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CÃES NEGROS / Ian McEwan
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA
- Sabe de uma coisa, eu nunca vim até aqui. Berlim? Foi para uma conferência no quinto aniversário do Muro, em 1956. Antes disso, meu Deus! Mil novecentos
e cinquenta e três. Éramos uma delegação não-oficial de comunistas britânicos cuja missão era protestar - não, isso é muito forte - expressar nossa reverente preocupação
junto ao partido da Alemanha oriental sobre o método usado para abafar o levante. Quando
voltamos para casa, fomos severamente repreendidos por alguns camaradas.
Duas moças com jaquetas de couro, jeans muito justos e botas de caubói com tachas douradas, passaram bem perto de nós. Estavam de braços dados e reagiam
aos olhares que atraíam não com desafio, mas com indiferença. Ambas tinham o cabelo tingido de preto. Os rabos-de-cavalo idênticos que balançavam nas suas costas
completavam uma referência passageira aos anos cinquenta. Mas não os anos cinquenta de Bernard, eu pensei. Ele as observou com a testa levemente franzida. Inclinou-se
para murmurar no meu ouvido. Não era preciso, pois não havia quase ninguém perto de nós e era intenso o ruído de vozes e de passos.
- Desde que ela morreu, comecei a olhar para mulheres jovens. É patético, na minha idade. Mas eu não olho para o corpo e sim para o rosto. Estou procurando
alguma coisa parecida com ela. Já se tornou um hábito. Estou sempre procurando um gesto, uma expressão, alguma coisa nos olhos ou no cabelo, qualquer coisa que a
mantenha viva para mim. Não procuro a June que você conheceu, do contrário estaria matando de medo velhas senhoras. Procuro a jovem com quem casei...
A June da fotografia. Bernard pôs a mão no meu braço.
- Há mais uma coisa. Nos primeiros seis meses, eu não podia tirar da cabeça a idéia de que June queria se comunicar comigo. Aparentemente é uma coisa muito
comum. A dor da perda alimenta a superstição.
- Não no seu esquema científico - imediatamente me arrependi da leviandade dessa observação, mas Bernard balançou a cabeça concordando.
- Exatamente, e logo que fiquei mais forte, recuperei a razão. Mas durante um tempo não conseguia deixar de pensar que se o mundo, por algum acaso possível,
fosse realmente como June o imaginava, então ela tentaria se comunicar comigo para dizer que eu estava errado e ela estava certa - que existe um Deus e a vida eterna,
um lugar para onde vai o consciente. Toda aquela bobagem. E que June faria isso, de algum modo, através de uma jovem parecida com ela. E algum dia uma dessas jovens
chegaria a mim com a mensagem.
- E agora?
- Agora é um hábito. Olho para uma moça e a julgo pelo que ela tem de June. Aquelas duas que passaram por aqui...
Sim?
- A da esquerda. Você não viu? Tem a boca e
as maçãs do rosto de June.
- Não vi o rosto dela.
Bernard apertou meu braço.
- Preciso perguntar a você, porque não me sai da cabeça. Há muito tempo quero fazer essa pergunta. June falou de modo muito pessoal... sobre nós dois?
A lembrança do "tamanho" que Bernard "escolheu" me fez gaguejar.
É claro. Ela pensava muito em você.
Mas que tipo de coisa?
Uma vez que estava escondendo um conjunto de detalhes, senti-me na obrigação de revelar outro. - Bem, ela me contou sobre a primeira vez que vocês...
sua primeira vez.
- Ah - Bernard largou meu braço e pôs a mão no bolso. Andamos em silêncio, ele pensando no que eu acabara de dizer. Mais adiante vimos no meio da 17 de Junho
uma fila de furgões da mídia, salas de controle móveis, antenas parabólicas, guindastes e caminhões geradores. Sob as árvores, no Tiergarten, trabalhadores alemães
desembarcavam um conjunto de lavatórios portáteis verde-escuros. Os pequenos músculos retesaram-se ao longo do queixo enorme de Bernard. Sua voz estava distante.
Ele estava começando a ficar zangado.
- E é sobre essas coisas que você vai escrever?
- Bem, eu nem comecei a...
- Não lhe ocorreu levar em conta meus sentimentos sobre o assunto?
- Minha intenção sempre foi mostrar a você tudo que eu escrever. Sabe disso.
- Pelo amor de Deus! Onde June estava com a cabeça quando contou essas coisas?
Estávamos ao lado da primeira antena parabólica. Do meio da escuridão, copos vazios de
plástico voavam na nossa direção, levados pelo vento. Bernard amassou um com o pé. A multidão próxima aos portais, a uns cem metros de nós, aplaudiu barulhentamente,
o tipo de aplauso bem-intencionado com que o público saúda a chegada do piano no palco.
- Escute, Bernard, o que ela me contou não foi mais indiscreto do que sua história da briga na estação. Se quer saber, o ponto principal foi a ousadia suprema
daquele passo para uma moça daquela época, o que prova o quanto ela se sentia atraída por você. Na verdade, você se saiu muito bem na história. Ao que parece você
era, bem, muito bom nesse tipo de coisa - genial, foi a palavra usada. Ela contou como você saltou da cama, abriu a janela durante uma tempestade e gritou como Tarzã,
com milhares de folhas entrando no quarto, levadas pelo vento...
Bernard teve de gritar por causa do ruído de um gerador diesel.
- Meu Deus! Não foi nesse dia! Foi dois anos depois, na Itália, quando morávamos em cima do
apartamento do velho Massimo e sua mulher magricela. Eles não permitiam o menor barulho na casa. Costumávamos fazer fora, nos campos, onde quer que fosse possível.
Então, naquela noite, uma tempestade tremenda nos obrigou a ficar em casa e o barulho da chuva e do vento era tão grande que eles não ouviram nada.
- Bem - comecei a dizer. A zanga de Bernard era agora contra June.
- O que ela estava pensando quando inventou
isso? Confundindo as coisas desse modo. Nossa primeira vez foi um desastre, um completo e maldito desastre. Ela o reescreveu para a versão oficial. E a maldita camada
de tinta para enfeitar, outra vez.
- Se você quiser corrigir minhas anotações...
Bernard olhou para mim com desprezo e se afastou um pouco, dizendo:
- Não é exatamente minha a idéia de um livro de memórias, escrever a vida sexual de alguém como
uma maldita cena de teatro. É nisso que você pensa que a vida se resume, no fim? Transar? Triunfos e fracassos sexuais? Tudo muito divertido? Estávamos passando
pelo furgão da televisão. Vi de relance uns doze monitores, todos com a mesma imagem do repórter consultando de testa franzida as anotações que tinha numa das mãos
e segurando distraidamente com a outra o cabo do microfone. Um suspiro longo subiu da multidão, um
gemido de protesto que cresceu de volume até se transformar num rugido furioso.
Bernard mudou de idéia de repente.
- Meu Deus, você quer tanto saber! - gritou ele. - Vou lhe dizer uma coisa. Minha mulher podia estar interessada na verdade poética, ou espiritual, ou na
sua verdade particular, mas ela não dava a mínima para a verdade, por fatos, para o tipo de verdade que duas pessoas podem reconhecer, independentes uma da outra.
Ela criava padrões, inventava mitos. Depois adaptava os fatos a eles. Pelo amor de Deus, esqueça os
fatos. Seu tema deve ser este - como pessoas iguais a June curvam os fatos para que se encaixem nas suas idéias, ao invés de fazer o contrário. Por que fazem isso?
Por que continuam a fazer isso?
Hesitei em dar a resposta óbvia e chegamos perto da multidão. Duas ou três mil pessoas estavam amontoadas para ver a demolição do ponto de maior importância
simbólica do Muro. Nos blocos de concreto de três metros e meio que ladeavam o acesso aos portais enfileiravam-se os soldados da Alemanha oriental nervosos, voltados
para o leste. Os cinturões estavam virados para trás, com os revólveres nas costas, fora da vista do povo. Um oficial andava de um lado para o outro na frente deles,
fumando e vigiando a multidão. Atrás dos soldados erguia-se a fachada iluminada dos portais de Brandemburgo com a bandeira da República Democrática Alemã adejando
levemente ao vento. Barreiras mantinham o povo afastado e os murmúrios de protesto deviam ter como alvo a polícia da Alemanha ocidental que estava estacionando seus
veículos na frente dos blocos de concreto. Quando chegamos, alguém atirou uma lata de cerveja num dos soldados. A lata cheia e aberta subiu rapidamente deixando
um rastro de espuma branca iluminada pela luz e, quando passou por cima da cabeça do jovem soldado, da multidão ergueram-se imediatamente gritos de protesto, em
alemão, e a recomendação para que não se usasse de violência. Pela extensão dos sons das vozes compreendi que havia muita gente nas árvores, no escuro.
Não foi difícil abrir caminho até a frente da multidão. Agora que estávamos no meio dela, percebi que era mais civilizada e mais variada do que eu havia
imaginado. Crianças pequenas, montadas nos ombros dos pais, avistavam tão longe quanto Bernard com toda a sua altura. Dois estudantes vendiam balões e sorvete. Um
velho com óculos escuros e uma bengala branca estava imóvel com a cabeça inclinada, escutando, no centro de um grande espaço vazio. Assim que chegamos à barreira,
Bernard apontou para um oficial da polícia de Berlim ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha oriental.
- Falam sobre o controle da multidão. Meio caminho para a unificação.
Desde sua explosão de zanga Bernard parecia distante. Observava tudo com olhar frio e imperioso que não combinava com a excitação daquela manhã. Era como
se aquela gente e o que estava acontecendo pudessem exercer fascínio até determinado ponto. Depois de meia hora era evidente que não ia acontecer nada para satisfazer
o povo. Não se via nenhum guindaste pronto para retirar partes do Muro, nenhum maquinário pesado empurrava para o lado os blocos de pedra. Mas Bernard queria ficar.
Assim, ficamos ali parados, no frio. A multidão é uma criatura de raciocínio lento, muito menos inteligente do que qualquer um dos seus membros. Aquela estava disposta
a ficar de pé a noite toda com paciência canina, esperando por uma coisa que nós todos sabíamos que não ia acontecer. Comecei a ficar irritado. Em outros lugares
da cidade comemoravam alegremente a queda do Muro, ali havia apenas a paciência tediosa e a calma senatorial de Bernard. Só depois de mais uma hora consegui convencê-lo
a caminhar comigo na direção do Checkpoint Charlie.
Começamos a andar numa passagem estreita de lama ao lado do Muro onde o grafite parecia monocromático sob a luz da rua. À nossa direita havia prédios abandonados,
espaços vazios com rolos de arame, montes de lixo e o mato do último verão alto ainda.
Resolvi continuar com minhas perguntas.
- Mas você ficou dez anos no partido. Deve ter aceito a distorção de muitos fatos para aguentar tanto tempo.
Eu queria tirá-lo daquela calma superior e tolerante. Mas Bernard apenas deu de ombros, aconchegou mais o sobretudo ao corpo e disse:
- É claro.
Ficou calado enquanto um grupo de estudantes passava por nós, espremendo-se na passagem estreita entre o Muro e o prédio em ruínas.
- Como é mesmo aquela frase de Isaiah Berlin que todo mundo cita, especialmente nestes dias, sobre a característica fatal das utopias? Ele diz, se eu tenho
certeza do melhor modo de conduzir a humanidade para a paz, a justiça, a felicidade, a criatividade sem fronteiras, que preço pode ser considerado muito alto? Para
fazer essa omelete, não posso limitar o número de ovos quebrados. Sabendo o que eu sei, não estaria negligenciando meu dever se não aceitasse o fato de que milhares
devem morrer para que milhões sejam felizes para sempre? Não como propúnhamos a nós mesmos naquele tempo, mas essa é a disposição de espírito correta. Ignorar ou
reformular alguns fatos pejorativos para a unidade do partido não era nada, comparado ao rio de mentiras do que chamávamos de máquina de propaganda do capitalismo.
Assim, você continua com o bom trabalho enquanto a maré se move à sua volta. June e eu chegamos tarde, por isso tínhamos a água até os tornozelos, desde o começo.
As notícias que não queríamos ouvir pingavam aos poucos, como goteiras. Os julgamentos fictícios e os expurgos da década de 193O, o coletivismo obrigatório, transporte
em massa, campos de trabalho forçado, censura, mentiras, perseguição, genocídio... Finalmente, as contradições são demais para você e você entrega os pontos. Mas
sempre faz isso muito depois do que devia. Eu desisti em 1956, quase desisti em 1953 e devia ter desistido em 1948. Mas você sempre continua, pensando, as idéias
são boas, mas as pessoas são erradas, porém isso vai mudar. E como vamos jogar fora todo este bom trabalho? Você diz a si mesmo que sempre tem de haver alguma dificuldade
e que a prática ainda não se adaptou completamente à teoria e que tudo isso leva tempo. Você diz que a maior parte do que está ouvindo é tática da Guerra Fria. E
como você pode estar tão errado, como tantas pessoas inteligentes, corajosas, bem-intencionadas podem estar erradas?
- Se não fosse minha formação científica, eu talvez tivesse ficado mais tempo no partido. O trabalho de laboratório nos ensina melhor do que
qualquer outro como é fácil alterar um resultado para que se adapte à teoria. Não é mesmo um caso de desonestidade. É a natureza do homem - nossos desejos dominam
nossa percepção. Uma experiência bem-orientada evita que isso aconteça, mas esta de que falamos, há muito tempo estava fora de controle. A fantasia e a realidade
me puxavam,
cada uma de um lado. A Hungria foi a última gota. Eu desabei.
Fez uma pausa e depois disse, deliberadamente.
- Essa é a diferença entre mim e June. Ela deixou o partido muitos anos antes de mim, mas nunca desabou, jamais separou a fantasia da realidade. Apenas trocou
uma utopia por outra. Política ou sacerdotisa, não importava, June era
essencialmente uma linha-dura...
Então chegou a minha vez de ficar zangado. Passávamos por aquela parte de terreno baldio e o Muro, ainda chamada de Potsdamerplatz, abrindo
caminho entre grupos de amigos reunidos em volta dos degraus da plataforma e da barraca de souvenirs, esperando que alguma coisa acontecesse. O que me aborreceu
não foi simplesmente a injustiça da observação de Bernard, mas uma impaciência com a dificuldade de comunicação, e a imagem de espelhos paralelos na cama, ao invés
de um homem e uma mulher, refletindo em regressão infinita semelhanças que se esvaeciam em mentiras. Quando me voltei para Bernard, bati com o pulso numa coisa macia
e morna na mão de um homem ao meu lado. Era um cachorro-quente. Mas eu estava zangado demais para me desculpar. As pessoas na Potsdamerplatz estavam ávidas por qualquer
coisa interessante; todas as cabeças se voltaram quando comecei a gritar e logo formaram um círculo à nossa volta. - Isso é besteira, Bernard! Pior do que
isso, é maldade! Você é um mentiroso!
- Meu caro rapaz.
- Você nunca deu ouvidos ao que ela dizia. Ela também não queria ouvir. Os dois se acusavam mutuamente das mesmas coisas. June não era mais linha-dura
do que você. Dois sentimentalóides! Vocês sobrecarregaram um ao outro com suas proprias culpas.
Atrás de mim ouvi minhas palavras traduzidas para o alemão num murmúrio rápido. Bernard tentava me tirar de dentro do círculo. Mas, fervendo de ódio, eu
me recusava a sair.
- Ela me disse que sempre o amou. Você disse a mesma coisa. Como puderam desperdiçar tanto tempo, e o tempo de tanta gente, dos seus filhos... ?
Foi esta última e incompleta acusação que atingiu Bernard em cheio, além do constrangimento. Apertou os lábios e se afastou de mim. De repente minha raiva
desapareceu, substituída pelo remorso inevitável. Quem era esse presunçoso que pretendia descrever aos berros um casamento, tão antigo quanto ele próprio, bem na
cara de um cavalheiro tão distinto? O povo perdeu o interesse e começou a
voltar para a fila da barraca que vendia torres de vigia em miniatura e cartões-postais da terra de ninguém e das praias vazias da faixa da morte. Continuamos
a andar. Eu estava agitado demais para pedir desculpas. Minha retratação resumiu-se a baixar a voz, procurando dar a impressão de que estava sendo razoável. Andamos
lado a lado, mais depressa do que antes. O turbilhão de emoções que envolvia Bernard era evidente na absoluta falta de expressão do seu rosto. Eu continuei:
- Ela não passou de uma fantasia de utopia para outra. Foi uma busca. Ela não pretendia ter todas as respostas. Era uma jornada em busca de alguma coisa,
uma jornada que ela desejava que todos fizessem, mas não pretendia forçar ninguém a empreende-la. Como poderia? Não estava criando uma inquisição. Não se interessava
por um dogma ou uma religião organizada. Era uma jornada espiritual. A descrição de Isaiah Berlin não se aplica. Não existia nenhum objetivo final pelo qual ela
teria sacrificado outras pessoas. Não havia ovos para serem quebrados...
A perspectiva de um debate entusiasmou Bernard. Ele revidou com energia e imediatamente
me senti perdoado.
- Está errado, meu caro rapaz, completamente errado. Chamar de busca aquilo em que ela estava empenhada não altera o fato de sua tendência absolutista. Ou
você estava com ela, fazendo o que ela fazia, ou estava fora. June queria meditar e estudar textos místicos, esse tipo de coisa, tudo bem, mas não servia para mim.
Eu preferi entrar para o Partido Trabalhista. Ela não aceitou a minha decisão. No fim ela insistiu na nossa separação. Eu fui um dos ovos quebrados. Nossos
filhos estavam entre os outros.
Enquanto Bernard falava, eu perguntava a mim mesmo qual era o meu objetivo, tentar reconciliar Bernard com a mulher morta?
Assim, quando ele terminou, fiz um gesto de aceitação com a mão aberta e disse.
- Então, do que você sentiu falta quando ela morreu? Estávamos num daqueles lugares ao lado do Muro, onde a cartografia e alguma obstinada e esquecida política
haviam determinado um absurdo, uma mudança de direção no limite do setor que voltava ao normal depois de alguns metros. Ao
lado do desvio, estava uma plataforma de observação vazia. Sem uma palavra, Bernard começou a subir os degraus que levavam à plataforma e eu o segui. Lá no alto
ele apontou.
- Veja.
A torre de vigia no outro lado estava vazia e, lá embaixo, iluminados pelas lâmpadas fluorescentes, moviam-se pacificamente na areia que escondia minas terrestres,
armadilha e armas automáticas, dezenas de coelhos, à procura de hastes de relva para roer.
- Bem, alguma coisa se desenvolveu.
- O tempo deles está quase no fim.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhamos novamente para o Muro que era, na verdade, dois
muros, naquele ponto, separados por um espaço de cento e cinquenta metros. Eu nunca tinha estado na fronteira à noite e, olhando lá de cima para aquele largo corredor
de arame, areia, passagem de serviço e holofotes, surpreendi-me com a claridade inocente, a indignidade descarada. Enquanto os governos tradicionais procuram esconder
suas atrocidades, ali o comercial era mais sensacionalista do que qualquer néon Kurfürstendamm.
- Utopia.
Bernard suspirou e talvez estivesse pronto para responder quando ouvimos vozes e risos vindos de várias direções. Então a plataforma de observação estremeceu
com os passos que subiam a escada de madeira. Nosso isolamento fora pura sorte, uma abertura no meio da multidão. Em poucos segundos quinze pessoas se acotovelavam
à nossa volta, fotografando e falando alto e excitadamente em alemão, japonês e dinamarquês. Descemos, abrindo caminho contra a corrente, e
continuamos nossa caminhada.
Pensei que Bernard havia esquecido minha pergunta, ou que preferia não responder, mas quando chegamos na altura dos degraus do velho prédio do Reichstag,
ele disse.
- O que eu mais sinto falta é da seriedade dela. June era uma das poucas pessoas que já conheci que via a própria vida como um projeto, um empreendimento,
algo para ser controlado e dirigido para... para a compreensão, a sabedoria - nos seus próprios termos. Quase todos nós fazemos nossos planos em função do dinheiro,
das carreiras, dos filhos, esse tipo de coisa. June queria compreender, só Deus sabe o quê, ela própria, a existência, "a criação". Não tinha paciência com o resto
de nós que apenas seguimos à deriva, tomando uma coisa depois da outra, "sonambulando", como ela dizia. Eu odiava a bobagem com que ela encheu a cabeça, mas amava
sua seriedade.
Chegamos na entrada de um grande buraco cavado no que antes devia ter sido um corredor de acesso à série de celas de ladrilhos brancos para as quais estávamos
olhando. Cada uma mal dava para um prisioneiro e em todas havia duas argolas de ferro pregadas na parede. Na outra extremidade do terreno havia um prédio baixo,
o Museu.
Bernard disse.
- Eles vão encontrar a unha arrancada de algum pobre coitado, vão lavar e fechar num vidro com uma etiqueta. E a seiscentos metros daqui os Stasi devem estar
limpando suas celas também. Surpreendido com a amargura em sua voz, olhei para ele. Bernard estava encostado num poste de ferro e parecia cansado e mais
magro do que nunca, parecia outro poste dentro do sobretudo. Estava de pé e andando há quase três horas e seu cansaço era agravado pela revolta residual contra uma
guerra de que só os velhos e fracos podiam lembrar perfeitamente.
- Você precisa descansar - eu disse. - Há um café por aqui, ao lado do Checkpoint Charlie.
Eu não sabia ao certo a que distância ficava. Notei que Bernard andava com passos rígidos e lentos. Culpei-me pela falta de cuidado. Atravessávamos uma rua cortada
por um beco sem saída, ao lado do Muro. À luz das lâmpadas da rua o rosto de Bernard estava cinzento com gotas de suor e os olhos brilhantes demais. O queixo grande,
o traço mais simpático do rosto enorme, deixava perceber um leve tremor de senilidade. Eu precisava levá-lo rapidamente a um lugar quente e onde pudesse comer alguma
coisa e ao mesmo tempo
temia que Bernard desmaiasse ali no meio da rua. Eu não tinha idéia de como se chamava uma ambulância na Berlim ocidental e ali, na margem semidestruída da fronteira,
não havia telefones e até os alemães eram turistas. Perguntei se ele queria sentar e descansar um pouco mas aparentemente não me ouviu.
Eu estava repetindo a pergunta quando ouvi a
buzina de um carro e um aplauso barulhento. A iluminação concentrada de Checkpoint Charlie projetava um halo leitoso de trás de um prédio abandonado na nossa frente.
Em poucos minutos chegamos ao café e na nossa frente estava a cena familiar, onírica e quase em câmara lenta que eu vira com Jenny naquela manhã. Os móveis das salas
dos guardas da fronteira, placas indicadoras em várias línguas, os portões estreitos e o povo saudando os pedestres da zona oriental, batendo ainda nas capotas dos
Trabants, mas agora com menor entusiasmo, como para demonstrar a diferença entre o espetáculo da TV e a vida real.
Segurei o braço de Bernard quando paramos para apreciar a cena. Então abrimos caminho entre o povo para a entrada do café. Mas as pessoas por que passamos
estavam numa fila. Entravam só quando vagava uma mesa. Quem ia desocupar uma mesa àquela hora da noite? Através dos vidros das janelas manchados pela condensação,
víamos os felizardos comendo e bebendo envoltos pelo ar pesado e quente.
Eu ia furar a fila, alegando urgência médica, quando Bernard livrou o braço da minha mão e correu para a ilha no centro da rua onde estava uma porção de
gente ao lado do guarda de trânsito americano. Até aquele momento eu não tinha visto o que Bernard estava vendo. Mais tarde ele me garantiu que todos os elementos
da situação foram ordenados logo que chegamos, mas só quando chamei seu nome e corri atrás dele eu vi a bandeira vermelha. Estava num mastro curto, um cabo de vassoura
talvez, seguro por um homem magro e franzino de uns vinte e poucos anos. Parecia turco. Tinha cabelo negro e crespo e estava vestido todo de negro - paletó jaquetão,
camiseta e jeans. Andava de um lado para o outro na frente da multidão, com a cabeça inclinada para trás, o mastro da bandeira quase na horizontal sobre o ombro.
Deu uns passos para trás e parou na frente de um Wartburg que foi obrigado a manobrar e passar ao largo dele.
A provocação começava a surtir efeito e foi
isso que fez Bernard correr para a rua. Os antagonistas do jovem vestido de negro formavam um grupo heterogêneo mas o que me chamou a atenção foram dois homens de
terno - executivos ou advogados - na beirada da calçada. Quando o jovem passou, um deles deu um piparote no queixo dele, não tanto uma agressão, quanto um gesto
de desprezo. O revolucionário romântico afastou o corpo bruscamente, mas fingiu que nada tinha acontecido. Uma velha senhora com casaco de pele gritou uma longa
frase para ele e levantou o guarda-chuva. O cavalheiro ao lado dela a segurou pelo braço, acalmando-a. O porta-bandeira ergueu mais alto seu estandarte. O segundo
homem com terno de advogado deu um passo à frente e deu um soco no ouvido dele. O golpe não atingiu em cheio, mas foi o bastante para fazer o jovem parar. Controlando-se
para não levar a mão ao lugar atingido, ele continuou sua marcha. A essa altura Bernard estava quase no outro lado da rua e eu atrás dele.
No que me dizia respeito, o homem da bandeira podia receber o que estava pedindo. Minha preocupação era com Bernard. O joelho esquerdo dele parecia incomodá-lo,
mas ele seguia mancando na minha frente num passo bastante rápido. Bernard já tinha visto o que se aproximava, uma manifestação mais violenta que chegava correndo
da Kochstrasse. Era um grupo de uns doze, gritando enquanto corriam. Ouvi as palavras que gritavam mas naquele momento as ignorei. Preferi pensar que uma longa noite
na cidade em festa os havia deixado sedentos de ação. Tinham visto um homem levar um soco na cabeça e isso os energizava. Eram rapazes com dezesseis a vinte anos.
Coletivamente envolvia-os uma aura de crueldade mesquinha, um ar extravagante de desprivilegiados, com aquela palidez de acne, cabeças raspadas e bocas úmidas e
moles. O turco os viu avançar para ele, jogou a cabeça para trás como um bailarino de tango e deu as costas para os atacantes. Estar ali fazendo aquilo no dia da
desgraça final do comunismo demonstrava um fanatismo de mártir ou um estranho desejo masoquista de ser espancado em público. É verdade que a maioria das pessoas
ali reunidas o consideravam um doido e o teriam ignorado. Afinal de contas, Berlim era uma cidade tolerante. Mas naquela noite havia uma embriaguez exaltada e alguns
tinham a vaga sensação de que alguém devia ser culpado por alguma coisa - e o homem com a bandeira parecia ter encontrado todas essas pessoas num lugar só.
Alcancei Bernard e segurei o braço dele.
- Fique fora disso, Bernard. Você pode se machucar.
- Bobagem - disse ele, livrando o braço de minha mão.
Chegamos ao lado do jovem alguns segundos antes do grupo de atacantes. Ele cheirava a patchuli que, na minha opinião, não era exatamente o cheiro verdadeiro
do pensamento marxista-leninista. Sem dúvida era uma fraude. Só tive tempo de dizer, "Vamos!" e estava ainda puxando o braço de Bernard quando o bando chegou. Ele
abriu os braços e ficou entre eles e o homem da bandeira.
- Muito bem - disse Bernard, com aquele tom antiquado bondoso e severo de um policial inglês. Será que ele pensou que era muito velho, muito alto
e muito magro, eminente demais para ser atacado? Os meninos pararam de repente, muito juntos numa alcatéia, ofegantes, as cabeças e as línguas balançando, olhando
atônitos para aquele bambu vestido, aquele espantalho com sobretudo, atravessado no seu caminho. Vi que dois deles traziam suásticas prateadas pregadas nas lapelas.
Outro tinha a suástica tatuada nas costas da mão. Não ousei virar para trás, mas tive a impressão de que o turco estava enrolando sua
bandeira e saindo de fininho. Os dois "advogados", espantados com o resultado da própria violência, recuaram para o meio da multidão, como espectadores.
Olhei em volta à procura de ajuda. Um sargento americano e dois soldados caminhavam de costas para nós para conversar com os soldados do leste. O espanto
dos meninos estava se transformando em
fúria. De repente, dois deles correram e passaram ao lado de Bernard, mas o homem com a bandeira, depois de abrir caminho entre a multidão, estava correndo pela
rua. Virou a esquina da Kochstrasse e desapareceu.
Os dois o perseguiram por algum tempo sem muito entusiasmo e voltaram para nós. Teriam de se contentar com Bernard.
- Agora, dêem o fora - disse ele jovialmente, abanando as mãos na frente do corpo.
Eu me perguntava se era mais compreensível, ou mais odioso, o fato daqueles jovens com suásticas serem alemães, quando o menor de todos, um minúsculo cabeça-de-alfinete
com uma jaqueta de aviador, avançou rapidamente e deu um pontapé na canela de Bernard. Ouvi o ruído surdo da bota
batendo no osso. Com um fraco suspiro de surpresa, Bernard desabou, por partes, na calçada.
O povo rugiu sua desaprovação mas ninguém se mexeu. Dei um passo à frente, mandei um direto na direção do garoto, mas errei. Porém ele e os amigos não estavam
interessados em mim. Amontoaram-se em volta de Bernard, prontos, eu pensei, para matá-lo aos pontapés. Olhei para a casa da guarda e não vi nem sinal do sargento
e dos dois soldados. Agarrei um dos rapazes pelo colarinho e o puxei para trás e estendi o braço para fazer o mesmo com outro. Mas eram muitos para mim. Vi duas,
talvez três botas negras levantadas para trás, preparando o chute.
Mas não completaram o movimento. Pararam, petrificados, pois naquele exato momento um vulto saiu da multidão e lançou-se sobre nós como um
turbilhão, censurando os jovens com frases curtas e enérgicas. Era uma jovem furiosa. Sua força era a das ruas. Tinha credibilidade. Era contemporânea deles, um
objeto de desejo e aspiração. Ela era uma estrela e os tinha apanhado num ato vil, até mesmo para os seus padrões.
A força da sua fúria era sexual. Eles pensavam que eram homens e ela os estava reduzindo a garotos malcomportados. Não podiam permitir que os vissem encolhendo-se
de medo dela, recuando intimidados. Mas era justamente o que estavam fazendo, muito embora disfarçando com risadas, encolher de ombros e insultos que não chegavam
aos
ouvidos de ninguém. Fingiam para eles mesmos, uns para os outros, que estavam entediados, que podiam se divertir mais em outro lugar. Começaram a se afastar na direção
da Kochstrasse, mas a jovem não interrompeu seu discurso exaltado. Provavelmente eles gostariam de sair correndo, mas o protocolo os obrigava a um andar gingado,
forçado e constrangido. Enquanto ela os perseguisse pela rua, gritando e agitando os braços, eles tinham de continuar com os apupos
e manter os dedos enfiados na cintura das calças jeans.
Ajudei Bernard a se levantar. Só quando a jovem voltou para ver como ele estava e sua amiga identicamente vestida apareceu ao lado dela, eu as reconheci.
Eram as duas que haviam passado rapidamente por nós na rua 17 de Junho. Juntos amparamos Bernard enquanto ele experimentava a perna atingida. Aparentemente não estava
quebrada. Algumas pessoas o aplaudiram quando ele passou o braço por meus ombros e o levamos para longe do Checkpoint.
Levamos alguns minutos para chegar à esquina onde esperávamos encontrar um táxi. Eu estava ansioso para que Bernard tivesse reconhecido a identidade da sua
salvadora. Perguntei o nome dela - Grete - e o repeti para ele. Bernard estava concentrado na dor, inclinado sobre ela, e talvez
estivesse em estado de semichoque, mas eu insisti, no interesse de quê, exatamente? Com a
intenção de abalar o racionalismo? O dele ou o meu? Finalmente Bernard ergueu a mão na direção da jovem e disse.
- Grete, muito obrigado, minha cara. Você salvou a minha vida. - Mas não estava olhando para ela quando disse isso.
Na Kochstrasse pensei que teria tempo para fazer algumas perguntas a Grete e à sua amiga Diana, mas assim que chegamos vimos um táxi desembarcando passageiros
e o chamamos. Durante o breve intervalo de tempo em que ajudamos Bernard a entrar no carro, agradecemos e nos despedimos, eu esperei que Bernard olhasse pelo menos
uma vez para seu anjo da guarda, a encarnação de June. Acenei para as duas pelo vidro traseiro do táxi e, antes de dizer ao motorista para onde devia nos levar,
eu disse para Bernard.
- Você não as reconheceu? As duas moças que vimos perto da entrada de Brandemburgo, quando você me contou como durante algum tempo esperava uma mensagem
de...
Bernard estava ajeitando a cabeça no encosto do banco e me interrompeu com um suspiro. Falou com impaciência para o teto acolchoado do carro, a poucos centímetros
do seu nariz.
- Sim. Uma coincidência, eu suponho. Agora,
pelo amor de Deus, Jeremy, leve-me para casa!
CONTINUA