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Depois de perder os pais num acidente, aos oito anos de idade, Jeremy criou o hábito de se aproximar dos pais de seus colegas, com quem gostava de tomar chá e conversar. Órfão, morando com a irmã, Jean, que vivia um conturbado casamento com um sujeito chamado Harper, era natural que ele também se identificasse com outra criança abandonada: sua sobrinha Sally, de três anos. Citados por Jeremy no prefácio do livro, esses personagens não mais aparecerão na história depois disso. Servem, no entanto, para explicar O obsessivo interesse de Jeremy pelo relacionamento amargo de June e Bernard Tremaine, pais de sua mulher, Jenny Escrito na primeira pessoa, como se fosse um livro de memórias, esse romance de um dos mais brilhantes representantes da nova geração de escritores ingleses fala do conflito entre intelecto e sentimento, fé e razão, ódio e amor.
Após um encontro inusitado com dois cães negros, numa estradinha de campanha do interior da França, no início de seu casamento, June escolhe a religião como meio de atingir a redenção e se distancia do pragmatismo de Bernard. O que aconteceu verdadeiramente naquele episódio remoto, Ian McEwan administra, com doses de suspense, até o final do livro. Mais importante é mostrar que é possível fazer romance de idéias, sendo sutil e devastador ao mesmo tempo.
PREFÁCIO
Depois que perdi meus pais num acidente de carro, quando tinha oito anos, passei a me interessar pelos pais dos outros. Esse interesse foi especialmente intenso
na adolescência, quando a maioria dos meus amigos procurava se desfazer dos pais e eu me arrumava muito bem com O que eles jogavam fora. A vizinhança estava cheia
de pais e mães rejeitados que se sentiam felizes por ter pelo menos alguém com dezessete anos por perto para apreciar suas piadas, seus conselhos, sua cozinha e
até mesmo seu dinheiro. Ao mesmo tempo eu era uma espécie de pai também. Meu ambiente mais próximo era naquele tempo o casamento recente e em estado de desintegração
da minha irmã Jean com um cara chamado Harper.
Minha protegida e amiga íntima naquela família infeliz era Sally, de três anos, a única filha
de Jean. As crises e reconciliações que explodiam por toda a parte no grande apartamento - Jean já havia recebido a metade da herança; eu não tinha idade ainda para
dispor da minha outra metade - isolavam Sally. Era natural que eu me identificasse com uma criança abandonada, e assim, quando não queríamos participar da selvageria
que nos rodeava, fugíamos para o quarto espaçoso que dava para o jardim, com uma pequena cozinha anexa, ela com seus brinquedos, eu com meus discos. Tomar conta
de Sally era bom para mim. Obrigava-me a ser civilizado, distraía-me dos meus problemas. Dez anos se passariam até eu me sentir outra vez enraizado, como naquele
tempo. O que eu mais apreciava eram as noites em que Jean e Harper estavam fora de casa, especialmente no verão, quando eu lia para Sally até ela dormir e depois
fazia meu dever de casa na mesa grande, em frente às portas de vidro abertas para o cheiro adocicado das plantas perfumadas e as poeiras do tráfego. Eu estava estudando
para os cursos intensivos de nível A na Beamish, em Elgin Crescent, uma escola preparatória para a universidade que se auto-intitulava com o nome pomposo de academia.
Quando eu olhava para trás e via Sally na parte escura do quarto, deitada de costas, com os lençóis e os ursinhos de pelúcia debaixo dos joelhos, pernas e braços
abertos, numa atitude que, na minha opinião, era de absoluta e infundada confiança na benevolência do seu mundo, invadia-me uma sensação avassaladora e dolorosa
de proteção, um aperto no coração, e estou certo de que é por isso que tenho hoje quatro filhos.
De uma coisa nunca duvidei. Em algum lugar de nossas mentes, permanecemos órfãos para o resto da vida e cuidar de crianças é uma forma de cuidar de nós mesmos.
Inesperadamente Jean irrompia no nosso refúgio, envolta numa nuvem de culpa ou de amor, por ter feito as pazes com Harper e levava Sally para a outra extremidade
do apartamento, com murmúrios amorosos, abraços apertados e promessas vãs. Nesses momentos as trevas me envolviam com a sensação vazia de não pertencer a lugar nenhum.
Ao invés de me fechar para o mundo, ou ver televisão, como os outros garotos, eu saía para
a noite, pela Ladbroke Grove, em direção à casa que, naquele momento, me oferecia mais calor. As imagens que me vêm à mente depois de mais de vinte e cinco anos
são de mansões de cores claras, algumas com a tinta descascada, outras impecáveis, Powis Square, talvez, e uma luz amarela e forte quando a porta da frente se abria,
revelando o rosto pálido de um adolescente, com um metro e oitenta de altura, arrastando timidamente o sapato Chelsea no chão. Oh, boa noite, sra. Langley. Desculpe
incomodar, Toby está?
Na maioria das vezes, Toby está com uma das suas namoradas, ou no bar com os amigos e eu desço de costas os degraus da entrada, pedindo desculpas e a sra.
Langley me chama.
- Jeremy, não quer entrar assim mesmo? Venha tomar um drinque com dois velhos chatos. Sei que Tom vai gostar de vê-lo.
As objeções costumeiras e lá está o estranho no ninho alheio, com meu mais de 1,8Om de altura entro e sou conduzido a uma sala abarrotada de livros entre
punhais sírios, uma máscara de xamã, uma zarabatana da Amazônia com dardos envenenados com curare. O pai de Toby, de quarenta e três, anos, à luz de uma lâmpada
de mesa lê Proust no original ou Tucídides, ou Heine, ao lado da janela aberta. Ele se levanta sorrindo e estende a mão.
- Jeremy! É um prazer vê-lo. Tome um scotch comigo. Sente ali e ouça isto, depois diga o que você acha. Ansioso para uma conversa relacionada com as matérias
que estou estudando (Francês, História, Inglês, Latim), ele volta um pouco atrás no livro, para um trecho extremamente complicado de À sombra das raparigas em flor,
e eu igualmente ansioso para me mostrar e ser aceito, enfrento O desafio. Ele me corrige o francês com bom humor, e mais tarde, talvez consultemos o Scott-Moncrieff,
a sra. Langley aparece com sanduíche e chá e eles perguntam como vai Sally, e querem saber as últimas notícias
sobre Jean e Harper, que não conhecem. Tom Langley, diplomata do Ministério das Relações Exteriores, estava novamente em casa, em Whitehall, depois de três missões
no exterior. Brenda Langley administrava sua bela casa e dava aulas de cravo e piano. Como a maioria dos pais dos meus amigos da Academia Beamish, eram cultos e
estavam bem de vida. Para mim, era uma combinação preciosa e invejável, minha formação baseava-se numa renda medíocre e não em livros. Porém, Toby Langley não apreciava
os pais como
devia. Os modos civilizados deles, a curiosidade intelectual, a mente aberta, além da casa espaçosa e sempre em ordem, e uma infância interessante no Oriente Médio,
no Quênia e na Venezuela, tudo isso o aborrecia. Ele fazia sem muito entusiasmo dois cursos de nível A (Matemática e Arte) e dizia que não tinha intenção de ir para
a universidade. Cultivava amigos que moravam nos novos prédios de apartamentos de Shepherd's Bush e suas, namoradas eram garçonetes e vendedoras de lojas com penteados
complicados e duros de laquê. Toby procurava o caos e problemas ao sair com várias moças ao mesmo tempo.
Adotou um modo de falar de retardado, que estava se tornando um hábito, com uma pronúncia arrastada, do fundo da garganta. Como Toby era meu amigo, eu não dizia
nada, mas ele percebia a minha desaprovação. Apesar do pretexto de procurar Toby e da cumplicidade da sra. Langley com o protocolo dos "acho melhor você entrar,
assim mesmo", eu era sempre bem-vindo em Powis Square. Às vezes perguntavam minha opinião sobre a conduta desordenada de Toby e eu - emproado e desleal - falava
sobre a necessidade de Toby de "se encontrar". Eu frequentava assim também a casa dos Silversmith, marido e mulher psicanalistas neofreudianos, com idéias espantosas
sobre sexo, uma geladeira padrão americano cheia de coisas deliciosas e três filhos adolescentes, duas meninas e um menino, três idiotas doidos que comandavam um
bando que roubava e extorquia dinheiro em lojas e playgrounds de Kensal Rise. Eu ficava muito à vontade também na casa grande e bagunçada do meu amigo Joseph Nugent,
também da Academia Beamisli. O pai dele era oceanógrafo e comandava expedições aos mares desconhecidos do mundo, a mãe foi a primeira mulher comunista do Daily Telegraph,
mas, para Joe, eles eram incrivelmente chatos e ele preferia a gangue de Notting Hill, cuja maior felicidade era polir os múltiplos faróis das suas lambretas.
Seriam esses pais atraentes para mim porque não eram os meus? Por mais que eu tente, não posso dizer sim, pois eram todos sinceramente amáveis e amistosos.
Eles me interessavam. Eu aprendia muita coisa. Com os Langley aprendi as práticas sacrificiais no deserto da Arábia, melhorei o meu latim e o meu francês e pela
primeira vez ouvi as Variações "Goldberg". Na casa dos Silversmith ouvi falar sobre o perverso polimorfo, encantava-me com as histórias de Dora, do pequeno Hans
e do Homem Lobo, e comia salmão defumado, bagel e requeijão, latkes e borscht. Janet Nugent contou-me todo o escândalo Profumo e me convenceu a aprender taquigrafia;
seu marido certa vez imitou um homem com o mal-dos-mergulhadores. Todos me tratavam como adulto. Serviam drinques, ofereciam cigarros, pediam a minha opinião. Todos
tinham quarenta e poucos anos, eram tolerantes, descontraídos, cheios de energia. Foi Cy Silversmith quem me ensinou a jogar ténis. Se qualquer um desses casais
fosse meus pais (bem que eu queria), tenho certeza de que os amaria mais ainda. E se meus pais estivessem vivos, eu não
estaria tentando me libertar, como todos os outros? Aqui também, não posso responder afirmativamente. O que os meus amigos procuravam parecia-me a própria antítese
da liberdade, um salto masoquista para baixo na escala social. Além disso, era irritantemente previsível o fato de os rapazes da minha idade, especialmente Toby,
considerarem minha vida doméstica um verdadeiro paraíso: o fedor do nosso apartamento que nunca era limpo, o gim licencioso no meio da manhã, minha irmã belíssima
que acendia um cigarro no
outro, parecendo Jean Harlow, uma das primeiras da sua geração a usar minissaia, o drama adulto da violência no casamento e o sádico Harper, o fetichista de couro
com tatuagens vermelhas e negras de galos de briga nos bíceps avantajados, e ninguém para criticar a desordem do meu quarto, minhas roupas, minha dieta, por onde
eu andava, meu aproveitamento na escola ou os meus planos futuros, nem para se preocupar com minha saúde mental ou a dos meus dentes. O que mais eu podia desejar?
Nada, a não ser, eles talvez concedessem, me livrar daquela garota que vivia grudada em mim.
Tão grande era a simetria de nossas respectivas insatisfações que, em certa noite de inverno, Toby estava na Minha casa, fingindo que
descansava na cozinha gelada e esquálida, procurando impressionar Jean, que o detestava,
com sua pronúncia de "povo" - enquanto eu, confortavelmente instalado numa Chesterfield, na frente da lareira acesa, com um copo de uísque do seu pai aquecendo a
minha mão, os pés sem sapatos sobre o belo bokhara que Toby definia como um símbolo de estupro cultural, ouvia Tom Langley discorrer sobre uma aranha venenosa e
sobre os
estertores mortais de uma secretária no primeiro andar da Embaixada Britânica, em Caracas, enquanto, no outro lado do corredor Brenda ouvia um dos rags sincopados
de Scott Joplin, que começavam a ser redescobertos e ainda não haviam saturado os ouvidos da juventude. Sei perfeitamente que muita coisa do que acabo de descrever
depõe contra mim, que é Toby, perseguindo em circunstâncias impossíveis uma bela e doida jovem, completamente fora do seu alcance, suas excursões ilegais e as de
Jo e dos filhos dos Silversmith que denotam um saudável apetite pela vida, e que o gosto afetado de um rapaz de dezessete anos pelo conforto e pela conversa dos
mais velhos sugere uma mente desinteressante e sem brilho; sei também que, ao descrever esse período da minha vida, inconscientemente imitei, uma vez ou outra, não
apenas a atitude superior e desdenhosa do meu ego adolescente, como também O modo de falar bastante formal, distante e labiríntico, mediocremente baseado na minha
escassa leitura de Proust, com o qual eu devia me apresentar ao mundo como um intelectual. Tudo que posso dizer a favor da minha
juventude é que, embora eu mal percebesse, naquela época, sentia terrivelmente a falta dos
meus pais. Precisava construir minhas defesas. A atitude pomposa era uma delas, outra era meu desdém afetado pelas atividades dos meus amigos. Eles podiam se desviar
livremente porque tinham segurança; eu precisava dos lares que eles abandonavam. Eu estava preparado para passar sem a companhia feminina, em parte porque temia
que me distraísse dos estudos. Estava certo de que o caminho mais seguro para sair da minha situação - isto é, morar com Jean e Harper - era a universidade, e para
isso eu precisava dos níveis A. Eu trabalhava como um fanático, estudando duas, três e até quatro horas por noite, muito antes dos exames finais. Outra razão da
minha timidez era que as primeiras investidas da minha
irmã nessa direção, quando eu tinha onze anos e ela quinze e morávamos com nossa tia, foram tão ruidosamente bem sucedidas, com uma horda de anônimos entrando e
saindo do quarto que devíamos partilhar (nossa tia, finalmente, nos expulsou), que eu fiquei completamente acovardado. Naquela combinação de habilidade e experiência
comum entre irmãos, Jean abriu suas belas pernas e seus belos braços - para adaptar a descrição de Kafka - sobre meu mapa-múndi e apagou o território chamado "sexo",
de modo que fui obrigado a viajar para outras paragens - para ilhas obscuras chamadas Catulo, Proust, Powis Square. E eu tinha meu caso de amor com Sally. Com ela
sentia-me responsável e intato e não precisava de mais ninguém. Sally era uma menininha pálida. Ninguém a levava para passear. Quando eu chegava da escola, nunca
estava disposto e Jean não era grande amante do ar livre. A maior parte do tempo eu brincava com Sally no quarto espaçoso. Ela
era imperiosa, como todas as meninas de três anos, "Não na cadeira! Sente no chão comigo!" Brincávamos de médico, de casinha, de perdido no bosque ou de navegar
para um novo lugar. Sally narrava com voz quase embargada nossos movimentos, nossos motivos, nossas metamorfoses repentinas. "Você não é um monstro, você é um rei!"
Então, da outra extremidade do apartamento chegava o grito de raiva de Harper, seguido por um berro de dor de Jean, e Sally com uma careta perfeitamente adulta,
um erguer de ombros maravilhosamente oportuno, dizia com o tom de voz puro e melodioso ainda não habituado à construção gramatical, "Mamãe e papai! Que bobos estão
sendo outra vez!"
E estava certa. Harper era um guarda de segurança que afirmava estar fazendo mestrado em
antropologia. Jean casou com ele quando tinha apenas vinte anos e Sally dezoito meses. No ano seguinte, quando Jean recebeu O total da sua herança, ela comprou o
apartamento e passou a viver da renda do que sobrou. Harper abandonou o emprego e os dois passavam o dia inteiro bebendo, brigando, fazendo as pazes. Harper tinha
um dom para a violência. Muitas vezes olhei embaraçado para o rosto vermelho ou para os lábios inchados de minha irmã e pensei em obscuros códigos masculinos que
me obrigavam a desafiar meu cunhado e defender a honra de Jean. Mas outras vezes eu chegava na cozinha e encontrava Jean
sentada à mesa, lendo uma revista e fumando, enquanto Harper, só de cueca, com uma meia dúzia de marcas vermelhas nas costas, humildemente lavava os pratos. Agradecido,
eu reconhecia que aquilo era uma coisa muito além do meu alcance e voltava para Sally e os jogos que eu compreendia. Jamais compreendi por que não descobri
ou sequer desconfiei de que a violência de Jean e Harper era extensiva a Sally. O fato dela só ter conseguido falar sobre isso vinte anos depois prova o quanto o
sofrimento pode isolar uma criança. Naquele tempo eu não sabia coisa alguma sobre O relacionamento de adultos com crianças
e talvez nem quisesse saber. Eu ia deixá-los em breve e o sentimento de culpa começava a crescer em mim. No fim daquele verão, logo depois que completei dezoito
anos, Harper foi embora para sempre e consegui meus níveis A e meu lugar em Oxford. Um mês depois, quando levei meus livros e meus discos para o furgão de um amigo,
eu deveria estar delirando de felicidade. Meu plano de dois anos dera certo, eu estava saindo, estava livre.
Mas as perguntas insistentes e desconfiadas de Sally, andando de um lado para o outro atrás de mim entre o quarto e a calçada, acusavam-me claramente de traição.
"Onde você vai? Por que voçe vai? Quando vai voltar?" Percebendo que eu procurava me esquivar da última pergunta com um silêncio pesado, ela a repetiu vezes sem
conta. E quando tentou me fazer desistir do diploma de História sugerindo, com entusiasmo otimista, que podíamos brincar de navegar para um novo lugar, eu larguei
os livros que carregava, corri para o
furgão, sentei no banco do passageiro e chorei. Estava certo de compreender perfeitamente o que Sally sentia. Era quase meio-dia e Jean dormia ainda, embalada pelo
gim e pelos comprimidos com ainda uma figura pública que fazia toda sua vida social em que procurava se consolar da partida de Harper. Eu ia acordá-la antes de partir,
mas, de um certo aspecto muito importante, Sally estava sozinha. E está assim até hoje.
Sally, Jean e Harper não desempenhavam nenhum papel no que vou narrar a seguir. Nem os Langley, os Nugent e os Silversmith. Eu os deixei para trás. Minha
culpa, meu sentimento de traição não
permitiram que eu voltasse a Notting Hill, nem para um fim de semana. Eu não suportaria ter de me separar novamente de Sally. A idéia de que estava infligindo a
ela a mesma dor da perda que eu havia sofrido intensificava a minha solidão, e empalideceu meu entusiasmo no primeiro período da universidade. Tornei-me um aluno
quieto e deprimido, um daqueles tipos chatos praticamente
invisíveis para os seus colegas, aparentemente excluído, pelas próprias leis da natureza, do processo de fazer amigos. Procurei o lar mais próximo. Era em North
Oxford e pertencia a um tutor paternal e sua mulher. Durante um breve espaço de tempo eu fui brilhante e algumas pessoas disseram que eu era inteligente. Mas isso
não me impediu de abandonar, primeiro North Oxford, e
depois, no meu quarto período, a universidade. Durante muitos anos eu continuei abandonado -
endereços, empregos, amigos, amantes. Ocasionalmente eu conseguia obscurecer minha sensação irredutível e infantil de não pertencer a coisa alguma, fazendo amizade
com os pais de alguém. Era convidado a entrar, voltava à vida e ia embora.
Essa triste loucura só foi terminar com o meu casamento, aos trinta e poucos anos, com Jenny Tremaine. Minha existência começou. O amor, para citar Sylvia
Plath, me pôs no caminho da vida. Cheguei à vida definitivamente, ou melhor, a vida veio a mim. Eu devia ter aprendido da experiência
com Sally que o melhor meio de recobrar um progenitor perdido é tornar-se um progenitor; que para socorrer a criança abandonada que vive no nosso íntimo, nada melhor
do que ter filhos para amar. E justamente quando eu não mais precisava deles, adquiri novos pais, os meus sogros, June e Bernard Tremaine. Mas não havia um lar.
Quando os conheci, viviam em países diferentes e mal se falavam. June há muito tempo tinha se retirado para O topo de uma montanha na França e estava prestes a cair
gravemente doente. Bernard era
ainda uma figura pública que fazia toda sua vida social em restaurantes. Raramente viam os filhos. Quanto a Jenny e os dois irmãos, já tinham desistido dos pais.
Não nos livramos de uma hora para outra dos hábitos de toda uma vida. Para desgosto de Jenny, insisti em manter amizade com June e Bernard. Nas nossas conversas,
durante muitos anos, descobri que o vazio emocional, a sensação de não pertencer a lugar algum que me afligiu dos oito aos trinta e sete anos, teve uma importante
conseqüência intelectual. Eu não era ligado a ninguém, não acreditava em coisa alguma. Não que duvidasse de tudo, ou que estivesse armado com o ceticismo útil da
curiosidade racional, ou que fosse capaz de analisar todos os lados de um argumento; simplesmente não me identificava com nenhuma causa, nenhum princípio duradouro,
nenhuma idéia fundamental, nenhuma entidade transcendente cuja existência eu pudesse verdadeira e apaixonadamente garantir.
Não era esse o caso de June e Bernard. Eles começaram juntos, como comunistas, depois seguiram caminhos diferentes. Mas sua capacidade e o apetite para acreditar
jamais diminuíram. Bernard era um entomologista extremamente talentoso. Durante toda a vida honrou seu compromisso com as exultantes e limitadas certezas da ciência.
Substituiu o comunismo por trinta anos de defesa devotada de numerosas causas em favor da reforma política e social. June descobriu Deus em 1946, durante um encontro
com o mal na forma de dois cães. (Bernard achava essa construção dos eventos quase embaraçosa demais para ser relatada.) Um princípio maligno, uma força humana capaz
de avançar periodicamente para dominar e destruir a vida de certos indivíduos, depois recuar e esperar a próxima ocasião; um breve intervalo a separa de um espírito
luminoso e compensador, benigno e todo-poderoso, que reside em nós e é acessível a todos; talvez não tanto um intervalo mas um reconhecimento simultâneo. June sentiu
que os dois princípios eram incompatíveis com o materialismo da sua política e abandonou o partido.
Não sei dizer se os cães negros de June devem ser vistos como um símbolo de grande força, uma frase oportuna e fácil de ser lembrada, uma prova da sua credulidade
ou a manifestação de um poder que existe realmente. Neste relato incluí certos incidentes da
minha vida - em Berlim, Majdanek, Les Salces e St. Maurice de Navacelles - igualmente abertos às interpretações de June e de Bernard. Racionalista e mística, comissário
do povo e iogue, associativo e abstêmio, cientista e intuitivo, Bernard e June são as extremidades, os pólos gêmeos ao longo de cujo eixo escorregadio minha descrença
desliza sem descanso. Na companhia de Bernard, sempre senti que faltava um elemento na
sua avaliação do mundo, e que June tinha a chave. Eu duvidava da segurança do seu ceticismo, do seu insensível ateísmo. Era arrogante demais, havia muito a ser revelado,
e muito era negado. Conversando com June, eu me surpreendia pensando como Bernard, sufocado por suas expressões de fé, irritado com a pressuposição implícita de
todos os fiéis de que são bons porque acreditam no que acreditam, que a fé é uma virtude, e por extensão,
a descrença é desprezível, ou pelo menos, digna de pena.
Não é o caso de argumentar que o pensamento racional e a intuição espiritual são domínios separados e que a oposição entre os dois é um equívoco. Bernard
e June muitas vezes me falavam de idéias que jamais poderiam ser postas uma ao lado da outra. Bernard, por exemplo, estava certo de que não há direção, nenhum padrão
na vida humana ou nos destinos dos homens a não ser os que
são impostos por nossas próprias mentes. June não aceitava isso. A vida tinha um objetivo e era de nosso interesse estarmos abertos para ele. Não se trata também
de sugerir que as duas idéias estão certas. Na minha opinião, acreditar em tudo, sem fazer escolha, é o mesmo que não acreditar em coisa alguma. Não estou bem certo
se a nossa civilização nesta passagem do milênio está ou não amaldiçoada por excesso ou falta de fé, se pessoas
como Bernard e June ou pessoas como eu são responsáveis pelos problemas da humanidade. Mas estaria negando minha experiência se não declarasse minha crença na possibilidade
do amor transformar e redimir a vida. Dedico este livro a minha mulher, Jenny, e a Sally, minha sobrinha, que continua a sofrer consequências da infância. Que ela
possa também encontrar este amor.
Casei numa família dividida, onde os filhos, por um instinto de autopreservação, haviam, até certo ponto, dado as costas aos pais. Peço desculpas a Jenny
e a seus irmãos pela infelicidade que provoquei com a minha tendência
de invadir lares, como o pássaro que põe os ovos em ninho alheio. Tomei algumas liberdades, a maior delas a reprodução de certas conversas de caráter particular.
Porém, foram tão raras as ocasiões em que admiti para os outros e para mim mesmo que "tinha posto mãos à obra", que algumas indiscrições tornaram-se necessárias.
Espero que O espírito de June e o de Bernard também - se é que, contra todas as suas convicções, ainda persista a parte essencial da sua consciência -
possam me perdoar.
PRIMEIRA PARTE - WILTSHIR
A fotografia que June Tremaine tem ao lado da cama serve para comunicar a ela, e aos outros, a jovem bonitinha que, ao contrário do marido, não dá nenhuma indicação
de como seria no futuro. O instantâneo é de 1946, um ou dois dias depois do seu casamento e uma semana antes de partirem para a lua-de-mel na Itália e na França.
O casal de braços dados está na frente do Museu Britânico. Talvez fosse o intervalo para o almoço, pois ambos
trabalhavam nas proximidades, e só tiveram licença para deixar os empregos alguns dias antes da viagem. Estão inclinados um para o outro, com a preocupação evidente
de não ultrapassar os limites laterais da fotografia. Os sorrisos são de verdadeiro prazer. Bernard jamais poderia passar desapercebido. Naquele tempo, como sempre,
um metro e noventa de altura, mãos e pés muito grandes, a linha do queixo marcando absurdamente a sua boa índole, orelhas enormes de abano, mais engraçadas por causa
do cabelo à escovinha. Os estragos provocados pelos quarenta e três anos são apenas os previsíveis e à margem - cabelo um pouco mais ralo, sobrancelhas mais grossas,
a pele mais áspera -, ao passo que a essência, a espantosa visão, é a mesma, seja a do gigante inclinado de 1946 como a de 1989, quando ele me pediu para levá-lo
a Berlim.
O rosto de June, porém, como a sua vida, sofreu uma grande modificação e mal se pode divisar no instantâneo o rosto benignamente envelhecido e enrugado que,
num sorriso de boas-vindas, nos faz entrar na sua sala particular. A mulher de vinte e cinco anos tem um
rosto redondo e doce e um sorriso jovial. O permanente feito para a viagem está crespo demais, artificial demais e não combinava com ela. O sol da primavera ilumina
os fios rebeldes que já começam a se libertar. Está com uma jaqueta curta, com enchimento nos ombros, e saia pregueada - a tímida extravagância do tecido acompanhando
o new look do pós-guerra. A blusa
branca tem um ousado decote em V que revela a linha entre os seios e a gola está dobrada sobre a da jaqueta, dando aquela aparência descontraída e saudavelmente
inglesa das garotas dos pôsteres. Desde 1938 ela pertencia ao Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Segura a bolsa com um dos braços contra O corpo e dá o outro
para o seu homem. Apóia-se nele, e sua cabeça chega bem abaixo do ombro de Bernard.
A fotografia está agora na cozinha de nossa casa, em Languedoc. Eu a estudo muitas vezes, quase sempre quando estou sozinho. Jenny, minha mulher, filha de
June, suspeita da minha natureza predadora e irrita-se com o fascínio que sinto por seus pais. Ela passou um bom tempo tentando se livrar e sente, com razão, que
meu interesse a está arrastando de volta para eles. Aproximo o rosto, tentando ver a vida futura, O rosto futuro, a determinação que acompanhou um singular ato de
coragem. O sorriso alegre provoca uma pequena saliência na testa lisa, acima do espaço entre as sobrancelhas. Mais tarde tornou-se traço dominante do rosto enrugado,
uma linha vertical que ia desde a parte superior do nariz até o alto da testa. Talvez seja apenas imaginação minha, a rigidez sob o sorriso, escondida na linha do
queixo, uma firmeza, uma fixidez de opinião, um otimismo científico em relação ao futuro. A fotografia foi tirada na manhã em que June e Bernard se filiaram ao Partido
Comunista da Grã-Bretanha, na sede de Gratton Street. Estão abandonando os empregos e portanto livres para declarar sua fidelidade, abalada pela guerra. Agora, quando
muitos têm dúvidas sobre a hesitação do partido - seria a guerra uma causa nobre, antifascista e libertadora ou uma agressão imperialista predadora? - e outros estão
se retirando das suas fileiras, June e Bernard resolveram dar um salto definitivo. Além de suas esperanças de um mundo são e justo, livre da guerra e da opressão
de classe, acreditam que como membros do partido estão se associando a tudo que é jovem, cheio de vida, inteligente e ousado. Vão atravessar o canal, a caminho do
caos do norte da Europa, que foram aconselhados a não visitar. Mas
estão decididos a pôr à prova suas novas liberdades, pessoal e geográfica. De Calais, seguirão para O sul, para a primavera no Mediterrâneo. O mundo é novo e está
em paz, o fascismo foi a prova inegável da crise do capitalismo, a revolução redentora está próxima e eles são jovens, recém-casados e apaixonados.
Bernard continuou a pertencer ao partido, à custa de muito sofrimento, até a invasão da Hungria pelos soviéticos, em 1956. Então, compreendeu que há muito tempo
devia ter se desligado. Essa mudança representou uma lógica bem-fundada, uma história de desilusão de uma geração inteira. Mas June desistiu alguns meses depois
do casamento, até o acontecimento, na sua lua-de-mel, que dá o título a este livro, e a mudança foi profunda, uma metempsicose cartografada nas linhas do seu rosto.
Como foi que um rosto redondo ficou tão comprido? Teria sido a vida, e não os genes, que fez criar raízes naquela linha acima das sobrancelhas, empurradas pelo sorriso,
produzindo a árvore de rugas que ia até o alto da testa? A idade não produziu nada de parecido nos pais dela. No fim da vida, quando
já estava internada em uma clínica, seu rosto podia ser comparado ao do velho Auden. Talvez anos do sol do Mediterrâneo tenham ressecado e enrugado a pele e anos
de isolamento e meditação distendido os traços, para depois dobrá-los. O nariz encompridou com o rosto, bem como o queixo, e depois, como se tivessem mudado de opinião
e tentado voltar, acabaram fazendo uma curva. Em repouso, O rosto tinha uma aparência cinzelada e
sepulcral. Era uma estátua, uma máscara recortada por um xamã para afugentar o espírito do mal. Talvez houvesse alguma verdade simples nessa última suposição. June
podia ter adaptado o próprio rosto à convicção de que havia enfrentado e fora testada por uma forma simbólica do mal. "Não, seu cretino. Não simbólica!" Posso ouvi-la,
me corrigindo. "Literal, anedótica, verdadeira. Fique sabendo que eu quase morri!"
Não sei se é verdade ou não, mas na minha lembrança, todas as vezes que a visitei na clínica, durante a primavera e o verão de 1987, chovia e ventava. Talvez
fosse um único dia de chuva que apagou todos os outros da minha mente. Tenho a impressão de sempre precisar correr do estacionamento distante, ao lado dos antigos
estábulos, até a entrada da clínica - uma casa de fazenda da época vitoriana. Os castanheiros-da-índia rugiam e tremiam, a grama crescida estava amassada contra
o solo, com a face prateada para cima. Eu cobria a cabeça com o paletó, irritado e desapontado com aquele verão quente e úmido. Parava no hall de entrada para recuperar
o fôlego e para me acalmar. Seria realmente só a chuva? Eu gostava de ver June, mas aquele lugar me deprimia. A sensação de cansaço ia até os ossos. Os painéis de
carvalho me sufocavam de todos os lados e o carpete, com espirais cinéticas vermelhas e amarelo-fosco, parecia se erguer para invadir meus olhos e limitar minha
respiração. O ar parado, mantido inalterável graças a um sistema de regulação das portas à prova de incêndio, mantinha em suspensão
os odores de corpos, roupas, perfumes, frituras do desjejum. A escassez de oxigênio me fazia bocejar. Será que teria forças para a visita? Eu podia passar pelo balcão
vazio da recepcionista e vagar pelos corredores até encontrar um quarto vazio e uma cama arrumada. Deitaria entre os lençóis padronizados. As formalidades para a
internação seriam preenchidas depois, levadas num carrinho com rodas de borracha. Mais tarde, podia tomar um sedativo e dormir outra vez. Os anos passariam...
Nesse ponto, um estremecimento de pânico me fez voltar ao objetivo da visita. Fui até o balcão e bati com a palma da mão na campainha. Outra impropriedade,
esta antiga campainha de hotel. A atmosfera pretendida era a de um refúgio no campo; O efeito conseguido era o de uma cama grande demais com café da manhã, onde
o "bar" é um armário trancado na sala de jantar, aberto das sete às
oito horas da noite. E por trás dessas fachadas divergentes estava a realidade - uma clínica extremamente lucrativa, que não se atrevia em incluir na sua literatura
informativa sua verdadeira especialidade, tratamento de doentes terminais. Uma pequena complicação na cláusula de letras miúdas da apólice de seguro e a surpreendente
severidade da companhia seguradora evitaram que June fosse para o hospício, como queria. Tudo que dizia respeito à sua volta à Inglaterra há alguns anos tinha sido
complicado e deprimente. Primeiro a estrada tortuosa que percorremos até a confirmação final, com as diferentes opiniões de especialistas no caminho, de que June
tinha uma doença para a qual não existia tratamento, uma forma rara de leucemia; O sofrimento de Bernard, transportando a bagagem dela da França, depois de separar
o que não servia; finanças, bens, acomodações, uma briga na
justiça com a companhia de seguros que teve de ser abandonada; uma série de dificuldades na venda do apartamento de June em Londres; longas viagens de carro ao norte
do país para o tratamento com um
homem idoso que afirmava ter o poder de curar com as mãos. June insultou o homem e as mãos que curavam quase a esbofetearam. O primeiro ano do meu casamento foi
completamente obscurecido por isso tudo. Jenny e eu, seus irmãos e os amigos de June e Bernard, fomos todos apanhados pela voragem, um desgaste furioso de energia
que tomávamos por eficiência. Só quando Jenny teve nosso primeiro filho, Alexander, em 1983, nós dois - Jenny e eu - finalmente recobramos a razão. A recepcionista
apareceu e me deu o livro para assinar. Cinco anos e June continuava viva. Podia ter passado esse tempo no seu apartamento de Tottenham Court Road. Devia ter ficado
na França. Como dizia Bernard, ela estava demorando tanto para morrer quanto qualquer um de nós. Mas o apartamento fora vendido, tudo estava organizado e o espaço
que ela havia criado em torno de si, na sua vida, fora fechado, preenchido por nossos valiosos esforços. Ela preferiu ficar numa clínica onde os funcionários e os
residentes a caminho da morte consolavam-se com revistas e programas de auditório na televisão e novelas que gritavam o dia todo das paredes brilhantes, sem quadros
e sem livros, da sala de recreação. Nossa louca atividade para tomar todas as providências não passou de mera fuga. Ninguém queria aceitar o fato doloroso. Ninguém,
a não ser June. Quando ela voltou da França, antes de encontrarmos a clínica, ficou na casa de Bernard e trabalhou no livro que esperava poder concluir. Sem dúvida
praticava também as meditações que descrevia no seu popular panfleto "Dez Meditações". Deixou a nosso cargo todas as providências de ordem prática. Com a perda das
forças bem mais lentas do que os médicos previam, aceitou também de boa vontade a Clínica Chestnut Reach como sua única responsabilidade. Não queria sair, não queria
voltar para o mundo. Afirmava que sua vida estava eficientemente simplificada, o isolamento numa casa de telemaníacos a agradava, até mesmo lhe fazia bem. Além disso,
era o seu destino.
A despeito do que Bernard dizia, agora, em 1987, ela estava perdendo as forças. Nesse ano ela passou a maior parte dos dias dormindo. Embora afirmasse o
contrário, só escrevia algumas anotações e assim mesmo muito pouco. Não percorria mais a pé a trilha maltratada, no meio do bosque, que levava à cidade mais próxima.
Estava com sessenta e sete anos. Eu, aos quarenta, chegava à idade em que se começa a diferenciar os
estágios da idade mais avançada. Houve um tempo em que não me parecia nada trágico uma pessoa com mais de sessenta anos estar doente ou à morte, nada que valesse
a pena algum esforço para evitar ou para lamentar. Você fica velho, você morre. Agora começava a compreender que nos agarramos à vida em qualquer idade - quarenta,
sessenta, oitenta - até sermos derrotados, e que sessenta e sete podia ser cedo demais para o fim do jogo.
June ainda precisava fazer muita coisa. Ela parecia bem para a idade quando estava no sul da França, aquele rosto de Ilha da Páscoa sob o chapéu de palha, a autoridade
natural nos movimentos comedidos ao inspecionar, no começo da noite, o seu jardim, as sestas diárias de acordo com o costume local. Andando sobre as espirais do
carpete bilioso que se estendia além do hall de entrada, passando sob a grade metálica da porta de vidro de incêndio e seguindo pelo corredor, cobrindo cada centímetro
de espaço acessível ao
público, pensei outra vez no quanto me ressentia do fato de June estar morrendo. Eu era contra, não podia aceitar. Ela era minha mãe adotiva, que me fora dada pelo
amor de Jenny, pela convenção do casamento, pelo destino, a substituta que encontrei aos trinta e dois anos. Durante mais de dois anos eu a visitei sozinho. Para
Jenny e June, cada vinte minutos de conversa ao lado da cama era uma marcha forçada. Aos poucos, lentamente demais na verdade, das minhas conversas vagas com June
surgiu a possibilidade de um livro de memórias, escrito por mim. A idéia não foi do agrado da família. Um dos irmãos de Jenny tentou me dissuadir. Suspeitavam que
minha intenção era pôr em risco uma trégua difícil, o que poderia acontecer se eu revivesse antigas desavenças. Os filhos não podiam compreender como um assunto
tão corriqueiro como as divergências entre seus pais tivesse ainda algum fascínio. Não precisavam se preocupar. As circunstâncias incontroláveis da
vida cotidiana se encarregaram de fazer com que somente durante duas visitas antes do fim eu tivesse conseguido fazer June falar sobre o passado de modo mais ou
menos organizado, e desde o começo discordamos sobre o tema central e verdadeiro da narrativa.
Na sacola de compras que eu levava, além dos lychees frescos do mercado do Soho, tinta preta Montblanc, O volume 1762-3 do Diário de Boswell, café brasileiro
e meia dúzia de barras de chocolate muito caro, estava também meu caderno de anotações. June não permitiu o uso de gravador. Provavelmente queria ter liberdade para
criticar Bernard por quem ela sentia amor e irritação em doses iguais. Geralmente ele telefonava quando sabia que eu estivera na clínica. "Caro rapaz, qual é o estado
de espírito?" Isso significava, "ela falou a meu respeito? O que foi que disse?" Quanto a mim, preferia não ter no meu escritório montes de fitas repletas das indiscrições
de June. Por exemplo, muito antes de aceitarmos a idéia de escrever O livro, ela certa vez me escandalizou abaixando bruscamente a voz para anunciar que Bernard
"escolheu um pênis tamanho pequeno", como se fosse a chave de todas as suas imperfeições. Eu não estava preparado para interpretar literalmentea informação. June
estava irritada com ele nesse dia e além disso eu
tinha certeza de que era o único que ela vira em toda sua vida. O que me chocou foi a escolha das palavras, sugerindo que por pura teimosia Bernard não havia encomendado
algo maior aos seus fornecedores de Jermyn Street. Num caderno de anotações, a observação podia ser codificada estenograficamente. Numa fita gravada seria uma simples
prova de traição que devia ser guardada a sete chaves.
Como para enfatizar suas diferenças dos outros internos, o quarto de June ficava no fim do corredor. Diminuí o passo quando cheguei perto da porta. Eu nunca
conseguia acreditar totalmente que ia encontrá-la lá dentro, atrás daquela porta de madeira compensada, igual a todas as outras. June pertencia ao lugar em que eu
a vi pela primeira vez, entre a lavanda e gualtéria da sua casa, na entrada da floresta. Bati de leve com a unha. Ela não ia querer que eu pensasse que estava
dormindo. Preferia ser encontrada entre os livros. Bati com mais força. Ouvi um movimento, um murmúrio, O ranger das molas da cama. Uma terceira batida. Uma pausa,
uma tosse breve, outra pausa e ela me mandou entrar. Quando abri a porta, June estava sentada na cama e olhou para mim como se não me conhecesse. Seu cabelo estava
despenteado. Despertava das profundezas de um sono abafado pela doença. Tarde demais pensei em dar um tempo a ela para se recompor. Assim, nos poucos segundos que
levei para me aproximar lentamente e pôr no chão minha sacola, June teve de reconstruir toda a sua existência, quem era, onde estava, como e por que tinha ido parar
naquele quarto pequeno de paredes brancas. Só depois disso começou a se lembrar de mim. Além da janela, ansioso para ajudar a memória de June, um castanheiro-da-índia
balançava seus galhos. Talvez só contribuísse para aumentar a confusão, pois nesse dia ela demorou demais para voltar a si. Sobre a cama estavam espalhados alguns
livros e folhas de papel em branco. June os arrumou com gestos lentos, procurando ganhar tempo.
- June, sou eu, Jeremy. Desculpe se cheguei mais cedo do que esperava. A lembrança voltou de repente. Mas ela disfarçou com um mau humor pouco convincente.
- Sim, que droga, chegou mesmo. Eu estava tentando me lembrar sobre o que ia escrever. -
Não se esforçou no desempenho. Nós dois sabíamos que ela não tinha nenhuma caneta na mão.
- Quer que eu saia e volte dentro de dez minutos?
- Não seja ridículo. Agora já me esqueci completamente. De qualquer modo, era mesmo bobagem. Sente. O que tem para mim? Lembrou da tinta?
Quando aproximei a cadeira da cama, apareceu finalmente o sorriso que ela estava evitando. O rosto enrugou como uma impressão digital quando os cantos dos
lábios subiram desenhando espirais paralelas que iam até as têmporas. No centro da testa, o ramo principal da árvore de rugas se aprofundou, formando um vinco acentuado.
Tirei as compras da sacola e June as examinou com uma observação jocosa ou uma pergunta que não precisava ser respondida.
- Pensando bem, por que o povo suíço tinha de ser o melhor na fabricação de chocolate? O que será que me dá este desejo tremendo de comer lychees? Acha que
posso estar grávida?
Aqueles símbolos do mundo exterior não a entristeciam. Sua exclusão era completa e, até onde eu sabia, sem nenhum remorso. Era um país que ela havia deixado
para sempre e pelo qual conservava apenas um interesse carinhoso e vivo. Eu não compreendia como era possível desistir de tanta coisa, acomodar-se à mesmice da clínica;
os legumes cozidos, a curiosidade e as risadinhas idiotas dos velhos, a avidez sedenta com que assistiam televisão. Depois de uma vida auto-suficiente, eu estaria
em pânico, ou estaria constantemente planejando minha fuga. Entretanto, essa aceitação quase serena facilitava as minhas visitas. Não sentia culpa quando a deixava
e nem quando adiava uma visita. June havia transplantado sua independência para os limites da cama onde ela lia, escrevia, meditava, dormia. Sua única exigência
era ser levada a sério.
Em Chestnut Reach isso não era tão simples quanto parece, e ela levou meses para convencer as enfermeiras e os atendentes. Pensei que June ia perder essa
batalha. A condescendência é a
base do poder de todo profissional da assistência. Ela venceu porque jamais se descontrolava nem agia como a criança que eles queriam que fosse. June era calma.
Quando uma enfermeira entrava no quarto sem bater - eu vi isso certa vez -, tagarelando com voz cantada na primeira pessoa do plural, June olhava para ela num silêncio
magnânimo. Nos primeiros dias ela foi classificada como uma paciente difícil. Chegaram a sugerir que Chestnut Reach não podia mais ficar com ela. Jenny e os irmãos
foram falar
com o diretor. June recusou tomar parte na conversa. Não tinha intenção de se mudar. Sua certeza era autoritária, tranquila, nascida de anos resolvendo sozinha todos
os problemas. O médico foi o primeiro a se converter. Quando compreendeu que não se tratava de mais uma velha tola, começou a conversar sobre assuntos que nada tinham
a ver com medicina - flores silvestres, uma paixão de ambos e que June conhecia a fundo. Não demorou para que ele contasse seus problemas conjugais. A atitude do
pessoal mudou completamente - assim funciona a hierarquia dos estabelecimentos médicos.
Para mim foi um triunfo da tática, de pensar no resultado futuro. Escondendo sua irritação, June ganhou a batalha. Mas não foi uma tática, revelou ela quando
a congratulei pelo feito, era uma atitude mental que aprendera há muito tempo no livro de Lao-tsé, O caminho do Tão. June me recomendava a leitura de Lao-tsé, uma
vez ou outra, mas sempre que eu aceitava a sugestão, ficava irritado com os paradoxos presunçosos. Para atingir seu objetivo, caminhe na direção contrária. Nesse
dia ela apanhou o livro e leu em
voz alta. "O caminho do céu prima por dominar, entretanto não discute."
- Exatamente o que eu esperava - eu disse.
- Cale a boca. Escute isto. "De dois lados que empunham armas um contra o outro, quem ganha é o sofredor."
- June, quanto mais você fala, menos eu entendo.
- Ainda bem. Ainda vou fazer de você um sábio.
Depois de June verificar que eu havia levado O que ela queria, guardei tudo, menos a tinta, que ela fechou no armário. A caneta- tinteiro pesada, O papel
acinzentado em rolo e a tinta preta eram as únicas lembranças palpáveis da sua vida anterior. Tudo O mais, os petiscos da delicatessen, as roupas ficavam em lugares
especiais, fora da vista. Seu gabinete de trabalho na bergerie de onde se avistava St. Privat, no fundo do vale, era cinco vezes maior
do que aquele quarto e mal dava para acomodar os livros e papéis; além disso, nos fundos havia a cozinha enorme com os jambons de montagne dependurados nas vigas
do teto, barriletes de óleo de oliva no chão de pedra, e às vezes ninhos de escorpiões nas prateleiras; a sala de estar que ocupava todo o espaço do velho celeiro
onde uma centena de moradores do se reuniam antigamente depois da caça ao javali; o quarto de June com
a cama de dossel e as portas de vitrais, os quartos de hóspedes onde, durante o ano todo, espalhavam-se seus pertences; o quarto onde ela prensava suas flores; o
barracão com os objetos de jardinagem no pomar de amêndoas e azeitonas e, perto dele, O galinheiro que parecia um pombal em miniatura - tudo isso despojado, reduzido
a uma estante de livros, um guarda-roupas com roupas que ela nunca usava, um baú de viagem que ninguém podia ver o que continha e uma geladeira pequena.
Enquanto eu lavava as frutas na pia do banheiro e as guardava com o chocolate na geladeira e procurava um lugar, o lugar, para o café, fui transmitindo os
recados de Jenny, O amor das crianças. Ela perguntou de Bernard, mas eu não o via desde a minha última visita. June penteou os cabelos com os dedos e ajeitou os
travesseiros em volta do corpo. Quando eu voltei para a cadeira ao lado da cama, olhei mais uma vez para a fotografia sobre a mesa-de-cabeceira. Eu também poderia
ter me apaixonado por aquela beldade de rosto redondo emoldurado pelo permanente muito
crespo, o sorriso delicioso e cheio de vida encostado no braço do homem amado. O que me atraía era a inocência, não só da mulher, ou do casal, mas do próprio tempo.
Até O ombro e a cabeça fora de
foco de um homem de terno que passava tinham algo de ingênuo e desligado, como um carro sedã estacionado numa rua de um vazio pré-moderno. A era da inocência! Dezenas
de milhões de mortos, a Europa em ruínas, os campos de extermínio ainda recentes na história, ainda não haviam se transformado no ponto universal de referência da
depravação humana. É a própria foto que cria a ilusão de inocência. A ironia da sua narrativa congelada no tempo empresta aos fotografados um aparente desconhecimento
de que eles vão mudar ou morrer. Eles são inocentes do futuro. Cinqüenta anos depois olhamos para eles com o saber divino de como ficaram afinal - com quem casaram,
a data da sua morte sem pensar em quem algum dia estará vendo as nossas fotografias.
June acompanhou meu olhar. Apanhei o caderno de anotações e o lápis, constrangido, sentindo-me fraudulento. Havíamos concordado que eu ia escrever sobre a vida dela.
June tinha em mente uma biografia e essa era minha intenção. Porém, assim que comecei, percebi que tomava uma forma diferente. Não era mais uma biografia, nem mesmo
memórias, mais uma divagação. June era o personagem central, mas não ia ser somente sobre ela.
Na última vez, a fotografia fora um ponto de partida. June me observava, esperando, com o cotovelo apoiado na cintura e o indicador encostado na curva longa do queixo.
O que eu realmente queria perguntar era, como você passou do rosto da fotografia para este outro, extraordinário - foi a vida? É espantoso como você mudou!
Mas o que eu disse, sem tirar os olhos da fotografia, foi.
- A vida de Bernard parece ter sido uma progressão lenta, uma construção sobre o que já havia, ao passo que a sua parece ter sofrido uma longa transformação...
Infelizmente June interpretou isso como uma pergunta sobre Bernard.
- Sabe sobre o que ele queria falar quando me visitou no mês passado? Eurocomunismo! Uma semana antes tinha estado com uma delegação italiana. Mafiosos gordos que
se regalam à custa dos outros. Bernard disse que estava otimista! - inclinou a cabeça, indicando a fotografia. - Jeremy, ele estava realmente entusiasmado! Como
naquele tempo. Progressão é muita bondade sua. Eu diria estase. Estagnação.