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CAMPOS DA MORTE - 2
CAMPOS DA MORTE - 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

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CAMPOS DA MORTE - Parte II

 

 

 

 

Capítulo 20
Arthur
Albuera, 21 de maio de 1811
Arthur parou o cavalo quando ele e a pequena escolta chegaram ao topo da colina sobranceira à vila. Mesmo tendo o general Beresford e o seu exército travado o combate havia cinco dias, o terreno estava ainda coberto de cadáveres. Os seguidores dos exércitos de ambos os lados, bem como os camponeses locais, tinham despojado a maior parte dos corpos de tudo de valor e agora o campo de batalha estava entregue a um punhado de patrulhas aliadas e à predação das aves necrófagas, dos cães vadios e dos enxames barulhentos de moscas.
Somerset avançou com a montada e levou instintivamente as costas da mão enluvada ao nariz quando o fedor da decomposição o assaltou.
- Deus do Céu, mas que visão - resmungou. - Que carnificina.
Arthur concordou distraidamente. Observava as características salientes do campo de batalha enquanto tentava dar algum sentido aos relatórios que recebera sobre
o confronto. O general Beresford fora enviado para sul com um terço das forças para tomar a fortaleza de Badajoz, enquanto Arthur e o grosso do exército tratava
das defesas de Ciudad Rodrigo. A velha artilharia da cidade próxima de Elvas fora requisitada para garantir a Beresford peças de cerco, mas isso de pouco servira
para incomodar as defesas francesas. Chegara a informação de que o marechal Soult estava a caminho para render a guarnição. Beresford fora obrigado a abandonar o
cerco e a virar-se para enfrentar a ameaça. Em inferioridade numérica, decidira travar uma batalha defensiva, do género que Arthur provara ser bastante eficaz em
ocasiões anteriores.
O problema fora que, desta vez, os franceses tinham conseguido contornar o flanco aliado. Na confusão que se seguira, batalhão após batalhão fora lançado à vez para
o confronto. Tinham sido momentos garantidamente caóticos e desesperados e só a grande coragem e profissionalismo dos soldados rasos tinham evitado o desastre. Mesmo
assim, Beresford sofrera perdas avultadas, quase cinco mil homens, na sua grande maioria britânicos.
Arthur sentiu-se entorpecido pela visão à sua frente. Ao longo de toda a extensão da cumeada que formara o flanco direito de Beresford, a erva pisada e a urze dura
estavam cobertas com a carne mosqueada dos mortos, ainda com parte das fardas depois de os saqueadores terem saciado o apetite com a colheita sangrenta no campo
de batalha. Estalou a língua e fez avançar o cavalo até ao ponto onde tivera lugar o combate mais intenso. Aí, os cadáveres amontoavam-se a espaços, provavelmente
onde alguns dos batalhões ingleses tinham sido apanhados pelos lanceiros inimigos antes de conseguirem formar quadrados. Pequenos grupos de homens tinham-se juntado
para tentar repelir os lanceiros antes de serem sobrepujados e abatidos. Noutras zonas, duas longas linhas de homens jaziam onde tinham sido apanhados pelos mosquetes
e pelos canhões. Arthur calculou que a maior parte de um batalhão estaria espalhada pelo terreno. Homens que se tinham mantido firmes, disparando e recarregando
constantemente enquanto os camaradas eram abatidos a seu lado, até que também eles foram derrubados. Arthur olhou para a cena com uma grande tristeza no coração,
mas também com um grande orgulho por aqueles soldados. Tinham servido o país com uma dedicação inabalável, acabando por pagar o derradeiro preço.
Os franceses, por seu lado, também tinham sofrido bastante, com pequenos montes e linhas irregulares de corpos de casaca azul que marcavam a sua posição no campo
de batalha. As perdas de Soult tinham sido ainda mais pesadas do que as de Beresford e fora o marechal francês o primeiro a ceder devido à carnificina que tinha
lugar entre as densas nuvens de fumo de pólvora que cobriam a colina. Soult cancelara o ataque e retirara para Madrid.
- E o Beresford chama a isto uma vitória? - comentou Somerset, que olhava para o campo de batalha à sua volta.
- Foi uma espécie de vitória. Repeliu Soult e obrigou os franceses a desistir da tentativa de render Badajoz. Contudo - Arthur fez uma pausa com um gesto que abarcou
os cadáveres espalhados pela área circundante, - mais uma vitória assim vai arruinar-nos.
O exército de Beresford estava acampado nos arredores de Elvas. O general recuara além de Badajoz, para dar aos seus homens tempo para recuperarem da provação em
Albuera. No exterior de Badajoz ficara apenas uma pequena força para dar continuidade ao cerco, que escavava algumas trincheiras de aproximação. O irregular grupo
de canhões disparava tiros ocasionais contra as defesas robustas de San Cristobal, o forte exterior que dominava Badajoz a partir de uma elevação, na outra margem
do rio Guadiana. Sobre as muralhas do forte agitava-se uma tricolor distante, num desafio indolente.
De todos os fortes que guardavam os caminhos entre Portugal e Espanha, Badajoz era, com alguma margem, o mais formidável de todos, refletiu Arthur ao passar por
ele. Protegida de dois lados pelo vasto Guadiana e por um dos seus afluentes, a cidade era cercada por uma muralha impressionante, com bastiões poderosos a espaços
regulares. Sobre um rochedo, a um canto da cidade, a cidadela era defendida por outra muralha forte. Os britânicos teriam de optar entre tomar San Cristobal e depois
usá-lo como plataforma a partir de onde bombardear a cidade, ou tentar abrir uma brecha nas muralhas do outro lado, assaltando depois as defesas. Qualquer das opções
teria um preço bastante elevado. Arthur olhou para o forte do outro lado do rio, considerou-o praticamente invulnerável e decidiu que teria de ordenar a Beresford
que abandonasse as pretensões quanto a San Cristobal e que concentrasse os esforços em Badajoz.
O moral arrasado dos soldados da coluna de Beresford deu-se a conhecer de imediato. Os piquetes de serviço aos acessos ao acampamento não se esforçavam por patrulhar
o terreno, estando, isso sim, sentados à sombra, com os mosquetes encostados aos troncos das árvores mais próximas. Mais além, as tendas e os abrigos espalhavam-se
pelas encostas em grupos improvisados e não nas linhas ordeiras em que Arthur insistia. Os homens, em mangas de camisa, calças remendadas e chapéus de feltro, descansavam
em pequenos grupos, falando baixinho ou dormindo. Faltava ali o ambiente animado de um acampamento normal.
Alguns dos homens levantaram-se ao avistar os recém-chegados.
- Ora, mas é o Nosey! - bradou uma voz. - É o Nosey! Tá aqui! Viva o velho Nosey!
Outras dezenas de homens levantaram-se e a maioria gritou vivas. Outros, segundo notou Arthur com tristeza, limitaram-se a observar o comandante e a respetiva escolta
a atravessar o acampamento.
Arthur sentiu Somerset a ficar hirto a seu lado. O ajudante de campo tossicou.
- Aaa, deseja que os silencie, milorde?
- Não, isso não é necessário. Se lhes agrada, nesse caso, por enquanto serve bem os meus propósitos.
- Sim, sir.
Cruzaram o acampamento acompanhados por uma onda de vivas, pelo que quando chegaram à casa que servia de quartel-general a Beresford, vários oficiais tinham-se já
levantado para observar a chegada. O coração de Arthur ficou um pouco mais apertado quando viu que alguns dos oficiais ainda vestiam as fardas ensanguentadas e sujas
do dia da batalha. Mesmo assim, esforçaram-se para se pôr em sentido quando Arthur se aproximou e desmontou, entregando as rédeas a um dos palafreneiros de Beresford.
- Bom-dia, cavalheiros. - Arthur tocou na aba do chapéu e os oficiais responderam com uma continência. Seguiu-se um breve silêncio, enquanto Arthur olhava à sua
volta, e depois prosseguiu, com um tom neutro: - Parece-me que seria útil uma muda de roupa e, em alguns casos, que se escanhoassem, cavalheiros. Tratem disso antes
de ter a honra de jantar convosco, esta noite. - Arthur dirigiu-se a um rosto que reconheceu. - Major Templeton, onde está o general Beresford?
- Lá dentro, milorde.
- Nesse caso, vou ter diretamente com ele. Importa-se de tratar da minha escolta?
- É claro, milorde. - O major curvou a cabeça.
Arthur fez sinal a Somerset para que o acompanhasse e cruzou o pátio, em direção à casa. Uma colunata estreita acompanhava o interior dos muros caiados e uma treliça
com uma hera folhosa garantia abrigo do sol. Uma sentinela pôs-se em sentido junto à porta aberta e Arthur fez uma pausa à frente dele, após o que lhe tocou com
gentileza no peito com o pingalim.
- Onde está a sua gola? - perguntou, num tom brando.
- Não sei, sir - respondeu o soldado, olhando em frente sobre o ombro de Arthur. - Vai-se a ver perdi-a na batalha, sir.
- Não me parece. Mesmo assim, seria de esperar que um bom soldado descobrisse como a substituir no espaço de um dia ou dois. Trate disso.
- Sim, sir! - O soldado aquiesceu e fez menção de se afastar.
- Não é agora! Neste momento está de serviço, que raios! Trate disso assim que for rendido. Somerset!
- Sir?
- Quero uma nota entregue ao sargento da companhia deste indivíduo. Não quero sentinelas do quartel-general de serviço sem farda.
- Sim, meu general.
Arthur lançou um olhar duro ao soldado por mais um instante e depois subiu os poucos degraus que davam acesso à casa. O grande hall estava bem iluminado por uma
série de janelas arqueadas que percorriam as traseiras do edifício e alguns elementos do estado-maior de Beresford atarefavam-se a compilar listas de baixas a serem
enviadas para Londres. Ouviu-se o arrastar de cadeiras quando os homens se levantaram apressadamente.
- Tranquilos, cavalheiros. Podem voltar ao trabalho. Onde está o vosso general?
- Ali dentro, sir. - Um cabo apontou para uma porta fechada de um dos lados do hall.
Arthur dirigiu-se à porta e bateu na superfície desgastada.
- Que raios, dei ordens para que não me incomodassem! - bradou a voz de Beresford do interior.
Arthur e Somerset entreolharam-se brevemente, depois o general agarrou na maçaneta e abriu a porta. A sala estava debilmente iluminada, com um único raio de luz
a entrar pela janela. Quando os olhos de Arthur se adaptaram à obscuridade, Arthur viu que se encontravam na sala de jantar. Beresford estava sentado numa cadeira
simples de madeira, no extremo de uma mesa comprida e robusta. Um monte de relatórios e outros papéis estavam a um lado. Do outro tinha duas garrafas de clarete
e um copo. Beresford estava de camisa e pantalonas, pena na mão e inclinado sobre um documento. Fitou Arthur por um instante e franziu as sobrancelhas.
- Não o esperava, milorde.
- Como é óbvio. - Arthur percorreu a sala, puxou de uma cadeira e sentou-se à frente do general Beresford. - Pretendia avaliar o progresso do cerco quando recebemos
o primeiro relatório da batalha. Imagino que me tenha redigido um relato total.
Beresford acenou com a cabeça para os papéis à sua frente.
- Estava mesmo agora a escrever a conclusão. Ou melhor, estava a rescrevê-la. Tem sido difícil descrever ao certo o que aconteceu. Eles em Londres não vão entender.
Nem perdoar.
- Isso veremos, meu caro Beresford. - Arthur ofereceu um sorriso gentil. - Muito bem, se não se importa que leia o seu relatório enquanto o Somerset nos encontra
qualquer coisa para comer. Foi uma viagem muito longa e estou esfomeado. Trate disso, Somerset.
- Claro, sir.
Quando o ajudante de campo os deixou, Arthur apontou para o relatório.
- Vou dar uma vista de olhos enquanto aguardo.
Beresford relanceou os olhos para o pequeno monte de papéis e mordeu o lábio. Depois baixou a pena e empurrou o relatório na direção de Arthur.
- Sim, claro.
Arthur virou-se na cadeira para permitir que a luz lhe caísse no colo e começou a ler. Era o que receara. Beresford ficara profundamente abalado com a provação por
que ele e os seus homens tinham passado. Isso tornava-se óbvio pelo tom sombrio que percorria a descrição feita do conflito e Arthur imaginou a agitação que teria
lugar, caso o documento chegasse a Londres naquela versão. Isso era especialmente verdadeiro em relação à conclusão, onde Beresford se demorava nas pesadas baixas
sofridas, no grande número de homens feridos e no golpe devastador ao espírito dos soldados.
Somerset regressou com um criado que trazia um tabuleiro de frango frio, pão e um jarro de vinho aguado, que pousou na ponta da mesa, tendo depois voltado a deixar
a presença dos superiores. Arthur terminou a leitura do relatório enquanto os outros aguardavam em silêncio. Devolveu os papéis à mesa e endireitou-se na cadeira.
Fitou Beresford.
- É óbvio que teve uma luta difícil, mas venceu, e isso é o que importa.
- Venci? - Beresford fungou. - Não me parece que isso sirva para reconfortar as famílias dos mortos, nem de quem regressa a casa aleijado.
- Por vezes temos de nos conformar com este tipo de coisas, ou então desistir desta vida. É esse o preço da guerra, meu caro Beresford. É um mal necessário para
que o mundo fique livre de tiranos sanguinários como Bonaparte. É preciso aceitar isso, tal como é preciso aceitar que o exército conseguiu uma vitória. A Inglaterra
precisa de vitórias. O povo britânico precisa de acreditar que nos dirigimos lenta mas inexoravelmente para um desenlace bem-sucedido na guerra. Aquilo de que a
Inglaterra não precisa é de descrições desencorajadoras sobre os esforços e os sacrifícios dos seus soldados. - Arthur bateu com o dedo no relatório. - Isto não
serve, Beresford. Tem de me descrever uma vitória.
- Escrevi a verdade, milorde. Devo pelo menos isso aos homens que tombaram em Albuera.
- Escreveu uma verdade, nada mais. Uma das muitas verdades que podem ser contadas acerca da batalha. O truque é procurar a mais eficaz. Deixe que os ingleses saibam
que os nossos homens lutaram como heróis e morreram com a satisfação de saber que cumpriram o seu dever. Diga à Inglaterra que afugentámos o inimigo e que provámos
mais uma vez, perante toda a Europa, que o nosso exército é ímpar. - Arthur cruzou os braços. - É essa a narrativa que tem de contar.
Beresford pensou nas palavras do comandante por alguns momentos e depois abanou a cabeça, pesaroso.
- Não seria uma narrativa que se acomodasse com facilidade no meu coração, ou na minha consciência.
- Para os diabos com a sua consciência! - exclamou Arthur bruscamente. - Julga que tem o monopólio do sofrimento por que passámos durante os anos que já combatemos
aqui? Não lhe parece que eu, e todos os generais britânicos, possamos sentir a perda dos homens em combate como um fardo na alma? - Fez uma pausa e respirou fundo
para se acalmar. - Escute, Beresford, a guerra na Península Ibérica está a desenrolar-se a nosso favor. Gostaria de poder dizer o mesmo quanto ao conflito global,
mas os nossos aliados vão e vêm, derrotados uma e outra vez. Mas regressam sempre à luta. Sabe porquê? Porque lhes damos esperança. Enquanto a Inglaterra aguentar.
Enquanto o exército prevalecer, Bonaparte ver-lhe-á negada a derradeira vitória.
Chegou-se mais ao subordinado.
- O seu relatório é demasiado indulgente. Permitiu-se ser demasiado homem e muito pouco general. Não posso permitir tal indulgência entre os meus oficiais superiores.
Isso mina o moral dos homens. Um general tem de se mostrar superior às paixões dos homens comuns. Tem de ser a rocha onde o exército se apoia. Quando os homens deram
tudo aquilo de que se julgam capazes, é para o general que olham, em busca de algo mais que dar.
Beresford curvou a cabeça, pensativo, e ficou em silêncio por um instante. A bem da verdade, Arthur estava bastante desiludido com o general. Era um excelente treinador
de homens e formara os seus batalhões portugueses com tanta perícia como o esperado por Arthur, mas carecia da ambição necessária para agir de forma independente.
Com uma clareza súbita, Arthur percebeu que isso fazia parte do preço de ser um comandante bem-sucedido. Quanto mais alcançava, mais os homens dependiam dele e deixavam
de confiar nas suas próprias capacidades.
Pigarreou.
- E então, Beresford? Como vai ser?
O outro homem ergueu a cabeça, fitou os olhos do comandante e assentiu.
- Farei o que deseja. Pelo bem da nossa causa.
- Excelente, meu caro - ofereceu Arthur, calorosamente, e antes que Beresford pudesse dizer mais alguma coisa, levantou-se. - Deixo-o a compor o seu relatório. Quero
que me envie uma cópia para eu ler antes de o Beresford regressar a Lisboa.
- Regressar a Lisboa? Não entendo, meu general. Está a afastar-me do comando?
- As suas competências são necessárias noutro local. Preciso de mais homens. Vai regressar a Lisboa para recrutar e treinar mais batalhões portugueses que nos componham
as fileiras.
Beresford fitou-o por um instante.
- Meu general, não nego que estou cansado, e que sinto um aperto no coração ao pensar em todos quantos perdi em Albuera, mas imploro-lhe que não me humilhe desta
forma.
- Não é esse o meu objetivo. Não pretendo humilhá-lo, tal como não vergastaria um cavalo que tropeçasse comigo em cima. É óbvio que precisa de descansar da tensão
do comando. Nada mais. Assim que me criar mais soldados, irá regressar à campanha. Dou-lhe a minha palavra.
- Entendo. E quanto ao meu exército? Quem o vai comandar?
- Eu. Já que aqui estou. Vou dar seguimento ao excelente trabalho que começou, meu caro Beresford.
Beresford ponderou a situação por um momento, ao que assentiu.
- Como desejar, sir. Obrigado.
Custou a Arthur ver o ar patético de gratidão que Beresford lhe lançou, mas mesmo assim aquiesceu e encaminhou-se para a porta.
- Envie-me o relatório assim que o rescrever.
- Sim, meu general. Onde estará?
- Vou visitar os feridos. Para onde levaram as suas baixas?
- Encontram-se em Elvas, sir. Estão a ser bem tratados num mosteiro franciscano.
- Valha-nos pelo menos isso. - Arthur acenou com a cabeça. - Envie-me o relatório para Elvas.
O mosteiro encontrava-se nos limites da vila, fazendo parte da muralha robusta que rodeava a povoação. O médico-chefe do general Beresford comandava uma pequena
equipa de serventes exaustos que faziam o que podiam pelos mais de mil camaradas feridos em Albuera. Quando Arthur e Somerset entraram no refeitório, viram que as
mesas e os bancos compridos tinham sido afastados para os lados e que o vasto espaço aberto estava agora apinhado de filas após filas de soldados britânicos feridos.
Tinham os membros envolvidos com pensos imundos e a centenas tinham sido amputados braços, ou pernas, jazendo agora a contemplar uma vida miserável a pedir esmolas
e a depender de outros. Muitos gemiam, ou gritavam de dor, ou eram atormentados pela fome e pela sede, já que os serventes não lhes podiam atender as necessidades
para tratarem dos feridos mais graves.
- Isto é uma desgraça - resmungou Somerset enquanto perscrutava o interior sombrio do mosteiro e franzia o nariz com o cheiro dos soldados que não tinham sido capazes
de conter as suas necessidades, jazendo agora na própria imundície. - Porque é que não há mais elementos a apoiar a equipa do médico?
- Imagino que o nosso amigo Beresford tenha andado demasiado apreensivo para se lembrar das necessidades destes homens. Isso tem de mudar.
- Milorde... sir - chamou uma voz rouca. Arthur virou-se e viu um jovem cabo a fitá-lo de uma das poucas enxergas que os monges tinham podido dispensar aos soldados
que lhes tinham sido impostos. - Sir, uma bebida, pelo amor de Deus.
Arthur aquiesceu e dirigiu-se a Somerset.
- Vá buscar água a este homem, ou cerveja fraca.
- Sim, sir.
Arthur encontrou um banco e sentou-se à frente do cabo. Não disse nada durante alguns instantes e depois, quando o soldado virou lentamente a cabeça para o encarar,
viu que uma salva de mortalha lhe mutilara o outro lado do rosto, que agora não passava de uma massa de sangue seco e de carne roxa.
- Qual é o seu regimento? - indagou Arthur.
O cabo humedeceu os lábios.
- Vigésima Nona Ligeira, milorde.
- Como se saiu a Vigésima Nona?
O cabo apontou para as fileiras de homens que o rodeavam.
- A maior parte deles é do mesmo regimento, sir. Fomos um bocado maltratados.
Arthur olhou para as baixas à sua volta antes de prosseguir, num tom de voz baixo:
- Por Deus, lamento que tantos de vós tenham sido feridos.
O cabo assentiu.
- Se o meu general nos estivesse a comandar, milorde, não seríamos tantos aqui deitados.
Capítulo 21
Badajoz, 9 de junho de 1811
Assim que a nova versão do relatório de Beresford deu início à viagem segura para Londres e o general regressou a Lisboa, Arthur dedicou-se ao cerco de Badajoz.
Ao receber as primeiras informações sobre a batalha de Albuera, convocara a coluna principal, ordenando que uma pequena força de cobertura ficasse para trás, com
o objetivo de manter os defensores de Ciudad Rodrigo encurralados atrás das muralhas tanto tempo quanto possível. Devido às baixas pesadas em Albuera, as tropas
de Beresford encontravam-se demasiado enfraquecidas para continuarem o cerco sozinhas, pelo que Arthur se viu obrigado, com relutância, a concentrar a sua força
contra Badajoz.
O general Beresford e os seus engenheiros não tinham feito um bom trabalho durante a tentativa inicial de capturar o forte de San Cristobal. As trincheiras de aproximação
cruzavam terreno aberto e não eram suficientemente fundas, enchendo-se de água e lama sempre que chovia. Também não garantiam um abrigo adequado contra o fogo inimigo
e Beresford perdera centenas de homens com as salvas de metralha e as granadas de morteiro enquanto tentavam escavar o seu caminho em direção ao forte. As dificuldades
enfrentadas pelo exército aliado eram agravadas pela falta de canhões de cerco decentes. As peças retiradas das muralhas de Elvas já tinham dois séculos e não dispunham
de precisão, de calibre, nem de munições. As baterias construídas para os canhões estavam demasiado afastadas do forte e, consequentemente, só um tiro de sorte conseguia,
a espaços, acertar nas áreas visadas para as brechas.
Se dispusesse de tempo suficiente, Arthur teria ordenado que se abandonasse a tentativa de tomada do forte e dirigido os esforços do exército contra as muralhas
de Badajoz. Contudo, a rede de espiões gerida pelo quartel-mestre, John Waters, relatara que o marechal Masséna fora substituído pelo marechal Marmont, que já marchava
com o exército para sul, com o objetivo de se unir a Soult para uma nova tentativa de render a guarnição de Badajoz. Os franceses seriam capazes de reunir mais de
sessenta mil homens contra os cinquenta mil de Arthur, dos quais um terço era constituído por portugueses e espanhóis. Não eram, de todo, probabilidades favoráveis
e, a menos que Badajoz fosse subjugada rapidamente, o exército aliado seria obrigado a retirar.
À medida que o Sol se erguia sobre a vasta província espanhola, dotando-a de um tom alaranjado, Arthur relanceou os olhos para o relógio de bolso.
- Dez para as seis - resmungou.
Em seu redor, um pequeno grupo de oficiais do estado-maior confirmou nervosamente os próprios relógios e alguns acertaram-nos com o do general. Arthur subiu para
um barril de artilharia virado e espreitou sobre a canhoneira. À frente dele, as trincheiras ziguezagueavam pelo terreno despido, pontilhado pelas pesadas bolas
de ferro. Apenas um punhado de cabeças e de chapéus se deixavam ver ocasionalmente, quando os engenheiros arriscavam uma olhadela rápida na direção do forte. Os
elementos do grupo de assalto e a brigada destacada para o seguir caso conseguissem chegar à brecha permaneciam ocultos, agachados na lama revirada no fundo da trincheira
mais próxima. Arthur ergueu o telescópio e analisou as defesas que a pequena força teria de ultrapassar. Havia talvez uns cem metros de terreno aberto a ser atravessado
até que os homens chegassem à base da elevação em que o forte se erguia. Em seguida teriam de subir a encosta, contornando os abatis que tinham sido dispostos em
todos os ângulos para frustrar quaisquer assaltos. Depois surgia o forte propriamente dito, protegido por muralhas grossas com seis metros de altura. As baterias
de cerco, à custa das últimas munições, tinham conseguido abrir uma pequena brecha na muralha. Arthur calculou que a abertura tivesse uns três metros de largura,
algo que mal poderia ser considerado útil para um assalto, mas não havia grande escolha. O tempo esgotava-se. Dali a alguns dias, Marmont uniria as suas forças a
Soult e o exército francês assim composto chegaria às muralhas de Badajoz em menos de uma semana.
- Esperemos que desta vez os seus homens sejam bem-sucedidos, señor.
Arthur virou-se para o oficial espanhol de farda impecável que estava a seu lado. O general Alava era um homem esguio de sorriso afável que fora destacado pela junta
de Cádis para servir como oficial de ligação de Arthur. Embora Alava estivesse há pouco tempo no estado-maior de Arthur, já começara a conquistar o respeito do comandante
britânico, adiantando opiniões assisadas sempre que lhas pediam. Era também sincero quanto aos defeitos de quem comandava os exércitos espanhóis e dos políticos
que deveriam pagar e fornecer os soldados. Em resumo, o general Alava era o tipo de homem de que Arthur precisava para servir de mediador entre ele e as autoridades
espanholas, que prometiam muito, mas não davam quase nada. Era lamentável, meditou Arthur, que o ardor patriótico dos soldados e do povo espanhol fosse tão mal servido
por muitos dos seus líderes.
Arthur soprou as faces enquanto pensava no comentário de Alava. Três dias antes ordenara a primeira tentativa de assalto à brecha. Cento e quarenta homens, abrandados
por escadas, tinham corrido em direção ao forte, confrontados com uma chuva de fogo de bolas de mosquete e de metralha. Ainda nem tinham chegado à muralha e já metade
fora abatida e os restantes procurado abrigo. Nem os oficiais, nem os sargentos e cabos conseguiram que se levantassem e Arthur fora obrigado a fazer soar a retirada.
Desde então, as peças de cerco envelhecidas tinham conseguido alargar a brecha e o fundo da abertura era agora facilmente acessível a partir da base da muralha.
Contudo, o inimigo estaria à espera de novo ataque e as baixas voltariam a ser pesadas. Arthur baixou o telescópio.
- Eles têm uma boa hipótese de êxito, general, caso contrário não teria ordenado o ataque.
Alava aquiesceu e depois olhou para a bateria. As peças estavam bem fornecidas de pólvora, mas os caixotes de munições na retaguarda da bateria encontravam-se quase
vazios. O espanhol pigarreou.
- Imagino que as armas sejam forçadas a silenciar-se em breve por falta de bolas, señor. Não é verdade?
Arthur quedou-se em silêncio por um instante antes de responder.
- Tem razão. Poucos mais danos poderemos infligir às muralhas do forte. Os meus homens terão de resolver o assunto com aço.
- E se não conseguirem invadir a brecha?
Logo atrás de Alava, Somerset agitava-se, irritado.
- Eles vão invadir a brecha. Os nossos soldados são dos melhores da Europa e garantidamente os melhores da Península Ibérica.
Alava não reagiu à ofensa implícita aos seus conterrâneos e assentiu sobriamente antes de responder.
- É claro. Mas imaginemos que o ataque fracassa. Quais serão as suas intenções?
- Nesse caso seremos obrigados a desistir do cerco. Não podemos fazer nada sem munições para as peças, e quando encontrássemos mais, Marmont e Soult já teriam chegado.
A nossa única esperança é tomar o forte e usar os seus canhões para abrir caminho pelas muralhas da vila.
- Entendo. - Alava anuiu. - Então é melhor rezarmos por sucesso.
- Pode rezar, se quiser - retorquiu Arthur calmamente. - Mas o assunto será decidido com aço frio e corações resolutos.
O som agudo de um apito trespassou o ar frio da alvorada. De imediato, os voluntários da difícil tarefa saíram da trincheira e começaram a correr em direção à muralha,
abrandados pelas escadas. A ovação distante fez-se ouvir, débil, enquanto avançavam pelo terreno maltratado. Arthur sentiu o coração a bater com mais força enquanto
olhava para o forte, à espera da reação inevitável. Um tambor soava já o alarme, um estrépito que levou as figuras minúsculas a correr do interior do forte para
encher as muralhas. Uma língua de chamas foi cuspida do cano de um canhão montado no bastião mais próximo. Arthur viu terra a ser levantada quando a salva de metralha
rasgou o solo e abateu um dos atacantes, que foi atirado ao chão como se tivesse sido pontapeado por um titã invisível. Outra peça abriu fogo, derrubando mais dois
homens. Depois, uma série de pequenas projeções de lume e baforadas de fumo surgiu ao longo da muralha, à medida que os defensores abriam fogo com mosquetes, juntando
o crepitar dos tiros ao ribombar dos canhões. Mais casacas-vermelhas foram abatidos, alguns mortos de imediato, outros ficando a jazer feridos, e uns poucos começaram
a rastejar de volta às trincheiras britânicas, ansiosos por fugir ao fogo inimigo que fustigava a aproximação ao forte.
- Continuem a avançar - resmungou Somerset por entre dentes cerrados. - Avancem, por Deus.
As figuras dispersas do grupo de assalto seguiram em frente, chegando à base da encosta que subia para o forte. Aí inclinaram-se para a frente, servindo-se de uma
mão para se apoiarem enquanto se debatiam percurso íngreme acima. À sua volta estavam os abatis com as pontas aguçadas, à espera de empalar os incautos. Arthur sentiu
uma onda de alívio por as peças francesas já não poderem ser usadas contra os seus homens. No entanto, a muralha de ambos os lados da brecha estava pejada de mosquetes,
com os defensores a despejarem fogo sobre as figuras indefesas que corriam para a base da brecha. Arthur calculou que uma vintena de homens teria caído na encosta,
a somar aos cerca de trinta que tinham sido abatidos ao deixarem a segurança da trincheira.
Os restantes tinham chegado à base da muralha, agrupando-se para se protegerem enquanto o tenente que comandava o grupo ajudava a firmar uma das escadas por baixo
da brecha. Sacou da pistola e subiu os degraus. Ao chegar à abertura, içou-se para a alvenaria solta que enchia o espaço, sendo abatido assim que se ergueu. O corpo
tombou para trás, de braços estendidos, e caiu desamparado ao lado da escada. Outro homem estava já a subir, de mosquete ao ombro. Foi derrubado antes mesmo de chegar
à brecha. Perderam-se cinco soldados da mesma forma até que os restantes se recusaram a subir a escada e se agacharam contra a muralha, arriscando ocasionalmente
um tiro contra os defensores lá em cima.
- Raios os partam! - Somerset cerrou os punhos. - Não fiquem aí. Subam a maldita escada, seus idiotas... seus cobardes.
Arthur franziu o cenho. Virou-se e mirou o ajudante de campo com um brilho de fúria nos olhos.
- Agradeço que não acuse os nossos homens de tal sentimento tão básico. Especialmente connosco bem longe do alcance das armas.
- Sim, milorde.
- De futuro talvez queira passar por aquilo que eles estão a aguentar antes de os julgar. Agora, se não se importa, mande soar a retirada.
Somerset fez continência e correu para a trincheira de comunicação que se dirigia ao forte. Arthur observou-o por um instante, até que ele desapareceu de vista.
Depois ergueu o telescópio e analisou a situação dos soldados na base da muralha. Por enquanto estavam relativamente abrigados do fogo inimigo, já que os defensores
tinham de se inclinar sobre o topo da muralha para apontar para quem se encontrava em baixo, expondo-se assim a fogo de retaliação. Depois Arthur avistou um dos
franceses perto da brecha largar qualquer coisa. Momentos depois viu-se o clarão de uma explosão junto à escada e três casacas-vermelhas foram atirados encosta abaixo,
onde se quedaram, imóveis.
- Granadas - resmungou Arthur com desprezo. - Coisas infernais.
- Mesmo assim, não deixam de ser eficazes, señor - retorquiu Alava. - Esperemos que o seu ajudante de campo ordene a retirada antes que se percam demasiados homens.
Arthur anuiu e observou mais duas granadas rebentarem perto da muralha. Pouco depois, as notas agudas do clarim assinalaram a retirada e os homens junto à muralha
recuaram, meio a correr, meio a escorregar pela encosta na sua tentativa de fugir ao fogo renovado dos defensores. Perderam-se mais alguns soldados antes de os homens
chegarem ao fundo da encosta e começarem a correr pelo terreno aberto, em direção ao abrigo da trincheira, perseguidos por novas explosões de metralha lançada pelas
peças montadas no bastião. O último dos sobreviventes do ataque saiu de vista e as armas inimigas silenciaram-se, considerando não valer a pena o desperdício de
pólvora para matar o punhado de feridos que ainda cambaleavam ou rastejavam de volta às linhas aliadas.
Arthur fechou o telescópio e virou as costas à cena. Atravessou a bateria em direção aos cavalos, içou-se para a sela e regressou ao quartel-general.
- Qual a conta do talhante desta vez? - Arthur juntou as mãos e olhou para Somerset.
Este referiu-se ao caderno aberto.
- Agora foram cento e quarenta homens, milorde.
- Cento e quarenta? Com as noventa baixas do primeiro ataque e as duzentas e cinquenta enquanto os homens abriam as trincheiras são quase quinhentos soldados. -
Sugou uma inspiração rápida. - Perdemos mais de metade de um batalhão e não conseguimos nada.
Somerset manteve-se em silêncio. Não lhe competia criticar os planos de Beresford para o cerco.
Não havia grande opção, refletiu Arthur. A tentativa de tomar Badajoz falhara. Não havia munições para as armas de cerco e, sem elas, a fortificação de San Cristobal
continuaria a desafiar quaisquer ataques lançados por Arthur. Por fim, o relatório de uma patrulha de cavalaria revelou que as forças de Marmont e de Soult se encontravam
no máximo a três dias de marcha. Os exércitos combinados eram superiores ao de Arthur. Não havia escolha. Olhou para o ajudante de campo.
- O exército vai levantar acampamento à primeira luz da alvorada. Vamos retirar para norte. Mande redigir as ordens e garanta que o comissário envia homens à frente
para adquirir rações.
- Sim, milorde.
- Mais uma coisa. Quero as peças de cerco devolvidas a Elvas. Se eles se deslocarem rapidamente, podem chegar à povoação antes de os franceses os apanharem.
- Para quê correr esse risco? - Somerset encolheu os ombros. - Podemos lançá-las ao rio, para que os franceses não as capturem.
- Não tenho como garantir que não seriam recuperadas. Além disso, as armas pertencem aos nossos aliados portugueses. Não seria digno da nossa parte deixar que caíssem
nas mãos dos franceses.
- Porque não deixar que os franceses fiquem com elas, milorde? Atrapalham mais do que ajudam. Que o inimigo fique com esse fardo.
- Não. - Arthur abanou a cabeça. - Vamos devolver os canhões aos legítimos donos, nem que seja como sinal de boa vontade. Transmita as ordens necessárias.
Somerset assentiu e fez uma anotação a lápis.
Arthur recostou-se e passou, cansado, a mão pelo cabelo curto.
- Por Deus, da próxima vez serei o meu próprio engenheiro. Não haverá mais decisões apressadas e meias-medidas. Terei um comboio de cerco adequado, e quando sitiarmos
uma fortaleza, vamos desfazê-la e garantir que a tomamos. Assim que os fortes fronteiriços estiverem nas nossas mãos, os franceses serão incapazes de nos afastar
de Espanha. - Sorriu para o ajudante de campo. - Todos os passos são importantes, Somerset, por mais pequenos que sejam. Não interessa quanto tempo demore, vamos
esgotar o inimigo e obrigá-lo a fugir para o outro lado dos Pirenéus.
- Sim, milorde.
Arthur pegou no relatório da patrulha de cavalaria.
- Por agora, somos obrigados a retirar de Badajoz. Assim que os homens tiverem descansado e tivermos reunido uma força decente, voltaremos e enfrentaremos o inimigo.
Durante o resto do verão e parte do outono, Arthur nada pôde fazer para intervir, enquanto os franceses supriam e reforçavam os fortes fronteiriços. A passagem dos
meses foi frustrante para Arthur. Embora tivesse a liberdade de ameaçar o inimigo em qualquer ponto ao longo da fronteira entre Espanha e Portugal, continuava a
ser obrigado a retirar sempre que os franceses reuniam forças superiores para repelir o exército aliado. A juntar à sua frustração, o inimigo parecia ter aprendido
com as lições das batalhas anteriores, recusando-se agora a atacar sempre que Arthur encontrava uma boa posição defensiva e se virava para um confronto.
Embora as séries de marchas e contramarchas e de confrontos sem sangue se tivessem tornado fonte de descontentamento entre os soldados, Arthur preparava o terreno
para a campanha do ano seguinte. Os pedidos de mais reforços, em especial de cavalaria, tinham sido aceites pelo governo. No Porto foi desembarcado um comboio de
cerco de peças pesadas de grande qualidade, que depois foram transportadas penosamente até Almeida, onde se armazenavam os fornecimentos de munições e de rações.
Quando chegasse a altura do novo avanço do exército aliado, estariam bem supridos e prontos a derrubar as defesas de quaisquer fortalezas que lhes surgissem pela
frente.
Capítulo 22
Paris, 2 de dezembro de 1811
Mesmo estando a noite gelada e desagradável, grande parte da população da cidade acorrera para celebrar o aniversário da coroação do imperador. As multidões ladeavam
o Sena, aguardando numa antecipação entusiasmada pelo início do fogo de artifício. Três barcas estavam ancoradas a meio do rio, à frente do palácio das Tulherias.
À luz das lanternas cuidadosamente protegidas, o povo distinguia as figuras esbatidas que tratavam dos últimos preparativos. A exibição marcava o final do dia de
festividades que assinalava o oitavo ano do reinado de Napoleão. Pela alvorada, uma bateria de peças de doze libras ribombara com uma saudação a partir das alturas
de Montmartre. Cada tiro ecoara sobre os telhados de Paris, brilhantes na neblina suave que deixava tudo com uma película de humidade.
Ao início da manhã, os batalhões da Guarda Imperial tinham começado a marchar em direção à cidade, vindos dos aquartelamentos nos subúrbios. O percurso esteve cercado
por multidões que ovacionavam com orgulho enquanto os soldados de elite, nas suas barretinas imponentes de pele de urso, marchavam entre elas em alas ordeiras, ao
ritmo da música patriótica tocada pela banda de cada batalhão. Espalhados entre a infantaria, seguiam esquadrões de cavalaria da Guarda, homens robustos de botas
altas e couraças peitorais brilhantes, montados em cavalos poderosos cuja pelagem fora escovada até ficar com um brilho acetinado.
Uma plataforma de revista fora erigida no grande pátio das Tulherias, para onde fora admitida uma audiência mais seleta que iria assistir às paradas militares a
terem lugar à tarde. Na plataforma estavam sentados Napoleão, a sua imperatriz e elementos superiores da corte, bem como convidados de outras potências europeias.
Um a um, os batalhões da Velha Guarda marcharam de mosquetes ao ombro, com faixas de campanha a adornar as fardas imaculadas e medalhas presas ao peito. Depois dos
guardas surgiu um pequeno grupo de oficiais subalternos, cada homem com um dos estandartes prussianos, austríacos e russos capturados nas campanhas dos anos anteriores.
Napoleão virou a cabeça ao de leve para olhar para o príncipe Metternich, o ministro dos negócios estrangeiros austríaco. Metternich tinha o cabelo habitualmente
encaracolado colado à cabeça devido à chuva fina, mas a expressão ressentida era bem clara, algo que alegrou o coração de Napoleão. Não podia deixar que os austríacos
se esquecessem de que tinham sido humilhados por Napoleão sempre que se tinham atrevido a declarar guerra à França. Atrás de Metternich estava o embaixador russo,
Kurakin, de cabeça inclinada para Talleyrand, com quem trocava alguns comentários em surdina. O russo virou-se naquele momento e cruzou o olhar com o de Napoleão.
Esboçou um sorriso e baixou a cabeça num cumprimento ao imperador francês, antes de voltar a concentrar-se nos estandartes capturados que eram exibidos. Talleyrand
franziu os lábios e olhou em frente, enquanto revirava lentamente a bengala.
Napoleão voltou a dirigir-se para as bandeiras na parada, retribuindo de forma automática as saudações dos oficiais, mas o seu estado de espírito ficara afetado
ao ver os dois homens a conversar. O que estaria aquele demónio do Talleyrand a tramar?, interrogou-se. Era possível que a troca de palavras fosse inócua, mas com
a crescente separação entre a França e a Rússia, Napoleão acabava por desconfiar de todos os russos, além de todos com quem escolhiam associar-se. Ainda há poucos
meses o czar voltara a aumentar as taxas de importação sobre os bens franceses, ao mesmo tempo que continuava a fechar os olhos aos produtos ingleses que desembarcavam
nos portos russos. Agora, o czar protestava quanto à presença de tropas francesas na Polónia e exigia que Napoleão concordasse com a anexação por parte da Rússia
de alguns territórios polacos que com ela faziam fronteira. A par disso, exigia ainda que Napoleão o ajudasse a esmagar o império turco. Os relatórios do embaixador
em S. Petersburgo davam conta de um crescente sentimento antifrancês na corte russa. Cada vez mais se falava de uma guerra com França e de uma nova aliança com a
Inglaterra.
Napoleão sentiu o estômago a comprimir-se ao ser tomado por uma raiva familiar contra o velho inimigo, que o desafiava por trás das muralhas de madeira da marinha
britânica. Fora uma aberração geográfica da natureza que separara Inglaterra do resto do continente com aquele canal estreito, embora impossível de unir com uma
ponte. Além desse malfadado canal, Inglaterra, uma nação de empresários mesquinhos, zombava dele. Não fosse por aquela faixa de água e já tudo teria acabado. Inglaterra
estaria ocupada, as suas frotas desbaratadas e a Europa desfrutaria de paz sob a liderança da França, de Napoleão e dos seus herdeiros. Em vez disso, a guerra prosseguia,
consumindo lentamente a nata dos homens franceses em terras de Espanha.
Quase não tinha boas notícias de Madrid, apenas listas intermináveis de baixas e requisições de mais homens, suprimentos e ouro. Espanha era como uma chaga aberta
no flanco do império, decidiu Napoleão. Pior ainda, os seus marechais pareciam ter-se convencido de que o adversário inglês era uma espécie de génio militar. Pelos
relatórios tornava-se claro que tinham começado a recear lorde Wellington. Mesmo que as forças comandadas pelos marechais superassem bastante as inglesas e fossem
mais rápidas, parecia que sempre que o general inglês era obrigado a lutar, a coragem dos marechais de Napoleão definhava e eles ficavam demasiado nervosos para
desferir o golpe final contra a raposa que tinham conseguido encurralar. Se pelo menos tivesse tempo para ir a Espanha e enfrentar pessoalmente aquele aristocrata
inglês, pensou Napoleão, com amargura. Rapidamente conseguiria levar Wellington a cair numa armadilha, onde o esmagaria. Provar aos marechais como os seus receios
eram infundados era uma ideia bastante atraente. Triunfaria onde os outros tinham fracassado e provaria a toda a Europa que se tratava do melhor general da sua era,
ou mesmo de todas as eras.
Contudo, sabia que não teria grande oportunidade de encontrar tempo para uma campanha na Península Ibérica. Tinha um império a governar e inimigos a enfrentar ali
em Paris, bem como nas restantes grandes capitais europeias. A haver uma guerra entre a França e a Rússia, teria de dedicar toda a sua concentração à preparação
do conflito. Seria um empreendimento a uma escala gigantesca. Enquanto voltava a ponderar as complexidades envolvidas numa invasão da Rússia, Napoleão interrogou-se
brevemente se tal seria possível. Nunca liderara um exército por uma distância tão grande. Haveria um enorme desperdício de homens, cavalos e carroças muito antes
de enfrentar os exércitos do czar, ou então de capturar S. Petersburgo ou Moscovo, onde ditaria os termos da paz a partir de um dos palácios de Alexandre.
Napoleão sabia bem que não dispunha de homens suficientes em França para compor as alas do exército de que necessitaria. Seria obrigado a depender da contribuição
dos aliados. Entretanto, mais de um quarto de milhão dos seus soldados estava retido em Espanha. Era de doidos. Napoleão cerrou o punho e franziu o cenho, após o
que sentiu mais uma vez o estômago a contrair-se e a dor já familiar a trespassar-lhe as entranhas. Excesso de trabalho e demasiada ansiedade - segundo o médico
imperial, era isso que provocava as dores de estômago.
A última das cores capturadas passou à frente da bancada de revista e a parada chegou ao fim. Afastou todos os pensamentos sobre guerra da mente e dirigiu-se à imperatriz.
Segurou-lhe a mão, que apertou com gentileza, sorrindo quando ela se voltou para o olhar, com um arquear inquiridor nas sobrancelhas bem desenhadas.
- Espero que não estejas com frio, minha querida. Há mais de duas horas que estás aqui sentada.
- Estou quente quanto baste. - Exibiu um sorriso doce. - Agrada-me estar ao teu lado.
- A sério? - Napoleão abanou a cabeça. - Receio que estejas apenas a ser gentil para comigo. Imagino que só os soldados, e aqueles que querem ser soldados, gostem
destas paradas. - Inclinou-se mais para ela e acenou com a cabeça na direção de Kurakin e de Talleyrand. - Outros, contudo, julgam, obviamente, que tais ocasiões
são um enfado. - Napoleão largou-lhe subitamente a mão e endireitou-se. - Não é verdade, Talleyrand?
Este virou-se rapidamente, o rosto com a habitual expressão neutra.
- Perdão, sire?
Napoleão levantou-se do assento e apontou para Maria Luísa.
- Estava a explicar à imperatriz que nem todos os homens se sentem confortáveis na presença de soldados. Homens como vós, e como o embaixador Kurakin a seu lado.
- Não me sinto desconfortável, sire. - Talleyrand encolheu os ombros muito ao de leve. - Apenas me parece que os meus gostos e os temas de conversa pouco têm em
comum com os sentimentos de quem pertence à vida militar.
- Deveras? - inquiriu Napoleão num tom gelado, ao que apontou para o pé deformado de Talleyrand. - Não fosse por isso e de certeza que teria servido o seu país de
uma forma mais útil do que aquela que tem suportado.
- Creio que o termo será desfrutar, e não suportar, sire. - Talleyrand curvou a cabeça. - Seja como for, de certeza que tanto os soldados como os estadistas prefeririam
regressar ao palácio a permanecer aqui ao frio.
- Os soldados estão habituados a estas temperaturas - replicou Napoleão com desprezo. - Tal como os russos, não é verdade, Kurakin?
O embaixador anuiu.
- Com efeito, sire. Os invernos são tão agrestes na Rússia que só quem nasce e é criado no país lá consegue sobreviver.
Napoleão fitou-o.
- Julga que sim?
- Tenho a certeza, sire. Qualquer homem seria louco se levasse a cabo uma campanha no pino de um inverno russo.
Susteve o olhar do imperador e ambos os homens ficaram em silêncio por um instante até que, de repente, Napoleão sorriu e virou-se mais uma vez para Talleyrand.
- A simples menção da Rússia está a deixar-me gelado. Entremos.
Com a imperatriz pelo braço, Napoleão liderou os convidados desde a plataforma de revista, ao longo do pátio, até às portas que davam acesso a um dos salões de receção.
Uma comprida mesa de jantar tinha sido posta para os convidados, e de uma ponta à outra cintilavam talheres polidos, cristais e porcelana. Napoleão assumiu o seu
lugar à cabeceira, com a imperatriz ao fundo. Assim que se sentaram, os restantes dirigiram-se aos lugares marcados. Atrás de cada cadeira estava um lacaio, que
delicadamente a puxava e voltava a empurrar para cada convidado que se sentava. Talleyrand, Metternich e Kurakin estavam perto do topo da mesa e quando vários criados
imperiais entraram com terrinas fumegantes, Napoleão ergueu o nariz e cheirou.
- Sopa de cebola! Ora aqui está um belo prato para aquecer a alma de um homem.
- Isso, ou um bom brandy - comentou Talleyrand.
Napoleão abanou o dedo.
- O seu gosto por coisas de qualidade é uma fraqueza, meu amigo.
Talleyrand sorriu e nada mais foi dito até que a sopa foi servida e um burburinho alegre de conversas se foi fazendo ouvir em torno da mesa. Napoleão esperou até
ter a certeza de que as suas palavras não seriam escutadas com facilidade por outros que não os recetores pretendidos, após o que se virou para Kurakin.
- Diga-me, embaixador, será que o czar julga mesmo que eu não sei que ele praticamente abandonou o bloqueio comercial contra Inglaterra?
Kurakin baixou lentamente a colher enquanto ordenava uma resposta.
- Sire, pode ter a certeza de que o czar tem perfeita noção das suas obrigações. No entanto, sua majestade interroga-se como pode o imperador insistir no cumprimento
por parte da Rússia de um acordo que a França quebra conforme as suas necessidades. Não estará a ser aplicada uma dupla medida?
Napoleão sentiu as veias a arder com a irritação provocada pela exposição das tensões entre os dois governantes. Contudo, não seria fácil defender os acordos comerciais
quanto a botas e a tecido para fardas que tinham sido levados a cabo entre a França e a Inglaterra, duas nações em guerra aberta.
- Tratou-se de uma questão de conveniência. A França beneficiou muito mais com isso do que a Inglaterra. E se foi em benefício da França, terá igualmente sido em
benefício dos seus aliados.
- Esse argumento aplica-se igualmente à Rússia, sire. E, com efeito, a todas as outras nações que se contam entre os vossos aliados. Assim sendo, torna-se legítimo
perguntar qual o objetivo de manter o bloqueio. Além do mais, não é segredo que o bloqueio está a ser contornado por todas as nações europeias.
- Engana-se, Kurakin. Tenho dezenas de milhares de agentes alfandegários a fazer cumprir o bloqueio em todos os portos franceses. Noutros locais são os meus soldados
que o implementam. Se pelo menos o meu primo, o czar, cumprisse o bloqueio com a mesma diligência, poderíamos obrigar a Inglaterra a negociar a paz em menos de um
ano. Havendo paz, deixa de haver necessidade de um bloqueio e todos poderemos voltar a desfrutar dos lucros do comércio livre. - Napoleão chegou-se à frente e deu
ênfase às palavras seguintes. - Claro que primeiro temos de vergar a Inglaterra. Nada mais interessa. É tudo o que se encontra entre nós e uma era de prosperidade
para as nossas nações. Diga-lhe isso.
- Assim farei, sire.
- Acho bem que o faça. E lembre-o de que quando nos conhecemos, em Tilsit, fui eu quem ofereceu a mão da amizade. Poderia ter optado por continuar a guerra e esmagar
os exércitos do czar, mas fui misericordioso. Escolhi a paz e ofereci-lhe parte dos despojos da Europa. Por esse motivo, Alexandre tem para comigo uma grande dívida
de gratidão. - Napoleão endureceu o tom de voz. - Em vez disso, insulta-me. Mente-me, enquanto vai conspirando para me roubar os territórios, pouco a pouco, tal
qual um ladrão vulgar.
Talleyrand pigarreou.
- Sire, não me parece que este seja o lugar adequado para abordarmos tais questões. Seria melhor mais tarde, em privado.
Napoleão abanou a cabeça.
- Não. Quero resolver o assunto o mais depressa possível. Já disse de minha justiça, e agora que o embaixador leve a mensagem ao mestre.
- Sire - Talleyrand virou-se na cadeira para encarar o imperador, - seria melhor conferenciar com os seus conselheiros antes de concordar com uma mensagem a ser
enviada ao czar. Isso reduziria o impacto de qualquer... linguagem inflamada, antes que ela possa provocar estragos.
- Para o inferno com as suas amabilidades diplomáticas! - retorquiu Napoleão de forma brusca. - Isto já foi longe de mais. O czar ou é um amigo e aliado, ou não
é. Exijo saber qual o caminho que Alexandre vai escolher.
- De certeza que o czar pretende a paz - prosseguiu Talleyrand calmamente. - Não é verdade, Kurakin?
O embaixador anuiu, mantendo o olhar desconfiado na expressão sombria de Napoleão.
- Sire, permite-me que tente explicar a posição russa quanto a este assunto?
Napoleão respirou fundo para se acalmar e cruzou os braços.
- Faça favor.
- Muito bem. Quando a Rússia olha para a Europa, vê uma linha ininterrupta de nações sob o jugo francês. Vê tropas francesas em povoações e fortalezas ao longo de
grande parte da fronteira. Não somos cegos quanto à aspiração dos polacos de se virem a tornar uma nação de pleno direito, com o apoio francês. A antipatia entre
os polacos e os russos é intemporal e vós iríeis depositar-nos um inimigo amargo à porta, sire.
Kurakin fez uma pausa e afastou de si a sopa por acabar. Um criado contornou-o rapidamente para retirar o prato e o embaixador prosseguiu:
- Depois temos a questão dos danos causados pelo Bloqueio Continental à nossa economia. Todos os dias o czar é confrontado com petições de mercadores que estão a
sofrer com os esforços franceses para estrangular o comércio com a Inglaterra. Mesmo que o czar feche os olhos a quem contorna o bloqueio, o nosso comércio continua
a sofrer, pois os agentes franceses intervêm mais à frente na cadeia. Sire, parece disposto a deixar toda a Europa na miséria para derrotar os ingleses. Embora acredite
que vossa majestade venha a conseguir vergar os britânicos, nós na Rússia olhamos para o futuro. Com a Inglaterra dominada, para onde se virará a França? Há Bonapartes
e bonapartistas nos tronos de toda a Europa. Vossa majestade é um homem ambicioso. Interrogamo-nos se um homem assim alguma vez ficará satisfeito com aquilo que
tem. - Kurakin recostou-se na cadeira, tendo concluído a explicação.
Talleyrand e Metternich olharam do russo para Napoleão, tentando nervosamente adivinhar-lhe a reação.
Napoleão sentiu as faces ficarem exangues e foi acometido por uma fúria gelada, que lhe deixou as mãos a tremer. Como se atrevia o russo a acusá-lo com tanta audácia?
Como era capaz o czar de trair a amizade que Napoleão tão cuidadosamente desenvolvera entre os dois? Tornava-se claro que cada concessão feita aos russos fora assumida
como uma questão de direito. Não se tratava de uma aliança de interesse mútuo. Era o czar que tinha uma ambição desmedida. Queria tudo e não concedia nada. Quando
a França enfrentara a Áustria pela última vez, a campanha chegara ao fim e a paz fora declarada antes de o exército do czar ter marchado em apoio do aliado. Mesmo
então, o czar aproveitara a oportunidade para arrebatar certos territórios austríacos que faziam fronteira com a Rússia. Frutos de uma vitória paga com sangue francês,
concluiu Napoleão com amargura. Lançou um olhar furioso a Kurakin, sentindo-se tentado a explodir e a expor a duplicidade do czar e daqueles que mentiam em nome
dele...
Com grande esforço, Napoleão reprimiu a fúria. Não era a altura certa. As suas tiradas eram uma arma que devia ser usada com cuidado. Regra geral, eram fabricadas
para que tivessem um determinado efeito. A fúria incontida poderia ser arriscada para ele tal como seria assustadora para os outros, caso levasse os conselheiros
a reprimirem-se e provocasse a vingança dos inimigos.
Napoleão olhou para o exterior. O lusco-fusco caía sobre a cidade e em breve estaria suficientemente escuro para o fogo de artifício. O início do espetáculo estava
marcado para depois do jantar, mas a supressão da fúria de Napoleão deixara-o irritadiço e impaciente. De súbito, fez sinal ao camareiro encarregue das diversões
e o homem aproximou-se rapidamente.
- O jantar terminou - declarou Napoleão.
- Acabou? - O camareiro ergueu as sobrancelhas. - Mas e os outros pratos, sire?
- Não serão necessários. Transmita a informação ao responsável pelo fogo de artifício. Quero que o espetáculo comece daqui a trinta minutos.
- Sim, sire, mas...
- Mas? - Napoleão franziu o cenho e o camareiro baixou nervosamente o olhar.
- Sim, sire. Assim será.
O homem fez uma vénia e recuou o número de passos oficial antes de se virar e transmitir as ordens aos criados que serviam à mesa. Assim que os convidados do imperador
terminaram a sopa, os pratos foram levantados e quando o último criado saiu do salão, os lacaios chegaram-se às cadeiras. O camareiro bateu com o bastão no soalho
de mosaicos e as conversas desvaneceram-se rapidamente.
- Segundo as ordens de sua majestade, o banquete terminou e sua majestade tem o prazer de solicitar aos convidados que se dirijam ao terraço sobranceiro ao rio a
fim de se prepararem para o fogo de artifício.
Os comensais entreolharam-se, surpreendidos por o banquete que celebrava a coroação do imperador nada mais ser do que um prato de sopa. À cabeceira da mesa, Napoleão
levantou-se de repente, arrebatando o guardanapo do colo. O lacaio atrás dele mal teve tempo de segurar a cadeira, para evitar que esta caísse para trás, ou que
arrastasse de um modo menos digno. A imperatriz também não perdeu tempo a levantar-se, após o que os restantes convidados se puseram de pé. Napoleão dirigiu-se ao
lacaio.
- Traga-me o casaco e o chapéu.
- Sim, sire.
Assim que ficou bem protegido contra o frio da noite, Napoleão abriu caminho pelo palácio até ao vasto terraço sobranceiro ao Sena. Guardas estavam dispostos a intervalos
regulares a cuidar das braseiras que davam alguma luz e calor à pequena multidão que saía para a varanda. Quando o povo espalhado pela margem viu as figuras a sair
das Tulherias, todos soltaram uma ovação que se prolongou pelo rio, longe dos que conseguiam ver o grupo imperial.
O imperador e a imperatriz sentaram-se e assim que os outros convidados se colocaram nas suas posições, Napoleão tirou o relógio de bolso. Inclinou o mostrador para
o braseiro mais próximo e viu as horas, após o que devolveu o relógio ao bolso. Faltavam ainda dez minutos para que a meia hora dada terminasse.
Napoleão tossiu com o frio do ar noturno.
- Eles que comecem.
O camareiro entreabriu a boca, depois anuiu rapidamente e afastou-se. Logo abaixo da varanda estava uma banda e o súbito rufar de tambores silenciou os convidados
e a multidão. O ritmo ecoou nos edifícios circundantes enquanto dezenas de milhares de pessoas aguardavam, entusiasmadas, pelo início do espetáculo. Então os tambores
pararam e, momentos depois, a banda começou a tocar a Marselhesa. O povo ao longo do rio juntou-se e cantou a viva voz, embrenhados na excitação do momento. Quando
a última nota foi tocada, viu-se um breve tremeluzir numa das barcas, seguido por um clarão de faúlhas e um risco brilhante de luz quando um foguete foi disparado,
com um silvo ruidoso, em direção ao céu nublado. Explodiu numa nuvem de estrelas que iluminaram brevemente a cena lá em baixo e a multidão soltou um suspiro coletivo
de prazer. Outros foguetes subiram até ao céu e rebentaram nas alturas. Nas duas barcas aos lados, combinações cuidadosamente dispostas de fogo preso cuspiram jorros
de faúlhas vermelhas e brancas para o ar, a acompanhar os foguetes, enquanto a banda continuava a tocar melodias patrióticas, numa competição com os estampidos e
os rebentamentos do fogo.
Napoleão observou o espetáculo sem grande prazer. Estava ainda concentrado nas acusações que o embaixador russo lhe dirigira. De vez em quando olhava para a esquerda
e via o perfil de Kurakin, iluminado pelo clarão lúgubre da exibição. O russo passara das marcas. Ao fazê-lo, era óbvio que repetia o que pensava o senhor dele,
em S. Petersburgo. Se assim fosse, Alexandre procurava a guerra, apesar de quaisquer protestos em contrário. A essa luz, todas as ofensas e afrontas sofridas por
Napoleão às mãos dos russos, cada quebra dos termos da aliança, cada expansão do poder russo sobre novos territórios, tudo isso fora calculado para levar a França
a um conflito aberto.
Sentiu uma pontada de tristeza com a recordação da amizade que partilhara com o czar, em Tilsit. Durante algum tempo sentira uma certa ternura pelo governante russo,
tal como um irmão mais velho poderia sentir pelo mais novo, necessitado de orientação e de um bom exemplo. Agora fora rejeitado e, pior ainda, o czar parecia determinado
a tornar-se a voz dominante na Europa, sem admitir qualquer rival.
Na água, a bordo da barca central, um N gigante ganhou vida e os convidados do imperador aplaudiram com satisfação. No outro lado do rio, a letra refletiu-se na
água do Sena e a multidão ergueu a voz numa ovação vasta e ensurdecedora.
Napoleão virou-se na cadeira e dirigiu-se ao embaixador russo.
- Kurakin!
O homem olhou-o e Napoleão ergueu a voz, para que fosse ouvida por tantos convidados quanto possível. Apontou o dedo ao embaixador.
- Gostou do espetáculo?
- Sim, sire.
- Ótimo. Quero que diga ao seu senhor, ao czar, que é óbvio que ele quer guerra com a França. É a única explicação por trás de tudo o que ele fez para minar a nossa
aliança. Revelou-se um amigo traiçoeiro. Diga-lhe que se ele quer guerra com a França, nesse caso terá a guerra dele. Juro-lhe por tudo quanto é mais sagrado que
a travarei a uma escala nunca vista em toda a Europa.
Mapa
Capítulo 23
Paris, janeiro de 1812
Talleyrand ergueu o olhar do documento e afagou ao de leve o queixo com a ponta dos dedos enquanto digeria a informação.
- Então? - A voz de Napoleão interrompeu-lhe a linha de pensamento. O imperador estava sentado do outro lado da grande mesa na sala de planeamento do palácio das
Tulherias. Na lareira ardia um lume que lançava um brilho agradável pela sala, mas não suficientemente quente para Talleyrand, que se encontrava no lado oposto da
mesa. Atrás dele, as janelas altas ofereciam uma vista do pátio. A neve caíra e cobrira o pavimento com uma camada uniforme, agora interrompida pelos sulcos de algumas
carruagens e pelas pegadas das sentinelas. Um vento gelado soprava pela cidade, fazendo por vezes estremecer as vidraças e gemendo pela chaminé, o que fazia com
que as chamas bruxuleassem.
- O que lhe parece? - insistiu Napoleão.
- Esta lista. - Talleyrand bateu ao de leve no documento. - Esta lista de queixas, sire. O que espera conseguir ao apresentá-la ao czar?
- Vai servir para o recordar de todos os acordos que ele quebrou. Vai garantir a base de novos objetivos a estabelecer quando nos encontrarmos para renovarmos a
aliança.
Talleyrand levantou os olhos.
- Quer dizer que já foi marcado um encontro.
- Não. Ainda não. Espero que quando o czar ler esta lista de queixas e se aperceber de que a probabilidade de uma guerra é muito elevada, ele recupere o bom senso
e concorde com as negociações.
- Com estes termos? - Talleyrand acenou com a cabeça para o documento. - Exigis que a Rússia faça cumprir rigorosamente o Bloqueio Continental. O nosso embaixador
em S. Petersburgo diz que há muitos ressentimentos sobre essa questão. Além disso, existem muitos elementos da corte do czar, e também oficiais do exército, que
exigem abertamente uma guerra com a França. Imagino que Alexandre passe os dias a recear que uma capelinha de descontentes esteja já a tramar a sua morte e a preparar
o caminho para um monarca mais beligerante. Seja como for, a guerra é uma possibilidade bastante clara.
- É mais do que possível, Talleyrand. É inevitável, a menos que o czar ceda às minhas exigências.
- Compreendo. Nesse caso, este documento tem como objetivo provocá-lo para que declare guerra.
- Imagino que escolha a guerra como o menor de dois males.
Talleyrand fitou-o.
- Segundo a minha experiência, a guerra é sempre o pior dos males.
- Diz isso porque não é soldado. A guerra não é apenas morte.
- É verdade, já ouvi dizer que não. Além da morte, também há a devastação e a espoliação que seguem na esteira de um exército. Fome, pilhagem, violação, tortura
e massacre. Isso já para não falar no enorme custo em ouro para travar uma guerra à escala que prevê.
Napoleão retribuiu o olhar.
- Fala como o civil consumado que é. Se as coisas ficassem nas mãos dos da sua laia, todas as nações estariam a rastejar aos pés dos vizinhos.
- Se os assuntos internacionais fossem deixados aos cuidados dos da minha laia, imagino que pudesse haver um fim para a maldição da guerra que tem vindo a atormentar
a humanidade ao longo da História, sire.
- Nesse caso é um idiota, Talleyrand. A História da humanidade é a História da guerra. Os homens sempre lutaram entre si. Sempre o irão fazer. O que significa que
a principal qualidade de todos os homens é a sua competência para a guerra. Tudo o resto está dependente dessa necessidade. Fala da diplomacia como se de uma arte
se tratasse. Não é assim. - Napoleão chegou-se à frente ao prosseguir. - A diplomacia só pode ser bem-sucedida se for apoiada pela força. Julga que as suas belas
palavras seriam capazes de convencer as outras nações a fazer o que queremos caso não receassem as consequências militares de nos desafiarem? A vossa laia serve
apenas para transmitir a ilusão de que os assuntos das nações são regidos pela discussão. Tal ilusão serve apenas para lisonjear os fracos e para minar os fortes.
Qualquer um que não seja capaz de ver através de tal charada não entende a realidade fundamental. É o poder que define o progresso. Nada mais.
- Nesse caso, para que lhe servem os homens como eu, sire? Para quê perder tempo com diplomacia, se nutre tão grande desprezo por ela?
Napoleão esboçou um sorriso.
- Mesmo que não passemos de bárbaros vestidos com belas roupas, o conceito de que podemos ser mais do que isso é reconfortante para o homem comum. Se alimentar tal
conceito serve os meus propósitos, fá-lo-ei sem hesitar.
Talleyrand pensou nas palavras do imperador por alguns momentos e abanou a cabeça.
- Nesse ponto divergimos, sire. Sabe, acredito que não somos bárbaros. Não há dúvida de que somos capazes de levar a cabo ações bárbaras. Logo, é dever dos melhores
entre os homens convencer os restantes a abraçar os valores da civilização, pelo bem comum a longo prazo. Para mim, é esse o dever sagrado dos bons e dos grandes.
- Não duvido que imagine que não pertenço a essa classe.
- Pelo contrário, sire. Sempre soube que apesar da desvantagem de uma origem humilde, era possuidor de uma das mentes mais brilhantes da nossa era. As minhas palavras
não pretendem ser uma injúria ao seu caráter. Admiro-o por tudo o que conseguiu. Quando o conheci, antes da campanha no Egito, considerei uma bênção que a França
dispusesse de homens tão prometedores a servir os interesses da nação e que os ideais da Revolução continuassem vivos. Depois, quando se tornou primeiro cônsul,
arrastou o governo de França para a era moderna, além de a proteger das potências estrangeiras no campo de batalha. As suas conquistas foram prodigiosas. Quando
a Paz de Amiens teve início, tive a certeza de que nos iria levar a uma nova idade de ouro. Mas depois a guerra regressou e desde então que ela atormenta a França.
Talleyrand fez uma pausa e as feições assumiram um ar de tristeza. Uma rara expressão de sentimentos, notou Napoleão, quando o outro prosseguiu.
- Receio que tenha perdido a sensibilidade de um governante justo e que se tenha deixado seduzir pela glória e pelo poder do comando militar. Neste momento parece
que a França está a ser governada segundo um único princípio: o da capacidade de travar guerras. Isso, sire, é uma perversão do poder.
Os dois homens entreolharam-se. Napoleão deixou-se ficar imóvel enquanto apreendia tal interpretação do seu caráter e motivos. Seria fácil expulsar Talleyrand da
sua presença, mas, no entanto, Napoleão não disse nada. Havia muito a desprezar naquele aristocrata, mas ele sempre se revelara útil e eficaz para refinar as ideias
de Napoleão. Contudo, havia mais qualquer coisa. Apesar de todas as traições passadas, o imperador ainda sentia uma certa afeição por Talleyrand. Ambos eram filhos
da Revolução. Talleyrand fora tão responsável como qualquer outro homem pela ascensão de Napoleão ao poder e ele, por sua vez, beneficiara da generosidade de Napoleão,
primeiro como cônsul e depois como imperador.
Talleyrand quebrou o silêncio tenso.
- Sire, recorda-se de Tilsit?
- É claro. Tenho pensado muito nisso, ultimamente.
- Nesse caso deverá lembrar-se da esperança que tínhamos no futuro. A guerra com o czar chegara ao fim. Mais ainda, quando se conheceram, de homem para homem, houve
uma consideração mútua, não é verdade? Lembro-me de que ele o admirou como sendo um homem de destino. Da sua parte houve uma certa afeição.
- E então? - atalhou Napoleão lapidarmente. - Onde quer chegar?
- Tem de conseguir um entendimento com o czar. É preciso fazer tudo para retomar essa consideração mútua, esse afeto. Tem de haver paz entre vós. As grandes nações
têm de encontrar maneira de conviver umas com as outras, caso contrário vão desfazer-se.
- Fala de compromissos - retorquiu Napoleão com desdém. - O compromisso não passa de uma morte por mil golpes. Sangra um grande homem da sua determinação, do sentido
de orientação, do sentido de objetivo, até nada mais ser do que um maquinador mesquinho agarrado ao poder pela ponta dos dedos. Quando isso acontece, deixa de ser
grande, passando a ser uma figura merecedora de ridículo, e por fim de pena. Isso eu entendo, Talleyrand, tal como o entende Alexandre. E apenas um de nós poderá
dominar o resto da Europa.
Talleyrand recostou-se na cadeira e a expressão regressou à habitual inexpressividade.
- Assim sendo, haverá guerra entre o imperador e o czar. Está decidido a levá-la avante. Agora entendo. Nesse caso, para que serve esta lista de queixas? Mesmo que
Alexandre concordasse em responder-lhes, não mudaria nada. Continuaria determinado a entrar em guerra.
- É claro. Mas assim, ele é obrigado a aceitar a culpa da guerra.
- Ele é o czar. Que lhe importa o fardo moral de tal responsabilidade?
- Nada. A lista de queixas não se destina apenas a ele. Pretendo que seja publicada em todos os jornais da Europa. Não quero que restem dúvidas de que a guerra que
se avizinha está a ser instigada pelo czar. Quero que toda a Europa veja Alexandre como uma ameaça constante à sua existência. E quando isso acontecer, todos os
reis e príncipes europeus vão unir-se para me apoiarem, e formaremos um exército tão vasto que aniquilaremos a Rússia e eliminaremos a ameaça que a nação representa.
- Entendo. - Talleyrand aquiesceu. - Entendo perfeitamente. - A cadeira pressionou ao de leve o soalho polido e ele levantou-se. - Tenho de o deixar, sire. Não tenho
mais nada a dizer. É escusado voltarmos a falar sobre política, pois agora vejo que vai arruinar a França e que nunca dará ouvidos a qualquer opinião contrária à
sua vontade. - Fez uma breve vénia com a cabeça. - Despeço-me.
- Não vai sair - atirou Napoleão friamente. - Ainda não o dispensei.
- Dispensou a razão, sire. Assim sendo, não vejo necessidade de mais diálogo entre nós.
- Só vai sair quando eu disser!
Talleyrand olhou para trás e Napoleão não foi capaz de distinguir quaisquer vestígios de receio, nem nos olhos, nem na voz, quando o aristocrata retorquiu:
- Como quiser, sire.
Deixou-se ficar de pé e Napoleão baixou as mãos, que ficaram ocultas pela borda da mesa, onde Talleyrand não poderia ver os punhos a cerrar e a abrir, como se já
estivessem à volta do pescoço dele.
- Maldito seja - resmungou Napoleão. - Saia. Saia daqui. Desapareça-me da frente!
- Com certeza, sire. - Talleyrand curvou a cabeça, recuou e depois virou-se para sair do gabinete, caminhando da forma estudada que desenvolvera para ajudar a ocultar
o pé deformado. O lacaio à porta do estúdio privado do imperador tinha o ouvido treinado e abriu a porta ao som dos passos que se aproximavam. Talleyrand saiu e
desapareceu sem nunca olhar para trás.
- Chamem o meu secretário principal! - bradou Napoleão.
Enquanto aguardava, Napoleão virou-se para o lume e fitou as chamas. Sabia que perdera de vez os conselhos de Talleyrand. Entre eles já nada mais havia além de uma
inimizade declarada. De futuro, o indivíduo teria de ser vigiado com atenção, e a haver provas de traição, seria preciso lidar com o assunto.
O som de passos chamou a atenção de Napoleão, que se afastou da lareira e indicou o documento em cima da mesa.
- Leve isto. Quero que seja copiado e enviado a todos os jornais de França. Outras cópias deverão ser enviadas para todas as cortes europeias. Para todos os jornais.
Todos os quartéis-generais de divisão do exército. Entendido?
- Sim, meu imperador. - O secretário engoliu em seco, nervosamente. - Vou ter de convocar todos os homens que tenha disponíveis ao meu serviço, sire.
- Então trate disso, imediatamente. Agora pegue na folha e vá.
Uma vez sozinho, Napoleão levantou-se e dirigiu-se à janela. Cruzou as mãos atrás das costas enquanto refletia sobre os planos da guerra que se avizinhava com a
Rússia. Lá fora, a neve voltara a cair, grandes flocos rodopiantes que em breve lhe taparam a vista de Paris e depois dos soldados de guarda no pátio.
Capítulo 24
Ao longo do inverno, vastas colunas de carroças transportaram suprimentos para depósitos avançados na Europa de Leste. Com os primeiros botões primaveris, batalhão
após batalhão marchou pela Europa para se juntar ao exército que se reunia nos territórios do grão-ducado de Varsóvia e da Pomerânia, um território sueco que Napoleão
ocupara em antecipação de uma eventual guerra com a Rússia. Além das longas colunas de infantaria, havia brigadas de cavalaria e equipas de artilharia que puxavam
os seus fardos pesados por estradas primitivas, carreiros pejados de lama criada pelo degelo e pelas chuvas da estação.
Napoleão não esperara pela resposta do czar à sua lista de queixas para dar ordem de mobilização das forças. Apesar dos protestos dos marechais em Espanha, algumas
das melhores divisões foram retiradas da Península Ibérica. Os soldados ficaram satisfeitos por sair de Espanha. Qualquer outro posto seria preferível àquela terra
de calor, fome e sede, onde cada pedra podia esconder um camponês de mosquete em riste, pronto para rebentar com os miolos de qualquer retardatário ou forrageador
indefeso que se encontrasse mesmo que pouco afastado dos camaradas. Embora o destino fosse secreto, quando os homens atravessaram a Prússia, tornou-se óbvio para
onde a campanha seguinte os levaria, e encararam o confronto que se avizinhava com uma ansiedade excitada.
Embora fosse grande o número de tropas francesas que se concentravam em torno de Varsóvia, em breve descobriram que não seriam a única nação representada no vasto
exército que se aglomerava para esmagar os russos. O imperador forçara os aliados austríacos a fornecer quarenta mil homens. Outros vinte mil chegaram da Prússia,
algo visto com grande desconfiança pelos soldados franceses. Havia igualmente contingentes dos principados alemães, bem como tropas suíças, holandesas, belgas e
polacas, além de homens enviados dos domínios napoleónicos em Itália.
Só em abril a resposta de Moscovo chegou às Tulherias. O embaixador Kurakin apresentou-se no palácio e pediu para entregar pessoalmente a mensagem ao imperador francês.
Napoleão encontrava-se reunido com os principais estrategas militares na sala onde tivera lugar o derradeiro confronto com Talleyrand. Kurakin foi deixado à espera
à porta, enquanto um lacaio levava a carta a Napoleão. O imperador quebrou o selo, que tinha a impressão de uma águia, e leu rapidamente o conteúdo da carta do czar,
antes de bater na mesa para silenciar os oficiais.
- Cavalheiros, a vossa atenção. - Ergueu a carta e deu início ao resumo do conteúdo. - O czar diz que analisou e rejeitou as minhas queixas. Diz-me que embora deseje
paz entre a França e a Rússia, essa paz será condicionada por determinadas exigências. Um, que a França terá de retirar todas as suas forças da Prússia. Dois, que
a França terá de compensar o czar no que diz respeito aos territórios que foram perdidos aquando da criação da Confederação do Reno. Três, que as nossas forças terão
de deixar os territórios polacos para que se crie uma zona não-alinhada entre o território francês e o do czar. Se satisfizer estes desejos, nesse caso o czar talvez...
talvez... se digne a rever as elevadas tarifas impostas aos produtos franceses importados. Se não cumprir as exigências, ele lamenta informar que será obrigado a
forçar o cumprimento das mesmas. - Baixou a carta e olhou para Kurakin. - Imagino que esta missiva deva ser vista como um ultimato.
- Apenas recebi ordens para lha entregar, sire.
- Não obstante, tinha noção do conteúdo, e sem dúvida terá sido informado das intenções do seu senhor numa mensagem separada.
Kurakin não respondeu, limitando-se a retribuir o olhar de Napoleão com uma expressão neutra.
- O seu silêncio trai-o, Kurakin. O czar sabe bem que estas exigências são inaceitáveis. Com efeito, são uma afronta às aspirações dos polacos, além de serem um
insulto à minha pessoa. Será que julga que o imperador de França vai obedecer prontamente aos caprichos dele? Ele sabe que não posso aceitar estes disparates e manter
uma réstia de honra e integridade. Não irei abandonar os meus aliados polacos, e nunca procederei à retirada das minhas tropas da Prússia. Será que julga que eu
acredito que Frederico Guilherme vai continuar a pagar a indemnização à França sem tropas francesas presentes que o recordem das obrigações? Então? Vamos, Kurakin,
responda.
O russo tossicou.
- Sire, não passo de um embaixador. Só falo pelo czar quando ele tal me ordena. Neste caso, foi-me simplesmente indicado que vos entregasse a carta.
- Mesmo assim, tem noção do peso do seu conteúdo?
- Creio que a missiva fala por ela própria.
- Palavras astutas, Kurakin. Quero que esta carta seja impressa e distribuída por todas as cortes europeias, para que possam ver o quanto o czar cobiça a Europa.
- Napoleão fez uma pausa. - O seu senhor pretende saber a minha resposta?
Por um instante Kurakin pareceu surpreendido, até que recuperou e replicou:
- Por certo vossa majestade imperial precisa de tempo para pensar na carta e formular a vossa resposta.
- Não. Já sei qual é a minha resposta - retorquiu Napoleão, com um tom ameaçador. - Pode dizer ao czar que ele vai arrepender-se dos insultos quando nos encontrarmos
na Rússia. Agora deixe-nos.
Kurakin fez uma vénia e saiu do gabinete. Quando a porta se fechou, Napoleão dirigiu-se aos estrategas e pigarreou.
- Sabemos exatamente com o que podemos contar, cavalheiros. O czar optou pela guerra. Agora temos de determinar a melhor forma de a levar até ele. - Os oficiais
riram-se. - Regressemos ao trabalho, cavalheiros. Temos muito que fazer. Berthier!
- Sim, sire?
- Tem a lista dos comandantes de formação? Mande-os chamar. Quero falar com eles aqui antes de se juntarem às forças para a campanha. Tendo em conta a escala deste
empreendimento, será melhor confirmar que todos entendem o papel a ser desempenhado por cada um.
Nessa noite, Napoleão regressou aos seus aposentos privados com a mente a fervilhar com os inúmeros pormenores necessários ao planeamento de um empreendimento militar
tão vasto. Juntamente com Berthier, calculara as exigências de um exército com mais de meio milhão de soldados: o número considerado necessário para garantir um
resultado decisivo. Além dos homens haveria mais de oitenta mil montadas para a cavalaria, quase mil e quinhentos canhões e oito mil carruagens para transportar
munições, pólvora e sacas de biscoitos e arroz, tudo isso puxado por duzentos mil bois e mulas. As manadas de gado que seguiriam na esteira do exército forneceriam
carne fresca. Quando fosse consumida, o exército passaria aos bois, à medida que os fornecimentos das carroças fossem ficando exauridos. A necessidade de reunir
todos os soldados disponíveis para a campanha obrigaria a uma nova leva de recrutamentos para defender as fronteiras francesas e para guarnecer as áreas de reserva
do exército invasor.
Napoleão dispensara o camareiro e vestia a túnica de dormir quando ouviu baterem ao de leve na porta que unia os seus aposentos aos da imperatriz.
- Entre - indicou.
A maçaneta rodou e a porta abriu-se, revelando Maria Luísa de camisa de dormir. O longo cabelo castanho-claro pendia-lhe sobre os ombros e ela sorriu-lhe.
- Esperava ver-te antes. Disseste que podíamos passar o serão juntos.
- Eu sei. - Napoleão cruzou o quarto e tomou-lhe as mãos. - Lamento. Há tanto que fazer. O tempo é a única coisa que nunca serei capaz de conquistar. - Chegou-se
à frente para lhe beijar a face e depois voltou a beijá-la, nos lábios. Não era tão bela como algumas das mulheres que levara para a cama, mas era jovem e depois
da ansiedade da primeira experiência desenvolvera um certo gosto pelos prazeres da carne.
Ela respondeu-lhe ao beijo com entusiasmo, cruzando os braços atrás das costas dele e puxando-o para si. Ali ficaram, junto à porta, por um instante, até que Napoleão
chegou a cabeça atrás e acenou para a cama dele.
- Ali. Estaremos mais confortáveis.
Ela ofereceu-lhe um sorriso e deixou-se guiar até à cama larga. Tinham acabado de ser retiradas as botijas de aquecimento e por baixo das cobertas pesadas sentia-se
um calor reconfortante. Napoleão deitou-se de costas, a cabeça apoiada num travesseiro, com o braço em torno do ombro de Maria Luísa, que repousava a cabeça no peito
de Napoleão.
- Imagino que estejas a planear outra guerra - disse ela baixinho.
- Sim.
- Quando deixas Paris?
- Em maio. A campanha terá início em junho.
Fez-se um breve silêncio, ao que ela voltou a falar:
- Quanto tempo estarás ausente, meu querido?
- Alguns meses. Se tudo correr como o planeado, o czar será derrotado e teremos paz antes da chegada do inverno. Depois, o exército regressa aos quartéis de inverno
na Polónia e eu regresso para ti.
- Acho bem que o faças - respondeu ela, enrolando o mindinho nos caracóis da pequena extensão de pelos no peito de Napoleão. - Estava a pensar. Posso acompanhar-te
na campanha?
- Não.
- Porquê? Sei que muitos dos teus oficiais são acompanhados pelas esposas.
- Eles não estão no comando do exército. Sou eu que estou. E não posso deixar que nada me distraia até que a vitória seja minha. - Napoleão baixou a mão ao longo
do ombro dela, por baixo da camisa de dormir, até à macieza quente do seio. - E tu, minha querida, és uma grande distração.
Ainda ela estava a rir-se baixinho do comentário e já Napoleão pensava que talvez pudesse organizar tudo para que Maria Walewska acompanhasse o exército, pelo menos
durante a primeira parte da viagem. Já passara algum tempo desde que desfrutara dos encantos dela e sentiu o desejo a inflamar-se. A imperatriz sentiu a excitação
dele e levantou a cabeça para lhe beijar a face.
- Quer dizer que o trabalho não te deixou exausto?
Napoleão olhou-a e sorriu.
- Parece que não.
- Então vamos criar mais um herdeiro para o imperador - ofereceu ela, com malícia.
Napoleão rolou para cima dela e começou a beijar-lhe o pescoço.
- Sabes, para jovem de ascendência fina, tens umas tendências muito terrenas. - Abriu-lhe a camisa de dormir e continuou a percorrer-lhe o ombro com os lábios, até
ao seio, onde mordiscou o mamilo.
- Sim! - arquejou ela. - Outra vez.
Napoleão fez-lhe a vontade e os cantos da boca ergueram-se num sorriso ao pensar no regresso aos braços da amante polaca. As fantasias com ela serviriam para apimentar
um pouco a experiência presente, decidiu, enquanto se soerguia e entrava em Maria Luísa.
Duas semanas depois, a sala de planeamento estava repleta de marechais e generais, vestidos com as suas sobrecasacas azuis, adornadas com as suas dragonas e rendas
douradas, as fitas, as estrelas e as medalhas com que tinham sido condecorados. Alguns dos oficiais já se encontravam em Paris, mas muitos tinham sido convocados
para a reunião, vindos dos seus comandos. Napoleão usava a farda preferida, de coronel dos caçadores da Guarda, sem quaisquer condecorações. Tinham-se juntado várias
mesas para acomodar o grande número de presentes na sala, e sobre elas estava disposto um mapa que representava o vasto território entre Varsóvia e Moscovo.
Napoleão observou cuidadosamente os oficiais. Eram os melhores elementos do exército, amadurecidos por muitos anos de campanhas duras. Tinham dado provas de coragem
e da capacidade de inspirar os homens que lhes serviam. Não tinha dúvidas da lealdade pessoal para com ele: afinal de contas, na maioria dos casos deviam a patente,
o título e a fortuna diretamente ao imperador. Só havias duas questões que o preocupavam: a rivalidade entre alguns dos comandantes e o facto mais premente de terem
de agir de forma independente devido à escala da campanha que se avizinhava. No passado liderara pessoalmente exércitos mais pequenos e em territórios mais reduzidos.
Quando o último oficial chegou, Napoleão fez sinal aos guardas à porta, que a fecharam e ficaram de sentinela para garantir que não haveria interrupções, nem escutas
indevidas.
Napoleão levantou-se e os oficiais ficaram em silêncio. Esperou mais um momento para dar uma maior sensação de gravidade à ocasião e depois começou:
- Desde há alguns meses que se terão apercebido da concentração das nossas forças no Leste da Europa. É sabido que existem tensões entre os impérios francês e russo,
e tanto eu como o czar temos vindo a agitar os nossos sabres. Pois bem, chegou a altura de desembainhar a espada e de trespassar o coração do nosso inimigo. Apesar
de todos os esforços por mim envidados para evitar a guerra, o czar mostrou-se determinado a impô-la. Decerto leram a lista das exigências que me foram apresentadas
e estou certo de que partilham do meu ultraje por Alexandre julgar poder humilhar-me, a vós e a toda a França. É por isso, com relutância, que me vejo obrigado a
responder às exigências com a força, mas nada mais há a ganhar com diplomacia, tendo chegado a altura de mostrar qual a potência que domina a Europa. - Napoleão
fez uma pausa para que os oficiais superiores apreendessem as palavras de abertura, após o que continuou: - Todos vós já serviram às minhas ordens, pelo que sabem
que defendo a tomada de iniciativa. Assim sendo, somos obrigados a invadir a Rússia. Como sempre, o nosso objetivo é encontrar, imobilizar e destruir os exércitos
do inimigo, obrigando assim Alexandre a negociar a paz. Depois fá-lo-emos engolir as exigências. - Napoleão acrescentou com entusiasmo: - Quando a invasão tiver
início, poderemos empregar mais de seiscentos mil homens, metade dos quais franceses.
Os oficiais entreolharam-se, espantados. Tinham conhecimento da reunião das forças, mas só agora sabiam o número de soldados envolvidos. Três vezes mais do que qualquer
exército alguma vez comandado por Napoleão.
O marechal Davout levantou a mão.
Napoleão acenou-lhe com a cabeça.
- Fale, Davout.
- Dispomos de informações concretas sobre a dimensão dos exércitos do czar, sire?
- Os nossos agentes dizem-nos que a Rússia terá cerca de quatrocentos mil homens armados. Contudo, muitos encontram-se destacados em guarnições espalhadas pelos
territórios russos. Apenas duzentos mil estarão entre nós e Moscovo. Neste momento estão divididos em dois exércitos. O exército principal, cento e cinquenta mil
homens, sob o comando do general Barclay de Tolly, encontra-se presentemente disperso entre Riga e o rio Neman. O segundo exército, às ordens do general Bagration,
está a sul dos pântanos de Pripet. - Napoleão pegou na vara comprida que estava em cima da mesa e indicou a vastidão de lodaçais, pequenos lagos e florestas pantanosas
que se estendiam pelo centro da expansão ocidental da Rússia. - O nosso principal objetivo é o exército setentrional. Teremos de os obrigar a lutar antes que Bagration
possa levar os seus homens ao encontro deles. Assim que o Exército do Norte for esmagado, trataremos de Bagration. Quando isso for conseguido, o czar não terá outra
alternativa se não admitir a derrota.
O príncipe Jerónimo tomou a palavra.
- Se temos seiscentos mil homens contra os duzentos mil deles, por certo poderemos enfrentar o exército unido e mesmo assim vencer com facilidade. Porque não encorajá-los
a reunir-se? Certamente iria reduzir a campanha e facilitar-nos a vida, sire.
Napoleão olhou para o irmão mais novo e obrigou-se a responder com toda a paciência:
- Volte a olhar para o mapa. Entre Varsóvia e Moscovo distam mil e cem quilómetros. Preciso de um exército tão vasto porque teremos de deixar dezenas de milhares
de homens pelo caminho para proteger as nossas vias de comunicação até Varsóvia. Também podemos contar com a perda de mais soldados pelo caminho, devido a ferimentos
e a doenças. Quando obrigarmos os russos a lutar, é bem provável que apenas tenhamos uma ligeira superioridade numérica. É por isso que temos de fazer o possível
por os derrotar à vez. Ficou bem claro, Jerónimo?
- Perfeitamente, sire. - Jerónimo sorriu. - Embora tenha a certeza de que seremos capazes de derrotar esses camponeses russos, mesmo que eles estejam em superioridade
numérica.
- Umpf! - O marechal Ney, sentado à frente de Jerónimo, fungou. - Pois diga-nos porque assim é.
- Com certeza. Ouvi dizer que os soldados russos não passam de brutos idiotas, recrutados diretamente nas quintas. Os oficiais são ébrios e imbecis. Como poderá
tal ralé enfrentar o poderio de França?
- Não esteve em Eylau, pois não, meu rapaz?
- Como bem sabe.
- Nesse caso, nunca enfrentou os soldados russos. Eu enfrentei, tal como o fizeram muitos dos presentes nesta sala, que também estiveram em Eylau. Sim, alguns deles
estavam embriagados, mas ébrios ou não, nada receavam, combateram como ursos e morreram como homens que teria orgulho em comandar. - Ney recostou-se e fitou Jerónimo
com um sorriso duro. - Por isso, antes de se mostrar tão senhor do seu nariz, aconselho-o a procurar saber do que está a falar.
Jerónimo enrubesceu de fúria e chegou-se à frente, fazendo menção de responder, mas Napoleão atalhou.
- Basta! - Mirou furiosamente os dois homens por um instante, depois respirou fundo e prosseguiu com a reunião. - Pretendo destruir cada exército à vez. Faremos
o possível por manter Barclay de Tolly e Bagration afastados. Isso significa que teremos de manobrar com tanta celeridade quanto possível. No entanto, tendo em conta
a escassa população das estepes, duvido que possamos recorrer à nossa prática habitual de viver daquilo que encontramos. Foi por isso que ordenei o aprovisionamento
dos nossos depósitos avançados e reuni as carroças necessárias para transportar as rações a partir daí. Assim que cruzarmos o Neman, poderemos alimentar o exército
durante vinte e quatro dias em marcha. Com tais recursos iremos avançar rapidamente. Tenciono derrotar ambos os exércitos nesse espaço de tempo. - Napoleão apoiou
a vara no ombro. - Questões? Davout, parece ter mais alguma coisa a dizer.
O marechal assentiu.
- Sire, e se o inimigo decidir trocar o tempo pelo espaço? Olhe para o mapa. Podem manter-se recuados durante meses, antes de se arriscarem a expor Moscovo, ou mesmo
S. Petersburgo. As nossas rações terão sido consumidas muito antes disso, e se não há grande coisa que se possa conseguir através de saques, o exército corre o risco
de morrer à fome antes de chegar ao campo de batalha. E ainda há mais uma coisa que me preocupa. Ambos temos noção do estado lastimável das estradas polacas. Talvez
seja razoável partir do princípio de que as estradas russas serão igualmente más, se não mesmo piores. Se assim for, é provável que se venha a perder uma grande
percentagem de veículos de suprimentos devido a rodas e eixos partidos. Sei que podem ser reparados, mas o importante é que serão atrasados. Receio que os nossos
comboios de suprimentos comecem a atrasar-se em relação ao exército numa questão de dias. Quando tal acontecer, as nossas alas vão começar a reduzir-se, primeiro
lentamente, mas depois cada vez mais depressa à medida que avançamos.
Quando Davout terminou, os restantes oficiais permaneceram em silêncio. Ninguém procurou contradizê-lo e Napoleão sentiu-se enfurecer com a falta de confiança que
Davout lançara entre os seus pares.
- Obrigado, Davout. As suas preocupações serão tidas em consideração. Contudo, posso garantir que nunca houve um exército tão bem preparado para tal campanha.
- Nunca houve um exército que tivesse tentado uma tal campanha, sire.
- Nesse caso, a fama e a glória conquistadas serão ainda maiores, Davout. Pense nisso. - Napoleão olhou para os oficiais em seu redor, chamando-lhes a atenção para
os comentários finais.
- Tal como disse, o nosso objetivo é destruir os exércitos do czar. Caso se recusem a combater, ocuparemos Moscovo e S. Petersburgo. Seja como for, o empenho dos
russos no combate vai definhar e nós teremos a nossa vitória. O marechal Davout tem razão. Nunca se tentou uma coisa assim. Quando chegar ao fim, todo o mundo saberá
que não há limites para aquilo que os exércitos franceses são capazes de fazer. Poderemos finalmente fazer cumprir o Bloqueio Continental até às últimas consequências.
Prevejo que daqui a um ano, Inglaterra vá ser obrigada a submeter-se. Quando isso acontecer, cavalheiros, esta mãe de todas as guerras chegará ao fim e a França,
a nossa França, será senhora de todo o mundo. Nos anos vindouros, vós, e todos os vossos soldados, poderão contar aos netos sobre o dia em que entraram em Moscovo
ao lado do vosso imperador. Pensem nisso durante o regresso aos vossos comandos.
Sentou-se e, momentos depois, Ney levantava-se e erguia o punho enquanto bradava: - Viva Napoleão! Viva a França!
Jerónimo pôs-se de pé e repetiu o viva, a par dos outros. Até mesmo Davout acabou por se levantar e por se juntar à ovação, mas Napoleão apercebeu-se da preocupação
e das dúvidas que ainda lhe ensombravam a expressão. Disse para consigo que Davout estava enganado. Com tantos homens às suas ordens, tantos bons oficiais, a melhor
cavalaria da Europa e artilharia suficiente para equipar uma armada, como poderia haver outro desenlace que não uma vitória retumbante que ofuscaria todos os generais
da História? Napoleão recostou-se na cadeira e sorriu.
Capítulo 25
Arthur
Badajoz, 6 de abril de 1812
- Desta vez já é nosso - concluiu Arthur, ao acabar de observar as três brechas que tinham sido abertas na muralha entre dois dos mais poderosos bastiões de Badajoz.
As novas peças de cerco tinham provado o seu mérito e, no espaço de duas semanas, as cargas pesadas dos canhões de vinte e quatro libras derrubaram as defesas do
forte exterior de Picuriña, antes de serem voltadas contra as formidáveis muralhas da cidade em si. - Aquelas brechas serão utilizáveis antes do cair da noite.
Somerset olhou demoradamente pelo telescópio antes de o baixar e assentir.
- Sim, milorde. Dou ordens para que o ataque seja levado a cabo esta noite?
- Isso. Esta noite. - A boa disposição de Arthur desvaneceu-se. Seria esse o momento de maior risco e de perda de vidas. Todos os cercos tinham como objetivo o assalto,
e mesmo que este fosse bem-sucedido, o custo poderia ser pesado. Mesmo assim, o exército estava animado, estado que se mantivera desde o início do ano, quando Arthur
os comandara de regresso a Espanha, para tomar a fortaleza de Ciudad Rodrigo. Apesar do frio intenso de janeiro, o exército cercara a vila com eficiência, abrindo
as trincheiras de aproximação, edificando baterias, derrubando as muralhas e assaltando a fortaleza no espaço de dez dias. Tudo isso com um custo de seiscentas baixas,
sendo que um quinto morrera, incluindo o general Craufurd. Arthur sentira profundamente essa perda. Embora Craufurd tivesse sido um personagem melindroso, com tendências
para atos ocasionais de impetuosidade, fora um comandante inspirado da Divisão Ligeira. Eram muito poucos os oficiais como ele, refletiu Arthur. Homens que poderiam
marcar a diferença num assalto a uma fortaleza tão poderosa como Badajoz.
A captura de Ciudad Rodrigo fora recompensada com um condado em Inglaterra, enquanto a junta espanhola lhe conferira o título de Duque de Ciudad Rodrigo. Acima de
tudo, o êxito do exército levara o governo a prometer mais reforços, especialmente para a cavalaria, algo pelo qual Arthur pressionava desde que assumira o comando.
O primeiro de sete regimentos montados frescos já se tinha juntado ao exército e os restantes chegariam em breve. Com uma cavalaria forte, Arthur poderia agir contra
os franceses com uma muito maior flexibilidade. Deixaria de estar limitado a batalhas defensivas em terrenos que contrariassem a superioridade montada do inimigo.
Agora, o seu exército poderia tomar a ofensiva e arriscar-se a combater em espaços abertos.
Claro que isso seria uma tarefa futura, refletiu Arthur. Primeiro era preciso tomar Badajoz. Levantou o telescópio para inspecionar mais uma vez a fortaleza. O lado
virado para o terreno aberto a oeste e a sul era protegido por uma muralha formidável e o comandante da guarnição tinha instalado outras defesas. O general Philippon
era um veterano, alguns anos mais velho do que Arthur, com cabelo grisalho apanhado atrás que emoldurava um rosto enrugado com olhos castanhos penetrantes. Arthur
encontrara-se brevemente com ele no início do cerco, quando se aproximara da fortaleza com uma bandeira de tréguas para exigir a rendição. Philippon saíra ao portão
principal, junto ao rio, para declinar a proposta e Arthur, seguindo o protocolo, recordara o defensor de que poderia invocar os termos até que se tivesse aberto
uma brecha utilizável nas muralhas de Badajoz. Depois disso, a fortaleza seria tomada de assalto e, segundo os costumes de guerra, os defensores ficariam à mercê
dos soldados britânicos.
- Vamos usar quatro divisões para o assalto - anunciou Arthur aos oficiais na reunião do meio-dia. Estava à frente de um mapa pormenorizado das defesas da vila,
preso à parede da taberna que servia de quartel-general do exército, e levantou a vara para apontar para o canto sudeste das muralhas de Badajoz. - A Divisão Ligeira
de Alten e a Quarta Divisão de Cole vão assaltar as brechas às dez horas desta noite. Ao mesmo tempo terão lugar dois ataques de diversão. - Apontou para o setor
oriental da povoação. - A Terceira Divisão de Picton vai atravessar o ribeiro Rivillas, subir a escarpa a oriente e tentar escalar o castelo. As muralhas aí são
suficientemente baixas para que as nossas escadas cheguem às ameias. Entretanto, no outro lado de Badajoz, a Quinta Divisão de Leith vai atacar o portão principal.
Leith?
- Sir? - O general Leith chegou-se à frente.
- O inimigo deverá ter minado o terreno de aproximação ao portão. Os seus rapazes que tenham cuidado. Deixem que o inimigo rebente com as minas antes de abordarem
a muralha, entendido?
- Sim, milorde.
Arthur olhou para os oficiais.
- Acredito que este osso seja muito mais difícil de roer do que Ciudad Rodrigo. Podemos contar com um número mais elevado de baixas, mas é importante reter o objetivo
estratégico desta operação. Com Ciudad Rodrigo e Badajoz nas nossas mãos, a iniciativa passa para o nosso lado durante o resto da campanha na Península Ibérica.
Como sabem, é quase certo que Bonaparte vai atacar a Rússia lá mais para o final do ano. Estou convencido de que ele está prestes a cometer um erro que pode vir
a ser o ponto de viragem nesta longa guerra que temos vindo a combater. A campanha na Rússia vai exaurir-lhe os exércitos e, se tivermos sorte, poderá até vir a
ser derrotado no campo de batalha. As nossas informações dizem-nos que as melhores formações francesas estão prestes a retirar-se de Espanha para fortalecer as alas
do Grande Exército. Cavalheiros, essa é a oportunidade por que tenho esperado e tenciono aproveitá-la totalmente. Com os bastiões fronteiriços nas nossas mãos, a
partir de agora levaremos a guerra aos franceses segundo os nossos termos. - Fez uma pausa. - Que essa perspetiva vos encha o coração e vos fortaleça os músculos
para o trabalho desta noite.
Os oficiais superiores bateram com as mãos na mesa para aplaudir as palavras, e depois Arthur fez sinal para que houvesse silêncio.
- Alguma questão?
Não houve perguntas, pelo que Arthur os dispensou para que regressassem aos respetivos comandos e preparassem o ataque. Durante o resto da tarde, até ao pôr-do-sol,
as divisões destacadas para o ataque descansaram nos seus bivaques. As baterias de cerco dirigiram as salvas para novas secções da muralha, na ténue esperança de
que os defensores pensassem que os britânicos precisariam de mais brechas antes de lançarem um assalto. Arthur duvidava que Philippon caísse nessa artimanha, mas
não perdia nada em tentar.
A partir do jardim no terraço da taberna, Arthur perscrutou com o telescópio as linhas da Divisão Ligeira e viu que alguns dos soldados estavam a ler, outros - mais
instruídos - escreviam cartas ou diários, e a maioria estava sentada em círculos largos à volta das fogueiras do acampamento, a cozinhar a ração diária de carne
e de biscoitos num caldo grosso. Um grupo de homens fora buscar violinos, ou flautas e entretinham os camaradas com melodias alegres. Arthur ficou satisfeito. Os
homens pareciam estar animados. Depois avistou um pequeno grupo de homens, talvez uma centena deles, ajoelhados à frente de um capelão, as cabeças baixas em oração.
Eram os voluntários do grupo de assalto. Abririam caminho numa tentativa quase suicida de correr para a brecha escolhida pela Divisão e mantê-la aberta até que as
tropas chegassem para a invasão da cidade.
Enquanto observava, Arthur não pôde deixar de se interrogar quanto à natureza dos homens que se ofereciam para tal missão. Verdade fosse dita que havia recompensas
para os sobreviventes. Promoções para o oficial, o sargento, os cabos e os soldados que se distinguissem. Claro que com probabilidades tão negativas, aqueles homens
teriam de estar tão desesperados por uma promoção que lhes dariam mais valor do que à própria vida. Arthur recordou uma possibilidade mais sombria. Alguns daqueles
homens poderiam estar motivados por uma sede de sangue, uma doença que vira em alguns soldados durante a sua carreira. Ansiavam pelas batalhas e sentiam tal exaltação
com a experiência que isso se tornava um vício, até que a morte, ou um ferimento debilitante os curava. Se houvesse homens desses nos grupos de assalto, que Deus
ajudasse o povo e a guarnição de Badajoz quando as muralhas caíssem, pensou Arthur, com um arrepio.
Quando a noite caiu sobre a província espanhola, Arthur, o general Alava e Somerset, a par de alguns dos oficiais do estado-maior, dirigiram-se às muralhas do forte
de Picuriña, a partir de onde teriam um bom panorama do ataque às três brechas. À esquerda do forte, os homens da Divisão Ligeira avançavam ao longo das margens
baixas do Rivillas. Tinha-lhes sido ordenado que avançassem em silêncio absoluto, e Arthur mal conseguia discernir sinais de vida nas sombras ao fundo do forte.
À direita, os homens da Quarta Divisão tinham entrado nas trincheiras de aproximação e começaram a avançar até que fizeram alto a pouca distância dos elementos dos
grupos de assalto.
Às nove horas, as baterias de cerco dispararam a última salva, tal como ordenado. Arthur não queria correr o risco de ter o clarão dos disparos a iluminar quaisquer
preparativos para o assalto. Quando os tiros pararam, seguiu-se uma calma tensa que pareceu estranha depois do estrépito do bombardeamento, sendo o silêncio apenas
quebrado pelos desafios ocasionais das sentinelas e pelo coaxar das rãs ao longo das margens do ribeiro.
Arthur dirigiu-se ao general Alava e sussurrou:
- Desta vez vai testemunhar a tomada da cidade.
- Estou absolutamente confiante, milorde.
Durante a espera pelo início do ataque, os oficiais em torno de Arthur foram ficando cada vez mais tensos e enquanto alguns se mexiam nervosamente, outros falavam
em voz baixa, até que Arthur se virou para lhes lançar um olhar furioso à luz débil das lanternas penduradas no interior do forte. Fizeram silêncio e dirigiram a
atenção para Badajoz. Viam-se archotes ao longo das muralhas e a espaços distinguiam as figuras de sentinelas que patrulhavam as ameias. De vez em quando, uma sentinela
desconfiada de algum som, ou movimento à frente da muralha, atirava um archote que descrevia um arco flamejante até cair no chão, onde assustava um cão, ou qualquer
outro animal pequeno.
Os minutos foram-se arrastando. Arthur manteve-se tão imóvel quanto possível, não só para dar o exemplo aos subordinados, como também para manter a sua reputação
de imperturbabilidade. Daí a pouco puxou discretamente do relógio de bolso e inclinou o mostrador para uma das lanternas no forte. Faltava quase um quarto de hora.
Lá em baixo, no interior do forte, um grupo de artilheiros esperava a um canto, prontos para lançar um foguete que assinalaria o início do ataque principal.
Naquele momento, uma voz gritou na direção das trincheiras:
- Apanhe a maldita escada, seu preguiçoso irlandês!
Arthur sentiu o coração dar um salto. Os oficiais à volta dele imobilizaram-se, à espera que o alarme soasse na muralha. Os segundos passaram, mas não houve reação
por parte do inimigo, nem mais gritos vindos do terreno, continuando as rãs com o coaxar ritmado. A tensão desfez-se e Somerset suspirou profundamente.
- Foi por pouco. Alguém devia destacar aquele indivíduo para serviço de faxina durante o resto do ano.
- Imagino que haja tempo para recriminações mais tarde - retorquiu Arthur, num tom calmo.
Concentrou o olhar no terreno que se aproximava das brechas, sabendo que naquele momento os voluntários de cada divisão estariam a avançar discretamente. Depois
de uma espera de um minuto, os grupos de assalto começariam a segui-los, enquanto os derradeiros soldados estariam agarrados aos mosquetes, à espera do sinal para
o ataque geral. Arthur viu um movimento nas sombras, talvez a cinquenta metros da brecha, depois outro e mais um, à medida que os voluntários rastejavam pelas pedras
e pela vegetação rasteira à frente da muralha.
Uma voz francesa gritou, talvez um desafio, e de imediato viu-se o clarão de um cano na muralha. O estampido chegou a Arthur um segundo depois.
- Toca a levantar e a avançar! - bradou o alferes que comandava os voluntários e das sombras ergueram-se figuras que correram para a brecha. O grito foi ecoado à
esquerda e à direita, quando os restantes voluntários avançaram para as outras brechas. Arthur virou-se para Somerset.
- Tenha a bondade de dar o sinal.
Somerset levou a mão em concha à boca.
- Equipa do foguete! Fogo!
Viu-se um clarão breve quando o sargento soprou para a mecha e depois chegou a extremidade à cauda do foguete. Jorraram faúlhas e depois, com um sopro, o foguete
elevou-se no céu da noite, deixando um leve trilho de fogo na sua esteira. Rebentou bem acima de Badajoz com uma explosão branca brilhante e a detonação ecoou nas
muralhas da cidade. Ouviam-se agora mais gritos ao longo da muralha e mais mosquetes crepitaram quando viram os atacantes que corriam na sua direção. Já não havia
necessidade de silêncio e os soldados ingleses soltaram os seus gritos de carga enquanto saíam dos abrigos e carregavam em direção ao fosso à frente da muralha.
Arthur sentiu os músculos a retesarem-se ao observar os voluntários da Divisão Ligeira começarem a atravessar e depois a subir os destroços por baixo da brecha que
lhes fora destinada. As muralhas de ambos os lados tremeluziam com o fogo dos mosquetes e o alferes que comandava os homens caiu antes mesmo de chegar a meio do
monte de cascalho. O sargento tombou a poucos metros do oficial e depois outros soldados foram abatidos enquanto se debatiam com o terreno difícil. Não obstante
a chacina, os restantes carregaram e também eles foram derrubados no seu caminho para a brecha. Nem um voluntário conseguiu chegar ao emaranhado de abatis espalhados
logo abaixo da brecha.
- Por Deus - resmungou Arthur entre dentes.
Os primeiros homens do grupo de assalto chegaram ao fosso, mas agora o primeiro canhão dos bastiões juntava-se ao fogo de mosquete, com as chamas do disparo a iluminarem
brevemente as muralhas com um brilho laranja lúgubre, enquanto a metralha fustigava o terreno à frente da vala, atirando vários homens à erva. Mais figuras surgiram
das trevas, alguns transportando escadas cobertas com tábuas que atiraram sobre o fosso, correndo depois para a brecha. Em breve, uma centena de soldados percorria
com dificuldade os destroços, com alguns prestes a chegar à brecha, sob uma chuva de fogo de mosquete que os ia abatendo. Depois, quando o primeiro casaca-vermelha
subiu até à brecha, viu-se um clarão brilhante de luz perto da base da muralha que lançou pelo ar pedras, homens e fragmentos de corpos, ao mesmo tempo que iluminava
brevemente as muralhas e os terrenos circundantes, imobilizando milhares de homens num quadro de destruição. A repercussão e o ribombar da explosão chegaram aos
oficiais no forte um instante depois. Apesar do choque, o assalto prosseguiu sem qualquer interrupção.
- Uma mina! - exclamou Somerset, horrorizado. - Esconderam uma mina no cascalho.
- Obrigado, Somerset - retorquiu Arthur com brusquidão. - Tenho estado a acompanhar os acontecimentos, sabe?
O grupo de assalto percorria agora o fosso e o fogo das muralhas atingiu uma nova intensidade, ceifando os atacantes aos magotes, tudo à frente de Arthur e dos oficiais,
enquanto o clarão sombrio da artilharia e dos mosquetes mantinha a cena iluminada. No entanto, o horror do assalto ainda não chegara ao fim. Quando os primeiros
atacantes subiram para a brecha, foram confrontados com um bloqueio de chevaux de frise, vigas de madeira trespassadas por lâminas de espadas e apoiadas de ambos
os lados por cavaletes. À frente delas estavam tábuas com pregos de quinze centímetros a sair pela superfície, e atrás uma barricada com atiradores franceses. Dezenas
de casacas-vermelhas tropeçaram para cima dos pregos, ficando em agonia, antes de serem abatidos ou empalados nas lâminas, aí ficando pendurados, a gritar enquanto
se esvaíam em sangue.
O grupo de assalto morreu na brecha e agora avançava a onda seguinte da Divisão Ligeira, com os homens a lançar-se ao ataque, determinados a obter êxito onde os
camaradas tinham fracassado. Carregaram sobre o fosso, com as alas a ficarem reduzidas devido à metralha, e depois até à brecha, onde abrandaram, incapazes de ultrapassar
os terríveis obstáculos que os aguardavam.
Passou uma hora, em que foi feita tentativa após tentativa para tomar a brecha, e depois Arthur observou desesperado os homens a começarem a deitar-se, pressionando-se
contra o solo, ou ocultando-se atrás de pedras e no fundo da vala. Os franceses começavam agora a largar granadas das muralhas, com cada explosão a provocar mais
baixas entre os homens que se abrigavam. Arthur sabia que era chegada a crise do assalto. Se os homens não avançassem, morreriam onde se encontravam. A única hipótese
de êxito era continuarem a atacar.
- Somerset, envie uma mensagem ao Alten. Ele tem de manter os homens a avançar.
- Sim, milorde.
- Entre também em contacto com o Cole e os outros comandantes de divisão. Quero saber como vão os ataques deles. Trate disso.
O segundo assalto teve início às onze e meia, quando um batalhão fresco avançou em direção à brecha. Não se saíram melhor do que os antecessores e o massacre prosseguiu.
Tornava-se agora impossível ver a abertura, ou a encosta de cascalho através dos montes de casacas-vermelhas, e mesmo assim os oficiais continuavam a reunir os homens
e a levar a cabo novas tentativas.
O general Alava era incapaz de desviar os olhos do terrível espetáculo.
- Milorde, nunca vi tal valentia em soldados. - Fez uma breve pausa. - Imagino que já tenham sacrificado o suficiente por uma noite. Já provaram a coragem. No entanto,
eles não conseguem tomar a brecha. Poupe os seus homens. Mande-os retirar e acabe com esta carnificina. Imploro-lhe.
Arthur resistiu ao impulso de se virar e encarar o espanhol. Sentia-se consumido pela angústia de ver tantos bons homens serem dizimados à frente da brecha. Alava
tinha razão. Não tinham igual em termos de coragem e determinação. Era por isso que iriam, era por isso que tinham de vencer. Engoliu para garantir que a voz não
o traía ao responder.
- Não irei ordenar a retirada.
A coragem dos atacantes não fraquejou durante mais duas horas. Só então recuaram da muralha, o suficiente para ficarem fora do alcance dos mosquetes franceses e
escondidos dos canhões, encobertos pelas trevas. Mesmo assim, os franceses continuaram a disparar às cegas, num esforço para incomodar os atacantes.
Entretanto, Somerset regressara para informar Arthur de que a Quarta Divisão também fracassara na tentativa de tomar as duas brechas à sua frente e sofrera baixas
pesadas. Pouco depois das duas da madrugada, chegou um mensageiro do general Alten. O cabo tinha uma ligadura à volta da cabeça e um braço repousava, inutilizado,
numa tira de pano. Apresentou o relatório a Arthur.
- Com os cumprimentos do general, sir. Tenho ordens para o informar de que os primeiros dois batalhões fracassaram na tentativa de tomar a brecha. Sofreram pesadas
baixas, estando a maioria morta, já que os feridos foram alvejados outra vez pelos defensores. O general deseja saber se o meu comandante pretende que o ataque prossiga,
sir.
Arthur fitou o homem, por momentos incapaz de dar qualquer ordem. Depois invocou a força de vontade para fortalecer a sua decisão. Falou com tanta gentileza quanto
possível.
- Diga ao seu general que ele sabe qual o meu desejo, tão bem como eu conheço a coragem dele. Diga-lhe que reúna os homens e que organize as formações avançadas
para retomar o ataque assim que possível. Fui claro?
- Sim, milorde - respondeu o cabo, com um tom amargo. - Perfeitamente.
- Assim que lhe transmitir a minha resposta, agradeço que vá para a retaguarda e que trate dos seus ferimentos. Procure o meu cirurgião.
O cabo fitou-o e depois abanou a cabeça.
- Se não se importa, milorde, prefiro ficar ao lado dos meus camaradas, em vez de estar com o seu cirurgião.
O cabo deu meia-volta e afastou-se, deixando Arthur a olhá-lo, um nó de culpa no estômago. Depois virou-se para Badajoz, sem se atrever a encarar os outros oficiais.
Um ressoar de cascos fez-se ouvir no forte e uma voz gritou: - Onde está Wellington?
- Lá em cima, sir. - Um dos artilheiros apontou para as ameias. Instantes depois, um oficial apareceu a correr junto de Arthur e dos outros.
- Milorde, venho da divisão de Picton. Ele mandou-me procurá-lo assim que teve a certeza do êxito.
- Êxito?
- Milorde, o castelo é seu.
- O quê? Explique-se melhor!
- A escalada foi bem-sucedida, sir. Sofremos baixas pesadas, mas a divisão assumiu o controlo do castelo.
Arthur sentiu uma faúlha de esperança no coração, a par da familiar consciência das possibilidades da situação. Afinal de contas, o sacrifício dos homens nas brechas
poderia ter servido de alguma coisa se, como parecia ser o caso, o inimigo tivesse sido obrigado a afastar soldados dos outros setores da cidade para defender as
brechas. Se a divisão de Picton tinha conseguido aí, era possível que Leith também tivesse tido êxito.
- O Picton tem homens suficientes para atacar a brecha por trás?
- Certamente, mas não pode sair do castelo, sir. Os franceses bloquearam todos os acessos.
- Maldição. - Arthur franziu o cenho. - Muito bem, vá ter com o Leith. Transmita-lhe o que me contou. Diga-lhe que os franceses enviaram os homens disponíveis para
defender as brechas. Se for audaz, conseguirá tomar a muralha que tem pela frente.
O oficial de Picton fez continência e desceu as escadas a correr em direção ao cavalo. Dali a vinte minutos ouviu-se uma fuzilada impressionante a norte e depois
as notas agudas dos clarins, quando a Quinta Divisão irrompeu pelas ruas de Badajoz. O fogo dos soldados franceses em torno das brechas esmoreceu rapidamente, acabando
por se ouvir apenas estampidos esporádicos, que aos poucos desapareceram, quando o inimigo se dirigiu ao setor norte da cidade. Ao fundo da muralha, a Divisão Ligeira
voltava a avançar à cautela para a brecha. Desta vez as muralhas estavam silenciosas, com as ameias e os bastiões abandonados pelo inimigo. Arthur observou a primeira
companhia a trepar por cima dos corpos na brecha e depois desaparecer no interior da povoação, seguida pelo resto do batalhão.
- Venham Somerset, Alava! - Virou-se e correu para o exterior do forte, apressando-se pelo terreno aberto em direção à brecha. Depararam-se com os primeiros cadáveres
a pouca distância do fosso, esparramados e contorcidos pelo chão. As formações de retaguarda da divisão estavam em sentido à frente da vala, à espera da sua vez
de entrar na cidade. O general Alten encontrava-se do outro lado, para garantir que os homens não avançavam num ímpeto desordenado. Seria demasiado perigoso até
que os obstáculos letais fossem removidos. Alten viu Arthur e os outros a aproximar-se e virou-se para saudar o comandante.
- Foi um trabalho muito sangrento, milorde.
- Deveras. Mas temos a povoação.
- Sim, valha-nos isso.
Por um instante, Arthur sentiu o coração elevado. Depois percorreu com o olhar a pilha de cadáveres, que subia até à brecha, onde ainda mais corpos se amontoavam.
Uma companhia de soldados de Alten juntara os mosquetes e estava ocupada a retirar as tábuas com cavilhas e os chevaux de frise, enquanto outros homens procuravam
feridos entre os cadáveres. Aqui e além uma voz pedia ajuda, ou gemia em agonia, e os mortos eram retirados, para que os feridos pudessem ser libertados da confusão
de membros. Entretanto, as companhias que entravam pela brecha eram obrigadas a passar por cima dos corpos dos camaradas.
- Que cheiro é este? - indagou Somerset.
Arthur cheirou. Parecia carne a assar, e sentiu o estômago às voltas quando se apercebeu de que vinha dos homens que tinham morrido com o rebentamento da mina. Pressionou
a mão enluvada contra o nariz enquanto fitava a cena infernal.
- O que é que tinha dito, general Alava? Nunca tinha visto tamanha bravura?
- Sim, milorde.
- Espero nunca mais voltar a fazê-los passar por aquilo que passaram esta noite.
Enquanto fitava os mortos, algures na povoação ouviu-se um grito de mulher, seguido por um coro de gargalhadas. Noutro ponto soou um disparo. O exército britânico
tinha pago um preço bastante elevado para tomar Badajoz, e agora era garantido que saciariam a sede de vingança com os habitantes da vila, quer tivessem ou não ajudado
os franceses.
Capítulo 26
Nos dias que se seguiram, Badajoz foi totalmente saqueada. Os soldados entraram em todas as casas e roubaram tudo o que puderam, matando qualquer um que se pusesse
no caminho. Muitos procuraram vinho e bebidas brancas, e a embriaguez acabou com o que lhes restava de autocontrolo. As ruas encheram-se com os gritos aterrorizados
das mulheres. A violação foi apenas uma das depravações com que os soldados deram vazão à fúria que sentiam contra a vila que lhes custara tantos camaradas. Assim
que a sede de vingança foi saciada, dedicaram-se à pilhagem, e quando o ouro e outros valores dos habitantes se esgotaram, os soldados viraram-se uns contra os outros,
agredindo-se mutuamente para roubar o saque alheio.
Arthur sabia o que se passava no interior das muralhas da cidade, mas nada podia fazer. Os oficiais tinham perdido o controlo dos homens e alguns dos que tinham
tentado impor disciplina foram alvejados, ou violentamente afastados e obrigados a fugir da povoação. Os únicos soldados ainda controlados por Arthur eram os que
tinham recebido ordens para permanecer fora das muralhas, e mesmo esses ostentavam expressões de inveja, enquanto os restantes homens se dedicavam a uma orgia de
roubo e destruição.
O derradeiro ato do cerco teve lugar no dia a seguir ao assalto, quando o forte de San Cristobal se rendeu. Com a tomada das brechas, o general Philippon reunira
os sobreviventes da guarnição e levara-os a passar a ponte sobre o Guadiana, abrindo caminho à força ao longo da margem para chegar ao forte.
Depois de ter dado ordens para que os mortos fossem enterrados e de ter analisado a terrível lista de baixas, Arthur cruzou o rio e aproximou-se do forte, a par
de um alferes com uma bandeira de tréguas. Subiu a rampa íngreme até ao portão, onde parou e exigiu falar com o general Philippon.
Após uma breve demora, as vigas de fixação ressoaram por trás da madeira grossa do portão e uma das portas abriu-se para dentro. Surgiram três homens, com dois soldados
a apoiar o general que coxeava dolorosamente entre eles. As pantalonas de Philippon estavam cortadas abaixo da coxa direita e viam-se talas na perna, atadas com
ligaduras por onde o sangue vertera, criando uma série de manchas redondas escuras. Não trazia chapéu e o rosto estava manchado com sangue seco que escorrera de
um golpe no topo do couro cabeludo. Mesmo assim, conseguiu oferecer um sorriso ao cumprimentar Arthur.
- Os meus parabéns pela resolução célere e decisiva do cerco, milorde.
Arthur engoliu em seco.
- Não é fácil obter qualquer satisfação pelo resultado depois de se terem perdido tantos homens. Mais de três mil dos meus soldados caíram perante as suas defesas.
A compostura do francês cedeu ao recordar-se da ferocidade da batalha da noite anterior.
- Nunca tinha visto tamanha chacina... - Pigarreou e levantou a cabeça. - Os meus homens e eu cumprimos o nosso dever, tal como fizeram os seus. É o preço da guerra.
- Um preço evitável. Nunca seria capaz de manter a cidade. Não há qualquer honra quando se luta para adiar uma derrota inevitável.
- Será?
- Não, não há. Nem para o general aqui em Badajoz, nem para o resto do exército francês em Espanha. Nem para Bonaparte, o seu senhor. Ele não vai conseguir vencer
a guerra. Apesar dos pretensos tratados e alianças que impingiu aos vizinhos da França, toda a Europa está contra ele. Estou certo de que só pode haver um desenlace.
Bonaparte não tem como vencer. Ele só poderá adiar a derrota.
Philippon exibiu um sorriso triste.
- Milorde, essa é parte da razão porque os meus homens estão em guerra, para adiar a derrota inevitável, tal como diz.
- Nesse caso, os seus homens são uns tolos - replicou Arthur lapidarmente. - Muito bem, não quero prolongar esta discussão. Estou aqui para lhe apresentar os termos
para a rendição imediata de San Cristobal. Não desejo perder mais homens com um assalto a este forte, pelo que se o general se recusar a render-se, irei ordenar
que as minhas peças de cerco arrasem a fortificação. Não farei prisioneiros.
Philippon observou a expressão inflexível de Arthur.
- Deseja discutir os termos? Nesse caso entrego o forte e as armas dos meus homens em troca de salvo-conduto para Paris.
Arthur abanou a cabeça.
- Não está a perceber. Não vim discutir termos, mas sim apresentá-los. Em resumo, vai entregar o forte incondicionalmente. Os seus homens serão desarmados e vão
marchar até Lisboa, a partir de onde serão enviados para Inglaterra como prisioneiros até ao final da guerra, ou até que o governo de sua majestade decida trocá-los.
Se não concordar com os termos, o general e a sua guarnição serão destruídos a par do forte.
- Preciso de tempo para pensar.
- Não. Vai aceitar ou rejeitar os meus termos neste momento.
Philippon franziu o cenho e baixou os olhos para ocultar a indecisão angustiada. Abanou ao de leve a cabeça, depois fez uma pausa e ergueu o olhar, resignado com
o seu destino.
- Muito bem. Aceito.
- Ótimo. Nesse caso, os seus homens vão deixar o forte na próxima hora e formar aqui fora para entregarem as armas. - Arthur apontou para a extensão plana de terreno
abaixo do forte, perto do acampamento dos batalhões portugueses de Beresford. - Não procederá a qualquer tentativa de destruir suprimentos ou equipamento que se
encontrem no interior do forte, entendido?
- Sim, milorde. - Philippon assentiu enquanto fitava os soldados portugueses no acampamento. - Mas preferia render-me a soldados ingleses do que aos portugueses.
Tendo em conta a... barbaridade com que já trataram prisioneiros franceses.
- Não vejo grande diferença entre a barbaridade dos portugueses e aquela com que os franceses trataram os outros. Seja como for, não posso dar-me ao luxo de enviar
um dos meus batalhões para escoltar os seus homens até Lisboa. Creio que, graças ao nosso treino e ao nosso exemplo, vai descobrir que os portugueses os vão tratar
com mais misericórdia do que aquela que os vossos soldados mostraram a muitos dos compatriotas deles - concluiu Arthur, com frieza. Levantou o chapéu. - Que tenha
um bom dia, general. Não nos voltaremos a encontrar. Garanta que o último dos seus homens deixa o forte no prazo máximo de uma hora.
Arthur deu meia-volta ao cavalo e fê-lo avançar a trote, sempre com um travo amargo na boca.
Passaram quatro dias até que os soldados voltassem a si e começassem a sair da cidade, curando ressacas e agarrando os despojos em fardos improvisados. O general
responsável defendia o castigo dos soldados por ausência injustificada, mas Arthur ordenou que não se levassem a cabo quaisquer sanções. Em vez disso, enviaram-se
novas tropas à cidade para encontrar os últimos saqueadores e expulsá-los da povoação. Em seguida teve início o trabalho de reparação dos danos. Os doentes e os
feridos do exército de Arthur foram levados para a caserna do castelo, onde seriam assistidos pelos cirurgiões das unidades destacadas para a guarnição da cidade.
Os feridos que iam morrendo eram levados num fluxo lento mas constante, aumentando a quantidade de cadáveres dispostos numa série de longas valas comuns a pouca
distância das muralhas. Quando cada vala ficava cheia, soldados com panos ensopados em gin sobre o rosto, para dissipar o fedor dos cadáveres, atiravam terra sobre
os corpos e depois empilhavam pedras pesadas sobre o túmulo para desencorajar cães vadios, animais necrófagos e ladrões humanos.
Com Badajoz nas mãos dos ingleses, Arthur começou a planear as ações seguintes enquanto aguardava a chegada de novos reforços para o exército. Apesar das perdas,
o seu poderio aumentou para mais de sessenta mil homens com os novos regimentos e os recrutas de substituição. Era quanto bastasse para levar a campanha para o interior
de Espanha, mas por mais frustrante que fosse, não chegava para contemplar o confronto com uma união de exércitos franceses. Era essa a grande ironia da situação.
Quanto mais bem-sucedido fosse o exército aliado, mais provável seria que os franceses viessem a concentrar as suas forças para marchar contra Arthur e destruí-lo
e ao seu exército de uma vez por todas.
Havia um outro motivo de constante preocupação. Tendo reforçado o exército peninsular, o governo inglês esperaria que ele levasse a guerra aos franceses. Era óbvio
que apenas um número reduzido de elementos mais esclarecidos do governo compreendia o jogo que Arthur era obrigado a desenvolver contra o adversário mais numeroso.
A força inimiga que mais logicamente Arthur deveria enfrentar era o exército do marechal Marmont. As mais recentes informações sugeriam que Marmont tinha às suas
ordens menos de trinta e cinco mil homens, e foi isso que levou Arthur a decidir-se.
No início de maio, deixou o general Hill e dezoito mil homens em Badajoz, para o caso de Soult se decidir a aventurar-se fora da Andaluzia, e marchou de regresso
a Ciudad Rodrigo para organizar a ofensiva contra Marmont. Enquanto esperava que os derradeiros reforços lhe fossem enviados do Porto, deu ordens para que as carroças
fossem reparadas e carregadas com rações do depósito da fortaleza. Os soldados puderam descansar e preparar o equipamento para a campanha.
Perto do final do mês, quando Arthur ultimava os planos de campanha, Somerset entrou no gabinete com o mais recente molho de despachos de Londres.
- Saíram de Londres a doze. Fizeram uma viagem rápida - notou Arthur com satisfação. Quebrou o selo, abriu a cobertura impermeável e retirou os documentos que se
encontravam no interior. No cimo do molho estava uma pequena mensagem de lorde Liverpool, marcada Urgente - Ler de imediato.
Arthur ergueu as sobrancelhas e, com um breve encolher de ombros, empurrou as restantes cartas na direção de Somerset.
- Ordene-as por prioridade, por obséquio.
O ajudante de campo assentiu, puxou uma cadeira e começou a abrir e a selecionar os documentos, procedendo, como era habitual, à remoção de missivas pessoais e administrativas
para o fundo, depois das comunicações mais vitais. Arthur recostou-se na cadeira e quebrou o selo da carta de Liverpool, desdobrou-a e começou a ler. Daí a pouco
dobrou o papel.
- O primeiro-ministro morreu - anunciou, num tom átono.
Somerset ergueu o olhar do documento que estava a ler.
- Sinto muito, milorde, não percebi.
- Disse que o primeiro-ministro morreu.
- Por Deus. Morreu? Como? Acidente ou doença?
- Nenhum dos casos. Foi assassinado. Alvejado no átrio da Câmara dos Comuns. Um louco chamado Bellingham, que ao que parece culpava Perceval e o governo de lhe terem
arruinado o negócio.
- Com a breca, isso parece-me um pouco excessivo.
Arthur levantou as sobrancelhas.
- "Um pouco excessivo" talvez não seja a reação adequada, Somerset. O indivíduo privou-nos de um primeiro-ministro.
- Lamento, sir. Fiquei chocado com a notícia, só isso. Não é o tipo de coisa que acontece em Inglaterra. Em França ou na Rússia sim, mas em Inglaterra?
- É verdade. - Arthur ergueu os braços, cruzou as mãos e apoiou nelas o queixo. - A questão é, qual o impacto que isso terá nas políticas do governo para a Península
Ibérica? Por mais parcimonioso que Perceval se mostrasse no apoio das nossas campanhas, pelo menos tinha a virtude de entender a sua necessidade. Corremos o risco
de o substituto não partilhar dessa opinião, logo agora que estamos à beira de alterar o equilíbrio de poder na região. Pior ainda, o governo é fraco e a oposição
pode aproveitar esta oportunidade para derrubar os Conservadores e levar o príncipe regente a nomear uma administração liberal. Se isso acontecer... - Arthur não
precisou de terminar a frase. Somerset, bem como a maior parte do exército, sabia que um governo liberal daria primazia à retirada do Exército da Península Ibérica.
- O governo, qualquer governo, seria louco se abandonasse a campanha num momento em que revela tanta promessa, milorde - replicou Somerset, ao que sorriu. - Ainda
pode demorar até que surja um novo primeiro-ministro, ou mesmo um novo governo. Quer seja conservador ou liberal, tem de aproveitar esse tempo para provocar tantos
reveses quanto possível aos franceses, milorde. Faça com que seja politicamente inoportuno retirar o exército.
Arthur assentiu.
- Por Deus, tem toda a razão. Somerset, para um bom ajudante de campo, daria um político absolutamente formidável.
O ajudante de campo recostou-se na cadeira com uma expressão chocada.
- Meu general! Não me parece que a minha sugestão mereça tal insulto ao meu caráter!
- Realmente. - Arthur riu-se. - Apresento-lhe as minhas desculpas, Somerset, caso contrário tenho a certeza de que me desafiaria para um duelo, e o exército não
se pode dar ao luxo de perder qualquer um de nós.
Somerset anuiu, satisfeito.
- Muito bem. - Arthur levantou-se e olhou pela janela, para o acampamento do exército. - Enquanto aguardamos por informações quanto à substituição do coitado do
Perceval, vamos marchar contra os franceses.
No início de junho, quando o exército aliado partiu de Ciudad Rodrigo, Arthur recebeu a informação de que Marmont tinha sido reforçado, contando agora com uma ligeira
superioridade numérica em relação aos aliados. Arthur mostrou-se preparado para aceitar as probabilidades e o exército continuou a sua marcha para o interior de
Espanha, dirigindo-se a Salamanca, a mais próxima base de operações do inimigo.
Lá chegado, Arthur descobriu que a guarnição francesa abandonara a cidade, deixando ficar algumas centenas de homens a fortificar os conventos sobranceiros à ponte
sobre o rio Tormes. Enquanto o grosso do exército acampou nas colinas a norte da cidade, os engenheiros deram início ao cerco dos conventos, escavando trincheiras
de aproximação e construindo baterias para o pequeno número de peças de cerco que Arthur trouxera com o exército.
Tal como Arthur esperara, Marmont avançou para Salamanca, numa tentativa de apoiar os defensores, mas as tropas aliadas nas colinas bloquearam-lhe o caminho. Seguiram-se
alguns dias de espera cansativa, em que Arthur ordenou que o exército ficasse em posição, ao pó e ao calor, aguardando um ataque francês que nunca se concretizou.
O marechal Marmont, por seu lado, limitou-se a enviar regularmente algumas baterias a cavalo, a par de alguns soldados avançados, para que disparassem sobre as tropas
aliadas expostas na encosta avançada. Arthur respondeu com o avanço dos casacas-verdes, e depois de um breve duelo, as escaramuças interromperam-se e os dois exércitos
voltaram a esperar como antes.
Os conventos renderam-se rapidamente assim que as peças de cerco começaram a desfazer as paredes, e quando o último foi tomado, Marmont começou a retirada para norte,
em busca da proteção do rio Douro. O exército aliado seguiu-o, acampando na margem sul. Frustrado, Arthur observou, com o telescópio, o inimigo. Uma mancheia de
piquetes patrulhava a margem oposta e o acampamento principal do inimigo, cuja posição era marcada pelo fumo das fogueiras, situava-se numa cumeada baixa que percorria
alguma extensão do rio. Os espiões tinham-no informado de que a Marmont já se juntara outra divisão, estando à espera de ainda mais reforços.
Depois, a 15 de julho, um grupo de combatentes da resistência espanhola entrou no acampamento aliado num estado eufórico, exigindo falar com o general inglês. Usavam
lenços na cabeça, casacas curtas sobre as camisas, pantalonas, que eram abotoadas abaixo do joelho, e botas pesadas. Via-se uma seleção formidável de carabinas e
pistolas nos alforges, e dos cintos pendiam-lhes espadas, clavas e facas. As duas sentinelas de serviço à porta do quartel-general de Arthur, um celeiro abandonado,
olharam desconfiados para os recém-chegados, enquanto Somerset saía com o general Alava para falar com eles. Depois de uma breve troca de palavras, Alava fez sinal
ao líder para que desmontasse e o seguisse e a Somerset até ao celeiro.
Bateu na ombreira desgastada e Arthur ergueu o olhar do mapa que estivera a analisar.
- O que foi?
- Um dos combatentes locais, milorde. Diz que intercetou alguns despachos inimigos e deseja vendê-los.
Arthur soprou as faces.
- Muito bem. Posso dispensar-lhe alguns minutos. Ele que entre.
Momentos depois, o líder entrou, trazendo um alforge sobre o braço. Arthur levantou-se para trocar vénias, enquanto Alava fazia as apresentações.
- Señor José Ramirez, ou El Cuchillo, como diz ser conhecido nesta extensão do Douro.
- E o que tem El Cuchillo... - Arthur sorriu para o homem - ...para me apresentar, ao certo?
Assim que Alava traduziu, o líder da resistência avançou e pousou o alforge em cima do mapa de Arthur. O inglês reparou numa mancha escura nas bolsas e imaginou
que se trataria do sangue do mensageiro indefeso que fora intercetado por El Cuchillo e seus homens. Com um gesto extravagante, o espanhol soltou a correia e abriu
a sacola. No interior via-se uma série de documentos selados. Um deles chamou de imediato a atenção de Arthur, por ser maior e ostentar um selo mais elaborado do
que os restantes. Gesticulou na direção do alforge e o espanhol assentiu. Arthur retirou o documento e viu que tinha o selo do rei José, estando endereçado ao marechal
Marmont. Quebrou o selo e abriu a mensagem, perscrutando rapidamente o conteúdo antes de erguer o olhar.
- O rei José está a marchar ao encontro de Marmont com treze mil homens.
Somerset mexeu-se desconfortavelmente.
- Isso vai dar ao Marmont quase vinte mil homens a mais do que nós, milorde.
Arthur anuiu.
- Receio que seja mais do que suficiente para fazer a diferença. A questão é, será que Marmont recebeu uma cópia desta mensagem? É possível que ele não saiba que
José está a ir ao seu encontro.
- Imagino que seja possível - comentou Somerset, com um tom de dúvida. - Embora os franceses costumem enviar dois ou três mensageiros que seguem por rotas diferentes,
tendo em conta o risco dos guerrilheiros.
Arthur dobrou a mensagem e bateu com ela na mesa.
- General Alava, por favor, pergunte ao nosso amigo se ele viu o inimigo recentemente. Algum sinal de uma coluna em movimento.
O general traduziu a pergunta e El Cuchillo assentiu, após o que se seguiu uma troca animada de palavras, até que Alava voltou a dirigir-se a Arthur com um brilho
de entusiasmo nos olhos.
- Ele diz que viu uma grande força a atravessar o Douro em Tordesilhas. Não pôde aproximar-se mais para calcular o número por causa dos piquetes de cavalaria do
inimigo.
- Entendo - replicou Arthur. Não confiava nos cálculos de um amador quanto a uma força inimiga e precisava de uma avaliação mais correta daquilo que o espanhol vira.
- Ele diz que era uma força grande. Está a referir-se a uma brigada, a uma divisão, ou a algo maior?
O general interrogou o homem e voltou-se para Arthur.
- Ele diz que era uma multidão. Nunca viu tantos homens.
- Deverá ser o rei José com os reforços, milorde - aventou Somerset.
- Não me parece - retorquiu Arthur, franzindo o cenho. - Isso significaria que estavam logo atrás do mensageiro com a informação da sua chegada. Alava, pergunte-lhe
de que direção vinha essa multidão a atravessar o Douro.
- Vinham da margem norte - traduziu Alava.
Arthur arregalou os olhos por um instante.
- Por Deus, é o Marmont. Está a atravessar o rio e quer flanquear-nos!
Somerset anuiu.
- Deve saber de José. Por que outro motivo iria correr esse risco?
Arthur afastou o alforge e analisou o mapa, antes de se dirigir a uma moldura de janela vazia e de fitar o rio e o fino véu de fumo sobre a cumeada na outra margem.
- Aquele patife do Marmont enganou-me. E agora pretende flanquear-nos e cortar a nossa ligação a Salamanca. Bem, quer saiba da mensagem ou não, isso agora pouco
importa. - Dirigiu-se a Somerset. - Passe palavra a todos os comandantes de divisão: vamos levantar acampamento e regressar de imediato a Salamanca. Ah, e recompense
generosamente este homem pelos serviços prestados. Cem guinéus de ouro.
Alava tossicou e agitou discretamente a mão.
- Pensando melhor - resmungou Arthur. - Dê-lhe antes cinquenta.
- Sim, milorde - anuiu Somerset e fez sinal a El Cuchillo para que o seguisse. Arthur voltou a olhar para o mapa com uma sensação pesada de desilusão. Era o que
receara. O inimigo apercebera-se do êxito britânico e reunira uma força suficiente para o repelir. Arthur tinha noção de que começar a retirar tão pouco tempo depois
de ter saído de Ciudad Rodrigo seria um rude golpe no moral do exército. Também seria útil para os inimigos políticos que tinha em Londres, que aproveitariam esse
revés como prova de que o Exército da Península Ibérica pouco mais conseguia fazer do que marchar por Espanha à custa do dinheiro dos contribuintes.
Arthur inspirou profundamente.
- Raios partam aquele Marmont. Ainda pode vir a destruir os nossos planos.
Capítulo 27
Salamanca, 22 de julho de 1812
- É típico daqueles tratantes americanos desleais. - Somerset falava com um desprezo ácido enquanto lia o despacho que chegara ao exército ao início da manhã. Há
pouco mais de um mês, o presidente Madison declarara guerra à Grã-Bretanha. Como na altura a nação só dispunha de um punhado de soldados no Canadá, a natureza oportunista
da guerra tornava-se óbvia a todos. - Acredite, milorde, este dia vai ficar na memória como infame. Atacam-nos pelas costas quando estamos a lutar para salvar o
mundo de um tirano.
- Sim, sim, malditos sejam todos eles - resmungou Arthur, fazendo o possível por ignorar a fúria do ajudante de campo enquanto pensava nas implicações da notícia.
- Pode ter a certeza de que agora o exército no Canadá terá a primazia sobre os pedidos de reforços. É um dia terrível para todos nós em Espanha, isso é garantido.
Claro que por agora temos outros assuntos que nos prendam a atenção. - Arthur acenou com a cabeça para o vale, na direção da cumeada oposta, onde os soldados de
Marmont trocavam fogo com um punhado de soldados que defendia uma pequena capela junto à estrada para Salamanca.
Durante a maior parte dos últimos cinco dias, os dois exércitos tinham marchado a par, por vezes separados por pouco mais de duzentos metros, como se estivessem
numa corrida. E até fora mesmo uma espécie de corrida, refletiu Arthur. Marmont levara os seus soldados numa tentativa de ultrapassar os aliados e depois barrar-lhes
o caminho para Salamanca, num terreno à escolha do marechal. Arthur, por seu lado, incitara os homens a chegar primeiro a Salamanca, com o objetivo de manter abertas
as comunicações com Ciudad Rodrigo.
Os aliados tinham acabado por vencer a corrida, atravessando na véspera o rio Tormes, alguns quilómetros a leste de Salamanca. Depois de uma noite descansada, Arthur
dera ordens para que o comboio de suprimentos apanhasse a estrada para Ciudad Rodrigo, enquanto o exército cobria a retirada. Escoltado por uma unidade de cavalaria
portuguesa, o comboio ficou obscurecido por uma névoa de poeira. Arthur ordenara aos soldados que formassem na encosta traseira de uma colina com a forma aproximada
de uma ferradura, sobranceira a um vale. Do outro lado encontrava-se uma formação altaneira semelhante que contornava a primeira. Entre as duas estava uma colina
isolada conhecida como Arapil Grande, já que era ligeiramente mais alta do que a elevação em que Arthur se encontrava com o estado-maior, a observar as movimentações
do exército de Marmont. Nessa manhã, uma divisão francesa tomara a colina e agora, ao ver o comandante inglês e o respetivo estado-maior, alguns começaram a acenar.
Arthur não estava com grande disposição para leviandades. Os últimos relatórios dos batedores diziam que o rei José se encontrava a pouco mais de um dia de marcha
a leste de Marmont, com outra coluna de reforços a uma distância semelhante a norte. Aquela seria a última oportunidade de combater a um nível mais ou menos equivalente.
Depois disso, o exército aliado não teria escolha, a não ser retirar para a fortaleza de Ciudad Rodrigo. Até então, o marechal Marmont não dera sinais de pretender
lutar e os homens de Arthur arriscavam-se a passar o dia sem sombra na encosta oposta.
Um movimento chamou a atenção de Somerset, que se virou para uma casa próxima, cercada por um muro baixo. Um dos oficiais subalternos agitava o chapéu. Somerset
levantou o seu em resposta e depois preparou-se para abordar o comandante, um tanto ou quanto perturbado pelo estado de espírito irascível de Arthur.
- Milorde, o tenente Henderson obteve-nos uma refeição ligeira.
- O quê? - Arthur olhou em seu redor. - O que foi?
Somerset apontou para a quinta.
- Mandei o Henderson procurar comida, milorde. Nem o meu general nem os oficiais do estado-maior comeram nada hoje e são quase duas da tarde. Podemos comer e manter
o inimigo vigiado a partir de lá.
Arthur pensou por um instante, ao que assentiu.
- Muito bem, mas é preciso comer depressa. Não quero que o Marmont me apanhe a dormir a sesta só porque os meus oficiais decidiram fazer um piquenique.
O pequeno grupo percorreu a cumeada em direção à fazenda. Atrás do muro tinham sido preparados bancos e duas mesas compridas apoiadas em cavaletes. Uma grande travessa
de frango, alguns cestos de pão e jarros de vinho com copos de barro tinham sido postos pelo agricultor, que sorriu quando acompanhou os convidados até à mesa. Somerset
e os outros desceram das selas, sentaram-se ansiosamente e começaram a comer. Arthur não desmontou, tirando, em vez disso, o telescópio da bolsa da sela para dar
mais uma vista de olhos ao inimigo. Os franceses continuavam a assumir posições na outra cumeada, mas não pareciam ter feito qualquer tentativa de preparação de
um ataque à divisão que percorria a estrada para Salamanca, a única formação de alguma dimensão que o inimigo conseguia ver.
- Deseja comer alguma coisa, milorde?
Arthur baixou o telescópio e viu que Somerset lhe levara um quarto de frango e a ponta de um pão. Não tinha fome, mas sabia que precisava de comer. Além disso, não
queria estragar o apetite aos subordinados com o seu exemplo.
- Só o frango, se não se importar.
Somerset entregou-lho e Arthur obrigou-se a morder a peça fria. Tinha sido frito à pressa e a carne escorregava-lhe na mão enluvada. Somerset regressou à mesa e
serviu-se de um copo de vinho, juntando-se aos outros oficiais que alegremente matavam a fome e saciavam a sede, depois de terem passado tantas horas nas selas,
ao sol. Arthur observou-os por um instante, mordendo mecanicamente o frango, mastigando e engolindo. Depois dirigiu o cavalo ao muro, para ter um melhor panorama
do monte ocupado pelo inimigo, à frente do centro da sua linha.
Ao início não percebeu o que estava a ver. Não fazia sentido. Levantou o telescópio com a mão livre e dirigiu-o à cumeada. A erva queimada pelo sol surgiu-lhe no
campo de visão, após o que acompanhou cuidadosamente a encosta até distinguir uma divisão inimiga a marchar à pressa para oeste. À frente dela seguia um regimento
de cavalaria, com o Sol a refletir-se nos capacetes.
- Mas que raios está Marmont a tramar? - resmungou Arthur para consigo. Percorreu a linha de marcha com o telescópio e viu que continuava até à posição francesa
principal. Ao todo, parecia que três divisões se deslocavam à frente da posição aliada. Tal era a pressa do inimigo que as formações estavam perigosamente alongadas.
Depois Arthur percebeu o que estava a passar pela cabeça do adversário. Marmont só conseguia ver um punhado de homens na Arapil Pequena e a divisão que bloqueava
a estrada para Salamanca. Confundira a grande nuvem de poeira que era levantada pelo comboio de suprimentos com o exército aliado em retirada total, e agora esperava
flanquear, bloquear e destruir o que julgava ser a retaguarda de Arthur.
Arthur sentiu um jorro gelado de excitação a percorrer-lhe as veias quando se apercebeu de que a batalha em condições vantajosas por que esperava estava à sua espera,
mas só se agisse rapidamente. Largou o frango e dirigiu-se aos oficiais do estado-maior.
- Montem, cavalheiros! Imediatamente!
O tom férreo da ordem teve o efeito desejado e todos saltaram dos bancos, abandonando a comida e o vinho. Ainda os homens estavam a içar-se para as selas e já Arthur
distribuía as ordens, de forma tão calma quanto possível para garantir que não havia erros.
- Os franceses estão em movimento. - Apontou para a cumeada distante. - O Marmont pretende contornar a nossa posição. O exército que se prepare para atacar o mais
depressa possível. Cavalheiros, sigam até cada divisão e ordenem que se preparem. Somerset!
- Sir?
- Fique aqui e prepare-se para me apresentar um relatório assim que eu regressar.
- Onde vai, milorde? - perguntou Somerset, ansiosamente.
- Ora, vou completar a armadilha, é claro! - Arthur exibiu um sorriso rasgado e depois galopou pela cumeada, dirigindo-se ao extremo direito da linha aliada. A Terceira
Divisão, comandada agora pelo irmão mais novo de Kitty, Edward Pakenham, recebera ordens para manter o flanco e encontrava-se na posição ideal para aquilo que Arthur
tinha em mente. Quando o carreiro que se dirigia à estrada para Salamanca começou a virar para a direita e encosta oposta abaixo, Arthur olhou para a esquerda para
confirmar que os franceses continuavam a seguir para sul. Ficou satisfeito com o brilho do Sol refletido nos equipamentos polidos, criando um clarão tremeluzente.
Seguiu o seu caminho, descendo a encosta em ângulo até chegar a um vale e à planície poeirenta atrás das colinas. À frente dele estava uma coluna de casacas-vermelhas
e um regimento de cavaleiros portugueses, que se dirigiam para sul ao longo da estrada de Salamanca, levantando uma nuvem de pó enquanto assumiam as posições para
cobrir o flanco. Viu os estandartes dos batalhões da divisão a marchar em grupo atrás de um pequeno agrupamento de cavaleiros. À frente estava a figura alta e elegante
do seu general. Arthur fez avançar o cavalo e aproximou-se rapidamente da coluna, os cascos a ressoar no solo duro e seco. Os rostos viraram-se à sua chegada e ouviu
uma voz a gritar: - É o nosso Arty! - Alguns homens soltaram um viva, mas estavam demasiado cansados e com sede para mais do que isso. Abrandou o cavalo quando alcançou
os oficiais da divisão e parou atrás do cunhado.
- Edward! - chamou, e o irmão de Kitty virou-se com uma expressão inquiridora no rosto, a qual se transformou num sorriso quando viu Arthur. - Edward, quero que
continue a avançar com a sua divisão. Vai encontrar outro monte a seguir a este. Ultrapasse-o e depois empurre os franceses que vai ter pela frente. Ataque com toda
a força e continue a forçar com tudo o que puder, entendido?
- Perfeitamente, milorde.
- Ótimo. Assim sendo, antes do final do dia vamos apanhar o marechal Marmont numa armadilha da autoria dele. Boa sorte!
Arthur virou-se e voltou a subir a encosta, até à cumeada. A Terceira Divisão tinha de avançar mais três quilómetros antes de chegar aos montes descritos por Arthur.
A maior parte do percurso estaria oculto dos franceses pela Arapil Pequena, pelo que o ataque seria uma surpresa para o inimigo. Se Pakenham atacasse rapidamente,
iria cair sobre a vanguarda francesa e começaria a empurrá-los.
Assim que chegou à cumeada, Arthur dirigiu-se às duas divisões à espera na outra encosta e ordenou que avançassem contra o flanco do inimigo estendido à frente delas.
Com Pakenham a pressionar Marmont pela direita, o avanço francês seria detido e seguir-se-ia o caos, alvos fáceis para as Quarta e Quinta Divisões quando se juntassem
ao assalto. Se tudo corresse bem, a linha inimiga seria destroçada. Bastava que o flanco esquerdo da linha aliada avançasse e terminasse o trabalho.
Quando regressou à quinta, o estrondo dos canhões ecoava pelo flanco esquerdo do campo de batalha, onde as artilharias britânica e francesa travavam um duelo sobre
o vale que as separava. Não era uma preocupação imediata para Arthur. Desde que as peças francesas concentrassem o fogo naquela direção, não poderiam intervir no
ponto decisivo.
A Quarta e a Quinta Divisões já estavam a avançar, marchando sobre a cumeada e encosta frontal abaixo, em direção ao flanco da linha francesa alongada. Cada divisão
formou uma vasta linha com dois homens de fundo. Parecia uma formação terrivelmente frágil, mas garantiria o maior poder de fogo que poderia ser empregue contra
os franceses quando os dois lados iniciassem a luta.
Um vago estrépito de clarins levou Arthur e o estado-maior a olhar para a direita, onde viram os cavaleiros portugueses associados à divisão de Pakenham a carregar
em direção ao flanco da primeira divisão francesa. Além do pó levantado pela cavalaria, Arthur viu a infantaria da Terceira Divisão a correr em frente para formar
uma linha ao longo do avanço francês.
O inimigo reagiu com prontidão e milhares de soldados de Marmont correram em frente, com os tambores a rufar, começando a disparar à vontade encosta abaixo contra
os casacas-vermelhas silenciosos. Quando os dragões começaram a retirar, a infantaria avançou encosta acima e, chegando à crista, disparou a primeira salva contra
as alas da primeira divisão francesa. Seguiu-se uma breve troca de tiros, com os franceses a reagirem com uma mosquetaria sem disciplina, enquanto os homens de Pakenham
disparavam em salvas, descarregando mais de um milhar de mosquetes de cada vez. Arthur tinha bem noção do efeito moralizador de um golpe de tamanha devastação. As
primeiras alas de ambos os lados foram obscurecidas pelo fumo e pelo pó, e depois Arthur viu os primeiros franceses a fugir, correndo pela cumeada para leste. Momentos
depois, viu os casacas-vermelhas a surgirem do fumo, a carregar e a destroçar a primeira divisão francesa.
O general Alava bateu as palmas, maravilhado.
- Belo trabalho! Ah, o Marmont já perdeu! Sei que sim.
Arthur manteve-se concentrado na ação enquanto as suas forças cercavam a linha francesa. A segunda divisão inimiga começara a descer da crista, para evitar a confusão
que seria provocada pelos camaradas que fugiam na sua direção. Quando chegaram ao vale, fizeram alto e começaram a alterar a formação.
- Mas que raios? - Somerset endireitou-se na sela e semicerrou os olhos, observando o que se passava com uma descrença cada vez maior. - Estão a formar quadrados.
Uma loucura...
Arthur sentiu uma breve pontada de piedade pelos homens da divisão francesa, enquanto as linhas compridas dos casacas-vermelhas se aproximavam. O truque para vencer
uma batalha era empregar a formação correta para contrariar as movimentações do inimigo. A infantaria disposta em quadrados poderia ser invulnerável à cavalaria,
mas representava um alvo fácil para a artilharia e para os mosquetes. Depois de ter visto os dragões a devastar o flanco da divisão à frente dele, o general francês
decidira jogar pelo seguro, e agora essa cautela estava prestes a ser castigada.
Os soldados da Quarta e da Quinta Divisões aproximaram-se até uma distância eficaz para os mosquetes e fizeram alto. À frente deles, os quadrados franceses cerrados
mantiveram-se firmes e Arthur ficou impressionado com a autodisciplina: não fora disparado um único tiro. Momentos depois, quando os casacas-vermelhas baixaram os
mosquetes para apontar, os lados de fora dos quadrados franceses cuspiram chamas e fumo e, após um breve atraso, o estampido da salva chegou a Arthur, no cimo da
encosta. Dezenas de homens tombaram ao longo da linha britânica, mas as baixas foram muito mais reduzidas do que teriam sido, caso os britânicos estivessem com uma
formação mais cerrada, como era o caso dos franceses.
Quando os britânicos ripostaram, era difícil falhar, e centenas de soldados inimigos foram abatidos com a primeira salva. As salvas seguintes desfizeram as alas
mais próximas dos quadrados franceses, e quando o fumo e a poeira envolveram as formações fustigadas, os casacas-vermelhas carregaram. A luta foi breve, e a infantaria
francesa bastante abalada viu de repente as figuras esbatidas a avançarem pela neblina, surgindo de repente com um brado ensurdecedor, os olhos arregalados e alucinados,
de baionetas a cintilar enquanto abriam caminho por entre os quadrados franceses, trespassando e derrubando todos quantos lhes apareciam no caminho. Tendo já sofrido
baixas terríveis com o fogo dos mosquetes e agora confrontados com a selvajaria de uma carga com baionetas, o ânimo francês cedeu e os quadrados desfizeram-se, com
os homens a dar meia-volta e a fugir encosta acima em direção à cumeada.
Contudo, o sofrimento ainda mal começara. Pelas brechas entre as Terceira e Quinta Divisões surgiu a cavalaria pesada do general Le Marchant. Um milhar de sabres
cintilaram à luz quente do Sol, com os cavaleiros a carregar a toda a brida entre os franceses em fuga. Era a oportunidade ideal por que esperava cada elemento da
cavalaria e cumpriram o seu dever com golpes e estocadas ferozes, abatendo centenas de inimigos na sua fuga pela encosta.
- Um trabalho glorioso! - exclamou o general Alava. - Simplesmente glorioso.
- Por enquanto - retorquiu Arthur num tom sereno. - Mas a menos que sejam detidos, os homens de Le Marchant ficarão exauridos.
A cavalaria seguiu com a perseguição num remoinho de pó, desfazendo a segunda divisão francesa, até que se depararam com a terceira formação inimiga. Desta vez,
os quadrados franceses mostraram a sua utilidade e a cavalaria britânica foi detida pelas salvas conjuntas da infantaria inimiga. Frustrado, Arthur cerrou os dentes
perante mais aquele exemplo da tendência da cavalaria para perder a cabeça. Quando os dragões começaram a recuar, Arthur perscrutou rapidamente o campo de batalha.
Duas divisões francesas já tinham sido desbaratadas e as três divisões britânicas aproximavam-se pela frente e pelo flanco do inimigo. Arthur franziu o cenho ao
observar a Quarta Divisão a avançar, com a ala esquerda a começar a passar a encosta da Arapil Grande. No cimo da colina, Arthur via uma unidade francesa.
- O que está o Cole a fazer? - resmungou Arthur. - Porque é que ele não cobre o flanco? - Dirigiu-se apressadamente a Somerset. - Envie uma mensagem ao general Cole
e alerte-o para ter cuidado com o flanco esquerdo. E diga ao Pack para enviar uma das brigadas dele para tomar a colina.
- Sim, sir.
Quando Somerset se afastou, Arthur observou com ansiedade a Quarta Divisão a parar e começar a trocar fogo com a terceira formação francesa. Cole estava tão concentrado
no alvo que tinha à frente que não reparara no perigo à esquerda. Arthur via que o inimigo se apercebera da oportunidade de se vingar dos casacas-vermelhas da mesma
forma como tinham sofrido. No entanto, antes de poderem atacar, os portugueses do general Pack avançaram e começaram a subir a encosta, em direção à crista do Aparil
Grande. Era uma tentativa desesperada de ganhar tempo para os camaradas britânicos e estavam em inferioridade numérica contra um inimigo em terreno mais elevado.
O ataque parou quando os soldados avançados franceses começaram a disparar encosta abaixo. Com uma angústia crescente, Arthur observou os homens de Pack a parar
e baixar-se, e depois começarem a recuar.
- Chegou a altura das reservas - decidiu. Deu meia-volta ao cavalo e galopou pela crista até onde esperavam os homens da Sexta Divisão, na encosta contrária, ocultos
da batalha. O general Clinton estava no seu cavalo, à frente dos homens, e inclinou o chapéu quando Arthur chegou junto dele e parou ofegante.
- Clinton, quero que os seus rapazes avancem imediatamente. Têm de tomar a colina à vossa frente. O inimigo tem de ser expulso de lá e empurrado pelo vale.
- Sim, sir. - Clinton aquiesceu. - Pode contar connosco. Os rapazes já perderam bastante ação.
- Nesse caso, fico satisfeito por poder dar-lhes que fazer. - Arthur sorriu. Depois endureceu a expressão. - Lembre-se, expulse o inimigo da colina.
Quando regressou ao posto de comando, Arthur ficou chocado ao ver novas formações francesas a descer da Arapil Grande, diretamente para o flanco esquerdo da Quarta
Divisão. O general Cole percebera finalmente o risco e começara a movimentar o batalhão no extremo da linha para enfrentar o perigo. Contudo, Arthur apercebeu-se
de imediato de que um batalhão não seria suficiente. Os seus receios concretizaram-se no espaço de minutos, quando a linha francesa fez alto e abriu fogo, derrubando
homens aos magotes na estreita linha vermelha que a enfrentava.
Arthur sentiu um nó no estômago enquanto olhava. O batalhão não seria capaz de resistir muito tempo e, quando cedesse, os franceses poderiam carregar sobre o flanco
de Cole e começar a rodear a linha aliada. Outra salva francesa fustigou o batalhão, abatendo dezenas de casacas-vermelhas. Parecia agora que havia mais soldados
no chão do que de pé, recarregando constantemente e disparando contra a formação francesa em marcha.
Arthur notou o general Alava a observá-lo, tentando avaliar-lhe a reação, e decidiu-se a não revelar ao espanhol quaisquer sinais da ansiedade que o corroía. Olhou
para a esquerda e viu que os homens de Clinton tinham chegado à crista e começavam a descer a encosta. Contudo, não chegariam a tempo à colina para evitar o colapso
da divisão de Cole.
- Quem é aquele? - indagou Somerset, ao que levantou rapidamente o telescópio para observar uma formação que se aproximava da colina. Estivera oculta de Arthur e
do estado-maior por uma elevação da Arapil Pequena. - É uma brigada portuguesa! Devem pertencer às reservas, sir.
Arthur já os via e avistou um general de farda com pesados cordões dourados a liderá-los na frente. Sorriu.
- Assim é que é, Beresford.
A brigada portuguesa marchou rapidamente pelo terreno e formou uma linha de fogo no flanco da divisão francesa que estava prestes a esmagar o general Cole e os seus
homens. Com um estampido abafado, a brigada disparou contra o flanco francês, devastando-o. O avanço francês estacou abruptamente e os soldados começaram a virar-se
para a direita da linha, para enfrentar a nova ameaça.
A divisão de Cole fora salva e Arthur suspirou de alívio, enquanto trocava um olhar rápido com o general Alava.
- Foi por pouco.
- A sério? - Alava riu-se. - Nunca o teria imaginado pela sua expressão, milorde.
Arthur voltou a observar a batalha e viu que Cole retirara uma das suas brigadas da linha francesa que se desmoronava à sua frente e a enviara para reforçar o flanco,
estabilizando a posição. Encurralados no ângulo entre duas brigadas aliadas, os franceses começaram a recuar para a proteção do cimo do monte. Os homens de Clinton
deram início à subida da colina, com a linha vermelha a hesitar ligeiramente enquanto os soldados ultrapassavam os penedos e a vegetação rasteira que cobria a encosta.
Acima deles, o inimigo voltou a formar e Arthur reparou que as alas traseiras teriam uma linha de fogo livre sobre as cabeças dos que se encontravam à frente.
- O general Clinton vai ter dificuldade em avançar - comentou Alava enquanto observava os casacas-vermelhas a aproximar-se lentamente dos franceses.
- Veremos - retorquiu Arthur em voz baixa, enquanto olhava para o relógio. Eram quase seis horas. Tinham passado menos de três horas desde o primeiro tiro e o Sol
estava baixo no horizonte a ocidente, banhando o pó e o fumo do campo de batalha com um brilho avermelhando. A sul, Arthur via milhares de franceses a fugir sobre
a crista da cumeada, perseguidos pela cavalaria. A infantaria britânica deixara a perseguição e voltava a formar as alas entre os cadáveres dos inimigos que enchiam
o terreno inclinado.
O troar súbito de disparos na Arapil Grande atraiu a atenção para as encostas, com os franceses a abrir fogo sobre a divisão de Clinton. Desta vez, o poder de fogo
francês estava disposto de tal maneira que permitia que não fosse apenas a primeira ala a ter a visão do inimigo, e Arthur viu a brigada britânica a estacar quando
as primeiras filas foram dizimadas pelas bolas dos mosquetes gauleses. Os homens alinharam-se para a direita, baixaram as baionetas e continuaram em frente, percorrendo
os derradeiros cem passos até ao inimigo. Outra salva francesa foi disparada, abatendo mais soldados, e então Clinton avançou a espada e, com um brado rouco, os
homens carregaram pelo fumo e atiraram-se aos franceses. Seguiu-se uma breve luta, até que os franceses recuaram e retiraram pelo outro lado da colina, perseguidos
de perto por Clinton e pelos seus homens, decididos a expulsar os franceses do campo de batalha.
Arthur acenou a cabeça com satisfação. Só restava uma secção do exército francês, que ainda guardava a estrada para Salamanca, onde tinham tido lugar as primeiras
escaramuças do dia. Deixando Somerset com ordens para organizar a perseguição ao resto do exército francês até à meia-noite, Arthur e o general Alava cruzaram o
monte até à Divisão Ligeira, que não se mexera desde o início da batalha. O general Alten estava adiantado em relação à linha da frente, a observar os seus soldados
avançados a trocar tiros com o inimigo, quando Arthur e Alava chegaram junto a ele. Bolas de mosquete cruzavam o ar com um zumbido abafado antes de baterem no chão.
- Como vai a batalha? - perguntou Alten.
- Está ganha - respondeu Arthur. - Só falta que a sua divisão persiga os franceses. Chegue à retaguarda e enfrente-os.
- Será um prazer, sir.
Arthur levou a mão à aba do chapéu.
- Tem as suas ordens, general. Não os largue, nem lhes dê descanso. Derrotámos Marmont. Agora temos de garantir que o exército dele é destruído.
Arthur deixou-se ficar a assistir ao início do avanço da Divisão Ligeira e assim que viu o inimigo começar a recuar, deixando uma fila de infantaria ligeira a cobrir
a retirada, deu meia-volta e regressou ao quartel-general com uma sensação exultante. Nessa manhã estivera resignado a um regresso cansativo a Ciudad Rodrigo. Agora,
com um único golpe, e nem sequer cinco horas depois, o exército de Marmont estava espalhado e pouco restava entre o exército aliado e a capital espanhola de Madrid.
Capítulo 28
Napoleão
Kovno, 24 de junho de 1812
Ao pôr-do-sol do primeiro dia da invasão, Napoleão encontrava-se sentado na carruagem de campanha, a analisar os últimos relatórios. O dia fora sufocante e o imperador
estava apenas de camisa, debruçado sobre a pequena secretária. As portas da carruagem estavam abertas e num arco de ferro no teto do veículo estava pendurado um
candeeiro. Berthier estava a uma outra mesa, mais ao fundo da carruagem, ocupado a conferir os relatórios, para que pudesse passar apenas informações pertinentes
ao imperador. O candeeiro atraíra uma nuvem de mosquitos, que Napoleão ia enxotando enquanto lia. No exterior da carruagem, uma companhia da Velha Guarda formou
um cordão para manter afastadas as longas fileiras de soldados que marchavam na estrada para Vilna. Um esquadrão de caçadores, destacado para o transporte de mensagens,
aguardava em silêncio junto à linha de cavalos, à espera de serem chamados ao serviço. A carruagem detivera-se temporariamente, enquanto o general encarregue da
campanha do imperador providenciava um quartel-general provisório nas instalações da corporação de mercadores de Kovno.
Napoleão acabou de ler a primeira remessa de missivas selecionadas e chegou-as para o lado, após o que se endireitou no banco e esfregou os olhos. As primeiras tropas
tinham atravessado o rio Neman ao início da madrugada, sendo seguidas pelos engenheiros, que deram imediatamente início à construção das três pontes sobre as quais
passaria o grosso do Grande Exército, um quarto de milhão de soldados às ordens diretas do imperador. A norte avançava outro exército de oitenta mil bávaros e italianos,
sob o comando do enteado de Napoleão, o príncipe Eugénio, para cobrir o flanco esquerdo da força principal. Pela direita, a caminho da zona sul dos lameiros de Pripiat,
seguia outro exército de setenta mil soldados, recrutados numa série de Estados alemães, a par de um contingente de polacos, comandados pelo príncipe Jerónimo. Tinham
como objetivo empurrar o general Bagration para leste e impedir que se juntasse ao exército russo. A ocidente do Neman encontravam-se as derradeiras duas formações
do exército invasor. O marechal Victor tinha a seu cargo as reservas, cento e cinquenta mil homens, prontos a avançar para substituir as baixas do exército de Napoleão.
Atrás de Victor marchava o marechal Augereau, com sessenta mil tropas, encarregues de guardar os depósitos de fornecimentos que seriam criados na esteira do exército
e de manter abertas as vias de comunicação com Varsóvia e daí com Paris. Mesmo estando Napoleão à frente do maior exército jamais visto na Europa, não deixava de
governar um império, tendo de garantir o fluxo contínuo de mensagens com a capital. À frente de todo o exército seguia a força de cavalaria do marechal Murat, um
bloco de quase vinte mil homens na vanguarda do exército, à espreita do inimigo e, ao mesmo tempo, a impedir os batedores adversários de observar o avanço dos exércitos
franceses.
Napoleão baixou as mãos e dirigiu-se a Berthier.
- Ainda não há sinais do exército de Bagration?
- Não, sire. - Berthier abanou a cabeça. - Os relatórios ainda não referem nada.
- Mmm. - Napoleão voltou a fechar os olhos e visualizou as colunas francesas que serpenteavam através da fronteira russa. Era estranho que a cavalaria de Murat ainda
não se tivesse deparado com os postos avançados inimigos, a menos que o general Bagration já estivesse a recuar. Nesse caso, seria essencial descobrir o rumo que
estaria a tomar.
- Sire. - Berthier intrometeu-se nos pensamentos do imperador.
- O que foi?
- Chegou uma mensagem nova de Davout. Os batedores montados capturaram alguns retardatários do exército de Bagration. Ao que parece, começaram a encaminhar-se para
norte há duas semanas.
Napoleão pestanejou e endireitou-se.
- Para norte? Passe-me o mapa.
Berthier levou a mão à prateleira de mapas e tirou uma representação de grande escala do ocidente da Rússia. Esticou o mapa sobre uma tábua e fixou-o com molas antes
de o entregar ao imperador. Napoleão olhou para o mapa e depois percorreu-o com o dedo em direção a norte, a partir da última posição conhecida do exército de Bagration.
- Minsk. Está a caminho de Minsk. - Esboçou um sorriso. - Parece que os russos não se deixam enganar com facilidade. Perceberam que nos encaminhamos para o norte
de Pripiat. Muito bem, informe Jerónimo de que o logro acabou. Ele que persiga Bagration e que o afaste do corpo principal do exército russo. Transmita-lhe imediatamente
as ordens.
- Com certeza, sire.
- Ainda mal temos um dia de campanha e as coisas já começam a correr mal - suspirou Napoleão pesadamente. - Se os russos já estão a tentar reunir-se, será mais do
que provável que o exército principal vá recuar para Vilna. Envie uma ordem a Murat. Ele que se dirija a Vilna com duas divisões da cavalaria da reserva. Não quero
que ocupe a cidade. Ele só tem de observar e dar conhecimento se avistar o exército russo. Entendido?
Berthier assentiu e pegou numa folha de papel em branco para escrever as ordens.
- Ótimo, isso já está tratado - resmungou Napoleão. - Agora tenho de dormir um pouco. Acorde-me quando o quartel-general estiver pronto. - Napoleão levantou-se da
secretária, passou com dificuldade ao lado da mesa de Berthier e deitou-se no catre na extremidade da carruagem, após o que puxou a rede para manter os insetos afastados.
Napoleão virou-se de lado, ficando de costas para o exterior, reprimiu novos pensamentos e fechou os olhos. Em breve, o leve ressonar enchia o ambiente. Berthier
limpou a fronte, voltou a pegar na pena, mergulhou-a no tinteiro e continuou a escrever.
A coluna principal do exército francês marchou rapidamente sobre Vilna, onde Napoleão esperava um confronto decisivo. Os despachos intercetados revelaram que o czar
em pessoa se juntara ao corpo principal do exército russo. A notícia deixou Napoleão com a esperança renovada de um fim célere para a campanha. A ambição de capturar
o monarca, a par da derrota do exército, obrigaria, sem dúvida, o inimigo a submeter-se, pelo que Napoleão ordenou às tropas que avançassem tão depressa quanto possível,
mesmo que isso implicasse que os lentos comboios de carruagens de fornecimentos ficassem para trás. Todavia, quando o exército francês chegou a Vilna, os russos
já tinham partido, deixando os depósitos de suprimentos em chamas e a ponte sobre o rio Vilna destruída na sua esteira.
Havia ainda uma hipótese de desferir um golpe inicial contra os russos e Napoleão ordenou que Davout levasse as tropas a intercetar Bagration, enquanto Jerónimo
o perseguia vindo de sul. Depois, no início de julho, enquanto Napoleão aguardava em Vilna por informações quanto à posição dos exércitos russos, Berthier chegou
com uma mensagem de Jerónimo.
- O que tem o meu irmão a dizer? - indagou Napoleão, que estava deitado na banheira do melhor hotel da povoação.
Berthier deu uma vista de olhos ao relatório e depois levantou nervosamente a cabeça.
- Sire, Jerónimo diz que as patrulhas montadas perderam há dois dias o contacto com os russos, no dia três.
Napoleão sentou-se.
- Perderam o contacto? Como podem eles perder o contacto? Onde está Jerónimo?
- O despacho foi enviado de Grodno, sire.
- Grodno? - Napoleão recordou o nome do mapa e franziu o cenho furiosamente. - Mas que raio está o Jerónimo a fazer? Porque é que o exército dele está a avançar
com tanta lentidão? Aquele miúdo tolo vai fazer-nos pagar caro. Berthier, anote o que lhe vou ditar. Diga-lhe que seria impossível liderar pior os homens que tem
às suas ordens. Devia estar a massacrar o Bagration a cada passo que desse. Se assim fosse, talvez conseguisse empurrar os russos para o caminho de Davout. Podíamos
ter esmagado um dos exércitos do czar, mas em vez disso deixou-o fugir. Diga-lhe que ele me privou de tudo quanto esperava conseguir. Perdemos a melhor oportunidade
que já nos surgiu nesta campanha porque não foi capaz de aprender os princípios mais básicos da guerra. Escreveu tudo?
- Sim, sire.
- Envie-lhe imediatamente a mensagem. Com um pouco de sorte, estas palavras vão incitar o palerma. Claro que já é muito tarde para servir de alguma coisa desta vez,
mas esperemos que da próxima ele reaja com mais ânimo.
Não haveria uma próxima vez. O despacho seguinte do quartel-general de Jerónimo foi redigido pelo marechal Davout. A carta do imperador ofendera o irmão mais novo
de tal maneira que este abandonara o exército e regressara ao seu reino da Vestefália, deixando Davout com o comando temporário das tropas. Apesar da fúria, a notícia
foi para Napoleão quase uma bênção, já que a perseguição ao exército principal russo se mantinha.
Julho trouxe consigo vários dias de chuvadas que fustigaram as colunas do Grande Exército no seu percurso para leste, incitadas pelo desejo do comandante de encontrar
o czar e os seus soldados, e obrigá-los a combater. No espaço de horas, os carreiros sulcados transformaram-se em atoleiros que sugavam as botas dos homens e os
cascos dos cavalos, e abrandavam o ritmo dos comboios de artilharia e de carruagens de suprimentos. Conscientes das ordens do imperador de pressionar o inimigo a
qualquer custo, os marechais deixaram uma pequena guarda a escoltar os carros e prosseguiram com o avanço.
Quando as chuvas passaram, o Sol brilhou sobre o Grande Exército. As estradas secaram e a substituir a lama levantaram-se nuvens de poeira que enchiam os pulmões
e faziam lacrimejar os soldados. Mesmo naquela estação, as noites eram frias e os homens amontoavam-se à volta das fogueiras nos acampamentos. Muitos dos soldados
eram inexperientes, ficando rapidamente esgotados com as longas marchas. Quando as rações começaram a escassear, a falta de prática dos veteranos em se prover de
alimentos começou a fazer-se sentir e levou à fome. Antes do final de julho, uma longa sequência de campas prolongava-se à retaguarda do exército, e aqui e além
via-se um corpo nu ocasional: retardatários mortos e despidos pelos bandos de cossacos que, quais chacais, tinham começado a seguir e a atormentar as colunas francesas.
Não eram os homens os únicos a sofrer. Os cavalos estavam também esgotados e quando a forragem foi consumida, viram-se obrigados a comer cada ponto verde que encontravam
ao longo da paisagem russa parcamente habitada. No final de julho, Napoleão ordenou que o exército fizesse alto em Vitebsk, para permitir que os comboios de fornecimentos
o alcançassem. Berthier atualizou os cadernos que registavam a força de cada regimento do exército. Da lista de efetivos estavam ausentes quase cem mil homens: muitos
destes estavam doentes, alguns eram retardatários e o resto morrera durante a marcha.
Após oito dias, o exército prosseguiu com o avanço e os russos continuaram a recuar, queimando plantações e destruindo quintas e aldeias que ficassem no caminho
das colunas francesas. Então, finalmente, em meados de agosto, o inimigo enfrentou-os em Smolensk. Durante dois dias, a infantaria de Ney abriu caminho pelos subúrbios
da cidade, acabando por deparar com a ponte sobre o rio Dnieper destruída. O exército viu-se obrigado a esperar ainda mais um dia até que a ponte fosse reparada.
Nessa altura, os russos já se encontravam outra vez a recuar para Moscovo.
Napoleão deu ordem para que o exército parasse e descansasse durante o avanço dos reforços e dos suprimentos. Enquanto os soldados exaustos vasculhavam a cidade
em busca de alimentos e de saques, Napoleão convocou os marechais ao quartel-general temporário para que se avaliasse a situação. Estava-se no pino do verão russo
e as janelas da mansão sobranceira ao Dnieper estavam escancaradas, para captar a mais pequena brisa que soprasse. Os comandantes do grupo do exército central estavam
tão cansados como o imperador e quando Berthier abriu o mapa da campanha à frente deles, Napoleão apercebeu-se do desespero carregado nos olhos dos homens ao contemplarem
os quatrocentos e cinquenta quilómetros que ainda distavam entre Smolensk e Moscovo.
Um ordenança serviu vinho, refrescado na casa do gelo da mansão, e Napoleão esperou que o soldado se retirasse antes de se dirigir aos oficiais.
- Meus amigos, fomos obrigados a avançar mais profundamente na Rússia do que o antecipado. Parece que o czar está disposto a sacrificar todo o país, em vez de nos
enfrentar em combate. O exército já marcha há dois meses, e a cada dia que passa, perdemos mais homens e cavalos para a doença, a fome e a exaustão. A força de ataque
principal ficou reduzida a pouco mais de cento e cinquenta mil homens. Hoje, os nossos batedores confirmaram que o general Bagration conseguiu juntar-se ao grosso
do exército russo. Murat estima que o czar disponha agora de cento e vinte e cinco mil soldados entre nós e Moscovo.
Napoleão olhou à volta da mesa, para Berthier, Ney, Murat e Davout. Em tempos, quando era mais jovem e não se encontrava agrilhoado pelos deveres de um imperador,
Napoleão não hesitaria em prosseguir com o avanço e aqueles homens tê-lo-iam seguido sem pensar duas vezes. Agora? Já não os tinha como tão garantidos.
Recostou-se, ergueu o copo e deu um gole rápido antes de continuar.
- Temos algumas opções. Neste momento, o exército está a chegar ao limite da resistência. Se queremos prosseguir com o avanço até Moscovo, onde tenho a certeza de
que o czar nos irá enfrentar, é essencial que os homens estejam descansados. Ao mesmo tempo, isso vai garantir a oportunidade de sermos alcançados pelos comboios
de fornecimentos. Vamos precisar deles para nos suprirem durante a marcha final até Moscovo, já que é certo que os russos vão destruir quaisquer reservas de alimentos
e de forragem que fiquem no nosso caminho. - Fez uma breve pausa. - Não há dúvida de que, se prosseguirmos com o avanço, nos depararemos com uma série de riscos.
O que me leva a uma segunda possibilidade de ação. Paramos agora e passamos o inverno em Smolensk. Assim ficaremos com tempo para reorganizar os suprimentos e para
descansar os homens, para que possamos retomar a campanha na primavera, a uma distância acessível para o ataque a Moscovo. Claro que não imagino que seja fácil manter
um exército com a dimensão do nosso ao longo do inverno. A última opção é a mais difícil. Retiramos sobre o Neman, passamos o inverno na Polónia e voltamos a avaliar
a situação estratégica na primavera. - Napoleão cruzou as mãos e olhou para os outros. - E então?
- A retirada está fora de questão, sire - retorquiu Ney de imediato. - Os nossos inimigos diriam que tínhamos sido derrotados. Eles já ostentam os nossos reveses
em Espanha como prova de que a França se está a desmoronar. Sugiro que continuemos a avançar. Só precisamos de uma grande vitória. Depois podemos dar-nos ao luxo
de descansar e alimentar os nossos soldados.
Murat concordou.
- O Ney tem razão. Temos de resolver este assunto assim que possível. Mesmo que não retirássemos e permanecêssemos em Smolensk, os russos iriam apresentar isso como
uma derrota. Continuemos com o avanço, seja qual for o custo, desde que persigamos o czar e esmaguemos o seu exército.
Napoleão aquiesceu enquanto ponderava os conselhos e depois dirigiu-se a Davout.
- E quanto a si?
Davout passou com a mão pelo cabelo que rareava.
- Tal como pode ver no mapa, encontramo-nos ainda a mais de quatrocentos quilómetros de Moscovo. O desgaste dos nossos homens vai aumentar conforme avançamos. Tendo
em conta o ritmo atual das nossas perdas, será uma sorte se chegarmos a Moscovo com um terço dos soldados com que partimos.
- Se tomarmos Moscovo, não precisamos de mais de um terço - interveio Ney. - E um terço será mais do que suficiente para derrotar o exército russo, caso eles tenham
coragem de nos enfrentar.
Davout franziu brevemente o cenho.
- Porque haveriam eles de lutar? Até agora ainda não o fizeram. E se nos deixarem tomar Moscovo e se recusarem a negociar a paz? Podem continuar a atrair-nos, a
fazer render o tempo enquanto as nossas forças se esvaem, e depois atacar, quando estiverem em vantagem. E ainda temos de pensar em mais uma coisa, sire. Se sofrermos
um revés e formos obrigados a retirar, podemos vir a enfrentar um desastre, tendo em conta as distâncias envolvidas. Acredito que a nossa prioridade deve ser manter
o exército na melhor forma possível. Talvez seja prudente passar aqui o inverno.
- Agradeço-lhe a sinceridade, Davout. - Napoleão levou o dedo à gola para limpar o suor do pescoço. - Deseja acrescentar mais alguma coisa, Berthier?
O chefe do estado-maior franziu os lábios.
- Receio que o Davout tenha razão, sire. Cada passo que damos em direção a Moscovo aumenta o risco de uma catástrofe, especialmente com a chegada do inverno. Falei
com alguns dos nossos guias locais. O inverno russo pode matar-nos a todos.
Napoleão ponderou a situação em silêncio durante alguns instantes. A par das dificuldades imediatas, tinha outras preocupações. Estava longe de Paris e as más notícias
de Espanha deixavam-no bastante apreensivo. Pior ainda, na ausência do imperador, os seus inimigos em França tornavam-se cada vez mais destemidos. Quanto mais depressa
regressasse à capital, melhor. Tamborilou na mesa com os dedos da mão direita enquanto sopesava cada fator. Por fim tornou-se claro que teria mais a perder se protelasse
as ações do que se as abraçasse. Bebeu mais um gole do vinho refrescado e tomou uma decisão.
- Não acredito que o czar nos entregue Moscovo de mão beijada se prosseguirmos com o avanço. Estou convencido de que ele nos vai enfrentar algures na estrada de
Smolensk. Caso se recuse a lutar, nesse caso o povo vai matá-lo e encontrar um novo czar. É por isso que vai combater. Aposto o exército nisso. Ele vai combater,
nós vamos derrotá-lo e tomar Moscovo no espaço de um mês. Depois, o czar vai negociar a paz. O que mais poderá fazer?
Capítulo 29
Shevardino, 6 de setembro de 1812
- Tem muitas parecenças, não é verdade? - Napoleão observou o retrato do filho, depois puxou do lenço de bolso e limpou o nariz, resmungando: - Maldito frio.
À sua volta, o pessoal do quartel-general e os marechais acenaram a sua concordância, enquanto olhavam para a pintura que tinham sido chamados a ver. Chegara numa
carruagem escoltada, a par dos mais recentes despachos e cartas do governo. Napoleão guardou o lenço, fungou e aproximou-se do quadro, na sua estreita moldura dourada.
Fitou o rosto da criança e, por um segundo, os olhos pareceram ganhar vida e encará-lo ternamente. Napoleão sentiu uma pontada de melancolia, mesmo sabendo que não
passava de um truque da técnica artística. Chegou-se à frente e afagou a face com o dedo. A superfície áspera de tinta e tela que recebeu o toque quebrou a ilusão
e o imperador recuou.
- Levem-no para os meus aposentos. Pendurem-no junto à cama.
Os dois criados que seguravam a moldura curvaram a cabeça e transportaram cuidadosamente a pintura para fora da sala. Quando saíram, Napoleão virou-se e encarou
os oficiais.
- Recebi más notícias de Espanha. Há seis semanas, o marechal Marmont foi derrotado por Wellington nos arredores de Salamanca. É possível que Madrid já tenha caído.
A nossa posição em Espanha é arriscada e isso, cavalheiros, significa que teremos de concluir o mais depressa possível os nossos assuntos na Rússia.
Dirigiu-se às grandes portas abertas que davam acesso a uma varanda larga. A vista da casa de verão no extremo da aldeia abarcava o panorama oriental. A menos de
dois quilómetros erguiam-se os montes onde o exército russo bloqueava o caminho para Moscovo.
- Venham aqui fora, por favor. - Os oficiais saíram para o sol vespertino. O céu estava imaculado e a extensão cerúlea transmitia uma sensação de serenidade que
destoava dos preparativos de batalha que decorriam na terra.
- Eu disse-lhes que o czar se decidiria a lutar. - Napoleão ostentou um sorriso sinistro ao perscrutar as linhas russas à sua frente. Era uma posição forte e o inimigo
aproveitara bem o tempo para erguer fortificações formidáveis que lhe protegiam o centro das formações. O flanco direito aproveitava a proteção do rio Kalatsha e
da vila de Borodino, na outra margem, e o esquerdo era defendido por uma mata densa e pela povoação de Utitsa, mais além. Blocos sólidos de infantaria e cavalaria
mostravam-se claramente nas encostas sobranceiras a Shevardino e uma estreita linha de escaramuceiros marcava a erva acastanhada no sopé da colina, a pouca distância
dos seus homólogos franceses. Durante toda a manhã, um grupo de padres fizera desfilar artefactos religiosos ao longo das fileiras do exército russo, e as formações
longínquas tremeluziam ao sol quando se ajoelhavam e curvavam a cabeça à passagem dos sacerdotes.
Mesmo com os últimos reforços, o exército francês apenas dispunha de uma força de centro e trinta mil homens. Estimava-se que os russos tivessem quase o mesmo número
de soldados em campo, mas, não obstante, Napoleão continuava a acreditar em mais uma vitória para o Grande Exército. O czar já entregara a iniciativa a Napoleão,
ao optar por defender o terreno, em vez de prosseguir com a retirada.
Napoleão levantou o braço e apontou para o centro da linha russa.
- É ali que vamos atacar amanhã, pela alvorada. Vamos reunir as nossas peças à frente das fortificações e desfazê-las antes de a infantaria avançar. As tropas do
príncipe Eugénio vão atacar o flanco esquerdo, enquanto Poniatowski trata do direito. - Virou-se para encarar os oficiais. - É esse o plano de batalha.
Os subordinados entreolharam-se, surpreendidos, e Napoleão não pôde deixar de franzir o cenho. O frio intenso dos últimos dias deixara-o ainda mais cansado do que
o habitual. A cabeça latejava-lhe. Agarrou as mãos atrás das costas e bateu impacientemente o pé.
- Há comentários?
Eugénio anuiu.
- Um ataque frontal àquelas fortificações vai ser uma tarefa sangrenta, sire.
- É claro. Mas assim que estivermos na posse dos redutos, podemos esmagar o centro russo e destruir cada flanco à vez.
- Sire. - Davout tomou a palavra. - Um ataque frontal é excessivamente arriscado. Se perdermos demasiados homens, não teremos hipótese de penetrar nas linhas inimigas.
E mesmo que o conseguíssemos, corremos o risco de estar muito debilitados para levar a cabo uma perseguição eficaz.
- Estou a ver. Nesse caso, o que sugere, Davout? Que esperemos por um ataque do czar? Até agora, ele pouco espírito ofensivo nos mostrou.
Davout abanou a cabeça.
- Não, sire. É claro que temos de atacar. Mas o terreno está aberto a sul. Não há nada que nos impeça de rodear os russos para lá de Utitsa. Murat pode levar a cavalaria
a contornar o flanco e atacar a retaguarda das linhas russas enquanto decorre o assalto principal.
- Se não estivéssemos a falar do czar, concordaria consigo. Temo-lo perante nós. Ele está disposto a combater e não quero dar-lhe qualquer desculpa para recuar e
prosseguir com a retirada. Temos de fazer o possível por encorajá-lo a permanecer à nossa frente. Fui claro?
Davout abanou a cabeça.
- Sire, a nossa cavalaria é a melhor da Europa. Porque trouxemos tantos cavaleiros connosco, se não estamos preparados para os usar? Esta oportunidade de encurralar
o czar é uma dádiva dos céus.
- Ele tem razão, sire - asseverou Murat. - Permita que a minha cavalaria resolva o assunto.
Napoleão levou a mão à testa. Decidira-se num plano e sopesara o risco de sofrer baixas pesadas contra o receio de que o czar voltasse a escapar-se. Era demasiado
tarde para mudar de ideias. Sentia a cabeça a latejar e, apesar do calor do dia, tinha frio e o corpo começou a tremer-lhe. Quando Murat fez menção de voltar a falar,
Napoleão levantou a mão para o silenciar.
- Basta! O Grande Exército tem as suas ordens e cada um de vós tem as suas. Só falta disporem os vossos homens para o que os espera amanhã. Estão dispensados. Saiam.
O Sol nascente estava ainda oculto pelas colinas onde se espalhavam batalhão atrás de batalhão de tropas russas. As silhuetas e os estandartes dos homens nas cumeadas
recortavam-se negros contra o suave tom alaranjado do céu oriental. Os redutos agigantavam-se, ominosos, nas encostas ensombradas das colinas. O maior ficava à direita
da linha que dominava a ponte fluvial de acesso a Borodino. À frente estava uma vala, depois algumas elevadas barreiras de proteção e dezenas de canhoeiras, através
das quais as bocas-de-fogo eram apontadas às linhas francesas. As restantes fortificações assumiam a forma de dois triângulos enormes, com as pontas dirigidas ao
inimigo. Napoleão sabia que quando a infantaria avançasse, o fogo cruzado a partir dessas formações seria devastador.
Não dormira bem. O resfriado dificultara-lhe a respiração e acordara-o durante a noite. Esforçava-se agora por pensar com clareza enquanto observava os preparativos
finais para a batalha. As tropas de Ney e de Davout estavam prontas a avançar. À frente delas perfilavam-se mais de quatro centenas de canhões, agrupados em baterias
para bombardear as fortificações russas. As peças tinham sido protegidas por defesas erguidas à pressa, mas, na véspera, o comandante da artilharia de Napoleão,
o general Lariboisière, informara-o de que se encontravam fora do alcance eficaz das defesas russas. As armas tiveram por isso de ser arrastadas para a frente durante
a madrugada, estando agora em terreno aberto. A reserva, na forma da Guarda Imperial, estava alinhada no exterior de Shevardino.
O ar estava parado e alguns gaivões rasavam a erva pisada, devorando os primeiros insetos do dia. A maior parte dos soldados de ambos os lados aguardavam num silêncio
sombrio. Uns poucos tinham encontrado bebidas brancas e tentavam incentivar brindes, ou dar início a canções, mas os sons rapidamente esmoreciam. Napoleão ordenara
que as bandas francesas avançassem até à primeira ala e ficassem prontas a tocar melodias animadas assim que o ataque começasse.
Berthier olhou para o relógio e tossiu.
- Está na hora, sire.
- Dê a ordem.
Berthier dirigiu-se ao tenente de artilharia que esperava e acenou com a cabeça. O artilheiro levou a mão em forma de concha à boca e gritou para a peça sinalizadora
do quartel-general:
- Fogo!
O sargento encarregue da arma chegou-se à frente para levar o bota-fogo à mecha. As faúlhas saltaram por momentos e depois o cano estremeceu quando uma comprida
língua de fogo saltou da boca, seguida de imediato por uma voluta de fumo de pólvora e um ribombar como o de um trovão. Houve um breve atraso e depois a primeira
bateria rugiu os seus disparos. As outras abriram fogo momentos depois e em breve o som tornava-se contínuo, chegando ao campanário de Shevardino para onde Napoleão
e Berthier tinham subido, para observar o campo de batalha.
As bolas de ferro trespassaram as fortificações nas encostas da posição russa, fazendo saltar a terra solta. Alguns tiros acertaram nas canhoeiras, derrubando as
faxinas de verga que protegiam as equipas de artilheiros. Os canhões russos responderam ao fogo e rapidamente começaram a debelar os artilheiros franceses desprotegidos.
Napoleão viu uma carreta a estilhaçar-se, com as madeiras a lançar farpas um pouco por todo o lado e a derrubar os seis homens de ambos os lados da peça. Em breve,
as baterias das duas fações ficavam envoltas num fumo denso e disparavam às cegas.
Ao troar contínuo dos canhões juntou-se um novo som: o matraquear agudo dos tambores que tocavam o pas-de-charge e que marcava o início do avanço de toda a linha
de infantaria francesa. A norte, Napoleão via os blocos escuros dos homens de Eugénio a convergir sobre Borodino, na outra margem do Kalatsha. À frente dele, as
primeiras divisões de Ney e Davout já subiam as encostas. Na vanguarda seguiam os voltigeurs, que disparavam contra os escaramuceiros russos no regresso destes à
linha principal do exército.
As baterias nos redutos cessaram o fogo sobre as armas francesas e foram recarregadas com metralha, antes de serem dirigidas às densas formações de infantaria que
subiam na direção dos russos. Momentos depois, os primeiros tiros rasgaram as formações avançadas francesas, derrubando vários homens de cada vez. O fogo dos canhões
russos intensificou-se e a infantaria agachou-se, enquanto os oficiais os mandavam avançar e os tambores continuavam a rufar, incitando freneticamente os soldados
a mergulhar na chuva destruidora que varria as encostas.
A partir da torre da igreja, Napoleão e Berthier observaram o progresso do ataque pelos telescópios, até que os homens de Ney e Davout entraram nas nuvens de fumo
que envolviam os redutos, desaparecendo de vista. Abaixo do fumo viam agora centenas de corpos de casacas azuis a pontuar a encosta. Napoleão respirou fundo e fechou
o telescópio.
- Vamos, não há grande coisa a ver daqui. Será mais fácil seguir a batalha lá de baixo. - Desceu à frente até à nave da igreja, que fora despojada de tudo para garantir
espaço para a comitiva imperial. Montara-se uma mesa para mapas e um grupo de oficiais subalternos ocupava-se a assinalar os movimentos do exército com pequenos
blocos de madeira colorida, enquanto mensageiros iam e vinham a correr, com despachos redigidos à pressa.
Pesasse embora a ansiedade e a excitação familiares sempre que se envolvia numa batalha, a fadiga e a doença dos últimos dias exerciam um grande desgaste sobre Napoleão.
Sentou-se pesadamente num banco instalado numa alcova na parede da nave e apoiou a cabeça nas mãos. Lá fora prosseguia o estrondear das armas e os estremecimentos
conseguiam chegar ao ponto onde estava sentado. Uma hora depois do início do ataque, Berthier dirigiu-se a Napoleão.
- Sire, já temos relatórios de todas as tropas.
- E então?
- O príncipe Eugénio tomou Borodino e enviou uma divisão para o outro lado do rio, para se apoderar do monte Gorki.
- Não. - Napoleão ergueu o olhar. - Uma divisão não chega. Ele tem de a apoiar, ou então de retirar.
- Com certeza, sire.
- O que mais?
- Davout está a atacar as duas fortificações à direita da aldeia de Semenowska. Assim que forem tomadas, ele dará a volta para atacar o maior reduto do outro lado
da aldeia.
- Ótimo. E quanto ao príncipe Poniatowski?
- Tomou Utitsa, sire. No entanto, ele relata a existência de um grande número de soldados de infantaria inimiga e algumas peças de artilharia no arvoredo junto à
povoação. Vai enviar escaramuceiros para os expulsar.
Napoleão acenou com a cabeça. Até aí tudo corria de acordo com os planos. Assim que Davout assumisse o controlo de Semenowska e dos redutos, poderia encaminhar-se
para a esquerda e fazer recuar os russos contra o rio. Olhou para Berthier.
- O que perdemos?
- Os primeiros relatórios dizem que as formações avançadas sofreram baixas pesadas. Uma das divisões de Davout foi desfeita e os sobreviventes recuaram.
Napoleão franziu os lábios. Esperara perder muitos homens, mas o seu sacrifício valeria a pena, caso o exército russo fosse destruído.
- Muito bem, Berthier. Informe-me de quaisquer novos desenvolvimentos.
- Sim, sire. - Berthier fez uma breve vénia e deu meia-volta, apressando-se a juntar-se aos adidos. Napoleão pensou em regressar à torre, mas de pouco valia isso,
já que o fumo iria obscurecer-lhe a visão. Não se sentia bem a ponto de montar a cavalo e seguir até à frente de combate, por isso teria de acompanhar a batalha
no mapa. Sentou-se na nave e aguardou. Uma hora depois chegou uma nova remessa de despachos, que Berthier leu com uma expressão tensa, antes de voltar a dirigir-se
ao imperador.
- Os russos contra-atacaram, sire. A divisão de Eugénio foi expulsa dos montes e Davout perdeu o controlo de Semenowska. Reagrupou os homens e está a preparar outro
assalto, com o apoio de Ney. Poniatowski foi detido pouco à frente de Utitsa. Os russos têm centenas de canhões a cobrir a estrada.
- Muito bem. Diga ao Murat que deixe um dos corpos de cavalaria em prontidão para apoiar Davout, e envie ordens a Eugénio para que três divisões atravessem o rio
e ataquem o reduto principal.
Ao longo da hora seguinte foram chegando relatórios esporádicos ao quartel-general imperial. Os combates em torno do centro russo iam absorvendo cada vez mais soldados
de Davout e de Ney. Tinham-se perdido vários generais franceses e Davout fora atingido, mas o ferimento fora tratado rapidamente, pelo que pôde continuar a liderar
os homens. Mesmo assim, os russos ainda estavam na posse da aldeia de Semenowska e das fortificações. Antes do final da terceira hora de combates, Napoleão vira-se
obrigado a mandar avançar as forças de reserva de Junot, para apoiar o ataque. Todas as formações estavam agora envolvidas na batalha, à exceção dos vinte e cinco
mil homens da Guarda Imperial, reunidos num outeiro a pouca distância da igreja.
Napoleão pegou no telescópio e reuniu as forças, subindo à torre para tentar avaliar o progresso do último ataque ao centro russo. Todo o poderio de três corpos
de infantaria, a par de dez mil cavaleiros, ia avançando, apoiados por duzentos e cinquenta canhões. O inimigo também concentrara a artilharia no centro, com outras
peças a fustigar o flanco gaulês a partir do maior dos redutos. As colinas opostas à igreja estavam agora repletas de cadáveres e um fluxo constante de feridos coxeava
encosta abaixo para fugir à devastação de fogo de canhão e de mosquete em torno de Semenowska e das suas fortificações mais pequenas. Lentamente, o fumo dissipou-se
no centro russo e Napoleão apercebeu-se de que o inimigo começava a ceder terreno. Chegara a altura de ter a cavalaria a avançar para quebrar a linha russa.
Regressou à nave para dar as ordens e depois puxou de uma cadeira para se sentar junto à mesa dos mapas, onde aguardaria por mais informações. Por certo, a cavalaria
de Murat iria dispersar os russos, pensou. Após a canhonada anterior e os assaltos da infantaria francesa, os russos estariam profundamente abalados. A visão de
milhares de elementos da cavalaria pesada a carregar contra eles seria a última gota. Contudo, os minutos foram passando e não houve notícia de uma penetração. Depois,
após quase uma hora, Murat enviou uma mensagem. Por incrível que parecesse, os russos não tinham fugido. Em vez disso, tinham formado quadrados e retirado para uma
cumeada mais de três quilómetros atrás da posição inicial. Murat pedia que a Velha Guarda fosse enviada para resolver o assunto. Napoleão terminou de ler a mensagem
e devolveu-a a Berthier.
- A Guarda Imperial é a última reserva que nos resta - resmungou. - O Murat quer atirá-los contra os canhões russos. Diga ao Murat que ele e os meus outros marechais
têm de se desenvencilhar com o que têm. O inimigo continua a resistir no reduto mais forte. É preciso tomá-lo antes de avançarmos mais. Quero todas as armas apontadas
àquele reduto. Os corpos de Eugénio vão atacar pela frente, enquanto a cavalaria de Caulaincourt rodeia o flanco para tomar o reduto pela retaguarda.
Berthier anuiu.
Napoleão fitou o mapa, absorto, e resmungou:
- Não vou destruir a Guarda. São a derradeira formação fresca do exército. Estamos demasiado longe de casa para arriscarmos tudo.
O meio do dia passou com Eugénio a reunir as forças para o assalto ao reduto. Só pelas duas horas da tarde é que quatro centenas de canhões abriram fogo, desfazendo
as canhoeiras, desmantelando dezenas de peças e matando os artilheiros. Quando os homens de Eugénio convergiram sobre o reduto, os defensores desorientados abriram
fogo com os canhões restantes, enquanto a infantaria russa se espalhava pelas fortificações massacradas e disparava contra a massa em aproximação. As primeiras alas
avançaram ao ritmo dos tambores franceses, trepando os lados inclinados da fortificação, e confrontaram os defensores numa feroz luta corpo a corpo com aço e as
coronhas dos mosquetes.
O estrépito dos clarins juntou-se ao som dos tambores quando a cavalaria francesa irrompeu a partir do flanco do reduto e varreu a linha de infantaria que guardava
as entradas abertas da retaguarda da fortificação. A guarnição ficou encurralada entre as duas forças e em menos de uma hora todos os soldados foram dizimados. Não
se fez um único prisioneiro.
Napoleão anuiu, satisfeito, quando ouviu a notícia de um dos oficiais do estado-maior de Ney.
- Ótimo. Chegou o momento de levar a cabo um último assalto. Diga a Ney que avance e as honras do dia serão dele.
- Sire, o marechal Ney diz que os soldados dele estão demasiado exaustos para avançar, e que perdeu muitos homens.
- O Ney disse isso? - Napoleão sentia-se chocado. Será que até o mais corajoso e agressivo dos seus marechais tinha perdido a coragem? - O Ney?
- Sim, sire - assentiu nervosamente o oficial. - E ele implora-lhe que mande avançar a Guarda. Pediu para lhe garantir que se atacarem agora, o que resta da linha
russa vai ceder.
- Não! Não! Não! - Napoleão esmurrou a mesa. - A Guarda fica onde está! Diga ao Ney, ao Davout e ao Murat que têm de avançar.
Só ao final da tarde os exaustos soldados franceses, decididos a obedecer às ordens do imperador, acabaram por voltar a formar as colunas. À sua volta jaziam dezenas
de milhares de homens e cavalos mortos e feridos. À frente, na cumeada seguinte, aguardavam milhares de elementos da cavalaria russa, ocultando os restos do exército
do czar, que também ordenavam mais uma vez as alas. As peças de artilharia francesas tornaram a cuspir chamas, fumo e pesadas bolas de ferro, que descreveram arcos
sobre o campo de batalha e ceifaram as linhas de cavaleiros russos. As tropas montadas mantiveram-se estoicas ante o avanço dos franceses. Depois ouviu-se o chamamento
dos clarins e a cavalaria inimiga deu meia-volta, afastando-se a trote para se juntar à infantaria e aos canhões que abandonavam o campo de batalha.
Ney mandou fazer alto e, à luz do Sol que se desvanecia, os homens espalharam-se, arrasados, pela crista da elevação empapada com o sangue de tantos soldados franceses
e inimigos. Quando se assegurou de que não corriam o risco de um contra-ataque, Ney regressou ao quartel-general para confrontar o imperador.
- A Guarda teria feito toda a diferença! - Ney fustigou o imperador com um olhar furioso.
Napoleão, pálido e transpirado devido à enfermidade, retribuiu o olhar. Ney tinha a cabeça enfaixada, com o tecido escuro no local onde o crânio fora lacerado por
uma bala perdida de mosquete. Fora igualmente atingido na coxa e duas vezes no braço por lascas de pedra, arrancadas por bolas de canhão caídas perto do seu cavalo.
- Um derradeiro assalto com tropas frescas teria decidido uma vitória grandiosa. - Ney abanou a cabeça. - E agora, eles fugiram.
- Está errado - retorquiu Napoleão calmamente. - Hoje conquistámos uma grande vitória. Foi isso que ordenei que Berthier relatasse a Paris. Confrontámos o inimigo
e devastámo-lo.
- O quê? - Os lábios de Ney contorceram-se de desprezo. - Só um idiota acreditaria nisso. Que grande vitória. - Gesticulou na direção das fortificações inimigas
destruídas. - Conquistámos alguns montes de escombros e duas aldeias em ruínas. O exército do czar continua intacto e agora teremos de voltar a combater. E tudo
porque a Guarda se recusou a sujar a farda.
- A ordem foi minha - redarguiu friamente Napoleão enquanto esfregava a testa. A dor de cabeça regressava pior do que nunca. - Assumo toda a responsabilidade pelas
consequências.
- Que bom para si, sire.
Napoleão ignorou o tom de motejo e prosseguiu:
- O que interessa é que derrotámos o exército do czar. Mesmo que tenha conseguido salvar a maior parte dos homens, agora não há nada que nos impeça de chegar a Moscovo.
Capítulo 30
Moscovo, 15 de setembro de 1812
Napoleão estava no Kremlin, à janela do gabinete privado do czar, a fitar a histórica capital russa com uma expressão horrorizada. Um tom vermelho-sangue iluminava-lhe
o rosto enquanto mirava a grande extensão de Moscovo que se encontrava em chamas.
Chegara à cidade pouco antes do meio-dia, depois de na véspera os primeiros cavaleiros de Murat terem cuidadosamente percorrido as ruas abandonadas. Os cruzamentos
tinham sido forrados com cópias de uma proclamação emitida pelo governador de Moscovo, onde ordenava que a cidade fosse evacuada, caso contrário a população seria
detida e possivelmente executada por traição. Como seria de esperar, muitos tinham-se recusado a partir e esconderam-se, reaparecendo mais tarde para desfrutar da
liberdade de entrar nas casas mais ricas e roubar quaisquer valores que encontrassem. Regressaram aos esconderijos assim que avistaram as tropas francesas a entrar
na cidade. Os soldados do Grande Exército, esfomeados e esfarrapados, prosseguiram o trabalho iniciado pelos nativos.
- Quem ateou os fogos? - indagou Napoleão.
- Ainda não descobrimos, sire - respondeu Murat. - Os soldados da infantaria ainda não tinham chegado a essa zona da cidade aquando das deflagrações, pelo que poderá
ter sido obra de alguma patrulha montada. Ou talvez tenham sido os russos.
- Os russos?
- E porque não, sire? Têm vindo a incendiar plantações, aldeias e pontes durante a retirada.
- Isso é uma coisa. Agora destruir a cidade mais sagrada do próprio país é algo completamente diferente. Não acredito que Alexandre pudesse fazer tal coisa. Tamanho
ato de barbárie.
Murat encolheu os ombros.
- Talvez tenha subestimado o czar.
Napoleão franziu o cenho. Ter-se-ia enganado em relação a Alexandre? Seria o seu adversário um homem muito mais impiedoso do que imaginara? A ser assim, Napoleão
cometera o maior erro da sua vida. Era um conceito perturbador, que foi prontamente expulso da sua mente ao virar-se para Murat.
- O que está a ser feito para conter os fogos?
Murat pareceu surpreendido.
- Ora, nada, sire. O problema não é nosso.
- Mas vai ser, a menos que se faça alguma coisa. O exército precisa de abrigos e de alimentos, coisas que não terão até que se trate do incêndio.
Murat pensou rapidamente.
- Será melhor usarmos a Guarda. A maioria das outras divisões está a saquear. De momento, a Guarda é praticamente a única unidade disciplinada que nos resta. Isto
é, se o meu imperador a puder dispensar.
- Leve-os - redarguiu Napoleão de imediato. - O fogo tem de ser contido.
Murat anuiu.
- Por enquanto está limitado à zona mais pobre da cidade. A maior parte das casas do bairro são frágeis, feitas de madeira. Em princípio seremos capazes de demolir
habitações suficientes para criar um corta-fogo.
- Muito bem, trate disso, Murat. - Napoleão acenou para dispensar o comandante da cavalaria. A porta fechou-se com um estrondo e Napoleão voltou a ficar sozinho.
Afastou-se da janela e começou a examinar a sala, curioso para saber o que revelaria acerca do czar.
O gabinete era iluminado por um punhado de velas que ardiam num candelabro. Quadros de elementos da família e de antepassados ilustres adornavam as paredes, embora
ali faltasse Nicolau, o pai de Alexandre, que fora assassinado pelos homens que tinham colocado o czar atual no trono. A vasta secretária, com a sua marchetaria
intricada, estava vazia, à semelhança dos armários de documentos em toda a suite do czar. Montes de cinzas e marcas de fogo conspurcavam os brilhantes mosaicos de
mármore, assinalando os locais onde se tinham incinerado documentos confidenciais. Uma longa fila de estantes forrava a parede oposta às janelas e Napoleão percorreu
as lombadas com o dedo. Algumas das prateleiras continham trabalhos em russo e outros textos em latim e alemão, mas a maioria dos livros era em francês. Napoleão
sorriu ante a gama eclética de escritos, que variavam desde tratados filosóficos obscuros aos trabalhos de Rousseau e Voltaire. Com que então, o czar era um homem
interessado em política liberal, meditou Napoleão. Uma pena, podia ter-se revelado um bom francês. Depois fez uma pausa, fixou o olhar e sorriu. Numa das prateleiras
superiores avistara algumas obras românticas licenciosas, do estilo vendido nos bairros menos aconselháveis de Paris.
- Também é um homem do povo. - Com um sorriso, Napoleão esticou o braço para retirar um dos livros. Folheou com indolência as primeiras páginas. Depois guardou o
tomo no bolso do casaco e percorreu a sala, sentando-se na cadeira estofada e finamente entalhada à secretária. Mesmo à frente dele, na parede oposta, estava pendurado
um retrato de Alexandre de farda, a mão enluvada apoiada no punho de uma espada curva. Napoleão fitou o quadro algum tempo, até que resmungou: - Porque não te rendes?
Porquê? O teu exército foi derrotado. A tua maior cidade caiu e está em chamas. Quanto mais vais aguentar? É uma loucura continuar com a guerra. Vais negociar a
paz. Sei que vais.
O fogo lavrou durante três dias, consumindo a maior parte da cidade antes de se extinguir, ou de ser detido pelos corta-fogos criados pelos soldados franceses, que
arrasaram ruas inteiras com cargas de pólvora. O ar sobre a cidade estava impregnado com o fedor acre a queimado e o fumo continuou a subir para o céu azul durante
vários dias. Apenas um quarto da cidade, onde se incluía o Kremlin, se salvara das chamas, mas era mais do que suficiente para acomodar os homens do Grande Exército.
Após a orgia inicial de pilhagem, os soldados dedicaram-se a tornar o aquartelamento tão confortável quanto possível enquanto descansavam e desfrutavam da comida
que encontravam na cidade abandonada. Era a oportunidade de os feridos recuperarem no conforto de camas a sério, e não nos catres sobrelotados e incómodos de uma
carruagem militar. Muitos homens aproveitaram o tempo disponível para remendar as fardas rasgadas, reparar as botas, ou encontrar substitutos mais confortáveis.
Acreditaram de bom grado nas proclamações emitidas pelo quartel-general do imperador, que os felicitavam por terem combatido na campanha, levando-a a uma conclusão
gloriosa e bem-sucedida. Bastava que o imperador e o czar negociassem a paz e depois os soldados do Grande Exército poderiam regressar a casa, providos de saques
e de narrativas sobre como tinham defrontado e vencido os indómitos cossacos das estepes.
Os dias passaram e não houve oficiais russos que se dirigissem à cidade para discutir um acordo de paz. Apesar da ausência de um armistício, as patrulhas montadas
de Murat relatavam que os homólogos cossacos se prestavam a confraternizar e a trocar bebidas e outras ofertas. A única informação preocupante dizia respeito ao
facto de o oficial russo destacado para a liderança das forças do czar, o general Kutusov, estar a encaminhar os seus homens para oeste de Moscovo, ameaçando as
vias de comunicação do Grande Exército.
Setembro deu lugar a outubro e o aproximar do final do outono trouxe consigo uma queda acentuada da temperatura. Napoleão deu ordens a Berthier para que o exército
se preparasse para marchar uma vez mais. Havia a possibilidade remota de que o exército russo tivesse de ser enfrentado outra vez, para eliminar qualquer desejo
que o czar ainda acalentasse de continuar a luta. E o imperador esperava ainda pelos russos. Aguardava-os a todas as horas e passava a maior parte do tempo no gabinete
do czar, pronto a receber os representantes cansados e desanimados do monarca. Tinha dificuldade em concentrar-se em tudo o mais e, para lidar com a espera, Napoleão
começou a ler os romances da coleção privada de Alexandre, por mais banais e estupidificantes que fossem. Às refeições, os camaradas mais chegados surpreenderam-se
com a demora dele com a comida, debicando-a cuidadosamente, quando até então Napoleão apenas tratava esses momentos como uma perda de tempo necessária.
No quinto dia do mês, Napoleão ordenou subitamente que uma delegação liderada pelo general Delacorte, que em tempos servira na embaixada russa, fosse enviada a Kutusov,
com o objetivo de requerer uma audiência com Alexandre. Regressaram passados seis dias e Delacorte foi levado à presença do imperador, para apresentar o seu relatório.
Napoleão recebeu-o calorosamente.
- Fico satisfeito por ter regressado em segurança.
- Obrigado, sire. - Delacorte fez uma vénia com a cabeça.
- Diga-me então, o que aconteceu?
- Encontrámos facilmente o exército de Kutusov e fomos escoltados através dos piquetes, até ao quartel-general de campanha. Recebeu-nos e insistiu para que jantássemos
com ele e os seus oficiais antes de discutirmos o propósito da nossa missão. Primeiro entreguei-lhe a sua carta, sire, onde se pedia a negociação de um armistício
e o meu salvo-conduto até à presença do czar. Kutusov recusou-se a deixar-me prosseguir. Ficou com a sua missiva e garantiu-me que seria entregue nas mãos do czar.
Napoleão franziu o cenho.
- Tinha ordens para entregar a carta em pessoa.
Delacorte encolheu os ombros.
- Não vi outra atitude a tomar, sire.
Napoleão fitou-o por um instante.
- Muito bem. Continue.
- Claro, sire. Ficámos no quartel-general de Kutusov, enquanto aguardávamos por uma resposta. Ele continuou a tratar-nos bem e asseverou que ele e os seus homens
nada mais queriam do que a paz entre a Rússia e a França. Depois, ontem de manhã, chegou uma resposta do czar.
- Uma resposta? E onde está ela?
Delacorte hesitou, ao que levou a mão ao casaco e retirou uma única folha de papel, dobrada, sem qualquer selo. Entregou-a a Napoleão, que a abriu e leu a breve
mensagem, escrita em francês com uma caligrafia cuidada.
A vossa majestade imperial, Napoleão de França, os meus cumprimentos.
Agradeço a vossa carta, em que roga que vos apresente os meus termos preliminares para a discussão de um tratado de paz entre as nossas nações. Contudo, estou decidido
a não interromper o estado de guerra entre nós, lamentando informar-vos de que tenho de recusar o vosso pedido. Infelizmente, refuto a vossa reivindicação de um
fim para a campanha. Com efeito, neste momento terá início a minha campanha.
Alexandre, Czar da Rússia.
Napoleão baixou a mensagem.
- É tudo? Não há mais nada?
- Não, sire.
Napoleão voltou a ler a missiva.
- Só pode ser uma piada.
- Não me parece, sire. Reconheço a letra do czar do meu tempo na embaixada. Tenho a certeza de que esta é a assinatura dele.
Napoleão abanou a cabeça.
- Nesse caso está a fazer pouco de mim... Ou então está com o raciocínio toldado. Sim, talvez seja isso. Afinal de contas, o pai tinha a reputação de ser louco.
Deve ter redigido esta mensagem à pressa. Após a derrota em Borodino e a perda de Moscovo, faz sentido que a mente dele esteja perturbada. Quando tiver tido tempo
de pensar melhor, vai escrever outra vez e aceitar a minha oferta.
Delacorte olhou, surpreendido, para o imperador por alguns momentos e depois aquiesceu.
- Sim, sire. Imagino que tenha razão. É tudo?
- O quê? - Napoleão fitou-o diretamente. - Sim, pode sair. E agradeço-lhe pelos seus esforços, Delacorte.
O general saiu do gabinete, fechando gentilmente a porta. Napoleão leu mais uma vez a carta e esboçou um sorriso, antes de amachucar o papel e o deitar para o lume.
Três dias depois continuava sem haver mais notícias do czar. Napoleão voltou a convocar Delacorte e encarregou-o da liderança de uma nova delegação a ser enviada
a Kutusov. Desta vez não lhes foi permitido entregar mais cartas e Kutusov informou-os com brusquidão de que não seriam recebidas quaisquer outras delegações. Assim
que dispensou o oficial, Napoleão afundou-se na cadeira e olhou para o outro lado do gabinete, para o retrato de Alexandre. Já passara muitas horas a fitá-lo, tentando
ler a expressão que o artista captara.
Napoleão sabia que os retratos recompensavam a observação atenta. O retratado teria consciência de como desejava ser apresentado a quem, anos mais tarde, visse o
quadro terminado. Elaboravam assim uma pose que personificasse as suas virtudes, tal como eles as viam. Caberia ao artista estudar e amplificar as qualidades do
motivo. Contudo, ao mesmo tempo, um bom pintor não resistiria a dotar a sua representação segundo a opinião que nutria da pessoa à sua frente.
Talvez não passasse de um engano causado pela luz, mas pela primeira vez, Napoleão viu um cintilar de crueldade nos olhos de Alexandre e os lábios já não esboçavam
um sorriso benevolente. O homem que tinha agora à sua frente já não era o jovem monarca impressionável que há tão pouco tempo assumira o trono, com o desejo de melhorar
o fado do povo e ser amado por ele. Napoleão sentiu um arrepio na nuca e estremeceu.
O som de alguém a bater à porta fê-lo despertar dos pensamentos. Napoleão chegou-se à frente.
- Entre! - indicou.
A porta abriu-se. Berthier entrou e cruzou a sala, detendo-se à frente da secretária do imperador.
- O que foi? - perguntou Napoleão, esperançoso.
Berthier pegou na capa de folhas soltas que tinha debaixo do braço e abriu-a.
- Sire, tendo em conta as vossas ordens para os preparativos para o avanço do exército, tenho de lhe chamar a atenção para alguns assuntos.
- Sim? - Napoleão voltou a afundar-se na cadeira.
- Sire, falei com a equipa de cartografia e eles calculam que seja preciso um mínimo de cinquenta dias para regressar ao Neman.
- Eu não disse que iríamos retirar para a Polónia - atalhou Napoleão.
- Pois não, sire, mas na qualidade de chefe do estado-maior, é meu dever estar preparado para qualquer eventualidade.
Napoleão quedou-se em silêncio por um instante, antes de aquiescer.
- Tem razão. Prossiga.
- Com certeza, sire. Mesmo que deixemos Moscovo imediatamente, não seremos capazes de chegar ao Neman antes da chegada do inverno. As primeiras neves vão cair em
novembro e as temperaturas vão descer abaixo de zero. Os nossos homens ainda continuam com as fardas que usaram para uma campanha de verão. Eles precisam de roupas
quentes, sire. Casacos grossos, luvas, cachecóis e botas.
- Então trate disso. Os depósitos que lhes providenciem tudo aquilo de que precisam.
- Sire, já falei com o oficial encarregado. O Dumas quase não tem reservas de roupas de inverno. Se vossa majestade bem se lembra, decidiu-se não sobrecarregar os
carros de suprimentos com equipamento desnecessário. Antecipou-se que a campanha chegaria ao fim a tempo de o exército regressar ao aquartelamento de inverno na
Polónia.
- Sim, eu lembro-me.
- As roupas de que Dumas dispõe neste momento foram recolhidas pelo caminho, à medida que as carruagens iam ficando sem rações.
- Uma precaução assisada. - Napoleão aquiesceu vagamente. - O Dumas é um indivíduo com tino.
- O problema é que não há, nem de longe, roupas de inverno suficientes para todo o exército. O censo mais recente dá conta de noventa e cinco mil homens. Dumas não
tem como suprir mais de vinte mil.
- Nesse caso requisite mais casacos, e tudo o mais que for necessário.
- Onde, sire?
- Não acredito que não se encontre roupa quente suficiente em Moscovo.
- O fogo destruiu os bairros comerciais e de armazéns - explicou Berthier, com serenidade. - As únicas roupas que sobraram são as que se encontram nas casas sobreviventes.
E mesmo assim, os russos levaram quase tudo com eles quando evacuaram a cidade.
- Nesse caso, faça o que puder - redarguiu Napoleão lapidarmente. - Mais alguma coisa?
- Sim, sire. O Murat reporta que lhe resta menos de dez mil montadas para a cavalaria, muitos desses animais estão coxos e todos eles têm falta de forragem. O mesmo
se passa com a artilharia. As reservas de ração da cidade também se perderam no fogo.
- Então precisamos de cavalos novos. Um exército não é nada sem cavalaria e artilharia. Diga ao Murat que mande os homens comprar cavalos nas aldeias e vilas nos
arredores de Moscovo.
Berthier respirou fundo.
- Sire, a cidade está cercada por cossacos. Seja como for, as patrulhas de Murat dizem que todas as colónias num raio de trinta quilómetros de Moscovo foram evacuadas
e incendiadas. Não é possível encontrar cavalos.
- Porque me diz isso? O que posso eu fazer? - Napoleão agitou os braços num gesto expansivo. - Não posso fazer aparecer cavalos!
Berthier manteve-se em silêncio, fechou a pasta e voltou a enfiá-la debaixo do braço. Depois olhou em frente, recusando-se a cruzar os olhos com os do imperador.
Napoleão recostou a cabeça e fitou as sancas ornamentadas, pintadas com folha de ouro. Exibiu um sorriso sombrio. Tinha uma fortuna em ouro nos cofres do exército,
o suficiente para comprar todos os sobretudos e cavalos de que precisava. Agora, o ouro pouco mais seria do que um fardo, caso o exército se visse obrigado a retirar
no agreste inverno russo. Chegou-se à frente e olhou para Berthier.
- Mande chamar os meus marechais.
Um criado ateou o lume antes de correr os pesados cortinados à frente da janela e de sair do gabinete. Lá fora, a noite estava fria e um vento gelado uivava pelas
ruas de Moscovo, trazendo com ele breves chuvadas que afugentavam os soldados do Grande Exército, ainda em busca de despojos, para o abrigo das casernas.
No interior da sala do Kremlin, Napoleão encarou os marechais, preparado para admitir a verdade.
- O czar não quer paz. Recusa-se sequer a pensar nisso. - Napoleão franziu o cenho. - Apesar de tudo o que perdeu, parece não estar disposto a assumir a derrota.
- Porque haveria de o fazer? - indagou Davout. - O exército dele vai ficando mais forte a cada dia que passamos aqui em Moscovo, à espera que algo aconteça. Por
esta altura já terá reunido soldados das guarnições e do exército que enfrentava a Turquia. Sire, se não tivermos cuidado, Moscovo vai acabar por passar de troféu
a armadilha.
- E o que sugere que façamos?
- Não há qualquer dúvida quanto a isso. Temos de retirar enquanto podemos.
- Retirar? - Ney fungou. - Depois de tudo o que conquistámos? O Kutusov continua demasiado receoso para combater. É por isso que fica para ali sentado, sem fazer
nada.
- Ele não tem de fazer nada - argumentou Davout, - a não ser esperar que o inverno faça o trabalho por ele. Em breve, esta cidade vai ficar sem alimentos e depois
sem lenha para as fogueiras. Vamos ter de começar a comer os cavalos. Quando chegar a primavera, aquilo que restar do Grande Exército não vai estar apto a combater.
- Então não fiquemos aqui - ofereceu Ney. - Se o czar se recusa a negociar a paz depois de termos tomado Moscovo, creio que devemos marchar sobre S. Petersburgo.
Vejamos se ele continua relutante em falar quando lançarmos fogo aos seus palácios mais estimados.
Napoleão ostentou um sorriso amargo.
- Imagino que isso não vá afetar a resolução de Alexandre. Além disso, as nossas vias de comunicação já são longas quanto baste e daqui a S. Petersburgo distam mais
de seiscentos quilómetros. Está fora de questão. - Respirou fundo. - A nossa posição em Moscovo já é débil quanto baste. Os cossacos começaram a atacar as patrulhas
de Murat e estão a aproximar-se gradualmente da cidade. A estrada para Smolensk foi cortada há três dias e só hoje foi aberta pelo general Sulpice... O risco é bastante
óbvio. Já me decidi. Vamos deixar Moscovo e recuar para Smolensk. Lá temos rações suficientes para que o exército aguente o inverno. É possível que o general Kutusov
se sinta audaz a ponto de nos tentar bloquear a retirada. Se assim for, vai dar-nos mais uma oportunidade de lhe esmagarmos o exército. Seja como for, essa terá
de ser a explicação que vamos dar às tropas. Eles não podem ver nada disto como uma retirada. No que diz respeito aos soldados, vamos encetar a marcha para encontrar
e destruir Kutusov. Entendido?
Os marechais anuíram e depois Davout tomou a palavra.
- Sire, seja o que for em que os soldados acreditem, podemos ter a certeza de que os nossos inimigos na Europa o vão apresentar como sendo uma derrota. Temos de
ter o cuidado de não deixar que essa derrota se transforme numa catástrofe.
- Onde quer chegar?
Davout cruzou as mãos e fitou-as, pensativamente.
- Não é segredo que muitos dos nossos aliados contribuíram com contingentes sob pressão. Sabemos que não podemos confiar nos prussianos. Se esta campanha se virar
contra nós, receio que Frederico Guilherme possa vir a mudar de lado e a juntar-se ao czar. Se assim for, não será o único. - Ergueu o olhar. - Sire, a nossa prioridade
máxima já não pode ser derrotar os russos. Estou convicto de que isso já não é possível. O que interessa é a sobrevivência. Isso significa que temos de salvar tantos
homens, cavalos e peças de artilharia quanto possível. Serão necessários para manter as nossas posições na Europa quando esta campanha chegar ao fim.
Fez-se silêncio à volta da mesa, até que Ney se riu.
- Ah, Davout, sempre otimista! Que raios, homem, que cenário tão negro está a pintar.
- Por vezes, o cenário é mesmo negro - retorquiu Napoleão, que olhava para o retrato no outro lado do gabinete. - Seja como for, a decisão está tomada. O exército
vai abandonar Moscovo a dia dezanove. Regressem aos vossos comandos e preparem os homens para a marcha. Berthier vai enviar-lhes ordens com as vossas posições na
linha de marcha.
Napoleão estava na sua montada, rodeado pelo estado-maior, enquanto a coluna se arrastava sob o céu plúmbeo com as nuvens de chuva. O exército iniciara a marcha
à primeira luz da alvorada, mas os dias iam ficando mais pequenos, pelo que o lusco-fusco já abraçava Moscovo antes que o final da enorme coluna tivesse deixado
a cidade. O marechal Mortier comandava a retaguarda e os seus homens ocupavam-se a inutilizar os canhões que tinham de ficar na capital, por já não haver cavalos
suficientes para os puxar. Os soldados de Mortier estavam também encarregues de destruir quaisquer reservas de pólvora e de armas que pudessem ser úteis ao inimigo.
Depois partiriam, cobrindo as derradeiras alas do exército.
Enquanto observava a marcha, Napoleão ainda foi saudado pelos soldados, mas aqueles já não eram os homens do Grande Exército que tinham cruzado o Neman havia quase
seis meses. Mais pareciam uma procissão de indigentes, de fardas rasgadas e um grande sortido de sobretudos e casacos pilhados em Moscovo. Muitos estavam carregados
com os despojos de guerra mais pesados e a estrada encontrava-se já pejada de quadros, caixas lacadas e espelhos descartados, abandonados na lama.
Entre as colunas de infantaria seguiam carruagens e carroças atulhadas de feridos, das poucas rações encontradas na cidade e de ainda mais saques. Os veículos e
as peças de artilharia que tinham restado ao exército eram puxados por cavalos e mulas esqueléticos, de costelas bem visíveis por baixo das pregas soltas da pele.
O mesmo se passava com a cavalaria, notou Napoleão com tristeza. As montadas brilhantes que tinham cavalgado através das estepes não passavam agora de meras sombras
da melhor cavalaria da Europa. Milhares de soldados já não tinham animais e marchavam ao lado da infantaria, de carabinas penduradas ao ombro.
O imperador perdeu alguns momentos a observá-los e depois lançou um derradeiro olhar à silhueta de Moscovo, que se recortava no horizonte. Sentiu o coração a encher-se
com um ódio profundo pelo czar. Com as primeiras gotas de chuva gelada, Napoleão puxou as rédeas, deu meia-volta ao cavalo e seguiu a coluna que serpenteava pelo
caminho por onde tinha vindo.
Capítulo 31
Arthur
Madrid, 12 de agosto de 1812
Os sinos da grande igreja de Nuestra Señora de la Almudena repicaram pela cidade, mas mal se ouviam acima do estrépito da multidão que enchia as ruas por onde as
tropas britânicas marchavam, a caminho do palácio real. Apesar de aquela ser a altura mais quente do ano, os espanhóis tinham aparecido às dezenas de milhar para
receber o libertador de Madrid. Um batalhão dos Guardas de Coldstream abria caminho, de fardas cuidadosamente remendadas, trípoli fresco nos cinturões e botões polidos
até obter um brilho lustroso. Eram seguidos por um esquadrão dos dragões alemães que tinham desbaratado a última divisão do exército de Marmont, no dia após a batalha
em Salamanca. Finalmente, a par do estado-maior, surgia Arthur, montado no seu cavalo preferido, Copenhagen. Trajara-se para a ocasião e deixara a casaca e o chapéu
simples no quartel-general. Em vez disso, envergava a casaca vermelha, adornada com cordões dourados. No peito esquerdo usava as medalhas e as estrelas dos títulos
que conquistara ao longo dos anos. Tinha um bicorne novo na cabeça, com uma pluma de penas brancas que o adornava a todo o comprimento.
- Sinto-me um malfadado ganso recheado - ofereceu a Somerset, que seguia a seu lado, um pouco mais atrás. - Preparado para um banquete de Natal.
Somerset riu-se, tirando o chapéu a um grupo de damas espanholas que acompanhavam a parada de uma varanda, abrigadas com guarda-sóis.
- Conquanto entre no papel, milorde. Afinal de contas, o governo espanhol concedeu-lhe o título de comandante supremo de todas as forças espanholas.
- Uma medida que lhe garanto ser absolutamente indiferente para quase todos os soldados espanhóis.
- Seja como for, milorde, conquistou-lhes o coração e os espanhóis merecem ver um guerreiro conquistador, não um indivíduo qualquer com um casaco que até podia ser
de um médico da província.
- Um médico da província? - Arthur fungou. - Bem, pelo menos a minha aparência não parece ser de grande importância para os nossos rapazes.
Manteve-se hirto na sela enquanto seguia com toda a dignidade que era capaz de invocar, virando-se a espaços para um lado e para o outro e erguendo a mão em reconhecimento
das ovações do público, o que servia apenas para incitar uma energia renovada nos gritos e nos acenos com as faixas de tecido vermelho e dourado de Espanha. Era
uma receção impressionante, cogitou Arthur. Na véspera, a população madrilena recebera o exército com uma alegria histérica, entregando garrafas de vinho e ofertas
de pão, bolos e enchidos aos primeiros soldados a entrar nos subúrbios. Estes, por seu lado, exibiam sorrisos rasgados enquanto mostravam a sua gratidão com acenos
de cabeça e respondiam com as poucas palavras espanholas que tinham aprendido. A procissão daquele dia até ao palácio real era um caso bastante mais formal, mas
assumira contornos de um feriado nacional.
Os franceses odiados tinham partido. Quando a notícia da derrota esmagadora em Salamanca chegou ao rei José, este emalou à pressa os pertences e um comboio fortemente
guardado de oficiais franceses deixou a cidade dias antes da chegada do exército aliado. Uma vasta coluna de colaboradores espanhóis partiu com eles, fugindo à crescente
sede de sangue da populaça. Os franceses encaminhavam-se para sudeste, em direção a Valência, onde José buscaria a proteção do marechal Suchet.
Não obstante, o exército aliado carecia de suprimentos, os soldados estavam cansados e muitos dos oficiais superiores de Arthur encontravam-se fora de combate devido
a ferimentos e a doenças. Pouco mais seria conseguido com uma perseguição a Marmont e a libertação de Madrid representaria um duro golpe ao prestígio francês em
toda a Europa. Serviria também para ajudar a levantar o moral na Grã-Bretanha, onde o novo primeiro-ministro, lorde Liverpool, se esforçava por angariar apoio político
à campanha de Arthur na Península Ibérica.
Arthur sentia a mente a fervilhar com as possibilidades deixadas em aberto pela vitória em Salamanca quanto a operações futuras. Claro que seria trabalho para mais
tarde. Por enquanto, contentava-se em representar o papel de libertador de Madrid e, quando o palácio real se deixou ver ao fundo da avenida, Arthur ergueu o chapéu
bem alto e descreveu com ele um gesto que abarcava o mar de madrilenos extasiados que bradavam vivas enquanto agitavam as faixas de tecido num abandono extático.
Assim que entrou às portas altas da varanda, Arthur fez sinal a um lacaio que segurava uma bandeja de copos com água. As ovações da multidão enchiam a sala quase
com tanto estrépito como o que se ouvia na praça lá fora. O calor do meio-dia que fustigava Madrid deixara Arthur a transpirar em bica por baixo da casaca de lã
escarlate. Assim que tirou o chapéu e limpou as gotas de suor da testa, engoliu dois copos da água fresca numa sucessão rápida. Depois permitiu que um criado lhe
retirasse a faixa que lhe cruzava o ombro e a que tinha à volta da cintura, para depois soltar a bainha da espada, desabotoar a casaca e despi-la.
- Graças a Deus. - Respirou fundo. - Se fosse obrigado a permanecer naquele casaco mais um segundo que fosse, tinha assado nos meus próprios sucos.
O general Alava sorriu.
- Parece que só os nativos são capazes de aguentar o nosso clima.
- Existem paisagens mais confortáveis onde travar guerras - concedeu Arthur. - Mas por agora vamos permitir que o exército descanse alguns dias. Os homens que aproveitem
e os locais que desfrutem da liberdade, enquanto decido o que vai acontecer de seguida.
- Interrogo-me o que irá decidir. - Alava arqueou uma sobrancelha. - Já tem Madrid, mas tomar a capital não vai libertar o meu povo dos franceses, mesmo sendo um
grande feito por si só.
- Pois não, não vai - concordou Arthur. - No entanto obrigou-os a retirar para o Norte e para o Leste do país, e o marechal Soult vai ter de abandonar o cerco de
Cádis e deixar a Andaluzia, caso contrário arrisca-se a ver a saída cortada. - Arthur serviu-se de mais um copo de água e foi dando goles pensativos. - Agora que
conseguimos a nossa grande vitória e que expulsámos o irmão do Boney de Madrid, seria um crime desperdiçar as circunstâncias favoráveis em que nos encontramos.
Esticou os braços e dirigiu-se à enorme mesa de carvalho que dominava o centro do que em tempos fora a biblioteca do rei José. Os livros mais valiosos da coleção
tinham sido adicionados apressadamente ao comboio aquando da fuga dos franceses. Viam-se agora espaços nas prateleiras, como dentes em falta, e centenas de volumes
que tinham sido retirados e depois rejeitados jaziam ainda no chão para onde haviam sido atirados. A maioria das divisões do palácio tinha sido saqueada pelos empregados
na sequência imediata da partida dos franceses, e agora os salões e os aposentos elegantes estavam atulhados de jarras e faianças partidas.
Muitos dos mapas e das cartas armazenados num grande armário a um canto da biblioteca tinham ficado para trás e Arthur selecionou uma representação em grande escala
da Península Ibérica que desenrolou sobre a mesa, contando com a ajuda de Somerset para a prender nas extremidades com alguns dos livros espalhados. Depois fitou
pensativamente o mapa. Há menos de dois anos, o exército de Arthur encontrava-se limitado a uma estreita faixa de terra a norte de Lisboa, enquanto os franceses
vagueavam com liberdade pela restante extensão de território representado no mapa. Agora, os franceses tinham sido empurrados para a zona Norte e Leste de Espanha.
Embora ainda dispusessem de mais de duzentos mil soldados nos exércitos, os marechais encontravam-se profundamente divididos e, segundo os relatórios dos agentes
de Arthur, tratavam José com um desprezo mal contido. Além disso, tinham sido em grande medida abandonados pelo seu senhor, que perseguia as suas ambições aparentemente
ilimitadas na Rússia.
Arthur continuava espantado com as notícias da invasão e com a escala das forças usadas. Bonaparte precisaria apenas de empregar metade dos recursos que dirigira
à Rússia para resolver os seus problemas em Espanha com toda a celeridade. Na realidade que se vivia agora, os soldados do imperador viam-se obrigados a combater
em duas frentes, espalhando-se por territórios hostis que dispunham de vias de comunicação rudimentares. A menos que o destino resolvesse favorecer ainda mais exageradamente
Bonaparte, o império estava a ser levado ao limite. Ali em Espanha, Arthur estava determinado a desferir um golpe mortal sobre as aspirações francesas. Se o czar
fosse capaz de fazer o mesmo nas profundezas da Rússia, por certo a mãe de todas as guerras estaria a aproximar-se do último ato.
Arthur voltou a concentrar-se. Deu por fim voz aos pensamentos, com Somerset e Alava a seu lado.
- Com José a retirar para Valência, para junto do exército de Suchet, deparamo-nos com a possibilidade de Soult vir a raciocinar e a unir as suas forças às deles.
Nesse caso ficaremos em inferioridade numérica, tal como já aconteceu tantas vezes. Contudo, acredito que possamos continuar a manter o centro de Espanha se garantirmos
que o que resta da força de Marmont fica confinada a norte, ao rio Ebro. Isso implica tomar Burgos. - Dirigiu-se ao general Alava. - O que sabe acerca da fortaleza
de Burgos?
- Fica na rota principal entre França e Madrid. Bonaparte deve ter reconhecido a sua importância, já que ordenou uma série de melhorias nas defesas. - Alava encolheu
os ombros. - Embora de todo à escala de Badajoz.
- Folgo em sabê-lo. Importa-se que lhe pergunte se por acaso viu a fortaleza desde que essas melhorias foram levadas a cabo?
- Não - respondeu Alava com sinceridade. - Mas ouvi relatos suficientes das minhas fontes para saber que Burgos não lhe vai apresentar grandes dificuldades, milorde.
Arthur fitou-o por um instante e depois aquiesceu.
- Muito bem. Se José e Suchet avançarem sobre Madrid, os nossos aliados espanhóis terão de fazer tudo ao seu alcance para impedir a progressão. O Exército da Andaluzia
terá de atacar o flanco francês, enquanto os irregulares os pressionam durante a marcha. Se puderem ser atrasados até ao outono, as chuvas vão engrossar o caudal
do Tejo e eu poderei cobrir os poucos pontos de passagem que vão restar. - Arthur fez uma pausa e afagou o queixo. - O que lhes parece, cavalheiros?
Somerset tufou as faces e abanou a cabeça.
- Sir, está a depositar a sua fé numa sequência pré-determinada de acontecimentos.
Arthur encolheu os ombros.
- Não tenho alternativa. Foi essa a mão que me calhou para jogar. Pretendo manter Madrid tanto tempo quanto possível. Talvez não nos ofereça grande coisa a nível
tático, mas temos de nos concentrar na estratégia mais vasta que vai determinar a guerra. Cada dia que sejamos capazes de aqui permanecer é mais um golpe no domínio
dos Bonapartes sobre Espanha. Servirá para dar ânimo não só aos espanhóis, como também a toda a Europa.
Somerset pensou um instante, ao que anuiu.
- Compreendo, sir. Só espero que não nos espalhemos demasiado.
- Espera que não nos espalhemos demasiado? - repetiu Arthur com um sorriso trocista. - Meu caro Somerset, onde é que tem andado nos últimos anos? Graças ao nosso
governo, estamos tão espalhados que o inimigo quase consegue ver através de nós.
- É possível que isso ainda venha a acontecer, sir.
Arthur dirigiu-se a Alava.
- General, quero que se encaminhe para sul. Será meu porta-voz. Diga a todos os líderes da resistência e a todos os oficiais regulares que encontrar que me foi entregue
o comando de todas as forças aliadas em Espanha. As minhas ordens são simples. Os franceses devem ser atacados sempre que forem encontrados.
Alava exibiu um sorriso rasgado.
- Será um prazer, milorde. E quanto ao senhor? O que vai fazer agora?
- Eu? - Arthur esticou o braço sobre o mapa e indicou o nome de uma povoação bem a norte de Madrid. - Vou levar metade do exército e tomar Burgos.
Capítulo 32
Burgos, 4 de outubro de 1812
O verão parecia relutante em abandonar Espanha e, a cada dia, o sol fustigava a paisagem ressequida, enquanto o exército marchava para norte, empurrando à sua frente
a pequena força francesa que fora reunida na sequência de Salamanca. Depois, quando Arthur deu início ao cerco de Burgos, o tempo mudou e o outono instalou-se com
uma ferocidade atípica. A paisagem de Castela foi varrida por chuvadas que inundaram as trincheiras e as baterias arduamente escavadas no solo pelos homens de Arthur.
Os engenheiros tinham sofrido baixas pesadas nos dois cercos anteriores, encontrando-se reduzidos a meros dezasseis oficiais e outras patentes. Também não havia
artilharia de cerco suficiente para levar rapidamente a missão a um desenlace. Quando o exército chegara a Burgos, depois de percorrer a estrada profundamente sulcada
e danificada que partia de Madrid em direção a norte, apenas três canhões de dezoito libras tinham sobrevivido à viagem. Os restantes tinham rodas partidas, ou suportes
estalados, sendo deixados para trás enquanto se procurava proceder às reparações necessárias.
- Lá se vão as fontes de Alava - comentou acidamente Somerset, que observava a fortaleza no cimo de uma colina íngreme. Encontrava-se separada do resto da povoação
por uma ravina, apenas com uma estreita formação rochosa a servir de ligação. Uma poderosa bateria cobria esse acesso e tornava suicida qualquer tentativa de assalto
frontal. Além disso, a fortaleza fora construída em camadas concêntricas, para que os defensores pudessem continuar a resistência mesmo que a muralha exterior fosse
tomada. Somerset mirou amargamente a fortaleza. - Aquele sítio é praticamente inexpugnável, sir.
- Disparates! - redarguiu Arthur com brusquidão. Depois, irritado consigo próprio, continuou, num tom mais brando: - Graças ao major Somers-Cocks, já temos uma das
fortificações exteriores. É tudo uma questão de tempo e de esforço contínuo para que a fortaleza seja nossa.
Sem dizer palavra, Somerset olhou-o e depois voltou a mirar a fortaleza. A dúvida e a frustração, contudo, eram palpáveis. Arthur entendia perfeitamente o que o
subordinado sentia. Estavam trinta e cinco mil homens acampados à volta da fortificação. Segundo os locais, a guarnição ascendia a pouco mais de dois mil soldados,
mas o comandante, o general Dubreton, mostrava-se tão astuto e corajoso como fora o seu camarada Philippon em Badajoz. A recordação desse cerco terrível assombrava
a mente de Arthur desde que o exército chegara a Burgos, e o inglês estava decidido a não repetir o assalto sangrento que lhe custara tão caro. Desta vez, não haveria
um assalto em massa. Burgos seria tomada pouco a pouco.
- Meu caro Somerset - sossegou-o Arthur, com toda a paciência, - vi muitos baluartes altaneiros como este quando servi na Índia e consegui invadi-los a todos. A
seu tempo teremos Burgos.
- Imagino que tenha razão, sir.
- Como vão os preparativos para a mina?
Somerset gesticulou na direção da estreita trincheira que ziguezagueava encosta acima, a caminho da muralha exterior. A pouca distância da base da muralha, a trincheira
desaparecia num túnel.
- O capitão Perkins diz que estará pronta a detonar pela alvorada, sir.
- Muito bem. Informe o major Somers-Cocks de que o quero no quartel-general às três da manhã. Irei transmitir-lhe as ordens pessoalmente.
À semelhança dos muitos que compravam as patentes de oficial, o major era jovem, louro e de rosto fresco, mas Arthur sabia que o indivíduo tinha um excelente currículo
de combate. Tratava-se, por isso mesmo, do tipo de homem de que Arthur necessitava para liderar os assaltos às defesas da fortaleza. Parecia atirar-se ao risco com
impunidade e fora um dos poucos oficiais que se voluntariara para essa tarefa. Ainda bem que Inglaterra produzia soldados de tal estirpe, refletiu Arthur, enquanto
analisava brevemente o homem em sentido à frente da secretária, às primeiras horas da madrugada.
Arthur pigarreou e deu início à reunião.
- Já completou os preparativos para o seu grupo de assalto?
- Sim, milorde - respondeu Somers-Cocks, com um ligeiro sotaque escocês. - Os homens já estão à espera na trincheira de aproximação. Duzentos e cinquenta voluntários,
tal como ordenou.
- Espero que seja quanto baste.
- Vai bastar, milorde. - Somers-Cocks sorriu. - Afinal de contas, tenho ordens para simplesmente tomar e manter a brecha, não para tomar a fortaleza inteira.
- Se for bem-sucedido, a onda de apoio estará rapidamente consigo. Mas quero que entenda que eles têm ordens para não avançar, a menos que lhes dê o sinal de que
a brecha está segura.
- Compreendido, milorde.
- Ótimo. - Arthur anuiu e depois suavizou o tom formal. - Teve dificuldade em encontrar voluntários para o grupo de assalto?
- A maior parte ofereceu-se de livre vontade.
- A maior parte?
- Och, sabe como é, milorde. Certos homens só sabem que se querem voluntariar depois de receberem a inspiração certa.
Arthur ergueu uma sobrancelha.
- Como por exemplo?
O major franziu os lábios.
- Regra geral, a escolha entre quinze minutos na brecha e uma semana de trabalho nas latrinas garante o resultado desejado, milorde.
Arthur riu-se e levantou-se, oferecendo a mão a Somers-Cocks.
- Boa sorte, meu rapaz.
- Obrigado, milorde. - Apertou a mão de Arthur, depois recuou, fez continência e deu meia-volta para sair da tenda. Arthur deixou-se olhá-lo por um momento, interrogando-se
se voltaria a pôr olhos naquele homem quando o dia raiasse. Depois abanou a cabeça. Somers-Cocks era um daqueles indivíduos fadados a sobreviver.
- Quatro horas, sir - informou Somerset em voz baixa, com as botas a chapinhar na lama enquanto se colocava ao lado de Arthur.
- Sim.
Tudo estava sossegado. Lá em cima, as nuvens cobriam as estrelas, o que ajudava a intensificar o breu que envolvia a fortaleza. Os archotes na muralha revelavam
alguns dos pormenores das defesas e, ocasionalmente, um dos soldados franceses de vigia. Os únicos sons provinham do acampamento aliado, onde um punhado de soldados
embriagados de dois batalhões estava envolvido numa discussão. Em breve os responsáveis acabariam com aquilo, mas, entretanto, o barulho iria ajudar a desviar a
atenção dos defensores, enquanto o grupo de assalto se aproximava o mais que se atrevia da mina.
- Quatro e cinco - resmungou Somerset. - Os engenheiros estão atrasados.
Arthur estava prestes a responder quando um jato de chamas foi cuspido da entrada do túnel que dava acesso à parte debaixo da muralha, seguido por um estrondo que
ecoou nas paredes da povoação vizinha. Quando o som esmoreceu, fez-se um silêncio breve, após o que Arthur ouviu o estrépito da alvenaria, quando uma parte da muralha
sobre a mina desabou. De imediato soou o brado de Somers-Cocks:
- Avançar! Em frente!
Não houve gritos por parte dos elementos do grupo de assalto quando irromperam do abrigo da trincheira e correram encosta acima em direção à brecha. Alguns mosquetes
foram disparados contra eles da torre mais próxima da muralha exterior, mas os soldados continuaram em frente, trepando o monte de escombros e entrando na abertura.
O som dos combates chegou ao posto de comando e Arthur esforçou-se por discernir o progresso do ataque. Viu-se então o súbito jorro de faúlhas brancas quando um
dos integrantes do grupo de assalto inflamou o pequeno frasco de pólvora que fora levado para servir de sinal da tomada da brecha. De imediato, a brigada de apoio
à espera levantou-se do seu esconderijo nas trincheiras de aproximação e correu para a abertura. Os sons de tiros de mosquete continuaram durante mais meia hora,
até que esmoreceram para uma troca ocasional de fogo.
Quando a primeira luz da alvorada surgia no horizonte, um mensageiro apareceu a arquejar trincheira acima até ao posto de comando, com as botas a escorregar na lama
pegajosa que enchia as valas.
- Milorde. - A respiração do homem era pesada quando se pôs em sentido. - O major Somers-Cocks informa que a brecha foi tomada e que os homens estão a manter os
flancos, enquanto a brigada investe em torno da brecha.
- Muito bem. - Arthur sentiu o peso da ansiedade a sair-lhe dos ombros. - Transmita as minhas felicitações e agradecimentos ao major.
- Com certeza, sir.
Quando o soldado voltou a deslizar para a trincheira, Somerset falou:
- Bem, não foi nada complicado, graças a Deus.
Arthur esfregou brevemente os olhos doridos.
- Temos a brecha, Somerset, nada mais. Pode ter a certeza de que o Dubreton já estará a planear um contra-ataque.
Com o avançar da manhã, o grupo de assalto abrigou-se em torno da brecha e continuou a trocar fogo com os defensores nas zonas superiores das fortificações. Entretanto,
a brigada de apoio, sob a liderança dos oficiais de engenharia, edificaram apressadamente uma defesa no interior da brecha e começaram a limpar o entulho, para que
a passagem através da abertura fosse mais fácil. Ao meio-dia, Arthur fez avançar uma companhia de tropas portuguesas para render Somers-Cocks e os seus homens, enquanto
outra companhia assumia o lugar dos soldados que alargavam a brecha.
O céu estava um pouco nublado e a brisa gelada tornou-se ainda mais desagradável com os chuviscos constantes que começaram a cair a meio da manhã. Arthur percorreu
a trincheira de aproximação para inspecionar a brecha. Havia já um palmo de água no fundo e o solo estava enlameado e escorregadio, pelo que teve de andar com cuidado.
As paredes da trincheira estavam a desmoronar-se a espaços e pequenos grupos de homens, ensopados e cobertos de lama, escoravam as elevações de terra com cestos
de vime cheios de pedras. À medida que a trincheira começava a subir a encosta, as poças desapareciam e, em vez disso, a água escorria pelo chão como um ribeiro
montanhoso. Arthur deteve-se para observar a fortaleza que se agigantava à sua frente e ouviu-se um zumbido suave, quando um pouco de lama saltou no ar junto à borda
da trincheira.
- Baixa a porra da cabeça! - bradou-lhe um sargento. - A não ser que queiras ficar sem ela! - Arthur baixou-se e virou-se para o sargento. Ao ver o característico
nariz adunco do comandante, o sargento empalideceu. - Ora desculpe lá, milorde. É que já perdemos dois homens por causa de um atirador franciú lá de cima.
- Agradeço-lhe o conselho sagaz, sargento. - Arthur sorriu-lhe e continuou pela trincheira, sempre de cabeça baixa, certificando-se de que se mantinha no lado mais
abrigado enquanto subia até à brecha. O capitão Perkins, dos engenheiros, saudou Arthur quando este surgiu na pequena clareira à frente da abertura. Uma secção da
muralha com mais de quatro metros de largura desabara e os soldados estavam ocupados a remover o entulho e a usá-lo para edificar dois muros baixos que ligavam a
extremidade da trincheira à brecha.
- Como vão os trabalhos, capitão?
- Vão bem, sir. - Perkins era outro escocês, baixo e entroncado, com uma pronúncia mais carregada do que Somers-Cocks, e estava coberto de lama, tal como os seus
homens. - Assim que limparmos a brecha, meto os rapazes a construir a aproximação à segunda muralha. Mas vai ser difícil.
- Ah sim? Qual é o problema?
- Se me permite, vou mostrar-lhe, sir. - Perkins não esperou por uma resposta, avançando pela brecha e agachando-se logo à entrada da alvenaria destroçada. Virou-se
e fez sinal a Arthur, para que este mantivesse a cabeça baixa. Arthur acocorou-se ao lado do oficial e abrangeu rapidamente com o olhar o interior da primeira muralha
da fortaleza. Um carreiro empedrado atravessava as duas muralhas e, ao lado, erguia-se um rochedo de cerca de seis metros de altura, antes que a base da segunda
muralha se iniciasse. O penedo ficava pelo menos a quinze metros da brecha. Perkins tossiu e ofereceu um sorriso apologético. - Acho que me constipei com esta humidade
toda, sir. Bem, como pode ver, há terreno aberto entre nós e a elevação. Para minar a segunda muralha, temos de escavar a rocha e abrir um túnel até à base. Não
vai ser fácil.
- Mas consegue fazê-lo?
- A seu tempo, sir. Sim.
- Tempo é coisa de que não dispomos propriamente, Perkins. Os meus batedores a norte dizem que há um exército francês a reunir-se para render Burgos no espaço de
um mês. As informações mais recentes de Madrid dão conta que Soult está em marcha para se juntar a José. Quando isso acontecer, vão dirigir-se a Madrid. Temos de
tomar Burgos o mais depressa possível e juntar as nossas forças à de Hill para manter o centro de Espanha. Está a entender?
- Estou, sim, senhor. Vamos fazer o nosso trabalho o quanto antes, mas para começarmos a minar, temos de levar os rapazes pelo terreno aberto. Uma trincheira não
serve de nada, pois os franciús têm o terreno coberto pelo bastião à nossa direita e pelo ângulo daquela muralha à esquerda. Por agora, os rapazes portugueses têm
a muralha coberta - acenou com a cabeça na direção dos homens de farda castanha agachados por entre as pedras na base do penedo de ambos os lados da brecha, - mas
para levar homens e equipamento até à rocha, é preciso construir uma galeria coberta ao longo do descampado. É um trabalho arriscado e demorado, sir.
- Estou a ver. Quanto tempo vai demorar?
Perkins franziu os lábios.
- Dois dias para construir a galeria. Duas semanas para abrir um túnel através da rocha, um dia para preparar a mina e depois é com a infantaria invadir a fortaleza,
sir.
- Sendo assim, duas semanas e meia - meditou Arthur. - É bastante apertado. Faça o que estiver ao seu alcance para acelerar as coisas, Perkins.
- Com certeza, sir. Mandei buscar as ferramentas necessárias e vou meter os rapazes ao trabalho assim que a brecha estiver desimpedida.
- Muito bem. - Arthur bateu-lhe no ombro. - Mantenha-me informado.
Estava prestes a voltar-se quando se ouviu o súbito matraquear de fogo de mosquete ali perto. Os dois oficiais olharam na direção do som. À sua esquerda, os portugueses
disparavam ao longo da estrada empedrada, logo a seguir a uma curva. Dispararam-se mais tiros, desta vez à direita. Depois ouviu-se um grito e o som de botas a ecoar
nas muralhas da fortaleza, e Arthur viu o primeiro francês a surgir no caminho. Atrás dele vieram mais, preenchendo o espaço entre as muralhas enquanto avançavam,
fazendo pausas apenas para disparar contra as tropas portuguesas que lhes barravam o caminho.
Perkins levou a mão à boca em forma de concha e gritou: - Às armas! Às armas! Os franciús estão a atacar! - Virou-se para Arthur. - É melhor sair daqui, sir. Volte
à trincheira de apoio e envie reforços para cá.
Arthur levantou-se a abanar a cabeça.
- Não.
Perkins levou a mão ao interior da casaca e puxou de uma pistola.
- Como quiser, sir.
À volta da brecha, os homens que tinham estado ocupados a limpar o entulho correram para as armas e avançaram, passando por Arthur. Seguiu-se uma breve escaramuça,
com a companhia portuguesa a tentar manter-se firme, atacando os franceses com as baionetas e com as coronhas dos mosquetes, mas o inimigo era muito numeroso, tendo
os lusitanos sido rapidamente afastados e abatidos, e os franceses chegado à brecha de ambos os lados. Perkins e os seus homens correram em frente. A maioria tinha
mosquetes, mas alguns empunhavam pás que brandiam como machados. O combate corpo a corpo foi sangrento, sem tempo para qualquer misericórdia. Arthur viu Perkins
erguer a pistola e alvejar um francês no rosto, rebentando-lhe a nuca numa chuva de sangue, miolos e fragmentos de osso. Arthur sentiu uma pontada de medo quando
se apercebeu de que estava desarmado. Olhou à sua volta e quando viu um mosquete encostado à muralha, correu sobre os escombros para o agarrar, esperando que estivesse
carregado. Quando regressou à brecha, os seus homens já estavam a ser rechaçados, à medida que centenas de franceses investiam. Viu Perkins dobrar-se sobre si próprio
ao ter o peito trespassado por uma baioneta.
- Para trás! - bradou uma voz. - São demasiados. Retirar!
Os soldados recuaram, levando Arthur com eles. Chegaram à trincheira quando o inimigo começou a sair pela brecha, liderado por um oficial corpulento de bigode farfalhudo.
Bradou-lhes que investissem e matassem todos quantos lhes aparecessem pela frente. Os soldados investiram para a trincheira, fazendo recuar os britânicos. Arthur
já fora empurrado a alguma distância e deu meia-volta para descer a trincheira escorregadia, em direção ao acampamento. Viu então um jovem tenente, de olhos arregalados
com o terror, encostado a um dos lados. Arthur segurou-lhe no braço.
- Tenente! Reúna estes homens. Têm de ripostar. Tome! - Empurrou o mosquete para a mão do jovem e puxou-o para o meio da trincheira, bloqueando o caminho de quem
ainda fugia da brecha. - Parem aí, rapazes! - Arthur levantou a mão. - Estou a dizer para pararem!
Ao verem o general, os homens detiveram-se, incapazes de desobedecer ao comandante, mas ainda assim receando virar-se para lutar. Arthur apontou com a mão enluvada
encosta acima.
- O inimigo tomou a brecha! Se os deixarmos manter-se firmes, teremos de voltar a tomá-la! Não vou desperdiçar vidas sem necessidade. Têm de dar meia-volta e tomá-la
mais uma vez! Vamos lá, rapazes, é a única maneira!
O tenente aquiesceu e depois avançou por entre a multidão, apontando com o mosquete emprestado para a encosta.
- Sigam-me, homens! - vociferou, com um leve toque de histeria na voz. - Avançar! Pelo rei! Por Inglaterra!
- Por Inglaterra! - ecoou o sargento que aconselhara Arthur a manter a cabeça baixa. - Vamos dar cabo daqueles malditos franciús! Avançar!
Os homens bradaram e correram outra vez trincheira acima. Arthur observou-os por um instante e depois correu no sentido oposto, escorregando aqui e ali na lama.
Quando chegou à extensão plana, avançou a chapinhar até chegar à primeira zona de reunião, onde viu Somers-Cocks e os seus voluntários.
- O que se passa, milorde? - indagou o major.
Arthur não respondeu, apontando para a brecha.
- Leve os seus homens ali para cima a passo de corrida. Libere a brecha e mantenha-se firme. Vá!
- Sigam-me! - bradou Somers-Cocks, enquanto desembainhava a espada. Avançou para a abertura da trincheira seguido pelos soldados, correndo pela água enlameada que
enchia o fundo. Arthur virou-se e prosseguiu o seu caminho, em direção ao posto de comando. Aí encontrou Somerset e deu ordens para que uma brigada fosse enviada
para apoiar Somers-Cocks. Depois pegou num telescópio, apoiou-se no saco de areia que servia de parapeito do posto de comando e firmou os cotovelos para espreitar
pelo óculo. Os franceses derrubavam apressadamente as muralhas improvisadas de ambos os lados da brecha. Outros eliminavam os aliados feridos com as baionetas. Um
oficial de farda com cordões dourados dava ordens aos homens para que recolhessem as ferramentas dos engenheiros e as levassem para o interior da fortaleza. Arthur
sentiu um aperto no coração. Os defensores franceses eram tão inteligentes quanto corajosos, pensou com amargura. A captura das ferramentas seria um maior retrocesso
para Arthur do que a morte dos soldados.
O oficial francês deu uma derradeira vista de olhos em torno da brecha e depois fitou a encosta, na direção de Somers-Cocks e dos seus homens, que carregavam para
se unir aos sobreviventes do ataque que abriam caminho na última extensão de trincheira antes da abertura. Acenando com a espada, o francês ordenou que os homens
se encaminhassem para a brecha, por onde retiraram ordenadamente e desapareceram de vista.
- Sofremos noventa e quatro mortos e trinta e dois feridos, perdemos a maior parte das ferramentas que Perkins levara e vinte metros da trincheira de aproximação
foram derrubados - relatou Somerset nessa noite. - A brecha está outra vez nas nossas mãos e o major Somers-Cocks estabeleceu uma força permanente de duas companhias
de Guardas de Coldstream para proteger a nossa posição no interior da fortaleza. O capitão Morris assumiu os trabalhos de menagem, milorde.
- Muito bem. - Arthur aquiesceu, fatigado. - Por enquanto prosseguimos com o cerco. Leu os últimos relatórios dos nossos amigos espanhóis?
As notícias eram más. O general espanhol encarregado de deter qualquer avanço francês de Valência em direção a Madrid ficara melindrado com a nomeação de Arthur
para comandante supremo e amotinara-se. Entretanto, Soult marchava ao encontro de José Bonaparte. A norte de Burgos, o general Souham fora confirmado como substituto
de Marmont e reunira quase cinquenta mil homens na margem oposta do Ebro. Arthur esperava ser informado a qualquer momento de que Souham atravessara o rio e estava
a caminho de Burgos. A desgraça final fora uma mensagem intercetada do imperador francês para o irmão, onde anunciava uma grande vitória sobre os russos, em Borodino,
e dizia estar prestes a capturar Moscovo.
Desanimado, Somerset recostou-se na cadeira.
- A menos que a nossa sorte mude, talvez seja melhor reunir o que ainda nos resta e retirar.
- De Burgos talvez - acedeu Arthur. - Mas receio que tenhamos igualmente de abandonar Madrid. O que mais poderemos fazer, caso esta notícia esteja correta? Se tivesse
comigo o exército todo, poderia enfrentar Souham e derrotá-lo, mesmo tendo de deixar Madrid aberta a Soult. Se regressar a Madrid e juntar o exército de Hill ao
meu, isso dar-nos-ia sessenta e cinco mil homens com que defrontar Soult, que tem quase cem mil, enquanto Souham se aproxima vindo de norte. Ficaríamos encurralados.
- Arthur fechou os olhos e obrigou a mente exausta a raciocinar com a clareza possível. - Por agora, o melhor que podemos esperar é tomar Burgos e estabelecer uma
guarnição forte e bem aprovisionada. Isso vai deter Souham enquanto regressamos a Madrid. Depois? Só nos resta rezar para que Soult se atrase.
Somerset observou atentamente o general por um instante, apercebendo-se de como ele tinha os olhos encovados e como parecia exausto. O tempo frio e miserável das
últimas semanas e a lama e a paisagem deprimente de Burgos vieram aumentar-lhe o fardo e, pela primeira vez, Somerset interrogava-se como poderia um único homem
suportar durante tanto tempo a pressão do comando. A campanha começara no início do ano e agora, passados dez meses, os oficiais e os soldados estavam obviamente
exaustos e o moral atingia níveis muito baixos. Se todos eles se aproximavam do limite, a que maior nível de magnitude estaria Wellington do seu? Apenas um homem
poderia ter levado o exército a tamanhas conquistas na Península Ibérica e, ao olhar agora para esse homem, Somerset receava por si próprio e por todo o exército,
longe do lar que muitos não viam havia anos.
- Sir? - dirigiu-se-lhe num tom baixo. - Quer que peça algo para comer? Sir?
Não houve resposta, apenas a respiração profunda e regular. Somerset sorriu com afeição, depois levantou-se e juntou mais alguns troncos ao fogão de campanha. Após
um momento de hesitação, pegou na capa suja de lama que estava em cima de uma das arcas no interior da tenda e tapou cuidadosamente o corpo de Wellington.
- Boa-noite, sir - murmurou e saiu da tenda.
Quatro dias depois, os franceses voltaram a atacar os sapadores, irrompendo pelos trabalhos entre as muralhas ao início da madrugada. Mataram os engenheiros que
abriam um pequeno túnel através da rocha por baixo da segunda muralha. Os homens destacados para a proteção lutaram brevemente, antes de fugirem em direção à brecha.
Aí depararam-se com o major Somers-Cocks a barrar-lhes o caminho. Tentava reuni-los e contra-atacar os soldados inimigos quando foi alvejado no coração. Os homens
perderam o ânimo e fugiram para as trincheiras, deixando o inimigo a capturar ainda mais ferramentas, após o que deixaram uma pequena carga na entrada da mina, que
rebentou, enterrando a entrada sob toneladas de rocha.
Mais tarde, quando o primeiro relatório do ataque chegou ao quartel-general, Arthur leu os pormenores e depois baixou o documento, o rosto lívido quando se virou
para se dirigir a Somerset.
- O Somers-Cocks morreu. - Depois saiu lentamente da tenda para mirar a fortaleza, onde a bandeira tricolor adejava, num desafio, sobre a torre de menagem.
O major Somers-Cocks foi a enterrar nessa tarde, sob uma chuvada gelada. O corpo, envolvido em lona, foi baixo para a cova enquanto o capelão dos Guardas de Coldstream
lia o serviço no seu habitual tom monocórdico. Arthur não ouviu uma única palavra. Já as escutara a todas, tendo-as lido da mesma forma átona sobre os corpos de
muitos jovens que tinham sofrido o mesmo destino. Alguns eram tão promissores como Somers-Cocks, a maioria não. Alguns mostravam um espírito aventureiro, correndo
com brio para o campo de batalha, enquanto outros eram nervosos, mesmo receosos, consumidos pela perspetiva da morte, mas mesmo assim obrigando-se a avançar, até
que a morte os reclamava, através de uma granada, uma bala, uma lâmina, ou uma doença.
O capelão fechou o livro de orações e curvou a cabeça por um instante, sendo imitado pela maioria dos oficiais e dos soldados. Arthur não o fez. Deixou-se fitar
a fortaleza bastante tempo, com a chuva a escorrer-lhe pelo rosto em regatos cristalinos. Depois, por fim, dirigiu-se a Somerset, pigarreou e falou num tom duro:
- Vou levantar o cerco. O exército vai deixar Burgos e regressar a Madrid. Faça o obséquio de transmitir as ordens. Estarei na tenda, caso precisem de mim.
Virou-se e afastou-se a chapinhar por entre as poças, agitadas pela chuva intensa.
- Se precisarmos de si? - repetiu Somerset em voz baixa. - Mais do que nunca, milorde.
Capítulo 33
Tordesilhas, 31 de outubro de 1812
- Com que então sempre o fez? - Arthur abanou a cabeça, num gesto de admiração sincera pelo feito.
- É verdade, sir - corroborou Somerset, que olhava para o boletim informativo capturado. - Bonaparte entrou em Moscovo no dia dezanove do mês passado.
- Refere alguma coisa quanto ao facto de ele e o czar terem chegado a algum acordo?
Somerset perscrutou o resto do artigo e meneou a cabeça.
- Não exatamente. Diz apenas que o imperador aguarda que o czar admita a derrota.
- Umpf - fungou Arthur. - Se os russos concordarem com a paz, Bonaparte terá livre rédea para tombar a balança do seu poder na nossa direção. Nessa altura, os nossos
planos ficarão completamente destruídos. Bem, resta-nos esperar que o czar continue a desafiá-lo. Muito bem, quais as informações mais recentes acerca dos movimentos
do inimigo?
Somerset folheou os relatórios.
- Parece que os franceses tomaram uma travessia sobre o rio Douro, em Toro.
- Toro, hã? - Arthur franziu o cenho. - Isso são más notícias. Ameaçam isolar-nos de Portugal. Receava que pudessem tentar posicionar-se entre nós e Madrid. Agora
parecem querer apanhar-nos entre o Exército de Portugal e a força de Soult que está a marchar contra o Hill. - Fez uma pausa e apertou a cana do nariz. - Ao que
parece, nunca estive em tão maus lençóis, Somerset.
O exército saíra de Burgos alguns dias antes, durante a noite. Com as rodas das peças de artilharia e dos carros abafadas com palha, tinham cruzado a ponte em Burgos
e depois marchado para sudoeste, em direção a Valhadolid e ao rio Douro. Arthur pretendia afastar os seus homens o mais possível do Exército de Portugal ao serviço
dos franceses. Qualquer esperança de que o inimigo continuasse excessivamente desmoralizado para combater após a derrota em Salamanca em breve se desfez. O inimigo
perseguia o exército aliado tão depressa quanto podia e avançava com a confiança inabalável de quem possui os maiores batalhões do seu lado. À medida que o mês se
foi aproximando do fim, tornou-se óbvio que os franceses eram demasiado fortes para que Arthur arriscasse uma batalha. Seria obrigado a abdicar de qualquer esperança
de manter as suas forças no centro de Espanha, para renovar a campanha no ano seguinte. Parecia agora que se arriscava a ficar encurralado onde estava.
Olhou para Somerset.
- Não há dúvida quanto ao que temos de fazer. O Hill terá de deixar Madrid de imediato. Esperara unir as nossas forças a norte daqui, mas agora é demasiado tarde.
Envie-lhe ordens para que se encontre comigo em Salamanca. Entretanto, não deve enfrentar o inimigo.
Somerset pareceu surpreendido.
- Pretende deixar que os franceses voltem a tomar a capital, milorde?
- O que quer que eu faça? O Hill não consegue resistir sozinho ao Soult.
- Concordo, sir, mas o que pensarão os nossos aliados espanhóis? Vão dizer que os traímos.
- Por Deus, eles que digam o que bem lhes apetecer! - Arthur esmurrou a mesa. De imediato se arrependeu, furioso consigo mesmo por ter deixado que a irritação que
nele crescia desde que o exército fracassara na tentativa de tomada de Burgos o dominasse. Respirou fundo e abriu o punho, obrigando-se a prosseguir num tom mais
sereno. - De certeza que os nossos aliados espanhóis vão troçar de nós por esta medida. Contudo, isso é algo que teremos de suportar. Afinal de contas, pouco ou
nada lhes devemos. Aprendi a não esperar grande coisa dos superiores espanhóis, mesmo depois de tudo o que fizemos por eles. Podem gritar vivas e ser simpáticos
para connosco, além de odiarem os franceses, mas no geral são o povo mais incapaz que já vi, e o mais vaidoso. Assim sendo, e sopesando o bem do meu exército contra
a boa vontade dos espanhóis, não tenho dúvidas quanto à minha opção, Somerset. - Olhou para o ajudante de campo, os olhos secos e doridos pela falta de descanso,
e a cabeça a latejar-lhe pela mesma razão. - Dito isto, importa-se de enviar as ordens ao Hill?
- Com certeza, sir - retorquiu Somerset, com um tom de culpa na voz. - As minhas desculpas.
- Que disparate! - Arthur forçou um sorriso. - Sou eu que lamento. Os erros que me lançaram na minha presente melancolia não foram seus, Somerset. Que pelo menos
isso o conforte. Agora, vá enviar a mensagem ao Hill, o mais depressa possível.
Embora o céu tivesse ficado limpo no início de novembro, o inverno começara a instalar-se sobre toda a Espanha. A paisagem abrasadora por onde o exército marchara
da última vez que tinha tido motivo para se dirigir a Salamanca oferecia agora madrugadas geladas e dias com um vento frio que entrava por cada rasgão nas fardas
dos soldados e fustigava a pele.
- Um exército em retirada nunca é uma imagem bonita de se ver - lamentou-se Arthur enquanto observava um regimento da divisão do general Campbell a arrastar-se pela
estrada enlameada com destino a Salamanca. Os homens encontravam-se num estado lastimável. Por escanhoar, alguns com fardas remendadas que mal faziam jus ao nome,
outros, depois de se terem livrado dos restos das calças de lã torcida cinzenta que tinham recebido havia quase onze meses, usavam uma variedade de substitutos.
Todavia, os mosquetes estavam bem cuidados e nem uma ponta de ferrugem maculava os canos cinzentos compridos.
Alguns dos homens olharam para Arthur com expressões carrancudas ao passarem e não se ouviu um único viva que normalmente recebia o comandante quando este era reconhecido
pelos soldados. O estado de espírito miserável não fora melhorado pela incompetência do novo quartel-mestre de Arthur, o coronel Gordon, que enviara os carros de
fornecimentos por uma estrada diferente para Salamanca, negando ao exército as rações dos últimos três dias. Os homens comiam bolotas e castanhas apanhadas pelo
caminho.
Também o humor de Arthur azedou ao pensar na recente descoberta de Somerset, de que Gordon andava a enviar relatos derrotistas para os jornais londrinos. Há muito
que Arthur se acostumara aos "resmungos" de alguns dos seus subordinados. Tal era inevitável, num conflito tão longo. No entanto, a incompetência era algo que não
tolerava, pelo que decidiu desmobilizar Gordon, independentemente dos conhecimentos políticos do indivíduo.
O general Campbell serviu-se de uma pitada de rapé à passagem dos soldados. Quando Arthur comentou o estado das tropas, o general retorquiu, num tom casual:
- Não passam de miseráveis na melhor das hipóteses, sir. Especialmente os veteranos. Mas ficam satisfeitos com um copo de gin na barriga, e a perspetiva de um combate.
- Nesse caso, esperemos que os franceses não nos desapontem quando chegarmos a Salamanca.
Campbell franziu o cenho ao fungar, pestanejou e depois virou-se para Arthur.
- Pretende enfrentá-los nessa altura, sir?
- Porque não? Assim que juntarmos as forças de Hill às nossas, será uma oportunidade tão boa quanto outra qualquer.
- E o que ganhamos com isso? - Campbell fez uma pausa para calcular os totais. - Sessenta e cinco mil homens contra talvez cem mil franciús?
- Diria que talvez sejam menos - corrigiu Arthur, - caso as minhas informações estejam corretas. Chegaram-nos relatórios que dizem que as formações de Souham foram
dispersas por outros comandos. É provável que não enfrentemos mais de oitenta mil homens.
- Mesmo assim, eles continuam em superioridade numérica, sir, especialmente em cavalaria e peças de artilharia.
- É verdade, mas imagino que se sintam incomodados ante a perspetiva de combater no mesmo terreno onde foram derrotados de forma tão marcante da última vez. Acredito
que essa mesma razão vai animar os nossos rapazes.
Campbell olhou-o com um sorriso rasgado.
- Deixe-me que lhe diga que o senhor é muito matreiro, milorde.
- Talvez. - Arthur franziu o sobrolho. - Só espero não ter exagerado a minha reputação. Não seria bom que o Soult e o José se recusassem a morder o isco por falta
de confiança. - Devolveu a atenção aos soldados que iam marchando. - Seria uma pena recusar aos seus homens uma oportunidade de se divertirem.
Campbell riu-se e ofereceu a caixa de rapé a Arthur.
- Quer um pouco, sir? É excelente para limpar as ideias.
Arthur mirou a caixa com desdém. Nunca gostara de rapé, nem entendia o prazer que se poderia obter com os espirros por ele produzidos. Abanou a cabeça.
- Agradeço-lhe, mas não. Com o meu nariz, de certeza que ficava sem metade do conteúdo.
Campbell fitou-o, de olhos arregalados, ao que soltou uma gargalhada, enquanto guardava a caixa de rapé.
- Mantenha os seus homens em movimento, Campbell. Vou precisar de todos eles quando travarmos a nossa batalha em Salamanca. - Tocou na aba do chapéu e virou a montada,
encaminhando-se para a divisão seguinte na linha de marcha que serpenteava para ocidente, sobre a paisagem desolada.
Hill e a sua força juntaram-se ao exército dois dias depois da chegada de Arthur a Salamanca. As forças conjuntas de Soult, José e Souham encontravam-se a um dia
de marcha de Hill. Arthur ordenou de imediato que o exército acampasse, como antes, nas encostas opostas da Arapil Pequena. Logo após a cumeada oposta, os franceses
fizeram alto para acampar, dispersando uma linha de vedetas ao longo do topo para observar a posição aliada. Arthur usou como quartel-general a casa de quinta onde
avistara a movimentação de Marmont. Enquanto os homens vasculhavam o campo circundante em busca de lenha e preparavam a melhor refeição possível com as rações que
lhes sobravam, Arthur convocou os oficiais superiores para a casa, para os informar dos seus planos.
Ficou satisfeito por rever o general Alava. Este juntara-se à coluna de Hill na retirada de Madrid e esboçou um sorriso em resposta ao cumprimento de Arthur.
- Milorde, não faz ideia da animosidade que criou ao deixar Madrid. Tive dificuldade para convencer as Cortes a deixarem-me voltar a juntar-me a si.
- Lamento o seu desconforto. Contudo, espero que aqueles que gerem os assuntos espanhóis prefiram ter o meu exército intacto, em vez de ter sido destruído, caso
permanecesse em Madrid.
Alava franziu o cenho.
- Quem me dera que fossem assim tão previdentes, milorde. Há quem não se acanhe em querer declarar guerra a Inglaterra.
Somerset ficou escandalizado.
- Não pode estar a falar a sério.
- Foi no calor do momento. Isso passa. - Alava acenou com a mão. - Felizmente consegui convencer algumas cabeças mais frias de que se tratava de um expediente temporário
e de que os nossos aliados regressariam para libertar Madrid de vez.
- Obrigado. - Arthur indicou a Alava um lugar às mesas que o agricultor instalara no celeiro, o único espaço grande o suficiente para albergar tão grande número
de oficiais. Arthur bateu com os nós dos dedos na tábua para os silenciar e lhes chamar a atenção. - Cavalheiros, tenho fé de que amanhã enfrentaremos o inimigo.
Embora nos encontremos em desvantagem numérica, dispomos de uma boa posição defensiva que irá contrariar qualquer supremacia que eles possam ter em peças de artilharia
e cavalaria. Também nos deixa com caminho aberto para Portugal, no caso de tal ser necessário. Já antes nos encontrámos numa situação semelhante e se os franceses
se comportarem como então, nesse caso iremos derrotá-los mais uma vez. Tal como aconteceu no Vimeiro e no Buçaco. - Fez uma pausa, preparando os oficiais para uma
mudança de tom. - A verdade é que esta batalha, a ter lugar, será a nossa última oportunidade de retirar alguma vantagem da campanha deste ano. Se conseguirmos derrotar,
ou expulsar os franceses, a nossa retirada acaba aqui. Se nos derrotarem, pelo menos poderemos retirar para Portugal para lamber as feridas e voltar a atacá-los
na primavera.
- E se eles decidirem não lutar? - questionou Hill. - Da última vez que ocupámos esta posição, Marmont teve relutância em atacar. Foi o senhor que teve de levar
a batalha ao inimigo.
- Da última vez, as nossas forças estavam equiparadas, pelo que pude dar-me ao luxo de atacar - explicou Arthur. - Desta vez, as probabilidades estão contra nós
e não seria prudente fazê-lo. Além disso, tendo em conta o esforço levado a cabo pelos nossos inimigos para reunir todos os homens disponíveis em três exércitos,
não acredito que eles não se prestem à batalha. Imagino que seja o Soult a assumir o comando, já que detém a patente mais elevada. A última vez que nos enfrentámos
foi no Porto. Ele vai estar ansioso por vingança. O Soult sabe que terá de nos enfrentar aqui, caso contrário será obrigado a perseguir-nos até à segurança das nossas
fortalezas em Portugal. Cavalheiros, estou certo de que teremos a nossa batalha. - Olhou em redor do celeiro, para os seus oficiais. - A vós só resta cumprir o vosso
dever.
O Sol apareceu vindo da neblina e banhou as duas cumeadas com um brilho quente que foi acolhido com satisfação pelos soldados, fartos do vento e da chuva que lhes
tinha acompanhado a marcha pelo centro de Espanha. Enquanto os homens de Arthur assumiam silenciosamente as posições na encosta oposta, as equipas de artilheiros
prepararam as peças, dispondo-as pela cumeada de modo a devastar quaisquer colunas inimigas que avançassem pelas encostas da Arapil Pequena. Arthur ainda pensara
em guarnecer a Arapil Grande, mas acabara por não o fazer. Precisava de todos os soldados na linha principal de batalha e não estava disposto a dar início a uma
feroz luta de desgaste pelo controlo da colina, a qual resultaria a favor dos franceses, mais numerosos.
Na cumeada oposta, as tropas francesas formavam ao som das bandas, que tocavam as habituais melodias animadas para imbuir os soldados dos sentimentos apropriados
de dramatismo e patriotismo. Durante quase três horas, as hostes francesas alinharam-se num arco em torno da Arapil Pequena, um fluxo constante de batalhões de infantaria
atrás dos estandartes tricolores encimados pelas águias douradas que Napoleão atribuíra ao exército. Nos flancos, densas massas de cavalaria aguardavam pacientemente,
com os cavalos a raspar o solo, as caudas a agitar-se a espaços, enquanto os cavaleiros esperavam por ordens para montar. Ao centro, prontos a fustigar a linha aliada,
uma grande bateria de mais de quarenta peças de artilharia tinha sido puxada para a frente, com as primeiras cargas de metralha e de bolas prontas a serem carregadas.
Às dez, tudo estava pronto de ambos os lados e os soldados aguardaram numa expectativa tensa, os ouvidos atentos ao som do canhão sinalizador que anunciaria o deflagrar
do combate. Arthur e os seus oficiais tinham montado e avançado até ao derradeiro ponto seguro na cumeada, onde esperavam. De vez em quando, um oficial puxava do
relógio e assinalava o passar do tempo.
Depois, ao meio-dia, os escaramuceiros gauleses começaram a avançar pelo vale aberto, procurando então abrigo, à medida que os atiradores britânicos iam abrindo
fogo, abatendo uma mancheia de oficiais e soldados franceses. O duelo desorganizado entre as duas fações de atiradores arrastou-se durante mais uma hora sem grandes
resultados, já que os mosqueteiros ingleses se limitavam a ficar onde estavam e os escaramuceiros franceses, armados com mosquetes de alma lisa e, logo, sem grande
alcance, apenas se atreviam a saltar de abrigo em abrigo, até ficarem a uma distância que lhes permitisse disparar as armas. As nuvens engrossaram à medida que a
troca de fogo prosseguiu, lançando uma sombra lúgubre sobre ambos os exércitos.
- Uma e meia, milorde - ofereceu Somerset num tom casual. - Não há sinais de qualquer ataque. O que estará o Soult a tramar?
Arthur sentiu uma pontada súbita de receio. E se Soult estivesse a queimar tempo enquanto outro elemento do exército assumisse a posição?
- Temos notícias das patrulhas de cavalaria?
- Sir?
- Há informações de outras colunas inimigas na zona? Ou algures na estrada para Portugal?
- Não, sir. - Somerset raramente detetara tal ansiedade na voz do comandante, pelo que acrescentou: - Tenho a certeza disso. Li todos os relatórios logo pela manhã.
Este é o único exército francês nas redondezas de Salamanca.
- Aposta a sua vida nisso? - indagou Arthur, com brusquidão.
- Sim.
Arthur virou-se para encarar o ajudante de campo, os olhos cheios de desprezo.
- Nesse caso é um tolo, Somerset. Ou um charlatão.
Somerset engoliu a fúria. Wellington não estava em si e era preciso conceder alguma margem e tolerância, pelo que refreou a língua enquanto o general voltava a concentrar-se
no inimigo, com os dedos da mão esquerda a bater um ritmo inconsciente no coldre da sela. Arthur via claramente os comandantes inimigos e respetivos estados-maiores,
agrupados na posição aproximada que Marmont ocupara na batalha anterior. Ergueu o telescópio, apontou-o para o grupo de cavaleiros e identificou as fardas engalanadas
de José e dos seus oficiais superiores. Pareciam estar imersos num debate animado.
Enquanto Arthur observava, ouviu uma pancada surda na borda do chapéu, depois outra. Baixou o telescópio e viu que começara a chover. O ruído tornou-se mais constante
e depois transformou-se num silvo, à medida que a chuva caía com vontade, criando um véu uniforme entre os dois exércitos. Arthur olhou para o céu e viu que as nuvens
se tinham espalhado até ao horizonte. As colinas mais distantes já estavam ocultas e as que se erguiam a poucos quilómetros tinham-se reduzido a contornos acinzentados.
- Continua sem haver movimentações por parte do inimigo - resmungou um oficial.
Arthur aquiesceu e enfiou o telescópio no alforge, abotoou o capote e deixou-se ficar sentado hirto, enquanto ponderava o gesto seguinte. A chuva iria dificultar
ambos os lados. Os franceses teriam de avançar pelo fundo lamacento do vale antes de começarem a subida da encosta que os levaria até à posição aliada. Tanto a infantaria
como a cavalaria seriam atrasadas pelo terreno macio. Ao mesmo tempo, a chuva aumentaria o número de disparos gorados por parte dos soldados de Arthur, o que reduziria
o poder de fogo da sua linha, um fator preocupante, uma vez que já se encontrava em desvantagem numérica. Enquanto pensava, Somerset ergueu-se nos estribos e apontou
para a cumeada distante.
- Sir, olhe ali. Os franceses estão em movimento.
Arthur levantou a mão para se proteger da chuva e semicerrou os olhos. Com efeito, os homens da reserva de cavalaria inimiga, agrupados no topo da cumeada, subiam
para as suas montadas. Depois, um esquadrão de cada vez, viraram-se e afastaram-se sobre o topo. À medida que a ordem se foi espalhando para outras formações, o
exército francês começou a retirar em direção ao acampamento.
- Parece que a chuva impediu a brincadeira - constatou Somerset.
Arthur aquiesceu e suspirou. Não haveria batalha. Soult não se deixaria atrair para um ataque a uma posição defensiva forte. Isso deixava uma única linha de ação
racional aberta a Arthur. Puxou as rédeas e deu meia-volta ao cavalo, encarando os oficiais do estado-maior.
- E pronto, cavalheiros. O exército vai recuar para Ciudad Rodrigo. Somerset.
- Sim, milorde?
- Disperse o exército. Os homens que regressem ao acampamento para passar a noite. Informe todos os comandantes de divisão que o exército vai dar início à retirada
pela alvorada. Durante a noite vão receber as ordens escritas para a marcha. É tudo. Cavalheiros, podem ir.
Os rostos dos oficiais denotavam o desapontamento e o seu espírito abatido. Arthur observou-os a virar as montadas e a regressar ao quartel-general na fazenda. Partilhava
os sentimentos. O exército iria voltar ao ponto de partida da campanha, e o fracasso da tomada de Burgos, o abandono de Madrid e o desconforto da longa retirada
ao longo dos meses de inverno seria um fardo na mente de cada soldado. Muitos iriam dar voz ao seu descontentamento nas cartas que enviariam para casa durante a
espera pelo final do inverno.
Contudo, fez Arthur por se recordar, os soldados tinham sempre a tendência de reclamar de tudo o que lhes provocasse um descontentamento imediato. A seu tempo, depois
de descansarem e de se alimentarem devidamente, e de receberem novas botas e fardas, iriam recordar a glória de Salamanca. E a entrada triunfante na capital espanhola.
Arthur virou mais uma vez o cavalo para encarar o inimigo. Mesmo que Soult os tivesse privado da batalha daquele dia, ele reconhecia a importância do momento. Apesar
da vantagem numérica, Soult recusara-se a lutar. Os marechais de Bonaparte tinham começado a receá-lo, percebeu Arthur com satisfação. Já não eram os mestres dos
campos de batalha europeus. Mal se atrevia a dar voz ao que lhe corria no pensamento, mas no seu íntimo sabia que os ventos da guerra estavam a virar-se contra França,
e contra Bonaparte.
Capítulo 34
Napoleão
Maloyaroslavets, 25 de outubro de 1812
A chuva parou após os dois primeiros dias de marcha e o céu limpo, a par do tempo mais ameno, permitiu ao exército francês chegar à vila de Maloyaroslavets, a cem
quilómetros de Moscovo, no final do quinto dia. Napoleão decidiu encaminhar-se para sudoeste, em direção a Kutusov, na esperança de que os russos recuassem, abrindo
assim o caminho para a retirada até Smolensk. As notícias dos outros elementos do exército eram más. O marechal MacDonald, que cercava Riga, na costa báltica, enfrentava
um cada vez maior número de russos e a lealdade de muitos dos seus soldados, acima de tudo os prussianos, estava em causa. A sul do Pripet, o general Schwarzenberg
e os seus austríacos enfrentavam o dobro dos russos e eram obrigados a recuar.
Entretanto, os batedores de Murat relatavam que outras forças russas se aproximavam vindas de norte, sul e leste para se juntarem a Kutusov. Não havia como negar
o risco: a armadilha fechava-se lentamente em torno do Grande Exército. Se Kutusov bloqueasse as travessias do rio ao longo da linha de retirada francesa, a fome
e o frio devastariam o exército de Napoleão e os homens de Kutusov acabariam com ele.
Na véspera, o príncipe Eugénio abrira caminho pela ponte sobre o rio Lusha, em Maloyaroslavets, e, nessa manhã, Napoleão, o seu estado-maior e uma pequena escolta
de dragões tinham partido numa missão de reconhecimento da estrada ocidental. Dois mil homens mantinham a povoação, enquanto o resto do exército aguardava na margem
norte pela ordem de avanço. O céu estava limpo e o ar matutino cristalino e frio, pelo que os cavaleiros e as montadas exalavam plumas de vapor ao avançarem por
uma vala baixa. A estrada era ladeada por campos vazios e cabanas ocasionais e, mais além, florestas estendiam-se à distância em todas as direções.
Napoleão olhou para o céu, após o que se dirigiu alegremente a Berthier.
- Se o tempo se aguentar assim mais duas semanas, faremos um bom avanço em direção a Smolensk.
- Sim, sire - replicou Berthier, mas o tom era cauteloso e Napoleão virou-se para o encarar, enquanto os cavalos avançavam por uma extensão de lama aguada.
- Tem dúvidas, Berthier?
O oficial coçou brevemente a barba de vários dias do queixo.
- Posso falar livremente, sire?
- Por favor.
- Muito bem. Não consigo deixar de pensar que deveríamos tomar o caminho mais direto de regresso a Smolensk, especialmente com o tempo bom. Quanto mais depressa
o exército chegar ao aquartelamento, melhor.
- Concordo, meu amigo, mas o maior desafio que se nos apresenta neste momento é fazer com que o exército continue a existir. Se tivesse dado ordem para regressarmos
pelo mesmo caminho, não haveria como ocultar dos homens o facto de que estamos a retirar. Decerto imagina como isso afetaria o moral. É melhor seguirmos um rumo
diferente, algo que me permita apresentá-lo aos soldados como um avanço. Se acreditarem nisso , estou seguro de que vão continuar prontos a lutar. Entende?
Berthier anuiu.
- Ótimo. Então vamos procurar um ponto elevado para vermos o caminho à nossa frente. - Napoleão olhou em redor e apontou para um morro dois quilómetros mais à frente.
- Ali.
Estava prestes a incitar o cavalo quando ouviu um grito à esquerda. Napoleão virou-se. Um dos elementos do pequeno destacamento de dragões, cinquenta passos à esquerda,
apontava para a mata. Um grupo de cavaleiros, talvez cinquenta homens, empunhando lanças, tinha saído de entre as árvores e apressava-se a chegar ao grupo de franceses.
Vestiam mantos vermelhos esvoaçantes e chapéus de pele preta. As montadas eram mais pequenas e hirsutas do que os cavalos franceses.
- Cossacos - resmungou Berthier.
Outro grito de alerta fez-se ouvir à direita e Napoleão e os seus oficiais viraram-se, deparando com um segundo grupo que saía da floresta do outro lado, avançando
em ângulo para cortar o acesso dos franceses à povoação. Os dragões tinham sacado das carabinas e apressavam-se a estabilizar as montadas para apontar. Viu-se uma
baforada de fumo e ouviu-se um estampido quando o primeiro dragão abriu fogo. O disparo falhou por muito. Quando os camaradas se juntaram à salva, Napoleão viu um
dos póneis dos cossacos tombar, atirando o cavaleiro para o campo lamacento sobre o qual cavalgavam em direção ao imperador francês e à sua pequena comitiva. Assim
que dispararam, os dragões voltaram a guardar as carabinas e empunharam as espadas, incitando as montadas contra os cavaleiros inimigos. Os russos carregaram de
ambos os lados do grupo imperial, bradando o seu grito de guerra debruçados sobre os póneis e de lanças baixas, prontas a investir. Os dragões encontravam-se numa
grande desvantagem numérica e foram rapidamente dominados. Quando o último foi abatido, os cossacos continuaram a avançar diretamente sobre Napoleão e o estado-maior.
- Desembainhem as espadas! - vociferou Berthier. - Defendam o imperador!
As lâminas ornamentadas ressoaram ao deixar as bainhas, enquanto os oficiais franceses puxavam dos sabres leves de cavalaria e das espadas de cerimónia, formando
um círculo largo em torno de Napoleão. Uns poucos tinham pistolas nas selas e sacaram-nas dos coldres, engatilharam-nas e prepararam-se, apontando para o céu, para
evitar que uma descarga prematura atingisse o seu lado. Napoleão observou os cossacos a correr pelo terreno aberto na sua direção, agora suficientemente perto para
lhes distinguir os bigodes compridos que dançavam ao lado das faces, os lábios arreganhados e as bocas escancaradas no ímpeto do ataque.
- Mantenham-se firmes! - ordenou Berthier. - Não os deixem passar.
Um dos oficiais baixou a pistola, apontou, esperou até ao último momento e alvejou um cossaco no peito. O homem deixou cair a lança e tombou da sela de pele de ovelha.
Seguiu-se uma rápida sucessão de tiros de pistola e o primeiro cossaco chegou ao grupo de oficiais de dragonas douradas e chapéus emplumados. Avançou o braço da
lança, cuja ponta procurou o peito de um jovem coronel do departamento de topografia. Com um golpe desesperado, o oficial bloqueou a ponta da arma e recuou o braço
para atacar quando o cossaco se colocou a seu lado. A lâmina polida silvou pelo ar, mas o russo inclinou o corpo para o lado e baixou-se junto à sela, tornando o
ataque inofensivo.
Napoleão olhou à sua volta e viu que todos os oficiais estavam agora em combate, envolvidos num duelo desigual com os cossacos, que atacavam com as lanças qualquer
alvo que se lhes apresentasse. Os oficiais do estado-maior fizeram tudo o que estava ao seu alcance para deter os ataques e usavam o maior peso dos cavalos para
obrigar o inimigo a recuar, mas estavam em desvantagem e acabaram por ser empurrados na direção do imperador. Napoleão não tinha pistolas, nem sequer uma espada,
e sacou do telescópio, empunhando-o com a mão livre, preparado para o usar como clava. A toda a volta, o ar estava pesado com o raspar e o tilintar das lâminas nas
pontas de aço e nas hastes de madeira. Os cossacos tinham interrompido os brados e concentravam-se agora na luta corpo a corpo com os inimigos, os dentes cerrados
em expressões selvagens. O primeiro dos oficiais de Napoleão caiu com um arquejo, tombando da sela quando a ponta de uma lança lhe arrancou da barriga um emaranhado
cintilante de intestinos. Foi seguido quase de imediato pelo cossaco que o abatera, quando um sabre caiu sobre o pescoço do russo, separando músculos e vasos sanguíneos,
e cortando a coluna vertebral. O homem estendeu os braços, contorceu-se na sela e caiu.
- Sire! Cuidado! - gritou Berthier, colocando a montada entre Napoleão e o cossaco que abrira caminho pelo círculo atrás deles. Napoleão virou-se e avistou a expressão
selvagem do russo quando este puxou a lança atrás para atacar. A ponta avançou, escorçada e mortífera, como uma serpente a investir, e Napoleão desferiu um golpe
com o telescópio, conseguindo afastar a ponta. Depois o pónei embateu no flanco da égua de Napoleão, quase derrubando o imperador, que balançou brevemente antes
de segurar as rédeas e firmar as pernas em torno da cilha da montada. Foi a vez de Berthier atacar, descrevendo um golpe com a espada contra o ombro do russo, despedaçando
com estrépito a clavícula e a omoplata. O cossaco largou a lança, puxou as rédeas para o lado com a mão funcional e afastou-se, abrindo caminho por entre os homens
que lutavam atrás de Napoleão.
- Obrigado, Berthier - arquejou Napoleão, o coração aos saltos com o medo e a excitação. Berthier sorriu e os dois homens ouviram um clarim distante a ressoar do
outro lado do campo. Viraram-se e avistaram um esquadrão da cavalaria da Guarda a aparecer vindo de um cotovelo na estrada.
- Aguentem! - bradou Napoleão aos oficiais. - Mantenham-nos afastados!
A escaramuça intensificou-se enquanto os cossacos se esforçavam por abater os inimigos antes que fossem salvos pelos reforços. Mais um oficial tombou, com o peito
trespassado, a ponta ensanguentada a aparecer pelas costas, a menos de três passos do local onde Napoleão se encontrava na sua montada. Arrepiou-se involuntariamente
com a visão. A lança foi puxada e o oficial vacilou na sela, gemendo de agonia antes de começar a desabar para a frente. Outro gritou quando uma lança lhe prendeu
o braço ao flanco e penetrou por entre as costelas do francês. Napoleão ergueu-se rapidamente nos estribos e viu que os dragões investiam para salvar o imperador,
cavalgando pela estrada enquanto levantavam uma cortina de lama, as espadas erguidas a reluzir ao sol.
Um grito repentino atrás de Napoleão fê-lo virar-se na sela, a tempo de ver outro cossaco na sua direção, de lança em riste para atacar.
- Nem penses! - bradou uma voz e um oficial colocou a montada entre o russo e o imperador. Quando o cossaco investiu, o oficial atirou-lhe a espada ao rosto e agarrou
na haste da lança com ambas as mãos. O cossaco segurou-se, mas, com um puxão forte, o oficial do estado-maior arrancou o inimigo da sela e deitou-o ao chão. Um golpe
poderoso da lança no pescoço acabou com o russo.
A aproximação dos cascos retumbantes desviou a atenção do imperador do oficial que o salvara e Napoleão viu a cavalaria da Guarda a carregar sobre a refrega. Eram
homens selecionados, montados nos melhores cavalos, que investiram sobre os cossacos que não conseguiram dar meia-volta e fugir a tempo. Os restantes desapareceram
na mata, perseguidos pelos franceses a galope.
- Quem é ele, Berthier? - Napoleão acenou com a cabeça na direção do oficial que segurava na lança. O indivíduo, louro e de feições delicadas, não teria mais de
trinta anos de idade.
- É o coronel Eblé, sire, um engenheiro.
- Trate da promoção do coronel a general. É um homem corajoso.
- Vamos precisar de muitos como ele nas semanas que se avizinham - retorquiu calmamente Berthier.
Napoleão franziu o cenho. Tinha vontade de censurar o chefe do estado-maior pelo pessimismo demonstrado, mas sabia que Berthier tinha razão. Ao olhar para as florestas
de cada lado, podia ver figuras montadas a ocultar-se nas árvores, a observá-los. De súbito deu meia-volta à montada estrada abaixo e, momentos depois, Berthier
juntava-se a ele.
Permaneceram em silêncio por um instante enquanto Napoleão olhava de um lado para o outro.
- Julgo que talvez seja melhor reconsiderarmos o trajeto - aventou.
De regresso à carruagem de campanha, Napoleão tirou um mapa dos acessos a Moscovo do estojo e abriu-o em cima da mesa desdobrável. Inclinou-se sobre os cotovelos
e analisou-o por breves instantes, após o que aquiesceu. Bateu com o dedo sobre o nome de Maloyaroslavets.
- Não nos atrevemos a levar todo o exército sobre o rio de uma só vez. Iria demorar demasiado tempo, e se o inimigo conseguir avançar forças suficientes para atacar
a cabeça de ponte, podemos ficar encurralados enquanto Kutusov se aproxima de leste.
- É uma possibilidade, sire - concordou Berthier. - Mas se a outra margem estiver defendida por alguns bandos de cossacos e pelos restos da coluna que o Eugénio
afastou, talvez valha a pena arriscar. Se o exército cruzar o Lusha, serão poucos os obstáculos naturais entre nós e Smolensk.
Napoleão pensou por um instante e depois abanou a cabeça.
- Seriam precisos poucos canhões para eliminar a ponte e lançar o pânico. Perderíamos milhares de homens, soldados que não posso dar-me ao luxo de desperdiçar. Não,
o exército não pode atravessar aqui. - Napoleão percorreu o mapa com o dedo. - Vamos dirigir-nos para norte, de volta à estrada Moscovo-Smolensk.
Berthier respirou fundo.
- Mas isso vai custar-nos seis dias, sire. Não nos podemos dar ao luxo de perder assim tanto tempo.
- O tempo é irrelevante se não tivermos um exército para o usar. - Napoleão endireitou-se e esfregou as costas. Mesmo pouco tendo dormido nos últimos dias, sentia
alguma da sua antiga energia a voltar. Apercebeu-se de que o estômago já não lhe doía.
Continuou a olhar para o mapa. Concedeu em silêncio que talvez fosse possível que Berthier tivesse razão, com a marcha em direção a norte a custar-lhes seis dias,
mas o risco acarretado pela tentativa de atravessar o Lusha sobrepunha-se aos receios de Berthier.
Uma súbita rajada de vento fez com que o mapa adejasse onde não se encontrava preso à mesa. Napoleão arrepiou-se e dirigiu-se a um dos ordenanças à espera no exterior
da carroça.
- Vá buscar-me um casaco quente.
Vários dias mais tarde, o exército voltou à estrada para Smolensk e passou pelo campo de batalha de Borodino. Não houvera tempo para enterrar o grande número de
homens e cavalos mortos aquando da perseguição do Grande Exército a Kutusov, em direção a Moscovo, na sequência da batalha de há seis semanas. Desde então, os cadáveres
tinham inchado, apodrecido e sido devorados por alcateias de lobos atraídos de quilómetros em redor pelo fedor da morte. Entre os corpos devastados, estavam os despojos
de guerra: mosquetes abandonados, carros despedaçados de peças de artilharia, elmos e couraças de cavalaria, trespassados por fogo de mosquetes e de canhões.
- Deus do Céu... - resmungou Berthier ao olhar para a paisagem desolada, à passagem da coluna do quartel-general. Estava à frente de Napoleão, numa carruagem aberta.
- É uma cena feia - assentiu Napoleão, ao que franziu o nariz. - E o cheiro é insuportável, mesmo agora.
Virou-se no seu lugar para olhar para a coluna que serpenteava ao longo do campo de batalha. Embora os homens tivessem um aspeto magro e desgrenhado, traziam ainda
os mosquetes e as mochilas. Enquanto o imperador observava, centenas de soldados quebraram as fileiras e correram para os cavalos apodrecidos, em busca de carne
que pudesse ser aproveitada, por mais estragada que estivesse. Era uma visão tenebrosa e Napoleão desviou o olhar, acomodando-se no banco e fechando os olhos. Não
dormiu, tendo antes refletido ansiosamente na contínua desintegração do Grande Exército.
Ainda nesse dia, um dos homens de Murat levara ao imperador um relatório da retaguarda. Custava a crer nas condições que se viviam no final da linha. As forças de
Davout tinham-se dirigido à retaguarda e o marechal informou o imperador de que pelo menos trinta mil retardatários e seguidores enchiam a estrada atrás do corpo
principal do exército. A maioria abandonara as armas e os mais fortes tinham criado bandos que predavam os mais fracos, roubando-lhes as roupas e a comida e deixando-os
para morrer. A fome acabava com centenas todos os dias. Os homens caíam na berma da estrada e fitavam o vazio, à espera da morte.
Bandos errantes de cossacos e de camponeses aproveitavam a oportunidade e chacinavam os soldados franceses com que se deparavam. Os feridos nos carros que restavam
eram esmagados uns pelos outros, tal era o seu número, e quando um homem morria, ou quando se julgava que não tinha salvação, era atirado borda fora, para morrer
na lama, ou para ser esmagado pelos veículos seguintes. Os cavalos que restavam pouco mais eram do que esqueletos e os animais coxos eram abatidos onde caíam, sendo
despedaçados por multidões enlouquecidas. Alguns homens chegavam mesmo a soltar os cavalos das carroças dos feridos, deixando os camaradas para trás e ignorando
as súplicas para não serem abandonados. A juntar a tudo isso, ao longo da linha de marcha viam-se os despojos descartados da campanha, entre armas abandonadas, peças
de artilharia sabotadas, carroças, carros de mão e outros veículos.
Quando o exército chegou ao rio Dnieper, no primeiro dia de novembro, Napoleão mandou que se fizesse alto, para que a retaguarda tivesse tempo de os apanhar. Chegaram
notícias terríveis de mais à frente. Forças russas marchavam para bloquear as passagens sobre o rio Berezina, a cento e cinquenta quilómetros da fronteira com o
ducado de Varsóvia.
Quando a noite chegou, a temperatura desceu abaixo de zero e continuou a cair. Depois de ler os relatórios do dia e de ter redigido as respostas, Napoleão desceu
da carruagem de campanha e aproximou-se do lume que lhe fora aceso por uma divisão de guardas. Cercavam agora o perímetro da luz lançada pelas chamas, com os mosquetes
pendurados ao ombro enquanto batiam os pés, na tentativa de se manter quentes durante o serviço de vigia. Um criado levou uma malga de sopa de cebola e uma fatia
de pão ao imperador, que estava sentado numa cadeira de campanha, a pouca distância da fogueira. Ao beberricar a sopa quente, viu centenas de outros pontos brilhantes
a marcar o terreno circundante e a estender-se em direção ao horizonte oriental. No céu brilhava uma meia-lua, que lançava uma luz débil sobre as manchas negras
das florestas e as extensões abertas das quintas que se perdiam à distância de ambos os lados do exército. Ao longe ouviu-se uma breve salva de fogo de mosquete,
depois silêncio e por fim o longo uivo de um lobo, acompanhado por outros, que prosseguiram até que uma nova rajada de tiros de mosquete os afugentou.
Napoleão sentiu algo frio a bater-lhe na face e pestanejou. Depois, um floco pálido pairou-lhe ociosamente à frente do rosto e caiu-lhe sobre a coxa. Seguiu-se outro,
depois mais, e quando olhou para o céu noturno, viu um súbito movimento em voluta a descer do firmamento contra um banco de nuvens que ocultava a Lua e as estrelas.
Levantou-se vento que estimulou as chamas. Napoleão ouviu passos e virou-se. Viu Berthier a aproximar-se, com uma expressão preocupada a toldar-lhe o rosto.
- Esperava chegar a Smolensk antes da neve, sire.
Napoleão tomou mais um gole de sopa de cebola.
- Eu também. Agora só nos resta esperar que não dure muito.
Nenhum dos homens falou enquanto assistiam ao véu de neve a cobrir a paisagem, deixando lentamente um lençol branco sobre os campos e as florestas ao assentar no
terreno como uma mortalha.
Capítulo 35
6 de novembro de 1812
Berthier ergueu o olhar do despacho que Napoleão lhe dera para ler.
- O caso parece ter sido tratado com eficiência quanto baste. A guarnição de Paris esmagou os traidores e, tal como diz, o general Malet é obviamente lunático.
- Lunático ou não, ele merece ser fuzilado, a par dos outros - retorquiu Napoleão, enquanto arrastava o banco para mais perto da salamandra. No exterior do celeiro
caía um nevão, o que ajudava ao manto branco dos dias anteriores. O quartel-general imperial prosseguira com dificuldades até depois de escurecer, antes de chegarem
ao celeiro e à meia dúzia de barracões que constituíam os únicos abrigos que os batedores tinham conseguido encontrar para aquela noite. Um fogão a lenha tinha sido
trazido da bagagem imperial e um dos carros fora desfeito para servir de lenha, providenciando o suficiente para a salamandra e para uma pequena fogueira no exterior,
em redor da qual as sentinelas da Velha Guarda se amontoavam.
Quando o lusco-fusco se instalara sobre a neve, dando à paisagem invernal um tom azul pálido, os oficiais do quartel-general encontraram um mensageiro na estrada
para Smolensk. A sacola selada só fora aberta depois de Napoleão se ter aquecido e comido junto ao fogão. Havia uma mensagem do ministro da polícia, assinalada como
Muito urgente, a qual Napoleão leu primeiro.
O ministro relatava que tinha tido lugar uma tentativa, por parte de alguns oficiais do exército, de assumir o poder. O cabecilha era o general Malet, adversário
de longa data do imperador, que fora internado num hospício. Tinha conseguido fugir. Ao chegar a Paris com um falso despacho do exército, declarara que Napoleão
morrera na Rússia e conseguira convencer uma série de oficiais a juntar-se à sua causa. Só quando o governador militar de Paris se recusou a acreditar na notícia
é que a trama foi descoberta e os culpados detidos, julgados e fuzilados.
- Bem, isso já acabou. - Berthier dobrou a missiva e depositou-a na caixa de correspondência já lida. - Ao que parece, nunca houve hipóteses de êxito.
- Não está a perceber - comentou Napoleão, com um tom exausto. - Não duvido que Malet e os seus amigos acabassem por fracassar. Os soldados de Paris nunca se juntariam
a eles. O que me preocupa é o número de oficiais dispostos a acreditar que eu tivesse morrido. - Lançou um olhar sério a Berthier. - Será que não percebe? Sempre
que deixo Paris durante algum tempo, nunca demora muito para que o poder me escape por entre os dedos. - Quedou-se em silêncio por um instante, fitando a terra revolvida
entre as botas. - Pelos vistos, a minha presença é necessária em Paris assim que deixar o exército em segurança a passar o inverno.
- Sire - atalhou Berthier com um olhar de alerta, após o que mirou os outros oficiais presentes no celeiro. Alguns debruçavam-se sobre mesas de campanha, ocupados
a redigir ordens, enquanto outros coligiam os mais recentes números de soldados, uma tarefa que a cada dia que passava dava conta do crescente risco que o Grande
Exército corria, à medida que o número de homens em cada divisão ia caindo. Certo de que ninguém o ouviria, Berthier prosseguiu: - Tem de ficar com o exército tanto
tempo quanto possível. Enquanto permanecer connosco, vai haver esperança entre os homens. Eles confiam em si, sire. Sabem que os vai levar para longe deste ermo
gelado. Mas se partir... se os abandonar, o que tiver restado do espírito de luta entre eles vai dissipar-se. O exército vai dissolver-se. Temos de salvar tantos
quanto possível, caso contrário, quando a próxima campanha tiver início, não teremos nada entre o nosso império e as forças russas.
Napoleão franziu o cenho na direção do chefe do estado-maior.
- Está a exagerar nos riscos, Berthier, como sempre. O que o leva a pensar que estas condições não afetam igualmente o inimigo? Os russos não deixam de ser homens.
Também sentem frio. Ficam com fome quando se afastam das linhas de suprimentos. De certeza que, neste momento, o Kutusov está no quartel-general dele, a escutar
as palavras do seu próprio subordinado derrotista. Quando a primavera chegar, os russos vão estar em tão más condições como nós para dar continuidade à guerra.
- Engana-se, sire - contrapôs Berthier. - Os russos estão dentro das suas linhas de fornecimento. Os soldados deles têm comida quando precisam e não são obrigados
a transportá-la a cada passo que dão.
- E nós também não, assim que chegarmos a Smolensk! - redarguiu Napoleão. - Lá dispomos de rações suficientes para todos os homens. A cidade tem defesas fortes.
O exército pode passar lá o inverno enquanto eu regresso a Paris, e quando a primavera chegar, estaremos ao alcance de S. Petersburgo. Se a perda de Moscovo não
levar o czar a procurar paz, talvez comece a ver a luz se lhe tomarmos a nova capital. Se isso não resultar, tomaremos as cidades dele uma a uma, e depois queimamo-las,
até que ele se submeta.
Berthier abanou a cabeça.
- Já não sei se a perda de todas as cidades lhe vai enfraquecer a vontade de resistir. Seja como for, se o Grande Exército, ou o que restar dele, permanecer em Smolensk,
corre o risco de ficar encurralado durante o pino do inverno. E o inimigo vai continuar a convocar as reservas para aumentar a dimensão dos exércitos que se reúnem
contra nós. Na primavera estarão prontos a fechar a rede em torno de Smolensk e a obrigar o exército a capitular, ou a perecer. Não vai ter exército ao qual regressar,
sire.
Napoleão baixou o olhar e fitou a borda alaranjada tremeluzente em torno da porta de ferro da salamandra. Berthier tinha razão. Não se podia dar ao luxo de abandonar
o exército com o moral dos homens num estado tão fragilizado. Mesmo assim, estava extremamente preocupado com a situação em Paris - e não só na capital. Não se podia
confiar nos prussianos, nem em muitos dos outros aliados menores da Confederação Alemã. E depois havia o caso de Espanha, onde o controlo do país lhe escorria por
entre os dedos, com Wellington e os malditos rebeldes espanhóis a continuarem a esquivar-se aos marechais de Napoleão.
Sentiu o peso de tudo isso a pressionar-lhe o coração como uma grilheta. O império precisava dele um pouco por todo o lado. Estava fadado a ser um governante a dirigir
as guerras à distância, ou um general a comandar os soldados na frente, longe da capital. Um homem não seria capaz de fazer as duas coisas, ponderou, ao que sorriu
para consigo. Um homem talvez não, mas um Napoleão? Só a História o diria.
- Sire? - Berthier interrompeu-lhe os pensamentos.
- O que foi?
- As suas ordens. O exército vai permanecer em Smolensk?
Napoleão imobilizou-se por um momento e depois abanou a cabeça.
- Tem razão. É um ponto demasiado exposto. Vamos recuar até ao depósito de Minsk. Entretanto, envie uma mensagem ao marechal Victor. As forças dele continuam intactas.
Ordene-lhe que avance até nós. Ele tem de manter as nossas linhas de comunicação abertas a qualquer custo. Não posso perder o contacto com Paris.
- Sim, sire.
Napoleão inclinou-se para a salamandra, estendeu as mãos e falou em voz baixa:
- A campanha está perdida, Berthier.
- Sim, sire, eu sei.
- Nesse caso, tudo o que nos resta é retirar o maior número possível de homens da Rússia.
O imperador e a Guarda Imperial chegaram a Smolensk no nono dia de novembro. A reserva de suprimentos para o Grande Exército estava bastante mais exaurida do que
Napoleão antecipara. Quase não chegava para alimentar os soldados durante o inverno, nem sequer até ao final do ano. À medida que as formações seguintes foram chegando
à cidade, receberam toda a comida que conseguissem transportar. Muitos dos homens quase não comiam há semanas e, ignorando as ordens dos oficiais, empanturraram-se,
deixando pouco que os sustentasse durante a marcha do exército, que seguiu para sul do Dnieper e deixou Smolensk para trás.
Napoleão e o estado-maior tentaram reorganizar o que restava do exército. Sobravam menos de quarenta mil homens de primeira linha. A cavalaria de Murat quase desaparecera
e os oficiais receberam ordens para entregarem os cavalos, para que se pudesse reunir uma pequena força que enfrentasse a ameaça dos cossacos. Os seis mil sobreviventes
das brigadas de Ney assumiram a retaguarda e descansaram alguns dias na cidade, deixando que a miserável coluna de retardatários passasse, pilhando a pouca comida
que restava nos depósitos e nas casas de Smolensk.
Bem cedo no dia dezassete, data em que Ney recebera ordens para deixar Smolensk, a vanguarda deparou-se com uma força russa poderosa a bloquear a estrada. O céu
estava da cor do chumbo sobre a espessa camada branca cintilante que cobria a paisagem despida. Pouco mais de um quilómetro à frente do Grande Exército, erguia-se
uma pequena elevação, onde os russos aguardavam, infantaria e um punhado de canhões ao centro, com milhares de cossacos alinhados em cada flanco. Napoleão observou-os
pelo telescópio e depois conferenciou com Berthier.
- Imagino que sejam uns vinte mil, no total.
- Sim, sire - replicou Berthier instantes depois. - Concordo.
- Têm de ser afastados. - Napoleão mordeu o lábio. Só restava uma formação no Grande Exército com força suficiente para levar a cabo essa missão. Se fracassassem,
tudo estaria perdido. Dirigiu-se a Berthier. - Diga ao general Roguet que a Guarda terá de formar uma linha de batalha nesta estrada. Aqui. - Apontou o dedo ao chão.
À medida que o débil brilho do Sol foi subindo por trás das nuvens, os homens da Guarda Imperial marcharam estrada acima, depois viraram-se e perfilaram-se ao longo
da neve para assumir as posições. À frente deles, os últimos cavalos de artilharia puxaram vinte canhões que as equipas de artilheiros começaram a carregar com os
dedos dormentes. Enquanto Napoleão observava os preparativos, viu que as suas forças de elite tinham sofrido as mesmas privações do resto do exército. Os guardas
estavam barbados e imundos, com as fardas esfarrapadas sujas de lama e tiras de pano atadas à volta das botas e das mãos, numa tentativa de manter os pés e os dedos
quentes. Mesmo assim, formaram alas com tanta eficiência como se estivessem no pátio das Tulherias. Napoleão não pôde deixar de se sentir orgulhoso daqueles homens,
que o tinham servido em tantas campanhas. Tinham sido reservados para aquele momento. Na mais negra hora do Grande Exército, seria a Guarda Imperial a combater para
os salvar a todos.
Uma série de estrondos secos vindos da linha russa anunciou o início da batalha, com os canhões inimigos a abrir fogo. Enquanto o derradeiro batalhão assumia o seu
lugar na linha, o general Roguet deu ordem para que as peças respondessem. Durante quinze minutos, os canhões de ambos os lados trocaram salvas, com as munições
a criar breves jorros brancos ao cair na neve. De vez em quando um dos tiros acertava no seu alvo, esmagando um canhão e derrubando alguns dos artilheiros. Rapidamente,
os homens da artilharia da Guarda Imperial entraram no ritmo das suas tarefas, gemendo com o esforço enquanto carregavam e disparavam as armas. Em breve, o treino
superior evidenciou-se, à medida que foram silenciando um canhão atrás do outro, tendo apenas perdido dois dos seus.
- Assim é que é! - Sentado no seu cavalo ao lado de Napoleão, o general Roguet ostentou um sorriso rasgado. - O primeiro ponto é nosso, sire.
Napoleão assentiu. Apertou o corpo com os braços e encolheu-se no abafo que tinha enrolado à volta do pescoço.
- Agora diga aos seus homens que concentrem o fogo na infantaria.
- Sim, meu imperador. - Roguet fez avançar a montada através da neve, na direção do general da artilharia. Momentos depois, os primeiros disparos franceses começaram
a cair sobre as densas alas de infantaria russa e Roguet voltou para junto do seu imperador. Sempre que uma bola acertava no alvo, provocava um rodopio de corpos
bem no centro das linhas russas. Contudo, os soldados fechavam calmamente as clareiras e mantinham as posições. Deixaram-se fustigar durante uma hora, até que o
general de artilharia relatou que as munições começavam a esgotar-se. O comboio de suprimentos da Guarda, cada vez mais escassos, encontrava-se ainda quilómetros
mais abaixo, na estrada para Smolensk.
- Então mande a infantaria avançar, general - ordenou Napoleão. - Eles que libertem aquela elevação e depois que empurrem o inimigo para sul, para abrir caminho
ao resto do exército.
- Sim, sire.
Pouco depois de a última das peças de artilharia se ter silenciado, a ordem foi dada. Os tambores marcaram o ritmo e as primeiras companhias de cada batalhão da
Guarda avançaram na direção do inimigo, com as botas a fazerem o mínimo ruído ao quebrarem a fina camada de gelo em cima da neve. Após um breve atraso, as outras
companhias seguiram as marcas deixadas pelos camaradas, até que mais de sete mil homens se aproximaram do inimigo. Napoleão ouviu o bramido de uma corneta distante,
ao que a nota foi repetida ao longo da linha russa, com os cossacos a avançar, os cascos a levantar nuvens de neve. De lanças em riste, bradaram o seu grito de guerra.
Momentos depois, Napoleão viu os Guardas a estacar. Os batalhões dos flancos formaram quadrados e depois toda a formação se manteve firme, enquanto milhares de cossacos
carregaram contra eles sobre o imaculado cobertor de neve. Os mosquetes ergueram-se, apontados aos cavaleiros que se aproximavam, e os oficiais franceses sustiveram
o fogo, aguardando que a onda de guerreiros ululantes chegasse mais perto, não mais de cem passos dos guardas, depois cinquenta. Napoleão sentiu as entranhas a contraírem-se
com a antecipação. A ala da frente da linha francesa disparou então, com minúsculas línguas de fogo e uma explosão súbita de fumo diretamente à frente dos soldados.
Da sua posição, Napoleão tinha um ângulo de visão desimpedido sobre o fumo e viu os primeiros cossacos a serem derrubados, com homens e cavalos a tombar na neve.
A ala frontal dos guardas baixou-se de imediato sobre um joelho e as baionetas foram inclinadas contra o inimigo. A segunda linha ergueu as armas, fez uma pausa
e depois uma nova salva ribombou, com uma onda renovada de bolas de mosquete a ceifar mais inimigos.
Os cavaleiros defronte da linha francesa estacaram, hesitando ao ver centenas de camaradas espraiados na neve à sua volta. Todavia, os flancos tinham sofrido menos
baixas e contornaram os cantos dos quadrados franceses, onde foram recebidos por mais salvas das companhias que cobriam as laterais da linha da Guarda Imperial.
A carga interrompeu-se e os cossacos deram meia-volta às montadas, galopando de regresso encosta acima. O general Roguet ordenou aos quadrados que refizessem a formação
original, após o que os Guardas recarregaram os mosquetes e prosseguiram com o avanço, detendo-se quando ficaram ao alcance da infantaria russa que aguardava. Houve
uma troca de salvas e dezenas de guardas dos primeiros batalhões tombaram, ao que se sucedeu a carga. A coragem dos russos não durou muito à medida que os veteranos
de Napoleão avançavam, abrindo caminho com golpes de baioneta e coronhadas. No espaço de um minuto, o inimigo cedeu e fugiu, figuras minúsculas a dispersar pela
neve.
Os homens de Roguet assumiram o controlo da encosta, dirigindo-se para sul para enfrentar os aglomerados de cossacos que se tinham voltado a formar. Os dois lados
entreolharam-se, quase ao alcance do fogo dos mosquetes. Napoleão aquiesceu com satisfação. A estrada voltava a ficar aberta e o exército poderia seguir até à derradeira
passagem sobre o Dnieper, em Orsha. Depois disso bastava cruzar mais um rio, antes da última etapa da retirada até ao Neman.
Napoleão ficou com Roguet durante o resto do dia, enquanto a Guarda continuava a enfrentar os cossacos. Atrás dos guardas, o resto do exército avançava pela estrada.
A neve endureceu rapidamente e a superfície gelada cintilava enquanto os soldados franceses desgrenhados prosseguiam com cautela, tentando evitar possíveis escorregadelas.
Atrás da artilharia da Guarda seguiam os outros batalhões que não tinham participado na curta batalha e algumas centenas de cavaleiros, tudo o que restava da garbosa
cavalaria pesada que avançara Rússia adentro havia poucos meses. Depois vinham as figuras escanzeladas das tropas do príncipe Eugénio, com alguns batalhões reduzidos
a menos de cinquenta homens que ainda seguiam as flâmulas encimadas pelas águias douradas. Não restavam mais de cinco mil dos quarenta e cinco mil homens que tinham
atravessado o Neman em junho. Atrás das forças de Eugénio seguiam os dez mil soldados do marechal Davout, que liderara a maior formação da campanha. Menos de um
em cada sete ainda marchava atrás das respetivas águias. Após Davout, chegava a longa e desalinhada massa de retardatários, os feridos e os seguidores do exército:
mulheres embrulhadas em capas, algumas agarradas às mãos de crianças que miravam, apáticas, o chão enquanto se arrastavam em frente. A alguma distância atrás deles,
talvez a um dia de marcha, encontrava-se a retaguarda, comandada pelo marechal Ney.
Napoleão olhou pelo telescópio, em busca de sinais das tropas de Ney atrás dos últimos pontos dos derradeiros retardatários que ainda tentavam acompanhar o exército,
mas não viu nada, além de uma paisagem invernal praticamente vazia. Fechou o telescópio com uma sensação de ansiedade e dirigiu-se ao general Roguet.
- Os seus homens que voltem a juntar-se à coluna. Aproxime o mais possível os retardatários.
- Sim, sire. - Roguet assentiu. - E o Ney? Pretende imobilizar o exército e deixar que ele nos alcance?
- Não. Não podemos parar. Temos de chegar a Orsha antes do inimigo, caso contrário a passagem ser-nos-á recusada.
- Sire, posso deixar alguns batalhões para trás, para manter a estrada aberta e esperar por Ney.
- A Guarda é o que nos sobra das reservas. Não posso arriscar-me a perder desnecessariamente um homem que seja.
Roguet abanou a cabeça, em protesto.
- Mas, sire, se abandonarmos esta posição, os cossacos vão fechar a estrada atrás de nós. As tropas de Ney vão ficar cortadas.
- É uma pena - retorquiu Napoleão, após o que se obrigou a esboçar um sorriso. - Meu caro Roguet, se há homem capaz de sobreviver a este ermo, esse indivíduo é Michel
Ney. Pode ter a certeza disso.
Roguet olhou para trás, para a estrada até Smolensk.
- Espero que tenha razão, sire.
- Confie em mim. Muito bem general, ordene aos seus homens que se juntem à coluna.
Roguet curvou a cabeça com lassidão e afastou o cavalo do imperador, em direção às linhas escuras dos homens que ainda encaravam os grupos distantes de cossacos.
Napoleão fitou o inimigo com desprezo durante um instante. Os cossacos eram como animais. Tinham-lhe chegado muitos relatórios sobre as atrocidades perpetradas contra
os retardatários, ou contra pequenos grupos de prisioneiros capturados. Ainda na véspera, um grupo de forrageadores tinha sido reunido e obrigado a entrar num celeiro
que fora depois incendiado. Em resultado disso, o quartel-general imperial dera ordens para que não se fizessem prisioneiros. Fosse como fosse, refletiu Napoleão,
havia poucos homens para os vigiar e não tinham comida com que os alimentar. Não havia literalmente comida. Já corriam rumores de que alguns indivíduos tinham aderido
ao canibalismo. A expressão de Napoleão transformou-se em repulsa ao pensar nisso. Não acreditava nos boatos, disse para consigo. Os homens não faziam tais coisas.
Abanou a cabeça para se libertar dos pensamentos e voltou-se uma última vez para Smolensk. A noite aproximava-se, dotando os campos de neve de tons cada vez mais
escuros de cinzento.
- Boa sorte, Ney - resmungou e deu meia-volta à montada, incitando-a para um trote na neve a par da coluna, enquanto cavalgava para alcançar o quartel-general.
A vanguarda marchava com vigor, levada pela noção de que estavam numa corrida para chegar a Orsha antes que o inimigo pudesse tomar a povoação e bloquear a passagem.
Dois dias depois da batalha, a Guarda Imperial chegou à vila e deu rapidamente início à fortificação da cabeça de ponte sobre o Dnieper. Ao longo dos dias seguintes,
o resto da coluna principal foi chegando e abrigou-se na pequena terra, enchendo os edifícios e os celeiros para fugir ao vento gelado e à neve. As pequenas reservas
de alimentos de Orsha em breve se exauriram e os derradeiros elementos do Grande Exército viram-se obrigados a implorar as poucas migalhas que conseguiam dos seus
camaradas. Ainda não havia sinais, nem notícias de Ney e quando o último retardatário entrou na povoação, as sentinelas mantiveram-se atentas aos primeiros cossacos
que, com toda a certeza, estariam por perto.
O estado-maior do quartel-general imperial apoderara-se do mercado de cereais e estava reunido no átrio principal, onde um grande lume ardia na vasta lareira de
pedra, construída com blocos de granito. A estrada para Varsóvia voltara a ser cortada e os mais recentes relatórios das patrulhas montadas trouxeram ainda piores
notícias.
- Os russos enviaram colunas ao largo dos nossos flancos para nos cortarem o acesso à margem oposta do Berezina - explicou Napoleão ao estado-maior e aos comandantes
à sua frente. Fez uma pausa antes do golpe seguinte. - Tomaram Minsk.
Fez-se ouvir um gemido no salão. Os suprimentos guardados em Minsk não estariam à disposição do exército francês. Napoleão ergueu as mãos, pedindo silêncio antes
de prosseguir.
- É óbvio que se vão dirigir às pontes e aos vaus em torno de Borisov. Se os conseguirem controlar antes de lá chegarmos, o resultado será evidente. O Grande Exército
terá de se render ou será aniquilado. Assim sendo, sou obrigado a pedir mais um grande esforço por parte dos homens. Temos de atravessar o Berezina o mais depressa
possível.
Fez uma pausa e moderou o tom de voz.
- Imagino como se estarão a sentir. Já há um mês que fugimos dos nossos perseguidores. Parece que há sempre mais um rio que temos de atravessar para conseguirmos
escapar. Não duvido que os vossos homens fiquem desesperados quando forem informados. A provação ainda não acabou. Temos uma marcha difícil à nossa frente, mas quando
atravessarmos em Borisov, restará mais uma semana de marcha até Vilna, onde temos comida suficiente para todo o exército, além de botas, casacos e bebida. Digam
isso aos vossos homens. Digam-lhes que tudo isso é deles, caso sejam capazes de mais este esforço. - Napoleão fez uma pausa e olhou em torno do espaço. Ficou triste
ao ver a resignação em tantos rostos. O patriotismo e o sentimento eram coisas passadas. Mas teriam de estar abertos à razão, decidiu. Respirou fundo. - Digam-lhes
o que quiserem, conquanto os inspirem a marchar. Quando também isso falhar, usem a força.
Concedeu-lhes um instante para que as palavras surtissem o efeito desejado nas mentes fatigadas.
- Teremos de fazer tudo o que pudermos para acelerar o ritmo, cavalheiros. Para isso é preciso deixar para trás todos os veículos pesados e quaisquer bagagens desnecessárias.
Só vamos manter as peças de artilharia, os armões e os carros de munições. Todas as carroças, carruagens e carros ficam para trás. Serão queimados, a par de todos
os suprimentos que não possamos levar connosco.
- E quanto aos feridos? - perguntou Berthier.
- Os feridos capazes de andar podem ficar com o exército. Os restantes serão deixados aqui, a par de qualquer voluntário que queira ficar a cuidar deles.
Fez-se silêncio enquanto os oficiais digeriam a ordem, após o que Roguet pigarreou.
- Sire, isso é uma sentença de morte. Sabemos o que os cossacos fazem aos prisioneiros.
- Nesse caso esperemos que sejam os soldados regulares os primeiros a entrar na povoação - retorquiu Napoleão. - Contudo, por via das dúvidas, temos de garantir
que cada homem fique com meios de fugir ao cativeiro. A escolha é deles. Nada mais podemos fazer pelos feridos graves.
Roguet abanou a cabeça, mas manteve o silêncio. Davout fez a pergunta seguinte.
- E quanto aos pontões dos engenheiros, sire? Também devem ser queimados?
- Sim.
Davout franziu o cenho.
- Mas, sire, se o inimigo tomar Borisov, vamos precisar dos pontões para atravessar o rio.
- Não serão necessários - asseverou Napoleão. - Há cinco dias que a temperatura não sobe acima do ponto de congelação. É provável que fique ainda mais frio, o que
significa que o rio vai congelar, ficando duro o suficiente para cruzarmos o Berezina onde o gelo for mais espesso.
- Isso será um risco enorme, sire - protestou Davout. - Se as travessias de Borisov nos forem negadas, e se o gelo não aguentar o peso, nesse caso... - Abanou a
cabeça.
- É por isso que temos de avançar o mais depressa possível. - Napoleão juntou as mãos atrás das costas e concluiu a reunião. - Transmitam as ordens a todos os oficiais.
Os veículos serão reunidos no mercado. Metade dos cavalos de carga restantes será abatida e a carne distribuída pelos homens. Mas só aos soldados. Os civis que cuidem
deles próprios. O exército parte ao nascer do dia.
Ao longo de toda a noite, os carros e restantes veículos foram retirados da povoação e amontoados. Colocou-se ignição por baixo dos eixos. Os feridos foram levados
para os edifícios e deixados tão confortáveis quanto possível em camas, colchões e montes de palha. Quem os levou tentou ignorar as súplicas desesperadas dos camaradas
para não serem deixados. Os cavalos mais fracos foram levados até ao mercado de gado e abatidos, tendo os carniceiros do exército rapidamente retirado a carne das
carcaças, colocando os nacos em barris a serem distribuídos pelos batalhões sobreviventes. Uma hora antes da alvorada, quando os homens foram acordados para se prepararem
para o início da marcha, os engenheiros lançaram fogo ao amontoado de veículos e as chamas já lambiam o céu com os primeiros sinais do dia que começava a iluminar
o horizonte oriental.
Foi nesse momento que se deu o alarme. Um oficial do batalhão encarregue da derradeira ronda da noite chegou a correr ao edifício da bolsa de cereais e anunciou,
ofegante, que uma coluna se aproximava de Orsha. Napoleão cancelou rapidamente a ordem de início de marcha e disse a Roguet que preparasse a Guarda para repelir
um ataque. Depois, acompanhado por Berthier, seguiu o oficial pelas ruas até à zona oriental da povoação e subiu à torre de uma pequena igreja. O oficial que comandava
o batalhão de vigia já se encontrava na torre, a olhar para o Sol nascente. Virou-se e fez a sua saudação enquanto o imperador subia, ofegante, os degraus e se juntava
a ele.
- Como se chama? - perguntou Napoleão, surpreendido por ver um capitão no comando de um batalhão.
- Capitão Pierre Dubois, sire.
- E que idade tem, Dubois?
- Vinte e um, sire.
- O que aconteceu ao seu coronel?
- Perdemo-lo em Borodino, sire, bem como à maioria dos restantes oficiais. Fiquei com o comando do capitão Lebel na segunda semana da retirada. - Dubois fez uma
pausa e fitou ansiosamente Napoleão. - Queria dizer a segunda semana de marcha, sire.
Napoleão sorriu e afagou-lhe o braço.
- Calma, Dubois. Não há problema em dizer a verdade ao seu imperador. Muito bem, onde está essa sua coluna?
Dubois seguiu até à janela da torre. As portadas tinham sido abertas e uma brisa leve fez adejar as pontas do casaco de Napoleão enquanto este semicerrava os olhos
na direção da meia-luz. A igreja encontrava-se perto do rio e quando Napoleão olhou para a ponte, pouco mais de cinquenta passos para jusante à sua direita, viu
pequenos blocos de gelo a deslizarem na direção dos grandes pilares de pedra. Dubois apontou para a estrada do outro lado do rio. A meia dúzia de casas de madeira
na margem oposta tinham sido queimadas, para negar qualquer cobertura aos russos, caso estes se aproximassem da vila enquanto os franceses a ocupassem. Além das
ruínas carbonizadas, a estrada para Smolensk estendia-se por mais de um quilómetro, antes de desaparecer numa vala florestada. Uma faixa escura emergiu lentamente
da depressão e, ao levar o telescópio ao olho, Napoleão distinguiu as figuras de uma coluna de infantaria a marchar em direção a Orsha.
- São russos? - indagou Berthier.
- Ainda não é possível dizer. - Napoleão apoiou o telescópio ao lado do caixilho da janela para o firmar e depois semicerrou o olho. Era bem provável que se tratasse
da vanguarda do exército de Kutusov, apressando-se para obrigar Napoleão a lutar, enquanto as colunas russas nos flancos avançavam para o Berezina. O final da colina
saíra da vala e Napoleão aguardou um momento para ver o que se seguiria. Mas não havia nada. Não havia colunas, peças de artilharia, nem cossacos. Apenas o que parecia
um forte batalhão de infantaria. A coluna prosseguiu a marcha a caminho da ponte. Lá em baixo, nas ruas, as primeiras companhias da Guarda Imperial entravam nos
edifícios que cercavam o final da ponte e partiam as janelas, ou abriam buracos toscos nas paredes, com a ajuda de picaretas. Outros arrastavam mobílias até à rua,
para criar uma barricada sobre a ponte.
- É estranho - resmungou Berthier enquanto observava a aproximação da coluna. - Com tanto fumo por causa do fogo, deviam saber que aqui estamos. De certeza que não
se atreveriam a atacar-nos sozinhos.
- Isso se forem russos - argumentou Napoleão. Voltou a olhar pelo telescópio. A frente da coluna estava agora a pouco mais de um quilómetro e meio de distância.
Nesse momento, as nuvens no horizonte abriram-se um pouco e a luz do Sol banhou a paisagem, iluminando uma forma brilhante à cabeça da coluna. Uma águia.
Napoleão sentiu uma onda de alívio e de alegria a percorrer-lhe o corpo. Baixou o telescópio e riu-se para Berthier.
- É o Ney!
- O Ney? - Berthier abanou a cabeça. - Impossível! A retaguarda ficou cortada. Estariam milhares de cossacos entre o Ney e o resto do exército.
O sorriso de Napoleão desvaneceu-se.
- É por isso que são tão poucos. Mas vamos, temos de os receber.
Correram escadas abaixo e para a rua. As expressões severas dos guardas que se preparavam para defender a vila transformaram-se em descrença e em alegria quando
o capitão Dubois deu conta da notícia de que Ney sobrevivera. Napoleão e Berthier contornaram a barricada e correram pela ponte. Detiveram-se na outra margem no
momento em que a cabeça da coluna se deixou ver, a pouca distância. Os homens marchavam num ritmo certo, de mosquetes apoiados no ombro: seria um exemplo de eficiência
militar, não fosse pelos trapos que lhes seguravam as botas. À cabeça marchava o marechal Ney, de mosquete aos ombros e um lenço sobre o chapéu emplumado, atado
por baixo do queixo. A barba ruiva de vários dias cobria-lhe o maxilar e as faces. A vinte passos do imperador colocou-se ao lado dos soldados e vociferou: - A retaguarda
faz alto!
A coluna marcou passo e estacou.
Ney fitou-os por um instante, após o que bradou: - Retaguarda! Viva Napoleão! Viva a França!
Os soldados repetiram o viva a plenos pulmões e, quando o eco do grito esmoreceu, Ney dirigiu-se a Napoleão.
- Permissão para regressar à coluna principal, sire?
- Permissão concedida! - Napoleão riu-se. Avançou e segurou os braços de Ney. - Por Deus, que maravilha vê-lo outra vez. Mas como conseguiu?
- Só um momento, sire, se não se importa. - Ney virou-se para a coluna e respirou fundo. - Retaguarda... Destroçar! Comam e descansem. Todos vós o mereceis!
Os homens dispersaram e passaram por Napoleão e pelos dois marechais. Apesar do porte enquanto se aproximavam da vila, Napoleão apercebeu-se claramente de que se
encontravam no limite da resistência. Devastados pela fome e pela exaustão, os olhos estavam encovados e as faces pareciam chupadas ao marcharem rigidamente sobre
a ponte. Os guardas saudaram-nos quando entraram na povoação, abraçando os camaradas e colocando nas mãos dos recém-chegados as suas parcas rações.
- Pouco mais de novecentos - comentou Ney em voz baixa enquanto os soldados passavam por ele. - É tudo o que resta das minhas tropas e daqueles que se juntaram a
eles em Smolensk.
- O que aconteceu? - indagou Berthier.
- Os cossacos perseguiram-nos a maior parte do caminho. Ao início mantivemo-los afastados com fogo de mosquete, mas há dois dias já só nos restavam três salvas por
homem. Não tive alternativa, que não formar quadrados. Parámos para a noite e eles continuaram a atacar, surgindo das sombras para matar uns poucos de nós de cada
vez. Não tínhamos como dormir, por isso ordenei que o quadrado se pusesse em movimento. Marchámos durante a noite e todo o dia de ontem, quase sempre sob ataque.
Tive de deixar os feridos para trás. Teria ordenado que os abatessem, mas precisávamos das munições. Os cossacos só desistiram perto do pôr-do-sol. Descansámos nessa
noite no que restava de uma aldeia e depois retomámos a marcha à primeira luz da alvorada. Desde ontem que não vemos um único cossaco. Não sei porque nos deixaram
ir, mas Cristo seja louvado por isso. Quase esgotámos as salvas.
Napoleão afagou o queixo.
- Deixaram-nos ir porque receberam ordem para passar à frente da coluna principal. Dirigem-se a Borisov. Pelo menos é isso que imagino. - Voltou a olhar para Ney
e foi incapaz de reprimir novo sorriso. - Sabia que ainda o voltaria a ver. Eu sabia.
- Pois. - Ney encolheu os ombros. - Deixe-me que lhe diga que tive as minhas dúvidas. - Puxou do mosquete que tinha ao ombro e fitou a arma. - Há muito tempo que
não lutava como soldado raso. Tome! - Entregou o mosquete a um dos últimos soldados que atravessavam a ponte. - Leve-me isto.
- Sim, meu marechal.
Quando o soldado voltou a percorrer a ponte, Napoleão deu um murro ao de leve no ombro de Ney.
- Marechal Michel Ney, duque de Elchingen, vou ter de lhe desencantar um título novo. Mas por agora, há um que terá de bastar. Ney, o mais bravo entre os bravos.
Ney assentiu a sua aprovação e depois esfregou com força as mãos.
- Agradeço-lhe, sire, mas neste momento sou Ney, o mais frio dos frios. Onde está a garrafa de brandy mais próxima?
Capítulo 36
O céu limpou quando o exército saiu de Orsha e se dirigiu a Borisov. Pela primeira vez em dias, o Sol brilhava e a temperatura subiu acima do ponto de congelação.
A neve derretida pingava das árvores e a estrada transformou-se gradualmente numa lama que facilitava um pouco o avanço dos soldados e dos cavalos restantes. O estado
de espírito dos homens melhorara graças à fuga de Ney e da sua retaguarda. Afinal de contas, se tinham conseguido sobreviver à perigosa situação em que se tinham
encontrado e aberto caminho por entre os russos, ainda havia alguma esperança.
O exército percorreu terrenos de cultivo abertos em direção ao Berezina sem avistar cossacos em qualquer dos flancos, ou atrás deles. Pela primeira vez em semanas,
Napoleão começava a pensar que o pior pudesse ter passado. O marechal Victor e o marechal Oudinot tinham avançado desde Vilna, juntando-se ao exército com vinte
mil soldados frescos e um comboio de suprimentos.
Depois, perto do final do segundo dia de marcha, um dragão chegou a galopar junto de Berthier com um despacho da cavalaria, cerca de vinte e cinco quilómetros mais
à frente. Berthier leu rapidamente a mensagem enquanto o cavalo andava e depois trotou até ao lado de Napoleão.
- Sire, os batedores avistaram Borisov ao meio-dia.
- O caminho está livre?
- Não, sire.
- Os russos tomaram a povoação?
- Pior do que isso. Queimaram as pontes e entrincheiraram-se na margem oposta.
Napoleão puxou as rédeas e aceitou o papel de Berthier, para ler ele próprio a missiva. Depois devolveu-a com o coração apertado.
- Precisávamos daquelas pontes.
- Sim, sire.
Um viva pujante interrompeu-lhes a conversa quando os restos de um batalhão das tropas de Oudinot passou por eles. Napoleão virou-se para os homens com um sorriso
e ergueu a mão para os saudar. O sorriso desapareceu assim que devolveu a atenção a Berthier.
- Continuamos a marchar em direção ao Berezina. O exército está demasiado fraco para se afastar quer para norte, quer para sul. Temos de parar enquanto procuramos
um ponto alternativo para a travessia. Se bem me lembro, existe uma aldeia chamada Loshnitsa a menos de um dia de marcha do rio. Dê ordens para que a vanguarda se
detenha aí. - Berthier aquiesceu. - Vou avançar para o confirmar por mim próprio. Encontramo-nos em Loshnitsa.
Escoltado por um dos restantes esquadrões de cavalaria dos Guardas, Napoleão incitou o cavalo em frente. Passaram pela Guarda Imperial à cabeça da coluna e depois
seguiram a estrada para oeste. O degelo atraíra alguns dos camponeses para fora das suas cabanas, em busca de lenha para atualizarem as reservas. Assim que viam
a pequena coluna de cavaleiros à distância, procuravam abrigo. Continuava sem haver sinais dos cossacos e quando a noite caiu, Napoleão seguiu viagem até chegarem
a uma das patrulhas de cavalaria que observava as fogueiras distantes dos soldados russos, na outra margem do rio.
Napoleão desmontou enquanto o coronel à frente dos dragões fazia o seu relatório.
- O inimigo ocupou a vila, sire. Devem ser mais de cinco mil homens. Vimos outros, tanto a jusante como a montante, a patrulhar a margem. - O coronel virou-se e
apontou para norte, onde as nuvens baixas sopradas de leste refletiam um brilho ténue. - Está a ver aquilo? Fogueiras de acampamento. Mas não temos como saber quantos
soldados lá estão, sire.
Napoleão aquiesceu e depois mirou atentamente o coronel.
- Qual o regimento que comanda?
- Regimento? - O coronel pareceu surpreendido, após o que esboçou um sorriso lastimável. - Sire, estou à frente do que resta da cavalaria de Nansout. Os cavalos
restantes foram atribuídos aos dragões. Aos duzentos que sobram.
Napoleão esforçou-se por ocultar o choque que sentia enquanto olhava para o punhado de montadas de aspeto miserável, presas às traseiras de uma pequena cabana, onde
os soldados do coronel se abrigavam durante a noite.
- Onde está o resto dos seus homens?
- Tenho uma tropa a sul, e uma perto da margem, a vigiar Borisov. As outras duas tropas estão a bater o rio, mais a norte, à procura de pontos de passagem.
- Bom trabalho. - Napoleão acenou com a cabeça na direção da barraca, onde um brilho acolhedor iluminava as ombreiras da porta. - Vou passar a noite convosco.
- Será uma honra, sire.
Napoleão dirigiu-se ao comandante do esquadrão de Guardas.
- Estão dispensados. Encontre abrigo para si e para os seus homens e depois volte aqui pela manhã.
O oficial fez continência, após o que ordenou aos soldados que o seguissem, afastando-se nas trevas.
- E é esta a situação, cavalheiros - concluiu Napoleão ao terminar a sessão de informações com os oficiais superiores na dacha nos arredores de Loshnitsa. - As patrulhas
de cavalaria bateram cinquenta quilómetros para montante, e todas as pontes e vaus estão defendidos por artilharia e infantaria russas. Também relataram que o degelo
recente fez com que o gelo no Berezina se partisse. - Fez uma pausa. - Temos de avaliar as nossas opções.
Recostou-se e esperou pelas reações dos oficiais. Fez-se silêncio por um instante, até que Davout falou por todos:
- Irei então dizer aquilo em que todos pensamos. A escolha é entre uma longa marcha para norte, até conseguirmos contornar em algum ponto a montante do Berezina,
ou a negociação de um armistício com os russos. Será mais do que provável que o czar nos vai negar um armistício. Não pretende nada menos do que a rendição incondicional
do Grande Exército. - Davout acenou com a cabeça na direção do imperador. - Sire, caso isso aconteça, é essencial que não seja feito prisioneiro a par do resto do
exército. Posso saber se fez planos de fuga no caso de uma rendição?
Fez-se silêncio enquanto Napoleão olhava para os oficiais, homens que conhecia desde há anos. Assentiu.
- Considerei a possibilidade, mas não pensei em pormenores.
- Nesse caso, permita-me que urja que o faça - insistiu Davout.
- Muito bem. - Napoleão endireitou-se. - Creio que não há mais nada a dizer, cavalheiros. Uma boa noite para todos. Ah, Davout...
- Sire?
- Parece que tinha razão quanto aos pontões. Cometi um erro ao dar a ordem para que fossem queimados.
- Eu sei. - Davout aquiesceu. - Boa-noite, sire.
Uma sentinela fechou a porta à saída do último oficial da sala. Berthier permaneceu sentado à mesa, tendo regressado à sua rotina de atualizar nos blocos os valores
cada vez mais baixos da relação de tropas. Napoleão revirou um dos botões de prata do sobretudo.
- O que lhe parece, Berthier?
Berthier respondeu sem erguer os olhos:
- O que me parece o quê, sire?
- Que eu abandone o exército.
Berthier pousou a caneta e ergueu o olhar.
- Parece-me que em breve poderá tornar-se uma necessidade, sire.
- E julga que será um erro? Responda com sinceridade, meu amigo.
- Se for capturado pelo czar, não deve esperar grande misericórdia, depois do que aconteceu em Moscovo, e nas outras vilas e aldeias por onde passámos. Mesmo que
a vida lhe seja poupada, pode ter a certeza de que será humilhado, juntamente com França. Por isso, sim, sire. Se chegar a esse ponto, terá de fazer tudo ao seu
alcance para evitar ser detido pelos russos.
- Tudo? - questionou Napoleão, num tom baixo.
- Sim, sire - assentiu Berthier. Compreendera a pergunta. - Até mesmo isso.
- O meu cirurgião tem alguns frascos de veneno. Sempre fiz questão que os trouxesse, para qualquer eventualidade. A partir de agora vou andar com um na minha pessoa.
Como precaução.
- Seria assisado, sire.
Ficaram os dois em silêncio alguns instantes, até que Napoleão se mexeu.
- Claro que se abandonar o exército, os meus inimigos vão chamar-me cobarde.
- Será de esperar, mas o povo de França vai compreender que tal foi necessário. Vão saber que enquanto estiver vivo, França será vista como uma grande nação. Enquanto
viver, vai inspirar os nossos soldados a atos de grandeza, e o senhor impõe temor sobre os nossos inimigos. Os soldados podem ser substituídos. O meu imperador não.
Napoleão perscrutou o rosto de Berthier, em busca de sinais de lisonja, ou de insinceridade, mas o chefe do estado-maior parecia absolutamente convencido das suas
palavras. Napoleão ofereceu-lhe um sorriso caloroso.
- O Berthier também é único, meu amigo. É a voz dos meus pensamentos. É através das suas palavras que a minha vontade se impõe e que a França conquistou a sua grandeza
no campo de batalha. Já há muito lhe devia ter agradecido. - Napoleão sentiu uma pontada desconfortável de remorsos ao recordar as inúmeras ocasiões em que ofendera,
ou insultara Berthier. Mexeu-se, pouco à-vontade, e gesticulou na direção da porta. - Tenho de pensar sozinho. Deixe os seus blocos por esta noite. Vá comer alguma
coisa, beber um pouco de vinho e encontre uma cama ao lado de um lume quente.
Berthier hesitou, ao que aquiesceu. Reuniu os blocos, depositou-os na grande pasta de cabedal e deixou a sala em silêncio. Napoleão levantou-se rigidamente da cadeira,
que levou até junto dos restos do pequeno lume que brilhava na grelha. Colocou mais alguns troncos sobre as chamas e recostou-se, fechando os olhos e entregando-se
ao calor reconfortante. Afastou da mente os pensamentos incómodos e imaginou-se no relvado de Fontainebleau, no verão, a brincar com o filho pequeno.
- Sire. - Uma mão abanou-lhe suavemente o ombro.
Napoleão acordou de imediato, os olhos arregalados para as feições excitadas de Berthier.
- O que foi?
- O marechal Oudinot está aqui comigo, sire. - Berthier afastou-se para deixar ver Oudinot.
- E então?
- É melhor que seja o marechal a explicar.
- Explicar o quê? - Napoleão endireitou-se e olhou para o relógio na cornija da lareira. Três da madrugada. Furioso consigo próprio, apercebeu-se de que dormia há
mais de cinco horas.
Oudinot avançou.
- Acabei de chegar do meu quartel-general, sire. Vou direto ao assunto.
- Faça favor.
- Esta noite, uma coluna de reforços do general Corbineau juntou-se ao meu comando.
- Eu sei. Ele comanda uma brigada que mandei chamar de Vilna.
- Exatamente. Corbineau pretendia atravessar o Berezina em Borisov, quando vinha juntar-se a nós, mas anteontem descobriu que a vila se encontrava nas mãos dos russos.
Por isso, ele interrogou um camponês local quanto a outro ponto onde atravessar o rio. O camponês levou-o a um vau, dez quilómetros a norte de Borisov, na aldeia
de Studienka.
- Sei onde é, mas aí não há vau.
- Não está marcado no mapa, sire, mas foi aí que o Corbineau atravessou. - Oudinot foi incapaz de reprimir um sorriso. - Ele diz que a água chega no máximo à cintura.
Viram-se alguns clarões na noite quando os disparos na outra margem do rio se desvaneceram. Corbineau e os seus homens tinham conseguido alcançar as duas peças de
artilharia deixadas a cobrir o vau incógnito. Antes tinham atravessado o rio gelado, com os mosquetes bem erguidos, e expulsado uma companhia de infantaria russa,
após o que dirigiram a atenção aos canhões. Era óbvio que o inimigo também tinha conhecimento do vau, mas como não se encontrava marcado em nenhum mapa, tinham-se
limitado a destacar uma força pequena para proteger o ponto de passagem. À distância, a sul, ouvia-se o estrondear ocasional da artilharia, enquanto os homens de
Oudinot levavam a cabo ataques de diversão na margem oposta de Borisov. Tal como Napoleão esperara, as forças russas espalhadas ao longo da outra margem tinham-se
apressado a seguir para sul, marchando em direção ao som dos canhões.
Assim que Corbineau informou que assumira o controlo da margem oposta, Napoleão ordenou que os engenheiros do general Eblé deitassem mãos ao trabalho. O plano requeria
a construção de duas pontes na escuridão e o exército teria de dar início à travessia assim que fossem completadas. As tropas de Davout e de Victor teriam de cobrir
os caminhos para Studienka, enquanto o resto do exército cruzava o rio. A velocidade da corrente e a irregularidade do leito do rio excluiram qualquer tentativa
de cruzar o rio a vau. Metade do exército teria sido arrastado, e os restantes gelariam devido à imersão nas águas geladas.
Acenderam-se braseiros na margem oriental para garantir alguma iluminação aos engenheiros e, pouco depois, viram-se mais lumes na margem oposta, quando a segunda
equipa de homens de Eblé deu início ao trabalho, a cem passos de distância. Napoleão desceu até à margem do rio para observar os progressos. Encontrou Eblé a supervisionar
o trabalho, a poucos metros da corrente gelada que redemoinhava para jusante. No rio, as figuras escuras dos seus homens mantinham-se firmes contra a corrente, segurando
troncos grossos, enquanto os camaradas usavam um bate-estacas improvisado para enterrar a madeira no leito do rio.
- Como vão as coisas, general?
Eblé virou-se e fez continência.
- A primeira armação está posicionada, sire. Tivemos sorte com o gelo.
- Sorte? - Napoleão mirou os homens que se encontravam no rio com água até às coxas.
Eblé bateu com a bota na margem gelada.
- Endureceu a lama. Assim é mais fácil levar os materiais margem abaixo.
- Estou a ver. - Napoleão apontou para os carros atrás deles. - Pensei que tivesse ordenado que se queimasse todas as carroças em Orsha.
- É verdade, sire. Contudo, disse aos meus homens que poupassem alguns carros para as nossas ferramentas, e para os barris de pregos.
- Desobedeceu às minhas ordens.
Eblé fitou o imperador e depois encolheu os ombros.
- Como é evidente.
- Muito bem. Quem me dera que metade dos meus generais mostrasse tal iniciativa. - Eblé pareceu aliviado, mas Napoleão apontou-lhe o dedo. - Não pense é em fazer
disso um hábito.
Eblé riu-se.
Napoleão olhou em seu redor, para a madeira empilhada na margem.
- Julga que vai ter material suficiente para completar o trabalho?
- Isso depende de Studienka, sire. A madeira vem das casas. Os meus homens estão a desmantelar os edifícios para obter aquilo de que precisamos. Desde que a aldeia
seja suficientemente grande, vai ter as suas pontes.
- Quando estarão terminadas, general?
- Antes do meio-dia de amanhã, se tivermos sorte. Mas o rio está a começar a subir e há gelo nas águas. Isso pode atrasar-nos. Não posso deixar que os homens trabalhem
nestas condições durante mais de uma hora de cada vez. Vou mantê-los a trabalhar em turnos. Uma hora na água, meia hora a descansar junto ao lume. Mesmo assim, vamos
perder muitos para o frio, sire.
O som dos martelos e dos bate-estacas dos engenheiros fez-se ouvir durante toda a noite. Entretanto, os retardatários e os civis estavam a chegar à aldeia e iam
enchendo as ruas de Studienka, enquanto aguardavam que as pontes abrissem. Napoleão pretendia fazer atravessar o grosso do exército, antes de dar oportunidade aos
civis. Por fim, seria a vez de Victor e da retaguarda, após o que as pontes seriam destruídas.
Com o nascer do dia, fraco e pálido, já que as nuvens obscureciam o Sol e ameaçavam mais neve, avistou-se um grupo de cossacos a um quilómetro a sul, na margem oposta.
Observaram a construção das pontes durante alguns instantes, e depois deram meia-volta e afastaram-se a galope.
- Vão chegar a Borisov no máximo daqui a uma hora - resmungou Napoleão para Berthier. - O comandante lá instalado vai precisar de mais uma hora para formar os homens
e para dar início à marcha em direção ao vau. Damos-lhes três horas para chegarem até nós e outra para disporem as tropas. Podemos contar com os primeiros ataques
aos nossos postos ao início desta tarde. - Virou-se para analisar as pontes. Os suportes estendiam-se de ambas as margens e os engenheiros esforçavam-se por pregar
as vigas de apoio e as tábuas na passagem. A ponte mais pequena, destinada à infantaria, tinha ainda um espaço de vinte passos entre cada extremidade. A segunda
ponte era maior, construída para suportar o peso das restantes peças de artilharia e os carros do exército que tinham escapado ao fogo em Orsha. Ia demorar mais
tempo a completar.
- Dou ordens para que Oudinot regresse à cabeça de ponte, sire? - perguntou Berthier.
- O quê?
- Os russos já sabem o que estamos a fazer. Não vale a pena o Oudinot prosseguir com a ação de diversão.
- Sim, é claro. Chame-o imediatamente.
A primeira ponte ficou pronta pouco depois da uma da tarde e os elementos da tropa de Oudinot que tinham acabado de chegar a Studienka foram os primeiros a atravessar,
correndo sobre o tabuleiro para avançar sobre a passagem que se estendia no terreno pantanoso no outro lado do Berezina. Era o único ponto de fuga e Napoleão ordenou
a Oudinot que mantivesse a passagem aberta a qualquer preço.
Assim que os primeiros soldados começaram a marchar sobre a ponte, Eblé e os engenheiros concentraram os seus esforços na estrutura maior. Um terço dos engenheiros
já tinha sido arrastado, ou estavam demasiado enfraquecidos para continuar com os trabalhos. Napoleão juntou-se aos homens nas braseiras e fez o possível por lhes
levantar o moral, elogiando-os pela coragem e pelo sacrifício que estavam a fazer em prol do exército. Os homens escutaram num silêncio entorpecido, tremendo nas
fardas incrustadas de gelo e esforçando-se por manter o lugar junto ao lume.
Perto do meio da tarde, Eblé deu a saber ao imperador que a segunda ponte estava pronta. Napoleão deu ordens para que a artilharia e a Guarda Imperial começassem
a travessia, após o que abraçou Eblé.
- Os seus homens fizeram um milagre, general.
Eblé tremia de frio e de cansaço, e mal conseguia manter-se de pé. Aquiesceu.
- Obrigado, sire, mas o nosso trabalho ainda não acabou. O rio continua a subir e não sei quanto tempo os suportes vão aguentar a pressão do gelo. Seria melhor que
o exército atravessasse o mais depressa possível.
Napoleão sorriu.
- É o que pretendo fazer. Agora é melhor juntar-se aos seus homens. Berthier, traga brandy ao general e aos rapazes dele. Julgo que ainda restam alguns barris no
quartel-general.
- Sim, meu imperador.
Quando Berthier se afastou para ordenar a um dos adidos que procurasse e distribuísse o brandy, ouviu-se o ribombar da artilharia a leste, que se juntava aos débeis
estampidos dos mosquetes da margem oposta, onde Corbineau e os seus homens se mantinham firmes, sendo reforçados continuamente pelas tropas que atravessavam a primeira
ponte. Napoleão prestou atenção enquanto olhava para oriente. Em breve, o fogo dos canhões da retaguarda fundiu-se num troar praticamente contínuo. A armadilha fechava-se
sobre os franceses. Kutusov e o grosso do exército russo chegariam a qualquer momento vindos de leste. A sobrevivência do Grande Exército dependia das pontes de
Eblé, construídas à pressa com madeira pilhada na aldeia.
Durante o resto do dia e pela noite adentro, soldados, cavalaria e artilharia continuaram a atravessar o rio. Assim que os civis souberam que as pontes estavam abertas
dirigiram-se ao rio, sendo mantidos afastados por um forte cordão de infantaria de baionetas caladas, que mantinham as pontes abertas ao trânsito militar. Durante
a noite, uma parte da segunda ponte cedeu, levando um carro de artilharia com ela. Os engenheiros exaustos perderam duas horas a repará-la. Na manhã seguinte, a
ponte foi reaberta e o exército prosseguiu com a travessia. Pelo meio-dia, Napoleão ordenou ao quartel-general que atravessasse para a margem oposta, a par dos restantes
elementos da Guarda Imperial. O som dos canhões atrás deles esmorecera durante a tarde e os mais recentes relatórios de Victor diziam que o inimigo se dirigia a
sul, como se ainda esperassem que Napoleão tentasse cruzar em Borisov à força. O imperador observava o contínuo movimento de canhões e carros sobre a segunda ponte.
Não foi capaz de reprimir um sorriso ao ler o relatório de Victor.
- Parece que é impossível sobrestimar a cautela do nosso inimigo. Têm-nos encurralados e, mesmo assim, o Kutusov receia apertar o cerco.
- O que é bom para nós, sire - retorquiu Berthier. - A sorte parece estar outra vez do seu lado. A cavalaria de Oudinot tomou todas as pontes ao longo da estrada
sem encontrar russos. O caminho para Vilna está livre.
- Sim, a sorte está do nosso lado, Berthier. A sorte e a garra, hã?
Berthier estava prestes a concordar quando se ouviu um estalar lancinante. Os dois homens viraram-se e viram um dos suportes da segunda ponte começar a ceder. Tábuas
partiram-se e caíram à água. As rodas traseiras de um carro de munições penderam na abertura. Por um momento, todos pararam para olhar: os integrantes do quartel-general,
os soldados e os civis na margem oposta. Ouviu-se então mais madeira a rebentar e um segundo suporte estremeceu e tombou para o lado. O tabuleiro caiu e o carro
escorregou para trás, mesmo com o condutor a chicotear a parelha de cavalos para que andassem em frente. Os cavalos estavam fracos e o fardo pesado arrastou-os para
a abertura cada vez maior. Depois, o carro virou-se e caiu ao rio, levando com ele a parelha de animais, que esperneava e relinchava com o terror. Ouviu-se uma sucessão
de chapes e os restos do carro, os destroços da ponte e os cavalos que se debatiam foram levados rio abaixo.
- O condutor sobreviveu? - indagou Berthier, quebrando o silêncio. - Alguém o viu?
Napoleão fitou a ponte. Três suportes tinham desaparecido, deixando um grande espaço ao centro. Eblé e a maior parte dos engenheiros corriam já para a ponte, enquanto
outros homens pegavam em varas compridas e dirigiam-se à ponte mais pequena, para tentar desviar o carro dos suportes mais frágeis.
- Sire, olhe ali. - Berthier apontou para a enorme multidão de retardatários e de seguidores do exército que se reunira além da segunda ponte. Fizera-se ouvir um
grande brado quando viram a queda da ponte. Avançaram de imediato, afastando o cordão de soldados destacados para os conter, após o que começaram a correr pela margem,
na direção da ponte restante.
- O que julgam aqueles idiotas que estão a fazer? - questionou Napoleão, furioso. - O caos vai instalar-se. Eles vão destruir tudo.
A turba chegou à extremidade da ponte, afastando os engenheiros. Entre a multidão contavam-se alguns carros e carroças, e os condutores incitaram os cavalos em frente,
atropelando dezenas de pessoas na tentativa de chegar à ponte. Os primeiros elementos da populaça já estavam no tabuleiro, a correr para a margem ocidental. Foram
esses os afortunados. Numa questão de segundos, a enorme massa de gente empurrava em frente, para a passagem estreita. Todos agiam por si e os empurrões impiedosos
atiravam já indivíduos borda fora, que mergulhavam no rio lá em baixo. Napoleão viu as tábuas começarem a curvar-se sob a pressão e percebeu que havia pouco tempo
para salvar a ponte. Virou-se rapidamente e gritou uma ordem ao capitão da companhia que guardava o quartel-general.
- Traga já os seus homens aqui para baixo! Desimpeçam a ponte. Não quero saber como, mas afastem a multidão da ponte!
O oficial correu para a margem do rio, bradando aos homens para que o seguissem. Ignoraram o fluxo irregular de indivíduos que conseguira fazer a travessia e que
passavam agora por eles, detendo-se a pouca distância da frente da gentalha que se aglomerava na ponte. O capitão mandou apressadamente os homens formar uma linha
e depois os mosquetes foram apontados à cara das pessoas que avançavam para eles.
- Para trás! - gritou o capitão. - Para trás ou disparamos!
Quem se encontrava à frente da multidão tentou parar, mas a pressão atrás deles era imensa e foram lançados em frente.
- Primeira fila! - bradou o oficial. - Fogo!
Os mosquetes cuspiram chamas e fumo para a tarde sombria e vários corpos tombaram sobre as tábuas.
- Segunda fila! Avançar e fogo!
Outra salva foi disparada, abatendo mais pessoas, que caíram sobre os corpos dos primeiros tombados. Um grito de pânico fez-se ouvir na frente da turba, e estes
tentaram virar-se e regressar à margem oriental, contra a pressão constante dos que estavam desesperados por fugir sobre o rio. Napoleão sentiu-se enojado ao ver
um homem com a barretina e o sobretudo de um voltigeur empurrar uma mulher com uma criança nos braços. Ela cambaleou até à borda da ponte e gritou ao cair. Muitos
mais continuavam a ser empurrados para o Berezina, à medida que os Guardas iam disparando contra a multidão imparável.
Gradualmente, a perceção do risco corrido na ponte começou a percorrer as hostes e, por fim, os que ainda se encontravam na margem oriental começaram a recuar, cedendo
lentamente terreno à medida que se retiravam para as ruas onde pouco antes esperavam. O capitão ordenou aos homens que cessassem fogo e estes avançaram, de baionetas
baixas, mantendo-se a curta distância da multidão em retrocesso. A seu tempo chegaram ao fim da ponte e espalharam-se, obrigando as pessoas a recuar. Não foi tarefa
fácil, já que muitos tinham perecido esmagados e os corpos jaziam no terreno em torno da cabeça de ponte.
- Deus do Céu - exclamou Berthier, que fitava a cena, pálido. Por baixo da ponte, vários corpos tinham ficado presos nos suportes. Alguns indivíduos continuavam
vivos, agarrados aos postes, a gritar por ajuda. Não havia nada que pudesse ser feito por eles e, no espaço de minutos, as águas geladas levaram a que o último se
largasse. - Que massacre. O que pensaram eles que estavam a fazer?
- Pânico - respondeu Napoleão. - E podemos contar com mais situações do género nas horas que se avizinham. Quero as extremidades das pontes bem guardadas, bem como
as estradas até elas. Trate disso imediatamente.
Os engenheiros repararam a quebra à medida que a luz se foi desvanecendo e depois deram início à tarefa macabra de arrastar os cadáveres para longe do extremo da
outra ponte, para limpar a estrada de acesso. Quando o último soldado cruzou a ponte e só as tropas de Victor permaneciam na margem oriental, o general Eblé fez
o possível por levar alguns civis e retardatários para o outro lado. Todavia, a noite caíra, havia neve no ar gelado e a maioria recusou-se a deixar o calor das
suas fogueiras.
Pela madrugada, Victor informou Napoleão de que os russos começavam a pressionar toda a linha de tropas francesas. O som do fogo dos canhões aumentou de volume e
em breve até os estampidos distantes dos mosquetes se deixaram ouvir no quartel-general do imperador. A alvorada trouxe consigo uma nova camada de neve, com os flocos
grossos a rodopiar sobre a travessia e a abafar misericordiosamente os sons de combate vindos de onde a retaguarda se esforçava por conter o inimigo.
- Como se está a sair a vanguarda? - perguntou Napoleão a Berthier.
- Chegaram ao final da passagem e assumiram posições para a proteger de ataques pelos flancos, sire. Os homens de Ney estão a manter os caminhos até à passagem e
o resto do exército está a avançar. - Fez uma pausa. - Até agora tivemos sorte por os russos não nos terem pressionado mais.
- É verdade. Está na altura de chamar o Victor. Informe Eblé que deverá deitar fogo à ponte assim que a retaguarda atravesse.
- Sim, meu imperador. E quanto aos civis?
- Eles terão de atravessar como puderem, antes que as pontes sejam destruídas.
Ao longo do dia, os engenheiros e as primeiras formações das tropas de Victor atravessaram as pontes, a par de um fluxo constante de não-combatentes. Os confrontos
aproximaram-se cada vez mais do rio e quando a luz começou a desvanecer-se, o general Eblé pegou numa corneta-acústica e gritou sobre a água para a multidão silenciosa
que ainda rodeava as fogueiras na outra margem.
- A ponte vai ser cortada nas próximas horas! Peço-lhes que atravessem enquanto podem!
Napoleão abanou a cabeça, já que poucos pareciam dar atenção ao alerta de Eblé.
- Tiveram uma oportunidade - disse para consigo, em voz baixa.
Quando o Sol desapareceu num brilho vermelho-sangue sobre o horizonte, Victor apresentou o seu relatório a Napoleão. Não se barbeava nem dormia havia dias, e tinha
um aspeto desgrenhado.
- O inimigo vai chegar à ponte dentro da próxima hora, sire. Não tenho cavalos para as peças de artilharia que me restam. As equipas receberam ordens para disparar
as últimas munições, sabotar os canhões e recuar. Temos três batalhões a manter o extremo da aldeia. Vão seguir-nos assim que receberem ordens.
- Agiu bem, marechal.
- Os meus homens fizeram tudo o que puderam, sire, mas a qualquer momento, as armas russas vão ficar ao alcance da ponte.
- Estou a ver. - Napoleão fitou a escuridão que caía no outro lado do rio. - Nesse caso, não protele. Dê a ordem de imediato.
- Sim, meu imperador.
Enquanto Victor regressava sobre a ponte, os engenheiros apressavam-se a cobrir as madeiras com piche. O cheiro ácido fez Napoleão franzir o nariz, enquanto aguardava
pela chegada de Victor e dos últimos homens. Apareceram então, a correr pela rua e sobre a ponte mais pequena, uma companhia de cada vez. O último batalhão retirou-se
virado para o inimigo, apressando-se depois a atravessar. Por fim passou Victor, de espada em riste, até que a embainhou, ao chegar à margem ocidental.
O silêncio caiu sobre a cena quando o derradeiro engenheiro abandonou os pincéis e os baldes de piche, após o que Eblé voltou a erguer a corneta-acústica.
- Pelo amor de Deus! Fujam enquanto podem!
Os civis pareciam demasiado exaustos e letárgicos para reagir e Eblé, com tristeza, baixou a corneta e fez sinal aos homens para que cumprissem as ordens. Encostaram-se
archotes ao piche e as chamas lamberam todo o comprimento das pontes, à medida que o fogo pegava e se ia espalhando rapidamente.
Ouviu-se um silvo pelo ar e uma granada de morteiro rebentou no meio da multidão, com um clarão ofuscante. Puseram-se de pé de imediato e correram para as pontes.
Mais granadas foram rebentando entre os civis, com explosões medonhas de vermelho e laranja, os estilhaços a derrubar dezenas de corpos de cada vez. Os fugitivos
procuraram chegar às pontes, tentando proteger o rosto das chamas enquanto corriam até à outra margem. Alguns conseguiram passar, uns quantos a arder, sendo apressadamente
abafados pelos engenheiros. Outros, cegos pelo calor, caíram pela borda e tombaram ao rio. Alguns ficaram desesperados quanto bastasse para se atirar à água, mas
poucos tiveram forças para vadear ou nadar até ao outro lado, e o frio matou-os antes de alcançarem a margem ocidental. As chamas chegavam ao céu da noite, refletindo-se
na superfície do rio, e o crepitar e estalar da madeira era acompanhado pelos gritos agudos de pânico vindos da multidão encurralada do outro lado.
Pouco a pouco, as tábuas e os suportes caíram à água e, quando o fogo começou a esmorecer, as hostes silenciaram-se e fitaram as pontes carbonizadas com um horror
entorpecido. Os russos tinham cessado fogo assim que se aperceberam de que a maior parte dos franceses tinha escapado e um silêncio terrível caiu sobre o cenário.
O quartel-general imperial já partira ao longo da estrada. Napoleão olhou uma última vez para Studienska e depois subiu para a montada. Estalou a língua para incitar
o cavalo a assumir um trote e seguiu ao lado dos sobreviventes das tropas de Victor, dirigindo-se a Vilna.
Capítulo 37
Molodetchna, 29 de novembro de 1812
Os restos desordenados do exército francês estendiam-se pela estrada para Vilna. A neve caía incessantemente, flutuando contra os últimos veículos abandonados e
sobre os cadáveres de homens e cavalos, até todos serem cobertos, misericordiosamente, escondendo, daqueles que ainda viviam, os mortos e os detritos do exército.
Um punhado de unidades continuavam juntas, em grande medida para se protegerem, e não graças à disciplina, ou a qualquer sentido de dever. Marchavam com as baionetas
caladas, tendo poucas munições restantes nas mochilas, sempre a observar cautelosamente o campo à sua volta, em busca de sinais dos cossacos que perseguiam a coluna.
A espaços, os cavaleiros atacavam, irrompendo dos esconderijos com uma série de gritos de guerra repentinos para abater quaisquer soldados ou civis franceses incautos.
Não se davam ao trabalho de discriminar entre as duas classes quando as chacinavam e depois revistavam os cadáveres, à procura de qualquer coisa de valor. Os cossacos
tinham aprendido a deixar as unidades formadas em paz, e muitas vezes ficavam ao alcance dos mosquetes, deixando-as passar.
A neve voltara a ficar compacta e gelada, pelo que a passagem do Grande Exército ficou marcada por um longo e sinuoso carreiro de gelo traiçoeiro. A temperatura
continuou a descer, ficando sempre abaixo do ponto de congelação desde que tinham deixado para trás o pesadelo do rio Berezina. As noites eram duras e a alvorada,
quando chegava, permanecia desagradável. Quaisquer homens, cavalos ou equipamentos deixados ao relento ficavam cobertos de uma densa película de gelo. Cada vez mais,
todos os que não encontravam abrigo para a noite não sobreviviam para ver um novo dia. Ainda nessa manhã, Napoleão assistira a uma cena peculiar na berma da estrada.
Um soldado, uma mulher e duas crianças estavam sentados à volta dos restos de uma pequena fogueira, feita no sotavento de uma parede em ruínas. Estavam de pernas
cruzadas, enrolados em cobertores, as crianças encostadas à mãe, com as cabeças apoiadas na mulher, como se adormecidas. Todavia, a sua imobilidade não era natural
e Napoleão deteve-se para as olhar.
- Morreram congelados - resmungou ao mirar-lhes os rostos brancos, fascinado com a expressão pacífica dos quatro seres. - Morreram congelados - repetiu, horrorizado,
antes de voltar a pôr o cavalo em movimento.
Nessa noite, os elementos do quartel-general e a Guarda Imperial pararam em Molodetchna. Os soldados encontraram aboletamento na aldeia e tentaram reunir restos
de carne e legumes para fazer sopa, enquanto o imperador e a sua comitiva se instalaram na única taberna da aldeia. Os exércitos russos encontravam-se, na sua maioria,
atrás deles, pelo que agora a batalha era pela sobrevivência. Restabelecera-se uma comunicação regular com Varsóvia e pela manhã chegara à aldeia um correio escoltado,
enviado pelo ministro da polícia. A par das mensagens oficiais, Savary dera ordens ao oficial para deixar o imperador a par da situação arriscada que se vivia em
Paris.
Napoleão retirara-se para a cozinha da taberna com Berthier para ouvir em privado o que o homem tinha a dizer. Um pequeno caldeirão fervia ao lume e o dono da taberna
descascava legumes para acrescentar ao caldo.
- Fora - disse-lhe Napoleão, apontando para a porta.
O taberneiro abanou a cabeça e indicou o caldeirão. Napoleão estalou os dedos, apontou para o punho da espada e repetiu a ordem: - Fora!
Assim que a porta se fechou, dirigiu a atenção ao correio.
- O que pode estar a alarmar Savary a ponto de o enviar de tão longe?
- Imagino que já tenha conhecimento do golpe falhado de Malet, sire.
- Sim. O último relatório de Savary dava conta que os conspiradores tinham sido reunidos e castigados.
- É verdade. O problema é que os boatos acerca da sua morte continuam a circular pelos salões de Paris e entre os oficiais presentes na capital. A situação piorou
com os relatórios que começaram a chegar da Rússia, acima de tudo cartas de soldados dos escalões mais baixos, que ouviram rumores quanto a um desastre que assolou
o exército. É claro que os jornais continuam a publicar a versão oficial de que está tudo bem, e que vossa majestade imperial venceu o czar. Muitas pessoas estão
ainda dispostas a acreditar nos jornais, mas torna-se claro que precisam de provas de que o meu imperador está vivo. Melhor ainda, precisam de o ver pessoalmente.
Também querem saber o que aconteceu na Rússia. É a única maneira de calar os boatos e de puxar o tapete àqueles que possam estar a conspirar contra o regime.
- Estou a ver. - Napoleão aquiesceu e esfregou os olhos por um instante, enquanto pensava nas implicações de tais notícias.
Berthier tossicou.
- Assim que se souber a escala das nossas perdas, vai haver problemas como nunca vimos. É rara a família em França que não chore a perda de um irmão, um marido,
ou um filho, sire. Os seus inimigos na capital vão servir-se disso, além da sua ausência, para exigir a abdicação.
Napoleão abriu os olhos e fitou Berthier.
- O que lhe parece que deva fazer?
O chefe do estado-maior susteve-lhe o olhar com firmeza.
- Julgo que deva regressar a Paris, sire. Enquanto ainda há tempo para impedir os traidores e os realistas de provocar mais tumultos. Perdeu a campanha. Não há motivo
para permanecer na Rússia.
- Perdi a campanha - repetiu Napoleão. Ainda há um mês, o imperador tê-lo-ia negado. Agora sentia-se esvaído, quase entorpecido com a escala do desastre que desabara
sobre o Grande Exército. O erro não estava nos planos que delineara. Como poderia estar? Fora tudo pensado ao mais ínfimo pormenor. Não, a culpa residia na natureza
do czar. Não se comportara como um monarca racional. Napoleão não contara com a inumanidade de Alexandre. Napoleão era responsável apenas por isso. Respirou fundo
e aquiesceu.
- Acabou. Fiz tudo o que pude pelo exército. Agora resta-lhes chegar ao Neman e atravessar em segurança. Já não faço falta aqui.
Berthier pareceu aliviado, tal como o correio. Este aproveitou rapidamente a decisão do imperador.
- O ministro tinha esperança de que o meu imperador regressasse a Paris, sire. Partiu do princípio de que haveria assuntos que exigiriam a sua atenção antes de se
afastar do exército. Assim sendo, pediu-me que lhe rogasse um despacho a declarar que a campanha chegou ao fim e que está de regresso a Paris. Para nos permitir
manter a posição enquanto aguardamos a sua chegada - explicou.
Napoleão mirou-o.
- As coisas estão assim tão más?
O correio baixou os olhos e não respondeu.
- Diga-me a verdade - insistiu Napoleão. - Não temos nada a ganhar com uma mensagem adocicada.
- Muito bem, sire. O ministro é da opinião de que a menos que regresse a Paris no espaço de um mês, ele não poderá garantir um trono para o qual voltar. Ele precisa
de um despacho seu que prove que está vivo, e que acabe com os boatos quanto ao destino do exército. Será um choque para a nação, mas até as más notícias são melhores
do que a ausência delas.
- Entendo. - Napoleão assentiu. - Obrigado.
Assim que o correio saiu, Napoleão mandou Berthier ir buscar papel e uma pena. Com um suspiro profundo, mergulhou o aparo na tinta e começou a esboçar o despacho
requisitado por Savary.
29º Boletim do Grande Exército. Sua majestade imperial, Napoleão, Imperador de França, Rei da Itália, tem o prazer de informar o seu povo de que a campanha na Rússia
chegou ao fim. Os integrantes valorosos do Grande Exército, a maior reunião de aliados que alguma vez empreendeu tamanha aventura, marchou sobre a vastidão erma
da Rússia para humilhar o Czar russo e provar-lhe que a vontade do Imperador, e de toda a França, não será negada. Derrotado em batalha, e tendo perdido a sua mais
importante cidade, o Czar, agindo contra todos os ditames da justiça e da humanidade, recusou-se a dar a guerra por terminada. Concomitantemente, o Imperador, vendo
recusada a vitória que qualquer homem de perfeita sanidade mental lhe teria concedido, foi obrigado a ordenar ao exército que retirasse para o território do Ducado
de Varsóvia.
Napoleão fez uma pausa para compor mentalmente a parte seguinte com o maior dos cuidados.
Devido à natureza traiçoeira do inimigo, o exército foi levado a permanecer em Moscovo até ao início do outono. A dias da partida, as condições atmosféricas agravaram-se
invulgarmente e a falta de sustento obtido nas terras por onde o exército marchou, a par do rápido início do inverno, teve como resultado uma perda considerável
de homens. O Imperador partilha a dor do seu povo pelo sacrifício de tantos soldados corajosos. O Imperador acredita que as famílias encontrarão algum conforto na
noção de que todos morreram como heróis, dando as suas vidas pela glória dos conterrâneos.
Napoleão prosseguiu, apresentando um valor de baixas que representava metade do número real. Mesmo isso provocaria grande consternação em França, mas o total absoluto
teria de esperar até que ele regressasse e pudesse dar a notícia pessoalmente. Escreveu sobre o clima terrível e apresentou descrições excitantes sobre a batalha
em Borodino e acerca da heroica travessia do Berezina. Descreveu o feito glorioso do marechal Ney e do grupo de heróis da retaguarda, que abrira caminho por entre
o exército russo para se juntar ao imperador. Napoleão concluiu com uma derradeira frase que serviria para atenuar os receios: A saúde de sua majestade nunca esteve
melhor.
Napoleão pousou a caneta e pediu a Berthier que copiasse o rascunho numa letra legível, e depois assinou e selou o documento, antes de o entregar ao correio de Savary.
- Parta de imediato. Diga ao ministro que irei assim que puder.
Ao longo dos dias seguintes, um nevão fresco cobriu a paisagem russa e o exército prosseguiu penosamente com a retirada, as cabeças baixas e corpos inclinados contra
o vento que fustigava as colunas exaustas, bem como os civis que tinham sobrevivido à travessia do Berezina e que até então tinham escapado à atenção dos cossacos.
Napoleão ordenara a Berthier que levasse a cabo em segredo os preparativos para o seu regresso a Paris e quando, cinco dias depois, o mau tempo melhorou, aquando
da entrada do exército em Smorgoni, o imperador decidiu que chegara a altura.
Nessa noite, os marechais do exército foram convocados dos aquartelamentos à sua presença. Tinha-lhes sido dito que eram necessários para a informação quanto ao
avanço do exército em direção ao Neman, e os oficiais acomodaram-se nas cadeiras dispostas à comprida mesa do salão de reuniões da povoação. Napoleão dera ordens
para que se trouxessem as derradeiras reservas de vinho e de brandy, e os marechais serviram-se com prazer enquanto esperavam a chegada dos últimos oficiais. Ney
voltara a comandar a retaguarda e tinha uma maior extensão a percorrer, pelo que só chegou à aldeia já tarde. Desabotoou o sobretudo salpicado de neve, que pousou
numa mesa de apoio enquanto se juntava aos companheiros, sorrindo ao ver o brandy.
- Ah, mas que bela visão para quem está tão cansado. - Serviu-se de um copo generoso que engoliu de um trago, após o que tossiu, para limpar a garganta dorida. -
Precisava disto! Nada como o brandy para devolver o fogo à barriga de um homem.
Napoleão esperou que Ney se sentasse e bateu com o copo na mesa.
- Silêncio, se não se importam.
Os marechais recostaram-se nos seus lugares e olharam-no, expectantes. Napoleão não pretendia desperdiçar tempo com um preâmbulo que lhes elogiasse os esforços e
lhes prometesse recompensas quando todos regressassem a França. Respirou fundo e começou num tom átono:
- Estou convicto de que o exército conseguiu escapar. Embora os homens tenham fome, existem rações mais do que suficientes em Vilna para os alimentar e para garantir
suprimentos para chegar ao Neman. Assim sendo, já não sou necessário aqui. Por outro lado, a minha falta faz-se sentir com urgência em Paris, onde os nossos inimigos
estão a tentar alimentar a revolta contra tudo aquilo por que lutámos. Tendo isso presente, decidi deixar o exército. Um trenó coberto, a par de uma pequena escolta
de cavalaria da Guarda, está à espera para me levar a Varsóvia. Daí poderei continuar a viagem até Paris de carruagem. - Olhou para os marechais, à espera da reação.
- Diabos me levem. - Ney abanou a cabeça. - Não acredito. Está a abandonar-nos.
- Não tenho alternativa.
- A sério? - Ney esboçou um sorriso. - A mim parece-me que tem.
- Nesse caso, é uma opção que me é imposta pelas circunstâncias. Parece-lhe melhor?
- Mas a mim não me faz diferença, sire. É o senhor que terá de viver com a decisão.
- Faço o que tenho de fazer pela França - redarguiu Napoleão, irritado.
- Quem vai assumir o comando do exército? - indagou Davout.
- O rei de Nápoles. - Napoleão acenou com a cabeça na direção de Murat.
- Eu? - Murat pareceu surpreendido, mas depois foi incapaz de conter um sorriso por ter sido destacado de entre os outros marechais, mesmo sendo o comando pouco
mais do que um título oco.
Davout tufou as faces.
- Posso perguntar a vossa majestade porque foi Murat escolhido para essa honra? Imagino que ele já tenha responsabilidades suficientes, com a coordenação da cavalaria
do exército.
- O que sobra dela! - bradou Ney, após o que se serviu de mais um copo de brandy. - Não o deve deixar muito ocupado, não é?
Murat lançou-lhe um olhar furioso, enquanto Napoleão explicava a sua decisão.
- Enquanto rei de Nápoles, o Murat é o oficial de patente mais elevada. Já tomei a minha decisão, Davout. O senhor e os restantes vão acatá-la.
- Como vossa majestade desejar. - Davout baixou a cabeça.
- Exatamente. - Napoleão olhou em redor da sala. - Cavalheiros, é essencial que isto não se saiba fora destas paredes. O moral do exército já se encontra de rastos.
Seria arriscado deixá-los saber que parti. Para os homens adoeci, nada muito grave, e estou confinado à carruagem de campanha. A verdade só pode ser contada quando
o exército chegar a Vilna. Nessa altura pouca diferença vai fazer. Os russos têm de suportar as mesmas condições terríveis e duvido que sejam capazes de tentar dar
início a uma batalha. O único risco vem dos cossacos. Todavia, se os homens estiverem alimentados e armados, e se mantiverem a união, nada lhes acontecerá. São estas
as vossas ordens.
Fez uma pausa.
- Já é tarde e tenho de preparar-me para partir. Não há tempo para perguntas. Só resta dizer que foi uma honra ser vosso comandante, cavalheiros. Tenho a certeza
de que não há melhor corpo de oficiais em todo o mundo. Quando se escrever a história desta campanha, podem estar certos de que os vossos feitos heroicos serão recordados
muito depois de o último de entre nós ter morrido. - Levantou-se e ergueu-lhes o copo. - Meus amigos, brindo a vós. Espero que quando vos voltar a ver, seja num
sítio mais quente.
Os marechais levantaram-se das cadeiras e, um a um, avançaram para apertar a mão do imperador. Ney foi o último.
- Desejo-lhe uma viagem segura, sire.
- E eu desejo que tenha mais cuidado com a sua vida, Ney. É o meu braço-direito no campo de batalha. Já perdi demasiados amigos. Não me dê novos motivos para lamentar.
- Farei o possível por sobreviver. Sempre o fiz, sire.
Napoleão não pôde evitar o sorriso.
- Se pelo menos os políticos de Paris tivessem a sua capacidade para a desonestidade, meu caro Michel.
Ney franziu o cenho até perceber o que o imperador queria dizer, e depois devolveu o sorriso.
- Escolha-os, sire. Depois regresse ao exército. É aqui que deve estar. - Largou a mão do imperador, dirigiu-se à mesa de apoio para recolher o sobretudo e saiu
sem olhar para trás.
O trenó aguardava à saída da aldeia, num pátio privado guardado pela escolta de dez elementos. Napoleão deixou o quartel-general antes do nascer do dia, vestindo
um sobretudo simples e com um barrete de lã, em vez do habitual bicorne. Tinha um cachecol à volta do rosto para lhe ocultar as feições e levava uma mala grande
enquanto seguia o general Caulaincourt pelas ruas escuras, esmagando a neve debaixo dos pés. Napoleão decidiu que seria melhor viajar incógnito, fazendo-se passar
por secretário de Caulaincourt. Dessa forma poderiam passar pelas unidades francesas sem chamar demasiada atenção. Ainda mais importante, se passassem por tropas
aliadas de lealdade dúbia, estas não se sentiriam tentadas a fazer Napoleão prisioneiro para o oferecer aos russos em troca de alguma recompensa.
A captura pelos inimigos era uma possibilidade, caso os cossacos fossem audazes a ponto de atacarem a escolta. Se tal acontecesse, Napoleão decidira matar-se. Tinha
um frasco de veneno pendurado ao pescoço e bastaria um instante para soltar a rolha e engolir o conteúdo. O cirurgião imperial garantira-lhe que a morte seria certa
e rápida.
Caulaincourt aproximou-se do trenó, uma pequena cabina com janelas de vidro assente num pesado par de patins de ferro. Havia um pequeno banco para o condutor e seis
cavalos estavam presos ao gancho logo abaixo da frente do veículo. Ao ver Caulaincourt, o condutor apressou-se a abrir a porta com uma vénia elegante. Napoleão conseguiu
impedir-se de entrar primeiro e esperou, com deferência, que o general subisse antes dele. O condutor fechou a porta e Napoleão deu consigo apertado ao lado de Caulaincourt,
num banco de pele almofadado. À frente havia uma prateleira estreita, onde Napoleão depositou a sacola. Caulaincourt puxou uma pele de urso grossa debaixo da prateleira
e tapou-lhes as pernas com ela, puxando a borda até ao peito.
- Não vamos ter grande oportunidade de nos mexermos e temos de ficar quentes. Um dos oficiais do quartel-general disse-me que ontem a temperatura chegou aos vinte
graus abaixo de zero.
Napoleão aquiesceu e enroscou-se por baixo da coberta, tentando manter a derradeira centelha de calor que ainda lhe restava no peito.
Lá fora ouviu-se um grito brusco e o estalar de um chicote, e o trenó deu um salto em frente. Assim que começou a deslocar-se, a viagem foi surpreendentemente tranquila
e, exceto o débil silvo dos esquis, o único som vinha das pancadas secas dos cascos dos cavalos na neve fresca. A madrugada estava gelada e a neve tinha um tom azulado.
Os primeiros elementos do exército já tinham partido. O tenente que comandava a escolta gritou a quem se encontrava à sua frente para desimpedirem o caminho. Ao
olhar pela janela, Napoleão viu os homens ao longo da estrada, com gelo colado aos cachecóis que tinham à volta do rosto, enquanto pequenas nuvens de respiração
descreviam volutas em torno das suas cabeças. Em pouco menos de uma hora, tinham passado pela vanguarda e o caminho à frente ficou livre. O trenó abrandou quando
os cavalos se esforçaram por subir uma pequena elevação. Napoleão inclinou-se para a janela, que abriu para olhar para a estrada. Uma rajada de ar gelado trespassou-lhe
o chapéu e o cachecol, e foi obrigado a semicerrar os olhos.
A alguma distância atrás do trenó, estava a cabeça da coluna, e, além dela, uma fina coluna de figuras que serpenteava para leste. Os soldados arrastavam-se em pequenos
grupos desalinhados, entremeados por punhados de homens e mesmo por uma figura isolada ocasional. Napoleão fechou a janela e voltou a acomodar-se no seu lugar, satisfeito
pelo menos por estar a deixar a Rússia, o cemitério do Grande Exército.
Capítulo 38
Arthur
Ciudad Rodrigo, abril de 1813
Estava um belo dia de primavera e as árvores no pátio do mosteiro da vila encontravam-se cobertas de folhas novas. Embora o ar estivesse frio, estava seco e refrescante,
e Arthur respirou fundo, antes de se afastar da janela para dar início à reunião com os generais. Nunca se sentira tão vigoroso desde que chegara à Península Ibérica.
Sabia que o mesmo se passava com os seus homens. Chegados aos aquartelamentos de inverno, tinham começado a recuperar da retirada que encerrara a campanha do ano
anterior. O moral elevou-se ainda mais com a distribuição de tendas novas pelo exército, além de um bom fornecimento de comida, vinho e tabaco. Tinham chegado mais
reforços e cada aspirante e oficial estava revigorado com a notícia da derrota esmagadora de Napoleão na Rússia.
- Cavalheiros. - Arthur sorriu ao olhar para os oficiais superiores à volta da mesa. - Nunca houve momento mais propício para levar a guerra aos franceses. O equilíbrio
de poder na Europa pende agora decisivamente a nosso favor. A Suécia e a Prússia uniram-se agora aos nossos aliados russos na cruzada contra o Tirano Corso. Imagino
que as relações de Bonaparte com o sogro austríaco possam vir a azedar em breve.
Os oficiais riram-se e Arthur permitiu-lhes a boa disposição por um instante, antes de levantar a mão para os silenciar.
- Com Bonaparte a juntar cada homem que possa segurar um mosquete para entrar em combate no Norte da Europa, o nosso papel na Península assumiu um novo significado.
Os meus agentes informaram-me que mais de vinte mil dos melhores soldados do inimigo foram retirados de Espanha para aumentar as fileiras do exército setentrional
do imperador. Além disso, o marechal Soult foi chamado a Paris. Com isso, Bonaparte facilitou-nos o trabalho. Ao mesmo tempo, os franceses foram obrigados a abandonar
o Sul de Espanha, pelo que a sua área de responsabilidade, por assim dizer, se limita às províncias orientais e setentrionais. A isso juntam-se as dezenas de milhares
de soldados franceses que estão retidos a suprimir insurreições locais e a perseguir bandos de guerrilheiros resistentes. Durante o inverno fomos reforçados para
mais de oitenta mil homens, e os nossos aliados espanhóis prometeram-nos outros vinte mil para engrossarmos as nossas fileiras.
- Gostava de ver o dia em que esses canalhas vão marchar ao nosso lado - interveio Picton, carrancudo. Vários oficiais resmungaram a sua concordância.
- Nesse caso, tenho o prazer de o informar de que o seu desejo será realizado com celeridade - replicou Arthur. - Nos próximos dias, duas divisões espanholas vão
juntar-se ao nosso exército.
- Acredito nisso quando o vir - acrescentou Picton. - Esses malditos só nos têm atrapalhado desde que viemos parar a esta terra.
Arthur dirigiu-se a Somerset e acenou com a cabeça na direção do grande cavalete ao lado da mesa. Estava tapado com um lençol, que Somerset retirou cuidadosamente,
revelando um mapa preso a uma tábua. A carta apresentava o território do Norte de Portugal e de Espanha, desde o Atlântico até aos Pirenéus. Duas marcas vermelhas
assinalavam as posições dos exércitos aliados que se tinham formado, à espera da nova campanha. Um estava baseado em Ciudad Rodrigo, pronto a avançar pela estrada
para Salamanca, tal como acontecera no ano anterior. O outro encontrava-se a sul do Douro, no extremo Nordeste de Portugal.
Arthur encaminhou-se para o lado do mapa e não foi capaz de reprimir um sorriso para os oficiais.
- Sei que alguns de vós ficaram perplexos com a divisão do exército no início da campanha que se avizinha. Apraz-me dizer-lhes que a minha loucura aparente tem um
método. A campanha russa veio mudar tudo. Antes de ser informado da escala da derrota do Boney, tencionava avançar mais uma vez sobre Madrid. No entanto, agora creio
estar ao nosso alcance pormos um ponto final no controlo francês sobre a Península antes do final do ano.
Os oficiais à volta da mesa entreolharam-se, surpreendidos. O general Beresford foi o primeiro a falar.
- Milorde, embora tenha a certeza de que todos nós partilhamos dessa ambição, por certo será demasiado cedo para tal resultado. O inimigo tem duzentos mil soldados
em Espanha. Mais do dobro das nossas forças.
- Estando menos de metade disponível para se concentrar contra nós - contrapôs Arthur. - O segredo da próxima campanha será o avanço rápido, antes que eles consigam
juntar homens suficientes em cada local para nos superarem. Além disso, não vamos atacar onde José e o seu comandante superior, o marechal Jourdan, estão à espera.
- Arthur virou-se para o mapa. - Primeiro temos de os ludibriar. Para isso, o general Hill, com um terço do exército, vai avançar de Ciudad Rodrigo em direção a
Salamanca. Vou acompanhar o exército para garantir que os franceses pensem que vamos tentar retomar Madrid. Entretanto, o general Graham vai levar a força principal
através das montanhas no Nordeste português, chegando à margem norte do Douro ao entrar em Espanha.
Beresford franziu ligeiramente o cenho ao concentrar-se no mapa.
- Mas milorde, isso significa que temos de levar a força principal por Trás-os-Montes. Conheço a zona, e as estradas pelas montanhas são traiçoeiras. Arrisco mesmo
a sugerir que são intransponíveis.
- Imagino que os franceses partilhem da sua opinião - sorriu Arthur. - É por isso que o general Graham vai usar as estradas montanhesas para surgir onde o inimigo
menos espera. Os nossos engenheiros passaram o inverno a remover os piores obstáculos do caminho. Vai ser um trajeto difícil, mas não haverá oposição e teremos flanqueado
o inimigo. Assim que Graham tiver ultrapassado as montanhas, vai marchar ao longo do Douro, até Toro, onde a coluna do general Hill se vai juntar a ele, depois de
ter deixado uma pequena guarnição em Salamanca. No início de junho teremos oitenta mil homens prontos a tomar Burgos e a libertar o Norte de Espanha. Entretanto,
José fica sem saber para onde se virar. Se tudo correr bem, podemos esmagar-lhe as formações antes que elas tenham tempo de se concentrar. Perguntas?
- Sim, milorde - resmungou Picton. - Isso é tudo muito bonito, mas e se José se aproveitar da nossa posição a norte do Douro para atacar a ocidente e cortar a nossa
linha de comunicação com Portugal? Temos de proteger a nossa rota de fornecimentos até Lisboa.
- Por pouco tempo. - Arthur indicou a costa norte de Espanha. - Dei ordens para que as nossas armas de cerco fossem carregadas para uma esquadra que já se encontra
ancorada ao largo da Corunha. Assim que tomarmos o porto, a nossa nova base de fornecimentos será Santander.
Arthur ficou satisfeito ao notar que os generais se tinham apercebido de imediato da importância da notícia. Prosseguiu:
- Com Santander nas nossas mãos, vamos dominar o Norte de Espanha, cortando a ligação de José com França. Assim sendo, que outra opção terá ele, a não ser enfrentar-nos?
A alternativa será retirar-se de Espanha, algo que não vai agradar ao irmão.
Beresford anuiu a sua concordância.
- Um belo plano, milorde. Homessa, antes do final do ano podemos estar a controlar a linha do Ebro.
- Que se dane o Ebro! Nessa altura tenciono já ter chegado aos Pirenéus.
- E depois? - interveio Picton. - O que acontece? Pretende invadir França?
Arthur tinha noção de que todos os generais aguardavam a sua resposta, mas limitou-se a franzir os lábios.
- Uma coisa de cada vez, sim, Picton? Mesmo sabendo que tem pressa de chegar a Paris. - Pigarreou. - Muito bem, cavalheiros, este é o plano geral. Espero que mantenham
o sigilo. Não irei tolerar quaisquer comentários com amigos e familiares em Inglaterra. Isso já aconteceu vezes suficientes no passado e acredito que, até ao final
do ano, o exército será motivo de brindes no nosso país e todos os nossos críticos serão alvo de chacota. O Somerset tem as vossas ordens seladas. Levem-nas para
os vossos quartéis-generais e preparem-se para marchar.
Os generais levantaram-se das cadeiras e saíram lentamente da sala, trocando comentários entusiasmados enquanto recolhiam as ordens na mesa junto à porta. Arthur
observou-os com atenção. Apenas Picton parecia não ter sido contagiado pelo bom humor, mas ele estava sempre pronto a ver o pior, tanto nos planos como nos homens.
Não fossem as competências do general em combate e há muito que Arthur talvez se tivesse sentido tentado a dispensar os seus serviços. Somerset fechou a porta e
voltou a analisar o mapa em silêncio durante alguns instantes.
- Um tostão pelos seus pensamentos, Somerset.
O ajudante de campo virou-se para Arthur.
- Ocorreu-me que talvez esteja a pensar em dar por encerrada a campanha do ano do outro lado dos Pirenéus, milorde, e não no lado espanhol.
- A sério? - Arthur ergueu uma sobrancelha. - E o que o leva a dizer isso?
- Se José for obrigado a enfrentá-lo no Norte de Espanha e o derrotarmos, é o fim da linha para os franceses a sul dos Pirenéus. Quanto a isso não há dúvida. Mas
se conseguirmos entrar em França, com tal força que nos permita aguentar o inverno em solo francês, pois isso seria um golpe devastador para o moral gaulês.
- Sim. Imagino que fosse.
Somerset pensou por um instante.
- Porque não o disse aos outros, milorde? Poderia ter ajudado a inspirá-los.
- Pensava que por esta altura já conhecesse os meus métodos a ponto de aventar. Viu como eles reagiram à perspetiva de chegar aos Pirenéus. Alguns deles têm a certeza
de que estou a alongar demasiado o exército. Tal como os franceses, partem do princípio de que me limito a travar uma guerra defensiva. Isso já passou. Este ano
temos força suficiente para derrubar os franceses. Os homens nunca estiveram em melhores condições e com um moral tão elevado, ao contrário do inimigo. Para Beresford,
pararíamos nas margens do Ebro. Ao oferecer-lhes os Pirenéus, criei um desafio, mas algo em que podem acreditar. Se tivesse dito França, ter-lhes-ia plantado a semente
da trepidação no âmago. Além disso, os meus generais não são o único público desta nossa modesta representação.
- Milorde?
- Os nossos senhores políticos em Londres julgariam que sou louco por avançar tanto. Por isso disse-lhes ainda menos do que aquilo que os nossos generais sabem.
É sempre melhor dar às pessoas um objetivo mais baixo, para que a sensação de conquista seja maior quando o excederem. Decerto imagina o quão grato o nosso país
vai ficar, Somerset, caso cheguemos a França.
- Com efeito, sir. De certeza que terá recompensas principescas.
Arthur lançou-lhe um olhar duro.
- Julga que é isso que me motiva?
- Não disse isso, milorde.
- Não o disse. - Arthur soltou uma gargalhada seca. - Já tive algumas recompensas. Após Talavera, fui elevado a cavaleiro, depois fui feito duque, e marquês graças
a Salamanca, e agora recebi a Ordem da Jarreteira. Os nossos aliados espanhóis e portugueses concederam-me ducados, e é isso que os nossos soldados me chamam, mesmo
que com algum humor. Atrevo-me a dizer que, com o tempo, talvez chegue mesmo a duque de Inglaterra. Mas isso não passa de títulos, Somerset. Ninharias. O que me
move não são os títulos, nem uma fita, nem uma estrela cravejada de joias, mas sim a perspetiva de uma Europa livre da tirania francesa. Essa é uma causa pela qual
vale a pena lutar, e morrer, se for preciso. Fui claro?
- Sim, milorde.
Arthur fitou-o por um instante e depois bateu as palmas.
- Nesse caso está tudo. Há mais algum assunto que exija a minha atenção?
Somerset não conseguiu reprimir um sorriso.
- Só mais uma coisa, milorde. Chegou hoje de Londres. Vou buscar. - Dirigiu-se apressadamente à sua secretária na antessala. Voltou momentos depois com um estojo
de veludo do tamanho de um livro grande. Pousou-o sobre a mesa, a par de uma breve mensagem dirigida a Arthur, escrita com a inconfundível caligrafia intricada da
esposa Kitty. Arthur quebrou o selo, abriu a carta e leu a mensagem sucinta.
Meu querido Arthur
Sei que não gostas que te incomode quando estás ocupado com assuntos militares e com o dever que tens para com o teu país. Há meses que não recebo uma carta tua
e parece que fico a saber mais sobre ti pelos jornais e pelos boatos das esposas dos teus oficiais, do que diretamente pela tua mão. Meu Arthur, sei que não sou
a esposa que mereces. Sei disso com mais certeza a cada ano que passa. Mesmo assim amo-te, e os nossos filhos amam-te, e mal podemos esperar pelo momento em que
regressarás para nós. Sei que não o poderás fazer antes do final da guerra, e enquanto aguardamos, quero que saibas que temos o maior orgulho por tudo o que alcançaste
para a nossa nação. Por tudo isso, junto envio-te o que nos chegou de Windsor, algo que espero te recorde do afeto que tantos sentem por ti.
A tua esposa adorada, Kitty.
Arthur dobrou a carta e devolveu-a à mesa. Tinha noção de que devia sentir-se culpado, mas esse era um sentimento que se recusava a crescer-lhe no peito. Tinha apenas
a certeza absoluta de que Kitty dizia a verdade e de que ele nunca seria capaz de cuidar dela da forma que a esposa pretendia.
Por um momento interrogou-se quanto ao que lhes aconteceria quando a guerra chegasse finalmente ao fim. O que faria, partindo do princípio de que sobreviveria? Durante
vinte anos, pouco mais conhecera do que a guerra. Refinara as suas competências marciais a um ponto extremo e orgulhava-se de si próprio, dos seus oficiais e dos
seus soldados. O que poderia a perspetiva de paz oferecer a um homem como ele? O regresso ao enfado da vida sem farda, e uma Kitty...
- Não a vai abrir, milorde? - Somerset interrompeu-lhe os pensamentos.
- O quê?
- A caixa, sir.
- Sim, claro. - Arthur puxou-a para si, abriu o fecho delicado e levantou a tampa. Lá dentro, alojada em seda branca, estavam as insígnias da Ordem da Jarreteira,
a mais elevada distinção que Inglaterra tinha para oferecer. Arthur não pôde deixar de se sentir comovido com a honra que lhe fora prestada. Engoliu em seco e depois
tocou nas pedras cintilantes da estrela.
- É muito bonita, não é? - meditou.
- Quer dizer que não se trata de mais uma ninharia, milorde?
Arthur semicerrou os olhos.
- Se não tirar essa expressão tola do rosto, ver-me-ei obrigado a atribuir-lhe uma Ordem muito diferente. - Baixou a mão e bateu no cano da bota.
O ajudante de campo esforçou-se por reprimir o humor.
- Assim está melhor. - Arthur levantou-se. - Muito bem, se estiver pronto, creio que chegou a altura de nos juntarmos ao general Hill.
Capítulo 39
Perto do final de maio, Ciudad Rodrigo foi entregue a uma guarnição espanhola e a ala austral do exército aliado partiu para Salamanca. Tendo em conta o terreno
acidentado que o general Graham teria de percorrer para chegar à margem norte do Douro, a maior parte das peças de artilharia do exército, além da cavalaria, seguiram
com Arthur. Para ocultar do inimigo o tamanho real do exército, Arthur enviou quatro mil cavaleiros à frente da coluna principal, ocultando-a de batedores inimigos
e, ao mesmo tempo, impressionando os franceses com a dimensão do esforço levado a cabo para tomar Salamanca.
Os franceses abandonaram Salamanca nas mãos de Wellington no final do mês e os habitantes da cidade receberam o exército aliado com alguma reserva. Três dias depois,
o exército deixou subitamente a cidade, marchando com celeridade para norte em direção ao Douro, que atravessaram perto de Toro, e juntou-se à coluna do general
Graham. Tendo reunido as reservas em Madrid para enfrentar a ameaça vinda de Salamanca, José tinha poucos homens a norte do Douro para fazer fosse o que fosse, a
não ser retirar, face ao poderoso exército aliado. Arthur levou os homens ao longo da margem do Douro até Valhadolid e depois encaminhou-se mais uma vez para norte,
paralelamente à grande Estrada Real que ligava Madrid a França.
Durante a primeira noite, o exército acampou nas colinas. Arthur estava na tenda, debruçado sobre um mapa, quando Somerset entrou, acompanhado por um oficial da
marinha. Lá fora, o exército tratava do acampamento no ar frio da noite. Fila após fila de tendas brancas novas eram montadas nas extensões mais planas das encostas
circundantes. O cansativo dia de marcha deixara os homens mais calados do que o habitual, e muitos deles nem se deram ao trabalho de acender um lume, comendo as
rações frias antes de recolherem alguns fetos onde se deitar e adormecendo de imediato.
Arthur estava bem-disposto e sorriu quando olhou para o ajudante de campo.
- Trinta e três quilómetros hoje, Somerset! Belo progresso, não acha? Estamos a avançar mais depressa do que aquilo que os franceses são capazes de recuar.
- Um belo progresso, milorde, com efeito. Mas é um progresso em direção a quê, exatamente?
- Tudo a seu tempo. Quem trouxe consigo?
Somerset chegou-se para o lado e disse ao oficial que entrasse na tenda.
- É o tenente Carstairs, do Navio de Sua Majestade Apollo. Ancorou na costa norte e foi acompanhado até aqui por um grupo de guerrilheiros.
Carstairs aproximou-se da mesa de Arthur e tirou o chapéu.
- O meu capitão enviou-me à sua procura, milorde. Ele é o comandante da esquadra de fragatas que escoltam o comboio de suprimentos de Southampton. Tínhamos ordens
para desembarcar os fornecimentos no Porto, mas descobrimos que o senhor dera ordens para os deixar em Santander e para entrar em contacto consigo para novas ordens,
caso o porto da cidade ainda se encontrasse em mãos inimigas, por isso, aqui estou.
- Bom trabalho, Carstairs. Gosto de um oficial que tome a iniciativa. Como foi a vossa viagem?
- Surpreendentemente fácil, milorde. Não vi uma única patrulha francesa entre a costa e o vosso acampamento.
- Não me admiro. José Bonaparte está a reunir todos os homens possíveis de regresso ao Ebro. Os franceses estão arrasados. - Arthur soltou uma gargalhada, o ladrido
habitual a que Somerset se habituara, mas que levou o oficial da marinha a olhá-lo com uma certa dose de alarme.
- Muito bem - prosseguiu Arthur. - Quanto aos meus suprimentos, quero que o seu capitão mantenha a escolta ao largo de Santander até que o porto esteja nas nossas
mãos. Imagino que isso não levante problemas à marinha.
- Não, milorde. A esquadra de escolta está aprovisionada para mais dois meses. Não tenho a certeza das condições dos navios mercantes, mas se for preciso, podemos
alimentar as tripulações com as nossas reservas.
- Ótimo. Agradecia-lhe que indicasse ao seu capitão que transmita ao almirantado que todos os fornecimentos e reforços deverão, a partir de agora, ser enviados para
Santander.
Carstairs pareceu surpreendido.
- Todos os navios, milorde?
- Sim. Vamos cortar a nossa ligação com Portugal de uma vez por todas. A partir de agora seremos fornecidos a partir da costa norte de Espanha.
- Perdoe-me, milorde, mas segundo sei, o almirantado não foi informado desse reencaminhamento dos navios.
- Não foram os únicos - retorquiu Arthur com brevidade. - Seja como for, as minhas novas ordens mantêm-se e têm de ser transmitidas à hierarquia da marinha. Certifique-se
de que o seu capitão é informado o mais depressa possível, Carstairs.
- Sim, milorde.
- Muito bem, imagino que queira comer alguma coisa e uma cama para passar a noite. Somerset, um dos ordenanças que leve o tenente à messe dos oficiais.
- Com certeza, milorde. - Somerset curvou a cabeça e abriu a aba da tenda para Carstairs passar. Regressou momentos depois e deixou-se ficar de pé junto à entrada
da tenda, até que Arthur ergueu o olhar.
- Há mais alguma coisa?
- Já que pergunta, milorde, sim, há. Estou preocupado com a situação dos suprimentos. Os homens dispõem de rações para mais dois dias e já estamos três dias à frente
do comboio de fornecimentos. Eles, por sua vez, estão a mais de cento e cinquenta quilómetros do nosso depósito avançado em Salamanca. Estamos nos limites das nossas
linhas de fornecimento.
Arthur recostou-se na cadeira.
- Ouviu o que eu disse àquele oficial da marinha. O Somerset conhece os meus objetivos estratégicos. Assim sendo, sabe que estamos a mudar as nossas linhas de comunicação
para Santander e, a seu tempo, para San Sebastian. Não há nada com que se preocupar.
- Salvo não estarmos na posse de nenhum desses portos, milorde.
- Ainda não. Temos de os tomar.
- Mas não há garantias de que os consigamos tomar - retorquiu Somerset. - E se não os conseguirmos capturar, tal como falhámos em Burgos, milorde?
- Nós... eu... falhei em Burgos por falta de artilharia de cerco adequada. Como bem sabe, o nosso comboio de cerco está a bordo de uma frota ancorada ao largo da
Corunha. Quando chegar a altura, teremos o poder de fogo necessário para submeter ambos os portos, e depois teremos uma rota direta de fornecimentos com Inglaterra.
Assim já fica satisfeito, Somerset?
- Sim, milorde - assentiu Somerset com relutância. Fez uma continência formal e saiu da tenda.
Arthur suspirou e passou a mão pelo cabelo curto antes de devolver a atenção ao mapa.
O exército encontrava-se a menos de um dia de marcha de Burgos e a outros dois do Ebro. Os últimos relatórios das patrulhas de cavalaria revelavam que os franceses
tencionavam defender a linha do Ebro. A principal dificuldade do inimigo era o facto de não terem a certeza da localização do exército aliado. À sua frente só tinham
a cavalaria de Arthur e uma divisão de tropas espanholas. Se o logro resultasse como Arthur esperava, o exército estaria do outro lado do Ebro e ameaçaria isolar
José e o seu Exército de França antes que os gauleses pudessem reagir. A única opção seria lutar. O momento decisivo da campanha chegaria, e tudo após um mês do
seu início.
Mesmo tendo rejeitado as preocupações de Somerset, Arthur aceitava a existência de riscos. Esforçara os homens com a marcha e os soldados estavam cansados e poderiam
passar fome durante algum tempo, mas Somerset parecia ter-se esquecido do desejo de encontrar e destruir os franceses que lhes ardia no peito. Tinham lamentado a
falta de uma segunda oportunidade para combater o inimigo em Salamanca, e agora estavam dispostos a esmagá-los.
Durante a noite, o exército foi acordado pelo som de uma grande explosão que ribombou pela paisagem. Pouco depois viu-se um brilho vermelho no céu a leste, que tremeluziu
contra as nuvens dispersas pelo céu estrelado. Arthur observou do exterior da tenda, descalço e vestindo apenas calções e uma camisa larga. O brilho continuou durante
duas horas, até que começou a extinguir-se, perdido com a primeira luz do dia. Arthur regressou à tenda para acabar de se vestir e estava a sair quando Somerset
lhe apresentou o relatório.
- Foi em Burgos, milorde. Uma das vedetas da cavalaria estava perto o suficiente para ver a explosão.
- Explosão?
- Sim, milorde. Os franceses instalaram cargas e rebentaram com o castelo. Conseguiram também incendiar uma grande extensão da vila.
- Diabos me levem - resmungou Arthur, surpreendido. Era óbvio que o pânico dos franceses era maior do que o pensado. Isso, por sua vez, introduzia uma nova ansiedade.
E se a experiência vivida pelo inimigo nos últimos anos lhe tivesse minado de tal forma o espírito que não se atrevesse a lutar? Se fosse esse o caso, o plano de
Arthur teria de ser adaptado, para que quando surgisse a oportunidade de travar uma batalha, não houvesse maneira de os franceses fugirem. José e o seu exército
teriam de ser encurralados de modo a que fossem obrigados a render-se, ou então seriam aniquilados.
Dois dias depois, a primeira divisão do exército aliado deixou as colinas vazias e entrou no vale do Ebro. A mudança de paisagem foi acentuada e, para os soldados,
habituados a percorrer as planícies e colinas poeirentas e secas do centro de Espanha, o vale luxuriante regado pelo rio era uma visão de abundância. As estradas
ao longo das quais o exército marchava estavam ladeadas por árvores de fruto e por vinhedos, e sempre que os oficiais não viam, os soldados enchiam as mochilas com
cerejas, laranjas e maçãs com que complementar as rações que definhavam. Prosseguiram uma curta distância para leste antes de se dirigirem para sul, a caminho dos
cruzamentos de San Millan.
Ao final da tarde, um excitado jovem tenente da Nonagésima Quinta de Atiradores galopou até Arthur com uma mensagem do general Alten.
- Milorde! Avistámos o inimigo!
- Isso não pode ser assim, tenente - admoestou-o Arthur. - Recomece e apresente devidamente a mensagem.
O oficial aquiesceu e obrigou-se a falar de modo mais calmo.
- As minhas desculpas, milorde. O general Alten manda informar que os escaramuceiros avistaram uma divisão francesa a marchar por uma estrada a pouco mais de um
quilómetro a sul do caminho por onde o general está a avançar. As duas estradas cruzam-se pouco mais à frente. O general pede autorização para atacar a coluna inimiga,
milorde.
Os olhos de Arthur cintilaram de entusiasmo.
- Ah! Tenho de ver isso com os meus próprios olhos. Leve-me imediatamente ao general Alten.
Os dois cavaleiros incitaram as montadas ao longo do comboio de artilharia que avançava com estrépito pelo carreiro sulcado. Além das armas, passaram pela infantaria
da Terceira Divisão, onde se viraram cabeças ao som dos cascos que se aproximavam.
- É o Nosey! - gritou uma voz.
- Mas que pressa é aquela? - juntou-se outra. - Não andamos já a marchar o suficiente?
Os homens mais próximos gargalharam e Arthur reprimiu um sorriso, inclinando-se para a frente e esporeando o cavalo. Depois de passarem pela Terceira Divisão, chegaram
ao último batalhão da Divisão Ligeira, que marchava por uma secção reta da estrada. À direita via-se uma linha íngreme de colinas que desapareciam gradualmente.
Cerca de três quilómetros à frente, Arthur viu uma pequena aldeia ao sol da tarde. Uma ténue nuvem de poeira surgia do outro lado da aldeia, à medida que uma coluna
inimiga se dirigia a oriente. Arthur chegou a pensar que a divisão francesa pudesse ter escapado, mas depois o tenente apontou colina acima. Na cumeada estava um
pequeno grupo de oficiais que olhavam para a outra encosta.
- Aquele é o general Alten, milorde. - O oficial liderou o caminho, passando por duas companhias de infantaria antes de começarem a subir a inclinação. Quando chegaram
a Alten, os cavalos estavam esgotados e Arthur desceu da sela, com o coração a bater com força.
- Onde está essa sua divisão inimiga, Alten?
- Além, sir. - Alten apontou encosta abaixo, para onde outra estrada seguia para a aldeia. Uma longa linha de soldados e carros franceses marchava em passo acelerado.
Descendo a correr na direção deles, estavam os homens de casacas verdes da Nonagésima Quinta.
- Qual é o seu plano? - quis saber Arthur.
- A Nonagésima Quinta vai abrir fogo contra eles assim que estiverem ao alcance. A Quinquagésima Segunda está a descer o nosso lado da colina em passo acelerado
para se adiantar à última brigada e formar uma linha de fogo. Os meus rapazes portugueses estão a marchar pela direita, antes de descerem a encosta até à estrada
para lhes cortar a retirada. É demasiado tarde para apanhar as duas primeiras brigadas - acenou com a cabeça na direção da poeira de uma coluna distante, além da
aldeia, - mas esta está no papo.
- Muito bem. - Arthur acenou a sua aprovação.
Nesse momento, o primeiro mosqueteiro abriu fogo sobre a coluna francesa e o crepitar das armas espalhou-se pela encosta. Vários inimigos foram rapidamente abatidos
e os outros começaram a quebrar as fileiras em busca de abrigo. Os oficiais esforçaram-se por reunir e voltar a formar os soldados, para que respondessem ao fogo
da Nonagésima Quinta. Tal como tinham sido treinados para fazer, os atiradores apontaram aos oficiais e, um a um, foram abatidos enquanto davam as ordens. Os sobreviventes
ordenaram às tropas que disparassem uma salva para onde vissem as nuvens de fumo, mas os atiradores tiveram tempo suficiente para se abrigar e a saraivada de bolas
de mosquete desfizeram os arbustos raquíticos e fizeram ricochete nas pedras, sem que um único casaca-verde fosse atingido. Assim que os franceses baixaram os mosquetes
para recarregar, foram ceifados, caindo aos dois e três de cada vez, até que os sobreviventes, incapazes de suportar o massacre mais tempo, perderam a coragem e
fugiram, correndo pela estrada em direção à aldeia. Os atiradores continuaram a disparar contra os fugitivos tão depressa quanto eram capazes de recarregar e apontar,
e em breve a estrada estava apinhada de homens mortos e feridos, bem como de cavalos, abatidos nos tirantes, o que obrigava os condutores a abandonar as carroças.
- Um trabalho glorioso! - Alten esfregou as mãos, satisfeito. - E agora, o golpe de misericórdia. Observe ali, milorde!
Os homens da Quinquagésima Segunda atravessavam a estrada à frente dos fugitivos. Pararam e viraram-se com elegância para os franceses. Os mosquetes foram erguidos
e uma muralha de chamas e de plumas de fumo ocultou brevemente os casacas-vermelhas. A salva abateu dezenas de inimigos e os restantes deram meia-volta, correndo
de encontro aos camaradas e provocando ainda mais caos. Fez-se ouvir nova salva e os atiradores continuaram a disparar a partir da encosta. Centenas de corpos cobriam
agora a estrada. Bloqueados por dois lados, os franceses tentaram fugir por onde tinham vindo, mas depararam-se com uma linha de tropas portuguesas a descer a encosta,
prontas a fechar o cerco.
Alguns franceses largaram os mosquetes e levantaram os braços, rendendo-se, mas outros, com mais coragem, ou receando ser capturados, viraram-se e fugiram na única
direção possível, subindo a encosta da cumeada seguinte. Os atiradores cessaram fogo e correram encosta abaixo para o outro lado da estrada, ignorando os homens
que se rendiam e ajoelhando-se na base da encosta. Aí começaram a abater os franceses que trepavam à elevação à sua frente.
No espaço de dez minutos, a brigada fora destruída, sofrendo centenas de baixas, entre mortos e feridos, e rendendo mais de quatrocentos prisioneiros. Fora um massacre,
concluiu Arthur, mas, mesmo assim, orgulhava-se do desempenho eficaz dos homens de Alten.
- Foi uma emboscada executada na perfeição, general Alten. Transmita os meus parabéns aos seus homens.
- Assim farei, milorde.
- Certifique-se de que os rapazes acompanham os prisioneiros até à retaguarda o mais depressa possível e retome o avanço.
Alten aquiesceu e estava a voltar-se para transmitir as ordens aos oficiais do estado-maior quando um major da Nonagésima Quinta apareceu, ofegante, no topo da encosta,
agarrado a uma bolsa de cabedal. O major trazia uma espingarda como os soldados, algo invulgar para um oficial, e saudou o general Alten com um aceno de cabeça ao
entregar-lhe a sacola.
- Encontrámos isto no corpo de um coronel francês, sir.
- De que se trata, Richard? - perguntou Alten.
- São ordens, sir. Do comandante de divisão. Imaginei que as quisesse ler assim que possível.
O major acenou com a cabeça e virou-se, descendo a encosta de regresso aos seus homens. Alten tirou o fino molho de papéis da sacola e deu uma vista de olhos ao
conteúdo. Arregalou de imediato os olhos e dirigiu-se a Arthur.
- Ordens do quartel-general de José, sir! Com data de ontem. Está a convocar todas as unidades disponíveis para uma posição nova.
- Onde? - indagou Arthur, com o coração aos pulos.
- Uma povoação na Estrada Real, pouco mais à frente, milorde. Um sítio chamado Vitoria.
Capítulo 40
21 de junho de 1813
As nuvens dispersaram-se e o céu ficou limpo. O ar mal se mexia ao sol da manhã. A vista do vale por onde o rio Zadorra serpenteava para leste, a caminho de Vitoria,
estava desimpedida. Na véspera, Arthur contornara as colinas a norte do vale para observar as posições francesas e delinear os seus planos, e ficou aliviado ao ver
que o exército inimigo continuava acampado em três linhas, entre o rio e as colinas de La Puebla, a sul. Os piquetes do inimigo tinham dado o alarme de madrugada,
ao verem os primeiros homens de Arthur a marchar pelo desfiladeiro até ao vale, e agora os franceses aguardavam. As linhas escuras de infantaria e cavalaria encontravam-se
agora viradas para oeste, para receber a ameaça iminente.
Arthur sorriu com satisfação ao analisar a disposição do inimigo a partir da colina sobranceira à aldeia de Nanclares. O marechal Jourdan entregara-se nas suas mãos.
Os franceses tinham partido do princípio de que iriam enfrentar um ataque frontal, com o rio e as colinas a garantir uma proteção adequada de ambos os flancos. Tal
como antes, não tinham contado com a audácia do exército aliado. O seu plano era bastante simples, refletiu Arthur, enquanto percorria o vale com o telescópio. Dividira
o exército em quatro colunas. As divisões do general Hill, com tropas inglesas, espanholas e portuguesas, dariam início à batalha com um assalto às colinas de La
Puebla, avançando pela cumeada para ameaçar o flanco esquerdo das linhas francesas. O grosso do exército ficaria sob o controlo direto de Arthur e teriam como missão
um ataque frontal cruzando o rio. Outras duas divisões, com o general Dalhousie, tinham partido antes da alvorada para contornar as colinas a norte do vale e depois
atacar o flanco direito do inimigo. A quarta coluna, comandada pelo general Graham, ficara com a maior extensão de marcha, atravessando as mesmas colunas, mas chegando
mais longe, para negar aos franceses a possibilidade de fuga em direção à fronteira. Uma coluna espanhola mais reduzida fora incumbida de bloquear o caminho restante
para fora do vale. Se tudo corresse segundo os planos, os franceses ficariam encurralados e seriam obrigados a render-se, caso contrário seriam aniquilados.
Arthur sabia que não havia planos sem os seus riscos, e este dependia de cada coluna iniciar o respetivo ataque ao mesmo tempo, para que os franceses perdessem a
coesão ao terem de contrariar cada ameaça. Se os ataques fossem feitos à vez, nesse caso o marechal Jourdan poderia derrotá-los, um após o outro. Se tal acontecesse,
os aliados seriam obrigados a retirar e Arthur não tinha dúvidas de que seria dispensado do comando pelos políticos de Londres.
Olhou pelo telescópio uma última vez na direção de Vitoria. A povoação estava cercada por milhares de carros e carroças. Os espiões tinham-no informado de que muitas
das carroças estavam cheias com objetos valiosos do palácio real de Madrid: quadros, tapeçarias, ouro, prata e joias. Ainda mais importante, um comboio de metais
preciosos tinha-se juntado recentemente ao comboio de bagagens parado em Vitoria. O exército aliado precisava do ouro para pagar suprimentos e Arthur pretendia capturar
o comboio intacto, antes que este pudesse escapar, ou que fosse pilhado pelo seu exército vitorioso.
- São oito horas, milorde - anunciou Somerset, interrompendo os pensamentos de Arthur.
- Sim. - Arthur aquiesceu. - Se não se importa, peça que disparem o sinal.
Somerset fez continência, depois levantou o chapéu e agitou-o lentamente de um lado para o outro. Ao fundo da encosta encontrava-se uma única boca-de-fogo. Assim
que o oficial viu o gesto de Somerset, levou a mão em concha à boca e ordenou que fosse disparada. Chamas e fumo foram cuspidos do cano e um estrondo ecoou pelo
vale.
Chegara o momento, ponderou Arthur, em silêncio. O que se seguiria seria decisivo. As quatro colunas teriam ouvido o canhão e começado a levar a cabo as ordens.
Podia já ver os primeiros elementos da coluna de Hill a subir a encosta ocidental das colinas de La Puebla, em direção ao destacamento de soldados inimigos que se
encontrava na cumeada. No espaço de meia hora, os franceses tinham-se apercebido do perigo para o seu flanco e dois batalhões começaram a subir as colinas para bloquear
o avanço de Hill pelo cimo.
O ténue crepitar de fogo de mosquetes chegou aos ouvidos de Arthur, que observava a breve escaramuça entre os espanhóis que lideravam o ataque e o destacamento francês.
Depois, as figuras minúsculas que eram os soldados inimigos quebraram fileiras e começaram a recuar para leste.
- O primeiro sangue é nosso, milorde - comentou Somerset. - Embora me pareça que os homens do general Morillo vão achar a próxima posição francesa um osso um pouco
mais difícil de roer.
Arthur assentiu, enquanto via os soldados inimigos a formar ao longo da cumeada. Outros dois batalhões da segunda linha subiam já a encosta para criar uma formação
nova que bloqueasse o avanço da coluna de Hill.
- Talvez assim seja, mas o marechal Jourdan está a fazer aquilo que eu esperava. Ele que se preocupe com o flanco esquerdo e a seu tempo estará condenado. Diga ao
Hill que prolongue o ataque pelas encostas mais baixas. Quanto mais atrairmos a atenção do inimigo para a coluna de Hill, melhor.
À medida que a manhã foi avançando, os combates nas colinas intensificaram-se, com os soldados de ambos os lados a trocar fogo nas encostas, repletas de rochedos
e arbustos enfezados. Os franceses iam juntando cada vez mais homens à luta, enfraquecendo o centro das duas primeiras linhas de batalha. Às onze horas, Arthur viu
a terceira linha do exército francês a assumir uma nova posição, dirigindo-se a norte sobre o rio.
- Está a ver ali? - Arthur levantou o braço e indicou o movimento a Somerset. - Os franceses devem ter avistado os rapazes do Graham.
Somerset meneou a cabeça e pôs-se à escuta durante alguns momentos.
- Não ouço disparos a leste, milorde.
- Nem eu, mas isso seria de esperar. O Graham tinha ordens para só dar início ao ataque quando o Dalhousie surgisse vindo das colinas. - Arthur franziu o cenho.
- Mas onde raios está o Dalhousie? Ele e o Picton já deviam ter chegado ao rio.
- Quer que os tente encontrar, milorde?
- Ainda não. De certeza que vão aparecer em breve. Entretanto, chegou a altura de atacarmos a frente da linha francesa. - Arthur gesticulou na direção das encostas
arborizadas à sua esquerda, onde a Divisão Ligeira aguardava pela ordem para avançar. - Ordene ao Alten que avance até ao rio. Eles que tomem a ponte de Villodas
e que comecem a atravessar para a outra margem. A divisão de Cole atravessa aqui em Nanclares.
Quando as ordens foram dadas e as duas divisões começaram a avançar, o som dos canhões ecoava já pelo vale, vindo de leste. Pelo telescópio, Arthur viu nuvens de
fumo de pólvora a formar-se de ambos os lados do rio, à medida que a coluna de Graham dava início à tomada das travessias a norte de Vitoria. Desviou o telescópio
para observar as colinas à esquerda e praguejou entre dentes quando não avistou sinais dos homens de Dalhousie. Se não aparecessem em breve para desviar a atenção
do inimigo, o marechal Jourdan poderia contrariar o ataque da Divisão Ligeira e da divisão de Cole com todos os homens e peças de artilharia disponíveis.
- Somerset, mande um oficial à procura de Dalhousie. Diga ao general que atravesse o rio e que ataque o inimigo imediatamente. Vou avançar para aquela elevação ali
à frente, perto de Villodas.
Somerset olhou para a aldeia e viu que ainda havia franceses a defender o pequeno aglomerado de casas que compunham a povoação. Pares de atiradores corriam de abrigo
em abrigo, à medida que se aproximavam dos franceses, por entre os disparos constantes. Somerset pigarreou.
- Milorde, será que não fica demasiado perto dos combates?
- Não há como evitá-lo - redarguiu Arthur, agarrando as rédeas e incitando o cavalo em frente. - Preciso de uma melhor perspetiva do campo de batalha.
Esporeou a montada e o animal correu em frente através da erva verde de um prado, onde um punhado de cabras que tinham conseguido fugir aos forrageiros gauleses
dispersou à sua aproximação. Passou entre dois regimentos da Divisão Ligeira e os homens soltaram um viva sentido. Pouco antes de chegar à elevação, encontrou o
general Alten e respetivo estado-maior.
- Bom-dia, milorde. - Alten tocou na aba do chapéu.
Arthur retribuiu o cumprimento e indicou o cimo do cabeço.
- Venha comigo, Alten.
Cavalgaram encosta acima e detiveram-se no topo, a partir de onde tinham um panorama desimpedido da aldeia e da velha ponte de pedra sobre o Zadorra. Pouco mais
de duzentos metros à frente, os atiradores continuavam o duelo com os escaramuceiros franceses. Ao verem os dois oficiais britânicos, uma série de mosquetes foram
apontados na direção deles e várias bolas zuniram em seu redor. Arthur sentiu o habitual aperto nas entranhas, mas obrigou-se a manter a fachada serena.
- A Divisão Ligeira vai atravessar o rio e formar uma linha a sul, para se unir aos homens de Cole, assim que estes atravessarem em Nanclares. Depois, as duas divisões
vão avançar sobre a linha francesa.
Alten ergueu uma sobrancelha.
- Duas divisões contra a linha francesa principal? Como queira, milorde. - Perscrutou as formações inimigas cerradas que aguardavam um quilómetro além do rio. -
Um ataque frontal vai custar-nos caro.
- É verdade, mas não há alternativa. Os franceses têm homens e peças a cobrir cada ponto de passagem disponível. Temos de atravessar aqui e preparar-nos para atacar.
Alten tufou as faces e assentiu. Estava prestes a responder quando o som de cascos atrás deles levou os dois homens a virar-se. Somerset galopava encosta acima para
se juntar ao comandante. A pouca distância atrás dele vinha o general Alava e outro homem, um camponês espanhol, montado num pequeno pónei. Somerset puxou as rédeas
e saudou Arthur.
- Posso saber quem é aquele? - Arthur apontou para o camponês quando os outros dois cavaleiros se juntaram aos oficiais.
- Milorde, se me permite? - atalhou o oficial espanhol antes que Somerset pudesse responder. - Este homem é José Ortiz de Zarate. É dono de uma quinta junto ao rio,
além, perto da aldeia de Tres Puentes. - Alava apontou para norte, onde o rio contornava as encostas de uma pequena colina na margem oposta.
- Pois imagino que seja muito bom para o Señor Zarate - retorquiu Arthur com brusquidão. - Mas o que nos interessa isso?
- Ele diz que a ponte nesse local não está defendida. Não há um único francês num raio de mais de um quilómetro.
Arthur fitou o camponês e depois olhou para a aldeia, quase totalmente encoberta pela colina. Não se via sinais da ponte. Arthur virou-se para o general Alava com
uma súbita pontada de entusiasmo.
- Pergunte ao nosso amigo se aquela elevação esconde a ponte da posição dos franceses.
Teve lugar uma breve troca de impressões, após o que Alava se dirigiu a Arthur.
- Ele diz que sim. Pelo menos não viu os franceses quando chegou ao extremo da ponte, há menos de uma hora.
Arthur fixou Zarate com um olhar férreo.
- Ele tem a certeza de que não há soldados franceses nas imediações? E que a ponte não tem cargas instaladas por baixo?
- Ele diz que tem a certeza, milorde.
Arthur sentiu o coração bater mais depressa enquanto analisava o terreno e as posições de ambos os exércitos na sua mente. Depois acenou com a cabeça, em sinal de
agradecimento ao camponês espanhol.
- Diga ao Señor Zarate que se tiver razão, prestou um grande serviço ao seu povo.
O espanhol ficou hirto de orgulho na sela à medida que as palavras eram traduzidas, ao que Arthur prosseguiu.
- Pergunte-lhe se está disposto a levar os nossos homens até à ponte. Se conhecer a disposição do terreno, talvez precisemos dele quando chegarmos à outra margem.
Diga-lhe que será bem recompensado se sairmos vitoriosos.
O agricultor baixou a cabeça com graciosidade e depois fez um breve discurso.
- Ele diz que não precisa de recompensa. Basta-lhe ter participado na derrota dos franceses. Contudo - Alava não foi capaz de reprimir um sorriso, - o Señor Zarate
não vos quer ofender recusando a oferta de uma recompensa.
- Ah! - Arthur soltou uma gargalhada. - Muito bem. Alten!
- Milorde?
- Vou levar a brigada de Kempt para o outro lado do rio pela ponte do Señor Zarate. Se ele estiver certo, vamos aparecer no flanco do inimigo antes que os franceses
possam reagir. Com o Cole e o resto da Divisão Ligeira a pressioná-los pela frente, temos grandes hipóteses de quebrar o flanco direito. Somerset, preciso de ser
informado assim que houver notícias da coluna de Dalhousie. Entretanto, a cavalaria que avance para Tres Puentes. Vamos cumprir o nosso dever, cavalheiros.
Enquanto os homens de Alten expulsavam os franceses de Villodas e davam início à travessia para a outra margem, Arthur e os três regimentos da brigada de Kempt dirigiram-se
a norte, seguindo o rio em torno da colina. O general Alava e Zarate acompanharam-no a galopar à frente da infantaria, que suava no passo acelerado em direção à
ponte. Quando contornaram a curva, Arthur sentiu-se aliviado ao ver a ponte ainda sem ninguém. Um pouco à frente ficava a aldeia de Tres Puentes, onde um punhado
de figuras saiu do abrigo das suas casas para observar a batalha travada nas colinas a sul.
- Vamos! - Arthur fez sinal aos dois homens e juntos galoparam até à ponte, e depois até uma pequena elevação junto ao rio, a partir de onde Arthur teve um panorama
desimpedido da linha inimiga. Parou a montada e os flancos de Copenhagen retumbaram, enquanto o animal recuperava o fôlego. A extrema direita da linha francesa estava
a menos de um quilómetro. Os cavaleiros já tinham sido avistados por um oficial de artilharia francês, que apontava para o trio. Momentos depois, a peça foi virada
na direção deles. Arthur ignorou o canhão e olhou fixamente para as colinas de La Puebla. Uma pluma de fumo indicava até que ponto Hill empurrara o inimigo, além
do final do flanco esquerdo dos franceses. Em breve teriam de empregar ainda mais homens para manter a posição, caso contrário seriam obrigados a recuar. A leste,
o ribombar dos canhões indicava que o general Graham combatia ferozmente as tropas francesas que mantinham a linha do rio a norte de Vitoria.
Ouviu-se um estrondo na outra margem quando a peça francesa abriu fogo. Depois um baque surdo, com uma coluna de terra a levantar-se na margem, a vinte passos à
direita de Arthur. Zarate encolheu-se, e quando viu que Arthur e Alava pareciam impassíveis, endireitou-se rapidamente e recompôs a expressão, imitando-os.
- Assim é que é. - Arthur sorriu-lhe. - Nunca se mostra ao inimigo que temos medo. General, pergunte ao nosso amigo se ele sabe se as outras pontes do rio estão
nas mãos dos franceses.
- Ele diz que a ponte seguinte, a leste, está guardada por infantaria e seis canhões. Mais além não sabe.
Seria a ponte que a coluna de Dalhousie iria usar para lançar o ataque ao flanco e à retaguarda da linha inimiga, refletiu Arthur. Olhou para a esquerda, mas ainda
não havia sinais de qualquer movimentação a leste. Pelo canto do olho apercebeu-se de um clarão distante, quando a peça francesa voltou a disparar.
- Pergunte a Zarate se existem...
Arthur foi interrompido por um estalo húmido e por um som de algo a espalhar-se. Virou-se e viu o corpo do agricultor espanhol na sela, as mãos tensas como garras.
A cabeça desaparecera, desfeita pelo segundo tiro da arma inimiga. O general Alava fora bombardeado com a maior parte do jorro de sangue e de miolos, que se tinham
espalhado pelo lado do corpo e pelo rosto. O cadáver tombou lentamente para o lado e caiu com um baque surdo na margem do rio.
- Deus do Céu - resmungou Arthur. - O general está bem?
Alava levantara a mão enluvada para retirar os pedaços de carne do rosto e fitava o vermelho brilhante nas costas da luva de pelica. Olhou para Arthur e anuiu.
- Nesse caso é melhor deixarmos de nos armar em alvos. Vamos embora.
- Então e ele?
- O quê? Pode ser enterrado depois. Vou certificar-me de que a família recebe a recompensa que lhe era devida. Vamos.
Regressaram à ponte, que um dos batalhões do regimento de fuzileiros já atravessara, correndo agora encosta acima, enquanto o resto da brigada cruzava o rio em passo
acelerado. Arthur juntou-se a Kempt na outra margem e o subordinado mirou ansiosamente o general Alava.
- Está ferido, general?
O espanhol abanou a cabeça.
- Perdemos o nosso guia espanhol. Foi atingido por uma bola.
- Pobre diabo. - Kempt franziu os lábios. - É preciso ter azar.
Arthur apontou para a colina.
- Os seus homens que formem na cumeada. É provável que o inimigo se aperceba do risco para o flanco e tente obrigar a sua brigada a recuar para o outro lado do rio.
Vai ter de se manter firme até que a nossa cavalaria passe.
- Pode contar com os meus rapazes - replicou Kempt, com um tom severo.
- Milorde - interrompeu o general Alava, gesticulando na direção da ponte, onde a infantaria se chegava para o lado, para deixar passar um oficial montado. - Um
dos seus homens do estado-maior.
Menos de um minuto depois, juntou-se a eles o oficial, um jovem alferes que Arthur reconheceu como sendo uma recente adição ao estado-maior do quartel-general.
- Williams, não é?
- Sim, milorde.
- E então?
Williams engoliu em seco e esforçou-se por se recompor.
- Milorde, Somerset mandou-me à procura do general Dalhousie.
- Encontrou-o?
- Não, milorde, mas deparei-me com o general Picton. Estava a aproximar-se do rio, a um quilómetro e meio a leste daqui. Perguntou-me se tinha ordens para ele. Disse-lhe
que as minhas ordens eram para o general Dalhousie, para que atravessasse o rio e iniciasse o ataque, e que a divisão de Picton devia garantir-lhe apoio. - O alferes
fez uma pausa nervosa. - Bem, milorde, o general Picton ficou furioso. Disse que o general Dalhousie se tinha perdido nas colinas e que ainda ia demorar mais uma
hora para chegar ao rio. Também disse que nunca na vida a Terceira Divisão iria servir de apoio a alguém. Depois deu-me uma mensagem que lhe deveria transmitir,
milorde.
- Por Deus, a sério? - Arthur sentiu a irritação que Picton habitualmente lhe provocava. - Pois transmita-a. As palavras exatas que ele usou.
O jovem oficial engoliu em seco e esforçou-se por as recordar.
- Diga ao lorde Wellington que a Terceira Divisão, sob o meu comando, vai atacar a ponte em menos de dez minutos e tomá-la, e as outras divisões podem dar-me apoio,
se assim o desejarem... Foi isso, milorde. Depois mandou-me embora e deu ordens aos homens dele para avançar. - O alferes Williams fez outra pausa. - Não sabia o
que fazer, milorde. Tinha ordens para encontrar Dalhousie, mas o general Picton apresentou-me ordens novas e julguei melhor encontrá-lo de imediato, em vez de continuar
a procurar o general Dalhousie.
Arthur assentiu.
- Fez bem, Williams. Agora vá apresentar o seu relatório ao Somerset e depois continue à procura do Dalhousie.
- Sim, milorde - respondeu o alferes com um alívio notório, ao que deu meia-volta ao cavalo e regressou à ponte.
- Picton... - Arthur resmungou o nome por entre dentes cerrados, furioso com a beligerância petulante do general. Fora por esse motivo que entregara a Dalhousie
o comando da terceira coluna, mas com este ainda fora de cena, seria melhor deixar que Picton liderasse o ataque ao flanco inimigo, antes que os franceses pudessem
ser reforçados a ponto de impedir novas tropas britânicas de cruzar o Zadorra a partir do norte do campo de batalha. Salvas de armas ligeiras fizeram-se ouvir a
leste e Arthur reprimiu o mau humor, incitando o cavalo colina acima até à cumeada, para ter um panorama melhor. Foi seguido por Kempt e Alava, e Somerset juntou-se-lhes
daí a pouco, tendo apresentado as ordens para o ataque principal e regressando agora ao seu comandante.
A partir da posição elevada, Arthur podia ver a maior parte do vale. Um pouco além do rio, distinguiu as primeiras formações da divisão de Picton, que se aproximavam
do extremo da ponte e iniciavam o combate com a pequena força destacada para a guardar. O ataque vindo de uma nova direção não passara despercebido ao marechal Jourdan,
e a zona direita da linha francesa já recuava para não apresentar o flanco aos homens de Picton, enquanto um corpo de cavalaria e uma bateria de artilharia galopavam
para apoiar os homens que defendiam a ponte.
- O Picton vai ficar muito maltratado quando tentar atravessar a ponte - indicou Arthur, - a menos que seja apoiado. General Kempt, tem de levar os seus homens e
cobrir o flanco do Picton enquanto ele abre caminho pela ponte. Os seus atiradores que façam o possível por incomodar a cavalaria inimiga e aquelas peças.
- Sim, milorde - assentiu Kempt. - Mas e quanto a esta colina? Vamos abandoná-la?
- Já serviu o seu propósito - retorquiu Arthur. - Escondeu a sua brigada quando atravessou o rio. Agora leve os seus homens.
Kempt bradou as ordens pelo cimo da colina e os três regimentos começaram a descer pelo lado oposto, marchando para leste, cobertos por duas companhias de fuzileiros.
Arthur avaliou rapidamente a posição das suas forças a sul da colina. À distância, a coluna nos montes de La Puebla continuava a avançar pela cumeada, passando pelo
flanco esquerdo da linha francesa no vale. Mais perto, desde a travessia em Nanclares até à ponte de Villodas, os homens da divisão de Cole e o grosso do comando
de Alten tinham atravessado o rio e formavam uma linha de batalha sobre a paisagem ligeiramente irregular entre as colinas e o rio. O exército aliado tinha a vantagem.
Chegara a altura de investir e desferir o golpe decisivo.
Os fuzileiros de Kempt correram em frente, abrigaram-se nas irregularidades do terreno e abriram fogo sobre a bateria de cavalos de artilharia que, por sua vez,
disparava metralha contra os homens de Picton enquanto estes tentavam atravessar a ponte. A partir da sua posição, Arthur viu que dezenas de homens já tinham caído
ao longo dos caminhos de acesso à ponte. A situação invertia-se agora, com os fuzileiros de casaca verde a abater continuamente os artilheiros franceses. Atrás dos
fuzileiros, o resto da brigada de Kempt aguardava em colunas pela ordem para avançar, ou para formar quadrados, caso a cavalaria inimiga desse sinais de pretender
deslocar-se nessa direção. Com mais de vinte homens e vários cavalos abatidos, o oficial encarregue da bateria deu ordem para recuar e as equipas engataram rapidamente
as peças e começaram a regressar à linha francesa principal.
Assim que os canhões se silenciaram, o primeiro regimento de Picton apressou-se a cruzar o rio e formou uma linha na outra margem. Arthur viu uma onda metálica tremeluzente
quando calaram as baionetas, após o que avançaram contra a cavalaria que ainda lhes barrava o caminho. A linha deteve-se e fez-se ouvir uma salva que derrubou vários
hussardos franceses e muitos mais cavalos. Uma segunda salva aumentou as baixas inimigas e depois a linha vermelha avançou, carregando através da nuvem de fumo de
pólvora. Arthur sentiu um momento de ansiedade perante a impetuosidade da carga, mas Picton avaliara bem e, antes que os franceses conseguissem reagir, a infantaria
estava no meio deles, a desferir golpes com as baionetas. A luta terminou em menos de um minuto e a cavalaria ligeira francesa fugiu para leste, para a segurança
da nova linha que se formava ao longo do terreno ondulado, pouco além dos cabeços gémeos onde se aninhava a aldeia de Arinez.
Enquanto Picton incitava os seus homens em frente, fazendo recuar os soldados franceses restantes para ambos os lados das elevações, os primeiros homens do general
Dalhousie começaram a atravessar o rio e deram seguimento ao ataque de Picton. Arthur chamou Somerset para o seu lado e indicou a nova linha que os franceses estavam
apressadamente a criar para repelir as forças que iam atravessando o Zadorra.
- Está a ver ali, onde os franceses estão a reunir uma bateria, à frente do centro da linha?
Somerset relanceou o inimigo.
- Sim, milorde.
- Quero todas as peças disponíveis a avançar para formarmos a nossa bateria. Enquanto as outras colunas avançam pelos flancos e ameaçam a retaguarda do inimigo,
vamos desfazer-lhes o centro. Duvido que a linha francesa aguente muito tempo com tamanha pressão concentrada.
Enquanto o centro aliado se formava e as peças de artilharia eram levadas com estrépito para a frente, os ataques em ambos os flancos prosseguiram, com Hill a pressionar
continuamente para leste, ao longo da cumeada. Picton e Dalhousie foram pressionando, mas agora os seus homens estavam ao alcance dos canhões franceses e os primeiros
batalhões sofreram baixas avultadas, com a metralha pesada a ceifar-lhes as alas, abrindo brechas ensanguentadas nas fileiras de casacas-vermelhas. Arthur seguira
até às colinas perto de Arinez, dando ordens ao estado-maior para que se juntasse a ele, e sentiu-se revoltado ao ver tantos dos seus melhores homens a serem abatidos.
Todavia, por piores que fossem as baixas, isso dava-lhes tempo para que o resto do exército se colocasse em posição para o que Arthur esperava viesse a ser o ataque
decisivo contra a linha francesa.
Pouco depois das quatro, o exército aliado estava pronto e Arthur deu ordens para que a bateria do coronel Dickson abrisse fogo. Arthur nunca empregara tantos canhões
numa batalha e as setenta peças soltaram um rugido ensurdecedor ao cuspir fogo e fumo, bombardeando com metralha a linha francesa, que se encontrava a menos de um
quilómetro. Era agora a vez de as formações gaulesas se submeterem a tão terrível destruição. Arthur observou com uma satisfação lúgubre cada disparo a devastar
os batalhões inimigos. Em breve, as armas de ambos os lados começaram a visar-se mutuamente e o vale encheu-se com o estrondo contínuo da artilharia, com os homens
que operavam as peças a serem abatidos, derrubados por bolas, ou por fragmentos de madeira e metal, sempre que um dos canhões era atingido, lançando estilhaços mortíferos
em todas as direções.
Durante um quarto de hora, as armas de ambos os exércitos fustigaram-se umas às outras, e o som da barragem era de tal modo ensurdecedor que Arthur não ouviu Somerset
dirigir-se a ele, surpreendendo-se quando o ajudante de campo lhe puxou a manga. Desviou a atenção do espetáculo enquanto Somerset levava a mão em concha à boca
para gritar.
- Recebemos um relatório do Graham, Milorde! Ficou retido na margem norte do rio e a divisão de Longa não conseguiu cortar o acesso à fronteira francesa.
- Raios - resmungou Arthur. Tencionara bloquear o caminho para a retirada do inimigo. Apercebeu-se de imediato de que era essencial que atacasse e derrotasse o exército
francês tão depressa quanto possível, antes que se pudessem retirar do campo de batalha em bom estado. Via já os primeiros veículos do comboio de bagagens a dirigir-se
a leste, ao longo da estrada para Pamplona. Inclinou-se para Somerset e falou bem alto ao ouvido do ajudante de campo. - O ataque vai começar. Diga ao Alten e ao
Cole para não se deixarem deter por nada. Têm de empurrar o inimigo para trás, sem lhes dar oportunidade de reformar e de criar outra linha.
- Sim, milorde.
Enquanto aguardava que a linha avançasse, Arthur viu que a coluna de Hill ameaçava mais uma vez ultrapassar o inimigo. As peças sobreviventes da artilharia francesa
silenciaram-se e foram apressadamente engatadas quando o marechal Jourdan se apercebeu da ameaça e ordenou a retirada das formações fustigadas. Contudo, antes de
se conseguirem deslocar, o centro do exército aliado deu início ao seu avanço, marchando inexoravelmente pelo terreno aberto, com as cores regimentais a esvoaçar
acima das cabeças. Ainda estavam a aproximar-se e já Arthur via o flanco esquerdo da linha francesa a ceder e depois a formar uma coluna, começando então a afastar-se
para leste, deixando o resto da linha francesa por sua conta.
Quando os casacas-vermelhas se aproximaram da divisão francesa restante, que mantinha a sua posição, as peças britânicas calaram-se e, exceto os sons dos combates
vindos das colinas de La Puebla e mais ao longe, a leste, onde Graham abria caminho sobre o rio, um silêncio terrível caiu sobre o centro do campo de batalha. Os
franceses aguardavam em linha, para se servirem de todos os mosquetes disponíveis contra a aproximação dos britânicos. Atrás da infantaria de Cole e de Alten, a
cavalaria avançava e formava linhas, prontas a carregar contra o inimigo e a persegui-lo assim que quebrassem fileiras e começassem a fugir. A sensação de inevitabilidade
era pesada e os soldados de ambos os lados bem o sabiam. Arthur não pôde deixar de admirar a coragem dos franceses que esperavam pelo golpe fatal do inimigo. Era
terrível que fosse preciso a guerra para despertar uma qualidade tão nobre, refletiu.
Os pensamentos foram-lhe interrompidos quando os franceses dispararam a primeira salva contra os casacas-vermelhas que se aproximavam. Ao longo da frente da linha,
vários homens cambalearam ou caíram ao chão sob a chuva de bolas de mosquete. Os sargentos bradaram ordens para que cerrassem a linha e as primeiras formações avançaram
mais dez passos e estacaram, deixando um grupo disperso de figuras vermelhas, mortas ou feridas, na sua esteira. Os britânicos conseguiram disparar a primeira salva
um instante antes de os franceses responderem com a segunda e uma espessa coluna de fumo voluteou entre os dois lados, com centenas de homens a serem abatidos. Os
soldados dos dois lados recarregaram e dispararam tão depressa quanto possível, ignorando os gritos dos camaradas atingidos e os corpos tombados dos mortos de ambas
as cores.
Após a quinta salva, foi dada ordem para carregar e os britânicos correram em frente, desaparecendo momentaneamente no meio do fumo, antes de irromperem do outro
lado, direitos aos franceses alarmados. Arthur observou as duas linhas a entrechocar-se, com as primeiras filas a fundir-se numa confusão sangrenta e impiedosa,
enquanto os homens se envolviam em lutas corpo a corpo. Mais casacas-vermelhas foram atravessando a nuvem de fumo que se ia dissipando e os franceses começaram a
ceder terreno. Os ingleses pressionaram e então, como se guiados por um instinto de rebanho, o inimigo dispersou e fugiu, correndo pelo terreno aberto em direção
a Vitoria.
Arthur olhou expectante para a cavalaria que aguardava. Ao contrário do que acontecera nas suas anteriores batalhas na Península Ibérica, em que a falta de cavalaria
o privara de qualquer hipótese de uma perseguição bem-sucedida, desta vez a sua força montada era temível. Cinco brigadas de cavalaria, quase seis mil homens, esperavam
por ordens para avançar. Quando os franceses começaram a fugir, os regimentos deram início à marcha. As últimas formações da linha de infantaria abriram-se para
permitir a passagem dos cavaleiros, ao que a cavalaria voltou a espalhar-se, passando por cima dos corpos dos que tinham tombado na troca de tiros anterior. Quando
as primeiras formações da infantaria viram a cavalaria a aproximar-se, juntaram-se rapidamente, para evitar serem pisadas. Os cavaleiros prosseguiram com o avanço
até terem passado pela maior parte dos camaradas a pé. Foi então que as cornetas se fizeram ouvir, com as notas ascendentes a soarem agudas e metálicas de onde Arthur
observava o drama pungente que se desenrolava, à medida que aumentavam o ritmo de passo a trote, depois a meio galope e por fim a galope total, quando os cavaleiros
esporearam as montadas e carregaram com os sabres em riste, soltando um bramido rouco que abafou o som das cornetas.
A cavalaria investiu a toda a largura do campo de batalha, com as espadas e os elmos dos dragões a cintilar ao sol. Depois, a magia do momento perdeu-se quando irromperam
entre os soldados franceses. As espadas desferiram golpes para todos os lados à medida que os cavaleiros, consumidos pela sede de sangue da carga, abriram caminho
por entre os inimigos. Aqui e ali, pequenos grupos de homens juntaram-se em torno dos estandartes com as águias e tentaram chegar a terreno mais alto, enquanto mantinham
a cavalaria britânica afastada com as baionetas. Alguns batalhões da reserva francesa conseguiram formar um quadrado e dirigiram-se lentamente para leste, enquanto
os cavaleiros os cercavam.
Arthur fez sinal ao estado-maior para que o seguissem e galopou até à planície para acompanhar a cavalaria, ordenando à infantaria que se juntasse à perseguição
à medida que ia passando pelos soldados. Ao olhar para as colinas de La Puebla, viu que a coluna de Hill tomara toda a extensão da cumeada e estava agora a descer
em direção a Vitoria, para se juntar à destruição do exército francês. O som dos canhões para o lado do rio desvaneceu-se e quando Arthur percorreu um pequeno outeiro,
viu as primeiras colunas dos homens de Graham a marchar sobre Vitoria. Mais além, um grupo de soldados franceses retirava para os terrenos a leste. À volta de Arthur
e da sua comitiva, o chão estava coberto de franceses mortos e feridos. Alguns canhões tinham sido abandonados quando as equipas de artilheiros libertaram os cavalos
das armações e os usaram para a tentativa frenética de fugir à cavalaria atrás deles.
Mais à frente, à medida que se aproximavam de Vitoria, Arthur viu a cavalaria a contornar cada lado da povoação. Mais um pouco e apercebeu-se de que a paisagem a
leste da vila estava coberta de carros e carroças, com os condutores a chicotearem os cavalos na tentativa desesperada de fugir, até que a infantaria em fuga os
apanhou e prosseguiu. Alguns pararam junto a veículos abandonados, ou virados para agarrar toda a pilhagem facilmente transportável antes de continuarem a correr,
lançando olhares aterrorizados sobre os ombros. Atrás deles, a cavalaria britânica seguia em frente, sendo muitos cavaleiros obrigados a abrandar para passarem por
entre os veículos e alcançarem os inimigos. Outras unidades, comandadas por cabeças mais frias, conseguiram orientar os cavaleiros à volta dos carros para que não
ficassem enredados na confusão de veículos, soldados e seguidores do exército. Arthur parou numa pequena elevação a norte de Vitoria.
Não havia qualquer dúvida de que a sua vitória era total. À parte algumas divisões fustigadas que combatiam alguma ação à retaguarda enquanto se retiravam para leste,
o grosso do exército francês, a bagagem, a maior parte das peças de artilharia e, acima de tudo, a arca de guerra do rei José seriam tomados. Só o tesouro do rei
serviria para financiar o funcionamento do exército durante alguns meses, de forma autónoma dos portos do Norte de Espanha.
O general Alava tossicou.
- Milorde, permita-me que o felicite por mais uma vitória brilhante.
Arthur lançou-lhe um olhar gelado.
- Poderá fazê-lo assim que a vitória esteja concluída, e não antes.
- Mas milorde, olhe para ali - argumentou Alava, descrevendo um gesto com o braço que abarcou o panorama de veículos abandonados entre os quais a cavalaria britânica
perseguia o inimigo. - Aí tem a sua vitória!
Quando os oficiais fizeram uma pausa para observar a destruição final do exército francês, Arthur apercebeu-se de que cada vez mais elementos da cavalaria desistiam
da perseguição e se dirigiam ao comboio das bagagens. Os primeiros soldados de infantaria tinham começado a alcançar os camaradas montados e percorriam a povoação
para se juntar à orgia de pilhagem que tinha início.
- Malditos sejam! - praguejou Arthur, fechando o telescópio e enfiando-o no alforge da sela. - Os idiotas estão a deixar o inimigo fugir.
Com efeito, o que restava do inimigo afastava-se em direção às colinas baixas a leste, totalmente libertos, enquanto os soldados aliados começavam a quebrar as fileiras
e investiam sobre o comboio das bagagens, desesperados por não perder a sua parte do saque.
- Milorde? - chamou Somerset calmamente. - Quais são as suas ordens?
- Ordens? - Arthur abanou a cabeça. - De que vale dar ordens a esta ralé? Canalhas. - Respirou fundo e suspirou. - Muito bem. Quero que todas as formações que ainda
não chegaram a Vitoria sejam detidas e recuadas pelo menos cinco quilómetros. Se queremos levar a cabo alguma perseguição amanhã, é preciso estabelecer a ordem.
- Sim, milorde. E onde vai basear o quartel-general? Em Vitoria?
- Não. Não quero testemunhar o espetáculo que é ter o meu exército transformado num bando de ladrões. Estarei em Arinez. Vá ter comigo lá.
- Sim, milorde.
- Mais uma coisa, e quero que o faça imediatamente. Quero uma companhia de homens de confiança. Homens que tenhamos a certeza não se irem juntar à pilhagem. Eles
que encontrem a arca de pagamentos do exército francês. Assim que for localizada, terão de a guardar com a própria vida.
- Compreendo, milorde. Vou tratar disso.
Enquanto Somerset se afastava, Arthur olhou uma última vez para os milhares de carros e carroças que estavam a ser saqueados pelos seus homens. Depois desviou a
atenção do espetáculo e afastou-se para leste, em direção à aldeia de Arinez, no sopé das duas colinas que se erguiam no vale. Cerrou os dentes e voltou a resmungar:
- Canalhas.
Mais tarde, nessa noite, Somerset chegou ao quartel-general que fora instalado numa taberna pouco acima da aldeia. Arthur estava sentado na rua, a uma mesa iluminada
por um candeeiro. Tinha um mapa dobrado à sua frente, a par de um pequeno bloco e um lápis. Olhava para o vale, na direção de Vitoria e do clarão dos archotes e
das fogueiras que delimitavam a extensão do comboio de bagagens. Dirigiu a atenção a Somerset quando este se aproximou da mesa.
- Demorou bastante.
- Sinto muito, milorde, mas foi preciso muito tempo para encontrar os carros com as arcas de dinheiro do inimigo.
- Mas acabou por encontrá-las? - A expressão de Arthur animou-se. - Bom trabalho!
- Encontrei parte delas, milorde. Já estão vigiadas.
- Algumas? Quanto, ao certo?
- É difícil saber. Imagino que deva restar cerca de um quarto de milhão de francos em ouro.
- Um quarto de milhão? - Arthur esfregou lentamente a face. - Os meus espiões informaram-me de que havia cinco milhões naqueles carros. Agora está nos bolsos da
ralé. E não só o ouro. Vão arrebatar todos os valores que encontrarem. Depois vai haver a bebida, e as lutas, de certeza. Aposto que o exército só daqui a dias vai
estar em condições de prosseguir com a campanha.
- Talvez fosse assim, mesmo que não tivessem cedido à tentação, milorde - aventou Somerset, tranquilamente. - Há seis semanas que marcham duramente, num dos piores
terrenos de Espanha. Os soldados estão exaustos. Eventualmente têm de descansar. Porque não agora?
- Porque não agora? Porque deixaram o inimigo fugir. Isso não devia ter acontecido, Somerset. Devíamos tê-los perseguido e exterminado. Era esse o objetivo do meu
plano.
- Assim sendo, diria que o plano foi um êxito em quase todos os pontos. A vitória de hoje terá acabado com o jugo francês em Espanha. Os primeiros relatórios dão
conta de que capturámos praticamente todas as peças de artilharia deles. Até quase capturámos José Bonaparte.
- O quê?
- Uma das nossas tropas de hussardos encontrou a carruagem dele poucos quilómetros a leste de Vitoria, encurralada numa coluna de veículos que tentavam fugir. Ao
que parece, José saltou por um dos lados da carruagem quando um dos nossos oficiais estava a subir pelo outro. Conseguiu alcançar alguns guarda-costas e encontrar
outra montada. Fugiram da coluna e desapareceram na noite.
- Por Deus, isso é que seria um golpe pesado contra o Boney, termos capturado o irmão. Assim não ajuda à dignidade de José. - Arthur sorriu.
- Não foi o único a sofrer na dignidade. - Somerset procurou no interior da sacola que usava para transportar os blocos e os lápis, e de lá tirou uma vara curta,
coberta de veludo roxo e com pequenas águias douradas engastadas. Entregou-a a Arthur. - O bastão do marechal Jourdan. Foi encontrado numa outra carruagem, próxima
da de José.
Arthur ergueu o bastão junto ao candeeiro e observou-o.
- É uma coisa bonita. Imagino que um brinquedo destes vá agradar ao Príncipe Regente. Vou enviar o bastão para Inglaterra, a par do relatório sobre a vitória.
- A Grã-Bretanha vai regozijar-se com a notícia, milorde. E não só a Grã-Bretanha. Quando se souber da nossa vitória no resto da Europa, os nossos aliados vão sentir-se
incentivados a derrubar Napoleão.
Arthur assentiu lentamente.
- Talvez assim seja, Somerset. Certo é que os interesses franceses em Espanha não vão recuperar deste revés. Só lhes resta uma estreita faixa de terreno deste lado dos Pirenéus, além do exército de Suchet, que está encurralado em Valência.
- Quais são os seus planos agora, milorde?
Arthur bateu no mapa com o bastão capturado.
- O nosso trabalho na Península Ibérica está quase concluído. Chegou o momento de levar a guerra a França. Pretendo entrar com o nosso exército em território francês antes do início deste inverno.

 

 


CONTINUA