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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAMPOS DA MORTE / Simon Scarrow
CAMPOS DA MORTE / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um romance apaixonante sobre dois gigantes do séc. XIX.
Estamos no ano de 1810. O Visconde Wellington e o Imperador Napoleão conquistaram fama e reputação como comandantes militares brilhantes. Wellington goza ainda de maior fama durante os seus anos em Espanha, mas sabe que o seu derradeiro teste ainda está para vir: enfrentar o poderoso exército de Napoleão. Quando invade a França no ano de 1814, Wellington obtém uma vitória rápida. Enquanto se deixa seduzir por uma estadia em Viena, chegam notícias do regresso triunfante de Napoleão. Este, ambicioso como sempre, inicia uma campanha russa que termina em desastre e é depois derrotado em Leipzig na maior batalha alguma vez travada na Europa. Com o declínio do poder de Napoleão, Wellington quer esmagar o tirano de uma vez por todas - e assim os dois gigantes enfrentam-se uma última vez, em Waterloo...

 

 

 

 


 

 

 

 


Capítulo 1
Napoleão
Danúbio, abril de 1809
As defesas da vila boémia de Ratisbon pareciam deveras formidáveis, concedeu Napoleão de si para si, enquanto percorria as muralhas envelhecidas e as valas com que
se deparava. O exército austríaco em fuga tinha erguido apressadamente mais fortificações para reforçar as defesas já existentes, sendo possível avistar bocas de
canhão nas canhoneiras de cada baluarte e ainda mais peças no cimo das torres atarracadas da vetusta povoação. A espaços, o inimigo de farda branca observava as
tropas francesas que se aproximavam da localidade. Além das muralhas, os telhados inclinados e os pináculos das igrejas eram formas indistintas nos últimos vestígios
da neblina da madrugada que se erguera do Danúbio. Na outra margem do rio, Napoleão distinguiu as ténues volutas de fumo que subiam do acampamento austríaco.
Baixou o telescópio e fechou-o, com uma expressão carregada. O arquiduque Carlos e os seus homens tinham escapado à armadilha que Napoleão lhes preparara. Até há
poucos dias, Ratisbon estivera em mãos francesas e o inimigo fora apanhado de costas para o rio. Todavia, o comandante da guarnição capitulara na sequência de uma
breve resistência, deixando intacta a ponte sobre o Danúbio. Os austríacos tinham assim podido atravessar para a margem norte, deixando na sua esteira uma força
que desafiasse os perseguidores. O arquiduque Carlos surpreendera-o, refletiu Napoleão. Esperara que os austríacos recuassem em direção a Viena, para proteger as
linhas de suprimentos e defender a capital. Em vez disso, o general inimigo cruzara o rio até à Boémia, deixando a estrada para Viena desimpedida. Claro que Napoleão
tinha perfeita noção de que as coisas não eram assim tão lineares. Se ordenasse que o exército se encaminhasse para Viena, estaria a oferecer as suas próprias linhas
de suprimentos aos austríacos. Talvez fosse um risco inevitável.
Napoleão deu meia-volta para encarar os oficiais.
- Cavalheiros, se pretendemos atravessar o Danúbio e obrigar o inimigo a enfrentar-nos no campo de batalha, somos obrigados a tomar Ratisbon.
O general Berthier, chefe do estado-maior de Napoleão, ergueu ao de leve as sobrancelhas ao olhar além do seu imperador para as defesas da vila, a pouco mais de
um quilómetro. Engoliu em seco ao devolver a atenção a Napoleão.
- Muito bem, meu senhor. Dou ordens para que o exército prepare um cerco?
Napoleão abanou a cabeça.
- Não há tempo para um cerco. Assim que começarmos a abrir trincheiras e a construir baterias, os austríacos ficam com a iniciativa. Além disso, de certeza que os
nossos outros inimigos... - Napoleão fez uma pausa e exibiu um sorriso amargo - ...e mesmo alguns daqueles que se dizem nossos amigos vão gostar bastante do atraso.
Não é preciso grande incentivo para emparelharem com a Áustria.
Os oficiais mais argutos entenderam de imediato onde o imperador queria chegar. Vários dos Estados mais pequenos da Confederação Alemã eram próximos da causa austríaca,
mas de longe o maior perigo vinha da Rússia. Mesmo estando Napoleão e o czar Alexandre unidos por um tratado, a relação entre ambos esfriara ao longo dos últimos
meses e era possível que o exército russo pudesse intervir de qualquer dos lados da atual guerra entre a França e a Áustria.
Napoleão ficara surpreendido com a temeridade dos austríacos quando tinham aberto as hostilidades em abril, sem qualquer declaração formal de guerra. Antes tinha
havido inúmeros relatórios de espiões, que diziam que o exército austríaco se reorganizara e expandira, estando equipados com canhões novos e com mosquetes modernos.
Não havia como negar os sinais de que o imperador Francisco pretendia dar início a outra guerra e Napoleão ordenara a concentração de um exército poderoso, pronto
para enfrentar a ameaça. Com o início da campanha, o habitual avanço lento das colunas inimigas tinha permitido que os franceses os ultrapassassem e obrigassem os
austríacos a combater segundo os termos de Napoleão. O imperador considerava que o desempenho do seu exército fora deveras gratificante. Até ao momento, a maior
parte dos soldados que tinha confrontado o inimigo fora constituída por recrutas novos, que mesmo assim tinham lutado de forma soberba. Não fosse a impossibilidade
de evitar que os austríacos tivessem fugido para o outro lado do Danúbio, a guerra estaria praticamente ganha.
Napoleão dirigiu-se a um dos oficiais.
- Marechal Lannes.
O oficial ficou hirto.
- Sire?
- Os seus homens vão tomar a povoação, a qualquer custo. Entendido?
- Sim, sire. - Lannes anuiu e ajustou casualmente o bicorne emplumado sobre os caracóis castanhos. - Os rapazes vão expulsar os austríacos num instante.
- Acho bem - retorquiu Napoleão com brevidade. Depois aproximou-se de Lannes e fixou o olhar no marechal. - Estou a contar consigo. Não me desiluda.
Lannes esboçou um sorriso gentil.
- Alguma vez o desapontei, sire?
- Não. Não, não desapontou. - Napoleão devolveu-lhe o sorriso. - Que a fortuna o acompanhe, meu caro Jean.
Lannes fez continência e depois virou-se, encaminhando-se rapidamente para o ordenança que lhe segurava o cavalo. Lannes içou-se para a sela, esporou a montada e
avançou, descendo o pequeno monte em direção às colunas da divisão de infantaria que se estavam a formar fora do alcance das peças austríacas. As posições francesas
imobilizaram-se brevemente, após o que um clarim deu sinal para o avanço. Com um ribombar de tambores, as colunas de infantaria marcharam a caminho das fortificações
inimigas. À frente delas, uma linha de soldados avançou sem ordem fixa, os mosquetes baixos enquanto procuravam alvos individuais entre a linha de defesas austríacas.
Napoleão sentiu um aperto no coração ao ver as colunas de casacas azuis que se aproximavam da povoação inimiga. A qualquer momento, os austríacos abririam fogo e
cones de metralha criariam brechas sangrentas nas corajosas fileiras dos seus homens. Contudo, Ratisbon tinha de ser tomada.
- Pelo que estamos prestes a receber - resmungou Berthier enquanto se esforçava por observar os primeiros elementos da divisão que se aproximava das defesas inimigas.
Os austríacos sustiveram o fogo até que os soldados avançados franceses quase tinham chegado à vala larga à frente das muralhas da vila. Depois, centenas de minúsculos
pontos de fumo deixaram-se ver ao longo das muralhas, enquanto brilhantes línguas de fogo se projetavam das armas montadas nas torres e nos redutos. Napoleão ergueu
o telescópio e viu que dezenas dos soldados avançados tinham sido derrubados e, atrás deles, as primeiras fileiras das colunas de Lannes titubearam à medida que
eram sujeitas a uma chuva de bolas de chumbo dos mosquetes e à metralha de ferro das peças de artilharia. Os oficiais empunharam bem alto as espadas, com alguns
a colocar o chapéu na ponta, para se tornarem mais visíveis, e incitaram ao avanço dos seus homens. Os soldados correram sobre a berma da vala, desaparecendo por
um instante, antes de reaparecerem a trepar a encosta mais distante e de correrem para a muralha. Acima deles, as ameias da vila estavam forradas com as fardas brancas
dos austríacos, praticamente invisíveis através das nuvens de fumo que pairavam no ar como uma mortalha em farrapos. Entretanto, os atacantes iam sendo ceifados
à medida que tentavam chegar à muralha.
Então, de súbito, o fervor inicial esmoreceu, com os soldados a recuar e a esconder-se atrás de qualquer abrigo que encontrassem, enquanto em desespero iam trocando
tiros com o inimigo. Mais homens entraram na vala, juntando-se aos da inclinação oposta, que se recusavam a avançar mais. A densa massa de seres humanos era um alvo
irresistível para o inimigo, que varreu o fosso com metralha, enquanto das muralhas eram atiradas granadas que detonavam com clarões brilhantes, lançando estilhaços
de ferro aguçado em todas as direções e mutilando os soldados da primeira onda do marechal Lannes.
- Raios. - Napoleão franziu o cenho, irritado. - O diabo que os carregue. Porque é que se deixam ficar ali, a morrer naquela vala? Se querem viver, têm de avançar.
A frustração cresceu com a continuação do massacre. O inevitável acabou por acontecer quando os homens da primeira vaga começaram lentamente a recuar, com o ritmo
a aumentar quando a urgência de retirar se espalhou pelos soldados como uma onda invisível a percorrer as fileiras. No espaço de minutos, o último dos sobreviventes
abrigados no fosso corria para longe da vila, deixando os mortos e os feridos espalhados e amontoados à frente da muralha. Enquanto os soldados recuavam, os austríacos
continuaram a disparar até que os franceses ficaram fora do alcance dos mosquetes, após o que restaram apenas os canhões, que dispararam mais algumas salvas de metralha,
antes de também eles ficarem em silêncio.
De repente, Napoleão esporeou a montada e levou-a encosta suave abaixo, até se aproximar a galope do posto avançado de comando de Lannes, nas ruínas de uma pequena
capela. Os guarda-costas e os oficiais de campo correram atrás dele, esforçando-se por o acompanhar. Assim que se apercebera do fracasso do ataque, o marechal Lannes
avançara para confrontar os primeiros fugitivos. Quando Napoleão chegou junto a ele, Lannes admoestava um grande grupo de soldados de ar embaraçado.
- Consideram-se homens? - vociferou Lannes a plenos pulmões. - A fugir como coelhos assim que se deparam com uns poucos de austríacos com coragem para vos enfrentar.
Que Deus me ajude, vós sois a minha vergonha! São a vergonha da vossa farda e do imperador! - Lannes apontou para Napoleão quando este se aproximou e puxou as rédeas.
- E agora, o inimigo ri-se de vós. Troça por serem cobardes. Escutem!
Com efeito, o som distante de insultos e assobios chegava-lhes vindo dos defensores de Ratisbon e alguns dos homens fitaram o chão, sem se atreverem a cruzar os
olhos com os do comandante.
Napoleão desmontou e lançou um olhar gelado aos homens reunidos à frente de Lannes. Manteve-se em silêncio por um instante, até que abanou a cabeça, consternado.
- Soldados, não estou zangado convosco. Como poderia estar? Obedeceram às vossas ordens e atacaram. Avançaram contra o fogo e continuaram em frente até que vos faltou
a coragem. E depois recuaram. Não fizeram menos do que qualquer outro homem, em qualquer outro exército europeu. - Napoleão fez uma breve pausa para que as palavras
seguintes transmitissem o peso desejado. - Mas vós não sois outro exército europeu. Vós sois o exército de França. Marchais segundo critérios que vos foram incutidos
pelo vosso imperador. Os mesmos critérios que levaram à vitória em Austerlitz. Em Jena e Auerstadt. Eylau e Friedland. Juntos derrotámos os exércitos do rei da Prússia
e do czar. Humilhámos os austríacos, os mesmos que agora troçam de vós a partir das muralhas de Ratisbon. Julgam que os homens de França se tornaram fracos e receosos,
que o fogo que os anima esmoreceu. Julgam que o inimigo que já enfrentaram e que tiveram motivo para recear é agora manso como um cordeiro. Envergonham-vos. Riem-se
de vós. Expõem-vos ao ridículo... - Napoleão olhou em seu redor e, tal como esperara, viu a expressão de fúria no rosto de alguns dos soldados. - Como pode um homem
suportar tal afronta? Como pode um soldado de França não sentir o coração em chamas pelo desprezo mostrado por aqueles que lhe são inferiores? - Napoleão estendeu
o braço na direção de Ratisbon. - Soldados! O inimigo aguarda-vos. Mostrem-lhes o que é ser francês. Não há bala ou granada que vos abale a coragem, ou que vos faça
esmorecer a determinação. Recordai quem antes de vós lutou pelo imperador. Recordai a glória eterna que eles conquistaram. Recordai a gratidão e as benesses que
o vosso imperador lhes concedeu.
- Viva Napoleão! - O marechal Lannes ergueu o punho no ar. - Viva a França!
O brado foi de imediato ecoado pelos homens que se encontravam mais próximos e varreu as fileiras dos que os rodeavam. Outros soldados, mais afastados, viraram-se
e juntaram-se aos vivas, afogando os insultos dos austríacos com a aclamação que tomou conta dos soldados da divisão de Lannes. O marechal prosseguiu com a ovação
por mais um instante, até que ergueu os braços e pediu o silêncio dos seus homens. Quando os aplausos esmoreceram, o marechal respirou fundo e apontou para os primeiros
soldados que se juntavam aos estandartes do regimento.
- Às vossas cores! Formem e preparem-se para mostrar àqueles cães austríacos como lutam os verdadeiros soldados!
Enquanto os homens se afastavam, Napoleão distinguiu a determinação renovada nas expressões e aquiesceu, satisfeito.
- O sangue ferve-lhes. Só espero que desta vez consigam tomar a muralha. - Voltou a dirigir o olhar para as defesas inimigas. Estavam a menos de um quilómetro das
peças mais próximas. - Continuamos ao alcance do fogo, e os homens também.
- Seria preciso muita sorte para acertar em alguém a esta distância, sire - retorquiu Lannes, desdenhoso. - Um desperdício de pólvora.
- Espero que tenha razão.
Instantes depois viu-se uma pequena nuvem de fumo numa canhoneira do reduto austríaco mais próximo e os dois homens acompanharam a ténue mancha negra da bola a curvar-se
pelo ar da manhã, descrevendo um leve desvio para um dos lados da posição deles. A bola bateu a cem metros deles, fazendo saltar poeira e terra antes de voltar a
cair cinquenta passos mais à frente e uma última vez, antes de abrir caminho pela erva alta e de se deter a pouca distância da primeira fileira do batalhão francês
mais próximo.
- Boas condições para a artilharia - ponderou Napoleão. - Terreno firme... o alcance real vai aumentar e o ricochete dos tiros inimigos vai sair-nos caro.
Outros canhões austríacos abriram fogo e o tiro de uma das peças mais pesadas bateu a escassa distância de um dos batalhões franceses, antes de abrir caminho pelas
fileiras, derrubando homens como pinos de boliche.
Lannes pigarreou.
- Sire, ocorreu-me que também nos encontramos ao alcance das armas inimigas.
- É verdade, mas tal como frisou, a probabilidade de nos atingirem é residual.
- Mesmo assim, sire, seria prudente que se afastasse da distância de tiro real.
Napoleão relanceou os olhos na direção do reduto, notando que a boca de uma das peças fora escorçada até um ponto negro. De repente, o canhão foi obscurecido por
uma voluta de fumo e, momentos depois, uma nuvem de terra ergueu-se à frente dos homens.
- Cuidado! - gritou Lannes, em alerta.
Contudo, antes que Napoleão pudesse reagir, a bola voltou a cair muito mais perto e depois novamente mesmo a seus pés. O solo fustigou-lhes o rosto e Napoleão sentiu
uma pancada no tornozelo direito. O choque do impacto atordoou-o mas Napoleão manteve-se hirto, sem se atrever a olhar para baixo, enquanto Lannes sacudia a farda
com uma risada.
- Tal como estava a dizer...
Napoleão sentiu o tornozelo a ceder e tombou para o lado, estendendo os braços para amparar a queda.
- Sire! - Lannes correu a ajoelhar-se ao lado do imperador. - Foi atingido?
A dor na perna de Napoleão era excruciante e cerrou os dentes ao responder.
- É claro que fui atingido, seu idiota!
- Onde? - Lannes percorreu-o ansiosamente com o olhar. - Não consigo ver o ferimento.
- A minha perna direita. - Napoleão fez um esgar. - O tornozelo.
Lannes baixou o olhar e viu que a bota de Napoleão fora bastante danificada. Procurou ao de leve sinais de lesões. Napoleão arquejou e obrigou-se a endireitar-se.
Sobre o ombro de Lannes viu alguns oficiais de dia e ordenanças a correrem na direção dos dois homens. Mais além, os soldados do batalhão mais próximo quebravam
as fileiras enquanto fitavam o imperador com expressões chocadas.
- O imperador está ferido! - bradou uma voz.
O grito foi repetido e um coro de gemidos desesperados percorreu as fileiras da divisão que formava para dar início ao segundo ataque. Napoleão apercebeu-se de que
teria de agir com celeridade para restaurar o moral dos soldados, antes que se perdesse a oportunidade de tomar Ratisbon.
- Ajude-me a levantar-me - resmungou a Lannes.
O marechal abanou a cabeça.
- Está ferido, sire. Vou mandar que o levem para lugar seguro e chamar o seu médico.
- Não vai fazer nada disso - replicou bruscamente Napoleão. - Levante-me. Traga-me o meu cavalo.
- Às suas ordens.
O marechal era um homem de constituição poderosa e agarrou o braço do imperador, levantando-o com facilidade. Napoleão assentou todo o peso no pé esquerdo e procurou
ocultar quaisquer sinais da dor lancinante que transformava numa agonia os movimentos da perna direita. Pousou a mão no ombro de Lannes, enquanto este ordenava que
trouxessem o cavalo. Enquanto um dos guarda-costas de Napoleão segurava as rédeas, Lannes içou com todo o cuidado o imperador para a sela e enfiou-lhe o pé direito
no estribo. Napoleão segurou as rédeas e respirou fundo.
- As suas ordens, sire? - Lannes ergueu o olhar para o imperador.
- Prossigam com o ataque até que Ratisbon seja tomada. - Napoleão estalou a língua e tocou na montada com os calcanhares tão ao de leve quanto possível, franzindo
o cenho ao fazê-lo. O cavalo avançou e Napoleão guiou-o até à frente dos regimentos que formavam para um novo ataque às defesas inimigas. Berthier aproximou-se a
trote e colocou-se ao lado do imperador.
- Deseja que chame a sua carruagem?
- Não. Vou ficar a cavalo, onde os homens me possam ver. - Napoleão levantou a mão para cumprimentar o batalhão mais próximo e ouviu-se um viva, forte e demorado.
Foi repetido pela formação seguinte e continuou pela divisão de Morand. Napoleão prosseguiu ao longo da primeira formação, obrigando-se a sorrir aos homens e a trocar
cumprimentos com os comandantes por quem passava.
Chegou ao extremo e deu meia-volta para regressar. O marechal Lannes voltara a montar a cavalo e avançou a trote, para ficar à vista dos soldados. Napoleão parou
a seu lado e obrigou-se a manter as feições impassíveis enquanto outra bola de canhão caía a pouca distância da banda da divisão, arrancava a cabeça a um jovem tamborileiro
e esmagava o peito do que se encontrava atrás dele.
Lannes tirou o chapéu emplumado e ergueu-o bem alto, após o que encheu os pulmões e bradou:
- Voluntários para o grupo com a escada, avancem!
A voz ressoou brevemente no ar quente e esmoreceu, mas ninguém se moveu. Os soldados na primeira fila mantiveram o olhar fito em frente, recusando-se a cruzá-lo
com o do marechal, ou o do imperador. Quem se oferecesse para levar as escadas marcharia logo atrás dos soldados avançados e o inimigo não hesitaria em concentrar
o fogo nesses alvos fáceis. O terreno à frente das defesas austríacas já estava coberto de mortos e feridos do ataque anterior e a recordação da tempestade de fogo
das muralhas continuava fresca na mente dos sobreviventes.
Lannes fitou as fileiras silenciosas e imóveis com uma expressão surpreendida no rosto, que rapidamente se transformou em desprezo.
- Não há um homem entre vós disposto a ter a honra de ser o primeiro a escalar as muralhas? Então?
Ninguém se mexeu e Napoleão sentiu a terrível tensão que se acumulava entre o marechal e os seus homens. Se não fosse solucionada rapidamente, não haveria segundo
ataque. Lannes terá partilhado essa noção, pois olhou com ansiedade para o imperador, após o que desmontou de repente e se dirigiu à escada mais próxima. Com os
soldados sempre a olhar, Lannes agarrou na escada e escolheu a posição para que fosse capaz de a levar sozinho. Dirigiu-se aos soldados e bradou com desprezo:
- Se não há ninguém com coragem para isso, fá-lo-ei sozinho. Era granadeiro antes de ser marechal... e ainda sou!
Com essas palavras deu meia-volta e começou a marchar em direção a Ratisbon, com a escada desajeitada bem firme.
- Deus do Céu - resmungou Berthier. - Mas o que pensa ele que está a fazer?
Napoleão não foi capaz de reprimir um sorriso.
- O que poderia ele fazer? O seu dever.
Por um instante ninguém se mexeu, até que um dos oficiais de Lannes avançou a correr e se foi pôr à frente do comandante.
- Meu marechal! Não pode fazer isso. Quem vai comandar as tropas se for morto?
- Que me interessa isso? - resmungou Lannes. - Saia do meu caminho, maldito seja.
Afastou o oficial e continuou a marchar em direção aos austríacos que esperavam. O outro homem seguiu-o com o olhar, aterrado. Depois recuperou o raciocínio e correu
para o alcançar, segurando a extremidade da escada e acertando o passo com Lannes.
- Espere, meu marechal! - gritou outro dos oficiais, que correu com os companheiros a pegar nas escadas mais próximas e a juntar-se a Lannes.
Seguiu-se uma breve pausa até que o coronel do batalhão ali mais perto se dirigiu aos soldados espantados e bradou:
- De que estão à espera? Raios me partam se vou deixar que um marechal de França leve com uma bala que me era destinada! Avançar! - Desembainhou a espada e brandiu-a
na direção da vila. - Viva a França!
Os soldados deram continuidade ao grito e começaram a movimentar-se, correndo para agarrar nas escadas e seguindo Lannes e os seus oficiais. Numa onda irregular
de soldados a ovacionar, o resto da divisão de Morand avançou e pegou nas restantes escadas enquanto marchavam. Napoleão sentiu o sangue a acelerar-lhe nas veias
e fez avançar o cavalo a par dos soldados. Os defensores reagiram de imediato à nova ameaça e todas as armas passíveis de serem usadas abriram fogo sobre a vaga
de homens que corria pelo terreno aberto até à vala e à muralha mais além. Um projétil sibilou perto das cabeças e Berthier baixou-se instintivamente.
- Sire, isto será sensato? Já foi ferido. Imploro-lhe que deixe que lhe tratem da perna.
- Depois. Neste momento, tudo o que interessa é tomar Ratisbon.
- Com o devido respeito, sire, o marechal Lannes pode encarregar-se do ataque.
- A sério? - Napoleão lançou um olhar ao chefe do estado-maior. - Viu a reação dos homens. Viu como o estado de espírito se encontra instável. Se o imperador os
acompanhar, não vão perder a coragem.
Berthier baixou a cabeça a contragosto.
- De certeza que terá toda a razão, sire. Mas, e se for morto? Aqui, à frente dos homens? Isso não só levaria ao fracasso do ataque, como seria um rude golpe ao
moral de todo o exército.
Napoleão obrigou-se a sorrir.
- Meu caro Berthier, garanto-lhe que ainda está por fundir a bala que me vai matar. Agora basta. Ficamos com os nossos soldados.
- Sim, sire - respondeu Berthier obedientemente e fez o possível por parecer impassível enquanto avançavam.
Mais à frente, Napoleão distinguiu as fardas debruadas a dourado de Lannes e dos seus oficiais, que continuavam a liderar o ataque. Chegaram ao fosso numa meia-corrida
e deslizaram pela primeira encosta, após o que correram até ao outro lado e escalaram a subida para cruzar o último troço de terreno aberto antes da muralha. Acima
deles, as ameias estavam pejadas de soldados austríacos que disparavam e voltavam a carregar os mosquetes tão depressa quanto possível, à medida que a onda de fardas
azuis investia na sua direção. Em ambos os flancos da divisão de Morand, os canhões nos redutos inimigos cuspiam metralha para o meio das fileiras francesas, desfazendo
de forma sangrenta vários homens de cada vez. Napoleão e Berthier imobilizaram-se a pouca distância da vala e observaram Lannes e os seus homens a chegarem à muralha.
Ergueram apressadamente a escada e o marechal saltou para os degraus mais baixos e começou a subir. A cada lado instalavam-se mais escadas e os homens da divisão
de Morand começaram a subir, trepando aos parapeitos e caindo sobre os defensores.
A maior parte dos soldados tinha disparado os mosquetes ao aproximar-se da muralha, investindo agora com o aço frio das baionetas, ou usando as armas como maças
nos brutais confrontos corpo a corpo com os austríacos. O mesmo destino esperava os defensores dos redutos laterais, com os franceses a abrir caminho pelas canhoneiras
e a cair sobre os artilheiros inimigos no interior. Depois da morte espalhada pelos canhões, Napoleão sabia que nenhuma das equipas de artilharia seria poupada à
fúria vingativa dos invasores.
Enquanto ainda mais soldados continuavam a escalar as muralhas, ouviu-se um brado de viva no exterior da vila quando os portões começaram a abrir-se. Napoleão ficou
tenso por um momento, interrogando-se se o inimigo estaria prestes a lançar um contra-ataque, mas quando os portões ficaram escancarados, uma figura sem chapéu,
de farda bordada a ouro, emergiu do interior da povoação.
- É Lannes! - gritou Berthier.
- Sim. - Napoleão sorriu, aliviado, e fez avançar o cavalo em direção ao fosso. Enquanto a montada descia cuidadosamente a inclinação, Napoleão viu pela primeira
vez os cadáveres espalhados pelo fundo da trincheira, alguns bastante desfeitos pelas pesadas bolas de ferro e pela metralha. O animal relinchou até que Napoleão
se inclinou para a frente e lhe afagou o flanco, incitando-o a subir a elevação oposta. Lannes acenava aos seus homens pelo portão e bradava palavras de encorajamento.
Napoleão e Berthier juntaram-se a ele. Napoleão reparou no rasgão na jaqueta da farda do marechal e na mancha de sangue que o oficial tinha no pescoço.
- Parece que o impetuoso agora não fui eu, meu caro Jean.
Lannes ergueu o olhar e levou a mão enluvada ao pescoço. A luva trouxe uma mancha de sangue fresco.
- É só um arranhão, sire, nada mais.
Napoleão olhou sobre o fosso para os terrenos que davam acesso à vila. Imaginou que perto de um milhar de franceses tivesse tombado às portas de Ratisbon. Dirigiu-se
a Lannes.
- Parece que tem uma vida bafejada pela fortuna.
- Tal como todos nós, sire, até ao dia em que morremos.
Partilharam uma gargalhada e Berthier juntou-se-lhes, sem grande firmeza. Depois Napoleão chegou-se à frente para dar novas ordens ao marechal.
- Dê ordens aos seus homens para passarem a vila a pente fino. Entretanto, quero que vá diretamente à ponte com todos os granadeiros que encontre. Temos de a capturar
intacta. Não deixe que nada o detenha e depois de a tomar, mantenha-a a todo o custo, entendido?
- Sim, meu imperador.
- Então vá.
Lannes regressou a correr à povoação e chamou a si os oficiais, enquanto Napoleão e Berthier se deixaram ficar junto ao portão, recebendo o imperador os cumprimentos
dos soldados dos regimentos de acompanhamento da divisão que ia entrando em Ratisbon. Muitos, em especial os jovens recrutas, só tinham visto o imperador de longe,
se alguma vez o tivessem visto de todo, e agora olhavam-no com uma curiosidade entusiasmada e mesmo com alguma reverência. Alguns dos homens mais velhos, com faixas
de campanha nas mangas, gritaram cumprimentos informais a Napoleão, certamente com o objetivo de impressionar os camaradas mais jovens. Napoleão sabia que nessa
noite se reuniriam à volta das fogueiras e contariam narrativas do tempo em que tinham combatido ao lado do imperador, quando este ainda não passava de um jovem
oficial.
Esperou que os primeiros dois regimentos entrassem na vila antes de os seguir pelo portão. Os sons de combate tinham-se afastado para o rio e o débil crepitar dos
tiros de mosquetes era entremeado com o estrondo ocasional de um canhão na margem do Danúbio ocupada pelos austríacos. Havia corpos franceses e austríacos espalhados
pela rua que partia dos portões. Os mortos e os feridos tinham sido apressadamente retirados para o lado, para não atrapalharem as tropas que por ali marchavam.
Os vivos estavam sentados, encostados às paredes, à espera que os ajudassem a chegar à retaguarda, onde os ferimentos acabariam por ser tratados. Alguns celebraram
quando Napoleão passou, outros mantiveram os olhos fitos em nada, demasiado em choque, ou demasiado em sofrimento para se preocuparem.
Mais à frente, a rua desembocava numa praça que o inimigo usara como parque de veículos. O espaço estava rodeado pelas fachadas ornamentadas que Napoleão se habituara
a encontrar nas inúmeras aldeias e vilas das margens do Danúbio. Armões, caixotes de munições e carroças de suprimentos estavam concentrados no centro da praça.
Do outro lado, Napoleão viu a estrada larga que dava acesso à ponte que cruzava o grandioso rio. Um aglomerado de soldados de casacas azuis forçava a passagem na
ponte. Napoleão fez o cavalo avançar. Quando se aproximou da extremidade da ponte, viu Lannes e os seus oficiais num embarcadouro, a um lado. Além deles, a água
do Danúbio estendia-se mais de cem passos até à primeira das pequenas ilhas entre as duas margens. A ponte, edificada sobre massivos contrafortes de pedra, alongava-se
para a direita através do grande rio, passando sobre as ilhas até ao outro lado. Napoleão via que era tão sólida que não poderia ser destruída com facilidade por
cargas de pólvora. Formações densas de soldados inimigos e várias baterias de artilharia cobriam visivelmente a extremidade da ponte. Além delas, na encosta que
se erguia a partir do rio, estendia-se o acampamento do exército do arquiduque Carlos. Napoleão observou as tropas francesas na ponte começarem a ceder sob a fuzilada
terrível de bolas de mosquete e de metralha que varriam toda a extensão da ponte. Os homens recuaram, com os mais decididos a disparar um último tiro antes de regressarem
ao abrigo das construções que acompanhavam o rio.
Ao som dos cascos que se aproximavam pela estrada empedrada, Lannes virou-se e ele e os oficiais curvaram a cabeça em boas-vindas.
- O seu relatório - ordenou Napoleão assim que parou. A dor no tornozelo passara a um latejar constante e teve de se obrigar a prestar toda a atenção ao marechal.
- A vila é sua, sire. A maior parte dos inimigos conseguiu fugir sobre o rio, mas temos algumas centenas de prisioneiros e apoderámo-nos de vinte peças de artilharia.
Alguns austríacos estão ainda a defender edifícios no bairro oriental de Ratisbon, mas em breve trataremos deles. Quanto às nossas perdas...
- Isso agora não é importante. A ponte está segura?
Lannes anuiu.
- O major Dubarry, dos engenheiros, confirmou as cargas. Parece que os austríacos não tinham grande intenção de destruir a ponte.
- Ótimo. Nesse caso, ainda podemos vir a ter a oportunidade de perseguir o arquiduque Carlos.
Lannes ergueu por instantes as sobrancelhas.
- Sire, tal como pode ver, o inimigo está na posse da outra margem. Não seremos capazes de forçar a passagem por aqui. Por agora, o inimigo escapou-nos.
Napoleão cerrou os lábios e teve dificuldade em conter o mau humor. Há dez dias que não dormia devidamente e reconheceu os sintomas da exaustão naquela onda súbita
de fúria. A culpa não era de Lannes. Quando olhou para o outro lado do rio, Napoleão viu por si só que qualquer tentativa de atravessar a ponte apenas resultaria
num massacre sangrento. Contemplou o impasse com um coração subitamente pesado. Os austríacos tinham conseguido intrometer o Danúbio entre eles e os perseguidores.
Se acompanhassem em paralelo a deslocação do exército francês, poderiam impedir qualquer tentativa de cruzar o rio e levá-los ao combate.
Soltou um suspiro amargo.
- Parece que o inimigo aprendeu bem a lição com a última guerra. O arquiduque Carlos vai pensar duas vezes antes de aceitar uma batalha segundo os meus termos.
- Podemos encontrar outro ponto de passagem, sire - replicou Berthier. - Masséna está a marchar sobre Straubing. Se ele atravessar o rio antes de os austríacos o
deterem, pode atacar-lhes o flanco.
- Sozinho? - Napoleão abanou a cabeça. - Mesmo que Masséna conseguisse surpreender os austríacos, eles podem simplesmente retirar para os Estados alemães mais a
norte e tentar obter uma aliança enquanto nos atraem e afastam de Viena. - Fez uma pausa e coçou ao de leve a barba que lhe crescia no queixo. - Não. Não vamos seguir
o jogo do arquiduque Carlos. Temos, isso sim, de fazer com que ele nos siga.
- Como, sire?
- Marchamos sobre Viena. Duvido que os austríacos estejam preparados para nos deixar ocupar a capital pela segunda vez.
Lannes apontou para as forças inimigas reunidas na outra margem.
- E se eles voltarem a atravessar o rio e nos tentarem cortar as comunicações?
Napoleão sorriu.
- Carregamos sobre eles e obrigamo-los a lutar. Acredito que não tenham coragem de o fazer por enquanto. Por isso, meus amigos, levamos a guerra até Viena. Nessa
altura teremos a nossa batalha.
Capítulo 2
O exército austríaco retirou durante a noite e Napoleão enviou Davout e os seus soldados para o outro lado do Danúbio para se manter em contacto com o inimigo e
para o atormentar. Entretanto, o exército principal marchou para leste, em direção a Viena, empurrando as restantes forças austríacas à sua frente. O tempo primaveril
continuava ameno e os soldados do exército francês avançavam pelo território inimigo com um moral elevado.
Entrementes, Napoleão analisava com todo o cuidado os relatórios que lhe eram enviados por Davout. Assim que a ameaça a Viena se tornara óbvia, o arquiduque Carlos
ordenara que o exército desse meia-volta e avançasse pela margem norte do Danúbio, numa tentativa de chegar à capital antes dos franceses. Napoleão calculava que
isso seria pouco provável, já que o exército austríaco sempre marchara a um ritmo lento. As únicas notícias que lhe interessaram chegaram de Itália, onde o arquiduque
João, irmão do arquiduque Carlos, superara o exército francês. Era possível que João regressasse a Viena, numa tentativa de unir os exércitos austríacos contra Napoleão.
No início de maio, os pináculos e os telhados da capital austríaca foram avistados pelo exército francês e Napoleão deu ordens para que a artilharia se preparasse
para bombardear Viena. Antes que os canhões pudessem disparar, os portões da cidade abriram-se e de lá saiu um pequeno grupo de civis.
- O que poderão eles querer? - ponderou Berthier, que erguera o telescópio e os observava com cautela a aproximar-se dos piquetes franceses. Dirigiu-se ao imperador:
- Talvez queiram já negociar a paz.
- Espero que sim - retorquiu Napoleão. - Mas se pretenderem defender Viena, desta vez não hesitarei em arrasar a cidade. O imperador Francisco não vai ter uma terceira
oportunidade para me desafiar. - Napoleão fez sinal para que lhe entregassem o telescópio e semicerrou o olho pelo óculo. Eram cinco homens com roupas civis, acompanhados
por uma pequena escolta montada da milícia da cidade.
- Eles que sejam levados até à bateria principal - ordenou Napoleão a Berthier. - Encontro-me aí com eles. Mais vale que saibam o que esperar, caso não cedam às
minhas exigências.
- Sim, sire. - Berthier aquiesceu e afastou-se a cavalgar para levar a cabo as suas ordens. Napoleão dirigiu a atenção dos cavaleiros que se aproximavam para as
defesas da cidade mais além. Um punhado de fortes guardava a chegada a Viena e depois havia as muralhas. Contudo, não havia sinais de vida nos fortes, nem bandeiras,
ou estandartes regimentais desfraldados. Baixou o telescópio de cenho franzido ao de leve e resmungou:
- O que estarão eles a tramar?
Meia hora depois, Napoleão, a par de Berthier e de um esquadrão de cavalaria da Guarda, dirigiu-se à bateria principal para se encontrar com a delegação inimiga.
De ambos os lados, a linha de canhões de doze libras estendia-se pelo campo austríaco. Cinquenta metros atrás estavam os carros de munições, carregados de pólvora
e bolas, preparados para alimentar as peças de artilharia quando estas abrissem fogo sobre Viena. Os artilheiros tinham acabado os preparativos e estavam junto às
peças, observando os austríacos com curiosidade. Quando Napoleão se aproximou, os artilheiros soltaram vivas e o imperador apreciou a receção por um instante, abrandando
o ritmo da montada para um passo lento e lançando um olhar duro aos austríacos. Os recém-chegados tiraram os chapéus e baixaram brevemente a cabeça, enquanto o imperador
francês erguia a mão para silenciar os seus homens. Assim que as ovações esmoreceram, Napoleão tossicou e dirigiu-se ao homem à frente da delegação austríaca. O
oficial era alto e magro, de caracóis escuros salpicados de grisalho. O casaco tinha um bordado fino de renda dourada e um cordão vermelho largo cruzava-lhe o ombro.
Napoleão falou com brevidade:
- Qual o objetivo da vossa presença aqui?
- Sire, represento o administrador da cidade de Viena. Sua Excelência roga-lhe uma audiência.
- O seu nome?
- Barão Karinsky, sire.
- Diga-me o que deseja o seu senhor.
- Com certeza, sire. Ele deseja discutir os termos para a capitulação de Viena.
- De Viena? Estou a ver. - Napoleão fez uma pausa. - E o imperador Francisco concordou com a rendição da capital?
- Tanto quanto me é dado saber.
- O que significa isso?
- Sua majestade imperial deixou a cidade acompanhado pela corte, sire. O administrador ficou responsável, com ordens de a defender até onde fosse praticável.
- Nesse caso, a oferta diz apenas respeito a Viena? - indagou Berthier.
- Com efeito.
- Não há intenção da parte do imperador Francisco de discutir um armistício?
- Que eu saiba, não.
Berthier trocou um olhar com Napoleão, que soltou um breve suspiro de frustração antes de continuar a dirigir-se a Karinsky.
- Diga-me, porque está o administrador a preparar-se para discutir a capitulação antes de termos disparado um tiro que fosse?
O austríaco fez um gesto na direção da cidade.
- A guarnição já se retirou das muralhas, sire. Segundo as ordens do arquiduque Carlos. Só resta a milícia. Assim sendo, o administrador determinou ser incapaz de
defender a cidade. Por compaixão pelos cidadãos de Viena, ele julga preferível render-se do que desperdiçar vidas numa tentativa inglória de vos resistir, sire.
- Onde se encontra a guarnição neste momento? - indagou Napoleão num tom brusco.
- Retiraram-se para o outro lado do Danúbio.
Napoleão fitou brevemente o homem.
- E as pontes estão intactas?
O indivíduo baixou o olhar quando respondeu.
- Quando saí da cidade, estavam, sire.
Napoleão virou-se para Berthier.
- Envie uma divisão de cavalaria. Diga a Bessières que quero que os homens dele tomem imediatamente essas pontes. Temos de ter acesso à outra margem se queremos...
Napoleão foi interrompido por um estrondo ténue e olhou na direção de Viena. Além da cidade viu uma coluna de fumo que se erguia no céu limpo. Momentos depois ouviu-se
uma segunda explosão e viu-se mais fumo, seguindo-se dois outros rebentamentos que ecoaram pela paisagem até aos sobressaltados elementos avançados do exército francês.
- Rebentaram com as pontes - constatou Berthier num tom baixo.
Napoleão aquiesceu e fitou o barão Karinsky.
- Diga ao administrador que Viena deverá render-se incondicionalmente. Se a cidade não for entregue no espaço de uma hora, vou ordenar que os meus canhões pulverizem
a sua capital. Fui claro?
Karinsky abanou a cabeça.
- Sire, não estou autorizado a negociar. O meu senhor apenas me enviou com um convite para que fosse falar com ele.
- Não há nada a dizer. Não haverá qualquer negociação. Diga-lhe que ordeno que se renda e que se não o fizer, a morte e a destruição que farei cair sobre Viena serão
responsabilidade dele.
O austríaco abriu a boca, fazendo menção de protestar, mas Napoleão puxou do relógio e baixou rapidamente o olhar.
- São onze horas. Se ao meio-dia a cidade não se tiver rendido, vou ordenar que os canhões abram fogo. Talvez seja melhor não perder tempo a informar o administrador
das minhas condições.
Karinsky franziu o cenho e depois deu abruptamente meia-volta ao cavalo e galopou de regresso a Viena.
Assim que os portões de Viena se abriram ao exército francês, Napoleão e o engenheiro-chefe, o general Bertrand, percorreram a cidade para avaliar o estado das pontes
demolidas. Os engenheiros austríacos tinham feito um bom trabalho. O tabuleiro central de cada ponte tinha sido rebentado, e os pilares pouco mais eram do que montes
de alvenaria na corrente rápida do Danúbio. No outro lado do rio, o inimigo atarefava-se a erguer barricadas nos extremos das pontes derrubadas. Nos flancos montavam-se
baterias de artilharia que cobrissem o rio, para o caso de os engenheiros franceses tentarem proceder a quaisquer reparações nos tabuleiros desfeitos.
Napoleão fitou as pontes de coração apertado. O inimigo estaria seguro até que os franceses encontrassem outra maneira de atravessar o rio.
O general Bertrand acabara de analisar as pontes e as forças austríacas do outro lado e estalou a língua.
- Seria suicídio tentar proceder a reparações, sire.
- Isso já eu percebi - retorquiu Napoleão, mal-humorado. - Se não podemos atravessar aqui, temos de encontrar outro ponto.
- É claro, sire. - Bertrand anuiu pensativamente enquanto retirava o chapéu e coçava os fios de cabelo colados ao crânio. - O grande problema é a corrente. Como
pode ver, o rio corre com bastante força, em especial nesta altura do ano. Quaisquer tempestades súbitas virão piorar as coisas. Se houver uma inundação repentina,
as nossas pontes flutuantes podem ser arrastadas.
- Muito bem, o que me sugere, então?
- Depois de interrogar os locais, já tomei em consideração algumas possibilidades, sire. - Bertrand levou a mão ao alforge e desenrolou um mapa. Apontou um dedo
enluvado ao mapa, onde estavam indicadas as margens do rio, a jusante de Viena. - Este ponto parece-me prometedor, sire. Aqui, do outro lado da ilha de Lobau. São
mais de oitocentos metros da nossa margem até à ilha, mas daí até à margem oposta distam apenas mais cem metros. Além disso, a distância entre margens significa
que a corrente será mais fraca aqui do que em qualquer outro lado.
Napoleão aquiesceu, satisfeito.
- Ótimo. Partindo do princípio de que esse local é adequado, quero que dê início aos trabalhos assim que o comboio das pontes chegue junto do exército. As carroças
com as pontes têm prioridade sobre qualquer outro veículo na estrada. Dê ordens nesse sentido em meu nome.
- Com certeza, sire.
- Quero uma ponte sobre o rio assim que possível, entendido? Não há tempo a perder. Se queremos derrotar o arquiduque Carlos, o exército tem de cruzar o Danúbio
em menos de uma semana.
Bertrand entumeceu as faces.
- Às suas ordens, sire.
Com um sorriso gelado, Napoleão voltou a dirigir a atenção para as tropas inimigas na outra margem. Os mais recentes relatórios de Davout indicavam que o arquiduque
Carlos e o seu exército ainda se encontravam a alguma distância de Viena, na outra margem. Se Bertrand conseguisse fazê-los atravessar o Danúbio rapidamente, os
austríacos seriam apanhados entre Napoleão e Davout, e obrigados a entrar em combate. As probabilidades estariam a favor de Napoleão, já que outros reforços, às
ordens do marechal Bernadotte, tinham saído de Dresden para se juntar ao imperador. Se o exército francês mantivesse o impulso, em breve o arquiduque Carlos seria
derrotado, antes que o irmão chegasse para o ajudar.
As carroças com as pontes chegaram cinco dias depois da queda de Viena e Bertrand deu início ao trabalho para construir a ponte. Napoleão juntou-se ao seu engenheiro-chefe
para observar o progresso, à medida que cada barca era baixada até ao rio e levada pela corrente com remos longos, até ficar em posição para largar uma âncora pesada
a montante. Os engenheiros mantinham os cabos seguros até que a barca ficava em linha com as que já estavam no respetivo lugar. Depois a barca era fixada com madeira
e coberta com tábuas. Uma força de infantaria fora desembarcada na ilha, de onde expulsou rapidamente os poucos defensores austríacos. O general Bertrand obrigou
os seus homens a trabalhar duramente e o Danúbio foi cruzado com uma ponte em pouco mais de dia e meio. Assim que a tarefa ficou completa, a primeira unidade de
cavalaria começou a atravessar.
- Excelente trabalho! - felicitou Napoleão o general, quando este apresentou em pessoa a novidade ao imperador, pouco depois do meio-dia. O quartel-general avançado
fora estabelecido numa pequena aldeia perto do final da ponte e o campo em redor estava apinhado de homens, cavalos, canhões e carroças, enquanto o exército se preparava
para atravessar o rio.
- Obrigado, sire. - Bertrand baixou a cabeça. Não dormia havia quase três dias, e a exaustão estava bem patente.
- E quanto à última fase? - perguntou Berthier. - Da ilha de Lobau até à outra margem?
- As barcas vão chegar à ilha esta tarde e teremos a ponte concluída esta noite.
- Ótimo. - Napoleão sorriu afavelmente. - Pela madrugada teremos a nossa cabeça de ponte. Os homens de Masséna vão tomar as aldeias de Essling e de Aspern, e depois
o resto do exército pode atravessar.
O marechal Lannes chegou-se à frente na cadeira e pigarreou.
- Isso parece-me tudo muito bem, sire, mas temos a certeza de que o inimigo não se vai opor à nossa passagem para a outra margem?
- Não se preocupe, meu caro Lannes, o exército austríaco ainda se encontra a muitos dias de marcha. Terão notícia de que atravessámos o Danúbio quando os canhões
anunciarem a nossa presença. Nessa altura será demasiado tarde para fazer seja o que for, a não ser combater.
- Mas se os austríacos estiverem mais perto do que calculou, podemos estar a avançar para uma armadilha feita pelas nossas próprias mãos. Sire, aconselho prudência.
Estamos a avançar sobre um rio de corrente forte, com uma única ponte. E se ela se partir, ou for destruída? Nesse caso, o exército ficaria reduzido a metade. A
vanguarda ficaria à mercê do inimigo se conseguirem reunir forças suficientes para se nos oporem. É demasiado arriscado, sire.
- Garanto-lhe que o inimigo não tem força suficiente para nos atrapalhar quando estivermos a atravessar o rio. A guerra pertence ao reino do risco, da sorte e da
oportunidade. Neste caso, acredito que a oportunidade supera o risco. - Napoleão endureceu o tom de voz. - Cavalheiros, as ordens estão dadas e o exército começa
esta noite a atravessar o Danúbio.
Mapa
Capítulo 3
Arthur
Abrantes, Portugal, junho de 1809
Com um suspiro frustrado, o general Sir Arthur Wellesley baixou a carta e recostou-se na cadeira. Mesmo à sombra, no exterior da pequena taberna, o calor do meio-dia
era sufocante. Não era tão mau como na Índia, se bem se lembrava, mas mesmo assim estava longe de um conforto razoável. Despira o casaco e estava sem chapéu a uma
simples mesa de cavaletes e ia tratando dos relatórios e da correspondência da manhã. O exército parara na cidade portuguesa de Abrantes havia vários dias, enquanto
se esperava por suprimentos e por dinheiro. As verbas eram a maior preocupação de Arthur. Não só os soldados não eram pagos havia mais de dois meses, como também
havia inúmeras contas que tinham de ser saldadas com os comerciantes portugueses de cereais e de cavalos, além da necessidade de vinte mil pares de botas para substituir
as que os seus homens tinham gastado. A política de Arthur era que o exército britânico tinha de pagar as movimentações pela Península Ibérica, caso pretendesse
continuar a desfrutar do apoio do povo português e espanhol. O seu exército tinha uma desvantagem numérica de cinco para um e os britânicos não se podiam dar ao
luxo de provocar a inimizade dos povos através de cujas terras faziam a sua campanha.
Arthur sabia que os franceses viam os suprimentos de uma forma menos esclarecida, vivendo da terra, sem consideração pela atitude consequente dos locais. Em virtude
disso, os franceses tinham incorrido na fúria dos agricultores espanhóis e portugueses, que travavam agora uma guerra de resistência, emboscando patrulhas francesas,
atormentando-lhes as colunas e chacinando quaisquer retardatários que ficassem para trás.
Arthur olhou encosta abaixo, até ao rio Tejo. A água fluía com serenidade através das colinas plantadas com oliveiras e pomares, e os soldados do exército britânico
desfrutavam de um descanso merecido enquanto aguardavam que o comandante decidisse os passos a dar. Centenas de soldados enchiam a margem, aproveitando a oportunidade
para lavar a roupa, enquanto os mais afoitos se tinham despido e chapinhavam nos baixios.
Arthur permitiu-se o esboço de um sorriso enquanto os observava. Os homens tinham-se saído bem no Porto, no mês anterior, onde tinham surpreendido o marechal Soult,
afugentando-o para Espanha e levando-o a abandonar a artilharia e os carros. Além de terem provado que eram capazes de marchar bastante, os casacas-vermelhas tinham
mostrado que conseguiam resistir aos ataques fanáticos dos franceses na anterior batalha do Vimeiro. Mesmo em inferioridade numérica, Arthur acreditava que o seu
exército era superior a todos os marechais e soldados das forças de Napoleão na Península, desde que os franceses não tivessem a oportunidade de reunir os vários
exércitos. O truque era esse, refletiu Arthur. Tinha de os derrotar à vez até que a Península fosse libertada. Por outro lado, não se atrevia a que o seu exército
sofresse um único revés.
Estava à frente do maior exército britânico em campo e havia muitos na pátria que punham em causa a validade de sustentar tal força na Península, longe dos campos
de batalha cruciais da Europa Central, onde os homens de Arthur poderiam ser mais bem empregues. Ele discordava. Era melhor usar os valiosos soldados britânicos
conde tivessem a oportunidade de desequilibrar as coisas. Mesmo assim, os líderes políticos de Arthur tinham-se mostrado relutantes em permitir que ele corresse
riscos. Pelo menos assim fora até à vitória no Porto. Nessa altura, os políticos, numa das suas atitudes normais, tinham mudado num abrir e fechar de olhos, de uma
pose cautelosa para o oportunismo.
Antes do Porto, Arthur estivera proibido de entrar em Espanha sem autorização específica do governo britânico. Agora que a notícia da vitória chegara a Londres,
a par do relatório de Arthur quanto à perseguição levada a cabo a Soult até à fronteira espanhola, o primeiro-ministro enviara-lhe um mensageiro para lhe transmitir
o mais profundo desapontamento por Arthur não ter levado o êxito até ao fim. O primeiro-ministro incitava agora Arthur a invadir Espanha, tomar Madrid e expulsar
os franceses.
Arthur ouviu passos a aproximar-se da mesa e ergueu o olhar, vendo o seu ajudante de campo principal a dirigir-se na sua direção. Lorde Fitzroy Somerset era um jovem
bem-apessoado, mas ao contrário de muitos dos outros jovens oficiais no exército, dedicava-se aos seus deveres com um alto nível de organização e de inteligência.
Provara ser um membro valioso da pequena equipa de oficiais próximos de Arthur e o general começara a depender dele e, a espaços, a procurar a sua opinião.
- Bom-dia, sir. - Somerset sorriu, entregando um pequeno maço de cartas.
- Deixe-as aí, ao canto da mesa. Pode tratar delas daqui a pouco. Por agora leia isto. - Arthur empurrou até Somerset o despacho que estivera a ler, enquanto este
puxava de um banco para se sentar.
Somerset agarrou no documento e leu-o rapidamente, com a expressão a assumir um franzir de cenho irritado enquanto o olhar percorria o texto. Olhou para cima ao
baixar a carta.
- Ele deve estar a brincar.
- Só se for às minhas custas - resmungou Arthur.
- Sir, isto é ridículo. Eles sentem o cheiro da vitória e depois pedem o impossível.
Arthur suspirou.
- Tem razão, é claro. É impossível. Temos praticamente vinte e cinco mil homens armados, e outros quinze, se contarmos com Beresford e os soldados portugueses. José
Bonaparte deverá ter cerca de um quarto de milhão de homens contra nós. É verdade que grande parte do inimigo está fechado em guarnições, mas mesmo assim é preciso
marchar até eles para os destruir, e qualquer cerco é sempre dispendioso. - Fez uma breve pausa. - Por falar em custos, parece que o tesouro de sua majestade se
recusou a enviar-me as quatrocentas mil libras que pedi para nos financiar as operações. Dizem-me que decidiram que as cento e vinte mil que já foram enviadas são
suficientes para o futuro previsível. Isso mal cobre as dívidas atuais.
- Pelo menos essas vão poder ser pagas em breve, sir - retorquiu Somerset, enquanto começava a abrir e a ler os despachos da manhã. - Assim que Cradock regresse
de Cádis.
Arthur aquiesceu. Cradock era um dos seus oficiais superiores, a quem fora confiado mais de cem mil libras de minério capturado que deveria ser convertido em moeda
portuguesa. Era esperado a qualquer momento, e assim que o dinheiro estivesse na arca do exército, Arthur poderia mais uma vez liderar os seus homens contra os franceses
e entrar em Espanha. A junta espanhola, o governo que se opunha ao regime de José Bonaparte em Madrid, oferecera-se para colaborar com os britânicos e Arthur deveria
aliar-se ao general Cuesta a ocidente da capital. O aliado britânico prometia fornecer grandes quantidades de alimentos e munições ao exército dos casacas-vermelhas
que marchariam em seu auxílio. O governo português prometera muito a Arthur e oferecera pouco, e ele receava que o mesmo se viesse a passar com os espanhóis.
Somerset pigarreou enquanto percorria uma longa lista de nomes numa folha de papel.
- Mais más notícias, sir. Pelo menos duas dezenas dos nossos oficiais pediram para serem destacados para o exército português.
Arthur sentiu um aperto no coração com a informação.
- Quantos já são?
Somerset fez uma breve pausa para pensar.
- Já devem ser mais de cem.
A escassez de suprimentos não era a única dificuldade enfrentada pelo exército, meditou Arthur, pesaroso. Os homens estavam com o moral elevado, apesar da frustração
de ver Soult a fugir quando chegaram à fronteira, mas o estado de espírito entre os oficiais era muito menos encorajador. Num exército em que as comissões eram compradas
e vendidas como qualquer outro bem, quem não tinha uma fortuna familiar, ou acesso a empréstimos avultados, estava habitualmente destinado a passar toda a carreira
como oficial subalterno. Assim sendo, pouco surpreendia que muitos deles pedissem transferência para o exército português, onde tinham a certeza de uma promoção
rápida e de melhor soldo. Beresford, encarregue do treino e da liderança do exército português, já fora promovido para marechal, sendo tecnicamente superior do próprio
Arthur. Era frustrante perder bons oficiais dessa forma, mas pelo menos iriam ajudar a melhorar o desempenho dos aliados da Grã-Bretanha. Além disso, Arthur não
era capaz de sentir rancor pelos infelizes oficiais sem posses para comprar uma melhor posição no exército britânico. Se pelo menos alguns dos seus subordinados
mais incompetentes pudessem ser levados a assumir as cores de Portugal a par dos outros, meditou brevemente Arthur.
Aquiesceu penosamente.
- Muito bem. Os requerimentos que sejam aprovados em meu nome. Depois envie um memorando ao Ministério da Guerra a informá-los das vagas relevantes nas nossas fileiras.
- Sim, meu general. - Somerset continuou a tratar da papelada daquela manhã até que fez uma pausa ao encontrar um pequeno maço de cartas endereçadas numa letra impecável.
Pigarreou e ergueu o maço. - Correspondência de Lady Wellesley, sir.
Arthur ergueu brevemente os olhos.
- Junte-a ao resto. Trato disso quando tiver tempo.
Somerset ficou em silêncio por um instante, como se pretendesse acrescentar mais algum comentário, e depois pousou o maço no tabuleiro de madeira reservado a papéis
de baixa prioridade. Arthur sentiu uma pontada de irritação com a censura implícita do ajudante de campo. Afinal de contas, tinha um exército para comandar, com
todos os deveres associados ao cargo. A esposa estava em Londres, numa casa confortável, rodeada de criados. No entanto, Kitty fazia questão de o arrastar para as
decisões sobre as questões mais mesquinhas da gestão doméstica. Embora considerasse divertidas as notícias dos amigos, da família e da sociedade, Arthur ficava consternado
quando Kitty se dedicava às questões mais abrangentes que lhe consumiam os pensamentos: como acabar com os serviços de uma criada difícil, ou incompetente, ou se
deveria decorar uma divisão, ou a mais recente opção quanto às escolas para os filhos, mesmo sendo estes pouco mais do que bebés. Apesar dos esforços delicados para
a encorajar a assumir as responsabilidades pelos assuntos familiares enquanto ele se encontrava ausente na campanha, até ao momento ela provara ter pouca fé na sua
capacidade de o fazer. No íntimo, isso enfurecia Arthur, tal como acontecia quando um dos oficiais não era capaz de mostrar a iniciativa inerente à patente e às
responsabilidades. Ocorreu-lhe que uma esposa e um subordinado talvez não fossem exatamente a mesma coisa, mas ignorou o assunto. Uma esposa tinha deveres, tal como
um homem, e devia ser avaliada pela competência que mostrava a cumpri-los.
Aceitava que o casamento com Kitty fora um erro. Contudo, o passo fora dado, embora por um sem-fim de motivos errados, salvo um: antes de partir para a Índia, tinha
dado a sua palavra de que se casaria com ela. Kitty esperara por ele e por isso Arthur casara-se, embora a aparência e o encanto da juventude há muito tivessem desaparecido.
Agora, sinceramente, estava satisfeito por se encontrar longe dela.
Ao afastar Kitty do pensamento, Arthur avistou movimento na outra margem do rio. Um pequeno comboio de carroças serpenteava por entre as oliveiras em direção à ponte
que cruzava o Tejo. Uma fina camada de poeira estava suspensa sobre os carros no seu percurso ruidoso ao longo da estrada grosseira. Dois esquadrões de cavalaria
escoltavam o comboio, um à frente e outro a guardar a retaguarda.
- Somerset.
- Sir?
- Está a ver aqueles carros, na outra margem, a aproximarem-se da ponte?
Somerset olhou na direção indicada.
- Sim, meu general.
- Vá lá abaixo e veja se é o Cradock. Se for, ele que venha imediatamente ter comigo.
- Sim, meu general. - Somerset pousou o documento que estava a ler, fez continência e dirigiu-se à zona dos cavalos, onde várias montadas aguardavam à sombra de
alguns cedros, a cauda a afugentar as moscas que zumbiam à volta deles numa nuvem constante. Soltou as rédeas e içou-se para a sela do cavalo mais próximo, levando-o
depois para o carreiro que descia até à ponte.
Enquanto esperava, Arthur puxou para si uma folha em branco e pegou numa pena. Fez uma pausa momentânea enquanto ordenava os argumentos necessários para tentar obter
mais dinheiro e homens do governo. Por mais que se esforçasse, Arthur não conseguia pensar numa forma nova de declarar o óbvio. Se os políticos em Londres pretendessem
realmente vencer a guerra, nesse caso teriam de fornecer os meios para o conseguir. Se não pretendessem, então tudo o que Arthur pudesse dizer não serviria de nada
para os demover do caminho para a derrota. Restava-lhe apenas expor os factos aos líderes políticos e confiar no bom senso deles. Com um suspiro profundo e fatigado,
abriu a tampa do tinteiro, mergulhou a pena e começou a escrever.
- Cradock! - Arthur ergueu o olhar quando Somerset regressou com outro oficial. Baixou a pena e levantou-se da cadeira, deixando a mesa para cumprimentar o recém-chegado.
A casaca curta e o bicorne de Cradock estavam cobertos de pó, que também se alojara nas rugas do rosto, fazendo-o parecer muito mais velho do que era. - É um prazer
vê-lo.
Cradock fez uma continência breve e sorriu.
- E a si, sir.
- Como foi a viagem? - perguntou Arthur, ao que abanou a cabeça, de forma apologética. - Por Deus, mas que falta de educação. Deve estar cheio de calor e de sede.
Somerset, vá ter com o estalajadeiro e ele que traga refrescos.
Somerset anuiu e afastou-se rapidamente. Arthur dirigiu a atenção a Cradock e baixou o tom de voz.
- Depois logo lhe pergunto pela viagem. Primeiro diga-me que conseguiu converter o ouro espanhol.
- Sim, meu general. Está guardado nas arcas do soldo nos carros. Embora tenha de admitir que cem mil em ouro não compram tanta moeda portuguesa como seria de esperar.
Arthur lançou-lhe um olhar duro.
- Explique-se.
- São os cambistas, sir. Sabiam o quanto precisávamos de dinheiro e cobraram uma comissão um pouco mais elevada do que estávamos à espera. Fiz o que pude para conseguir
o melhor negócio possível.
Arthur franziu o cenho.
- Raios os partam! Os espanhóis estão a tentar sobreviver e nós estamos a arriscar o pescoço para os tentar ajudar, e estes malditos banqueiros continuam a tentar
arrebatar cada centavo que lhes passa pelas mãos. Por Deus, às vezes esquecem-se de que lado estão.
Cradock abanou a cabeça.
- Infelizmente, meu general, é bem sabido que os banqueiros são uma nação à parte, e que se danem todos os outros.
- Grande verdade - replicou Arthur. - Seja como for, e não obstante a ganância dos banqueiros, pelo menos o exército pode voltar a avançar. - Acenou com a cabeça
na direção do rio, onde vinte ou trinta homens atiravam mancheias de água cintilante uns aos outros. - Vai ser bom para os homens lembrarem-se de que estamos aqui
para combater os franceses e não para brincar como crianças.
Cradock olhou com anelo para o rio.
- Tem razão, sir, mas também é verdade que eles fizeram por merecer este prazer.
- Talvez. - Arthur franziu os lábios. - Mas temos um longo caminho à nossa frente, Cradock.
Somerset saiu da estalagem, seguido por um adolescente que trazia um tabuleiro com velhos copos lascados e uma garrafa de vinho branco. Pousou-o na mesa, curvou
a cabeça e retirou-se.
Arthur fez sinal a Somerset.
- Faça as honras.
- Sim, meu general.
Somerset tirou a rolha e encheu cada copo até meio. Entregou um a Arthur e outro a Cradock. Arthur levantou o dele e sorriu.
- Cavalheiros, brindemos à morte dos franceses e ao fim da tirania!
- Isso! - concordou Cradock e os três oficiais beberam o vinho. Estava mais fresco do que Arthur esperara e imaginou que o proprietário tivesse uma adega profunda
por baixo da casa. Pousou o copo com uma pancada seca e dirigiu-se a Somerset.
- Muito bem, passe a palavra a todos os oficiais superiores. O exército deve preparar-se para marchar.
- Sim, meu general. - Somerset sorriu. - Se por acaso me perguntarem, posso saber em que direção o exército vai avançar?
- Ora, para Espanha, é claro. Em direção a Espanha, e à glória.
Capítulo 4
Os primeiros dias de junho trouxeram consigo um calor renovado que fustigou as colunas do exército britânico enquanto avançavam pela estrada poeirenta em direção
a Madrid. O ânimo que mantivera os soldados ao atravessarem a fronteira portuguesa em breve se desvaneceu, quando deram início à rotina exaustiva de acordar antes
da alvorada para levantar acampamento e começar a marcha do dia pelas horas mais frescas da manhã. A infantaria ia avançando, vergada sob a carga que cada um transportava
nas mochilas com estruturas de madeira. A cavalaria seguia oitocentos metros ao largo em cada flanco, o equipamento pessoal pendurado atrás da sela e redes de forragem
compactada atravessadas sobre a maçaneta. A alguma distância à frente do exército seguia dispersa a cavalaria ligeira, atenta a sinais do inimigo e aos batedores
do general Cuesta.
À medida que o Sol ia subindo acima da árida paisagem espanhola, o astro lançava um brilho quente avermelhado sobre os soldados britânicos e dotava de um tom flamejante
a poeira sufocante agitada pelas botas, pelas rodas e pelos cascos. Afastado da coluna principal juntamente com a sua pequena equipa pessoal, longe o suficiente
para não ser incomodado pelo pó, Arthur pensou, com um toque de divertimento, que qualquer inglês na pátria que de repente se visse transportado para Espanha não
reconheceria aqueles soldados como sendo compatriotas. A maior parte dos homens deixara crescer barba e as fardas estavam puídas e remendadas, as barretinas esmurradas
e profundamente deformadas. O tecido de lã vermelha com que normalmente os soldados britânicos se trajavam era quase desconhecido em Portugal e os homens tinham
de se valer do material reles local, que parecia só estar disponível em castanho. Depois dos primeiros meses de campanha, os remendos improvisados das fardas e a
acumulação de pó faziam com que o exército britânico parecesse estar vestido, acima de tudo, num castanho pardacento.
Ao final da manhã, o Sol atingia o auge e o brilho ofuscante parecia extirpar a cor da paisagem e criar um tremeluzir prateado no horizonte da planície que se estendia
à frente do exército. Era nessa altura que os homens mais sofriam com a sede, à medida que o pó lhes secava a garganta e lhes gretava os lábios. Conscientes da necessidade
de conservar a água naquele ermo árido, os sargentos e os oficiais observavam com atenção os seus homens, para garantir que não consumiam em excesso o líquido dos
cantis durante a marcha do dia.
Ao meio-dia, as tropas já tinham normalmente avançado mais de vinte quilómetros, estando prontas para fazer alto e montar o acampamento. Depois de os batalhões terem
recebido ordens para dispersar, os homens erguiam as tendas e os abrigos improvisados e descansavam à sombra até ao final da tarde, altura em que se aventuravam
mais uma vez ao ar livre, em busca de lenha para as fogueiras e para ver se os locais tinham comida ou bebida para vender. Arthur deixara bem claro a cada soldado
que não iria tolerar pilhagem. Se fosse apanhado em flagrante, o mínimo com que poderia contar seria flagelação pública.
Ao pôr-do-sol acendiam-se as primeiras fogueiras e os homens cozinhavam um guisado com as rações comuns e qualquer caça, ou carne fresca que conseguissem comprar,
sendo tudo adicionado ao grande caldeirão suspenso sobre as chamas. Depois de comerem, deixavam-se ficar sentados e conversavam. Alguns começavam a cantar, acompanhados
com violino, ou flauta, à medida que a escuridão envolvia o acampamento. Depois as fogueiras eram alimentadas e os homens viravam-se para as enxergas e acomodavam-se
para dormir. Quem tinha serviço de sentinela era acordado durante a noite, quando chegava a sua vez, enquanto os camaradas dormitavam, descansando até serem despertados
para dar mais uma vez início ao processo - a rotina intemporal de um exército em marcha.
Enquanto os britânicos avançavam ao longo das margens do Tejo em direção a Madrid, Arthur começou a preocupar-se com a falta de notícias do general Cuesta. Depois,
certo fim de dia, quando as tropas se instalaram para passar a noite a cerca de quinze quilómetros dos contrafortes da Sierra de Gredos, Somerset levou um oficial
espanhol à tenda de Arthur. Passando pelas abas da entrada, o ajudante de campo fez continência.
- Com a sua permissão, sir, está aqui fora um mensageiro do general Cuesta.
- Ah, finalmente! - Arthur anuiu. - Ele que entre, por favor.
Somerset afastou a aba e fez sinal ao oficial que aguardava. Momentos depois, um homem baixo e trigueiro entrou e ficou sob a luz do candeeiro pendurado no poste
central da tenda. Arthur e o espanhol entreolharam-se brevemente em silêncio. Arthur observou os olhos escuros e o bigode fino do indivíduo, e o trancelim elaborado
que praticamente lhe cobria o casaco verde e o chapéu com borlas.
- Seja bem-vindo, cavalheiro. - Arthur curvou a cabeça. - Sou o tenente-general Sir Arthur Wellesley. Tenho a honra de comandar as tropas de sua majestade na Península
Ibérica. - Fez um gesto na direção de Somerset. - Suponho que já conheceu o meu ajudante de campo.
O espanhol acenou brevemente com a cabeça, depois esticou a perna direita e descreveu uma vénia profunda, antes de se voltar a erguer e de falar num inglês fluente.
- Sou o general Juan O'Donoju, do Exército da Andaluzia.
Arthur ergueu uma sobrancelha.
- Por acaso disse O'Donohue?
O homem esboçou um sorriso.
- Era o nome dos meus antepassados, sir. Quando a família foi obrigada a deixar a Irlanda, assumimos uma forma espanhola do nome.
- Diabos me levem - resmungou Arthur, antes de se recompor. - Lamento, cavalheiro. Não esperava encontrar um irlandês como general no exército espanhol.
- Não me considero irlandês, Sir Arthur. Nasci em Sevilha e nunca pisei solo irlandês. Por isso, poderá ficar descansado, pois não guardo rancor quanto à forma vergonhosa
como os britânicos trataram os meus antepassados.
- O quê? - Arthur lançou-lhe um olhar gelado. - Ah, percebo. Ainda bem, uma vez que somos aliados.
- Assim o deseja o fado da guerra, sir. - O'Donoju voltou a exibir os dentes. - Por agora.
- Aaa, sim. - Arthur tossicou. - Pois muito bem, general. Imagino que tenha uma mensagem de Cuesta que me é dirigida.
- De sua excelência, o general Gregorio García de la Cuesta, sim - corrigiu O'Donoju com grande ênfase. Fez uma breve pausa, antes de prosseguir. - O general pediu-me
que lhe transmitisse o grande prazer que os seus bravos soldados terão ao lutar ao lado dos nossos aliados britânicos. Ele está certo de que juntos eliminaremos
os cobardes franceses que se escondem em Madrid. Antes do fim do verão, teremos alcançado uma vitória gloriosa que será um tributo eterno à aliança entre a Espanha
e a Grã-Bretanha. - O oficial espanhol fez uma breve pausa antes de concluir. - Sua excelência está deveras grato por saber que o novo aliado de Espanha o enviou
e aos seus homens para reforçar o nosso exército nesta campanha.
Arthur trocou um breve olhar com Somerset antes de responder.
- Receio que sua excelência esteja mal informada quanto ao meu objetivo presente. Tenho ordens para colaborar com as forças espanholas, e não propriamente para as
reforçar.
O'Donoju encolheu os ombros.
- É uma questão de formulação, sir. Sua excelência é o oficial superior e enviou-me para cumprimentar o seu novo subordinado.
Pelo canto do olho, Arthur viu Somerset a ficar hirto, mas conseguiu manter uma expressão neutra ao responder, num tom razoável:
- E eu, claro está, retribuo-lhe o cumprimento e anseio por trabalhar com ele para derrotar o nosso inimigo comum. Antes de alcançarmos esse objetivo, terei de conferenciar
com sua excelência, para determinarmos a nossa estratégia comum. Poderei indagar quanto à sua localização atual?
O'Donoju aquiesceu.
- Sua excelência informou-me de que se encontrará consigo no forte de Miravete, perto de Almaraz, no décimo dia de julho. Conhece o forte, sir?
Arthur pensou por um instante.
- Não me recordo de o ter visto nos nossos mapas.
- Fica a cerca de noventa quilómetros daqui - explicou O'Donoju. - Envio-lhe um guia depois de reportar a sua excelência.
- No dia dez de julho? - interveio Somerset. - É daqui a três dias. O exército não vai conseguir marchar essa distância nesse tempo.
O'Donoju encolheu os ombros.
- São as ordens de sua excelência.
Arthur pigarreou e lançou um rápido olhar de alerta a Somerset, para que refreasse a língua.
- Diga ao general Cuesta que lá estarei. Vou levar uma escolta pequena e seguir à frente do exército. O seu guia pode encontrar-se comigo na estrada e levar-me até
esse seu forte. Entretanto, ficaria grato se informasse o general...
- Sua excelência - atalhou O'Donoju. - É esse o título correto, sir.
- Com certeza. Por favor, informe sua excelência de que os meus homens precisam de fornecimentos de comida e munições, algo que nos foi prometido pela junta de Cádis.
Imagino que sua excelência terá tomado as providências necessárias a esse respeito.
- Naturalmente. A palavra de um cavalheiro espanhol é sagrada, sir.
- É um prazer ouvir tal coisa. Muito bem. - A voz de Arthur adotou um tom afável. - Depreendo que vá passar a noite connosco. Somerset pode acompanhá-lo à messe
dos oficiais e providenciar-lhe uma cama.
- Lamento, mas não poderei desfrutar da vossa hospitalidade, sir. Devo regressar de imediato.
- Às escuras?
- Conheço bem a estrada, sir. Serei capaz de evitar com facilidade quaisquer patrulhas inimigas.
- Como queira. Voltaremos a ver-nos dia dez.
Trocaram uma vénia, após o que O'Donoju deixou a tenda, sendo acompanhado ao cavalo por Somerset. Arthur chegou-se à frente na cadeira, cruzou as mãos como apoio
para o queixo e deixou-se fitar a parede de lona da tenda à frente da mesa de campanha. Tinha ordens para colaborar com os espanhóis, mas não foi capaz de reprimir
um certo grau de ansiedade ante a perspetiva de depender da promessa feita por eles de suprir o seu exército. Quando Somerset regressou à tenda, Arthur endireitou-se
no lugar e suspirou profundamente.
- O que lhe parece, este nosso amigo espanhol?
Somerset alinhavou rapidamente uma resposta ponderada.
- Parece ansioso por levar os combates até ao inimigo, sir.
- Talvez assim seja. - Arthur esfregou a testa. - O que é facto é que os nossos aliados espanhóis não conseguiram ainda grandes vitórias contra os franceses. O próprio
Cuesta foi bastante fustigado em Medellin, em abril. Bem, se juntarmos as nossas forças, devemos conseguir estar à altura do inimigo. Os últimos relatórios dizem
que as tropas do marechal Victor estão a defender os acessos a Madrid. Segundo consta, ele tem pouco mais de vinte mil homens. A ser verdade, se nos juntarmos a
Cuesta, ficaremos com uma superioridade numérica de dois para um. Isso deve chegar para nos garantir uma vitória contra Victor.
Somerset meneou a cabeça.
- Espero bem que sim, sir. Desde que o general Cuesta saiba o que está a fazer.
Arthur encolheu os ombros.
- Bem, só estarei em posição de o julgar quando conhecer o indivíduo. - Fez uma pausa. - Lamento. Queria dizer sua excelência.
Somerset riu-se por uns instantes antes de perguntar:
- Pretende aceitar a exigência de Cuesta de comandar as nossas forças combinadas?
Arthur arregalou os olhos.
- Deus do Céu, homem, mas será que perdeu o juízo? É claro que não. Temos um inimigo em comum, nada mais. Sou eu que comando este exército, nunca Cuesta. O facto
de nos encontrarmos aqui na Península Ibérica deve-se aos interesses britânicos na guerra. De momento será útil apoiar os espanhóis, mas não lhes passámos um cheque
em branco. Quanto a isso, pode ficar descansado.
- Sim, meu general. - Somerset pareceu ficar aliviado.
- Muito bem, a interrupção chegou ao fim. - Arthur apontou para a papelada espalhada em cima da mesa. - Vamos terminar o que temos a fazer e descansar um pouco.
Desconfio que nos fará muita falta nos dias que se avizinham.
Arthur permanecia na sela em silêncio. Atrás dele, os trinta cavaleiros da sua escolta fizeram alto, com ordens para não fazerem o mais pequeno som enquanto aguardavam
nas trevas pelo regresso do guia espanhol. Juntara-se às tropas nessa manhã. Depois de apresentar as credenciais do general O'Donoju, fora escoltado até à presença
de Arthur. O guia era um jovem camponês, vestido com um justilho grosseiro e camisa e calças imundas. Envergava um chapéu largo de palha e montava uma mula cercada
por uma nuvem rodopiante de insetos. O rapaz só falava meia dúzia de palavras em inglês e Arthur vira-se obrigado a chamar um dos oficiais com conhecimentos de castelhano
para servir de intérprete. Apesar de ter prometido ser capaz de levar Arthur até ao forte, o jovem perdera-se no lusco-fusco e o pequeno grupo fora levado por um
carreiro atrás do outro até às colinas, antes de regressar e percorrer novo caminho. O mapa que Arthur levara consigo era inútil, com poucos pormenores fidedignos
além do curso do rio e das vilas e aldeias que pontuavam a rota para Madrid.
Ouviu-se um súbito raspar no saibro do carreiro mais à frente e Arthur sentiu os músculos a ficarem tensos. A montada sentiu a alteração e ergueu a cabeça, de orelhas
a estremecer. O som fez-se ouvir mais uma vez, parou e depois uma voz baixa chamou das sombras:
- Inglês... Inglês, onde estar?
Arthur sentiu a tensão a deixar-lhe os músculos tão repentinamente como se tinha instalado.
- Aqui!
O guia estalou a língua e bateu com uma cana na anca da mula. Avançou um pouco e parou a curta distância de Arthur.
- Encontrar forte! Vir. Por aqui.
- Tem a certeza?
- Vir, vir.
Arthur levantou a mão para deter o guia e virou-se para a coluna.
- Tenente, ficaria muito agradecido se pudesse traduzir.
Quando o oficial dos dragões se aproximou, Arthur fez sinal com a cabeça na direção do guia.
- Pergunte-lhe se desta vez tem a certeza de ter encontrado o caminho certo.
Seguiu-se uma breve troca antes que o tenente se virasse para Arthur.
- Diz que sim. Também diz que o general Cuesta não está satisfeito por se ter atrasado para o encontro combinado.
- A sério? Se nos tivesse fornecido um guia adequado, em vez deste palerma, talvez já lá estivesse há muito tempo... Não, não traduza isso, seu idiota. Diga-lhe
apenas que nos leve ao forte sem mais delongas.
O jovem fez sinal a Arthur e virou a mula para o carreiro. Antes de perder o guia de vista, Arthur fez o cavalo iniciar a marcha. O caminho serpenteava entre duas
colinas e depois começava a subir uma inclinação íngreme. Daí a pouco, Arthur pôde ver um brilho no cimo da encosta e depois, quando o carreiro se tornou plano,
avistou as muralhas de um antigo forte à sua frente, bastante iluminado pelos archotes que tremeluziam nas ameias. Enquanto o guia os levava em direção ao portão,
Arthur viu que uma companhia de soldados se formara de ambos os lados do carreiro, os mosquetes apoiados no ombro enquanto aguardavam. Uma figura a cavalo observava
e esperava à frente do portão. O homem bradou uma ordem sobre o ombro e a agitação intensificou-se dentro do forte, com os homens a correr para assumir posições.
Arthur reconheceu o oficial como sendo o general O'Donoju e fez continência ao aproximar-se.
A espada de O'Donoju raspou na bainha e os soldados, que Arthur se apercebeu serem uma guarda de honra, avançaram um pé e apresentaram os mosquetes para receber
o general inglês.
Arthur fez uma breve vénia com a cabeça para ambos os lados e sorriu a O'Donoju.
- Muito lhe agradeço tal receção.
O espanhol encolheu os ombros.
- Há umas cinco horas que sua excelência deu ordens para o recebermos formalmente.
Arthur respirou fundo.
- Teria chegado há cinco horas se nos tivesse sido providenciado um guia que soubesse o caminho. - Arthur apontou para o rapaz, que exibiu um sorriso inseguro enquanto
os dois oficiais conversavam em inglês.
O'Donoju olhou para o jovem.
- Ele disse conhecer bem a zona. Mentiu e vai ser flagelado.
- Não há necessidade. A culpa é do homem que o contratou.
O espanhol ficou hirto com a indignação e depois respondeu:
- Irei castigar todos os que eu considerar responsáveis, señor. Agora, se fizer a gentileza de me seguir, vou levá-lo à presença de sua excelência.
Sem esperar por resposta, deu meia-volta à montada magra e atravessou a trote o portão do forte, enquanto Arthur deixou a escolta entre as fileiras de soldados espanhóis.
Observou-os com atenção à luz tremeluzente dos archotes na muralha. Pareciam estar bem treinados, mas tinham um ar magro e esfomeado, as fardas estavam puídas e
sujas, e os canos e baionetas de muitos mosquetes exibiam manchas de ferrugem.
Os cascos dos cavalos ecoaram nas paredes da entrada em arco e Arthur saiu para o pátio do forte. Em três lados da área pavimentada alinhavam-se soldados, com uma
abertura diretamente oposta ao portão, onde degraus subiam para a zona interior. À frente dos degraus reunia-se um grupo de oficiais de fardas garridas e, perante
estes, um oficial volumoso, com um grande excesso de peso, aguardava a cavalo. O casaco da farda parecia tão atulhado de decorações com joias, medalhas e cordão
dourado que Arthur se viu obrigado a interrogar-se como seria a montada capaz de suportar tal fardo. De cada lado do cavalo estava um homem, agarrando com firmeza
as botas do cavaleiro. Arthur percebeu que ali se encontravam para o manter no seu lugar e impedir que caísse da sela.
Alguém bradou uma ordem e os soldados ficaram em sentido e apresentaram os mosquetes. Um olhar rápido mostrou que aqueles homens se encontravam na mesma condição
lamentável que os que estavam do lado de fora do portão. Arthur gesticulou ao tenente para que a escolta fizesse alto e cruzou sozinho o pátio, detendo o cavalo
a pouca distância à frente do outro homem. O'Donoju dera a volta à montada e estava agora ao lado do comandante, pronto para servir de intérprete.
Arthur pigarreou.
- Sou Sir Arthur Wellesley, comandante do exército de sua majestade na Península Ibérica. Imagino que me esteja a dirigir a sua excelência, o general Cuesta?
O homem anuiu a cabeça pesada e falou brevemente:
- Sua excelência deseja saber porque se atrasou, Sir Arthur - disse O'Donoju.
- Sabe bem porquê, mas basta que diga a sua excelência que nos perdemos na escuridão.
Os lábios de Cuesta ergueram-se num sorriso escarninho enquanto falou com o intérprete.
- Sua excelência espera que não seja hábito orientar os seus homens na direção errada.
- Garanta-lhe que tal não voltará a acontecer e que espero que a partir de agora possamos levar os nossos homens na direção da vitória.
A resposta pareceu satisfazer o velho oficial, que Arthur imaginou dever estar pelo menos na casa dos sessenta anos de idade. Resmungou na direção de O'Donoju e
depois atirou uma ordem aos dois homens que o seguravam. Começaram de imediato a ajudá-lo a descer da sela com muito esforço, enquanto O'Donoju curvou a cabeça na
direção de Arthur.
- Sua excelência vai aguardar por si no gabinete dele, enquanto Sir Arthur vai ser apresentado ao estado-maior.
Arthur relanceou os olhos para a multidão de oficiais.
- O quê? A todos eles?
O'Donoju sorriu e fez sinal a Arthur para que se dirigisse ao primeiro dos homens à espera. Enquanto o general Cuesta era levado pelos degraus até à torre de menagem,
Arthur começou a trocar vénias com uma série de coronéis e generais, cada um dotado de uma longa lista de títulos e honrarias. Arthur aguentou mais um pouco, até
que se inclinou para O'Donoju e disse baixinho:
- Escute, uma vez que já é tarde e temos muito a discutir, será que podemos dispensar o título completo de cada homem e limitar-nos ao nome e à patente?
As sobrancelhas do espanhol uniram-se por um instante, antes de finalmente responder:
- Como desejar, sir. Vamos abandonar as cortesias habituais a bem da brevidade.
Arthur sorriu.
- Será um gesto bastante apreciado.
Assim que o derradeiro oficial foi apresentado, Arthur seguiu o anfitrião degraus acima, até à torre. Quando foram levados até ao gabinete do general Cuesta, Arthur
viu o comandante espanhol sentado num divã. À frente dele, aberto no chão e preso com garrafas de vinho, estava um mapa de Espanha. Um dos ordenanças de Cuesta trouxe
uma cadeira para Arthur, que se instalou no lado oposto do mapa. O'Donoju assumiu a sua posição ao lado do divã e traduziu o primeiro comentário de Cuesta.
- Sua excelência espera que tenha ficado impressionado com os soldados em parada no pátio. Representam o melhor batalhão do nosso exército.
- A sério? Deus do Céu... - Arthur obrigou-se rapidamente a sorrir. - Sem dúvida, há muito tempo que não via um pelotão de tamanha qualidade.
O comentário pareceu ser apreciado e Cuesta prosseguiu:
- Sua excelência deseja que una os seus soldados aos dele e que marchem diretamente sobre Madrid.
- Ah, sim, uma ambição louvável, mas por certo teremos de preparar o terreno com antecedência. Sugiro que antes sequer de podermos pensar nisso, será essencial eliminar
as forças inimigas dos acessos a Madrid, para o caso de sermos obrigados a retirar.
Cuesta abanou a cabeça.
- Sua excelência não concorda. Ele diz que temos de ser ousados e atacar o centro do inimigo. Ele diz que o coração dos nossos soldados arde com um fogo patriótico,
algo que só pode ser saciado com o sangue dos franceses.
- Entendo. Diga-lhe que admiro bastante o fervor patriótico demonstrado, mas esse fervor terá de ser equilibrado com a realidade da situação. As minhas fontes informam-me
de que o caminho para Madrid está protegido pelo marechal Victor e o seu exército. Seria assisado que o atacássemos enquanto estiver em inferioridade numérica em
relação às nossas forças combinadas, não acha?
Cuesta pensou um pouco e anuiu.
- Assim sendo, sugiro que nos juntemos em... - Arthur inclinou-se sobre o mapa e viu que carecia profundamente de pormenores. O Tejo estava assinalado, bem como
a estrada que o acompanhava, a par de mais algumas características topográficas. - Aqui. Em Oropesa, daqui a dez dias. Sua excelência será capaz de levar o exército
até lá pela data marcada?
- É claro. O exército espanhol marcha tão velozmente como qualquer outro.
- É um prazer ouvir isso. - Arthur reclinou-se na cadeira. - Ora bem, a junta em Cádis disse-me que sua excelência recebeu ordens para fornecer provisões aos meus
soldados.
Cuesta franziu o cenho à medida que as palavras iam sendo traduzidas.
- Sua excelência não é obrigada a acatar as ordens da junta - transmitiu O'Donoju. - Mesmo assim, ele providenciará tudo o que for necessário aos seus soldados.
- Fico muito grato. Será que ele poderá dizer-me onde e quando receberemos os suprimentos?
Cuesta levantou as mãos e encolheu os ombros ao responder a O'Donoju.
- Sua excelência diz que os elementos do estado-maior vão tratar do assunto. Assim que os fornecimentos estiverem preparados, ser-lhe-á enviada uma mensagem.
Arthur tufou as faces.
- Seria uma grande ajuda para a colaboração entre os nossos exércitos se me fosse transmitida uma data e uma altura concretas.
- Isso não é possível. Mas sua excelência diz que não terá de recear a fome. Ele dá-lhe a sua palavra de que as necessidades serão satisfeitas.
Arthur fitou Cuesta por um instante. O ouro do exército britânico estava quase esgotado. Numa questão de dias ver-se-ia obrigado a cortar as rações. Dali a uma semana
não haveria nada para comer. Estava dependente de Cuesta. O homem dera-lhe a sua palavra, e isso teria de bastar. Afinal de contas, o que teriam os espanhóis a ganhar
se fizessem os aliados passar fome?
- Muito bem. Vou avançar até Oropesa e encontro-me aí com sua excelência. Entretanto aguardo instruções quanto aos suprimentos prometidos. Se estamos entendidos,
receio ter de partir para me juntar aos meus homens. Não vale a pena desperdiçar tempo a chegar a Oropesa e à vitória subsequente.
Cuesta aquiesceu e estalou os dedos.
- Sua excelência vai fornecer-lhe um guia que o oriente e à sua escolta até à estrada principal.
Arthur levantou a mão.
- Diga-lhe que agradeço, mas seremos capazes de encontrar o caminho.
- Como desejar.
Arthur levantou-se da cadeira e fez uma vénia a Cuesta, que respondeu com um breve menear da cabeça, após o que deu meia-volta para deixar o gabinete e regressar
à escolta que o aguardava no exterior. Enquanto descia os degraus, Arthur olhou para os oficiais e para os soldados espanhóis à volta do pátio. Sentiu um mau presságio
ante a perspetiva de colaborar com aqueles aliados na campanha que se avizinhava, com o objetivo de encontrar e esmagar o marechal Victor.
Capítulo 5
Oropesa, 21 de julho de 1809
- Absolutamente nada! - protestou Arthur furiosamente com Somerset enquanto atirava ao chão o pingalim e se deixava cair na cadeira. - Nem uma carroça de suprimentos,
nem sequer um carro de mão. E nada de montadas frescas para a cavalaria, nem mulas de reserva para os nossos veículos.
Fechou os olhos e respirou fundo para acalmar a irritação que sentia. Os dois exércitos tinham-se encontrado na data marcada e Arthur cavalgara de imediato até ao
quartel-general espanhol para combinar a distribuição de fornecimentos aos seus soldados. Há dois dias que o exército estava a meia ração e Arthur estava determinado
a que marchassem de barriga cheia para a batalha contra o marechal Victor. Quando Arthur chegou, o general Cuesta e o estado-maior estavam a almoçar. Várias mesas
compridas tinham sido dispostas à sombra dos ramos de alguns carvalhos mediterrânicos. A mesa estava atulhada de borrego assado, pão acabado de cozer e garrafas
de vinho. Arthur foi levado até ao lado de Cuesta, sentado num grande banco almofadado, o queixo a trabalhar furiosamente enquanto se apressava a terminar a boca
cheia de carne. O general O'Donoju avistou o recém-chegado e levantou-se do banco, limpando a boca ao dirigir-se para servir de intérprete aos dois comandantes.
Arthur estava coberto de uma fina camada de pó da estrada e Cuesta apontou para a garrafa mais próxima enquanto falava.
- Sua excelência diz que deve estar com sede, depois da marcha deste dia. Convida-o a refrescar-se.
- Diga ao general Cuesta que agradeço a oferta e que tomarei uma bebida assim que ele confirme que os suprimentos que prometeu aos meus homens estão prontos para
serem recolhidos.
O'Donoju não traduziu o comentário, limitando-se a encolher os ombros.
- Não há suprimentos, sir.
- Não há suprimentos - repetiu Arthur, com um tom pesado. - Como pode isso ser? O general Cuesta deu-me a sua palavra de que as provisões estariam aqui. Onde estão
elas?
O'Donoju dirigiu-se ao comandante. Cuesta acenou as mãos num gesto desdenhoso, após o que espetou mais um pedaço de borrego com o garfo, que ergueu até à boca.
- Sua excelência diz que deu ordens aos administradores locais para que se reunissem suprimentos, mas que eles não cumpriram o combinado. Lamenta o facto e sugere
que se lhe entregar ouro suficiente, ele ordenará aos melhores oficiais do estado-maior que comprem tudo o que for necessário.
Arthur olhou à volta das mesas. Apesar dos trajes elegantes, os homens que via pareciam-lhe os últimos a quem confiaria o que restava do cofre do seu exército. Voltou-se
mais uma vez para O'Donoju e abanou a cabeça.
- Não. Não vou pagar por aquilo que me foi prometido pelo meu aliado. Se o general Cuesta quiser ter os britânicos como aliados, nesse caso terá de cumprir as obrigações
de um aliado. - Arthur prosseguiu, abarcando com um gesto a vastidão do vale do Tejo. - Este território é rico em campos agrícolas. Nos últimos dias marchámos por
campos de plantações e por pomares repletos de fruta. Há mais do que suficiente para alimentar o meu exército.
Cuesta mastigou lentamente a nova garfada de carne e depois respondeu.
- Sua excelência diz que se assim é, porque é que os seus soldados não se serviram de suprimentos por onde passaram?
- Porque não somos os franceses - retorquiu Arthur com tanta serenidade quanto conseguiu. - Se permitisse que os meus soldados se alimentassem à vontade nas vossas
terras, isso em breve representaria uma tensão profunda na aliança entre as nossas nações.
O'Donoju escutou a resposta do líder e dirigiu-se a Arthur.
- Sua excelência diz que se não se deram ao trabalho de se alimentar sozinhos, ele não vê necessidade de o fazer por vós.
- Não vou permitir que o meu exército seja visto como um bando de saqueadores. Seria melhor que o general Cuesta exigisse aos proprietários locais que entreguem
aquilo de que necessito. Pelo menos isso faria com que os locais não se virassem contra nós.
- Sir Arthur. - O'Donoju fez um gesto na direção dos oficiais em torno da mesa. - A maior parte destes homens são proprietários locais, ou pelo menos têm laços de
parentesco com eles. Não estariam dispostos a ofender os interesses da família.
Arthur sentiu-se a enfurecer perigosamente e fechou os olhos por um instante para se obrigar a permanecer calmo. Quando continuou, falou num tom baixo e duro:
- Diga-lhe que me espanta que estes homens possam agir de forma tão egoísta quando a nação está ameaçada pela tirania. Será que não existe honra entre os nobres
de Espanha?
O'Donoju estava prestes a traduzir, quando Arthur lhe segurou o braço.
- Não. Não vale a pena. Não serve de nada pôr em causa a integridade do general e do seu estado-maior. Só preciso de saber as últimas informações sobre o marechal
Victor.
- Victor está a menos de cinquenta quilómetros daqui - respondeu O'Donoju. - A pouca distância a leste da vila de Tavera. Assumiu uma posição defensiva atrás de
um dos afluentes do Tejo.
Arthur sentiu o coração acelerar.
- Dois dias de marcha. Já recebeu reforços?
- Não. A guarnição de Madrid continua na capital, ou pelo menos assim era, segundo as últimas informações.
- Nesse caso, Victor tem cerca de vinte mil soldados em campo. Eu tenho quase o mesmo. Qual é a vossa força atual?
- Vinte e oito mil soldados de infantaria e seis mil cavaleiros.
- Nesse caso, por Deus, já o temos! - Arthur sorriu. - É provável que os franceses não saibam que o meu exército se encontra aqui. Se conseguirmos atacar Victor
antes que ele possa retirar, ou antes de receber reforços, seremos capazes de o derrotar. Diga ao seu general que não há tempo a perder. Temos de partir para leste
assim que possível. Podemos atacá-lo em conjunto na manhã de vinte e três.
Cuesta ouviu a tradução e pensou por um instante, antes de anuir e de responder a O'Donoju.
- Está decidido. Atacaremos o marechal Victor daqui a dois dias. Sua excelência diz que se podem servir dos suprimentos franceses depois de a batalha ser ganha.
De regresso ao seu quartel-general, num pequeno celeiro nos arredores de Oropesa, Arthur abriu os olhos e dirigiu a atenção a Somerset. Explicou a intenção de atacar
o marechal Victor e pediu quaisquer mapas que apresentassem Talavera e os terrenos a leste da vila. Com o mapa aberto em cima da mesa de campanha, Arthur bateu com
o dedo na linha que marcava o curso do rio Alberche.
- Aqui. É aqui que ele está. É aqui que o vamos apanhar com os nossos amigos espanhóis. Quero a informação transmitida a todos os comandantes de brigada. Daremos
início ao combate com o inimigo daqui a dois dias. Estaremos em superioridade de quase três para um. Os homens que fiquem a saber que depois de capturarmos os suprimentos
do inimigo, vamos deixar de ser obrigados a apertar o cinto. Imagino que isso os deixe satisfeitos.
- Sim, meu general. - Somerset aquiesceu. - Desde que o marechal Victor mantenha a posição e não decida retirar.
- Porque haveria de o fazer? - Arthur sorriu. - Neste momento ele parte do princípio de que a oposição vem do general Cuesta. De certeza que Victor considera que
os seus vinte mil homens são mais do que suficientes para enfrentar os trinta de Cuesta. Vai agradecer uma batalha. Com um pouco de sorte, ele não faz ideia de que
juntámos as nossas forças às de Cuesta. Creio que o marechal Victor vai ter a maior surpresa da vida dele.
- Espero que tenha razão, sir - retorquiu Somerset. - Pois receio que se não ficarmos com os suprimentos de Victor, os nossos soldados podem morrer à fome antes
de verem Madrid.
Uma estreita fatia de Lua pairava no céu estrelado e, à luz ténue, Arthur observou as fileiras dos seus homens, visíveis como sendo as características mais uniformes
de uma paisagem composta por pouco mais do que sombras escuras. A única centelha de cor vinha do tremeluzir das fogueiras do acampamento do outro lado do rio Alberche,
que marcava os piquetes franceses. Arthur sentiu o coração encher-se de satisfação ao perceber que tinham conseguido aproximar-se do marechal Victor sem que este
tivesse noção do perigo. Talvez tivesse subestimado os aliados espanhóis, refletiu Arthur. Na sequência do encontro em Oropesa, os dois exércitos tinham avançado
em paralelo e feito um bom tempo na aproximação da posição inimiga. Com o cair da noite, Arthur levara os britânicos pelos últimos quilómetros até assumirem posição
no lado oposto ao flanco direito do inimigo. Ao mesmo tempo, o general Cuesta iria avançar em direção ao outro flanco e estabelecer o quartel-general numa pequena
estalagem em Salcidas. Os dois exércitos estariam em posição às duas da madrugada e Arthur concedera a Cuesta a honra de dar início ao ataque. Três tiros de canhão
seriam o sinal para a abertura das hostilidades.
Ouviu-se o matraquear de cascos quando Somerset chegou com o relatório.
- Os homens estão todos em posição, sir. Os canhões foram dispostos a cobrir os vaus. O general Hill manda os cumprimentos e diz que a Segunda Divisão está impaciente.
Arthur sorriu.
- Excelente. - Puxou do relógio, aproximou-o do rosto e semicerrou os olhos para distinguir os ponteiros. - Passa um pouco da meia-noite. Envie uma mensagem a Cuesta
e diga-lhe que estamos prontos e à espera do sinal. Ele que confirme que tem o exército em posição. Não quero que os nossos homens enfrentem sozinhos as forças do
marechal Victor.
- Sim, meu general.
- Ah, e diga-lhe que toda a Espanha irá regozijar-se com a vitória de hoje e que o nome de Cuesta será para sempre recordado no coração do seu povo.
Somerset deixou-se ficar em silêncio por um instante.
- Isso não será um pouco de vanglória, sir?
- É claro, mas valerá a pena se ajudar o velhote a entrar em ação.
- Sim, meu general. Enviarei de imediato a mensagem.
- Obrigado, Somerset.
Quando o ajudante de campo se afastou, Arthur voltou a observar as linhas dos seus soldados e mais uma vez recordou o terreno que vira ao fim da tarde, quando avançara
a cavalo com um casaco castanho simples e um chapéu de abas largas, para inspecionar os contornos das redondezas. Deixando a pequena escolta oculta numa pequena
plantação de oliveiras, aproximara-se da margem do rio e trotara descontraidamente até ao ponto onde se encontrava com o Tejo. As sentinelas francesas do outro lado
tinham-no visto, mas não prestaram grande atenção ao cavaleiro solitário. Assim que identificou a localização de alguns dos vaus, bem como a melhor forma de os abordar
sem ser detetado, Arthur regressou ao seu exército e desenvolveu o plano de ataque.
Agora, no ar fresco da noite, tudo estava calmo e silencioso. Era difícil acreditar que quase vinte mil soldados estavam prontos para lutar. Naquele momento estariam
com as suas companhias, os mosquetes descarregados a seu lado. Ninguém falava, pois tinham sido dadas ordens para que esperassem em silêncio absoluto, para não alertar
o inimigo da sua presença. Os cabos e os sargentos percorriam calmamente as fileiras, prontos a abordar quem quer que dissesse uma palavra que fosse. Algures, a
cavalaria estaria junto às montadas, e exceto o ocasional raspar de cascos e o leve relinchar, também eles aguardavam numa antecipação sossegada. Os artilheiros,
ainda cansados e suados do esforço de colocar as peças em posição de forma tão silenciosa quanto possível, empilhavam as munições perto dos canhões e carregavam
cuidadosamente a primeira salva. Para a maior parte dos soldados, a espera era intolerável, já que cada som e cada movimento nas sombras pareciam ameaçadores e afetava-lhes
os nervos. Apenas um punhado de veteranos fatalistas, e um pequeno número de soldados que tinham conseguido suprimir os nervos graças ao consumo discreto de álcool,
esperavam calmamente.
Quando Arthur voltou a confirmar o relógio, tinha passado meia hora. Estalou a língua e orientou o cavalo para o flanco direito, para onde avançou, fazendo uma pausa
a espaços para trocar cumprimentos breves com os oficiais e para lhes oferecer algumas palavras de encorajamento. Quando Arthur chegou ao fim da linha de combate,
ainda não havia sinal do ordenança que fora enviado em busca do general Cuesta. Deteve o cavalo e esforçou os olhos, na tentativa de avistar algum sinal de movimento
na direção de Salcidas, mas não havia luz suficiente para distinguir fosse o que fosse, além de pormenores vagos.
- Raios partam, onde está ele? - resmungou Arthur. - Será que o idiota se perdeu?
- Duvido, sir - replicou Somerset. - Escolhi um homem competente para entregar a mensagem. O alferes Davidson tinha a certeza de conhecer bem o terreno. - Fez uma
breve pausa. - É possível que o general Cuesta ainda não esteja em posição.
Arthur virou-se para o ajudante de campo.
- Por Deus, acho bem que esteja errado, Somerset. O general Cuesta teria de ser um perfeito idiota para desperdiçar uma oportunidade destas.
Ainda fez menção de continuar quando os dois homens ouviram o ressoar distante de cascos e se viraram para perscrutar a noite. Uma figura a cavalo emergiu das sombras.
- É nosso? - murmurou Somerset.
- Só temos uma maneira de descobrir - retorquiu Arthur. Pigarreou e chamou: - Quem vem lá faz alto. Quem é?
O outro cavaleiro deteve a montada e respondeu apressadamente: - Alferes Davidson, dos Dragões Ligeiros.
- Davidson, venha cá, homem! - respondeu Arthur.
O alferes incitou o cavalo em frente e momentos depois parou diante do comandante, a quem fez continência.
- Encontrou o Cuesta?
- Não, meu general. Procurei-o em Salcidas, mas não estava lá ninguém, nem sequer as patrulhas avançadas. Por isso andei um quilómetro ou dois pelo caminho que deveria
ter seguido, mas continuei sem encontrar sinais dele, sir. Foi quando decidi que era melhor vir dar a informação.
Arthur cerrou o maxilar com a frustração. Onde estaria o exército espanhol? Naquela altura já deveriam estar a postos para o ataque. Baixou a cabeça por um momento
e pensou. Mesmo que Cuesta continuasse a dirigir-se a Salcidas, não estaria pronto senão dali a pelo menos três horas. Isso implicaria atrasar o ataque até às quatro
da madrugada. Continuaria a ser escuro e teriam ainda a oportunidade de surpreender os homens do marechal Victor no acampamento. Arthur ergueu a cabeça.
- Davidson, quero que volte e tente encontrar Cuesta. Diga-lhe que decidi atrasar o ataque até às quatro. Ainda tem de dar o sinal combinado. Ele que perceba que
se pretendemos ter êxito, terá de agir com alguma urgência.
- Sim, meu general. - Davidson aquiesceu.
- Vá-se lá embora.
Davidson deu meia-volta à montada e seguiu a trote à procura do exército espanhol.
Somerset deixou escapar um suspiro abatido.
- Os nossos amigos espanhóis estão a revelar-se pouco dignos de confiança, sir.
- Com efeito. - Arthur estava furioso e precisou de algum esforço para manter o tom neutro quando prosseguiu: - Há alturas em que penso que talvez representem um
maior perigo do que os franceses. Seja como for, somos aquilo que somos, Somerset. Temos de regressar aos batalhões e dizer que fiquem à vontade durante algumas
horas. Preciso deles alerta e frescos para quando os confrontos tiverem início.
Regressaram ao flanco do exército e os piquetes detiveram-nos antes de poderem passar e chegar ao posto de comando atrás do centro das linhas britânicas. Quando
chegaram, um oficial correu a juntar-se a Arthur, a quem fez continência.
- Temos visitas, sir. O general O'Donoju e alguns elementos do estado-maior estão à sua espera, na tenda do quartel-general.
Arthur virou-se e olhou para o outeiro na pequena depressão, onde um punhado de candeeiros tremeluzia, longe da vista dos franceses.
- Ele explicou o motivo para a presença?
- Não, meu general. Perguntei-lhe, mas ele respondeu que a mensagem era para o meu general, e não para os subordinados.
- Ele disse tal coisa? - Arthur abanou a cabeça. - Venha, Somerset.
Prosseguiram encosta abaixo até à tenda e desmontaram ao lado dos cavalos espanhóis, a cargo de alguns dos ordenanças de Arthur. O'Donoju aguardava no interior,
com quatro oficiais. Levantou-se quando viu Arthur e curvou a cabeça.
- É um prazer voltar a vê-lo, general Wellesley.
- Onde está Cuesta? - atalhou Arthur. - Há horas que devia estar em Salcidas.
O'Donoju franziu o cenho ante o uso informal do nome do superior.
- Sua excelência enviou-me para que o informasse de que foi atrasado.
- Atrasado? Porquê?
O espanhol encolheu os ombros.
- Os homens demoraram a levantar acampamento. A noite está escura e eles não marcham tão depressa como durante o dia.
- Nesse caso, porque é que o seu general não teve isso em consideração e deu início à caminhada mais cedo?
- Não me atrevo a imaginar o que possa ir na mente do meu comandante, sir.
Arthur tufou as faces com irritação.
- Onde está ele neste momento?
- Talvez a uns cinco quilómetros a leste de Salcidas. Sua excelência diz que estará em posição de ataque pelas seis da madrugada.
- Nessa altura já terá raiado a alvorada. Os franceses vão ter noção da nossa presença e teremos perdido qualquer elemento de surpresa.
- Talvez, sir - contrapôs O'Donoju. - Mesmo assim, podemos continuar com o ataque. Afinal de contas, as probabilidades estão absolutamente a nosso favor.
Arthur pensou por um instante. O espanhol tinha razão. Desde que Victor não reagisse prontamente e levantasse acampamento antes do início do ataque, seria obrigado
a lutar.
- Muito bem. O general Cuesta terá de dar início ao ataque às seis. Nem mais um minuto. Estamos entendidos?
O'Donoju susteve o olhar de Arthur numa espécie de desafio.
- Se for esse o desejo de sua excelência, sim. Agora despeço-me, sir. Tenho de regressar ao exército com os meus oficiais.
- Sim, pois tem, o mais depressa possível. Não pode haver mais atrasos.
O resto da noite passou lentamente e quando o Sol se fez ver no horizonte oriental, num brilho de um alaranjado pálido, Arthur deu ordem para que o exército se preparasse.
Ao longo das fileiras, os soldados levantaram-se com dificuldade e espreguiçaram os músculos antes de começarem a formar alas. À medida que a luz foi ficando mais
forte, as sentinelas francesas do outro lado avistaram as fileiras alinhadas do exército britânico e de imediato dispararam uma salva de canhão para alertar o acampamento
principal.
- Lá se vai a nossa surpresa - comentou Somerset com amargura.
- Quanto a isso, não há nada a fazer - replicou Arthur. - Temos de esperar que Cuesta dê início ao ataque antes que Victor consiga levantar acampamento.
- Meu general, o que nos impede de abrir as hostilidades por nossa conta?
Arthur virou-se para o ajudante de campo.
- Meu caro Somerset, se atacarmos com um rio de entremeio contra posições defensivas sem apoio, vamos sofrer bastante. A ponto de duvidar que pudéssemos continuar
com operações ofensivas em Espanha. Seria obrigado a recuar e, se fôssemos perseguidos, atrevo-me a aventar que teríamos de repetir a fuga do general Moore para
a Corunha. A Inglaterra só pode aguentar um certo número de derrotas até ser obrigada a vergar-se perante Bonaparte. - Fez uma pausa, para que as palavras surtissem
o seu efeito. - Temos de esperar por Cuesta.
Agora, até os minutos pareciam arrastar-se e quando os primeiros raios brilhantes do Sol despontaram no horizonte a leste, os primeiros batalhões franceses marcharam
apressadamente para cobrir os vaus, a par de várias peças de artilharia. A oportunidade de atacar estava a desaparecer rapidamente e Arthur obrigou-se a permanecer
sossegado na sela, à escuta do primeiro som de canhão que marcaria o ataque de Cuesta. Pelo canto do olho viu Somerset a puxar discretamente do relógio de bolso,
a olhar para ele com uma sobrancelha erguida, e depois voltar a guardá-lo no colete.
- Já agora pode dizer-me as horas - resmungou Arthur.
- Passam dez minutos das seis, sir.
Ambos os homens permaneceram imóveis por um momento, após o que Arthur pegou nas rédeas e deu lentamente meia-volta ao cavalo.
- O exército não se mexe até eu regressar. Se o inimigo abrir fogo, os nossos homens que recuem para lugar seguro e deixem que os canhões deles continuem com o trabalho.
Entendido?
- Sim, meu general. Posso perguntar onde vai?
- À procura do Cuesta. Chegou a altura de falar sinceramente com sua excelência.
Quando Arthur o encontrou, perto de Salcidas, o general Cuesta tomava o pequeno-almoço numa grande carruagem aberta. As unidades avançadas do exército espanhol tinham
pousado a equipagem e alguns já se ocupavam a percorrer a província circundante, em busca da refeição do dia. As colunas seguintes continuavam espalhadas pela estrada,
envoltas no pó a ser levantado mais à frente. Arthur perdeu mais um instante a observar a cena com uma fúria gelada, antes de se aproximar de Cuesta. O comandante
espanhol mirou-o, agastado. Baixou brevemente a cabeça à laia de cumprimento e chamou O'Donoju.
Arthur levou a mão à aba do chapéu.
- Bom-dia, general. Ou pelo menos teria sido, caso o combate se tivesse iniciado. Segundo creio, deveríamos ter atacado às duas da madrugada. Onde estava?
Cuesta encolheu os ombros e depois fez um comentário rápido ao tradutor.
- Sua excelência diz que pediu o impossível aos soldados. A distância era demasiado grande para ser percorrida na escuridão. O seu plano falhou.
- Não obstante, o meu exército está em posição desde a meia-noite. Depois de ter passado a noite a marchar para ocupar a posição combinada. Se os meus homens foram
capazes de o fazer, porque é que os vossos soldados não? A culpa não foi do plano.
O general Cuesta lançou-se para a frente quando os comentários de Arthur lhe foram transmitidos. Apontou um dedo carnudo na direção de Arthur e deu início a uma
tirada furiosa que O'Donoju teve dificuldade em acompanhar.
- Sua excelência diz que está farto das exigências que lhe faz e ao exército dele... Quem julga que é para lhe ordenar que vos entregue alimento? Para lhe dizer
onde e quando deve travar as batalhas? Os ingleses são tão arrogantes quanto imaginava. Não vai suportar isto mais tempo.
- Basta! - Arthur levantou a mão. Endireitou-se totalmente na sela e meneou ao de leve a cabeça para mirar Cuesta à frente do nariz antes de prosseguir. - Agradeço
que diga ao general Cuesta que nunca ouvi falar de uma situação em que um aliado tivesse sido tão maltratado. Deu-me a sua palavra de que o meu exército receberia
suprimentos e, no entanto, os meus homens são obrigados a marchar a meia ração graças às promessas quebradas. E agora não percebeu a oportunidade que teve de desferir
um golpe humilhante contra o inimigo. Ouça-me bem, O'Donoju. Assim que o marechal Victor se aperceba de que está em inferioridade numérica, vai recuar. Digo-lhe
já que os meus homens não avançam nem mais um passo em direção a Madrid até que cumpra a sua palavra e me entregue os suprimentos que me foram prometidos. Mais ainda,
não irei continuar com a colaboração militar até que o general Cuesta me entregue o comando geral.
A boca de Cuesta foi-se abrindo à medida que O'Donoju traduzia. Depois, as sobrancelhas espessas uniram-se e a expressão ficou carregada. Quando ouviu o derradeiro
comentário de Arthur, apresentou a sua resposta num tom de inconfundível fúria.
- Sua excelência diz que pode apodrecer aí com os seus soldados. Porque deveria alimentá-los? São parasitas. O Exército da Extremadura não precisa de vós. Podemos
derrotar os franceses sozinhos. Enquanto aqui fica, sua excelência vai perseguir sozinho o marechal Victor. A glória será dele e vós ficareis a chafurdar na lama
da vergonha.
Assim que o espanhol acabou, Arthur aquiesceu.
- Parece que nada mais há a dizer. Vou regressar aos meus homens e espero pelo pedido de desculpas do seu general no meu quartel-general.
Arthur estalou a língua e deu meia-volta ao cavalo, antes de avançar a trote, ansioso por deixar a presença do general Cuesta. Seria de uma imprudência profunda
se Cuesta agisse sem apoio. Só um louco poderia contemplar tal modo de ação, ponderou Arthur com amargura. Dissera o que tinha a dizer. Com um pouco de sorte haveria
homens ajuizados suficientes entre os oficiais do estado-maior do general que o convencessem da tolice que seria avançar sozinho. Caso contrário, o desastre avizinhava-se
e Arthur receava nada poder fazer para o evitar.
Capítulo 6
Talavera, 27 de julho de 1809
Arthur observou a longa coluna de soldados espanhóis a arrastar-se vila adentro. Muitos estavam feridos e o sangue surgia por entre as ligaduras e os pensos aplicados
à pressa. Centenas não traziam armas, que tinham sido descartadas ao fugirem pela estrada que vinha de Madrid. Não havia ordem, com os soldados de batalhões diferentes
a fundir-se numa única fileira populosa que fugia do exército francês que os perseguia. Um punhado de peças de artilharia tinha sido salvo e acompanhava a coluna,
com um esquadrão de hussardos de casacas azuis a abrir caminho à frente. Apenas se via uma mancheia de oficiais superiores a marchar com os seus homens. Os restantes
tinham acompanhado o general Cuesta, que na carruagem puxada por mulas liderara a fuga até às margens do Alberche, onde decidira reunir os homens e resistir.
- Não é bonito de se ver, pois não?
Somerset abanou a cabeça.
- Um exército derrotado nunca é bonito, sir. O pior de tudo é que se poderia ter evitado a situação.
- É verdade - assentiu Arthur, sinceramente.
Depois de não ter conseguido empreender um ataque coordenado contra o marechal Victor, há seis dias, o general Cuesta esperara três dias antes de continuar a avançar
sozinho para tentar cansar os franceses. O resultado já era previsível, meditou Arthur. A guarnição de Madrid avançara para se juntar a Victor e os franceses tinham
atacado Cuesta e desbaratado o exército, fazendo-o recuar em confusão. A crise quase se transformara num desastre absoluto quando o comandante espanhol ordenara
aos seus homens que dessem meia-volta e combatessem com um rio pelas costas. Ao saber disso, Arthur galopara desde o acampamento britânico nos arredores de Talavera
para convencer Cuesta a recuar para uma posição menos arriscada. O velho general, ainda ofendido com a troca anterior, começara por se recusar a ouvir. Receando
que a teimosia de Cuesta viesse a permitir que os franceses destruíssem ambos os exércitos à vez, Arthur engolira o orgulho e implorara a Cuesta que reconsiderasse.
Cuesta sorrira com desprezo ao dar a sua resposta através de O'Donoju.
- De joelhos, Sir Arthur.
Arthur não conseguiu ocultar o espanto.
- O quê?
- Sua excelência quer que lhe implore de joelhos. Já o humilhou bastante ao recusar-se a aceitar as ordens dele. Agora quer vê-lo a si humilhado.
Ao início, Arthur ficou demasiado surpreendido para reagir. Decerto aquele homem devia ser louco. Com o exército prestes a sofrer a derrota certa se ficasse onde
estava, e um poderoso exército francês a escassas horas de distância, Cuesta desperdiçava tempo a ajustar contas por uma questão tão mesquinha. Pela primeira vez,
Arthur apercebeu-se da extensão da vaidade, egoísmo e arrogância daquele homem. Se Arthur se recusasse a fazer o que o espanhol lhe exigia, milhares de homens iriam
morrer desnecessariamente, e o exército britânico ficaria exposto no centro de Espanha, quase sem suprimentos que os mantivessem na fuga de regresso a Portugal.
Engoliu o desprezo pelo general espanhol. O que interessava se sofresse um instante de humilhação, caso isso salvasse os soldados de dois exércitos?
Engoliu em seco com amargura e deixou-se cair sobre um joelho enquanto fitava os olhos zombadores de Cuesta e falava com um tom firme.
- Diga a sua excelência que lhe imploro que recue para defender Talavera com o meu exército.
A recordação daquele momento ficou gravada na alma de Arthur. Apenas era em parte vergonha; o resto era fúria e repulsa pelo aliado. Todavia, pelo menos a humilhação
ganhara tempo para os soldados dos exércitos espanhol e britânico, enquanto se preparavam para dar meia-volta e enfrentar os franceses.
Arthur escolhera cuidadosamente o terreno. Entre o Tejo e as colinas íngremes da Sierra de Segurilla estendia-se uma planície acidentada. Perto das colinas havia
duas cumeadas largas que criavam um vale estreito na zona mais distante, antes de voltar a subir até aos montes. Um pequeno ribeiro, chamado Portina, descia das
colinas pela planície até ao Tejo e formava uma linha natural para o exército conjunto. Com os flancos protegidos pelo Tejo e pelos montes, aos aliados bastava manter
a posição.
Consciente do tratamento sofrido recentemente pelos espanhóis, Arthur deixara a zona direita da linha para Cuesta. Aí, os espanhóis estariam protegidos por uma série
de valas e muros que se prolongavam vindos da vila. Outras fortificações, na forma de barricadas, ou de árvores derrubadas, tinham sido construídas pelas tropas
britânicas. As defesas eram resistentes quanto bastasse para deter o inimigo, podendo, por isso mesmo, ser confiadas aos soldados abalados de Cuesta. Isso deixava
a parte mais exposta da linha para os britânicos.
Assim que teve a certeza de que os espanhóis estavam a ocupar as posições que lhes tinham sido destinadas, Arthur fez sinal a Somerset para que o seguisse. Avançaram
a trote pela planície até à pequena força que fora enviada em direção ao rio Alberche para cobrir a retirada dos espanhóis. As torres gémeas de um antigo solar fortificado
erguiam-se acima das oliveiras e dos pequenos carvalhos que cresciam ao longo da margem mais próxima do Alberche. Arthur seguiu a estrada que percorria as árvores
até ao edifício. Passou por uma das brigadas espalhadas pelas árvores e cumprimentou rapidamente o comandante, o general Mackenzie, quando o viu numa clareira. Ao
chegarem ao solar, Arthur viu uma série de homens a descansar encostados às paredes, com os mosquetes empilhados, enquanto conversavam descontraidamente. Espalhados
pelas árvores viam-se mais homens. Os que se encontravam mais perto da entrada do solar levantaram-se rapidamente e puseram-se em sentido assim que viram o general
e o ajudante de campo a aproximar-se. Arthur desmontou e entrou.
O solar fora construído em torno de um pátio, e sentado na beira de um pequeno tanque, para onde escorria uma fonte, estava o oficial encarregue de vigiar o percurso
em torno das oliveiras circundantes.
- Bom-dia, Donkin - cumprimentou Arthur enquanto se aproximava. - Como vai?
O major Donkin endireitou-se e sacudiu as migalhas de uma empada que lhe estava a servir de pequeno-almoço.
- Está tudo bem, sir. Ainda não há sinais dos franceses, mas os meus rapazes vão pô-los a mexer assim que aparecerem.
- É bom saber disso. - Arthur apontou para a torre mais próxima. - Venha, vamos ver o que está a acontecer.
Donkin enfiou o último pedaço de empada na boca e seguiu Arthur por uma escadaria estreita que subia no interior da torre, enquanto ia mastigando furiosamente. No
cimo saíram por uma abertura estreita para uma divisão quadrada com arcadas de todos os lados, que permitiam um bom panorama sobre as oliveiras. Um quilómetro a
oeste, Arthur avistou o percurso estreito do rio Alberche, e na margem mais afastada viam-se algumas nuvens em voluta de fumo, onde várias construções estavam a
arder. O fumo dificultava a visão do rio nesse ponto, e Arthur olhou mais para sul, para onde a estrada de Madrid cruzava uma ponte. Nuvens de poeira indicavam o
local onde as principais colunas francesas se aproximavam do rio e, com um aperto ansioso no estômago, Arthur calculou que o inimigo deveria ter cerca de cinquenta
mil homens.
Apontou para os edifícios em chamas.
- O que aconteceu ali?
- Os homens de Mackenzie incendiaram as casas antes de recuarem pela minha linha.
- Porquê?
- Para evitar que os franceses as usassem como redutos, sir.
- E qual o objetivo disso? - censurou Arthur, com severidade. - A nossa linha fica a mais de três quilómetros do Alberche. Tudo o que ele conseguiu foi privar os
locais das suas casas, e isso é algo que duvido nos venham a agradecer.
- Pois não, sir, imagino que não.
De repente, Arthur teve noção de movimento através do fumo distante. Uma coluna de soldados inimigos descia pela margem até ao rio, onde atravessaram e se perderam
nas árvores. Dirigiu-se a Donkin.
- É melhor que os seus homens fiquem a postos. Não tarda muito, os franceses vão chegar aos piquetes.
- Piquetes? - Donkin franziu o cenho e depois pareceu alarmado.
- Deus do Céu, homem, de certeza que os mandou fazer.
- Pois, não, sir. Quero dizer, ainda não.
Arthur lançou um olhar gelado ao major e estava prestes a admoestá-lo pela desatenção irrefletida para com as suas obrigações quando se ouviu um grito abaixo da
torre, seguido, momentos depois, pelo disparo de um mosquete entre as árvores. Alguns dos homens de Donkin puseram-se de pé de um salto e espreitaram para as oliveiras
mais próximas. Ao seguir a direção do olhar dos soldados, Arthur viu figuras de casaca azul a passar rapidamente por entre as árvores. Levou a mão em concha à boca,
inclinou-se sobre o parapeito e bradou aos homens de Donkin:
- Às armas! Às armas! O inimigo está aqui!
Ouviram-se mais disparos e Arthur viu línguas de chamas e bolas de fumo em três lados do solar. Um dos soldados britânicos lá em baixo curvou-se sobre si próprio
e tombou ao chão com um gemido rouco. Os casacas-vermelhas mais rápidos corriam para os mosquetes empilhados, mas vários foram atingidos antes de conseguirem chegar
às armas. Ouviu-se um estampido e logo abaixo do parapeito o estuque saltou da parede da torre.
- Raios partam! - Arthur recuou. - Estamos em maus lençóis, Donkin.
- Sim, meu general.
Sem dizer mais nada, Arthur desceu a escada a correr, com o som das botas a ecoar nas paredes grossas. Chegado ao fundo, correu pelo pátio e saiu à entrada principal.
Ao nível do solo, a situação parecia ainda mais desesperada. Soldados avançados franceses surgiam das árvores, abatendo os homens de Donkin que não tinham oportunidade
de formar fileiras, nem de procurar os oficiais, em busca de ordens. A maioria deitara-se e quem não tinha armas encolhia-se com expressões receosas, à medida que
o inimigo se aproximava.
- Meu general! - Somerset agarrara as rédeas da montada de Arthur e cavalgava em direção ao comandante, mantendo-se curvado sobre a sela.
Arthur olhou em seu redor.
- Donkin, tire daqui os seus homens imediatamente. Regresse à nossa linha o melhor que puder.
- Sim, meu general! - Donkin anuiu, agachou-se e segurou o chapéu contra a cabeça, como se isso evitasse que fosse derrubado com um tiro. Não havia tempo para dizer
mais nada e Arthur correu em direção a Somerset. Ao ver um alvo de luxo, os soldados avançados franceses mais próximos apontaram e dispararam. Uma bala sibilou junto
à cabeça de Arthur e outra arrancou terra um metro à frente dele. Assim que chegou ao cavalo, enfiou a bota no estribo e içou-se para a sela com um ronco, aceitando
as rédeas do ajudante de campo.
- Saia daqui, sir! - gritou Somerset, puxando uma das pistolas do coldre da sela. Baixou o olhar para garantir que o percutor estava no seu lugar e puxou o cão.
Arthur bateu com as esporas no cavalo e deu meia-volta, acelerando para um galope pela estrada que atravessava as árvores. Ao olhar para trás, viu Somerset estabilizar
o cavalo, erguer a pistola e apontar. Houve um clarão e uma detonação surda, e depois Somerset voltou a guardar a arma no coldre e galopou em perseguição do general.
Atrás deles, o major Donkin vociferava ordens aos soldados, para que se juntassem a ele e se dirigissem à estrada.
Mantendo a cabeça baixa, Arthur ergueu-se na sela enquanto o cavalo estrondeava pelo carreiro seco. O som dos tiros foi-se desvanecendo, mas Arthur continuou a cavalgar
o mais depressa que a montada conseguia. Depois, a oitocentos metros do solar, deparou-se com o primeiro dos piquetes de Mackenzie à beira da estrada e puxou as
rédeas.
- Atenção! O inimigo vem aí. Cuidado para não dispararem sobre os homens de Donkin!
Um sargento aquiesceu e fez continência, voltando-se depois para transmitir a ordem. Arthur acenou a Somerset e os dois prosseguiram a um ritmo menos desesperado
até chegarem à clareira onde Mackenzie continuava sentado com alguns dos seus oficiais. Arthur parou e apontou para a estrada.
- Os franceses surpreenderam os homens de Donkin! A sua brigada que forme de imediato. Temos de os deter aqui, caso contrário vão continuar a avançar até à nossa
linha principal. Tem de os rechaçar antes de se juntar ao exército.
- Sim, meu general! - Mackenzie levantou-se de imediato, bradando as suas ordens. Enquanto eram repetidas, Arthur viu figuras a sair de trás dos ramos baixos das
oliveiras e a assumir as posições em cada companhia. Os sargentos percorreram cada fileira, alinhando soldados e atirando ameaças a quem se demorava a juntar aos
camaradas já em formação. Os homens da brigada de Mackenzie ficaram prontos em cinco minutos, observando as árvores à sua frente, em busca de sinais dos franceses.
Arthur dirigiu-se a trote até ao lado de Mackenzie.
- Garanta que os seus homens só disparam quando tiverem a certeza de que estão a ver o inimigo. O Donkin e o que lhe resta dos soldados vão aparecer primeiro.
- Sim, meu general. - Mackenzie informou apressadamente dois oficiais e enviou-os para cada lado da linha para transmitir as ordens. Não foi preciso esperar muito.
O estampido irregular dos mosquetes aproximou-se rapidamente e viram-se os primeiros soldados britânicos, alguns a ajudar os camaradas feridos, enquanto outros disparavam
os mosquetes, ficando para trás para se abrigarem nas árvores, onde recarregavam e voltavam a disparar contra os perseguidores. Os primeiros soldados avançados franceses
surgiram em breve, cruzando o fumo da pólvora iluminado pelos raios de Sol, que pairava no ar sossegado entre as oliveiras. Quando o último dos homens de Donkin
passou pelas aberturas na formação, Mackenzie bradou a ordem:
- Apresentar armas! Preparar para disparar!
Ouviu-se um arrastar abafado quando os homens ergueram os mosquetes e esperaram pela ordem seguinte.
- Engatilhar armas!
Um estrépito percorreu a formação enquanto os homens puxavam atrás os cães dos mosquetes carregados.
- Apontar!
Os canos ergueram-se com os soldados a apontá-los na direção dos inimigos, que tinham parado e agora estremeciam ao se confrontarem com a primeira salva.
- Fogo!
A ordem fundiu-se com os disparos de cada companhia ao longo da linha britânica. Uma nuvem densa de fumo preencheu de imediato o ar por baixo das árvores. Do seu
ponto de vista mais elevado, em cima da sela, Arthur viu a saraivada de chumbo a fustigar as fileiras francesas, abatendo uma vintena de soldados e deixando outros
a cambalear, enquanto folhas, ramos e casca explodiam nas árvores.
- Recarregar! - bradou Mackenzie. - Disparar por companhias!
Os franceses abalados dispararam alguns tiros apressados antes que a segunda salva britânica encontrasse os seus alvos, dando depois Mackenzie ordem para instalar
as baionetas. Ouviu-se um estrépito breve quando os homens enfiaram as baionetas na ponta dos mosquetes e as giraram para as prender.
- Avançar!
A linha britânica seguiu em frente até ao fumo da pólvora que se dissipava lentamente e os soldados transformaram-se em figuras espetrais nas sombras, até que saíram
do lado oposto, a meros vinte passos dos franceses mais próximos. O rosto sombrio dos casacas-vermelhas e o brilho mortífero das baionetas foram quanto bastou para
que uma onda de terror mortal percorresse as alas inimigas; os primeiros recuaram, depois viraram-se e fugiram, apesar dos encorajamentos e das ameaças vociferadas
pelos oficiais e pelos sargentos.
Satisfeito por Mackenzie ter o controlo da situação, Arthur suspirou de alívio e anuiu de satisfação.
- Por agora basta. Vamos, Somerset.
Deram meia-volta e cavalgaram pelo carreiro, por entre os pomares e até campo aberto. À sua frente, os exércitos aliados estavam praticamente formados entre o Tejo
e as colinas, e Arthur ficou chocado com a linha britânica alongada, com apenas dois homens de profundidade, que estava pronta a manter-se firme contra os franceses,
sem o apoio das defesas da zona do campo que fora entregue aos homens de Cuesta. Arthur não tinha dúvidas do local contra o qual seria lançado o grosso do ataque
francês. Deixando uma pequena força a entreter os espanhóis, o comandante francês enviaria mais de quarenta mil soldados contra os vinte mil de Arthur.
Arthur reduziu o andamento do cavalo para um passo ligeiro e contemplou a batalha que se avizinhava.
- Não é esta a batalha que eu escolheria, Somerset.
- Deveras, sir? - O ajudante de campo aproximou o cavalo. - A nossa posição parece forte, e os franceses não nos podem rodear. Vai ser a nossa linha contra a coluna
deles, tal como em Vimeiro, e nesse dia vencemos.
- Vimeiro foi diferente. O exército de Junot não era mais forte do que o nosso. Se tivéssemos sido sobrepujados, a costa ficava a poucos quilómetros e a marinha
teria coberto a costa enquanto o exército embarcava. - Arthur fez uma breve pausa. - Se os espanhóis cederem, ou se abandonarem a posição, seremos rodeados e desfeitos.
Se tentarmos retirar, a cavalaria inimiga vai perseguir-nos. Os homens já estão meio mortos de fome. Se não puderem saquear, qualquer retirada vai transformar-se
numa debandada. Por isso, meu caro Somerset, temos de combater e temos de vencer. Neste momento, é o único caminho que nos resta.
Capítulo 7
À luz ténue da primeira hora da alvorada, Arthur fitava o leste, enquanto, coluna após coluna, o exército francês se alinhava para dar início ao ataque. O Portina
dividia os dois exércitos com o seu fluxo, quase a direito, através da planície até ao Tejo. Os piquetes de ambos os lados estavam já a retirar-se, com alguns homens
a trocar despedidas fatalistas com os adversários. A cena comoveu Arthur por momentos, não conseguindo o comandante deixar de se interrogar quanto à natureza de
homens capazes de se mostrar tão civilizados num momento, e de buscar a destruição dos semelhantes passados alguns instantes. Sentia o corpo dorido depois de ter
dormido as últimas horas no chão, tapado com a sua capa. Esticou as costas com um breve gemido enquanto analisava a disposição do inimigo com uma satisfação lúgubre.
Tal como Arthur esperara, o grosso do exército francês posicionara-se à frente dos britânicos. Calculou que fossem mais de quarenta mil soldados, com alguns milhares
a enfrentar os espanhóis. Ponderou que era uma coisa estranha a desejar, mas a situação era tal que a batalha só poderia ser vencida se os franceses fossem convencidos
a concentrar os esforços nos britânicos. A força do exército de Cuesta estava praticamente exaurida e a maior parte dos seus homens não passariam de meros espetadores
nos combates daquele dia.
- Meu general?
Virou-se e viu Somerset a aproximar-se com um jarro tapado e um pão.
- Imaginei que pudesse querer tomar o pequeno-almoço, sir.
- Sim, muito obrigado.
Enquanto observava os artilheiros franceses a preparar as primeiras rondas de munições, Arthur foi arrancando pequenos pedaços de pão que mastigava rapidamente.
Engoliu, tirou a rolha do jarro e bebeu um gole. Franziu de imediato o rosto e cuspiu para o lado.
- Por Deus, o que é isto?
- Vinho, sir. Encontrei-o numa taberna nos arredores da vila. Os franceses não o devem ter visto quando por lá passaram.
- Não admira. - Arthur pousou o jarro e acenou com a cabeça na direção do inimigo. - Vai ser uma batalha dura e os homens sabem-no. - Olhou para Somerset. - Vi o
rosto deles. Sabem que as probabilidades estão contra nós.
- Nesse caso, vão lutar ainda com mais afinco, sir.
Arthur voltou a encará-lo e sorriu.
- Só espero que tenham tanto ânimo como o Somerset. Em breve o saberemos.
Um estampido surdo fez-se ouvir e os dois homens olharam para o campo de batalha, até onde uma pluma de fumo se desvanecia à brisa leve da manhã. Um tiro de aviso
dos franceses. Instantes depois, a bateria principal de canhões inimigos no lado oposto da cumeada abriu fogo, cuspindo chamas e fumo antes que o estrondo fosse
levado colina acima como uma trovoada irregular. A cumeada era defendida pela divisão do general Hill, que se tinha disposto pela encosta em duas linhas. Os primeiros
disparos começaram a acertar no alvo, desfazendo homens em fragmentos ensanguentados enquanto percorriam as fileiras britânicas. Os canhões britânicos em clara inferioridade
ripostaram fogo, extraindo um número mais pequeno de baixas entre a infantaria francesa que se aglomerava no lado oposto do Portina. Arthur observou mais um momento,
antes de se virar para Somerset.
- Vá ter com o Hill e diga-lhe que recue os homens para o outro lado do monte. Eles que se baixem, mas que fiquem prontos a levantar-se e a avançar a qualquer momento.
- Sim, meu general.
Enquanto Somerset se afastava com as ordens para Hill, Arthur observou o início do avanço francês. Como já era habitual, as três densas colunas da divisão de ataque
eram precedidas por uma onda de soldados avançados que correram de abrigo em abrigo à medida que trocavam tiros com os equivalentes britânicos. Com o avançar das
forças inimigas, um toque agudo de clarim chamou os defensores, que começaram a ceder terreno enquanto recuavam cumeada acima. Tornava-se óbvio que a cumeada seria
a parte essencial da batalha e Arthur decidiu que seria melhor se estivesse no centro da batalha, onde poderia controlar e inspirar os seus homens. Montou a cavalo
e foi juntar-se a Hill junto às cores da Vigésima Nona de Infantaria. Além desse grupo, os únicos homens entre os oficiais e o inimigo que se aproximava eram os
soldados avançados, e a artilharia francesa continuava a disparar por cima das colunas que avançavam. Bolas de canhão esmagavam-se no solo, arrancando uma chuva
de terra e de pedras. Arthur teve de se obrigar a não estremecer quando uma bola arrancou a cabeça de um sargento na extremidade da divisão. O corpo tombou como
um saco de areia molhada, com o espontão a cair dos dedos sem vida e a ressoar com estrépito no chão pedregoso. Um porta-estandarte que estava junto ao sargento
fez um esgar ao limpar da face o sangue e os miolos do infeliz.
- Talvez seja melhor recuar para uma distância segura, sir - aconselhou Somerset num tom discreto.
- Não. Aqui estarei bem. Além disso, hoje todos teremos de dar o exemplo.
O general Hill aquiesceu.
- É verdade, meu general. Os homens não vão esperar menos do que isso.
Os soldados avançados britânicos tinham chegado ao cimo e começavam a proteger-se. Momentos depois, as peças francesas cessaram fogo. Os soldados avançados gauleses
também recuaram, perdendo-se entre as colunas cerradas que subiam a encosta. O grupo que se encontrava, provocador, no topo da elevação parecia servir de farol e
a coluna central da divisão francesa que avançava encaminhou-se diretamente para o punhado de casacas-vermelhas.
Arthur pigarreou e dirigiu-se calmamente a Hill.
- Creio que chegou a altura de ordenar aos seus homens que avancem.
- Sim, meu general. - Hill sorriu e deu meia-volta ao cavalo. Levou as mãos em concha à boca e bradou sobre o topo da cumeada: - A brigada que avance, em passo acelerado!
Os três batalhões da brigada que se abrigavam atrás da crista levantaram-se de imediato, como se saíssem debaixo da terra e avançaram numa linha que percorria a
cumeada. Assim continuaram, passando por Arthur e Somerset, e detiveram-se pouco à frente do grupo com os estandartes. Menos de cem metros mais adiante, a frente
da coluna francesa hesitou e Arthur ouviu um oficial gritar ordens para que formassem uma linha. Contudo, ainda mal os primeiros homens tinham começado a afastar-se,
já os soldados da brigada erguiam os mosquetes, apontando-os diretamente para as colunas densas de inimigos.
O general Hill ergueu o chapéu para chamar a atenção dos oficiais, fez uma breve pausa e depois baixou-o, ao mesmo tempo que bradava: - Fogo!
À queima-roupa, mais de mil e quinhentos mosquetes cuspiram as balas contra a frente da coluna francesa. Para Arthur foi como se a primeira fila se limitasse a cair,
à medida que os homens tombavam para a frente, ou escorregavam para o lado, deixando uma estreita faixa de corpos fardados de azul e branco esparramados sobre a
erva seca. Uma segunda e terceira saraivadas abateram outras dezenas de inimigos, pelo que os mortos e feridos jaziam agora em cima uns dos outros. Nessa altura,
os franceses respondiam ao fogo, disparando à vontade, já que era demasiado o caos nas primeiras filas para que os oficiais conseguissem organizar uma linha de fogo
adequada. Apesar de superarem os britânicos em número, só conseguiam utilizar uma quantidade limitada de mosquetes de cada vez, e as baixas novas iam-se acumulando
sobre os cadáveres já espalhados pela erva.
Arthur viu a coluna começar a ceder, recuando lentamente encosta abaixo. De ambos os lados, as outras colunas francesas eram castigadas de forma semelhante e pouco
aguentavam antes de começarem a bater em retirada. Esforçando a vista por entre o fumo da pólvora que envolvia a sua linha, o general Hill viu que o espaço entre
os seus homens e o inimigo alargara, pelo que ordenou que cessassem fogo e que avançassem. Quando a brigada deu início à marcha, deixaram os seus mortos e feridos
dispersos pela colina, mas não mais de trinta ou quarenta homens, segundo a estimativa de Arthur. Uma perda aceitável, quando comparada com as centenas de franceses
que tinham sido abatidos.
Hill e a sua brigada perseguiram o inimigo a um ritmo comedido, parando a espaços para disparar mais uma saraivada contra as fileiras e continuar a empurrá-los em
direção à fina linha do Portina. Quando chegaram ao fundo da encosta, Hill deu ordem para que carregassem e, com um brado sentido, os homens baixaram as baionetas
e correram em direção à coluna francesa combalida. A maior parte dos inimigos deu meia-volta e fugiu a cruzar o ribeiro, chapinhando na água até à margem oposta
e de regresso às peças de artilharia. Antes que os soldados britânicos perdessem a cabeça, um clarim fez soar a retirada e os homens voltaram apressadamente a formar
uma linha, inverteram a marcha e subiram a encosta. O general Hill fez a montada ultrapassar os soldados e subiu até junto de Arthur, cumprimentando-o com um sorriso
mal disfarçado e com um afável aceno de cabeça.
- Os rapazes afugentaram-nos, sir. Mas foi um belo trabalho! Nunca os tinha visto a disparar e a avançar com tanta fluidez.
- Foi um belo desempenho, Hill - concordou Arthur. - Mas pode ter a certeza de que apenas repeliu o primeiro ataque. - Tirou o relógio do bolso e olhou-o brevemente.
- Pouco passa das oito. O dia ainda é jovem, cavalheiros, e o inimigo está longe de ter sido derrotado.
À medida que o Sol foi subindo no céu azul, a brisa ligeira parou e o ar começou a ficar quente e pesado. O campo de batalha acalmara-se e Hill ordenou que os mortos
fossem enterrados de imediato, para que o calor não decompusesse os cadáveres. Mais ao fundo da encosta, os soldados avançados britânicos tinham voltado a avançar,
mas retiveram o fogo enquanto pequenos grupos de franceses percorriam o Portina para retirar os feridos e os corpos dos oficiais abatidos. Mais uma vez, com alguma
prudência inicial, a confraternização foi retomada. Quem pouco sabia da língua contrária fazia sinais e mimava para comunicar, enquanto outros se sentavam e conversavam,
partilhando comida e bebida por entre os mortos e os feridos do combate anterior.
- Será que devemos parar com aquilo, sir? - Somerset gesticulou na direção do Portina.
- Porquê?
- Imagino que não queiramos que os homens se aproximem demasiado do inimigo. Será que não os deixará predispostos à misericórdia quando tiverem de ser impiedosos?
Arthur tirou por momentos o chapéu e coçou o cabelo curto. O calor fazia com que suasse em bica e o prurido no couro cabeludo incomodava-o. Observou Somerset pensativamente.
O ajudante de campo ainda era suficientemente jovem para ter opiniões fixas quanto à natureza da guerra, e a experiência ainda não lhe temperara o julgamento com
uma compreensão mais profunda da vida militar.
- Somerset, aqueles homens ali em baixo conhecem bem o ofício deles e podemos ter a certeza de que vão agir corretamente quando tal for necessário. A guerra é um
trabalho cruel e brutal. Se não quisermos transformar em brutos quem é obrigado a desempenhá-lo, teremos de incentivar o lado mais ameno da sua natureza sempre que
possível.
Somerset ficou imóvel por um momento, depois aquiesceu. Arthur sentiu que o ajudante de campo não aceitara totalmente a ideia. Talvez um dia, se vivesse o suficiente.
Arthur voltou a pôr o chapéu e pensou mais uma vez nas intenções do inimigo. O primeiro ataque fora repelido. A questão era, será que tentariam repeti-lo? Caso contrário,
onde exerceriam a pressão seguinte? Por enquanto, as formações inimigas mantinham-se firmes sob o Sol escaldante e aguardavam ordens. Arthur tirou o telescópio do
alforge e começou a perscrutar as posições inimigas até que localizou os oficiais superiores.
Encontrou-os com facilidade, um grupo de figuras de casacas azuis, repletas de cordões dourados e dragonas metálicas, com bicornes emplumados. Alguns deles observavam
a linha britânica pelos telescópios e Arthur deixou-se sorrir brevemente ao pensar que talvez procurassem igualmente adivinhar as suas intenções. Um grupo de oficiais
superiores parecia estar a meio de um debate aceso, com muitos gestos na direção da linha britânica. Arthur observou-os mais um instante, depois baixou o telescópio
e disse a Somerset que fosse informar Hill de que os homens poderiam descansar um pouco e que procurassem as sombras possíveis.
A pausa nos combates prosseguiu pelo resto da manhã e ambos os lados aproveitaram para enviar pequenos grupos de homens com cantis a serem abastecidos no Portina.
Em outros pontos, homens em tronco nu continuavam a abrir túmulos e a retirar do campo tantos cadáveres quanto possível. Arthur dirigiu-se à sombra de um pequeno
aglomerado de oliveiras, perto do cimo da cumeada, onde se sentou para descansar, dando ordens para que o incomodassem, caso necessário. Lá em cima, o Sol chegou
ao ponto mais alto e o campo de batalha transformou-se num caldeirão sufocante de ar quente e luz dolorosamente brilhante, carregado com o zumbido irritante das
moscas que enxameavam os cadáveres que ainda esperavam por quem estava encarregue de os enterrar.
Arthur despertou quando se apercebeu de uma presença próxima. Abriu os olhos e viu Somerset junto a ele.
- O que foi?
- Meu general, os franceses estão em movimento.
Arthur levantou-se de imediato e girou rapidamente a cabeça para aliviar a rigidez no pescoço. Olhou encosta abaixo. Com efeito, o exército francês espalhava-se
para criar uma frente mais ampla e mais canhões eram levados para a frente vindos da reserva, sendo manobrados para as novas posições um pouco além do Portina, prontos
a bombardear a linha britânica.
- Pretendem atacar toda a frente - comentou Somerset.
- Tenho olhos e cérebro próprios - retorquiu Arthur lapidarmente. O embaraçado ajudante de campo manteve-se em silêncio enquanto Arthur imaginava rapidamente como
seria a fase seguinte da batalha. A anterior tentativa de tomar a cumeada permitira a Arthur redistribuir soldados para enfrentar a ameaça, mas um ataque ao longo
de toda a linha do exército implicava que haveria pouca hipótese de movimentar as forças em número inferior para favorecer algum ponto mais fraco. Tal como já acontecera,
as defesas ocupadas pelos espanhóis estavam a ser evitadas, já que o inimigo pretendia desfazer primeiro o exército inglês. O momento de maior perigo aproximava-se
com celeridade.
Pouco depois do meio-dia, a artilharia do exército francês abriu fogo em massa. Mais de oitenta canhões tiveram a resposta dos trinta de Arthur num duelo unilateral.
Mais uma vez foram abertas brechas sangrentas nas estreitas linhas que esperavam para receber o ataque inimigo. Os generais franceses mostravam-se obviamente impacientes,
já que o bombardeamento foi breve. Quando as peças ficaram em silêncio, os tambores da infantaria francesa deram início à marcha, marcando o avanço. Os soldados
avançados atravessaram o Portina e enfrentaram os correspondentes britânicos numa breve troca de tiros de mosquete. Além do Portina, Arthur viu, tal como esperado,
que as formações inimigas principais avançavam com frentes mais amplas. Desta vez não se iria repetir um ataque frontal estreito. A sobrevivência dos seus homens
dependia do treino rigoroso. Teriam de disparar e recarregar mais depressa do que os franceses numa troca esmagadora de salvas em massa.
A brigada de Guardas Reais, no extremo direito da linha, foi a primeira a entrar em ação, esperando que os franceses chegassem a oitenta metros antes de dispararem
a primeira salva. Momentos depois, o inimigo fez alto e retribuiu fogo. Após as primeiras trocas, o espaço entre os lados adversários encheu-se de fumo e os combatentes
foram obrigados a disparar às cegas. Através do telescópio, Arthur pôde ver que o inimigo sofria as piores baixas, disparando no máximo duas salvas por cada três
dos casacas-vermelhas.
Mais perto do topo, a linha francesa aproximou-se da brigada de Cameron e dos homens da Legião Alemã do Rei. Aparentemente sem quererem ser ultrapassados pela Guarda,
os soldados de Cameron permitiram que os franceses chegassem a cinquenta metros antes de dispararem a primeira salva. Com uma visão desimpedida e a tão curta distância,
quase todas as balas acertaram no alvo e a linha francesa estacou, com as alas da frente a serem aniquiladas pelo fogo esmagador. Sem esperar por uma segunda onda
de tiros, os homens de Cameron fixaram as baionetas e avançaram inesperadamente através da fina nuvem de fumo, carregando sobre a linha francesa desorganizada.
- É assim mesmo! - Arthur cerrou o punho.
A escaramuça foi breve, tendo os franceses cedido terreno e começado a recuar pelo Portina. Os homens de Cameron, avassalados pelo entusiasmo de terem quebrado o
ataque, correram atrás deles, trespassando-os com as baionetas, ou derrubando-os com as coronhas pesadas dos mosquetes. Alguns indivíduos mais lúcidos fizeram uma
pausa para recarregar e disparar sobre o inimigo, contribuindo assim inadvertidamente para a perda de coesão da brigada.
Somerset fungou com irrisão.
- Mas o que é que aqueles idiotas julgam que estão a fazer? Não podem vencer o exército francês sozinhos.
O júbilo recente de Arthur transformou-se em receio enquanto observava as minúsculas figuras de vermelho a fundirem-se num enxame informe, atravessando o ribeiro
e perseguindo os franceses no seu próprio campo. Outra linha inimiga estava já a avançar para reprimir a carga britânica e os camaradas desgastados contornaram-nos
até à retaguarda, onde os oficiais sobreviventes começaram a acalmá-los e a voltar a formar as unidades. Quando a onda de franceses em fuga se dissipou, os soldados
da brigada de Cameron depararam-se com uma nova força inimiga. Enquanto Arthur observava com um aperto no coração, os franceses pararam, prepararam-se e dispararam
uma salva letal. Os casacas-vermelhas foram dizimados aos magotes e mesmo tendo alguns homens respondido ao fogo, era óbvio que a maioria ficara atordoada com o
reverso abrupto da fortuna. Outra salva selou-lhes o destino e, deixando os camaradas abatidos na outra margem do Portina, os sobreviventes atravessaram o ribeiro
a correr, perdendo ainda mais homens quando os soldados avançados franceses foram em perseguição da formação britânica desfeita.
Tornava-se claro que a brigada de Cameron não seria capaz de reagrupar os seus homens e a sua impetuosidade deixara um espaço aberto no centro da linha britânica.
Arthur virou-se para Somerset.
- Temos de fechar imediatamente aquele buraco! Vá ter com Mackenzie e ordene-lhe que leve os homens dele e detenha os franceses. Vá!
Enquanto o ajudante de campo cavalgava encosta abaixo em direção à brigada que aguardava como reserva, Arthur galopou pela cumeada e deteve-se ao lado do general
Hill. A súbita chuva de terra sobressaltou a montada de Hill.
- Mas que raios? - O general olhou para o lado com uma expressão irritada até que viu o seu comandante.
- Hill, a brigada de Cameron foi rechaçada. Preciso dos seus homens. - Arthur apontou para a Quadragésima Oitava de Infantaria, à direita das forças de Hill. - Aconteça
o que acontecer, tem de se manter firme aqui.
- Assim farei, meu general. Nada receie.
- Obrigado. - Arthur tocou na aba do chapéu e virou o cavalo para sul, cavalgando pela retaguarda da brigada de Hill até chegar ao coronel ao comando da Quadragésima
Oitava, a quem deu as ordens ofegantes. - Os seus homens para a direita. Quero-os em linha para atacar os franceses pelo flanco. - Apontou para os franceses que
impeliam a brigada desordenada de Cameron através do Portina. - Se não forem detidos e repelidos, a batalha está perdida.
- Entendido, sir. - O coronel fez continência e virou-se para bradar as ordens necessárias. Arthur acompanhou-o e liderou o regimento pela encosta da cumeada a um
trote firme, com as mochilas e as bainhas das baionetas dos soldados a ressaltar e a retinir enquanto as botas com espigões pisavam a erva seca. Observando o ataque
francês a avançar em direção à linha britânica, Arthur incitou os homens em frente. O inimigo tinha de ser detido rapidamente antes que lhes cortassem o exército
em dois. À direita viu os dois mil homens da brigada de Mackenzie a avançar pela planície, para deter a coluna francesa.
- Não chega - resmungou entre dentes para consigo.
Os homens de Mackenzie iam enfrentar pelo menos uma divisão inimiga, dez mil soldados, enquanto os franceses, sentindo o cheiro da vitória, faziam avançar mais homens
para a brecha. A brigada de Mackenzie fez alto e passou de coluna a linha, preparando-se para enfrentar a carga. Os sobreviventes de Cameron atravessaram os espaços
entre as companhias à sua frente e fizeram uma pausa a uma distância segura, ofegantes e abalados enquanto os oficiais os reuniam. A linha britânica ficou em silêncio
ante o avanço dos franceses, de tambores a rufar e homens nas alas da retaguarda a cantar a plenos pulmões. Os soldados da frente avançavam de mosquete pronto para
os casacas-vermelhas, que estavam imóveis, de armas em descanso, como se estivessem em parada. Quando o inimigo se aproximou, a ordem para preparar ecoou ao longo
da linha e, com uma precisão bem treinada, os mosquetes subiram, as armas foram engatilhadas e os homens apontaram. Quando a primeira salva foi disparada, Arthur
deteve a Quadragésima Oitava e dispôs a formação em linha, na perpendicular em relação à frente da coluna francesa ao ataque.
- Avançar! - ordenou e os homens, em duas linhas, marcharam em frente para adicionar o seu poder de fogo ao da brigada de Mackenzie.
As primeiras salvas tinham levado os franceses a parar, e agora dispersavam pelos flancos, formando uma linha de fogo. Quanto mais depressa o fizessem, mais rapidamente
poderiam esmagar o poder de fogo da derradeira linha de infantaria britânica entre eles e a vitória.
- Continuem a avançar! - bradou Arthur para a sua direita quando uma das companhias começou a ficar um pouco atrasada atrás das outras. Os homens aceleraram obedientemente
o passo e voltaram a colocar-se em posição. À frente do regimento, Arthur viu o rosto dos homens à direita da coluna francesa, fitando ansiosamente a nova ameaça
que se aproximava do seu flanco. Teve tempo para refletir que se tratava de mais uma prova da inferioridade do sistema francês. Assim que as colunas avançavam, tornavam-se
gigantes inflexíveis que seguiam em frente sem conseguir suficiente espaço livre de manobra para lidar com eventuais ameaças dos flancos ou da retaguarda.
Os dois lados aproximaram-se e, entretanto, a brigada de Mackenzie continuou a trocar fogo com a frente da coluna, imobilizando os franceses enquanto Arthur chegava
com a Quadragésima Oitava de Infantaria. Um punhado de soldados avançados franceses correra a interpor-se entre a coluna e a linha britânica que se aproximava e
abriram fogo. Alguns homens tombaram, um a seguir ao outro, e Arthur ouviu o leve zumbido de uma bala junto a ele. Estavam a cem metros do inimigo. Chegara a altura,
decidiu, e encheu os pulmões.
- A Quadragésima Oitava faz alto! Preparar para disparar!
A linha deteve o avanço e a da frente deslocou-se um passo para o lado para criar uma muralha de homens, os quais podiam agora empunhar os mosquetes. Assim que viu
que estavam prontos, Arthur bradou:
- Apontar! Fogo!
Os soldados avançados franceses ainda de pé foram abatidos e, depois, os camaradas no flanco da coluna francesa, derrubados pelos impactos. Quando os casacas-vermelhas
baixaram rapidamente os mosquetes para preparar a salva seguinte, Arthur ouviu um débil gemido de desalento e receio vindo das alas francesas.
- Continuem, rapazes! - gritou o coronel da Quadragésima Oitava. - Continuem!
As companhias do flanco da coluna francesa começaram a virar-se, com o avanço impedido pelos corpos no chão, mas foram varridas por outra salva que abateu mais homens
e criou novo caos, o que deitou por terra a tentativa de criar uma linha de fogo contra Arthur e os seus homens. Os soldados da Quadragésima Oitava carregavam e
disparavam metodicamente com uma eficiência impiedosa, derrubando imensos franceses a cada salva, mas a coluna manteve-se firme, retida pelos cadáveres de quem tombara.
À frente, as perdas tinham sido terríveis, mas Arthur viu que o mesmo se passava com a brigada de Mackenzie. Perto de um terço dos soldados já teria sido abatido
e Arthur sabia que não seriam capazes de aguentar muito mais. Se os franceses mantivessem a coragem mais alguns minutos, não havia dúvida de que a vitória seria
deles. Atrás dos homens de Mackenzie, os restos da brigada de Cameron continuavam a formar e não podiam agir naquele momento crítico. Arthur sentiu-se frustrado
pela impotência de interferir com o resultado. Estava tudo nas mãos dos soldados que aguentassem mais tempo aquele terrível ordálio.
Foi então que um movimento lhe chamou a atenção. Da sela conseguia ver o terreno além da massa da coluna francesa. Através do fino véu de fumo que emanava dos homens
a disparar na frente, houve qualquer coisa que brilhou. E outra vez, e mais outra - apercebeu-se de que era o Sol a refletir-se em aço polido. Sentiu esperança renovada
no coração quando viu uma linha de cavalaria a investir contra o outro lado da coluna.
- Por Deus, são os Dragões Leves! - exclamou por entre dentes cerrados. - Avancem. Avancem e esmaguem-nos!
Atacados por três lados, os franceses menos animados começaram a recuar, procurando fugir ao massacre das balas britânicas e às espadas dos dragões que iam abrindo
caminho no flanco esquerdo do inimigo. Ainda mais homens recuaram e, apesar do encorajamento frenético e da fúria dos oficiais, o pânico espalhou-se e a coluna perdeu
a pouca coesão que lhe restava com a fuga dos homens, que recuavam numa massa assustada, em direção ao Portina e à maior segurança da margem oposta. Os regimentos
fustigados da brigada de Mackenzie seguiram-nos, fazendo pausas para disparar salvas sempre que a retirada do inimigo mostrava sinais de querer abrandar. A visão
do inimigo em fuga animou os sobreviventes de Cameron, que se apressaram a juntar-se aos flancos da linha de Mackenzie.
Arthur ordenou que a Quadragésima Oitava se mantivesse na planície e depois, quando teve a certeza de que o risco passara, deu meia-volta e galopou de regresso à
sua posição no topo da cumeada. O resto da linha reprimira os franceses, que tinham recuado para voltar a formar as colunas devastadas. Ao olhar para os seus próprios
homens, Arthur ficou chocado quando percebeu quantos tinham caído. Quase todos os batalhões tinham cerrado fileiras, deixando grandes lacunas ao longo da linha.
Se os franceses lançassem outro ataque, por certo conseguiriam esmagar os casacas-vermelhas, exaustos e ensanguentados.
Quando chegou ao topo, ouviu os sons de novos combates no vale do outro lado da encosta. Receando uma nova ameaça, Arthur avançou com ansiedade até ficar com um
panorama desimpedido da batalha mais em baixo. Três grandes quadrados de infantaria francesa recuavam lentamente para o Portina, seguidos pela cavalaria da Legião
Alemã do Rei e por um regimento espanhol que Cuesta deveria ter enviado em auxílio dos britânicos. A artilharia mais ao fundo da encosta aproveitava os grandes alvos
que o inimigo apresentava e disparava bolas contra as alas enquanto estas recuavam, deixando cadáveres de farda azul na sua esteira.
Quando os franceses saíram do alcance das peças de artilharia britânicas, estas silenciaram-se uma a seguir à outra e a cavalaria retirou-se e voltou a formar mais
ao fundo do vale, à espera do ataque francês seguinte. Pouco depois, Somerset juntou-se ao comandante, o rosto pálido e manchado de sujidade do fumo de pólvora dos
combates desesperados na planície.
Arthur recebeu-o com o esboço de um sorriso.
- Começava a recear que se tivesse tornado uma baixa. Onde esteve?
- Fiquei com a brigada de Mackenzie durante o ataque, sir.
- Ah, sim. Tenho de me lembrar de lhe transmitir o meu agradecimento. Ele e os homens mostraram uma grande resistência.
- O Mackenzie está morto, sir.
- Morto? - A expressão de Arthur endureceu. - Lamentável.
Somerset tossicou e prosseguiu com voz rouca:
- Juntamente com setecentos dos homens dele. Cameron também morreu. Foi abatido do outro lado do Portina.
- Entendo. - Arthur aquiesceu com tristeza. - Receio que seja apenas o início de uma longa lista. Mas agora não temos tempo para os lamentarmos. Mais tarde, depois
da batalha. Os franceses ainda podem tentar derrubar-nos outra vez.
- Sim, meu general. - Somerset endireitou as costas e sentou-se tão hirto quanto possível na sela. - Compreendo.
Enquanto falava, viu-se uma onda de clarões ao longo da linha francesa quando os canhões voltaram a disparar, bombardeando os homens na cumeada e espalhados na planície
em direção a Talavera. A tarde aproximava-se do fim e Arthur estava exausto e com uma dor de cabeça monstruosa devido ao brilho do Sol do dia. Sabia que os soldados
partilhariam desse estado e não estariam em grandes condições para continuar a lutar. Quando o Sol baixou no horizonte atrás dos britânicos, a sombra da cumeada
estendeu-se sobre a paisagem vasta e alcançou as tropas francesas reunidas na direção oposta. Mesmo com os canhões inimigos ainda a disparar, não se viam sinais
de novo ataque. O inimigo limitava-se a esperar à luz que se desvanecia.
- Julga que vão fazer mais uma tentativa esta noite? - indagou Somerset.
- É provável - foi a resposta de Arthur. - A divisão do Hill que mantenha a posição para qualquer eventualidade. Agradecia que fosse ter com ele e lhe dissesse que
os homens podem ficar à vontade, mas que terão de estar prontos a lutar de imediato.
- Com certeza, sir. - Somerset fez continência e dirigiu o cavalo encosta abaixo, até ao posto de comando de Hill.
A artilharia francesa continuou a disparar enquanto houve luz e depois ficou em silêncio. Uma calmaria instável caiu sobre o campo de batalha e os homens cujos ouvidos
tinham passado o dia a retinir com o som dos canhões e dos mosquetes pareceram atordoados com o silêncio da noite. Só os gritos débeis dos feridos e o relinchar
ocasional dos cavalos tombados quebravam a modorra. Depois, enquanto os homens do exército britânico se sentavam na posição de cada regimento, um brilho ténue ganhou
vida ao fundo da cumeada. As chamas lamberam a erva seca e o fogo espalhou-se rapidamente pela zona mais baixa das encostas. Arthur apercebeu-se de que o incêndio
teria sido causado por alguma bucha das peças francesas. Ao início sentiu-se agradecido pelo fogo, pois ele revelaria qualquer tentativa por parte do inimigo de
tomar a cumeada ao abrigo da escuridão, e possivelmente iria detê-los. Contudo, em seguida fez-se ouvir um leve gemido de terror. Houve mais gritos por ajuda e depois
uivos de agonia ao fundo da encosta.
- São os feridos - indicou calmamente Somerset. - Deve haver centenas de homens ali espalhados, nossos e deles. Temos de enviar ajuda, sir.
- Não - contrapôs Arthur com firmeza, engolindo para tentar aliviar a secura que sentia na garganta. - Não nos podemos dar ao luxo de ter homens à procura dos feridos,
para o caso de haver outro ataque. Não há nada que possamos fazer por eles.
Os gritos que se iam intensificando rasgaram a noite, pelo que, mesmo exaustos, poucos foram os soldados na cumeada que conseguiram dormir. Satisfeito com a falta
de sinais de um novo ataque a ser preparado pelo inimigo, Arthur percorreu rapidamente o comando e ofereceu palavras de encorajamento às figuras desoladas com que
se cruzou. A maior parte dos homens parecia demasiado entorpecida para continuar o combate e quando regressou à cumeada, Arthur deitou-se no chão e tentou descansar.
A mente, contudo, não deixou de lhe fervilhar. Quando a manhã chegasse, não tinha dúvidas de que o seu exército teria de enfrentar um novo massacre como o que tinham
sofrido durante o dia.
Acordou pouco antes da alvorada e levantou-se, esforçando-se por ver e ouvir qualquer indicação de que os franceses preparavam mais um ataque. Com o horizonte oriental
a tornar-se mais distinto, os primeiros clarins fizeram-se ouvir no acampamento francês, seguidos por vagos gritos de ordens e pelo estalar de chicotes, à medida
que as equipas de artilharia deslocavam as peças.
A luz continuou a intensificar-se e Arthur tentou concentrar-se no que teria de ser feito para preparar a resistência ao primeiro ataque. Depois franziu o cenho
ao fitar as posições francesas. As baterias de artilharia tinham desaparecido. Não havia linhas de infantaria, nem de cavalaria a preparar-se para o ataque. Na outra
margem do Portina restava apenas um punhado de cavaleiros inimigos, a vigiar a linha britânica.
- Mas que raios? - Por um instante, Arthur sentiu-se preencher por uma terrível ansiedade, enquanto se interrogava se os franceses estariam a tentar dirigir-se a
norte através dos montes, para lhes cortarem o acesso às linhas de comunicação com Portugal. Depois, quando os primeiros raios de Sol se espalharam pela paisagem,
viu o exército francês. Colunas cerradas de homens, cavalos, canhões e carroças em marcha para leste, de regresso a Madrid. Precisou de um instante para que a sua
mente, entorpecida pela exaustão, conseguisse discernir a verdade.
- Estão a retirar... Por Deus, estão a retirar - resmungou para consigo. Afinal de contas, os britânicos tinham vencido a batalha. Não sentia júbilo no coração.
Nenhum. Apenas alívio, e também isso rapidamente se desvaneceu, quando a luz da manhã revelou o terrível custo da vitória, espalhado pelas encostas ainda fumegantes
da cumeada e pela planície em direção a Talavera.
Mapa
Capítulo 8
Napoleão
Ilha de Lobau, julho de 1809
- Aqui serve - aquiesceu Napoleão. - Marque-o, Masséna.
- Com certeza, meu imperador. - Masséna tirou o lápis de trás da orelha e registou cuidadosamente a localização no mapa dobrado que segurava, devolvendo-o depois
com celeridade à orelha, antes que pudesse chamar a atenção das sentinelas austríacas na margem oposta, a pouco mais de uma centena de passos. Napoleão e Masséna
usavam os casacos e os chapéus de dois sargentos e encontravam-se sem escolta para não levar a uma observação mais aturada do seu trabalho de reconhecimento.
Estavam a selecionar os locais para a série de pontes flutuantes que seriam dispostas sobre a derradeira extensão do Danúbio. A primeira tentativa de atravessar
terminara com um revés humilhante que custara milhares de vidas, sendo uma das vítimas o marechal Lannes. Os inimigos de Napoleão espalhados um pouco por toda a
Europa tinham ficado bastante encorajados com a notícia chegada da Áustria. A única maneira de reparar a situação seria esmagar o arquiduque Carlos e o seu exército.
A grande complicação era o facto de o Danúbio separar Napoleão da sua presa. Além disso, o exército austríaco edificara uma disposição formidável de fortificações
que se estendia, num arco amplo, ao longo de quase toda a margem virada para Lobau. O inimigo não tentara levar o combate até Napoleão e parecia disposto a esperar
por ele.
Com toda a Europa a assistir ao conflito, Napoleão estava determinado a levar a cabo mais uma tentativa de atravessar o rio, e desta vez o resultado seria muito
diferente.
Todos os soldados que pudessem ser dispensados tinham sido convocados para Viena, onde o exército foi crescendo de tamanho, até se reunirem mais de cento e sessenta
mil homens para tomar parte no ataque ao arquiduque Carlos. As tropas deixadas a vigiar as vias de comunicação com França estavam bastante debilitadas, e se mais
uma das potências europeias decidisse intervir ao lado da Áustria, pouco haveria a barrar-lhe o caminho.
Entretanto, Lobau foi transformada numa fortaleza. Em finais de junho, mais de cento e trinta canhões tinham sido distribuídos por baterias que cobriam a margem
oposta. Tinham sido construídas duas pontes robustas sobre o canal principal do Danúbio, além de três novas pontes flutuantes. Cravaram-se estacas no leito do rio
a montante das pontes, para garantir que estariam protegidas de quaisquer brulotes, ou aríetes flutuantes austríacos. Desta vez não ficariam dependentes de uma única
ponte vulnerável sobre o rio.
O inimigo não tentara intervir. Os franceses tinham mesmo conseguido desembarcar uma força na outra margem do rio para tomar o saliente onde se erguia o lugarejo
de Mühlau. No espaço de horas, os engenheiros franceses tinham fortificado a aldeia e montado baterias poderosas em redutos para cobrir qualquer aproximação. O inimigo
reagira com a habitual deliberação arrastada e quando finalmente chegara uma coluna para recuperar a aldeia, o arquiduque Carlos percebeu que isso lhe iria custar
muitos mais homens do que o local valia e optou por encerrar o saliente fortificado atrás das fortificações improvisadas destinadas a conter qualquer tentativa francesa
de sair para Marchfeld. Napoleão tivera o cuidado de garantir que os austríacos viam a construção da elaborada série de baterias que cobririam um desembarque entre
Aspern e Mühlau. A par disso, a Guarda Imperial de elite fizera uma parada exuberante à frente de Mühlau e duas pontes adicionais tinham sido construídas até ao
saliente fortificado. O inimigo não teria qualquer dúvida quanto ao destino do impacto de Napoleão.
E ainda bem que assim era, meditou Napoleão, enquanto percorria com Masséna a margem da ilha de Lobau. Isso porque tudo não passava de uma trama elaborada, calculada
para desviar a atenção do inimigo da verdadeira direção que seria tomada pelo ataque dos franceses. Fora da vista dos austríacos já tinham sido montadas dez pontes
flutuantes, prontas para serem rebocadas para a posição correta na noite da invasão. Era para essas pontes que Napoleão e Masséna escolhiam as posições enquanto
andavam pelo extremo oriental da ilha nos seus casacos emprestados.
Napoleão fez uma pausa para observar mais uma vez a margem oposta. Um grupo de soldados austríacos tomava banho nos baixios, com o som das gargalhadas e do chapinhar
a ser levado com toda a clareza sobre a água. Além dos austríacos, a margem subia ligeiramente até um terreno mais elevado.
- O que lhe parece?
Masséna olhou para o outro lado do rio durante um instante antes de aquiescer.
- Parece-me bem, sire. O leito do rio deve ser firme e não devemos ter grande dificuldade em levar os nossos canhões até à outra margem.
- Concordo. Assinale a posição.
Continuaram a avançar ao longo da margem, escolhendo os pontos em que o terreno era mais sólido e a margem não apresentava obstáculos à travessia rápida do rio.
Quando o último local foi assinalado no mapa, inverteram a marcha para regressar pela ilha, até ao quartel-general avançado do imperador. Atrás da cobertura de florestas
que cercava o centro da ilha estendia-se um vasto acampamento. As forças do marechal Oudinot tinham-se juntado aos homens de Masséna e, durante a noite, os trinta
e cinco mil soldados de Davout iriam aumentar as fileiras do exército que esperava por ser lançado contra o confiante arquiduque Carlos. Obedecendo às ordens rígidas,
os homens não tinham acendido fogueiras e estavam sentados calmamente, a descansar. Alguns dormiam, outros limpavam as armas, com a cavalaria a raspar pedras de
amolar nas lâminas dos sabres. Embora não tivessem sido dadas ordens para qualquer ataque, a concentração de tantos soldados era prova cabal da preparação por parte
do imperador de uma batalha iminente.
Enquanto percorriam o acampamento, Napoleão sentiu a antecipação entre os seus soldados. Que diferença de há pouco mais de um mês, quando o exército fora rechaçado
para a ilha pelos austríacos. A fronte de Napoleão enrugou-se ao recordar a cena. Os sobreviventes da batalha tinham caído ao solo de exaustão. Milhares de feridos
foram obrigados a passar duas noites ao relento, e centenas tinham morrido com os ferimentos e sido enterrados numa vala comum a sul da ilha.
Os feridos tinham acabado por ser removidos para Viena, entre eles o marechal Lannes, cujas pernas tinham sido esmagadas por uma bola de canhão. Com ambas as pernas
naquele estado, o cirurgião imperial, o doutor Larrey, não tivera outra escolha que não amputar. Napoleão juntara-se ao amigo depois da operação e encontrou o veterano
de muitas campanhas deitado num catre numa pequena capela. Um lençol fino cobria Lannes, que tinha os braços esticados ao lado do corpo. O lençol caía a direito
da cama a partir das coxas. Lannes estava num sono agitado, o rosto coberto por uma película de suor, quando Napoleão e o doutor Larrey entraram na capela.
Napoleão dirigiu-se ao doutor Larrey.
- Quais as hipóteses de sobrevivência? - perguntou baixinho.
- Bastante boas. O marechal tem uma constituição forte. Desde que os ferimentos não infetem, os cotos vão sarar com o tempo.
Napoleão aquiesceu.
- Mantenha-me informado do estado.
- Sim, meu imperador.
Napoleão olhou através da porta e sentiu uma grande tristeza por saber que o corajoso e sempre prestável Lannes não voltaria a estar a seu lado durante uma batalha.
Napoleão tinha consciência de que, para um homem tão cheio de vitalidade, seria difícil aceitar uma vida de aleijado. Ao fechar a porta, interrogou-se se não teria
sido melhor se Lannes tivesse morrido de imediato.
O marechal Jean Lannes morreu oito dias depois de ter sido ferido. A dor da perda ainda era lancinante no coração do imperador. Chorara com a notícia e o exército
ficara espantado. Muitos tinham visto Lannes na frente de batalha, sentindo-se encorajados pelo exemplo. Antes das promoções, fora um dos seus, tendo partilhado
riscos e ferimentos, e todos o lamentaram abertamente conforme a notícia se foi espalhando.
Jean Lannes seria vingado, jurou Napoleão em silêncio ao aproximar-se de um grupo de sargentos sentados na berma do carreiro que percorria o acampamento. Os homens
tinham consigo um pequeno barril de brandy e uma perna de veado curada.
- Ó amigos, querem uma bebida?
Masséna estava prestes a recusar a oferta quando Napoleão lhe tocou discretamente e ofereceu um sorriso de agradecimento.
- E porque não? Obrigado.
Masséna lançou-lhe uma olhadela de surpresa, mas Napoleão limitou-se a baixar um pouco mais o chapéu e sentou-se na erva esmagada. Masséna juntou-se-lhe após um
instante de hesitação. O sargento que os convidara estendeu-lhes dois copos esmurrados de cobre e levantou o barril para servir uma pequena dose a cada um. Napoleão
ergueu o seu.
- À saúde!
Os outros sargentos, talvez uns dez, levantaram os copos e retribuíram o brinde. Depois de um gole do líquido ardente, Napoleão limpou os lábios e perguntou:
- Que unidade é esta?
- Primeiro batalhão, Octogésimo Segundo regimento da linha. Da divisão de Friant.
Napoleão aquiesceu.
- Então pertencem às tropas de Davout. Acabaram de chegar.
- Não só isso - prosseguiu o sargento, - como também acabámos de formar. O batalhão marchou até aqui vindo do depósito de Lyons.
Outro sargento pigarreou e cuspiu para o chão ao seu lado.
- A maior parte dos recrutas não passa de meninos.
- E vós? - perguntou Masséna. - Qual é a vossa folha de serviços?
- Nós? - O primeiro sargento riu-se. - Até há uns meses éramos agentes alfandegários. Depois chegaram os recrutamentos de Paris. O imperador precisa de um exército
novo e os recrutadores andam pela França à procura de veteranos na reserva, de oficiais da Guarda Nacional, de suboficiais e, finalmente, no fundo da escala, de
nós. Foi por isso que vos convidei para se juntarem a nós. - Apontou para os casacos deles. - São da Guarda Imperial. Já devem ter visto uma coisa por outra.
Masséna assentiu.
- Nesse caso também já cá deviam estar quando o exército defrontou os austríacos.
- Sim.
- Os jornais do exército dizem que foi uma retirada tática depois de o inimigo ter levado uma bela tareia. Pelo que ouvi dizer, foi um desastre absoluto. É verdade?
Masséna relanceou os olhos para Napoleão, que se deixou ficar imóvel por um momento antes de acenar discretamente com a cabeça. Era uma rara oportunidade de saber
o que os soldados realmente pensavam. Acabados de chegar de Lyons, era provável que nunca tivessem visto o imperador. A maioria dos retratos e das gravuras espalhados
pelo país mostravam-no trajado com fardas cintilantes. Não adivinhariam a sua identidade, pelo menos por enquanto.
Masséna olhou para o sargento e anuiu.
- Foi um combate difícil e sim, expulsaram-nos do campo. Perdemos bons homens, milhares deles.
- Como aconteceu tal coisa?
Masséna encolheu os ombros.
- Avançámos com demasiada rapidez, o reconhecimento foi descuidado e as patrulhas de cavalaria conseguiram falhar o exército austríaco. Foi assim que aconteceu.
- Exatamente como nos contaram - interveio um dos outros. - O imperador fez asneira.
Napoleão sentiu Masséna ficar hirto a seu lado, pelo que tossiu e chegou-se à frente.
- Cuidado, isso são palavras arriscadas. Se estivesse no vosso lugar, não deixava que os oficiais ouvissem tal opinião. Mas sim, o imperador cometeu um erro. Duvido
que o repita.
- A sério? - O sargento ergueu as sobrancelhas. - O que o leva a dizer isso?
Napoleão fez um gesto que abarcou o vasto acampamento que os rodeava.
- Foram feitos todos os preparativos. Duvido que agora exista um exército na Europa que nos possa derrotar.
- Os outros exércitos não me preocupam. Receio aquele que nos espera do outro lado do rio. Já nos derrotaram uma vez. Vão estar a pensar que o podem fazer novamente.
- Nesse caso estão errados - retorquiu Napoleão e apontou com o polegar para Masséna. - Já os enfrentámos. Acreditem, os austríacos podem ser derrotados e vamos
fazê-lo.
O sargento parecia continuar na dúvida.
- Bem, espero que tenha razão. Sabe Deus que temos de acabar com eles e dar por terminada esta guerra. Esperemos que desta vez possa haver uma paz verdadeira no
fim. Talvez possamos ver o dia em que o imperador se venha a fartar da guerra. Tudo o que eu quero é paz, e poder voltar para casa, para a minha família.
- Paz e poder voltar a casa? - Napoleão encolheu os ombros. - Tenho a certeza de que é isso que o imperador também quer, tal como qualquer outro francês. A questão
é, será que as outras nações nos deixam ter paz?
- Nem pensar - retorquiu o sargento num tom amargo. - Os reis, os czares e os imperadores só entendem a guerra. Adoram fardas e empurrar figuras em cima dos mapas,
e são sempre as pessoas normais que morrem. Pensei que a Revolução tivesse servido para acabar com isso. Livrámo-nos do rei, e dos aristocratas. Agora, olhem só
para nós. Duques, príncipes e barões até onde a vista alcança, e Napoleão sentado no topo de tudo isso com a sua coroa. Afinal de contas, o que é que mudou?
O primeiro sargento riu-se.
- Não lhe liguem. O Pierre é um jacobino à moda antiga. Está sempre a resmungar. Mas estava a pensar... - Olhou ansiosamente para Masséna e Napoleão. - Já o devem
ter visto. Como é ele?
- O imperador? - Masséna soprou as faces ante a situação delicada. - Bem, é só um homem, como qualquer um de nós. Pode ser imperador quando está no palácio de Paris,
mas aqui, no campo? Aqui é um soldado. Corre riscos como todos nós.
- E tu? - perguntou o sargento chamado Pierre, que olhava diretamente para Napoleão. - O que achas?
Napoleão retribuiu-lhe o olhar por um instante, tentado a revelar a sua identidade, mas ao mesmo tempo sem vontade de quebrar a ilusão de que eram todos simples
camaradas. Pousou o copo e levantou-se, dando um murro ao de leve no ombro de Masséna. - Acho que são horas de voltarmos ao nosso batalhão. Vai ser uma longa noite.
Masséna devolveu o copo e pôs-se de pé.
- Boa sorte para todos vós.
- E para vocês - desejou o primeiro homem.
- O que lhe parece? - indagou Napoleão em voz baixa, quando se afastou com Masséna.
Masséna olhou-o.
- Sire?
- Não seja tolo, Masséna. Refiro-me àquilo que os homens estavam a dizer. Será que têm razão? Será que traí a Revolução e me limitei a criar uma nova forma de tirania?
- Está a falar de política, sire, e eu não passo de um soldado. Não é a minha área.
- Está a fugir ao assunto. - Napoleão riu-se. - Quando um homem receia dizer a verdade, então é porque vive mesmo numa tirania. Parece que o sargento tinha razão.
- Rei ou imperador, que diferença faz? - replicou Masséna. - O que interessa é que a França está em guerra e é dever de cada soldado lutar pelo seu país. Quando
a luta tem início, não há tempo para questionar a causa. - Ficou em silêncio por um instante. - Além disso, de que me serve a paz? Ficaria sem um belo modo de vida.
Napoleão fitou-o e abanou a cabeça.
- Marechal Masséna, tem uma maneira brutalmente prática de encarar a vida. Mesmo assim, admito que esperava um pouco de idealismo no seu coração.
Masséna encolheu os ombros.
- Deixo o idealismo para os filósofos, sire. Enquanto houver combates, fornicação e fortuna a conquistar, pode contar comigo.
- E se eu fizer paz? Como ficará a sua lealdade para comigo?
- Sire, aquele sargento tinha razão numa das coisas que disse. Enquanto for imperador, não pode haver paz na Europa, quer queira, quer não. E isso por mim está muito
bem.
Quando chegaram ao quartel-general, devolveram os casacos e dirigiram-se à sala dos mapas. Berthier estava debruçado sobre a mesa, com um par de réguas de cálculo
para avaliar os horários de marcha das restantes colunas que ainda se encontravam a caminho do imperador. Endireitou-se e curvou a cabeça quando o imperador e Masséna
entraram.
- Está tudo a decorrer conforme os planos? - perguntou Napoleão.
- Sim, sire. O exército deverá ter atravessado todo o rio ao segundo dia. Cento e oitenta mil homens, menos a guarnição que protege as pontes.
- Quais as últimas informações sobre o arquiduque Carlos?
- Segundo os relatórios da cavalaria, os austríacos deverão ter cento e cinquenta mil homens concentrados contra nós. Claro que ainda não temos a certeza da localização
exata do exército do arquiduque João. Deu início à retirada de Itália há duas semanas e pode estar perto o suficiente para intervir.
- Qual a força dele?
- Não terá mais de quinze mil homens, sire.
- Nesse caso, pouco importa - decidiu Napoleão. Estalou os dedos. - Masséna, o mapa.
Masséna apresentou o diagrama das passagens sobre o rio e desdobrou-o ao lado do mapa de maior escala em que Berthier estivera a trabalhar. Napoleão bateu com o
dedo nas marcas a lápis no lado oriental da ilha de Lobau.
- É aqui que atravessamos. Mande copiar o mapa e envie-o ao comandante dos engenheiros. Quero as pontes flutuantes prontas a ser colocadas em posição ao cair da
noite.
- Sim, meu imperador.
Napoleão analisou o mapa em silêncio por um momento antes de anuir com satisfação. As peças estavam prontas a encaixar. O arquiduque Carlos concentrara o exército
em redor das tropas francesas no saliente fortificado de Mühlau. Parecia ter engolido o isco e esperava receber o ataque francês no mesmo terreno em que tinham tentado
forçar a passagem havia pouco mais de um mês. Em vez disso, Napoleão atacaria três quilómetros a oriente, na direção da aldeia de Wittau. Os franceses iriam atravessar
o Danúbio com uma força esmagadora e dar de imediato a volta para atacar os austríacos pelo flanco e pela retaguarda e esmagá-los. Napoleão olhou para o marechal
Masséna e sorriu.
- Temos o inimigo exatamente onde o queremos. Esta noite terá a honra de liderar o exército sobre o Danúbio até à vitória.
Capítulo 9
A tempestade rebentou logo após o cair da noite sobre o Danúbio. Relâmpagos iluminavam a paisagem com clarões brilhantes de um branco ofuscante que capturavam por
um instante milhares de homens, cavalos, canhões e pingos de chuva prateados numa imagem estática, antes de o mundo voltar a mergulhar nas trevas. Depois, enquanto
os homens marchavam através da lama em direção às pontes flutuantes, o trovão ribombava como um vasto canhoneio nos céus.
- Não podia ser melhor - comentou Napoleão com Berthier, sentados nos cavalos, a observar as primeiras colunas das forças de Masséna a avançar para a margem do rio,
prontas a atravessar assim que as pontes fossem rebocadas para o local correto. Napoleão apontou para o lado ocidental da ilha, a quase três quilómetros dali. -
Esta trovoada e o ataque de diversão a partir de Mühlau vão garantir uma cobertura perfeita para o assalto de Masséna.
Berthier aquiesceu e tirou o relógio do bolso. Esperou um momento e depois viu as horas quando o relâmpago rasgou o firmamento.
- São nove horas, sire. Falta menos de dez minutos.
Aguardaram na escuridão enquanto a chuva caía com estrépito, ressaltando no topo chato das barretinas dos soldados e ensopando os capotes e os casacos das fardas,
mais em baixo. À sua volta, as árvores que acompanhavam a margem do rio abanavam com as rajadas de vento que soavam como o mar ao atravessar os ramos folhosos. Sempre
que os relâmpagos iluminavam a paisagem, os soldados pareciam estátuas, meditou Napoleão, que encolhia o pescoço no colarinho, para tentar impedir que a água lhe
escorresse para as costas. Depois, à hora marcada, ouviu-se um ronco profundo que ecoou pela ilha vindo de ocidente, quando os canhões reunidos à frente de Mühlau
começaram a massacrar as linhas austríacas. Ao mesmo tempo, o general Legrand estaria a lançar o seu ataque de diversão, ocupando os postos avançados inimigos de
forma tão agressiva quanto possível para desviar a atenção do arquiduque Carlos do flanco esquerdo.
Assim que o canhoneio teve início, os quinhentos granadeiros da força de assalto de Masséna correram para os pequenos barcos que tinham sido levados margem abaixo
para o rio, saltando a bordo e remando contra a corrente tão depressa quanto possível. Não houve disparos das sentinelas austríacas, que estavam abrigadas da trovoada,
ou então distraídas com os sons furiosos da batalha travada a ocidente. Na escuridão, Napoleão mal conseguiu discernir os barcos a atravessar o rio, os homens a
desembarcar e depois a subir cuidadosamente a outra margem, de mosquetes prontos.
Assim que a força de assalto chegou, a primeira das pontes flutuantes foi rebocada para a sua posição. Atrás dela vieram as outras nove, surgindo do pequeno canal
onde esperavam, ocultas dos olhos austríacos. Os engenheiros colocaram-nas em posição e amarraram-nas aos postes que já tinham sido enterrados na margem da ilha
de Lobau. Napoleão fez avançar a montada até à ponte mais próxima e mandou chamar o oficial de serviço.
- De quanto tempo vai precisar para colocar a ponte em posição, tenente?
- Quinze minutos, sire - respondeu de imediato o engenheiro.
- Dou-lhe cinco minutos - contrapôs Napoleão, levando a mão ao relógio de bolso. - Vou contar o tempo.
- Sim, meu imperador. - O engenheiro fez continência e correu pela margem até junto dos seus homens, gritando já as ordens, para que enviassem um barco para o outro
lado do rio com um cabo e estacas resistentes para espetar na outra margem. Assim que as estacas foram marteladas na posição, os engenheiros puxaram o cabo atado
ao extremo da ponte e, com uma graciosidade lenta, a linha de barcas e armações cruzou a corrente até ficar estendida entre as margens. Assim que os derradeiros
cabos foram firmemente presos às estacas, o oficial de engenharia correu até ao imperador e fez continência enquanto se punha em sentido, com o peito a arfar do
esforço.
- Com a sua licença, meu imperador. A ponte está pronta, sire.
Napoleão voltou a guardar o relógio no bolso do casaco.
- Com quase meio minuto de folga. Bom trabalho.
- Obrigado, sire.
- Agora, ficaria agradecido se passasse os primeiros homens de Masséna por essa sua ponte.
- Sim, meu imperador. - O engenheiro fez continência com elegância, correu para o início da ponte e fez sinal para que a primeira companhia avançasse. Os soldados
interromperam o ritmo ao chegar à primeira plataforma e depois correram o mais depressa possível até à outra margem. Mais a jusante, Napoleão discerniu o contorno
das outras pontes a serem puxadas contra a corrente, e mais soldados de Masséna atravessaram rapidamente para a outra margem. Algumas centenas de passos em terra
e mosquetes individuais começaram a deflagrar à medida que os soldados inimigos de guarda que tinham conseguido manter a pólvora seca abriam fogo sobre o grupo de
assalto. Assim que a primeira divisão chegou ao outro lado, marchou ao longo da margem do rio para norte, encaminhando-se para a aldeia fortificada de Gross-Enzerdorff
antes de se dirigirem para Essling.
À direita, Oudinot e Davout lideraram os seus homens sobre o rio e fizeram recuar o inimigo enquanto se espalhavam pela planície e formavam no flanco direito de
Masséna. Às primeiras horas da madrugada, metade do Grande Exército já atravessara o Danúbio. Napoleão e o estado-maior passaram a ponte e estabeleceram o quartel-general
na aldeia de Uferhaus, onde os guarda-costas do imperador despejaram sem cerimónias o proprietário de uma pequena herdade e cercaram os muros com piquetes. Lá dentro,
Napoleão sentou-se a uma mesa de mapas improvisada à pressa e tomou uma malga de sopa enquanto Berthier lia ansiosamente os relatórios enviados por cada um dos batalhões
que já tinham atravessado o rio.
- Não há relatos de grande oposição, sire. Os austríacos parecem estar a retirar à nossa frente. - Berthier virou mais algumas folhas de papel antes de voltar a
erguer os olhos. - As baixas são mínimas.
- Ótimo. E quanto às pontes? Continuam inteiras?
- Que se saiba, sim. Pelo menos ainda não existem notícias em contrário.
Napoleão fitou o subordinado por um momento, interrogando-se se poderia contar com os oficiais subalternos para o manterem totalmente informado do progresso do exército
na travessia do rio. Após a última tentativa frustrada de forçar a travessia do Danúbio, Napoleão estava determinado a garantir que as vias de comunicação do exército
não sofriam perturbações. Afastou o prato para o lado.
- Berthier, envie um oficial para a margem do rio. Quero ser informado de imediato assim que acontecer seja o que for que nos possa frustrar os planos. Fiz-me entender?
- Sim, meu imperador.
Napoleão fitou o mapa, numa concentração profunda. Pela alvorada, três batalhões do exército e a Guarda Imperial seriam dispostos numa linha virada para norte ao
longo de uma frente de dez quilómetros desde a margem do Danúbio até à planície a leste. Cem mil homens. Como oposição teriam cento e cinquenta mil austríacos. Napoleão
estava confiante de que os seus soldados seriam capazes de manter a formação, mesmo em inferioridade numérica, até que as derradeiras formações do Grande Exército
atravessassem o Danúbio e aumentassem o total para cento e oitenta mil homens. Se o arquiduque Carlos retirasse, o Grande Exército seria obrigado a persegui-lo,
prolongando as linhas de comunicação e vendo-se na obrigação de deixar para trás elementos encarregues de proteger as rotas vitais de fornecimento.
Pois muito bem, decidiu-se Napoleão, o inimigo não teria a oportunidade de se afastar. Ao nascer do dia, os três primeiros batalhões teriam de ser lançados contra
os austríacos, obrigando-os a lutar.
Quando o Sol nasceu sobre a planície, tornou-se óbvio que os austríacos tinham sido apanhados de surpresa. Através do óculo, Napoleão viu linhas inimigas espalhadas
pela paisagem. A maior concentração de forças austríacas encontrava-se entre as aldeias de Aspern e Essling, contra as quais tinham sido dirigidos os ataques de
diversão da véspera. Noutros pontos formavam-se apressadamente unidades individuais, criando linhas para enfrentar a arremetida que se avizinhava. À medida que a
luz se intensificava sobre os campos alagados, viu que algumas das formações inimigas estavam já a recuar, dirigindo-se ao rio Russbach. A margem do outro lado do
curso de água era elevada, o que daria aos austríacos uma certa margem de defesa contra um ataque francês.
Não houve qualquer tentativa de contra-ataque durante as primeiras horas da manhã e a maior parte dos soldados franceses teve oportunidade de comer algum pão e beber
um pouco de água. Estavam de pé nos campos enlameados, com os mosquetes sobre o ombro, e fios estreitos de vapor escapavam-se das fardas para o ar quente. Enquanto
aguardavam, um fluxo constante de infantaria, cavalaria e artilharia atravessava o rio com celeridade. Esperava-se que mais três batalhões cruzassem o Danúbio durante
o dia e o último, comandado por Marmont, juntar-se-ia a eles no dia seguinte. Em pouco mais de um dia, quase todo o exército teria chegado à margem oposta. Era um
feito de que se orgulhar, meditou Napoleão para consigo enquanto espreguiçava os ombros e observava os homens do príncipe Eugène a descerem das pontes flutuantes.
Sentiu o coração a alegrar-se ao pensar no enteado. Eugène revelara-se um comandante dotado e, acima de tudo, um subordinado leal - ao contrário do comandante do
batalhão que esperava para atravessar na esteira dos homens de Eugène. O marechal Bernadotte tornara-se cada vez mais arrogante desde que Napoleão fora coroado imperador.
Havia pouco tempo soubera por alguns dos seus oficiais que Bernadotte comentara abertamente a sua superioridade em relação ao imperador quanto a assuntos militares.
Embora fosse tentador expulsar o marechal e livrar-se dele, a verdade era que Bernadotte era popular entre os seus homens e tinha bons contactos com os políticos
de Paris. Seria mais arriscado deixá-lo por sua conta na capital do que ali no campo, onde Napoleão o poderia vigiar com mais cuidado. Mesmo assim, havia limites
até onde o imperador estaria disposto a tolerar um oficial tão problemático.
Afastou Bernadotte dos pensamentos e voltou a ponderar sobre Eugène. Era uma pena que não fosse o pai de um homem tão dotado, refletiu Napoleão com tristeza. O seu
casamento com Josefina estivera envolto numa aura de esperança terna e ambição, mas já não era possível para ela conceber outro filho. Era demasiado velha para isso,
e mesmo que ainda fosse fértil, não estaria preparada para arriscar outro parto. Todavia, a França precisava de um herdeiro para o trono imperial. Sem um filho que
o sucedesse, Napoleão não poderia dar ao império a estabilidade de que tão desesperadamente o país precisava. Como fora pai de um filho da condessa polaca Walewska,
sabia que a sua própria fertilidade não estava em causa. Para haver um herdeiro teria de encontrar uma nova esposa. Contudo, receava as consequências dessa noção.
Apesar da descoberta dos inúmeros casos de Josefina e do fracasso em dar-lhe um filho, Napoleão amava-a com mais certeza e arrebatamento do que a qualquer mulher
que alguma vez conhecera.
Suspirou profundamente. Assim que a campanha chegasse ao fim e a Áustria tivesse sido humilhada, teria de abordar a questão do sucessor do império, por mais doloroso
que isso viesse a ser para ele e para Josefina. Decidiu que o dever e o destino teriam de se sobrepor à emoção.
Foi interrompido pela chegada de um jovem oficial da cavalaria que se pôs em sentido e fez continência ao chegar junto do imperador.
- O que foi? - interrogou Napoleão bruscamente.
- Sire, o marechal Masséna envia os cumprimentos e pede para o informar de que os austríacos estão a começar a retirar de Essling.
- Não me diga. - Napoleão franziu o cenho. Ao que tudo indicava, o arquiduque Carlos apercebera-se finalmente da situação em que se encontrava e começava a refugiar
o exército. - Diga a Masséna que tem de avançar de imediato. Ele que faça o inimigo recuar e que mantenha um contacto permanente. Não podem fugir, nem descansar.
Masséna que leve tudo à frente dele. Agora vá!
- Sim, meu imperador.
Ao longo da tarde, os soldados franceses avançaram, forçando o inimigo a recuar pela planície. As últimas nuvens há muito que se tinham dispersado e agora o Sol
brilhava no céu azul limpo. No entanto, enquanto nos céus havia serenidade, Marchfeld estava pontuado por grandes nuvens de fumo de pólvora e por despojos de guerra.
Os corpos dos mortos e dos feridos estavam espalhados sobre a erva pisada, a par de equipamento abandonado, carros de artilharia despedaçados e cavalos coxos ou
abandonados, que pastavam por entre os cadáveres. O ar estava pesado com o calor e reverberava com os tiros de canhão e os estampidos mais fracos do fogo de mosquete.
Durante a tarde, Napoleão e a sua escolta avançaram para avaliar a situação. Deteve-se junto a uma pequena igreja numa estrada poeirenta que se dirigia a norte desde
Aspern e subiu à torre com Berthier. Não havia grande espaço no cimo e tiveram de se esforçar por passar pelo velho sino de bronze antes de poderem abrir as portadas
e olhar para o campo de batalha. Os dois homens ergueram os telescópios e percorreram lentamente a linha francesa, avaliando as formações de homens e cavalos que
avançavam sob os estandartes tricolores e da águia imperial. Eram figuras escuras contra o dourado tremeluzente dos campos de trigo e o verde viçoso dos prados.
Napoleão viu que o exército formara uma cunha gigantesca, cravada no centro da linha austríaca. Sentiu o familiar formigueiro de entusiasmo no couro cabeludo ao
ver o inimigo demasiado estendido.
- Berthier, está a ver aquilo?
- Sire? - Berthier baixou o óculo e aguardou pacientemente que o imperador voltasse mais uma vez a analisar o campo de batalha, até que Napoleão também baixou o
óculo e se virou com um sorriso frio.
- Berthier, se atacarmos com celeridade, já os temos. Venha!
Napoleão desceu à frente pelos degraus estreitos da torre e saíram para a nave fresca. Napoleão dirigiu-se ao altar e afastou os ornamentos com o braço.
- Deixe-me ver o mapa.
Berthier soltou a pasta de couro com os documentos que tinha pendurada ao ombro. Tirou o mapa, desdobrou-o e abriu-o sobre o altar. Napoleão chegou-se à frente,
fitando-o por um instante, com os olhos a saltar entre as indicações, e por fim anuiu.
- A nossa linha estende-se assim. - Percorreu com o dedo desde o Danúbio para leste, em direção a Wagram, e depois fez um desvio para sul, ao longo do rio Russbach.
- A ala direita do inimigo está centrada em Wagram. Masséna pode tratar da direita, Oudinot e Davout podem atacar a esquerda, e depois usamos as nossas reservas
para atravessar aqui. - Bateu com o dedo no mapa. - Em Wagram. Se formos bem-sucedidos, podemos virar e encurralar-lhes a ala direita contra o Danúbio, e assim aniquilamos
um terço do exército do arquiduque Carlos. - Os olhos cintilaram-lhe.
Berthier observou o mapa por um instante.
- E quanto ao arquiduque João, sire? E se ele aparecer pelo nosso flanco? Pode ser perigoso.
Napoleão abanou a cabeça.
- Envie uma divisão de cavalaria para vigiar o nosso flanco. Se ele se aproximar do campo de batalha antes de termos tratado do irmão, eles podem retê-lo enquanto
derrotamos o arquiduque Carlos.
- Muito bem, sire. A que horas damos início ao ataque?
Napoleão puxou do relógio.
- São cinco horas. Não podemos começar depois das sete. Assim ficamos com perto de três horas de luz do dia para vergarmos os austríacos. As ordens têm de ser dadas
no máximo até às seis. - Napoleão despiu o casaco e atirou-o para o lado do altar. - Ao trabalho, Berthier!
As peças de artilharia do Grande Exército abriram fogo sobre o inimigo pouco depois das sete da tarde. Napoleão observou com satisfação as bolas sólidas a ceifarem
as densas formações inimigas. Depois foi a vez de os canhões inimigos responderem ao fogo, abrindo espaços nas colunas francesas que aguardavam pela ordem de avanço.
Assim que considerou que o centro austríaco estava a começar a vacilar ante o bombardeamento intenso, Napoleão deu ordem para o início do ataque. Quando as peças
francesas se silenciaram, os tambores começaram a rufar e a infantaria aproximou-se dos austríacos expectantes. Mais uma vez, longas nuvens de fumo espesso espalhavam-se
pela paisagem, envolvendo a batalha, e Napoleão esperou com a Guarda Imperial, logo atrás do batalhão de Eugène.
À medida que os sons da investida foram aumentando, Napoleão ergueu-se nos estribos e esforçou-se por ver como se estava a sair a primeira divisão. Eugène escolhera
o general MacDonald, descendente de um aristocrata escocês exilado, para abrir caminho com a sua divisão de soldados italianos. À luz cada vez mais fraca do final
da tarde, Napoleão mal conseguia distinguir as figuras distantes dos seus homens a começarem a entrar nas ruas de Wagram. Aquiesceu, satisfeito.
- Julguei mal os homens de MacDonald. Receava que lhes faltasse o espírito dos franceses, mas olhem só para eles agora. A carregar como leões!
- Sim, sire - replicou Berthier, desviando o olhar dos primeiros relatórios que lhe tinham chegado vindos dos outros setores da linha de batalha. Pigarreou nervosamente
e dirigiu-se ao imperador. - Sire, Oudinot e Davout estão a sofrer baixas pesadas.
- É claro que estão. Isso seria de esperar num ataque frontal.
- Mas o inimigo está a manter-se firme, sire. As nossas colunas foram detidas. E estão a perder homens.
A fronte de Napoleão enrugou-se e ele pensou por um momento, antes de responder.
- Não interessa. A batalha vai ser decidida em Wagram. Assim que a tomarmos, o espírito do inimigo vai ceder. Eu sei que sim.
Ao observar os homens de MacDonald a avançar para o interior da vila, Napoleão sentiu o triunfo a aquecer-lhe o peito. O Grande Exército estava à beira de mais uma
grandiosa vitória. Assim que a Áustria fosse derrotada, iria garantir que não voltariam a desafiar a França e o seu imperador. Claro que os termos duros de um qualquer
tratado não chegariam. Napoleão pretendia encontrar forma de unir o destino de ambas as nações.
O intensificar súbito do fogo dos mosquetes vindo da direção de Wagram interrompeu-lhe o fluxo de pensamentos.
- Parece que MacDonald se deparou com alguma oposição determinada - comentou Berthier.
- O arquiduque Carlos deve ter reforçado Wagram. Nem ele é estúpido a ponto de não ver o perigo que tem à frente. Mesmo assim, pouco importa. Eugène vai reforçar
a divisão principal por sua vez. Os austríacos vão ficar sem reservas antes de nós.
- É claro que tem razão, sire.
Napoleão levantou o nariz e continuou a fitar Wagram, tentando discernir os acontecimentos na batalha. Depois as primeiras baixas italianas começaram a surgir a
coxear, vindas da povoação, regressando ao resto das forças de Eugène, formadas um pouco à frente de Napoleão e do seu estado-maior. A seguir aos feridos capazes
de caminhar, apareceram os que estavam a ser ajudados pelos camaradas a chegar à retaguarda, e Napoleão mirou-os friamente, sempre desconfiado de homens ilesos que
deixavam a linha de batalha fosse por que motivo fosse. Havia sempre quem se aproveitasse dos ferimentos de um camarada para fugir aos combates. Em breve, o fluxo
de homens que saíam da vila transformou-se numa enxurrada; alguns tinham chegado mesmo a abandonar as armas na pressa de fugir.
- Malditos cobardes! - gritou uma voz da ala da frente do batalhão da Velha Guarda.
- Silêncio! - vociferou um sargento. - Arranco os tomates ao próximo homem que abrir a boca!
Os veteranos deixaram-se observar as centenas de homens da divisão de MacDonald que saíam de Wagram. Os sons de batalha começaram a esbater-se e ao longe ouviram-se
vivas débeis.
Berthier olhou ansiosamente para o imperador.
- Sire, parece que eles cederam.
- Disparate!
No entanto, os soldados continuaram a aparecer, correndo para junto do resto da divisão. Napoleão sentiu-se ficar irritado perante tamanha indisciplina e cobardia.
- Porque é que não há quem reúna aqueles idiotas? Antes que perturbem o resto das tropas. - Napoleão inclinou o pescoço na direção do grupo de estandartes que assinalava
a posição do príncipe Eugène e dos seus subordinados. - Pelo amor de Deus, façam alguma coisa!
O resto da divisão de MacDonald saiu de Wagram, perseguidos de perto pelos austríacos jubilantes, que abatiam os italianos em fuga, ou os trespassavam com as baionetas
sem um pingo de misericórdia. Perdidos de medo, os italianos correram para a segurança dos camaradas mais firmes, afastando as primeiras alas e quebrando a formação.
Berthier acenou com a cabeça para as figuras dispersas que se espalhavam durante a fuga de Wagram.
- Vêm para aqui, sire. Devíamos ordenar à Guarda que abra as fileiras para os deixar passar.
- Não - contrapôs Napoleão, com firmeza. - Não podemos permitir que aquela escumalha nos deixe a Guarda num caos. Ordene aos homens que fixem as baionetas.
- Sire?
- Faça-o! - insistiu Napoleão, num tom brusco. - Imediatamente.
- Sim, meu imperador.
À medida que a ordem foi transmitida ao longo dos batalhões da Velha Guarda posicionada na primeira fila, os compridos espigões de aço triangular rasparam nas bainhas
e foram instalados com estrépito no cano dos mosquetes. Napoleão e os seus oficiais retiraram-se para trás do batalhão mais avançado e observaram os sargentos a
dar ordem para apontar baionetas. Uma muralha de pontas letais foi apresentada aos italianos que fugiam em direção à Guarda. Ao ver a ameaça e a fria expressão de
desprezo no rosto dos veteranos, os homens mudaram de rumo e correram para os espaços entre as unidades francesas. Quando os últimos homens da divisão de MacDonald
entraram, os austríacos em perseguição detiveram-se perante as novas unidades inimigas.
Com uma precisão de parada, a Guarda Imperial disparou várias salvas que desfizeram a primeira onda inimiga. Um punhado de oficiais austríacos audazes tentaram reunir
os homens e voltar a formar alas para devolver o fogo, mas foram rapidamente abatidos, juntando-se ao resto dos cadáveres, espalhados pelo terreno ensanguentado.
Os soldados austríacos começaram a recuar e em breve corriam para o abrigo das casas à entrada de Wagram. À luz que desaparecia, os batalhões franceses que tinham
sido quebrados pelos homens da divisão de MacDonald voltaram a formar e ficaram prontos para avançar mais uma vez.
- Ordeno um contra-ataque por parte do príncipe Eugène? - indagou Berthier.
Napoleão abanou a cabeça.
- Já é muito tarde. Vai ficar escuro daqui a meia hora. - Soprou as faces, frustrado. - Interrompa o ataque. Ordene a todas as formações que recuem e montem acampamento
para passar a noite.
Assim que os derradeiros combates esmoreceram e um silêncio apreensivo se instalou sobre a planície, Napoleão convocou os marechais ao quartel-general para discutir
os planos para o dia seguinte. Contudo, primeiro o imperador fez uma derradeira visita às pontes, para garantir que os comboios de suprimentos tinham começado a
atravessar o rio, vindos da ilha de Lobau. As pontes flutuantes baixaram sob o peso das compridas caixas da artilharia e das carroças com munições para os soldados
da infantaria e da cavalaria. Os engenheiros tinham disposto candeeiros ao longo de cada ponte e os clarões ondulavam à passagem dos veículos.
Satisfeito por saber que os homens do Grande Exército não teriam falta de suprimentos no dia seguinte, Napoleão regressou ao quartel-general de campanha na igreja.
O grupo de oficiais do estado-maior e de escoltas reunidos à entrada revelou que os oficiais superiores já tinham chegado. Napoleão desmontou, entregou as rédeas
a um palafreneiro e respondeu apressadamente às saudações dos homens de cada lado das portas da igreja antes de entrar no edifício. Do altar chegava o som de vozes
e à luz de um punhado de velas que ardiam nas paredes, Napoleão viu os marechais ali reunidos. A voz do marechal Bernadotte sobrepunha-se claramente às conversas
discretas dos restantes.
- É como vos digo, foi uma oportunidade desperdiçada. O imperador atrasou demasiado o ataque e ele não devia ter tentado investir com a linha toda.
- A sério? - retorquiu Davout secamente. - E o que teria o marechal feito no lugar do imperador?
Seguiu-se uma pausa e os outros marechais pararam de falar. Bernadotte pigarreou e respondeu:
- Se estivesse à frente do exército, neste momento estaríamos a celebrar uma grande vitória. Teria usado uma manobra especial que derrotaria o inimigo. Teria...
Napoleão decidiu que ouvira quanto bastasse e avançou para o altar. Quando os marechais se puseram em sentido, mandou-os ficar à vontade.
- Não há tempo para formalidades, cavalheiros. Temos uma batalha para planear.
Todos se reuniram à volta do altar e Napoleão fitou o mapa à sua frente enquanto ordenava as ideias.
- Temos motivo para ficarmos satisfeitos com os resultados de hoje, meus amigos. A travessia do Danúbio pelo Grande Exército apanhou o nosso inimigo completamente
de surpresa. Agora basta-nos desferir o golpe final e esmagar o arquiduque Carlos.
Fez-se um breve silêncio, após o que Davout tossicou e bateu com o dedo na linha do rio Russbach.
- Sire, quais são as últimas informações quanto à posição do arquiduque João?
- As nossas patrulhas a cavalo não indicam qualquer sinal dele até trinta quilómetros, quer a sul, quer a leste daqui. Não nos preocupa.
- E se o arquiduque João conseguir chegar ao campo de batalha e nos atacar o flanco?
- Se, se, se. - Napoleão franziu o cenho. - Já lhe disse que o arquiduque João não nos interessa. Não está nem sequer perto de conseguir intervir.
Davout acenou ao de leve com a cabeça.
- Se o diz, sire.
Napoleão sentiu-se ligeiramente tonto quando tentou reprimir a fúria que sentia. Havia dias que não dormia devidamente. Estivera acordado quase sempre e sentia os
membros pesados. Precisou de algum esforço para pensar claramente. Esfregou os olhos e mirou os oficiais.
- Cavalheiros, podem regressar aos vossos comandos. Berthier irá distribuir as ordens durante a noite.
Quando os marechais deixaram a igreja, Napoleão decidiu mudar o quartel-general para mais perto do setor decisivo da batalha que se avizinhava. Deixando Berthier
a tratar dos preparativos para que o estado-maior o acompanhasse, Napoleão montou a cavalo e seguiu para norte, até à aldeia de Raasdorf, parando numa pequena elevação
pouco atrás do flanco direito de Masséna. Na escuridão conseguiu distinguir a silhueta vaga das colunas de homens agrupadas à espera do ataque. Quando o primeiro
batalhão da Velha Guarda chegou para proteger o novo posto de comando do imperador, Napoleão ordenou que os tamborileiros empilhassem os instrumentos para lhe preparar
um abrigo. Depois, com um capote enrolado como almofada, deitou-se para dormir algumas horas.
Berthier abanou-lhe gentilmente o ombro às três da madrugada e Napoleão abriu os olhos, com a mente ainda perturbada pela exaustão. Um soldado da guarda segurava
um candeeiro atrás de Berthier.
- Que horas são?
- Passa das três, sire.
Napoleão endireitou-se e depois levantou-se rigidamente, pressionando os punhos contra o fundo das costas enquanto esticava a coluna.
- O exército está em posição?
- Sim, meu imperador. Os quartéis-generais de todos os batalhões relatam que estarão prontos para atacar às quatro.
Napoleão olhou em seu redor. Embora ainda estivesse escuro, conseguia vislumbrar as formas vagas dos homens que formavam lentamente. O ar fresco da noite estava
agitado com as conversas abafadas e com o arrastar das botas. Sentia-lhes a tensão com a perspetiva da batalha que se aproximava. Também havia ansiedade e receio:
algo que se notava no tom das vozes. Napoleão virou-se para Berthier e obrigou-se a sorrir.
- Tudo corre bem. As primeiras divisões vão cair sobre o inimigo quando este ainda estiver a tomar o pequeno-almoço, certo?
Berthier assentiu, com uma risada nervosa.
- Sim, meu imperador.
- Gostava de ver a cara do arquiduque Carlos quando ele se aperceber de que vamos marchar contra ele uma segunda vez no mesmo número de dias.
Napoleão pediu pão e água e sentou-se numa pilha de lenha, enquanto o exército continuava a formar à sua volta. Mais a oriente, um brilho débil anunciava a chegada
da alvorada. A cada momento que passava, Napoleão conseguia ver com mais pormenor o campo que o rodeava, e as dezenas de milhares de soldados prontos. Levantou-se,
sacudiu as migalhas do casaco e puxou do relógio.
- Dez para as quatro - resmungou.
Ouviu-se um repentino estrondo de fogo de canhão a sudeste e Napoleão e os oficiais do estado-maior viraram-se para olhar.
- Isto veio da direção das tropas de Davout. - Napoleão franziu o cenho. - Que raios estará ele a tramar? As ordens diziam que o ataque teria início às quatro. Deve
ser um qualquer caçador de glória com um dedo do gatilho leve. Bem, seja quem for, antes do fim do dia vai ter de se ver comigo. - Dirigiu-se abruptamente a Berthier.
- Bem, já não vale a pena esperar pelas quatro. Ordene a todos os batalhões que comecem de imediato o ataque.
- Sim, sire.
O fogo de canhão distante cresceu rapidamente para um ronco contínuo, à medida que a linha avançada começava a correr em direção ao inimigo. Depois, com um estrondo
ensurdecedor, as peças das tropas de Masséna abriram fogo sobre o centro austríaco, fustigando a aldeia de Aderklaa, a pouca distância de Wagram, à luz azulada da
pré-alvorada. Com o continuar do bombardeamento, Napoleão observou os oficiais das colunas avançadas de infantaria a percorrerem as alas, gritando o seu encorajamento
aos soldados.
Berthier apareceu a seu lado com uma expressão nervosa.
- O que foi?
- Sire, uma mensagem de Davout. Ele está a ser atacado.
- Atacado?
- Sim, sire. O inimigo caiu-lhe sobre o flanco direito. Ele está a ser empurrado.
- Não. O Davout tem de estar enganado. Deve ser apenas um contra-ataque local. Nada mais do que isso.
- O mensageiro diz que os austríacos estão a atacar em força, sire.
- Disparates!
Antes que Napoleão pudesse dar mais vazão à sua fúria, apercebeu-se de um recrudescimento súbito do som dos tiros à sua direita. Virou-se e fitou o flanco, ao início
sem conseguir entender o óbvio.
- Ora vejam só. Finalmente, o arquiduque Carlos aprendeu a tomar a iniciativa. - Virou-se para Berthier. - O inimigo atacou antes de nós.
Capítulo 10
- Ordene a todos os comandantes de batalhão que mantenham as posições até que eu descubra ao certo o que se está a passar. - Napoleão voltou a escutar a canhonada
à sua direita e tomou nova decisão. - Temos de nos preparar para reforçar Davout. Envie a reserva de cavalaria e toda a artilharia a cavalo para cobrir o extremo
do nosso flanco direito.
- Sim, sire. Deseja que ordene a Masséna que detenha o bombardeio?
- Não. Isso pode ajudar a destabilizar o inimigo. Ele que continue. - Napoleão coçou ansiosamente o queixo por um instante. A situação entre os dois exércitos invertera-se.
Em vez de lançar um ataque decisivo para quebrar os austríacos, o Grande Exército estava, ele próprio, a ser fustigado. Não se atrevia a prosseguir com o plano original
até perceber as intenções do arquiduque Carlos. - Vou ter com Davout e ver com os meus olhos o que está a acontecer. O resto do exército que mantenha a posição e
que se prepare para receber novas ordens. Mais uma coisa: a Guarda Imperial que se desloque três quilómetros para a direita, para o caso de os convocar à pressa.
Napoleão viu o breve ar de surpresa de Berthier. A ordem para a mudança de posição da Guarda era um claro assumir de que o imperador estava ansioso quanto ao destino
de Davout e das suas forças.
- E se for o arquiduque João? - perguntou Berthier, num tom baixo.
- Não é. - Napoleão dirigiu-se à égua branca a cargo de um dos palafreneiros. - Faça um degrau.
O palafreneiro largou obedientemente as rédeas e juntou as mãos enquanto se baixava. Napoleão segurou nas rédeas assim que foi içado para a sela e dirigiu-se a Berthier.
- Quero que me informe imediatamente se acontecer alguma coisa, se o inimigo fizer novos movimentos!
- Sim, meu imperador.
Napoleão virou o cavalo e partiu a galope pelo centro da planície em direção ao flanco direito do Grande Exército. Seguiu imerso em pensamentos e ignorou os vivas
dos homens pelos quais passou. Apesar do que dissera a Berthier, receava que o ataque contra Davout prenunciasse a chegada do arquiduque João. O flanco direito do
Grande Exército ficaria vulnerável aos reforços austríacos.
À sua frente, nuvens de fumo de pólvora voluteavam no horizonte oriental, bloqueando os primeiros raios de Sol. Napoleão apressou-se a chegar ao quartel-general
do batalhão nos arredores da aldeia de Glinzendorf, onde encontrou o estado-maior do marechal Davout a carregar apressadamente para carroças as arcas de documentos.
O estampido dos mosquetes e o ribombar dos canhões estava a menos de um quilómetro a oriente.
- Vós! - Napoleão apontou para o oficial do estado-maior que se encontrava mais próximo. - Onde está Davout?
- O marechal foi até ao flanco, sire. Algumas das nossas unidades fragmentaram-se quando o inimigo atacou. Davout foi reunir os homens.
Napoleão deu meia-volta ao cavalo e percorreu as formações de reserva das tropas de Davout, até que passou por uma pequena elevação e viu a batalha no flanco a desenrolar-se
na paisagem à sua frente. O Sol começara a nascer sobre o pico das colinas distantes e à sua luz Napoleão pôde ver as colunas escuras do inimigo a avançar. Tinham
cruzado o Russbach e atacado os homens de Davout enquanto estes formavam para dar início ao seu próprio ataque. As figuras minúsculas que eram os soldados em fuga
continuavam a espalhar-se pela planície, tentando distanciar-se do inimigo. A segunda linha francesa mantivera-se firme e estava agora embrenhada numa troca de salvas
com os austríacos. À direita da linha, Napoleão distinguiu um grupo de oficiais e colocou o cavalo em marcha.
Enquanto se dirigia a Davout, este estava ocupado a dar ordens aos subordinados, para que acalmassem os homens e se mantivessem firmes. Alguma distância à retaguarda,
Napoleão viu a artilharia a cavalo e a cavalaria que enviara para cobrir o flanco do exército.
- Meu imperador. - Davout saudou-o com uma expressão ansiosa. - Não esperava vê-lo por aqui.
- Não?
- Julguei que estivesse a liderar o ataque.
- O ataque foi suspenso até que este flanco esteja seguro. Qual é a sua situação?
- Apanharam-nos de surpresa, sire. Os canhões deles abriram fogo pouco antes da alvorada e desmembraram-me as formações avançadas. Depois mandaram a infantaria atravessar
o rio.
- E quanto à cavalaria?
- Até agora não há sinais, sire. Imagino que a estejam a guardar para dar início a uma perseguição, caso a infantaria consiga atravessar as minhas linhas. No entanto
- Davout apontou para o fumo que aparecia em novelos ao longo da linha de tiro, - por agora conseguimos detê-los.
Napoleão olhou através do fumo e viu mais unidades inimigas a marchar para apoiar o ataque. Davout tinha razão. As suas forças seriam capazes de aguentar sozinhas,
mas isso não bastava. Napoleão precisava que elas recuperassem a iniciativa e o ataque.
- Mantenha a posição, Davout. Assim que o inimigo começar a recuar, siga-os e continue a reprimi-los, entendido?
- Sim, meu imperador.
Napoleão acenou ao de leve com a cabeça, virou o cavalo para as baterias distantes de artilharia móvel e galopou na sua direção. O comandante das peças, o general
Nansouty, ficou tão surpreendido como Davout ao ver o imperador tão longe do centro de operações e começou a titubear um cumprimento antes que Napoleão o interrompesse.
- Nansouty, leve as suas peças para a direita da linha de Davout. Está a ver aquele renque de árvores ao longo do carreiro?
Nansouty seguiu a direção indicada pelo imperador. A cerca de um quilómetro e meio viam-se alguns choupos, que ensombravam uma estrada campestre.
- Sim, sire.
- Essa será a sua linha de fogo. A distância deverá ser adequada a metralha. Quero que dispare para o flanco inimigo quando este se aproximar de Davout. Continue
com o fogo até que quebrem a unidade.
- Sim, sire.
- Não há tempo a perder. Vá!
Quando as peças móveis se afastaram, com os tirantes a retinir, Napoleão regressou para junto de Davout e dos seus oficiais. Indicou a coluna de Nansouty que se
dirigia ao flanco.
- Em breve vão ter apoio daquela direção. Aproveitem-no.
- Sim, sire.
Observaram as baterias de Nansouty a dispor-se logo à frente do renque de árvores. Os artilheiros carregaram rapidamente as armas e momentos depois viu-se um clarão
e uma nuvem de fumo, quando a primeira peça disparou, sendo rapidamente seguida pelas outras. Napoleão dirigiu a atenção às colunas austríacas que se aproximavam
e viu vários homens a serem repentinamente desfeitos, depois mais alguns, e em breve o flanco do ataque inimigo ficava marcado por um rasto de cadáveres. O progresso
dos austríacos abrandou, com os batalhões laterais fustigados a parar e a reorganizar as fileiras, após o que recomeçavam o avanço, até que eram mais uma vez atingidas
por outra salva das peças de Nansouty.
À medida que as baixas se iam avolumando, a infantaria de Davout começou a contra-atacar, avançando entre cada salva de disparos de mosquete. Apanhado entre duas
frentes, o flanco esquerdo do ataque inimigo começou a ceder quando os homens mais receosos recuaram, ao início, e depois fugiram a correr. O ataque austríaco fraquejou
por um instante e depois o medo varreu-o como uma onda. Batalhão após batalhão começou a recuar, sempre com as armas de Nansouty a despejar cones de metralha letal
sobre as fileiras que se desmembravam.
Napoleão dirigiu-se a Davout.
- Vou regressar ao quartel-general. Sabe o que tem a fazer.
- Sim, meu imperador.
- Então boa sorte, marechal.
Napoleão puxou as rédeas e virou a montada para regressar para oeste, enquanto os tamborileiros de Davout marcavam o ritmo do avanço e os soldados gritaram um viva
quando deram início à perseguição dos austríacos em retirada.
Assim que regressou ao posto de comando avançado, Napoleão sentiu que algo de errado se passava quando Berthier se aproximou rapidamente com uma expressão de alívio
pela chegada do imperador.
- O que aconteceu?
- Aderklaa caiu em mãos inimigas.
- Como pode isso ser? Bernadotte tinha quase uma divisão na aldeia. Transformaram-na numa fortaleza. - Napoleão sentiu um peso no estômago. - O que aconteceu?
- O marechal Bernadotte ordenou aos seus homens que abandonassem a aldeia, sire. Ele informou-me de que fora obrigado a encurtar a linha de batalha, recuando os
homens entre Masséna e o príncipe Eugène.
Napoleão fechou brevemente os olhos e respirou fundo. A aldeia seria a base do ataque contra o centro da linha austríaca. Agora teria de ser retomada, às custas
das vidas de muitos dos seus homens. Tudo por causa do marechal Bernadotte. Expirou por entre os dentes cerrados e abriu os olhos.
- Envie ordens a Bernadotte. Ele tem de retomar Aderklaa. A qualquer preço.
- Sim, meu imperador.
Enquanto Berthier preparava apressadamente as ordens, Napoleão desmontou. Quando chegou ao chão, sentiu-se tão zonzo que se viu obrigado a segurar-se à maçaneta
da sela, receando poder cair. Sentiu-se furioso com o próprio corpo por aquele momento de fraqueza. Sabia que estava a sofrer de exaustão. Há dez anos teria suportado
tudo aquilo sem pensar duas vezes, e Napoleão apercebeu-se de que a idade o estava a afetar. Deixou-se ficar de pé por um instante até sentir a mente a clarear e
depois dirigiu-se cuidadosamente à mesa dos mapas, onde se deixou cair numa cadeira. Estalou os dedos na direção do ordenança mais próximo.
- Quero alguma coisa para comer. Alguma coisa para beber. Já.
- Imediatamente, meu imperador.
O ordenança regressou com um pedaço de queijo duro, algum pão e um frasco de cerveja. Napoleão não gostava da bebida e só foi beberricando enquanto se obrigava a
comer.
Pouco depois das seis da manhã, a divisão de Bernadotte de soldados saxões deu início ao ataque a Aderklaa. Napoleão abandonou a refeição e mandou buscar o cavalo.
Pôs-se a caminho para observar a ação mais de perto, indicando a Berthier que o acompanhasse com uma pequena escolta de oficiais do estado-maior e lanceiros.
O marechal Bernadotte estava perto da frente, encorajando a infantaria saxónica a avançar, sendo recebida por uma chuva de fogo dos defensores austríacos. O inimigo
servia-se de todas as defesas preparadas pelos homens de Bernadotte havia poucas horas, disparando por trás de muros e a partir de aberturas nas casas no extremo
da aldeia. Mesmo assim, os saxões avançavam a bom ritmo, com os primeiros batalhões a cerrar fileiras à medida que os soldados eram abatidos pelas balas inimigas.
Enquanto observava, Napoleão viu mais forças inimigas a aproximar-se pela retaguarda da aldeia. Desejou que Bernadotte lançasse os homens em frente, antes que os
defensores austríacos pudessem ser reforçados.
Seguiu-se uma derradeira salva de tiros de mosquete à queima-roupa antes de os saxões chegarem ao seu destino e começarem a atacar o inimigo com baionetas. Napoleão
ergueu o telescópio e, pelo fumo de pólvora que se dispersava, avistou as sangrentas escaramuças corpo a corpo nos arredores da aldeia. Um jovem oficial intrépido
incitava os homens a saltar o muro de um jardim. Vários homens tombaram como pinos de boliche quando avançaram por um portão, diretamente contra os mosquetes dos
soldados que os esperavam. Dois homens ajudavam um camarada com a perna esmagada a chegar à retaguarda. Um sargento derrubou um soldado austríaco com a coronha do
mosquete, antes de inverter a arma e de lhe trespassar a garganta com a baioneta.
Napoleão baixou o telescópio. O ataque de Bernadotte parecia estar a correr bem. Quando a aldeia regressasse a mãos francesas, o resto do assalto do exército contra
a linha austríaca podia ter início. As crises da manhã tinham finalmente sido contidas. Virou-se para Berthier.
- Assim que Bernadotte confirmar que Aderklaa ficou livre de inimigos, dê ordem a todos os comandos para que iniciem os ataques.
- Sim, meu imperador. - Berthier aquiesceu e depois olhou além de Napoleão, com uma expressão curiosa.
- O que se passa agora? - resmungou Napoleão, enquanto se virava.
As colunas saxónicas que entravam na aldeia tinham parado. De ambos os lados, recuando à volta delas, corriam os integrantes dos primeiros batalhões. Alguns dos
oficiais e sargentos tentaram detê-los, mas foram rapidamente afastados, ou derrubados ante a fuga dos saxões. Napoleão voltou a erguer o telescópio e viu mais clarões
de tiros e fumo entre os edifícios, depois o verde das fardas austríacas e acima deles o estandarte da Áustria, a ser agitado em triunfo. Uma salva acertou nas primeiras
filas de uma das colunas saxónicas paradas no exterior da aldeia. Foi quanto bastou para lhes quebrar o espírito vacilante e também eles deram meia-volta e fugiram.
Daí a pouco tempo, toda a divisão saxónica estava a correr.
Um cavaleiro ultrapassou a infantaria em fuga, atravessando-se no seu percurso na diagonal e seguindo diretamente na direção de Napoleão e da sua comitiva.
- É o Bernadotte - indicou Berthier, baixando o telescópio. - Deve estar a tentar chegar à frente dos homens para os reunir.
- Ah, sempre a liderar à frente, como é habitual - desdenhou Napoleão. - Até na retirada.
Berthier relanceou os olhos na direção do imperador e comentou em voz baixa:
- Sire, o marechal é um homem corajoso, mesmo tendo uma certa inclinação para a autopromoção.
- Uma certa inclinação? - Napoleão exibiu um sorriso gelado. - Ora, aquele homem é absolutamente dedicado a ele próprio.
Berthier pareceu fazer menção de responder, mas reconsiderou e manteve a boca fechada.
Observaram Bernadotte a estacar a montada à frente de um grupo de soldados e começar a admoestá-los, apontando com o braço na direção da aldeia. Alguns dos mais
próximos do marechal pararam e olharam-no brevemente, antes de se voltarem e correrem atrás dos camaradas. Bernadotte chamou-os e depois lançou o cavalo a galope,
numa tentativa de voltar a pôr-se à frente dos soldados. Perante ele, a planície estava coberta de milhares de saxões, com os primeiros a aproximar-se de Napoleão
e da sua comitiva. Berthier dirigiu-se ao comandante da escolta e ordenou-lhe que mandasse avançar os homens para proteger o imperador. Os lanceiros levaram as montadas
e pararam dez passos à frente de Napoleão, numa linha irregular, onde baixaram a ponta das armas. Os saxões em fuga começaram a desviar-se para os lados para evitar
o novo perigo. O marechal Bernadotte parou a cem passos dali e desembainhou a espada, virando-se para os saxões.
- Cobardes! - bradou. - Mantenham-se firmes! Juntem-se a mim, malditos sejam!
Esticou-se na direção do mais próximo dos seus homens e bateu-lhe nos ombros com a parte chata da espada.
- Aqui! Aqui comigo!
Napoleão fitou-o com uma fúria gelada. Além de não ter sido capaz de impedir a fuga da divisão destroçada, ainda por cima Bernadotte fora a causa do problema, ao
abandonar a aldeia e depois tendo de obrigar os soldados a tentar retomá-la, com resultados desastrosos. Pusera em risco não só os homens às suas ordens, mas também
o plano de batalha do exército. Napoleão respirou fundo, estalou a língua e fez avançar o cavalo.
- Berthier, venha comigo. Quero que testemunhe isto.
Passaram por entre os lanceiros e seguiram com as montadas em direção a Bernadotte. Assim que o marechal os viu, embainhou a espada, pegou nas rédeas e trotou até
Napoleão. Fez continência ao parar o cavalo.
- Sire, lamento informar que o ataque falhou. - Bernadotte abriu o braço para indicar os saxões em fuga. - Tal como vê, os meus homens falharam-me.
- A sério? - Napoleão cruzou as mãos sobre a maçaneta da sela e lançou a Bernadotte um olhar de desprezo. - Diga-me, marechal, era esta a manobra especial que tencionava
usar para obrigar o arquiduque Carlos a depor as armas?
A boca de Bernadotte abriu-se, após o que a surpresa deu lugar à ansiedade, quando recordou de como na véspera se gabara perante os outros marechais, e apercebeu-se
de que Napoleão o devia ter ouvido.
- Sire, eu...
- Silêncio, Bernadotte! - atalhou Napoleão. - Falhou-me pela última vez. Fica a partir deste momento aliviado do comando das tropas que liderou com tamanha incompetência.
- Sire, não - protestou Bernadotte, mas Napoleão continuou.
- Ordeno-lhe que deixe este campo de batalha imediatamente. Vai sair do Grande Exército antes do final do dia e regressar a França. A seu tempo decidirei o seu destino.
Agora saia da minha presença.
- Não pode fazer isto! - atirou Bernadotte. - Sou um marechal de França!
- Já não é. Desgraçou-se. Vou repetir. Saia da minha frente, caso contrário mando-o prender e levar acorrentado para a retaguarda.
Bernadotte endireitou-se na sela e abriu a boca, fazendo menção de falar, mas Napoleão virou-lhe as costas e afastou-se por entre a escolta de regresso aos seus
oficiais do estado-maior.
- Não permitam que aquele homem se aproxime de mim - ordenou em voz alta, com um aceno de cabeça na direção de Bernadotte. Por um instante, Bernadotte fitou, impotente,
Napoleão e depois olhou para Berthier com uma expressão inquiridora. Este abanou a cabeça ao de leve. Com um toque dos calcanhares, Bernadotte deu meia-volta ao
cavalo na direção da ponte flutuante mais próxima de Essling e afastou-se, levando a montada a um trote, passado um pouco, e depois a um galope: tão afetado se sentia
com o embaraço do tratamento às mãos de Napoleão que se viu obrigado a deixar o campo tão depressa quanto possível.
Napoleão lançou-lhe um breve olhar e resmungou:
- Boa viagem.
Berthier pigarreou.
- Terá sido sensato, sire? A meio de uma batalha?
Napoleão assentiu.
- Não podia dar-me ao luxo de permitir que Bernadotte voltasse a estragar tudo num momento crítico, não acha? - Lançou um olhar penetrante ao chefe do estado-maior.
- Não, meu imperador. É claro.
- Ótimo. Nesse caso teremos de nos ver sem o génio tático de Bernadotte para nos ajudar. Muito bem, envie uma ordem a Masséna. Ele que volte a tomar Aderklaa imediatamente.
Pelo menos Masséna não me vai falhar.
- Sim, sire.
- E esperemos que tenha sido a última surpresa esta manhã.
No espaço de uma hora, pouco depois de o relógio da igreja de Aderklaa ter batido as nove, a tricolor fora desfraldada na torre da igreja. Napoleão acabara de enviar
um ordenança a transmitir as suas felicitações e gratidão a Masséna, quando lhe chegou um mensageiro do general Boudet, comandante da divisão que guardava o flanco
esquerdo do exército.
- O que foi agora? - indagou Napoleão, fatigado.
- O general Boudet informa que foi obrigado a recuar até à cabeça de ponte de Mühlau, sire.
- Obrigado a recuar? - Napoleão franziu o cenho. - O que aconteceu? Desembuche, homem!
- Sire, estamos a ser atacados por dois batalhões. Somos apenas uma divisão. Fomos repelidos.
Napoleão estava prestes a dar vazão à fúria pela nova frustração quando o significado do relatório se tornou subitamente claro. Aquilo fazia parte do plano do arquiduque
Carlos. O comandante inimigo devia tencionar rodear ambos os flancos do Grande Exército, mas, por qualquer motivo, o ataque ao flanco esquerdo de Napoleão fora atrasado
até algumas horas depois do assalto ao direito. Era uma má altura para os franceses, refletiu Napoleão com azedume. Com a atenção de Masséna dirigida à reconquista
de Aderklaa, ficara aberta uma passagem entre o Danúbio e o flanco esquerdo do Grande Exército. Agora, o arquiduque Carlos tentava capturar ou destruir as pontes
que ligavam à ilha de Lobau. Se o conseguisse, iria cortar as linhas de abastecimento que serviam o Grande Exército.
- Até onde avançou o inimigo?
- Quando deixei o general Boudet, os austríacos aproximavam-se de Essling, sire.
- Essling! - Berthier virou-se para Napoleão com um ar de horror. Ao olhar para os oficiais do estado-maior, Napoleão viu que a informação os sobressaltara. Também
havia receio em algumas das expressões. Tinha de acalmar os nervos. Se não desse o exemplo, tudo estaria perdido. Obrigando-se a assumir uma expressão calma, Napoleão
dirigiu-se a Berthier.
- Temos duas opções. Ignoramos este ataque e continuamos com o plano, esperando que Davout consiga esmagar o flanco esquerdo do inimigo. Ou então enviamos Masséna
para bloquear o avanço, defender as pontes e depois obrigá-los a recuar.
- Mas Masséna já está ocupado, sire. Além disso, mesmo que ele conseguisse quebrar o contacto, teria de marchar à frente dos austríacos à nossa esquerda. Se eles
conseguirem trazer os canhões, os homens de Masséna vão ser obliterados.
- É possível - concedeu Napoleão. - A minha convicção é de que os austríacos não vão conseguir pôr as armas em ação suficientemente depressa para causar grandes
estragos ao Masséna. Tudo vai depender da nossa velocidade. Primeiro temos de libertar Masséna e impedir o inimigo de tentar manter o contacto. A cavalaria de reserva
tem de investir contra o inimigo que se está a reunir a ocidente de Aderklaa. Têm de os reter onde estão até que Masséna chegue a Essling e aí forme a sua linha.
Berthier anuiu.
- Se Bessières falhar, o nosso centro não pode ser mantido. O Grande Exército ficará dividido em dois. Quero que Bessières tenha perfeita noção do risco que corremos.
- Sim, meu imperador.
Napoleão apercebia-se de que a situação era crítica. Tal como acontecera em Eylau, a linha de batalha corria o risco de ceder sob a pressão do inimigo. Se a cavalaria
pudesse aliviar o resto do exército, haveria ainda a possibilidade de recriar a linha e bloquear o inimigo. Enquanto observava a cavalaria a avançar e a formar linhas
prontas para investir contra o centro inimigo, Napoleão viu movimentos atrás das forças de Masséna, à medida que uma divisão do batalhão de Eugène e algumas baterias
de artilharia percorriam a retaguarda da formação e criavam uma linha virada para as colunas inimigas que avançavam ao longo da margem do Danúbio. Com um aceno de
aprovação e de alívio, Napoleão apercebeu-se de que o enteado agira de iniciativa própria para atacar o flanco inimigo. Os artilheiros libertaram rapidamente os
canhões e carregaram metralha. No espaço de minutos, o primeiro entrava em ação, cuspindo chamas e fumo enquanto a estrutura saltava para trás com o recuo. Outras
peças se lhe juntaram e em breve começavam a abrir brechas nas colunas austríacas que passavam à sua frente. Com os soldados inimigos a serem ceifados, cada batalhão
viu-se obrigado a abrandar para passar por cima dos cadáveres e a refazer as alas, o que garantia mais algum tempo essencial a Masséna.
As formações de Masséna recuaram, exceto uma divisão deixada para defender Arklaa. Assim que ficaram a uma distância segura do inimigo, os soldados franceses deram
a volta e começaram a marchar em passo acelerado pela planície, em direção a Essling. A corrida começara, percebeu Napoleão, com um nó de ansiedade no estômago.
Se o inimigo capturasse Essling e se deslocasse suficientemente depressa, tomaria as pontes sobre o Danúbio. Podia ver Masséna a percorrer as colunas de infantaria
de casacas-azuis, incitando-os a avançar. Apesar de muito pouco terem dormido desde havia quase três dias, os homens moviam-se com ritmo, fazendo levantar uma fina
camada de poeira do terreno seco.
Uma série de notas agudas de clarim cortou o ar da manhã e Napoleão virou-se, para assistir à primeira das cargas de Bessières a avançar em direção ao centro austríaco.
Uma linha de couraceiros trotava pela planície, com as couraças peitorais e os elmos a reluzir e os penachos a agitar-se de um lado para o outro. Oitocentos metros
à frente deles, as primeiras unidades de infantaria austríaca começavam a formar quadrados, enquanto as equipas de artilharia apontavam os canhões à nova ameaça.
- Uma visão magnífica - comentou Napoleão. Quando os cavaleiros se aproximaram dos austríacos e aumentaram o ritmo para um galope leve, pareceu haver uma pausa nos
combates de ambos os lados do campo de batalha, com os dois exércitos a observar a onda de homens e cavalos que estrondeavam sobre a erva e as plantações niveladas
da planície. O breve encanto quebrou-se quando a primeira bateria inimiga abriu fogo, devastando as alas avançadas de um dos regimentos de couraceiros. Dezenas de
homens e cavalos tombaram como se houvessem tropeçado e as linhas seguintes foram obrigadas a contorná-los, como refluxos na corrente de um ribeiro. Juntaram-se
mais peças que dizimaram as alas da cavalaria pesada francesa. Os clarins voltaram a fazer-se ouvir, soando a carga, e os cavaleiros esporearam as montadas, esticando
os braços das espadas e soltando um brado exuberante que foi ouvido com toda a nitidez por Napoleão e os seus oficiais do estado-maior.
Os artilheiros austríacos fugiram das peças e procuraram o abrigo dos quadrados mais próximos, atirando-se aos pés da primeira fila ajoelhada quando os mosquetes
foram erguidos, prontos para disparar contra a cavalaria em fúria. A face do quadrado austríaco mais próximo desapareceu subitamente atrás de uma linha de fumo de
pólvora e mais couraceiros foram abatidos. Os restantes prosseguiram, cavalgando para o fumo.
Os quadrados da linha avançada inimiga mantiveram-se firmes e os cavaleiros franceses foram obrigados a contorná-los, sendo alvejados enquanto galopavam. Alguns
tentaram inclinar-se nas selas e atacar os austríacos com as espadas. Outros, mais lúcidos, embainharam as lâminas e sacaram das pistolas, retribuindo fogo à queima-roupa.
Ao mesmo tempo, os franceses iam sendo continuamente derrubados e os feridos regressavam às linhas francesas através dos campos pejados de cadáveres. A segunda onda
de cavaleiros abriu alas para os deixar passar e depois avançaram para se juntarem aos sobreviventes da primeira carga.
- Estão a ser desfeitos - constatou Berthier. - Não são capazes de quebrar os quadrados.
- Pois não, mas isso não será necessário - retorquiu Napoleão friamente. - Basta que mantenham os austríacos onde estão tempo suficiente para que reorganizemos as
nossas alas. - Olhou para as formações de reserva. - Vamos precisar de todas as peças da Guarda Imperial. Alinhe-as com as baterias de Eugène. Com isso teremos mais
de uma centena de canhões com que bombardear o inimigo. Trate disso imediatamente.
Assim que as peças foram dispostas, Bessières mandou retirar as maltratadas divisões de cavalaria e seguiu-se mais um período de acalmia enquanto os quadrados inimigos
se voltaram a formar em linhas e depois avançaram, em massa, contra os italianos expectantes do príncipe Eugène e a bateria apressadamente preparada que defendia
o centro do Grande Exército. Com um ribombar poderoso, os canhões massacraram as linhas inimigas, abrindo carreiros sangrentos entre as primeiras alas. Napoleão
não pôde deixar de se espantar com a disciplina mostrada pelos austríacos, que fechavam as brechas e continuavam a marchar a um ritmo estável, de mosquetes inclinados.
- Meu Deus, Berthier, aqueles homens são corajosos.
Berthier assentiu, os olhos fitos na terrível carnificina levada a cabo pelas salvas contínuas das peças francesas. Mais de um milhar de homens terão sido abatidos
antes de chegarem ao alcance dos mosquetes da linha francesa. A disciplina nunca desapareceu quando os oficiais deram a ordem de apontar aos franceses. A primeira
salva perfurou o fumo denso que pairava à frente dos canhões, abatendo dezenas de artilheiros. Uma segunda salva fez os mesmos estragos e seguiu-se uma breve pausa,
até que a primeira companhia de Guardas Imperiais recebeu ordem para avançar e operar as peças. Penduraram os mosquetes ao ombro e fizeram o que lhes era dito pelos
artilheiros que tinham sobrevivido às salvas iniciais.
As duas linhas mantiveram-se firmes, com os canhões e os mosquetes dos homens de Eugène tendo como resposta as salvas massivas dos austríacos. Napoleão observou
o massacre mútuo com uma expressão impassível. Milhares tinham tombado e muitos mais continuavam a ser derrubados, caindo sobre os corpos já amontoados dos camaradas.
Foi uma pequena benesse que o fumo se tornasse espesso a ponto de ocultar a verdadeira escala do horror dos homens dedicados ao ritual mecânico de disparar e recarregar
tão depressa quanto possível. A chacina entre os artilheiros à frente da posição do imperador entorpecia os oficiais do estado-maior, sentados nas suas selas a observar
o espetáculo sangrento num silêncio profundo.
Os tiros continuaram durante quase uma hora. Durante esse tempo, Napoleão recebeu informação de que Masséna conseguira formar os homens à frente de Essling e começava
a fazer os austríacos recuar. Os canhões na ilha de Lobau disparavam sobre o rio contra o flanco inimigo e, sendo fustigados por três lados, não resistiram muito
até que recuaram. No outro lado do campo de batalha, o marechal Davout também empurrava o inimigo sem mercê. Napoleão olhou para o relógio e viu que era quase meio-dia.
Dirigiu-se a Berthier.
- Parece que os ataques do inimigo foram controlados e as derradeiras reservas deles estão empenhadas no combate. Chegou a altura de dar início ao nosso próprio
assalto, quebrar a linha austríaca e derrotar o exército do arquiduque Carlos.
O chefe do estado-maior do imperador percorreu o campo de batalha com o olhar.
- Sire, nós também já não temos muitas reservas. Será prudente atacar?
- Prudente? - Napoleão abanou a cabeça, com uma expressão de piedade. - Não tem fé em mim, Berthier?
O oficial baixou o olhar.
Napoleão prosseguiu:
- Dê ordens para que o exército ataque em toda a linha. O golpe principal será desferido aqui. - Levantou a mão e apontou para o terreno a oeste de Aderklaa.
- Sim, meu imperador. E quem ficará encarregue?
Napoleão pensou por um instante.
- O general MacDonald. Os homens dele são as tropas mais frescas que temos em ação.
- Contam-se também entre os mais inexperientes - argumentou Berthier.
- Mesmo assim, eles vão vencer a batalha por mim. A que maior glória pode almejar um soldado novo? Diga ao MacDonald para formar os homens para o ataque.
Centenas de canhões ribombavam ao longo de uma linha de batalha que se estendia desde o Danúbio até Wagram, seguindo depois o percurso do rio Russbach, numa distância
de mais de dez quilómetros. Do lado oposto ao centro austríaco, o general MacDonald liderou o assalto dos seus homens. Eram oito mil, com os batalhões dispostos
numa enorme formação em quadrado. Assim que os tambores marcaram o avanço, a formação deu início à marcha. Os homens suavam em bica nas fardas sufocantes. O terreno
à frente deles era uma manta de retalhos de campos pisados cobertos de cadáveres e de equipamento abandonado ao longo de dois dias de lutas. Os mortos estavam já
a decompor-se com o calor do verão e o ar estava pesado com o fedor de carne podre, sangue e excrementos. Nuvens de moscas e outros insetos criavam um zumbido constante
enquanto se refastelavam.
À frente, as primeiras filas viram os artilheiros inimigos dispor apressadamente as peças quando avistaram a nova ameaça que surgia por entre as nuvens de fumo de
pólvora que se iam dissipando.
- Os homens de MacDonald vão fazer um belo alvo, sire - comentou Berthier. - É impossível falhar aquele quadrado.
Napoleão não respondeu, limitando-se a observar atentamente a primeira bateria austríaca a abrir fogo. A distância era longa e tinham carregado os canhões com balas.
As pesadas bolas de ferro caíram com uma breve nuvem de terra seca um pouco à frente do primeiro batalhão e fizeram ricochete pelas fileiras, derrubando todos os
soldados no seu caminho. Outras peças abriram fogo e a divisão de MacDonald começou a perder dezenas de homens a cada minuto que passava. O avanço pela planície
ficou marcado por um rasto sangrento de mortos e feridos. Ao chegarem ao alcance da metralha, os canhões mais próximos soltaram uma salva devastadora que provocou
ainda mais chacina entre as alas francesas que iam diminuindo.
Berthier abanou a cabeça, espantado.
- Deus do Céu, eles não vão aguentar muito mais.
Napoleão inspirou por entre os dentes.
- Reze para que aguentem.
O quadrado continuou a progredir lentamente, ficando agora ao alcance dos soldados avançados austríacos, que juntaram o seu fogo ao dos canhões. Napoleão calculou
que MacDonald já tivesse perdido metade dos homens, e mesmo assim continuavam a avançar para as garras dos canhões e dos mosquetes inimigos. Por fim, os sobreviventes
chegaram suficientemente perto da linha inimiga para disparar a primeira salva de resposta. Os primeiros batalhões espalharam-se, carregaram os mosquetes e ergueram-nos,
disparando contra as formações de artilharia e de infantaria mais próximas. Napoleão sentiu uma breve pontada de vingança quando as figuras distantes dos artilheiros
austríacos foram abatidas ao lado das suas armas.
MacDonald ordenou ao quadrado para voltar a avançar e os soldados assim fizeram, detendo-se para disparar mais uma salva antes de instalarem as baionetas e carregarem
contra a linha de infantaria austríaca que esperava mais à frente.
A terrível tensão da espera para que a divisão entrasse em ação deu lugar ao receio de que os homens de MacDonald tivessem sofrido demasiadas baixas para vencer.
Napoleão aquiesceu para consigo ao tomar uma decisão.
- Berthier, precisamos que todos os homens disponíveis vão apoiar o MacDonald! Temos de fazer avançar o que resta das reservas de Eugène e também a Guarda Imperial.
Berthier ergueu as sobrancelhas.
- Mas sire, assim ficamos sem reservas. Ficamos sem nada para enfrentar o arquiduque João, se por acaso ele chegar ao campo.
Napoleão apontou para os dois batalhões incumbidos da tarefa de guardar o quartel-general.
- Serão estas as nossas reservas. Eles que cubram a nossa direita e o resto que avance para salvar MacDonald antes que seja demasiado tarde.
Enquanto os reforços avançavam rapidamente sobre a planície devastada, Napoleão leu os últimos relatórios dos outros setores do campo de batalha. Davout e Masséna
faziam recuar os flancos austríacos e Wagram fora tomada pelo príncipe Eugène e os seus homens. Satisfeito por a batalha estar a pender a seu favor, dirigiu mais
uma vez a atenção para o centro. Com a ajuda das novas tropas enviadas por Napoleão, MacDonald avançava com perseverança através do centro austríaco. Os dois lados
trocavam salvas à queima-roupa e os corpos amontoavam-se pelo campo de batalha. A chegada da Guarda Imperial revelou-se decisiva. Depois de dispararem uma salva,
carregaram sobre a linha austríaca. Seguiu-se uma luta breve e feroz, e depois o inimigo cedeu, com milhares de soldados a fugir para o abrigo das colinas que percorriam
o extremo da planície, a norte.
Finalmente, o exército austríaco fora dividido em dois.
Fitando o inimigo em fuga, Napoleão estava demasiado exausto e abalado com o custo da batalha para sentir a mais pequena centelha de triunfo. Os batalhões franceses
não perseguiram o inimigo em fuga. Os homens tinham perdido as forças. O calor dos dois dias e o massacre entorpecedor testemunhado marcava o fim da resistência.
Napoleão apercebeu-se de que nada mais poderia ser feito com eles. Qualquer perseguição aos austríacos estava fora de questão, especialmente com o exército do arquiduque
João algures a aproximar-se. Deixou-se ficar no cavalo, a observar o inimigo a fugir, o seu íntimo a arder de frustração.
Berthier falou sem qualquer entoação.
- Foi uma vitória. Os meus parabéns, sire.
- Vitória? - Napoleão pestanejou os olhos doridos e percorreu com a vista a paisagem de edifícios destruídos, montes de cadáveres e os restos estropiados de quem
tinha sido apanhado pela força total do fogo de artilharia. Por entre a carnificina viam-se sobreviventes de pé, ou sentados, atordoados, alguns a beber dos cantis
para saciar a sede do dia. - Se isto foi uma vitória, será que a França poderá voltar a dar-se ao luxo de vencer outra vez?
Capítulo 11
Schönbrunn, 23 de outubro de 1809
Um vento frio soprava pelo local da parada, no exterior das paredes amarelas e cremes do palácio, a pouca distância de Viena. O céu estava carregado e a chuva ameaçava
cair. Mesmo assim, a exibição atraíra a habitual multidão da cidade que pagara bilhetes para assistir ao espetáculo da Guarda Imperial a marchar em formação, acompanhada
pelas melodias dos músicos. Havia quem tivesse ido ver Napoleão, curiosos para observar a grande figura do dia. Para a maior parte, era a única oportunidade de o
ver, já que o imperador francês raramente se aventurava em público, e mesmo então só para assistir à ópera, ou ao teatro, onde se sentava ao fundo do camarote privado,
não dando à audiência mais do que um breve vislumbre da sua pessoa.
Napoleão estava de pé nos degraus dos terrenos da parada, observando as suas tropas a marchar. Havia dez dias que os austríacos por fim tinham assinado um tratado
de paz com a França, tendo-se as negociações arrastado durante meses após a batalha de Wagram. O imperador Francisco debatera cada ponto, numa tentativa de ganhar
tempo. Napoleão decidira que a Áustria teria de ser castigada e o acordo que viria a ser assinado obrigava o imperador Francisco a ceder grandes porções das suas
terras a França, o grão-ducado de Varsóvia, a Baviera e a Rússia. O imperador Francisco também teria de reconhecer José como rei legítimo de Espanha e limitar a
dimensão do exército austríaco a um máximo de cento e cinquenta mil soldados.
Isso, congratulava-se Napoleão, ajudava bastante a diminuir qualquer futura ameaça que a Áustria pudesse representar. Como lembrete final ao imperador Francisco
do novo equilíbrio de poder que existia entre a Áustria e a França, Napoleão atrasara a saída de Viena. A parada daquele dia seria uma das derradeiras revistas antes
de o Grande Exército dar início à marcha de regresso ao Reno.
A última companhia de guardas fez alto com estrondo no fim da linha, após o que caiu um silêncio sobre a parada, enquanto Napoleão avaliava os homens à sua frente.
Quatro regimentos da Velha Guarda, os melhores soldados do exército. Olhou-os com admiração, mesmo mantendo uma expressão severa no rosto. Muitos daqueles homens
tinham combatido por ele em Marengo e em Austerlitz. Para se juntar às fileiras, um soldado teria de ter servido um mínimo de cinco anos e combatido em duas campanhas,
e isso antes mesmo de ser tido em conta para a seleção. Os homens tinham os olhos fitos em frente, com muitos ostentando bigodes extravagantes e barbas. As fardas
estavam limpas, as faixas cruzadas de um branco brilhante e os botões cintilavam, graças a muitas horas de uma cuidadosa aplicação de trípoli. As altas barretinas
de pele de urso e o porte orgulhoso faziam com que os homens parecessem maiores do que os outros soldados, e Napoleão sabia que bastava a sua aparência no campo
de batalha para perturbar o inimigo. Quando entravam em ação, eram destemidos e ferozes, e só os melhores inimigos se atreviam a manter-se firmes contra a Guarda
Imperial.
Napoleão desceu lentamente os degraus, seguido por Berthier e pelo general Rapp, comandante da brigada em revista. Napoleão aproximou-se dos guardas e deu início
à inspeção, percorrendo cada linha e detendo-se ocasionalmente para trocar uma palavra com um dos veteranos, fáceis de identificar graças às divisas nas mangas,
que representavam o número de campanhas em que tinham combatido.
Terminada a inspeção, Napoleão regressou às escadas e começou a distribuir as promoções, as condecorações e os prémios aos distinguidos que foram chamados das fileiras.
Cada homem dirigia-se com elegância ao imperador, ficava em sentido enquanto a menção era vociferada pelo general Rapp, e depois recebia a respetiva recompensa,
a par das profusas felicitações do imperador. Contudo, durante toda a duração da cerimónia, a mente de Napoleão fervilhou com as suas variadas preocupações.
Assumindo lugar de destaque na sua mente, estava o confronto iminente com a imperatriz Josefina. Sentia o coração pesado com o remorso por aquilo que teria de fazer
ao regressar a Paris. A França precisava de um herdeiro do trono. Nada serviria além de sangue real, já que assim seria impossível aos governantes rivais negar que
o filho de Napoleão tivesse a ascendência necessária para assumir o poder como igual de qualquer outro imperador, rei, ou czar. Mesmo sendo inabalável a lógica da
decisão de se divorciar de Josefina, Napoleão não deixava de sentir a profunda mágoa de ser obrigado a agir contra a sua vontade. Apesar de todas as infidelidades
de ambos os lados, e do desespero frequente quanto à devassidão dela, Napoleão amava-a como a mais ninguém. Era como se os seus corações e mentes estivessem unidos,
e a perspetiva da rejeição forçada desfazia praticamente qualquer noção de prazer que pudesse vir a ter na vida.
Assim que o último guarda recebeu a distinção, o general Rapp ordenou que os soldados levassem os mosquetes aos ombros e depois, com a banda já a tocar, os batalhões
afastaram-se, a marchar, do local da parada. Quando a última companhia passou, os mirones civis começaram a espalhar-se pelos terrenos. Napoleão dirigiu-se a Berthier.
- Como vão os preparativos para a partida do exército?
- As últimas duas corporações estão prontas para seguir. O comboio com a bagagem imperial está pronto e pode partir a qualquer momento. Só há uma questão por resolver.
- Berthier fez uma pausa. - A venda dos excedentes do exército, munições e equipamento capturados aos austríacos.
- Qual é o problema?
- Os austríacos recusam-se a pagar o preço acordado quando assinámos o tratado.
- O que sugerem eles?
- Estão dispostos a pagar trinta milhões de francos, sire.
Napoleão soltou uma gargalhada seca e abanou a cabeça.
- Trinta milhões! Devem ter-me por idiota. Não, o preço é cinquenta milhões, tal como acordado. Se não pagarem, diga àquele idiota do príncipe Metternich que não
sairemos de Viena até que ele o faça. - Napoleão foi ficando mais resoluto enquanto falava e bateu com o dedo no peito de Berthier. - Diga-lhe também que se a dívida
não for saldada na totalidade até ao fim do ano, vou considerar que o tratado foi violado, e isso significa guerra. Diga-lhe isso!
- Sim, meu imperador. Como desejar.
- Malditos austríacos - sibilou Napoleão por entre os dentes cerrados. - Foram eles que provocaram a guerra. O imperador Francisco não está em posição de alterar
os termos da paz. Vou vergá-los, custe o que custar.
Deu meia-volta e desceu os degraus, fazendo menção de regressar aos seus aposentos no palácio. Durante o caminho, um jovem saiu da multidão de mirones em êxtase
e dirigiu-se ao imperador. Napoleão só reparou nele no último instante e parou, com uma expressão carregada.
- O que se passa?
- Sire - disse o homem, de olhos arregalados. - Trago-vos uma petição em nome de todos os alemães.
Napoleão relanceou os olhos para o jovem. Era louro, de olhos azuis e ombros largos sob o casaco preto simples. O imperador abanou a cabeça.
- Leve-a aos meus secretários. São eles que tratam desses assuntos. Agora, queira sair do caminho.
- Não, sire. Vai tratar disto agora!
O jovem chegou-se repentinamente à frente. Viu-se um reflexo e o general Rapp gritou:
- Sire! Ele tem uma faca!
Napoleão ficou imobilizado e fitou o jovem. Depois, Berthier agarrou-lhe o braço e puxou-o, interpondo-se entre o seu imperador e o jovem. Viu-se uma farda azul
com bordões dourados a passar rapidamente quando Rapp se atirou ao assassino e ambos caíram ao chão. Rapp levou as mãos ao pulso da mão em que o jovem segurava a
faca e bradou:
- Guardas! A mim! A mim!
Os soldados de guarda nas escadarias aproximaram-se a correr. O jovem cerrou o punho livre e esmurrou o rosto de Rapp, ao mesmo tempo que o pontapeava, mas Rapp
forçou o peso sobre o peito do rapaz, imobilizando-o, enquanto afastava de ambos a mão com a arma. Momentos depois, os guardas chegaram ao local e enquanto um forçava
o jovem a abrir a mão, os outros puxaram-no para o pôr de pé. O general Rapp levantou-se, sem chapéu e a ofegar, e lançou um olhar furioso ao jovem.
Napoleão afastou Berthier e deu um passo na direção do alemão.
- Queria matar-me.
- Sim! - retorquiu o assassino.
Napoleão abanou a cabeça.
- Porquê?
- Porque é um tirano. Inimigo da liberdade. Inimigo do povo alemão.
- Basta de disparates! - vociferou Rapp ao mesmo tempo que desferia um murro no abdómen do jovem. O rapaz dobrou-se sobre si mesmo até onde permitiram os soldados
que o seguravam e gemeu, enquanto tentava recuperar o fôlego. Rapp dirigiu-se a Napoleão. - O que faço com ele, sire?
Napoleão fitou o jovem por um instante, ainda atordoado com a rapidez e surpresa do ataque. Não era a primeira vez que o tentavam matar, mas, no passado, os aspirantes
a assassinos tinham usado bombas, venenos e outros métodos cobardes. Aquilo fora diferente. Um ataque direto contra ele, perpetrado por um indivíduo que pouco mais
era do que um menino, sem esperança de fuga, quer fosse bem-sucedido ou não na tentativa.
Napoleão tossicou nervosamente.
- Levem-no. Interroguem-no. Descubram quem mais está envolvido nesta conspiração. Todos irão pagar caro por isto.
Rapp anuiu e gesticulou na direção dos guardas.
- Vocês quatro, levem-no para a adega e esperem por mim. Os restantes, fiquem com o imperador. Se mais alguém tentar aproximar-se antes de chegarem ao palácio, abatam-nos.
Napoleão afastou-se, com os guardas cercando-o de perto e observando com toda a atenção os civis que se demoravam nos terrenos. Quem testemunhara a tentativa de
assassinato continuou a observar em silêncio a passagem do imperador francês e da sua escolta, dirigindo depois a atenção para o general Rapp e para o pequeno grupo
que arrastava o jovem.
- Morte aos tiranos! - gritou o rapaz. - Morte a Napoleão!
Rapp saltou para o lado do jovem e esmurrou-lhe o queixo, silenciando-o.
A pouca distância, Napoleão olhou para o atacante e reparou que as mãos lhe tremiam. Franziu o cenho, furioso, e juntou-as atrás das costas, continuando depois em
direção ao palácio.
Ao fim da tarde, Napoleão desceu à adega do palácio. O general Rapp levara o prisioneiro para uma das arrecadações vazias por baixo de uma zona pouco usada do palácio.
Foi aí que Napoleão o encontrou, com três sargentos robustos da Velha Guarda, sentados, em tronco nu, em bancos à volta do jovem, que estava amarrado a uma cadeira.
Tinham-lhe despido o casaco e a camisa branca e os calções estavam salpicados de sangue. Os homens de Rapp tinham-no espancado com violência no rosto e, à luz da
lanterna pendurada numa trave acima dele, Napoleão não reconheceu as feições do homem que o tentara matar nesse dia. Tinha os lábios rachados e inchados, o nariz
fraturado e ensanguentado, e a testa raspada e aberta em alguns pontos.
Rapp e os sargentos levantaram-se quando o imperador atravessou a sala na direção deles, com os passos a ecoarem nas lajes frias.
- E então? O que lhe conseguiram arrancar?
- Pouca coisa, sire. - Rapp franziu os lábios. - Os meus rapazes tiveram de tratar dele antes que começasse a soltar a língua.
- Bem vejo.
- Diz que se chama Friedrich Staps. É da Saxónia.
- Quem o enviou para me matar?
Rapp encolheu os ombros.
- Ele diz que estava a agir por conta própria.
- Imagino que sim! - Napoleão fungou. - Alguém o enviou. Alguém demasiado cobarde para me enfrentar ao vivo. Este rapaz deve ter tido cúmplices. Quero os nomes deles.
- Ele negou a existência de mais alguém, sire.
- Nesse caso está a mentir.
- Não me parece, sire. Foi interrogado durante mais de oito horas. Se estivesse a tentar ocultar alguma coisa, já teria dito algo que o denunciaria. - Rapp fez uma
pausa e olhou para o jovem com franqueza. - Manteve sempre a mesma história. Diz que agiu sozinho.
- Estou a ver - meditou Napoleão. - O que mais disse ele?
- Que é escrivão numa empresa comercial. Acredita numa maior união dos Estados alemães e acusa-o de se interpor no destino do povo alemão.
- E quanto à família? Confessou alguma ligação à corte prussiana?
- De todo, sire. Staps diz que o pai é sacerdote.
- Nesse caso, não se saiu muito bem a ensinar os dez mandamentos ao filho. - Napoleão foi pôr-se à frente do jovem e abanou lentamente a cabeça. - O que será que
aconteceu ao "Não matarás"?
Staps engoliu o sangue que tinha na boca e levantou a cabeça para fitar o imperador francês.
- Dizei-mo vós, sire. Afinal de contas, eu tentei matar um homem. Vós haveis matado dezenas de milhares.
Napoleão ficou em silêncio por um instante.
- Isso é diferente. Isso é guerra. O que tentou fazer foi assassinato.
- É uma questão de perspetiva - argumentou Staps.
- A sério? - Napoleão esboçou um sorriso. O jovem saxão espicaçava-lhe a curiosidade. Dirigiu-se a Rapp. - Ele está bem preso?
- Sim, meu imperador. Confirmei-o eu próprio.
- Nesse caso, quero que os seus homens esperem lá fora. O general fica.
- Sim, sire.
Os sargentos pegaram nos casacos e fizeram breves vénias com a cabeça antes de se dirigirem à porta da arrecadação. Napoleão esperou que a porta se fechasse, depois
pegou num dos bancos, puxou-o para si e sentou-se à frente de Staps. O general Rapp colocou-se atrás do prisioneiro, pronto a intervir no caso de o rapaz tentar
alguma coisa, por mais bem preso que estivesse.
Napoleão esticou os ombros, aliviando a tensão, e depois chegou-se à frente, apoiando os cotovelos nas coxas e cruzando os dedos.
- Meu jovem, por certo tem noção de que aquilo que tentou fazer foi mau. Não só mau, mas também irracional. Não teria hipótese de escapar.
- Não estava preocupado com isso - retorquiu Staps, humedecendo os lábios e fazendo um esgar com a dor provocada. - Só vos queria matar. Nada mais importava.
- Isso é absurdo - contrapôs Napoleão. - Estava preparado para se suicidar?
- Continuo vivo.
- Por enquanto, mas não por muito tempo. - Napoleão meneou ao de leve a cabeça para ver melhor os olhos de Staps. - Imagino que saiba que vai ser executado por aquilo
que tentou fazer.
Staps encolheu os ombros.
- Claro que sei. Não espero nada menos do que isso.
- Então porquê? O suicídio não é um gesto de um homem são.
- Discordo, sire. - Staps endireitou as costas para poder fitar o imperador. - Não foi por acaso que pretendi fazer isto. Não fui inspirado pela loucura. Acredito
que o povo alemão tem de ser liberto dos grilhões que vós lhe impusestes. Ponderei sobre a melhor maneira de o conseguir. É claro que um homem sozinho não pode enfrentar
um império e tentar vencer. Contudo, um homem solitário pode enfrentar um imperador e eliminá-lo.
- E julga que se me tivesse assassinado, conquistaria a liberdade do seu povo? - Napoleão abanou a cabeça. - Se eu tivesse sido morto, a França continuaria a deter
o domínio sobre os seus Estados alemães.
Staps sorriu.
- Parece-me que a França é um monstro com uma única cabeça. Se a cortarmos, o monstro é derrotado.
- Lisonjeia-me.
- Não. Vejo tudo com bastante clareza. Vós sois um grande homem, à semelhança de todos os tiranos. É por isso que matar-vos teria mudado tudo.
- Mas não me matou. Nada mudou e desperdiçou a vida sem qualquer motivo.
- Talvez, mas há a hipótese de a minha morte poder vir a inspirar outros.
- Inspirá-los a levar a cabo ataques suicidas? - Napoleão soltou uma gargalhada seca. - O que o leva a pensar que não aprendi nada com a tentativa de hoje? De futuro
será impossível para um homem assim chegar até mim.
- Impossível? - Staps franziu os lábios inchados. - Impossível, não. Apenas mais difícil. A seu tempo, outro homem... - fez uma pausa e esboçou um sorriso - ...ou
mulher, vai aproximar-se o suficiente para fazer outra tentativa, e ser bem-sucedido onde eu fracassei. As probabilidades a longo prazo estão contra vós, sire. Imagino
que o percebais.
- Imaginemos que não se trata de uma questão de probabilidades, mas sim de destino - argumentou Napoleão. - Há homens escolhidos pelo destino para a grandeza, e
só o destino pode determinar quando o seu tempo vai chegar ao fim.
- Se acreditais nisso, porque tendes guarda-costas? Imagino que não o queirais pôr à prova. - Staps olhou judiciosamente para o imperador. - Há mais outra coisa
que me preocupa, sire.
- Sim?
- O receio que persegue todos os grandes homens. Acreditais na vossa grandeza, e o simples facto de pensar que um homem irrelevante, como eu, possa acabar com a
vossa vida é uma afronta a essa visão de grandeza.
Napoleão fitou-o por um instante e Staps retribuiu o olhar com firmeza. Passado um instante, Napoleão sorriu e deu uma palmadinha no joelho do rapaz.
- Aquilo que diz tem um certo fundo de verdade. No entanto, agora está a subestimar-se.
- Eu?
- Meu caro Staps, não é um homem qualquer. Aquilo que fez exigiu muita coragem. Reconheço-o. Por certo, tal dedicação à sua causa deve ser raro entre vós.
Staps semicerrou momentaneamente os olhos.
- Nós?
- Aqueles que acreditam no mesmo, os camaradas que partilham as suas crenças e que conspiram consigo para se oporem a mim.
Staps abanou a cabeça penosamente.
- Já disse aos interrogadores que não há mais ninguém. Aquilo que fiz, fi-lo sozinho.
- Não disse que o fez por todos os alemães?
- Um homem pode agir em benefício de todos.
- Mas não será arrogante partir do princípio de que sabe o que é benéfico para todos? Isso, é claro, se estiver a falar verdade, quando diz que agiu sozinho.
- É tão arrogante da minha parte como da vossa partir do princípio de que governais em benefício dos vossos súbditos, e de todos os que vivem sob o jugo da França.
Quem pode dizer que um homem sabe mais do que outro, seja ele imperador, ou um humilde escrivão?
Rapp agitou-se com o último comentário e cerrou os punhos, dando um passo na direção do prisioneiro. Napoleão olhou-o e fez-lhe sinal para que recuasse, após o que
se recostou e pensou por um instante.
- Se eu aceitar que agiu sozinho, agora que foi detido, a ameaça para a minha pessoa chegou ao fim. Desde que não faça de si um mártir.
Staps olhou com curiosidade para Napoleão.
- Deixar-me-ia viver?
- Talvez - replicou Napoleão. - Conquanto apresentasse um pedido público de desculpas pelo seu ato.
- Um pedido de desculpas?
- Teria de admitir que o que fez foi errado. Um ato de loucura momentânea, talvez. E agora que já viu as coisas com mais clareza, sabe que a sua ação foi irrefletida
e sem justa causa. Se o disser em público, poupo-lhe a vida e pode voltar a casa para viver o resto da vida em paz.
Staps riu-se, depois fez um esgar e tossiu, cuspindo gotas de sangue sobre as calças de Napoleão. Passou um minuto até que a dor acalmasse o suficiente para que
ele voltasse a falar.
- E faria de mim um exemplo. A prova viva da vossa magnanimidade.
- Porque não? É exatamente isso - retorquiu Napoleão lapidarmente. - Ofereço-lhe a vida.
- Ofereceis-me vergonha, sire. Ofereceis-me a saída cobarde. Prefiro morrer.
- Nesse caso sois deveras louco. Qual a lógica de escolher a morte em vez da vida?
- Não agi segundo a lógica, mas sim segundo o princípio. Qual o valor de um princípio, se um homem se recusar a depositar nele a sua fé, aconteça o que acontecer?
Napoleão ergueu as mãos.
- Basta! - Fez uma pausa e respirou fundo, antes de prosseguir com um tom tão calmo quanto possível. - Staps, deixe-me que lhe diga que me impressionou. Mostra tanta
coragem quanto os mais bravos soldados. Não quero acabar com uma vida tão promissora como a sua. Seria um desperdício. Só peço um pedido de desculpas. Agora. Nem
sequer lhe peço que o faça em público. Depois pode regressar a casa.
- Sire, a honra obriga-me a dizer-vos que não posso regressar a casa. Não enquanto viverdes. Não quero o vosso perdão. Só lamento ter fracassado na minha tentativa
de vos matar.
- Nesse caso, não me deixa escolha - replicou Napoleão, frustrado. - Terei de o executar. Mas quero que saiba uma coisa: se morre, a escolha foi sua. Se é a morte
que deseja, pois que assim seja, verá esse desejo satisfeito.
Staps chegou-se à frente com uma expressão sincera e um ardor feroz nos olhos.
- Sire, acreditai quando vos digo que quero viver. Quero viver, encontrar amor, casar e ter filhos, e morrer tranquilamente na minha velhice. Tal como qualquer outro
homem. Garanto-vos que escolho a morte como último recurso.
- Então escolha a vida, seu jovem tolo! Estou a oferecê-la. O que mais pretende de mim?
Staps recostou-se na cadeira e ficou em silêncio por um instante, antes de prosseguir com um tom átono.
- Escolherei a vida se prometerdes libertar todos os Estados alemães. Se jurardes, por tudo quanto vos seja mais sagrado, acabar com as guerras na Europa. - Staps
ergueu o queixo. - Se concordardes, então aceitarei o vosso perdão.
O queixo de Napoleão descaiu por um instante, antes de recuperar da arrogância do jovem.
- Aceita o meu perdão? Pois deixe-me que lhe diga que é muito generoso da sua parte. - Dirigiu-se a Rapp e perguntou retoricamente: - Ouviu isto?
- Ouvi, sire. É óbvio que os meus rapazes não lhe conseguiram arrancar o espírito. Permita-me que lhe ensine bons modos, sire.
- Para quê? Ele é louco. Absolutamente louco.
Staps abanou a cabeça.
- Não sou louco, sire. Que outra ação razoável resta a um homem quando se vê confrontado com tamanho poder como o vosso? Dediquei a minha vida a tentar acabar com
a vossa. Nada poderá mudar isso.
Napoleão recostou-se e afagou o queixo. Não podia deixar de admirar a força das convicções daquele jovem, por mais que discordasse delas. O jovem era bem-apessoado,
além de educado e inteligente. Contudo, não dispunha de inteligência que lhe permitisse ser tentado pela oferta de Napoleão. Era uma tragédia que as qualidades que
mais o destacavam fossem igualmente aquelas que o condenavam. Napoleão suspirou.
- Muito bem, levem-no. Ele que fique numa cela segura e vigiada. Garanta que fica confortável e que é bem alimentado.
Rapp pareceu surpreendido por um instante até que encolheu os ombros e avançou para levantar o jovem. Segurando-o pelo braço, o oficial francês levou-o até à porta,
abriu-a e empurrou-o para as mãos dos sargentos que aguardavam. Depois de dar as ordens, fechou a porta e regressou para junto do imperador, que fitava as lajes
ensanguentadas por baixo da cadeira onde Staps estivera sentado. Daí a pouco olhou para o general.
- Acredita nele?
- Sire?
- Quando diz que agiu sozinho.
- Não sei, sire. Ele insiste que sim.
Napoleão pensou por um instante.
- Não acredito nisso. Tem de haver outros conspiradores... tem de haver. Staps é o resultado de todas as sociedades secretas que me dizem infestarem os Estados alemães.
Homens como ele estão sob a influência de fanáticos religiosos e de intriguistas políticos. Transformam jovens em assassinos e enchem-lhes a cabeça de falsas ideologias.
Mas como podemos combater falsos ideais? Eles não podem ser destruídos com balas de canhão.
Rapp franziu os lábios.
- A força serve para controlar as pessoas, sire.
- Eu sei. Mas, quando muito, é um expediente. Temos de lhes controlar a mente e o coração, se quisermos governar sem viver segundo os caprichos de maníacos como
o Staps.
- Sim, sire.
Napoleão fitou a cadeira vazia. Desta vez escapara à faca de um assassino, mas quantos mais homens como Staps haveria, à espera de uma oportunidade? Se morresse
agora, seria o fim do sonho de uma nova dinastia de Bonapartes. A necessidade de um herdeiro era mais premente do que nunca e Napoleão convenceu-se do que teria
de ser feito assim que regressasse a Paris.
- Sire?
- O que foi?
- Quais as suas ordens em relação ao prisioneiro? Quanto tempo o quer preso?
- Preso? - Napoleão franziu o cenho. - Não o quero preso. Prepare a papelada para um tribunal marcial. Quero-o acusado e condenado por tentativa de assassinato.
Rapp anuiu.
- Sim, sire. De manhã escolherei os oficiais necessários. Podemos julgá-lo de imediato.
- Isso não será necessário. Só precisamos da aparência de um julgamento justo. Redija os documentos assim que possível. - Napoleão levantou-se do banco e espreguiçou-se.
- Entretanto, o Staps terá de ser fuzilado. Pela alvorada. Encontre-lhe uma campa sem identificação e cubra-lhe o corpo com cal viva. Entendido?
- Sim, sire.
- Não vou permitir que Friedrich Staps se torne um mártir, nem que a campa se transforme num santuário. Ele tem de ser obliterado. Apagado da História.
Capítulo 12
Fontainebleau, dezembro de 1810
- Sua majestade imperial não está satisfeita com as novas disposições - resmungou o barão Bausset ao acompanhar Napoleão escadas acima, até ao palácio. Do céu plúmbeo
caía uma chuva leve e a brisa gelada fustigava o rosto dos soldados e dos criados que se tinham reunido para receber o imperador. Napoleão regressara da Áustria
pouco antes do meio-dia, cansado e com frio, depois de vários dias passados na carruagem. Havia algumas semanas, ordenara a Bausset que todas as escadarias e portas
que ligavam os seus aposentos aos da imperatriz deveriam ser seladas. Tendo em conta o confronto que se avizinhava, Napoleão não pretendia garantir a Josefina qualquer
facilidade no acesso à sua pessoa. Sabia bem o domínio que ela exercia sobre si. Teria de ser forte nas semanas que se avizinhavam. Tinha de resistir às lágrimas
e às súplicas que ela lhe lançaria. Tudo pelo bem de França, recordou.
Bausset pigarreou quando chegaram ao cimo da escadaria curva que dava para a entrada.
- Sire, a imperatriz pediu-me repetidamente explicações por ter bloqueado o acesso entre os aposentos dela e os vossos.
- Imagino que sim - retorquiu Napoleão. - O que lhe disse?
- Transmiti-lhe que me limitava a obedecer às vossas ordens e que não fora informado dos motivos subjacentes às instruções.
- Ótimo.
Ao entrar no hall, Napoleão fez uma pausa e desabotoou o casaco, após o que moveu os ombros, quando um lacaio avançou e o ajudou a despi-lo. Napoleão tirou o chapéu
e atirou-o na direção do homem, enquanto continuava a falar com Bausset.
- Ela sabe que regressei?
Bausset hesitou, antes de responder.
- Fui informado da sua chegada há umas duas horas, sire. Tal como ordenou, foi dito aos criados que não deveriam comentar nada com sua majestade imperial.
- Grande esperança - fungou Napoleão. - De certeza que ela tem alguns criados no bolso. Muito bem, preciso de sopa e de café. Mande que sejam levados ao meu gabinete.
Acenderam o lume?
- É claro, sire.
- Indiquei a Paris que os despachos deveriam ser enviados para cá. Quero que mos levem assim que chegarem.
- Sim, sire.
- Muito bem. - Napoleão dispensou Bausset, mas antes que se pudesse dirigir à ala do palácio onde se situava o seu gabinete, ouviu-se um grito agudo de prazer no
cimo da escadaria do hall.
- Meu querido! Meu adorado Napoleão!
Napoleão ergueu o olhar e viu Josefina a sorrir, agarrada ao corrimão e inclinada ao de leve para a frente. Mesmo à distância, Napoleão pôde distinguir os pequenos
dentes manchados e não deixou de estabelecer um contraste nada lisonjeador com o belo sorriso branco de Maria Walewska, que esperava por se juntar a ele na suite
de quartos que lhe tinha sido destinada nas Tulherias. Mal a comparação foi feita, Napoleão sentiu o fardo repulsivo da culpa e da traição a instalar-se-lhe no coração.
Sentiu-se desprezível por um instante e depois censurou-se rapidamente. Não havia necessidade de se culpar por nada. O seu dever para com o país tinha de vir antes
dos sentimentos pessoais. Josefina iria entendê-lo. Afinal de contas, ela não se comportara de todo como seria esperado da esposa do homem mais poderoso da Europa.
A devassidão dela era um escândalo público e os anteriores relacionamentos tinham-no embaraçado com uma vergonha que ainda lhe queimava o peito. Engoliu nervosamente
e cerrou os lábios até formar uma expressão fria ao olhar para a esposa.
Um lampejo de preocupação cruzou o rosto de Josefina, que depois correu escadas abaixo, com as chinelas a ressoar ao de leve nos degraus. Napoleão observou-a com
terror e depois endureceu o coração, endireitando-se e cruzando as mãos atrás das costas. Ela correu pelo hall e envolveu-lhe os ombros com os braços, ao mesmo tempo
que lhe beijava a face.
- Meu amor, tive tantas saudades tuas - murmurou-lhe ao ouvido e depois ficou hirta, ao sentir-lhe a rigidez inflexível do corpo. Recuou com uma expressão de leve
preocupação e fitou-lhe os olhos. - Meu querido, o que se passa contigo? Não tens um abraço, ou um beijo para a tua esposa?
- Mais tarde - retorquiu Napoleão bruscamente. - Tenho trabalho a fazer. Se tiver tempo, podemos falar mais tarde. Com a tua licença.
Sem um beijo, ou qualquer outro sinal de afeto, o imperador deu meia-volta e dirigiu-se ao seu gabinete. Não hesitou, nem olhou para trás, pois sabia que ela o estaria
a mirar naquela sua pose desamparada e impotente que tinha a certeza lhe derreteria o coração. Quando chegou ao estúdio, Napoleão deu ordens ao lacaio à porta para
que não permitisse a entrada de ninguém, sob qualquer pretexto, a menos que essa pessoa levasse um prato de sopa. Fechou a porta com firmeza e encaminhou-se de imediato
para a secretária. Um pequeno monte de documentos e de cartas aguardava numa salva, e, com um suspiro profundo, Napoleão tentou banir qualquer pensamento sobre Josefina,
deixando-se cair pesadamente na cadeira e começando a tratar da correspondência.
Quebrou o selo do primeiro documento, abriu-o e deu uma vista de olhos ao conteúdo. Era de um oficial superior do Tesouro, que requisitava uma audiência para discutir
a crise monetária iminente. Napoleão tinha consciência de que os cofres franceses estavam quase vazios, mas esperara que a paz recente restaurasse o fluxo de impostos
e de outros rendimentos. Contudo, o Tesouro relatava que a economia estava a sofrer com o embargo comercial com a Inglaterra, o que afetava todo o continente. Isso,
a par do custo de manutenção dos exércitos em Espanha, estava a exaurir a França. Napoleão redigiu alguns comentários apressados no documento e passou ao seguinte,
uma resposta do irmão, o rei Luís da Holanda, ao pedido de reforços holandeses a serem enviados para Espanha. Luís dizia recear que os súbditos se revoltassem, caso
ele tentasse enviar tropas em auxílio do rei José. A juntar aos lamentos, e pelos mesmos motivos, argumentava não poder manter o embargo com o comércio inglês.
- Idiota - resmungou Napoleão, enquanto escrevinhava uma resposta brusca ao fundo da carta do irmão. - Será que ele não entende que a menos que verguemos a Inglaterra,
nenhum Bonaparte estará seguro no trono?
A carta seguinte continha um pedido educadamente articulado para que o imperador tivesse a bondade de saldar uma dívida contraída por Josefina num costureiro parisiense.
Napoleão arregalou os olhos ao ver a soma devida. Mais de dez mil francos. Fitou a carta e depois atirou-a para o lado.
Ouviu-se um estalido suave quando a porta se abriu e um criado entrou no gabinete trazendo um tabuleiro com um pequeno prato fumegante, um pouco de pão, um decantador
de vinho aguado e um copo.
- Aqui, na secretária. - Napoleão bateu na superfície brilhante de madeira à sua direita. O criado atravessou a divisão e pousou cuidadosamente o tabuleiro, após
o que curvou a cabeça e se afastou às arrecuas. Napoleão terminou os apontamentos e pousou a pena. O cheiro agradável da sopa de cebola invadiu-lhe as narinas e
Napoleão puxou o tabuleiro para a sua frente. Lá fora, a chuva tamborilava nas vidraças com um ritmo irregular, enquanto o vento gemia sobre o palácio. Napoleão
pegou na colher e começou a sorver com cuidado, a mente regressando sem demoras ao mais premente dos assuntos que o atormentavam - como dar a notícia a Josefina.
Uma semana depois, Napoleão tomou sozinho uma refeição com a esposa. Os últimos pratos do serviço de jantar tinham sido levantados, ficando a maior parte da comida
intacta na porcelana fina. Daí a pouco, um criado serviu-lhes café e depois retirou-se do pequeno salão onde o imperador e a imperatriz tinham ceado. No exterior,
a noite gelada tinha caído havia muito sobre o palácio. Além de meras amabilidades, rara tinha sido a palavra trocada à refeição. Napoleão sentia o estômago demasiado
revoltado com ansiedade para conseguir comer e obrigara-se a engolir algumas garfadas de frango, tendo passado o resto da refeição a debicar a comida, até que finalmente
pousou os talheres e estalou os dedos, para que os criados levantassem a mesa.
- Estamos quase no Natal - acabou Josefina por comentar.
- Sim.
Josefina ergueu a chávena e deu um gole cuidadoso.
- Não se preparou nada.
- Não.
- Bem, não achas que deveríamos organizar algum evento? Uma celebração?
Napoleão fitou-a, sentindo-se mal ante a iminência da traição.
- Não vamos ter nada para celebrar.
- O quê? - Josefina baixou ligeiramente a chávena. - Porque dizes isso? O que se passa, meu amor? Tens estado tão frio comigo desde que regressaste.
- Eu... tenho uma coisa para te dizer. - Napoleão engoliu nervosamente em seco e percebeu que não era capaz de continuar. Josefina notou a expressão de sofrimento
no rosto dele e fez menção de se levantar da cadeira para o reconfortar. - Senta-te - ordenou Napoleão. Depois, consciente da dureza do tom, obrigou-se a suavizar
a voz. - Por favor, senta-te, meu amor.
Passado um instante, Josefina fez o que lhe foi dito e retribuiu-lhe o olhar.
- O que foi? Diz-me.
Já não havia como evitar o que se seguiria e Napoleão respirou fundo para se acalmar, antes de falar.
- Tenho de me divorciar de ti.
- O quê?
- Tenho de me divorciar. Preciso de um herdeiro. Por isso, tenho de encontrar uma nova esposa.
Josefina olhou-o fixamente e depois soltou uma gargalhada nervosa.
- Estás a brincar, só pode ser. Estás a brincar comigo.
- Não. É verdade. - Agora que finalmente poderia explicar a situação, Napoleão sentiu o alívio fluir-lhe pelo corpo. - Não tem nada a ver connosco, é a França. Eu
amo-te e sempre amei. Mas temos de ser fortes e pôr a necessidade do povo acima da nossa. - Observou-lhe com atenção a expressão espantada. - Entendes?
Josefina abanou a cabeça ao de leve, de lábios a tremer.
- Não... Não...
- Desejava, com todas as forças do meu ser, que pudéssemos evitar esta situação - prosseguiu Napoleão, com gentileza. - Mas tem de ser.
Josefina cerrou os punhos.
- Não. Por favor, não o faças.
- Tem de ser. Se nos vamos divorciar, não podemos ser vistos juntos. Não seria próprio.
- Não faças isso, meu querido. - A voz cedeu-lhe. - Suplico-te.
- Já foi feito. O senado ratificou ontem o decreto. Amanhã irei anunciá-lo em Paris e ambos assinaremos o acordo formal perante a corte imperial. É preferível que
tudo seja feito o mais depressa possível. - Napoleão sorriu. - Para nos aliviar o sofrimento, bem vês.
- NÃO! NÃO! NÃO! - gritou Josefina, derrubando com o braço o que estava em cima da mesa. Atirou a chávena ao chão e o pires voou contra a lareira, onde explodiu
em fragmentos com um ruído agudo. Levantou-se e correu até ele à volta da mesa, após o que se deteve e o fitou, de olhos desvairados. - NÃO! - Levantou de repente
o punho e Napoleão encolheu-se instintivamente. Em vez de o agredir, bateu no peito, com força, repetidamente.
- Não faças isso! - Napoleão estendeu-lhe a mão. - Por favor, meu amor, não o faças.
O corpo de Josefina foi percorrido por um soluço e depois as pernas cederam-lhe e ela caiu sobre o tapete espesso por baixo da mesa, enrolando-se no chão enquanto
gritava e chorava. Napoleão fitou-a por um instante, sabendo que não poderia fraquejar agora. No passado, as lágrimas de Josefina já lhe tinham abrandado muitas
fúrias, levando-o a mudar de ideias. Afastou a cadeira e aproximou-se dela.
- Levanta-te, Josefina. Para de chorar.
Ela abanou a cabeça e continuou a soluçar, juntando um grito magoado a espaços, e Napoleão não deixou de a fitar, impotente, enquanto a piedade e a irritação se
digladiavam sobre o controlo dos seus pensamentos. Atrás dele abriu-se a porta. Apareceu um lacaio, com um candeeiro, e ao seu lado estava o barão Bausset.
- Sire? Ouvi gritos. Aconteceu alguma coisa?
Napoleão apontou para Josefina.
- O que lhe parece? Venha cá, preciso da sua ajuda.
- Sim, sire.
Enquanto Bausset se aproximava rapidamente da mesa, Josefina estendeu a mão e agarrou a perna de Napoleão.
- Ajuda-me a levantar-me - murmurou. - Não quero que me vejam assim.
Napoleão baixou-se e agarrou-lhe no ombro, passando-lhe a outra mão pela cintura enquanto a ajudava a pôr-se de pé. Josefina tinha os olhos inchados e vermelhos,
as faces riscadas pelas lágrimas e o lábio inferior a tremer. Napoleão sentiu uma culpa terrível a percorrer-lhe as veias e ficou tentado a abraçá-la. Depois, Bausset
chegou a seu lado e o encanto quebrou-se.
- Ajude a imperatriz. - Napoleão tentou libertar-se, mas Josefina manteve-se desesperadamente agarrada ao braço dele.
- Não me deixes!
- Não te vou deixar. Ajudo-te a chegar aos teus aposentos.
Os olhos dela cintilaram por um instante.
- Sim, seria muito gentil da tua parte.
Josefina aliviou a força com que o agarrava e Napoleão libertou-se, dando um passo rápido atrás.
- Bausset, venha segurar a imperatriz. Com força, para não a deixar cair. Eu ilumino o caminho.
Bausset acercou-se rapidamente e assumiu o seu lugar. Josefina obrigou-se a sorrir e agradeceu num tom gelado ao oficial imperial, enquanto o marido retirava cuidadosamente
uma vela do castiçal da mesa. Envolvendo a chama com a mão livre para a proteger de correntes de ar, abriu caminho até à porta. Com Bausset a apoiar a imperatriz,
o pequeno grupo dirigiu-se a uma pequena escadaria traseira e começou a subir os degraus até aos aposentos de Josefina, no andar superior. Ao chegar ao topo, ela
deixou-se ficar inerte de repente e recomeçou a chorar.
- Não o faças, Napoleão. Suplico-te, não te divorcies de mim.
Napoleão virou-se.
- Cala-te! - sibilou. - Bausset, pelo amor de Deus, segure-a bem.
Com Bausset quase a arrastar Josefina, o trio percorreu o corredor até à porta do quarto. Napoleão abriu a porta e chegou-se ao lado, erguendo a vela.
- Leve-a para a cama. Depressa.
Bausset fez o que lhe era ordenado e deitou gentilmente a imperatriz em cima da colcha de seda, antes de recuar para junto do seu mestre.
Napoleão sentiu um ardor repentino no pulso.
- Raios! - Baixou a vela para sacudir a cera derretida com a mão livre e a pequena chama estremeceu.
- Não me deixes! - Josefina ergueu-se sobre o cotovelo, com a outra mão estendida para ele.
- Saia! - ordenou Napoleão a Bausset. - Já.
Os dois homens saíram apressadamente para o corredor e Napoleão fechou a porta atrás de si, interrompendo um novo acesso de lágrimas e de gritos angustiados. Soprou
as faces, aliviado, antes de olhar para Bausset.
- Fique aqui. A imperatriz está perturbada e precisa de descansar. Ela não pode sair dos aposentos até que eu o permita. Pode receber visitas, se assim o desejar,
mas seria... impróprio para ela cruzar-se comigo, dadas as circunstâncias, como decerto compreenderá.
- Sim, sire. Assim farei.
- Ótimo. - Napoleão deu-lhe uma palmadinha no ombro e regressou às escadas, tendo o cuidado de não voltar a deixar que a cera lhe escorresse para o pulso. Assim
que se afastou o suficiente de Bausset, abanou a cabeça. Sentia-se esgotado. Tinha um aperto no coração, mas mesmo assim estava grato pela sensação de liberdade
e de alívio que o percorria. Fungou para consigo.
- Afinal, sempre correu bem.
Capítulo 13
Os elementos da corte imperial entraram em silêncio na sala do trono do palácio das Tulherias. Dirigiram-se aos seus lugares e esperaram pelo início da lúgubre cerimónia.
A noite anterior fora gelada e os telhados da capital cintilavam com uma camada de gelo, enquanto cristais irregulares se tinham formado nos cantos de cada vidraça
da sala do trono. O céu estava plúmbeo, o que contribuía para o espírito sombrio de todos os que aguardavam a chegada do imperador.
Mais tarde, cerca de uma hora depois de os membros da corte se terem reunido na câmara, o ressoar das botas dos soldados no corredor anunciou a chegada do imperador
e dos seus guarda-costas. As portas da sala abriram-se com um ranger leve e Napoleão entrou. Dirigiu-se a um trono almofadado de folha de ouro e veludo, posicionado
num estrado elevado. O trono da imperatriz fora retirado na véspera e levado para uma arrecadação. Depois de Napoleão se sentar, seguiu-se uma breve pausa, até que
mais passos anunciaram a chegada da imperatriz. Josefina vestia uma túnica azul-escura simples, como se se dirigisse a um funeral, refletiu Napoleão. Cruzou a sala
e deixou-se ficar a pouca distância do estrado, virada para ele. Napoleão pôde ver que ela estivera outra vez a chorar, e a tez estava ainda mais pálida do que o
habitual.
Napoleão pigarreou e olhou em redor da câmara para os familiares, os ministros, os membros do senado, dezenas de marechais e generais, e representantes da Igreja.
Josefina era a única mulher no salão.
- Meus senhores, convoquei-os para testemunharem um dia triste, mas necessário, nas nossas vidas. Por motivos de Estado, vejo-me obrigado a dar por terminado o meu
casamento com a imperatriz Josefina. O senado ratificou o decreto necessário e hoje eu e a minha esposa iremos assinar o registo civil que reconhece o final do nosso
casamento. - Fez uma pausa, sem se atrever a olhá-la, e fitou um ornamento do teto, perto do topo da parede oposta. Sentia um nó doloroso na garganta, apesar da
sua intenção de manter as formalidades breves e sem emoção. Tossiu.
- Antes que o decreto seja assinado, quero que se saiba que não aponto quaisquer culpas, nem falta de amor, à imperatriz. Também não está em causa a minha falta
de estima. O único motivo para esta decisão infeliz reside no fracasso da natureza de nos proporcionar um herdeiro que me suceda no trono imperial.
Não pôde mais reprimir a necessidade de a olhar e fitou os olhos dela. Lágrimas novas cintilavam nos olhos de Josefina, que levantou rapidamente a mão para as limpar.
Napoleão respirou fundo, depois levantou-se e fez sinal a Fouché, o ministro da polícia e um dos conselheiros mais próximos de Napoleão, para que trouxesse o decreto.
Fouché aproximou-se do estrado com um pequeno estojo de escrita. Abriu-o, apresentou o documento e segurou o estojo à frente de Napoleão. O imperador pegou na pena
no interior do estojo, abriu o tinteiro, mergulhou o aparo e dirigiu a mão ao fundo do decreto. Fez uma pausa momentânea, olhando além do irmão, para Josefina. Ela
abanou ao de leve a cabeça enquanto o fitava, com uma expressão de súplica. Napoleão baixou o olhar e assinou rapidamente antes de devolver a pena ao suporte.
Fouché recuou dois passos, virou-se e acercou-se de Josefina, a quem se dirigiu com frieza.
- Se vossa majestade imperial se dignar a assinar o decreto, podemos acabar com tudo.
Josefina fitou o documento como se este fosse uma cobra venenosa e depois ergueu lentamente a mão que lhe tremia para a levar à pena. Pegou-lhe e molhou o aparo,
antes de se preparar para assinar ao lado do nome de Napoleão. Começou a escrever, mas depois abanou a cabeça.
- N-não posso. - A voz embargou-se-lhe. - Não sou capaz.
- Tem de ser - insistiu Fouché, em voz baixa. - Não tem alternativa.
Josefina abanou a cabeça, reprimindo mais lágrimas.
Napoleão não aguentou mais e levantou-se do trono, dirigindo-se a ela.
- Josefina, querido amor, tens de assinar o decreto, caso contrário, tudo aquilo por que trabalhei terá sido em vão. Assina, imploro-te, por mim. Assina, pelo amor
que sentes por mim.
Josefina aquiesceu, voltou a empunhar a pena e depois, lentamente, assinou. Assim que terminou, Fouché tirou-lhe a pena da mão e fechou o estojo.
- Está feito - anunciou às pessoas que se encontravam na câmara de audiências. - O decreto está assinado e o divórcio é oficial.
As palavras foram recebidas com silêncio, sendo o único som os soluços de Josefina, que se envolvia com os braços. Napoleão levantou a mão para a reconfortar, depois
retirou-a e obrigou-se a voltar ao trono. Ninguém falou, sem saber como reagir, e esperaram nervosamente por uma deixa do imperador, mas Napoleão permaneceu imóvel
e silencioso, o olhar fito na distância. Depois levantou-se subitamente e deixou a câmara.
Bem cedo na manhã seguinte, Napoleão foi acordado pelo criado pessoal, Roustam, vestiu-se e tomou um pequeno-almoço rápido antes de se dirigir ao pátio do palácio.
Ainda não eram oito horas e a luz débil era pálida. Um comboio de carruagens e carroças aguardava para levar Josefina, o seu séquito e pertences a Malmaison, o palácio
de campo que Napoleão decidira conceder-lhe, a par de outros presentes e riquezas, que lhe garantiriam um resto de vida confortável. Os cavalos faziam piafés nas
pedras e os criados batiam com as botas e esfregavam as mãos para tentarem manter-se quentes enquanto aguardavam pela sua senhora. Napoleão viu que a carruagem de
Josefina estava vazia e chamou a si uma das aias.
- Onde está a sua senhora? Ela devia partir à hora.
- Lamento, sire. Ela mandou dizer que estaria aqui à hora marcada. Deixei-a no quarto.
- Compreendo. - Napoleão baixou o tom de voz. - E como está sua majestade imperial?
- Cansada, sire, pois passou a maior parte da noite a chorar. Quando a deixei, estava sentada na cama, a olhar para o vosso retrato.
- É melhor entrar para a sua carruagem. Não vale a pena ficar ao frio enquanto esperamos.
A aia recuou e dirigiu-se à carruagem, e Napoleão olhou para o relógio sobre a arcada do pátio. O ponteiro grande avançou mais um minuto e de repente ele sentiu
uma irritação familiar por Josefina, que sempre se atrasara para todos os eventos, obrigando-o a esperar. Foi ficando mais zangado com o aproximar das oito horas.
Então, quando o relógio começou a bater as horas, abriu-se uma porta e Josefina surgiu do palácio, enrolada em peles e dona de uma elegância fria ao dirigir-se graciosamente
à carruagem. Não alterou o ritmo das passadas quando reconheceu Napoleão e lhe estendeu as mãos enluvadas. Com a mais leve das reservas, Napoleão segurou-lhe nas
mãos e chegou-se à frente para lhe beijar as faces, após o que se afastou. Um ar magoado percorreu a expressão de Josefina, e ele sentiu-lhe as mãos tentarem aproximá-lo
com gentileza.
- Não, Josefina. - Sorriu. - Isso não seria boa ideia.
- É assim tão fácil resistires ao meu amor?
- Nunca é fácil.
- Então? - Nos olhos pairava um convite. - Se alguma vez me quiseres visitar, ninguém saberá de nada.
- Isso não vai acontecer. Ambos teremos de ser fortes.
Josefina mordeu o lábio e assentiu.
- Muito bem. Nesse caso, tenho de partir.
- Sim.
Josefina soltou-lhe as mãos e virou-se, aceitando a mão de um lacaio que a ajudou a subir para a carruagem. A porta fechou-se à sua entrada e, ao longo de todo o
pequeno comboio de veículos, homens entraram e condutores assumiram as rédeas e os chicotes. À frente foi bradada uma ordem e o comboio deu um solavanco ao arrancar,
com as rodas revestidas a ferro e as ferraduras dos cavalos a encherem o ar com uma cacofonia estrepitosa. Napoleão fitou por um instante a carruagem de Josefina,
quando esta avançou e se dirigiu à arcada. A janela não se abriu. Não se viu sinais do rosto dela no pequeno painel à retaguarda, e momentos depois passou pelo arco
e entrou na avenida mais além, desaparecendo da vista.
Duas semanas depois, no primeiro dia do novo ano, Napoleão convocou uma reunião com a família e os conselheiros mais chegados. As nuvens e a chuva que pareceram
pairar todo o mês de dezembro sobre a capital tinham partido, deixando no seu lugar um céu azul limpo. Contudo, o imperador começara a matutar na perda da esposa
e o estado de espírito não estava a melhorar com a necessidade de tomar uma decisão quanto a uma substituta. Depois de consultar os diplomatas e de enviar mensagens
aos embaixadores de França para que estes sugerissem nomes de mulheres adequadas, foi elaborada uma lista de candidatas.
Por fim sobraram apenas duas que correspondiam aos desejos de Napoleão, que convocara a reunião para que o ajudassem a decidir entre elas. Assim que todos se instalaram
à mesa comprida da sala de reuniões dos seus aposentos privados, Napoleão bateu na mesa.
- Silêncio, cavalheiros. - Fez uma pausa até que os outros lhe dirigiram a atenção. - Temos de decidir quem será a minha esposa, e nova imperatriz de França. Imagino
que saibam que tive em consideração uma série de mulheres, e acredito que os nossos interesses serão mais bem servidos com a grão-duquesa Ana da Rússia, ou com a
princesa Maria Luísa da Áustria. Tal como muitos de vós saberão, a grão-duquesa é irmã do czar Alexandre. Tendo em conta o estado atual das relações entre a Rússia
e a França, um casamento com a família do czar poderia ajudar-nos a reparar alguns dos danos sofridos pela nossa aliança. A seu tempo, quando houver filhos, eles
só virão ajudar a fortalecer a união das nossas duas potências.
- Sire - interrompeu José. - Não há garantias de que a grão-duquesa seja fértil. A necessidade mais premente é a produção de um herdeiro ao trono. Com quinze anos,
será talvez um pouco nova para ter filhos. Poderá haver riscos para a saúde dela que não se aplicarão a uma mulher mais velha e mais forte.
- Ela tem idade suficiente - retorquiu Napoleão. - Há muitas mulheres capazes de conceber tão novas. Além disso, se ela se revelar fértil, temos a garantia de um
período longo para filhos. Com o passar dos anos, a grão-duquesa poderá dar-nos muitos herdeiros.
- Isso é verdade - concedeu José. - Mas temos de ter em conta a linhagem. Os Romanovs são afamados por produzirem muitos descendentes enfermiços, bem como um pequeno
número afligido pela insanidade. Não queremos arriscar que a vossa descendência fique contaminada com tais espécimes.
- Pois não, não queremos. - Napoleão aquiesceu, pensativamente. - Mesmo assim, não nos podemos esquecer das vantagens políticas de tal união entre a França e a Rússia,
especialmente agora que a Inglaterra está tão perto de ceder. Os agentes de Fouché dizem-nos que o embargo ao comércio inglês está a fazer com que os produtos se
amontoem nos portos. As fábricas estão a fechar e os trabalhadores estão esfomeados. Em breve vão começar a morrer à fome, e quando as pessoas morrem de fome, começam
a exigir mudanças.
- O ministro da polícia já nos disse isso tudo - esclareceu José, fatigado. - Há quanto tempo é que ele nos garante que o povo inglês está à beira da revolta? Dois
anos? Três?
O ministro Fouché franziu os lábios e encolheu os ombros.
- Acredito naquilo que os meus agentes dizem. O problema é que os ingleses têm uma capacidade perturbante de resistência e uma falta de apetite por revolução. Mas
o comércio é o calcanhar de Aquiles deles. Se o cortarmos, ficam mancos.
- E mesmo assim continuam a lutar - interveio Talleyrand do extremo da mesa. Apesar da distância cada vez maior entre eles, Napoleão convocara igualmente o antigo
ministro dos negócios estrangeiros. O conselho de Talleyrand era demasiado valioso para ser ignorado. - Na verdade, longe de mostrar quaisquer sinais de enfraquecimento,
a influência deles vai crescendo na Península Ibérica. Derrotaram-nos em Talavera. - Levantou a mão quando viu Napoleão chegar-se à frente, fazendo menção de protestar.
- Eu sei que o marechal Jourdan e Victor dizem que foi uma vitória, e foi assim que ordenou que fosse apresentado nos nossos jornais, mas a verdade é que as nossas
forças foram repelidas pelos ingleses.
- A sério? - Os lábios de Napoleão torceram-se num leve sorriso escarninho. - Nesse caso, se ele ganhou a batalha, como explica que o general Wellesley se tenha
sentido obrigado a recuar até Portugal?
- Uma necessidade estratégica, sire. Aos ingleses, basta-lhes manter um exército na Península para barrar o caminho a forças francesas com um número bastante superior.
- Basta! - Napoleão bateu com a mão na mesa. - A situação na Península Ibérica está a desenrolar-se a nosso favor. A vitória é inevitável. Na primavera irei enviar
mais soldados para Espanha, juntamente com Masséna, e os ingleses serão derrotados de uma vez por todas. Assim sendo, não percamos mais tempo a pensar nisso. Estamos
aqui para escolher uma noiva. Tal como frisei, um casamento seria bastante útil para fortalecer os nossos laços com a Rússia. O risco está na eventual capacidade
de a irmã do czar nos apresentar um herdeiro. - Fez uma pausa. - Por outro lado, a princesa Maria Luísa tem dezanove anos, uma excelente idade para produzir filhos.
O pior é ela não ser uma beleza. - Recordou o comprido rosto dos Habsburgos que herdara do imperador Francisco, a par de um nariz estreito e de olhos salientes.
- Admito que pensar em levá-la para a cama me apela mais ao sentido de dever do que ao desejo de homem.
- Às vezes os grandes homens têm de fazer grandes sacrifícios. - Talleyrand encolheu os ombros. - Não se esqueça, sire, de que é seu dever dar um herdeiro a França.
- É verdade, mas neste caso bem gostaria que houvesse maneira mais fácil de alcançar esse objetivo.
Luís, que ainda não falara, nem se mostrara muito interessado, moveu-se e chamou a atenção do irmão.
- Com a vossa licença, creio que me lembro de ter ouvido dizer que uma antepassada, uma tia-avó, se não estou em erro, deu à luz vinte e seis filhos. Isso, por um
lado, responde à aptidão dela para o casamento.
Napoleão fitou Luís.
- Vinte e seis filhos? Espantoso. É exatamente com esse tipo de útero que me quero casar. - Dirigiu-se a Champagny, o sucessor de Talleyrand como ministro dos negócios
estrangeiros. - Sabemos como os austríacos vão reagir à proposta?
- Com efeito, sire. Quando discuti o assunto com o embaixador, ele disse que o príncipe Metternich sugerira uma forma semelhante de aliança entre a França e a Áustria.
Ao que parece, chegou a referir-se a Maria Luísa pelo nome.
- Isso é bom - meditou Napoleão. Se Metternich pudesse abrir caminho à proposta de matrimónio, seria grande a possibilidade de êxito. Contudo, refletiu que se Metternich
estava interessado em tal ligação, de certeza que estaria a tramar algum plano. Fosse como fosse, o casamento com a princesa Maria Luísa servia os interesses imediatos
de França e, se por acaso ela se revelasse fértil, também os interesses a longo prazo. Olhou em redor da mesa e anuiu.
- Muito bem, então, seja a princesa Maria Luísa. Champagny, apresente a nossa proposta aos austríacos assim que possível. Se eles concordarem, teremos de agir com
celeridade. Não quero que os russos tenham grande tempo para apresentar um protesto quanto aos laços mais chegados entre França e Áustria.
- Sim, sire.
- Informe o imperador Francisco de que desejo que o casamento não se efetue mais tarde do que a primavera. Os assuntos de Estado impedem-me de deixar Paris durante
vários meses, por isso será um enviado a apresentar a proposta em meu nome. Se o imperador Francisco concordar, nesse caso o enviado pode agir como meu representante
e o casamento poderá efetuar-se de imediato, viajando Maria Luísa para Paris como minha noiva.
- Um casamento por representação? - José ergueu as sobrancelhas. - Isso não será precipitado? Se queremos transmitir a impressão de uma união entre as duas potências,
decerto um casamento de Estado terá mais ênfase.
Napoleão rejeitou a objeção.
- Podemos organizar qualquer coisa mais tarde, para deixar as pessoas felizes. O que interessa é que as coisas sejam resolvidas rapidamente e que eu engravide a
minha nova imperatriz o mais depressa possível. Estamos todos de acordo, cavalheiros?
Os conselheiros anuíram, à exceção do irmão, que esfregava o queixo com uma expressão magoada.
- O que foi, meu irmão? Pretendes apresentar uma objeção?
- Não, sire, não propriamente. Apenas me preocupo com os danos que isso vai causar à reputação de os franceses serem românticos.
Os outros homens sorriram, e alguns riram-se, mas a expressão do imperador manteve-se séria.
- Não há lugar para o romance nos assuntos do Estado. - Franziu o cenho e endureceu o tom de voz. - Deixou de haver.
Capítulo 14
Arthur
Lisboa, fevereiro de 1810
- O governo está a armar uma bela confusão. - Henry Wellesley abanou a cabeça e serviu-se de mais um copo do Madeira de Arthur. Os dois irmãos estavam sentados à
frente de um lume na casa de campo que Arthur alugara a um nobre local. Lá fora a noite caíra e a chuva fustigava as portadas. O exército encontrava-se em quartéis
de inverno ao longo da fronteira espanhola e ele aproveitara a oportunidade para visitar Lisboa e preparar o envio de provisões. Também avaliava o progresso da rede
de defesas que ordenara que fossem erguidas na faixa de terreno a norte da cidade, entre o mar e o rio Tejo. Dezenas de milhares de portugueses tinham sido requisitados
para construir os fortes, redutos e trincheiras de ambos os lados da vila de Torres Vedras, e que deveriam reprimir o assalto do exército francês quando eles tentassem
expulsar os ingleses da Península Ibérica.
Henry chegara vindo de Cádis a bordo de um vapor, trazendo consigo os mais recentes despachos de Londres. Arthur irritava-se profundamente com o facto de os superiores
políticos informarem o representante inglês em Cádis dos desenvolvimentos domésticos antes que essas notícias fossem transmitidas ao comandante das forças inglesas
na Península Ibérica. Claro que desta vez pelo menos houve algum motivo de alegria, pois Henry trouxera os despachos em mão, a par de cartas de amigos e da família.
- Por Deus - resmungou Arthur. - Aqueles idiotas de Londres. Seria de pensar que preferem eliminar os adversários políticos e não o inimigo.
- Mas Arthur, para eles, os adversários políticos são o inimigo. Os franceses não passam de um inconveniente.
- Exatamente. Pensei que não me faltasse ouvir mais nada quando soube daquele duelo ridículo entre Castlereagh e Canning. É um milagre que só o Canning tenha sido
ferido. Agora, ambos caíram em desgraça e estão fora do governo, numa altura em que todos os ingleses deviam pôr o país acima de tudo o resto. Entretanto temos aquele
fanático religioso, o Spencer Perceval, como primeiro-ministro. Pelo menos lorde Liverpool tem uma boa cabeça como ministro da Guerra. Ele tem noção da necessidade
de manter um exército aqui em Espanha.
- É verdade, mas Liverpool está com dificuldade em defender esse ponto de vista. Há elementos do ministério que não têm pejo em dar voz aos pedidos para te substituir,
ou então para que o exército regresse a Inglaterra.
Arthur fitou o centro do lume.
- Porque quereriam substituir-me? - indagou em voz baixa. - Que motivo poderiam ter?
- Motivo? És um Wellesley; irmão do Richard. Para eles, é motivo mais do que suficiente.
- Esqueces-te. - Arthur sorriu. - Já não sou um Wellesley.
- Eu sei. Agora respondes pelo nome de Wellington. Uma escolha tola, se queres saber. Típico do irmão William.
- Por agora, Wellington serve - replicou Arthur, refletindo brevemente na sua nobilitação, após a batalha de Talavera, no ano anterior. O rei concordara em elevá-lo
ao pariato como recompensa pela vitória. William fora encarregue de encontrar um título e descobrira uma pequena aldeia chamada Welleslie, na zona Oeste. Contudo,
para não arriscar alguma confusão entre o nome e o título de Richard, o Colégio de Heráldica escolhera antes o nome da povoação de Wellington, ali próxima. Assim,
desde setembro, Arthur passara a ser o visconde Wellington de Talavera, algo que decidira ser um título com um som estranho.
- Não nos podemos dar ao luxo de abandonar o que aqui temos - prosseguiu Arthur. - A nossa presença obriga Bonaparte a manter um quarto de milhão de homens retidos
na Península Ibérica. Cada dia que passa custa ao inimigo muitas vidas e ouro. A França está lenta mas garantidamente a exaurir-se. E enquanto isso continuar, Bonaparte
tem menos possibilidade de enviar exércitos poderosos para o resto do continente. - Arthur inclinou-se para a frente e tocou no joelho do irmão. - Henry, preciso
que defendas a nossa pretensão em Londres. Tens de garantir que o governo não desiste da única estratégia que poderá derrotar os franceses.
Henry suspirou.
- Farei o que puder, Arthur. Tens a minha palavra. O problema é que os nossos aliados espanhóis não estão a ser de grande ajuda para a causa. Os generais deles parecem
incapazes de dominar os adversários franceses.
- Realmente. - Arthur abanou a cabeça, lamentoso. - Mas não temos de perder toda a esperança. Mesmo que os governantes espanhóis nos tenham falhado, o mesmo não
pode ser dito do povo. O seu coração é mais valoroso e vão continuar a lutar.
- Que vantagens isso lhes vai trazer, ou a nós? Os rebeldes não se equiparam aos soldados de Bonaparte. Se tentarem resistir, vão ser massacrados.
- Não me parece. Diz o que quiseres sobre a junta e sobre o exército, mas a guerra com os resistentes ainda vai continuar mais algum tempo. É aí que podemos encontrar
a base da nossa vitória na Península Ibérica.
- Espero que tenhas razão. - Henry pegou no seu copo e revirou-o lentamente nas mãos antes de continuar. - Henry, para te ajudar a convencer o governo a manter o
apoio ao teu trabalho aqui, tenho de te pedir que te abras comigo. Tenho de saber ao certo como tencionas levar a cabo esta guerra.
- De momento há pouco que eu possa fazer - replicou Arthur, sinceramente. - Estou em inferioridade numérica de dez para um. Os homens que perdemos em Talavera só
agora foram substituídos por recrutas novos. Muitos dos homens que sobreviveram à batalha estão esgotados e alguns foram acometidos por doenças após a retirada para
Portugal. O que se passa com os homens também se passa com os meus oficiais, além da complicação adicional de alguns deles serem desleais, outros serem incompetentes,
e outros ainda serem um risco óbvio ao nosso lado. Mesmo que o exército estivesse pronto a atacar no centro de Espanha, ainda não resolvi o problema dos suprimentos.
A parcimónia do governo leva a que mal possa alimentar e equipar os nossos soldados aqui em Portugal. Não posso depender dos nossos amigos espanhóis para obter fornecimentos,
pelo que para travar uma guerra em Espanha, vou precisar de muito mais ouro para pagar o nosso avanço. - Exibiu um sorriso cansado. - Portanto, Henry, agora sabes
como estou limitado para levar os combates ao inimigo.
- Compreendo tudo isso, mas assim sendo, qual é o teu plano?
- Se não podemos atacar o inimigo, teremos de fazer com que seja ele a atacar-nos a nós. Foi por isso que dei ordens para a construção das linhas de defesa a norte
de Lisboa. Por enquanto, Napoleão estabeleceu paz com as outras potências do continente. Isso significa que vai poder concentrar um grande exército em Espanha, com
o objetivo de esmagar as minhas forças aqui em Portugal. Assim, vou apresentar-me como estando a preparar-me para combater os franceses, enquanto os terrenos à frente
das linhas são despojados de pessoas e limpos de alimento, abrigos e forragem. Depois recuo para trás das defesas e espero aí pelo inimigo. Os franceses terão de
decidir se nos fazem passar fome, ou se regressam a Espanha. Uma vez que podemos receber com facilidade fornecimentos pelo mar, não vamos passar fome. O inimigo,
por outro lado, vai começar a ficar esfomeado, mas não irá retirar, por recear a fúria do imperador. Esse dilema vai destruí-los. - Arthur voltou a recostar-se na
cadeira. - E essa, Henry, é a minha estratégia. Podemos não ser capazes de vencer aqui a guerra, mas de certeza que não a vamos perder, conquanto Inglaterra seja
paciente e generosa com o seu fornecimento de homens e de dinheiro. Talvez te soe perverso, mas gostaria que os franceses atacassem. Só espero que tal aconteça antes
que o governo em Londres perca a coragem e ordene a minha retirada.
Henry ficou em silêncio por um instante, após o que aquiesceu.
- Farei o que estiver ao meu alcance para o evitar, mas tens de perceber que Inglaterra espera vitórias, de preferência mais cedo do que mais tarde.
- Teremos vitórias quando estiver pronto para as apresentar. - Arthur voltou a encher os copos e fitou o irmão. O rosto de Henry estava marcado por rugas e o cabelo
salpicado de grisalho. Os deveres ao serviço da nação tinham-no envelhecido.
Ouviu-se bater à porta e Arthur virou-se na direção do som.
- Entre!
A porta abriu-se e Somerset entrou. Atrás dele, no corredor, outro oficial subalterno aguardava nas sombras.
- O que foi, Somerset?
- Sir, tenho a relatar que o capitão Devere regressou.
- Ah, ótimo! Ele que entre.
Somerset desviou-se e fez sinal ao oficial no exterior. O homem marchou para dentro da sala, com o lume da lareira a refletir-se nos cordões que adornavam a peliça
militar da farda. Devere chegara recentemente. Fora destacado para o estado-maior de Arthur como favor a um dos aliados de Richard no parlamento. Era competente,
mas a arrogância ainda teria de ser mitigada pela experiência. Arthur enviara-o de madrugada para negociar a venda de uma manada de gado a um latifundiário português.
O som dos passos ecoou nas paredes quando o oficial percorreu o soalho de mosaicos, após o que se deteve à frente de Arthur com uma saudação elaborada.
- Sir, permita-me que relate que regressei da minha tarefa.
- Ótimo. Quantas cabeças de gado conseguiu comprar?
- Nenhuma, sir. - Devere continuou a olhar em frente.
- Nenhuma? - Arthur franziu o cenho. - Mas o que significa isso? Explique tudo, homem! Imagino que tenha encontrado a propriedade. As indicações eram suficientemente
claras.
- Sim, meu general. Cheguei à casa pouco depois do meio-dia e apresentei-lhe as condições para a compra do gado.
- E?
O olhar firme de Devere cedeu e não conseguiu evitar relancear os olhos cautelosos na direção do comandante antes de voltar a mirar a parede.
- Sir, disse-lhe o nosso preço e de quantas cabeças precisávamos, e ele pareceu não gostar dos meus modos diretos. Quando chegámos a acordo em relação ao preço,
ele disse-me que só completaria a transação se eu lhe implorasse que me vendesse o gado.
- Se implorasse?
- Sim, sir. D. Roberto Lopes ordenou-me que me ajoelhasse e implorasse.
Arthur esfregou a fronte.
- Imagino que tenha recusado o pedido.
- Sim, meu general. É claro. Sou um cavalheiro inglês e diabos me levem se me vou ajoelhar à frente de um luso qualquer.
Arthur fechou os olhos com uma expressão de desalento.
- E disse-lhe isso com esses modos?
- Exatamente assim, sir. Por intermédio do meu tradutor, é claro. Afinal de contas, não falo o patuá local e o maldito do homem recusou-se a falar inglês.
- Entendo. - Arthur ergueu o olhar. - E depois, o que aconteceu?
- Depois? - Devere franziu as sobrancelhas. - Nada, sir. D. Roberto disse que se recusava a vender-me o gado. Pelo menos até que eu me ajoelhasse. Disse-lhe que
o gado dele podia ir para os quintos dos infernos e que encontraríamos outro vendedor. Depois saí de lá e vim apresentar o meu relatório. Devolvi o ouro ao encarregado
das finanças do exército, sir.
Arthur deixou-se fitar o jovem oficial.
- Diga-me uma coisa, Devere, por acaso faz ideia daquilo por que passei para encontrar tal quantidade de carne para as nossas tropas? Já quase não há manadas num
raio de trinta quilómetros de Lisboa. Os nossos homens têm de ser alimentados. Agora, graças à sua petulante exibição de arrogância, eles vão passar fome.
O capitão Devere abriu por instinto a boca para protestar, depois reconsiderou e fechou-a, mantendo-se hirto e a olhar em frente.
- Ouça bem, Devere. O senhor é um oficial da cavalaria. Qual é a máxima desses oficiais? Parece-me bem que tem de ser recordado: trata dos cavalos antes dos homens
e dos homens antes de si. Isso significa que descarta quaisquer outras considerações até que os cavalos e os soldados estejam devidamente alimentados. Correto?
- Sim, meu general.
Arthur fitou Devere fixamente por um instante.
- Escute uma coisa, capitão. Somos um exército pequeno, de quem o nosso país espera grandes resultados. Precisamos de todos os aliados que conseguirmos encontrar.
Espero que de futuro seja essa noção a orientá-lo em todos os nossos contactos com portugueses e espanhóis. Entendido?
- Sim, meu general.
- Muito bem. Pode retirar-se.
O oficial fez continência, virou-se e marchou para fora da sala tão depressa quanto possível, fechando a porta ao sair. Henry ergueu a sobrancelha na direção do
irmão.
- Quer-me parecer que este indivíduo não é um diplomata nato.
- É jovem. - Arthur encolheu os ombros. - E este mal melancólico vai passar-lhe em breve. Se viver o suficiente, acredito que o Devere venha a prestar bons serviços
ao país. Mas por agora, infelizmente, deixou-me com mais um problema a resolver. - Arthur puxou do relógio e olhou para os ponteiros. - São quase onze horas. Já
é tarde, meu caro Henry. Vais perdoar-me, mas tenho trabalho a fazer antes de me recolher. Imagino que estejas cansado da tua viagem desde Cádis. Podemos continuar
a nossa conversa pela manhã.
Henry sorriu.
- Como queiras. - Terminou o vinho e levantou-se da cadeira. - Uma boa noite para ti.
Arthur aquiesceu e ficou sentado a observar o lume enquanto Henry deixava a sala. Esperou alguns minutos antes de se dirigir à porta e ordenar ao ordenança de serviço
que lhe fosse chamar Somerset. Minutos depois, Somerset entrou, a reprimir um bocejo.
- Mandou chamar-me, sir.
- Sim. Quero imediatamente dois esquadrões de cavaleiros nas selas. E vou precisar de algum ouro.
- Ouro? - Somerset pestanejou. - Pretende comprar alguma coisa a esta hora, sir?
Arthur reprimiu um bocejo e exibiu um sorriso fatigado.
- Apenas um pouco de boa vontade.
A propriedade ficava a duas horas a cavalo de Lisboa. Não era fácil seguir o caminho no escuro, algo dificultado pelas nuvens de chuva que ocultavam as estrelas
e a Lua. Perderam-se três vezes e foram obrigados a encontrar uma quinta, onde acordaram os ocupantes para lhes pedir indicações que os devolvesse ao caminho certo,
mas por fim, às duas da manhã, a coluna atravessou os portões da propriedade de D. Roberto Lopes. A estrada comprida serpenteava através de pomares, cujas árvores
exibiam os troncos despidos no inverno, e extensões de pasto onde os vultos escuros de gado e de cabras se aglomeravam em busca de abrigo ao longo de muros vetustos.
Daí a pouco, Arthur avistou uma lanterna isolada acesa num pórtico. Em seu redor agigantava-se a forma indistinta de uma grande casa.
A coluna fez alto junto ao pórtico e Arthur desmontou. Chamou o intérprete e dirigiu-se à porta, onde bateu com o pesado anel de ferro na madeira sólida. Não houve
resposta e Arthur esperou um momento antes de voltar a bater, desta vez com mais insistência. O silvo da chuva e o gemido baixo do vento não deixava ouvir qualquer
som vindo do interior. Após uma breve espera, os ferrolhos atrás da porta foram corridos repentinamente e a porta abriu-se o suficiente para que um homem espreitasse,
desconfiado, pela fresta.
- Boa-noite. - Arthur sorriu. - Por favor, informe D. Roberto Lopes de que tem uma visita.
O tradutor falou e seguiu-se uma breve troca antes de se dirigir a Arthur.
- Diz que o senhor está a dormir, sir.
- Imaginei que sim. Diga a este homem que sou o general lorde Wellington, marechal de Portugal e comandante do exército aliado. Tenho de falar com o patrão dele
sobre um assunto de alguma urgência.
A apresentação foi traduzida e o criado olhou atentamente para Arthur, após o que abriu a porta e lhe fez sinal para entrar. Lá dentro havia um hall vasto e Arthur
conseguiu distinguir as formas de molduras e de tapeçarias que adornavam as paredes.
- Ele diz-nos para esperarmos aqui, sir - disse o intérprete, - enquanto vai acordar o senhor.
- Muito bem.
Arthur sentou-se de um lado e o intérprete português ocupou, com todo o respeito, o outro banco. Arthur tirou o chapéu e afastou as madeixas húmidas de cabelo para
o lado, pensando que teria de voltar a cortar o cabelo curto assim que tivesse oportunidade. Desabotoou o casaco e abriu-o, para que a casaca da farda ficasse visível,
com a estrela do pariato e as restantes condecorações presas ao peito.
D. Roberto não deixou as visitas inesperadas muito tempo à espera. O brilho de um candeeiro surgiu num corredor de um dos lados do hall de entrada e em breve o criado
regressou, segurando a lanterna para iluminar o caminho ao senhor. Arthur e o intérprete levantaram-se e curvaram a cabeça para o cumprimentar.
O latifundiário português era um homem idoso, de rosto magro e altivo. Uma barba alva bem aparada ornava-lhe o queixo. Observou Arthur com os olhos castanhos penetrantes.
Apontou para o banco e resmungou na direção do intérprete.
- Sua senhoria pede que se sente, enquanto o criado vai buscar uma cadeira.
O criado pousou o candeeiro no chão e apressou-se a ir buscar uma pesada cadeira de carvalho, embutida a marfim com um desenho geométrico mouro. Arthur esperou que
o anfitrião se sentasse antes de voltar a ocupar o seu lugar no banco. O intérprete permaneceu de pé.
- Já é tarde - começou Arthur a dizer, - pelo que irá perdoar-me por ir direto ao assunto.
D. Roberto meneou a cabeça em assentimento enquanto ouvia a tradução.
- Vim apresentar as minhas desculpas pelo comportamento do oficial que enviei para lhe comprar o gado. O capitão Devere acabou de chegar de Inglaterra. Não está
habituado aos costumes estrangeiros e é jovem quanto baste para não pensar na impressão que causa. Quero que saiba que ele não é um oficial britânico típico. Também
lhe vim pedir que reconsidere a sua decisão de não vender o gado.
Quando o intérprete começou a transmitir as palavras de Arthur, D. Roberto levantou a mão.
- Não é necessário. Eu entendo muito bem, obrigado.
Arthur não foi capaz de reprimir uma breve expressão de surpresa e o nobre português sorriu.
- O que foi? Julgava que eu só falava o... patuá local?
Arthur riu-se.
- Por Deus, vossa senhoria apanhou-me.
- Não tanto como ao seu capitão Devere - prosseguiu D. Roberto com o mais leve sotaque. - Teria conversado na vossa língua, mas a pose dele afrontou-me de tal maneira
que decidi não ter obrigação de lhe facilitar o encontro. Diga-me, os ingleses falam todos mais alto para se fazerem entender pelos estrangeiros?
Arthur sorriu.
- Infelizmente, trata-se de um mal comum.
- Pois não foi o único mal que nós, portugueses, tivemos de aguentar desde a chegada do vosso exército, milorde.
- A presença dos meus homens é menos onerosa do que a dos franceses - protestou Arthur. - Não tolero pilhagem, nem maus-tratos aos não-combatentes. Quaisquer saques
que tenham lugar é obra dos seguidores do acampamento. Esses indivíduos não respeitam totalmente a disciplina militar, mas dei ordens aos meus oficiais para castigarem
todos os que forem apanhados a roubar. A seu tempo, até eles vão entender a importância que dou às relações saudáveis com os habitantes das terras onde me vejo obrigado
a travar batalhas.
D. Roberto observou-o pensativamente.
- É uma pena que não tenha sido o senhor a vir comprar o gado no lugar do capitão Devere. Tê-lo-ia recebido generosamente. Mas assim, não fui tratado com o respeito
que me é devido, em especial por parte de um oficial tão subalterno. O vosso exército não se encontra aqui no papel de exército de ocupação. Foi por isso que exigi
que o seu oficial se ajoelhasse para requerer a compra do meu gado.
- Isso é verdade. Estamos aqui para garantir a liberdade do vosso povo e para combater pela libertação do povo de Espanha. - Arthur falou com toda a franqueza. -
Contudo, o exército não pode continuar a defender os aliados de barriga vazia. É por isso que lhe peço que reconsidere e que me venda o gado.
- Compreendo. Diga-me, general, quanto mais tempo prevê que o vosso exército permaneça nas nossas terras? Pergunto-lhe, pois não vejo grande disposição da vossa
parte em enfrentar os franceses.
- Atacarei quando estiver pronto. Até lá, tenho de o manter e de garantir que está em condições de combater quando chegar a altura.
- E quando será isso?
- Não sei dizer. Só lhe posso dar a minha palavra de que farei tudo ao meu alcance para derrotar os franceses aqui na Península Ibérica.
- Tudo? - D. Roberto ergueu a sobrancelha.
- Sim. A queda de Bonaparte terá início aqui, ou então não acontecerá de todo. É essa a minha convicção. Nada mais me interessa.
- Pois veremos. Fico impressionado com a vossa dedicação ao dever, milorde. Mas tal como já disse, a minha honra foi ofendida, o que obriga a uma expiação. Ainda
pretende comprar o gado?
- Sim.
- Nesse caso exijo que se ajoelhe e o implore.
- Pretende que lhe implore que venda o gado?
- Sim.
Arthur sentiu uma onda de fúria a percorrê-lo. Estava cansado, gelado e molhado, e furioso com Devere por o ter deixado naquela posição. O facto de ter de suplicar
estava-lhe atravessado na garganta. Depois respirou fundo e obrigou-se a acalmar-se. Afinal de contas, não seria a primeira vez. Já se ajoelhara perante Cuesta,
mas isso fora para salvar ambos os exércitos do disparate que fora a decisão do comandante espanhol de dar meia-volta e lutar com um rio pelas costas. Esta nova
humilhação prendia-se com uma semana de rações para os seus homens. Podia recusar-se. Todavia, nesse caso estaria apenas a reforçar os estragos provocados por Devere.
- Muito bem. - Arthur levantou-se do banco e baixou-se sobre um joelho à frente do anfitrião. - D. Roberto, imploro-lhe que me permita comprar-lhe o gado.
- Com os dois joelhos, general, e acrescente um pedido de desculpas.
Arthur baixou a cabeça para ocultar a expressão sombria e fez deslizar o pé para que ficasse com os dois joelhos no piso duro.
- D. Roberto, peço-lhe desculpas pelo comportamento do meu oficial e suplico-lhe que me deixe comprar-lhe o gado.
Seguiu-se um breve silêncio até que D. Roberto esboçou um sorriso.
- Aceito as vossas desculpas e autorizo-lhe a compra do meu gado. Pode levantar-se, milorde.
Quando Arthur regressou ao banco, viu que o outro homem o olhava com uma expressão curiosa.
- Sabe, general, não existem muitos compatriotas seus que tivessem agido como acabou de fazer. Ainda menos conterrâneos meus e garanto-lhe que nenhum espanhol.
- Já lhe disse, não há nada mais importante do que a vitória. Para todos nós. Fazemos o que temos de fazer, caso contrário estamos perdidos.
- Isso é verdade. Uma grande verdade. - D. Roberto levantou-se e estendeu a mão. - O gado é seu, general. Vou dizer ao meu criado para acordar a minha gente, para
levar o gado ao seu acampamento.
- Agradeço-lhe.
- Se me permite, seria uma grande honra tê-lo como convidado para jantar, um dia.
Arthur aceitou a mão e sorriu.
- A honra seria minha.
D. Roberto baixou a mão e virou-se, fazendo depois uma pausa para olhar para Arthur, enquanto este se dirigia à porta.
- Só mais uma coisa, general. Se não se importa, pague o gado antes de o levar, sim?
Capítulo 15
Abril de 1810
- Parece que Bonaparte escolheu o marechal Masséna para nos esmagar - informou Arthur os seus oficiais superiores. Tinham sido convocados para o quartel-general
e estavam agora sentados no pátio sombreado, refrescado pela brisa do final da tarde. Exibiu um exemplar do Le Moniteur. - Isto foi obtido há uma semana, a par de
outros documentos, por guerrilheiros a norte de Madrid. Masséna foi nomeado comandante do Exército de Portugal, uma força de cerca de cento e cinquenta mil homens.
Mesmo tendo em conta que seremos capazes de estrangular o acesso aos suprimentos, isso significa que Masséna continuará a superar-nos por alguma margem.
Arthur fez uma pausa enquanto os oficiais se entreolhavam, pensando na dimensão da força que teriam de enfrentar. A par dos regimentos portugueses formados e treinados
sob o comando do general Beresford, o exército britânico tinha menos de sessenta mil soldados. Após a retirada de Talavera, o exército exausto fora assolado pela
malária e pelo calor sufocante do verão mediterrânico. Fora preciso todo o inverno para que os sobreviventes recuperassem as forças e para que os novos reforços
fossem treinados para a campanha que se seguiria. No entanto, Arthur estava certo de que o seu exército seria capaz de reter o inimigo. Os homens estavam mais do
que à altura do adversário e teriam a vantagem de uma linha formidável de defesas à retaguarda, caso fossem obrigados a retirar.
Depois de permitir que os oficiais refletissem sobre as probabilidades que lhes eram apresentadas, Arthur prosseguiu com as informações.
- Os nossos últimos relatórios dão-nos conta de que o inimigo está a concentrar-se em Salamanca. Desde o início de março que os elementos avançados têm vindo a sondar
os postos do general Craufurd, ao longo da fronteira portuguesa perto de Almeida. Acredito que o marechal Masséna vai tentar invadir Portugal a partir do norte.
É o melhor percurso. Uma direção alternativa de ataque será a partir de leste, em direção a Elvas, mas as estradas são terríveis. Já são complicadas para a infantaria,
mas tornam-se impossíveis para a artilharia e para os carros. Assim sendo, dei ordens ao general Hill para que levasse as suas forças ao encontro do exército central.
- Com a sua licença, sir - interrompeu o general Hamilton. - Mas isso deixa a fronteira oriental vazia.
- Se me tivesse deixado acabar - retorquiu Arthur, num tom gelado, - ter-lhe-ia dito que Elvas será defendida pela brigada do general Leite. É um dos melhores oficiais
portugueses e estou em crer que se vai manter firme, isso caso o inimigo tenha a infeliz ideia de tentar um ataque a partir de oriente. Não tenham dúvidas de que
o inimigo vai entrar pelo norte. No entanto, antes que Masséna possa invadir Portugal, terá de tomar as fortalezas de Ciudad Rodrigo e de Almeida, já que elas guardam
a rota por onde terá de avançar. O general Herrasti, governador de Ciudad Rodrigo, escreveu-me a informar de que tem uma guarnição forte e muitos suprimentos. Pode
aguentar até ser rendido por um exército espanhol. - Arthur sorriu. - Eu sei que não tivemos a melhor das experiências às mãos dos nossos aliados espanhóis...
Vários dos oficiais que tinham servido em Talavera resmungaram a sua concordância.
- Contudo - prosseguiu Arthur, - talvez venham a agir com uma maior urgência, já que são os compatriotas que estarão em risco. Mas temos de contar com o pior. Ciudad
Rodrigo vai cair. Só podemos esperar que atrasem o avanço francês o suficiente para melhorarmos as defesas de Almeida. Igualmente aí teremos de tentar atrasar Masséna,
até que o terreno à frente das linhas defensivas de Torres Vedras tenha sido limpo e as fortificações completadas. - Arthur olhou em redor do pátio, para garantir
que tinha a atenção de cada oficial. - As primeiras fases desta campanha vão exigir que ganhemos tanto tempo quanto possível. Cada dia com o inimigo atrasado é um
dia que ganhamos para melhorar as nossas defesas. Cada soldado francês perdido nos assaltos às fortalezas fronteiriças é menos um que os nossos homens terão de enfrentar.
Vou ser muito sincero, cavalheiros: não poderemos vencer esta campanha num sentido convencional. Não podemos marchar para a batalha e enfrentar Masséna em campo
aberto, esperando vencê-lo. Eles têm uma grande superioridade numérica e a cavalaria é das melhores da Europa. Não seremos capazes de impedir que nos rodeiem. A
nossa cavalaria é demasiado fraca para se opor aos cavalos inimigos.
" O nosso objetivo é não perder a campanha. Se o cumprirmos, nesse caso venceremos. - Arthur exibiu um sorriso sardónico. - Embora os jornais e outros pessimistas
em Inglaterra possam não aceitar esta definição de vitória. Não esperem receber grandes títulos, pensões e outros despojos de guerra semelhantes, cavalheiros.
A audiência reagiu com uma mistura de sorrisos e gargalhadas. Os jornais e as cartas de Inglaterra que chegavam à Península Ibérica transbordavam com a opinião de
que o exército do lorde Wellington não estava a fazer nada em Portugal e que os soldados deveriam ser retirados.
- Assim sendo, decidi que só iremos lutar em condições vantajosas. Quando enfrentarmos o marechal Masséna em combate, todos vós terão de deslocar os vossos homens
rapidamente para que sejamos fortes onde o inimigo é fraco, e para reforçarmos rapidamente quaisquer pontos da nossa linha que estejam a ser pressionados. - Arthur
fez uma pausa. - Questões, cavalheiros?
Um dos oficiais levantou a mão, um homem entroncado na casa dos trinta anos, com olhos castanhos penetrantes e quase completamente calvo.
- Sim, coronel Cox?
- Já decidiu onde enfrentar o marechal Masséna, sir?
Arthur ficou em silêncio por um momento, interrogando-se se deveria fazer confidências aos seus oficiais. Talvez fosse melhor que eles soubessem o que lhe ia na
mente, para o caso de lhe acontecer alguma coisa, podendo adaptar a estratégia para o confronto com o inimigo. Por outro lado, Arthur sabia que por mais que lhes
fosse útil seguir o plano dele, ficariam com a desvantagem de tentar constantemente levar a cabo as intenções originais demasiado à risca, perdendo a flexibilidade
que marcava a liderança eficaz. Olhou fixamente para o coronel Cox.
- Tenho uma localização em mente.
Seguiu-se um breve silêncio expectante, mas Arthur não disse mais nada.
- E qual será esse sítio, sir? - insistiu Cox.
- Tudo a seu tempo, coronel. Em breve vai ficar a saber.
Dois dias depois, Arthur cavalgava na companhia de Somerset e de um esquadrão de cavalaria ligeira, batendo a paisagem a norte do rio Mondego, o percurso por onde
Masséna deveria avançar, assim que tratasse das fortalezas fronteiriças. O grosso do exército de Arthur já cruzara o rio e estava acampado em torno da cidade de
Coimbra. Os oficiais e os soldados estavam animados, quase ansiosos por se depararem com o inimigo, depois de tantos meses de espera no aquartelamento, com uma rotina
infindável de exercícios e treinos que lhes fora imposta pelo comandante. Arthur tinha perfeita noção de que o exército mal podia esperar por um combate, mas até
àquele momento, Masséna frustrara-lhe as expectativas. Os franceses tinham investido lentamente contra Ciudad Rodrigo e os últimos relatórios dos batedores de Arthur
davam conta de que o inimigo nem sequer começara a abrir trincheiras de aproximação, nem a estabelecer baterias de cerco. Só dali a semanas é que Masséna estaria
pronto a assaltar a fortaleza. Corriam o risco de nessa altura os soldados ingleses já terem perdido alguma da impetuosidade. Claro que o maior risco era que quanto
mais tempo demorasse o início da invasão a Portugal, maior a possibilidade de o governo em Londres poder perder a coragem e dar ordens para a evacuação da Península
Ibérica por parte de Arthur e do seu exército.
Quando o pequeno grupo chegou ao cimo de uma colina na estrada para Mortágua, depararam-se com as paredes caiadas de um convento. Arthur dirigiu-se a Somerset.
- Que lugar é este?
Somerset virou-se e procurou o mapa no alforge. Encontrando-o, desdobrou-o e percorreu-o com o dedo enluvado.
- Ah, cá está. É o convento do Buçaco, sir.
- Buçaco, hã? - resmungou Arthur, levantando a mão para proteger os olhos enquanto analisava a paisagem circundante. À sua frente, a estrada cruzava o topo da colina
e depois descia ao longo de um contraforte recurvado. As encostas de ambos os lados do caminho estavam cobertas de pinheiros, entremeados com urze. À esquerda, a
crista prosseguia durante cerca de três quilómetros para norte, até que caía, íngreme, para o fundo do vale. À direita, a cumeada seguia quase a direito, na direção
do Mondego, a mais de dez quilómetros dali. O topo da colina mal variava em altura e garantia um panorama limpo ao longo de toda a extensão.
- Parece-me uma boa posição para defender. - Somerset acenou com a cabeça, satisfeito, enquanto olhava em seu redor. - Temos um bom panorama da aproximação à colina,
sir, e qualquer atacante vai deparar-se com uma abordagem bastante cansativa encosta acima.
- Assim parece. - Arthur deu outra olhadela rápida à posição. As encostas íngremes eliminariam a superioridade do inimigo em termos de cavalaria, já que não seriam
capazes nem de carregar pelo terreno ascendente, nem de flanquear com facilidade a linha de batalha de Arthur e cair sobre a sua retaguarda. Anuiu com satisfação
e depois dirigiu-se ao ajudante de campo. - Anote, por favor, Somerset.
Somerset dobrou o mapa e voltou a guardá-lo no alforge, de onde retirou um lápis e o bloco.
- Quando quiser, sir.
Arthur levantou o braço e apontou ao longo da cumeada em direção a sul.
- Quero que os nossos engenheiros construam uma estrada por ali, para o caso de termos de deslocar os nossos homens ao longo da linha, para fortalecer pontos fracos.
O caminho terá de ser limpo de pedras, para deslocarmos com facilidade os canhões e os carros de munições. A estrada tem de percorrer a encosta oposta. Não faz sentido
que os nossos homens sejam um alvo fácil para as peças inimigas. - Virou-se para Somerset. - Anotou tudo?
- Sim, sir - respondeu o ajudante de campo enquanto acabava de escrever as últimas palavras e erguia o olhar. - Acha que seremos capazes de derrotar o marechal Masséna
neste terreno, sir?
Arthur franziu os lábios brevemente.
- Talvez não consigamos uma vitória decisiva, Somerset, mas de certeza que vai sofrer um grande dissabor. - Sorriu. - Vai ser bom para silenciar as línguas dos pessimistas
em Inglaterra, não acha?
- Esperemos que sim, sir.
O cerco de Ciudad Rodrigo prosseguiu, enquanto a primavera dava lugar ao verão. Arthur recebeu informações regulares sobre o progresso do inimigo, à medida que os
sapadores franceses iam abrindo as trincheiras em ziguezague em direção às muralhas da fortaleza. Os canhões de cerco de Masséna deram início a um bombardeamento
contínuo das fortificações exteriores, abrindo gradualmente uma série de brechas nas defesas. Quando os franceses ficaram a uma distância que lhes permitia o uso
de morteiros, começaram a edificar uma fortificação bem protegida para uma bateria das peças de canos grossos, que em breve iniciariam uma barragem de granadas sobre
as muralhas com um efeito mortífero, abatendo grandes quantidades de soldados do general Herrasti.
Perto do final de junho, um dos defensores conseguiu sair da fortaleza numa noite de Lua nova. Abrindo caminho com todo o cuidado através das linhas francesas, foi
bem-sucedido na fuga, sendo avistado por uma patrulha de cavalaria britânica no dia seguinte. O oficial espanhol foi de imediato escoltado ao quartel-general de
Arthur, numa taberna, onde chegou duas noites depois da fuga. A exaustão do homem tornou-se óbvia a Arthur à luz dos candeeiros pendurados nas vigas sólidas da taberna.
Cambaleou ligeiramente quando se pôs em sentido e fez continência. Tinha a farda imunda e rasgada, e o rosto coberto de sujidade e arranhões, conseguidos ao rastejar
por entre as linhas de cerco.
Arthur curvou a cabeça numa saudação e olhou para Somerset, que se encontrava junto ao espanhol.
- Diz que vem de Ciudad Rodrigo?
- Sim, sir.
- Por Deus - meditou Arthur, enquanto voltava a mirar o oficial, com uma expressão de admiração. - Que belo trabalho. Somerset, preciso de um intérprete. Vá chamar
o capitão Hastings.
- Señor - interrompeu o oficial, - eu falo inglês. Foi por isso que o meu general me enviou.
- Ah, excelente. Excelente! - Arthur exibiu um sorriso caloroso. - Posso saber o seu nome?
- Capitão Juan Cerillo de Alimanca y Pederosa, sir.
- Sim, muito bem, capitão, que novidades nos traz do general Herrasti?
- O general diz que lhe pede para levar o seu exército e levante o cerco. Os franceses, eles abriram uma brecha. Se não houver ajuda, a fortaleza vai cair em menos
de uma semana.
- Compreendo. - Arthur aquiesceu. Recostou-se na cadeira e cruzou os braços, enquanto olhava com franqueza para o oficial espanhol. - Tenho de lhe pedir que diga
ao seu general que não há grande coisa que eu possa fazer para o ajudar. O meu exército não é suficientemente forte para ajudar Ciudad Rodrigo. O terreno à volta
da fortaleza é aberto e plano. É perfeito para a cavalaria francesa, e disponho de poucos cavaleiros para os defrontar. Sinto muito, mas não me posso dar ao luxo
de arriscar o meu exército para ir em auxílio do general Herrasti.
O oficial espanhol semicerrou os olhos.
- Se for mesmo aliado do meu país, nesse caso vai ajudar-nos, señor. Seja como for, o meu general pediu ajuda ao exército da Andaluzia. O general Alvarez prometeu
enviar a cavalaria para ajudar os ingleses a levantar o cerco. Não tem de recear os cavalos franceses, señor. O general Alvarez trata deles.
- Deveras? - A expressão de Arthur endureceu. - E qual é a força da cavalaria do general Alvarez?
- Cinco mil sabres, señor. - O capitão endireitou as costas cansadas e fitou Arthur com altivez. - A melhor cavalaria da Europa.
Arthur não respondeu de imediato. Os generais espanhóis já lhe tinham prometido muita coisa, mas só o tinham conseguido desapontar quando as garantias saíram goradas.
A má-fé de parte deles tinha saído bastante cara ao exército britânico durante a campanha de Talavera, e Arthur jurara não voltar a cometer o erro de acreditar na
palavra dos espanhóis. Lamentava que o povo e os soldados comuns fossem patriotas e estivessem preparados para desafiar Bonaparte a qualquer custo, mas os oficiais
superiores não eram, de todo, dignos de confiança. O mais provável seria que o general Alvarez não fizesse qualquer tentativa para levantar o cerco. Mesmo que, por
algum milagre, chegassem a marchar sobre Ciudad Rodrigo, os soldados seriam desbaratados pela primeira formação inimiga que se lhes opusesse.
Arthur respirou fundo, chegou-se à frente e susteve o olhar de desprezo do oficial espanhol.
- Peço-lhe que diga ao general Herrasti o quanto lamento. Diga-lhe que não serei capaz de levantar o cerco. Diga-lhe que se o tentasse, é possível que o nosso inimigo
infligisse uma derrota ao único exército aliado na Península Ibérica com a mais remota possibilidade de vencer Bonaparte. Não me posso dar ao luxo de desperdiçar
a mais ténue esperança que temos de poder vir a expulsar as tropas francesas de Espanha no futuro.
- Sim, señor. Entendo que talvez os ingleses sejam tal e qual o que Napoleão diz: não se pode confiar neles. E talvez lutem até à última gota de sangue espanhol.
Somerset arquejou.
- Ora, isso é...
- Silêncio! - atalhou Arthur, com brusquidão. Olhou furiosamente para o ajudante de campo por um instante, antes de devolver a atenção ao espanhol. - Lamento a falta
de autodisciplina do meu subordinado. - Levantou-se friamente e estendeu a mão. - Não há mais nada que eu possa dizer, capitão, exceto boa sorte, para si e para
o seu general.
O espanhol não aceitou a mão, limitando-se a curvar a cabeça com brevidade, após o que se virou para sair da taberna, cambaleando ao de leve junto à porta, quando
a exaustão se sobrepujou à pose arrogante. Depois saiu e Arthur dirigiu-se de imediato a Somerset.
- Mas que raios lhe passou pela cabeça? Os oficiais britânicos têm uma reputação de impassibilidade e de disciplina, Somerset. Agradeço que reflita sobre o assunto
e que faça por não macular essa reputação.
- Sim, sir. - Somerset mostrou-se desconfortável. - É tudo, sir?
- Sim. Está dispensado.
Sozinho na taberna, Arthur suspirou, fatigado, e depois pegou no molho de mapas a um lado da mesa. Folheou-os, selecionou o mapa que representava a fronteira portuguesa
com Espanha e bateu com o dedo em Ciudad Rodrigo. O general Herrasti fizera um excelente trabalho ao atrasar os franceses. Conseguira dar a Arthur várias semanas
para completar o sistema de defesas que protegia os caminhos para Lisboa. Era lamentável que Arthur nada pudesse fazer para ajudar o comandante espanhol, a não ser
honrar tal sacrifício derrotando o marechal Masséna.
Os canhões de cerco franceses abriram uma brecha utilizável nas muralhas de Ciudad Rodrigo no dia dez de julho. Em vez de sujeitar os habitantes aos horrores do
saque da povoação, o general Herrasti rendeu-se. Era um fim triste para um esforço audaz, refletiu Arthur enquanto lia o relatório, mas não havia tempo para lamentações,
uma vez que os franceses estavam já a avançar para a vila fronteiriça de Almeida. A divisão do general Craufurd fez o possível para os reter, mas a vanguarda do
inimigo obrigou os britânicos a recuar. Duas semanas depois da queda de Ciudad Rodrigo, o exército francês chegou a Almeida. Craufurd deixara um dos seus oficiais
mais capazes, o coronel Cox, a comandar a guarnição portuguesa. A povoação fora bem aprovisionada e havia bastantes munições para os canhões que percorriam as muralhas.
Arthur estava confiante de que Cox iria resistir pelo menos tanto tempo quanto o general Herrasti, pelo que se concentrou no problema de convencer os civis portugueses
no caminho de Masséna a emalar os seus bens e a buscar proteção atrás das linhas de Torres Vedras.
Muitos sabiam do destino das vítimas do exército de Soult, quando, dois anos antes, este retirara do Porto, pelo que levaram de bom grado as famílias para sul até
Lisboa. Houve quem se recusasse, para defender as suas casas, e outros ainda julgaram poder fazer dinheiro vendendo os produtos aos franceses, tal como era hábito
com os ingleses. Ainda atormentado pelas recordações das aldeias incendiadas e dos corpos mutilados de homens, mulheres e crianças que vira durante a perseguição
a Soult, fez o possível por convencer os civis a partir. Contudo, alguns continuaram a recusar-se, elevando a perspetiva do lucro acima do risco de serem roubados
e chacinados pelos soldados de Masséna.
Três dias depois de o inimigo ter dado início ao cerco de Almeida, Arthur encontrava-se na pequena praça de uma aldeia na estrada para a vila. O oficial português
que fora enviado para dizer aos aldeões que fugissem não lhes conseguira transmitir o risco que seria permanecerem nas suas casas, pelo que Arthur decidira convencê-los
pessoalmente. O perigo com que todos se deparavam fora deixado bem claro pelo sacerdote local, que fizera soar o sino da igreja para convocar todos os habitantes
à praça. Estava-se a meio da tarde e Arthur e Somerset estavam sentados à sombra de uma árvore defronte da igreja. A pouca distância, o intérprete sentava-se no
chão, de pernas cruzadas. As pessoas demoraram a aparecer, mal-humoradas pela interrupção da sesta, e foram chegando à praça, onde se acomodavam nas sombras possíveis
enquanto aguardavam que o padre falasse com elas. Mostraram pouco interesse pelos dois oficiais britânicos, ou pelos seis cavaleiros da escolta de Arthur, que descansavam
à sombra, a um lado da praça.
Somerset desrolhou o cantil e bebeu um gole enquanto relanceava os olhos pelos locais.
- Espero que este padre seja bom a atuar, caso contrário vão todos adormecer antes que ele fale.
- Garanto-lhe que vão ouvir - respondeu Arthur, calmamente. - Não poupei detalhes ao sacerdote. Imagino que ele esteja mais receoso quanto ao destino dos pertences
e dos valores da igreja do que quanto ao rebanho dele.
Somerset sorriu.
Esperaram mais um pouco. Somerset tapou o cantil e recostou-se, apoiando-se na tinta branca da parede que se descascava. Arthur fechou os olhos e tentou ignorar
o calor abrasador e o zumbido irritante dos insetos que lhe pairavam à volta da cabeça, onde por vezes pousavam e o obrigavam a abanar a cabeça, ou a sacudir a mão
para os enxotar. Dez minutos depois desistiu e levantou-se com impaciência. O intérprete, filho de um mercador vinícola de Lisboa, mexeu-se quando viu Arthur a levantar-se.
- Já esperámos demasiado - disse bruscamente Arthur e fez sinal com a cabeça para o padre sentado à entrada da igreja. - Diga-lhe que temos de começar.
O tradutor correu até ao padre e curvou respeitosamente a cabeça antes de transmitir a ordem de Arthur. O sacerdote olhou em redor da praça, onde não estariam mais
de cinquenta pessoas, e encolheu os ombros. Levantou-se e juntou-se a Arthur, seguido pelo intérprete.
- Diga-lhe que informe o povo de que estão no caminho do exército francês. Eles vão avançar por esta estrada. - Arthur gesticulou na direção da rua que atravessava
o centro da aldeia. - Diga aos aldeões que sou o comandante das forças portuguesas e britânicas em Portugal e que já vi com os meus olhos o destino que espera os
habitantes das terras por onde passam os franceses. Diga ao padre que repita o que já lhe descrevi. - Quando o cura se dirigiu aos habitantes e começou a falar,
Arthur murmurou para Somerset: - Se isto não os convencer, não há nada que os persuada, e nessa altura, que Deus os ajude.
Os locais escutaram o clérigo em silêncio, mas com o avançar do discurso, alguns começaram a abanar a cabeça. Arthur sentiu um aperto no coração ao ver o gesto.
O pessimismo foi interrompido quando reparou num cavaleiro a entrar na aldeia, um oficial cuja casaca vermelha ficara pálida pela exposição aos elementos e por uma
generosa camada de pó. O homem deteve-se ao lado dos dragões e desmontou, após o que entregou as rédeas a um dos soldados e se dirigiu pela rua em direção a Arthur.
- Somerset, está a ver aquele indivíduo? - Arthur acenou discretamente com a cabeça.
- Sim, sir.
- Não o quero a chamar a atenção. Intercete-o e veja o que pretende.
- Sim, sir.
Somerset recuou e contornou calmamente a pequena multidão, cruzando a rua até ao oficial que se aproximava. Arthur, imóvel e a ouvir serenamente as palavras para
si incompreensíveis do padre, observou Somerset a abordar o oficial e levá-lo para o lado, longe da vista de quem se encontrava na praça. Voltaram a surgir pouco
depois e o oficial regressou apressadamente à montada, içou-se para a sela e fez-se mais uma vez à estrada. Somerset chegou à beira da praça e fez sinal a Arthur.
Arthur inclinou-se para o tradutor e resmungou:
- Diga ao padre que conclua. Depressa.
O intérprete anuiu e murmurou junto ao ouvido do padre. Este franziu o cenho na direção de Arthur, depois encolheu os ombros e levantou a voz, falou rapidamente
e terminou com um breve cântico e o sinal da cruz. Os locais ficaram imóveis por um momento, após o que alguns deram meia-volta, enquanto um punhado se reuniu para
conversar em voz baixa. Arthur agradeceu ao sacerdote e cruzou a praça até Somerset.
- Então?
- Más notícias, sir. Uma das patrulhas de Craufurd informou que Almeida caiu.
- Caiu? - Arthur ergueu as sobrancelhas. - Como? Cox deveria ter conseguido aguentar-se durante semanas. O que aconteceu?
- A patrulha observou as peças francesas a dar início ao bombardeamento. Durante as primeiras horas não aconteceu nada fora do normal, mas depois houve uma explosão.
- Explosão?
- Sim, sir. Parece que um tiro de sorte deve ter caído no arsenal da guarnição e rebentou com as reservas de pólvora. Ao que parece, grande parte da povoação foi
destruída com o rebentamento, que também danificou as fortificações. Também não deve ter sido de grande ajuda para o moral dos defensores. Seja como for, renderam-se
antes do final do dia. Os nossos homens viram a bandeira francesa desfraldada sobre a fortaleza.
Arthur avaliou rapidamente a notícia. Masséna tomara Almeida. Nada mais lhe barrava o caminho. A estrada para Portugal estava aberta.
- Por Deus, o inimigo pode já estar a avançar sobre nós - constatou, em voz baixa. - Não há um momento a perder, Somerset. Transmita a informação a todos os elementos
do exército. Têm de regressar e concentrar-se na serra do Buçaco.
- Buçaco. Sim, sir.
Enquanto Somerset corria para o cavalo, Arthur olhou uma derradeira vez em redor da aldeia. Os franceses estariam ali numa questão de dias. Iriam devastar aquele
sítio, e trazer fome e morte ao povo. Depois marchariam sobre Lisboa, e no seu caminho estariam apenas os poucos soldados do exército aliado.
Capítulo 16
Serra do Buçaco, 27 de setembro de 1810
- Diabos levem esta neblina - resmungou Arthur enquanto olhava encosta abaixo. Mesmo já passando das seis da manhã, e com o Sol bem acima da linha do horizonte,
uma névoa cerrada envolvia o sopé da serra, ocultando o acampamento francês lá em baixo. O exército aliado assumira as posições previstas ao longo da serra na véspera
e dormira ao relento. Tinham acordado e formado antes da alvorada e encontravam-se agora numa linha que se estendia logo abaixo do cume, fora da vista do inimigo.
As únicas tropas visíveis aos franceses eram os mosqueteiros da divisão de Craufurd, e uma bateria de peças de seis libras que cobria a estrada que subia até ao
topo e passava ao lado das paredes do convento do Buçaco. Arthur e Somerset tinham-se dirigido aos soldados que ocupavam a aldeia de Sula. Arthur apoiou o telescópio
num muro em ruínas e observou o ponto em que a estrada se dissolvia na neblina. Apenas se via um punhado de soldados franceses. Seriam piquetes, quase de certeza,
decidiu Arthur.
- Não se consegue ver nada da força principal. - Arthur baixou o telescópio e tamborilou lentamente com os dedos no topo do muro.
- Permite-me? - Somerset apontou para o telescópio e Arthur passou-lho. - Se Masséna pretende abrir caminho à força até ao Mondego, nesse caso primeiro terá de tomar
o Buçaco, sir.
- É verdade - concedeu Arthur. Fosse como fosse, o exército francês estaria algures lá em baixo. Pouco depois de os soldados britânicos e portugueses terem acordado,
os tambores inimigos tinham feito soar a alvorada e as ordens bradadas pelos sargentos chegaram claramente ao cimo da encosta. Desde então, os únicos sons tinham
sido o estrondear de rodas revestidas a ferro, o relinchar ocasional de um cavalo e o estalar de um chicote que marcavam o avanço das peças de artilharia francesas.
Agora tudo estava calmo, e era difícil acreditar que o exército de Masséna estivesse em formação algures na base da serra, pronto a atacar as linhas britânicas.
As últimas informações estimavam que o exército francês ultrapassaria os sessenta mil homens. Tal como Arthur esperara, a força inicial do inimigo fora reduzida
pelos cercos e pela necessidade de deixar guarnições fortes para proteger as vias de comunicações de Masséna.
Arthur ficou em silêncio por um instante, até que aquiesceu e resmungou:
- Tenho a certeza de que Masséna nos vai atacar aqui. Atrevo-me a aventar que ele verá os nossos mosqueteiros e partirá do princípio de que no Buçaco não há nada,
além de uma retaguarda. Uma força que ele poderá afastar antes de prosseguir com o avanço em Portugal. - Arthur sorriu. - Pretendo estilhaçar essa ilusão.
Somerset ofereceu o esboço de um sorriso em troca.
- Desde que os homens se mantenham fora de vista, sir.
- Assim é, mas apenas os irei revelar quando tiver de ser.
- Vamos manter os nossos amigos franceses na dúvida o mais possível, não é?
- A ideia é essa - replicou Arthur, após o que apontou para a neblina que ocultava o terreno baixo à frente da cumeada. - O problema é que se trata de um pau de
dois bicos, Somerset. Não temos soldados suficientes para cobrir a serra toda. Não sei onde concentrar os nossos homens para repelir o inimigo até que os franceses
revelem a direção do ataque. Mesmo assim, tenho a certeza de que não será preciso aguardar muito até que o marechal Masséna nos revele o seu jogo.
O leve estampido de fogo de mosquete algures à direita chamou-lhes a atenção. Não houve sinais de movimento acima da névoa. Arthur estendeu a mão.
- O meu telescópio, por favor. Depressa.
Ergueu-o e espreitou pelo óculo. A menos de dois quilómetros, a encosta da serra estava coberta por machas de urze entre pequenas formações rochosas. Começou por
não ver grandes sinais de vida, exceto um punhado de mosqueteiros espalhados pelas pedras. Depois, uma figura de farda escura saiu da neblina e correu uma breve
distância colina acima, indo esconder-se atrás de um penedo, onde recarregou a arma. Foi seguida por outras, após o que se passaram alguns instantes, até que os
primeiros soldados avançados franceses subiram cuidadosamente a encosta aos pares, com um homem a disparar, enquanto o outro recarregava. Os mosqueteiros de Craufurd
responderam ao fogo e de súbito a inclinação encheu-se de minúsculas baforadas de fumo. De vez em quando, um soldado de cada lado tombava e desaparecia entre a urze
e as ervas. A troca de tiros prosseguiu, com os franceses a subir e a pressionar os mosqueteiros, até que estes recuaram para uma nova posição.
Um movimento no limite do banco de neblina chamou a atenção de Arthur e da névoa surgiu uma coluna francesa, com um estandarte a agitar-se lentamente sobre as primeiras
alas. Viu-se um breve clarão de luz quando o Sol se refletiu na águia dourada que encimava a bandeira. Arthur baixou o telescópio.
- Creio que se trata do primeiro ataque do dia. Masséna pretende flanquear-nos.
Somerset aquiesceu.
- Sim, meu general. Mas não vão chegar longe. Se continuarem a avançar naquela direção, vão deparar-se com a brigada de Mackinnon. Além disso, temos pelo menos uma
dúzia de peças que podem ser usadas contra a coluna francesa.
Arthur continuou a observar os soldados avançados britânicos a recuar para o topo, mantendo sempre um fogo incómodo. Ficou satisfeito por ver que tinham o cuidado
de visar os oficiais que lideravam a coluna francesa e de vez em quando uma figura de espada em riste que incitava os soldados tombava. Quando chegaram ao cimo,
os mosqueteiros cessaram fogo e correram a juntar-se às linhas bem formadas de camaradas na encosta oposta. A frente da coluna francesa, sem dúvida pressentindo
a vitória, investiu em direção ao topo.
- Lá vão eles - resmungou Somerset quando a linha aliada avançou para o cimo, um batalhão de casacas-vermelhas com batalhões portugueses em cada flanco. Arthur observou
com atenção. Era a primeira grande ação da infantaria portuguesa, recrutada e treinada pelo general Beresford e pelos seus oficiais. Tinham uma vantagem absoluta
sobre os franceses à frente deles, e se sobrevivessem ao batismo de fogo, ganhariam a confiança para se manterem firmes em qualquer campo de batalha. Uma bateria
de canhões estava posicionada em cada flanco da brigada e os artilheiros prepararam-se para disparar.
A frente da coluna francesa hesitou quando os três batalhões aliados surgiram sobre o cimo da encosta, fizeram alto e baixaram os mosquetes para disparar a primeira
salva da batalha. Com um estrondo que percorreu claramente a cumeada até Arthur, a brigada abateu as primeiras alas da coluna invasora, deixando corpos amontoados
e a contorcer-se por toda a frente. Depois as peças em cada flanco dispararam. A metralha varreu as alas densas, derrubando dezenas de homens cuja carne e ossos
foram desfeitos pelas pesadas bolas de chumbo.
Apesar da dura provação, os soldados franceses nas alas de retaguarda avançaram, enquanto os sargentos e os oficiais lhes ordenavam em desespero que formassem uma
linha. Sob fogo cerrado de três batalhões e dos canhões, não havia grande hipótese de se conseguir que a mudança de formação fosse levada a cabo com alguma ordem.
Em vez disso, os soldados à frente continuaram a disparar e a carregar o mais depressa possível, disparando às cegas para o banco de fumo de pólvora que pairava
no ar entre os dois lados.
- Aqueles indivíduos são feitos de uma fibra mais dura do que a maior parte dos franceses que já vi em ação - comentou Arthur. - Por Deus, eles estão a aguentar
com tudo o que a brigada de Mackinnon lhes está a atirar.
- É verdade, sir - assentiu Somerset. - Por enquanto estão a resistir, mas em breve vão ceder. - Fez uma pausa, depois olhou para a encosta, no lado mais próximo
da posição em que se encontravam, e apontou. - Sir, olhe ali! Creio que é outra coluna.
Seguindo com o olhar a direção indicada, Arthur viu o inimigo, um grupo de soldados avançados que emergia da neblina. Seguiam em ângulo em direção aos camaradas,
avançando por um pequeno barranco a caminho do cimo da serra, entre a brigada de Mackinnon e o carreiro até ao convento do Buçaco. Um breve olhar mostrou-lhe tudo
quanto precisava de saber.
- Se não mudarem de direção, não há ninguém que os detenha.
Somerset olhou para a cumeada e viu que não havia sinais de oficiais aliados que indicassem a presença dos seus soldados na outra encosta.
- Tem toda a razão, sir.
- Não temos muito tempo. - Arthur desviou-se do muro e correu para o ordenança que segurava os cavalos. Apoiou-se no estribo e passou a perna sobre a sela. Somerset
seguiu-o enquanto Arthur incitava o cavalo a um galope. Saíram de Sula e percorreram a estrada tosca que fora aberta ao longo da cumeada pelos engenheiros de Arthur.
Pelo caminho, foi olhando para a esquerda, para se manter a par da posição da coluna que se aproximava. Não havia dúvida de que Masséna teria enviado as duas colunas
para tomar a cumeada, mas elas ter-se-iam separado na neblina, continuando a subir a encosta em direções divergentes. Agora queria o destino que a segunda coluna
se estivesse a dirigir para uma faixa do cume sem defesas.
A estrada encaminhava-se para a encosta oposta e, a quatrocentos metros, Arthur viu uma companhia de casacas-vermelhas, seguidos pelo resto do batalhão, espalhados,
numa linha irregular, pela encosta ondulada. Os homens mais próximos viraram-se para olhar quando o comandante e o ajudante de campo chegaram a galope. Um dos soldados
ergueu a barretina e soltou um viva rouco, seguido por mais alguns quando Arthur passou por eles. Teriam pouco mais de dez minutos até que os soldados avançados
franceses chegassem à cumeada e se apercebessem da oportunidade à espera deles. Se conseguissem atravessar entre a linha aliada, cada metade poderia ser destruída
à vez. Mesmo sendo o Buçaco uma das melhores posições defensivas que Arthur encontrara na Península Ibérica, aquele sempre fora o grande risco na tentativa de defesa
da cumeada: muito poucos homens para proteger os mais de quinze quilómetros de extensão.
Alexander Wallace, o coronel da Octogésima Oitava de Infantaria, viu os dois cavaleiros a aproximar-se e encaminhou a montada para se encontrar com eles.
- Um bom dia para si, milorde. - Curvou a cabeça. - E para si também, Somerset.
Arthur acenou brevemente com a cabeça e apontou para a cumeada atrás de si.
- Está uma coluna francesa a sair da neblina que ameaça poder separar-nos a linha. Preciso dos seus homens a oitocentos metros para norte, naquela direção. Em passo
acelerado.
- Em passo acelerado, sim, meu general.
Arthur fixou o olhar no coronel.
- Tem de os deter a qualquer custo. Talvez seja uma divisão inteira. Julga que os seus rapazes estão à altura?
- Sim, meu general. Estão, sim - garantiu Wallace com sobriedade.
- Ótimo. Então trate disso, o mais depressa possível.
Trocaram continências e Arthur deu meia-volta ao cavalo, galopando ao longo do topo da serra em direção ao ponto ameaçado pela coluna francesa que subia continuamente
a encosta. De início não viu sinais do inimigo por onde passou, começando Arthur a interrogar-se se eles teriam retirado, ou mudado de direção. Depois avistou o
ponto na encosta em que o barranco caía a pique, ocultando uma larga extensão de terreno. Os primeiros pares de soldados avançados já se viam, subindo com cuidado
a encosta, em busca de sinais das forças inimigas, mas o cume à frente deles estava vazio sob o ameno céu matinal, com as cotovias a esvoaçar na urze.
- Milorde, além! - gritou Somerset, atrás de Arthur.
- Estou a vê-los.
Arthur estacou a montada e fitou os soldados avançados franceses, ao que se virou na sela para olhar para o carreiro. A primeira companhia da Octogésima Oitava ainda
se encontrava a quase oitocentos metros, com os canos dos mosquetes a agitar-se de um lado para o outro enquanto seguiam em passo acelerado pela cumeada, fazendo
erguer uma ténue nuvem de poeira à sua passagem. Precisariam, no mínimo, de mais dez minutos para alcançar a nova posição, diretamente à frente dos gauleses. Voltando-se
outra vez, Arthur viu que os primeiros franceses estavam a menos de quatrocentos metros do topo. À frente deles, a encosta tornava-se mais íngreme antes de se endireitar
abruptamente a pouca distância do topo da serra.
Decidiu que ainda havia tempo. Seria à justa, caso os homens de Wallace mantivessem o ritmo.
- Somerset!
- Sir?
- Vá ter com o Wallace. Diga-lhe para formar o centro da linha a duzentos metros da minha posição. A companhia ligeira que resista no terreno à frente da coluna
inimiga, para dar tempo ao resto do regimento para formar. Vá!
Somerset levou a mão enluvada à aba do chapéu, deu meia-volta ao cavalo e galopou pelo carreiro. Arthur dirigiu mais uma vez a atenção ao inimigo. O cintilar de
uma águia dourada revelava a posição da coluna principal, que seguia na esteira dos soldados avançados. O som de cascos a estrondear fez Arthur voltar-se. Somerset
estava de regresso e, atrás dele, Wallace seguia à frente dos homens da companhia ligeira. Os soldados ofegavam, com suor a escorrer debaixo das barretinas.
Wallace avaliou o ponto onde se deveria colocar e depois ordenou aos homens que se espalhassem cem metros atrás da cumeada. Quando ficaram prontos, ordenou que avançassem.
Arthur observou-os a cobrir o terreno e a mostrar-se aos soldados avançados franceses, a menos de cinquenta passos mais abaixo. Um oficial inimigo gritou, os mosquetes
foram erguidos e ouviram-se vários disparos. Nenhum atingiu o alvo e a brisa suave que se levantara ao longo da cumeada dispersou rapidamente as pequenas nuvens
de fumo de pólvora. A companhia ligeira começou a responder ao fogo e o ar encheu-se com os estampidos constantes dos mosquetes. Os soldados avançados estacaram
e, atrás deles, a frente da coluna abrandou momentaneamente quando as primeiras alas anteciparam a ação que se seguiria.
As restantes companhias da Octogésima Oitava começaram a passar. Wallace deteve a segunda companhia mais à frente no caminho e o resto do regimento assumiu a sua
posição na linha, espalhando-se em duas carreiras viradas para o declive. Arthur levou o cavalo a trote pela estrada e juntou-se aos homens de Wallace.
Wallace avançou o cavalo até à frente da linha e respirou fundo. Gritou acima dos sons das salvas de mosquete, ligeiramente abafados pela crista do cume.
- Ora bem, rapazes! Lembrem-se do que têm de fazer. É tal como vos treinei. Não basta picarem-nos com a baioneta, têm de os trespassar até ao cano!
Os soldados exibiram sorrisos rasgados e alguns soltaram vivas sanguinários, até que Wallace levou o cavalo até um espaço entre as companhias no centro da linha
e desembainhou a espada.
- Fixar baionetas!
Os sargentos repetiram a ordem e os mortíferos espigões de aço foram puxados com estrépito, sendo depois instalados sobre a ponta dos canos e girados para se prenderem.
- A Oitenta e Oito avança! - Wallace brandiu a espada na direção da encosta e a linha avançou, cruzando os derradeiros metros antes de se revelarem ao inimigo. Arthur
e Somerset seguiram a linha até à crista. Pouca distância à frente, Wallace deteve os homens e ordenou que disparassem a primeira salva. Os soldados avançados inimigos
estavam a recuar e quando os canos dos casacas-vermelhas foram erguidos e escorçaram, os homens tombaram, deixando os camaradas da primeira coluna a fitar com ansiedade
mais de cinco centenas de armas.
- Fogo!
A distância era curta e, apesar do esforço recente, a pontaria dos casacas-vermelhas provou ser certeira. Mais de cinquenta dos primeiros franceses foram abatidos,
sendo lançados para trás, contra as alas dos camaradas, e detendo o avanço da coluna. Antes que os oficiais franceses conseguissem ordenar uma salva de resposta,
Wallace saltou da sela e, levando a mão em concha à boca, vociferou: - À carga!
A ordem foi obedecida de imediato e, com um brado selvagem, a Octogésima Oitava avançou, pisando a urze, encosta abaixo, diretamente contra os franceses expectantes.
Alguns destes tiveram a presença de espírito de descarregar os mosquetes contra os atacantes, enquanto alguns outros se apressaram a fixar as baionetas. E depois
os casacas-vermelhas caíram sobre eles, trespassando-os, ou usando as coronhas dos mosquetes como maças. O ímpeto da carga levou-os até bem dentro das primeiras
alas da coluna e caíram sobre o inimigo com um furor selvagem. Arthur conseguia ver Wallace, ainda de chapéu, à cabeça do assalto, a desferir golpes com a espada
e a segurar o cano da pistola, enquanto usava a coronha pesada como maça. Em menos de um minuto, o primeiro batalhão francês cedeu, dando meia-volta e correndo encosta
abaixo. A formação seguinte parara e Arthur observou os oficiais e os sargentos a começarem a estender a linha, preparando-se para abrir fogo. Aquele que seria o
verdadeiro teste de Wallace e dos seus homens estava prestes a ter lugar e Arthur sentiu o nervosismo crescente enquanto assistia aos combates no meio da confusão
de soldados por toda a encosta à sua frente. Caso se deparassem com uma salva disparada por um segundo regimento francês, a carga estacaria e corria-se o risco de
os homens da Octogésima Oitava serem rechaçados.
Deixando os soldados do regimento destroçado a fugir pela encosta, Wallace parou e bradou uma ordem aos seus homens, para que fizessem alto e formassem alas. Para
alívio de Arthur, os outros oficiais britânicos e respetivos sargentos e cabos fizeram eco da ordem e, no espaço de minutos, os casacas-vermelhas tinham acabado
com a perseguição e apressavam-se a regressar às companhias. Assim que os soldados da Octogésima Oitava formaram, Wallace deu ordem para que recarregassem e depois
avançassem encosta abaixo até cinquenta passos do segundo regimento francês. Apesar de se manterem firmes, as alas inimigas tinham ficado desordenadas quando os
fugitivos da primeira carga abriram caminho por entre os camaradas. Sem uma vista desimpedida dos britânicos, o segundo batalhão não teve grande oportunidade de
empunhar os mosquetes, e apenas uma mancheia de homens dispararam antes de se depararem com a fúria total da segunda salva de britânicos agrupados.
Mais uma vez, os mosquetes cuspiram o seu chumbo fervente e as primeiras companhias francesas foram novamente fustigadas, tombando sem demoras. Com um brado rouco,
Wallace voltou a carregar com os homens. Desta vez, Arthur constatou que os combates eram mais desesperados, mais confusos, e em breve os dois lados estavam misturados
numa alucinação de baionetas em investida e de mosquetes empunhados. Foi uma batalha insana e selvagem, mas, tal como anteriormente, os britânicos tinham a vantagem
da inclinação e Wallace e os seus homens obrigaram os franceses a recuar até que também estes não conseguiram aguentar mais e deram meia-volta para fugir encosta
abaixo, surdos aos brados enraivecidos dos oficiais que os tentavam reunir.
Com as primeiras formações num caos, o comandante da divisão francesa não teve outra escolha que não deter o ataque. Os restantes batalhões começaram a ceder, recuando
pela encosta em direção à neblina cada vez mais rala que ocultava o sopé da cumeada. Wallace reagrupou os seus homens, que soltaram um viva triunfante ao ver a divisão
inimiga a fugir. Wallace permitiu brevemente a efusividade, até que voltou a pedir silêncio. Arthur estalou a língua e avançou o cavalo até à Octogésima Oitava.
O terreno estava coberto de corpos, espalhados pela erva e pela urze. A maioria estava viva, e muitos dos feridos jaziam a gemer e a contorcer-se de forma patética,
de mãos apertadas contra os ferimentos. Mais tarde teriam de receber cuidados, assim que a batalha chegasse ao fim, pensou Arthur.
Parou o cavalo ao lado do coronel Wallace e acenou com a cabeça. Wallace ainda ofegava e tinha a lâmina da espada manchada de sangue. Arthur sorriu.
- Por Deus, Wallace, acredite que nunca tinha visto uma carga tão audaz.
Wallace tossicou.
- Obrigado, sir. Os meus rapazes deram o seu melhor. Quais são as suas ordens?
- Por agora já cumpriu o seu dever. - Arthur olhou brevemente para a base da crista, onde a neblina praticamente desaparecera. A divisão derrotada voltava a formar-se
mais ao fundo da encosta, enquanto uma bateria de canhões avançava com estrépito até uma ligeira inclinação, no lado oposto à posição de Wallace. - É melhor recuar
para a outra encosta, caso contrário as peças inimigas vão servir-se da Oitenta e Oito para praticar tiro ao alvo.
Wallace olhou para os canhões e franziu os lábios.
- A distância é grande e talvez seja bom para os homens enfrentarem uma pequena dose de fogo de artilharia.
- Quer-me parecer que já deram provas do desempenho. Ordene a retirada imediatamente, Wallace.
- Sim, meu general.
Arthur deu meia-volta ao cavalo e seguiu na direção do Buçaco. Lá em baixo, a leste da borda da colina onde se erguia o convento, pôde ver mais colunas inimigas
a encaminharem-se para a estrada que subia a encosta. Percebeu que seria o ataque principal. O assalto à crista a sul do Buçaco fora uma diversão. Masséna pretendia
atrair as forças aliadas para virem em defesa do flanco, antes de desferir o golpe principal contra o convento.
Quando Arthur e Somerset regressaram ao cimo da colina sobranceira à aldeia de Sula, os mosqueteiros e a bateria aí posicionados defrontavam já os soldados avançados
franceses que se deslocavam pela estrada. A progressão até à aldeia era marcada pelas pequenas nuvens de fumo entre as árvores e os rochedos dispersos. Os britânicos
respondiam ao fogo a partir das construções que tinham sido fortificadas nos limites de Sula e, a espaços, uma das peças ribombava, quando os artilheiros avistavam
um grupo de soldados avançados que justificava a metralha. Arthur constatou que os franceses iam avançando com firmeza e que em breve chegariam à aldeia.
- Aqueles homens não vão conseguir manter a posição, sir - comentou Somerset.
- Realmente, não me parece.
Seguiu-se uma breve pausa em que Somerset pigarreou, antes de continuar.
- Ordeno ao Craufurd que envie os homens para reforçar Sula, sir?
Arthur abanou a cabeça.
- O Craufurd sabe o que tem a fazer. Vai agir a seu tempo.
Arthur falara com confiança, mas esperava que não se tivesse enganado quanto ao comandante da Divisão Ligeira. Embora, regra geral, se tratasse de um bom oficial,
Craufurd tinha a tendência desconcertante de se dar a um excesso de confiança ocasional. Felizmente, os artilheiros tinham cessado o fogo e começaram a engatar os
canhões enquanto os mosqueteiros intensificavam o fogo de cobertura para abrandar os soldados avançados inimigos. Depois, quando os cavalos subiram a estrada desde
a aldeia em direção ao convento, os mosqueteiros de casacas verdes agruparam-se em pares e juntaram-se à divisão. A partir da sua posição, a cavalo, Arthur viu os
soldados da Quinquagésima Segunda ocultos atrás da crista da cumeada, aguardando as suas ordens. À frente deles estava Craufurd, montado, que observou calmamente
os soldados avançados franceses a percorrerem a aldeia e depois esperou que a coluna principal subisse a encosta para se juntar aos camaradas mais à frente. Seguiu-se
uma pausa, até que Arthur ouviu o leve estrondear de milhares de botas a pisar os sulcos da estrada, e depois o grosso do inimigo surgiu das árvores a pouco distância
de Sula. A força atacante tinha três colunas, cada uma a avançar com uma frente de pouco mais de uma centena de soldados.
Com os estandartes bem erguidos, embora ofegantes devido ao esforço de subir a cumeada, os franceses marchavam num ritmo constante sobre o terreno aberto à frente
da crista. Perante a coluna central, Craufurd mantinha-se firme, a encarar o inimigo num gesto de desafio.
- Por Deus - murmurou Somerset. - Acho bem que ele faça alguma coisa depressa, caso contrário os franciús vão desfazê-lo.
Arthur não respondeu, mantendo-se imóvel enquanto observava o desenrolar da ação. Alguns dos oficiais franceses tinham colocado os chapéus na ponta das espadas e
acenavam-nos enquanto bradavam palavras de encorajamento. Uma banda seguia à frente da coluna mais próxima e os músicos começaram a tocar quando se aproximaram da
crista, com o som agudo dos metais acompanhado pelo ritmo grave dos tambores. Mesmo assim, Craufurd continuou sem se mexer, pesasse embora as alas inimigas que se
encontravam a pouco mais de trinta passos. Arthur sentiu o coração bater mais depressa e desejou que Craufurd desse ordens para a ação.
Então, quando o inimigo ficou ao alcance do tiro de uma pistola, Craufurd tirou o chapéu e deu meia-volta para bradar aos seus homens:
- Agora, rapazes! Vinguem a morte de Sir John Moore!
Arthur não conseguiu reprimir o esboço de um sorriso. A Quinquagésima Segunda fora, durante muito tempo, o regimento de Moore e as palavras de Craufurd teriam o
condão de inflamar os soldados. Ao longo da crista da cumeada, os homens desse regimento, a par dos restantes da divisão de Craufurd, levantaram-se e assumiram posições,
com os mosquetes bem firmes nas mãos. À frente deles, a uma distância suficiente para distinguir a expressão determinada nos olhos dos soldados britânicos, as colunas
francesas estacaram abruptamente. A melodia alegre que a banda vinha a tocar dissolveu-se numa cacofonia antes de se dissipar totalmente. Os oficiais imobilizaram-se,
com as espadas a baixar enquanto fitavam as alas do inimigo que de repente se tinham materializado à frente dos seus olhos.
Fizeram-se ouvir algumas ordens simples ao longo da linha britânica e os mosquetes foram erguidos, com os cães engatilhados, e o derradeiro comando para disparar
perdeu-se de imediato no ribombar da primeira salva, com milhares de chamas minúsculas a serem cuspidas dos canos dos mosquetes e das espingardas da Divisão Ligeira.
O efeito foi ainda mais devastador do que o anterior, que já reprimira o ataque ao longo da cumeada. A tão curta distância, foram muito mais as balas que acertaram
no alvo, devastando a frente das três colunas, qual gadanha afiada a ceifar trigo. Craufurd não indicou uma nova salva, ordenando, isso sim, de imediato, que os
seus homens carregassem. Com um brado feroz, a Divisão Ligeira avançou pela crista, as baionetas da primeira ala dirigidas aos franceses hesitantes. Mergulharam
no meio do inimigo, espetando, agredindo e pontapeando como fúrias selvagens, sem poupar ninguém enquanto levavam os soldados de Masséna à frente deles. Alguns ripostaram,
mas foram poucos e estavam demasiado isolados para deter a onda de casacas-vermelhas, sendo rapidamente derrubados e mortos.
Foi preciso menos de um minuto para que a carga quebrasse o ataque inimigo. Arthur observou as colunas adversárias a ceder, à medida que uma formação atrás da outra
se dissolvia e os seus integrantes recuavam encosta abaixo, desesperados por escapar à cólera dos soldados britânicos que os devastavam.
- Lá se vai o Masséna. - Somerset sorriu. - Não deve ter muita pressa de repetir um assalto destes, sir.
- Talvez não - concordou Arthur. - Foi uma bela lição. Mas se ele não voltar a atacar a crista hoje, pode ter a certeza de que vai tentar flanquear-nos mais a norte.
- Acenou com a cabeça para o extremo da cumeada.
Somerset virou-se para observar o terreno aberto mais à frente.
- Nesse caso seremos obrigados a recuar, sir.
- É claro que sim.
Somerset olhou para o comandante com uma expressão surpreendida.
- O plano foi sempre esse, sir? Nesse caso, para quê enfrentar aqui o inimigo?
- Imaginei que fosse bom para os soldados verem os franceses em fuga. De certeza que deu um pouco de ardor às nossas tropas portuguesas, não lhe parece? - Arthur
sorriu. - Já para não falar da confiança de Masséna e do seu exército, que terá ficado abalada.
Somerset franziu os lábios e assentiu, virando-se para observar a Divisão Ligeira a perseguir as colunas inimigas desfeitas encosta abaixo. Craufurd permitiu que
os homens avançassem mais um pouco, antes de mandar soar o regresso. Tal era a disciplina feroz do comandante, que os soldados reagiram de imediato às notas agudas
do clarim, começando a subir até à crista, onde se reagruparam em companhias animadas, dando palmadas nos camaradas e escarnecendo do inimigo, até que os sargentos
lhes bradaram que calassem a boca e se pusessem em sentido.
Arthur passou o resto do dia a observar as linhas francesas no fundo da encosta, mas não houve novas tentativas de assalto. Em vez disso, observou uma coluna começar
a serpentear na descida à sua esquerda e percebeu que a posição na cumeada teria de ser abandonada. Dirigiu-se a Somerset.
- Passe palavra ao exército. Vamos cruzar o Mondego e marchar para as linhas de Torres Vedras.
- Sim, meu general.
Arthur notou um certo tom de desapontamento na resposta de Somerset e ofereceu-lhe um sorriso.
- O nosso trabalho aqui está cumprido. - Apontou para os cadáveres franceses que enchiam a encosta. - Masséna foi abalado, e ainda há mais uma coisa.
- Sir?
O sorriso de Arthur esmoreceu um pouco.
- Agora, os jornais de Londres vão ter provas de que o exército está à altura dos franceses. Não há dúvida de que homem a homem, temos vantagem sobre eles.
- E mesmo assim temos de retirar, sir.
- Retirar? Sim, há quem o veja assim. Mas por agora fico satisfeito por ter atrasado o Masséna. Vai ser obrigado a parar à frente das nossas defesas e depois vai
passar fome, até se ver obrigado a retirar. - Arthur ficou em silêncio por um instante, antes de assentir com satisfação. - Não tenho a menor dúvida de que é uma
questão de tempo até que o vento sopre a nosso favor.
Capítulo 17
Lisboa, janeiro de 1811
- Uma representação amadora? - Arthur franziu o cenho. - Mas que raios estará o Masséna a tramar?
Recostou-se na cadeira junto à lareira e cruzou as mãos, batendo com os indicadores nos lábios enquanto pensava sobre a notícia que Somerset lhe trouxera de um dos
postos avançados da primeira linha de defesa.
- Relembre-me o que disse ao certo o oficial de Masséna.
Somerset, ao lado da porta do gabinete, recordou a mensagem que recebera.
- Masséna convidou os nossos oficiais a assistir a uma representação do Cândido, a ser encenada no quartel-general do marechal Masséna, daqui a cinco dias. Qualquer
cavalheiro que aceite o convite poderá contar com um salvo-conduto através das linhas francesas.
- Por Deus. - Arthur abanou a cabeça. - Cheguei a pensar que Inglaterra e França estivessem em guerra há quase dezoito anos.
- É verdade, sir. - Somerset aquiesceu, já estando habituado à ironia do superior. - Deseja que emita uma ordem para que o convite seja declinado?
Arthur pensou por um instante. Já tinha havido críticas quanto às suas ações na sequência da batalha do Buçaco. O The Times interrogara porque não teria o exército
britânico aproveitado a vitória contra Masséna e afugentado os franceses até Espanha. Mesmo assim, Arthur acreditava estar em vantagem em relação ao inimigo. Depois
de um assalto sangrento às linhas de Torres Vedras, os franceses tinham sido obrigados a montar acampamento nos terrenos vazios à frente das defesas britânicas,
enquanto Masséna ponderava quanto ao seu movimento seguinte. Ao longo dos últimos três meses, os franceses tinham sobrevivido com as rações cada vez mais escassas,
mas em breve seriam obrigados a retirar, ou a passar fome.
Talvez não fosse a maneira mais gloriosa de contrariar um inimigo, pensou Arthur, mas seria, decerto, a menos dispendiosa. Só podia esperar que os políticos mais
esclarecidos em Inglaterra compreendessem a estratégia e lhe garantissem o tempo e o apoio necessários para enfraquecer e depois esmagar as tropas francesas na Península
Ibérica.
Baixou as mãos e sorriu a Somerset.
- Temos de fazer a vontade ao Masséna. Quanto mais tempo passar em Portugal, mais o exército dele vai definhar. Informe os comandos da primeira linha de defesas
que os oficiais podem aceitar o convite. Todavia, espero um relatório completo de cada homem que entrar nas defesas francesas por motivos sociais. Estão proibidos
de se embriagar e têm de se manter alerta. Eles que fiquem de olhos bem abertos e ouvidos à escuta de qualquer informação que nos possa ser útil.
- Sim, meu general.
- Se houver novas tentativas de confraternização, terei de as aprovar. Isso que fique bem claro.
- Com certeza, sir. E se os nossos oficiais desejarem retribuir?
Arthur franziu o cenho ao de leve.
- Não será boa ideia permitir que os soldados de Masséna investiguem as nossas defesas com demasiada atenção. Diga aos nossos cavalheiros que poderão organizar caçadas,
jantares e outros divertimentos, conquanto tenham lugar fora dos limites da nossa linha da frente.
- Sim, meu general. - Somerset fez uma pausa antes de continuar. - É tudo, sir?
Arthur anuiu e depois bateu com a mão na coxa.
- Ah, mais uma coisa. Os últimos despachos já chegaram de Londres?
- Foram entregues no quartel-general ao meio-dia, sir. Quer que trate disso agora?
- Não. Traga-os assim como estão e depois comece a redigir as minhas ordens quanto ao convite de Masséna.
Somerset baixou a cabeça e saiu do gabinete. Inexpressivo, Arthur fitou a lareira por um momento e depois soltou uma gargalhada seca.
- Com a breca, uma peça de teatro! Estes franceses são muito estranhos.
Atiçou o lume enquanto aguardava o regresso de Somerset. Lá fora, o céu invernal escurecera sobre Lisboa e, pelas janelas altas, Arthur conseguia avistar o porto,
atulhado de navios de carga que transportavam os seus bens entre a capital portuguesa e as colónias e clientes espalhados pelo mundo. Via-se também um comboio de
navios ingleses que descarregavam fornecimentos militares para o exército. Os suprimentos eram bastante bem-vindos, ponderou, mas Arthur precisava de reforços com
muito mais urgência. Mais homens, além de mais verbas. O pagamento do exército já estava três meses atrasado e a dívida para com os agricultores e os mercadores
de cereais portugueses continuava a aumentar. Os civis lusitanos encaravam os convidados ingleses com um entusiasmo reservado. Os mesmos navios que traziam suprimentos
podiam igualmente ser usados para retirar os soldados, caso os franceses atravessassem as linhas, ou se o governo britânico perdesse a coragem e ordenasse o regresso
do exército.
Arthur tinha noção de que esta era uma possibilidade bem real. O príncipe de Gales e os seus amigos liberais defendiam o abandono de Portugal, argumentando que se
tratava de um desperdício de recursos já por si escassos e que de pouco serviam para derrubar Bonaparte. Isso agastava e frustrava Arthur. Enquanto o seu exército
resistisse em Portugal e fosse fonte de inspiração para os portugueses e para os espanhóis, o inimigo via-se obrigado a dedicar mais de duzentos mil soldados à Península
Ibérica, soldados esses que não poderiam ser usados por Bonaparte em qualquer outro local. A erosão constante das forças gaulesas por parte de forças irregulares,
da doença, da fome e dos combates exigia um fluxo constante de substitutos, o que sangrava lentamente o inimigo. Tratava-se de uma estratégia a longo prazo e Arthur
esperava que o governo britânico tivesse a capacidade de perceber a sua eficácia.
A porta do gabinete voltou a abrir-se e Somerset entrou com uma grossa pasta por baixo do braço. Arthur fez sinal com a cabeça para a mesa baixa à sua frente, e
Somerset dirigiu-se a ela e pousou a pasta. Abriu-a, tossicou e fez um resumo breve do conteúdo.
- Correspondência de Londres, oficial e pessoal, ainda por abrir. Os últimos relatórios das patrulhas de cavalaria, os dados semanais de cada brigada e mais pedidos
de pagamento por parte de fornecedores portugueses. É tudo?
- Por agora. - Arthur acenou com a cabeça na direção da porta. Depois de o ajudante de campo ter saído e fechado a porta, Arthur deu uma vista de olhos rápida às
contas apresentadas pelos portugueses. O saldo de ouro do exército era suficiente para pagar uma parte das contas, o bastante para manter os fornecedores satisfeitos
durante mais um mês. Molhou a pena no tinteiro e fez uma anotação no fundo da primeira conta, ao que as pôs de lado. Os dados semanais traziam boas notícias. Apesar
do inverno, muitos dos doentes e feridos da última campanha tinham recuperado e regressado às fileiras, o que elevava o total do exército para trinta mil efetivos.
A par das unidades portuguesas, Arthur dispunha de mais de cinquenta mil soldados para levar os combates ao inimigo assim que surgisse oportunidade.
Dirigiu a atenção à correspondência, começando pelas cartas marcadas como sendo oficiais. Vinham dos vários departamentos que tratavam da provisão de engenheiros,
fornecimentos e artilharia, todas elas dizendo estar a fazer o possível por dar resposta às requisições. Embora reconhecessem a urgência da situação, recordavam
o general de que ele não era o único a precisar dos recursos e as suas necessidades teriam de ser avaliadas em comparação com as de outros comandantes. Arthur abanou
a cabeça com irritação. Os imbecis da Grã-Bretanha já deviam ter noção de que o seu exército era a vanguarda do esforço da nação contra o Tirano Corso. Os recursos
deveriam fluir até à ponta da espada que estava cravada no flanco de Bonaparte e não ficar inertes em armazéns distantes do campo de batalha. Anotou um lembrete
a Somerset para enviar mais pedidos com uma linguagem mais robusta e por fim dedicou-se à última carta.
Quando lhe pegou, sentiu um aperto no coração. Era de Kitty. Nas vésperas do Buçaco, escrevera-lhe uma nota sóbria, em que lhe descrevia a situação financeira em
Inglaterra. Não depositava grande fé na capacidade da esposa de gerir os assuntos familiares e descrevera-lhe ao pormenor tudo o que deveria fazer no caso de ele
ser morto. Desde então recebera um fluxo constante de cartas onde lhe eram pedidos conselhos acerca de uma série de mesquinhices. Desta vez, Kitty queria saber se
podia comprar cortinados novos para a casa de Londres.
- Cortinados? - resmungou Arthur. - Malditos sejam os cortinados!
Sentiu um espasmo momentâneo nas mãos ao agarrar a carta com força, ameaçando transformar o papel e a sua escrita apertada numa bola. Respirou fundo, alisou a folha
e pousou-a em cima da mesa. Os pensamentos sobre Kitty e a sua incapacidade de tratar da casa na ausência dele pesavam-lhe no coração como uma barra de chumbo. Arthur
sabia que o casamento fora o erro mais grave que alguma vez cometera. No entanto, fora essa a sua escolha e não podia voltar atrás na decisão, além de também não
estar preparado para admitir o erro em público. Assim sendo, para o bem e para o mal, estaria unido a ela enquanto vivessem. Suspirou. Depois pegou numa folha de
papel em branco, molhou o aparo da pena e compôs uma resposta.
Ao longo do resto do mês e durante fevereiro, os oficiais de ambos os exércitos encontraram-se com frequência, desfrutando de acontecimentos sociais e desportivos.
Arthur manteve-se afastado dessas atividades, já que considerava impróprio o envolvimento do comandante do exército britânico. Não era preciso muito esforço para
imaginar o escândalo em Londres, caso se soubesse que Arthur e Masséna conviviam socialmente. Assim sendo, Arthur limitou-se à sugestão de troca de jornais com o
general inimigo. As páginas da imprensa parisiense estavam cheias de relatos das atividades da corte imperial, em que Bonaparte exibia a nova noiva ao seu povo e
a dignitários de toda a Europa. Arthur começara por ficar surpreendido com a notícia do casamento. Depois apercebeu-se de que os austríacos, após a derrota humilhante
infligida por Bonaparte em Wagram, não tinham grande escolha. Dizia-se agora que Bonaparte poderia estar à espera de um herdeiro na primavera. Eram más notícias,
refletiu Arthur. Se Bonaparte fosse capaz de fundar uma dinastia, ninguém sabia durante quanto tempo a sua influência perniciosa poderia durar no continente.
A temperatura subiu nos primeiros dias de março, e os nevoeiros e as neblinas cerradas foram-se tornando mais frequentes sobre a paisagem portuguesa. Arthur seguiu
até à linha da frente para inspecionar os fortes e perdeu-se várias vezes ao tentar seguir as grosseiras vias de comunicação preparadas pelos engenheiros para ligar
as várias fortificações. A maior parte dos fortes estava ocupada por tropas portuguesas comandadas por oficiais britânicos. A infantaria britânica encontrava-se
acampada poucos quilómetros à frente da primeira linha, pronta a responder a qualquer ataque levado a cabo pelo inimigo. A pouca distância a leste de Torres Vedras,
Arthur deteve-se num posto comandado por um oficial na casa dos quarenta anos. O coronel Cameron era um exemplo típico das transferências para o exército português.
Até então fora um capitão britânico sem quaisquer conhecimentos úteis, ou um rendimento capaz de lhe comprar uma promoção. Ao ser transferido, fora promovido e auferia
um soldo mais elevado, pelo menos até ao final da guerra. Fez continência quando Arthur entrou no forte e o general levou a mão à aba do chapéu em resposta.
- Um bom dia para si. Coronel Cameron, não é?
- Sim, senhor. Lamento pela falta de protocolo, sir.
- Não tem importância - respondeu Arthur ao desmontar. - É uma visita informal. Quantos homens aqui tem, coronel?
- Um batalhão, sir. Quase na sua força total. Os rapazes estão animados, embora ficassem mais satisfeitos se os franciús mostrassem algum ânimo e nos testassem as
defesas.
- Infelizmente, essa decisão cabe ao marechal Masséna. Imagino que depois do Buçaco não tenha grande pressa em voltar a ser repelido.
O coronel Cameron exibiu um sorriso rasgado.
- Se ele aparecer, os rapazes põem-no a correr num instante, sir. Estão prontos para tudo.
Acenou com orgulho para o interior do forte e Arthur pôde ver que os soldados estavam bem equipados, com os abrigos de madeira dispostos por companhias. A maior
parte reunia-se à volta das fogueiras do acampamento, onde conversavam baixinho, ou limpavam as armas. Nas muralhas e nas torres, os soldados de serviço vigiavam
os densos bancos de nevoeiro, alertas a quaisquer sinais do inimigo.
- O seu batalhão parece um grupo excelente, coronel.
- Obrigado, meu general. - Cameron exibiu um sorriso orgulhoso.
- Alguma coisa a relatar?
- Sir?
- Notou sinais de atividade invulgar por parte do inimigo?
- Não, sir. Por acaso, hoje têm estado muito sossegados. Regra geral, os nossos piquetes trocam cumprimentos pela manhã, mas hoje ninguém os viu. Ou receberam ordens
para ficar em silêncio, ou foram recuados.
Arthur sentiu uma pontada de ansiedade com as palavras do coronel. As explicações de Cameron teriam a sua lógica, mas a falta de contacto com os piquetes inimigos
poderia igualmente significar outra coisa.
- Coronel, quero que envie uma patrulha em direção às linhas francesas. Não devem encetar trocas com ninguém, mas continuem a avançar até encontrarem sinais do inimigo,
e depois regressem com informações.
- Sim, meu general.
- Somerset! - Arthur deu meia-volta e dirigiu-se ao ajudante de campo. - Qual a unidade de cavalaria mais próxima?
Somerset pensou por um instante.
- Os Dragões Ligeiros, sir, em Mafra.
- Vá ter com eles. Quero-os espalhados pelas linhas assim que possível. Confirmem a localização dos franceses e regressem de imediato com o relatório. E enviem um
mensageiro ao quartel-general. O exército que fique pronto a concentrar-se e a avançar imediatamente.
- Com certeza, sir, mas com este nevoeiro vai ser difícil proceder a manobras.
- Pode ser - concedeu Arthur. - No entanto, se o Masséna deu início à marcha, o exército terá de se deslocar rapidamente para se aproximar dele. Esperemos que seja
um falso alarme e que os franceses se tenham limitado a recuar uma breve distância. O meu receio é que Masséna retire para Espanha.
- Mas se ele retirar, não teremos conseguido a nossa vitória sem uma gota de sangue, sir?
Arthur lançou-lhe um olhar firme.
- Parece não entender a estratégia, Somerset. Se permitirmos que Masséna retire, estamos apenas a prolongar a luta. A minha intenção era fazer com que o exército
dele passasse fome à frente das nossas linhas, para o atacar na altura certa. Se Masséna tiver começado a retirar, isso quer dizer que os soldados dele chegaram
ao limite da resistência. Não o podemos deixar fugir. Temos de o perseguir e derrotar o exército de forma absoluta. Aí teremos uma vitória que vai abreviar a guerra.
Fui claro?
- Sim, meu general.
- Ótimo. É importante que tenha noção da necessidade de rapidez na reação às movimentações de Masséna. Tem de ser capaz de o transmitir aos comandantes de todas
as brigadas do exército. Agora vá.
Quando Somerset partiu, Arthur dirigiu-se com Cameron a uma das torres de vigia. A partir dessa posição elevada, o panorama sobre o terreno à frente do forte continuava
encoberto pelo nevoeiro, acima do qual apenas se viam os topos das colinas, como grandes leviatãs a erguer-se de um oceano leitoso. Arthur esforçou os olhos e os
ouvidos, mas não havia qualquer movimento, nem o mais leve dos sons vindo do acampamento inimigo. Onde esperava ouvir cavalos, os martelos dos ferradores ou as pancadas
secas dos machados, só havia silêncio, quebrado apenas pelo crocitar dos corvos.
Virou-se para Cameron.
- Não vejo nada com o nevoeiro. Reúna a sua Companhia Ligeira. Já agora, tem uma bússola?
- Uma bússola, sir? Claro.
- Ótimo, pois vamos precisar dela. O meu ajudante de campo que seja informado de que nos dirigimos a norte. Se ele regressar antes de mim, quero que vá ter comigo
com o relatório.
- Sim, meu general.
Um quarto de hora depois, Arthur, Cameron e os homens da Companhia Ligeira saíram em silêncio do forte e desceram a encosta da elevação onde a fortificação fora
edificada. Todos os equipamentos desnecessários tinham ficado para trás e cada soldado levava apenas o seu mosquete e munições numa mochila. Os soldados espalharam-se
à frente do resto da companhia enquanto avançavam pelo nevoeiro, mantendo-se ao alcance da vista uns dos outros. Seguiram com cautela, atentos a quaisquer sons ou
movimentos à medida que avançavam lentamente pelo terreno que fora limpo no ano anterior para que o inimigo não dispusesse de proteções. Depois de pouco mais de
um quilómetro, os contornos pardacentos de uma casa queimada emergiram do nevoeiro. A companhia fez alto e dois homens avançaram para investigar. Voltaram daí a
alguns minutos e apresentaram o relatório a Cameron. O coronel escutou, aquiescendo, e depois traduziu o que lhe fora dito a Arthur.
- A quinta foi abandonada. Há restos de uma fogueira, mas parece que foi feita e depois deixada a consumir-se por si. Também deixaram uma carroça a arder.
- Uma carroça, diz o coronel. - Arthur pensou brevemente. A carroça poderia necessitar de reparações, ou talvez pudesse ter sido abandonada por falta de animais
para a puxar. O facto de ter sido queimada significava que o inimigo não queria que o veículo caísse nas mãos dos britânicos. - Continuemos em frente.
Cameron esforçou-se por conter a ansiedade e assentiu. Ao passarem pela quinta, Arthur reparou que a fogueira no pátio entre os edifícios estava cercada pelos restos
carbonizados de outro equipamento: os raios e a madeira da estrutura de uma peça de artilharia, e o que parecia a carcaça de um cavalo, ou de uma mula. Mais à frente
encontraram o local deserto de um acampamento. À erva pisada seguiam-se valas que serviam de latrinas e depois uma vasta extensão de terreno enlameado, revirado
por botas com espigões, ferraduras e rodas pesadas revestidas a ferro. Via-se o que sobrava de outros fogos, onde os restos de equipamento e de mobiliário pilhado
ainda fumegavam.
Arthur dirigiu-se a Cameron.
- Já vi o suficiente. Não há dúvida de que Masséna está a retirar.
- Sim, sir. - Cameron fez uma pausa antes de prosseguir. - O que vai fazer, sir?
- Vou persegui-lo. Vou ultrapassá-lo e depois, por Deus, vou destruí-lo.
Quando o exército de Arthur deu início à perseguição, o marechal Masséna tinha mais de um dia de avanço. A cavalaria seguia à frente da coluna principal, identificando
o percurso da retirada. A passagem do exército francês não era difícil de acompanhar, já que tinham deixado um trilho já familiar de equipamento abandonado e pequenos
grupos de retardatários e de feridos que esperavam ansiosamente serem presos, para não terem de enfrentar a fúria dos camponeses locais. Mais à frente, o exército
aliado deparou-se com a primeira das aldeias devastadas pelos franceses em retirada. Tudo de valor que pudesse ser transportado fora roubado das casas. A comida
desaparecera. Pelas ruas viam-se corpos mutilados espalhados. Três cadáveres carbonizados, uma mulher e duas crianças, continuavam pendurados de uma árvore sob a
qual fora ateado um lume. O único sobrevivente, um idoso, informou Arthur num tom lúgubre de que os mortos tinham sido torturados pelos franceses, numa tentativa
de descobrir comida escondida.
A partir daí, os batalhões portugueses deixaram de fazer prisioneiros franceses e os oficiais britânicos mantiveram-se em silêncio quando os lusitanos cortavam o
pescoço ao inimigo e os corpos eram deixados para os abutres.
A perseguição continuou com os dois exércitos a cruzar a fronteira. Mais à frente situava-se a povoação fortificada de Salamanca, onde Masséna estaria a salvo dos
perseguidores. Nessa noite, Arthur e Somerset dirigiram-se a uma pequena elevação e observaram as fogueiras tremeluzentes do inimigo, espalhadas pela paisagem a
meio dia de marcha para leste.
- É frustrante, não acha? - resmungou Arthur, olhando na direção do inimigo. - Persegui-los até aqui, mas sem chegar a tempo de os obrigar a lutar.
- Imagino que sim, sir - respondeu Somerset. - Mas o exército de Masséna é uma força exausta. Não deixa de ser uma vitória.
- Uma vitória? - Arthur esfregou os pelos da barba por fazer no queixo. - Não. É apenas um passo numa estrada muito longa. Mas eventualmente vamos chegar ao fim.
Agora temos de levar a guerra até Espanha. Para o fazer, será preciso tomar as fortalezas fronteiriças de Ciudad Rodrigo, Badajoz e Almeida. Vai ser difícil, Somerset.
Os cercos vão demorar a preparar, e vão custar muitas vidas.
Arthur estava prestes a dar meia-volta ao cavalo em direção ao acampamento britânico, quando um canhão se fez ouvir do lado dos franceses, seguido, momentos depois,
por outra peça e por outras ainda, numa sucessão de estrondos que chegaram claramente aos ouvidos do general britânico e do ajudante de campo. Os olhos cansados
de Arthur perscrutaram o terreno entre os dois exércitos, mas não se viram clarões de tiros que indicassem lutas, apenas o eco constante das armas francesas a serem
disparadas para a noite, uma após a outra.
- Mas que raios estão eles a tramar?
Capítulo 18
Napoleão
Tulherias, Paris, 20 de março de 1811
- Sire? - O médico afastou-se da cama onde a imperatriz gemia por entre os dentes cerrados. - Podemos falar?
- Não há tempo para falar - retorquiu Napoleão lapidarmente, sentado na beira da cama, a agarrar a mão da esposa. - Limite-se a cumprir o seu dever. Faça com que
a minha esposa dê à luz o bebé em segurança.
O médico olhou com ansiedade para Maria Luísa, deitada de costas, com os joelhos erguidos e os braços abertos cada um para o seu lado. Enquanto Napoleão segurava
uma das mãos, uma aia agarrava a outra. O rosto tinha um aspeto ceroso e cintilava à luz que entrava no quarto por uma janela alta. A transpiração colara-lhe o cabelo
louro ao couro cabeludo e enquanto o médico a olhava, a imperatriz soltou um novo grito de agonia até que a contração passou.
O médico pigarreou, dizendo depois em voz baixa:
- Sire, há quase vinte horas que sua majestade imperial está em trabalho de parto. Ela está a ficar cada vez mais fraca e não há grandes sinais de dilatação. Tenho
de falar com vossa majestade quanto às complicações que podem advir de um parto demorado.
Napoleão fitou-o por um instante e depois anuiu. Inclinou-se sobre a cama e beijou a testa franzida da esposa.
- Minha querida, tenho de falar com o médico. Volto daqui a um instante.
Napoleão seguiu o médico até à janela e ficou afastado do vidro, longe da vista da multidão que ao longo de todo o dia se fora juntando no exterior do palácio. Durante
a tarde espalharam-se pela capital boatos sobre o trabalho de parto da imperatriz, e agora dezenas de milhares de pessoas aguardavam, expectantes, pelo sinal de
um nascimento. Uma bateria estava já pronta em Montmartre, à espera do sinal combinado. As peças dariam início a uma salva contínua para anunciar o nascimento. Iriam
disparar-se vinte e uma salvas, caso fosse uma menina; se fosse um rapaz, seria uma centena de tiros. A tragédia seria anunciada com silêncio.
O médico olhou rapidamente para a cama, do outro lado do quarto, e depois falou em voz baixa, com um tom de urgência:
- Sire, tenho de o alertar para o facto de haver o risco de poder vir a perder tanto a sua esposa como a criança, caso o trabalho de parto se prolongue muito mais.
Se chegarmos ao ponto de uma crise, talvez ainda seja possível salvar uma delas, mas tenho de saber qual será: a mãe, ou a criança?
Napoleão ergueu a mão e levou-a à testa enquanto ponderava as palavras do médico. Levantara-se cedo na véspera para tratar de assuntos de Estado e, pouco antes do
meio-dia, um criado ofegante fora ao gabinete informar que a imperatriz entrara em trabalho de parto. Napoleão correra para o lado dela e aí ficara o resto do dia,
bem como toda a noite, até à manhã seguinte. Estava exausto e precisou de algum esforço para ordenar os pensamentos. O principal objetivo do casamento com Maria
Luísa fora garantir um herdeiro. Agora estava à beira de concretizar esse objetivo. Se fosse preciso optar, sabia que devia pôr a criança à frente da mãe, a bem
dos interesses da França.
Contudo, hesitava. Era verdade que se casara devido a um interesse frio, mas no seu coração tinha-se desenvolvido uma afeição genuína por ela desde que se tinham
conhecido e a levara pela primeira vez para a cama. Maria Luísa não era bela, mas tinha uma graciosidade inocente nos seus modos. Na primeira noite, o sexo fora
tenso e funcional, mas em breve ela se entregara ao prazer do ato. Quanto a si, Napoleão gostara da emoção de se deitar com uma virgem. E não era uma virgem qualquer,
mas sim a flor de uma das mais antigas famílias reais da Europa. Agora, por fim, tinha uma esposa digna de um imperador, e assim quisesse o destino, um dia teriam
um príncipe que uniria os interesses de França e da Áustria. Por esse motivo, bem como por outros, amava-a.
Ao mesmo tempo, se escolhesse a criança e deixasse que a mãe morresse, os danos na relação com a Áustria seriam incalculáveis. De momento, Napoleão desenvolvia uma
aliança com a Áustria, pensando no dia em que por fim seria obrigado a confrontar os russos no campo de batalha. Esse pensamento fê-lo decidir-se e olhou para o
médico.
- Se for preciso optar, salve a mãe.
O médico curvou a cabeça.
- Sim, meu imperador.
Regressaram à cama no momento em que Maria Luísa tinha mais uma contração excruciante e o médico voltou a examiná-la, desta vez acenando a cabeça com satisfação.
- A dilatação aumentou. A criança vem a caminho, sire.
Napoleão regressou para o lado da esposa, segurou-lhe a mão e acariciou-lhe gentilmente a cabeça, falando baixinho:
- Ouviste? O bebé está a caminho. Sê forte, meu amor. Em breve vai chegar ao fim e a dor vai passar.
Ela cerrou os dentes e anuiu, após o que voltou a retesar-se.
- A criança vem aí, sire - anunciou o médico. - Estou a ver a cabeça a surgir.
Maria Luísa gritou de repente, arqueou as costas e um jorro súbito de líquido glutinoso ensopou o lençol que lhe cobria os joelhos.
A multidão no exterior do palácio agitou-se quando a bandeira foi içada no mastro acima das Tulherias. Ouviu-se um breve ronco de alívio e de prazer pelo nascimento
do filho do imperador e depois as ovações acalmaram-se enquanto se esperava para se descobrir se era menino, ou menina. Fez-se ouvir um estrondo distante da bateria
em Montmartre, depois outro, e a multidão contou cada deflagração que ecoava por Paris como o ribombar de um trovão. Quando a vigésima peça se ouviu, a multidão
ficou num silêncio absoluto e esperou.
Foi disparado mais um canhão e houve quem murmurasse entre si: - Vinte e um.
O som desvaneceu-se e depois seguiu-se uma pausa. Não foi mais do que o intervalo regulamentar entre disparos, mas aquele momento pareceu arrastar-se de forma intolerável.
O estrondo da peça seguinte foi engolido instantaneamente por um brado de júbilo enquanto a multidão agitava os braços, e havia quem atirasse os chapéus ao ar. Entre
o povo encontravam-se elementos da milícia de Paris, que colocaram os tricornes na ponta dos mosquetes e os ergueram bem alto, com as plumas vermelhas a agitar-se
acima da multidão. Garrafas e jarros de vinho foram desrolhados e passados de mão em mão, enquanto todos celebravam a chegada do herdeiro do imperador.
No palácio, Napoleão aguardou que o médico e a parteira enfaixassem cuidadosamente o bebé limpo. Na cama, Maria Luísa estava recostada. Agora que o parto chegara
ao fim, parecia exausta, mas radiante, e sorriu ao marido.
- Mostra-o ao povo, mas não por muito tempo. Está frio lá fora.
- Sim, minha querida. - Napoleão correu espontaneamente pelo quarto e abraçou-a gentilmente, ao mesmo tempo que lhe beijava os lábios. - Fizeste de mim o homem mais
feliz de toda a Europa.
- Isso agrada-me.
Olhou-a com carinho.
- Isto é muito importante para mim. O meu filho, o nosso filho, marca a verdadeira união entre França e Áustria, e a nossa.
A imperatriz tocou-lhe no rosto.
- Fico satisfeita. Também estou cansada, meu querido marido. Preciso de dormir. Mas tens de mostrar o nosso filho ao teu povo. Vai.
Napoleão voltou a beijá-la e dirigiu-se à parteira, que lhe segurava no filho. Quando recebeu o pequeno nos braços e olhou para o rostinho enrugado, sentiu uma onda
de ternura e de amor como nunca antes na vida. Depois o médico abriu a comprida porta envidraçada que dava acesso à varanda e Napoleão surgiu com o filho. A ovação
do povo chegou a um auge ensurdecedor quando contemplaram o imperador com o herdeiro. Napoleão virou-se lentamente para que todos os que se tinham reunido na Place
du Carrousel, dezenas de milhares de súbditos, pudessem ver a criança. Pela capital continuavam a ribombar os canhões. Os entrepostos informativos espalhados por
França estariam já a transmitir a notícia a todas as cidades, vilas e aldeias. Em breve, todos os canhões de todos os exércitos franceses fariam eco da saudação
um pouco por todo o império, desde a vastidão gelada polaca às serras e planícies de Espanha e Portugal.
As celebrações do nascimento do filho do imperador, a quem Napoleão chamou Francisco Carlos José, esmoreceram rapidamente e Napoleão voltou a dedicar a atenção aos
problemas crescentes que lhe afetavam o império. Quando o conselho se reuniu no palácio, num bonito dia de primavera, não havia grande sensação de melhorias trazidas
pela mudança de estações. Ao olhar em torno da mesa, Napoleão ficou espantado com o reduzido número de indivíduos de talento genuíno a quem poderia recorrer. Talleyrand
continuava caído em desgraça. Fouché fora afastado do cargo depois de Napoleão ter ficado a par de rumores que diziam que o ministro da polícia voltara mais uma
vez a maquinar contra o imperador. Fouché tentara negociar com os ingleses, para descobrir quais os termos que lhes seriam favoráveis, caso viesse a acontecer alguma
coisa ao imperador. Fora tentador mandar prender Fouché, mas o ministro tinha muitos apoiantes na capital, bem como toda uma rede de agentes espalhados pelo país.
Napoleão não poderia arriscar-se a ser vítima de uma vingança.
Talleyrand fora implicado nessa mesma conspiração e fora destituído do cargo de camareiro-mor do imperador. Não havia dúvida de que Talleyrand não era, de todo,
digno de confiança, mas a sua inteligência e as magníficas ligações diplomáticas faziam com que Napoleão não se atrevesse a dispensar totalmente os seus serviços.
Por enquanto, Talleyrand teria de ser afastado, para que aprendesse uma lição. A seu tempo, Napoleão voltaria a admiti-lo no círculo de conselheiros chegados, mas
só quando Talleyrand percebesse que a sua influência e poder estavam à mercê dos caprichos do imperador.
Napoleão substituíra Fouché pelo general Savary, um homem cuja lealdade era inquestionável. Infelizmente, as suas capacidades não eram tão garantidas, além de não
ter tão boas ligações como o antecessor, nem a mesma inteligência e astúcia. Consequentemente, os agentes superiores do governo tinham regressado aos vícios antigos,
sendo tão corruptíveis como com os Bourbons. O ministro das finanças, Cordet, também era de segunda categoria e dependia excessivamente dos conselhos dos subordinados.
Por fim, o novo ministro dos negócios estrangeiros, Maret, não tinha opiniões próprias, limitando-se a aceitar tudo o que o imperador dizia.
Tal como ditado pelo protocolo, os elementos do conselho e dois dos secretários imperiais tinham sido os primeiros a chegar, encontrando-se de pé ao lado da mesa,
a aguardar a chegada do seu senhor. Napoleão não falhou a hora marcada e assumiu o seu lugar. Assim que ficou confortável, acenou com a mão na direção dos restantes.
- Sentem-se, cavalheiros.
As cadeiras foram arrastadas enquanto os membros do governo se sentavam e os secretários instalaram-se no seu lugar, a um dos lados da sala. Tiraram apressadamente
os tinteiros, as penas e os cadernos das sacolas e prepararam-se para tirar apontamentos. Quando viu que estavam prontos, Napoleão começou.
- Cavalheiros, temos um número considerável de dificuldades por resolver, acima de tudo a necessidade de aumentar o fluxo de rendimentos do Tesouro. Mesmo tendo
em conta a corrupção de vários elementos, as receitas continuam a decrescer. Isso não é aceitável, numa altura em que se torna essencial expandir o exército e a
marinha, de forma a enfrentar as ameaças presentes e futuras. Cordet, falais pelo Tesouro. Quais os vossos planos para lidar com a situação?
Cordet engoliu em seco enquanto abria a pasta e consultava rapidamente as suas notas.
- Sire, os meus agentes estão a fazer o possível por cobrar impostos de modo eficiente. Segundo me informaram, a perda mais acentuada de rendimentos prende-se com
a queda nos impostos cobrados às atividades comerciais.
- E qual o motivo para isso?
- Sire, o comércio está a sofrer cada vez mais restrições um pouco por toda a Europa devido ao Bloqueio Continental - explicou, à cautela. - O embargo ao comércio
com Inglaterra está a afetar todas as economias europeias, incluindo a nossa.
- Tenho noção disso - atalhou Napoleão, lapidarmente. - Mas estamos em guerra com Inglaterra. Para os derrotarmos, temos de atacar o ponto mais fraco. A Inglaterra
tem de comerciar com outras nações, caso contrário morre. Não podemos equacionar o fim das restrições ao comércio com o nosso inimigo.
- Todas as nações precisam de fazer negócios com Inglaterra, sire, caso contrário as economias definham. Nós e os nossos aliados já sofremos demasiado. Se me permite,
atrevo-me a sugerir que o Bloqueio Continental está a prejudicar a França, em vez de a ajudar.
Napoleão franziu o cenho. Sabia que Cordet tinha razão. Na Holanda, o rei Luís, irmão de Napoleão, praticamente abandonara a adesão ao sistema e o imperador vira-se
obrigado a anexar o país e a geri-lo como província francesa. Luís fugira para se esconder, acabando por voltar a dar sinais de vida na corte de um príncipe da Boémia.
Ao início Napoleão ficara furioso, mas acabara por justificar a resistência do irmão à sua vontade devido a fraqueza de espírito e a insanidade.
Cordet prosseguiu:
- Sire, pelo bem da França, seria melhor desmantelar de imediato o sistema. Se permitir o regresso ao comércio livre, os rendimentos com os impostos vão subir.
Napoleão abanou a cabeça.
- Já quase vergámos a Inglaterra. Eu sei que sim. Basta um derradeiro esforço. Se conseguirmos fazer com que a Europa mantenha o sistema mais um pouco, a Inglaterra
vai ter de ser obrigada a aceitar a paz.
- Com o devido respeito, sire, o Bloqueio Continental não está a resultar. Está a ser ignorado abertamente um pouco por toda a Europa. Repare, o nosso embaixador
em S. Petersburgo diz-nos que os bens ingleses estão disponíveis em todas as lojas e mercados locais. Os navios ingleses chegam e partem do porto sem o mais pequeno
problema. Não é verdade? - Cordet virou-se para o ministro dos negócios estrangeiros.
Maret pareceu ficar ansioso e encolheu os ombros.
- É o que relata o embaixador Lauriston. Claro que ele está há pouco tempo no cargo e pode estar a transmitir boatos. Irei escrever-lhe a pedir um relatório mais
pormenorizado, sire.
Cordet abanou a cabeça, num gesto de escárnio.
- Sim, faça isso, Maret. Tudo menos tomar uma decisão, não é?
- Silêncio! - interveio Napoleão. Olhou em redor da mesa, desafiando qualquer um a pô-lo em causa. Depois prosseguiu: - Enquanto estivermos em guerra com Inglaterra,
enquanto os nossos soldados forem necessários para subjugar Espanha e Portugal, e enquanto a Rússia parecer disposta a provocar-nos para que entremos em guerra,
a necessidade da nossa economia terá de servir as necessidades do nosso exército e da nossa marinha. Assim sendo, temos de angariar fundos suficientes para as pagar.
É esse o problema que tem de ser resolvido, cavalheiros.
Seguiu-se um breve silêncio. Cordet mexeu-se na cadeira, inquieto.
- Sire, não temos escolha se não cortarmos os gastos. Como os custos militares consomem uma fatia tão grande das despesas do governo, eles têm de ser reduzidos.
- Não - retorquiu Napoleão bruscamente. - Os gastos militares não vão ser postos em causa. Seria uma loucura fazer isso neste momento, agora que estamos à beira
da vitória.
- Mas, sire, se continuar a gastar desta maneira, a nação vai ficar endividada durante gerações.
- Quando um país está em guerra, tem de gastar o que for preciso para alcançar a vitória. Preocupamo-nos com a dívida quando alcançarmos a paz.
- E se não chegarmos à paz? - argumentou Cordet. - A nossa economia vai ficar destruída. Permita-me que lhe recorde que foi a dívida dos últimos reis Bourbon que
nos levou à Revolução. Pretende arriscar um destino semelhante?
- Não vai haver outra revolução. O rei Luís era fraco. Concedeu demasiada margem de manobra aos adversários e o reino fugiu-lhe por entre os dedos. Não vou repetir
o erro dele. Eu governo com punho de ferro. - Acenou com a cabeça na direção de Savary. - O meu ministro da polícia vai garantir que os jornais dizem aquilo que
eu quero que digam. Os agentes dele vão garantir que até o mais leve indício de conspiração será investigado e que quaisquer conjuradores serão erradicados. Não
é verdade, general?
Savary anuiu.
- Como desejar o meu imperador.
- Exatamente. Como eu desejar - repetiu Napoleão, com ênfase. - Muito bem, agora que todos entendemos em que pé estão as coisas, permitam-me que vos transmita as
minhas necessidades militares. Cordet, tome nota. - Napoleão prosseguiu, sem precisar de recorrer aos apontamentos. - Um: o Exército da Alemanha precisa de mais
dezoito mil cavalos. Os animais têm de ser comprados e entregues nos quartéis de treino antes do final do ano. Dois: preciso de mais cinquenta mil recrutas para
que os exércitos da Alemanha e de Espanha assumam a força total. Os reveses de Masséna em Portugal saíram muito caros a França. Tem de ser reforçado para poder esmagar
lorde Wellington e o seu exército antes do final do ano. Três: a marinha tem de ser expandida assim que possível. Temos de aproveitar as perdas de Trafalgar e fazer
pender a balança a nosso favor para sobrepujar a marinha britânica. Para isso é preciso dar ordens para a construção de uma centena de novos navios de linha, a par
de setenta e cinco fragatas.
Olhou à volta da mesa. Cordet parecia espantado.
- Sire, pedis o impossível. Nunca seremos capazes de suportar tais despesas.
- Não obstante, será feito. Temos de estar prontos para a guerra contra a Rússia, quando ela for declarada. Espero um relatório seu no máximo dentro de um mês, a
explicar-me como serão financiadas estas necessidades.
- A guerra contra a Rússia não é inevitável - contrapôs Maret. - Devíamos concentrar as nossas energias na procura de um compromisso com eles. Essa é de longe a
opção menos dispendiosa, tanto em ouro, como em vidas.
- Só pode haver uma grande potência na Europa - declarou Napoleão com firmeza. - Tem de ser a França, a qualquer custo. Neste momento, a situação é propícia para
um ataque à Rússia no próximo ano. Presentemente, o czar está envolvido numa guerra com a Turquia e tem um grande exército dedicado a esse conflito. Por enquanto
temos boas relações com a maioria dos países que fazem fronteira com a Rússia, e eles podem ser convencidos a ceder homens para os exércitos que enviaremos contra
o czar. Agora que Bernadotte foi chamado pelos suecos para ser o seu príncipe herdeiro, temos uma frente unida desde o Báltico ao Mar Negro. A altura é propícia,
cavalheiros. Basta aproveitarmos a oportunidade que o destino nos concedeu.
Fez-se um novo silêncio, até que o general Savary pigarreou e falou:
- Sire, não tenho dúvida de que terá razão quanto ao momento, mas estamos bastante empenhados em Espanha. Será acertado termos duas campanhas ao mesmo tempo?
- Tomei isso em consideração - replicou Napoleão, e depois esboçou um sorriso. - Tem razão, meu caro general. Temos de tratar de Espanha. Foi por isso que já enviei
uma mensagem ao meu irmão, o rei José, pedindo-lhe que venha a Paris para nos reunirmos. Assim que as dificuldades em Espanha estejam resolvidas, não teremos nada
que nos impeça de humilhar o czar.
Capítulo 19
O batismo do novo príncipe foi marcado para junho e o imperador convocou a família, os principais aristocratas do império e dignitários estrangeiros para assistirem
à cerimónia. Quando o rei José chegou, perto do final de maio, os jornais de Paris anunciaram que ele viajara desde Madrid para celebrar o nascimento do herdeiro
do irmão. O outro objetivo da visita - informar Napoleão da situação em Espanha - não foi revelado ao povo, já que, ainda por cima, José trazia más notícias.
- Masséna não conseguiu render a fortaleza de Almeida - explicou José enquanto passeava pelo jardim de Fontainebleau. Naquele dia bonito do início do verão, as novas
folhas cintilavam com um verde brilhante nas árvores, enquanto as últimas flores de cerejeira pairavam no ar com a brisa suave. No relvado, à frente do laranjal,
a imperatriz e as suas aias ocupavam-se com o menino no berço. Napoleão relanceou rapidamente os olhos na direção delas e continuou a escutar o relatório do irmão.
- O exército britânico obrigou-o a retirar em Fuentes de Oñoro. A última mensagem que recebi da guarnição de Almeida dizia que a comida acabara e que as munições
estavam quase gastas. Se não recebessem reforços no espaço de dez dias, o comandante dizia ser obrigado a render-se. Não havia nada que eu pudesse fazer. Almeida
caiu nas mãos do exército de Wellington.
- Sim. Mas pode ser recuperada a seu tempo.
José estacou e virou-se para o irmão.
- Julgas que é assim tão simples, meu irmão? Creio que sobrestimas a nossa posição em Espanha. Estamos a travar um tipo novo de guerra na Península Ibérica. Para
controlarmos a província, temos de dispersar as tropas para policiar cada vila, aldeia e estrada. É a única maneira de controlar o povo. No entanto, sempre que Wellington
avança, somos obrigados a concentrar as nossas forças e a abandonar o controlo da província. E se avançamos contra Wellington com um exército grande o suficiente
para o esmagarmos, ele limita-se a ceder terreno, para nos atrair até aos limites dos nossos suprimentos, até que finalmente somos obrigados a desistir da perseguição.
E depois temos de voltar a controlar a província. Acredita, vamos perder a guerra em Espanha. Enquanto as nossas forças definham, o inimigo vai ficando cada vez
mais forte. Os nossos soldados foram expulsos de Portugal e os britânicos estão prestes a tomar todas as fortalezas fronteiriças e a invadir Espanha.
Napoleão abanou a cabeça.
- Wellington não tem força suficiente para avançar com uma invasão. Não tem mais de um quinto dos homens à tua disposição. Além disso, parece-me que és tu que sobrestimas
a competência dele. É igual a todos os outros generais britânicos, demasiado cauteloso para nos levantar grandes problemas. Não se pode dar ao luxo de perder homens.
Quanto mais tempo demorar a guerra, mais garantias temos de que o exército inglês vai ser desbaratado. Além disso, falta-lhe a experiência dos meus marechais. Antes
de chegar a Portugal, tinha comandado forças bastante modestas na Índia. Não me parece que um general de sipaios seja capaz de sobrepujar os comandantes do melhor
exército europeu.
- Contudo, foi exatamente isso que Wellington fez - contrapôs José. - Derrotou Junot, Jourdan, Soult e agora Masséna. É um homem a ter em conta.
- Tal como te disse, sobrestima-lo. Li os relatórios sobre as batalhas que Wellington reclama como vitórias. Não as venceu, simplesmente permitiu que os nossos comandantes
as perdessem graças à sua impetuosidade. Nada mais do que isso. Não será, de todo, uma base muito sólida sobre a qual estabelecer a reputação que lhe concedes, José.
Garanto-te que ele pode ser, e será, derrotado.
- Nesse caso, porque não o enfrentas em pessoa? - José fitou o irmão. - O Exército de Espanha precisa de ti, Napoleão. O moral dos homens está muito em baixo. Já
sofreram demasiados reveses às mãos daquela maldita raposa britânica, e os soldados estão com os nervos à flor da pele por causa dos bandos de camponeses que os
perseguem para onde quer que marchem. Os homens estão muito longe de França, estão longe de casa, e não veem um fim breve para a guerra que estão a travar na Península
Ibérica. Dizem que foram esquecidos pelo imperador.
- Esquecidos? - Napoleão expirou com irritação. - Quem é que eles julgam que envia os comboios de ouro que os paga? Não distribuo bastantes condecorações por bravura
e excelentes desempenhos? Então?
- Não basta. Precisam que os comandes. Que voltes a encher-lhes o peito de inspiração. Então poderemos esmagar Wellington de uma vez por todas. Depois disso, os
espanhóis vão desistir de lutar e teremos paz.
Napoleão ponderou as palavras do irmão por alguns momentos. Não negava que era tentador mostrar aos marechais em Espanha que os casacas-vermelhas não eram invencíveis,
tal como alguns deles pareciam querer acreditar. Claro que derrotar Wellington não seria, de todo, um feito à sua altura, acabou por concluir.
- Não posso deixar Paris, José. Há questões que exigem a minha atenção.
- Mais do que a resolução dos problemas em Espanha?
- Ainda mais importantes do que isso. - Napoleão virou-se e continuou a andar pelo carreiro entre as flores, de cabeça curvada e mãos atrás das costas. Engordara
pela falta de exercício do último ano e, passado um instante, o desconforto dos braços pressionados em torno do corpo rotundo obrigou-o a libertar as mãos e a cruzá-las
à frente do peito. José deu algumas passadas rápidas para regressar ao lado do irmão. Caminharam em silêncio por alguns momentos, sendo os únicos sons o saibro pisado
pelas botas, o grito ocasional de um pavão, e as gargalhadas e os fragmentos da conversa animada entre a imperatriz e o seu círculo. Lá em cima, nuvens fofas cruzavam
o céu, sereno e imaculado.
- Está um belo dia - comentou José. - Quase que me esquecera de que um homem pode sentir tamanha paz. Já lá vai muito tempo. Abdicaria do trono espanhol num abrir
e fechar de olhos... se isso me fosse permitido.
- Não farás tal coisa - replicou Napoleão sem erguer o olhar. - Já retirei um irmão do trono. Não me atreverei a deixar que aconteça o mesmo a outro Bonaparte. Vais
permanecer no trono espanhol e venceremos essa guerra.
- E se não a vencermos? E se não a conseguirmos vencer? O que acontece então? Deixavas-me lá para ser desfeito pela populaça? Não leste o que fazem aos oficiais
franceses que capturam? Os malditos serraram um dos nossos generais ao meio e ferveram outro vivo. Consegues imaginar uma coisa dessas? - José abanou a cabeça, horrorizado.
- Devíamos aproveitar enquanto é tempo e abandonar Espanha de vez. É esse o meu conselho, irmão.
- E é por isso que não és imperador - retorquiu Napoleão concisamente. - Falta-te uma visão mais global. Espanha é apenas um de vários teatros de guerra. Contudo,
o que acontece aí influencia o resto da Europa. Se fracassares em Espanha, os nossos inimigos terão a coragem de nos desafiar noutros pontos.
- Nesse caso encontra outro rei. Estou farto de Espanha.
- Outro rei? - Napoleão fitou o irmão com uma expressão gelada. - Julgas que os reis nascem nas árvores e que eu posso apanhar outro sempre que me apetece?
- Não acredito que tenhas dificuldade em encontrar alguém que queira ser rei.
- Terei dificuldade em encontrar alguém em quem possa confiar implicitamente. - Napoleão abriu os braços. - Estou cercado por homens ambiciosos que não se importariam
de ser reis, e a maior parte iria trair-me sem pensar duas vezes. Homens como Bernadotte. Por agora está deliciado com a perspetiva do trono sueco, mas quanto faltará
até ambicionar o meu trono? - Virou-se e levou as mãos aos ombros do irmão. - É por isso que dependo de ti, José, tal como sempre aconteceu. Vais abandonar agora
a minha causa?
José não respondeu, limitando-se a fitar o irmão mais novo em silêncio.
- Meu irmão. - Napoleão suavizou o tom e, quando voltou a falar, a voz denotava quase uma súplica. - Por favor, eu preciso de ti, mais do que nunca.
José tentou afastar-se, mas Napoleão segurou-lhe os ombros com firmeza e recusou-se a deixá-lo mover-se. - Preciso de saber que estás comigo.
- Tenho de pensar. - José olhou para as mãos do irmão. - Larga-me, por favor.
Napoleão franziu os lábios, depois anuiu e deixou os braços descaírem ao lado do corpo. José andou mais um pouco e sentou-se num banco. Napoleão juntou-se a ele.
Passaram algum tempo sem falar, até que José quebrou o silêncio.
- Elevaste-me a rei de Espanha e, contudo, os marechais do exército recusam-se a obedecer às minhas ordens. Quando lhes transmito indicações, eles pedem autorização
a Paris para levar a cabo o que lhes foi dito. Houve quem declarasse abertamente que só te ouvem a ti, Napoleão. Soult nem sequer me responde às cartas.
- Estão só a obedecer a ordens.
- Às tuas ordens. Quer dizer que não confias em mim para governar o meu próprio reino?
- És um excelente administrador - ofereceu Napoleão, pacientemente. - Mas não tiveste oportunidade de desenvolver as tuas competências militares. Decidi que seria
mais eficaz entregar-te o governo de Espanha a ti, e o comando das tropas lá colocadas a soldados experientes. Além disso, tenho planos para as províncias setentrionais
de Espanha.
José fitou-o.
- Planos? Que planos?
- A França precisa de garantir as fronteiras - explicou Napoleão. - É minha intenção anexar o território a sul dos Pirenéus. Isso vai garantir-me uma rota segura
até Espanha e vai servir para aliviar o teu fardo.
- Entendo. - José abanou a cabeça com tristeza. - E não te lembraste de me consultar sobre este... pequeno assunto?
Napoleão pressionou os lábios por breves instantes. Sentiu uma pontada de culpa, mas depois uma onda de justificação dissipou o sentimento. Não era verdade que concedera
ao irmão todos os privilégios e oportunidades de que desfrutava naquele momento? Não fora ele que elevara José ao trono? Não lhe dera um vasto poder militar para
se fazer obedecer e para impor a paz aos incómodos espanhóis? O que lhe dera José em troca? Incompetência e fracasso.
- Não sou obrigado a partilhar as minhas decisões com ninguém. Se por acaso decidir procurar conselhos, nesse caso fá-lo-ei. Seja como for, tenho de garantir a paz
em Espanha o mais depressa possível. Até agora, tanto tu como os meus marechais falharam-me, algo que se torna ainda mais chocante se tivermos em conta que te ofereci
recompensas riquíssimas.
- O trono espanhol não é uma recompensa, é uma maldição.
Napoleão bateu-lhe com força no ombro.
- Tolo ingrato! É assim que me agradeces?
José fitou o irmão, os olhos semicerrados. Respirou fundo para se acalmar e falou num tom mais baixo:
- Por acaso pedi-te a coroa espanhola? Não. Impuseste-ma. E eu impu-la ao povo espanhol. Agora insultam-me por isso, quase tanto como te injuriam a ti. - Os ombros
de José descaíram e o monarca juntou as mãos. - É inútil, garanto-te.
- Nunca nada é inútil. Isso são as palavras de um cobarde - replicou Napoleão num tom gelado.
- Não, são as palavras de um homem razoável que sabe quando a sua hora chegou. - José endireitou-se. - Estou decidido, meu irmão. Vou abdicar do trono. Vou deixar
Espanha e retirar-me para as minhas propriedades em França.
Fez-se um breve silêncio, até que Napoleão se virou e juntou as mãos atrás das costas. Quando voltou a falar, a voz saiu-lhe tensa:
- Não vais abdicar. Proíbo-o.
- Não o podes proibir.
- Proíbo-o. Mais ainda, serás tratado como desertor se voltares a deixar Espanha sem a minha autorização.
- Desertor? - José não foi capaz de reprimir o esboço de um sorriso. - Mandavas fuzilarem-me?
- É esse o destino dos desertores - retorquiu Napoleão, com frieza. - Mesmo sendo tu meu irmão, e mesmo amando-te, não teria pejo em encostar-te a uma parede e em
mandar fuzilar-te.
- Não acredito em ti.
Napoleão deu meia-volta, o olhar penetrante e impiedoso.
- Acredita!
Antes que José pudesse responder, o rosto do irmão enrugou-se numa expressão de agonia súbita e Napoleão deu um passo na direção de José antes de tombar lentamente
para o carreiro, apoiando-se numa mão enquanto arquejava, tentando respirar.
- Napoleão! - José acocorou-se ao lado dele, segurando-lhe o ombro. - O que foi? O que se passa?
- O meu estômago... - sibilou Napoleão por entre dentes cerrados. - Deus, como dói.
José olhou para cima, mas não viu ninguém no terreno à volta deles. A comitiva imperial mantinha uma distância discreta do imperador e do rei espanhol.
- Vou buscar ajuda - disse-lhe José, após o que olhou ansiosamente para o irmão.
Napoleão aquiesceu, cerrando os dentes enquanto reprimia mais uma onda de agonia ardente do fundo do abdómen.
- Vai.
Deixou-se pender sobre os cotovelos e José partiu em busca de assistência. A dor que sentia na barriga era como uma barra de ferro aquecida pressionada contra as
virilhas. Não era a primeira vez que sentia tal dor. Ao longo do ano anterior fora acometido em várias ocasiões, regra geral quando ficava exausto pelas exigências
que lhe eram impostas pelas eternas demandas pelo seu tempo e força.
- O que se passa comigo? - resmungou com amargura. Dez anos antes, fora capaz de suportar tais imposições à sua constituição sem qualquer queixume, durante a campanha
em Itália. Marchara, comera e dormira ao relento com os soldados, mesmo no pino do inverno. Passara muitas vezes dias sem dormir enquanto avançavam para um novo
confronto com mais um exército austríaco.
Napoleão fechou os olhos e deixou-se cair no carreiro, enrolando-se de lado.
- Tantas batalhas - murmurou penosamente. - Estou a ficar velho.
Sentiu um aperto no coração e interrogou-se quanto ao processo com que o tempo lhe depositara os anos sobre os ombros de forma tão discreta que só recentemente sentira
os efeitos. Nos últimos dois anos ficara pesado, até mesmo gordo, e agora tinha aquela dor no estômago. Com uma pontada de medo, Napoleão pensou se seria assim que
a vida ia acabar, sobrepujada por uma maleita comum. Sempre imaginara que deveria morrer no campo de batalha, como Desaix, ou Lannes. Uma morte com alguma dignidade.
Pensar em morrer num estado de agonia devido a uma qualquer doença ignóbil, antes de completar o trabalho da sua vida, aterrorizava-o.
Ouviu o som de botas a esmagar o saibro de um carreiro próximo e pestanejou.
- Por aqui! - gritou José. - Depressa.
Napoleão rebolou para ficar de costas e esperou um momento até que José se ajoelhasse a seu lado, ofegante e com uma expressão ansiosa. Foi rodeado por mais homens.
- Levem-me lá para dentro - ordenou Napoleão.
- Mandei chamar o médico - arquejou José. - Ele vem diretamente para aqui.
- Levem-me para dentro de casa - insistiu Napoleão, com firmeza. - Não quero ser visto aqui deitado, como um inválido. Levem-me para dentro.
Por um instante, José pareceu querer fazer menção de protestar, mas depois assentiu. Levantou-se e dirigiu-se aos criados que fora chamar à casa.
- Ergam sua majestade com todo o cuidado. Levem-no para o divã do estúdio.
Napoleão sentiu-lhes os braços a passar por baixo dos seus ombros e pernas, e momentos depois foi levantado cuidadosamente do chão. Fez um esgar.
- A imperatriz sabe?
- Ainda não.
- Nesse caso, não lhe digam. Não vale a pena preocupá-la. Ela que goze o dia.
José assentiu.
- Além do mais, não quero que ela me veja assim. Fraco. Se isto se sabe na corte austríaca...
- Compreendo.
O pequeno grupo contornou alguns arbustos perfeitamente aparados para se manter longe do campo de visão da imperatriz e dos seus convidados, e dirigiu-se às portas
envidraçadas do gabinete privado de Napoleão. Quando o instalaram no divã, mandou sair todos os homens à exceção de José, que o acompanhou enquanto esperavam que
o médico pessoal chegasse.
- Onde é que ele está? - gemeu Napoleão.
- Foi andar a cavalo. Mandei um dos teus oficiais do estado-maior à procura dele.
- Raios partam o homem.
José puxou uma pequena cadeira e sentou-se ao lado do irmão, a quem deu uma palmadinha hesitante no ombro.
- Tens de descansar. Pareces exausto.
- Eu estou exausto. - Napoleão respirou fundo, lutando contra a dor até que esta começou a esbater-se, lentamente. - Mas há tanta coisa que tenho de fazer. Sempre.
- É verdade. - José aquiesceu. - Mas não podes fazer tudo. Ninguém pode.
- Ninguém vulgar.
- Vulgar ou extraordinário, não deixas de ser um homem - argumentou José. - E tens de cuidar de ti. Tens um dever para com o teu povo e para com a tua família. Eles
precisam de ti, Napoleão. Agora, mais do que nunca.
Napoleão olhou para José com uma expressão calculista.
- E eu preciso de ti, mais do que nunca. Em Espanha.
A porta do gabinete abriu-se e o cirurgião imperial entrou à pressa, esbaforido da cavalgada. José levantou-se e afastou-se para lhe dar espaço.
- O que aconteceu a sua majestade?
- Posso falar por mim - resmungou Napoleão, soerguendo-se. - É o meu estômago.
- Outra vez? - O médico sentiu-lhe a pulsação e olhou para o imperador enquanto contava. - Sire, não tem dado ouvidos aos meus conselhos. Tem de descansar. Já falámos
sobre isso. Tem de descansar, antes que se mate a trabalhar.
Napoleão franziu o cenho e olhou para o irmão, fungando.
- Médicos! Não passam de um empecilho.
José obrigou-se a sorrir, e Napoleão fez-lhe sinal para que se aproximasse. Quando José chegou ao divã, segurou-lhe a mão de repente.
- Jura-me que vais ficar em Espanha!
- O quê? - José tentou recuar, mas o aperto do irmão era demasiado forte.
- Jura-me, agora, que vais manter a coroa. Jura-me! - Napoleão fitou o irmão. - Preciso da tua resposta.
José baixou a cabeça e depois assentiu.
- Não vou abdicar do trono. Pronto. Tens a minha palavra.
Napoleão respirou fundo.
- Agradeço-te. E tens a minha palavra de que farei tudo o que estiver ao meu alcance para te ajudar a derrotar Wellington. Vais ver. Daqui a um ano, o exército britânico
vai estar de rastos. Além disso, duvido que na altura o resto da Europa se preocupe muito com o que se passa em Espanha.
- E porque não?
Napoleão apertou a mão de José e depois soltou-a.
- Tudo a seu tempo. Agora tenho de te agradecer, José, e pedir-te que saias, para que possa descansar.
- Umpf. - O médico fungou. - Acredito nisso quando o vir.
José anuiu e dirigiu-se à porta. Napoleão observou-o a sair e depois sorriu, satisfeito consigo mesmo. Enquanto houvesse um Bonaparte no trono de Madrid, ele poderia continuar com outros planos. Talvez o maior plano de todos.

 

 

 

CONTINUA