Odaléia acusa Jânio de haver destruído a civilidade na vida política do país.

Descobriu Deus. Foi à índia e sentou aos pés de gurus, explicou o Kharma e o Dharma ao ministro da Justiça da ditadura, na volta, e o líder achou excelente que pregasse shantih ao povo, já que os comunistas haviam infiltrado o Vaticano, valendo-se de um inocente útil senil, João XXIII, e traindo a missão moderadora da Igreja.

Buda passou a ser uma constante na mansão de Odaléia em Laranjeiras, se restrito a cômodos e visitantes específicos, pois não queria ofender amizades católicas, velhas, ou, como Sílvia Maria, novas, que, se lamentavam a vulgarização da Igreja, jamais pensariam trocá-la por superstições do Oriente.

O pior na incivilidade, já que inevitável, fora a queda de calorias afetivas no vasto círculo de relações de Odaléia. Anos atrás, bastava acenar a um dos cavalheiros disponíveis, que acorreriam céleres a seu leito. Hoje, a resistência se tornara forte. Os jovens a ignoravam. Os contemporâneos, ocasionalmente, acediam, porém, coitados, as performances deixavam muito a desejar, isto quando o espetáculo não era previamente cancelado. Odaléia buscou novos interesses. Surpresa, um dia recebeu visita de rival, a única, de São Paulo, que lhe caiu nos braços, confessando que o marido também a preterira por frangota. Descobriram-se feministas reprimidas. Forjaram aliança. São Paulo ficara intolerável à amiga de Odaléia, que não agüentava os olhares irônicos de amigos, inimigos e indiferentes, e a eventualidade de encontrar a frangota com o galo roubado, em lugar público. Decidiram converter-se nas irmãs Goncourt do país. Odaléia já pontificava no Outro Jornal, logo colocaria a irmã no de Sadat.

Levou um modelo de crônica a Sadat, que leu, gostou e pediu a presença de Hesse, o que deliciou Odaléia, cujos chás Sílvia Maria freqüentava. Hesse, numa ressaca terrível, entrou e sorriu vagamente para Odaléia, sem reconhecê-la, e, ao receber o texto de Sadat, normalmente perguntaria o nome do autor, precaução elementar de editores chamados a julgamento jornalístico na diretoria. Flutuando na ressaca, porém, viu alguns parágrafos e disse: "Isso é Anais Nin em ciclamato, e se o açúcar já é ruim, o ciclamato é vomitório". Sadat escureceu in extremis, o enrubescimento dele. Odaléia manteve o sorriso que cinco décadas de palco a haviam ensinado a sustentar, até quando o cenário caía em plena performance. Tanta incivilidade.

Não desistiu e uma tarde convidou Hesse à casa, eram quase vizinhos, antes escondendo os volumes de memórias de Anais Nin, que imaginava desconhecidos no Brasil, fuçando outras preciosidades literárias, George Eliot, Harriet Martineau, que "inspirassem" a irmã em armas, será que Hesse as conheceria, todo mundo o dizia cultíssimo, se bem que o plano de campanha se baseava nos seus encantos femininos. Recebeu-o num Balenciaga que o próprio lhe dissera ter sido concebido para ela, num mínimo de ornamento, e no lusco-fusco que lhe atenuava os pés-de-galinha e demais traições da natureza.

Hesse sentiu, de saída, a armadilha, que o divertiu, a metodologia de poder do próximo sempre o fascinava, como estudioso e praticante da disciplina. E, curiosamente, a velha o atraía. Estaria ficando teratológico também, well, why not? Exceto num assunto, se permitia todas as tentações. Resistiu fácil ao envolvimento "intelectual", fixando-se na "falta de espaço", "nos limites auto-impostos de concepção do jornal" e outros clichês de rejeição. Odaléia, finalmente, manifestou surpresa que ele houvesse lido Anais Nin e perguntou-lhe o que achava da idéia da escritora de que a mulher deve fidelidade absoluta a seus instintos. Ela o afagava e pressionava de corpo. Hesse abriu a braguilha.

Depois, não atendeu mais ao telefone. Sabia que Odaléia não se exporia ao ridículo de contar a Sílvia Maria ou a Sadat, o que a desmoralizaria, e não a ele, velha coroca, no Brasil, não se estupra, e lembrava-se, molequemente, dos uivos à Ia Margarida Lopes de Almeida que Odaléia emitira, nos raros momentos de boca desocupada. Odaléia era mestra em manter o ódio sotoposto, nem braço quebrado dava a torcer. A forra consistiu na tentativa de envolver progressivamente Sílvia Maria no movimento de "feminismo responsável", o que Hesse, conhecendo a mulher, ignorou indiferente. Sílvia Maria jamais trairia a santíssima trindade de mãe, esposa e filha.

Vejo, na massa da galeria, um ex-presidente e aponto a Victor, que comenta, "foderam ele também?", bem é um banqueiro próspero, em expansão, a resposta soa críptica a Victor, que, porém, não insiste, "olha aquela múmia", duas, em verdade, um é tão magro que parece xifópago do companheiro, são membros da Academia Brasileira de Letras, inimigos cordiais de Odaléia, que move campanha incessante pela admissão de mulheres, se declara logo não-candidata, propondo o nome da dama de companhia. A Academia virá toda, "não guarda rancor", e os mais velhos, na fila imensa do autógrafo, se indagarão nervosos se já não é a "bicha" do Juízo Final.

A galeria é de pintura, a que ninguém presta a menor atenção, nem sequer em noite de vernissage, quando a multidão cobre a visibilidade dos quadros, o objetivo dos marchands é idêntico ao de Odaléia, usar publicitariamente a presença de celebridades a fim de extrair dinheiro da horda de novos-ricos do sistema, ansiosa de status. O calor é forte, e, como os chineses na China, não podemos olhar em volta sem dar de cara com outros chineses, e nos esprememos todos, um relance do que é a vida nos trens da Central, só que a escolhemos, não nos foi imposta. Rodas se formam, arquitetos que continuam seguidores de Le Corbusier, ou será Gropius, meus conhecidos da "Copacabana é do caralho", escritores de fama variada e ar deprimido, reduzidos a leitores, jornalistas, câmeras de tv, cronistas sociais procurando aduláveis, empreiteiros, que calculam quantos andares renderia a galeria demolida, decoradores, costureiros, corretores da bolsa, generais e almirantes reformados, que, fora da ativa, desenvolvem homeopaticamente um gosto pela democracia, entrando em fila, hostesses menores de open houses, o murmúrio coletivo, comprimido, sugere um arroto coletivo no Maracanã, vá lá, Maracanãzinho.

Procuro caras conhecidas, identifico Hesse, Sílvia Maria, um casal de gringos que desconheço, Jack Ainsworth em papo animadíssimo com Wandinha Vinde a Mim as Criancinhas, que os dois amam, as criancinhas. Esbarro em Maria Amélia, sem Paulinho, sorrindo como um bebê de pileque e me envolvendo nos olhos. Enfio a mão na blusa dela e toco, enfim, no pico, é menos sólido do que imaginava, mas os prazeres da concretização do antecipado compensam o desapontamento do real. Ela põe a mão no meu pau, segurando-o firme, mantém riso e olhar brilhantes. "Vai ser hoje, ô cara, putz tu é lento hein, cara? Sabe que depois do meu cunhado você é o coroa mais engraçado da praça, e do Paulo não posso nem chegar perto que minha irmãzinha me arranca os olhos." "Vai ser hoje, sim, senhora, a gente se encontra no Antonio's depois tá?" "Tá. Você viu o Paulinho aí? Preciso dar uma cafungada ou durmo nesse cemitério. A que horas começa a música?"

Victor, que assistiu à cena, "porra, e você ainda prefere viver na Europa, bichão? Lá fazem tudo de hora marcada, não dá pruma patolada na hora que a gente quiser, que chamam a Dona Justa. Quem é essa coisinha maravilhosa?" Biografo sucintamente Maria Amélia, sou agarrado por um ex-oficial das Forças Armadas, expulso na primeira lista, hoje editor, se não me engano da própria Odaléia. Falamos ao telefone nas últimas horas do governo anterior, ele, no palácio, confiante, eu, basbaque, em casa, confiando nele. "Mas que honra, você reconheceu diplomaticamente a literatura brasileira. Já era tempo, pois se até os gorilas reconheceram a China." Abraços, socos leves nas costelas. "Que literatura? Uma moça muito bonitinha me perguntou a que horas começa a música. A maioria das pessoas pensa que estamos num festival de rock." "Deixa de sacanagem. A velha é forte. Tiramos vinte mil exemplares na primeira edição." "Você se esquece que já trabalhei em editora. Vocês tiraram cinco mil, e hoje, se derem sorte, vendem mil, quinhentos saem na publicidade e o resto é lucro. Te manjo." O capitão me acaricia o cangote e se manda. Forneço novo verbete a Victor, para quem a conversa foi em sânscrito.

Criou-se um certo lebensraum na galeria, a gente da política, finanças, Forças Armadas e similares veio marcar o ponto, tem outros compromissos, restando nós, os desocupados, entregues ao dilema de escolher qual dos três ou quatro lugares em que terminamos toda noite. Pode-se até andar, sou abraçado efusivamente pelo Zé Carlos Menezes, e Adriana nos cumprimenta seca e distante, Victor, apresentado, não tira os olhos dela, lembra-se dos comentários do Jornalista Famoso, que, por sinal, num canto, cercado de políticos do mdb e de cassados, instrui-os infatigavelmente. Fui beijado e beijei várias mulheres, de amigos, ex de amigos, minhas ocasionalmente, inimigas dos meus amigos ou conhecidos, ou sozinhas, indecisas, ou caçando companhia, ou dando ato de presença, portadoras todas, noto, do telégrafo da Odaléia, o que justificaria o ponto que fazem solitárias, distinguindo-as das diligentes profissionais da Vieira Souto.

Sílvia Maria subiu à plataforma de Odaléia, trocam carinhos, e ela "se faz útil", irritando o empregado da livraria, "mulher só serve para atrapalhar". Odaléia ama, computando que a presença de Sílvia Maria vale mais meia hora de atenções gerais, Maria Tereza roda pela sala de braços com Hesse, os gringos, de livro na mão, comentam o festival nativo, Jack, obviamente, servindo de Dr. Livingstone.

Victor, "mas cadê a repressão de que vocês comunas falam, meu irmão? Você está aí, jornalista famoso e bem-pago. Outros são banqueiros, você me diz, ou aquele capitão, que seria fuzilado em qualquer país em que o pau quebrasse de verdade, aqui perdeu a carreira, subiria a quê, hoje, major, coronel, um salário de merda. Garanto que fatura horrores de editor e livreiro. Eu fui a Katanga, em 1961, nego reclamava e levava fogo na hora, sem direito a padre ou feiticeiro local. E na Rússia e China, bichão, o negócio é tão bem feito que você nem vê".

"Você acertou na mosca. Eles nos chatearam um tiquinho. Há muito oficial vendendo enciclopédia, ou guiando táxi, intelectuais às pampas expulsos de universidades, os estudantes podem discutir futebol, livremente, neca de política, economia, filosofia ou sociologia. Certo, alguns milhares se foram em tortura ou assassinatos. Também, pegaram em armas, né? Não te gozo, meu querido, concordo, é uma desgracinha comparado ao que existe, não precisa ir tão longe, no Uruguai. Mas a repressão não é essa, é sobre cem milhões de pessoas que quebram pedra de sol a sol, sem direito a reivindicarem nada, em subnutrição permanente, cortadas totalmente da economia, menos visíveis que na urss ou China, um gulag 'anárquico'. Nós aqui, neste recinto, pertencemos aos 0,3% de que te falei. Centenas de políticos, intelectuais, jornalistas, o máximo em insignificância. Basta censurá-los e deixá-los. Sai mais caro e chato prendê-los e torturá-los, porque repercute mal no exterior. Melhor que fiquem enchendo a cara em botequim, malhando o sistema. Eles não nos dão importância, porque não temos importância."

Tertuliano, Quincas lambendo uma menina de dezessete anos que incautos imaginariam filha dele, se aproximaram. Apresento Quincas: "Eu te conheço. Você não era amigo do Edu?" "A gente se dava bem mas não saíamos juntos. O senhor todo mundo sabe quem é", "Senhor é Deus no céu e nada mais, Victorzinho. Você conhece aqui a, como é mesmo o seu nome, minha filha?" "Clara Dornelles." "Isso mesmo, Clarinha, esse cara aí enfezado é o Hugo Mann, cujas críticas de cinema são melhores que os filmes criticados." "Todo mundo lê Hugo Mann, Quinquinhas." Tertuliano indaga de Victor o clima em Paris, não espera resposta, "meu azar é que me fizeram adido cultural, uma vez em Tunis, mais quente que o Rio, olha lá o nosso Zé Carlos, vou abraçá-lo, vocês me dão licença, preciso ir ao beija-mão do meu líder. Hugo, o Hesse anda por aí, você já viu?"

"Já."

Maria Tereza e Jack chegaram, Jack analisa os músculos de Victor à Ia Bernard Berenson, Maria Tereza me concede um sorriso e um beijo e a Quincas, apresento Victor, ela é cordial, mas esnoba brutalmente Clarinha. Jack declara a Victor que Hesse lhe falara dele, representante do jornal na Europa, "must be fascinating work", conversam em inglês, Victor gosta de Jack, e quem não, se bem que examina o terreno prudente e atentamente, um tigre discreto.

Hesse cumprimenta Odaléia, recebe beijo e autógrafo, Sílvia Maria, realizada, observa satisfeita. Janice murmura no ouvido de Dotson, "twelve bucks for a paperback, Jesus", "They haven't quite managed to hold down inflation, my dear, I'm afraid". O José Carlos e Adriana são os próximos na fila. O Zeca faz festa a Hesse, é deferente a Sílvia Maria, que nota a cara furibunda de Adriana, uma desajustada, definitivamente. Quincas descreve algo entusiasticamente a Jack, este chateado porque longe de Victor, que lembra à menina o show de Quincas no Olympia, Clarinha sorri indicando também presença, nenhuma bronca da delegacia de menores. Maria Tereza me convida ao Mario, incluindo Victor, "conheço de vista. Parece mais maduro e bonito. Acalmou? Você se livra do bebê aí, ok, o Quinquim é mesmo um sem-vergonha".

Victor caiu nas mãos de um diretor de teatro, que lhe pergunta se Villar e Planchon ainda fazem algo que preste. Me enganei de novo. Victor viu tudo e comenta inteligentemente. Ele já voltou, reassumiu as chaves da casa-grande.

Paulinho entrou e Jack lhe afaga a cabeça. Meus nervos chegaram ao esticamento supremo. Puxo Paulinho: "Maria Amélia está no Antônio's. Toma quinhentos paus. Me dá o que você acha que vale". "Vamos ao banheiro", "não, não é preciso, eu não dou bandeira". Ele me passa cinco envelopes. Vou ao banheiro.

No mictório encontro Hesse. "Oba." "Oba." "Você já é coronel, ou é ainda major, ou no hinterland as promoções são mais lentas?" "Você engrenou um puta porre, Hugo, vai fazer escândalo?" "No momento, meu caro Dzerz-hinsky, pretendo dar uma vasta cafungada, por que se não, como Victor, teu correio, viro Sansão e derrubo os pilares do templo. Falando nisso, você sabia que aquele careca escroto, o Luisinho segurador, chupava os peitinhos da Sílvia Maria por trás das grades do Cosme Velho, minete não dava, falta de posição, sacumé, antes de você, claro, não precisa apalpar os chifres. Na próxima que você explorar um inocente, lembre-se que a inocência também contém a sua própria antítese." "Eu sempre soube disso, tentei evitar a volta de Victor e que vocês se encontrassem. Depois discutimos minha vida. E, falando nisso, é possível fazer um minete naquela grade, se a técnica for a correta, Maria Tereza recebeu o meu, quando Sílvia Maria brincava de amarelinha. Agora, vim aqui também cafungar. Vi você comprando do Paulinho, share and share alike?"

Entramos juntos e espremidos na "casinha". Reclamo, "que barriga, tovarich, cadê o ascetismo revolucionário?" "É que se eu bebo, também como, você bebe apenas e se alimenta da imensa pena que sente de si próprio. Eu reparto. Você esparrama e desperdiça." Saímos, ao mesmo tempo, trocando umbigadas. O que diriam se nos vissem assim? Falariam. Falamos, falamos, falamos. Nada mais.

Me coube o carro de Maria Tereza, e a Jack e Victor. Ela guia, como de hábito. Jack não gosta e detesta chofer em ocasiões informais. Victor lembra um astronauta que avista no mar o navio que vem recolhê-lo.

Jack dá um beijo rápido em Maria Tereza, vira o ombro esquerdo sobre a separação, nos envolvendo a todos: "Atenção, atenção, um pronunciamento importante. Vocês estão em companhia de um dos beneficiários da previdência social, sistema glorioso instituído por Bismarck e extensivo também a nós, desalmados capitalistas. Encerrei definitivamente todos os meus expedientes".

Maria Tereza: "O Hugo tem razão. Old Eight provoca cirrose no cérebro". "That's a most unkind comment, my love, sério, vou vender minhas ações da companhia e me radicar no Brasil, se vocês me aceitarem, ao menos até que os comunistas tomem o poder, e até lá estaremos todos mortos, como diz o Dr. Gudin, citando Keynes errado. Venderei. Vendi. Autorizei ontem os meus advogados em Nova York. O chato é que preciso avisar a titio, o nosso chairman of the board, que nunca me perdoará e comprará tudo, porque não pode deixar que um bloco tal de ações caia no mercado. Ontem, assinei a escritura da casa dos Galducci, em Búzios, coitado, ele bem que precisa do dinheiro, que o Banco Central lhe aperta o saco, namoro uma vasta herdade em Friburgo, trinta bedrooms, um hotel, quem sabe, reservado aos amigos, toda cercada de eucaliptos. E uma livraria, um restaurante, talvez, e mantenho o meu apartamento no Flamengo. Claro, dou um pulo à Europa ou a Nova York de vez em quando, mas daqui não saio, daqui ninguém me tira."

Maria Tereza, "Jack, o que é isso? Você nem tem quarenta anos", "So what? Quero praia, montanha, liberdade, love, amigos, open house aos amigos velhos e aos novos, você, Victor, é muito welcome. E Maria Tereza você parece o Hesse. Aliás, se eu fosse o meu tio, Deus me livre, punha o Hesse no meu lugar."

"Que loucura, Jack. O que você quer dizer?"

"Quando avisei na galeria que ia vender, ele me olhou como se eu propusesse que comêssemos salaminho rebatendo com milk shake. E sempre que o encontro a sós, me bombardeia de perguntas sobre a mecânica de empresas iguais à nossa, há o quê, umas dez no mundo. Ele é mais americano que eu."

Medito na variedade do gorjeio das aves. "Jack, talvez valesse a pena você conversar o Victor aqui. Ele cansou definitivamente de morar na Europa, saudades da senzala, da praia, etc. Fala cinco línguas e se faz o tempo todo de quem não sabe de nada, o que é, I believe, a qualidade essencial de um bom executivo."

"You mean it? Você gostaria de trabalhar numa companhia biguana, Victor?" "Bem, largando o jornal, preciso procurar trabalho na senzala, como diz o Hugo."

"Cinco línguas, hein? Você não se importa de viajar ocasionalmente, é por pouco tempo, cada vez, visitando a nossa rede, metade das nossas vendas são fora dos eua. É agüentar chatos em várias pigmentações e línguas, se bem que inglês e francês bastam, na maioria dos casos. Me procure quando quiser, amanhã, se possível. Um jovem viajado e experimentado como você pode começar de trinta mil ao ano."

"Ele disse trinta mil dólares, Victor", endosso, satisfeito de tirá-lo da órbita de Hesse. "O império não paga com dinheiro imitação."

Jack sorri e me olha, frio, ou imagino? "Vou guardar um cottage privativo para você, em Friburgo, Hugo, all facilities, direitos exclusivos de eremita."

"É a melhor proposta que recebi na minha vida." Maria Tereza ri. Vejo-a de xota na grade. Perdi os melhores anos da vida dos outros.

"Vamos todos ao Antonio’s, Jack animadíssimo, no embalo do desabafo, Maria Tereza explica que Victor e eu pararemos no Antonio's, "depois vocês passam no Mario, não é?" Jack reclama, "é coisa do Hesse, aposto, não há lugar melhor no mundo que o Antonio's, ele prefere o prim and proper, parece meu tio, juro". Maria Tereza, "e você não sabe do que escapamos. Minha irmã queria ir a um jantar de homenagem à Odaléia, no Concorde, acadêmicos às pencas. Tumba vai ser lá".

Quando nos deixam, Maria Tereza me chama à janela do carro: "Se você encontrar Maria Amélia, avisa que a Sílvia Maria está no Mario, veja lá o que ela me arranja, ok, meu amor?" Beijos e carinhos.

O bar do Mario é muito escuro. Hesse, mulheres e Dotson caminham à mesa no restaurante, uma voz sussurrou, "Paulo, Paulo". Hesse parou e viu o Toninho, fez sinal aos outros que seguissem, apertou a mão do rapaz, mole, passiva. "Papai me disse que vou trabalhar sob você, é verdade?", e riu, puteira e autodepreciativamente. "Você nunca me pareceu uma pessoa paciente, Paulo, logo é melhor cortar o papo furado. Eu não sei nada, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Não faço a menor idéia do que vocês encucam na redação. Na praia, me informaram que é fascismo, agora como ignoro o que é fascismo, caguei. Você me aceita assim mesmo?"

Toninho não lembrava a Rainha do Chile de Tender Is the Night, de Fitzgerald, salva pelo charme. Era uma bicha feia, mulata, deprimida e rica, excluída a riqueza estaria aos berros na Praça Mauá, chupando o pau de marinheiros, sob cascudos, chutes e insultos, que aceitaria gostosamente. "Manera, Toninho, dá-se um jeito. Você não quer matar seu pai, quer?" "Sempre achei que você é o máximo em inteligência e vejo que não me enganei. Que idéia maravilhosa, matar meu pai. Quero, sim, é receber minha parte da herança, passo o jornal a você, de presente, em troca de vinte mil dólares mensais, me mando a Spoleto, onde pretendemos, meu marido e eu, pintar em breve. Aliás, você precisa conhecer meu marido. Levy, amor, vem cá."

Um tipo quase careca, albino, quarentão, frágil e flácido, emergiu no negrume, tímido e de olhar de censura encabulada em Toninho. "Ô sua judia, fica quietinha e comportadinha. Esse aqui é o Paulo Hesse, o diretor do jornal do velho, o intelectual numero uno do Brasil, acredite, me deu uma idéia do rabo, sabe qual é, Raquelita, que eu matasse meu pai. Não é edipiano, bacaninha? Herdo o jornal, o Paulo administra e nos manda vinte mil dólares ao mês, ah, antes que eu me esqueça, tax free, em Spoleto, aí podemos comprar nosso château e viver felizes, forever, and forever, and forever, e você deixa de se ocupar da cuca do próximo, só entrando na minha, cá embaixo, bem, para que anunciar, você já conhece o caminho, ha, ha."

"Toninho, por favor, se controle." "Ela é assustada, Paulo, a Raquelita, mas de boba não tem nada, toma quinhentas pratas do velho extra, fora da sessão, para contar o que eu digo a ela, e nós nos divertimos muito, preparando o relatório a quatro mãos. Ela escreve as coisas simpáticas, eu as verdadeiras a aquele grandessíssimo filho da puta. E o dinheirinho é o nosso fundo de angel dust. Pronto, botei tudo claro. Ainda me quer de assessor? Não me toque, hein, que a Raquelita é muito ciumenta, não é boneca, não é?"

"Dr. Hesse, o senhor não se deixe impressionar com as aparências de insensatez do Toninho, por favor."

"Tenho gente comigo lá na mesa. Toninho, espero você amanhã, às onze da manhã, no meu escritório."

"Sou tua escrava, amor, diz à Sílvia Maria que ela deve ir ao Renault soltar os cabelos. Bandos já eram."

O Tertuliano pegou Hesse pelo braço, a caminho. Estava com o José Carlos e Adriana. "Grande figura, toma um conosco. Eu quero ver o diálogo entre os dois maiores editores do país, Golias contra Golias." "E você é o Davi, naturalmente, que terminou rei", Hesse respondeu sem muita malícia, cumprimentando Adriana de cabeça, que repetiu o movimento, seriíssima, duríssima, como se fosse truncar o pescoço. "Hesse, senta aí um pouco", o Zé Carlos propôs, pleno de cordialidade, "matamos as ilusões do poeta, mostrando que o único assunto de editores é boleto de circulação". "Licença", Adriana levantou-se rumo ao corredor do banheiro. Hesse agradeceu o convite, não podia, porém, plantar mais o grupo dele, esperando, e de passagem pela sua mesa, pediu um minuto, indo também ao banheiro. Adriana e ele deram de cara. Nervosamente, ela abriu a bolsa, tirou uma nota de cinqüenta cruzeiros, jogando no rosto dele. "A cena não é bem assim, meu anjo, é o homem, na Dama das Camélias, que atira a erva, um bolo, cinqüenta pratas é michê de rua." "Cachorro, fascista." "Se você me der passagem, lato e brado Heil Hitler. Vim fazer pipi, exclusivamente. Nosso negócio discutimos ao telefone, marcando o próximo encontro." Adriana gritaria, se Hesse não lhe tapasse a boca, "olha, se você pretende que todo mundo saiba, à parte o pessoal da copa, que ouviu metade dessa conversa, ok, agora o honesto é que o Zé Carlos receba o furo". "Você é um cínico, imundo. Meu marido quebraria você em dois." "Não duvido. E daí, o que resolve? Passa no apartamento amanhã, às seis horas, que conversamos." "Filho da puta." "Bem que minha mãe topava, seria menos neurastênica. E a mancha na coxa, qual a explicação ao Zé Carlos? Tombo, ginástica, as variantes são poucas, é chato." Adriana se foi quase correndo, um estranho tremor nas pernas, relanceou Sílvia Maria, que não a reconheceu, e, a custo, conseguiu andar normalmente, "que que ele pensa que é? Amanhã, às 5:30, saio da aula do Museu. De carro, chego ao apartamento às seis. Vou, vou, vou. Preciso ensinar uma lição a esse cachorro", a resolução e o propósito fizeram-na perder o equilíbrio. Tertuliano, rápido, amparou-a cavalheirescamente, "este navio balança demais, começou assim no Titanic. Adriana, queres um cordial? Ha ha, ha, Zé Carlos, a juventude, ela nem sabe o que é um cordial".

Sílvia Maria perguntou a Hesse se o rapaz na entrada era o filho do Antônio da Silva. Hesse confirmou, "e o psicanalista dele". Janice, "não é proibida essa intimidade entre paciente e médico?" Dotson aboliu a objeção da mulher, coisa de freudianismo ortodoxo, diluído em escolas que haviam humanizado a terapia mental, Sílvia Maria, temendo uma conversa cansativa, alegrou-se de ver Jack e Maria Tereza entrarem, dois mestres no equilíbrio verbal, o Mario estava a cunha, e ela já não agüentava uma mulher árvore de Natal na mesa ao lado, descrevendo à companheira o preço e proveniência de cada jóia, o Rio precisava de um Maxim's, de um santuário contra a vulgaridade.

Estou na mesa com Maria Amélia, Paulinho, Victor e sei lá mais quem, como um pedaço do bife de Maria Amélia, passo a comê-lo inteiro, Paulinho me pergunta se quero trezentos cruzeiros que "sobraram", Victor e Maria Amélia conversam bochecha a bochecha, ela esqueceu a nossa trepada, Paulinho pergunta também, "quem é esse coroa mexendo na minha mulher, dou uma porrada nele". "Você já fez trinta anos?" "Não, vinte e sete. Por quê?" "Porque até Jesus Cristo esperou chegar aos trinta e três antes do suicídio", como vorazmente, há dias em que devoro macarrão gelado na minha atual condição. Wandinha me acena, de atenção em Victor, medindo estrategicamente se deve identificar-se, se ele esqueceu dela, o que é possível, talvez seja a única humilhação que a derrubaria, requeremos, no mínimo, que se lembrem de nós, maldosamente que seja, porque nosso único e precário seguro, e a prazo curtíssimo, a expiração da apólice é fatal. Paulinho, advertido, cerca o compositor da moda, quatrocentas músicas censuradas, não é venda de pó, o herói canoro preserva sem censura as vias respiratórias, é admiração pura e simples, nossa arte é música popular, a inglesa é ficção, a russa é poesia, a americana é faturar em todas, I joke not, Victor me pede a chave do apartamento, dou, "tem de ser de galo, te esperam no Mario", "Tanorré, tanorré", "espectros, Sra. Alving, espectros". Wandinha do meu lado, vê o casal sair, "eu gostaria de comer você, Hugo, você é a única pessoa que admiro que não comi", "mentira é o Victor, que você lembra dos nossos tempos de garoto e perdeu a coragem de pedir uma estia a ele e agora vai à forra se aproveitando da minha insegurança", "é por isso que eu quero comer você, você é o homem mais inteligente que conheço, põe no chinelo o Paulo Hesse, que comi e não gostei, ele pensa que mulher é porco do mato". Um milionário esquerdista, industrial e diplomata, invade o papo, "o Hesse se foi mesmo, hein, Hugo velho? Aquele editorial ontem contra a estatização, reconheci logo o estilo, as frases cortantes, o punch, mas que mistificação. O que você acha que é? Dinheiro não é, covardia também não, enfrenta o nosso pessoal cara a cara e não pisca, e se continuasse conosco a gorilada não ousaria tocá-lo, o pai dele é peça-chave do sistema em Bonn, eu soube no Itamarati. Por quê, Hugo? É uma reversão visceral a interesses de classe?" Luisinho chegou e se desaponta na ausência de Hesse. Não é desta que deixará o banco dos reservas. Gostei, não nego.

Entra e sai gente de todo tipo, criando o charme, a loucura, a exasperação do bar, o banheiro jamais está vazio, os cafungadores aos poucos se convertem em maioria sobre os bebedores, mas continuam bebendo também, logo os donos não ligam. Dos presentes, apenas um casal de lésbicas não arredou pé da mesa. Os homossexuais são os últimos românticos do sexo full-time. Um dos cronistas de A mulher, de Hesse, desabou bêbado. Ninguém olha. Se agüentasse uma noite de pé, causaria sensação. Areia Mijada me acena, guiando gente vestida mais formalmente, foragidos prováveis do jantar à Odaléia, que logo se amesclam aos marginais. O Antônio's é o que de mais próximo existiu no Brasil em democracia. Oligárquica, naturalmente.

Saio de repente, embalado. Recebo na cara um bafo de caldeira de cargueiro e não a brisa que beija e balança. Sigo ao Mario e encontro Paulo Hesse, a meio caminho.

"Quer dizer que o Victor arrastou Maria Amélia? Ele ainda é violento? Você está em condições de me ouvir, ou prefere entrar um pouco? Fiz que ia ao Antonio's atrás do Audálio, porque sabia que você daria as caras. Como é que é?"

"O Jack adquiriu uma baita fazenda em Friburgo e me ofereceu um chalé in perpetuam lá. Preciso perguntar a ele se vale mesmo, ou é negócio de City Lights, do milionário do Chaplin. Agora, não vou sentar ao lado daquele agente da cia, o Dotson, e daquela two-bit peroxide blonde mulher dele. Kgb ainda vá lá, em nome da nossa velha, puta que me pariu, amizade. Olha, o que eu quero mesmo é fazer um minete na Maria Tereza. Será que você me arranja, em nome da nossa velha, puta que me pariu, amizade?"

"O Dotson não é agente da cia. É um political officer da embaixada americana, exercendo funções legítimas, que incluem colher informação ostensiva, o que é legal em qualquer país. Hugo, você nunca deveria ter se metido em política. O teu forte é ficção, crítica literária."

"Obrigado. Se você me arrumar um subsídio anual do Sadat começo já minha obra que prometo será maior que a de Proust, em tamanho, para ser publicada postumamente, protegendo os amigos, você. Prefiro o chalé e Maria Tereza."

"A Maria Tereza de que falei não existe mais. As pessoas acumulam sensações, experiências, conhecimentos, mudam não só de corpo, de cabeça também. Amadurecem, numa palavra. O minete esse é tão relevante a ela quanto o tremor, para você, na primeira vacina, operação de amígdalas, etc. Essas coisas se diluem quando sintetizamos nossas personalidades. Exceto em poetas, aspas ou não, que se fixam no infantil, até à morte. Você é assim, um talento inexplorado, logo ficou uma criança desastrada, chata, senil."

"Esta conversa virou esculacho? Me respeite. Sou um senhor de meia-idade, de classe média, nascido e criado em Botafogo, que acredita bestamente em princípios básicos de solidariedade humana e na honestidade dos raros em que descobriu afinidades. Meu tempero azedo não é a comida, que é limpa, decente. Cozinheiros e cozinhas é que estragaram o material. Posso passar, agora, 'Seu' Béria?"

"Ninguém te segura. Você não quer passar. Você quer que eu me confesse, que peça absolvição, e se absolver junto comigo. Eu nunca traí nada. É difícil entrar direto no assunto, porque há tanto que você desconhece. Ok, indiretamente. Aceite o cottage do Jack. Você estará sob vigilância do principal agente de Inteligência dos eua no Brasil."

"Sem essa bicho, tu tá mais de porre do que eu. E que história de Inteligência é essa? Você cata as plantas do Forte Copacabana, do Leme, a melhor praia de invasão em Búzios?"

"Você acreditaria se possuíssemos mísseis nucleares. James Bond. Ou, se membros da otan, nós, agentes, fôssemos cornos sofridos. John Le Carré. Este país continente, inabitado, potencialmente um dos celeiros da Terra, não interessa a ninguém, certo? Descobrem rios, no Brasil, minas dfi ouro, em 1966, meu querido. Você pensa que Jack e eu nos fiaríamos em relatórios da Fundação Getúlio Vargas? As peças do puzzle vêm de boca, de quem conta. Jack, presidente de uma supermultinacional, encontra portas abertas nas empresas estatais, no Alto Comando, na sociedade dos financistas. Claro, passa ao largo de embaixada, dá ordens ao embaixador, despreza snis, codis e pes, ri de pc, terror, mdb, são brincadeiras de criança perto dos interesses estratégicos de que se ocupa. E levei vantagem nisso. Sorte e coincidência. Meu sogro é o maior repositório do que Jack e eu necessitamos. Deu algum a ele, e a mim, afetivamente, em doze anos de confidencias, tudo que sabe. Antes os americanos tinham monopólio de acesso ao nosso futuro, hoje, graças a mim, a urss partilha. Informação é a mais valiosa mercadoria que Marx esqueceu de computar em O Capital.

'Caem' generais na Holanda, Dinamarca, na Suíça. Por quê? Ameaçam alguém? Nossa rede, Jack concordaria, não discrimina, colhe em arrastão. Talvez eu não seja sequer o único 'tovarich', não duvido que um desses generais que vociferam contra 'ideologias exóticas e ações solertes' trabalhe conosco, uma cover melhor que a minha que mantenho amigos bêbados e esquerdistas."

"Como é que você sabe dele? Jack?"

"Sei. E ele sabe de mim. Nossas biografias coincidem. Não 'precisamos' ser o que somos e há todo um código profissional que você adquire na experiência, intransferível a específicos. E não se impressione pela palavra 'espionagem', ou 'traição'. Meu caro sogro, gosto dele, realmente, me comove, o pai que não tive, etc, vendeu este país três vezes, no mínimo, e é um cidadão respeitável. Eu que cobrei a conta, se me pilhassem, viraria traidor. Jack? Torra as ações, é mesmo? se desliga da multinacional, talvez se converta em travesti de brasileiro. Que potentado informante recusará hospedagem na estância em Friburgo ou em Búzios desse cristão-novo da pátria amada? E bicha, deixa nossas mulheres em paz. E convidou Victor a trabalhar na empresa, previsível, ligando 'Europa' a mim. Fodeu-se. O que Victor sabe de Van é legítimo. Ele, holandês, armou transações bancárias soviéticas na Suíça. Atividade legal. E seguro Victor no jornal, na diretoria se for preciso. Já minha indiscrição sobre Van a você, Van, falando nisso, saiu da jogada, me custou caro. Para evitar novas, cortei você esses anos todos, meu único amigo, vivendo num circo intelectual e emocional que me esbodega. Não há bourbon que afogue o inevitável, que um dia meu nervos se enrolem tanto que acabo comigo mesmo. Escreva um obituário. O tema: desperdício. Não será mentiroso. É a ironia justa. A gorja é minha, nossa, a diferença entre mim e você é que me deixei devorar."

"Zachto?"

"Deve haver razões psicológicas profundas e profundamente irrelevantes. O que me restava, membro de uma elite, com as minhas convicções? O resmungo impotente, o delírio bakuniano? Ou trair, 'gozando a vida', apodrecendo no mormaço dos privilegiados, lambendo minhas feridas em narcisismo, me arrastando nesse vácuo, no vazio de uma sociedade inapelavelmente gangrenada. Preferi, não me arrependo, devotar meus 'haveres' a uma visão de justiça. Os argumentos, você os conhece tão bem quanto eu, são irrespondíveis, não importa quantas vezes conspurcados na prática. Chame do que quiser, de zele compatissant, ou de egoísmo in extremis. Os atos é que são a História. O resto é subjetivo. Quando vim dos eua, procurei o caminho fácil, sentimental, o brilhareco polêmico, eleições, agitação, aquela brincadeira elitista que nunca atingiu a massa, reprimida tolerantemente em futebol, televisão, samba, a mulher, praia, que obra de arte em opressão é a democracia liberal. Nossa sorte é que os milicos são estúpidos o bastante para não restabelecê-la integralmente, apesar de a tolerarem homeopaticamente. Os eua atingiram a perfeição. Anularam, na tolerância repressiva, a possibilidade sequer de uma esquerda social-democrática. É uma criação de gênio. Marx e Lênin jamais imaginaram que o capitalismo, como o bom Rei Duncan, tivesse tanto sangue. Perceberam apenas que era sanguinário."

"Na Europa, depois do golpe, repensei minha vida inteira. Van propôs meu nome. Foi difícil, porque acharam que eu me queimara no esquerdismo. Nos primeiros anos, atuei a 'título de experiência', até que abri a mina cerebral que é meu sogro. Hoje, nós, quando se criarem condições revolucionárias, estaremos preparados, não repetiremos Brizola, Arraes, ou Allende."

"E desde quando a urss é modelo de socialismo?" "Assim falou Soljenítsin. Agora, você crente ortodoxo, deve pedir perdão pelos meus pecados, batendo a cabeça no chão. A urss, meu querido, nasceu da barbárie, cercada pela barbárie e reagiu na barbárie. Sei, sedimentou. Concordo plenamente. Lembre-se apenas que as mistificações e violências lá, que não desconto umazinha, fique tranqüilo, são perpetradas em nome de idéias certas. O mundo não é estático. Chegará o momento de uma geração suficientemente distanciada do stalinismo, que comparará teoria à praxis, e você verá o reflorescer da Revolução. Capitalismo, nunca mais, é o meu consolo nesse período de trevas. O Dr. Alceu, que nós prezamos, não deixa o catolicismo porque o Papa Inocêncio III legalizou a tortura, pogroms, e fez, na marra, os judeus usarem a estrela de Davi na lapela, idéia que Hitler pegou do Santo Padre. A Igreja, nos mil de barbárie, copiava e até superava os bárbaros, questão de sobrevivência e corrupção, mas entesourou, a sete chaves, a herança do humanismo grego, que emergiu ao se criarem condições históricas. A História se repetirá, e não em farsa, na urss. E isso pesa menos no meu raciocínio do que você imagina. A urss era modelo de democracia liberal capitalista ao carregar setenta por cento de guerra contra Hitler? Alianças atendem a interesses mútuos, não exigem compatibilidade total. Pense no que os eu a transformariam o mundo se a urss não brecasse, existindo apenas, como alternativa hipotética, embrionária? Numa constelação de Cingapuras, é a que ficaríamos reduzidos. Sem o contrapeso soviético, eu diria que os americanos nos dominariam o tempo de vida do império romano. Você quer essa escravidão? Se houver revolução no Brasil não viraríamos Bulgária. Nosso comunismo dependerá de nós, será a nossa cara. Nós faremos História, em última análise. E entre as âncoras nucleares, a soviética é a anticapitalista."

"É, me lembro daquela noite nietzschiana, em 1969. Desculpe meu atraso em compreender o significado de 'nosso mar completamente exposto diante de nós'. Bem, lamento informar, com todo o devido respeito, que sou um animal terrestre."

"E os humildes herdarão a terra? Já herdaram. Cristo era tautológico. Todo dia esfregam a terra na cara dos humildes."

"Talvez você tenha razão."

O Mario estava quase vazio, quando entramos, e Victor, galíssimo, já na mesa, em conversa com Sílvia Maria, que parece interessadíssima. Maria Tereza me envolveu em braços maternais. Sílvia Maria, sob aparente hipnose de Victor, foi até gentil comigo, "você prendeu meu marido na rua, Hugo?" E, "Janice, esse é o Hugo Mann, um dos mais antigos amigos do Paulo, estudaram juntos". Janice, "leio todas as suas críticas, são fascinantes", Dotson, "eu também, o Brasil certamente produz intelectuais de primeira", e Jack, "não se esqueça do seu cottage, I meant it, estará sempre lá, ao seu inteiro dispor".

Victor explica detalhadamente a Sílvia Maria porque os chineses consideram uma grande honra oferecer a visitantes cabeças de ganso, deliciosamente cozinhadas, Janice pergunta se ele trouxe a receita, o Dotson e ela just love comida chinesa. Maria Tereza me diz ao ouvido: "O Victor é um amor. Maria Amélia passou mal e ele a levou em casa, livrando-a daquele abominável Paulinho".

Jack pergunta a Hesse se é possível encontrar em Minas antigüidades que ainda valham a pena. Hesse, "deve estar tudo à venda, como de costume". Eles se olham. Nós falamos.

Coda

 

Hesse e Victor morreram quando o Jaguar de Hesse mergulhou na altura do Vidigal, explodindo, pouco sobrou. A sociedade carioca está de luto, li nas colunas, por Hesse, naturalmente. Sílvia Maria não quis falar comigo ao telefone. Honrou-me fazendo o Pai apresentar desculpas, amáveis, ainda que formais. Já Audálio deprimidíssimo, me disse que Victor, segundo a polícia, estava no volante, na queda. Perguntei se houve laudo pericial a sério. Não. Ninguém levantou a possibilidade de que não fosse acidente. Audálio ajudara a polícia nessa conclusão, pois ouvira de Hesse que levaria "um tal de Victor" a jantar nos Esquilos, aonde não se vai mais, porque o cara era saudosista. Na certa, beberam demais e Victor cometera a barbeiragem. Victor que desceu a serra de Petrópolis, à noite, sem freios, num porre homérico, e chegamos intactos. Lembro-me que Wandinha participou daquela "montanha russa". Ela se lembrará e duvidará? Não acredito. Não pensamos muito em contrariedades aqui. Não vivemos outra coisa.

No enterro, a que compareceram representantes militares e civis do governo, figurões da imprensa e intelectualidade, "estão chamando nossa geração, Hugo", Tertuliano comentou; a Família em peso; Maria Amélia de preto chorava muito, mal conseguia ficar de pé, segurando no Pai, que flutuava; o Chico, atenciosíssimo ao lado de Sílvia Maria, não pegando nela, que dispensou, cercada dos filhos, em linha impecável. Admirei-a e a discrição e eficiência de Maria Tereza. Nosso padre-prefeito, um ancião, no leito de morte, insistiu em encomendar o corpo do segundo filho dos Hesse, me comovendo de novo. A mãe Hesse, velha, gania baixo, o marido, velho, consentindo em tê-la nos braços. Sadat discursou. O José Carlos me pareceu emocionado. Adriana não veio. Audálio e Doralice se desmancharam. A coroa de Jack era a mais bonita. Encontrei o tio de Victor, o marechal, nós dois a única "família" de Victor, já que Luisinho, não havendo briga, medrou, e Wandinha ficou oculta por elipse. O marechal satisfeito de não vir só à homenagem, e não está caquético, apesar de "ter entrado na faca" duas vezes, preparando-se para a terceira. Mantém-se esperançoso. Um pobre-diabo. Como eu.

Duas semanas depois, a sociedade carioca entrou novamente em luto, agora de par com a americana. Jack mergulhou, caça submarina em Búzios, e não subiu. Falha no caro equipamento, o melhor, que usara freqüente e craque. Há uma versão de que um garoto desconhecido da "gente", carne fresca na praia, o acompanhou na imersão. Se verdade, não apareceu até hoje. Tinha "cara nórdica", disse Maria Amélia, presente e confusa como sempre. Mas não é a primeira que confunde eslavo com nórdico.

O corpo de Jack foi levado de volta aos States para funeral em Rhode Island, onde a família tem um mausoléu no terreno da mansão, vizinha à de Nelson e Happy Rockefeller. Skull and Bonés compareceu em massa e inúmeros capitães de indústria. Ninguém do governo. O New York Times deu-lhe meia página de obituário, ressaltando que era um "apaixonado do Brasil". Hesse ganhara uma nota. Já nossos jornais destacaram a prata da casa. O "meu" saiu em> quatro páginas, a família ilustre de origem alemã, o Santo Inácio, o doutorado brilhante em Yale, a união feliz com uma jovem de tradicional família brasileira, esposo e pai exemplar, um artiguete do sogro definindo Hesse como o "mais arguto exponente da revolução liberal brasileira". Tudo menos o período 1960-1963. A própria Esquerda, de resto, mostrou-se compassiva, ao menos nas minhas vizinhanças, recordando o quanto aprendera do morto quando ele era "nosso". O embaixador americano mandou rezar missa na nova e horrenda catedral. Duas missas, uma pela alma de Hesse, outra pela de Jack. Não fui. Jango morreu também, na ocasião, quer dizer, confirmou fisicamente a morte.

Um mês mais tarde recebi uma arca acompanhada de cartas de Sílvia Maria, "prezado Hugo", etc. Hesse deixara instruções que a arca me fosse remetida, fechada, um legado, que ela cumpria, me desejando "tudo de melhor".

Abri-a. Livros, na maioria duplicata dos meus, uma edição anotadíssima de Soviet Marxism, de Marcuse, a única obra decente de análise da urss como é hoje, e Chamber Music, de Joyce, que ele roubara de mim e eu de outro companheiro de infância, pois dedicada pelo autor a um brasileiro qualquer, em 1920, logo roubei de um ladrão também. Em volta do meu poema favorito, The Ardent Ways, Hesse desenhara lobos. E, de particularmente interessante, dois bujões Merck, lacrados, que guardo no departamento de legumes da minha geladeira, e um Smith & Wesson, 38, cano curto, carregado e com duascargas extras de munição. Atiro razoavelmente. No Leblon, claro, não dá pé. Podem pensar que é revolução.

Brinco bastante de revólver na mão. Raquel não gosta. Reclama que um dia me distraio e aperto o gatilho. Explico a Raquel que não se aperta, se espreme o gatilho.

 

                                                                                Paulo Francis  

 

Desde 1970 vivendo nos Estados Unidos, Franz Paulo Trannin de Matta Heilborn, ou simplesmente Paulo Francis, escritor e jornalista, nasceu no Rio de Janeiro a 2 de setembro de 1930, e é conhecido por escrever nas colunas dos jornais sobre os mais variados assuntos, revelando um conhecimento enciclopédico.

Começou no jornalismo em 1957. Antes disso, aos vinte e dois anos, pelos idos de 1952, foi ator do Teatro dos Estudantes, levado por Paschoal Carlos Magno. Com o teatro, Francis viajou pelo nordeste todo e foi tomando contato com a realidade brasileira, tão diferente do ambiente da Zona Sul carioca onde nascera e se criara. Foi Paschoal Carlos Magno, alias, quem lhe abreviou o nome, por questões artísticas.

Em 1957, Francis começou a escrever na "Revista da Semana", para onde foi levado pelo combativo jornalista Hélio Fernandes. Passou também pelo "Diário Carioca", "Jornal do Cinema", revista "Senhor", "Última Hora", "Jornal do Brasil", "Correio da Manhã", "Visão", "Realidade", "Tribuna da Imprensa", "Manchete", "O Cruzeiro", e foi colunista do "Pasquim".

 

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