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CÃES NEGROS / Ian McEwan
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?
CONTINUA
SEGUNDA PARTE - BERLIM
Pouco mais de dois anos depois, às seis e meia de uma manhã de novembro, acordei e descobri Jenny na cama, ao meu lado. Ela havia passado dez dias em Estrasburgo
e Bruxelas e voltou tarde da noite. Rolamos na cama num abraço sonolento. Pequenos
reencontros como esse são uns dos mais deliciosos prazeres domésticos. Seu corpo me parecia familiar e novo ao mesmo tempo - com que facilidade nos acostumamos a
dormir sozinhos. Ela estava com os olhos fechados e com um leve sorriso encaixou o rosto no espaço entre as minhas clavículas que durante os anos parecia ter se
moldado à sua forma. Tínhamos no máximo uma hora, talvez menos, antes que as crianças a descobrissem - muito mais excitante para elas porque eu fora muito vago sobre
o dia da sua volta, para o caso de Jenny não conseguir tomar o último avião. Estendi o braço e apertei as nádegas macias. Suas mãos moveram-se com leveza na minha
barriga. Procurei a saliência estranha na base do seu dedo mínimo onde fora amputado um sexto dedo, logo depois que ela nasceu. Tantos dedos, a mãe dela costumava
dizer, quanto as pernas de um inseto. Alguns minutos depois, talvez interrompidos por um breve cochilo, começamos a fazer amor, amistoso e tranquilo, que é um privilégio
e um compromisso da vida de casado. Estávamos acordando para a urgência do nosso prazer e nos movendo com maior vigor no interesse de ambos, quando o telefone
tocou na mesa-de-cabeceira. Devíamos ter lembrado de desligá-lo. Trocamos um olhar. Em silêncio, concordamos que àquela hora um telefonema era
pouco comum e podia ser uma emergência. Provavelmente era Sally. Por duas vezes Sally
havia morado conosco e a tensão que provocou em nossa vida foi tão grande que não pudemos ficar com ela. Alguns anos atrás, quando tinha vinte
e um anos, Sally casou com um homem que a espancava e a deixou com um filho. Dois anos depois, Sally foi considerada incapaz, violenta demais para cuidar do filho
que estava agora com pais adotivos. Ela conseguiu se livrar do alcoolismo de muitos anos só para fazer outro casamento desastroso. Morava agora num hotel em Manchester.
Sua mãe, Jean, estava morta e Sally contava conosco para afeição e apoio. Ela nunca pedia dinheiro. Nunca me livrei da idéia de que eu era responsável por sua infelicidade.
Jenny estava deitada de costas, e eu me inclinei sobre ela para atender o telefone. Mas não era Sally, era Bernard, já no meio de uma frase. Ele não estava
falando, estava tartamudeando. Ouvi comentários excitados ao fundo, que pararam quando soou a sirene da polícia. Tentei interromper, dizendo o nome dele. A primeira
coisa inteligível que ouvi foi.
- Jeremy, está ouvindo? Ainda está aí?
Senti que me encolhia dentro da filha dele. Procurei falar com calma.
- Bernard, não entendi uma palavra. Comece outra vez, devagar.
Jenny fazia sinais oferecendo-se para pegar o telefone. Mas Bernard recomeçou a falar. Balancei a cabeça e olhei para o travesseiro.
- Ligue o rádio, meu caro rapaz. Ou a televisão, melhor ainda. Eles estão jorrando de todos os lados. Você não vai acreditar...
- Bernard, quem está jorrando e aonde?
- Acabei de dizer. Estão derrubando o Muro! É difícil de acreditar, mas estou vendo neste momento os berlinenses do leste passando para cá...
Meu primeiro pensamento egoísta foi de que isso não exigia nenhuma providência da minha parte. Não precisava sair da cama e de casa para fazer alguma coisa
útil. Prometi a Bernard que
telefonava mais tarde, desliguei e contei para Jenny.
- Espantoso.
- Incrível.
Fazíamos o possível para manter a importância do fato a uma certa distância, pois não pertencíamos ainda ao mundo, à comunidade progressista das pessoas
completamente vestidas. Estava em jogo um princípio importante, manter a prioridade da nossa vida privada. Assim, recomeçamos. Mas o encanto fora quebrado. Multidões
eufóricas surgiam na luz do começo do dia no nosso quarto. Nós dois estávamos em outro lugar.
Finalmente foi Jenny quem disse.
- Vamos descer para ver.
Ficamos de pé na sala de estar com nossos robes e xícaras de chá, olhando para a televisão. Não parecia correto sentar. Os berlinenses do leste com jaquetas
de náilon e de jeans lavado, empurrando carrinhos de criança ou levando os filhos pela mão, passavam em fila pelo Checkpoint Charlie, sem apresentar nenhum documento.
A câmara balançava e ondulava entre abraços emocionados. Uma mulher chorosa, seu rosto tornado fantasmagórico pela luz de um único spot de televisão, estendeu as
mãos, quis falar, mas estava emocionada demais para dizer qualquer coisa. Multidões de berlinenses do leste davam vivas e batiam alegremente nas capotas de cada
bravo e ridículo Trabant que rodava para a liberdade. Duas irmãs abraçadas recusaram se separar para a entrevista. Jenny e eu assistíamos chorando e, quando as crianças
entraram correndo para o pequeno drama do reencontro, a emoção dos abraços e carícias no carpete da sala foi intensificada pelos alegres eventos em Berlim - e Jenny
continuou a chorar.
Uma hora depois Bernard voltou a telefonar. Há quatro anos ele me chamava de "caro rapaz", desde que, eu suspeitava, ele havia entrado para O Garrick Club.
Jenny afirmava que era a medida da distância percorrida a partir do título de "camarada".
- Meu caro rapaz. Quero ir a Berlim o mais depressa possível.
- Boa idéia - respondi imediatamente. - Você deve ir.
- As passagens estão valendo ouro em pó. Todo mundo quer ir. Fiz duas reservas provisórias num vôo desta tarde. Preciso confirmar dentro de uma
hora.
- Bernard, estou indo para a França.
- Faça um pequeno desvio. É um momento histórico.
- Telefono depois.
Jenny ficou furiosa.
- Ele tem de ver seu Grande Erro corrigido. Vai precisar de alguém para carregar as malas. Dito desse modo, eu estava pronto para dizer não. Mas
enquanto tomávamos o café da manhã, entusiasmado pelo triunfalismo estridente da televisão portátil preto-e-branca sobre a pia da cozinha, comecei a sentir uma urgência
impaciente, uma necessidade de aventura, depois de vários dias de afazeres domésticos. Outro rugido em miniatura escapou do pequeno aparelho e me senti como um garoto
proibido de entrar no estádio no dia da decisão do campeonato de futebol. A história estava acontecendo sem a minha presença.
Depois de deixar as crianças na creche e na
escola, conversei outra vez com Jenny. Ela sentia-se feliz por estar novamente em casa. Ia
de quarto em quarto, com o telefone sem fio sempre ao alcance da mão, cuidando das plantas um tanto emurchecidas sob os meus cuidados.
- Vá - foi sua recomendação. - Não ligue para mim. Estou com ciúmes. Mas antes de ir, acho melhor você acabar o que começou.
O melhor de todos os planos possíveis. Modifiquei meu itinerário para Montpellier acrescentando a passagem por Berlim e Paris e confirmei a reserva feita
por Bernard. Telefonei para meu amigo Günter em Berlim perguntando se podíamos usar seu apartamento. Telefonei para Bernard dizendo que o apanharia de táxi às duas
horas. Cancelei compromissos, deixei instruções e fiz as malas. A televisão mostrava a fila de
meio quilômetro de berlinenses do leste do lado de fora de um banco, tentando resgatar seus cem Deutschmarks. Jenny e eu voltamos para o quarto por uma hora, depois
ela saiu apressada para um compromisso. Vestido com meu robe, sentei na cozinha e almocei mais cedo a comida requentada da véspera. Na pequena televisão outras partes
do Muro tinham sido derrubadas. Gente do mundo todo convergia para Berlim. Era uma festa imensa. Jornalistas e as equipes de televisão não encontravam vagas nos
hotéis. Subi para o quarto
e quando estava no chuveiro, revigorado e purificado pelo ato do amor, berrando em italiano os trechos de Verdi que conseguia lembrar, congratulei-me por minha vida
rica e interessante.
Uma hora e meia depois deixei o táxi esperando na Addison Road e subi correndo o lance de escada até o apartamento de Bernard. Ele estava de pé no lado de
dentro da porta aberta, segurando O chapéu e o sobretudo e com as malas no chão. Ultimamente ele havia adquirido o hábito da minuciosa exatidão dos idosos, o cuidado
necessário para compensar as falhas da memória. Apanhei as malas
(Jenny tinha razão) e ele ia fechar a porta quando franziu a testa e ergueu um dedo.
- Uma última verificação.
Deixei as malas no chão e fui atrás dele e vi quando apanhou as chaves da casa e o passaporte na mesa da cozinha. Estendeu-os para mim com uma cara de "bem
que eu falei", como se eu os tivesse esquecido e ele merecesse ser congratulado por lembrar.
Eu já havia andado em táxis de Londres com Bernard. Suas pernas chegavam quase à divisão que nos separava do motorista. Estávamos ainda em primeira, apenas
dando partida, e Bernard, com as mãos em forma de campanário sob o queixo, começou a falar.
- Ocaso é... - Sua voz não tinha, como a de June, aquele estacato mandarim do tempo de guerra, era levemente aguda, com enunciação exageradamente precisa,
como devia ser a de Lytton Strachey ou de Malcolin Muggeridge, no estilo de certos galeses cultos. Para quem não o conhecia e ainda não gostava dele, podia parecer
afetada. - O caso é que a unificação alemã era inevitável. Os russos vão chocalhar seus sabres, os franceses vão sacudir os braços no ar, os britânicos vão murmurar
"umm e ah". Quem pode saber o que os americanos vão querer, o que vai ser mais conveniente para eles. Mas nada disso importa. Os alemães terão a unificação porque
querem e está garantida na sua Constituição e
ninguém pode impedir. Eles a teriam mais cedo ou mais tarde porque nenhum chanceler com a cabeça no lugar vai deixar essa glória para seu sucessor. E a terão nos
termos da Alemanha ocidental porque é ela que está pagando.
Bernard expunha todas as suas opiniões como fatos estabelecidos, e suas certezas tinham uma força sinuosa. O que eu devia fazer era apresentar outro ponto
de vista, quer acreditasse nele ou não. Seus hábitos para uma conversa particular haviam sido formados por anos de debate público. Uma boa e justa discussão sobre
idéias diferentes nos levaria à verdade. A caminho de Heathrow eu
obedientemente argumentei que os alemães orientais podiam manter algumas das características do seu sistema de vida e de governo, o que dificultaria sua assimilação,
que
a União Soviética tinha centenas de milhares de soldados na República Democrática Alemã e se quisesse poderia afetar o resultado e que a união dos dois sistemas
em termos de economia e de prática podia levar anos.
Bernard balançou a cabeça afirmativamente, satisfeito. Com o queixo ainda apoiado nas pontas dos dedos, esperou pacientemente que eu terminasse de falar
para expor seus argumentos. Metódica e ordenadamente ele começou o estudo. A enorme repulsa popular ao governo da Alemanha oriental chegou a um ponto em que as fidelidades
remanescentes ao antigo sistema só serão descobertas muito mais tarde, sob a forma de nostalgia. A União Soviética não estava mais interessada em controlar seus
satélites do leste. Não era mais uma superpotência a não ser em termos de poderio militar e precisava demais da boa vontade do Ocidente e do dinheiro da Alemanha.
Quanto às dificuldades práticas da unificação alemã, podiam ser resolvidas mais tarde, depois que o casamento político tivesse garantido ao chanceler seu lugar nos
livros de história e uma boa probabilidade de vencer a próxima eleição com milhões de novos eleitores agradecidos.
Bernard continuou a falar, sem perceber que O táxi tinha parado em frente ao terminal. Inclinei-me para a frente para pagar a corrida, enquanto ele passava
à resposta do terceiro item da minha argumentação. O motorista virou para trás e abriu a divisória de vidro para ouvir o que ele dizia. Devia ter uns cinquenta anos,
era
completamente calvo, com um rosto de bebê, de pele esticada e olhos azuis brilhantes.
Quando Bernard terminou, ele disse.
- Sim, e depois, companheiro? Os chucrutes
começam a querer mandar no mundo outra vez. Foi assim que começou toda a confusão.
Bernard praticamente se encolheu quando o motorista começou a falar e estendeu a mão para sua mala. As consequências da unificação alemã seriam provavelmente
o novo assunto do debate, mas, sem se deixar levar pelo argumento nem por um minuto, Bernard, embaraçado, começou a sair do carro.
- Onde está a sua estabilidade? - dizia o motorista. - Onde o seu equilíbrio de forças? No seu lado oriental vocês têm a Rússia entrando pelo cano e todos
aqueles países pequenos, Polônia e o resto, enterrados na merda com débitos e tudo o mais...
- Sim, sim, tem razão, sem dúvida isso deve nos preocupar - disse Bernard, a salvo agora, na calçada. - Jeremy, não podemos perder esse avião.
O motorista abaixou o vidro do carro.
- No ocidente, vocês têm a Grã-Bretanha que não tem nada de europeu, nada mesmo. Têm ainda a língua nos fundilhos da América, se perdoa o meu francês. Sobram
só os franceses. Deus do céu, os franceses!
- Até logo e muito obrigado - disse Bernard suavemente e saiu carregando as malas até uma certa distância. Eu o alcancei na porta automática do terminal.
Ele pôs a mala no chão na minha frente e esfregou a mão direita com a esquerda, dizendo: - Eu simplesmente não suporto
esses motoristas tagarelas.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas pensei também que Bernard era exigente demais na escolha do adversário de um debate.
- Você perdeu o contato com o homem comum.
- Eu nunca tive, meu caro rapaz. Minha especialidade sempre foram as idéias.
Meia hora depois do avião levantar vôo, pedimos champanhe e brindamos à "liberdade". Então Bernard voltou ao assunto do homem comum. - Mas June jamais
perdeu o contato. Ela podia se dar bem com qualquer pessoa. Ela teria gostado daquele motorista. Uma coisa surpreendente para quem acabou vivendo isolada do mundo.
Na verdade, June era muito mais comunista do que eu.
Naquele tempo, quando falavam em June eu sentia uma ponta de culpa. Desde sua morte, em julho de 1987, eu não havia feito nada com suas memórias, a não ser
catalogar minhas anotações e guardá-las num arquivo de mesa. Meu trabalho (eu dirijo uma editora especializada em livros escolares), a família, a mudança de casa
no ano anterior - todas essas desculpas de praxe não diminuíram meu sentimento de culpa. Talvez minha viagem à França, a bergerie e tudo que se ligava a ela me servisse
de inspiração para recomeçar o trabalho. Além disso, eu ainda queria fazer algumas perguntas a Bernard.
- Não acredito que June considerasse isso um elogio.
Bernard ergueu o copo para que a luz do sol que inundava a cabine refletisse no champanhe.
- Hoje em dia, quem acha? Mas durante um ou dois anos, ela defendeu a causa com unhas e dentes, como uma leoa.
- Até o Gorge de Vis.
Bernard sabia quando eu estava tentando obter informação. Recostou no banco e sorriu, sem olhar para mim.
- Estamos então agora nesse tempo e nessa vida?
- Está na hora de começar a fazer alguma coisa a respeito.
- Alguma vez ela contou a nossa briga? Em Provença, quando voltávamos da Itália, a caminho de casa, uma semana mais ou menos antes de chegarmos ao Gorge.
- Não, acho que ela nunca falou nisso.
- Foi na plataforma da estação, perto de uma cidadezinha cujo nome não lembro agora. Esperávamos o trem local para Arles. Era uma estação descoberta, pouco
mais do que uma parada, na verdade, e terrivelmente destruída. A sala de espera fora incendiada. Fazia calor, não havia sombra nem lugar para sentar. Estávamos cansados
e o trem atrasado. Não havia mais ninguém na estação. Condições perfeitas para nossa primeira
briga conjugal.
- Depois de algum tempo, deixei June ao lado da nossa bagagem e caminhei até o fim da plataforma - você sabe, como fazemos quando o tempo parece não passar.
Estava tudo em péssimo estado. Acho que haviam derrubado um barril de piche. As pedras da calçada estavam soltas e o mato tinha crescido entre elas e secado com
o calor. Na parte de trás, longe dos trilhos, havia uma moita de arbustos que tinham conseguido vingar apesar de tudo. Parei para admirar as plantas e notei um movimento
numa das folhas. Cheguei mais perto e lá estava uma libélula, vermelha, Sympetrum sanguineum, um macho, vermelho brilhante. Não, são exatamente raras, mas aquela
era enorme, uma beleza.
- Por incrível que pareça, eu a apanhei com as duas mãos em concha, corri pela plataforma e pedi para June segurar o inseto enquanto eu apanhava meu kit
de viagem na sacola. Eu a abri e com o vidro de líquido mortal na mão pedi a June para se aproximar com a libélula. June estava ainda com as mãos fechadas em concha,
uma sobre a outra, assim, e olhava para mim com horror. Perguntou, "O que você vai fazer?" E eu disse,
"Quero levá-la para casa". June não se aproximou de mim. "Quer dizer que vai mata-la?" "É claro que vou", respondi, "é uma beleza". Então June disse com lógica fria.
"É uma beleza, logo você vai matá-la". Como você sabe, June cresceu muito perto do campo e jamais teve problemas para matar
camundongos, ratos, baratas, vespas - na verdade, qualquer coisa que a incomodava. Estava um calor de rachar e não era o momento para começar uma discussão ética
sobre o direito dos insetos. Portanto, eu disse, June, só quero que traga a libélula até aqui". Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Ela recuou um passo e percebi
que se preparava para soltar o inseto. June, você sabe o quanto ela significa para mim. Se você a soltar, jamais a perdoarei." June travava uma luta íntima. Repeti
o que tinha dito e então ela se aproximou de mim, muito calada, pôs a libélula na minha mão e me viu pôr o inseto no vidro, fechar a tampa e guardar na caixa. Continuou
em silêncio enquanto eu guardava tudo na sacola, e então, talvez sentindo-se culpada por não ter soltado a libélula, ela explodiu num tremendo acesso de fúria.
O carrinho de bebidas estava passando pela segunda vez e Bernard interrompeu a história para resolver que não queria outra dose de champanhe. - Como
as melhores brigas, passou rapidamente do particular para o geral. Minha atitude para com a pobre criatura era típica da minha atitude para com todas as outras coisas,
incluindo ela mesma. Eu era frio, teórico, arrogante. Jamais demonstrava nenhuma emoção e a impedia de demonstrar o que sentia. Ela sentia-se vigiada, analisada,
como se fizesse parte da minha coleção de insetos. Eu só me interessava por abstrações. Eu dizia que amava a "criação", como June a chamava, mas na verdade eu queria
controlar, etiquetar, arranjá-la em fileiras. E a minha política era também discutível. O que me incomodava era a sujeira e não tanto a injustiça. Não era a fraternidade
da raça humana que eu desejava, mas a organização eficiente do homem. O que eu queria era uma sociedade arrumada como um quartel, justificada por teorias científicas.
Estávamos ali de pé sob aquele sol feroz e June gritava comigo, "Você nem ao menos gosta das pessoas da classe trabalhadora! Nunca fala com elas. Não sabe como elas
são. Você as odeia. Só quer arranjá-las em filas perfeitas como seus malditos insetos!"
- E O que você disse?
- Não muito, no princípio. Você sabe como detesto cenas. Só pensava, eu casei com esta bela moça e ela me odeia. Que engano terrível! E então, porque precisava
dizer alguma coisa, comecei a fazer a defesa do meu passatempo. A maioria das
pessoas, eu disse, instintivamente detesta o mundo dos insetos e os entomologistas são os únicos que dão atenção a eles, que estudam seus modos de vida, seu ciclo
vital e, de um modo geral, cuidam deles. Dar nome aos insetos, classificá-los em grupos e subgrupos era uma parte importante de tudo isso. Se você aprende o nome
de uma parte do mundo, você aprende a amá-la. Matar alguns insetos era irrelevante comparado com esse fato mais abrangente. As populações de insetos são enormes,
mesmo das espécies raras. São clones genéticos uns dos outros, portanto não fazia sentido falar de indivíduos, muito menos dos seus direitos. "Lá vem você outra
vez", disse ela, "Não está falando comigo, está dando uma palestra". Foi então que comecei a me irritar. Quanto à minha política, eu disse, sim, eu gostava de idéias
e que mal havia nisso? Cabia às outras pessoas concordar ou discordar e provar que estavam erradas. E era verdade, eu me sentia constrangido com pessoas da classe
trabalhadora, mas isso não queria dizer que as detestava. Era absurdo. Eu compreenderia perfeitamente se elas não se sentissem à vontade comigo. Quanto aos meus
sentimentos para com ela, sim, eu não demonstrava muito meus sentimentos, mas isso não queria dizer que não sentia. Simplesmente era o modo que fui criado e se cujá
não havia dito isso um número suficiente de vezes, então, pedia desculpas e prometia, a partir daquele momento, dizer todos os dias, se fosse preciso.
- Então aconteceu uma coisa extraordinária. Na verdade, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto eu falava, nosso trem chegou com muito barulho e
muita fumaça e vapor e, assim que ele parou, June começou a chorar, me abraçou e contou que estava grávida e que quando segurou o
pequeno inseto nas mãos sentiu-se responsável não só pela vida que crescia dentro dela, mas pela vida em geral, e que permitir que eu matasse aquela linda libélula
fora um grande erro e ela estava certa de que ia acontecer alguma coisa terrível ao bebé. O trem partiu e nós continuávamos abraçados na plataforma. Eu tinha vontade
de dançar de alegria, mas como um idiota, estava tentando explicar Darwin para June e tranquilizá-la, dizendo que não existia espaço na ordem das coisas para o tipo
de vingança que ela estava insinuando, e que nada ia acontecer ao nosso bebê...
- Jenny.
- Sim, é claro. Jenny.
Bernard apertou o botão no teto e disse à aeromoça que tinha mudado de idéia e queria mais champanhe. Quando chegou, erguemos nossos copos, ao que parecia,
ao nascimento iminente da minha mulher.
- Depois disso não podíamos nem pensar em esperar outro trem e caminhamos para a pequena cidade - pouco mais do que uma aldeia, na verdade, e eu gostaria
de lembrar o nome - encontramos o único hotel e um quarto enorme onde a madeira rangia, no primeiro andar, com uma varanda que dava para a pequena praça. Lugar perfeito
e sempre pensamos em voltar algum dia. June sabia o nome da cidade e agora eu jamais vou saber. Ficamos dois dias, comemoramos o bebê, fizemos uma revisão das nossas
vidas e planos, como qualquer jovem casal. Foi uma reconciliação maravilhosa - e mal saímos do quarto.
- Porém, certa noite, June dormiu cedo e eu estava inquieto. Fui dar uma volta na praça e tomei alguns drinques num café. Você sabe como é estar intensamente
com uma pessoa durante horas e horas e de repente ficar sozinho outra vez. É como sair de um sonho. Voltamos a nós mesmos. Sentei à mesa na calçada do bar, fiquei
vendo os homens jogar boule. A noite estava muito quente e pela primeira vez eu tinha oportunidade de pensar nas coisas que June dissera na estação. Tentei imaginar
como seria acreditar, acreditar de verdade, que a natureza pode se vingar da morte
de um inseto prejudicando um feto. June estava falando sério, a ponto de chorar. Mas francamente, eu não consegui. Era pensamento mágico, completamente alheio a
mim...
- Mas, Bernard, nunca sentiu isso, quando está desafiando a sorte? Nunca bateu na madeira?
- Isso é uma brincadeira, um modo de falar. Sabemos que é superstição. A crença de que a vida realmente tem recompensas e castigos, que no fundo de tudo
existe um padrão de significado além do que atribuímos a nós mesmos - isso é mágica consoladora. Somente...
- Biógrafos?
- Eu ia dizer mulheres. Talvez eu esteja dizendo que sentado ali com meu drinque, na praça pequena e quente, eu começava a compreender alguma coisa sobre
mulheres e homens.
Imaginei o que a minha sensata e eficiente Jenny pensaria disso.
Bernard terminou o champanhe e olhou para os dois dedos de bebida na minha pequena garrafa. Dei a ele a garrafa e ele continuou.
- Vamos ser francos, as diferenças físicas não passam de, não passam de...
- Da ponta do iceberg?
Ele sorriu.
- A pequena extremidade de uma cunha gigantesca. Bem, o caso é que fiquei ali sentado e tomei mais um ou dois drinques. Então, sei que é bobagem dar muita
importância ao que os outros dizem num momento de raiva, mesmo assim, pensei no que June tinha dito da minha política, talvez por haver um elemento de verdade em
suas palavras, para todos nós, e ela já havia dito algo parecido
antes. Lembro de ter pensado, ela não vai ficar muito tempo no partido. Tem idéias próprias muito fortes e estranhas.
- Tudo isso me passou pela cabeça esta tarde quando fugi daquele chofer. Se fosse June, a June de 1945, não a June que desistiu completamente da
política, ela teria passado meia hora, perfeitamente feliz, discutindo política européia com aquele homem, indicando a ele a literatura apropriada, anotando o nome
dele para sua lista de correspondência e, quem sabe, convencendo-o a entrar para o partido. Ela não se
importaria de perder o avião.
Tiramos da mesinha as garrafas e os copos abrindo espaço para as bandejas do almoço.
- De qualquer modo, aí está, pelo que possa valer, outro item para a vida e o tempo. Ela era melhor comunista do que eu. Mas naquela explosão na plataforma
do trem era possível adivinhar um bom pedaço do futuro. Dava para perceber seu afastamento do partido e o começo de toda aquela bobagem que encheu sua cabeça desde
então. Certamente não foi uma coisa repentina acontecida naquela manhã no Gorge de Vis, ou fosse lá o que ela dizia que era.
Era doloroso ver meu ceticismo atirado de volta para mim. Enquanto passava manteiga no pão, fui tentado a uma pequena maldade a favor de June. -
Mas, Bernard, o que me diz da vingança do inseto?
- Que vingança?
- O sexto dedo de Jenny!
- Meu caro rapaz, o que vamos beber com o almoço?
Fomos primeiro ao apartamento de Günter na Kreuzberg. Deixei Bernard esperando no táxi, atravessei o jardim carregando as malas e subi ao quarto andar da Hinterhaus.
A vizinha da frente, que estava guardando a chave para mim, falava pouco inglês e sabia que estávamos ali por causa do Muro.
- Não bom - disse ela. - Muita gente aqui. Na loja, não leite, não pão, não frutas. Na U-Bahn também. Muita gente!
Bernard mandou o chofer nos deixar na entrada de Brandemburgo, mas foi um erro e eu entendi o que a vizinha de Günter queria dizer. Muita gente, muito tráfego.
As ruas, geralmente movimentadas,
estavam cheias de Wartburgs e Trabants fumacentos no seu primeiro passeio naquela noite. As calçadas estavam intransitáveis. Todos, berlinenses do leste e do oeste,
bem como moradores de outras cidades, eram turistas agora. Bandos de adolescentes da Berlim ocidental com latas de cerveja e garrafas de sekt passavam pelo nosso
carro preso no engarrafamento, cantando músicas de jogos de futebol. No escuto do banco traseiro do táxi, comecei a me arrepender vagamente por não estar na bergerie,
no alto do St. Privat, preparando a casa para o inverno. Mesmo nessa época do ano, ainda se ouve as cigarras nas noites menos frias. Então, lembrando a história
de Bernard no avião, esqueci esse desejo, resolvido a conseguir dele o máximo possível, enquanto estávamos ali, e reviver as
memórias de June.
Desistimos do táxi e seguimos a pé. Levamos vinte minutos para chegar ao monumento da Vitória e dali, estendendo-se à nossa frente, estava a vasta rua 17
de Junho que levava a Brandemburgo. Um pedaço de papelão amarrado sobre a placa com o nome da rua dizia "Nove de Novembro". Centenas de pessoas caminhavam na mesma
direção. A quatrocentos metros de onde estávamos, os portais de Brandemburgo, iluminados, pareciam pequenos, atarracados para sua importância global. Na sua base,
a escuridão era intensificada por uma faixa larga. Só quando chegamos perto descobrimos que a faixa era formada pela multidão. Bernard andava a passo lento com as
mãos atrás das costas inclinadas, como se caminhasse contra um vento forte. Todos passavam à nossa frente.
Quando foi a última vez que você esteve aqui, Bernard?