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CÃES NEGROS / Ian McEwan
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem
casal, já rolando na relva.
CONTINUA
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem
casal, já rolando na relva.
CONTINUA
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem
casal, já rolando na relva.
CONTINUA
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem
casal, já rolando na relva.
CONTINUA
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem
casal, já rolando na relva.
CONTINUA
June sabia que isso não era verdade. Bemard deixara o partido há anos, foi um trabalhista no Parlamento, um homem do establishment, membro da ala liberal, tendo
atuado em comitês do governo ligados à radiodifusão, ao meio ambiente, à pornografia. Na verdade June fazia objeção ao seu racionalismo. Mas eu não queria tratar
desse assunto naquele momento. Queria uma resposta à pergunta que eu não fiz. Fingi que concordava.
- Sim, não posso imaginar você entusiasmada com uma coisa dessas, agora.
June inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, a pose que usava para examinar a fundo uma questão. Já havíamos falado mais de uma vez sobre como e por
que tinha resolvido mudar sua vida.
Cada vez era uma história diferente.
- Estamos prontos? Passei todo o verão de 1938 com uma família, na França, nos arredores de Dijon. Acredite ou não, o negócio deles era mostarda. Com eles
aprendi a cozinhar e também que não existe lugar melhor no mundo do que a França, uma convicção da juventude que conservo até hoje. Voltei quando fiz dezoito anos
e ganhei uma bicicleta novinha, uma beleza. Os clubes de ciclismo estavam ainda em moda e entrei para um deles, o Clube Socialista de Ciclismo de Amersham. Talvez
a idéia fosse escandalizar o conservadorismo dos meus pais embora não me lembre de qualquer objeção da parte deles. Nos fins de semana, uns vinte de nós, com cestas
de piquenique, pedalávamos pelas ruas de Chilterns, ou descíamos a escarpa para Thame e Oxford. Nosso
clube tinha ligação com outros clubes e alguns deles eram afiliados ao Partido Comunista. Não sei se havia um plano, uma conspiração, alguém devia fazer uma pesquisa
a respeito. Provavelmente aqueles clubes recrutavam nossos sócios de modo bastante informal. Ninguém jamais me doutrinou. Ninguém estava procurando me convencer.
Simplesmente encontrei-me entre pessoas que me agradavam, alegres e inteligentes, e a conversa era o que você pode imaginar - o que estava errado na Inglaterra,
as injustiças e o sofrimento, como isso podia ser corrigido, e como tudo já fora corrigido na União Soviética. O que
Stalin estava fazendo, o que Lenin dizia, o que Marx e Engels tinham escrito. E havia também as fofocas. Quem pertencia ao partido, quem tinha estado em Moscou,
o que significava pertencer ao partido, quem estava pensando em entrar para o
partido, e assim por diante.
- Toda essa conversa e essas fofocas aconteciam enquanto pedalávamos pelo campo, ou quando sentávamos com nossos sanduíches, ou ainda nas paradas, nos bares
abertos para tomar refrigerantes. Desde o começo, o partido e tudo o que ele significava, toda aquela lengalenga sobre a posse comum dos meios de produção e a herança
cientificamente ordenada do proletariado, a decadência de seja lá o que for, todo aquele palavrório associava-se em minha mente a bosques de faias, a milharais,
à luz do sol e a descer aquelas colinas, caminhar por aquelas trilhas estreitas que eram como túneis no
verão. O comunismo e a minha paixão pelo campo, bem como o meu interesse por um ou dois belos rapazes de short - eram uma coisa só, e sim, tudo aquilo era muito
excitante.
Enquanto escrevia, pensei, maldosamente, se eu não estaria sendo usado como um canal condutor, um médium para a mensagem final da sua vida. Essa idéia amenizou
minhas dúvidas por não estar escrevendo a biografia que ela desejava.
June continuou. Tinha tudo muito bem preparado.
- Esse foi o começo. Oito anos depois eu finalmente entrei para o partido. E isso foi o fim, o começo do fim.
- O dólmen.
- Exatamente.
Íamos agora saltar oito anos, de 1938 a 1946, passando pela guerra. Nossas conversas eram assim. No fim da lua-de-mel, Bernard e June, ainda na França, fizeram
um longo passeio no Languedoc, atravessando um planalto seco de calcário chamado a Causse de Larzac. Chegaram a um antigo cemitério conhecido como o Dólmen de Ia
Prunarède, a poucos
quilômetros da cidadezinha em que iam passar a noite. O dólmen fica numa colina, perto da margem elevada do rio Vis, onde sentaram, no começo da noite, voltados
para o norte, na direção dos montes Cévennes, falando sobre o futuro. Depois disso estivemos nesse mesmo lugar várias vezes. Em 1971, Jenny namorou um rapaz da cidade,
um desertor do exército francês. Fizemos um piquenique com Bernard e nossos filhos, pequenos ainda, em meados dos anos oitenta. Jenny e eu estivemos nesse local
certa vez para resolver um
problema conjugal. É também um bom lugar para se ficar sozinho. Tornou-se um lugar da família. Basicamente, um dólmen consiste numa laje horizontal sobre duas outras,
formando uma mesa baixa de pedra. Há centenas deles nos causses, mas só um é "o dólmen".
- Sobre o que vocês falaram?
Ela abanou a mão no ar, impaciente.
- Não me interrogue. Eu estava pensando, tentando fazer uma conexão. Ah, sim, já sei. O importante sobre o clube de ciclismo era que o comunismo e o meu
amor pelo campo eram inseparáveis - acho que era tudo parte daqueles
sentimentos românticos e idealistas próprios da idade. E então ali estava eu, na França em outra paisagem, muito mais bela do que as Chilterns, mais grandiosa, mais
selvagem, até um pouco assustadora. Estava com o homem que eu amava e falávamos compulsivamente de como íamos mudar o mundo, e estávamos a caminho da casa para iniciar
nossa vida juntos. Lembro até de ter pensado, nunca fui tão feliz. Isto é o que eu quero!
- Mas, se quer saber, alguma coisa não estava certa, havia uma sombra. Enquanto estávamos ali
sentados, o sol se pôs com uma luminosidade gloriosa e eu pensei, mas eu não quero voltar para casa, prefiro ficar aqui. Quanto mais eu olhava para o vale do rio,
para além da Causse de Blandas, na direção das montanhas, mais eu percebia a verdade - comparada com a antiguidade, com a beleza e a força daquelas rochas, a política
era uma coisa insignificante. A humanidade era um fato recente. O universo era indiferente à sorte do proletariado! Senti medo. Durante a minha curta vida adulta
sempre tinha me agarrado à política - dela recebi os amigos, o marido, minhas idéias. Antes ansiosa para voltar para a Inglaterra, agora dizia a mim mesma que preferia
ficar ali e viver sem conforto no meio daquela natureza selvagem.
- Bernard continuava a falar e eu, sem dúvida, respondia e dava minha opinião. Mas estava confusa. Talvez eu não fosse feita para toda aquela política nem
para aquela paisagem agreste. Talvez precisasse de um lar tranquilo e um filho para cuidar. Estava muito confusa.
- Então você...
- Não terminei ainda. Havia outra coisa. Apesar de todos esses pensamentos conflitantes, sentia-me feliz no dólmen. Tudo que desejava era ficar sentada,
em silêncio, ver as montanhas avermelhando-se aos poucos e respirar aquele ar macio da noite, sabendo que Bernard fazia o mesmo, sentia a mesma coisa. Assim, aí
estava outro problema. Nada de imobilidade. Nada de silêncio. Nós nos preocupávamos com nem sei O quê, a desonestidade dos reformistas sociais-democratas, as condições
dos pobres nas cidades - gente que não conhecíamos, pessoas que, naqueles dias, não tínhamos meios de ajudar. Nossas vidas tinham se preparado para aquele grande
momento - um lugar sagrado com mais de cinco mil anos, nosso amor, a luz, o espaço imenso na nossa frente. Não podíamos nos libertar para O presente. Preferíamos
pensar em libertar os outros. Queríamos pensar na sua infelicidade. Usávamos sua desgraça para mascarar a nossa. E a nossa consistia na impossibilidade de aceitar
as coisas boas e simples que a vida nos oferecia e ficar satisfeitos com elas. Política, a política idealista, vive toda no futuro. Passei a vida inteira descobrindo
que, assim que entramos de modo completo no presente, encontramos o espaço infinito, o tempo infinito, ou chame de Deus, se quiser...
June perdeu o fio do que dizia e calou-se. Não era de Deus que ela queria falar, era de Bernard. Então, lembrou.
- Bernard pensa que prestar atenção ao presente é ser autoindulgente. Mas isso é bobagem. Alguma vez ele parou para pensar em silêncio sobre a sua vida ou
sobre o efeito dela na vida de Jenny? Ou por que é incapaz de viver sozinho e precisa daquela mulher, aquela "governanta" para tomar conta dele. Bernard é completamente
invisível a si mesmo. Ele tem fatos, números, seu telefone toca o dia inteiro, está sempre correndo para fazer uma palestra, participar de um júri num debate ou
coisas assim. Mas nunca parou para refletir. Jamais concedeu um único momento para se maravilhar e encantar com as belezas da criação. Ele odeia o silêncio, por
isso não sabe de coisa alguma. Estou respondendo à sua pergunta? A de como uma pessoa tão exigente pode estar em processo de estagnação? Deslizando sobre a superfície
o tempo todo, falando sem parar de como poderiam ser as coisas se fossem postas em ordem e não aprendendo nada de essencial, é assim.
June recostou nos travesseiros, exausta. O rosto comprido virou para o teto. Respirava com dificuldade. Várias vezes tínhamos falado sobre aquele fim do
dia no dólmen, geralmente como prelúdio para o confronto importante do dia seguinte. June estava zangada e o fato de saber que eu percebia a deixava mais furiosa.
Estava divagando, perdendo o controle da narrativa. Sabia que essa descrição da vida de Bernard - a presença nos programas de televisão, os debates no rádio, o homem
público - era coisa de mais de dez anos atrás. Ninguém mais ouvia falar muito de Bernard Tremaine. Ele quase não saía de casa e
trabalhava discretamente no seu livro. Uma mulher que morava no mesmo prédio arrumava o apartamento e cozinhava para ele três vezes por semana. Era doloroso testemunhar
o ciúme de June. As idéias que norteavam sua vida eram as mesmas com que media a distância entre ela e Bernard e se essas idéias eram alimentadas pela procura da
verdade,
então uma parte dessa verdade era a amargura e o desapontamento no amor. As imprecisões e os exageros eram por demais reveladores.
Tive vontade de dizer alguma coisa no sentido de que isso não me provocava repulsa nem desapontamento. Ao contrário, voltava para ela todo o meu coração.
Era reconfortante saber que, no meio de toda aquela agitação, os sentimentos tinham ainda um lugar de importância, que a vida e os problemas do passado continuavam
e que nesse caminho do fim não eram visualizados com distanciamento e frieza.
Eu me ofereci para fazer chá e ela concordou, levantando um dedo da mão apoiada nos lençóis. Fui até a pia para encher a chaleira. Lá fora a chuva tinha
parado, mas ventava ainda e uma mulher pequenina com um cardigã azul-claro atravessava
o gramado com a ajuda de um andador. Uma rajada mais forte poderia carregá-la. Ela chegou num canteiro encostado no muro e ajoelhou na frente do aparelho, como se
fosse um altar portátil. Então ela o empurrou para o lado e tirou de um bolso uma colher de chá e do outro um punhado de bulbos. Começou a cavar buracos para plantar
os bulbos. Alguns anos atrás eu não teria visto nenhuma lógica em plantar alguma coisa naquela idade, teria observado e catalogado a cena como uma ilustração da
futilidade. Agora, eu apenas
observava.
Levei as xícaras para perto da cama. June sentou e tomou um gole do chá escaldante sem fazer nenhum ruído, como aprendera, como me contou certa vez, com uma
professora de etiqueta, na escola. Perdida em pensamentos, não estava ainda pronta para continuar. Olhei para as minhas anotações, corrigindo um símbolo aqui, outro
ali, para melhorar a legibilidade da taquigrafia. Então resolvi visitar o dólmen na próxima vez que fosse à França. Eu podia ir a pé da bergerie, subir pelo Pas
de l'Azé no Causse e caminhar para o norte durante duas ou três horas - uma paisagem preciosa na primavera, quando as flores silvestres desabrocham e os campos se
cobrem de orquídeas. Sentaria na pedra olhando outra vez para aquela vista, pensando na personagem do meu livro.
As pálpebras de June estremeciam, quase fechadas, e só tive tempo de tirar a xícara e o pires da sua mão antes de ela mergulhar no sono. Ela insistia em
afirmar que esses cochilos repentinos não eram efeito da exaustão. Eram parte da sua condição, uma disfunção neurológica que provocava um desequilíbrio na secreção
da dopamina. Aparentemente era uma espécie de narcolepsia, profunda e irresistível. Era como se alguém pusesse um cobertor no seu rosto, disse ela certa vez, mas
quando falei a respeito com o médico, ele olhou fixamente para mim e negou com um movimento quase imperceptível da cabeça que era também uma sugestão para que eu
não a contrariasse.
- Ela está doente - disse o médico - e está cansada. Agora a respiração era rápida e superficial, a árvore de rugas na testa mais nítida, menos complexa,
como se o inverno a tivesse despido dos galhos. A xícara vazia na mesa-de-cabeceira escondia uma parte da foto. Quanta transformação! Eu era ainda suficientemente
jovem para me espantar. Ali, dentro da moldura, sem nada escrito na pele, o rosto redondo e bonito encostado no braço de Bernard. Eu só os conheci muito mais tarde,
mas sentia uma espécie de saudade do tempo distante e breve quando Bernard e June viveram juntos, com amor e sem complicações. Antes da queda. Isso também contribuía
para a inocência da foto - a ignorância do tempo em que iam precisar da companhia um do outro e se irritar mutuamente. June irritava-se com a árida pobreza espiritual
de Bernard e sua "fundamental falta de seriedade", com a racionalidade instantânea e a insistência arrogante de que, "contra todas as evidências acumuladas" uma
sensata engenharia social acabaria com todas as misérias da humanidade e sua capacidade de ser cruel; e Bernard irritava-se com a traição de June à sua consciência
social, com seu "fatalismo autodefensivo" e sua "credulidade ilimitada" - era um sofrimento para ele a lista cada vez mais extensa das certezas de June: unicórnios,
espíritos da floresta, anjos, médiuns, autocura, o inconsciente coletivo, o "Cristo dentro de nós".
Certa vez perguntei a Bernard sobre seu primeiro encontro com June, durante a guerra. O
que o atraiu para ela? Bernard não lembrava de nenhum primeiro encontro. Apenas começou a perceber gradualmente, durante os primeiros meses de 1944, que uma jovem
ia ao seu escritório no Senado, uma ou duas vezes por semana, para entregar documentos traduzidos do francês e apanhar outros para traduzir. Todos no escritório
de Bernard sabiam ler francês e o material traduzido era sofrível. Bernard não via nenhuma utilidade naquela jovem, por isso não a enxergava. Ela não existia. Então
ouviu alguém dizer que ela era bonita e na próxima vez que ela apareceu observou-a com atenção. Começou a ficar
desapontado quando ela não aparecia e idiotamente feliz quando ela chegava. Quando finalmente conversaram sobre banalidades, percebeu que ela era uma companhia agradável.
Bernard tinha idéia de que uma mulher bonita não teria interesse em conversar com um homem de orelhas de abano. Na verdade, ela parecia gostar dele. Almoçaram juntos
no café Joe Lyons no Strand, e para disfarçar seu nervosismo, Bernard falou em voz alta sobre socialismo e insetos - ele era uma espécie de entomologista amador.
Mais tarde ele deixou boquiabertos seus colegas de trabalho quando a convenceu a ir ao cinema - não, não lembrava- do filme - na Haymarket, onde encontrou coragem
para beijá-la primeiro nas costas da mão, como numa paródia de um romance antigo, depois no rosto, e então nos lábios, e tudo seguiu numa progressão vertiginosamente
acelerada, da conversa sem compromisso aos beijos castos, não levaram mais de quatro semanas.
A história de June. Seu trabalho de intérprete e ocasional tradutora de documentos oficiais do francês a levou numa tarde tediosa a um dos corredores do
Senado. Passou pela porta aberta de um escritório ao lado daquele em que ia apanhar o material e viu um jovem alto e magro com
uma cara estranha, esparramado numa cadeira giratória, os pés na mesa, atento ao que parecia ser um livro muito sério. Ele ergueu os olhos para ela por um momento
e voltou à leitura, completamente esquecido da sua presença. Ela procurou se demorar por ali o maior tempo possível, sem parecer descortês - uma questão de segundos
-, olhando acintosamente para ele enquanto fingia consultar os papéis da pasta que tinha nas mãos. Até então June só chegara a gostar de alguns dos homens com quem
havia saído depois de dominar uma repulsa indefinida. Aquele a atraiu imediatamente. Era o "seu tipo" - agora ela
compreendia de dentro para fora essa frase irritante. Ele era sem dúvida inteligente - como todos naquele escritório - e June gostou do desamparo desajeitado do
seu tamanho e do rosto grande e generoso, além do desafio daquele olhar que não a tinha registrado. Poucos homens a olhavam assim.
Ela começou a inventar pretextos para entrar na sala dele. Entregava trabalhos que deviam ser entregues por uma das moças do seu escritório. Como pretexto
para se demorar mais tempo e porque Bernard jamais olhava para ela, June começou a flertar com um dos colegas dele, um homem insignificante de Yorkshire com a pele
manchada e uma voz estridente. Certa vez ela esbarrou na mesa de Bernard para derrubar o chá que ele estava tomando. Ele franziu a testa e enxugou o chá com o lenço
sem interromper a leitura. June levava encomendas para ele que deviam ser entregues em
outro lugar. Ele corrigia o engano delicadamente. O homem de Yorkshire escreveu uma dolorosa declaração de uma alma solitária. Não esperava que ela casasse com ele,
dizia a carta, embora não descartasse a idéia. Mas esperava que se tornassem amigos íntimos, como irmãos. June sabia que precisava agir rapidamente.
O dia em que ela reuniu toda a coragem e entrou no escritório resolvida a fazer com que Bernard a convidasse para almoçar, foi o dia em que ele resolveu
pela primeira vez olhar para ela com atenção. Foi um olhar tão desarmado, tão francamente predatório que June hesitou na sua caminhada para a mesa dele. No canto,
seu candidato a irmão estava se levantando com um largo sorriso. June pôs o embrulho na mesa e fugiu. Mas agora sabia que tinha o seu homem. Agora, quando ela entrava
na sala, o queixo enorme de Bernard balançava enquanto ele procurava palavras para iniciar uma conversa. O almoço no Joe Lyons não precisou de mais do que uma leve
insinuação.
Sempre estranhei que os dois jamais tivessem comparado suas lembranças desses primeiros dias. Certamente June ia adorar as diferenças. Confirmariam seus
preconceitos posteriores. Bernard sem refletir, ignorando as correntes sutis da realidade que ele insistia em dizer que
compreendia e controlava. Entretanto, resisti ao impulso de contar a história de June para Bernard e a de Bernard para June. Foi minha decisão, mais do que a deles,
manter as histórias confidenciais e separadas. Nenhum dos dois parecia acreditar nisso e nas nossas conversas eu percebia que estava sendo usado como transmissor
de mensagens e impressões. June gostaria que eu censurasse Bernard em nome dela - nada mais nada menos do que por sua visão do mundo, por sua vida agitada no rádio
e na televisão e pela mulher que fazia a limpeza na sua casa. Bernard gostaria que eu transmitisse a June não apenas a ilusão de que ele estava perfeitamente intacto
sem ela, mas também o carinho que sentia, apesar da sua loucura evidente, desse modo poupando a ele outra visita terrível ou amaciando o caminho para a seguinte.
Quando me viam, tentavam plantar verde para obter alguma informação, geralmente sugerindo proposições contestáveis, mal disfarçadas em perguntas. Assim, Bernard dizia, eles ainda a mantêm sob sedação? Ela falou
sem parar a meu respeito? Você acha que ela sempre vai me odiar? E June, ele falou sobre a sra. Briggs (a arrumadeira e cozinheira)? Desistiu dos planos de suicídio?
Eu respondia com evasivas. Não podia dizer nada que desse satisfação e, além disso, podiam telefonar ou se ver quando bem entendessem. Como amantes jovens
e absurdamente orgulhosos, eles se controlavam, certos de que quem telefonasse primeiro estaria revelando fraqueza, uma dependência emocional desprezível.
June acordou de um sono de cinco minutos para encontrar um homem com uma calvície incipiente e expressão severa sentado ao lado da sua cama com um caderno de
anotações na mão. Onde ela estava? Quem era essa pessoa? O que ele queria? A surpresa e o pânico dos olhos arregalados me contagiaram, cerceando meus reflexos, e
não consegui encontrar
imediatamente as palavras tranquilizadoras e, quando as encontrei, gaguejei idiotamente. Mas, antes mesmo de terminar a minha fala, June já havia recuperado as linhas
da realidade, podia contar sua história outra vez e lembrou que seu genro estava ali para tomar notas.
Ela pigarreou.
- Onde eu estava?
Nós dois sabíamos que ela havia visto o fundo do poço, o abismo sem sentido onde nada tinha nome nem relação com coisa alguma, e estava assustada. Nós dois
estávamos assustados. Não podíamos confessar isso, ou melhor, eu não podia, antes que ela o fizesse.
A essa altura June já sabia onde estava, bem como sabia o que vinha depois. Mas no breve drama psíquico do seu despertar, eu me preparei para resistir à
insinuação inevitável - "O dia seguinte". Eu queria conduzi-la a outro lugar. Tínhamos falado dezenas de vezes sobre "O dia seguinte". Era uma lenda da família,
uma história burilada com a repetição, não tanto lembrada quanto entoada como uma prece saída do coração. Eu a tinha ouvido na Polônia há muitos anos, quando conheci
Jenny. Eu a ouvi várias vezes de
Bernard que não era uma testemunha no sentido exato da palavra. Era contada no Natal e em outras reuniões de família. No que dizia respeito a June, devia ser a peça
central das memórias, como era O centro da história da sua vida - o momento decisivo, a experiência que a redirecionou, a revelação da verdade a cuja luz todas as
conclusões prévias deviam ser repensadas. A veracidade histórica tinha menor importância do que a função que ela desempenhava. Era um mito, mais poderoso por ser
apresentado como um documentário. June estava convencida de que "O dia seguinte" explicava tudo - por que ela deixou o partido, por que a desarmonia separou-a de
Bernard pelo resto da vida, por que reconsiderou seu racionalismo, seu materialismo, como passou a levar a vida que tinha levado, onde vivia, o que pensava.
Quanto a mim, um estranho na família, a história me atraía e me deixava cético ao mesmo tempo. Os momentos decisivos da vida são invenção
de romancistas e dramaturgos, um mecanismo necessário quando uma existência é reduzida a um enredo, traduzida por ele, quando a moral deve ser destilada de uma sequência
de ações, quando o público deve ir para casa com algo inesquecível que marca o crescimento de um personagem. Ver a luz, o momento da verdade, o ponto crucial, certamente
são coisas que pedimos emprestadas a Hollywood ou à Bíblia, para conseguir um sentido
retroativo numa memória superlotada. Os "cães negros" de June. Sentado ao lado da cama, com o caderno de anotações no colo, depois de ter o privilégio de uma visão
de relance no seu vazio, de compartilhar sua vertigem, esses animais inexistentes me parecem quase reconfortantes. Haveria uma segurança excessiva em outro relato
dessa história, naquele momento.
June tinha escorregado para baixo, na cama, enquanto dormia. Esforçou-se para sentar de novo, mas seus pulsos estavam muito fracos e suas mãos não encontravam
apoio nos lençóis. Comecei a me levantar para ajudá-la, mas ela me impediu com um ruído, um rosnado, e virou de lado, de frente para mim com a cabeça sobre o canto
dobrado de um travesseiro.
Eu comecei devagar. Estaria agindo com malícia? A idéia me perturbou, mas eu já havia começado.
- Não acha que o mundo pode acomodar seu modo de ver as coisas e o de Bernard também? Não é sempre proveitosa uma jornada ao nosso íntimo quando os outros
se preocupam somente em melhorar o mundo? Não é a diversidade que faz a civilização?
Esta última pergunta retórica foi demais para June. A linha profunda da testa que denotava atenção neutra desmanchou-se numa gargalhada. Ela não aguentava
mais ficar deitada. Tentou sentar novamente, dessa vez com sucesso, enquanto dizia, sem parar de rir.
- Jeremy, você é muito querido, mas diz cada bobagem, você se esforça demais para ser decente e fazer com que todos gostem de você e gostem uns dos outros...
É isso!
Estava sentada afinal. As mãos ásperas e ressecadas de jardineiro se cruzaram sobre a coberta e ela olhou para mim com mal disfarçada satisfação. Ou com
piedade materna.
- Então, por que o mundo não melhorou. Toda essa medicina gratuita, a elevação dos salários e carros e televisão e escovas de dentes elétricas em todas as
casas. Por que o povo não está contente? Não falta alguma coisa nessas melhorias?
Agora que ela estava zombando de mim, senti-me libertado. Em tom um tanto brusco, eu disse.
- Então o mundo moderno é um deserto espiritual? Mesmo que o chavão seja verdadeiro,
o que me diz de você, June? Por que não é feliz? Sempre que a visito você demonstra toda a amargura que sente ainda por Bernard. Por que não esquece? O que importa
agora? Deixe que ele vá embora. O fato de você não querer, ou não poder fazer isso, não recomenda muito seus métodos.
Será que fui longe demais? Enquanto eu falava June olhou para a janela, no outro lado do quarto. Sua respiração irregular adejava no silêncio. Então, um
silêncio mais fechado, seguido por uma exalação ruidosa de ar, e June olhou nos meus olhos.
- É verdade. É claro que é verdade... - fez uma pausa para resolver como ia continuar. - Tudo que eu fiz de algum valor, fiz sozinha. Eu não me importava
com isso então. Estava satisfeita e, a propósito, eu não espero ser feliz. A felicidade é ocasional, um relâmpago de verão. Mas encontrei a paz de espírito e durante
todos esses anos sempre pensei que estava muito bem sozinha. Eu tinha família, amigos, visitas. Ficava feliz quando eles chegavam e feliz quando partiam. Mas agora...
Eu tinha conseguido fazer com que ela
passasse da lembrança para a confissão. Virei uma pagina no meu caderno.
- Quando fiquei sabendo que estava muito doente e vim para cá para me isolar do mundo pela última vez, a solidão começou a parecer o meu maior e único fracasso.
Um erro enorme. De que
adianta levar uma boa vida quando se vive sozinha? Quando penso naqueles anos na França às vezes sinto um vento frio no rosto. Bernard acha que sou uma ocultista
tola e eu acho que ele é um comissário das arábias que internaria a todos nós se existisse um céu material na terra - essa é a história da família, a piada da família.
A verdade é que nos amamos, nunca deixamos de nos amar, é uma obsessão. E não conseguimos fazer coisa alguma com isso. Não fomos capazes de construir uma vida. Não
pudemos desistir do amor, mas recusamos nos curvar à sua força. É um problema fácil de descrever, porém, jamais o descrevemos naquele tempo. Nunca dissemos, escute,
eu me sinto deste modo, o que fazemos agora? Não, era sempre uma confusão, discussões, providenciar isto ou aquilo para as crianças, o caos cotidiano, a separação
aumentando, países diferentes. Isolando-me de tudo isso foi que encontrei a paz. Se sinto amargura, é porque nunca me perdoei. Mesmo que eu aprendesse a levitar
trinta metros acima do solo, não compensaria o fato de nunca ter aprendido a falar com Bernard ou a estar com ele. Sempre que me queixo da última crise social que
leio nos jornais, preciso lembrar a mim mesma - por que esperar que milhões de estranhos com interesses conflitantes vivam em harmonia quando
eu não consegui fazer uma sociedade simples com O pai dos meus filhos, o homem que amei e com quem ainda estou casada? Há outra coisa. Se eu estou sempre criticando
Bernard é porque você está aqui e sei que o vê uma vez ou outra e - eu não devia dizer isto - você me lembra Bernard. Graças a Deus não tem as suas ambições políticas,
mas há em vocês dois uma aridez, uma distância que me atrai e me deixa furiosa. E...
Ela recolheu o pensamento e pareceu se diluir entre os travesseiros. Uma vez que eu devia me
considerar elogiado, senti-me obrigado por um certo grau de polidez, uma exigência formal, a aceitar o que me era oferecido. Havia uma palavra na sua confissão para
a qual eu queria voltar o mais cedo possível. Antes porém, as delicadezas de praxe.
- Nesse caso, espero que minhas visitas não a aborreçam.
- Eu gosto que venha me ver.
- E espero que me avise se achar que estou sendo muito pessoal.
- Pode perguntar o que quiser.
- Não quero invadir a sua...
- Eu disse que pode perguntar qualquer coisa. Se eu não quiser responder, não respondo. Permissão concedida. Acho que ela sabia, a velha senhora
esperta, o que tinha despertado minha atenção. June estava esperando que eu falasse.
- Disse que você e Bernard eram... obcecados um pelo outro. Quer dizer, bem, fisicamente ...? - Jeremy, o típico representante da sua geração. E
quase velho demais para pronunciá-la
com certa timidez. Sim, sexo, estou falando de sexo.
Era a primeira vez que eu a ouvia dizer essa palavra. Com sua voz de apresentadora da BBC durante a guerra, ela a pronunciou fazendo-a parecer vulgar, quase
obscena. Seria por ter se obrigado a usar e repetir a palavra para minimizar sua repugnância? Ou estaria certa? Estaria eu, um homem dos anos sessenta, embora sempre
discreto,
começando a engasgar com o banquete?
June e Bernard, sexualmente obcecados. Como eu só os tinha conhecido mais velhos e hostis, gostaria de dizer que, como uma criança ao ouvir falar na blasfêmia
de a rainha ter de ir ao banheiro, não podia sequer imaginar essa possibilidade.
Porém eu disse apenas.
- Acho que compreendo. - Acho que não - disse
ela, satisfeita com a própria certeza. - Você não pode ter idéia de como era naquele tempo.
Enquanto ela falava, imagens e impressões despencavam no espaço como Alice, ou como os detritos pelos quais ela passa, descendo pelo cone do tempo: O cheiro
de poeira de escritório; paredes do corredor pintadas com tinta creme e marrom brilhante; objetos de uso diário, de máquinas de escrever a carros, bem-feitos e pesados,
pintados de negro; salas sem aquecimento, senhorias desconfiadas; rapazes teatralmente solenes com roupas folgadas, mordendo cachimbos; comida sem ervas, alho, suco
de limão ou vinho; brincar sempre com cigarros, o que era considerado um tipo de erotismo, e, por toda a parte, autoridade com suas diretivas intransigentes e alatinadas
nas passagens de ônibus e formas e sinais pintados a mão com um dedo solitário apontando o caminho a seguir, num mundo
sério todo em preto e cinza. Era uma loja de artigos antigos e sem valor explodindo em câmara lenta, minha idéia do que devia ser naquele tempo e senti-me satisfeito
por June não perceber tudo isso, pois eu não via lugar nenhum para uma obsessão sexual.
- Antes de conhecer Bernard eu havia saído com um ou dois jovens porque pareciam "bastante agradáveis". No começo eu os levava à minha casa para conhecer
meus pais e serem julgados por eles: eram "apresentáveis"? Eu estava sempre avaliando os homens como possíveis maridos. Era o que minhas amigas faziam, era sobre
o que falávamos. O desejo
não era sequer considerado, pelo menos não por mim. Havia somente uma espécie de anseio vago por um amigo homem, por uma casa, um bebé, uma cozinha - os elementos
eram inseparáveis. Quanto aos sentimentos do homem, dependia do ponto ao qual o deixávamos chegar. Quando estávamos juntas, falávamos muito sobre isso. Se você quer
casar, o sexo é o preço que terá de pagar. Depois do casamento. Era uma troca difícil, mas bastante razoável. Não se pode ter alguma coisa por nada.
- Então, tudo mudou. Alguns dias depois de conhecer Bernard meus sentimentos começaram... bem, pensei que ia explodir. Eu o queria, Jeremy. Era como uma
dor. Eu não queria uma festa de casamento ou uma cozinha, eu queria aquele homem.
Tinha fantasias escandalosas com ele. Não podia falar sinceramente com minhas amigas. Elas ficariam chocadas... Nada havia me preparado para aquilo. Eu queria urgentemente
fazer sexo com Bernard e estava apavorada. Sabia que se ele pedisse, se insistisse, eu não teria escolha. E era evidente que ele sentia a mesma coisa, com a mesma
intensidade. Bernard não era do tipo de fazer imposições, mas certa tarde, por motivos que já esqueci, ficamos sozinhos na casa dos pais de uma amiga, acho que teve
alguma coisa a ver com a chuva muito forte que caía. Fomos para o quarto
de hóspedes e começamos a nos despir. Eu ia ter O que vivia em minha mente há semanas, mas estava infeliz, apavorada, como se caminhasse para minha execução...
Ela percebeu meu olhar intrigado - por que infeliz? - e respirou fundo com impaciência.
- O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes - para com sexo
e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer.
Nas décadas de 192O e 193O famílias respeitáveis
internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas.
As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e
merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas. É claro que não havia ajuda financeira. A mãe solteira era uma
pária, uma desgraça, dependente de instituições de caridade vingativas, grupos religiosos ou fosse lá o que fosse. Nós todas sabíamos de uma meia
dúzia de histórias terríveis que funcionavam como advertência para jamais deixarmos o caminho estreito e reto. Não funcionaram naquela tarde, mas eu estava certa
de estar proclamando a minha condenação quando subimos a escada para o pequeno quarto no sótão, com o vento e a chuva batendo na janela, exatamente como hoje. E
claro que não tínhamos nenhum preventivo e na minha ignorância eu pensava que a gravidez era inevitável. E sabia que não podia voltar atrás. Sentia-me tremendamente
infeliz, mas também saboreando a liberdade. A liberdade que eu imagino, um criminoso experimenta, nem que seja por um momento, antes de praticar o crime. Eu sempre
tinha feito mais ou menos o que esperavam de mim, mas agora conhecia a mim mesma pela primeira vez. E simplesmente tinha de fazer aquilo, tinha de fazer, Jeremy,
precisava chegar muito perto daquele homem...
Pigarreando discretamente, eu disse.
- E, umm, como foi?
Eu não podia acreditar que estava perguntando aquilo a June Tremaine. Jenny jamais acreditaria.
June deu outra de suas gargalhadas. Eu nunca a vira tão animada.
- Foi uma surpresa! Bernard era o mais desajeitado dos homens, sempre derramando a bebida que tinha na mão ou batendo a cabeça em alguma coisa. Acender o cigarro
de outra pessoa era um sofrimento para ele. Tive certeza de que eu era a primeira mulher com quem tinha estado. Ele insinuou o contrário, mas só pró forma, porque
era o que devia dizer. Então preferi acreditar que éramos os dois inexperientes e não me importei. Eu queria Bernard de qualquer modo. Subimos na cama estreita,
eu com risadinhas nervosas de pavor e, acredite ou não - Bernard foi genial! Todas as palavras que você lê num romance - gentil, forte, habilidoso
- e, bem, inventivo. Quando terminamos ele fez uma coisa ridícula. Levantou de um salto, correu para a janela, abriu-a para a tempestade e ficou ali nu, alto e magro
e branco, batendo no peito e gritando como Tarzã e as folhas rodopiavam em volta dele, levadas pelo vento. Uma coisa tão idiota! Sabe, ele me fez rir tanto que fiz
xixi na cama. Tivemos de virar o colchão. Depois apanhamos centenas de folhas do tapete. Levei os lençóis para casa numa sacola de compras, lavei e arrumei outra
vez a cama com a ajuda
da minha amiga. Ela era um ano mais velha do que eu e ficou tão escandalizada que não falou comigo durante meses!
Experimentando em mim mesmo um pouco da liberdade criminosa sentida por June há quarenta e cinco anos, eu estava me preparando para falar no assunto do tamanho
que Bernard "escolheu". Seria, como tudo levava a crer agora, apenas uma calúnia ocasional de June? Ou o segredo paradoxal do seu sucesso? Ou ainda, uma vez que
ele tinha o corpo tão longo, não seria simplesmente um erro de julgamento comparativo? Mas há certas coisas que não se pode perguntar à sogra e, além disso, ela
estava com a testa franzida, tentando se concentrar.
- Acho que foi uma semana depois que Bernard foi à minha casa para conhecer meus pais e tenho quase certeza de que nesse dia ele derrubou o bule de chá no
tapete Wilton. Fora isso, foi um sucesso. Bernard era perfeitamente adequado - escola pública, Cambridge, um jeito meio tímido de falar com os mais velhos. Assim
começamos uma vida dupla. Éramos o jovem casal de noivos que
alegrava os corações e devia casar logo que terminasse a guerra. Ao mesmo tempo, continuamos o que tínhamos começado. Havia salas vazias no Senado e em outros prédios
de repartições públicas. Bernard conseguia as chaves com muita esperteza. No verão, havia os bosques de faia em volta de Amersham. Era um vício, uma loucura, mas,
para ser franca, naquele tempo eu não me importava.
- Sempre que falávamos sobre o mundo à nossa
volta, falávamos de comunismo. Era a nossa outra obsessão. Resolvemos perdoar ao partido a sua atitude idiota no começo da guerra, e nos filiar a ele quando chegasse
a paz e tivéssemos deixado nossos empregos. Concordávamos em tudo - Marx, Lenin, Stalin e todo o resto. Uma bela união de corpos e mentes! Tínhamos fundado uma utopia
particular e era só uma questão de tempo para que todas as nações do mundo seguissem nosso exemplo. Foram esses meses que determinaram nossa formação. A frustração
de todos os anos seguintes escondia o desejo de voltar àqueles dias felizes. Quando começaram as diferenças no nosso modo de ver o mundo, o tempo começou a fugir
e começamos a nos irritar mutuamente. Cada desacordo era uma interrupção daquilo que sabíamos ser possível - e logo passou a haver uma única interrupção. No fim,
o tempo acabou, mas as lembranças não desapareceram, acusadoras, e ainda hoje nenhum de nós pode deixar o outro em paz.
- Aprendi uma coisa naquela manhã depois do dólmen. Eu tinha coragem, coragem física, e podia viver sozinha. É uma descoberta significativa para uma mulher,
pelo menos era, naquele tempo.
Talvez tenha sido também uma descoberta desastrosa, fatídica. Hoje não tenho tanta certeza de que devia ter ficado sozinha. É difícil contar o resto, especialmente
para um cético como você.
Eu ia protestar, mas ela me impediu com um gesto.
- De qualquer modo, vou dizer outra vez. Estou ficando cansada. Logo você terá de ir embora. E eu quero lembrar outra vez o sonho também. Quero ter certeza
de que você entendeu direito.
June hesitou, reunindo forças para a última fala daquela tarde.
- Sei que todos pensam que exagerei a importância de tudo aquilo - uma jovem assustada por dois cães numa estrada no campo. Mas sempre esperamos para começar
a compreender nossa vida. Achamos que estamos muito velhos e preguiçosos para tentar, ou fazemos o que eu fiz, escolhemos um certo fato, encontramos em algo comum
e explicável o meio de expressão para o que, de outra forma, poderia passar despercebido - um conflito, uma mudança de atitude, uma nova compreensão. Não estou dizendo
que aqueles animais eram algo diferentes do que pareciam ser. Apesar do que Bernard diz, não acredito realmente que pertencessem a Satanás, fossem cães do inferno,
presságios divinos ou seja lá o que for que algumas pessoas acreditam. Mas há um lado da história que ele recusa enfatizar. Da próxima vez que estiver com Bernard,
peça a ele para contar o que o prefeito de St. Maurice nos contou sobre aqueles cães. Tenho certeza de que ele vai lembrar. Foi numa longa tarde no terraço do Hôtel
des Tilleuls. Eu não atribuí nenhum caráter mitológico àqueles animais. Apenas os usei. Eles
me libertaram. Eu obtive uma revelação.
Sua mão deslizou sobre as cobertas na minha
direção. Eu não tive coragem de estender o braço e segurá-la na minha. Um impulso jornalístico, uma estranha idéia de neutralidade me impediu. Ela continuou a falar
e eu continuei a desenhar os arabescos da minha taquigrafia, sentindo-me imponderável, com a cabeça vazia, suspenso na minha incerteza entre dois pontos, o banal
e o profundo. Não sabia qual dos dois estava ouvindo. Embaraçado, inclinei-me sobre o caderno de anotações para não enfrentar os olhos dela.
- Eu encontrei o mal e descobri Deus. Chamo a isso de minha revelação, mas é claro que não é nada nova, e não é minha. Todos nós temos de fazer isso por
nós mesmos. As pessoas a descrevem com palavras diferentes. Suponho que todas as grandes religiões do mundo começaram com contatos inspirados de indivíduos com a
realidade espiritual e seu esforço posterior para manter vivo esse conhecimento. Grande parte se perde no meio das regras, ritos e o desejo de poder. Assim são as
religiões. No fim, pouco importa a forma como é descrita, uma vez que a verdade essencial foi compreendida - que temos dentro de nós recursos infinitos, um potencial
para um estado
mais elevado do ser, uma bondade...
Eu já ouvira isso antes, de um modo ou de outro, de um professor espiritualista, de um vigário dissidente, de uma velha amiga que acabava de voltar da índia,
de profissionais da Califórnia e de hippies dopados. June percebeu meu movimento impaciente na cadeira; mas continuou.
- Chame de Deus, ou de espírito do amor, de Atman, Cristo ou de leis da natureza. O que eu vi naquele dia, e em muitos outros dias desde então, foi um halo
de luz colorida em volta do meu corpo. Mas a aparência é irrelevante. O que importa é fazer a conexão com o centro, com o ser interior, e depois estender e aprofundá-lo.
Então, trazê-lo para fora, para os outros. O poder curativo do
amor...
A lembrança do que aconteceu depois ainda era dolorosa para mim. Estava acima da minha vontade, o desconforto era simplesmente intenso demais. Não suportaria
ouvir novamente. Talvez os anos de solidão tivessem sido o alimento do meu ceticismo, a minha proteção contra aqueles clarins que chamavam para o amor, para melhorar
o espírito, para os despojar do cerne defensável do eu e deixar que ele se dissolva no leito morno do amor e da bondade universais. O tipo de conversa que me faz
corar. Fico embaraçado por pessoas que falam desse modo. Não consigo ver, não acredito.
Murmurando uma desculpa sobre cãibra na perna, eu me levantei depressa demais. A cadeira caiu para trás e bateu no armário com um estalo. Quem se assustou
fui eu. June me observou, com um ar de leve zombaria quando comecei a me desculpar pela interrupção, e disse.
- Eu sei. As palavras estão cansadas, e eu também. De outra vez será melhor eu explicar o que quero dizer. Em outra ocasião...
June não teve forças para enfrentar minha descrença. Aquela tarde tinha terminado.
Tentei me desculpar outra vez e ela me interrompeu. Seu tom de voz era leve, mas podia significar que estava ofendida.
- Será que se importa de passar uma água nessas xícaras antes de sair? Muito obrigada, Jeremy.
De costas para ela, enquanto lavava as xicaras, ouvi o suspiro com que June se acomodou na cama. Lá fora, os galhos ainda balançavam ao vento. Senti um prazer
momentâneo por estar voltando ao mundo para que o vento oeste me levasse para Londres, para o meu presente, para fora do passado de June. Enquanto enxugava e guardava
as xícaras e os pires, tentei compor uma desculpa melhor para o meu comportamento rude. A alma, uma vida depois desta, um universo repleto de significado: era exatamente
o conforto concedido por essa crença aos corações de boa
vontade que me incomodava. A convicção e o interesse por mim mesmo estavam estreitamente ligados. Como dizer isso a ela? Quando me voltei, June estava com os olhos
fechados e a respiração leve e regular.
Mas não estava dormindo. Quando apanhei a sacola que estava ao lado da cama, ela murmurou sem abrir os olhos.
- Eu queria relembrar aquele sonho mais uma vez. Estava no meu caderno de anotações, o sonho que precedia o sono, breve, sempre o mesmo, que a perseguia
há quarenta anos: dois cães correm num
caminho estreito na Gorge. O maior deixa um rastro de sangue, perfeitamente visível nas pedras brancas. June sabe que o prefeito de uma cidade próxima não mandou
seus homens atrás dos cães. Eles descem para as sombras dos penhascos altos, entram nas moitas cerradas e saem do outro lado. Ela os vê novamente no outro lado do
desfiladeiro, a caminho das montanhas e, embora estejam se distanciando dela, é nesse momento que o terror a domina. June sabe que eles vão voltar.
Eu a tranquilizei.
- Está anotado.
- Deve lembrar que ele chega quando estou ainda meio acordada. Eu os vejo realmente, Jeremy.
- Não vou esquecer.
Ela balança a cabeça com os olhos ainda fechados.
- Pode encontrar a saída sozinho?
Era quase uma piada, uma pálida ironia. Inclinei-me, beijei sua testa e murmurei.
- Acho que sou capaz.
Então atravessei o quarto silenciosamente e sal para o corredor e para o carpete com espirais vermelhas e amarelas, pensando, como sempre que a deixava,
que aquela fora a última vez.
E foi.
June morreu quatro semanas depois, "tranquilamente enquanto dormia", como disse a
enfermeira-chefe que telefonou para Jenny. Não acreditamos que tivesse sido assim, mas também não queríamos duvidar.
Ela foi enterrada no cemitério da igreja da cidadezinha próxima do Chestnut Reach. Fomos de carro com nossos filhos, dois sobrinhos e levamos
também Bernard. Foi uma viagem desconfortável. Fazia calor, havia muita gente no carro e consertos e tráfego intenso na estrada. Bernard, no banco da frente, não
disse uma palavra. Às vezes cobria o rosto com as mãos por um ou dois segundos. A maior parte do tempo olhava para a frente. Não parecia estar chorando. Jenny estava
no banco de trás com o bebê no colo. Ao lado dela as crianças discutiam sobre a morte. Nós ouvíamos, incapazes de mudar o assunto da conversa. Alexander, nosso filho
de quatro anos, não se conformava com a idéia de que iam pôr sua vovó, de quem ele gostava tanto, dentro de um caixão, pôr o caixão num buraco e cobrir com terra.
- Ela não gosta disso - afirmou ele, com a
maior segurança. Harry, o primo de sete anos, estava a par dos fatos.
- Ela está morta, idiota. Morta e gelada. Não sabe nada do que está acontecendo.
- Quando ela vai voltar?
- Nunca. Você não volta quando está morto.
- Mas quando ela volta?
- Nunca nunca nunca. Ela está no céu, idiota. - Quando ela vai voltar? Vovô? Quando, vovô? Foi um alívio ver tanta gente num lugar tão remoto.
Desde a igreja normanda os carros enfileiravam-se formando ângulos com a estrada, sobre a relva. O ar dançava sobre as capotas quentes. Eu estava apenas começando
a assistir enterros regularmente, até então exclusivamente cerimônias leigas por três amigos que morreram de
AIDS. A cerimônia anglicana daquele dia eu conhecia do cinema. Como uma das grandes falas de Shakespeare, a oração ao lado do túmulo, gravada em fragmentos da memória,
era uma sucessão de frases brilhantes, títulos de livros, cadências agonizantes que sopravam vida, alerta e pura, ao longo da espinha. Eu observava Bernard. Ele
estava à direita do vigário com os braços retos aos lados do corpo, olhando para a frente, como no carro, perfeitamente controlado.
Depois da cerimônia eu o vi se afastar dos amigos de June e caminhar entre as lajes mortuárias, parando aqui e ali para ler o que estava escrito, para finalmente
chegar a uma árvore. Parou na sombra, com os cotovelos apoiados no muro do cemitério. Fui até ele para dizer as poucas e embaraçosas frases que tinha preparado,
quando o ouvi pronunciar o nome de June em voz alta, por sobre o muro. Cheguei mais perto e vi que estava soluçando. Balançava o corpo para a frente e para trás,
para a frente e para trás, na sombra da árvore, e soluçava. Fiz meia-volta, sentindo-me culpado por interromper, e voltei rapidamente, passei pelos dois homens que
enchiam o túmulo de terra, alcançando a multidão que conversava, a tristeza esvaecendo no ar de verão à medida que se afastava do cemitério, seguindo pela estrada,
passando os carros estacionados, na
direção da entrada de um campo de relva não-aparada em cujo centro estava armada uma barraca de cor creme com as laterais enroladas para cima por causa do calor.
Atrás de mim, terra seca e pedras tilintavam nas pás dos coveiros. Mais adiante estava a cena que provavelmente June teria imaginado: crianças brincando de entrar
e sair do meio das cordas que sustentavam a barraca, garçons com paletós brancos engomados servindo drinques atrás de mesas sobre cavaletes cobertas com toalhas
e os primeiros convidados, um jovem casal, já rolando na relva.