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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÃES NEGROS
CÃES NEGROS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

CÃES NEGROS / Ian McEwan

 

 

 

 

 

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

CONTINUA

TERCEIRA PARTE - MAJDANEK, LES SALCES E ST. MAURICE DE NAVACELLES 1989

No dia seguinte Bernard não arredou pé do apartamento na Kreuzberg. Deitado no sofá na pequena sala de estar, parecia tristonho, preferindo a televisão à conversa.
Chamei um médico, amigo de Günter, para examinar a perna dele. Aparentemente não estava quebrada mas seria aconselhável tirar uma radiografia em Londres. No fim
da manhã saí para andar um pouco. As ruas pareciam de ressaca, com latas de cerveja amassadas e garrafas em volta das barracas de cachorro-quente, guardanapos de
papel manchados de mostarda e ketchup. À tarde, enquanto Bernard dormia, li os jornais e escrevi nossas conversas do dia anterior. À noite ele ainda não estava com
disposição para falar. Saí para outro passeio e tomei uma cerveja numa Kneipe local. As festividades estavam recomeçando, mas para mim era o bastante. Voltei para
o apartamento depois de uma hora e às dez e meia nós dois estávamos
dormindo.
O vôo de Bernard na manhã seguinte para Londres saía uma hora antes do meu para Montpellier, via Frankfurt e Paris. Eu tinha providenciado para que um dos
irmãos de Jenny
o fosse esperar em Heathrow. Bernard estava mais animado. Atravessou claudicando o terminal em Tegel, muito elegante, e usou a bengala emprestada para chamar um
funcionário da companhia de aviação, recomendando para não esquecer a cadeira de rodas que tinha encomendado. O funcionário garantiu que a cadeira estaria à sua
espera no portão de embarque.
Quando nos dirigíamos para o portão, eu disse.
- Bernard, eu queria perguntar uma coisa sobre os cães de June...
Ele me interrompeu.
Para a vida e o tempo? Vou dizer uma coisa. Pode esquecer essa bobagem sobre "face a face com o mal". Jargão religioso. Mas você sabe, fui eu quem contei
a ela a história do cão negro de Churchill. Está lembrado? O nome que ele deu à depressão que o atormentava de tempos em tempos. Acho que ele roubou a expressão
de Samuel Johnson. Assim, a idéia de June era de que se um cão era a depressão pessoal, dois cães significavam uma espécie de depressão cultural, os piores estados
de espírito da civilização. Na verdade, bem interessante. Muitas vezes fiz uso dessa idéia. Passou pela minha cabeça em Checkpoint Charlie. Não foi a bandeira vermelha,
você sabe. Acho que eles nem a viram. Você ouviu o que estavam gritando?
- Auslander raus.
- Fora estrangeiros. O Muro é derrubado e todo mundo está dançando na rua, porém mais cedo ou mais tarde...
Chegamos ao portão de embarque. Um homem de uniforme com alamares manobrou a cadeira de rodas atrás de Bernard e ele sentou com um suspiro.
Eu disse.
- Mas não era isso que eu queria perguntar. Ontem estive revendo minhas anotações. Na última vez que conversei com June, ela disse que eu perguntasse a você
o que foi que o prefeito de St. Maurice de Navacelles disse sobre os cães, durante o almoço no café, naquele dia...
- No Hôtel des Tilleuls? Para o que aqueles cães foram treinados? Um perfeito exemplo. A história do prefeito simplesmente não era verdade. Ou, pelo menos,
não havia nenhum meio de verificar. Mas June resolveu acreditar porque se
encaixava perfeitamente. Um caso perfeito de curvar os fatos às idéias.
Entreguei as malas de Bernard ao funcionário da companhia que as pôs atrás da cadeira de rodas. Depois ficou esperando que terminássemos de conversar. Bernard
recostou na cadeira com a bengala atravessada no colo. Preocupava-me ver meu sogro aceitar com tanta facilidade aquela condição de inválido.
- Mas, Bernard - eu disse. - Qual é a história? Ele disse que os cães foram treinados para quê? Bernard balançou a cabeça.
- Fica para outra vez, meu caro rapaz, muito obrigado por ter vindo comigo. - Ergueu a bengala com ponta de borracha, em parte como uma saudação, em parte
como um sinal para o funcionário da companhia aérea, que inclinou a cabeça para mim e levou seu passageiro para o avião.
Eu estava inquieto demais para descansar durante a hora de espera. Passei pelo bar, perguntando a mim mesmo se gostaria de tomar um café ou comer alguma
coisa antes de deixar a Alemanha. Fiquei algum tempo na livraria mas não comprei sequer um jornal, depois de ter devorado todos, no dia anterior, durante três horas.
Tinha ainda vinte minutos, tempo suficiente para dar outra volta pelo terminal. Geralmente, quando estou em trânsito num aeroporto, não a caminho da Inglaterra,
examino no quadro de partidas os vôos para Londres, para calibrar na minha lembrança as saudades de casa, de Jenny, da família. Quando olhava para a indicação de
um único vôo anunciado para Londres - no mapa de vôos internacionais Berlim era uma escala secundária - algo que Bernard dissera há pouco me trouxe à memória uma
das minhas primeiras lembranças de Jenny.
Em outubro de 1981 eu estava na Polônia como membro de uma amorfa delegação cultural convidada pelo governo polonês. Nessa época eu era administrador de uma
companhia teatral provinciana moderadamente bem-sucedida. No grupo havia um escritor, um crítico de arte de um jornal, um tradutor e dois ou três burocratas da cultura.
A única mulher era Jenny Tremaine, que representava uma instituição sediada em Paris e fundada em Bruxelas. Por sua beleza e suas maneiras um tanto distantes, ela
despertou a hostilidade de alguns membros da delegação. O escritor especialmente, ofendido com o paradoxo de uma bela mulher não se impressionar com sua fama, apostou
com o jornalista e um dos burocratas
para ver qual deles a "conquistava" primeiro. A idéia geral era de que a senhorita Tremaine, com sua pele branca e sardenta, olhos verdes, cabelo vermelho, seus
modos eficientes com sua agenda e seu francês impecável, devia ser posta no seu devido lugar. No tédio inevitável de uma visita oficial, tínhamos muito tempo para
conversas e drinques no bar do hotel à noite. O efeito foi desanimador. Era impossível trocar uma ou duas palavras com aquela mulher, cuja atitude brusca, eu logo
percebi, apenas escondia seu, nervosismo, sem que os outros ficassem piscando maliciosamente para mim nas costas dela, cutucando um ao outro com O cotovelo e me
perguntando depois se eu "estava no páreo".
O que me deixou mais furioso foi o fato de que, em certo sentido, eu estava. Poucos dias depois da nossa chegada a Varsóvia, eu havia me transformado num
caso desesperador de paixão à moda antiga, incurável e ardente, e para o escritor e seus amigos, uma complicação hilariante. De manhã, quando tomávamos café e ela
atravessava a sala para a nossa mesa, eu sentia um aperto tão violento no peito, uma sensação de vazio tão assustadora no estômago que, quando ela chegava perto
de nós, eu não podia ignorá-la nem
ser casualmente cortês sem revelar aos outros o que sentia. Eu nem tocava no ovo cozido e no pão de centeio.
Não tínhamos oportunidade para ficar a sós. Passávamos o dia nas salas dos comitês ou nos teatros ouvindo palestras, na companhia de editores, tradutores,
jornalistas, funcionários do governo e o pessoal do Solidariedade, pois foi no tempo em que o Solidariedade começava sua ascensão, e, embora não pudéssemos saber,
estava
também a poucas semanas do fim, do seu desaparecimento, depois do golpe do general Jaruzelski. O assunto era um só. A Polônia. Sua urgência rodopiava em volta de
nós, pressionando quando passávamos de uma sala pouco iluminada e cheia de fumaça de cigarro para outra. O que era a Polônia? O que era o Solidariedade? A democracia
tinha meios para se desenvolver? Poderia sobreviver? Os russos iam invadir a Polônia? A
Polônia fazia parte da Europa? E os camponeses? As filas para comprar alimento cresciam a cada dia. O governo culpava o Solidariedade, o povo todo culpava o governo.
Havia marchas de protesto nas ruas, investidas da polícia Zomo, com cassetetes, a ocupação da universidade pelos estudantes e mais discussões durante toda a noite.
Eu jamais havia me preocupado muito com a Polônia, mas depois de uma semana tornei-me, como todos os outros, estrangeiro e polonês, um especialista apaixonado, se
não em respostas, pelo menos num tipo certo de problema. Meu conceito de política viu-se agitado por um turbilhão. Os poloneses, que me despertavam uma admiração
instintiva, instavam comigo para que eu
desse apoio aos políticos do ocidente nos quais eu menos confiava, e um discurso anticomunista - até então associado a ideólogos retrógrados de direita - fluía com
facilidade ali, onde o comunismo consistia numa rede de privilégios, corrupção e violência, um distúrbio mental, um
conjunto de mentiras irrisórias e improváveis e, o mais evidente, o instrumento de ocupação de uma potência estrangeira.
Em todos os lugares, lá estava Jenny Tremaine, separada de mim por algumas cadeiras. Minha garganta doía, meus olhos ardiam com a fumaça de cigarro nas salas
não ventiladas, sentia-me enjoado e atordoado pelas longas noitadas e pela ressaca de cada dia, apanhei um resfriado, nunca encontrava lenços de papel no bolso e
estava sempre com febre alta. A caminho de uma palestra no teatro, vomitei no meio-fio, para desgosto de uma mulher na fila do pão, que pensou que eu estivesse bêbado.
Minha febre, meu entusiasmo e minha aflição eram a combinação da Polônia, Jenny e o escritor cínico e zombeteiro e seus amigos que eu agora desprezava e que insistiam
em me incluir no seu grupo e me provocavam, mantendo-me informado diariamente em que posição eu estava na corrida.
No começo da segunda semana, Jenny surpreendeu-me com o convite para acompanhá-la à cidade de Lublin, a mais de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia.
Ela queria tirar algumas fotografias do campo de concentração de Majdanek para o livro que um amigo estava escrevendo. Três anos antes, quando trabalhava no departamento
de pesquisa de uma rede de televisão, eu tinha estado em Belsen e prometi a mim mesmo nunca mais olhar para um campo de concentração. Uma visita era toda a educação
necessária, a segunda era morbidez. Mas agora aquela mulher com sua palidez fantasmagórica me convidava para voltar a um campo. Estávamos na frente da porta do meu
quarto, logo depois do café da manhã, já atrasados para O primeiro compromisso do dia e ela parecia querer uma resposta imediata. Explicou que nunca visitara um
campo de concentração e gostaria de ir com alguém que pudesse considerar amigo. Quando terminou de dizer isso, pousou os dedos frios levemente nas costas da minha
mão. Segurei a mão dela e, quando Jenny deu um passo para a frente, eu a beijei. Foi um beijo longo no vazio
tristonho e impessoal do corredor do hotel. Ao som de uma porta que se abria, separamo-nos e eu disse que iria com ela. Então alguém na escada me chamou. Não tivemos
tempo para conversar outra vez até a manhã seguinte quando eu contratei um táxi para a viagem. Naquele tempo, o zloty polonês não valia nada e o dólar americano
era supremo.
Consegui alugar o carro para nos levar a Lublin, esperar e nos levar de volta a Varsóvia, por vinte dólares. Conseguimos sair sem que o escritor e seus amigos nos
vissem. O beijo, a sensação, o fato extraordinário, a expectativa de outro e o que viria depois preocupou-me durante vinte e quatro horas. Mas de manhã, passando
pela periferia tristonha de Varsóvia, sabendo para onde estávamos indo, a sensação do beijo esmaeceu. Sentados cada um numa extremidade do banco traseiro do Lada,
trocamos informações básicas sobre nossas vidas. Foi quando fiquei sabendo que Jenny era filha de Bernard Tremaine, que eu conhecia vagamente de nome pelos programas
de rádio e por sua biografia de Nasser. Jenny falou sobre a separação dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe que morava sozinha numa região remota da França
e que havia abandonado o mundo, trocando-o por uma vida de meditação espiritual. Assim que ela falou em June, fiquei curioso para conhecê-la. Contei a morte dos
meus pais num acidente de carro quando eu tinha oito anos, que tinha crescido com minha irmã Jean e depois morado com ela e minha sobrinha Sally, para quem eu era
ainda uma espécie de pai e o meu costume de me aproximar dos pais dos outros. Acho que naquele dia comentamos com bom humor as possibilidades que eu teria de conseguir
a afeição da mãe difícil de Jenny.
Minha lembrança vaga da Polônia entre Varsóvia e Lublin é de um imenso campo arado marrom-escuro atravessado por uma estrada reta e sem árvores. Nevava um
pouco quando chegamos. Seguimos o conselho de amigos poloneses e pedimos para o chofer nos deixar no centro de Lublin. Eu não tinha imaginado que o campo onde foram
exterminados todos os judeus, três quartos da sua população, ficasse tão perto da cidade. Ficam lado a lado, Lublin e Majdanek, matéria e antimatéria. Paramos no
lado de fora da entrada principal para ler o cartaz com a informação sobre os números de poloneses, lituanos, russos, franceses, britânicos e americanos mortos no
campo. Tudo estava quieto. Não havia ninguém por perto. Por um momento, relutei em entrar. O murmúrio de Jenny me sobressaltou.
- Nem mencionam os judeus, está vendo? A coisa continua. E é oficial. - E acrescentou, mais para ela mesma - Os cães negros.
Ignorei essas últimas palavras. Quanto ao resto, mesmo descontando a hipérbole, uma verdade residual foi o suficiente para que Majdanek se transformasse,
para mim, de um monumento, um desafio cívico ao esquecimento, numa doença da imaginação e num perigo vivo, uma conivência meramente consciente com o mal. De braços
dados entramos, passamos pelas cercas externas e pela casa da guarda, que ainda estava em uso. Junto do degrau estavam duas garrafas de leite cheias. Dois centímetros
de neve eram a última adição à limpeza obsessiva do campo. Atravessamos a terra de ninguém, não mais de braços dados. Na frente estavam as torres de vigia, cabanas
atarracadas sobre palafitas altas com telhados pontudos e precárias escadas de madeira, todas dando para a área que ficava entre a cerca dupla interna. No meio disso
tudo, os barracões, mais compridos e mais numerosos do que eu havia imaginado. Ocupavam todo o nosso horizonte. Atrás deles, flutuando livremente contra o céu branco
- alaranjado, como um sujo e vagabundo barco a vapor com uma única chaminé, estava o crematório. Não falamos durante uma hora. Jenny consultou as instruções e tirou
as fotografias. Entramos atrás de um grupo de alunos da escola primária num barracão com gaiolas de arame cheias de sapatos, dezenas de milhares de sapatos, amassados
e murchos como frutas secas. Em outro barracão, mais sapatos e, num terceiro, por mais incrível que pareça, sapatos também, não dentro de gaiolas, mas espalhados
pelo chão. Vi uma bota ferrada ao lado de um sapatinho de bebé com a figura de coelhinho visível ainda no meio da poeira. A vida reduzida a um sapatinho de tricô.
A extravagante escala numérica, os números fáceis
de serem ditos - dezenas e centenas de milhares, milhões - negavam à imaginação suas próprias simpatias, seu direito à compreensão do sofrimento, e nos levava insidiosamente
à premissa do perseguidor, de que a vida não valia nada, era lixo para ser inspecionado em pilhas. Continuamos a andar e minhas emoções morreram. Nada podíamos fazer
para ajudar. Não havia ninguém para alimentar ou libertar. Éramos turistas a passeio. Ou vamos a um lugar daqueles e nos desesperamos, ou enfiamos as mãos nos bolsos,
seguramos as moedas quentes e soltas e descobrimos que demos um passo na direção daqueles cujos sonhos são pesadelos. Aquela era a nossa vergonha inevitável, nossa
parte na miséria. Estávamos do outro lado, entramos ali livremente, como entrava o comandante, ou seu líder político, tocando isto ou aquilo, conhecendo o acesso
para fora, certos da nossa próxima refeição.
Depois de algum tempo não suportei mais a idéia das vítimas e comecei a pensar nos algozes. Estávamos andando entre os barracões. Tão bem construídos, tão
duráveis. Caminhos limpos iam de cada porta à passagem onde estávamos. Os barracões eram tantos que não dava para ver o último da fila. E isso era só uma das fileiras,
uma parte do campo, e aquele era apenas um campo, pequeno, comparado aos outros. Passei à admiração
inversa, ao espanto tristonho. Sonhar com aquele empreendimento, planejar aqueles campos, construí-los e se dar ao trabalho de guarnecer, administrar e manter, trazendo
das cidades e dos povoados seu combustível humano. Tanta energia, tanta dedicação. Como era possível chamar isso de erro?
Encontramos outra vez as crianças e entramos com elas na construção de tijolos com a chaminé. Como todos que passavam por ali, notamos o nome
do fabricante nas portas dos fornos. Um pedido especial imediatamente atendido. Vimos um velho tambor de cianeto, Zyklon B, fornecido pela firma de Degesch. Ao sairmos,
Jenny falou pela primeira vez em uma hora para me dizer que num dia, em novembro de 1943, as autoridades alemãs haviam exterminado com metralhadoras trinta e seis
mil judeus de Lublin. Eles os fizeram deitar em covas imensas e os mataram ao som de música de dança num amplificador. Falamos outra vez da omissão no cartaz na
entrada do campo.
- Os alemães fizeram o trabalho para eles. Mesmo não havendo mais nenhum judeu, eles ainda os odeiam - disse Jenny.
De repente eu lembrei.
- O que foi que você disse sobre cães?
- Cães negros. É uma frase da família, inventada por minha mãe. - Ia continuar, mas mudou de idéia.
Voltamos para Lublin. Pela primeira vez vi que era uma cidade atraente. Tinha escapado da destruição e da construção do pós-guerra que desfiguraram Varsóvia.
Estávamos numa ladeira calçada com pedras que o pôr-do-sol brilhante e alaranjado transformava em pepitas de ouro. Era como se acabássemos de sair de um longo
cativeiro, felizes por fazer parte do mundo outra vez, do cotidiano da hora do rush tranquilo de Lublin. Com a maior naturalidade, Jenny enfiou o braço no meu e,
balançando a câmara pela correia, contou uma história sobre uma amiga polonesa que foi para Paris para estudar culinária. Eu já disse que sempre fui reticente em
assuntos de amor e de sexo e que a especialista em sedução era minha irmã. Mas naquele dia, livre da repressão da minha natureza, eu fiz uma coisa brilhante, fora
do comum para mim. Interrompi o que Jenny estava dizendo e a beijei. Depois disse que ela era a mulher mais bonita que eu já vira e que a coisa que mais desejava
era passar o resto do dia fazendo amor com ela. Os olhos verdes estudaram os meus, ela ergueu o braço e por um momento pensei que ia me esbofetear. Mas ela apontou
para uma porta estreita no outro lado da rua com uma tabuleta desbotada. Pisando nas pepitas de ouro entramos no Hotel Wisla. Passamos três dias em Lublin, depois
de dispensar o táxi. Dez meses depois estávamos casados.
Parei o carro alugado no aeroporto de Montpellier na frente da casa escura. Desci e fiquei parado por algum tempo no pomar, olhando para o céu estrelado de novembro,
dominando minha relutância em entrar na casa. Nunca era uma experiência agradável voltar à bergerie depois dos meses ou às vezes semanas em que ficava fechada. Ninguém
mais estivera ali depois das nossas longas férias de verão, da nossa barulhenta e caótica partida de manhã, no começo de setembro, os últimos ecos das vozes das
crianças já haviam desaparecido no silêncio das pedras antigas e a bergerie acomodou-se outra vez na sua longa perspectiva, não de semanas de férias, ou das visitas
das crianças em anos futuros, nem mesmo de pertencer durante décadas aos mesmos proprietários, mas de séculos, séculos rurais. Eu na verdade não acreditava, mas
podia imaginar que, na nossa ausência, o espírito de June, suas muitas almas, retomavam sorrateiramente a posse da casa, recapturando não apenas seus móveis e utensílios
de cozinha e quadros, mas a dobra da capa de uma revista, a antiga mancha que parecia o mapa da Austrália na parede do banheiro e a forma latente do seu corpo na
jaqueta que ela usava para fazer jardinagem,
dependurada ainda atrás de uma porta porque ninguém tinha coragem de jogar fora. Depois de uma ausência, até o espaço entre os objetos estava alterado, inclinado,
descorado, marrom-claro ou a essência dessa cor, e os sons - o primeiro giro da chave na fechadura - adquiriam uma acústica diferente, um eco sem vida pouco além
do alcance dos nossos ouvidos, que sugeria uma presença invisível, quase capaz de atender a porta. Jenny
detestava abrir a casa. Era mais difícil à noite. A bergerie foi se expandindo aos poucos, através dos anos e a porta da frente não ficava mais ao lado do quadro
de luz. Era preciso atravessar a sala de estar e a cozinha para chegar até ele e eu tinha esquecido a lanterna.
Abri a porta e parei na frente de um muro de trevas. Estendi o braço para a estante onde sempre tentávamos não esquecer de deixar uma vela e uma caixa de
fósforos. Não encontrei nada. Fiquei imóvel ouvindo o silêncio. Por mais que eu procurasse ser racional, não conseguia afastar a idéia de que uma casa onde durante
tantos anos uma mulher se entregara à contemplação da eternidade, alguma ténue emanação, uma teia finíssima de consciência, permanecera e sentia a minha presença.
Não tinha coragem de dizer o nome de June em voz alta, mas era o que eu queria fazer, não para chamar o espírito, mas para mandá-lo embora. Ao invés disso, limitei-me
a pigarrear com ceticismo masculino. Com as luzes acesas, o rádio ligado, o peixe comprado numa barraca na beira da estrada, fritando no óleo de oliva de June, os
fantasmas recuariam para as sombras. A luz do dia ia ajudar também, mas seriam necessários uns dois dias e umas duas noites tensas para que a casa voltasse a ser
minha. Para tomar posse imediata da bergerie era preciso chegar com crianças. Com a redescoberta de brincadeiras e projetos esquecidos, o riso e as lutas amistosas
nos beliches - o espírito graciosamente cedia à energia dos vivos e podíamos ir a qualquer lugar da casa, mesmo ao quarto de June ou ao seu gabinete de trabalho,
sem
nenhum problema.
Com o braço estendido na frente do rosto, passei pelo corredor. Por toda a parte sentia o perfume adocicado que lembrava June. O perfume do sabonete de lavanda
que ela comprava aos montes. Não tínhamos usado nem a metade do estoque. Tateando no escuro, atravessei a sala e abri a porta da cozinha. Ali o cheiro era de metal
e gás. O quadro de fusíveis e as chaves principais ficavam num armário na parede, na outra extremidade. Mesmo no escuro a cozinha parecia uma mancha mais negra na
minha frente. Quando cheguei ao lado da mesa, a sensação de estar sendo observado ficou mais intensa. A superfície da minha pele tinha se transformado num órgão
de percepção, sensível ao escuro e a cada molécula de ar. Meus braços nus registravam uma ameaça. Alguma coisa estava acontecendo, a cozinha não parecia a mesma.
Eu me movia na direção errada. Pensei em voltar, mas achei que era ridículo. O carro era pequeno demais para passar a noite. O hotel mais próximo ficava a uns cinquenta
quilômetros e era quase meia-noite.
A sombra informe e mais escura do armário com o quadro de luz estava a uns vinte metros e eu caminhava na direção dela guiando-me com a mão na borda da mesa
da cozinha. Desde a minha infância eu não sentia tanto medo do escuro. Como um personagem de história em quadrinhos, cantarolei em voz baixa sem muita convicção.
Não consegui me lembrar de nenhuma música, e a sequência de sons
murmurados ao acaso era idiota. Minha voz estava fraca. Eu merecia que me acontecesse alguma coisa. Então a idéia voltou, mais clara desta vez, de que tudo que eu
tinha a fazer era ir embora. Minha mão encostou em alguma coisa dura e redonda. Era o puxador da gaveta da mesa. Quase o puxei, mas desisti. Obriguei-me a seguir
em frente, até passar completamente pela mesa. A sombra na parede era tão escura que parecia pulsar. Tinha
centro, mas nenhum contorno. Estendi a mão para ela e foi então que a minha coragem desapareceu. Não ousei tocá-la. Recuei um passo e fiquei parado, indeciso. Estava
encurralado entre minha razão, que me dizia para ligar a chave com um movimento rápido e verificar, com a luz artificial, que tudo estava como sempre tinha estado,
e meu pavor supersticioso, cuja simplicidade era maior do que a realidade do cotidiano.
Acho que devo ter ficado imóvel por mais de cinco minutos. Num determinado momento quase avancei para a frente para abrir a porta do quadro, mas as primeiras
ordens de movimento não
chegaram às minhas pernas. Eu sabia que se saísse da cozinha não voltaria mais naquela noite. Assim fiquei ali até me lembrar da gaveta da mesa e porque tinha pensado
em abri-la. Avela e a caixa de fósforos que deviam estar ao lado da porta da
frente deviam estar ali. Escorreguei a mão para trás, pela mesa, encontrei a gaveta e procurei às cegas entre tesouras de jardim, tachinhas e pedaços de barbante.
O toco de vela, com pouco mais de dois centímetros, acendeu na primeira tentativa. As
sombras do quadro de fusíveis flutuaram contra a parede quando me aproximei. Parecia diferente. A pequena alça de madeira da porta estava mais comprida, mais ornamentada
e num ângulo diferente. Eu estava a sessenta centímetros da porta quando o ornamento se transformou num escorpião, gordo e amarelo, com as pinças curvadas acima
do eixo da diagonal e a cauda forte e segmentada escondendo a alça.
Essas criaturas são quelicerados cuja origem remonta à era cambriana, quase 6OO milhões de anos atrás, e é uma espécie de inocência, uma ignorância completa
das condições do período moderno pós-holoceno que as faz entrar nas casas dos macacos recentemente criados. Encontramos escorpiões nos muros, em lugares abertos,
suas pinças e ferrão patéticos, defesas ultrapassadas inócuas contra a força de um pé calçado. Apanhei uma pesada colher de madeira e matei o escorpião com um único
golpe. Ele caiu no chão e eu o amassei com o pé, por garantia. Então tive ainda de superar a relutância em por a mão onde seu corpo havia estado. Lembrei que alguns
anos atrás havíamos encontrado um ninho com filhotes de escorpião naquele mesmo quadro.
As luzes se acenderam, a geladeira redonda dos anos cinquenta estremeceu e começou o seu lamento metálico e familiar. Eu não queria pensar
imediatamente na minha experiência. Levei a bagagem para dentro, arrumei uma cama, fritei meu peixe, coloquei um disco de Art Pepper a todo volume e tomei meia garrafa
de vinho. Adormeci sem dificuldade às três horas da manhã. No dia seguinte comecei a preparar a casa para as férias de dezembro. Fui seguindo os itens da minha lista.
Passei várias horas no telhado, arrumando as telhas deslocadas por uma tempestade em setembro,
e o resto do dia trabalhando dentro da casa. Fazia ainda calor e no fim da tarde dependurei a rede no lugar favorito de June, sob o tamarindo. Ali deitado eu via
a luz dourada sobre o vale que levava a St. Privat, e, mais além, o sol de inverno quase encostando no topo das colinas em volta de Lodève. Durante todo o dia eu
tinha pensado no meu medo da noite anterior. Duas vozes indistintas haviam me seguido pela casa toda enquanto eu trabalhava e agora, deitado na rede, com um bule
de chá ao meu lado, elas ficaram mais claras.
June estava impaciente. "Como pode fingir que duvida do que está bem na frente dos seus olhos?
Como pode ser tão perverso, Jeremy? Você sentiu a minha presença assim que entrou na casa. Teve uma premonição de perigo e depois a confirmação de que teria levado
uma picada perigosa se não desse atenção aos seus instintos. Eu simplesmente o avisei e o protegi e se está disposto a qualquer coisa para manter intacto seu ceticismo,
é um ingrato e eu não devia ter me dado ao trabalho. O racionalismo é uma fé cega. Jeremy, como pode
esperar ver algum dia?"
Bernard estava excitado. "Este foi sem dúvida um exemplo muito útil! É claro que não se pode descartar a possibilidade de uma forma de consciente que sobrevive
à morte e que agiu, nesse caso, no seu melhor interesse. Você deve manter a mente sempre aberta. Cuidado para não ignorar os fenômenos que não concordam com as teorias
atuais. Por outro lado, na ausência de certas provas, tanto de um lado quanto de outro, por que saltar para uma conclusão tão radical sem considerar outras possibilidades
mais simples. Você "sentiu a presença de June" na casa várias vezes - simplesmente outro modo de dizer que este lugar pertenceu a ela, está ainda cheio de coisas
dela e que, estando aqui, especialmente depois de uma longa ausência e antes que sua família ocupe todos os cômodos, é natural que pense nela. Em outras palavras,
esta "presença" estava na sua mente e você a projetou para o ambiente que o rodeia. Dado o medo que temos dos mortos, é compreensível que sentisse alguma coisa quando
atravessou a casa no escuro. E dado seu estado de espírito, o quadro de luz sobre o balcão tinha de
parecer um objeto ameaçador - uma mancha mais escura no escuro, não era isso? No fundo da sua memória estava a lembrança do ninho de escorpiões. E você deve considerar
a possibilidade de ter percebido a forma do escorpião subliminarmente, à fraca luz da vela. E também o fato de os seus pressentimentos serem justificados. Bem, meu
caro rapaz! Escorpiões são muito comuns nesta parte da França. Por que um deles não podia estar sentado no quadro de luz? Além disso, suponha que ele tivesse picado
sua mão. Seria fácil chupar para fora o veneno. Não teria mais de um ou dois dias de desconforto - afinal, não era um escorpião negro. Por que um
espírito ia se abalar do além-túmulo para livrá-lo de um perigo sem importância? Se é este
o nível das preocupações dos mortos, por que não intercedem para evitar as inúmeras tragédias humanas que acontecem todos os dias?"
"Bobagem!" ouvi June exclamar. "Como vocês iam saber, se fizéssemos isso? De qualquer modo vocês não acreditariam. Eu protegi Bernard em Berlim e você a
noite passada porque queria mostrar uma coisa, queria mostrar o pouco que você sabe sobre o universo feito por Deus e repleto de Deus. Mas não existe nenhuma evidência
que um cético não deturpe para encaixá-la no seu esquema
minúsculo..."
"Tolice", murmurou Bernard no meu outro ouvido. "O mundo que a ciência está revelando é um lugar cintilante e cheio de maravilhas. Não precisamos inventar
um deus só porque não entendemos tudo. Nossa investigação mal começou!"
"Acha que estaria me ouvindo agora se uma parte de mim não existisse ainda?"
"Você não está ouvindo coisa alguma, meu caro rapaz. Está inventando nós dois, extrapolando o que já sabe. Não há mais ninguém aqui a não ser você."
"Há Deus", disse June, "e há o demônio."
"Se eu sou o demônio", disse Bernard, "então o mundo não é um lugar tão ruim."
"A medida da maldade de Bernard é exatamente a sua inocência. Você esteve em Berlim, Jeremy. Viu o mal que ele e os iguais a ele fizeram em nome do progresso."
"Esses monoteístas beatos! A mesquinhez, a intolerância, a ignorância, a crueldade que eles soltaram no mundo com as suas certezas..."
"Deus é amor e ele vai perdoar Bernard..." "Podemos amar sem um deus, muito obrigado. Detesto o modo pelo qual os cristãos sequestraram o mundo."
Essas vozes instalaram-se em minha mente, me perseguiam e começaram a me atormentar. No dia
seguinte, quando eu estava podando os pessegueiros no pomar, June disse que a árvore na qual eu trabalhava e a sua beleza eram criação de Deus. Bernard disse que
nós sabíamos muita coisa sobre como aquelas e outras árvores tinham evoluído e nossa explicação não exigia um deus.
Afirmações e contra-afirmações se concatenavam enquanto eu rachava lenha, desentupia as calhas e varria os quartos. Era uma cantilena da qual eu não podia me livrar.
Continuava até mesmo quando eu conseguia prestar atenção em outras coisas. Se eu as escutasse, não aprendia nada. Cada proposição bloqueava a anterior ou era bloqueada
pela seguinte. Era uma discussão autocanceladora, uma multiplicação de zeros e eu não podia fazê-los calar. Quando terminei meu trabalho e espalhei minhas anotações
das memórias na mesa da cozinha, meus sogros ergueram suas vozes.
Resolvi entrar na conversa.
"Escutem, vocês dois. Vocês estão em reinos diferentes, cada um fora da área de competência do outro. Não compete à ciência provar ou negar a existência
de Deus e não compete ao espírito medir o mundo."
Fez-se um silêncio embaraçoso. Pareciam esperar que eu continuasse. Então ouvi ou fiz Bernard dizer em voz baixa, para June, não para mim, "Tudo bem, mas
a Igreja sempre quis controlar a ciência. Na verdade, todo o conhecimento. Veja o caso de Galileu..."
E June interrompeu dizendo, "Foi a Igreja que manteve o conhecimento vivo durante séculos na Europa. Lembra quando estávamos em Cluny, em 1954, daquele homem
que nos mostrou a biblioteca ...?"
Quando telefonei para casa e disse a June que achava que estava ficando louco, ela nem procurou me tranquilizar.
- Você quis as histórias deles. Você os encorajou, você os cortejou. Agora você os tem, com as brigas e tudo o mais. - Depois de um segundo acesso de riso,
ela perguntou por que eu não escrevia o que eles estavam dizendo.
- Não adianta. É sempre a mesma coisa.
- Exatamente o que eu sempre digo. Mas você não quis ouvir. Está sendo castigado por reviver tudo isso.
- Por quem?
- Pergunte à minha mãe. Em outro dia claro, logo depois do café, abandonei todas as responsabilidades, absolvi a mim mesmo de todos os trabalhos mentais
e, com uma deliciosa sensação de estar cabulando a escola, calcei minhas botas de caminhada, descobri um mapa em escala grande, guardei uma garrafa com água e duas
laranjas na minha mochila.
Escolhi a trilha atrás da bergerie que sobe para o norte acima de uma ravina, passa por bosques de chaparros, faz uma volta sob o rochedo maciço do Pas de
l'Azé, até chegar num platô alto.
Com passo firme pode-se chegar em meia hora na Causse de Larzac, com a brisa fresca entre os pinheiros e a vista que se estende até o Pic de Vissou, e além dele,
a setenta quilômetros, avista-se uma faixa prateada do Mediterrâneo. Segui a trilha arenosa que atravessa o bosque de pinheiros, passei por afloramentos de calcário
gastos pelo vento e pela chuva, que parecem ruínas, depois o campo aberto que sobe na direção da Bergerie de Tédenat. Desse ponto eu avistava o platô que ficava
a poucas horas de caminhada da
cidadezinha de St. Maurice de Navacelles. Menos de um quilômetro e meio adiante ficava a enorme fenda do Gorge Vis. Um pouco para a esquerda, na sua borda, estava
o Dólmen de la Prunarède.
Antes havia a descida, seguindo a linha das árvores, que ia dar em La Vacquerie. Entrar e sair a pé de uma dessas cidadezinhas é um prazer. Durante algum
tempo podemos manter a ilusão de que enquanto os outros vivem presos a casas, relacionamentos e trabalho, nós somos auto-suficíentes e livres, sem o peso de haveres
e obrigações. É uma sensação privilegiada de leveza que não se pode ter passando de carro, como parte do tráfego. Resolvi não parar no bar para um café e só parei
para olhar o monumento no outro lado da rua e copiar a inscrição no meu caderninho de bolso.
Deixei a cidade por uma estrada secundária e segui para o norte num belo caminho que vai dar no Gorge. Pela primeira vez desde a minha chegada eu estava
realmente satisfeito e senti voltar meu amor por aquela parte da França. O som irritante da briga de June e Bernard estava desaparecendo, bem como a excitação inquieta
de Berlim. Era como se inúmeros músculos pequeninos na minha nuca estivessem se distendendo lentamente e nesse processo abrindo dentro de mim um espaço generoso
de calma para conter a paisagem extensa que eu atravessava. Como fazia ocasionalmente quando me sentia feliz, revivi o velho padrão, a pequena
história da minha existência, desde os oito anos até Majdanek e como eu havia renascido. A mil quilômetros de distância, em ou perto de uma casa entre milhares,
estavam Jenny e quatro crianças, a minha tribo. Eu pertencia ao mundo, minha vida tinha raízes e era rica. A trilha era lisa e caminhei com passo regular. Comecei
a ver como ia ordenar o material para escrever as memórias. Pensei no meu trabalho e como podia remodelar meu escritório em benefício dos que trabalhavam para mim.
Esses e outros planos ocuparam minha mente
até St. Maurice.
A sensação de auto-suficiência estava ainda comigo quando entrei na cidade. Tomei uma cerveja no Hôtel des Tilleuls, talvez na mesma mesa em que o jovem
casal em lua-de-mel ouvira a história do prefeito durante o almoço. Reservei um quarto para aquela noite e comecei a caminhada de um quilômetro e meio até o dólmen.
Para ganhar tempo, segui pela estrada principal. A uns cem metros à minha direita ficava a borda do desfiladeiro, obscurecida por uma elevação de terra, e à esquerda
e na minha frente estendia-se a paisagem mais áspera da Causse, sólo duro e seco, artemísia, postes telegráficos. Logo depois das ruínas da fazenda la Prunarède,
comecei a descer por uma trilha arenosa e cinco minutos depois estava no dólmen. Tirei a mochila das costas, sentei na grande pedra plana e descasquei uma laranja.
A pedra estava pouco aquecida pelo sol da tarde. No caminho eu tinha resolvido manter a mente livre de intenções, mas quando cheguei elas me pareceram bastante claras.
Ao invés de continuar como vítima passiva das minhas vozes, eu partira no encalço delas, para recriar Bernard e June sentados ali, cortando seu salsichão, esfarelando
seu pão seco, olhando para o norte, para o outro lado do desfiladeiro, para o seu futuro: adotar o otimismo da sua geração e esclarecer as primeiras dúvidas de June
às vésperas do confronto. Eu queria surpreendê-los quando se amavam, antes que tivesse início a briga que duraria o resto de suas vidas.
Mas sentia-me
purificado depois da caminhada de cinco horas, equilibrado e decidido, nem um pouco preparado para fantasmas. Tinha a mente cheia ainda com meus planos e projetos.
Não estava mais à disposição para ser assombrado. As vozes haviam desaparecido de verdade. Não havia mais ninguém ali, eu estava sozinho. O sol baixo de novembro,
à minha direita, escolhia cuidadosamente para iluminar os desenhos complexos do rochedo distante. Eu não
precisava nada além do prazer de estar ali e das lembranças dos piqueniques que fizemos com Bernard e meus filhos, usando a pedra enorme como mesa.
Terminei as duas laranjas e enxuguei as mãos na camisa como, um menino. Eu pretendia voltar pela trilha que acompanha a beirada do desfiladeiro, mas desde
a minha última visita ela se enchera de espinheiros. Depois de uns cem metros, tive de voltar. Fiquei irritado. Pensei que estava no controle e aquilo aparecia para
refutar minha presunção. Mas me acalmei lembrando que aquele era o caminho que June e Bernard tomaram para voltar a St. Maurice naquela noite.
Era o caminho deles, o meu era diferente - até a velha fazenda e seguir pela estrada outra vez. Se eu tinha de fazer um símbolo de uma trilha cheia de mato, esse
era o que mais me agradava.
Minha intenção era terminar essa parte das memórias neste ponto, quando voltei do dólmen sentindo-me suficientemente livre dos meus personagens para escrever
sobre eles. Mas preciso contar brevemente o que aconteceu no restaurante do hotel naquela noite, pois foi uma, peça aparentemente representada só para mim. Foi a
personificação, embora distorcida, dos meus pensamentos, da solidão da minha infância. Representou uma purificação, um exorcismo, no qual eu tomei parte tanto por
minha sobrinha Sally, quanto por mim mesmo, e me vinguei por nós dois. Descrita nos termos de June, foi outra "obsessão", à qual ela estava presente, me observando.
Sem dúvida eu tirei minhas forças da coragem com que ela enfrentou sua provação a um quilômetro e meio de distância e há quarenta anos. Talvez June tivesse dito
que o que eu realmente tinha de enfrentar estava dentro de mim, uma vez que, no fim, fui refreado e chamado à razão por palavras geralmente usadas, para conter cães.
Ça suffit!
Não lembro como começou, mas em algum momento, depois de voltar ao Hôtel des Tilleuls, quando sentei no bar e tomei um Pernod, ou meia hora mais tarde quando
desci do meu quarto à procura de um sabonete, fiquei sabendo que a patronne era Madame Monique Auriac, um nome que eu lembrava das minhas anotações. Sem dúvida era
filha da Madame Auriac que, tinha tomado conta de June e talvez a jovem que serviu o almoço enquanto o prefeito contava sua história. Pensei em fazer algumas perguntas
e descobrir o quanto ela lembrava. Mas de repente vi que o bar e o restaurante estavam vazios. Ouvi vozes na cozinha. Achando que o tamanho do hotel justificava
minha transgressão, empurrei as portas de vaivém muito arranhadas e entrei.
Na minha frente, sobre a mesa, estavam um cesto de vime cheio de peles de animais ensanguentadas. Na outra extremidade da cozinha
alguém estava discutindo. Madame Auriac, seu irmão, que era o cozinheiro, e a jovem arrumadeira e, garçonete olharam para mim e continuaram a discussão. Fiquei esperando
perto do fogão onde a sopa fervia na panela. Eu teria saído discretamente depois de meio minuto se não tivesse percebido que a discussão me dizia respeito. O hotel
devia estar fechado. Porque a arrumadeira tinha permitido que o cavalheiro da Inglaterra ficasse por aquela noite - Madame Auriac fez um gesto na minha direção -,
ela, Madame Auriac, em nome da coerência, fora obrigada a aceitar uma família que ocupou dois quartos e agora acabava de chegar uma senhora de Paris. Como toda essa
gente ia comer? E não tinham
pessoal suficiente.
O irmão disse que não era problema desde que todos os hóspedes se contentassem com um menu de setenta e cinco francos - sopa, salada, coelho, queijo - e
não pedissem nada diferente. A jovem concordou com ele. Madame Auriac disse que não
era esse tipo de restaurante que ela queria oferecer aos hóspedes. Nessa altura, depois de
pigarrear para, chamar atenção e de pedir desculpas, eu disse que tinha certeza de que todos
os hóspedes ficariam satisfeitos por encontrar o hotel aberto fora da estação e que, dadas as circunstâncias, o menu estava muito bom. Madame Auriac saiu da cozinha
fazendo um som sibilante de impaciência e um gesto brusco com a cabeça, que significavam aceitação, e o irmão estendeu as mãos com as palmas para cima, em triunfo.
Havia outra exigência: para simplificar o trabalho, todos os hóspedes deviam comer cedo e
todos juntos às sete e meia. Eu disse que por mim estava bem, e o cozinheiro mandou a moça informar os outros.
Meia hora mais tarde, fui o primeiro a chegar no restaurante. Sentia-me agora um pouco mais do que um hóspede. Eu pertencia ao grupo, estava a par dos problemas
do hotel. A própria Madame Auriac serviu-me de vinho e pão. Estava bem-humorada e conversando fiquei sabendo que ela trabalhava no hotel em 1946 e, embora não lembrasse
da visita de Bernard e June, certamente conhecia a história do prefeito sobre os cães e prometeu me contar quando estivesse menos ocupada. A segunda a aparecer foi
a senhora de Paris. Devia ter trinta e poucos anos e uma beleza distante e emaciada, com aquela aparência frágil e muito bem cuidada de algumas parisienses, arrumada
demais, severa demais para o meu gosto. Tinha o rosto encovado e os olhos enormes dos que
passam fome. Imaginei que ela não ia comer muito. Ela atravessou a sala com os saltos estalando no chão e sentou a uma mesa de canto, a mais distante da minha. Ignorando
tão completamente a presença do único ocupante da sala, ela dava a impressão paradoxal de que cada movimento que fazia era em meu benefício. Deixei sobre a mesa
o livro que
estava lendo e perguntava a mim mesmo se seria esse realmente o caso, ou se era apenas uma daquelas projeções masculinas das quais as mulheres às vezes se queixam,
quando a família entrou na sala.
Eram três pessoas, marido, mulher e um menino de sete ou oito anos, e chegaram envoltos no próprio silêncio, um manto luminoso de intensidade familiar que
se moveu na quietude do restaurante para ocupar uma mesa separada da minha apenas por outra. Sentaram arrastando muito as cadeiras no chão. O homem, galo no seu
pequeno
poleiro, descansou os braços tatuados sobre a mesa e olhou em volta. Primeiro examinou a senhora parisiense que não tirava os olhos do menu - ou fazia questão de
não tirar - e depois seus olhos encontraram os meus. Inclinei de leve a cabeça mas ele não respondeu ao cumprimento. Simplesmente registrou minha presença e murmurou
alguma coisa para a mulher que tirou da bolsa um maço de Gauloises e um isqueiro. Enquanto os pais acendiam os cigarros, olhei para o menino, sozinho no seu lado
da
mesa. Minha impressão era de que tinha havido uma discussão entre eles, fora da sala, alguns minutos atrás, que o menino fora repreendido por alguma coisa. Ele parecia
desanimado, emburrado talvez, com a mão esquerda estendida ao lado da cadeira, a direita brincando com os talheres. Madame Auriac chegou com o pão, a água e o litro
de vinho gelado quase impossível de ser tomado. Quando ela saiu da sala, o menino afundou mais na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. Imediatamente
a mão da mãe passou como um relâmpago sobre a toalha e deu uma bofetada no braço do menino. O pai, entrecerrando os olhos atrás da fumaça do cigarro, pareceu não
ter notado. Ninguém falou. A senhora parisiense, que eu podia ver atrás da família, olhava fixa e determinadamente para um canto da sala. O menino recostou na cadeira,
olhando para o colo e esfregando o braço. A mãe bateu delicadamente a cinza do cigarro no cinzeiro. Ela não parecia o tipo de mãe que bate nos filhos. Era gorda
e rosada, com duas rodas vermelhas no rosto redondo, como uma boneca, e o contraste entre sua aparência e seu comportamento materno era sinistro. A presença daquela
família e sua situação, pela qual eu não podia fazer nada, deixou-me deprimido. Se houvesse outro lugar para jantar, na cidade, eu teria saído naquele momento.
Eu tinha terminado meu lapm au chefe, a família estava ainda na salada. Por alguns minutos o único som era o dos talheres nos pratos. Não era possível ler, por isso
continuei a observar por cima do livro aberto. O pai passava pedaços de pão no prato para aproveitar até o fim o molho vinagrete. Ele abaixava a cabeça para comer
cada pedaço e passar as costas da mão na boca. Parecia um gesto instintivo, pois o menino comia delicadamente e, tanto quanto eu podia ver, não havia sinal de molho
ou comida nos seus lábios. Mas eu era um estranho, e talvez fosse uma provocação, uma seqüência de um conflito muito antigo. O pai imediatamente murmurou alguma
coisa e ouvi a palavra serviette. A mãe parou de comer e estava observando com atenção. O menino apanhou o guardanapo do colo e cuidadosamente o encostou, não na
boca, mas primeiro num lado do rosto, depois no outro. Numa criança tão pequena só podia ser uma tentativa desajeitada de fazer a coisa certa. Mas o pai não pensava
assim. Inclinou-se sobre a travessa de salada vazia e empurrou o filho violentamente pelo colarinho. O
menino caiu no chão. A mãe esticou-se na cadeira e segurou o braço dele. Queria alcançá-lo antes que ele começasse a gritar, preservando assim os bons modos. O menino
mal sabia onde estava quando ela ordenou com voz sibilante, Tais-toi! Tais-toi! Sem se levantar, ela conseguiu pôr o menino outra vez na cadeira que o marido tinha
levantado habilmente com o pé. O casal funcionava com harmonia evidente. Ao que parecia, acreditavam que por não se levantarem tinham evitado uma cena desagradável.
O menino estava sentado outra vez, choramingando baixinho. A mãe ergueu na frente dele o dedo rígido e admonitório e o manteve assim até ele ficar em silêncio completo.
Sem tirar os olhos dele, ela abaixou a mão.
Minha mão tremeu quando me servi do vinho aguado e ácido de Madame Auriac. Esvaziei o copo com grandes goles. Sentia um aperto na garganta. O fato de o menino
ser proibido de chorar era, para mim, mais terrível do que o empurrão que o derrubou da cadeira. Sua solidão me comoveu, Lembrei da minha quando meus pais morreram,
do quanto o desespero era incomunicável, de como eu não esperava mais coisa alguma da vida. Pois a infelicidade daquele menino era simplesmente a condição do mundo.
Quem poderia ajudá-lo? Olhei em volta. A parisiense olhava para o outro lado,
mas os dedos nervosos no isqueiro diziam que tinha visto tudo. Na outra extremidade da sala, ao lado do bufê, estava a jovem esperando para retirar os pratos. Os
franceses são extremamente tolerantes e bondosos com as crianças. Certamente alguém ia dizer alguma coisa. Alguém, não eu, precisava intervir.
Tomei outro copo de vinho. Uma família ocupa
um espaço privativo e inviolável. Dentro das paredes, visíveis ou simbólicas, faz as regras
para seus membros. A garçonete se aproximou e tirou os pratos da minha mesa. Depois voltou para levar a travessa de salada da mesa da família e trocar os pratos.
Acho que eu compreendo o que aconteceu com o menino naquele momento. Quando a mesa estava pronta e o coelho cozido foi posto sobre ela, ele começou a chorar. O vaivém
da garçonete para ele confirmava que, depois da sua humilhação, a vida continuava como antes. Seu isolamento era completo e ele não podia mais conter o desespero.
Primeiro ele estremeceu, na tentativa de fazer exatamente aquilo e então o dique se abriu com um som nauseante e agudo que foi aumentando, apesar do dedo
novamente erguido da mãe, e cresceu para um lamento, depois um soluço com uma desesperada inalação de ar. O pai largou o cigarro que ia acender. Esperou um momento
para ver o que viria depois daquela tomada profunda de ar e, quando o choro do menino soou mais alto, o homem, com um movimento rápido do braço sobre a mesa, atingiu
o rosto do filho violentamente com as costas da mão.
Era impossível, pensei, eu não podia ter visto aquilo, um homem forte não podia bater numa
criança daquele modo, com a força incontida do ódio de um adulto. Com a violência do golpe, a cabeça do menino estalou, atirada bruscamente para trás, e sua cadeira
deslizou no chão, chegando quase à minha mesa, e caiu. O encosto de madeira evitou que a cabeça dele batesse com força no chão. A garçonete correu para nós, chamando
Madame Auriac. Instintivamente eu me levantei. Por um momento, meus olhos encontraram os da mulher de Paris. Ela estava imóvel. Então, inclinou a cabeça num gesto
grave de afirmação. A garçonete estava sentada no chão, com o menino nos braços, murmurando ternamente, um som doce e amoroso, lembro-me de ter pensado, quando cheguei
à mesa dos pais dele.
A mulher estava de pé dizendo com voz melíflua para a garçonete.
- Não está compreendendo, mademoiselle. Isso só vai piorar as coisas. Ele grita sempre assim, mas sabe o que está fazendo. Ele sempre consegue o que quer.
Madame Auriac não apareceu. Eu segui outra vez meu impulso, sem pensar no que estava me envolvendo. O homem acabava de acender o cigarro. Vi, com certo alívio,
que suas mãos tremiam. Ele não olhou para mim. Falei com voz clara, um pouco trêmula, com razoável precisão mas praticamente
nenhum estilo. Eu não tinha o domínio sinuoso da língua, como Jenny. O fato de estar falando em francês intensificava meus sentimentos e emprestava às minhas palavras
uma solenidade teatral e constrangida e por um momento via a mim mesmo como um daqueles obscuros cidadãos franceses, que aparecem do nada nos momentos de transformação
na história da sua pátria e improvisam palavras que a história irá gravar em pedra. Seria o Juramento do Jogo da Péla? Seria Desmoulins no Café Foy? Na verdade,
tudo que eu disse, foi literalmente, "Monsieur, é revoltante bater desse modo numa criança. O senhor é um animal, um animal, monsieur. Será que tem medo de lutar
com alguém do seu tamanho? Porque eu gostaria de amassar a minha cara."
Esse ridículo lapso de linguagem tranquilizou o homem. Sorrindo, ele empurrou a cadeira. O que ele via era um inglês pálido de altura média ainda com o guardanapo
na mão. O que podia temer daquela figura um homem com um caduceu tatuado em cada braço gordo?
- Ta gueule? Eu teria prazer em amassá-la. -
Indicou aporta com um movimento da cabeça.
Eu o segui entre as mesas vazias. Mal podia
acreditar. Estávamos indo para fora. Uma euforia temerária conduzia meus passos e eu tinha a impressão de estar flutuando acima do assoalho do restaurante. O homem
que eu desafiara saiu na frente e soltou a porta de vaivém na minha cara. Ele atravessou a rua deserta e parou ao lado de uma bomba de gasolina sob a lâmpada da
rua. Voltou-se para mim preparando-se para a luta, mas eu já tinha resolvido e antes que ele tivesse tempo de erguer os braços, meu punho viajou direto para o rosto
dele impulsionado por toda a força
e o peso do meu corpo. Acertei em cheio o nariz dele com tamanha força que, no momento em que senti o osso amassado, senti um estalo na minha mão. Por um momento
ele cambaleou atordoado, esforçando-se para não cair. Ficou parado, com os braços caídos ao lado do corpo, olhando para mim, e eu o acertei com a esquerda, uma duas
três, no
rosto, na garganta e na barriga, antes dele desmoronar. Ergui o pé e acho que o teria chutado até a morte se não tivesse ouvido uma voz atrás de mim. Voltei-me e
vi um vulto magro na porta do hotel, no outro lado da rua.
A voz disse calmamente.
- Monsieur. Je vous prie. Ça suffit. Compreendi imediatamente que a exaltação que me movia nada tinha a ver com vingança e justiça. Horrorizado com
o que acabava de fazer, recuei. Atravessei a rua e entrei no hotel atrás da senhora de Paris. Enquanto esperávamos a polícia e a ambulância, Madame Auriac
envolveu minha mão com uma atadura de crepe e foi até o bar para me servir um conhaque Depois apanhou no fundo da geladeira os últimos sorvetes da temporada de verão
e deu para o menino que estava ainda sentado no chão, envolto nos braços maternais da bonita e jovem garçonete que, devo dizer, estava corada e parecia extremamente
feliz com o abraço.

 

 

                                          CONTINUA