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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CANÇÃO DO EXILIO / Marion Zimmer Bradley
CANÇÃO DO EXILIO / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CANÇÃO DO EXILIO

Primeira Parte

 

Deve haver algum meio de viajar entre as estrelas que não me deixe nauseada... alguma droga à qual eu não seja sensível. Se ao menos eu não fosse alérgica a tantas coisas... se ao menos tivesse escolhido uma carreira em agronomia ou jornalismo...

A mulher na poltrona sorriu, um tanto sombria, sem abrir os olhos, enquanto tentava ignorar a náusea e a vertigem. Era um pensamento antigo, que já acalentara muitas vezes. Anos antes, quando saíra de casa para ingressar na universidade, chegara a considerar essas duas profissões como possibilidades de carreira, junto com contabilidade e várias outras de que nem podia se lembrar agora. Precisara de menos de um semestre para compreender que não tinha o chamado dedo verde, e detestava a idéia de relatar os sofrimentos alheios. Descobrira ainda que tinha pouca habilidade com as palavras. Achava os números uma chatice, embora tivesse uma ótima capacidade matemática. Poderia até ter alcançado o maior sucesso, pensou ela agora, no desvio fraudulento do dinheiro de terceiros. O pensamento fez o sorriso se alargar ainda mais, aliviando um pouco a tensão em seu rosto.

Por baixo do punho turquesa de seu uniforme preto de pesquisadora, ela podia sentir a comichão dos emplastros na pele. Um era para fornecer a droga, hiperdrome, que prevenia a náusea espacial, enquanto o outro era para anular sua alergia à hiperdrome. Um absurdo, sem dúvida, que ela fosse tão alérgica. O pai também era; portanto, devia ter herdado dele. Era mesmo sua filha, embora não se sentisse assim durante a maior parte do tempo.

Ela movimentou a cabeça para a frente e para trás, contra as almofadas de cheiro horrível. A massa de cabelos ruivos, bem finos mas abundantes, empilhados no alto da cabeça, escolheu esse momento para escapar dos grampos que a continham, começando a deslizar pelo pescoço. Ela podia sentir a tensão em seu corpo. Fez um esforço deliberado para relaxar. O tênue cheiro de desinfetante que pairava no ar seco e sufocante do compartimento de terceira classe era repulsivo, fazendo-a se contorcer toda.

Enquanto mantivesse os olhos fechados, teria a ilusão de privacidade e ficaria um pouco menos consciente das onze pessoas que partilhavam o pequeno compartimento. A presença de outras pessoas próximas, pessoas tão ansiosas quanto ela, fazia com que se tornasse ainda pior a náusea terrível e angustiante que vinha tentando ignorar. Sempre fora assim, desde aquela primeira viagem para longe do lugar a que agora retornava. Tinha apenas umas poucas e vagas memórias de sua infância, mas aquela primeira viagem era mais nítida e vigorosa do que as outras. Os cheiros e sons de uma nave espacial, com uma barriga que dava a impressão de que todos os demônios dançavam lá dentro, eram associados a alguma coisa terrível que ela não conseguia recordar direito. Nunca chegava a vomitar, mas pairar à beira da náusea por horas intermináveis era igualmente ruim, talvez até pior.

Poucas pessoas acreditariam que a filha de um senador da Federação viajaria em terceira classe. Havia a tendência para pensar que pessoas assim levavam vidas fascinantes, em festas e recepções diplomáticas. Mas ela era uma Pesquisadora da Universidade, e os acadêmicos quase nunca viajavam de outra forma. Margaret já era agora uma viajante calejada, dez viagens e mais de cem escalas. Seu corpo, no entanto, ainda se recusava a se ajustar às drogas. Por isso, ela se resignara ao desconforto. Pelo menos não era mais forçada a suportar sem qualquer ajuda as agonias da classe econômica, a pior de todas... como acontecera em sua primeira viagem sozinha, de Thetis a Coronis, num pesadelo de dezesseis escalas. E viajar de primeira classe, como fizera uma ocasião, não era muito melhor... o ar também era malcheiroso e as drogas deixavam sua boca ressequida.

Sou como um bom vinho... não viajo bem. Gostaria que esta droga realmente me pusesse para dormir, como deveria fazer. O professor Davidson, abençoado seja, ronca como um bebê. Como ele consegue? Será este o porto em que vamos desembarcar? Perdi a contagem. Esta é a sexta ou sétima escala? Mãe dos Oceanos, faça com que seja a sétima!

Ela iniciou o Jogo. Fora inventado por Margaret e sua madrasta, Dio, naquela primeira viagem, quase esquecida, quando ela era bem pequena.

Consistia em dizer os nomes de todas as deusas e deuses que pudesse lembrar. Quando Dio ensinara o Jogo, ela conhecia apenas uns poucos... Zandru e Aldones, Evanda e Avarra. Ao chegarem a seu destino, era capaz de nomear mais de cem, além de conhecer algumas de suas histórias. A lista crescera à medida que se tornara mais velha e aprendera mais, até incluir nomes de divindades que datavam do tempo em que a Terra fora realmente um Império. Acrescentara os nomes de divindades que aprendera com os colegas na universidade, nomes originários de planetas que visitara e de lugares em que nunca estivera. Às vezes procurava por rimas nos nomes, ou tentava enunciá-los em ordem alfabética... qualquer coisa para distraí-la das rebeliões de sua carne. Os nomes nunca se esgotavam, mas não podia ter certeza se era ou não porque os repetia. O exercício lhe proporcionava alguma coisa em que se concentrar, em vez de se manter atenta aos sons da enorme espaçonave e aos cheiros azedos dos companheiros de viagem.

A vibração da espaçonave, capaz de embrulhar o estômago de qualquer pessoa, começou a diminuir. O som das engrenagens tornou-se diferente, com o zumbido de alguma coisa parando. Era o tipo de barulho que sempre a deixava tensa, porque significava que estavam deixando o vazio entre as estrelas para entrar na gravidade de algum mundo. O estrondo dos motores acionados para a descida até o planeta - um lá bemol um pouco desafinado - fê-la estremecer.

O professor soltou um grunhido na poltrona ao seu lado, tossiu e mexeu-se. Estava desperto. Anos de intimidade forçada com o velho haviam-na familiarizado com cada gesto e ruído. Margaret não precisava abrir os olhos para saber que naquele momento ele flexionava os dedos sobre um teclado imaginário.

Como nos tornamos tão acostumados um ao outro!, pensou ela. Provavelmente ele também conhece todos os meus pequenos hábitos. Era confortador sentir a familiaridade tranqüila de sua amizade com Ivor Davidson, seu mentor e quase que pai adotivo. Sua esposa, Ida, fora como uma mãe para ela. Margaret concluiu que, apesar da náusea terrível que a dominava agora, era sem dúvida uma pessoa abençoada. Fazia o trabalho que amava, na companhia de um amigo querido que respeitava. Quem ousaria pedir por mais?

O alto-falante por cima da poltrona estalou e zumbiu. Margaret estremeceu. Ah, seus ouvidos tão sensíveis! Claro que haviam tornado possíveis seus estudos, sua bolsa de estudos e sua carreira como musicóloga. Mas, por outro lado, o oficial de comunicações negligente, que ligava o sistema de som de qualquer maneira e devia ser surdo para os tons, transformara os três últimos pousos em profunda agonia para ela. Depois de alguns estalos e um rangido estridente, que a fez estremecer em desespero, uma gravação anasalada, com o forte sotaque de algum planeta atrasado, começou a tocar. Era antiga e precisava ser trocada. Ela teve de fazer um esforço para ouvir, em vez de apenas desligar o desagradável alto-falante.

Logo a gravação foi encerrada. Uma voz que quase parecia humana, falando no Padrão Terráqueo, com um horrível sotaque arrastado, anunciou:

- Estamos agora no acesso final para Cottman Quatro, chamado Darkover por seus habitantes.

Havia um tom quase desdenhoso na maneira com que o nome foi pronunciado, como se o locutor imaginasse que os darkovanos não passavam de selvagens nus ou quase isso. A típica arrogância terráquea. Ele continuou:

- Os passageiros devem lembrar que não podem abrir o sistema de segurança pessoal até que sejam autorizados. Os passageiros da terceira classe e da classe econômica que precisarem de ajuda terão um comissário de bordo à sua disposição logo depois do pouso.

Assim que acabou de dar as instruções em Padrão Terráqueo, a voz passou a repeti-las em meia dúzia de outras línguas. As que Margaret pôde reconhecer estavam obviamente desfiguradas.

Darkover! O destino dos dois, finalmente. O planeta em que ela nascera. Mas o som da palavra em sua mente desencadeou a estranha apreensão que sempre experimentara desde que descobrira que viajaria para lá. Era um sentimento próximo do terror... e completamente ilógico! Já estivera em muitos outros planetas com Ivor durante suas pesquisas, e nunca experimentara aquela inquietação tão insidiosa.

Margaret respirou fundo várias vezes, obrigou-se a relaxar. Os músculos em seus ombros estavam tensos, e só se soltaram com extrema relutância. Mas o exercício de relaxamento deu certo. Depois de algum tempo, ela soltou um suspiro de alívio e parou de escutar. Sua atenção vagueou. Já se acostumara a ser informada uma dúzia de vezes sobre tudo. Como Colonial, acalentava um certo desdém pelos métodos rígidos e controlados da Federação Terráquea. Embora apreciasse suas conquistas tecnológicas, que lhe permitiam estudar música em uma dúzia de mundos numa única vida, suportava a arrogância terráquea apenas pela verba para suas pesquisas e a liberdade que lhe proporcionava. Mas não gostava nem um pouco, e estava convencida de que jamais gostaria.

Seu pai teria a maior satisfação em mandá-la estudar em diversas instituições coloniais de ensino superior, mas a Universidade de Coronis não figurava entre suas opções. Margaret ainda podia recordar a briga que tiveram quando ela fizera a sugestão. Dizer que o pai não aprovara a escolha seria uma obra-prima de atenuação de sua reação. O pior de tudo é que ele nunca explicara o motivo. Dio, a madrasta, não hesitara em interferir, como sempre fazia, mantendo a paz entre pai e filha da melhor forma possível. Mas Margaret tivera de suportar o que pareceram semanas - embora não passassem de dias - de ansiedade e silêncios contrariados, até que o senador dera seu consentimento. Ela gostaria de compreendê-lo melhor... ou pelo menos compreender sua estranha mistura de distanciamento e atitude de intensa proteção em relação à filha. O Velho (como Margaret pensava no pai) e Dio passavam muito tempo ausentes, participando das sessões do Senado e em muitas missões da Federação. Como também era alérgico à hiperdrome, o pai não voltava a Thetis com muita freqüência; e quando o fazia, evitava a filha o máximo possível. Era quase como se a amasse e odiasse ao mesmo tempo.

Sem qualquer motivo que pudesse discernir, ao pensar naqueles dias horríveis à espera da permissão do senador para ingressar na universidade que queria, Margaret lembrou subitamente de outra ocasião, quando era muito mais jovem, treze ou quatorze anos. Dio a encontrara sentada numa praia do Mar de Vinho Thetiano, chorando. Não recordava mais o motivo das lágrimas, mas as palavras que dissera a Dio afloraram de repente em sua mente:

- Sou muito feia. Meu pai não me abraça, não me deixa ir a lugar nenhum, porque sou feia. Por que não posso ter cabelos bonitos, como os seus? Por que tenho uma pele que fica toda manchada quando pega sol? E você e papai viajam demais. Quando vêm para casa, ele nunca me toca, não conversa comigo, quase que me ignora por completo. O que há de errado comigo?

A lembrança fê-la estremecer toda, no momento mesmo em que a espaçonave soltava um tremendo rugido, para depois deixar escapar uma espécie de suspiro metálico, quase como se estivesse cansada. Margaret agradeceu à Deusa por não ter mais treze anos, sujeita aos horrores da adolescência. Durante todo aquele tempo, estivera convencida de que a atitude do Velho era decorrente de alguma coisa que ela fizera errado, ou deixara de fazer, apesar de Dio insistir que nada tinha a ver com Margaret, era um problema do próprio senador. Dio fazia o melhor que podia para confortá-la. Margaret nada tinha de feia. O senador a amava, à sua maneira taciturna. Mas Dio jamais conseguira explicar por que ele se mantinha tão distante, nem por que Margaret era tão diferente dos dois. Só muito mais tarde é que ela descobrira que não era filha de Dio, mas sim do primeiro casamento do senador.

Margaret ainda podia recordar o choque profundo que tivera ao ouvir essa revelação, pouco antes de sua partida para a universidade. Nunca imaginara que o pai já tivesse sido casado antes. Havia muitas coisas que ignorava sobre seu próprio passado e o passado do pai. Ela começou a estremecer, mas tratou de se controlar. Não era a heroína de algum romance ordinário, com segredos sinistros à espreita em segundo plano. Mas por que tinha o intenso e terrível pressentimento de que não apenas havia coisas que ignorava, mas também coisas que não queria saber? Que absurdo! Apenas sentia-se cansada da longa viagem, passando mal das drogas espaciais.

Não, era mais do que isso. Voltava agora ao planeta em que nascera, há mais de vinte e cinco anos terráqueos. Margaret tinha apenas vagas recordações. Pensar a respeito provocava uma sensação de desconforto, uma ligeira dor de cabeça e a impressão que se captava do ar pouco antes de uma tempestade. Havia muitos fatores perturbadores. Seu pai era senador por Darkover, mas não residia no planeta. Pelo que a filha sabia, nunca mais pusera os pés ali desde que partira, mais de vinte anos antes. A mãe que conhecera pela maior parte de sua vida não era de fato sua mãe. Dio mantivera-se intransigente, recusando-se a revelar mais que umas poucas generalidades a respeito de sua mãe verdadeira.

Houve um momento de silêncio, rompido apenas pelo aviso de que o pouso fora concluído sem qualquer contratempo. Em seguida, um técnico inepto em questões de comunicações informou sobre as providências para o desembarque, levando os passageiros no compartimento a comentarem o fato óbvio de que haviam chegado. Era como se não pudessem acreditar em qualquer coisa que não fosse comunicada por alguém.

- Estamos no Espaçoporto de Thendara, em Cottman Quatro. Os passageiros com este destino final devem desembarcar o mais depressa possível. Nossa escala aqui será breve. Por isso, os passageiros para Wolf, Phi Coronis Quatro, devem permanecer em seus lugares. Os passageiros para a Estrela de Sagan, Quitai e Greenwich devem desembarcar aqui e consultar um atendente uniformizado da Força Espacial sobre as informações de trânsito para seu destino final. Por favor, preparem-se para o desembarque imediato. Um atendente médico visitará cada compartimento para aplicar uma dose de hiperdrome nos passageiros que continuarão em viagem e nos que estão embarcando neste momento. Repito. Estamos no Espaçoporto de Thendara. Os passageiros para...

Margaret ignorou a ligeira dor de cabeça, assim como o desejo de enfiar um pano no alto-falante para silenciá-lo. Ignorou a comichão dos emplastros no pulso esquerdo. Começou a soltar as correias que a prendiam na poltrona, ansiosa para se afastar do cheiro e som da espaçonave o mais depressa possível. Isto é, não tão ansiosa quanto em outras ocasiões. O senso de apreensão persistia, no fundo de sua mente. Teve de fazer um esforço para desviar sua atenção. Assim que ficou livre das correias, ela se virou para seu companheiro de viagem.

O professor Davidson ainda abria suas correias, um tanto desajeitado. Tinha os olhos um pouco vidrados devido às drogas e, como sempre, parecia um pouco desorientado. Margaret observou-o lutar com uma fivela e mordeu seu lábio. A primeira coisa que notara, ao conhecê-lo, havia sido suas mãos... lindas mãos, como as de um anjo em algum quadro antigo. Estavam agora tortas e encarquilhadas, mal conseguiam dedilhar os acordes mais simples numa guitarra. Parecia ter acontecido da noite para o dia, mas ela tinha certeza de que o processo fora mais lento. Ivor Davidson podia tocar quase que qualquer instrumento musical desenvolvido por humanóides - e até alguns de não-humanos - mas sempre fora um caso perdido com coisas simples, como trincos e fivelas... e detestava se Margaret o lembrava de sua inépcia. Ao final, ele assumiu uma expressão de desamparo, derrotado por aquela coisa estúpida. Ela sentou, com um pouco de vertigem, no breve fluxo de hipotensão de postura, e inclinou-se para ajudá-lo, no instante em que um comissário de bordo entrava no compartimento.

- O que eu faria sem você? - perguntou ele, o rosto moreno e encarquilhado se desmanchando num sorriso que nunca deixava de encantá-la, mesmo quando o professor a irritava.

- Contrataria outra assistente, é claro - respondeu Margaret, secamente.

A crescente dependência de Ivor a afligia, mais do que queria admitir. Era como se a estada de um ano em Relegan tivesse drenado seu último vigor, deixando para trás apenas uma casca vazia. Margaret fazia um esforço para não deixar transparecer o sentimento de desamparo e raiva que sempre experimentava quando pensava em seu rápido declínio. Devia a Ivor Davidson mais do que jamais seria capaz de retribuir. Não em qualquer coisa tão vulgar quanto créditos, mas em afeição e lealdade. Durante seu primeiro e terrível ano na universidade, quando se desesperava em busca de alguma matéria a que pudesse se dedicar sem tédio ou frustração, conhecera Ivor na biblioteca. Ela cantava baixinho, para irritação de alguns estudantes próximos... e completamente inconsciente do que fazia. Ivor a convidara para um teste, efetuado com absoluta meticulosidade, depois a levara para sua casa. Ele e a esposa Ida haviam-na estimulado como música e como mulher, incutindo-lhe um senso de confiança que jamais conhecera com Dio e o Velho. Ao final, Ivor lhe conseguira uma bolsa de estudos, tornara-a primeiro sua protegida, depois assistente. Era o tipo de posição muito apreciado nos círculos universitários, e Margaret sabia que devia se considerar afortunada.

Ela estremeceu um pouco ao recordar como era insegura naquele tempo. Tivera de recorrer a uma grande parte de sua energia para escapar da inexplicável combinação de distanciamento e superproteção do pai. O casal fizera com que se sentisse bem-vinda, como já acontecera antes com gerações de estudantes, em suas longas carreiras universitárias. Ida lhe ensinara os costumes da cultura universitária, Ivor lhe ensinara musicologia e incutira sua paixão pelo assunto. Ambos lhe dispensaram uma afeição incondicional, como ela nunca conhecera antes... e da qual desconfiara a princípio. A persistência do casal dera certo. Em algum momento, ela deixara de ser uma arisca jovem Colonial para se tomar uma respeitada estudiosa. Era diferente de tudo o que imaginara quando vivia em Thetis, mas gostava de seu trabalho e amava o idoso professor.

Durante mais de dez anos os Davidsons foram sua família. Sentia-se abençoada por havê-los encontrado. Thetis, seu mundo de origem, fora relegado para o fundo da mente, lembrado apenas quando tinha de preencher os vários formulários em que a burocracia terráquea parecia viciada. Empenhara-se com afinco em apagar toda e qualquer memória do pai, aquele velho amargo e silencioso, até mesmo de sua gentil e risonha madrasta, um contraste tão grande com os ânimos sombrios do senador.

Quando recordava a infância, Margaret pensava em geral nas coisas agradáveis. O murmúrio das águas de Thetis, deslizando pela praia da ilha em que viviam; o perfume das flores que na primavera desabrochavam na frente da casa; o sabor do primeiro delphina apanhado no verão; a intensa cor azul das azuras; as flores de casamento em Thetis, ornamentando os cabelos claros dos noivos. A cor das azuras sempre fazia sua garganta se apertar na iminência de lágrimas, sem qualquer motivo que pudesse perceber. Margaret tinha um estoque grande de imagens assim, porque passara sozinha uma grande parte de sua infância. O senador e Dio podiam se ausentar por meses a fio, o que proporcionava a ela um alívio culpado. Sentia-se sempre ansiosa quando o pai estava presente. Apesar de tudo, só tinha uma vaga idéia do que ele realmente fazia... e nenhum interesse. O que era estranho, agora que pensava a respeito. Os poucos amigos que fizera na universidade demonstravam uma intensa curiosidade por seus pais, sentiam muito orgulho por tudo o que eles faziam.

- Não, minha cara, não creio que isso pudesse acontecer. - A voz de Ivor Davidson interrompeu seu devaneio perturbado. - Não me acostumaria a ter alguém novo ao meu lado. Torço para que isso não precise ocorrer. O que é egoísmo de minha parte, eu sei. Deveria pensar em você, em seu futuro, não nos meus interesses. Uma linda jovem como você deve ter um namorado ou vários, criar filhos, em vez de aturar os caprichos e resmungos de um velho. Mas a verdade é que eu não poderia continuar sem você... e me sinto muito contente porque veio comigo.

Margaret fitou-o com um princípio de apreensão. Compreendeu que vinha evitando como ele se tornara velho, vinha negando sua crescente decrepitude. Velho aos noventa e cinco anos... como algum pré-histórico. O último tratamento de rejuvenescimento não pegara, não dera certo. Suas mãos, as mãos de anjo, começavam a se transformar em pedra. Ela mal podia suportar. Ivor, por favor, pare de envelhecer...

- Não diga bobagem! - Margaret falou em tom incisivo, para disfarçar suas emoções. - Aquela horrível hiperdrome sempre o deixa melancólico. Vamos sair logo deste caixão voador.

O comentário final, feito infelizmente com sua voz normal, a voz treinada de uma cantora, valeu um olhar irritado de um dos passageiros que permaneceriam a bordo. Ela sentiu que corava até as raízes dos cabelos vermelhos. Baixou a voz para acrescentar:

- Vai se sentir melhor depois de um drinque e um banho. Cottman IV era descrito como primitivo nas poucas informações que

ela conseguira encontrar, mas Margaret sabia muito bem que isso significava apenas, no burocratês terráqueo, que não havia lanchonetes em cada esquina, ou uma videoteca em cada casa.

Ela teve uma súbita e nítida lembrança de uma enorme tina de banho, numa sala que recendia a alguma coisa que não podia determinar. Um homem alto passou pela porta. Era esguio e tinha os cabelos claros, meio prateados. Havia alguma coisa nele que provocou um frio no estômago em Margaret. Ela estremeceu toda.

Fez um esforço para excluir a imagem perturbadora. Concentrou sua energia em criticar mentalmente a politicagem do departamento e o financiamento acadêmico por enviá-los a Darkover. Haviam acabado de voltar de um ano extenuante em Relegan. Depois de um breve mês de descanso, chegara a ordem do diretor do Departamento de Música. Deviam partir às pressas, despreparados e ainda exaustos, para salvar o departamento de uma situação crítica. Todo o trabalho entre os releganos tivera de ser abandonado ou entregue aos cuidados de associados, só porque um colega chamado Murajee se envolvera em algum escândalo. O diretor, dr. Van Dyne, ambicioso e politicamente conivente, decidira enviá-los porque não havia mais ninguém disponível com as credenciais necessárias para realizar o trabalho. Seria isso ou perder o financiamento... e o dr. Van Dyne jamais perdia nenhum financiamento.

Ela ficara bastante frustrada ao tentar obter informações sobre Cottman IV. Fora muito estranho, e Margaret encarara o problema em termos pessoais. Deparara sempre com a indicação de "Confidencial" nos registros na biblioteca da universidade. Tentara usar os códigos de acesso do pai, mas fora em vão. Enviara uma mensagem a Dio, pedindo informações, mas não recebera qualquer resposta até a partida.

Quase que parecia que os computadores haviam sido armados para mantê-la na ignorância. O que era um absurdo, é claro. Margaret obtivera uma fita de linguagem básica, um disquete sobre os costumes da Cidade Comercial e um texto em papel do que desconfiava ser uma peça de ficção, embora procedesse da seção de história. Mas Minha Excursão por Vários Mundos, de Claudean Tont, parecia mais com um romance do que com qualquer outra coisa. Ela descobrira que Cottman IV era um Protetorado, não uma colônia típica, e que as informações a respeito eram quase todas inacessíveis. E quase que desejara ter dispensado mais atenção aos ocasionais acessos de loquacidade do pai.

Só que agora sentia-se cansada demais para se preocupar com um problema insolúvel. Pendurou no ombro esquerdo sua sacola de vôo. Pegou também a de Ivor e ajeitou-a no outro ombro. Pegou ainda os mantos para todos os tempos, que pareciam bem leves, mas não eram. Só queria agora tirar aquele detestável uniforme de pesquisadora e vestir o traje que os nativos costumavam usar, qualquer que fosse. A universidade reprovava seus representantes que "viravam nativos", mas ela tinha experiência suficiente para saber que a melhor maneira de realizar a pesquisa de campo, coletando amostras da música local, era parecer tão comum quanto possível. Era essa a missão que a trouxera até Cottman IV, e que se danassem as normas rígidas e prejudiciais.

Entraram num corredor verde, que descia em espiral. A náusea de Margaret voltou, com todo o impacto. Ela apertou com força os mantos em suas mãos. Depois do que pareceu uma eternidade de escadas, rampas inclinadas e corredores, cujas paredes mudavam de cor por algum motivo que só era conhecido dos construtores da espaçonave, alcançaram o portal e saíram para uma vasta extensão pavimentada.

Uma súbita lufada de vento gelado, com algumas gotas de umidade, ardeu nos olhos de Margaret, para logo depois se desvanecer. Passou pelo tecido do uniforme, deixando-a enregelada. Ela parou, ignorando o murmúrio de alguém por trás, e ajeitou um manto nos ombros de Ivor. O passageiro impaciente resmungou um protesto e contornou-os. Margaret observou-o se encaminhar para o conjunto de prédios imperiais no outro lado da pista, quadrados e ominosos.

Mais além havia um horizonte estranhamente familiar. O imenso sol vermelho se encontrava na beira do céu, mas não dava para saber se era poente ou nascente. O senso de orientação de Margaret, em geral confiável, parecia não funcionar direito ali. Não sabia qual era a hora local, embora provavelmente tivessem avisado no comunicado do desembarque. Fora uma estupidez. Deveria ter prestado mais atenção.

O sol era como uma bola sangrenta no céu e manchava de carmim os prédios próximos. Margaret contraiu os olhos para contemplá-lo. A sensação de déjà vu quase a fez cambalear. Lágrimas afloraram a seus olhos. Ela piscou depressa para reprimi-las, alegando para si mesma que era apenas o vento gelado contra seu rosto que as provocara.

Por que não? Nasci aqui, no final das contas. Não voltei mais desde que parti aos quatro ou cinco anos de idade. Mas não tem nada de estranho que eu reconheça o sol, embora não esperasse qualquer reação. Meu pai é o senador de Darkover... como eu poderia ignorar este sol? A dor de cabeça, um resquício da aplicação de hiperdrome, aumentou abruptamente, a tal ponto que havia pontadas terríveis por trás dos olhos. Ela sussurrou uma coleção de imprecações, nas diversas línguas que conhecia, antes de se adiantar apressada para alcançar o professor. Cada passo fazia com que a dor aumentasse ainda mais. Margaret olhou para trás, observando o sol. Teve a sensação de que alguma coisa no fundo de sua mente perturbada tinha medo daquele sol, como se despertasse lembranças que ficariam melhor se continuassem sepultadas.

Encontraram o prédio da administração e entraram na fila. "Apresse-se e espere" era uma frase tão verdadeira agora quanto nos dias malfadados em que fora criada. Fora do vento intermitente e longe do sol, Margaret descobriu que sua dor de cabeça passara. Concluiu que devia estar ainda mais cansada do que imaginara. Um funcionário entediado carimbou seus vistos e autorizações. Com um aceno de mão, indicou um corredor, quase idêntico aos outros que eles já haviam percorrido.

Depois de algum tempo, avistaram uma placa que os orientou para a área de bagagem. A bagagem mínima e as embalagens especiais, contendo a guitarra de Ivor e a pequena harpa de Margaret, esperavam numa plataforma. Ela rompeu os lacres e removeu metros e metros de plástico cinza biodegradável. Era um material horrível, mas não se permitia que qualquer outra coisa entrasse ou saísse dos planetas da classe D. Poucas horas de exposição ao sol, mesmo o sol fraco de Darkover, reduziriam aquele plástico a alguns gramas de material, que poderia ser queimado sem deixar resíduos. Margaret jogou tudo na lixeira indicada. Tirou do pulso os dois emplastros de medicamento e também jogou-os fora. Entregou a Ivor a caixa com a guitarra, depois pendurou em suas costas a harpa numa capa de pano. Pegou as duas malas. Ivor passou a guitarra de uma das mãos à outra, enquanto ela se convertia numa besta de carga. Sabia que até mesmo o peso mínimo da guitarra era doloroso para Ivor, mas ele não renunciaria à decisão de carregá-la. Afinal, o instrumento tinha quase duzentos anos, feito pelas mãos de um artesão morto há muito. Ivor apreciava aquela guitarra como outros homens poderiam amar uma mulher.

Os dois seguiram por corredores e setas, até saírem para um crepúsculo frio. Margaret sentiu-se um pouco melhor, agora que tinha noção da hora. Precisavam resolver o problema de alcançar o lugar em que deveriam se hospedar na Cidade Velha de Thendara, sem o conforto de um bom transporte terrestre. Ela sabia, pelas gravações que escutara, que não havia transporte aéreo e veículos motorizados ali.

À frente havia um muro alto, feito com blocos de concreto terráqueos. Através de uma abertura em arcada, Margaret divisou uma área com calçamento de pedras, iluminada por tochas, num tremendo contraste com a intensa claridade da luz artificial na área do espaçoporto. As duas fontes de luz se cruzavam, formando imensas sombras. O medo que ela conseguira repelir para o fundo de sua mente retornara agora, inundando-a de apreensão. Neste lado do muro ela sabia quem era; mas, no outro, Margaret desconfiava, não tinha a menor idéia de quem podia ser. Havia um profundo pressentimento de que se tornaria diferente assim que cruzasse a fronteira... e a perspectiva não era nada atraente.

Foi nesse instante que uma rajada de vento a envolveu, fazendo-a recordar seus deveres. Aquele não era o momento para ficar parada ali com uma crise de nervos! Margaret engoliu em seco, enquanto os cabelos esvoaçavam em torno de seu rosto. Largou as malas e enfiou os cabelos por dentro da gola do uniforme, em movimentos bruscos. Era um alívio ter alguma coisa com que se irritar... os cabelos despenteados! Ela tornou a pegar as malas e encaminhou-se para o portão, com Ivor logo atrás, demonstrando um cansaço evidente.

 

2

Assim que passou pelo portão, Margaret tornou a largar as malas e vestiu seu próprio manto. Ajeitou também o manto de Ivor, passando-o por cima da guitarra, da melhor forma possível. Sabia que esfriaria muito mais depois que o sol sumisse. Como vinham do calor tropical de Relegan, o frio ali era quase doloroso. Ivor fitou-a com a angústia estampada em cada ruga do rosto. Margaret nunca o vira com uma aparência tão velha, cansada e doente. Ela mordeu o lábio e virou o rosto.

Olhou ao redor, à procura de alguma forma de transporte, talvez uma carroça, ou mesmo um triciclo. Era ali que ficava o ponto de táxis nos outros espaçoportos que ela conhecia. Avistou apenas dois jovens atentos, vestindo túnica e calça, com mantos que desciam abaixo dos joelhos. Observou-os com interesse, mas também com cautela. Os rapazes sustentaram seu olhar com uma franca curiosidade.

- Ei, dona, quer ajuda com suas coisas? - gritou um deles.

O rapaz usou o pidgin da Cidade Comercial, como se pensasse que ela ignorava sua língua, e achasse que falar mais alto pudesse suprir a falta de conhecimento. Margaret conseguiu entender o que ele dizia, embora o sotaque fosse maior do que nas fitas que ouvira. O outro rapaz segurou o primeiro bruscamente e lhe sussurrou alguma coisa, em tom de urgência. Depois se adiantou, fez uma pequena reverência, meio desajeitada.

- Posso servi-la, domna?

O sotaque era mais parecido com as fitas. Margaret sentiu-se um pouco menos desamparada. A reverência a incomodava, assim como a súbita mudança de atitude, mas sentia-se cansada demais para pensar a respeito agora.

- Eu esperava encontrar algum tipo de transporte.

O primeiro rapaz, o mais alto, pareceu achar que isso era muito engraçado. Ela acrescentou:

- Uma carroça, um cavalo, qualquer coisa.

- Não vai encontrar nada disso aqui - respondeu ele, no tom categórico de alguém muito jovem.

Margaret sentiu-se tola e um pouco irritada.

- Posso entender...

O segundo rapaz lançou um olhar furioso para o primeiro.

- Eu poderia ir buscar uma charrete de aluguel, mas é mais fácil ir a pé. A hospedaria fica logo ali.

Ele apontou para a beira da praça. Havia um pequeno grupo de prédios horríveis, a sessenta ou setenta metros de distância. Tinham um estilo arquitetônico terráqueo inconfundível, parecendo fortalezas, intimidativos.

- Não vamos ficar na hospedaria.

Margaret mexia a boca em padrões que pareciam certos, mas os sons saíam com dificuldade. No passado, ela sabia, devia ter sido fluente, ou pelo menos tão fluente quanto uma menina de cinco anos podia ser. Mas, como nem o Velho nem Dio falavam outra coisa que não o Padrão Terráqueo em Thetis, ela quase esquecera o que sabia. Pior ainda, ela compreendera, ao ouvir as gravações, que sua mente parecia resistir a absorver as palavras. Por isso, tinha de fazer um tremendo esforço, como nunca acontecera antes.

- Conhecem o caminho para a Rua da Música?

Havia alguma coisa errada com a formulação da frase, Margaret tinha certeza, mas o rapaz entendeu o significado. Seus olhos se arregalaram um pouco. Ela quase que podia ouvi-lo pensar: por que essas pessoas estão indo para lá? Margaret tratou de reprimir sua imaginação, achando que era demais.

- Claro, domna.

A resposta era polida, mas dava para perceber a grande curiosidade do rapaz.

- Fica longe? Meu companheiro está muito cansado. Viajamos muito. O que era a pura verdade.

- Não muito, para quem não se importa de andar. Longe demais para terráqueos. O que vão fazer na Rua da Música?

Uma rajada de vento entrou pela nuca de Margaret, agitou os cabelos vermelhos soltos, desprendendo os últimos grampos, ao lado das orelhas. Os cabelos esvoaçaram sobre seu rosto, prejudicando a visão. Ela largou as malas no chão para ajeitar os cabelos, enquanto os rapazes observavam, divertidos. Com algumas imprecações que esperava que eles não entendessem, Margaret puxou os cabelos para trás com os dedos gelados. Prendeu-os num nó. Um dos rapazes recolheu os grampos caídos e lhe entregou. Uma das poucas coisas que a madrasta ensinara sobre seu planeta de origem é que andar nas ruas com os cabelos soltos era a marca registrada das prostitutas, um convite a problemas. Era estranho, pensou ela agora, que Dio tivesse lhe dito isso.

- Vamos para a casa de Mestre Everard na Rua da Música. Conhecem o caminho até lá?

- Podemos levá-los.

O oferecimento, do segundo rapaz, foi bastante cortês, mas Margaret sentiu-se apreensiva. Suas malas continham poucas roupas, a maior parte do espaço ocupada por discos compactos e equipamentos de gravação. Num mundo de baixa tecnologia como aquele, constituíam uma riqueza de valor inestimável. Para não mencionar toda a confusão que haveria se fossem roubados. Ela e Ivor eram substituíveis; a reposição dos equipamentos seria um pesadelo de formulários e trâmites burocráticos. O pensamento levou-a a sentir raiva, como acontecia com freqüência, da arrogância e paternalismo terráqueo.

Margaret sabia que se sentia cansada demais para pensar direito. Acabou compreendendo que sua ansiedade era uma decorrência da privação de sono. O que não era tão difícil assim de compreender. Afinal, há dias que não dormia de verdade.

O segundo rapaz era moreno e tinha um rosto que parecia honesto. Mas depois de tantos meses convivendo com não-humanos, Margaret já não confiava mais em sua capacidade de avaliar rostos. E um vigarista, em princípio, tinha um rosto honesto. Era o instrumento fundamental para o exercício de sua profissão. A cada minuto o frio aumentava. Ela não podia mais continuar indecisa. Ivor não seria capaz de suportar, mesmo que ela conseguisse.

- Vá em frente, MacDuff - disse Margaret, com mais vigor do que sentia.

Ela própria pegou as malas, ainda cautelosa, porque os rapazes podiam ser ladrões. Foi o moreno quem respondeu:

- Não conheço os Macduffs. Eu sou MacDoevid. Conhece algum Macduff, Geremy?

- Não. - Geremy acenou com a mão para a bagagem que Margaret carregava. - Quer uma ajuda?

- MacDoevid, hem? - Margaret ignorou o oferecimento por pura teimosia. - Professor, será um parente seu?

O velho forçou um sorriso contrafeito. Vinha encontrando dificuldades para acompanhar a conversa, o que era patente em seu rosto. Não respondeu de imediato, até que entendeu a pergunta. Levava algum tempo para os sons fazerem sentido em sua mente, Margaret sabia.

- Ê bem possível. Os filhos de Davi sempre foram uma tribo que se espalhou por toda parte.

Ivor falou com um sorriso espontâneo, como se achasse aquela situação muito divertida. O rapaz chamado MacDoevid inclinou a cabeça para o lado e observou o velho.

- O que ele disse?

Havia um brilho de interesse em seus olhos, curiosidade e inteligência combinando. Margaret suspirou. Ivor sempre tivera dificuldades para aprender os dialetos locais. Uma das muitas maneiras pelas quais Margaret lhe era valiosa estava em sua capacidade de aprender novas línguas num instante. Ela sabia que aprendia apenas o simples e básico. As fitas de ensino de línguas só ofereciam as frases típicas que os arrogantes turistas terráqueos consideravam importante conhecer: Onde fica o espaçoporto? Quanto custa isto? Além de outras perguntas igualmente frívolas, mas universais. Apesar disso, ela conseguira alcançar um conhecimento rudimentar da língua darkoviana comum. Ivor arrumara um disco com complexos termos musicais, mas ela ainda não tivera a oportunidade de ouvir, por causa da pressa com que haviam partido. Além do mais, os termos musicais não teriam qualquer utilidade com aqueles rapazes. Margaret respirou fundo, disciplinando-se a andar devagar, embora o vento frio ao pôr-do-sol a deixasse com vontade de se apressar.

- Permitam-me fazer a apresentação - disse ela, escolhendo as palavras com todo o cuidado. - Professor Davidson, este é o jovem MacDoevid. Os nomes são parecidos.

Margaret enfatizou os sons vogais, para que o rapaz pudesse entender melhor. Foi recompensada por um aceno de cabeça e um brilho nos olhos, indicando que ele entendera. Era evidente que se tratava de um rapaz inteligente.

- Ah, espere só até eu contar a meu pai! - exclamou o rapaz. - Mas o que é "professor"?

Margaret compreendeu que, por insuficiência de vocabulário, usara o termo terráqueo. Pelo pouco que apreendera até agora, não encontrara nenhuma referência a uma universidade darkoviana. Por isso, não tinha um termo equivalente para usar. Seu cérebro cansado esquadrinhou palavras por um momento, antes de perceber que a resposta era muito mais simples do que imaginara a princípio.

- Ele é... um mestre. De música.

Ela sentiu-se satisfeita com a resposta. A informação ao mesmo tempo respondia à pergunta e explicava por que iam para a Rua da Música. Ivor fitou-a com uma expressão de fadiga e desamparo. Jamais fora capaz de dominar o pidgin. Passaria semanas balbuciando as coisas como um bebê aprendendo a falar, esperando que Margaret traduzisse tudo. Até que certa manhã despertaria falando a língua quase como um nativo. Começaria então a ter conversas intermináveis, para compensar. Mas ele não permanecerá aqui por tempo suficiente para que isso aconteça.

Margaret repreendeu-se no mesmo instante. De onde viera esse pensamento? Não acreditava em premonições; tais convicções eram ilógicas, não condiziam com uma pessoa estudiosa. Apenas sentia-se exausta e preocupada com seu companheiro de viagem. E também sentia frio e fome, o que tornava seus pensamentos ainda mais sombrios. Passariam um ano ou mais em Darkover. Ivor logo estaria bem, assim que chegassem à Rua da Música. Se ao menos ela fosse capaz de se livrar do sentimento de medo que a vinha corroendo há semanas... Se fosse capaz de entrar em contato com Dio, tinha certeza de que não se sentiria tão apreensiva. Por que a madrasta não respondera a nenhum dos seus caríssimos telefaxes? Dio sempre respondera o mais depressa possível antes. E se tivesse acontecido alguma coisa com ela... ou com o Velho? Pare de criar problemas que não existem, disse Margaret a si mesma, furiosa.

Eles deixaram para trás o muro em torno dos prédios do espaçoporto. Passaram agora por uma estrutura de pedra cinza que deixou Margaret toda arrepiada quando a contemplou. Era quadrada, silenciosa e assustadora, com todas as janelas para a rua fechadas.

- O que é isso? Uma prisão?

Mesmo enquanto falava, ela já sabia que não era isso. Havia alguma coisa extremamente familiar e vil naquele prédio.

- Não. Esse é o lugar em que metem as crianças extras. Os terráqueos são muito estranhos. Levam as crianças para lá e vão embora.

Foi Geremy quem respondeu, a voz jovem vibrando de condenação.

- O que ele está querendo dizer, domna, é que esse prédio é o orfanato - acrescentou MacDoevid, a voz um pouco mais profunda que a de seu amigo, na crescente escuridão.

Margaret podia ver agora um letreiro iluminado, que dizia: Orfanato John Reade Para os Filhos de Espaçonautas. Mas claro! Ela já vivera por trás daquelas janelas fechadas, quando era pequena, sozinha e desamparada. Mas o pai não era um espaçonauta. Era um senador imperial. E nunca fora um espaçonauta, até onde ela sabia. Portanto, não fazia sentido. Por que ela nunca fora capaz de se lembrar antes? Seu estômago se contraiu, teve de engolir em seco várias vezes. Apesar do ar frio, sentiu o suor brotar na testa e debaixo dos braços. Por que o Velho e Dio haviam sido tão reservados?

Pare com isso! Deve haver motivos, provavelmente bons motivos, para que nunca me contassem qualquer coisa sobre este mundo. E nunca pensaram que eu voltaria a Darkover, não é mesmo? Nem sequer sabem que estou aqui neste momento, a menos que tenham recebido minha última mensagem. Talvez pensem que continuo enclausurada na universidade, muito feliz, ou em algum outro lugar, realizando pesquisas musicais. E talvez nem imaginem que preciso deles agora. O Velho anda ocupado demais com o Senado, enquanto Dio está... não, não posso ficar imaginando coisas. Dio vai muito bem. Apesar da insistência lógica de que a madrasta estava muito bem, Margaret continuou a experimentar um desagradável pressentimento de que havia alguma coisa errada... e não gostou nem um pouco.

- Mas que idiotice! - MacDoevid deu um tapa de leve no ombro do outro rapaz. - Crianças extras! Pare de se mostrar ou contarei à tia como foi grosseiro. Depois do castigo, ela não o deixará mais vir receber as espaçonaves.

- Vocês vêm aqui todos os dias? - perguntou Margaret, tão exausta e desorientada para tentar encontrar algum sentido no aparte.

- Não, domna, apenas quando há uma espaçonave de passageiros. Muitas espaçonaves pousam aqui, mas a maioria não é de passageiros.

O cérebro cansado de Margaret demorou um momento para registrar que ele se referia a espaçonaves de carga e em trânsito, que eram visitantes mais comuns e freqüentes em Darkover. O planeta tinha uma posição ideal como ponto de escala, mas a maioria das pessoas que por ali passava nunca deixava a área do espaçoporto.

- Ganhamos dinheiro para carregar bagagem - explicou ele, gesticulando sugestivo para as malas que Margaret, obstinada, ainda insistia em carregar. - Só podem fazer isso pessoas que o diretor conhece. Ele avisa quando alguém vai desembarcar aqui, porque nos conhece e sabe que somos de confiança. Os estranhos podem ser ladrões.

Era como se o rapaz soubesse que ela relutava em entregar sua carga justamente por causa desse medo. Margaret tinha algum dinheiro local na bolsa na cintura. Retirara da agência na universidade da casa de câmbio Rothschild & Tanaka toda a sua reserva da moeda usada em Cottman. Era o equivalente a cerca de doze créditos padrões. O quanto isso representava na economia local era algo que ninguém lá fora sabia. Margaret tentou concentrar o cérebro atordoado em canais que pudessem ser úteis. O que deveria dar aos dois rapazes por servirem como guias, sempre presumindo que não seriam levados para algum beco escuro e roubados. Ela tratou de descartar esse pensamento como indigno. E concluiu que Geremy com certeza não teria a menor hesitação em lhe dizer se fosse sovina demais. Ele parecia muito espontâneo. Margaret não podia deixar de invejar sua segurança.

À frente, ela avistou outro muro, mais baixo do que o anterior. Parecia separar o abominável orfanato do resto da cidade. Passaram sob uma arcada em que se refestelava confortável um guarda, num uniforme de couro preto. Ele acenou para os rapazes, como se fossem conhecidos, lançou para Margaret e o professor não mais que um olhar indiferente. Ela calculou que o guarda sempre via todos os poucos turistas que passavam por ali. Depois da arcada, foram andando entre casas de pedra e ruas que pareciam se encontrar nos ângulos mais extravagantes. Não era de admirar que não tivessem veículos motorizados. Aquelas ruas eram estreitas demais para qualquer carro terráqueo.

O frio era ainda mais intenso agora. Parecia penetrar nos ossos de Margaret, mesmo através do manto. O agente um tanto rabugento no serviço de viagens da universidade informara relutante que era primavera em Cottman IV, o que transmitira a Margaret a noção de um clima quente e fragrante, não aquela realidade gelada. Ela invejou as confortáveis túnicas de lã dos rapazes. Quando eu vivia aqui, devia usar esse tipo de lã, além de peles. Acho que tinha uma túnica de pele quando era muito pequena... engraçado nunca ter me lembrado disso antes. Era cor de ferrugem, a mesma cor dos cabelos da minha mãe.

Margaret sacudiu-se. Era muito estranho pensar que a túnica tinha a mesma cor dos cabelos da mãe. A memória era esquiva, tênue e angustiante. Ela não foi capaz de conter um tremor. Depois, um pequeno sorriso contraiu seus lábios por um segundo. Como gostaria de ter uma túnica de pele agora! Margaret tentou dissipar a inquietação que a lembrança da túnica lhe trouxera. Em vez disso, pensou num comentário que Dio fizera, anos antes:

- Os terráqueos podem voar entre as estrelas, mas ainda não foram capazes de inventar qualquer fibra sintética que seja tão confortável quanto lã ou seda. E como eu gostaria que eles parassem de tentar!

Isso fez com que se sentisse melhor, apesar do tecido do uniforme que aderia ao corpo. Em teoria, deveria ser confortável com qualquer tempo ou em qualquer clima. Como acontecia com muitas teorias, no entanto, funcionava melhor no laboratório do que no campo. Era típico da paixão terráquea pela tecnologia e seu desdém pela natureza. O traje para todos os climas era um conceito, como o "tamanho único que se ajusta a todo mundo", provavelmente inventado por algum idiota que nunca deixara o ambiente de um prédio terráqueo com ar condicionado. Apesar da fadiga, Margaret já começava a se sentir melhor. Havia um elemento bastante satisfatório em escarnecer mentalmente dos terráqueos e sua afeição pelo que não era natural.

- Gostaria de me ajudar amanhã, Mestre MacDoevid? Seria depois da escola.

Os dois olharam para ela. Margaret compreendeu que tinham o mesmo sobrenome. Não foi o moreno quem respondeu, mas o louro e mais alto. Ele tinha cabelos quase vermelhos à luz das tochas. Exibiu um sorriso tímido e murmurou:

- Meu pai é que é Mestre MacDoevid, domna. Sou apenas Geremy. E não vou à escola. Mas ficaria honrado em servi-la.

Ele fitou-a à claridade que se derramava de uma casa de vinhos próxima. Margaret olhou para a placa na porta. Mostrava o que parecia ser uma árvore, com uma coroa em cima. Até aquele momento, o verdadeiro significado da expressão "pré-letrada", que era como as escassas informações descreviam a cultura darkoviana, não fora absorvido por sua mente. Uma coisa era saber de algo em termos intelectuais, outra muito diferente era conhecer a realidade.

Margaret ficou um tanto surpresa consigo mesma, ao compreender que inconscientemente presumira que os jovens ali freqüentavam a escola durante o dia, embora soubesse que isso não acontecia em muitos planetas. Ela se tornara uma acadêmica. Apesar de ter realizado muito trabalho de campo com Ivor durante os últimos dez anos, ainda pensava nas coisas como uma pessoa da universidade, não uma mulher de Thetis ou Darkover. E, por algum motivo, imaginara que o mundo de seu nascimento seria mais como a universidade ou Thetis. Era uma descoberta profundamente desconcertante. Margaret compreendeu que teria de passar algum tempo repensando as coisas.

Um pensamento indefinido a perturbava. Ela fez uma pausa, para tentar determinar o que era. Levou um momento para perceber que era o título honorífico que o rapaz usava com uma certa persistência: domna. Aprendera que deveria ser tratada de mestra, o equivalente a "senhora" ou "senhorita". Mas o termo usado por Geremy tinha outro significado, que podia ser mais ou menos traduzido como "Nobre Dama". Por que ele a chamava assim? E por que o tratamento lhe despertava um sentimento peculiar, quase como se pudesse lembrar de alguém que era chamada por esse título? Sentia o cérebro cansado demais para procurar a resposta.

- Preciso comprar algumas roupas... bem quentes, para mim e para meu professor. Sabe onde posso encontrar?

O rapaz sorriu.

- Claro. Somos ambos da Rua da Agulha, o que significa que sabemos muito de roupas. - Ele suspirou. - Nossos pais estão no ofício. Posso levá-la até a casa de MacEwan, que é o melhor alfaiate da Rua da Agulha. Ele terá o maior orgulho em lhe fazer algumas roupas, domna.

- Ele também é nosso tio - acrescentou o outro rapaz, tão baixinho que Margaret quase não ouviu.

- Um bom comerciante sempre mantém os negócios em família quando é possível - comentou ela, calmamente.

Margaret não conseguia entender o rapaz moreno, que se mostrava ao mesmo tempo muito curioso e antagônico. Geremy tinha uma atitude cordial, o que já não acontecia com seu primo... e devia ser esse o relacionamento entre os dois, se ambos eram sobrinhos do tal MacEwan. Mas ela estava cansada demais para pensar direito. Quase que podia sentir as emoções do rapaz, como o vento ardendo em sua pele, mas não dava para adivinhar os motivos. O rosto astuto, o nariz afilado e os olhos penetrantes eram cautelosos e esperançosos ao mesmo tempo. Talvez alguma mulher de sua família tivesse sido seduzida ou desonrada por um terráqueo. Era uma história que se repetia com uma freqüência absurda nos mundos humanos. Os terráqueos eram famosos por seu desrespeito aos costumes locais. Bebês in-desejados ou sem pai eram muito comuns por todo o território do antigo Império. Onde quer que pudessem acasalar-se com outras mulheres, os terráqueos não hesitavam. E os mundos de baixa tecnologia não se destacavam pelo controle da natalidade.

- Geremy é um puxa-saco - resmungou o rapaz moreno.

- E Ethan gosta de discutir. Provavelmente vai acabar se tornando um juiz.

- Essa não! - protestou Ethan. - Eu vou ser...

Ele parou de falar abruptamente. Margaret percebeu o profundo anseio em seus olhos. Já vira essa expressão com freqüência nas ocasiões em que trabalhara como professora. Sabia que envolvia uma ambição tão preciosa que até mesmo falar a respeito com uma pessoa estranha era angustiante.

- Ethan é aprendiz da guilda dos tintureiros, mas o que ele quer realmente é ser um espaçonauta.

Geremy recebeu um violento soco no ombro por essa revelação. Margaret não riu. Era evidente, pelo rosto de Ethan, que ele esperava ouvir suas gargalhadas. Eram bons rapazes, pensou ela, o tipo de irmãos que gostaria de ter, se o Velho e Dio tivessem outras crianças. Embora não tivesse o menor desejo pessoal de viajar entre as estrelas, Margaret compreendia que o rapaz queria fazer outra coisa que não seguir a tradição da família. Jamais imaginara quando pequena que acabaria recolhendo criações musicais em mundos de que nunca ouvira falar. Sabia, no entanto, que nunca desejara ser mãe ou esposa.

Margaret sabia também que ela própria, quando tinha a idade presumida de Geremy, teria preferido morrer em vez de admitir sua ambição secreta de se tornar uma famosa bailarina ou atriz. Podia rir agora de seu eu mais jovem, mas nunca riria daquele rapaz tão solene.

- É muito difícil se tornar um espaçonauta - comentou ela, muito séria. - A primeira coisa que se deve fazer nesse sentido é conseguir uma boa educação, com uma atenção especial para a matemática.

Ethan estudou-a com uma cautela óbvia, avaliando-a como ela o avaliara pouco antes. Ele pareceu concluir que Margaret o levava a sério, o que fez com que se empertigasse mais um pouco. Uma lua surgia no céu, projetando sombras escuras sob seus olhos. Parecia uma ametista contra o céu escuro. Ela tentou recordar seu nome. O cérebro cansado recusou-se a cooperar. Geremy estudava-a com uma expressão pensativa.

- Você é Terranan?

- Não diga bobagem - interveio Ethan. - Qualquer um pode perceber que ela não é Terranan.

- E não sou mesmo - informou Margaret. - Venho de um mundo chamado Thetis. É um lugar adorável, com muitas cascatas e imensos oceanos. Vivemos em ilhas nas quais o vento sopra quente, trazendo o cheiro da maresia e o perfume das flores.

Margaret sentiu uma súbita saudade de Thetis. Surpreendeu-a por sua intensidade. Descobriu-se a pensar no pai, contemplando as ondas com uma taça na única mão que lhe restava. Em sua mente, viu os olhos escuros do senador se desviarem do mar para observarem-na, quase como se sentisse sua presença através dos anos-luz que os separavam. Ela sacudiu a cabeça, de volta ao presente. Nascera em Darkover, era verdade, mas o mundo de seu coração ainda era Thetis.

- Nem mesmo sei qual é a estrela neste céu. Mas já visitei muitos mundos. Sou uma música.

- Esteve mesmo em vários planetas? Por favor, deixe-me carregar sua bagagem. Será que... será que se importaria de me contar tudo?

Ethan sorriu, numa repentina transformação, o rosto radiante no interesse. Margaret entregou as malas, esquecendo os temores anteriores em sua exaustão. Conhecia aquela ânsia de viajar. Às vezes parecia ser um impulso universal em todas as crianças da Terra. Ela própria o experimentava, apesar de sua aversão à viagem em si. Pôs-se a falar, a princípio hesitante, procurando as palavras certas. Até que de repente ocorreu um salto mental, como se ela descobrisse um inesperado reservatório de linguagem à espreita nos recessos de sua mente, como se alguma barreira fosse rompida. Era espantoso, porque passou a usar palavras que não constavam do vocabulário restrito que aprendera nas gravações. Mas não eram tanto as palavras que a impressionavam, e sim o ritmo, que parecia fluir de seus lábios com a maior facilidade agora.

Depois de alguns minutos, Margaret compreendeu que possuía um vocabulário maior do que poderia ser explicado por viver em Darkover durante seus primeiros cinco anos de vida. Aquele não era o léxico de uma criança, mas sim o de uma pessoa adulta. Chegou à conclusão de que devia ter ouvido Dio e o Velho conversando durante a noite, enquanto dormia, já que as paredes das casas em Thetis eram finas e leves, para deixar as brisas passarem, sussurrando. Fora assim que aprendera o doce ritmo da música. Era bem provável que, se tivesse oportunidade de usá-la antes, estaria falando como uma pega, a ave falante. Pega... Era um dos apelidos que Ivor costumava usar, para zombar de sua solenidade quando se encontrava deprimida.

Todos esses pensamentos afloraram em sua mente, enquanto falava de Thetis, do mundo universitário de Coronis, onde estudara, de Rigel Nove, e o Congresso da Confederação, onde seu pai ajudava a formular as leis que regiam a Federação Terráquea. Falou também sobre Relegan, o último planeta que visitara em companhia de Ivor, e sobre qualquer outra coisa que aflorou em sua mente cansada.

O rapaz se mostrava tão sério que Margaret sequer tentou "inventar". Ele fez várias perguntas sobre metais e mecânica. Ela sentiu-se contente, pela primeira vez, por "Tecnologia Básica das Grandes Espaçonaves" ser uma cadeira obrigatória no primeiro ano de todos os cursos. A Federação inteira guarnecia suas espaçonaves ao alimentar a curiosidade de jovens como Ethan. Margaret não disse que ele nunca poderia deixar seu mundo sem instrumentos básicos de leitura e escrita, que jamais lhe seriam disponíveis, a julgar pelas placas simples na frente das lojas.

As ruas pareciam um pouco mais largas agora, as estruturas de pedras. As portas de madeira eram pintadas com cores brilhantes. Havia por toda parte um cheiro de pedra úmida, esterco de animais e lixo. Passaram por um restaurante. O cheiro de comida era quase irresistível. Margaret constatou que sentia muita fome agora. Ainda por cima, o cheiro era familiar. Quase que podia dar o nome do prato, embora não o comesse desde que era bem pequena. Ora, diziam que o cérebro médio - e o sentido do olfato era uma parte bastante primitiva dele - jamais esquecia qualquer coisa. Talvez fosse verdade.

Margaret ignorou a fome e o cansaço. Forçou-se a continuar a distrair o rapaz... ou instruí-lo. O Professor Davidson quase que cambaleava a seu lado, ouvindo sem muita atenção. Geremy conseguira de alguma forma persuadi-lo a entregar sua guitarra, e agora lhe emprestava seu braço também.

- Será que ainda falta muito, Margaret? Estou começando a ficar um pouco sem fôlego.

- Não sei. Estamos perto da Rua da Música, Ethan?

- Só mais uma rua, vai domna.

Era um novo título honorífico. Margaret sabia vagamente que significava algo como "Altamente Honrada Dama". Era o que devia ser usado para uma Princesa ou Guardiã. Mas o que é uma Guardiã? Ela sentiu que a resposta se achava à beira de seu consciente, uma coisa de vital importância que não podia captar, em sua exaustão quase total.

- Só mais um pouco, Ivor.

Margaret falou em Padrão Terráqueo para que o professor não tivesse dificuldade para entender. Virou-se em seguida para Geremy e acrescentou, em seu darkoviano muito melhorado, porque uma chuva fina e gelada começara a cair nos últimos minutos:

- Será ótimo sair logo do frio e da chuva. Passamos o último ano num mundo muito quente, e é difícil suportar a diferença, entende?

Este lugar parece mais frio do que os infernos de Zandru... Ele tem açoites ou algo parecido, não é?

As lembranças nebulosas eram irritantes agora. Margaret não podia mais distinguir entre o que era recordação e o que aprendera com os discos de linguagem e cultura. Desistiu de tentar e desejou que a mente a deixasse em paz até que pudesse comer e dormir.

- Parece muito tarde. Seus pais não ficarão preocupados?

Os rapazes pareciam bem jovens, e as sombras escuras das ruas davam a impressão de estar repletas de perigos em potencial.

- Não. A Rua do Pano, onde moro, fica a poucos minutos daqui. E só tenho de voltar para casa uma hora depois do pôr-do-sol.

- E você, Ethan?

- Moro ao lado de Geremy. Nossos pais são irmãos. Todos já conhecem os nomes de todos aqui. Só falta o seu, domna.

-Tem razão. Esqueci de me apresentar. Meu nome é Margaret Alton.

Ela enunciou seu sobrenome como fosse escrito Elton, da maneira como era pronunciado na universidade, como se acostumara a dizê-lo por muitos anos.

- Alton... é um bom nome e antigo.

Ethan pronunciou-o da mesma maneira que o senador. Margaret experimentou uma estranha emoção ao ouvi-lo corretamente. O rapaz também parecia impressionado. Ela especulou se Ethan sabia que seu pai era o senador de Darkover. Parecia bem provável. Mas ela sentia-se cansada demais para especular a respeito.

Eu sabia que ela era uma comynara... tinha certeza!

As palavras penetraram na mente de Margaret como uma alfinetada, deixando-a atordoada. Esse tipo de coisa já lhe acontecera algumas vezes, em particular quando se sentia cansada, mas nunca com tanta nitidez e intensidade. Ela olhou para os dois rapazes, mas não pôde determinar qual dos dois pensara aquelas palavras. Refletiu que isso não tinha importância.

- Falta muito?

- Não - respondeu Ethan. - É aqui.

Eles viraram a esquina para uma rua estreita, em que havia placas com desenhos de vários instrumentos musicais penduradas na frente de quase todas as casas.

- A Rua dos Músicos.

O rapaz fez uma pequena reverência e acenou com a mão, como se fosse um mágico. Ele se mostrava tão satisfeito consigo mesmo que Margaret, apesar da exaustão, não pôde deixar de rir... e Ethan riu também.

 

3

Havia casas em ambos os lados da rua. Na maioria das portas havia desenhos de uma variedade surpreendente de instrumentos musicais. Margaret identificou uma espécie de harpa, várias flautas de madeira e um instrumento que tinha uma vaga semelhança com um violino. O formato era diferente, mais alongado, o suficiente para que ela tivesse certeza de que o som seria sutilmente diferente de qualquer coisa que ela conhecia. A rua era mal iluminada, por tochas e pela lua, mas dava para ver aparas de madeira e fragmentos diversos espalhados sobre as pedras arredondadas do calçamento. Num clima menos úmido, haveria um terrível risco de incêndio, mas ali Margaret duvidava de que os detritos jamais pudessem ficar bastante secos para se tornarem perigosos.

O cheiro era bom. Os pedaços de madeira exalavam fragrâncias agradáveis, a neblina que umedecia o ar era limpa, o aroma de comida no fogo saía de trás das portas pintadas. Eram odores tão familiares, depois de dias na espaçonave, que Margaret quase chorou de prazer. Não podia se lembrar de jamais ter reagido com tanta intensidade a qualquer chegada anterior a outro planeta. E isso a deixou nervosa. Não era um sentimento desagradável, mas inquietante, como se houvesse memórias pairando à beira de seu consciente, tênues imagens que não podia captar.

De trás de uma porta, ou talvez da enorme janela de veneziana ao lado, vinha o som de um grupo ensaiando com instrumentos de corda. Alguém tocou uma nota errada; Margaret estremeceu. Como em resposta, uma voz de baixo protestou, furiosa.

- Esse é Mestre Rodrigo - informou Geremy, o formalismo anterior esquecido por completo agora. - É autoritário demais, mas dizem que será o sucessor de Mestre Everard, porque é melhor músico que o filho de Everard, Erald. Ele é mesmo muito bom. Ouvi-o cantar no Solstício do Inverno e fiquei todo arrepiado. É quase o melhor cantor de Thendara, exceto por Ellynyn Ardais... e Ellynyn é comyn e emmasca., embora tenha uma voz maravilhosa.

Margaret considerou essas palavras. Não constavam das fitas da Linguagem Comercial da Cidade de Thendara, mas ela tinha certeza de que sabia o que emmasca significava. Já ouvira os famosos castrati do mundo do prazer de Vainwal e quase podia desejar que a prática fosse legal em outros mundos. Tinham a reputação de serem as melhores vozes do Império. A alteração seria legal em Darkover? Ou será que nasciam assim, o que quer que fossem? O outro termo permanecia um mistério; já o conhecia, mas alguma coisa parecia bloquear sua capacidade de compreender o significado.

E foi nesse instante que ela percebeu que Ivor não se encontrava mais ao seu lado. Olhou ao redor. O professor fora se postar sob uma das placas da rua, e estudava o desenho de um violino de estranho formato. Margaret balançou a cabeça, foi trazê-lo de volta ao meio da rua. Ivor murmurava feliz para si mesmo, fazendo perguntas que respondia quase que no mesmo instante. Ao alcançarem os rapazes, que esperavam pacientes, Margaret perguntou:

- Quer dizer que a posição de mestre é em geral transmitida de pai para filho?

O cérebro podia estar cansado, mas parecia que a língua funcionava no piloto automático, continuando a fazer perguntas. Os rapazes trocaram um olhar e deram de ombros. Foi Ethan quem respondeu:

- Às vezes. Depende da habilidade ou falta de habilidade do filho. Os MacArdis e os MacArans são mestres na Guilda da Música há muito tempo. Assim como os MacEwans e os MacCalls são mestres alfaiates, enquanto os MacDoevids são os melhores tecelões de Thendara. Erald MacArdis não vai se importar, porque a coisa de que mais gosta é vaguear por toda parte e registrar as canções que ouve. Minha irmã Becca casou com o irmão de Rodrigo. Por isso, ouço muitos comentários sobre o círculo musical quando ela nos visita. Faz alguma coisa parecida, domna?

- Faço exatamente isso. Mas, se me perdoa por perguntar... não sei o que é ou não grosseria aqui... sua família não preferia que Becca casasse na guilda das roupas? Por que ela casou com alguém de fora?

- Porque ela canta como um passarinho. E se atrapalha toda com um tear! Até eu sei tecer melhor do que ela... e já sabia quando tinha apenas dez anos. - Gostaria que não fosse assim, para poder fazer o que eu quero... mas como diz mamãe, nem sempre fazemos o que queremos! - Mas ouvi-la cantar... é sempre um grande prazer!

- Neste caso, espero ter a oportunidade de ouvi-la - comentou Margaret.

O rapaz sorriu para ela, à luz bruxuleante das tochas. Ele se tornava muito bonito quando sorria. E a emoção por trás de seus pensamentos era muito forte... embora provavelmente Margaret apenas estivesse imaginando tudo.

- O pai deixou-a casar fora da guilda, quando Becca ameaçou fugir de casa e se juntar às Renunciantes, se ele não permitisse.

Margaret especulou que tipo de ameaça era essa, o que eram as Renunciantes, e a que renunciavam. Mas não fez a pergunta que aflorou a seus lábios. Ivor começava a cambalear de novo, o corpo tremia, perdido o interesse anterior pelo estranho instrumento musical.

- Mestre Everard mora aqui perto?

- Bem ali.

Geremy seguiu na frente para a casa indicada, no meio da rua estreita. Era um pouco maior do que as demais casas, mas não oferecia qualquer outra indicação à primeira vista de ser diferente. A porta tinha o desenho de uma harpa estilizada e outro de uma gaita de foles. Geremy largou as malas no chão e subiu os três degraus. Bateu na porta. Depois de uma breve espera, uma mulher bem agasalhada, na casa dos cinqüenta anos, abriu a porta e espiou, contraindo os olhos.

- Ah, é você, meu jovem. O que deseja agora?

- Trouxe os hóspedes do espaçoporto. São pessoas importantes que vieram das estrelas. - Geremy estufou o peito estreito numa demonstração de orgulho. - Onde está Mestre Everard, Anya?

- Como? Agora? Tem certeza? - Ela olhou para Margaret e balançou a cabeça. - Daqui a pouco o velho vai esquecer o próprio nome! Mas entrem, entrem! Que confusão! Eu só esperava vocês nos próximos dez dias. Mas acho que posso dar um jeito.

Anya pareceu em dúvida por um momento, mas logo se lembrou das boas maneiras.

- Vamos, saiam logo do frio, mestra e... não é Mestre Doevidson, não é mesmo?

Ela deu ao nome a pronúncia local, em vez da terráquea.

- Não. Sou sua assistente.

Margaret olhou ao redor. Descobriu que Ivor fora para o outro lado da rua, onde examinava o instrumento pintado na janela fechada de uma loja. Sua respiração parecia um tanto ruidosa. Ela torceu para que o velho professor não pegasse um resfriado... ou algo pior. Ivor parecia tão pequeno e frágil à luz das tochas que Margaret sentiu um aperto no coração.

- Ela é Margaret Alton, Anya - informou Geremy, obviamente sentindo que devia fazer as apresentações.

Margaret ouviu as palavras quando conduzia Ivor através da rua, gentilmente. Ao levantar os olhos, percebeu que Anya também se mostrava surpresa com seu nome. E muito curiosa... como acontecera com os rapazes há poucos minutos. Não dera maior importância antes, mas agora, ao recordar a reação dos dois, especulou o que poderia significar, se é que alguma coisa. Um nome bom e antigo, dissera Ethan. Devia ser um patronímico comum, com Altons espalhados por toda parte.

Mas poderia pensar nessas coisas mais tarde. Agora, ela se preocupou apenas em levar Ivor para a claridade e o calor da casa. Ele se apoiava em seu braço.

- Vamos entrar. Está muito frio para continuar na rua examinando as placas.

- É verdade, minha cara. Tem toda razão... mas será que os desenhos são acurados, ou uma representação estilizada? Lembra que em Delphin vimos os desenhos das trompas sagradas, mas os instrumentos reais eram muito diferentes? Não posso acreditar que haja aberturas de efes como estas.

- Não vamos discutir a respeito esta noite. - Margaret levou-o para dentro da casa. - As aberturas podem esperar até amanhã.

Como uma criança exausta, Ivor desvencilhou-se de sua mão, e voltou aos degraus para olhar de novo.

- Mas nunca vi nada parecido. Que tipo de som eles conseguem com aberturas em forma de estrela? E que tipo de madeira...?

Margaret teve vontade de gritar de cansaço e impaciência. Quase perdeu o controle ao segurar o manto do velho professor e dar um puxão brusco.

- Já chega por esta noite! Entre logo, Ivor. Estou com frio, você também. Vai acabar doente se continuar lá fora, e depois não poderá fazer mais nada.

- Moira! Raimon! - gritou Anya, jovial. - Venham buscar a bagagem! Temos hóspedes!

Ela dava a impressão de que era de alguma forma culpada pela ausência das pessoas que chamava. Margaret teria rido se não se sentisse tão cansada. O pequeno alpendre estava um pouco apertado, com Geremy, Ethan e as malas, mas tudo logo se resolveu. Os rapazes entregaram a bagagem ao homem que apareceu - devia ser Raimon - e Ethan pôs a preciosa guitarra de Ivor dentro da casa, ao lado da porta, fora da passagem.

Margaret abriu a bolsa no cinto. Tirou duas moedas prateadas e entregou uma a cada rapaz. Eles trocaram um olhar, aturdidos, e Geremy disse:

- Domna, isto é demais.

Ela sentia-se cansada demais para discutir.

- Não importa. Vocês voltarão amanhã para me levar a seu tio que é um mestre alfaiate. Talvez queira que me levem também a outros lugares. Posso esperá-los depois da refeição do meio-dia?

- Claro. Ambos estaremos aqui. - Geremy balançou a cabeça em admiração. - Tudo o que precisar, nós a ajudaremos a encontrar. O irmão de Ethan trabalha para o melhor fabricante de botas de Thendara e... É melhor falar sobre isso depois, não é mesmo?

Ele desceu os degraus. O outro rapaz esperava lá embaixo. Enquanto os dois se afastavam pela rua, Margaret ouviu Geremy comentar:

- Está vendo? Eu disse que ela era comynara...

Aquela palavra de novo! Ela entrou na casa e fechou a porta. Encostou na madeira, exausta. Empurrou o capuz para trás. Os cabelos vermelhos caíram, puxados pelo tecido úmido, grudando nas faces e no pescoço. Seu crânio latejava com uma terrível dor de cabeça. O maravilhoso aroma de comida era suficiente para deixá-la ansiosa de fome. Ao mesmo tempo, tinha certeza de que nunca se sentira tão cansada em toda a sua vida.

Anya, roliça como uma pomba, e os outros criados estavam parados, olhando espantados para ela, como se tivesse de repente desenvolvido uma segunda cabeça. Margaret fez um esforço para sorrir, preparando-se para pedir alguma coisa para comer, assim como um lugar em que pudesse dormir, o mais depressa possível.

Margaret espreguiçou-se numa cama bastante grande para acomodar três ou quatro pessoas com todo o conforto, exultante com tanto luxo. Depois de vários dias na poltrona estreita da espaçonave, ou em cubículos nas escalas, era mesmo sensacional. E era muito maior do que a cama em seus aposentos na universidade. Os terráqueos podiam considerar que Darkover era um planeta atrasado, mas em questão de boas camas ninguém podia deixar de reconhecer que eram muito civilizados. Ela olhou pela pequena janela. A primeira claridade vermelha do sol nascente a despertara, roçando em suas pálpebras como uma suave carícia. Uma das poucas coisas que o pai lhe contara sobre Darkover, ela refletiu agora, era mesmo acurada. Jamais acreditara antes, mas era verdade: o grande sol vermelho de Darkover era mesmo da cor de sangue. O "sol sangrento" era descritivo, não uma hipérbole poética.

Ela empenhou-se agora em reconstituir os acontecimentos da noite anterior. Fora servido um ensopado quente, de uma carne que parecia de veado, acompanhado por um pão duro, obviamente de fabricação doméstica. Margaret comera sem poder saborear direito, porque nos intervalos entre as mordidas tinha de servir como intérprete para Ivor e Mestre Everard MacArdis. O professor memorizara todos os termos musicais em suas gravações, mas tinha uma pronúncia horrível. Às vezes Margaret tinha a maior dificuldade para entender o que ele dizia. Ivor não tinha o tom musical natural da dicção darkoviana - o que iria adquirir em poucas semanas - e sua pronúncia do Padrão Terráqueo era lamentável.

Muitas palavras continuavam a aflorar na mente de Margaret, coisas que deveria ter aprendido quando era criança, ou ouvira os pais dizerem através das paredes finas de sua casa. Mas podiam se misturar de tal forma que às vezes ela precisava parar no meio de uma frase por vários segundos, antes de poder continuar. Mais ainda, sentia-se um pouco perturbada pelas circunstâncias em que encontrava palavras que "conhecia", mas cujo significado lhe escapava. Por que teria um bloqueio mental para algumas palavras mas não para outras?

Fora extenuante a experiência de ser a parte intermediária numa conversa a três, com dois idosos músicos, ansiosos em trocar informações. Margaret até que ficara contente, quando Ivor começara a cabecear de sono. Mestre Everard pedira desculpas por seu entusiasmo, antes de chamar Anya para levá-los a seus aposentos. Margaret gostara à primeira vista do mestre de música, sentindo-se à vontade em sua casa.

Ela deixou que as lembranças agradáveis da noite passada se desvanecessem, e voltou a se concentrar em seu problema com a língua. Claro que a conhecia, e compreendia quase tudo. Devia outrora ter sido fluente... o que era compreensível, porque fora sua primeira língua. Sabia que o casta se originava do gaélico, espanhol e inglês... mas não era mais parecido com essas línguas do que o inglês com o antigo germânico.

Outra memória se enroscava no fundo de sua mente, como uma serpente enrolada. Era um tanto vaga, além de desagradável. Tinha alguma relação com aquele prédio horrível, o Orfanato John Reade. Ela se arrepiou à recordação. Não era um mau lugar, apenas muito rigoroso e frio. E ninguém devia falar o darkoviano dentro de suas paredes. A diretora - Margaret não se lembrava de seu nome, apenas que era muito rígida e exigente - era intransigente nesse ponto. Lavava a boca das crianças com sabão, se as ouvia falando casta ou qualquer outro dialeto. Só deveriam falar o Padrão Terráqueo, nada mais.

Ela riu para si mesma. Devia ser essa a origem de sua dificuldade... uma espécie de aversão à língua de sua infância. Margaret quase que podia sentir o gosto do sabão. Só que não era mais uma criança, e a diretora há muito que devia ter deixado o orfanato, morta ou aposentada. Satisfeita por ter resolvido o enigma, ela deixou sua mente vaguear por outros assuntos mais agradáveis.

Pensou no maravilhoso banho quente que tomara antes de deitar. A enorme e fumegante tina com água quente era muito parecida com as que existiam em sua memória. Dissolvera por completo as dores do corpo e os cheiros repulsivos da viagem espacial. Gervis, um criado que ela não conhecera ao chegar, cuidara de Ivor. Margaret descobrira aliviada que ele sabia muito bem como tratar de um velho exausto e rabugento.

A jovem, Moira, conduzira-a para seu quarto e arrumara suas coisas. Ao sair do banho, ela encontrara o pequeno gravador e os discos empilhados com todo o cuidado sobre uma arca. Havia uma camisola de flanela estendida na cama. Era muito usada, mas estava limpa, os punhos bordados e a gola levantada. Margaret ficara feliz por poder vesti-la, em vez de dormir sem nada, ou usando o horrível tubo de fibra sintética de fabricação terráquea, considerado apropriado para as viagens espaciais, que trouxera na mala. Limpa, aquecida, o corpo acariciado pela flanela macia, ela adormecera num instante... ou melhor, perdera a consciência quase antes mesmo de puxar as cobertas até o pescoço.

Agora, enquanto o sol vermelho iluminava o quarto, ela sentou na cama e examinou os bordados nos punhos da camisola. Minha madrasta usava algo parecido quando eu era pequena; eram borboletas bordadas. Não, espere um pouco... Não era Dio, mas outra pessoa. Por que pensei que era Dio? Tudo lhe parecia muito familiar e estranho ao mesmo tempo. Margaret estremeceu ligeiramente; embora a casa fosse aquecida, ainda assim o frio era bem maior do que estava acostumada. Mas sentia-se confortável, aspirando o ar fresco e o cheiro da camisola. Havia também uma fragrância que usavam nas roupas de cama - ela tinha certeza de que lembraria o nome em um ou dois minutos - que a fazia se sentir segura. A mente jamais esquecia qualquer coisa, ela sabia, mas encontrava-se agora assediada por inúmeros fragmentos desordenados de lembranças, vagas e esquivas, como mosquitos voando em torno de seu rosto.

Eu costumava sonhar com um sol tão vermelho como este. E Anya ficou me olhando da maneira mais estranha durante toda a noite, quase como se me conhecesse. Mas por quê? Não pareço muito com meu pai. O senador tem cabelos escuros e olhos cinzas; meus cabelos são vermelhos e os olhos amarelos... "como uma gata", ele sempre dizia, quando estava de bom ânimo... ou bêbado. Não há uma semelhança física, pelo menos não com meu pai. Então deve ser o meu nome!Margaret descobriu que não queria se aprofundar nessa possibilidade. Havia alguma coisa ali que a deixava apreensiva.

Com quem eu pareço? Não com minha madrasta. Não temos nenhum parentesco, embora ela sempre me tratasse como se eu fosse sua verdadeira filha. Margaret projetou afetuosa uma imagem mental de Diotima Ridenow-Alton, uma imagem que já tinha muitos anos. Viu uma mulher pequena, os

cabelos claros como seda amarela, olhos verde-cinza sempre risonhos. Ao completar dez anos, Margaret já era quase tão alta quanto sua pequena madrasta. Sempre se sentira enorme e desajeitada ao lado de Dio.

Sua última noite em casa, anos antes, aflorou em sua mente. O senador sentava em sua enorme poltrona, olhando através da varanda para o mar enfurecido. Thetis era um planeta tranqüilo, mas às vezes as tempestades surgiam de repente e desabavam sobre a praia, belas e assustadoras. O Velho costumava contemplar o vento e o mar nessas ocasiões com um evidente fascínio.

- Nunca vi nada parecido até deixar Darkover - murmurara ele, a única mão segurando a taça.

Margaret detestava quando ele bebia, quando contemplava a fúria do mar, e quando era dominado por uma raiva interior, decorrente de alguma dor que jamais revelava e nunca ficara curada. Sempre podia senti-la se agitando dentro daquele homem, o estranho a quem chamava de pai, e se arrepiava toda. Às vezes o pai dava a impressão de que queria lhe dizer alguma coisa, e Margaret sabia, de alguma forma, que não queria ouvir. Era quase como se pudesse ler a mente do pai, ouvir as palavras que ele ainda não dissera.

Essa sucessão de pensamentos deixou-a inquieta. Margaret empurrou as cobertas para o lado, relutante, e levantou-se. Ao tirar a camisola, o frio no quarto provocou um arrepio. Vestiu um dos outros uniformes que trouxera, embora sem a menor vontade, calça preta e uma túnica que descia até os joelhos. O material deslizava contra a pele, de uma forma que nada tinha de natural, mas pelo menos servia para aquecê-la. Depois de fechar tudo, ela suspirou.

Hoje providenciaria roupas mais apropriadas para o clima e menos obviamente terráqueas. Não queria passar todo o seu tempo respondendo a perguntas de curiosos. Escovou os cabelos, prendeu-os numa trança, mal olhando para sua imagem no espelho. Não gostava de ver o seu reflexo, nem mesmo em vitrines de lojas. Havia alguma coisa em espelhos que a deixava nervosa. Era uma reação tão antiga quanto podia se lembrar.

Enquanto arrumava os cabelos, Margaret especulou por que queria tanto usar trajes locais. Não era muito por desprezar as fibras sintéticas. Afinal, usava aquele uniforme há mais de dez anos, e sentia o maior orgulho de ser reconhecida como uma pesquisadora da universidade. Era um privilégio que conquistara, ao qual dava o maior valor... pelo que representava, não por si mesmo. Não queria ser notada em Darkover, concluiu ela. Era quase como se tivesse medo de ser vista, como se algum perigo pudesse estar à espreita nas ruas sinuosas de Thendara. Um absurdo, é claro, mas ela não podia escapar por completo ao sentimento.

Enrolou a trança num coque, que cobriu a nuca. Prendeu-o com grampos. Era assim que Dio usava seus abundantes cabelos amarelos. Uma ocasião, quando tinha cerca de nove anos, Margaret empilhara os cabelos no alto da cabeça. Isso deixara o senador enfurecido, sem qualquer razão que ela pudesse compreender. Dio, sempre apaziguadora, explicara que mostrar a nuca era considerado indecoroso. Ela ficara toda corada enquanto falava, deixando Margaret com a impressão de que havia alguma coisa horrível relacionada com cabelos soltos e a nuca à mostra. Mais tarde, quando ingressara na universidade, descobrira que havia literalmente centenas de coisas que eram consideradas tabus em algum mundo ou outro... por exemplo, comer com a mão errada, ou comer alimentos que tinham um formato errado. Nem precisava fazer sentido. Costume era costume.

Por outro lado, não havia qualquer menção a esse costume nos discos sobre Darkover que ela obtivera. Para ser mais precisa, refletiu Margaret agora, ao pôr grampos extras no coque, não havia muitas informações sobre coisas úteis. Ela sabia, por exemplo, que o governo existente em Cottman IV era feudal em sua organização, mas os detalhes a respeito eram escassos. Havia um rei, ao que tudo indicava, ou alguma espécie de regente. Também havia referências a famílias poderosas. Os discos de estudo, na verdade, tratavam mais dos preconceitos terráqueos do que da cultura darkoviana propriamente dita.

Margaret, soltando outro suspiro, pegou o gravador e seu transcritor. Ditou suas anotações sobre a conversa entre Mestre Everard e Ivor na noite anterior. Sabia que não omitira nada importante, mas ouviu tudo desde o início para ter certeza. Depois, prendeu o pequeno aparelho no cinto e desceu.

Na cozinha, Anya cumprimentou-a com a maneira estranha, quase deferente, que demonstrara na noite anterior, quando Margaret sentia-se cansada demais para fazer uma anotação mental e acrescentar à lista cada vez maior de perguntas e enigmas. A mulher não assumira a mesma atitude com Ivor. Ela pôs uma tigela com um mingau de aroma apetitoso na frente de Margaret. Esfregou as mãos calosas no avental, com uma expressão apreensiva. Depois, flexionou ligeiramente os joelhos.

A fome de Margaret afugentou a curiosidade. Ela agradeceu e devorou o mingau como uma jovem e saudável loba. Era delicioso.

O Professor Davidson desceu quando ela terminava uma segunda tigela. Parecia descansado e revigorado, mas havia uma certa palidez por baixo do seu bronzeado de Relegan. Não abotoara direito a túnica de pesquisador e esquecera - ou então não fora capaz - de pentear os cabelos ralos. Quando haviam se conhecido, tinham quase a mesma altura, os olhos se encontrando no mesmo nível. Agora, o professor estava tão encurvado que mal batia no ombro de Margaret. Mas Ivor lhe ofereceu um sorriso, e ela fez um esforço para ignorar a vozinha que dizia haver alguma coisa muito errada. Mestre Everard apareceu, quando eles acabavam de comer.

- Dormiram bem? - perguntou ele, depois de cumprimentá-los.

- Muito bem, obrigado.

- O quarto não estava muito frio? Às vezes os hóspedes de outros mundos acham frio demais. Quando criança, estudei no Mosteiro de São Valentine. Às vezes acordávamos e encontrávamos neve sobre os cobertores. Decidi naquela ocasião que nenhum hóspede meu jamais sentiria tanto frio.

A voz era de barítono, ressonante. Margaret refletiu que ele devia ter sido um bom cantor na juventude. Era uma voz surpreendentemente profunda para um homem tão magro. Ele dava a impressão de que poderia sair voando numa rajada de vento mais forte. De qualquer forma, era alto e empertigado, apesar dos anos, em vez de encolhido e encurvado como o pobre Ivor. Margaret pôde avaliá-lo em cinco minutos de conversa, porque era muito parecido com vários dos acadêmicos que conhecia, e cuja companhia sempre apreciara. Tinha um queixo quadrado e muitas linhas do riso em torno dos olhos cinza, cabelos brancos e rugas de verdade, do tipo que deriva de fazer uma coisa que pode ser bastante difícil, mas também é muito satisfatória. Ela acalentava a esperança de ficar assim quando envelhecesse. Estava tão absorvida em seus pensamentos que quase perdeu uma pergunta de Ivor.

- Mestre Everard, ontem à noite fui dar uma olhada na loja daquele fabricante de instrumentos, no outro lado da rua. Fiquei impressionado com

o formato das aberturas... Ora, Pega, diga a ele! Eu gostaria de não ter tanta dificuldade para aprender novas línguas!

O uso do apelido carinhoso a deixou comovida. Ivor não o usava com freqüência desde que ela deixara de ser estudante. Margaret fitou-o com uma intensa afeição, enquanto o velho professor levava uma colher com mingau à boca. Como ela era afortunada!

Mestre Everard esperava que ela explicasse a pergunta de Ivor com alguma confusão, a julgar por sua expressão. Margaret suspirou. Torceu para que a conversa não fosse uma repetição do que acontecera na noite passada. Ela traçou algumas linhas com a ponta do dedo na mesa, mostrando como pareciam as aberturas em efes num violino terráqueo.

- Tem certeza? - indagou ele, depois de pensar por um momento. -Nunca vi aberturas assim... dá uma boa música?

Margaret riu, jovial.

- Os terráqueos fazem música com essa configuração há milhares de anos. Por isso, eu diria que sim.

- E espantoso. Estou vendo que aprenderei muito durante a visita de vocês. O que é maravilhoso para mim.

- O que ele disse? - perguntou Ivor.

- Disse que é surpreendente que se possa fazer uma boa música com aberturas desse tipo... e foi até mais polido ao responder. Gosta de suas aberturas em formato de estrela. E disse que acha que vai aprender muito conosco. Tenho a impressão de que essa perspectiva lhe proporciona a maior satisfação.

- É mesmo?

- O mestre não é mais nenhum jovem. Provavelmente sabe mais sobre a música darkoviana do que qualquer outra pessoa... e por isso a oportunidade de aprender novas coisas deve ser muito atraente.

- Eu não havia pensado nisso.

Ivor parecia satisfeito. Sua cor melhorava enquanto comia. Margaret sentiu um certo alívio, porque não sabia se poderia agüentar uma doença do velho professor.

- Assim que acabarem a refeição matutina, poderemos continuar a conversa - sugeriu o mestre, falando bem devagar.

Margaret transmitiu a proposta ao Professor Davidson. Observou-o devorar o resto do mingau, indiferente à sua digestão um tanto delicada. Era bom vê-lo tão ansioso, mas ainda assim ela gostaria que o velho fosse mais cauteloso.

Depois que o mingau acabou e eles tomaram uma sidra quente, Everard levou-os para uma sala na frente da casa. Era grande, ao lado do vestíbulo. Quando entrou ali, Ivor ficou radiante de alegria. Era muito distinto para bater palmas e pular de alegria, mas o brilho em seus olhos significava quase que a mesma coisa. Era uma sala para alegrar o coração de qualquer musicólogo da galáxia. O assoalho era de tábuas envernizadas, as paredes de lambris. Por todo e qualquer lugar para onde se olhasse, havia instrumentos musicais. Margaret quase que se sentiu contente, pela primeira vez, com o problema que impedira o Professor Murajee de viajar. Afinal, sem isso não conheceria aquela riqueza de instrumentos. A sala era um autêntico museu dos instrumentos musicais de Cottman IV. Everard, sem a menor sombra de dúvida, era um homem que tinha um senso da história. Ele explicou que a coleção fora iniciada por seu avô, mas acrescentou, com a devida modéstia, que não passava de um amontoado confuso quando era menino.

Iniciaram uma lenta excursão pela sala. O professor se controlou com toda a cortesia de que era capaz. Era muito estranho. Margaret nunca o vira tão impaciente, quase tremendo de ansiedade. Ela ficou tão absorvida na função de intérprete que mal teve tempo de apreciar pessoalmente os instrumentos. Lamentou não ter trazido a câmera ao descer para o desjejum. Mais ainda, lamentou não ter a oportunidade de experimentar diversos alaúdes, ou a pequena harpa, não muito diferente da que sempre levava em suas viagens.

Logo ficou evidente que Mestre Everard tinha a atitude de um curador de museu em relação à coleção, embora não fosse do tipo pomposo que faz com que as visitas a tais lugares sejam às vezes muito chatas. Cada instrumento era tratado como um velho amigo. Margaret ligou o gravador, enquanto ouvia histórias de fabricantes há muito falecidos, ou de flautas levadas para batalhas há tanto tempo que o próprio Everard não sabia se eram lendas ou fatos reais. Ela nunca vira antes uma gaita de foles, embora soubesse de sua existência pelo curso de música primitiva na universidade.

Aqui, ela soube, a arte de tocá-las ainda era conhecida. Já desaparecera na Terra, onde ninguém vivo sabia tocar uma gaita de foles.

- Fazem um barulho infernal - comentou Mestre Everard. - Ouvi dizer que foram inventadas para assustar o inimigo... e imagino que uma gaita de guerra, tocada bastante alto, é capaz de afugentar um banshee, o pássaro-espírito.

Margaret perguntou detalhes sobre a maneira como eram tocadas. Mesmo que nada mais aprendesse, só isso já teria valido a viagem. A gaita de foles, porém, era o único instrumento de sopro, a não ser por umas poucas flautas de madeira; e também não havia metais, exceto por dois ou três instrumentos terráqueos importados, obviamente incluídos porque os darkovianos os consideravam exóticos. Fazia sentido que um mundo tão pobre em metal, como informavam os discos pedagógicos sobre Darkover, não desperdiçasse nenhum em tubas ou trombones.

Boa parte da manhã já passara, e a questão das estranhas aberturas nos instrumentos de cordas ainda não fora discutida. Em vez disso, Everard falou sobre os tipos de madeira usados, como era feita a afinação. Até que ele pegou, num nicho na parede, um pequeno instrumento parecido com uma harpa, que Margaret observara com intensa curiosidade. Ele disse que era uma harpa, mas Margaret ouviu o comentário, como um sussurro abaixo de sua respiração, que o instrumento era chamado de ryll.

- Estes instrumentos morrem se não são tocados.

Ele parecia ter esquecido que nem Margaret nem o Professor Davidson podiam saber qualquer coisa a respeito. Era quase como se falasse apenas para si mesmo, perdido em alguma recordação.

- Talvez pensem que não passo de um velho tolo. Os antigos fabricantes compreendiam essas coisas muito mais do que a atual geração. Diziam que é o espírito da árvore na madeira que dá vida ao instrumento. Uma árvore é uma árvore, vocês podem pensar. Talvez... mas a madeira é uma coisa viva, não como pedra ou argila. O próprio fabricante também acrescenta alguma coisa. E, se fica associado a uma única pessoa por muitos anos, também adquire mais alguma coisa de seu contato.

Ele se mostrou um pouco contrafeito, como se notasse pela primeira vez a presença dos hóspedes. Margaret sorriu.

- Qualquer pessoa que conheça a fabricação de instrumentos musicais concordaria com o que acabou de dizer, Mestre. Tenho certeza muitas vezes de que minha harpa é uma coisa viva. Já Ivor tem um relacionamento com sua guitarra que deixaria sua esposa ciumenta, se ela fosse desse tipo de mulher.

Margaret ficou surpresa com sua eloqüência, mas tão satisfeita com a crescente facilidade com que usava a língua local que não deu a menor importância. Everard soltou um pequeno suspiro.

- Minha esposa também sente um pouco de ciúme. Mas ela nasceu na Rua dos Curtidores, não foi criada com aparas de madeira na sopa, como dizemos por aqui. Esta ryll... - Ele usou o termo nativo, em sua ansiedade para contar a história. - ...é sem dúvida uma criança problemática. Pertenceu a uma mulher de excepcional talento e mais do que um pouco de loucura. .. dizem que era por causa do sangue chieri... uma mulher que tem um lugar de destaque na história de nosso mundo. Não é uma história das mais agradáveis, mas a vida é assim.

Ele fez uma pausa, perdido em seus pensamentos.

- Se você vence ou tem êxito no que tenta fazer, então é um herói; se não, é um vilão. É o que determina a história.

Sangue chieri?. Não era uma palavra que Margaret reconhecesse, mas provocou-lhe um arrepio.

- Mas o que há de tão estranho nessa... ryll ?

Ela podia sentir os dedos comichando de vontade de tocar a madeira sedosa. Tratou de repelir a inquietação e a curiosidade ao mesmo tempo. O instrumento a fascinara desde o momento em que entrara na sala. O velho soltou outro suspiro.

- Esta ryll me foi dada por um discípulo, há cerca de vinte anos, pela nossa contagem. Não sei como ele a obteve, mas trocou-a por uma flauta de madeira... uma troca desigual. Sentia-me tão ansioso em ficar com a ryll que não o interroguei como deveria ter feito... o que faria hoje, se ele aparecesse. Creio que foi feita por Josef de Nevarsin. Ele talvez tenha sido o melhor fabricante de ryll que já existiu. Morreu há mais de cento e cinqüenta anos. Sei que Mestra Melora Alindair, que é uma de nossas melhores artistas líricas, pagou uma centena de reis, uma quantia bastante substancial, por um desses instrumentos com a assinatura do fabricante. Afinal, ela é uma dos MacArans, e eles conhecem instrumentos musicais. Claro que sei que existem falsificadores, até mesmo em nosso mundo. Mas se esta ryll não foi feita pelo próprio Josef, então só pode ter sido fabricada por um dos seus aprendizes. Josef tinha um jeito especial de cortar a madeira, perdido agora, que não era seguindo o lenho nem transversal. Dêem uma olhada aqui.

Ele indicou a haste vertical, onde a granulação subia em espiral, como se crescesse assim.

- Qualquer pessoa que pudesse reproduzir este corte hoje ganharia uma fortuna. Parece com as corredeiras no rio. Apesar de tudo isso, ninguém consegue arrancar uma melodia desta ryll. Não sou um mau harpista, mas não consigo tocá-la. E verdade que ela suspira um pouco quando o vento sopra forte, mas isso também acontece com muitos outros instrumentos; e se há raios, como acontece no verão, ela geme... quase como se estivesse tentando se manifestar.

Everard olhou hesitante para os dois. Como Margaret não exibisse qualquer sinal de desdém ou incredulidade, ele acrescentou:

- Emite sempre o mesmo acorde estridente, que é enervante para os meus alunos. Vou mostrar.

Ele estendeu a harpa sobre os joelhos. As mãos eram idosas e um pouco rígidas, mas ainda bastante flexíveis para dedilhar as cordas. Margaret sabia agora que Everard já passara dos noventa anos, tinha mais ou menos a idade do professor. Angustiava-a constatar que ele podia fazer com uma certa facilidade o que Ivor não mais conseguia. Everard pressionou as alavancas numa extremidade, e passou a outra mão pelas cordas; embora todos os outros instrumentos reagissem no mesmo instante a seu manuseio hábil, aquele emitiu apenas um zumbido baixo.

- Estão vendo? Nada além disso... o que nem chega a ser um som de harpa. Tome aqui. Experimente você.

Mestre Everard levantou-se e entregou o instrumento a Margaret. Ela sentou e estudou-o. A madeira de um amarelo claro era muito bonita, e as espirais na granulação, um pouco mais escuras, tornavam-na ainda mais bela. Ela acariciou a madeira, em busca de junções, mas nada encontrou que seus dedos sensíveis pudessem distinguir. Havia incrustações de madeira mais escuras num padrão decorativo sobre a caixa sonora e por baixo da haste horizontal. O cheiro da madeira antiga era agradável, com uma tênue familiaridade, como ocorrera com os temperos do ensopado servido na noite anterior. Por um momento, Margaret viu a mulher de cabelos vermelhos que às vezes freqüentava seu sono tocando uma ryll como aquela. Depois, passou a mão pelas cordas, ao mesmo tempo em que apertava as alavancas. Foi recompensada com uma súbita seqüência de arpejos, que pareciam com uma chuva da primavera em Thetis.

Margaret esqueceu os dois velhos, que a contemplavam com o maior espanto. Dedilhou as cordas, pensando num acalanto que aprendera em Zeepangu. Havia ali um instrumento não muito diferente daquele. Suas mãos se moviam de maneira quase involuntária; ela não pôde deixar de pensar que era como se a ryll estivesse tocando-a, não o contrário, pois o que saiu não foi a canção simples que tencionava. Teve uma visão do homem de cabelos e olhos prateados de seus antigos pesadelos, sentado numa enorme cadeira, toda esculpida. Seus sentimentos em relação ao homem, como sempre, eram uma mistura de medo e excitamento. Por um breve instante apenas, divisou também o Velho, os cabelos não grisalhos como agora, mas ainda escuros. As duas mãos se projetavam de punhos bordados. Foi só um relance, a cena se desvanecendo logo em seguida.

A garganta de Margaret se fechou um pouco, os olhos arderam com as lágrimas. E depois as palavras forçaram a saída por seus lábios comprimidos. Ela engoliu em seco, tentando reprimi-las, pois eram estranhas, diferentes de tudo o que já cantara antes. Abruptamente, no entanto, a resistência desapareceu; ela deixou as palavras fluírem, apenas porque não podia impedi-las; o aperto na garganta acabou e se entregou à melodia, como se esta a possuísse.

Como surgiu este sangue em sua mão direita?

Irmão, quero que me conte, tem que me dizer.

É o sangue de um velho lobo cinzento,

Que espreitava de trás de uma árvore.

Nenhum lobo atacaria a esta hora do dia.

Irmão, quero que me conte, tem que me dizer.

É o sangue dos meus dois irmãos

Que aqui sentavam e comigo bebiam?

Os versos saíam por seus lábios sem interferência de sua vontade, um depois do outro. Margaret era como uma mulher em transe... dominada não sabia por quê.

Um tempo indefinido depois, ela se descobriu debruçada sobre a ryll, com um profundo sentimento de desorientação e presságio. A imagem do homem prateado tremeluzia diante de seus olhos. Eu o conheço; já nos encontramos em meus sonhos. Ele me carregava no colo, beijava e acariciava meu rosto. Eu era então bastante pequena para ser carregada. Quem é ele? E por que tenho certeza de que é velho, muito mais velho do que papai? Houve uma ocasião em que me cantou um acalanto. Dio me surpreendeu um dia cantando o mesmo acalanto para minha boneca e me bateu... uma coisa que não costumava fazer. Nem mesmo quando eu comi toda a torta de amoras que ela tinha feito para nossos convidados.

Margaret sentiu os músculos tensos, com uma exaustão que nada tinha a ver com o instrumento agora inerte. Experimentou um pressentimento de que se encontrava à beira da descoberta... embora não tivesse a menor idéia do que estaria prestes a descobrir. O coração batia forte, e ela esperou que recuperasse o ritmo normal. Sua vontade era jogar a ryll no assoalho encerado e subir correndo para o seu quarto, fechar a porta e gritar até sentir a garganta em carne viva. Teve de recorrer a todo o controle e autodisciplina, adquiridos com tanto esforço ao longo dos anos, para permanecer onde estava, olhando para os dois homens, como se fosse uma mulher comum. Eles não podiam adivinhar as visões que a atormentavam, nem o que a canção despertara nela. Era como se fosse uma falange de fantasmas.

Tinha a boca ressequida, a garganta tornava a se contrair, como se fosse sufocá-la. Respirava depressa, bem superficial, porque sabia que desmaiaria se a respiração fosse mais profunda. Dúvidas turbilhonavam em sua mente, indagações dolorosas, que sempre afloravam quando se sentia angustiada. Por que meu pai sempre me olhava como se a visão o afligisse? Quanto mais eu crescia, pior se tornava. Ficava contente quando ele viajava, e ainda me sinto envergonhada por isso.

Subitamente, ela teve a impressão de que o Velho se materializava à sua frente, quase transparente, visível na sala apenas para seus olhos. Ele olhava para o coto do braço, como se perplexo pela ausência da mão. Levou uma taça à boca para beber. Margaret sabia que era apenas uma memória, mesmo quando a imagem levantou o rosto e olhou através dela. O pai podia ficar assim por horas a fio, enquanto ela se tornava mais e mais ansiosa, perguntando-se o que fizera com ele.

No fundo de seu coração, Margaret sabia que nunca fizera coisa alguma, que tudo o que saíra errado, o que lhe custara uma das mãos e algo mais que ela não podia entender, não fora culpa sua. Era pequena demais para ser culpada por qualquer coisa, exceto talvez por derramar seu leite. Sabia que a imagem à sua frente existia apenas em sua imaginação, que era uma memória, mais nada. Ainda assim, era como se sua mente estivesse se desintegrando um pouco. E sabia que não podia deixar que isso acontecesse... pois tinha de pensar em Ivor, cuidar do velho professor!

Ela forçou-se a parar de pensar no pai, ou naquele outro homem, que tanto a assustava. Em vez disso, recorreu a todo o controle que ainda lhe restava e disse, calmamente:

- Mestre Everard, acho que sua harpa é assombrada. O professor e eu já observamos um fenômeno similar, em Ceti Três. Ali, a possessão por um espírito musical é comum... um dos fundamentos da religião, pode-se dizer.

- Margaret tratou de se refugiar na segurança da objetividade acadêmica, esquecendo por completo que Mestre Everard nunca ouvira falar de Ceti Três. - Não sei de onde posso ter tirado essa canção. Não está em nosso Cancioneiro, não é mesmo, Ivor? Claro que há várias canções parecidas, mas...

Ao perceber a incompreensão no rosto de Mestre Everard, ela repetiu o comentário em casta.

- Uma antiga aluna minha fez uma tese de pós-doutorado a respeito

- informou Ivor. - O tema da vingança nas baladas escocesas, irlandesas e nórdicas. Você deve se lembrar dela, Maggie. Como era mesmo seu nome? Ah, sim... Anna Standish.

- Mas eu conheço essa canção - interveio Mestre Everard, ignorando o que Ivor dissera. - É mais conhecida nas Hellers do que aqui. É uma balada antiga, chamada "O Proscrito". Dizem que se baseava na história de Rupert Di Asturien, que há dois séculos matou toda a sua família num acesso de raiva e loucura... com exceção de uma irmã, que foi quem o declarou proscrito. Seu sotaque é excelente, mas eu já havia notado na noite passada que fala a nossa língua melhor do que todos os Terranan que conheci ao longo dos anos. Quando a ouvi cantar, podia ter certeza de que sempre viveu aqui, mas sei que não é o caso. Usou o sotaque das Colinas Kilghard, onde "O Proscrito" é cantado em torno do fogo aceso. E, com toda a sinceridade, cantou como se já tivesse ouvido a canção uma centena de vezes.

- Se assim diz, tenho de aceitar. Mas, até onde eu sei, nunca a tinha ouvido antes de tocar agora.

Mas Margaret especulou se deveria ter tanta certeza. A menção das Colinas Kilghard provocara um estranho calafrio por sua espinha, uma espécie de ressonância, não muito diferente do que acontecera com a música. Talvez o Velho tivesse falado a respeito, num dos seus raros acessos de loquacidade. Ou ouvira um comentário nos discos. Devia ser isso. O alívio espalhou-se por seu corpo. Não estava enlouquecendo. Sua mente apenas a deixava atordoada, confundindo um pouco as lembranças.

No momento mesmo em que se persuadiu que estava calma e absolutamente racional, Margaret viu em sua mente uma serra extensa, cercada por montanhas mais altas, envoltas por neblina e neve. Seu sangue começou a vibrar. De onde surgira essa imagem? Era bastante nítida, quase tanto quanto um holovídeo. Só que ela tinha certeza de que nunca vira aquele lugar antes, nem mesmo um holovídeo que o mostrasse. Era quase como se tivesse extraído a imagem da mente de alguém, o que era uma total impossibilidade. Havia uma dor persistente em todo o seu corpo agora, um estranho anseio, diferente de qualquer coisa que pudesse recordar. Queria contemplar aquelas colinas, como se já tivesse estado lá antes; ao mesmo tempo, sentia que havia ali alguma coisa assustadora. Ela disse a si mesma, com toda a firmeza, que era sua imaginação exagerada em ação outra vez. Tornou a concentrar a atenção em Ivor e Mestre Everard.

- ...mas tocar uma canção nessa ryll em particular... - dizia Mestre Everard. - Acho que deve ter gostado de você. Fique com ela. É uma coisa além da minha experiência.

- Mas disse que era histórica...

- Isso mesmo. Pertenceu... ou pelo menos é o que dizem... a uma mulher chamada Thyra. É um nome chiai, e todos achavam que ela era meio chieri. Morreu... deve ter sido há cerca de vinte anos.

Alguma coisa deixou Margaret em alerta. Thyra? Conheço esse nome... e há algo horrível relacionado com ele. Vinte anos? Deve ter sido na ocasião em que meu pai deixou Darkover. Ela perguntou:

- Conheceu essa... Thyra?

Ela descobriu que até dizer o nome em voz alta provocava um aperto na garganta.

- Deus me livre! - O rosto idoso de Mestre Everard parecia agora bastante angustiado. - Sempre fui um súdito leal de Danvan Hastur, que os deuses o guardem em paz. Ele assumiu o poder quando eu era jovem e... Não gosto nem de pensar a respeito. Uma página muito triste em nossa história. Muitas pessoas morreram naquela ocasião, outras continuaram a viver e sofreram porque... Ora, domna, não pode saber nada a respeito, e provavelmente não está interessada. Eu diria que a pobre dama teve seus motivos para fazer o que fez. Meu filho Erald pode contar melhor a história. Afinal, ele passou quase toda a sua vida criativa compondo um ciclo de canções sobre essa época.

Nada do que ele dissera até agora revelara qualquer informação útil para Margaret, mas ela era muito polida para dizer isso.

- Um ciclo de canções... que coisa maravilhosa! Everard riu, sem qualquer diversão.

- Não é tanto assim. Meu filho mereceu a distinção, aos vinte e oito anos, de ter uma de suas canções proibidas, embora eu não saiba dizer se foi por julgamento artístico ou político.

Pela expressão angustiada em seu rosto, Margaret desconfiou que o velho tinha sentimentos intensos a respeito, embora guardasse tudo para si mesmo.

- De qualquer forma, ainda acho que "A Canção de Sharra" é perturbadora - acrescentou o velho.

- Onde ele está agora?

Margaret podia sentir o zumbido agradável da curiosidade se agitando em sua mente. Queria muito conversar com Erald, interrogá-lo sobre aqueles misteriosos acontecimentos. Podia estudar aquilo, um ciclo de canções, provavelmente compostas em estilo convencional. Mesmo que resultasse apenas numa anotação em seu ensaio, era uma descoberta real. Uma canção proibida! Que coisa interessante! Ela tentou se persuadir de que sua atitude era a de uma pesquisadora, não a de uma bisbilhoteira. Mas não conseguiu. Depois de um momento, desistiu da tentativa. Era uma questão pessoal, embora tivesse medo de admitir, até para si mesma. Havia algum segredo por trás da ryll e daquela mulher, Thyra, e na composição chamada "A Canção de Sharra". Margaret teve certeza de que o mistério a deixaria aflita até que esclarecesse tudo.

- Viajou para as Hellers. - Everard balançou a cabeça. - Minha mãe me disse: "Não case com uma filha de curtidores." Talvez ela estivesse certa. Tivemos três crianças, e apenas Erald tem talento musical. As duas mulheres quase que têm surdez musical, e o mesmo acontece com os netos. Não gosto nem de pensar a respeito. Tenho um neto que é um ótimo artesão de instrumentos, mas não há uma única canção nele. Por isso, Rodrigo MacAran será o grande mestre do ofício depois de mim. E um grande artista, embora seja um homem difícil para se trabalhar. Mas só porque exige o melhor, não porque seja mesquinho. Meu filho Erald nunca vai assentar a cabeça.

Ele soltou um pequeno suspiro, um murmúrio de pesar pelos sonhos irrealizados para o filho.

- Mas sobre o que era mesmo que falávamos? Ah, sim, essa ryll. Pode tocar qualquer música nela, mas que não seja perto da harpa de Hastur. -Ele apontou para um instrumento no outro lado da sala. - Na última vez em que fiz isso, seis cordas se partiram.

O mestre não parecia pensar que havia algo estranho numa ryll que tocava por sua própria iniciativa, ou numa harpa que partia seis cordas de propósito. Margaret se perguntou se ele não estaria zombando. Mas a expressão de Everard era de absoluta seriedade. E era óbvio que ele queria mudar de assunto.

Margaret reprimiu seu desapontamento. Já sabia que Erald viajara, pois os rapazes haviam dado essa informação na noite anterior. Talvez ele voltasse logo a Thendara, ou ela e Ivor pudessem encontrá-lo onde estivesse, quando partissem para a pesquisa de campo. De qualquer forma, "A Canção de Sharra" teria de esperar.

Foi nesse instante que ela notou que sentia muito frio, os braços arrepiados por trás do tecido liso do uniforme. E foi dominada mais uma vez pelo pavor indefinido que a assediava desde que descobrira que voltaria a Darkover. Mas por quê? Aquela palavra a assustava. Lembrava alguma coisa que temia. Gostaria de perguntar mais a respeito, mas sentia-se muito tensa agora, apavorada demais. Em vez disso, engoliu em seco, a boca ressequida, os lábios doendo. Everard afastou-se, enquanto continuava a falar:

- Mestre Ivor, queria saber sobre os fiols, não é mesmo? Aqui estão. E um instrumento para arco, embora possa ser dedilhado também, quando se quer obter determinados efeitos...

Margaret repôs a ryll na parede. Sabia que já tocara nela tudo o que podia, pelo menos por enquanto. No momento em que a pendurou, a ryll deixou escapar um som, um murmúrio de notas, tão baixo que mal dava para ouvir. Margaret encostou a mão na caixa de ressonância e prometeu a si mesma que algum dia voltaria a pegar aquele misterioso instrumento, descobriria seus segredos. E sentiu-se um pouco tola por isso.

Ela seguiu os homens até os fiols pendurados na parede. Permitiu que sua atenção vagueasse, sabendo que o gravador registraria toda a conversa. Além disso, Ivor não hesitaria em pedir sua atenção, se houvesse necessidade.

Parada ali, sem ouvir o que os outros diziam, Margaret refletiu que o nome Thyra não lhe era desconhecido. O pai o gritara algumas vezes, nos pesadelos de seus porres. Mas tantos anos haviam passado desde que o ouvira pela última vez que quase o esquecera. Sempre evocava a mesma imagem em sua mente. Ela via uma bruxa de cabelos vermelhos, com garras no lugar das mãos... e o homem de cabelos prateados, gritando "Não, Thyra, não..." no mesmo instante em que o pai dizia isso em seu sono agitado. Sentia-se dividida entre a relutância em saber mais e uma profunda curiosidade. Era como uma faca de dois gumes em sua mente.

Às vezes, em sonhos, ela se descobria a contemplar, como se fosse através de um véu, o rosto daquela mesma mulher, ou de outra bastante parecida para ser sua irmã. Sentia o calor de um seio e o gosto de leite. Era quase como se conhecesse a mulher como sua mãe... embora não fosse possível relacionar a mulher gritando com qualquer tipo de maternidade. Dio, sem qualquer dúvida, era a única mãe que ela já tivera, ou queria ter.

Os sonhos haviam desaparecido depois que deixara Thetis, exceto pelos pesadelos no hiperespaço. Margaret podia lembrar a psíquica na universidade que lhe dissera que estava regredindo para alguma coisa. Oferecera-lhe uma terapia profunda, mas ela rejeitara. Tinha o direito de recusar. Era um dos seus direitos civis básicos. Afinal, não queria recordar coisa alguma. E continuava a não querer. Sob os cuidados maternais de Ida Davidson, ela quase esquecera o caos do início de sua adolescência e as batalhas entre o pai e a madrasta - quase sempre por sua causa - que finalmente a levaram a sair de casa. Os Davidsons haviam lhe proporcionado um novo lar. Ela retribuíra ao integrar sua carreira na de Ivor. Não sabia que era infeliz até que os Davidsons lhe deram a felicidade. Era uma coisa que jamais esqueceria.

Por um momento, Margaret especulou se já estivera em Darkover em algum plano astral. Não que acreditasse nesses fenômenos, embora sem dúvida fosse uma perspectiva mais agradável do que as viagens espaciais. A universidade a preparara para pensar de forma racional, a ser lógica e organizada, acreditar apenas no que podia segurar, tocar e sentir com sua carne e mãos.

A pessoa nos sonhos era um menina bem pequena, talvez mesmo um bebê. Mas me lembrava daquele prédio parecido com uma fortaleza, o Orfanato Reade. E Dio sempre se comportou como se fosse minha mãe biológica. Eu era órfã, é verdade, mas o Velho é meu pai, não é mesmo? Dio e eu não poderíamos ser mais unidas, mesmo que tivesse nascido dela. Que confusão! Isso tem de parar... agora! Não vou mais admitir. O que aconteceu há vinte e tantos anos pertence ao passado, nada tem a ver comigo agora!

Margaret e Dio haviam perdido um pouco da intimidade durante os anos em que ficaram sem se ver, embora ainda se escrevessem longas cartas e se falassem várias vezes por ano pelo videocom. O Velho nunca escrevia, mas Dio sempre dizia que ele mandava seu amor, o que deixava Margaret satisfeita. Ela refletiu que ficara mais do que um pouco perturbada, até mesmo irritada, por não ter recebido qualquer resposta à última mensagem que enviara, pouco antes de deixar a universidade. Ora, devia ter surgido algum problema... Provavelmente a resposta se encontrava em algum lugar do sistema, só chegaria a Darkover depois que ela e Ivor deixassem Thendara para a pesquisa de campo. E ainda enalteciam a tecnologia terráquea...

Mas algo a importunava no fundo de sua mente, algo importante, irritante e assustador. Margaret franziu o rosto, sabendo que era algo que preferia ignorar. Tudo aflorou num fluxo de sentimentos de desolação e raiva. Ela se permitiu estremecer, fez um esforço para reprimir a recordação. Mas logo se entregou, só para acabar com aquilo o mais depressa possível.

Era a sua última noite em Thetis, depois que o Velho finalmente concordara com sua escolha de universidade. Começara muito bem, com um delicioso jantar, brindes com vinho, até sua sobremesa predileta. Margaret começara a relaxar, permitindo-se acreditar que tudo daria certo. Dio se retirara mais cedo, como acontecia com freqüência. Dizia que o ar marinho a deixava sonolenta. O Velho acabara se embriagando, começara a dizer uma coisa que ela não queria ouvir. O que ele gritara?

- Se você tem o Dom de Alton, se é uma telepata destreinada, constitui um perigo para si mesma e para todas as pessoas ao seu redor. Como é minha filha, deve ter o dom... Dom? Seria melhor chamar de Maldição de Alton!

Margaret não entendera o que ele queria dizer, mas o tom de voz do pai deixara seu sangue gelado. E depois outra coisa aconteceu... e ela percebeu agora que era isso que não queria lembrar. Por apenas um instante, experimentara a sensação de que havia outra pessoa dentro de sua cabeça, uma mulher. .. e muito desagradável. A voz era suave, mas forte e autoritária. Você não vai lembrar, e não vai me destruir! Fora isso, não as divagações delirantes do Velho, que a fizera sair correndo da sala, fugir para a segurança de seus aposentos. Trancara a porta como se alguma coisa a perseguisse. Passara a noite inteira arrumando e rearrumando seus pertences, como se a própria vida dependesse disso.

Era apenas uma memória, Margaret disse a si mesma. A estranha voz em sua cabeça era mais uma conseqüência do vinho a que não estava acostumada e da tensão de partir para a universidade do que qualquer outra coisa. E estava tudo bem agora. Era uma pesquisadora da universidade, não uma adolescente perturbada.

Margaret fez um esforço para concentrar sua atenção na dissertação erudita de Mestre Everard sobre o fiol. Era obviamente parecido com a viola ou violino terráqueo, embora a caixa de ressonância fosse bem mais profunda. Além disso, as aberturas tinham a forma de estrelas de várias pontas. O Professor Davidson dedilhou as cordas e suspirou.

- Pode tocar para mim, Maggie? Lamento muito, mas estas velhas mãos não são mais capazes de tocar como antes.

- O mesmo acontece com as minhas - acrescentou Mestre Everard.

- E dou minha palavra de honra que é um instrumento simples, com um som maravilhoso.

Margaret ajeitou o fiol por baixo do queixo e ajeitou a afinação das cordas. A sensação era confortável e familiar, embora o braço fosse mais comprido que o de qualquer violino terráqueo. Afora isso, ela não sentiu qualquer hesitação, porque o Departamento de Música da universidade cuidava para que seus alunos fossem capazes de tocar qualquer instrumento que pudesse ser manipulado por oito dedos e dois polegares opostos. Começou com uma pequena gavota de Bach dos seus tempos de estudante, seguida por uma das variações de Corbenic. Tinha quatro mil anos de música terráquea para aproveitar, mas Corbenic continuava a ser um dos seus compositores prediletos. Everard ouviu com uma atenção total, os olhos faiscando. Ao final, sorriu para ela.

- Foi maravilhoso, minha cara criança. Uma interpretação firme e bem definida, mas oferecendo ao mesmo tempo um profundo sentimento. Devemos convidar alguns dos outros músicos da rua para ouvi-la esta noite. Todos ficarão felizes.

Margaret corou. Sabia que não era melhor do que um bom segundo violino, que sua habilidade não chegava a ter a qualidade de concerto. Mas o elogio aliviou seus medos e tensões.

- Terei o maior prazer em tocar para eles.

Ivor fez um comentário sobre Mozart como antecessor de Corbenic, o que levou a uma exaustiva discussão do assunto, que exigiu ao máximo da capacidade de intérprete de Margaret. Ela tocou a cadenza do Concerto Número Cinco Para Violino, a fim de demonstrar a influência do compositor anterior. Everard concordou. O fiol tinha mesmo um som adorável, apesar - ou talvez por causa - das estranhas aberturas em forma de estrelas.

Depois de demonstrações nos seis fiols que havia no museu - três sopranos e três contraltos - com explicações sobre as madeiras com que haviam sido fabricados e a técnica de acústica utilizada, que chegaram a deixá-la com dor de cabeça, Margaret sentia-se faminta e exausta. Ivor estava muito pálido, os olhos quase vidrados, com uma aparência horrível. Mesmo assim, ele queria continuar ali, passando a avaliar as harpas maiores. Margaret detestou o olhar que o velho professor lhe lançou, quando sugeriu que fizessem uma pausa para a refeição do meio-dia.

- Peço mil desculpas - murmurou Everard. - Sou mesmo um péssimo anfitrião. É claro que devemos comer agora.

- Há muita coisa para aprender... - protestou Ivor.

- Tudo ainda estará aqui depois do almoço e de um descanso, Professor - murmurou Margaret, tendo de usar toda a sua paciência para persuadi-lo.

- Quando chegar à nossa idade, minha jovem, vai querer fazer a mesma coisa que nós. - Mestre Everard riu baixinho. - Os jovens pensam que dispõem de todo o tempo do mundo.

Ao deixarem a sala, Margaret olhou para trás e contemplou a ryll, em seu nicho na parede. Por um instante, divisou mãos esguias, com um dedo extra, dedilhando as cordas... mãos fantasmas que ao mesmo tempo a atraíam e repeliam. Sentiu-se bastante aliviada ao saírem para o vestíbulo, banindo a visão e criticando sua imaginação exagerada. Devia ter sido uma ilusão provocada pelas sombras. Foi o que ela disse a si mesma, mas não acreditou.

 

4

Era evidente que os dois velhos estavam adorando partilhar o interesse mútuo pela música, mas Margaret tinha alguma dificuldade para servir como intérprete ao mesmo tempo em que tentava comer. Por isso, sentiu-se quase aliviada, quando Mestre Everard foi chamado por alguém e saiu da mesa, durante a refeição do meio-dia, de sopa grossa e pão. Depois, sentiu-se culpada pela reação. A dor de cabeça que começara na sala de música não se dissipara enquanto comia, mas ela descartou-a como um resquício de ressaca das drogas que tivera de tomar durante a viagem. Era o tipo de dor de cabeça que às vezes sentia, quando as tempestades sopravam através do Mar de Vinho, em Thetis, um problema relacionado com a pressão barométrica e outros fenômenos meteorológicos. Quase que com certeza, nada significava em Darkover.

A sós com Ivor, ela sentiu-se perturbada também pela frágil aparência do velho professor. Sua pele estava muito pálida, por trás do que restava do bronzeado de Relegan. Margaret especulou se não deveria cancelar sua planejada expedição de compras e tentar convencê-lo a voltar ao Setor Terráqueo para uma visita ao serviço médico. Ivor detestava médicos, e sem dúvida resistiria aos seus esforços. Por isso, ela decidiu não fazer a sugestão... pelo menos por enquanto.

- Está se sentindo bem, Ivor? - perguntou Margaret, apesar de sua decisão.

Ela tentou disfarçar sua ansiedade, imprimindo à voz um tom despreocupado.

- Confesso que me sinto bastante cansado, Maggie. - Era a sétima ou oitava vez que ele a tratava pelo diminutivo carinhoso, o que ela achou um pouco inquietante. - Quanto mais velho eu fico, mais difícil se torna para meu estômago aceitar alimentos diferentes, para começar. Estes pratos de Cottman são muito saborosos, mas caem em meu estômago como tijolos. Eu gostaria de comer alguma coisa menos pesada... como uma canja e bolachas. .. do tipo que Ida faz.

Ele fez uma pausa, com um suspiro profundo, saboreando o pensamento.

- Não posso deixar de pensar, ansioso, nos confortos da universidade... luz elétrica, o sossego da biblioteca, pôr minha leitura em dia, organizar as anotações sobre Relegan. Venho tendo a fantasia de que não terei a oportunidade de fazer isso, que um garoto ainda imberbe, com a tinta fresca no diploma, vai se atrapalhar e destruir todo o nosso trabalho.

E onde eu fico nessa fantasia, Ivor?

- Posso compreender.

Margaret ignorou o princípio de irritação causado pelas palavras do professor. Foi dominada no mesmo instante por medo e culpa ao constatar que não sentia a menor saudade da universidade. Os sons e cheiros de Darkover a fascinavam, cercando-a como promessas de sereias, que nada tinham a ver com aquecimento controlado, níveis de iluminação ativados pela voz e os muitos outros benefícios de uma avançada tecnologia. É verdade que os lampiões bruxuleantes, velas e outras fontes primitivas de iluminação na casa de Mestre Everard pareciam ser uma bizarra afetação. Por que não havia eletricidade na Cidade de Thendara? Os terráqueos já haviam se estabelecido no planeta há décadas, mas continuavam confinados ao pequeno enclave em torno do espaçoporto. Não dava para entender. Era outro enigma assediando sua cabeça a latejar. Ela olhou para o sol vermelho, através das janelas altas da sala de jantar, depois para os pequenos lampiões acesos na mesa. Descobriu que não doíam em seus olhos. Na verdade, agora que pensava a respeito, a luz artificial parecia "certa", ao contrário do que acontecia com os diversos tipos de iluminação em todos os outros planetas em que já estivera.

- Acho que peguei um resfriado durante a nossa caminhada até aqui - acrescentou Ivor, interrompendo os devaneios de Margaret. - Porque tenho a sensação de que não consigo me esquentar direito.

- Ivor, ninguém consegue se manter realmente aquecido nestes trajes para todos os climas que o Serviço Espacial pensa ser a roupa mais apropriada. Acrescente-se a isso o fato de que acabamos de passar um ano inteiro quase nus num clima tropical. Pode ter certeza de que também me sinto enregelada!

Na verdade, agora que tomara a sopa, Margaret sentia-se quase confortável, mas queria ter a certeza de que não havia nada de errado. Depois de uma breve pausa, ela arrematou:

- É difícil se ajustar a uma mudança de clima tão radical. O professor riu.

- Sou apenas um velho, com as queixas de um velho, menina. Foi divertido, não foi, usar flores, plumas e contas no lugar de uniformes. Mas sabe o que o Serviço pensa de parecer e viver como os nativos... que idiotas! Sei que fiquei ridículo com aquele traje de plumas... Ida deu boas risadas ao ver os holópicos... mas a liberdade era maravilhosa. Este uniforme não é nada confortável, minha querida Pega. Acho que é muito pequeno nas costas, ou outra coisa parecida.

Desta vez o uso do apelido provocou um calafrio em Margaret. Ivor não costumava se mostrar afetuoso assim, de maneira tão ostensiva. Ela conhecia bem seus ânimos e hábitos, sabia que aquele comportamento era estranho. Observou-o com toda a atenção, mas ele parecia bastante comum... um homem pequeno e idoso, enrugado, com uma aparência de cansaço, talvez um pouco fora do normal, mas ainda assim a pessoa que ela tão bem conhecia, com suas disposições arraigadas. Não havia motivo para ficar alarmada. Ela vinha se sobressaltando com sombras, imaginando fantasmas em harpas, confundindo fadiga com doença.

Darkover era um planeta que a confortava pela quase familiaridade, mas também podia ser inquietante. Afetara seu julgamento... nada mais do que isso. Apenas uma boa noite de sono não era suficiente para restaurar sua saúde normal, boa demais, depois de tantos dias de viagem espacial e uma brusca e radical mudança de clima.

Ivor sorriu, alargando a boca murcha sobre os dentes enormes. Parecia esquelético no atual estado de Margaret, de sentidos aguçados. Ela conteve um tremor.

- Tem certeza de que está bem? Com todas as injeções que nos deram, não deveria...

- Não se preocupe comigo de uma forma tão exagerada, Maggie. Pode sair com aqueles dois rapazes e comprar alguns trajes locais. Sei que está ansiosa para se livrar desse uniforme. Se encontrar um bom manto de lã... nada luxuoso, é claro... que dê em mim, pode trazer. Vou tirar um cochilo agora. E estarei me sentindo bem outra vez quando chegar a hora do jantar.

Ele soltou outra risada. Margaret sabia que o velho recordava a capa preta e branca de Thetis que ela usava por cima do uniforme da universidade durante o seu primeiro e solitário ano ali. Isso e mais sua afeição por jóias faiscantes haviam lhe valido o apelido de Pega, a ave que tinha essas cores e gostava de levar objetos brilhantes para seu ninho. Mesmo na miscelânea da comunidade acadêmica, ela se mantivera diferente... um pouco estranha e exótica para as hierarquias da ordem de inspiração terráquea.

- Não estou exagerando, mas também não posso deixar de me preocupar com você.

Margaret tentou ignorar o sentimento de desamparo que de repente ameaçava dominá-la.

- Você é de fato uma criança maravilhosa. Tem sido como uma filha para mim... É verdade que na primeira vez em que a vi com um traje relegano tive pensamentos que não eram nada paternais. - Ivor sorriu ansioso, soltou um profundo suspiro. - Você me fez desejar ter cinqüenta anos de novo.

- É mesmo?

Margaret sentia-se fascinada por essa admissão, porque o professor jamais assumira qualquer atitude que indicasse que sabia que ela era uma mulher adulta. Havia uma certa segurança no comportamento de Ivor em relação a ela, algo que a impedia de ansiar pela confusão de relacionamentos amorosos e corações partidos que parecia ser com freqüência a essência da vida de seus colegas. Não pela primeira vez, mas com um renovado sentimento de surpresa, Margaret refletiu que alcançara quase três décadas de existência sem se tornar sexualmente ativa. Não era puritana, e ouvia as histórias tristes de colegas com curiosidade e interesse, mas sem a menor vontade de ir para a cama com qualquer das pessoas que já conhecera. Mantinha-se retraída, como se obedecesse a alguma espécie de instinto ou ordem. Ocorreu-lhe agora que isso era um tanto estranho, embora não parecesse importante. Afinal, não acarretava a sensação de que perdera algo na vida, não é mesmo?

- Ora, minha cara... posso ser velho, mas não estou morto! Você é uma mulher adorável. Os releganos presumiram a princípio que era minha esposa, ou pelo menos concubina. Ficaram perplexos ao descobrirem que dormíamos em cabanas separadas. Também ficaram fascinados por nosso comportamento... ou melhor, com sua ausência. Ao final, o chefe me perguntou se você era tabu. Respondi que era como uma filha para mim, o que fazia sentido para eles, à luz de sua proibição de incestos. Não é curioso que um tabu seja tão universal?

- Nem tanto. Parece estar gravado em nosso cérebro. Com umas poucas exceções.

Margaret lembrou que estudara algumas culturas em que o incesto não era proibido. Sabia que Ivor e Ida tratavam-na como uma filha, mas ouvir tal declaração a deixou mais comovida do que poderia imaginar. Sentiu-se enternecida com as palavras. Limpou a garganta, obstruída pelo súbito fluxo de emoções que preferia não experimentar. Para encobrir seus sentimentos, ela perguntou:

- Acha que Kuttner vai conseguir concluir um dia aquele seu estudo sobre os tabus de incesto?

- Ê bem possível... se ele não acabar perdendo o juízo e indo morar numa cabana em algum planeta esquecido, na beira da galáxia. Os antropólogos podem se tornar um pouco desequilibrados.

- Sei disso. Não são como os musicólogos, sempre científicos e objetivos!

Os dois riram da piada antiga. Há séculos que se discutia se era possível avaliar de maneira objetiva as disciplinas de uma cultura não-terráquea. Ainda se estava longe de uma conclusão. Margaret e o Professor Davidson aderiam à convicção de que não apenas era possível, mas também necessário, estudar uma cultura dentro do seu próprio contexto. Ele passara a maior parte de sua carreira acadêmica viajando para mundos distantes, a fim de provar essa teste. Um contemporâneo famoso, Paul Valery, defendera a tese de que o trabalho de campo era contaminado por sua própria natureza. Valery só saía do conforto do Prédio da Música na universidade para ir fazer as refeições em sua casa. Não deixara o planeta por décadas, nem mesmo para receber as homenagens de outras universidades. Nas raras ocasiões em que os dois se encontravam nos corredores do prédio, Valery contraía as narinas do nariz estreito e aristocrático, como se farejasse alguma coisa desagradável, e perguntava:

- Você ainda continua por aqui, Davidson? Não viajou para bater em tambores com alguns nativos ignorantes?

Ivor sempre respondia a essas perguntas sarcásticas com um silêncio distinto, seguindo direto para sua sala. Sua reputação era excelente, e não sentia a menor necessidade de dar uma satisfação. Margaret, por outro lado, muitas vezes sentira o desejo de dar um soco no nariz aristocrático de Valery, saindo em defesa de seu mentor. O professor empurrou sua tigela para o lado e anunciou, jovial:

- Vou tirar um cochilo agora, minha cara. Aproveite sua visita ao alfaiate, Maggie, e mantenha os ouvidos bem abertos para qualquer coisa interessante. Os tecelões muitas vezes têm canções do tear, que podem ser ignoradas em favor de outros tipos de música. Há muito tempo que considero que há uma rica área de estudo em...

- Vá logo para a cama, Ivor! Precisa agora de descanso, não de outra área de estudo!

Ele se retirou, rindo. O som alegre fez com que Margaret se sentisse menos ansiosa por vários segundos, enquanto continuava à mesa, saboreando um chá quente de ervas. As preocupações ressurgiram assim que esvaziou a xícara. Ivor parecia "errado", e era muito mais do que apenas fadiga. Ela desejou não ser assediada por súbitos lampejos de premonição e pela idéia absurda de que podia de alguma forma ouvir os pensamentos de outras pessoas. Mais do que isso, desejava que o temor que sentia nos ossos se desvanecesse, deixando-a em paz. Estava numa boa casa, com uma comida substancial, não tinha nada com que se preocupar.

Anya entrou na sala, fez uma pequena reverência. Tinha as faces rosadas do trabalho na cozinha, a papada tremia a cada movimento.

- Domna, os rapazes estão aqui para levá-la à Rua da Agulha.

- Ah, isso é ótimo! Anya, pode me dizer qual seria a quantia correta a pagar por um manto, botas e roupas como as que você e Mestre Everard usam? Não que os rapazes sejam capazes de me enganar...

- E não são mesmo. Posso garantir que são rapazes bons e honestos, caso contrário eu nunca os deixaria entrar nesta casa, muito menos sair daqui na companhia de uma nobre hóspede. Deixe-me pensar um pouco a respeito.

Enquanto a governanta pensava, Margaret especulou sobre o uso da palavra "nobre". Por que as pessoas se comportavam como se ela fosse especial? Teriam adivinhado que ela era filha do senador por Cottman? Não fizera qualquer comentário sobre isso, porque descobrira que as referências às suas ligações com os altos escalões faziam as pessoas reagirem de maneira estranha. Nunca usara a posição de seu pai no governo terráqueo, e com freqüência não pensava a respeito por meses a fio. Nada tinha a ver com ela. Mas "nobre hóspede"? Um funcionário político não podia ser considerado nobreza, até onde ela sabia... e o que sabia não era muita coisa. Não havia muitos nobres na universidade, a menos que se considerassem os diretores de departamentos e professores jubilados. Era apenas outro mistério darkoviano que ela não podia esclarecer, porque não conhecia as perguntas certas para fazer.

- Creio que cinco reis devem lhe proporcionar bons trajes, embora tudo custe mais caro agora do que no tempo em que eu era menina. Teria uma blusa, três ou quatro saias, uma anágua e uma túnica. As roupas de baixo devem valer cerca de sete sekals. Um bom manto de lã sai por três reis; um de couro, por oito. Quanto às meias, quatro sekals ou um pouco mais, a menos que queira uma seda rendilhada ou coisas parecidas.

Anya soltou uma fungada desdenhosa.

- Essas coisas que veste agora não serviriam para manter um cachorro aquecido nas montanhas. Não consigo entender por que os Terranan as usam... têm um cheiro esquisito e parece que nunca os esquentam. Já os vi nos observando com expressões de desprezo, ao mesmo tempo em que procuram se aconchegar em suas roupas. Qual é o problema com um bom manto de lã, em vez dessas coisas lustrosas que usam? Do que eles têm medo? Pensam que vestir coisas que crescem no lombo de animais vai fazer com

Anya deu de ombros e parou de falar.

- Não há nenhuma explicação para o gosto das pessoas, Anya. Margaret não ia tentar explicar a atitude que prevalecia na Federação

Terráquea, segundo a qual uma pessoa civilizada era evidente por suas roupas, o que significava o uso de fibras sintéticas. Só que entre os muito ricos o uso de tecidos naturais constituía um símbolo de riqueza. Seria insultuoso insinuar que havia algo menos do que civilizado nos trajes darkovianos tão simples... o que era a maneira como os terráqueos os consideravam.

- Ah, como isso é verdade! Sou uma velha e já testemunhei muitas mudanças aqui em Darkover... nem todas para melhor! Os rapazes querem partir e se tornar pilotos espaciais, enquanto as meninas estão cheias de idéias que não incluem cozinhar e casar. Agora, deixe-me pensar mais um pouco... Botas! Devem custar dois ou três reis; se forem de cano alto, valem mais alguns sekals. Entregue-se aos cuidados de Mestre MacEwan. Posso garantir que ele saberá encontrar o mais certo e apropriado num instante. E, se precisar de crédito, Mestre Everard pode dar uma fiança.

- É muita gentileza, mas Mestre Davidson prefere... e a universidade também... que paguemos à vista todas as nossas despesas. Mas agradeço pelo conselho.

Margaret subiu para o seu quarto, a fim de deixar o pequeno gravador e pegar seu dinheiro. Se escutasse alguma coisa que valesse a pena gravar no distrito de vestuário, poderia voltar mais tarde com Ivor. Ouvia o velho professor roncando em seu quarto, no outro lado do corredor; ele não costumava fazer isso, a menos que estivesse realmente exausto. Ela verificou as moedas em sua mão. Uma era de prata, a outra era de ferro. A de ferro era um sekal, que valia cerca de três centavos do Império; a outra era de um reis ou real, valendo cerca de três créditos. O funcionário da Rothschild & Tanaka não sabia com certeza qual era a cotação. Margaret, depois de um ano num planeta em que não se usava qualquer moeda, estava desacostumada a pensar a respeito. Na universidade, é claro, jamais cuidava dessas coisas, pois todas as suas despesas eram pagas com registros em computador.

Geremy e Ethan estavam acocorados nos degraus, absorvidos em algum jogo com as mãos. Os gestos, com a mão aberta, o punho fechado, ou dois dedos estendidos, eram feitos em rápida sucessão. Eles se levantaram de um pulo assim que a viram, fizeram uma reverência e sorriram.

- Bom dia, domna - disse Ethan.                                   r

- Bom dia. O que estavam jogando? Foi Geremy quem respondeu:

- Era "Tesoura, Pedra e Folhas".

Enquanto desciam pela rua, os rapazes explicaram os detalhes do jogo. Margaret já observara uma dúzia de jogos similares em uma dúzia de mundos diferentes. Foi o que comentou. Os rapazes ficaram fascinados. Ethan queria saber mais sobre viagens espaciais, mas Geremy disse que ele começava a bancar o chato com sua insistência. Por mais estranho que pudesse parecer, isso silenciou o rapaz de nariz afilado.

As portas das lojas na Rua da Música já haviam sido abertas. Margaret descobriu que as janelas cobertas, como pensara na noite anterior, eram na verdade aberturas largas, com balcões por trás. Além dos balcões, havia homens trabalhando em bancadas. Os cheiros de madeira, óleo e resina elevavam-se pelo ar, acompanhados pelos sons de cinzéis e lixas, ou por acordes ocasionais de algum instrumento musical: uma flauta, uma gaita de foles, uma harpa ou um fiol, sendo tocado ou afinado. Os rapazes explicavam tudo na passagem. A travessia da Rua da Música acabou num instante. O sol vermelho incidia em seu rosto, aquecendo-a. Era agradável, e pouco a pouco a incômoda dor de cabeça foi se desvanecendo.

Uns poucos artesãos ficaram olhando para ela. Um deles até deixou sua bancada para vir lhe fazer uma reverência. Outros franziram o rosto e se apressaram em desviar os olhos, como se embaraçados. Eram homens mais próximos de sua idade. Algumas mulheres jovens também fizeram a mesma coisa. Margaret começou a se sentir inibida.

- Ethan, diga a verdade: estou vestida de maneira indecente?

O uniforme cobria todo o seu corpo, embora fosse mais justo do que as roupas usadas pelas darkovianas que vira até agora. Ela tinha certeza de que os cabelos cobriam a nuca, lembrando a insistência do senador nesse ponto. A túnica estendia-se abaixo da cintura, alcançando quase os joelhos. Fora especialmente projetada pelo Serviço Espacial para os planetas em que os trajes para os dois sexos eram quase iguais. É claro que as noções de recato da Terra eram muitas vezes completamente falhas no trabalho de campo... um conceito que os funcionários da Federação pareciam incapazes de absorver.

- Ahn... não exatamente. O problema está em seus cabelos.

A informação a surpreendeu e a deixou um pouco irritada. Por que o Serviço Espacial não fornecia informações suficientes? Por que os dados sobre Cottman IV eram tão irregulares, com tantas lacunas? Depois de muitas décadas de presença da Federação no planeta, os etnólogos e antropólogos já deviam ter publicado monografias em quantidade suficiente para encher uma pequena biblioteca! Geremy acrescentou:

- E seu uniforme também. As pessoas nesta parte de Thendara não costumam ver mulheres do Setor Terráqueo... elas preferem permanecer nos prédios em torno do espaçoporto. O preto é uma cor incomum aqui, porque nossos tintureiros não conseguem produzir um preto firme e permanente. E, como prezamos muito nosso trabalho artesanal, preferimos não usar essa cor no vestuário. Nossos guardas usam mantos pretos, mas são feitos de uma lã naturalmente preta. Sabe como as pessoas são, domna... ficam olhando para qualquer coisa diferente.

Ele se remexeu um pouco, parecia contrafeito. Ethan apressou-se em acrescentar:

- É que não parece com uma Terranan, nem com alguém de Thesis... o tal planeta em que viveu. Parece com uma dama!

Margaret conteve um sorriso, pensando que não devia esquecer de comentar com Ivor a pronúncia errada de Ethan. De certa forma, todos os acadêmicos tinham de passar por Thesis, a palavra "tese" no Padrão Terráqueo, não e mesmo?

- O nome certo é Thetis, Ethan. Mas as outras mulheres no espaçoporto não se parecem com damas?

- Claro que não - respondeu Geremy. - São apenas mulheres. Era evidente que ele achava que era uma explicação completa. Por isso,

Margaret abandonou o assunto. Achou engraçado, quando pensou a respeito, compreender que sua própria definição do que uma "dama" parecia se baseava na aparência. Em termos mais específicos, uma "dama" parecia com sua madrasta, a Dama do Senador. Isso significava cabelos louros, estatura baixa e um busto generoso. Margaret nunca se sentira satisfeita com seus cabelos vermelhos e olhos amarelos. Seus centímetros constituíam uma provação desde a adolescência, exagerando em mais de trinta na direção vertical, escasseando em dez a quinze em torno do peito. Era muito alta em relação às nativas de Thetis. Mesmo na universidade, sua altura ainda sobressaía. Teria preferido cabelos escuros, como os do Velho antes de começarem a ficar grisalhos, e olhos escuros como os dele; ou olhos cinza-verde e cabelos dourados como Dio. Ela tratou de descartar esses pensamentos fúteis e passou a prestar mais atenção nos dois rapazes, que identificavam as várias lojas, depois que entraram no que era obviamente um distrito dedicado ao vestuário.

- Aquela é a loja em que meu irmão foi aprendiz, mas não vai querer entrar lá. Eles fazem péssimas imitações de roupas Terranan.

Geremy apontou para uma loja com um balcão largo, coberto por peças de fazenda. Não parecia tão ruim assim aos olhos destreinados de Margaret, mas dava para perceber que Geremy se envergonhava do lugar. Ela perguntou:

- Como o aprendizado funciona por aqui?

Os dois rapazes começaram a falar ao mesmo tempo, lisonjeados pelo interesse de Margaret. Empenharam-se numa competição amigável para ver quem a informava primeiro. Ela compreendeu que estava obtendo, sem qualquer esforço, informações pelas quais um antropólogo cultural venderia de bom grado a própria mãe, ou hipotecaria sua alma. O que eles lhe disseram parecia bem considerado e justo, diferente de alguns planetas, em que os jovens eram considerados como fontes de trabalho escravo ou mera propriedade. Era uma pena que tivesse deixado seu gravador na casa.

Entraram numa rua que parecia ser o seu destino. As placas mostravam desenhos de trajes prontos, ou em um caso apenas uma agulha dourada contra um fundo marrom, levando-a a concluir que devia ser uma loja especializada em bordados. Onde havia peças de fazenda empilhadas nas ruas anteriores, nesta se viam camisas ou túnicas penduradas. Havia muitos bordados em todos os trajes. Margaret notou trajes delicados, quase transparentes, e outros mais encorpados e mais práticos. Uma ou outra loja ostentavam um manequim vestido, no que era com certeza um traje festivo, um tecido brilhante e transparente, que ela calculou ser a seda rendilhada a que Anya se referira. A visão lhe provocou um estranho calafrio, evocando uma memória que era ao mesmo tempo vaga e inquietante. O portal em sua mente, por trás do qual espreitavam alguns medos da infância, abriu-se um pouco mais. Ela sentiu que a dor de cabeça voltava.

Ethan abriu a porta de uma loja, e os três entraram. Um homem enorme, de cabelos pretos, estava de pé no outro lado de uma grande mesa de corte, segurando uma peça de fazenda nas mãos, como se tentasse definir a melhor maneira de cortá-la. Sua expressão era distraída, como um artista no meio de uma criação. Margaret relutou em romper sua concentração. Mas seu jovem guia não tinha o mesmo escrúpulo.

- Tio Aaron, esta é a dama de quem lhe falei. Domna Alton, Aaron MacEwan.

O homem piscou, aturdido, depois fez uma reverência graciosa.

- Seja bem-vinda à minha loja, domna. É uma grande honra. Em que posso servi-la? Gostaria de um traje de seda rendilhada, em verde-vagem, para o festival do Solstício do Verão?

Ele apontou uma peça de tecido tremeluzente, encostada na mesa de corte. Pegou-a como se pesasse menos de um quilo e aproximou-a do rosto de Margaret, a fim de verificar se a cor combinava com sua pele.

Era um material que parecia muito caro e totalmente inadequado, embora as mãos de Margaret ansiassem em acariciar o tecido transparente. Perto de seu rosto, exalava uma fragrância que ela conhecia... um cheiro maravilhoso e limpo. Seria o próprio perfume da seda, ou de uma pessoa que usara um vestido assim e que pairava no limiar de sua mente consciente? E quem seria essa pessoa... Dio ou alguma outra mulher? Ela tentou afastar a lembrança no mesmo instante, porque sentia que começava a ficar tensa.

Margaret quase nunca comparecia a reuniões que exigissem o uso de roupas mais elegantes do que os trajes acadêmicos formais, no momento guardados em seu baú na universidade. Não percebera até então quantas vezes desejara usar vestidos como os de Dio, para jantares com autoridades e representantes de outros planetas, ou para algum baile ocasional. Ela não pôde conter um pequeno suspiro.

- Obrigada, mas eu estava pensando num traje simples e prático. Preciso de roupas quentes e resistentes, apropriadas para andar por longas distâncias ou para montar a cavalo. O tipo de roupa que Anya usa, só que para fora de casa. O que acha melhor, Ethan?

Ethan parecia chocado.

- Mas... ora, minha dama, Anya é uma velha!

Margaret ficou surpresa. Velha? Anya parecia ter cinqüenta anos, o que nada tinha de velha, por sua avaliação. Com os avanços na tecnologia de rejuvenescimento, cinqüenta anos não chegavam a ser nem de meia-idade. A expectativa de vida ali devia ser menor do que ela imaginara. Por quê? Não fazia sentido. E foi então que ela compreendeu que Anya era uma matrona, já passara da idade de gerar crianças. Muitas culturas vestiam as meninas e jovens de maneira diferente das mulheres maduras e casadas. Como ela pudera ser tão obtusa?

- Então o tipo de roupa que Moira usa.

- Uma serva, damisela? Não pode se vestir como uma serva. Tio, talvez aquele traje castanho avermelhado que fez para Mestra Rafaella, o que ela não gostou quando ficou pronto.

Aaron se mostrou aliviado.

- E o mais apropriado. Nunca foi usado, domna. A mestra achou que o bordado não combinava com ela.

A voz parecia mais esganiçada, um pouco tensa. Margaret observou-o atentamente, especulando se ele estaria mentindo... e por quê. Mas logo concluiu que se tornara hipersensível de novo. Devia fazer um esforço para manter o controle em todas as circunstâncias, ou acabaria não conseguindo mais funcionar direito. Como podia ter um sobressalto a cada cheiro e sombra? Já chega!

- As duas são do mesmo tamanho e têm a mesma cor. - MacEwan balançava a cabeça enquanto falava. - Esse rapaz será uma grande ajuda para mim... conhece o meu estoque melhor do que eu. Manuella!

Ele não notou a expressão de desagrado que o comentário pôs no rosto de Ethan. Margaret ofereceu-lhe um sorriso, e o rapaz se reanimou no mesmo instante. Ela mal podia acreditar que na noite anterior desconfiara de Ethan, pensando que podia ser um ladrão em potencial.

O chamado atraiu uma mulher de aparência cansada, vestida de maneira parecida com Anya. Margaret concluiu que seu palpite fora correto. Havia uma distinção, invisível para olhos destreinados, entre o que era apropriado para uma mulher casada e o que era certo para uma solteirona como ela. O pensamento deixou-a um pouco surpresa, pois nunca pensara assim a seu próprio respeito.

- Minha esposa, domna. Leve-a para dentro, minha cara, e mostre aquele traje castanho avermelhado que fizemos para a exigente da Rafaella. E você, Ethan, suba até o sótão e pegue aquela lã verde de coelho-de-chifre. É leve, mas esquenta bastante. Depois, dê um pulo à loja de Jason, o fabricante de cintos, e peça que ele mande uma boa coleção de cintos e luvas para uma dama. E você, Geremy, vá até Mestra Dayborah e peça-lhe que mande uma coleção de trajes íntimos femininos para uma dama... mais ou menos do tamanho de Mestra Rafaella.

Margaret descobriu-se sendo empurrada gentilmente para os fundos da loja, por uma Manuella que exibia um embaraço evidente.

- Perdoe-o, por favor, domna. Ele é um artista e às vezes esquece seu lugar. Não tem a pretensão de dar ordens a todo mundo.

- Acho que ele estava absorvido num processo de criação, quando entramos na loja.

Manuella soltou o suspiro de uma esposa que sofre há muito tempo, antes de sorrir, meio tímida.

- Ele tem se concentrado naquela peça de fazenda há vários dias. E um bom homem, nunca olha para outra mulher. Mas a maneira como se comporta com uma peça de qualidade é quase mais do que carne e sangue podem suportar. Como posso competir com lã ou seda rendilhada, até mesmo com o algodão da Cidade Seca? Mas ele é de fato um mestre artesão. Aqui está o traje castanho avermelhado feito para Rafaella... tão bom ou melhor do que qualquer outro que se pode encontrar em Thendara, mas não bastante bom para aquela... gata! Essas Renunciantes! Não são capazes de se comportar como uma mulher decente. Mas ela banca a superior, só porque seu pai foi coridom dos MacLorans. Esquece que um coridom não deixa de ser um servo... e posso garantir que não é melhor do que um honesto artesão!

Enquanto falava, a mulher desdobrava o complexo traje. Havia várias saias, cada uma pintada de uma tonalidade um pouco mais clara de castanho avermelhado, as bainhas bordadas com um padrão de folhas verdes, uma blusa da cor da saia mais clara, e uma túnica mais escura, completando o conjunto. Tudo usado ao mesmo tempo seria um traje pesado e quente; muito mais confortável, pensou Margaret, do que a roupa que vestia agora.

- E lindo e uma das minhas cores prediletas - comentou ela. - Mas acho que é um pouco... um pouco elegante demais para o que preciso. Quero um traje para trabalhar.

Margaret conhecia, de alguma forma, a palavra correta para definir o que queria, um traje diferente do que seria apropriado para uma ocasião formal. Não pôde deixar de se perguntar como sabia, já que tinha certeza de que não constava do disco de língua básica. Simplesmente lhe ocorrera, como a canção que tirara da ryll. Aquele traje castanho avermelhado, por mais adorável que fosse, era requintado demais para circular pela oficina de um fabricante de instrumentos musicais, cheia de aparas de madeira, ou recolher canções em cantos remotos de Darkover, um mundo ao mesmo tempo tão familiar e tão estranho.

- Gostei muito, mas queria um traje mais parecido com o que está usando.

Manuella olhou para sua saia e a túnica cinza, depois elevou os olhos para o céu. Margaret já vira esse gesto muitas vezes antes. Sempre significava a mesma coisa: por que as pessoas são tão incompreensíveis? Ela sentiu-se confortada pela humanidade da expressão, e retribuiu com um sorriso.

- Vestir-se como uma mercadora? Vai querer envergonhar sua família? Por favor, domna, qualquer um pode perceber o que é. Vestir-se abaixo de sua posição não vai enganar ninguém.

Sua posição? Margaret não podia entender o que a outra mulher estava dizendo. Será que aquelas pessoas sabiam que ela era filha do senador por Cottman? E que diferença isso fazia? Era evidente que Manuella sentia-se consternada pela possibilidade de vê-la usando a roupa errada, mas Margaret não podia entender o motivo. Já ia perguntar, quando uma velha en-carquilhada entrou na sala, os braços cheios de roupas. Ela parou, olhou aturdida para Margaret, depois se curvou numa reverência profunda.

Margaret ouviu um tênue sussurro de pensamento da mulher mais velha, enquanto era apresentada a Dayborah, a fabricante de roupas íntimas. Comynara! É como nos velhos tempos! Quando eu era uma menina!... Ela captou um sentimento de anseio, uma saudade por uma era passada, quando as pessoas conheciam seu lugar. Tratou de se desvencilhar da impressão de que ouvia os pensamentos da velha. Tinha certeza de que era confundida com outra pessoa, embora não pudesse imaginar quem fosse.

Cansada demais para continuar a argumentar, ela deixou que as duas mulheres a pressionassem a comprar as roupas que julgavam apropriadas. Experimentaram várias peças, antes que Manuella se declarasse satisfeita. As roupas se ajustavam com perfeição, embora os cordões na cintura e pescoço deixassem margem para variações. Manuella soltou a trança que ela fizera, escovou os cabelos e tornou a prendê-los com uma linda travessa de prata, em forma de borboleta, que surgiu em sua mão como num passe de mágica.

Parecia comprimir sua nuca, dando a impressão de pesada, embora fosse leve, e familiar, embora ela tivesse certeza de que nunca vira outra parecida. Acima de tudo, havia a sensação de que estava no lugar certo.

Enquanto as duas mulheres discutiam sobre os cintos, optando ao final por um verde escuro, Margaret experimentou a sensação desconcertante de perder a identidade pessoal. Não existia mais uma Margaret Alton, mas sim uma sucessão interminável de estranhas, envoltas por camadas de roupas, os cabelos presos por borboletas, com bordados e pulseiras nos pulsos. E os odores dos tecidos despertavam lembranças que ela tinha certeza de que não eram suas! Trouxeram a imagem perturbadora daquele homem de cabelos prateados que às vezes assombrava seus sonhos, além da megera de cabelos vermelhos a berrar. Margaret foi dominada por um caleidoscópio de imagens conflitantes. Fez um esforço para permanecer no aqui e agora... no presente, não no passado perigoso. Mas ressurgiu a lembrança do orfanato, que a dominara na noite anterior, e ela experimentou um medo repentino. Mordeu o lábio inferior, obrigou-se a prestar atenção às mulheres que se agitavam ao seu redor.

A lã verde de coelho-de-chifre foi comprimida contra suas mãos quase dormentes. Ela se descobriu a concordar mecanicamente em ter uma túnica para o festival, com uma blusa de uma fibra que parecia algodão. Só podia ser parecida, porque fazia frio demais naquele planeta para cultivar algodão.

Margaret tratou de se agarrar à sua condição de pesquisadora como uma bóia de salvação mental, à medida que as dúvidas aumentavam e a desorientação se tornava cada vez maior. Fez perguntas sobre o tecido e descobriu que era feito com as fibras da árvore de vagens de pluma. Ouviu as histórias do vigoroso carneiro que vivia nas colinas, e muitas outras. Enquanto escutava, conseguiu pouco a pouco recuperar a concentração. Manuella levou-a de volta para a grande oficina.

Aaron MacEwan mostrou uma peça de seda rendilhada numa tonalidade verde-azul escura, tão bonita que a encheu com um anseio sem palavras. Era ainda mais fascinante do que a primeira peça. Margaret sentiu que sua resistência começava a vacilar. Ele exortou-a a transformar a peça num vestido de baile. Margaret protestou em vão que não teria proveito para um traje assim. Todos sorriram, com trocas de olhares sugestivos, e continuaram a insistir, prevalecendo sobre seus débeis protestos.

Margaret vislumbrou-se de repente no espelho comprido que havia na extremidade da loja. Seus joelhos tremeram. Era uma estranha que ela contemplava ali. Apressou-se em desviar os olhos. Não era ela! E Margaret experimentou uma necessidade súbita e desesperada de ter de volta seu velho e lamentável uniforme. Tinha medo da mulher no espelho. Virou de costas, mordendo lábio e fazendo o maior esforço para controlar o tremor nas pernas.

Os rostos de Aaron, Manuella e Dayborah começaram a assumir a aparência de demônios cordiais. Sua cabeça latejava. Tentou não se encolher de medo, reprimir o pressentimento de que iam atacá-la e retalhá-la a qualquer momento. Todos pareciam falar ao mesmo tempo, e as palavras não faziam o menor sentido. Havia um intenso excitamento ali, mas ela parecia não ser capaz de participar. Turbilhonava ao seu redor, mas não chegava a envolvê-la. Seus ombros doíam com a tensão. Ficou atenta, à espera do som de trovoada. Tinha certeza de que uma tempestade começaria em breve. Mas ouvia apenas a conversa incompreensível do costureiro e sua esposa.

Aaron fez um desenho do traje proposto. Pediu a um dos rapazes que fosse chamar uma bordadeira. Margaret recorreu a seu último resquício de energia para pôr fim ao tormento de vozes ao seu redor.

- Parem, por favor! Não preciso de roupas para dançar! Sou uma pesquisadora, não uma princesa!

Ela correu para a sala dos fundos, tirou os trajes, tornou a vestir seu uniforme. Quando voltou, Dayborah não se encontrava mais ali, enquanto Aaron e Manuella exibiam expressões perplexas. Aaron parecia mais do que espantado... estava magoado!

- Mas o que vai usar no Baile do Solstício do Verão? - perguntou ele. Com toda a firmeza de que era capaz, Margaret respondeu:

- Pode ter certeza de que não irei a nenhum baile. Não freqüento esses círculos. O que preciso agora, Mestre MacEwan, é de um bom manto de lã para um homem que tem um pouco menos que a sua altura. Ele é bastante idoso. Preciso voltar logo para a sua companhia. Passei mais tempo aqui do que tencionava.

- Se é o que deseja, domna, assim será feito. Mandarei entregar tudo no Castelo ainda hoje.

Margaret podia sentir a confusão e um pequeno ressentimento do costureiro e sua esposa, como se os tivesse privado de um intenso prazer. Se ao menos ela pudesse encontrar um sentido em tudo aquilo... Seu cérebro parecia ter virado mingau... e mingau encaroçado ainda por cima!

- Castelo?

Era evidente que fora confundida com outra pessoa. Subitamente, seu senso de humor prevaleceu. Era como uma antiga piada de mau gosto. Devia parecer com alguma mulher da nobreza local, e haviam pensado que viera fazer compras ali. O jovem Geremy explicou:

- A domna está hospedada na casa de Mestre Everard, na Rua da Música. Eu já tinha dito isso antes!

Ele ficara vermelho de embaraço. Os mais velhos fitaram-no com uma expressão de desapontamento, logo acompanhada pela incredulidade. Aaron MacEwan balançou a cabeça.

- Se é o que diz, domna...

- É, sim - declarou Margaret, exasperada. - Agora, se quiser fazer um embrulho, eu mesma levarei.

- De jeito nenhum! Não seria apropriado. - Era óbvio que Mestre MacEwan não acreditava nela nem no sobrinho. Ele era a própria imagem da dignidade afrontada. - Pode deixar que mandaremos entregar dentro de uma hora.

Margaret desistiu. Eles se recusavam a acreditar que ela era quem dizia ser. Obstinados, continuavam convencidos de que era outra pessoa.

- Quanto custa?

Aaron olhou para o canto da oficina, distraído, enquanto Manuella indicava um preço muito mais baixo do que Margaret se dispunha a pagar. Pelo menos não estavam cobrando de forma exagerada. Assim que a embaraçosa questão comercial foi resolvida, Aaron limpou a garganta e disse:

- Domna, não nos cabe interrogá-la. Mas quando o jovem Ethan me contou quem era, ou parecia ser, eu me senti honrado por ter escolhido minha loja para fazer suas compras. Confesso que fiz tudo por minha própria glória. Não tenho muitas oportunidades de vestir uma dama do Comyn, pois elas compram as peças de fazenda e mandam suas criadas fazerem tudo. Sempre me sinto angustiado ao pensar em mãos inábeis manuseando as minhas lindas fazendas, mas essa é a realidade. Não sou um homem desprovido de reputação, mas só posso ir até certo ponto, atendendo aos arrivistas sociais, os artistas líricos e os menestréis itinerantes.

O crânio de Margaret agora vibrava, como se mil tambores ressoassem lá dentro. Sentia a pele gelada e pegajosa sob o uniforme. Recorreu às boas maneiras de que era capaz para responder:

- Pode ter certeza, Mestre MacEwan, que eu o escolheria se algum dia precisasse de um costureiro. Foi mais do que gentil. E sei reconhecer um artista quando o encontro. Não sei quem pensa que eu sou, mas posso garantir que não pertenço a esse tal de Comyn. Nunca ouvi falar nada a respeito!

Assim que as palavras saíram de sua boca, Margaret compreendeu que eram inverídicas e inacuradas. Conhecia a palavra, sabia o que significava, mas tudo se relacionava com aquele lugar em seu cérebro ao qual não queria ir. Mais do que isso, ao qual não deveria ir, mesmo que quisesse. O ar ao seu redor parecia completamente parado. Ela tornou a ouvir o som da trovoada de verão. Podia ver o espelho pelo canto dos olhos. Parecia que havia alguma coisa ali, a mera insinuação de um rosto. Mas era um rosto assustador, e ela se apressou era desviar os olhos.

E foi nesse instante que um enorme peso assentou sobre seu peito. Parecia que uma imensa mão pegava seu coração e apertava. Ela sentiu que se encostava na mesa de corte, a beirada comprimindo seus quadris, enquanto um túnel longo e turbilhonante abria-se diante de seus olhos. Caindo, caindo!'Margaret despencou para as profundezas, e tudo desapareceu na escuridão que a envolveu por completo.

 

 

5

Margaret abriu os olhos. Sentiu uma superfície lisa e dura por baixo de suas costas. Lá em cima havia vigas altas, pintadas com padrões intrincados, que faziam sua cabeça girar e o estômago embrulhar. Onde estava? Por um instante, não foi capaz de lembrar. Tornou a fechar os olhos e apertou com força, a fim de excluir a visão das vigas. Havia algo macio e pesado estendido sobre seu corpo. Ela fechou os dedos em torno, sentindo a carícia quente e áspera de uma manta de lã. Aspirou a agradável fragrância do bálsamo das montanhas. Fez um esforço para normalizar a respiração.

Quando tornou a abrir os olhos, deparou com o rosto escuro e barbudo de Aaron MacEwan a observá-la com a maior ansiedade. Dava para sentir alguma coisa sob seu pescoço. Margaret concluiu que devia ser uma peça de fazenda.

- Fique quieta, criança. Manuella já vai lhe trazer uma xícara de chá. Deu-nos um susto e tanto, desmaiando desse jeito. Não foi nada demais. Esta onda de calor também me deixa tonto às vezes. A loja fica muito abafada.

Onda de calor? Margaret sentia-se enregelada como um bloco de gelo. As mãos e os pés doíam de tanto frio, enquanto o peito se achava coberto por um suor gelado e pegajoso. Ela teve vontade de gritar ou rir por aquele absurdo. Procurou respirar fundo, impondo ao corpo uma calma que não sentia. Os acontecimentos do dia anterior afloraram em sua memória. Sabia que pelos padrões de Darkover era mesmo um dia quente.

Tentou sentar, e o mundo girou ao seu redor. Tornou a arriar, sem forças, furiosa pela traição de seu corpo. Havia algo errado, algo tão terrível que ela nem queria saber o que era. Mas devia! Era urgente. Só que sua mente se recusava a cooperar.

Mãos ajudaram-na a sentar, mãos ternas, cheias de calos, consumidas pelo trabalho, mãos de pessoas reais. Uma caneca de chá forte e perfumado foi encostada em sua boca. Sentia tanta sede! Ela bebeu, queimando um pouco a língua. Mel fora acrescentado ao chá, muito quente e doce. A terrível fraqueza começou a deixar seu corpo. Ela esvaziou a caneca, tomando o chá em goles demorados e desgraciosos. O açúcar entrou na corrente sangüínea como uma droga... e a memória aflorou.

Ivor! Há algum problema com Ivor! A certeza a deixou apavorada. Não podia dizer como sabia, mas por uma vez não tentou se persuadir de que era sua imaginação em ação. Era real demais para ser apenas imaginário. Os dentes bateram contra a beira da caneca vazia. O corpo todo tremia.

Margaret resistiu ao impulso de pular da superfície firme da mesa de corte e sair correndo para a Rua da Música. Só a certeza de que os joelhos vergariam ao primeiro passo fez com que ela permanecesse onde estava por mais alguns minutos, respirando tão devagar quanto podia. A disciplina do treinamento acadêmico prevaleceu. Pouco a pouco, a vertigem se dissipou. Uma noção de força retornou ao corpo.

- Por favor... preciso partir imediatamente!

- Mas ainda se sente mal, domna!

O protesto foi de Manuella, o rosto pequeno contraído em preocupação. Mesmo no tumulto de suas emoções, Margaret compreendeu que a preocupação era genuína, e ficou comovida. Aquelas pessoas eram estranhas, mas se comportavam como se ela importasse. Afetava um profundo anseio em seu coração, algo que fora reprimido. Nem sabia que existia até aquele momento.

Ela rangeu os dentes, fazendo um esforço para não se deixar absorver pela bondade daquelas pessoas. Afastou a manta de suas pernas e respirou fundo.

- Isso não importa. Preciso voltar o mais depressa possível à casa de Mestre Everard. - Margaret pôs os pés no chão coberto de retalhos e pedaços de linha, cambaleou como se estivesse embriagada. - Geremy... Ethan... levem-me de volta, por favor.

Os adultos e os rapazes trocaram olhares desconsolados. Aaron deu de ombros, como se dissesse "Faça-se a sua vontade". Margaret empertigou-se. Esticou a túnica do detestado uniforme, o corpo todo estremecendo. Não havia necessidade de se apressar. Sabia disso, no fundo de seu coração. Era tarde demais. Mas queria desesperadamente estar enganada. Tinha a nítida impressão de sua queda em espiral pela escuridão, a lembrança da mão apertando seu coração. Só que sabia que o aperto não fora em seu coração, mas no de Ivor. Desejava que fosse um sonho, mas tinha certeza de que era tão real quanto as mãos que agora ofereciam ajuda, um fato concreto e terrível.

Fora da loja, a claridade na rua era avermelhada. O enorme sol sangrento se encontrava bem próximo dos telhados das casas, projetando sombras profundas entre elas. Margaret pôs-se a andar depressa, os calcanhares batendo firme nas pedras irregulares do calçamento, acelerando o ritmo com as pernas compridas, até os rapazes ofegavam ao seu lado. O sangue latejava com toda a força, parecendo os tambores da morte de Vega VI. Latejavam em seus ouvidos até que se sentiu quase nauseada. Um pé escorregou e ela perdeu o equilíbrio, caindo sobre as palmas das mãos e os joelhos. A dor levou-a a soltar um grito estridente, imprecando com mais fluência do que imaginava que era capaz.

Os rapazes ajudaram-na a levantar. Margaret olhou para o corte numa das palmas como se fosse uma coisa remota. Podia sentir um filete quente escorrendo pela perna, por baixo do uniforme. Os cabelos finos haviam se soltado da travessa em forma de borboleta, que continuava no lugar. Esvoaçavam agora em torno de suas faces, com os rapazes observando, numa tensão evidente. Ela empurrou os cabelos para trás, impaciente, deixando uma risca de sangue na testa, sem perceber.

Onde se encontravam? As ruas pareciam intermináveis, dando voltas incontáveis, sob a claridade vermelha do sol poente. Por quanto tempo permanecera inconsciente? Por que deixara Ivor, quando sentira que não era a coisa certa? Os pés se deslocavam em passos rápidos, mecânicos. Ela concentrou toda a energia em chegar a seu destino, tentando não pensar, não imaginar o que já sabia, embora não pudesse dizer como sabia.

A porta da casa foi aberta no instante mesmo em que ela estendeu a mão para a aldraba de madeira. Mestre Everard, pálido e atordoado, postava-se ali, a pele quase tão pálida quanto os cabelos brancos, os velhos dentes amarelados se destacando. Os olhos azuis estavam marejados de lágrimas, numa profunda angústia, a aparência era desgrenhada.

- Ivor... - balbuciou Margaret, sentindo um frio no coração.

- Minha cara criança, tenho uma triste notícia...

- Ele está morto, não é?

A voz soou brusca e rude aos ouvidos da própria Margaret, rouca como o chamado de uma gralha. Everard acenou com a cabeça, enquanto a puxava para dentro da casa.

- Isso mesmo, ele partiu. O rapaz foi acordá-lo e não teve resposta. Deve ter morrido enquanto dormia.

- Mas ele não estava doente! - protestou Margaret, a voz estridente, como a de uma criança cansada e histérica. - Não pode ter morrido!

Mestre Everard ajudou-a a sentar, afagando sua mão com extrema gentileza.

- Não sabemos o que aconteceu, criança. Ele era velho. Estava exausto. Quando chega o momento de um homem, nada mais se pode fazer. Seu rosto é sereno. Não creio que tenha sofrido.

- Tenho de vê-lo!

- Não, criança. Não se encontra em condições de vê-lo neste momento. Fique quieta e procure se acalmar.

- Mas tenho de vê-lo... ficar ao seu lado!

Lágrimas de desamparo escorriam pelas faces de Margaret. Anya entrou na sala. Trazia uma bacia com água fumegante e uma toalha macia. Com murmúrios gentis, limpou as lágrimas do rosto e o sangue das mãos cortadas de Margaret. Ela estremeceu quando os cortes foram limpos e Anya passou uma pomada, que recendia a ervas. O mestre de música permaneceu atrás da governanta, retorcendo as mãos, querendo ajudar, mas advertido a não atrapalhar.

Margaret sentia a maior vontade de empurrar para longe as mãos de Anya, gritar com aquelas duas pessoas tão bondosas que pairavam ao seu redor. Mas carecia de força para sequer formar palavras. Tentou levantar, mas as pernas recusaram-se a sustentá-la.

Encolheu-se toda na cadeira, desejando despertar daquele pesadelo. Sabia que era real, mas se sentia muito distante. A mente flutuava sem rumo definido, o cheiro da pomada deixando-a sonolenta. Lembrou a maneira errada como Ethan pronunciara Thetis. Não tive a oportunidade de contar a Ivor sobre o planeta de "thesis". É um absurdo pensar nisso, mas ele teria adorado. Novas lágrimas afloraram a seus olhos.

- Vamos deitar agora - murmurou Anya.

- Tenho de vê-lo. Juro que vou ficar bem, se ao menos puder vê-lo...

- Não está em condi...

- Anya, pode levá-la até o corpo. Ela não vai descansar se continuar assim.

A voz de Mestre Everard soou estridente, angustiada e autoritária. A governanta soltou um grunhido, olhou para o velho e acenou com a cabeça. Ajudou Margaret a subir a escada. As duas foram para o quarto de Ivor. Anya parou na porta, enquanto Margaret se adiantava até a cama, os pés hesitantes agora. Não havia mais qualquer necessidade de pressa.

O quarto ficava no lado do sol vespertino, enquanto o dela era no lado do sol matutino. Os raios do sol entravam pela janela, iluminando o corpo na cama enorme. Ele parecia muito pequeno. E tranqüilo. Dava a impressão de que apenas dormia, como Margaret já o vira centenas de vezes antes. Mas ela sabia que desta vez o professor não mais acordaria.

- Ivor... - sussurrou ela.

Depois de uma pausa, Margaret repetiu o nome mais alto. O que eu poderia ter feito? Nada. Então por que sinto que, de alguma forma, a culpa é minha?

- Lamento muito. Por que me deixou sair? O que vou dizer a Ida? Como posso continuar sem você?

As palavras soavam absurdas em seus ouvidos, mas ela sabia que não eram. Eram apenas as palavras humanas, o que as pessoas pensavam e diziam quando alguém morria.

- Eu o amava, meu querido velho. Alguma vez lhe disse isso? Disse que foi como um pai para mim durante todos esses anos, que eu não teria trocado um segundo desse tempo por todos os créditos do universo?

Margaret inclinou-se e pegou a mão do velho, entrelaçou seus dedos gelados. Ainda podia sentir o cheiro familiar de Ivor nas roupas de cama, o perfume de sua água de colônia, a loção que passava nos cabelos ralos.

Ficou parada ali por um longo tempo, segurando a mão fria, pensando nos anos que haviam passado juntos, em toda a bondade com que fora cumulada. Ivor morrera, e ela teria agora de fazer o melhor de que fosse capaz, embora naquele momento não soubesse o que isso significava. Tocou no peito do velho, alisou as cobertas, acariciou com ternura o rosto enrugado. E depois se virou. Não havia mais nada que pudesse fazer ali.

A exaustão atingiu-a como um porrete nesse instante. Os joelhos vergaram. Ela cambaleou para o lado da cama, batendo com a canela na madeira, a dor tão intensa que fez pontos de luz surgirem diante de seus olhos. Sombria, tratou de reprimir a dor. Ainda persistiria mais tarde, tinha certeza. Sempre a acompanharia. Estava vazia de lágrimas, vazia de tudo, exceto a dor e a perda. Anya pegou seu braço gentilmente, levou-a para o outro quarto.

Muros, muros bem altos, erguiam-se por cima dela. Por baixo dos pés pequenos, havia enormes blocos de concreto. Margaret sentia-se muito pequena, impotente. Olhou para as enormes esculturas ao seu redor. Havia um teclado comprido, como uma onda de mar, elevando-se ao seu lado. Ela ergueu-se na ponta dos pés, tocou uma das teclas. Um suave som de carrilhão ressoou em seus ouvidos. Lembrava-a de alguma coisa, mas não conseguiu determinar o que era. Era um som de cristal delicado, provocando um calafrio.

Um urso, corpulento e redondo, dançava num pedestal, com uma atitude cordial. Havia a seu lado uma longa chapa de metal, com as intrincadas notações tridimensionais de Ceti. Margaret tentou decifrar o enigma, já que as notações de Ceti funcionavam ao mesmo tempo como notas musicais e linguagem escrita. Era um código, que ela sabia como ler, mas não havia o menor sentido no que via. Ela se movia como se avançasse por um líquido denso e invisível, lentamente, com a maior dificuldade. Circulou pelo jardim cheio de estátuas, à procura de uma saída.

Um sol amarelo, detestável para seus olhos, iluminava-a, furioso. Era urgente escapar. Ela foi andando ao longo dos muros, examinando as pedras, em busca de uma abertura para sair dali. Finalmente encontrou uma porta, tão pequena que não a percebera antes. Embora ela fosse pequena, a porta era ainda menor, pouco mais de trinta centímetros de altura, mal chegando a seus joelhos. Margaret estendeu a mão e girou a pequena maçaneta de metal. A porta estava trancada. Ela bateu com os pequenos punhos na porta, virou e sacudiu a maçaneta. As estátuas pareciam escarnecer de seu esforço. Exausta, ela encostou a cabeça na porta e chorou.

Margaret abriu os olhos cansados e sentiu o travesseiro sob a cabeça, a fronha úmida. Piscou várias vezes, clareando a vista. O quarto não estava muito escuro. Ela olhou para a janela, concluiu que devia ser o meio da tarde, pelo horário local. Por que se encontrava na cama? Detestava dormir durante o dia. Deixava-a desorientada e irritada.

Por que dormira de tarde? Margaret virou de costas e olhou para as vigas pintadas no teto. A memória voltou como um rio impetuoso, inundando sua mente. O desmaio na loja, o retorno apressado e angustiado à casa de Mestre Everard, a queda na rua. Ela levantou a mão e viu o curativo. Não, não fora sua imaginação. Ivor morrera mesmo.

As lágrimas voltaram, escorrendo pelas orelhas num fluxo angustiante. A dor se transformou numa espécie de raiva, um sentimento de ter sido abandonada de novo. Não podia imaginar de onde vinha aquele vazio que a preenchia com uma ira insensata, que parecia não ter qualquer alvo específico. Sentou na cama e imprecou fluentemente em várias línguas, expulsando a raiva com palavras, até que parecesse uma lunática para si mesma.

Tratou de se silenciar abruptamente, deixou que a mente vagueasse a esmo. Não queria pensar, porque o pensamento só servia para trazer a dor. Por um momento, desejou o esquecimento do vinho. O que a fez pensar no senador e suas bebedeiras. Seria por isso que ele bebia? Pela primeira vez, Margaret quase que o compreendeu. O sentimento era inquietante. Não queria compreender o pai... nunca!

Margaret baniu-o para o lugar em que lançava a maior parte das lembranças odiadas. Descobriu-se a recordar os intrincados dísticos rimados de Zeepangu. Naquele planeta amortalhado por uma permanente neblina, a morte era encarada como uma tentativa de se esquivar da responsabilidade. Os presentes nunca choravam ou demonstravam qualquer pesar. Em vez disso, criticavam o cadáver e lançavam os poemas de dois versos na sepultura. Margaret quase que compreendeu, por um instante, o sentimento de indignação e perda. Mas não vivia em Zeepangu e não sentia a menor disposição para condenar Ivor por abandoná-la. Apenas desejava desesperadamente que ele não tivesse morrido - por mais inútil que isso fosse -, pois assim não se sentiria tão apavorada. Como alguém podia suportar a dor causada pela morte?

Margaret ingressara na universidade como uma ingênua Colonial de dezesseis anos. Tudo era estranho e ela detestara, até que Ivor a encontrara e lhe proporcionara ao mesmo tempo um lar e um rumo para sua vida. Nunca imaginara como era ignorante até começar a conhecer os estudantes de outros mundos da Federação, todos com seus costumes e pressuposições. E cada um era tão provinciano quanto ela, tão certo de que o modo como se agia em seu mundo era a maneira certa.

A diferença entre Thetis e o mundo da universidade era a diferença entre o campo e a cidade. Margaret não desconfiara de que era tão antiquada, que até mesmo a filha de um senador podia ser uma tola, em determinadas circunstâncias. Que revelação! Sentira-se apavorada, até conhecer Ivor e Ida Davidson, que a fizeram se sentir bem-vinda. Podia recordar ao mesmo tempo a terrível solidão daquele período e o prazer de ser resgatada pelos generosos Davidsons.

Por um momento, ela relaxou na satisfação e segurança das lembranças que mais prezava. Mas o senso de indignação persistiu, como um tijolo aquecido logo abaixo do esterno. Não podia manter os sentimentos agradáveis na mente, porque a fúria continuava a borbulhar, por mais que tentasse impedi-la. Por que se sentia tão zangada? Era uma pessoa lógica, uma pesquisadora treinada, não é mesmo? Pior ainda, por que sentia raiva de Ivor? Que coisa terrível!

Margaret experimentava um senso de urgência agora, uma necessidade de descobrir a fonte de sua raiva, defini-la, empacotá-la e lançá-la para longe. Ninguém próximo dela jamais morrera antes. Tinha certeza disso. Ela sentou na cama, pôs os cotovelos nos joelhos dobrados, apoiou o queixo nas palmas, o rosto franzido.

Só que os sentimentos se recusavam a ser analisados e descartados. Pareciam um saco de gatos, todos uivando e arranhando. E todos tinham uma garra em sua barriga. Era mais do que Ivor, não é mesmo? Outra pessoa morrera, alguém de quem ela gostava? Margaret pensou bastante, mas não foi capaz de imaginar quem podia ter sido, exceto talvez a sua verdadeira mãe, a primeira esposa de seu pai. Quase nunca pensava sobre essa mulher. Nas poucas ocasiões em que o fizera, interrogando Dio a respeito, a expressão de dor e angústia da madrasta levou-a a desejar ter ficado em silêncio. Ou seria aquela outra mulher, a tal de Thyra, que ela tinha certeza ser parte do enigma? Estaria morta? Mestre Everard usara o verbo no passado ao se referir a ela. Por isso, Margaret supunha que devia estar morta.

Ufa! Ela recendia a suor, sujeira e desespero, só a Deusa sabia o que mais. Margaret não podia suportar por mais um momento sequer. Jogou as cobertas para o lado e procurou por seu uniforme. Não encontrou-o em parte alguma, mas os trajes darkovianos que comprara na loja haviam sido pendurados no pequeno armário. A sensação era maravilhosa sob seus dedos, reconfortante e segura.

Margaret prendeu os cabelos e tirou a camisola. Observou a claridade e concluiu que devia ter dormido durante um dia inteiro. Encontrou seu cronômetro e constatou que perdera de fato um dia. Não era de admirar que se sentisse tão atordoada. Estremeceu da cabeça aos pés. Pegou um roupão no armário, cobriu a pele nua. Depois, encaminhou-se para a enorme tina que sabia estar à espera no final do longo corredor. Darkover podia carecer de eletricidade e de veículos motorizados de transporte terrestre, mas pelo menos era um mundo extremamente civilizado em matéria de banhos.

Margaret quase sorriu. Descobriu que tinha os músculos do rosto tão rígidos que o sorriso era doloroso. Nunca mais ia querer sorrir! Sentiu-se idiota nesse momento. Ainda estava furiosa, e provavelmente assim continuaria por muito tempo... mesmo que não conseguisse encontrar uma razão específica para sua raiva. Não desapareceria apenas por desejar. E sorriria de novo, até soltaria boas risadas... Ivor haveria de querer que ela fizesse isso. Mas não neste momento. Por enquanto, teria de lidar com várias emoções fortes, tudo ao mesmo tempo, e nenhuma delas era agradável. Ela suspirou fundo, e uma parte de sua mente zombou por ser tão dramática. Era como se uma estranha tivesse invadido seu corpo enquanto dormia, outra Margaret que ela sabia que espreitava do fundo de sua mente, à espera da oportunidade de escapar e assumir o controle de seu corpo. Um absurdo, é claro, mas essa era a verdade da situação.

Ela arriou nas profundezas aquecidas do banho. Pegou um pote verde no lado da tina. Despejou parte do conteúdo na água, foi envolvida pela fragrância. Era suave, uma mistura de flores... e vagamente familiar. A pequena porta no sonho ressurgiu em sua mente, com absoluta nitidez. Ela ficou imóvel, recordando. O que havia por trás? Não era uma porta de verdade, mas ela sabia que possuía um significado.

Fechou os olhos por um momento. A suave fragrância de flores pareceu acalmá-la. Era pequena outra vez. O corpo de uma criança se sobrepôs ao seu. Sentava numa tina com água, perfumada com aquela mesma mistura verde. Braços graciosos haviam-na baixado para a água. De quem? Margaret tinha quase certeza de que esses braços pertenciam à mulher de cabelos vermelhos que aparecia em seus pesadelos. E havia mais alguém, que ela não podia ver. O homem de cabelos prateados?

E abruptamente Margaret recordou outra noite anterior à sua partida de Thetis, uma noite que banira para o fundo da mente, junto com muitas outras. Dias antes da viagem ela se sentira excitada demais para dormir, fazendo e desfazendo as malas uma dúzia de vezes, tentando decidir o que levar no pouco peso permitido para a viagem. Acabara descendo à procura de alguma coisa insípida para ler, pensando que a faria adormecer.

O Velho sentava diante do fogo, com um copo na mão. A memória de Margaret reconstituiu cada linha de seu rosto: a barba escura, os sulcos profundos entre as sobrancelhas, as cicatrizes que ele disfarçava com maquilagem cor de carne, quando saía de casa. Ela perguntara muitas vezes, quando era pequena, como o rosto dele ficara assim, mas o pai nunca respondia. Mais tarde, Margaret aprendera a não fazer perguntas, não lembrar, e nunca desobedecer suas estranhas ordens. Ele levantou os olhos e um princípio de sorriso contraiu seus lábios.

- Marja...

O pai sempre a chamava assim. O nome em seu passaporte era "Margaret", mas Dio e o senador sempre a tratavam por Marja.

- Excitada? - indagara o pai.

- Um pouco. Não conseguia dormir. Acho que vou descansar mais na espaçonave.

- Duvido muito. Quando partimos... quando viemos para cá, você ficou doente. Parece ter herdado minhas alergias à maioria das drogas do hiperespaço. E verdade que eles desenvolveram algumas novas desde então. Marja, lembra de qualquer coisa do tempo anterior à sua vinda para cá?

Por algum motivo, embora ele falasse com extrema gentileza, a indagação fizera o peito de Margaret se contrair em terror.

- Não muito. Era apenas um bebê.

- Não era, não. Tinha quase seis anos, idade suficiente para lembrar de muita coisa. Não recorda nada? Nem mesmo em sonhos?

- Não me lembro de nada.

Margaret hesitara. Seis anos? O pai devia estar enganado. Como ela poderia ter esquecido seis anos de sua vida? Sentira-se furiosa e enganada. Era uma raiva antiga e amarga, que ela preferia não ter. Ocorria em momentos estranhos, quando Dio tentava explicar o comportamento do senador em relação a ela, ou quando fazia perguntas e recebia a ordem para se calar.

- Sonhos? - acrescentara ela. - Claro que sonho... todo mundo sonha.

- Mas você sonha com o quê?

- As bobagens de sempre...

Nos poucos meses do ano em que os três ficavam juntos, quando o senador não estava ausente em seu trabalho, havia tamanha distância entre eles que não se podia dizer que tinham uma vida de família. A pergunta fizera Margaret sentir como se a privacidade entre os dois há muito consolidada tivesse sido violada. Ela se contraíra toda, desejando ter ficado em seu quarto.

- Sabe como é... - continuara ela. - Coisas... coisas simbólicas. Quartos trancados. Portas, muros. Alguma coisa muito valiosa se acha trancada por trás de uma porta.

Os olhos do senador se iluminaram.

- Que coisa?

- Uma enorme... uma pedra preciosa - murmurara Margaret, contrafeita. - Isso tem alguma importância?

- Pode ter. Há mais alguma coisa?

- Nenhuma.

Mas havia. O pai devia ter tido alguma percepção profunda nesse instante, porque insistira, suavemente:

- Conte-me, criança.

- Não é nada demais. Às vezes sonho com uma porta pequena que parece assustadora. Choro e bato na porta, mas não consigo abri-la. Ou talvez não consiga sair. Não se pode ter certeza nos sonhos. Sou muito pequena, mas a porta é ainda menor, e depois... - Ela fizera uma pausa, dominada por uma emoção que não podia definir. - E depois você e Dio estão lá, como sempre estiveram.

Mas você não estava quando fiquei trancada! Era extraordinária a raiva que ela sempre experimentava quando pensava no sonho. Torcera para que ele não ouvisse seus pensamentos - às vezes o pai dava a impressão de que podia fazê-lo -, porque não queria que tomasse conhecimento de sua fúria. Aparentemente, o senador não captara as fortes emoções que abalavam sua mente adolescente, ou já bebera demais para notar.

- Venha sentar aqui, Marja, no chão, ao meu lado, como fazia quando era muito pequena.

Por um segundo, o convite fora tentador. Ela adorava se enroscar ao lado do pai quando era pequena. Mas agora isso fazia com que se sentisse uma idiota.

- Não sou seu cachorrinho de estimação.

- Não é mesmo. - O ânimo tranqüilo se desvanecera de maneira súbita e inexplicável, como costumava acontecer quando o pai bebia. - E uma megera ruiva infernal... como sua mãe.

- Que bela maneira de falar sobre sua falecida esposa! - protestara Margaret.

Ela estremecera no instante seguinte. Era perigoso provocá-lo quando se encontrava naquele estado. Mas o senador apenas assumira uma expressão de surpresa.

- Marjorie? Por que pensou que eu me referia a ela? Eu a amava mais do que as palavras podem descrever. Mas ela não era sua verdadeira mãe.

- Dio é a única mãe que sempre conheci. Mas pensei que minha mãe biológica fosse sua primeira esposa, embora nunca me falasse a seu respeito. Presumi que a amara tanto que não conseguia falar sobre ela.

As palavras saíram depressa, por mais que Margaret tentasse contê-las. Ela sabia como era perigoso confrontar o Velho, e ficara surpresa consigo mesma. Tudo se tornara desconcertante desde que tomara a decisão de partir para a universidade em Coronis. O pai ainda não se sentia feliz com sua escolha, mas também não queria explicar o motivo.

Os segredos às vezes pareciam preencher a casa arejada com uma espécie de vapor, um cheiro de pesar e raiva antiga. Margaret se acostumara de tal forma com isso que quase nunca fazia perguntas. Tentara adivinhar o ânimo do senador e não conseguira, mordendo o lábio inferior, deslocando o peso do corpo de um pé para outro.

- Marjorie? - murmurara ele, de guarda baixa. - Está enganada. Sua mãe era a irmã de Marjorie, Thyra.

Margaret tentara digerir aquela informação nova e indesejável. Quem? Conhecia aquele nome... às vezes o pai o gritava durante o sono. E sempre provocava um calafrio nela. Sentira vontade de deixar a sala naquele instante, mas a curiosidade prevalecera.

- Já ouvi falar de alguns costumes matrimoniais muito estranhos, mas este é novidade para mim. A primeira criança sempre nasce da irmã da esposa?

Ela estava sendo sarcástica, e sabia disso, mas preferia morrer a deixar que o pai percebesse seu interesse. Só que ele não rira.

- Não foi deliberado - dissera o senador, desolado.

Margaret tinha idade suficiente para pensar que compreendia e ficar embaraçada, não sabia se por ele ou por si mesma.

- Dio sabe?

- Claro que sabe. Contei tudo a ela quando... quando me recuperei. Sabia que Dio e eu tivemos uma criança?

A dor na voz do senador era tão intensa que Margaret estremecera.

- Não, não sabia - dissera ela, a voz mais gentil.

- Foi por isso... que Dio ficou tão contente em ficar com você.

- Mas por que nunca tiveram outras crianças?

Ela ansiara por irmãos e irmãs, uma família grande e animada, como as que conhecia em Thetis. Sempre se sentira privada por ser filha única.

- Não tive coragem... - Uma imagem assustadora aflorara na mente de Margaret, de um bebê miserável, deformado demais para sobreviver, enquanto o pai continuava: - Não poderia fazê-la enfrentar aquilo... nunca mais. Nenhum homem jamais faria isso.

Ele hesitara, mas logo acrescentara:

- Dio disse que você deveria ser informada, mas sempre fui covarde demais. Nosso filho... morreu. Encontrei-a em seguida. Era uma criança maravilhosa, e Dio queria muito ter uma filha minha. Acho que ela tem sido uma boa mãe.

- É a pura verdade. Nunca falei o contrário. Mas onde está e quem é Thyra, minha própria mãe?

- Dio deveria ter tido uma dúzia de crianças... e adoraria. Mas eu não podia correr o risco.

Margaret não podia contestá-lo. Mas por que era um segredo? E por que ela sempre sentira que, de certa forma, a culpa era sua, que era por um fracasso seu que não havia mais crianças?

- Não é nada disso - garantira o pai.

Margaret compreendera que ele a ouvira, naquela estranha maneira que às vezes demonstrava. Nunca fora capaz de descobrir como o pai fazia isso... como se pudesse ler seus pensamentos. Ela tinha certeza de que isso era impossível. E seria inconcebível... as pessoas não deviam invadir as mentes de outras. O pai continuara:

- Nada teve a ver com você... embora eu saiba que, na sua idade, é muito difícil acreditar nisso. Quando eu tinha a sua idade, pensava que tudo de errado com meu pai era culpa minha. Imagino que você reaja da mesma maneira.

Como Margaret nunca pudera imaginar o pai como jovem, muito menos como errado, tratara de se retirar antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Lembrava que voltara para seu quarto. Reprimira as palavras do pai, obrigando-se a esquecer tudo o que ele dissera. E fizera a mesma coisa em outras ocasiões, ela compreendeu agora. Sempre que qualquer coisa a assustava, enviava a memória para um lugar de sua mente em que ficava trancada e oculta.

Agora, nas águas quentes do banho, ela se perguntou se a mulher em seus sonhos, gritando, de cabelos vermelhos, seria Thyra. Se fosse, Margaret detestava pensar a seu respeito. E quem era o homem que volta e meia vislumbrava? Se ao menos tivesse dito a verdade ao Velho, tantos anos antes, sobre os sonhos... Mas não confiara o suficiente nele para revelar seus sonhos. E não adiantava agora pensar no passado. Acabara, ficara para trás, não tinha mais qualquer importância para ela.

A Thyra que possuía aquela ryll seria a mesma mulher? Parecia provável, mas não havia ninguém a quem ela pudesse perguntar. Margaret notou que os dedos começavam a ficar enrugados da permanência na água. Era uma reação tão normal que se sentiu melhor, apesar de tudo. Empurrou para o fundo da mente aquele mistério que provavelmente jamais poderia esclarecer, e terminou o banho.

Se a mulher em seus sonhos era a mesma Thyra cuja ryll ela tocara dois dias antes, se era mesmo sua mãe, então o Velho teria muito que explicar. Se o visse de novo - não, quando - iria amarrá-lo numa cadeira e não o deixaria sair enquanto não contasse tudo! A resolução animou-a mais do que apenas um pouco, pois compreendeu que não era mais uma criança assustada. Hum... talvez um pouco assustada, mas com certeza não mais uma criança.

A burocracia, pensou Margaret, era uma coisa inventada pelo diabo para tornar mais difícil a vida das pessoas. Depois de dois dias discutindo com autoridades subalternas no Setor Terráqueo, ela foi informada de que não podia despachar o corpo de Ivor para casa porque não era parente. Ele teria de ser sepultado em Darkover; e se Ida quisesse recuperar o corpo, teria de vir buscá-lo pessoalmente. Margaret chamara a pessoa no outro lado da mesa por vários epítetos e se retirara furiosa, com a dor de cabeça que tinha certeza de que se tornaria um acessório permanente em seu cérebro.

Enviara um telefax para Ida - enriquecendo o sistema de comunicações da Federação de uma forma considerável, mas sem qualquer sentimento de satisfação pessoal - e recebera em resposta uma mensagem triste, pedindo que sepultasse o professor em Darkover, pelo menos por enquanto. Margaret encontrara um fabricante de caixões, com a ajuda de Anya, e escolhera o melhor. Fora uma experiência quase confortadora, porque o homem quisera saber tudo sobre Ivor... o que ele fazia e do que gostava. Mostrou-lhe desenhos de seu álbum, e Margaret escolheu uma guitarra para ser esculpida no caixão.

Havia agora um ponto em sua testa que latejava sem parar. Ela esfregava a pele até senti-la quase em carne viva... tão sensível quanto se encontrava por dentro. Preencher formulários e responder às mesmas perguntas muitas e muitas vezes quase que mantiveram a dor à distância. Mas nos momentos em que não se achava ocupada, sentia-se perdida e abandonada. Só a gentil presença de Mestre Everard e de Anya impediu-a de se entregar por completo à desesperança. Eles se comportavam como se tivessem conhecido Ivor e ela durante toda a vida, como se ele fosse um amigo da maior importância, não um estranho que tivera o mau gosto de morrer em sua casa depois de apenas dois dias de hospedagem.

Mestre Everard caminhava, agora ao seu lado, pelas ruas estreitas. O caixão era carregado por quatro membros da Guilda dos Músicos. Os criados vinham atrás. Margaret levava a preciosa guitarra do professor. Tinha a palma quase curada do corte que sofrera ao cair, quando voltava apressada para a casa do mestre de música. Mas o ferimento no joelho ainda tinha uma casca e continuava dolorido.

Ao se aproximarem do pequeno cemitério, que ficava na beira do Setor Terráqueo, várias pessoas pararam e olharam para a procissão. Margaret, absorvida em sua angústia, ignorou os olhares curiosos que recebeu de darkovianos e terráqueos. Vestia o traje que comprara de MacEwan, pelo calor e conforto. Tinha de se concentrar em estender um pé à frente do outro, pois volta e meia tropeçava na saia comprida a que não estava acostumada.

Passaram por baixo de uma bela arcada de pedra e entraram no cemitério murado. Havia algumas lápides, árvores aqui e ali. Lá na frente, Margaret avistou um agrupamento de vultos. Pensou que eram as estátuas de seu sonho. Mas depois uma se virou, e ela compreendeu que eram pessoas. A brisa trouxe a fragrância de bálsamo e agitou as roupas dos que esperavam.

- Espero que não se importe, criança, mas pedi a algumas pessoas da Rua da Música que viessem se juntar a nós.

Mestre Everard estava visivelmente cansado, e parecia apreensivo ao falar.

- Não me importo. Mas eles não o conheciam. Parece estranho.

- Tem razão. Mas tenho certeza de que todos gostariam de conhecê-lo. No curto período de nossa convivência, achei-o um homem muito bom. Sinto-me honrado por esse tempo, entende?

Margaret não entendia, mas parecia não haver mais nada para acrescentar. Por isso, ela seguiu em frente, os olhos ardendo com as lágrimas não derramadas, os músculos doloridos de fadiga. Chegou à beira da sepultura, olhou para os rostos dos estranhos e descobriu... que não eram estranhos, mas amigos que não sabia antes que possuía. O que lhe deu força para agüentar firme, enquanto o capelão terráqueo, em seu traje clerical cinza, uma tonalidade mais sóbria entre os verdes e azuis dos darkovianos, começou a ler as palavras do ritual. Ivor nunca fora um adepto de qualquer uma das muitas fés da Terra - se tinha uma religião, era a música - e por isso as palavras foram impessoais, quase sem impacto.

O caixão foi baixado para a sepultura, enquanto o capelão lia de seu livro, já muito usado, antigo e provavelmente valioso. As palavras, como o livro, eram surradas, com séculos de existência, formais e talvez sem sentido para os darkovianos, tanto quanto para ela. Quando acabou, o capelão abaixou-se, pegou um punhado de terra e jogou na sepultura. Retirou-se em seguida, seu dever cumprido.

Margaret aproximou-se da sepultura aberta, abaixou-se, pegou um punhado de terra. No instante em que seus dedos se fecharam, sentiu um prurido estranho, como se o próprio solo pudesse falar. Não foi capaz de se mexer por um momento. A sensação da terra quente em sua mão criava a impressão de que Darkover circulava por seu sangue. Mas logo ela largou a terra sobre a caixão, e permaneceu imóvel.

Assim ficou até que uma mulher se adiantou. Tinha os cabelos escuros, a pele clara, vestia-se de azul. Ergueu os braços e começou a cantar, numa voz de soprano forte, que ressoava entre as árvores e lápides. Era uma melodia triste, capaz de comover qualquer coração, em sua beleza e pureza. As palavras falavam de fontes que Ivor jamais veria, alimentos que nunca haveria de saborear, flores cujo perfume jamais poderia aspirar. Todos os sentidos eram celebrados. Margaret, perdendo o controle por completo, soluçou desamparada.

Assim que acabou, a desconhecida afastou-se para o lado. Um homem enorme tomou o seu lugar. Margaret reconheceu a voz. Era o homem que sucederia Everard como chefe da Guilda. Mas ela não conseguiu lembrar seu nome. Ele cantou uma linda canção, num darkoviano arcaico, e Margaret teve dificuldade para entender as palavras. O vigor exuberante da voz de barítono lhe proporcionou um sentimento de alívio. Descobriu que podia parar de chorar e apenas ouvir. Enxugou o rosto com a manga, a súbita calma envolvendo-a de maneira tão inesperada que mal sabia o que fazer.

Depois, Margaret pegou a guitarra antiga de Ivor, afinou-a com todo o cuidado, dedilhou as cordas. Pôs-se a cantar, com alguma hesitação a princípio, a voz um tanto rouca. Mas logo esqueceu de tudo na música, escolhendo as peças que o professor mais amava, antigas canções terráqueas, os coros dos companheiros bebendo na universidade. Cantou cantigas de amor de uma dúzia de mundos diferentes. Ao ficar cansada demais para continuar, concluiu com um canto fúnebre tão antigo que ninguém sabia de onde se originara. Falava de um herói, morto antes do tempo devido, bravo e destemido.

Quando levantou os olhos, Margaret percebeu que a pequena multidão ficara comovida com a música, chorava ou fazia um esforço para conter as lágrimas. Ela baixou a guitarra e inclinou a cabeça. Acabara. Everard tocou em seu braço.

- Vamos para casa agora.

Para casa? Que casa? Qual era o lugar a que pertencia? Todo o sentimento de perda voltou, corrosivo, fazendo sua cabeça doer.

- Obrigada por tudo, Mestre Everard. Tem sido muito gentil. Mas eu gostaria de continuar sentada aqui por mais algum tempo, em companhia de Ivor. E depois voltarei para sua casa. Pode fazer o favor de levar a guitarra de Ivor?

- Claro. Mas tem certeza de que ficará bem aqui sozinha?

- Tenho, sim. E agora já conheço o caminho de volta.

- Não duvido. É uma mulher extraordinária, Marguerida Alton. E, com isso, ele se retirou.

 

6

Sozinha agora, Margaret podia se entregar a seu lamento. Passarinhos cantavam nos galhos das árvores no cemitério; ela ouvia sem prestar atenção. Ao final, seu corpo decidiu que tinha fome e trouxe-a de volta ao presente, com um sobressalto. Era irritante. E foi então que ela quase pôde ouvir Ivor soltar uma risada e lhe dizer para não bancar a idiota rematada. Passou pelo portão de pedra do cemitério e começou a procurar um lugar para comer.

Encontrou um pequeno restaurante pouco antes da Zona Terráquea. Quase todos os clientes eram terráqueos, vestindo o uniforme de couro preto e falando em voz alta. Margaret estremeceu pelo barulho. Escolheu uma mesa no fundo, onde havia um relativo sossego. Deixou a mente vaguear a esmo, sentindo-se atordoada.

Uma jovem gorducha, num traje darkoviano, veio perguntar o que ela queria. Cansada demais para escolher, Margaret respondeu que podia trazer alguma coisa do cardápio escrito a giz no quadro por trás do balcão. Qualquer que fosse a comida, ela tinha certeza de que seria saborosa e acabaria com sua fome.

Pouco depois, a jovem trouxe um ensopado fumegante de coelho-de-chifre, um cesto com pão ainda quente do forno, e uma caneca de cerveja. Havia enormes pedaços de carne macia num molho grosso, além de vegetais com um gosto familiar. As ervas e condimentos ainda eram estranhos ao seu paladar, acostumado por muito tempo ao tempero suave da cozinha da universidade. Ela se descobriu a sorrir sobre a comida, recordando suas primeiras experiências alimentares ali. Como um dos colegas de turma comentara, enquanto ela contemplava horrorizada uma tigela de cereal sem qualquer sabor, oferecido como desjejum:

- A comida da universidade não ofende ninguém, já que não tem gosto nem caráter.

A lembrança agradável fê-la rir baixinho. Aquele ensopado tinha caráter, sem a menor sombra de dúvida. Margaret pôs-se a comer sem qualquer cautela, sem pensar em boas maneiras. Apesar dos melhores esforços e dos protestos persistentes de Anya, ela vinha vivendo de chá e nervos, ansiando de vez em quando por um café, mas sem qualquer premência genuína. Agora, sentia vontade de compensar, quase como uma vingança. Deixou que os sabores sedutores dominassem sua língua, enquanto comia com uma satisfação cada vez maior. E de repente se descobriu a pensar que já experimentara aquele prato antes. Por um momento, teve a sensação de que havia uma criança pequena sentada em seu colo, uma criança que mal conseguia alcançar a mesa, e ela levava o mesmo ensopado com uma colher à boca faminta.

Já estava quase acabando quando notou que um homem alto a observava. Ele usava a roupa de couro de um funcionário do espaçoporto, mas não exibia a atitude física de um terráqueo. Depois de um momento de perplexidade, ela concluiu que o homem não devia estar ali por mera curiosidade, como a maioria dos outros freqüentadores. Apressou-se a desviar os olhos, não querendo fazer um contato visual direto, pois fora informada de que isso seria uma grosseria. Mas sentiu que o homem continuava a observá-la. Começou a ficar um pouco alarmada, ainda mais quando o homem se levantou e veio até sua mesa.

Sem pedir permissão, ele se instalou na cadeira vazia no outro lado da mesa. Sorriu de tal maneira que dissipou quase por completo os temores de Margaret.

- Sei quem você é - declarou ele, sem qualquer apresentação. - A filha de Lew Alton, não é mesmo?

Margaret não podia negar sua paternidade, mas se perguntou como aquele homem podia saber quem ela era. Afinal, não se parecia nem um pouco com o Velho. Ele notou sua perplexidade e acrescentou, no mesmo tom afável:

- Sou o Capitão Rafael Scott, mas a maioria das pessoas me chama de Rafe.

Margaret limitou-se a fitá-lo. Como ela nada dissesse, o homem explicou:

- Somos parentes.

- Como assim?

- Sou seu tio. Lew nunca me mencionou?

Margaret desejou não estar usando o traje darkoviano, não se sentir tão cansada, e que as pessoas parassem de lhe falar como se ela conhecesse coisas que ignorava por completo. O homem tinha cerca de quarenta anos, era muito simpático. Mas ela se manteve desconfiada. A serviçal observava os dois agora, assim como vários freqüentadores. Margaret parecia uma nativa. Sabia que não se sentiria tão vulnerável, se ainda estivesse usando seu uniforme terráqueo... por mais desconfortável que fosse. Não queria ser confundida com uma prostituta do espaçoporto. Fora uma das poucas coisas que Dio lhe contara sobre Darkover que ela entendera muito bem.

- Isso mesmo, sou a filha de Lew Alton. Mas o único tio que conheço é o irmão de meu pai, que morreu há muito tempo.

Ela se perguntou o que o Velho pensaria daquela estranha conversa. Censurou-o silenciosamente, mais uma vez, por não lhe contar as coisas importantes que deveria saber. Era típico dele... deixá-la na ignorância de tudo aquilo! A raiva, que recuara para o fundo da mente enquanto comia, tornou a se avolumar em seu peito.

- Como eles a chamam?

- Marguerida - respondeu ela, usando a forma darkoviana de seu nome. - Como pode ser meu tio? Nunca ouvi falar de você.

- Já nos encontramos antes, mas eu era um garoto naquele tempo e você uma criança pequena.

- Não me lembro de nada.

Ela podia perceber a dúvida em sua própria voz, e desejou ser uma atriz melhor. Refletiu que era uma das conversas mais estranhas que já tivera, embora quase todas as suas conversas em Darkover tivessem um certo grau de estranheza. Não podia deixar de especular se o homem dizia a verdade. Ao se fazer a pergunta, teve uma impressão positiva. Talvez por sua cordialidade e franqueza. Dava para sentir sua honestidade através da mesa. Era quase como se Margaret pudesse lê-lo, que nem um livro aberto. Ele vai pedir outra cerveja agora.

Um momento depois, Rafe Scott fez sinal para a serviçal, mostrando a caneca vazia. Margaret remexeu-se na cadeira, inquieta, sem entender como soubera que isso ia acontecer. Gostaria de não ter mais aqueles incidentes angustiantes de quase-clarividência, ou o que quer que fossem. Sentiu que o rosto ardia, vermelho, como se estivesse bisbilhotando a privacidade de outra pessoa. O homem tornou a fitá-la.

- Não posso acreditar que Lew nunca tenha me mencionado. Éramos grandes amigos, embora eu seja bem mais jovem do que ele. Era mais velho do que Marius, o irmão de Lew, mas não muito. Marius teria ocupado seu lugar no Conselho quando fez treze anos, se tivessem permitido. Mas todos aqueles conservadores, com Dyan Ardais à frente, recusaram-se a concordar.

Margaret se surpreendeu ao perceber em sua voz a raiva antiga, mas nem por isso menos vigorosa. E havia outra coisa. Aquele nome... Dyan Ardais. Tinha certeza de que nunca o ouvira antes, mas deixou-a com vontade se esconder debaixo da mesa. Sentiu-se tão transtornada que quase perdeu a declaração seguinte do homem:

- Ele morreu antes de completar vinte anos. Seu pai ficou furioso.

- Que Conselho? Que conservadores? E quem é você, afinal?!

Ela falou com rispidez, perdendo finalmente o controle dos nervos abalados. Era um grande alívio ter alguma coisa com que se irritar, em vez de sufocar com uma raiva reprimida que a corroía. E era também vergonhoso, porque era uma mulher adulta, não uma criança rabugenta. Infelizmente, apesar da refeição suculenta - ou talvez por causa disso - Margaret sentia-se muito como uma garotinha que precisava de um cochilo!

Rafe Scott fitou-a calmamente, alteando uma sobrancelha, como se estivesse confuso. A serviçal trouxe a cerveja. Ele tomou um gole.

- Sou o irmão de Marjorie Scott. Ela era sua mãe, o que me faz seu tio. É muito simples.

Margaret estudou seu companheiro à mesa e parente recém-descoberto. Sua primeira reação foi a de que era bastante agradável saber que tinha uma família. Sempre invejara um pouco os vizinhos em Thetis e os poucos amigos na universidade por terem irmãos e irmãs, tios e tias. Era um lugar vazio dentro dela, que raramente se permitia visitar. Naquele momento, com a sensação da terra da sepultura de Ivor ainda em sua mão, a noção lhe proporcionava um estranho conforto.

O irmão de Marjorie Scott... O nome da primeira esposa de Lew Alton não despertava sentimentos mais fortes no coração de Margaret, porque ela sabia que aquela mulher não era sua mãe. Dio é que era sua mãe, toda a mãe que queria. Mas achava interessante que ele não soubesse que Marjorie não era sua verdadeira mãe, que ela nascera da tal irmã, Thyra. Mas se Thyra era irmã de Marjorie, como Lew dissera, então Rafe Scott ainda era seu tio. Ela pensou em interrogá-lo a respeito, mas depois concluiu que era melhor não fazê-lo. Alguma coisa dentro dela não queria falar sobre Thyra com ninguém.

- Mas você é terráqueo, não darkoviano, não é mesmo? Margaret ficou surpresa por saber que essa era a verdade.

- Meu pai, Zeb Scott, era terráqueo. Casou com Felicia Darriell, dos Aldarans, que foi sua avó. - Ele suspirou. - Aconteceu há muito tempo, e foi uma triste página na história de Darkover. Marius morreu, seu pai perdeu a mão, e o Domínio de Alton... Ora, é melhor não ficar relembrando o passado.

Margaret ressentiu-se dessa atitude.

- Pode estar tudo no passado para você, mas desde que cheguei aqui as pessoas insistem que devo saber do que falam... mas nunca me contam qualquer coisa. Sinto-me como se estivesse acuada no meio de uma conspiração de silêncio. E isso começa a me deixar muito cansada! Sua voz se alteou. Várias pessoas em mesas próximas se viraram para olhar. Margaret sentiu que ficava com as faces vermelhas, consciente da atenção que atraía. Engoliu em seco.

- Mas, com toda certeza, Lew contou ...

- Só vi meu pai por breves períodos durante os últimos dez anos... e ele nunca me falou muitas coisas nas raras ocasiões em que fui favorecida com a sua presença. - A amargura em sua voz era inconfundível. - Vim aqui numa missão da minha universidade, para realizar uma pesquisa musical. Até pouco tempo atrás, tinha a companhia de meu mentor, mas ele morreu de repente.

Margaret fez uma pausa, os olhos se enchendo com novas lágrimas.

- Acabo de sair de seu sepultamento! E o que sei sobre a história de minha família caberia num dedal!

Ela sentiu que todo o corpo tremia. Rangeu os dentes, em fúria por sua fraqueza. Se ao menos não estivesse tão cansada... Rafe se mostrou consternado. Inclinou-se para a frente e falou baixinho, mas com um senso de urgência:

- Quer dizer que não veio até aqui para o Conselho Telepático?

- Para o quê?

- Desculpe. Presumi que tinha vindo com Lew, para a reunião do Conselho.

- Até onde eu sei, o senador não planeja voltar a Darkover. Não tem o hábito de me informar sobre os seus movimentos... ou qualquer outra coisa!

Margaret sentiu que se retraía para um formalismo gelado, querendo se distanciar do pai e do homem no outro lado da mesa. A raiva ardeu em seu peito por alguns segundos. Tentou recuperar pelo menos um arremedo de calma.

- Quanto a conselhos telepáticos... por que ele viria? Ou mesmo eu, diga-se de passagem? A leitura de mente é uma coisa tão mítica quanto dragões.

O Capitão Scott recostou-se em sua cadeira, pensativo agora.

- Lew é mesmo um idiota teimoso... - murmurou ele, depois de um longo momento.

- Concordo plenamente!

Scott soltou uma risada. Apesar de sua fúria, Margaret descobriu-se a rir também.

- Ele sempre foi teimoso como uma mula. Mas não compreendo como pôde mantê-la na ignorância de sua herança.

O Lew que eu conhecia era teimoso, mas nunca imaginei que ele pudesse ser tão estúpido!

Margaret ignorou as palavras que ouviu... e que não haviam passado pelos lábios do tio. Queria voltar correndo para a casa de Mestre Everard e passar uma semana na cama... como se aquela caminhada por Thendara nunca tivesse existido.

- Acho que ele tinha bons motivos. Nunca pensou que eu viria para Darkover. E não viria mesmo se um dos professores na universidade não se metesse numa encrenca. Foi uma situação totalmente imprevista e inesperada. - Ela franziu o rosto. - Ele me disse para manter o pescoço coberto e não fitar as pessoas nos olhos... o comportamento polido aqui. Mas isso foi tudo. Posso compreender o primeiro conselho, mas ainda não sei por que devo evitar o contato visual.

- O Dom de Alton é a comunicação telepática compulsória, o que é facilitado pelo contato visual.

- Se não parar de falar em enigmas, vou despejar o resto de minha cerveja em cima de você! O que é esse tal de "Dom"?

Margaret sentia um arrepio de apreensão na nuca, espalhando-se pelo resto da cabeça.

- Seria um desperdício de uma excelente cerveja. Mal sei por onde começar, e não sei se cabe a mim informá-la. E este não é com certeza o lugar apropriado... há muitos ouvidos curiosos ao redor... para informá-la do que sei.

- Parece-me que já disse muita coisa... e nada foi informativo!

Ela teve a satisfação de ver Rafe ficar vermelho. Fitou-o fixamente. Notou que ele tinha olhos extraordinários, salpicados de pontos dourados, como os dela, só que mais penetrantes. Um momento antes, Rafe parecia ser seguro, mas agora dava a impressão de ser um tanto ameaçador, como se pudesse ler seus pensamentos. O pai às vezes a fitava assim. Ela reagiu agora como sempre fazia, pensando em alguma coisa neutra. Concentrou-se na partitura de uma complexa peça musical, quase que num reflexo. Depois de um momento, Rafe desviou os olhos. Pela primeira vez, Margaret notou suas mãos, constatando que ele tinha seis dedos, em vez de cinco.

A visão dos seis dedos trouxe um fluxo de memória, de outro par de mãos, as mãos de uma mulher, tocando as cordas de uma ryll. Também tinham um dedo extra. Margaret conteve um tremor e recusou-se a lembrar mais, pois sabia que aquelas mãos pertenciam a Thyra, a mulher de cabelos vermelhos. O homem mudou de posição na cadeira, apreensivo, soltou um suspiro profundo.

- Seu pai é um dos melhores homens que já conheci, Marguerida, mas nunca foi capaz de fazer com que sua vida pessoal valesse a pena. Que coisa terrível!

- Vida pessoal? Acho que ele nunca teve nenhuma, exceto com Dio.

- É muito rigorosa com seu pai, não é mesmo?

- Não tanto quanto eu gostaria de ser - respondeu ela, sarcástica.

Se pudesse naquele momento transportar o pai para Darkover, através dos anos-luz de distância, Margaret bateria com as mãos em seus ouvidos com a maior satisfação. A imagem lhe proporcionou um prazer intenso por um segundo. Rafe sufocou uma risada, que o tornou ainda mais bonito do que antes.

- Não podemos conversar em segurança aqui. Nas circunstâncias, acho que é melhor eu escoltá-la até o Castelo.

- Pode mudar de idéia, Capitão Scott. Não vou a nenhum castelo com você ou qualquer outra pessoa que se apresente para me dizer que conhece o senador. Posso ignorar os costumes darkovianos, mas sei que é sempre melhor não andar por aí com um estranho total.

Mas Margaret não podia deixar de se sentir curiosa, embora estivesse também irritada e exausta. Gostaria de poder experimentar apenas uma emoção de cada vez, de não ser pressionada para tantos cursos ao mesmo tempo. Lembrou como MacEwan e a esposa haviam presumido que ela iria para o Castelo, como as pessoas haviam-na tratado com extrema deferência, com base apenas em sua aparência. Rafe inclinou-se para a frente, fazendo pressão contra a beira da mesa, baixando a voz:

- Marguerida, você é uma pessoa muito importante, quer saiba ou não. Você tem uma obrigação a cumprir e é herdeira do Domínio de Alton. É de importância crítica para o futuro de Darkover que você me acompanhe.

Por um momento, ela não se mexeu, de tão compulsivas que eram as palavras.

- Acho que está enganado.

- Não estou, não. Eu era jovem quando deixou Darkover, mas não tão jovem que ignorasse que você possuía o Dom de Alton em alto grau... embora fosse apenas uma criança.

Não havia como se enganar com a premência em sua voz.

- Está me dizendo que eu era uma espécie de leitora de mentes, quando era pequena?

Uma memória a pressionava, algo sobre boas maneiras, e era bastante desagradável. Alguém a chamara de bisbilhoteira, embora todos ao redor rissem do comentário. A voz em sua mente era a do pai, embora soasse mais gentil do que jamais se recordava de tê-la ouvido em qualquer outra ocasião posterior.

- Não "uma espécie de leitora de mentes", criança, mas uma telepata das mais desenvolvidas.

- Neste caso devo ter perdido quando cresci, porque não resta mais nada agora!

Margaret não tinha certeza se acreditava no que dizia. Não podia negar que explicaria vários incidentes curiosos. Mas não queria acreditar, ela compreendeu. Fazia-a pensar no homem de cabelos prateados, a mulher de cabelos vermelhos e a morte.

De maneira súbita que a deixou atordoada, Margaret soube que sentira alguém morrer, em sua mente, há muito tempo. Era horrível, e ela gostaria de fugir da memória indesejável. O que acontecera fora tão terrível que procurara trancar no fundo de sua mente, para sempre... ou pelo menos assim pensara. Pôs as mãos na mesa, num reflexo, e tentou se levantar, dominada pelo terror. Mas uma forte mão, com seis dedos, segurou-a pelo pulso.

- Está tudo bem. Não precisa ter medo.

Margaret sentiu uma presença dentro dela, acalmando-a, confortando-a. Contemplou os olhos salpicados de dourado no outro lado da mesa, e mordeu o lábio até tirar sangue.

- Saia!- murmurou ela, furiosa e desamparada ao mesmo tempo. A sensação de invasão desapareceu, deixando-a com o terror antigo e familiar.

- Vamos embora, Marguerida. Temos de sair daqui, para podermos conversar.

Rafe jogou algumas moedas na mesa e levantou-se. Margaret também se levantou. Saiu para a rua com o Capitão Scott, mal notando os olhares curiosos de terráqueos e darkovianos. Estava atordoada quando parou lá fora. O sol do final da tarde projetava sua mortalha vermelha sobre a rua, tudo era familiar e estranho. O passado que ela não queria recordar se achava ao alcance de sua mão.

Margaret desejou poder simplesmente se afastar, deixar aquele homem sozinho ali, voltar para a casa de Mestre Everard. Queria tomar um banho quente demorado, vestir sua camisola aconchegante, e se refugiar na cama. Não queria de jeito nenhum envolver-se com mais enigmas ou algum conselho. Para seu desgosto, no entanto, a boca parecia ter um plano muito diferente, pois se descobriu a perguntar:

- O que é o Domínio de Alton?

As palavras saíram antes que ela pudesse censurá-las. O Capitão Scott suspirou.

- As grandes famílias de Darkover, chamadas de Comyn, possuem terras e propriedades ancestrais, que são os Domínios. Desde que Lew partiu que não há ninguém na linhagem direta de Armida, o baluarte de Alton. Dom Gabriel Lanart Alton é de um ramo secundário da família e tem sido... Ora, não importa! Se Lew estivesse morto, o Domínio seria seu. De qualquer forma, você é a herdeira de Alton. Na ausência de Lew, deve falar pelo Domínio.

Ele parecia muito seguro agora.

- Pare! Está indo muito depressa para mim. Sei que Darkover é feudal em suas estruturas culturais... os discos de informações me permitiram saber pelo menos isso. - Margaret franziu o rosto. - Já estive em quase uma dúzia de planetas, mas nunca encontrei nenhum com tão pouca documentação. É um absurdo. O único disco que obtive na universidade era quase inútil. Continha dados geográficos, alguma coisa da história, uns poucos costumes. Agora você me informa que minha família é poderosa, que sou dona de uma parte do planeta. E isso mesmo?

- É um sumário acurado, embora restrito.

- Não dá para acreditar. Se fosse assim, meu pai teria me contado.

- Lew renunciou ao Domínio quando partiu para ser nosso senador.

- Ahn... Então eu não sou dona dessa propriedade. É um alívio. Não quero ser sobrecarregada com...

- Marguerida, Lew renunciou ao seu direito pessoal ao Domínio de Alton, apenas isso. Pela lei darkoviana, ninguém pode abrir mão dos direitos de uma criança menor... o que seria um erro.

- Um erro? Se quer saber minha opinião, todo o planeta está torto em seu eixo mental, com um desequilíbrio de pelo menos trinta por cento.

Margaret sabia que bancava a teimosa, que no fundo apenas queria evitar as perguntas sobre o conselho e outras informações angustiantes que Rafe abordara. Ele riu, uma risada exuberante e jovial, muito humana e normal.

- Os terráqueos vêm dizendo essas coisas sobre Darkover há muitos anos.

- Sou uma cidadã imperial, o que me torna uma pseudo-terráquea. Não quero ter qualquer participação na política local. Vim até aqui para estudar música folclórica, e é apenas isso o que tenciono fazer.

- Esse problema dificulta um pouco a situação, mas tenho certeza de que pode ser resolvido... a questão de sua cidadania.

Margaret ficou furiosa.

- Problema? Não é problema nenhum para mim! E que importância isso tem para você... não é um terráqueo?

- Importa porque Darkover é o meu lar, porque amo este mundo. Posso trabalhar para o Serviço Espacial Terráqueo, mas meu coração está aqui. E sua presença é importante. Há coisas acontecendo que nem mesmo eu entendo direito. Mas tenho certeza de que, se os darkovianos não tomarem alguma providência agora, há uma boa possibilidade de que o planeta venha a ser absorvido pelos expansionistas. Se perdermos nossa posição de planeta protegido... Não suporto nem pensar a respeito. Não posso imaginar por que seu pai deixou-a na total ignorância sobre sua herança.

Pelo menos Margaret sabia quem eram os expansionistas, o que era algum conforto naquele mar de confusão. Quando ela e Ivor se aprontavam para deixar a universidade, ouvira dizer que os expansionistas haviam conquistado maioria no governo da Federação, pela primeira vez em mais de duas décadas. Havia muitas especulações sobre o que isso poderia acarretar, mas Margaret não se preocupara muito com o assunto. Concentrou sua atenção no último comentário de Rafe, porque sabia que o deixava confuso, o que também acontecia com ela.

- Acho que era doloroso demais para ele recordar o passado, falar a respeito. O homem que conheceu, Capitão Scott, não é o mesmo que eu conheço. O que Lew Alton era quando viveu aqui, o que quer que fosse, não existe mais. Creio que ele tentou me dizer alguma coisa, na noite anterior à minha partida para a universidade. Mas nunca tivemos o hábito de conversar, e nada aconteceu. Hoje em dia ele é um homem amargo e irritado, que bebe demais e não gosta de falar. E como optou por não me informar sobre minha história, presumi que havia um bom motivo para isso. Ele não é um homem impulsivo.

- Então Lew mudou muito. Sempre me pareceu impulsivo. Foi um marido afetuoso para minha irmã... jamais conheci alguém tão apaixonado. Não posso acreditar que você se lembre de tão pouco. Não lembra de Marjorie... parece bastante com ela... ou a casa de Alton aqui em Thendara... ou qualquer outra coisa? Eu tinha certeza...

- O que eu lembro ou deixo de lembrar não é da sua conta. Pareço com Marjorie ou Thyra? E se o Velho era tão apaixonado por ela, por que foi para a cama com sua irmã? Não fazia qualquer sentido. Nada fazia sentido para ela... nem a morte de Ivor, a deferência com que as pessoas a tratavam, ou sua repentina importância em alguma questão da maior importância para o planeta em que nascera. Por que não escolhera outro lugar para comer? Mais uma vez, ela teve a impressão de que Rafe podia ler seus pensamentos, porque ele disse:

- Quer dizer que sabe pelo menos isso, hem? Tem sua beleza pessoal, mas apresenta uma forte semelhança de família com as irmãs Scott... as duas. Se nós dois fôssemos vistos juntos, em trajes darkovianos, imagino que seríamos considerados como pai e filha.

- Foi por isso que me reconheceu?

- Notei primeiro os cabelos vermelhos do Comyn, depois a linha do nariz, os ossos do rosto. Demorei vários minutos para compreender que devia ser minha sobrinha... que só podia ser uma Alton. E como Lew só teve uma filha, presumi que era também uma Scott.

- Não está me contando tudo, não é?

Margaret podia sentir que ele escondia alguma coisa.

- Só um tolo esvazia todo o seu saco na mesa.

Margaret ficou tão irritada que sentou no meio-fio e recusou-se a seguir adiante.

- E só um tolo tenta empurrar um cavalo de volta para o saco depois que a metade já saiu.

Rafe sentou ao lado dela, estendeu os braços através dos joelhos. Não disse nada por um minuto inteiro. Quando falou, havia tanta compaixão em sua voz que deixou Margaret profundamente comovida:

- O que a tornou tão cautelosa, Marguerida?

- Segredos. Os muros do orfanato... e alguma coisa terrível que não consigo recordar.

As palavras saíram antes que ela percebesse que dizia mais do que desejava. Rafe tinha o ombro perto do seu. Margaret percebeu pela primeira vez que ele era pelo menos dez centímetros mais baixo do que ela. Baixo, sério, e provavelmente digno de toda a confiança. O vento mudou de direção, desmanchando os cabelos de Rafe. Ele recendia ao uniforme de couro terráqueo, mas havia mais do que isso, os cheiros de sabonetes locais e condimentos da comida darkoviana. O Capitão Scott tinha o cheiro certo, não anti-séptico e estranho, como a maioria dos terráqueos.

- Se quiser ir comigo ao Castelo do Comyn, acho que podemos responder a algumas de suas perguntas... e deslindar alguns segredos.

- Está lendo meus pensamentos?

O sentimento de confiança que começara a se formar em Margaret desapareceu no mesmo instante.

- Não. Não sou um telepata eficiente. Possuo laran apenas suficiente para captar pensamentos superficiais, não mais do que isso. E minhas pequenas habilidades se concentram mais na área do presságio. Não costumo freqüentar aquele restaurante, mas hoje me senti quase que compelido a comer ali.

- Laran? O que é isso?

Margaret tinha a impressão de que conhecia a palavra, que seu significado era muito importante, mas não podia determinar por quê. Como Rafe podia falar sobre ser um telepata como se fosse uma coisa comum, em vez de algo impossível?

Em seu íntimo, podia sentir algo se agitar, algo sombrio e assustador. Sabia muito bem o que era, porque sempre estivera ali, um rosto apavorante que a observava de espelhos, dizia-lhe para se manter apartada de todos. Agora, queria que ela ignorasse aquele homem, que não escutasse o que ele dizia. Experimentou a sensação de que a coisa dominava seu cérebro; quanto mais apertava, porém, mais ela queria resistir. E o medo que sentira desde que soubera que viria para Darkover aflorou, deixando-a um pouco sufocada.

- Venha comigo para o Castelo do Comyn e prometo...

- Por que não pode me contar agora?

- Porque não é um assunto para ser tratado numa rua pública.

Rafe parecia consternado. Embora fosse mais baixo do que ela, Margaret desconfiava de que ele poderia forçá-la a acompanhá-lo, se assim desejasse. Ela compreendeu que se encontrava numa encruzilhada. Se enveredassem por um curso, os acontecimentos seguiriam em sua direção; se fosse para o outro lado, tudo seria diferente. Era quase como se pudesse contemplar vários futuros se desdobrando diante de seus olhos, todos sinistros e vagos. Tinha de optar... e sentia-se tão cansada. Se deixasse aquele homem agora, uma coisa muito ruim aconteceria. Tinha certeza.

O conflito interior pareceu se prolongar por uma eternidade, embora ela soubesse que apenas uns poucos segundos transcorreram. Aquela força fria que a fazia ter medo de espelhos tentava agora afastá-la do Capitão Scott. Como estava com raiva, Margaret decidiu se opor. E assim que tomou essa decisão, o sentimento de medo se desvaneceu um pouco. O futuro não mais parecia tão aterrador quanto fora um momento antes. Determinada, ela empinou os ombros.

- Está certo. Irei com você... mas não vou me transformar numa latifundiária feudal, não importa o que venha a descobrir!

O Capitão Scott limitou-se a sorrir.

 

7

O Castelo do Comyn era o prédio imenso e branco que Margaret notara ao levantar os olhos da praça ao lado do quartel-general terráqueo. Foi uma longa caminhada. Ela passara tanto tempo de pé naquele dia que sentia-se cansada quando finalmente chegaram lá. Seguiu seu parente recém-descoberto pelo pátio externo, observando os detalhes arquitetônicos como qualquer turista. Era impressionante, mas ela decidiu que não queria ficar impressionada. Não se podia dizer que nunca vira castelos antes... e em matéria de castelos, aquele não era o maior nem o mais espetacular que já conhecera. Essa distinção ainda pertencia ao antigo Palácio Imperial em Zeepangu, um único prédio que se estendia por vários quilômetros quadrados.

Este castelo deve ser um autêntico labirinto. No instante em que esse pensamento lhe ocorreu, Margaret "viu" padrões de corredores e cômodos, em andares sucessivos. Compreendeu que, de alguma forma, possuía um mapa interno daquela construção. Havia passagens secretas e salas em que ninguém jamais entrara em gerações. Era um centro de conspirações, rivalidades e antagonismos antigos. Como sei de tudo isso?

Outra lembrança incômoda agitava-se no fundo de sua mente. Margaret olhou para uma pequena sacada que se projetava de um dos andares superiores. A memória de uma sala grande, com um tapete espesso e pesados móveis de madeira, flutuou diante de seus olhos por um momento. Havia uma mesa grande. Lew, muito mais jovem do que o homem que ela conhecia, sentava por trás. Parecia enorme. Margaret compreendeu que o via através dos olhos de uma criança, fitando-o do chão. Os padrões do tapete destacavam-se entre suas pernas esticadas. Ela podia ver mãos roliças de criança acompanhando as curvas. Devo ter vindo aqui antes. Mas isso não explica o sentimento de que conheço os caminhos no castelo inteiro. Quando as coisas vão começar a fazer sentido?

Margaret desviou os olhos da sacada, interrompendo o fluxo de lembranças inquietantes. E descobriu-se a olhar atentamente para a torre alta num lado do complexo. Era o único lugar de que não tinha uma imagem nítida. Sentiu um calafrio, um medo profundo. Tratou de desviar os olhos, furiosa. Estava cansada de se sentir como um peão num tabuleiro de xadrez... e, de certa forma, era tudo culpa de Lew Alton! A fúria ajudou-a, permitiu que relaxasse um pouco.

Eles subiram os degraus para a porta dupla de madeira, em que haviam esculpido estrelas e outras figuras que ela não pôde identificar de imediato. Havia dois guardas uniformizados ali. Tinham uma espada no lado do corpo, mas nenhuma outra arma. Havia alguma coisa em sua postura que indicava que sabiam como usar aquelas armas arcaicas, que nada tinham de cerimonial.

Os guardas abriram a porta, batendo continência para o Capitão Scott como se ele fosse um velho conhecido, e ignorando-a por completo. Margaret experimentou um profundo senso de alívio ao entrar no Castelo do Comyn sem provocar comentários. Depois de tantos anos apresentando documentos por toda parte, em decorrência da excessiva burocracia dos terráqueos, era bastante agradável poder entrar num prédio com tanta facilidade.

As portas davam para um vasto vestíbulo. O chão era coberto por um tapete delgado. Os pés de Margaret, cansados e inchados depois do longo dia, sentiram-se revigorados pela maciez por baixo das solas. Havia estandartes armoriais pendurados ao longo das paredes, as cores intensas contra a pedra branca translúcida. A luminosidade do sol poente passava pela pedra e iluminava o lugar com uma estranha claridade. Margaret não conseguiu decidir se era triste ou festiva... ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Rafe Scott levou-a para um corredor com várias portas. Era bastante largo e espaçoso para que várias pessoas pudessem andar lado a lado. Era seco e limpo. Havia uns poucos quadros ali, de pessoas na maior parte, e mais estandartes armoriais. O Castelo do Comyn, concluiu Margaret, não era um lugar aconchegante. A altura das paredes e a decoração austera começavam a deixá-la sufocada. Ansiou por voltar à casa confortável de Mestre Everard. Anya estaria preparando o jantar naquele momento, o aroma da comida e o som de música se espalhariam por toda parte. Embora tivesse comido apenas uma hora antes, Margaret descobriu agora que tinha fome outra vez, sentia um profundo cansaço.

O corredor era muito comprido. Ela viu pessoas passando de um lado para outro. Scott deteve uma delas e disse alguma coisa, em voz tão baixa que Margaret não pôde ouvir, apontando pelo corredor. O servo acenou com a cabeça, lançou um olhar curioso para Margaret, e depois se afastou.

Entraram finalmente numa sala preparada para reuniões. Havia fileiras de cadeiras e uma mesa comprida numa extremidade. Rafe indicou uma cadeira. Ela sentou. Tinha uma bolha num pé, suas costas doíam. Ficou observando, sem a menor curiosidade, enquanto ele falava por uma espécie de caixa de comunicação na parede. Margaret limitou-se a esperar pelos acontecimentos. Parte dela preferia não ter vindo, enquanto outra parte queria acabar logo com a tal reunião, a fim de poder retornar à sua vida antiga.

Enquanto esperava, Margaret descobriu-se a refletir sobre sua vida. Tinha a impressão de que era guiada por algum caminho invisível, que não gostaria de explorar. Lembrou algumas discussões filosóficas entre os estudantes que ouvira na universidade, se o homem era predestinado ou se tinha livre-arbítrio. Nos milhares de anos da história humana, ninguém jamais chegara a uma conclusão plausível. Ela desconfiava de que não se chegaria. Ainda assim, não pôde deixar de especular se seu encontro com Rafe Scott fora destino ou coincidência. Ele parecia pensar que era a primeira opção. Margaret não se sentia nem um pouco feliz ao constatar que quase acreditava nele.

Estava absorvida nessas reflexões, quando dois homens entraram na sala. Não tinham os rostos jovens. A primeira impressão foi a de que tinham a mesma idade de seu pai. Os movimentos dos dois confirmaram o palpite um momento depois, pois exibiam aquela segurança que só surge com o passar dos anos. Um dos homens parecia familiar. Margaret compreendeu que vira seu retrato no corredor. Pararam ao lado um do outro. Havia algo profundo e íntimo na pose que assumiram. O homem familiar era esbelto, com a cabeça toda branca típica de alguém muito mais velho. Ele sorriu para Scott:

- É maravilhoso tornar a vê-lo, Rafe. Já tem muito tempo que não nos faz uma visita. O que aconteceu? Posso presumir que não há nenhum problema?

O tom era cordial e descontraído, sem qualquer formalidade, mas por trás das palavras Margaret percebeu um tom de preocupação.

Antes que Rafe pudesse responder, o homem olhou para Margaret. Seus olhos se arregalaram um pouco. Foi um olhar rápido e indireto, mas nem por isso menos penetrante. O outro homem também a fitou. Margaret sentiu um calafrio quando seus olhos se encontraram. Baixou os olhos para seu colo e estudou as mãos por um momento.

- Mas você deve ser a filha de Lew Alton! Eu reconheceria essa linha dos cabelos em qualquer lugar, embora não pareça com ele quanto ao resto. Sempre invejei os cabelos de Lew quando éramos jovens. - O homem sorriu com uma sincera simpatia e adiantou-se. - Onde ele está?

O homem fez uma pausa, como se esperasse que o Senador estivesse à espreita debaixo de uma das cadeiras. Ficou bastante desapontado.

- Ele não está aqui, não é mesmo? Quando nos mandou o telefax em que renunciava ao cargo, pensei que voltaria logo em seguida. Mas creio que eu já teria sabido se Lew estivesse em Darkover. Ele tem uma presença muito forte. Mandou-a para tomar seu lugar no Conselho Telepático?

Enquanto o homem falava, Margaret teve a súbita certeza de que seu nome era Regis Hastur... embora não pudesse imaginar como sabia.

Renúncia? Há semanas que ela não prestava atenção ao noticiário; e no turbilhão da morte de Ivor, também não se dera ao trabalho de pegar suas mensagens. Talvez fosse por isso que Dio não respondera: estavam em trânsito entre as estrelas, em algum lugar. Por um motivo que desconhecia, a idéia de que seu pai deixara o Senado era inquietante. Mas, obstinada, ela não queria parecer ignorante. Deixava-a numa desvantagem de que não gostava. O enorme prédio parecia comprimi-la.

- O que quer que seja isso, ele não me mandou para participar de qualquer reunião - respondeu ela, friamente.

Será que todas aquelas pessoas imaginavam que ela não tinha qualquer outro propósito na vida que não atravessar metade da galáxia só para comparecer a uma reunião? Eram provincianos demais. A irritação que ela experimentara no restaurante, ao conversar com Scott, voltou com a maior intensidade. Darkover parecia ser um planeta povoado totalmente por lunáticos, que presumiam que ela sabia de coisas que ignorava, nunca lhe davam uma resposta razoável, nem se apresentavam antes de começar a atormentá-la com aquele absurdo que era o tal Conselho Telepático! E não apenas eram provincianos, mas também grosseiros. Rafe tossiu e disse:

- Regis, ela não sabe do que você está falando. Lew nunca lhe falou... sobre qualquer coisa, até onde posso saber.

Regis Hastur ficou um pouco vermelho. O quê?

- E eu esqueci as boas maneiras. Perdoe-me. Sou Regis Hastur, e este é Danilo Syrtis-Ardais, meu paxman.

Ele fez um gesto gracioso para o homem parado ao seu lado. A menção ao nome deixou-a tensa, como a referência anterior de Rafe a alguém chamado Dyan Ardais. Margaret queria se virar, qualquer coisa para evitar os olhos daquele homem, como se ele representasse uma ameaça. Ainda assim, ele parecia bastante comum, apenas um homem esguio, usando uma espada, parado ao lado de Regis, numa atitude de vigilância. Por que então ela sentia a pele arrepiada? Era um absurdo total, e Margaret censurou a si mesma por ser tão tola. Mas logo ela teve certeza de que os dois homens sentiam seus pensamentos, haviam percebido seu medo e confusão. Ficou furiosa com a invasão de sua privacidade, além de embaraçada por ter medo de um total estranho. Só porque ele tinha o mesmo sobrenome de alguém que não podia lembrar direito, mas que temia, não era razão para ficar furiosa, não é mesmo? E toda aquela história de telepatia... não passava de um absurdo. Sua imaginação se tornara desenfreada apenas por uns poucos incidentes isolados que pareciam telepatia. Ainda assim, sentiu que corava.

- Regis Hastur? É o Regente, não é mesmo? - Pelo menos o disco lhe dera essa informação. - É um prazer conhecê-lo.

Margaret se perguntou se deveria ficar de pé e fazer uma reverência, ou qualquer outra coisa parecida. Suas pernas pareciam geléia agora, a cabeça latejava.

- Tenho esse dever. - Ele não parecia muito satisfeito com a função. - E me sinto honrado em recebê-la no Castelo do Comyn. Esperava a volta de Lew. Posso presumir que ele a mandou em seu lugar? Por quê? Lew também virá? Ah, onde está minha educação? Deve estar cansada. Dani... pode providenciar algum refresco?

Ele tem de vir, de qualquer maneira, caso contrário todos os meus planos vão fracassar! Apesar da calma com que falava, era evidente que Regis Hastur estava agitado, pois fechava e abria as mãos bonitas a todo instante, deslocava o peso do corpo de um pé para outro.

Por um momento, Danilo Syrtis-Ardais não se mexeu. Estudava Margaret com um interesse polido, parecendo achá-la tão desconcertante quanto ela o considerava. Margaret sentiu um repentino impulso de se esconder daquele homem. Teve dificuldade para reprimi-lo. Depois ele se virou, um pouco relutante a julgar pela posição dos ombros. Foi até um pequeno armário num canto. Margaret experimentou um intenso alívio.

- Não posso responder. Já faz algum tempo que não tenho qualquer contato com meu pai ou minha mãe. Mandei um telefax antes de deixar a universidade, mas não recebi uma resposta.

O recuo para uma formalidade cuidadosa fez com que ela se sentisse menos vulnerável, menos sujeita a acessos de imaginação. Margaret ainda tinha a sensação assustadora de que todos os homens naquela sala podiam ler seus pensamentos, se permitisse. Sentia-se impotente por isso, e estava determinada a não deixar. Não havia telepatia, ela disse a si mesma, várias vezes. Apesar do que sentia, independente do que os outros pudessem lhe dizer.

- Ao que eu saiba, o Senador não tinha planos de vir para Darkover. E até poucos minutos atrás, eu nem sabia que ele havia renunciado a seu cargo.

No silêncio que se seguiu a essa declaração, o paxman voltou com uma bandeja e vários copos. Margaret ficou um pouco surpresa ao vê-lo agir como um criado. Pensara que o homem era outra coisa... com um cargo mais poderoso e até um pouco sinistro. Ele entregou um copo a Regis. Sorriram um para o outro quando seus dedos roçaram. Margaret ficou quase chocada com a ternura do olhar que os dois homens trocaram. Mais ainda, sentiu um profundo embaraço, como se tivesse vislumbrado algo inteiramente particular. Baixou os olhos para seu colo e ajeitou as dobras da saia, com dedos irrequietos.

- Aceita um vinho, domna?

Margaret podia ver as pernas musculosas de Danilo. Sabia que ele parara na sua frente, esperando. Descobriu-se relutante em levantar a cabeça, fitá-lo nos olhos.

- Obrigada.

Ela ergueu a mão e a cabeça, mas olhou para a parede além do paxman. Pelo menos sabia que não era grosseria recusar-se a fitá-lo nos olhos, como aconteceria na universidade ou na maioria dos lugares da esfera de influência terráquea. Regis Hastur tomou um gole, depois franziu o rosto.

- Lew é meu primo... e meu amigo mais antigo. Mas é a pessoa mais teimosa e imprevisível que já conheci. Fomos criados juntos em Armida. Não posso acreditar que ele nunca tenha me mencionado.

Ela realmente não me conhece; e sua mente está trancada, bloqueada. Nunca vi nada parecido. Ela não sabia que Lew deixara o Senado... o que é muito estranho.

Margaret sentiu o sussurro em sua mente e engoliu em seco. Claro que não sabia... Lew Alton jamais lhe dizia qualquer coisa! A amargura do pensamento fez com que o vinho tivesse um gosto azedo em sua boca, mas o álcool acalmou-a um pouco. Era típico do pai! Ela decidiu que não revelaria sua crescente aflição, tratando de se fechar da melhor forma possível.

- Ele nunca falava do passado, a não ser com minha mãe. Eu nem tinha a menor idéia de quem vocês eram, até fazer uma pesquisa antes de vir para Darkover, a fim de coletar canções folclóricas para o departamento de música da universidade. Sabia, de maneira vaga, que tinha nascido aqui, mas me lembro muito pouco. - E se dependesse da minha vontade, ficaria feliz de não lembrar coisa alguma... porque tudo o que recordo faz com que as coisas pareçam ainda mais estranhas!- Talvez ele não falasse para me poupar de coisas desagradáveis. Como já expliquei ao Capitão Scott, meu pai não é mais o homem que vocês conheceram. Quando não está no Senado da Federação, ele passa o tempo todo olhando para o mar e remoendo.

E bebendo, acrescentou Margaret, mentalmente. Ela sentiu que suas palavras aumentaram a consternação de Hastur, em vez de diminuir, e desejou ter mais tato. Era nisso que mais parecia com o pai, dizendo o que pensava, em vez de tentar ser polida. Sabia que podia ser grosseira, ainda mais quando se sentia vulnerável. Tomou outro gole do vinho, sentindo o sabor pela primeira vez. Era forte e encorpado. Margaret se permitiu saboreá-lo, gostando do relaxamento dos músculos tensos que acompanhou esse prazer. Regis correu os olhos pela sala, as sobrancelhas unidas em concentração.

- Vamos dar uma volta pelo jardim. Ainda não está escuro, e o jardim é adorável. Temos coisas para conversar, e esta sala é formal demais para o meu gosto. Danilo, leve Rafe para o meu gabinete. Iremos para lá depois.

Danilo parecia alarmado. Ficou tenso, levou a mão ao cabo da espada por um instante. Mas logo relaxou. Lançou um olhar duro para Margaret, como se quisesse sondar seu coração com os olhos. Será que o paxman pensava que ela ia sacar um punhal do vestido e matar Regis Hastur? Com uma súbita percepção, Margaret compreendeu que era exatamente isso que o preocupava. Danilo podia parecer modesto e retraído, mas era perigoso e atacaria qualquer um que atacasse seu amo. E fora por isso que ele servira o vinho... para evitar que outra pessoa pudesse acrescentar veneno! Por um momento, os olhos dos dois se encontraram, num combate silencioso. Danilo não demorou a desviar os seus, aparentemente convencido de que ela não representava qualquer perigo para Hastur.

Regis pegou o cotovelo de Margaret, com a maior gentileza, levou-a por uma porta que ela não notara antes. Atravessaram um corredor estreito e saíram para um pátio agradável, com muitas flores de estranhos perfumes.

- Eu me descubro em desvantagem, numa espécie de dilema, em termos éticos.

- É mesmo?

Margaret começava a gostar daquele homem de cabeça branca, a se sentir quase à vontade em sua companhia. O que a preocupava. Não porque Regis não fosse simpático, mas sim porque era evidente que ele tinha algum motivo para se mostrar tão charmoso. E isso sempre a deixava desconfiada. Sentia que ele se preparava para manobrá-la, até uma posição que atenderia a seus propósitos, quaisquer que fossem. Por causa do cansaço, seu julgamento estava prejudicado, como ela sabia muito bem.

- É, sim, Marguerida. Lew optou por não lhe revelar qualquer coisa de seu passado. Mas você precisa conhecer esse passado, a fim de compreender o presente aqui em Darkover. Ainda estou chocado por ele não ter falado nada.

- Creio que ele tentou me dizer alguma coisa pouco antes de minha partida para a universidade. - E quando ele tentou, concluiu Margaret, sem dizer em voz alta, não deixei que fosse muito longe. - Acho que era muito doloroso para ele falar a respeito de si mesmo, sobre seu passado, como se tivesse terríveis lembranças.

Regis soltou uma risada curta e amarga.

- Posso entender... ele quase acarretou a ruína para o nosso mundo. Mas é também um herói... um salvador.

- Não é um pouco difícil fazer as duas coisas?

A respiração de Margaret saía em ofegos rápidos, pois ela sentia que se encontrava à beira de descobrir uma coisa que precisava saber, mas que a deixava apavorada.

- Seu pai é um homem complexo... talvez a pessoa mais complexa que já conheci. E os costumes darkovianos deixavam-no angustiado, quando era jovem demais para suportar os sofrimentos. Tive anos para pensar a respeito. À noite, quando contemplo as estrelas, penso em Lew. Sempre desejei viajar entre as estrelas. Ele conseguiu fazer isso, enquanto eu tive de ficar aqui para arrumar toda a confusão, um rei sem um reino.

- Que sofrimentos?

Regis, ainda segurando o copo, tomou um gole, enquanto pensava.

- A mãe de Lew era meio terráquea, meio Aldaran. Por esse motivo, o Conselho do Comyn negou-lhe o lugar a que tinha direito. Chamaram-no de bastardo, o que feriu seu orgulho... os Altons são uma família orgulhosa. Lew nunca teve certeza se era bastante bom. Conheço essa dúvida muito bem, pois também me atormentava. Ele tentou agradar o pai, que era um bom homem, mas teimoso e exigente. Obrigou Lew a fazer coisas que os dois sabiam que eram erradas, porque estava determinado a pôr o filho no Conselho.

- Por quê? - indagou Margaret. - O que era tão importante nesse Conselho?

- O mais importante não era o lugar no Conselho... embora isso seja muito importante. Kennard queria que Lew fosse aceito como herdeiro do Domínio de Alton. - Regis deixou escapar um suspiro profundo. - A situação se tornou intolerável. Ao final, Kennard Alton, seu avô, levou Lew para fora do planeta, numa violação direta de nossas leis. O Domínio de Alton ficou sem liderança. Kennard morreu longe daqui, entre as estrelas. Lew voltou seis anos depois, trazendo uma matriz muito poderosa que levara para o exílio. E isso resultou em outra crise, na qual muitas pessoas morreram e toda a sociedade de Darkover foi alterada.

Margaret virou-se para o homem, esquecendo em seu espanto que não deveria fitá-lo nos olhos.

- Eu gostaria de dizer que compreendo. Mas, para ser franca, é muito difícil relacionar sua história com qualquer coisa que conheço sobre o Senador. Dá a impressão de que fala sobre o herói antigo de algum mito... ou quase.

- Você é bastante perceptiva. Sob muitos aspectos, foi mesmo mítico. Os acontecimentos da Rebelião de Sharra foram sem dúvida míticos em suas proporções; até os deuses se envolveram. Meus cabelos eram outrora tão vermelhos quanto os seus.

- É mesmo?

Margaret desejou que ele parasse de ser tão enigmático, apenas fazendo insinuações, revelando fragmentos, mas sem fazer um relato coerente dos fatos. E aquela palavra outra vez... Sharra. Provocou-lhe um calafrio, embora estivesse quente e agradável no jardim.

- Muito bem... isso é mais da história do meu pai do que jamais ouvi. Ele é ambíguo... o que não mudou. - Ela sentiu que sua boca se contraía numa expressão que podia passar por um sorriso. - Mas se é essa a história, por que não havia qualquer comentário a respeito no disco que estudei? O melhor que posso dizer sobre esse disco é que era quase desprovido de informações. Não havia menção a nenhuma... Sharra; e se foi, como diz, um acontecimento tão importante, por que não está mencionado nos Arquivos Terráqueos?

Regis parecia quase perdido em seus pensamentos agora, falando sem prestar muita atenção.

- Está lá, sem dúvida, mas não é do conhecimento geral. Há coisas que achamos que não devem ficar expostas ao olhar do público. Darkover ainda tem alguns segredos guardados no fundo do baú. É melhor assim.

Margaret teve a reação da pesquisadora a essa tranqüila declaração sobre a importância de suprimir informações: ficou lívida. Foi um ímpeto de emoção muito mais forte do que era necessário. Afinal, como sabia muito bem, os governos tentavam muitas vezes manter coisas em segredo. Compreendeu que sentia-se irritada com o homem simpático ao seu lado, mas ainda mais furiosa com o Velho. Cerrou os punhos, mas logo relaxou.

- Seus pequenos segredos nada têm a ver comigo. Estou aqui por acaso, não por intenção. E quero que continue assim.

Ela usou o tom mais frio e formal, pois isso fazia com que se sentisse menos fraca e perdida. Era algo de que precisava, porque podia sentir um crescente desamparo, desencadeado pelo som de duas sílabas inofensivas. Um profundo sentimento de medo quase a sufocou. Sharra! Às vezes o pai dizia essa palavra, de noite. Sempre que isso acontecia, Margaret acordava com um calafrio. E quando voltava a dormir, sempre sonhava com uma pedra enorme, brilhante, irradiando luz e fogo. A imagem ardeu em sua mente por um momento, até que ela tornou a bani-la.

- Fala muito como seu pai. E neste momento está bem parecida com sua mãe.

- Thyra? - murmurou ela, com toda a frieza de que era capaz.

- Ah... pelo menos sabe sobre isso. E um pouco embaraçoso para mim.

- Embaraçoso? Por quê? Não foi para a cama com a irmã de sua esposa, não é mesmo?

Assim que as palavras saíram, Margaret se arrependeu. Mas para sua surpresa e alívio, Regis não parecia ofendido. Era quase como se compreendesse a raiva e confusão dela.

- Não, não fui. Já fiz algumas coisas interessantes na vida, mas não essa. Só vi Marjorie Scott uma vez, e nunca a conheci formalmente. Mas como ela e Thyra eram meias irmãs e muito parecidas, suponho que me referia a ambas. Oficialmente, você é filha de Marjorie Scott... embora ela fosse sua tia. Puxa, estou fazendo a maior confusão, não é? O que estou querendo dizer é que você aparece como filha dela em nossos registros. E parecida com todas.

E tem a mesma insensibilidade terrível de Lew, pensou ele, sem falar. Margaret ouviu as palavras com absoluta nitidez e ficou toda arrepiada.

- Parece que tenho um excesso de mães... se acrescentar Dio à lista. O que para mim é desconcertante e desagradável.

- Como assim?

- Qual seria sua reação se descobrisse de repente que sua mãe é na verdade uma tia, e a tia é sua mãe... ainda por cima uma pessoa tão estranha que ninguém gosta de mencionar seu nome.

- Hum... Acho que eu ficaria meio transtornado, agora que você põe nesses termos. Mas onde ouviu alguém mencioná-la... em que contexto?

Regis virou-se para fitá-la. Parecia interessado e sincero.

- Na casa de Mestre Everard, na Rua da Música. Ele me deixou pegar uma ryll que disse que não podia ser tocada. E saiu uma canção... foi muito estranho. Depois ele me contou a história do instrumento e compreendi... Ora, não importa!

Margaret conteve um tremor ao lembrar a experiência.

- Você está começando a sentir frio. Vamos entrar.

Hastur pegou a mão dela, com extrema gentileza. Por um momento, ele parecia prestar atenção a uma voz interior. Margaret pôde sentir um leve roçar de percepção, como se uma pluma deslizasse por sua testa.

- Você tem laran, Marja, e o Dom de Alton.

Margaret fez um esforço para não estremecer. A palavra laran deixou seu sangue gelado. Sentiu que alguma coisa se agitava lá no fundo, uma voz que lhe dizia para se manter apartada e não fazer perguntas. Tentou resistir.

- O que quer que seja o Dom de Alton, não acredito que eu o tenha. Ou pelo menos espero não ter. Desde que cheguei aqui que coisas insanas vêm acontecendo. Tenho a impressão de ouvir pensamentos, espiar o futuro... e ainda por cima conheço parentes que nem sabia que existiam. Não gosto disso e não quero ter qualquer envolvimento com dons assustadores, Conselhos Telepáticos, ou qualquer outra coisa parecida. Só quero concluir o trabalho de Ivor... nosso trabalho para a universidade... e depois... Ora, não sei de nada! E posso lhe garantir que para uma pesquisadora não saber de nada é uma situação terrível!

Ela podia sentir que a frustração tornava a dominá-la.

- Uma pesquisadora da universidade? - Os olhos de Regis se iluminaram. - Conte-me como é. Sempre desejei... Mas este não é o momento propício para conversar a respeito. Imagino que deve ter sido muito difícil para você circular por Thendara. Há quanto tempo está aqui?

- Acho que uma semana. Perdi a noção do tempo, com a morte de Ivor e...

O gemido de Margaret foi de uma criança cansada, enquanto as lágrimas tornavam a aflorar em seus olhos. Regis Hastur não tentou impedir as lágrimas. Em vez disso, esperou calmamente, bebendo seu vinho, até ela parar de chorar. Assim que Margaret enxugou o rosto, ele comentou:

- Soube que você tinha o Dom quando ainda era bem pequena. Foi por isso...

A porta para o jardim foi aberta nesse instante. Uma mulher apareceu, seguida por Danilo. Ela sorriu, um gesto cordial e afetuoso. Adiantou-se com as mãos estendidas. Tinha o corpo cheio, com a expressão jovial de alguém que contempla o mundo com prazer. Margaret sentiu uma simpatia instantânea.

- Ah, aqui está você! Regis, faz frio demais no jardim! E pare de atormentar a menina com suas tramas e conspirações. Deve perdoá-lo, criança. Ele acha que precisa carregar o peso deste mundo em seus ombros, e às vezes perde a perspectiva.

Margaret descobriu-se apertada num abraço efusivo, com um beijo de leve roçando pela face. Regis disse:

- Esta criatura impulsiva é minha consorte, Linnea Storn, Lady Hastur. Linnea, esta é a filha de Lew Alton, Marguerida.

Ele parecia divertido pelas palavras da consorte. Uma tensão sutil deixou seu corpo. Exausta, Margaret perguntou:

- Também é parente?

Lady Hastur riu e afagou seu rosto.

- Somos primas distantes, parenta, mas eu poderia ter sido sua mãe. Houve uma época em que planejei casar com Lew... tinha quinze anos, se bem me lembro... mas ele recusou e partiu meu coração virginal. Ainda bem, caso contrário eu não teria me tornado Lady Hastur, o que me convém muito mais.

Ela sorriu para Regis, que retribuiu com uma expressão de sincera afeição. Linnea soltou Margaret, que se descobriu sendo avaliada outra vez pelo paxman, Danilo. Havia alguma coisa no olhar daquele homem que a perturbava. Não que ele se mostrasse ostensivamente hostil, mas havia uma ameaça sutil em seu olhar que a deixava enregelada até os ossos. A sensação era a de que, se Danilo a fitasse por muito tempo, ela deixaria de ser Margaret Alton, virando outra pessoa, muito diferente. Mas quem? A fúria e o terror envolveram-na. Ela fez um esforço para resistir. Começara outra vez a imaginar coisas! Não havia nada de ameaçador na postura ou expressão de Danilo. E se o tivesse conhecido em outras circunstâncias, poderia até considerá-lo inócuo.

- Posso imaginar - balbuciou ela.

Margaret sentia que se afogaria em informações demais... e parentes demais. E o pior era o seguinte: quanto mais aprendia, sentia que menos sabia.

Quinze anos! Margaret não duvidava de Lady Linnea, mas ainda assim achou isso perturbador. Por que tão jovem? Era mais fácil pensar sobre isso do que nas outras coisas, as que zumbiam como abelhas em seu cérebro, guerreando com uma compulsão para se manter em silêncio.

- Parece muito jovem para casar. Por que vocês mantêm este costume? O demônio da falta de tato impeliu Margaret a fazer a pergunta antes que pudesse censurá-la. Ela corou até a raiz dos cabelos. Uma suave brisa desmanchou os cabelos sedosos, que esvoaçaram em torno do rosto, e também serviu para esfriar suas faces.

- Temos ao mesmo tempo um alto índice de mortalidade infantil e um baixo nível de nascimento. Fui uma afortunada por ter meus filhos, mas muitas outras não tiveram a mesma sorte. - Linnea respondeu como se a pergunta fosse corriqueira. - Damos a maior importância às nossas crianças e queremos ter tantas quanto pudermos.

Margaret passara a maior parte de sua vida em diversos planetas da Federação, onde as populações eram ao mesmo tempo limitadas e controladas, por lei ou pelo costume. Descobriu agora que a perspectiva de ter muitas crianças era assustadora. Só em mundos atrasados, primitivos, é que as crianças nasciam em quantidade. E ela sabia que não havia qualquer bom motivo para a mortalidade infantil, pois há muito que a tecnologia terráquea fizera com que ter filhos fosse um processo quase livre de riscos.

Havia enigmas demais naquele planeta. Não era apenas a ausência de veículos motorizados, mas a impressão geral de que haviam rejeitado a tecnologia por completo.

- Mas você queria casar aos quinze anos de idade?

- Claro. Era meu dever.

- Dever?

Regis lançou um olhar sugestivo para sua consorte. Linnea alteou as sobrancelhas em resposta.

- Possuímos alguns talentos, aqui em Darkover, e descobrimos, ao longo dos séculos, que a melhor maneira de conservá-los é casar jovem.

- Talentos? Está se referindo a uma espécie de programa de reprodução?

Linnea contraiu a boca generosa em repulsa.

- Pode-se dizer assim... embora eu deteste a metáfora. Faz com que eu me sinta uma égua reprodutora.

Margaret ficou chocada. Mais do que isso, sentiu-se repugnada. Sabia que tinha alguma relação com os Dons a que Rafe e Hastur haviam se referido. Aqueles seus novos parentes, aparentemente cordiais, deviam estar pensando em casá-la, para manter seus genes no planeta. Não era de admirar que seu pai tivesse ido embora!

- Muito interessante... - murmurou ela. - Mas tenho de ir agora. Foi um dia comprido, e quero voltar para a casa de Mestre Everard antes que escureça.

Não agüento mais tudo isto! Se não for embora depressa, começarei a gritar! Lady Hastur mostrou-se consternada.

- Mas pensei que ia ficar aqui no Castelo, criança.

Não há a menor possibilidade! Margaret queria escapar daquele enorme prédio tão depressa quanto fosse possível. Sabia que havia um cômodo por cima com um tapete que poderia reconhecer, a menos que tivesse sido mudado nos últimos vinte anos. Pertencia aos Altons, a seu pai. Era bem provável que naquele momento houvesse servos correndo de um lado para outro ali, limpando tudo, trocando as roupas de cama, arejando os aposentos. Ela quase que podia sentir o alvoroço. Sabia que poderia encontrar o caminho para os aposentos sem precisar de um guia. O conhecimento lhe provocou um calafrio de confusão.

Pelas expressões de Lorde e Lady Hastur - e do enigmático Danilo - ela compreendeu que seus sentimentos foram quase gritados. Queria ser polida, diplomática, um crédito para sua família, mas ao mesmo tempo queria fugir tão depressa quanto suas pernas cansadas pudessem levá-la. Com uma cortesia exagerada, ela disse:

- Tenho certeza de que seria maravilhoso ficar aqui, mas deixarei Thendara assim que puder. Tenho um trabalho a fazer, e a morte de meu companheiro, Ivor Davidson, já me atrasou.

- Trabalho? - repetiu Lady Hastur. - Não estou entendendo. Margaret decidiu que tinha de assumir uma posição firme com aquelas pessoas. Caso contrário continuariam a presumir que se encontrava ali para atender às finalidades deles, não às suas. Ela respirou fundo.

- Não vim até aqui para seu Conselho Telepático ou qualquer outra coisa parecida. Viajei para estudar e gravar música folclórica, como pesquisadora da universidade. E exatamente isso que tenciono fazer... e mais nada!

- Gravar música folclórica? - Lady Hastur parecia perplexa. - Não devo ter ouvido direito.

Ela lançou um olhar desamparado para o marido, como se dissesse: "Bem que tentei, querido." Margaret quase que podia ouvi-los, falando na mente um do outro, tentando organizar argumentos para mantê-la no Castelo. Mas não aceitaria nenhum! Aquelas pessoas não podiam entendê-la... e ela também não as entendia. Seu crânio latejava, os joelhos doíam, sua única vontade era ir embora.

- Pode ter certeza de que não a obrigaremos a ficar aqui - interveio Danilo, falando pela primeira vez desde que oferecera o vinho. Havia alguma coisa em seu tom que a fez pensar que isso não era toda a verdade, que ele poderia forçá-la a permanecer, se assim quisesse. - Mas seria ótimo para Darkover se continuasse conosco. Seu lugar é aqui, mesmo que não compreenda.

Com uma súbita grosseria, Margaret fitou-o nos olhos. Viu apenas um homem de boa aparência, entre quarenta e cinqüenta anos de idade, cabelos claros, sulcos profundos acompanhando a boca, como se tivesse sofrido uma grande tragédia. Havia, com toda a certeza, alguma semelhança entre a expressão sombria de Danilo e a de seu pai. Mas quem era ele para falar com tanta autoridade?

Ela se descobriu a pensar que não detestava Danilo, apenas sentia uma profunda desconfiança. Não restava a menor dúvida de que ele era profundamente devotado a Hastur... e que havia algo mais entre os dois. Margaret especulou se ele era um servo de Regis ou seu amante, um pensamento que a deixou mortificada. Mas tinha certeza de que Danilo, qualquer que fosse sua posição, faria tudo o que fosse necessário para proteger Regis, até mataria por ele.

- Sei que vocês acreditam nisso, mas eu não acredito.

E não quero de jeito nenhum me envolver em seus problemas locais! Margaret podia sentia as ondas de incompreensão ao seu redor, mas não se importou. Sabia que poderia ter usado mais tato com Lady Hastur e Danilo, mas eles não queriam ouvi-la. Estavam absorvidos demais em seu programa de reprodução e no tal Conselho Telepático para tentar entendê-la. Era como tentar conversar com Lew... que também não fazia o menor esforço para escutar. Talvez fosse uma característica racial. Talvez toda aquela endogamia ao longo de séculos tivesse afetado a audição.

O total absurdo desse pensamento deixou-a um pouco aliviada, Há um ano - ora, há uma semana - a perspectiva de conhecer os parentes de meu pai me deixaria na maior animação. Agora, apenas me torna irritada... não, apavorada. Não serei usada de novo! A imagem do homem de olhos prateados aflorou em sua mente, fazendo-a tremer. Só quero ficar longe dessa gente, da sensação de que estão passeando por minha mente!

- Obrigada por me receberem. Lamento não poder ficar mais. E agora, se me dão licença...

Margaret fez uma pequena reverência, um movimento meio desajeitado que deixava transparecer sua fadiga. Encaminhou-se para a porta. Percebeu o tio parado ali. Quase correu em sua direção, a fim de escapar de Regis, Linnea e do ambíguo Danilo.

- Vou acompanhá-la até a Rua da Música - anunciou o Capitão Scott, quando ela se aproximou.

Margaret quase chorou em gratidão.

- Está certo... desde que prometa não me assediar mais com uma conversa de deveres e obrigações que não tenho a menor intenção de cumprir.

- Quer dizer que está determinada a continuar como se não fosse a herdeira de um dos Domínios? Sair vagueando pelos campos nesse seu "trabalho", quando Darkover tanto precisa de você?

Ele parecia perturbado e um pouco triste.

- Exatamente!

A veemência da resposta deixou a própria Margaret um pouco surpresa. Mas se encontrava tão próxima da exaustão total que não se importou.

- Dá para ver que é mesmo a filha de Lew - comentou ele, com um sorriso sardônico.

- O que está no osso aparece na carne - citou ela, num tom ácido.

- Se você ao menos soubesse o quanto isso é verdade, Marguerida... - Rafe soltou um suspiro. - Vai precisar de permissões das autoridades para deixar Thendara. Quer pelo menos me deixar ajudá-la a cuidar de tudo?

Margaret riu, confortada pela presença segura de Rafe Scott. Finalmente alguém se comportava de maneira racional!

- Posso ser teimosa, mas nunca protesto quando alguém se empenha em me ajudar.

 

8

O cemitério estava amortalhado pela neblina. Ela vagueava entre as lápides gastas, procurando por alguma coisa ou alguém. Era noite, escura e estrelada, uma lua violeta se levantava no horizonte. Finalmente ela alcançou um monte de terra recém-revolvida, com flores murchas por cima. Dava para sentir a fragrância do bálsamo no ar, o cheiro de terra sob seus pés.

Um vulto que parecia um espectro ergueu-se do monte de terra. Sua respiração ficou presa na garganta. Talvez Ivor não tivesse morrido! E se ele fora enterrado vivo? E se estivesse sufocando no caixão darkoviano em que o haviam metido? As feições do vulto estavam escuras e indistintas. Enquanto espiava, ela sentia-se apavorada e curiosa ao mesmo tempo. Só dava para ver os cabelos lisos num crânio comprido.

O vulto avançou em sua direção. Ela esperou, os músculos contraídos, preparada para fugir, esperando avistar apenas uma caveira. Por um momento, o rosto continuou coberto pela neblina. Mas depois ela viu o queixo quadrado e a cicatriz no rosto de Lew Alton. Ele ofereceu um sorriso torto e estendeu a mão.

Margaret sentou na cama, o coração batendo forte, a respiração irregular. A garganta doía com o terror, ressequida e dolorida. As imagens desfilavam em turbilhão por sua mente, enquanto tentava dizer a si mesma que não passava de um sonho. O que seu pai fazia na sepultura de Ivor? E por que estendia a mão para ela? Margaret arriou nos travesseiros, as lágrimas aflorando a seus olhos. Puxou as cobertas para se aconchegar. Não passava de um sonho!

Na manhã seguinte ao funeral de Ivor, Margaret tornou a comparecer ao QG terráqueo, mais uma vez usando o uniforme de pesquisadora. Estava munida com todos os documentos corretos. E começou a esperar. Levou duas horas para ser atendida por um entediado funcionário, que a despachou para um terminal de computador, a fim de preencher os formulários apropriados. O cheiro do QG a deixou com uma desagradável dor de cabeça, enquanto o ar quente demais a fazia suar.

Depois de completar os formulários, que eram complexos, confusos e ambíguos, ela apertou o comando para "Transmitir". Levantou-se em seguida e foi para uma das máquinas automáticas. Não houve problema na aceitação de seu cartão de crédito; em troca, a máquina lhe ofereceu um líquido turvo e morno, que passava por café. Tomava um gole, fazendo uma careta, quando ouviu seu nome ser chamado. Voltou à presença do funcionário, que entregou um disco e encaminhou-a para outra sala. Ali tornou a esperar, para falar com outro burocrata, refletindo que eficiência e burocracia pareciam ser duas coisas antagônicas e mutuamente exclusivas. Gostaria de ter alguma coisa para ler, mas não havia nada na sala, nem mesmo avisos postados em algum quadro, muito menos revistas. Seria capaz de ler até mesmo as atas das sessões do Senado da Federação, se estivessem disponíveis.

A lembrança do Senado trouxe de volta o pesadelo. Ela começou a afundar na morbidez. Olhou para as botas e sacudiu a cabeça, tentando se livrar daquele ânimo. Mas parecia ter alcançado o domínio de sua mente, recusou-se a ir embora. Ela quase não ouviu seu nome quando foi chamado, pois mergulhara num profundo desespero.

Uma mulher de aparência severa sentava por trás de uma mesa, tamborilando com os dedos. Não se levantou quando Margaret entrou na sala, nem demonstrou a menor cordialidade. Havia uma pequena placa de metal na mesa, onde estavam gravadas as palavras "Major Thelma Wintergreen". A julgar pelo semblante intimidativo, Margaret pensou que o sobrenome, significando o verde no inverno em Padrão Terráqueo, era bastante apropriado.

- Duvido que possamos conceder permissão para que continue a pesquisa do Professor Davidson sobre a música folclórica nativa, srta. Alton - declarou Wintergreen, sem qualquer preâmbulo. - E jovem demais para realizar uma missão assim, não tem as credenciais necessárias. Ainda por cima, não é trabalho para uma mulher sozinha. Não posso imaginar, antes de mais nada, por que deram a autorização inicial para um empreendimento tão desnecessário e dispendioso. A música local não pode ter interesse para mais ninguém além dos darkovianos.

Margaret ficou indignada. Como ela não tinha as credenciais apropriadas? Quem Wintergreen pensava que era? Teve de exercer toda a sua força de vontade para se controlar, ignorando a pulsação nas têmporas.

- É uma musicóloga experiente, Major?

- Claro que não!

- Então não tem condições de fazer um julgamento sobre o valor da música darkoviana, não é mesmo? - Margaret forçou sua boca a exibir um sorriso, que sabia parecer mais com um rosnado. - O Capitão Scott levou-me a acreditar que não haveria qualquer problema na transferência da autorização para mim.

- Quem?

- O Capitão Rafael Scott.

Margaret refletiu que deveria tê-lo procurado enquanto esperava. Seu cérebro parecia atordoado. Rafe oferecera ajuda e ela aceitara, ao deixarem o Castelo do Comyn. Naquela manhã, no entanto, ela começara sem tentar localizá-lo. Por que tinha de ser tão independente? Ela compreendeu que nem sequer sabia em que seção Rafe trabalhava, ou se tinha alguma influência para facilitar a tramitação burocrática. Por outro lado, o uso do seu nome teve um efeito surpreendente e imediato agora. A major se mostrou contrariada, bateu alguma coisa no teclado do seu terminal. Depois, cruzou as mãos sobre a mesa e fitou Margaret.

- Como conhece o Capitão Scott?

- Somos parentes.

Wintergreen empinou o queixo. Tornou a bater no teclado, ficou olhando para o monitor com uma fúria que surpreendeu Margaret. Dava para sentir as ondas de raiva e inveja que se irradiavam em sua direção. Mas não podia imaginar por que a mulher sentia ciúme.

- Não há qualquer registro a respeito - resmungou ela.

- O Capitão Scott é o irmão de minha mãe, quer esteja ou não em seus registros.

Como se o nome conjurasse sua presença, Rafe passou pela porta da sala nesse instante. Poucas vezes em sua vida Margaret se sentira tão contente em ver alguém. Rafe sorriu para ela, apertou seu ombro, depois olhou para Wintergreen.

- Qual é o problema, Major?

Wintergreen parecia um pouco apreensiva agora... e ainda mais furiosa do que antes.

- Isto não é da sua conta, Scott! Não vou permitir que esta jovem vagueie pelo interior. Cottman não é lugar para uma mulher excursionar sozinha.

- Como pode saber, Major, se nunca deixa o QG?

- E por que deveria deixar? Não há nada lá fora além de um bando de indígenas atrasados, que nem sequer têm o bom senso de querer...

- Thelma, seu preconceito é ostensivo. - O tom de Scott era firme e autoritário, muito diferente do homem afável e quase modesto que Margaret conhecera no dia anterior. - Acho que deveria pedir logo sua transferência.

- Não se meta na minha vida, Scott!

- Terei o maior prazer em me retirar. Basta entregar os documentos necessários a Margaret, e iremos embora.

Uma expressão quase de maldade se insinuou no rosto de Wintergreen.

- Acho que não será possível, Capitão. Ela ainda não é uma catedrática, mas apenas uma assistente.

- É pessoa plenamente habilitada. Há anos que faz trabalho de campo, conhecendo mais mundos do que você jamais visitou. E é uma pesquisadora, não uma burocrata. Pare com esse comportamento... não lhe vale nenhum crédito.

Margaret lançou um olhar rápido para o tio. Ele devia ter dado uma olhada em sua ficha na noite anterior, depois que a deixara na casa de Mestre Everard. Ela sentiu o calor da gratidão envolvê-la.

- Como ousa me falar assim?

- Thelma, todo mundo no QG sabe o quanto você detesta Darkover e os darkovianos. Imagino que até mesmo pessoas que nunca a conheceram já sabem disso. É a pessoa errada para este cargo. E se este incidente for registrado em sua ficha, pode se despedir de qualquer sonho de promoção. Agora, seja sensata e deixe Margaret fazer o seu trabalho.

- É impossível. Ela não sabe nada...

- Nasci em Darkover, Major.

- Não há registro...

- Se procurar com o nome certo, A-L-T-O-N, vai descobrir que minha sobrinha de fato nasceu aqui. - Rafe olhou para Margaret. - Quando verifiquei sua ficha, notei que algum idiota escreveu o nome com E em vez de A.

Margaret deu de ombros.

- Já aconteceu antes, mas pensei que não ia se repetir.

Às vezes acho que os terráqueos são deficientes mentais em questões de ortografia.

Exatamente!

- E o primeiro nome seria Marguerida, Major Wintergreen - acrescentou Rafe, secamente.

Margaret mal notou, de tão atordoada que ficara com o breve diálogo mental. Sabia que não o imaginara, embora desejasse que fosse apenas isso.

Se olhar matasse, Scott teria caído morto naquele instante. Mas a Major Wintergreen limitou-se a acessar alguma coisa no terminal, com evidente relutância. Soltou um grunhido enquanto lia o que apareceu na tela.

- Imagino que você pensa que ser a filha de um Senador lhe concede alguns privilégios especiais - resmungou ela.

- Para ser franca, não penso assim. Nunca usei a influência de meu pai. Jamais precisei.

Margaret sentia um certo orgulho pela verdade dessa declaração. A major fez uma careta, como se tivesse mordido uma fruta madura demais e encontrado um bicho. Bateu numa tecla e esperou. Vários papéis saíram da fenda na mesa em que estava oculta a impressora. Ela quase que jogou-os para Margaret.

- Leve isto para a sala 411. E não me culpe se for estuprada e assassinada naquelas colinas!

- E lhe proporcionar o prazer de falar "Eu não disse?" Mas prometo que voltarei para assombrá-la, se alguma coisa me acontecer.

Margaret deixou que toda a sua aversão à major se manifestasse na resposta. Scott acompanhou-a até a sala 411, através de vários corredores, subindo em elevadores, descendo dois lances de escada.

- Você nunca teria encontrado o caminho sozinha aqui - comentou ele.

- Tem toda a razão. Este prédio é um labirinto pior do que o Castelo do Comyn. Por que ela foi tão hostil?

- Não conheço toda a história, mas parece que fez uma besteira em seu último posto, o que a deixou amargurada. Darkover não é o tipo de lugar para onde os terráqueos queiram vir. Tornou-se quase um rebaixamento ser enviado para cá, durante os últimos anos.

- Todos aqui são como ela?

- Claro que não. Há muitas pessoas boas e dedicadas, preocupadas com os interesses de Darkover. Ou pelo menos pensam que são os interesses de Darkover... em suma, trazer o progresso terráqueo para este mundo. Lamentavelmente, o que os darkovianos querem e o que os terráqueos imaginem que é o melhor para eles nem sempre coincidem. Tenho um pé em cada lugar. Como você, sou um cidadão de dois mundos. Não é fácil. Os terráqueos cometeram alguns erros terríveis no passado, os darkovianos também. Uma das coisas que seu pai queria fazer era superar alguns desses ressentimentos, mantendo Darkover protegido, mas sem sua exclusão da Federação.

Embora isso fosse óbvio agora, Margaret nunca pensara antes no Senador como um servidor do planeta que representava. Sentiu-se não apenas ignorante, mas também estúpida, porque não prestara muita atenção ao trabalho do pai. Sabia que a culpa não era toda sua, que fora repelida em suas tentativas de fazer contato com ele. O sonho voltou agora, e ela sentiu como se uma mão gelada apertasse seu coração. E se o pai tivesse morrido?

Ela sacudiu a cabeça para desanuviá-la. Os cabelos começaram a se desmanchar. Eram lisos demais. Ora, fora apenas um sonho! A morte de Ivor a perturbara. Afinal, ele fora como um pai para Margaret. Portanto, não era surpreendente que sua morte acarretasse medos de perda e abandono. E, de qualquer forma, Margaret e o Senador haviam abandonado um ao outro anos antes... não é mesmo?

A sala 411 era diferente dos escritórios estreitos que ela visitara durante a manhã. Tinha móveis confortáveis, tecidos nativos, recendia a Darkover. Havia algumas máscaras penduradas nas paredes. Margaret franziu o rosto ao estudá-las. Uma em particular a deixava agoniada: o rosto de uma mulher, com chamas se elevando do couro cabeludo, no lugar dos cabelos. Margaret sentiu que tremia e fez um esforço para desviar os olhos. Ficou surpresa com sua reação. Já vira outras máscaras antes, e nunca ficara arrepiada com qualquer uma.

Um homem levantou-se de trás de uma mesa toda lavrada. Piscou os olhos ocultos por trás de óculos que pertenciam a um museu. Tinha os cabelos grisalhos e uma barba irregular, dando a impressão de que crescia ao acaso nas faces encovadas. Mas ele sorriu, o que proporcionou às suas feições idosas uma animação e cordialidade que tiraram o gosto desagradável da Major Wintergreen. Margaret não sabia que ficara tão contaminada até que a sensação desapareceu.

- Ah, então você é Margaret Alton! Que prazer conhecê-la! Sou Brigham Conover, diretor de etnologia aqui.

- Professor Conover! - Margaret estendeu a mão, efusiva. - Li seu ensaio sobre os costumes nupciais nas Cidades Secas. Era uma das poucas coisas com acesso livre nos arquivos sobre Darkover.

Trocaram um aperto de mão, sorrindo um para o outro, como duas crianças levadas tramando alguma travessura. Conover lembrava-a de Ivor, quando era mais jovem e mais forte. Agora que chegara mais perto, ela podia constatar que os olhos azuis exibiam um brilho intenso, com rugas do riso nas extremidades. Rafe tossiu.

- Tenho de me retirar agora, Marguerida. Voltarei dentro de uma hora e a levarei para almoçar, se não se incomodar.

- Obrigada, Rafe. Você foi maravilhoso.

- Vamos sentar. - Conover indicou um dos sofás. - Aceita um chá?

- Seria ótimo. Tenho a garganta tão ressequida que parece que peguei uma estrada de terra em pleno verão.

Ela observou o professor se movimentar de um lado para outro. Sentiu que a tensão em seu corpo começava a se dissipar. Talvez agora pudesse obter algumas respostas claras e objetivas. Ele levou duas canecas fumegantes para o sofá e entregou uma a Margaret.

- Em que posso ajudá-la?

- Tenciono concluir o trabalho que o Professor Davidson e eu viemos realizar em Darkover. Mas cada vez que me viro, deparo com um muro de pedra. Ou pelo menos é essa a sensação. Quando recebemos o aviso de que viríamos para cá, não consegui encontrar muitas informações nos arquivos centrais, o que achei muito estranho. Por quê?

- Quer uma resposta simples para uma pergunta complexa. Farei o melhor que puder. - Conover fez uma pausa, observando o vapor que se elevava de sua caneca. - Deve saber que Darkover é um planeta protegido, nem um membro pleno da Federação, nem apartado. A história por trás disso ocorreu antes de minha vinda para cá, mas conheço alguns fatos. Há cerca de vinte anos houve uma rebelião aqui, em que muitas pessoas morreram... pessoas importantes. Seu pai teve uma participação destacada. Ele partiu para se tornar a voz do planeta na Federação, enquanto Regis Hastur começava a tentar promover um acordo entre Darkover e os terráqueos. O que não tem sido fácil, já que a cultura darkoviana resiste a qualquer mudança. E uma das coisas que aconteceram depois da rebelião foi a restrição a várias informações sobre o planeta que em circunstâncias normais seriam acessíveis.

- Por quê? Tenho certeza de que Darkover não representa uma ameaça para a Federação.

- Não há como prever o que é percebido como ameaça, srta. Alton.

- Chame-me de Margaret, por favor.

- Claro... se me chamar de Brigham. Posso ver por sua expressão que não está satisfeita. O problema é que há muita coisa sobre Darkover que permanece em mistério para nós aqui no QG... e mistérios e segredos sempre criam desconfianças entre nações. Por isso, a Federação tornou secretas muitas informações sobre Darkover, e iniciou um jogo de espera. Aqueles que tomam tais decisões... e posso lhe assegurar que a maioria nunca esteve aqui... acham que Darkover vai acabar capitulando, abrir suas portas, revelar seus segredos, e se tornar apenas mais um membro da Federação. Ao mesmo tempo, os darkovianos permanecem obstinados. Não querem aceitar tudo o que é terráqueo, renunciando à maneira como vivem há milhares de anos. Estou no meio. Minha função é ser um etnólogo e recolher dados que serão usados pela Federação.

- Usados de que forma?

Margaret tomou um gole do chá e sentiu o gosto de mel. Não sabia se gostava da situação. Com um pequeno sobressalto, compreendeu que seu pai provavelmente mantivera a Federação à distância durante todos aqueles anos. Agora que Lew renunciara, ela se preocupava com o que poderia acontecer. Fora uma idiota por não ter prestado mais atenção, por não ter percebido que o pai fazia uma coisa importante. Enquanto ela refletia sobre tudo isso, Conover pensava um pouco, antes de responder.

- O que eles realmente querem é descobrir que fraquezas existem na cultura darkoviana que possam ser manipuladas em proveito da Federação. Confesso que tenho enormes restrições à interferência em grande escala em qualquer cultura local. Já observei os resultados muitas vezes. A história da Terra é uma história de culturas destruídas pelo progresso e arrogância.

- Mas então o que você faz? Não suprime os dados, não é mesmo? A mera idéia a deixava escandalizada, como uma acadêmica.

- Esse é um pecado que consegui evitar até agora, Margaret. - Ele soltou uma risada curta, sem qualquer humor. - Não escondo os dados... apenas tomo muito cuidado com os assuntos que são estudados. Sou o encarregado de distribuir as subvenções para as pesquisas. Assim, aprendemos sobre a música darkoviana, os costumes conjugais no planeta e outros assuntos bastante inofensivos, mas não nos aprofundamos nos mistérios darkovianos essenciais.

- Por exemplo?

Conover refletiu por um momento.

- Não há tratados objetivos sobre o Dom de Alton e outros talentos peculiares que têm sido observados aqui, Margaret.

- Ainda não entendo por quê.

Ela estava surpresa. Conover sabia sobre os Dons. Parecia que em toda parte as pessoas sabiam de coisas que ela ignorava. Mas não importava. Margaret não se deixaria envolver nas questões locais. Quanto a seu suposto Dom... ora, que se danasse! Se tivera algum contato telepático ocasional, como acontecera pouco antes com Rafe, não permitiria que isso a perturbasse. Continuaria a se manter apartada, como sempre fizera. E tratou de ignorar a sensação de frio e tristeza que se avolumou em seu peito a esse pensamento.

- Há pessoas na Federação que fariam qualquer coisa para explorar esses talentos... e não seria em benefício de Darkover. É um caminho muito difícil.

O professor soltou um suspiro profundo.

- Mas se é um segredo tão grande, como você sabe sobre o Dom de Alton? Eu mesma nunca tinha ouvido falar, até ontem.

- Seu pai foi bastante gentil para me conceder várias entrevistas antes de minha vinda para cá. Não se mostrou reticente, depois que me avaliou. E foi assim que a reconheci quando entrou aqui... ele tinha um retrato seu no escritório.

- É mesmo?

Margaret sentiu que sua cabeça recomeçava a doer.

- É, sim... e sentia muito orgulho de você. Margaret fez uma careta.

- É uma pena que ele nunca tenha me dito isso.

Ela escondeu sua raiva da melhor forma possível. Lew confidenciara uma porção de coisas a Conover, mas não tivera a consideração de contar a ela o que precisava saber sobre sua herança. Não confiava nela? Como podia. .. se mal se conheciam?

Margaret respirou fundo, devagar, fazendo um esforço para se acalmar. Assumiu uma posição mais confortável no sofá, forçou-se a dissipar a raiva. Foi uma luta e tanto, e a raiva quase venceu. Ela descobriu que tinha os olhos úmidos, de lágrimas não derramadas, e piscou para fazê-las desaparecer.

- Pode me dizer, Brigham, qual é a melhor maneira de realizar o trabalho que vim fazer aqui?

- Vai precisar de uma guia, já que viajará pelas Colinas Kilghard. É um território agreste e seus habitantes nem sempre são amigáveis. Você tem a vantagem de poder convencê-los, a um só olhar, de que é uma nativa de Darkover. Mas creio que precisará de mais do que isso.

Margaret soltou uma risada.

-Já tive essa experiência... quando fui comprar algumas roupas. Eles me trataram como se eu fosse a realeza. Quase fiquei louca. Insistiram que eu precisava de um vestido de baile para usar no Castelo, não de roupas de trabalho. Não ponho um vestido de baile desde que me formei na universidade. Não pude entender... e também não entendi por que faziam questão de me chamar de domna, em vez de mestra. Depois Ivor morreu, e fiquei tão absorvida com as providências para o funeral que não pensei mais a respeito. Pode imaginar minha surpresa quando esbarrei com Rafe Scott ontem e descobri que era uma herdeira, que tinha uma porção de parentes aqui. Ele me levou para o Castelo do Comyn, onde conheci Lorde e Lady Hastur... que também são primos meus. Esperavam que eu ficasse lá. Sentiram-se magoados quando insisti que precisava terminar o trabalho de Ivor. Foram corteses, mas tive a sensação de que sufocava.

- Você está acostumada à liberdade relativa que as mulheres têm na Federação, Margaret. As darkovianas são mais confinadas... e, exceto pelas Renunciantes, raramente viajam.

- Renunciantes? O que elas são... freiras? Conover sorriu, os olhos se iluminando.

- Não, não são freiras, pelo menos não no sentido em que você conhece a palavra. A Guilda das Renunciantes, ou Amazonas Livres, é um grupo de mulheres que optaram por se afastar das restrições da cultura darkoviana. Não casam, o que é quase inconcebível aqui, e, se geram uma criança, não lhe dão o nome do pai. Começaram a operar como guias e acompanhantes, depois expandiram suas atividades para incluir os papéis de educadoras e parteiras. Tornaram-se as principais agentes de divulgação dos conhecimentos terráqueos nos últimos vinte e cinco anos. São mulheres extraordinárias.

- Amazonas Livres? É esse o nome que elas usam?

- Você é mesmo muito perceptiva. Não, esse é um nome que foi ligado a elas mais tarde. A maioria das mulheres de Darkover não saberia distinguir um coelho-de-chifre de uma amazona. As Renunciantes constituem uma anomalia cultural, mulheres independentes numa sociedade patriarcal. Aprendem a ler e escrever, o que ainda é excepcional em Darkover, e não se curvam diante de nenhum homem, em qualquer questão. Daí o apelido de Amazonas Livres. Estudam tudo, de artes marciais a medicina. Várias terráqueas já se tornaram Renunciantes... para o imenso desprazer de pessoas como a Major Wintergreen.

- Está querendo dizer que elas se tomaram nativas?

- Essencialmente. Há alguma coisa em Darkover que atrai alguns de nós... Não sei explicar o que é, mas acontece. Em termos genéticos, os darkovianos são humanos... mas também são mais do que isso. Eles têm algo extra, que nos atrai ou repele. Se você se sente à vontade aqui, há uma boa possibilidade de que queira ficar para sempre em Darkover, o que deixa pessoas como Thelma bastante apreensivas.

- Qual é o seu caso, Brigham?

- Tenho uma esposa darkoviana e duas crianças. Se eu fosse mais jovem, poderia ter passado para o outro lado. Em vez disso, preferi seguir o exemplo de Magda Lorne e alguns outros, como o Capitão Scott, procurando me tornar uma ponte entre nossos mundos. Não é fácil, mas sob alguns aspectos é a coisa mais satisfatória que já fiz. Agora, vamos resolver logo o nosso problema!

Quando Rafe voltou, Margaret sentia-se tão faminta que pôde comer os alimentos sem sabor do restaurante do QG sem reclamar. Aprendera muito com Conover, coisas importantes sobre o perigo dos incêndios florestais nas Colinas Kilghard e o problema persistente dos salteadores. Ele providenciara cópias de mapas e respondera às suas perguntas mais prementes. Só depois de sentar à mesa do restaurante é que ela compreendeu que não o interrogara sobre o Conselho Telepático, nem pedira detalhes a respeito do misterioso Dom de Alton. Era como se ela própria já tivesse ingressado na conspiração de silêncio que envolvia tantas coisas em Darkover.

- Vou levá-la até a Casa de Thendara - anunciou Rafe, quando acabaram de almoçar. - Vão lhe fornecer uma guia e ajudar com os suprimentos de que vai precisar. Por falar nisso, sabe andar a cavalo?

- Sei, sim. Tinha um cavalo quando vivia em Thetis; e o único esporte pelo qual me interessei na universidade foi a equitação. Já faz algum tempo que não monto, mas há coisas que a pessoa não esquece.

A menção a cavalos trouxe a lembrança das cavalgadas pela beira da praia, o vento contra seu rosto, o cheiro da maresia entrando pelo nariz.

- Os cavalos na universidade eram mansos demais, só que não consegui arrumar montaria melhor.

Rafe parecia divertido.

- Você faz adestramento? Margaret sacudiu a cabeça.

- Não. Saltava um pouco... e fazia muita corrida cross-country. Adoro deixar o cavalo disparar. É como voar.

- Concordo. Mas não tente fazer isso nas Kilghards. O terreno é acidentado demais para se correr... embora eles promovessem corridas em Armida quando eu era pequeno. Os cavalos de Armida são famosos em Darkover... valem o resgate de um rei.

Margaret não estava prestando atenção.

- Já acabei. Vamos logo embora. Não suportarei continuar aqui por mais um minuto sequer. O ar tem um cheiro esquisito e deixa minha garganta dolorida!

A Casa de Thendara era um prédio grande, poucos quarteirões depois dos limites do Setor Terráqueo. Por fora, não parecia nada especial. E, com certeza, não era o que Conover descrevera como "anomalia cultural". Era igual às outras construções na rua. Era de pedra, brilhando ao sol da tarde, um prédio simples e forte, sem janelas dando para a rua no andar térreo. Só a placa por cima da campainha dava a impressão de que era algo mais do que uma residência particular.

Rafe levou-a até o alpendre. Despediu-se ali, tornando a apertar seu ombro. Margaret observou-o se afastar, as costas empertigadas no uniforme escuro, tentando não se sentir muito desamparada. Tinha a sensação de que ele escondia um sentimento forte, um certo anseio, o que era desconcertante. Afinal, não era possível que quisesse ajudá-la em sua pesquisa! Margaret reprimiu as emoções confusas e tocou a campainha.

A porta foi aberta quase que no mesmo instante por uma mulher no final da adolescência ou início da casa dos vinte anos. Ela não fez uma reverência, como a maioria dos darkovianos que Margaret conhecera até agora. Fitou a visitante nos olhos, avaliando seu traje terráqueo com um rápido olhar. Tinha os cabelos curtos, em contraste com as outras mulheres que Margaret conhecera. Segurava um pano, com uma mancha escura de poeira na testa. Parecia feliz e bem-alimentada, cordial ao extremo. Não combinava com a imagem mental que Margaret fizera das mulheres que se intitulavam Renunciantes, o que a fez sorrir. Estava fazendo suposições... o que uma pesquisadora nunca deveria fazer.

- Eu gostaria de contratar uma guia - anunciou Margaret.

Ela desejou que Rafe não tivesse se retirado tão depressa, mas depois lembrou a si mesma, com firmeza, que tinha de viver por conta própria, era assim que queria. Não precisava de ninguém, não é mesmo?

- Entre - disse a moça. - Vou chamar Mestra Adriana... qualquer coisa para me livrar do trabalho de tirar o pó! Juntei-me às Renunciantes porque queria ser independente, mas ainda faço o serviço doméstico.

- A tecnologia nunca resolveu o problema da poeira - comentou Margaret, secamente.

- Quer dizer que as mulheres Terranan ainda fazem os serviços domésticos? Sempre pensei que havia máquinas para tudo.

- Nem tudo.

- Fique esperando na sala de visitas, enquanto vou chamar a Mãe. Eu não deveria abrir a porta, mas estava bem aqui, e achei que seria um absurdo esperar por uma das outras.

Ela levou Margaret para uma sala agradável e depois se retirou, apressada. Margaret ficou perplexa, sem entender por que a moça não deveria abrir a porta da frente. Olhou ao redor, enquanto esperava. A sala era bem mobiliada, embora tudo parecesse bastante gasto. Havia tapetes grossos no chão de pedra, poltronas confortáveis, com o estofo brilhoso de tanto uso. Havia ainda cartazes pendurados nas paredes. Margaret examinou-os com o maior interesse, porque eram obviamente feitos numa impressora com tipos móveis. A tinta era mais densa em alguns lugares do que em outros, o papel não passara por dentro de uma máquina. Ela olhou curiosa para o anúncio de um curso de parteira. Percebeu nesse instante que sempre encarara o parto como uma coisa simples. Notou outro cartaz. Relatava a história da Sociedade da Ponte, fundada por alguém que tinha dois nomes, Magda Lorne e Margali n'ha Ysabet. Lembrou que Conover mencionara Magda Lorne, e especulou se ela ainda era viva. Talvez pudesse responder a algumas perguntas de Margaret. Absorvida em sua leitura, ela quase não ouviu uma tosse gentil às suas costas.

Uma mulher na casa dos quarenta anos estava parada ali. Tinha cabelos escuros e olhos verdes, um queixo saliente que indicava determinação. O traje era verde-escuro. Parecia ao mesmo tempo cordial e formidável.

- Seja bem-vinda à Casa de Thendara. Sou Adriana n'ha Marguerida. Soube por Jillian que você deseja contratar uma guia.

Ela falava o Padrão Terráqueo como se torcesse a língua. Margaret respondeu em casta.

- Sou Margaret Alton. É verdade, quero contratar uma guia para me levar às Kilghards. Tenho todas as permissões e documentos necessários para...

- Documentos? Essa não! Como os Terranan conseguiriam viver sem suas permissões? Pensam que um pedaço de papel significa alguma coisa, como se uma pessoa pudesse ser medida por isso. Um total absurdo. Peço que me desculpe... mas não agüento mais tantos formulários, permissões e passes. E o tato não é uma das minhas virtudes. Minha mãe sempre comentava isso.

Margaret gostou sem hesitação daquela mulher tão franca.

- Também não tenho muito tato. Passei a manhã no QG, tentando encontrar meu caminho entre pilhas de papéis. Partilho sua aversão pela burocracia.

Mestra Adriana balançou a cabeça e sorriu.

- Eles parecem não compreender que Darkover passou muito bem durante séculos sem mil burocratas cuidando dessas bobagens que eles chamam de permissões. Agora, sente e conte o que quer fazer nas Kilghards.

Ela esperou, enquanto Margaret sentava.

- Alton? - Ela fitou Margaret atentamente. - Você não é uma terráquea.

- Não, não sou. Nasci aqui, mas fui embora quando ainda era bem pequena.

Não tão pequena que tenha esquecido os cheiros e cores de Darkover, pensou Margaret, sombria. A Casa de Thendara tinha um cheiro agradável de fumaça de lenha e ensopados saborosos. Um aroma que ela jamais conhecera em Thetis. Mesmo quando Dio cozinhava, nunca ficava tão apetitoso.

- Ahn...

Mestra Adriana tornou a estudá-la. Margaret teve certeza de que bem pouco escapava à atenção daqueles olhos verdes penetrantes. Fez um esforço para reprimir um suspiro, preparando-se para outra sessão frustrante de revelação de parentesco. Mas Mestra Adriana não fez perguntas pessoais, refutando assim a sua alegação de falta de tato.

- Você fala muito bem a língua - foi tudo o que ela disse.

- Obrigada. A impressão é que tudo me volta aos jorros. Mas às vezes ainda não entendo metade do que as pessoas dizem.

Margaret recostou-se na cadeira.

- Podia explicar por que deseja ir às Kilghards?

Alton! Será que ela quer voltar a Armida? Mas que velha intrometida que eu sou!

Margaret ouviu com absoluta nitidez esses pensamentos. Sentiu que o rubor subia por seu pescoço. Era como se estivesse bisbilhotando. Pior ainda, tinha a sensação de que não possuía o menor controle sobre isso. Seu estômago contraiu-se em torno da horrível comida do restaurante do QG, a tal ponto que chegou a pensar que poderia vomitar.

Armida... Rafe comentara que Armida era o baluarte de Alton... e que ela era herdeira de Alton. Era bem provável que fosse uma casa no meio de alguma aldeia em que havia muitos Alton, todos falando em enigmas. Mesmo que eles tivessem os mais lindos cavalos de toda a galáxia civilizada, ela não tinha a menor intenção de ir até lá! E voltou a se concentrar no assunto imediato.

- Fui enviada a Darkover por minha universidade para fazer pesquisas e coletar músicas... canções folclóricas e baladas. Vim com meu mentor, Professor Ivor Davidson, mas ele morreu inesperadamente. Tenciono completar seu trabalho. Planejáramos passar algum tempo aqui em Thendara, depois viajarmos pelo interior. Decidi que será melhor aproveitar a estação agora e fazer o trabalho rural primeiro. Afinal, a ser verdade o que me disseram, as viagens se tornarão muito difíceis depois que acabar o verão. As pessoas no QG tentaram me dissuadir. A Major Wintergreen declarou que era perigoso demais. Mas acabei obtendo a permissão de que precisava.

Graças a Rafe! Lembrei de agradecer a ele por tudo o que fez? Adriana soltou uma risada.

- Ah, a velha Thelma! Ela é muito difícil. Tem feito tudo o que pode para destruir o trabalho da Sociedade da Ponte. Uma mulher detestável.

Margaret hesitou por um momento.

- Ela me pareceu muito desagradável, embora só tenhamos ficado juntas por pouco tempo.

Ela refletiu que a intervenção de Rafe naquele momento fora mais do que oportuna, caso contrário teria perdido o controle numa explosão de raiva.

- A pobre Thelma fica pior a cada dia que passa. Música folclórica? É um estranho motivo para vaguear pelas colinas, Domna Alton.

Havia um tom de incredulidade na voz, com suspeita e cautela por trás.

- Não quando se é uma musicóloga, Mestra Adriana. Para mim, é a coisa mais lógica do mundo.

- Já fez isso antes?

- Claro. Estive em vários planetas com meu mentor, estudando as formas musicais das populações locais.

- É muito esquisito. Acho que nunca serei capaz de compreender essas coisas. Há algum tempo apareceu aqui uma mulher querendo saber tudo sobre as Renunciantes, para um livro que ia escrever. Disse que era antropóloga, mas achei que só estava à procura de um escândalo. Não sei se chegou a escrever o livro... foi embora depois de algum tempo, e nunca descobri o que aconteceu com ela. Essas coisas me parecem bem pouco práticas.

- Sou uma pesquisadora, e a coleta de fatos aparentemente inúteis é o meu trabalho. A verdade é que adoro música... e adoro o que eu faço.

- E deve adorar muito, se ousou desafiar o dragão que é Wintergreen em seu covil e escapou para contar a história. Como conseguiu?

Os olhos verdes faiscavam numa intensa curiosidade.

- Tive alguma ajuda do Capitão Rafael Scott, que é meu parente. Era de se imaginar que ele a ajudaria.

- Está certo. Deixe-me pensar na pessoa mais apropriada para acompanhá-la.

Margaret ouviu o pensamento e as palavras pronunciadas ao mesmo tempo. Todos em Darkover tinham as genealogias completas gravadas na mente? Ela se levantou, irrequieta de tanto tempo sentada, e voltou a ler a história da Sociedade da Ponte na parede, enquanto Mestra Adriana pensava. Ficou um pouco surpresa ao constatar que a mulher não consultava uma lista. Compreendeu que apesar dos cartazes impressos nas paredes, aquela não era uma cultura que se baseasse na palavra escrita tanto quanto na memória.

- Ah, é isso mesmo! Rafaella é a pessoa certa!

Além do mais, ela precisa do trabalho. E talvez a convivência com uma jovem tão sisuda sirva para fazê-la se controlar mais um pouco.

Margaret ouviu os pensamentos tão claramente como se tivessem sido falados. Não pôde deixar de especular por que a tal Rafaella precisava se controlar.

- Ela é uma boa guia?

- Claro. Não seria bom para a reputação da Guilda se eu lhe indicasse alguém que não fosse capaz de fazer o trabalho. Mas eu a escolhi porque ela canta muito bem, e talvez compreenda seu trabalho melhor do que a maioria. Rafaella nasceu nas Kilghards e tem parentes por toda a região.

- Parece o ideal - murmurou Margaret. - Onde posso encontrá-la?

- Vá ao Mercado do Cavalo amanhã de manhã. Ela estará à sua espera.

- Como a reconhecerei?

Margaret sentiu-se ansiosa de novo. Não sabia onde ficava o Mercado do Cavalo. Ora, pediria a alguém para lhe indicar o caminho. Talvez até o jovem Geremy tivesse tempo livre para acompanhá-la.

- Temos uma cocheira no Mercado do Cavalo. Basta perguntar pela cocheira da Guilda. E não poderá deixar de reconhecê-la. Rafaella n'ha Liriel é inconfundível.

 

9

Ao deixar a Casa de Thendara, Margaret sentia-se cansada, mas não tanto quanto ficara durante os dias anteriores. Decidiu visitar a Rua da Agulha, na volta para a casa de Mestre Everard, a fim de verificar se Ethan ou Geremy poderiam levá-la ao Mercado do Cavalo na manhã seguinte. Sabia agora se orientar na parte central de Thendara e não teve dificuldade para encontrar a rua dos fabricantes de roupas.

Aaron MacEwan estava parado no meio da loja, supervisionando um aprendiz, que cortava um traje, enquanto Manuella enrolava uma peça de fazenda, no momento em que Margaret entrou. Ambos cumprimentaram-na com a maior efusividade, sorrindo e oferecendo um chá. Margaret sentiu-se bem-vinda, depois dos corredores áridos do QG. Disse que faria uma viagem pelas Kilghards. O olhar que os dois trocaram representava vários volumes.

- Vai precisar de roupas quentes para isso, domna. E o vestido que lhe enviamos não serve para as colinas. Deve ter uma saia de montaria e uma túnica grossa.

Margaret sentiu-se um tanto surpresa ao ouvir isso, porque não pensara a respeito. Planejara viajar em seu lamentável uniforme, por mais que o detestasse. Antes que pudesse pensar, Manuella levou-a para a sala de prova e ofereceu um lindo traje, que cobria as pernas e permitia que montasse escarrapachada. Era marrom-escuro, elegante, quente e confortável. Uma túnica de um marrom mais claro foi enfiada por sua cabeça. Mais uma vez, Margaret teve a sensação de que tudo ali era absolutamente correto, como acontecera quando pegara a terra de Darkover à beira da sepultura de Ivor.

Ela concluiu as transações, depois perguntou se um dos rapazes poderia levá-la ao Mercado do Cavalo no início da manhã seguinte. Manuella prometeu que Ethan estaria na casa de Mestre Everard assim que o dia clareasse. Margaret pegou suas compras e seguiu para a Rua da Música, contente por um bom dia de trabalho.

A escuridão do vazio foi rompida pelo turbilhão da elipse galáctica, um giro de estrelas contra a noite. Ela flutuava entre as estrelas, sem o menor esforço. Era assim que se devia viajar, sem drogas e sem fétidas espaçonaves! Um vulto começou a se formar, primeiro os pés, depois pernas e troncos, braços e ombros, até que surgiu a cabeça. Lew Alton, feito de sóis, fitando-a furioso do vazio. Estendeu a única mão em sua direção, mexendo a boca, como se tentasse falar. Margaret sentiu que também estendia as mãos para o pai. Foi envolvida por um aperto gelado. Era tão frio que ela não pôde mais suportar o contato. Desvencilhou-se em agonia. As estrelas se apagaram, ela ficou sozinha na escuridão, gritando para a noite.

Quando a primeira claridade da manhã atingiu seu rosto, Margaret sentou na cama, o resquício do sonho se desvanecendo enquanto abria os olhos. Sacudiu a cabeça para desanuviá-la por completo, saiu de baixo das cobertas para o frio do quarto. Embalara tudo na noite anterior, exceto os artigos de higiene pessoal e o que vestiria naquela manhã. Escovou os dentes, lavou o rosto. Vestiu-se apressada, ansiosa em partir logo de uma vez. Enfiou a túnica pela cabeça, pôs a saia de montaria, puxando os cordões na cintura. Escovou os cabelos e prendeu-os com a travessa em forma de borboleta. Lançou apenas um olhar rápido para o espelho, a fim de se certificar de que estava razoavelmente arrumada. Mordeu o lábio em apreensão. Detestava qualquer superfície reflexiva.

Satisfeita com sua aparência, passou o cinto pela cintura estreita. Pegou suas coisas e desceu, com tanta pressa quanto a bagagem permitia. Só quando chegou lá embaixo é que compreendeu que deveria ter deixado esse trabalho para Raimon, ou um dos outros criados. Ela balançou a cabeça. Estava acostumada a ajudar, não a ser ajudada.

Anya já tinha se levantado. O aroma do mingau espalhava-se pela casa. Margaret foi encontrá-la na cozinha, junto com o jovem Ethan. Ele comia uma tigela de mingau, na maior concentração. Margaret desconfiou que era o seu segundo desjejum, e lembrou que houvera um tempo em que também comia com todo aquele apetite.

Ela sentou à mesa grande da cozinha. Anya serviu uma xícara de chá e uma tigela de mingau. Havia mel e um pote com creme no meio da mesa. Margaret acrescentou ambos à sua refeição, em quantidades generosas. Ela e Ethan sorriram um para o outro, enquanto comiam. Sentiu-se grata pelo silêncio do rapaz. Detestava conversar de manhã bem cedo, e ficou impressionada com a sensibilidade de Ethan. Os rapazes de sua idade só paravam de falar quando dormiam.

Mestre Everard entrou na cozinha quando os dois terminavam de comer, os cabelos brancos desarrumados do sono. Parecia uma velha tartaruga, piscando à luz da manhã, que entrava pelas janelas estreitas. Sentou um tanto rígido. Anya serviu-lhe uma caneca com chá.

- Quer dizer que vai para as colinas, chiya. Já faz muito tempo que vagueei por lá... muitos e muitos anos. Minha falecida esposa era das Kilghards. Nós nos conhecemos em uma das minhas visitas. Ela era adorável. - Ele soltou um pequeno suspiro. - Vou sentir sua falta... tem sido um prazer para mim a sua presença nesta casa. Meu filho já está nas colinas. Talvez você o encontre em sua excursão. É um bom homem, mas detesta a vida na cidade. Quase nunca o vejo.

Margaret ficou comovida pelo uso do termo carinhoso chiya, mas trouxe de volta um fluxo indesejado de lembranças. A mulher de cabelos vermelhos que era sua mãe costumava usá-lo, mas sem qualquer afeto. Aquele homem obsedante, de olhos e cabelos prateados, também usara o termo quando a deixara no orfanato. Era a primeira vez que ela recordava o incidente com tanta nitidez. Fez com que se sentisse muito pequena e assustada. E furiosa também, embora reprimisse o sentimento tão depressa quanto pôde.

- Também sentirei saudade, Mestre Everard. Adorei a estada em sua casa, e espero poder voltar, antes de deixar Darkover.

- Deixar Darkover?

- Isso mesmo. Assim que concluir o trabalho de Ivor, voltarei para a universidade.

Margaret disse as palavras, mas não acreditava nisso. Ao mesmo tempo, não podia imaginar a sua permanência naquele mundo pelo resto da vida. Podia ser o lar de seu coração, mas ela era uma cidadã da Federação, não admitia viver num planeta quase primitivo. Não que precisasse tanto de chuveiro quente e computadores, mas já se acostumara com tais coisas.

- Mas pensei... confesso que presumi, depois de sua visita ao Castelo do Comyn...

Everard parou de falar, confuso e embaraçado. Margaret fitou-o em silêncio por um longo momento. Será que todos em Thendara já sabiam de seu encontro com Lorde Hastur? Parecia uma invasão intolerável da privacidade que tanto prezava. Mas logo ela compreendeu que era uma comunidade pequena, em comparação com as cidades em outros mundos. Não passava de uma pequena cidade, apesar de ter um espaçoporto e um setor terráqueo.

- Vou às Kilghards para concluir o trabalho de Ivor... e tenho certeza de que ele gostaria que eu fizesse isso... não para apresentar qualquer reivindicação ao Domínio de Alton, por mais que tentem me convencer do contrário.

O tom incisivo era quase descortês, e ela sentiu-se constrangida no instante mesmo em que falava. Ao mesmo tempo, parecia muito importante se distanciar dos sussurros sedutores de Darkover, a fim de não se envolver com questões que não lhe diziam respeito. O senso de sufoco que experimentara no jardim do castelo ressurgiu. Margaret fez um esforço para respirar fundo. A fim de esconder seu desconforto, tentou pensar em algo agradável para dizer.

- Entendo... - murmurou Mestre Everard, com uma cara triste. -A verdade é que nenhum homem pode fazer o destino de outra pessoa. Nem todo o desejo do mundo conseguirá isso. Deve seguir seu coração... embora eu pense que talvez você esteja fugindo de alguma coisa, em vez de correr em sua direção.

- É possível.

Margaret tinha a impressão de que o velho já a compreendera, sabia que ela fugira de coisas durante a maior parte de sua vida. Fugira de Thetis para escapar da tristeza do pai, embora sem saber quais os motivos. Tornara-se assistente musical de Ivor para não se ligar a qualquer pessoa mais próxima de sua idade. A perspectiva de casamento a deixava toda arrepiada, e a idéia de ter filhos era horrível demais para sequer cogitar. Havia alguma lembrança, enterrada bem fundo, mas poderosa, que a fazia se abster de intimidade ou contato físico. Não sabia por que isso acontecia, mas sabia que era a verdade.

- O que devo fazer com o instrumento de seu professor? - perguntou Everard.

- A guitarra de Ivor? - Margaret quase a esquecera desde que a deixara com Mestre Everard, depois do funeral. Deveria despachá-la para Ida? Não parecia a atitude mais correta. - Pode guardá-la por enquanto? Acho que Ivor gostaria assim. E, se sua esposa vier buscar o corpo, então poderá levá-la. Prefiro não confiá-la a espaçonaves, sem uma pessoa para levá-la pessoalmente... o que é uma tolice minha, sei disso.

Sua mente, ela constatou, não estava interessada naquele assunto. Não tinha tempo para ir ao centro de comunicações, enviar uma mensagem, depois esperar pela resposta. Queria sair logo de Thendara, escapar das pessoas que a confundiam com alguém que ela não queria ser. Não permitiria que nada retardasse sua partida. O velho mostrou-se satisfeito.

- Eu me sentirei honrado em guardá-la por todo o tempo que for necessário, pois é um instrumento maravilhoso. Acha que a Mestra Doevidson virá a Darkover?

- Não sei. É possível, mas sairia muito caro. Obrigada por tudo. Adorei todo o tempo que passei aqui.

Margaret mal conseguia conter sua impaciência agora.

- Também gostamos de sua companhia... e, para ser franco, sentirei muita saudade. Esta casa precisa da presença de gente jovem, já que Erald quase não aparece.

Ele parecia um pouco triste, mas reanimou-se tão depressa que Margaret não pôde ter certeza. Poucos minutos depois, ela despediu-se de Anya e Mestre Everard. Saiu em companhia de Ethan, empanturrado e um pouco contido. O rapaz carregava uma de suas bolsas, enquanto Margaret levava a harpa e a outra. Já haviam percorrido três ruas, quando ela notou que o rapaz tinha um embrulho malfeito na mão livre.

- O que tem aí... seu almoço? - perguntou Margaret, com mais jovialidade do que sentia.

- Não. - Ele ofereceu um sorriso afável e levantou o embrulho pesado. - Seria demais, até para minha barriga. A mãe diz que como por três e que a deixarei na miséria antes de acabar de crescer. Mas não me importo muito, pois ela disse a mesma coisa sobre meu irmão mais velho, Jacob. Se as mães não conseguem repreender um filho por algo concreto, tratam de inventar, não é mesmo?

Margaret pensou um pouco a respeito, mas não encontrou nenhuma experiência que lhe permitisse responder. Dio jamais comentara qualquer coisa sobre seus hábitos alimentares, a maneira como se vestia, ou até mesmo as condições de seu quarto, que muitas vezes dava a impressão de ter sido o alvo de um dos mais violentos furacões de Thetis. Só recebera uma repreensão por ter empilhado os cabelos no alto da cabeça, deixando o pescoço à mostra, ou por fitar as pessoas nos olhos... uma grosseria, segundo Dio.

- Suponho que sim - respondeu ela, indiferente. - Mas ainda não me contou o que está carregando. Mas se é um segredo, então é diferente. Sempre guardo os segredos dos outros.

- Sei disso. Não comentou com Tio Aaron que eu queria ser um espaçonauta.

- Jamais contaria. Não é da minha conta. Além disso, pensei que ele não ficaria nem um pouco satisfeito, se tomasse conhecimento de suas ambições por intermédio de uma estranha. E desconfio que ele não aprovaria, se soubesse.

- Tem toda razão, domna. Aaron pensa que o mundo começa e acaba na Rua da Agulha. Sabia que ele nunca saiu de Thendara em toda a sua vida?

- Não, não sabia, mas isso não me surpreende. Ele ama seu trabalho, como eu amo o meu. Dá para perceber que ele não é capaz de se imaginar a fazer qualquer outra coisa. Isso acontece com freqüência.

- E fica melhor à medida que a pessoa envelhece?

Margaret pensou a respeito, enquanto continuavam a andar por ruas tão estreitas que o sol da manhã ainda não as esquentara. A pequena harpa pendurada no ombro esbarrava no quadril a cada passo, a bolsa parecia cada vez mais pesada. Ela se perguntou se ainda faltaria muito para o Mercado do Cavalo. Pensou em seu Tio Rafe e Lorde Hastur, nas expectativas dos dois de que ela assumiria sem hesitar o Domínio de Alton. Pensou também em Lew Alton, que nunca aprovara sua carreira musical, pelo que podia presumir. Ele jamais falara nada, mas Margaret sabia que o pai gostaria que ela se dedicasse à política ou ao jornalismo.

- Acho que não. Por mais que você envelheça, sempre há pessoas mais velhas que pensam que sabem mais.

- Foi o que pensei. Minha avó vive implicando com meu pai por continuar no ofício, em vez de tentar melhorar de vida.

Ah, as implicações sociológicas desse comentário! Margaret fez um esforço para não estremecer. Refletiu que todos os pais tinham planos para seus filhos, e muitas vezes ficavam desapontados. Por que a humanidade não aprendera ainda depois de tantos milhões de anos?

Entraram numa praça ampla, onde o cheiro intenso de esterco de cavalo, couro e palha úmida se elevava das pedras do calçamento. Havia dezenas de estrebarias, feitas com uma lona grossa, através da praça. Mesmo àquela hora já havia muita atividade, as vozes soando no tom animado das negociações ou apenas na conversa descontraída.

Margaret avistou uma cozinha ao ar livre no centro da praça. Ao passarem, ela viu uma mulher fritando roscas num caldeirão cheio de óleo. Tirava as roscas com uma pinça de madeira e espalhava sobre um pano. Um homem de calça larga e botas escarlates, com uma túnica estampada, estendeu-lhe uma moeda. A cozinheira entregou-lhe duas roscas. Pelo estranho chapéu que o homem usava, quase um turbante, Margaret calculou que devia ser um habitante das Cidades Secas.

Apesar de ter saído da mesa pouco antes, Margaret descobriu-se com a boca cheia de água. Lembrou-se da mão pálida de alguém lhe oferecendo uma rosca igual, viu sua mão roliça pegá-la. Sentiu o sabor doce e delicioso, sua garganta se contraindo à recordação. No passado distante sabia qual era o nome daquela rosca, mas agora não conseguia lembrar.

Ethan levou-a para uma estrebaria no outro lado do Mercado do Cavalo. Várias mulheres, vestindo calça e túnica, cuidavam dos cavalos guardados ali. Tinham cabelos curtos, como a moça que abrira a porta na Casa de Thendara, e usavam cintos com uma faca na bainha. Os rostos eram bronzeados devido ao trabalho ao ar livre. Pareciam competentes e formidáveis.

- Qual delas é Rafaella n'ha Liriel? - perguntou Margaret, em voz baixa.

Mas não deve ter sido tão baixa assim, porque uma mulher levantou-se do canto em que limpava o casco de um cavalo e virou-se para os dois. Tinha cabelos vermelhos extraordinários, quase como se sua cabeça estivesse em chamas. Parecia ser alguns anos mais moça do que Margaret. Avaliou Ethan e Margaret num rápido olhar, com uma expressão que indicava uma natureza voluntariosa, e adiantou-se.

- O que você está fazendo com a minha blusa? - indagou ela, apontando para o traje de Margaret.

- Sua blusa?

Por um momento, Margaret ficou completamente confusa. Depois lembrou que Manuella comentara que as roupas compradas em sua primeira visita à Rua da Agulha haviam sido feitas para uma mulher chamada Rafaella. Nunca lhe ocorrera que a pessoa indicada para ser sua guia era a mesma Rafaella, pois sabia que era um nome bastante comum em Thendara.

- Disseram-me que a roupa não lhe agradou quando ficou pronta.

- Mudei de idéia! - Ela ergueu o queixo, fazendo com que os cabelos cacheados balançassem alegremente. Tentou intimidar Margaret com o olhar, mas era um pouco mais baixa, o que a obrigava a esticar o pescoço. -Passei algum tempo viajando, e acabei chegando à conclusão de que gostava da roupa. Mas quando voltei, MacEwan disse que já tinha vendido. Inventou alguma desculpa, alegando que não podia ficar muito tempo com as encomendas na loja... como se minha mãe e minha avó não fizessem roupas com ele há muitos e muitos anos!

Ethan franziu o rosto, a pele clara ficou vermelha.

- Não se pode esperar que o tio leia pensamentos. Ele não tem laran, Mestra Convencida. Domna Alton comprou as roupas de forma justa e honesta. Por isso, não deve ficar zangada.

O rapaz falou com firmeza, embora sua voz adolescente tremesse um pouco no meio da repreensão. Por trás das palavras, Margaret sentiu algo mais, uma qualidade emocional para a qual não tinha uma classificação imediata. Ninguém fala com minha domna dessa maneirai

No instante seguinte, a palavra fidelidade aflorou em seu cérebro. Compreendeu então um elemento importante na cultura darkoviana que não percebera antes. Sentira a mesma coisa no paxman de Regis Hastur, Danilo, e também em Rafe Scott. Não era uma lealdade cega, sem pensar, como a princípio acreditara, mas sim um profundo orgulho da forma de governo representada pelo Comyn e os Domínios. Não era de admirar que os terráqueos falhassem em sua tentativa de converter Darkover em outra colônia do Império. Por razões só suas, o Império Terráqueo decidira que a democracia participativa era a única forma justificável de liberdade. Margaret sabia que havia muitas outras formas de governo na Federação e que eram tão viáveis quanto podia ser qualquer sistema envolvendo milhões de pessoas. Ainda assim, os terráqueos tentavam impor suas idéias a todos os outros planetas, muitas vezes com resultados desastrosos. Era evidente que os darkovianos gostavam da situação como era e não viam qualquer bom motivo para mudá-la.

Rafaella mostrou-se tão surpresa com aquela veemente defesa quanto a própria Margaret. Lançou um olhar furioso para o rapaz e disse:

- Guarde sua língua por trás dos dentes, Ethan MacDoevid, ou comprarei minhas roupas com o velho Isaac na próxima vez. Seu tio não ficaria nada satisfeito em perder minhas encomendas.

- Isaac? - murmurou Ethan, desdenhoso. - Ele não é capaz de fazer uma linha reta com uma régua. Vai parecer vestida por um... um chervine.

A imagem que o comentário projetou na mente de Margaret era muito estranha. Rafaella pareceu achar também muito engraçada, porque desatou a rir. Passou os dedos pelos cabelos vermelhos, dando a impressão de que parecia ainda mais jovem do que antes. Margaret teve dúvidas se ela seria uma guia com a experiência necessária. Concluiu que a viagem devia ser menos perigosa do que haviam sugerido, se a deixavam partir com alguém comi Rafaella.

- Tudo tem dado errado nos últimos dias - queixou-se Rafaella, como se isso desculpasse sua grosseria. - Meu cavalo morreu a caminho do sul, e o substituto era lento demais. Atrasei no cumprimento do contrato, o que me custou caro. E quando fui pegar meu traje novo, descobri que havia sido vendido para uma estranha. Eu mesma tinha desenhado o bordado! Logo em seguida Mestra Adriana me avisa que fui contratada por uma Terranan.

Ela fez uma pausa nesse relato de pesares, corando um pouco.

- Não me importo de trabalhar para uma Terranan, mas elas podem ser muito difíceis de agradar.

- Ela não é mais Terranan do que você - murmurou Ethan, ainda vermelho de raiva.

- É demais! Não sei se me agrada mais trabalhar para uma comynara ou para uma Terranan! - Ela disse isso para Ethan. Tomava o cuidado de não ofender a pessoa que a contratara. - E agora que vestido vou usar no Festival?

E ainda nem a tive a oportunidade de vê-lo! Por que Mãe Adriana tinha de bancar a intrometida?

Margaret não tinha idéia de quem podia ser o homem, mas era evidente que ser uma Renunciante não excluía a aventura romântica, como ela presumira. E começava a compreender o que Mestra Adriana quisera dizer ao pensar que Rafaella precisava se controlar. Não tinha certeza se queria ir para as colinas com uma mulher de temperamento tão explosivo. Era o que ela precisava. .. uma guia emocional, nas garras do amor!

- Lamento muito se criei problemas, mas posso garantir que Mestre MacEwan agiu de boa-fé.

Margaret falou em voz suave, mas o estômago se contraiu ao sentir as fortes emoções da guia, mesmo sem desejá-lo. Rafaella soltou uma fungadela insolente.

- Não resta a menor dúvida de que ele prefere clientes do Comyn a meras Renunciantes. - Ela parecia determinada a se apegar ao senso de injustiça por tanto tempo quanto fosse possível. - Claro que sabia que eu pagaria. .. ou se alguma coisa me acontecesse, a Guilda pagaria.

Margaret cansou-se subitamente de toda aquela discussão. Se mais uma pessoa comentasse sua posição imaginária, ela ia gritar.

- Não sou do Comyn, mas apenas uma pesquisadora - declarou ela, sua paciência se esgotando. - Além do mais, não sei o que isso tem a ver com qualquer coisa.

- Não é do Comyn... essa é boa! Fica parada aí, com minha roupa, com uma cara de leronis, e espera que eu acredite em você! É verdade que a cor combina tão bem com você quanto comigo, mas eu mandei fazê-la para uma ocasião muito especial... - E para que uma pessoa muito especial me visse nela!-... e não quero que ninguém mais use! Não é justo... os mercadores são gananciosos e...

- E você é uma jovem muito grosseira. Talvez seja melhor eu voltar à Casa de Thendara e comunicar à Mestra Adriana que gostaria de ter outra guia.

Enquanto falava, Margaret descobriu que o rosto do Capitão Scott aflorava em sua mente. Sentiu que seus olhos se arregalavam. Seria possível que Scott fosse o homem em quem aquela moça pensava, o que não teria tempo para ver durante sua estada em Thendara? Ora, Rafe tinha idade quase para ser pai dela! Isso não é da minha contai Mas quando me deixou na Casa de Thendara, ele se comportava... como se estivesse apaixonado! Ora, talvez apenas passasse mal daquele almoço horrível... e às vezes tenha a maior dificuldade para perceber a diferença entre as coisas. Não consigo entender toda essa bobagem de amor. Acho que jamais poderei compreender. E melhor permanecer sozinha, nunca me envolver com ninguém, não fazer muitas perguntas.

O pensamento era angustiante. A perplexidade de Margaret foi profunda. Era quase como se alguém em sua cabeça tivesse acabado de lhe dizer para ficar sozinha, não importava o que pudesse acontecer. Sentiu o frio espalhar-se por todo o seu corpo, apesar do calor no Mercado do Cavalo e das roupas confortáveis. Rafaella piscou os olhos, com uma expressão desesperada.

- Não faça isso! Preciso muito desse contrato. Perdi aquele cavalo e...

Margaret decidiu que já houvera lamentos e queixas em excesso.

- Se precisa do contrato, então trate de se comportar como uma profissional. Não tenho a menor intenção de viajar com uma garota mimada!

Ethan soltou uma risada ao ouvir essas palavras. Margaret fitou-o com uma irritação evidente.

- E você pare de provocar!

- Foi ela quem começou!

- Não é motivo para provocá-la, Ethan. Se você assumisse esse comportamento com um comandante de uma espaçonave, iria para a prisão no mesmo instante.

Margaret não tinha certeza nesse ponto, pois o máximo que sabia sobre a operação das naves estelares era aquilo a que assistia de vez em quando nos videodramas. Mas o rapaz precisava aprender a não permitir a perda do controle, se quisesse ter êxito. E, de repente, ela queria demais que o jovem Ethan consumasse suas ambições.

- Ahn... - O rapaz comprimiu seu embrulho malfeito contra o peito. Levantou os olhos para Margaret com uma expressão de adoração. -Desculpe.

Rafaella ignorou esse diálogo secundário, fitando-a com um ar quase insolente.

- Não é mesmo do Comyn?

Margaret não podia imaginar por que isso era tão importante para a jovem, mas decidiu esclarecer o assunto de uma vez por todas.

- Se compreendi direito o que me contaram, meu pai era do Comyn. Mas deixou Darkover há muitos anos. Nasci aqui, mas parti antes de completar seis anos. Fui educada bem longe, tenho vivido em outros planetas do Império por tanto tempo quanto posso me lembrar. Várias pessoas daqui já me confundiram com uma de suas aristocratas, mas só voltei a Darkover como uma pesquisadora musical da universidade. Não fui criada aqui e não tenho a menor intenção de ser qualquer outra pessoa que não eu mesma. Agora, se pudermos parar de discutir minha vida pessoal e a sua numa praça pública, talvez possamos partir antes de amanhã!

Ela falara num tom de autoridade, o que costumava reservar para fazer Ivor se aquietar, ou para dar uma orientação a novos estudantes. O som que saiu de sua boca foi surpreendente, como se estivesse controlada por uma força que nunca imaginara que possuía. E inquietante ainda por cima. Chamada à ordem dessa maneira, Rafaella disse:

- Mãe Adriana deve ter me escolhido porque sou também uma boa cantora. Ou pelo menos bem sonora. - Ela sorriu. - Não era bastante boa para estudar como artista na Guilda dos Músicos, o que de qualquer maneira não me serviria. Quando estou viajando, às vezes canto em tavernas por uma rodada de drinques.

Margaret disfarçou sua consternação. Uma cantora de taverna não era o que esperava.

- Tem uma voz bastante firme ao falar.

- Adoro o seu som - respondeu Rafaella, ácida.

Ethan começou a rir, mas tratou de tapar a boca com a mão e transformou o som numa tosse, enquanto Rafaella acrescentava:

- E conheço muitas pessoas nas colinas que ainda apreciam as canções antigas.

- Isso é maravilhoso! - exclamou Margaret, com mais entusiasmo do que sentia. - Sabe tocar algum instrumento?

- Posso tocar uma guitarra, e sempre levo minha flauta quando viajo. Você toca algum instrumento?

Rafaella parecia ter esquecido sua hostilidade.

- Toco vários instrumentos, mas nenhum tão bem que me dê vontade de me apresentar com uma orquestra. Sou mais uma estudiosa e pesquisadora do que uma artista.

Margaret lembrou-se do incidente com a ryll encantada na casa de Mestre Everard, como ela tocara como se praticasse há anos. Não falou nada sobre seu canto, que exercitara durante toda a infância, porque o som sempre deixava seu pai de cara amarrada. Por um momento, ela recordou como cantava para si mesma nos cubículos áridos do orfanato. Quase que lembrou toda a letra do acalanto que murmurava para manter a solidão à distância. Tinha certeza de que a mãe de cabelos vermelhos que mal conseguia recordar costumava cantar aquele acalanto para ela. Entendia agora por que devia ser doloroso para o Senador ouvir. Com o maior esforço, ela baniu as lembranças.

- Será muito útil contar com alguém que conheça os moradores locais,

Rafaella. Vamos partir logo de uma vez?

- Vou aprontar os cavalos e a mula - respondeu a guia.

- Domna... - murmurou Ethan, tímido, lembrando-a de sua presença.

- O que é, Ethan?

- Isto é para você. Minha tia mandou. - Ele estendeu o embrulho, tornando a ficar com as faces vermelhas. - Um presente.

- Ora, Ethan, é muita gentileza...

Margaret dobrou um pouco os joelhos para ficar no mesmo nível dos olhos do rapaz, ignorando as expressões horrorizadas das várias pessoas que os observavam com o maior interesse.

- Nem todos os mercadores são gananciosos, não importa o que possam dizer a seu respeito.

Ele estava mesmo determinado a defender a honra de sua família.

- Sei disso, Ethan. Seu tio é um artista... e todos sabem que os artistas não entendem muito das questões de dinheiro, não é mesmo?

O rapaz soltou uma risada. Fitou-a nos olhos.

- Acha mesmo que posso ir para as estrelas?

- Como não tenho uma bola de cristal, não posso ver o futuro, Ethan. Mas acho que se você se empenhar a fundo, pode fazer o que quiser. Só deve saber que é muito difícil, e terá de aprender coisas que nunca imaginou.

Ali em Darkover, especulou Margaret, o filho de um mercador poderia obter a instrução necessária para se tornar espaçonauta? E ela tinha algum direito de interferir na vida de Ethan? Os pais e os tios provavelmente não gostavam nem um pouco da idéia. Esperavam que ele vivesse como sua família sempre vivera, em vez de partir para o espaço. Como se acompanhasse sua seqüência de pensamentos, Ethan balançou a cabeça.

- Não tenho medo do trabalho duro... foi o que sempre fiz durante toda a minha vida. Mas onde posso aprender tudo que preciso saber?

Margaret mastigou o lábio inferior por um momento, depois se empertigou. Todo o seu material de escrever estava guardado nas bolsas. Mas ela avistou, no outro lado do Mercado do Cavalo, a cabina de um escriba público, cercado por todos os instrumentos de seu ofício.

- Venha comigo, Ethan.

Ela foi até o escriba público e disse:

- Quero que escreva uma carta para mim.

- A quem devo endereçar, domna?

Margaret estremeceu... aquele título honorífico outra vez! Parecia que não podia escapar a ser tratada assim.

- Ao Capitão Rafael Scott, Quartel-General Terráqueo.

O escriba levantou o rosto, curioso agora. Tirou uma folha de papel de uma caixa de madeira. A qualidade era superior ao papel que já estava em cima da mesa. Ele pegou sua pena, molhou na tinta, e escreveu o nome com as letras cheias de arabescos características da escrita em Darkover.

- Saudações - disse Margaret, começando a ditar. Seu domínio do casta melhorara bastante nos últimos dias para permitir que escrevesse uma carta. - O portador desta carta é meu amigo Ethan MacDoevid. Seu maior desejo é viajar entre as estrelas. Serei grata se ajudá-lo nessa ambição, tomando as providências para que ele receba toda a educação de que precisa.

Ela fez uma pausa, especulando se deveria acrescentar mais alguma coisa. Decidiu que era melhor não fazê-lo.

- Sua respeitosa sobrinha, Marguerida Alton.

Como não tinha a menor idéia da forma apropriada para um documento assim em Darkover, ela usou o que aprendera na universidade. Concluiu que Rafe compreenderia. De que adiantava ter parentes bem relacionados, se você não os usava? Com esse sofisma, Margaret persuadiu-se de que fazia a coisa certa.

O escriba demonstrava a maior curiosidade. Lançou um olhar inquisi-tivo para Margaret e para o rapaz. Espalhou uma areia fina sobre a tinta, enquanto ela abria a bolsa para pegar algumas moedas.

- Quanto custa? - perguntou Margaret.

- Três sekals, domna.

Ethan fora atordoado para o silêncio, por uma vez. Mas o princípio de um sorriso contraía os cantos dos lábios.

- Eu lhe darei cinco, se não partilhar o conteúdo com todo o mercado. O escriba ficou vermelho de embaraço e acenou com a cabeça.

- Claro, domna. Espero poder servi-la sempre no futuro.

- Poderá, se não se intrometer em meus negócios. - Ela entregou as moedas ao homem, pegou a carta, dobrou-a, e estendeu a mão para a pena. - Posso?

Ele se mostrou atônito. Margaret compreendeu que a maioria das mulheres em Darkover, mesmo as que pertenciam à aristocracia, eram analfabetas. Mas o homem acenou com a cabeça. Ela escreveu o nome e o posto de Rafe através da carta dobrada, depois acrescentou "Pessoal", e assinou por baixo, Margaret Alton, na escrita terráquea. Encostou o polegar na tinta e acrescentou sua impressão digital ao lado do nome. Assim, se houvesse qualquer dúvida, os registros terráqueos confirmariam que a mensagem era autêntica.

- E agora, Ethan, leve isto para o guarda no espaçoporto... aquele que você conhece. Ele vai procurar o Capitão Scott, que poderá verificar se você tem condições de conseguir o que deseja.

O rapaz piscava depressa, para reprimir as lágrimas nada viris.

- Obrigado, vai domna. - Ethan esfregou a mão no casaco e pegou a carta, como se fosse de ouro. Depois, entregou o embrulho a Margaret. -Pode abrir, para que eu possa dizer a Tia Manuella se gostou?

- Claro.

Margaret limpou o polegar com um pano fornecido pelo escriba. Desamarrou os cordões que prendiam o papel oleoso. Deparou com uma massa de lã marrom-escura. Tirou um manto grosso. Alguma coisa deslizou, quase caiu nas pedras do calçamento. Ethan pegou, sorrindo. Era a seda azul-verde, convertida num lindo vestido, que Aaron tentara persuadi-la a comprar na primeira visita. Folhas prateadas haviam sido bordadas no pescoço e mangas.

- Oh, Ethan, é lindo... mas eu nunca terei a oportunidade de usá-lo!

- A tia disse que pode precisar, na próxima vez que for ao Castelo. Margaret não pôde deixar de rir.

- Está bem. Se eu for ao Castelo, pode ter certeza de que o usarei. Todos em Darkover pareciam estar conspirando para transformá-la na

outra Margaret, a que chamavam de Marguerida, herdeira de um Domínio, quer ela assim desejasse ou não. Ela pegou o vestido delicado. Era preciso um esforço muito grande para resistir à gentileza dos MacEwans. Além do mais, sempre tivera um anseio secreto pelos trajes que Dio costumava usar nos jantares oficiais e outras ocasiões formais.

Os dois atravessaram a praça, de volta à estrebaria em que Rafaella aprontava os cavalos, num companheirismo agradável. Ethan e seu primo Geremy haviam sido os primeiros amigos de Margaret em Darkover. Ela sabia que nunca mais os esqueceria.

Levou alguns minutos para abrir uma das bolsas e guardar o vestido. Depois, prendeu o manto por trás da sela, passando os dedos pela lã grossa com a maior ternura. O cavalo esperou, paciente. Assim que arrumou tudo, Margaret foi para a frente do cavalo, a fim de travar conhecimento com o animal. O baio grande ficou nervoso a princípio, revirando os olhos, mexendo com os cascos. Margaret murmurou para o cavalo, como fizera com outros animais em Thetis e Coronis, deixou que ele absorvesse seu cheiro. O cavalo soltou um bufido, como se estivesse confuso com a mistura de cheiros darkovianos e algo exótico. Ela afagou o focinho, observou as orelhas se levantarem.

- Já vi que você entende de cavalos - comentou Rafaella. - O que é um alívio. Cumpri alguns contratos em que juro que meus empregadores não sabiam distinguir uma extremidade de um cavalo da outra... e não se importavam. Houve uma mulher Terranan que apareceu na Casa de Thendara com perguntas tão esquisitas! Todas achamos que ela era uma idiota, mas queríamos ser polidas. Isto é, não queríamos realmente ser polidas, mas Mãe Adriana mandou que fôssemos. Ela era uma pesquisadora, como você, mas era evidente que nunca havia visto um cavalo em toda a sua vida. Passou os braços em torno do pescoço do cavalo, aterrorizada, e não queria mais largar. Tivemos de tapar a boca para não rir.

- Os cavalos não são comuns na Terra, Rafaella.

- Imagino que as pessoas só andam em seus carros aéreos.

Ela soltou uma fungadela enquanto falava, indicando seu desprezo pelos veículos mecânicos.

- Nem todas, mas há muitos carros aéreos, calçadas rolantes e outras coisas.

Margaret decidiu que aquela discussão não a interessava.

- Já está tudo pronto. Vamos partir?

- Claro.

Depois de cavalgarem durante quase uma hora, por uma estrada bem cuidada, mas primitiva, deixaram Thendara para trás. Entraram numa região rural, com campos plantados e pomares. O ar era fresco e agradável, havia o cheiro de plantas crescendo por toda parte. Margaret ainda recuperava sua habilidade na equitação, ao mesmo tempo em que aprendia os hábitos daquele animal em particular. Há vários anos que não montava, mas tudo parecia voltar depressa. As pernas iam doer, os joelhos já informavam que começava a abusar deles, mas ela ignorou tudo isso, contente por se encontrar outra vez na estrada. Ah, se ao menos Ivor estivesse ali!

- Peço desculpas se fui grosseira no Mercado - disse Rafaella, interrompendo as reflexões um tanto mórbidas de Margaret. - Há um velho ditado que diz que nem todas as pessoas de cabelos vermelhos são do Comyn. Meu pai era um nedestro do Comyn, mas não me deu nem um pouco do laran de Dom Rodrigo. O que é uma boa coisa, ou estaríamos cheias de leroni até os ouvidos.

Margaret tentou decifrar as palavras. Laran e leroni não constavam do disco que ela estudara, mas sabia o significado, de maneira meio vaga. Tinham alguma relação com os Dons que Rafe e Lorde Hastur haviam mencionado, embora a ligação não fosse clara para ela. Por que não insistira no assunto, quando Rafe falara a respeito no dia anterior? Mais uma vez, ela teve o pressentimento de que não deveria fazer muitas perguntas... e também a sensação de que alguém no fundo de sua mente assim ordenava. Descartou o assunto, porque a especulação a deixava atordoada, e não queria ficar tonta em cima do cavalo. Em vez disso, procurou entender o resto das palavras de Rafaella. Nedestro significava "bastardo", embora parecesse não haver ônus atribuído a isso. Pelo menos a guia não parecia embaraçada pelo fato de seu pai ser ilegítimo. Margaret acabou perguntando:

- E você queria ter esse laran?

- Quis uma ocasião, quando era jovem e tola. Mas me testaram e constataram que não tenho nem um pingo. Aqui entre nós, nunca senti a falta. E um tremendo fardo prever o futuro ou ouvir os pensamentos dos outros, quer você queira ou não. E a doença? Uma coisa terrível. Ainda bem que fui poupada. Observei minha irmã mais jovem passar por isso, e não foi nada agradável. Sinto-me feliz por ter herdado a inteligência e a boa voz de meu pai, mas não os poderes que me deixariam doente.

- Qual é a doença?

- Quando o laran começa a se manifestar, é acompanhado por uma doença. Algumas pessoas até morrem. Você tem dores de cabeça horríveis, desmaios, não consegue manter nenhum alimento no estômago, a menos que tome medicamentos que a deixam faminta.

- Não parece nada atraente. Por que alguém faria isso?

- Quando você tem laran, ou passa pela doença do limiar, ou morre. Ninguém escolhe... é simplesmente uma coisa que nasce com você ou não nasce.

- Quando isso acontece?

- Quando a pessoa tem doze ou treze anos, talvez um pouco mais velha, mas não muito.

Margaret sentiu um profundo alívio. Era velha demais para ter esse problema. E Lorde Hastur insistira que ela tinha o Dom de Alton...

- O que aconteceu com sua irmã?

- Ela foi para Neskaya e estudou para ser mecânica da matriz por algum tempo. Mas acabou voltando e casou. Tem várias crianças agora, e parece muito feliz.

- E você se tornou uma Renunciante?

- Não queria ficar presa a um homem ou uma casa. - Rafaella hesitou por um instante. - Agora, já não tenho tanta certeza.

Margaret tornou a "ver" o rosto de Rafe Scott em sua mente, por uma fração de segundo. Era uma impressão forte, não apenas a sua imaginação. Adivinhara certo, mas descobriu que desejava não tê-lo feito. Que tipo de vida os dois podiam ter... com Rafaella percorrendo Darkover de um lado para outro, enquanto seu tio permanecia retido no QG? E agora que pensava a respeito, era óbvio que formariam um estranho casal. Rafe era firme e seguro, enquanto Rafaella era um pouco impulsiva.

- Quer dizer que você pode ser uma Renunciante e ainda casar? -perguntou ela, com todo o tato.

- Você pode ter um companheiro livre, mas não assume o nome dele. Nem as crianças que tiver. E algumas pessoas desaprovam essa atitude. Minha mãe não ficou nem um pouco satisfeita, quando prestei o Juramento das Renunciantes. Ela não queria e... Ora, é melhor esquecer! - Ela fez uma pausa, parecendo embaraçada. - Como você se sai em trilhas nas montanhas?

A brusca mudança de assunto indicou a Margaret que sua guia não queria mais falar de sua vida pessoal.

- Não sei. - Ela olhou para o horizonte, além dos campos ondulantes. Divisou os contornos das colinas e mais além as montanhas, ainda cobertas pelo branco da neve. - Nunca estive num mundo com tantas montanhas.

- E mesmo? É difícil imaginar uma paisagem diferente. Até mesmo na região das Cidades Secas há muitas colinas. Como é a Terra?

- Nunca estive na Terra. Fui criada em Thetis, um planeta de muitas ilhas e vastos oceanos. Quase tudo é plano. Eu costumava andar a cavalo pela beira da praia.

- Se você quer descobrir canções populares, vai encontrar algumas nas Kilghards. Mas as melhores estão nas Hellers... são aquelas montanhas que mal dá para se avistar daqui. Ficam a dias e dias de distância, embora possam parecer mais próximas. - Rafaella apontou para o horizonte. - As trilhas ali são estreitas e difíceis, com enormes precipícios. É um terreno acidentado, sem contar o perigo dos bandidos e banshees.

Além do mais, não quero passar tanto tempo longe de Thendara!

- Também não gosto muito das alturas, para ser franca - comentou Margaret, ignorando o pensamento ouvido.

- Há mulheres na Guilda que conheceram a fundadora da Sociedade da Ponte, Margali n'ha Ysabet. Foi muito antes do meu tempo. Dizem que ela tinha acrofobia... - Rafaella usou a palavra terráquea, para depois continuar em darkoviano. - ...mas isso não a impediu de mapear uma boa parte das Hellers. Dizem até que ela alcançou a Muralha ao Redor do Mundo, mas nisso eu não acredito. Margali n'ha Ysabet é uma autêntica lenda na Guilda.

- Por quê?

- Porque era corajosa e fazia coisas extraordinárias, mas acima de tudo porque nunca voltou de sua última viagem. - Rafaella soltou uma risada. - Ela foi para as Hellers e nunca mais foi vista. Algumas pessoas acham que ela descobriu o caminho para... Ora, não importa. Ê mais provável que tenha caído de um penhasco e morrido. Ela era como você, nascida em Darkover, mas educada em outro mundo.

Rafaella parecia entediada com o assunto. Margaret lembrou o cartaz que lia na Casa de Thendara, quando Mestra Adriana a interrompera. Mencionava uma mulher, Magda Lorne, que também era chamada Margali n'ha Ysabet, a fundadora da Sociedade da Ponte. Descobriu-se ao mesmo tempo curiosa e um pouco desaprovadora, como se parte dela achasse que os feitos de Magda Lorne não eram muito apropriados. O que vinha acontecendo com ela? Nunca tivera pensamentos assim! Sentia-se invadida, como se alguma nova personalidade aflorasse em sua mente... e das mais desagradáveis. Censurou a si mesma, silenciosamente, por ser tão irascível, e obrigou-se a esquecer Magda Lorne.

- Quero realizar tanta pesquisa quanto puder, mas não tenho a menor vontade de quebrar o pescoço para aumentar minha contribuição ao saber.

Rafaella riu tanto que quase caiu do cavalo.

- Neste caso, vamos planejar uma viagem que não seja muito árdua para você - disse ela, assim que recuperou o fôlego. E não vai me manter longe de Thendara no Solstício do Verão!- Você monta muito bem, mas estará toda dolorida esta noite.

- Um pequeno preço a pagar por uma balada.

A resposta fez com que Rafaella desatasse a rir outra vez. - Você disse que conhecia algumas canções, Rafaella. Posso pegar meu gravador, para você cantar enquanto viajamos?                                       [

A guia sorriu e corou de satisfação até as raízes dos cabelos vermelhos.

Acamparam ao ar livre na primeira noite. Margaret sentiu-se contente pelo manto grosso que Manuella lhe dera. Usou-o como cobertor extra, especulando como deveria ser o inverno ali, se o verão era tão frio. O pensamento fê-la estremecer, encolhendo-se ao lado da pequena fogueira. Seu sono foi perturbado por outra visão de Lew Alton. Parecia muito zangado com ela por ter vindo para Darkover. No sonho, ela também estava furiosa.

Ao pôr-do-sol do terceiro dia, saíram da estrada bem cuidada e começaram a subir pelas colinas, seguindo para leste, até onde Margaret podia determinar. Suas pernas haviam finalmente parado de doer. Agora eram os pulmões que doíam, enquanto subiam a uma altitude maior do que estava acostumada. Passaram por uma ponte de pedra que cruzava um rio impetuoso. Rafaella informou que o rio se chamava Kadarin. O nome deixou-a arrepiada, assim como acontecera com a menção de Dyan Ardais, poucos dias antes. Ela tentou pensar no motivo, mas descobriu que sua mente resistia a qualquer indagação. Sentiu-se perturbada por isso até que deixaram para longe o barulho do rio. A tensão desapareceu, e ela pôde contemplar o terreno ao redor.

- Acho que é uma boa coisa você ter vindo até aqui para registrar as baladas antigas - comentou Rafaella, ao entrarem num povoado sonolento.

- É mesmo?

Era a primeira vez que a guia fazia uma referência ao trabalho de Margaret.

- Os velhos estão morrendo, e uma parte de nossa música se perdendo. Não temos bibliotecas como os terráqueos, exceto pelos arquivos dos cristoforos em Nevarsin. Eu nunca havia pensado nisso antes.

Margaret se perguntou o que mais teria se perdido em Darkover. As pessoas que conhecera até agora eram inteligentes, mas pareciam carecer do tipo de curiosidade que ela conhecera na universidade. Aquela tradição oral seria por causa de algum tabu que ela ignorava? Ou por algum outro motivo?

Era mais um enigma para frustrá-la... como fragmentos de memória que continuavam a assediá-la, quer estivesse dormindo ou desperta.

- Passaremos a noite aqui. Se a velha Jerana ainda não morreu, terá o maior prazer em cantar para você. Ela foi outrora a melhor cantora lírica de Thendara e conhece muitas canções. Mas casou com um fazendeiro e renunciou à música. Tenho a impressão de que se arrepende dessa decisão. Agora é uma velha avó desdentada, mas ainda possuía uma linda voz quando estive aqui pela última vez.

- A velha sabe alguma coisa sobre os terráqueos?

- O suficiente para não pensar que eles têm chifres e rabo como algum demônio - respondeu Rafaella, com a maior tranqüilidade. - Além do mais, ninguém a tomaria por uma Terranan.

Margaret sentiu-se mais aliviada do que podia dizer. Não queria ser percebida como um demônio, nem que seus preciosos equipamentos fossem considerados como artefatos mágicos que roubavam a alma das pessoas. Nunca passara por essa situação, mas o Departamento de Música abundava de histórias de horror sobre pesquisadores que haviam sido mortos por ignorância. Mas eu nasci aqui, pensou Margaret. Ninguém pode ter medo de mim.

Elas pararam os cavalos na frente de um chalé bem cuidado. Uma velha saiu lá de dentro. Era encurvada e desdentada, mas os olhos faiscavam e a voz era clara e firme. Cumprimentou Rafaella com evidente satisfação, depois olhou curiosa para Margaret. A guia apresentou-a à velha Jerana, que fez uma reverência ao ouvir seu nome.

- Uma Alton! Há muitos anos que nenhum Alton apareceu por aqui. Você tem a aparência do velho, aquele Kennard, e do pai dele. Pobre homem. Foi embora e morreu em algum planeta distante. Não me lembro direito. Minha mente anda muito confusa hoje em dia. Nasci no ano em que os Terranan chegaram a Aldaran.

Margaret sabia que Darkover fora redescoberto mais de cem anos terráqueos antes... o disco de história revelara pelo menos essa informação. Por isso, fitou Jerana com espanto. Poucas pessoas na Federação ficavam tão velhas sem o tratamento que prolongava a vida.

- Domna Alton deseja ouvi-la cantar, Jerana. E fazer uma gravação.

- É mesmo? Há muito tempo que não dou um recital. Já se passaram trinta anos, nem um dia a menos, desde a última vez em que me apresentei em público. - Ela parecia feliz. - Vamos entrar, meninas!

A velha esfregou as mãos encarquilhadas, enquanto gritava:

- Alan! Alan! Onde você está, seu preguiçoso? Ê o meu bisneto. Venha cuidar destes cavalos!

As três entraram no chalé. Sentaram ao lado da lareira. Enquanto mexia o conteúdo de um caldeirão fumegante, Jerana pôs-se a desfiar suas reminiscências.

Depois de uma saborosa refeição de ensopado e pão, Jerana acomodou-se num banco, enquanto Margaret arrumava os equipamentos de gravação. A velha se mostrava completamente à vontade. Quando tudo foi explicado, ela sorriu, mostrando as gengivas. Dava para perceber que a velha estava encantada com toda aquela atenção. Margaret sentiu-se contente por lhe proporcionar aquele prazer.

Rafaella pegou um violão na parede e afinou-o com a maior facilidade. Era um instrumento antigo, a madeira lustrosa por anos de uso. Seu lugar era num museu. Jerana riu ao falar do violão.

- Aquele menino do Everard esteve aqui há algum tempo. Queria levar meu velho amigo para Thendara, a fim de acrescentá-lo à coleção de Everard. Eu disse que não, pois desde que meu marido morreu que é meu único amante.

Ela pôs-se a cantar, uma voz firme e clara, que não combinava com sua idade. Margaret se perdeu na música, tão absorvida que nem notou quando as lágrimas começaram a escorrer por suas faces. As palavras fizeram aflorar alguma emoção, algo indefinido e precioso. Assim que a canção terminou, ela sentiu-se em paz, pela primeira vez em muitos dias.

Já era tarde quando Jerana parou de cantar. Margaret gravara duas dúzias de peças. A velha conduziu-as até uma cama grande, no fundo do chalé. Margaret escondeu seu desconforto por dormir na mesma cama com outra pessoa. Mas não tinha muita importância. Ela mal conseguia manter os olhos abertos. Rafaella também bocejava. Tirou as botas, a túnica e a calça, meteu-se debaixo das cobertas. Margaret fez a mesma coisa.

O sono veio quase que no mesmo instante... e, por uma vez, ela não sonhou.

 

10

Margaret despertou à primeira claridade com uma sensação de opressão e um som que parecia de abelhas zumbindo junto de um ouvido. Ainda atordoada, virou-se por baixo das cobertas. Descobriu que Rafaella rolara na cama e apoiava a cabeça em seu ombro. Contemplou-a e sorriu. Rafaella roncava baixinho. Com toda a gentileza, ela empurrou a guia para o lado. A sensação de sufoco desapareceu. Ainda bem que jamais casei, pois partilhar uma cama com alguém me deixa no maior desconforto. Assim que o pensamento aflorou em sua mente, Margaret compreendeu que não era bem verdade. Não se importara nem um pouco de deitar na mesma cama com Rafaella na noite anterior.

Havia sons no cômodo principal do chalé. Ela ouviu a voz de Jerana empenhada numa canção. O cheiro quente e agradável do mingau espalhava-se pelo ar frio da manhã. Margaret podia sentir uma lassidão em todo o corpo. Apreciava essa sensação de relaxamento, quando Rafaella soltou um ronco mais alto, depois parou de repente. No momento seguinte, ela sentou na cama, puxando as cobertas no movimento.

- Estou sentindo o aroma de comida - anunciou Rafaella. Margaret riu. A guia tinha um saudável apetite. Não se podia deixar de especular como conseguia manter um corpo esguio, se comia tanto.

- Tem razão. Posso ouvir Jerana preparando tudo.

O ar frio fez Margaret estremecer. Ela empurrou as cobertas para o lado, levantou-se, vestiu as roupas descartadas, ajeitou os cabelos num arremedo de ordem. As roupas recendiam agora a cavalo, suor e os cheiros da trilha.

Margaret pensou com saudade na enorme tina na casa de Mestre Everard, a água perfumada com bálsamo e bastante quente para deixar a pele avermelhada.

Enquanto comiam o desjejum com Jerana e seu silencioso bisneto Alan, a velha cantora fez comentários sobre sua carreira, a incompetência dos cantores atuais e escândalos do passado. Margaret lamentou ter guardado seu gravador, pois era fascinante ouvir aquelas histórias antigas, relatadas com a maior alegria.

Quando acabaram, Alan e Rafaella foram cuidar dos cavalos. Margaret continuou sentada e tomou o resto do chá. Sentia-se suja e ansiava por roupas limpas, mas tinha a barriga cheia de mingau quente, o coração descontraído. Era uma felicidade tranqüila, como há muito não experimentava.

- Acho que se for até a aldeia no outro lado da colina poderá descobrir que Gavin talvez seja útil - disse Jerana, interrompendo seus pensamentos.

- Gavin?

Jerana soltou sua risada inquietante e acenou com a cabeça.

- Gavin MacDougal foi um bom cantor em seu tempo, embora nunca ingressasse na Guilda. E um pouco rabugento, mas conhece música. E, por favor, não conte que eu disse isso! Ele já é orgulhoso demais sem o meu elogio. E devo adverti-la que ele não vai gostar nem um pouco de sua Rafaella.

- Mas por quê?

- Gavin acha que o lugar de uma mulher é em casa, e desaprova as Renunciantes. Como se elas precisassem de sua aprovação! Foi um jovem teimoso, e agora é um velho arrogante. Houve uma ocasião em que quis casar comigo... ele tem apenas noventa anos agora, e achei-o jovem demais naquele tempo... e nunca me perdoou por ter preferido Padric. Não vai imaginar ao me ver agora, mas antigamente eu tinha todos os homens aos meus pés. Era uma grande beldade. Ora, estou divagando de novo. Posso lhe garantir, Marguerida, que a idade é uma bênção, mas é também uma maldição. Há dias em que você quase não consegue se lembrar do seu próprio nome.

Margaret pensou em Ivor, ficando mais e mais fraco, diante de seus olhos.

- Meu mestre era assim. Era esperto e perceptivo em matéria de música, mas nas coisas do dia-a-dia sua mente se tornava um tanto... não sei... confusa?

- A palavra exata! Onde está seu mestre agora?

- Morreu na semana passada, logo depois que chegamos.

Ela descobriu que as lágrimas afloravam. Piscou para contê-las, tão depressa quando podia.

- Isso é terrível! Pode-se ver que sente muita saudade dele. Chore tanto quanto quiser, minha cara. É sempre saudável chorar.

- Já chorei tanto que devo ter consumido todas as lágrimas que tinha.

Mas Margaret descobriu-se a chorar de novo, a bondade da velha tornando a desencadear sua dor ainda recente. Ela enxugou o rosto com a manga depois de alguns minutos, fungou ruidosamente.

- Viajamos juntos por muitos anos, indo a vários planetas para estudar a música local. Ele era muito precioso para mim.

- A morte é um caminho que todos nós percorremos, embora até agora eu não tenha chegado ao seu final. Sobrevivi a um marido, dois filhos, uma filha e três netos. Alan casou agora. Quando sua esposa tiver uma criança, serei tataravó. Continuo aqui. Às vezes penso que é antinatural viver tanto tempo.

Margaret decidiu que seria grosseria comentar que os cidadãos da Federação muitas vezes viviam até dois séculos, com a ajuda de tratamentos. Parecia injusto que isso não tivesse acontecido com Ivor.

- Quer dizer que Gavin é rabugento?

- E muito rabugento! Um típico velho ranzinza, mas também foi um jovem ranzinza. Mas conhece muitas canções, não posso deixar de admitir. E há também uma estalagem na aldeia. Assim, poderá ficar confortável.

Margaret ficou vermelha, especulando se Jerana sabia o quanto ela ansiava por um banho.

- Não tenho palavras para agradecer por sua hospitalidade, Jerana.

- Ora, o prazer foi meu. Cantar na noite passada fez com que eu sentisse que tinha outra vez setenta anos.

Rafaella e Margaret partiram pouco depois, os alforjes cheios de pão fresco, um pouco de queijo e carne salgada, o presente de despedida de Jerana. Já haviam deixado o pequeno povoado há cerca de uma hora, quando Margaret começou a se sentir nauseada. O estômago doía, a cabeça latejava, mas ela não disse nada à sua companheira.

Pararam ao lado de um córrego murmurante para uma refeição ao meio-dia. Margaret mergulhou sua caneca de madeira na água e bebeu ansiosa. Depois sentou numa pedra, não se mexendo por vários minutos, o corpo dolorido e cansado. Levantou-se com um grande esforço, quase cambaleou.

- Você está bem, Marguerida?

- Acho que a altitude começa a me afetar. Passei a maior parte da minha vida no nível do mar. Embora estas colinas não sejam tão altas assim, meu corpo está reagindo. Não consigo recuperar o fôlego.

- Parece muito pálida.

- Não se preocupe. Estarei bem depois que comer um pouco de pão e queijo.

Mas tal não aconteceu. Haviam percorrido pouco mais de um quilômetro depois da parada à beira do córrego, quando seu estômago se rebelou, expelindo o almoço e grande parte do desjejum. Margaret mal conseguiu desmontar antes que acontecesse.

- Está doente - insistiu Rafaella, enquanto Margaret se afastava do vômito. A guia parecia muito preocupada.

- Claro que não. Já me sinto melhor. É apenas por causa da altitude... ou então meu estômago não gostou de alguma coisa que comi.

Ela enxaguou a boca com um pouco de água. Tornou a montar no cavalo.

- A aldeia de Gavin fica muito longe?

- Mais três horas de viagem, no mínimo. Talvez seja melhor acamparmos aqui.

- Não há necessidade. Já melhorei.

Era verdade. Margaret sentia muita sede, mas esvaziara o estômago, o que fazia com que se sentisse menos ofegante e fraca.

A trilha continuou a subir, tornando-se mais estreita e difícil depois de algum tempo. Alargou-se de repente, e Margaret compreendeu que se encontravam na crista. Olhou para trás, contemplando o caminho que haviam percorrido. O Rio Kadarin era uma fita prateada distante, lá embaixo. A subida fora tão gradativa que ela não percebera direito.

O pôr-do-sol era iminente quando chegaram à aldeia. Era muito maior do que o povoado de Jerana, com várias casas de pedra espaçosas, entre chalés mais humildes. A estalagem era indicada por uma placa de madeira balançando, com o desenho de um animal que parecia um cervo. Pararam os cavalos na frente. Um rapaz de olhos brilhantes saiu para cumprimentá-las.

- Oi, Rafaella! Seja bem-vinda de volta!

- Obrigada, Valentine. Você cresceu uns cinco centímetros desde a minha última visita.

O rapaz estufou o peito e sorriu.

- É verdade. Uso agora as roupas de Tomas, mas as botas estão pequenas.

- Como vão seus pais?

- O inverno passado foi difícil para a mãe, pois as juntas doeram muito. Mas ela melhora quando o tempo esquenta, como sempre. E o pai é o pai. Entrem logo. Vou guardar os cavalos. A mãe acaba de arrumar o quarto da frente.

Margaret desmontou, a cabeça girando. Respirou fundo algumas vezes, esperou que a vertigem passasse. Vinha se sentindo cada vez pior durante a última hora, mas nada dissera a Rafaella. Não queria passar a noite na trilha. Estava ansiosa para tomar um banho e se estender numa cama. E jantar... Não! Sentiu-se outra vez nauseada só de pensar em comida. Precisava apenas dormir um pouco, para logo se sentir bem outra vez.

Entraram numa taverna com as vigas aparecendo no teto. Vários homens em túnicas malfeitas sentavam ao redor das mesas, tomando canecas de cerveja e conversando em voz baixa. Margaret podia ouvir as vozes, mas o dialeto era tão estranho que não dava para acompanhar a conversa. Olharam para Margaret com alguma curiosidade, mas não mais do que isso. Dois ou três cumprimentaram Rafaella com bastante cordialidade. Margaret sentiu-se contente pelo fato de sua guia ser bem conhecida ali.

A sala era enfumaçada pela lareira grande. O cheiro de lenha queimando e cerveja quase a derrubou. Teve de recorrer a um supremo esforço de vontade para se manter de pé e ignorar a cabeça girando. Já se degradara uma vez naquele dia, não permitiria que acontecesse de novo. Sentiu-se grata quando deixaram a taverna. Subiram uma escada estreita e foram conduzidas a um quarto grande e arejado.

Margaret arriou na cama, recostou-se no travesseiro, e deixou o corpo relaxar. À distância, podia ouvir a voz de Rafaella e de outra mulher, provavelmente a mãe de Valentine, mas sentia-se fraca demais para prestar atenção. Mãos fortes tiraram suas botas. Sentiu que a túnica era arrancada pela cabeça. Tentou protestar, mas não conseguiu falar.

- Só preciso dormir - balbuciou ela, fechando os olhos.

Uma larga planície coberta de neve estendia-se de horizonte a horizonte. O céu era branco de nuvens. O frio parecia congelar seus ossos. As nuvens se abriram, e uma lua branca surgiu no céu por um momento. Duas mulheres se aproximaram, iguais e diferentes ao mesmo tempo. Ambas tinham cabelos vermelhos, mas os de uma eram mais claro que os da outra. Moviam-se como uma só pessoa, os braços esguios balançando no mesmo ritmo, as pernas compridas deslocando-se com facilidade pela paisagem revestida de neve. Os trajes eram suaves e graciosos, brancos como a neve. Os cabelos estavam soltos, espalhando-se sobre os ombros.

As mulheres fitaram-na com olhos cor de âmbar, cheios de pontos dourados. Estenderam as mãos brancas. Ela sentiu que se encolhia ao contato. "Criança", disse uma. "Marja", murmurou a outra. Sabia que eram irmãs, e que uma era sua mãe, mas não podia determinar qual das duas, de tão parecidas que eram na aparência.

E de repente um homem apareceu entre as duas, forte, de cabelos escuros. Pôs as mãos nos ombros das irmãs, empurrou-as para o lado. E depois foi se tornando mais e mais alto, até que sua cabeça alcançava as nuvens no céu. Margaret contemplou o pai como nunca o conhecera, com as duas mãos e poderoso, bonito, sem cicatrizes. Eu tentei avisá-la! Disse que ser uma telepata destreinada era perigoso! Por que você não me ouviu? Levante-se! Pare de fugir do seu dever! Pare de tentar evitar o seu Dom!

Margaret sentou na cama, a cabeça latejando. Olhou para as paredes brancas e as vigas de madeira por cima. Por um momento, sentiu-se desorientada. Depois se lembrou de que estava na estalagem com a placa do cervo, não acuada em alguma paisagem branca com a mãe, a tia e um Lew furioso. O alívio foi imediato, as mãos se abriram. O coração disparado voltou ao normal depois de alguns minutos.

Ela olhou ao redor e descobriu que Rafaella dormia num colchão no chão, ao lado da cama. Um enorme gato cinza se enrascara na curva de suas pernas. Olhou para Margaret e bocejou. A normalidade da cena acalmou-a. Ela estendeu as pernas para fora das cobertas. Descobriu que fora completamente despida e usava agora uma camisola darkoviana. O cheiro forte da trilha ainda aderia à sua pele. Ansiava por um banho. Foi nesse instante que Rafaella abriu um olho e examinou-a.

- Há uma tina para tomar banho duas portas adiante, no corredor. Mestra Hannah lavou suas roupas. Já devem estar secas. Como se sente agora?

- Muito melhor, obrigada. Deve ter sido a altitude.

- Ainda bem que se sente melhor. Fiquei preocupada. Vá tomar um banho, enquanto eu durmo mais um pouco. Deve ter tido alguns sonhos terríveis... porque chorou a noite inteira... quando não estava gritando.

- Desculpe ter perturbado seu sono, Rafaella.

- Não o meu... sou capaz de dormir com qualquer barulho... mas os mercadores de cavalos no quarto ao lado podem ser diferentes. - Ela sorriu, mostrando todos os dentes. - Eles mereciam... se são mercadores de cavalos, então sou um coelho-de-chifres.

Com esse comentário enigmático, ela virou-se para o outro lado e voltou a dormir.

De banho tomado e usando o primeiro traje que comprara de MacEwan, Margaret sentiu-se quase bem, pela primeira vez em mais de vinte horas. Persistia o senso de uma dor de cabeça a um palmo de distância, mas o estômago parecia ser de novo o mesmo órgão confiável que costumava ser, capaz de consumir quase que qualquer coisa sem o menor sinal de desconforto. Mas ela decidiu não exagerar. Comeu um desjejum leve, com várias canecas de chá. Rafaella juntou-se a ela quando tomava chá, esfregando os olhos para afugentar o sono.

- Falei com o velho Gavin na taverna ontem à noite - informou ela. - Ele nos espera esta manhã. Não ficou muito satisfeito ao me ver, mas prometi alguns reis por suas canções. Disse a ele que você era Terranan.

- Por que fez isso?

Margaret estava um pouco surpresa, porque vinha se empenhando em parecer uma darkoviana.

- O homem é muito egoísta... ou egocêntrico. Insistia em dizer que não ia cantar, até que expliquei que seria ouvido em lugares distantes. E é o que vai acontecer, não é mesmo? Eu não gostaria de mentir para ele.

- Claro que é isso. Minhas gravações irão para os arquivos da universidade, onde serão ouvidas por estudantes de música. E depois... quem sabe?

- o que isso significa? - perguntou Rafaella, servindo-se de uma tigela de mingau.

- Há poucos anos alguns músicos populares pegaram canções folclóricas de Nova Hispaniola e as transformaram em grandes kits.

- Hits? Está querendo dizer que eles golpeavam as pessoas com as canções?

Margaret quase engasgou com o chá. A palavra darkoviana que ela usara significava "golpe", carecendo de qualquer outro significado. Fizera a tradução do Padrão Terráqueo, em que a palavra "hit", herdada do inglês antigo, significava ao mesmo tempo golpe e sucesso. Ela tossiu, demorou um pouco a recuperar o fôlego. Era uma lição merecida por traduzir o Padrão Terráqueo para o darkoviano sem pensar primeiro!

- Não, não é nada tão violento. o que eu quis dizer apenas foi que esses músicos gravaram as canções, que fizeram o maior sucesso... sendo tocadas tantas vezes que todos na Federação acabaram se cansando. É o que chamam de hit.

- Então por que não explicou logo?

As duas mulheres chegaram ao chalé de Gavin MacDougal no meio da manhã. Ainda fazia frio, e a rua estava enlameada da chuva da noite anterior. Margaret carregava seu precioso equipamento numa bolsa pendurada no ombro. Olhou ao redor com interesse. Passara muito mal para notar qualquer coisa na tarde anterior.

O chalé de MacDougal era quase uma choupana. o pequeno jardim ao lado fora dominado pelo mato, uns poucos arbustos murchos aqui e ali. o caminho até a porta estava cheio de detritos. Margaret avistou um arado quebrado, uma sela que ficara exposta ao tempo por várias estações, e várias outras coisas que não foi capaz de identificar de imediato.

Rafaella abriu a porta um pouco torta nas dobradiças e entrou sem bater. o interior era escuro, com o ar abafado. Tinha o cheiro de um velho, fumaça de lenha, comida e roupas sujas. Margaret ficou chocada. Projetara em sua mente que todas as casas darkovianas eram limpas e recendiam a bálsamo e frescura. Como o velho podia viver naquela imundície?

Um vulto agachado ao lado da lareira se mexeu. Quando seus olhos se ajustaram à semi-escuridão, Margaret avistou Gavin. Era um velho pequeno e murcho, a cabeça inteiramente calva, os ombros encurvados pela idade. Ele tossiu e cuspiu no fogo. o som de chiado rompeu o silêncio por um momento.

- Sejam bem-vindas - resmungou ele, a voz rouca, fitando as mulheres com a vista quase míope. - Pensei que tinha me dito que ela era Terranan.

Rafaella arrastou as botas no chão, um pouco embaraçada.

- Ora, ela é, e não é.

- Não me venha com enigmas, menina. Posso ser velho, mas não sou senil. Ela é uma coisa ou outra.

Ele se adiantou. Margaret pôde sentir o cheiro de suor em suas roupas e cerveja no bafo azedo. Fitou-a de perto. Ela ficou aborrecida por ser discutida como se fosse invisível.

- Na verdade, sou as duas coisas. Nasci em Darkover, mas passei a maior parte de minha vida...

- Perdoe-me, domna, mas até mesmo estes olhos cansados podem ver que é do Comyn. Você honra a minha casa. - Ele lançou um olhar irritado para Rafaella. - Qual é o seu jogo... tentando me impingir essa mulher como uma Terranan? Você não presta, e terá um fim lamentável. E não vai demorar muito. Anda por aí como uma vagabunda, em vez de se comportar como uma moça decente.

Rafaella ficou furiosa. Já ia responder, à sua maneira franca e impulsiva, quando Margaret interveio:

- Meu pai era do Comyn, Mestru MacDougal.

- Eu sabia! E as pessoas ainda pensam que podem me enganar! Posso saber seu nome, minha jovem?

Ele conseguia combinar rancor e subserviência de tal maneira que Margaret achou extremamente desagradável. Podia entender por que Jerana não quisera casar com ele, pois devia ter sido também um jovem repulsivo.

- Meu pai é Lewis Alton, o Senador Imperial por Darkover.

Ela percebeu o espanto no rosto de Rafaella, e se lembrou de que nunca antes dissera o nome do pai. Ele podia ter renunciado, mas manteria para sempre o título de Senador. De qualquer forma, aquelas pessoas provavelmente nunca pensavam no Senado, ou na Federação Terráquea, se eram habitantes rurais atrasados como conhecera em outros planetas. Uma expressão de desagrado estampou-se no rosto de Gavin, que contraiu os lábios murchos.

- Só lhe desejo tudo de bom, domna, mas se estivesse no seu lugar não me apressaria em apregoar sua linhagem aqui nas colinas. Há muita gente com idade suficiente para lembrar a destruição de Caer Donn... e não são poucas as pessoas que guardam ressentimentos antigos.

- Não sei de nada a respeito - respondeu Margaret, censurando silenciosamente o Senador por ser um velho reservado... Ela cortou esse pensamento. - Nem mesmo sei o que é Caer Donn.

- Era, domna, era. Uma das cidades mais antigas do mundo. Os Terranan construíram seu primeiro espaçoporto ali, fazendo acordos com os malditos Aldarans. Estive lá, cantei as minhas canções, mas nunca foi um lugar generoso. Aqueles Aldarans não oferecem um trago a um homem por sua canção. A cidade foi destruída há alguns anos.

- Fico triste em saber disso. Mas como eu ainda não havia nascido na ocasião, não tem nada a ver comigo. Não posso ser considerada responsável por algo que ocorreu há tanto tempo.

Gavin MacDougal soltou uma risada.

- Esse é um pensamento Terranan, sem dúvida. Aqui nas colinas temos uma memória longa, especialmente para essa ocasião. o nome Alton vai irritar muitos que não desejam se lembrar do incêndio de Caer Donn e da Torre Proibida.

- Está resmungando como um corvo da desgraça, velho - protestou Rafaella.

- Você é jovem demais e teimosa demais para falar sem saber de nada. Portanto, guarde a língua por trás dos dentes. Seu pai Lewis foi parte do motivo para a destruição de Caer Donn, embora fosse apenas uma criança quando os últimos membros da Torre Proibida foram abatidos. Não fazemos canções sobre essa época, mas lembramos muito bem.

Margaret tentou imaginar que papel o pai poderia ter desempenhado nos eventos a que o velho Gavin se referia, mas não conseguiu. As brumas da história darkoviana eram densas demais, impenetráveis para ela. Foi então que lembrou o sonho, em que o pai surgira entre as duas mulheres, ainda com ambas as mãos. Ela reprimiu um tremor com um grande esforço.

- Vim aqui para ouvi-lo cantar, Mestru MacDougal, não para escutar histórias antigas.

Não era toda a verdade, mas a parte dela que se mantinha fria e distante insistia que tinha de reprimir a curiosidade. Era um sentimento frustrante, porque as perguntas se formavam em sua mente, mas não encontravam um meio de chegar até a boca. Sentia-se silenciada, como acontecia quando era uma criança pequena. Foi dominada pela indignação.

Compreendeu que estava muito interessada naquela história, mas ao mesmo tempo não queria saber o que acontecera. Lembrava como Lorde Hastur e Brigham Conover haviam insinuado eventos terríveis no passado. Concluiu agora que não haviam lhe contado tudo, porque sabiam que só serviria para afligi-la. Gravarei as canções deste velho e depois voltarei para Thendara! Rafaella ficará satisfeita, e eu poderei escapar de... deixar o trabalho inacabado? Não, não posso fazer isso. Tenho de continuar, por Ivor!

- Se é canção o que você quer, então é o que vai ter. - Ele foi até a parede e pegou uma velha ryll, acariciando-a gentilmente. - Vamos sair para o sol.

Sentaram em algumas pedras na frente do chalé. Gavin afinou o instrumento, enquanto Margaret preparava seu equipamento. Ele tinha uma voz fraca agora, o resquício de um bom tenor, mas a memória era prodigiosa. Enquanto o sol descia pelo céu, ele aumentou de maneira considerável os conhecimentos de Margaret sobre a música de Darkover. Seu traseiro doía de passar tanto tempo sentada numa pedra. Ficou contente quando se levantou e esticou todo o corpo. Agradeceu ao velho e ofereceu pagamento, mas ele sacudiu a cabeça.

- Eu aceitaria dinheiro de uma Terranan mais rápido que um coe-lho-de-chifres, mas vai contra a minha natureza aceitar pagamento de uma Alton. Cuide-se bem, minha jovem, e não deixe que Rafaella a meta em qualquer encrenca.

Em seguida, Gavin entrou no chalé e bateu a porta. Margaret guardou o equipamento. As duas começaram a voltar para a estalagem.

- Fale-me sobre a Torre Proibida.

Margaret decidiu ignorar seu senso de fadiga e um súbito ímpeto de vertigem. Conseguiu formular a pergunta antes que seu censor interior a silenciasse. o coração batia forte, o sangue parecia reverberar em seus ouvidos. Você não vai fazer perguntas! Ela engoliu em seco, para evitar que o estômago se rebelasse de novo. Rafaella continuou andando a seu lado, sem dizer nada. Alguns minutos se passaram antes que ela rompesse o silêncio:

- É melhor não falar sobre esses tempos, Marguerida.

Margaret ainda teve vontade de protestar, mas já aprendera que não adiantava argumentar, quando Rafaella se mostrava determinada assim. E a premência que ela mobilizara poucos minutos antes desaparecera agora, deixando-a vazia. Transferiu a bolsa de um ombro para outro, sem insistir na conversa. o excitamento de ouvir novas canções se desvaneceu. o corpo começou a doer. Ficou feliz quando avistou a estalagem. Passaria um tempo transcrevendo algumas das canções e tomando anotações. Depois, iria para a cama. Pela manhã, voltariam para Thendara. Ela deixaria para trás a exaustão e a sensação de opressão. Outra pessoa poderia concluir o trabalho. Retornaria para a segurança do mundo universitário na primeira nave estelar em que pudesse embarcar!

Havia prédios ao seu redor, quadrados, insípidos, típicos da arquitetura terráquea. Era noite, as luas se elevaram pelo céu. Reinava um silêncio profundo. E de repente os prédios começaram a ficar vermelhos, um momento depois havia chamas por toda parte.

A manhã encontrou-a febril e atordoada, a cabeça girando como um pião, quando tentou sentar na cama. Ainda conseguiu, só para recair sobre os travesseiros no instante seguinte, engolindo em seco com a maior dificuldade. Tinha a garganta ressequida, o estômago embrulhado. Tentou de novo, mas chegou à conclusão de que seria impossível. Rafaella inclinou-se para ela, afastando os cabelos de seu rosto.

- Você está doente, Marguerida. Deve passar todo o dia na cama.

- É a altitude - balbuciou ela. - Preciso voltar para Thendara.

- Não vai a lugar nenhum hoje. Ficará descansando, e eu trarei alguma coisa fria para você beber.

Margaret sentia-se fraca demais para argumentar. Por isso, permaneceu sob as cobertas. Tentou respirar devagar, para relaxar o corpo. Fechou os olhos, cansada. o rosto de Danilo surgiu por trás das pálpebras. Ele fitou-a com desdém. De alguma forma, Margaret teve certeza de que ele tinha alguma coisa a ver com sua doença. Mas logo refletiu que isso era um absurdo. Estou me comportando como uma idiota supersticiosa. Daqui a pouco começarei a pensar que fui enfeitiçada por um homem que se encontra a centenas de quilômetros de distância. Basta continuar deitada por mais alguns minutos, e logo estarei boa!

A manhã passou, mas ela não se recuperou. A pele foi se tornando mais e mais quente, até dar a impressão de que se fundia nos músculos. o peso das cobertas tornou-se insuportável. Ela empurrou-as para o lado, e depois ficou imóvel, tremendo toda, esgotada pelo esforço. o crânio vibrava com uma dor que parecia aumentar a cada segundo. Tentou beber a mistura que Rafaella trouxe. Mas o estômago não agüentou, e vomitou várias vezes numa bacia. Sentia panos molhados sendo estendidos em sua testa. Perdeu por completo a noção do tempo.

Começou a tremer, apertando as cobertas com mãos geladas e secas. Chorava a todo instante. Cada movimento era uma agonia. Sentiu uma mão gentil tocar em seu rosto. As cobertas foram ajeitadas em torno de seu corpo.

- Dio... mãe!

E sentiu que caía num enorme vazio. Os dedos doloridos comprimiram as roupas de cama.

Tudo branco! Ela nunca vira tamanha brancura. Parecia preenchê-la da cabeça aos pés, era fria, árida e aterradora. Não havia nada ali, exceto o vazio. Parecia se comprimir contra seu peito, roubando a respiração superficial, sugando a vida de seu corpo. Lutou para se livrar, mas caiu ainda mais fundo no frio.

E de repente havia alguma coisa naquela terrível claridade - não, alguém - e ela tentou se encolher, desaparecer. Alguém a procurava. E seu medo era intenso. Seria o homem prateado? Ou Thyra de tranças vermelhas? Os mortos procuravam-na, tentavam atraí-la para seu mundo!

Um rosto fitou-a, diferente de todos os rostos que já vira antes. Os ângulos dos ossos eram errados. Não era um rosto humano. A pele do estranho ser brilhava contra a brancura. Os olhos contemplaram-na com uma infinita compaixão. Ela ia morrer! Ia se juntar a Ivor, Thyra, Marjorie Alton e o avô que nunca conhecera. O rosto se afligiu, como se soubesse de seus pensamentos. Houve um ligeiro aceno de cabeça, como se fosse para negar sua morte. o rosto inclinou-se mais e mais, enquanto ela tentava se afastar. Ao final, sentiu os lábios finos se comprimirem contra seu rosto. O terror desapareceu por completo, como se nunca tivesse existido. Ela permaneceu imóvel, serena, esperando pelo fim.

Não pôde calcular por quanto tempo esperou. Depois, divisou o Senador avançando em sua direção. Estava velho, encurvado e trôpego, espiava pela brancura como se fosse cego. Margaret queria chamá-lo, mas sua voz perdera o poder.

O Senador finalmente viu-a. E ficou furioso.

- Levante-se! Não pode cair doente agora! Não permitirei que morra! Já perdi coisas demais! Não ouse morrer em meus braços, Marja! Levante-se!

Alguma coisa cresceu dentro do peito de Margaret, uma bolha de emoção. Subiu pela garganta e estourou.

Morrerei se eu quiser! E depois ela riu para o pai.

Margaret espantou-se ao despertar na cama na estalagem, a febre abaixada por enquanto. Sentia-se mais cansada do que podia imaginar, mas com a mente lúcida. Ergueu-se com as duas mãos, até sentar na cama. Com extremo cuidado, estendeu a mão para o copo que esperava ao lado da cama, tentando calcular a hora. Notou que se encontrava sozinha, e especulou onde Rafaella estaria.

Teve o medo súbito de que a Renunciante a tivesse abandonado naquela aldeia anônima, mas logo ouviu a voz de Rafaella no corredor. Ela entrou no quarto no instante seguinte, o rosto franzido. Ao ver Margaret desperta, as linhas da preocupação entre as sobrancelhas vermelhas se desanuviaram. Ela deixou escapar um suspiro de alívio.

- Como se sente, chiya?

Margaret ouviu o termo carinhoso e teve a sensação de que era outra vez uma criança. A mente ainda protestou por um segundo, mas depois concluiu que não era tão ruim assim.

- Estou bem agora. Um pouco fraca, mas uma boa sopa deve resolver esse problema.

A simples menção de comida deixou-a nauseada outra vez. Teve de engolir em seco para se controlar.

- Tem certeza?

- Claro que tenho.

Margaret não tinha certeza de nada, mas não queria que Rafaella soubesse disso. Estava fraca demais para sair da cama, e não podia imaginar como ficara tão doente. Fora imunizada contra tudo que qualquer pessoa já tivera antes de deixar a universidade. Devia ser a altitude... tinha de ser!

- Acho que não sabe qual é o seu estado. Está mais branca do que sua camisola, e ainda tem um pouco de febre.

- É possível, mas tenho certeza de que estarei plenamente recuperada amanhã. Lamento se a preocupei... não pretendia ficar doente!

Ela soava como uma criança mimada para seus próprios ouvidos.

- Calma, calma. Sei que não pretendia ficar doente... e é um absurdo dizer isso! Acha que pode sair da cama para eu trocar os lençóis? Estão encharcados.

- Sinto muito!

Para sua surpresa, Margaret desatou a chorar. Enormes soluços sacudiam o peito, enquanto as lágrimas escorriam pelas faces.

- Não queria causar tanta confusão! - balbuciou ela. - Juro que tentei ser boa!

- Sei disso. - Rafaella tornou a franzir o rosto. Inclinou-se para a frente e enlaçou Margaret, puxando-a para seu peito. - Está tudo bem agora, chiya.

A Renunciante acariciou os cabelos encharcados de suor, enquanto Margaret continuava a chorar e se desculpar. A porta do quarto foi aberta. A dona da estalagem entrou, uma mulher corpulenta, com um ar de competência e objetividade. Tinha uma pilha de lençóis limpos num braço, uma camisola pendurada no outro. Balançou a cabeça de leve, largou as roupas, e foi até a cama. Margaret fez um esforço para não chorar mais. Quase conseguiu. Em vez disso, teve soluços, que provocaram ânsias de vômito.

Rafaella e a estalajadeira conseguiram tirá-la da cama. Acomodaram-na numa cadeira. Tiraram as roupas de cama suadas com a maior eficiência.

Margaret podia sentir o cheiro agradável dos lençóis limpos, embora estivesse com o nariz obstruído de tanto chorar. Também podia sentir o cheiro do próprio corpo, fedendo a suor e doença. Ficou toda arrepiada. Precisava de um banho.

A cama arrumada, as duas mulheres tiraram sua camisola, com toda a gentileza, mas sem hesitar. Ela tentou protestar, embaraçada por ficar nua na frente de estranhas, mas elas a ignoraram. Rafaella trouxe uma tigela com água quente e uma toalha pequena. Lavou o rosto e o corpo de Margaret como se ela fosse uma criança pequena. A pele parecia pergaminho, ressequida e rachada. A estalajadeira notou, saiu do quarto, e voltou um instante depois com um pote de ungüento. Passou o creme na pele dolorida de Margaret, que se surpreendeu ao descobrir que a sensação era muito agradável. Devia haver na mistura alguma erva que aliviava as dores. Puseram uma camisola limpa em Margaret e ajudaram-na a voltar para a cama. Ela se recostou contra os travesseiros, exausta demais para se mexer. As vozes das duas mulheres pareciam soar a uma enorme distância.

- Não gosto da aparência da moça, Rafaella. Ela é só pele e osso. E vai ter febre de novo, ou meu nome não é Hannah MacDanil.

- Tem razão.

- Precisamos de uma curandeira, mas não há ninguém aqui desde que a velha Grisilda morreu, no inverno passado.

- Mas tem de haver alguém!

Margaret podia perceber o pânico na voz de Rafaella. Queria muito tranqüilizá-la, dizer que não havia necessidade de uma curandeira. Era só o que faltava, ser tratada apenas com ervas locais! Por que viera para cá? Por que Ivor morrera? Não era justo. Se ao menos ela não fosse tão teimosa, se não insistisse em concluir o trabalho... Não podia estar doente ali, no meio do nada. Talvez fosse psicossomático, provocado pela morte de Ivor. Talvez os sonhos a deixassem doente. Ou talvez tivesse a Febre da Trilha, mencionada no disco. Não, não podia ser isso. Essa febre tinha um ciclo, e aquele era o ano errado. Seu crânio recomeçou a latejar. Ela tentou parar de pensar. Era mais simples apenas se recostar e desfrutar os lençóis limpos, a camisola macia.

- Acho que é melhor você ir até Ardais e pedir ajuda. Eu mandaria o garoto, mas não posso dispensá-lo neste momento. Não confio nesses mercadores de cavalos e não quero ficar sem um homem na casa. - A estalajadeira soltou um suspiro. - Se Emyn fosse outro tipo de marido... ora, não se pode desejar o que não se tem!

Margaret ouvia as palavras de Hannah a uma enorme distância, mas a menção de Ardais quase arrancou-a de sua prostração. Queria protestar, suplicar a Rafaella que não a deixasse, não fosse para o lugar em que os Ardais moravam. Mas a boca se mostrou incapaz de formular as palavras. Sabia apenas que estava apavorada, além de doente.

- Então é melhor eu partir imediatamente. É um longo percurso, e não quero viajar no escuro.

- Pode deixar que cuidarei da vai domna até sua volta.

As horas foram passando. Margaret entrava e saía do estado consciente, dormia, sonhava, revirava-se na cama. Tentava permanecer desperta, evitar as vozes que a perturbavam. Podia ouvir o Senador exortando-a a se levantar, Ivor dizendo que precisava dela. E havia também vozes de mulheres... discutindo ou chorando. Mas o sono persistia, conturbado e branco. E as vozes se alteavam como uma tempestade, uivando com uma crescente intensidade.

Em algum momento ela despertou, por um breve período, e ouviu o som da chuva e do vento contra as janelas fechadas. A estalajadeira sentava na cadeira ao lado da cama, tricotando, à tênue luz de uma vela.

- Onde está Rafaella? - A voz saiu rouca. - Tenho muita sede. Hannah serviu-lhe um líquido estranho, água com alguma coisa misturada, a julgar pelo gosto.

- Rafaella foi buscar uma curandeira.

Ela olhou para a janela. Espero que ela chegue a Ardais sã e salva. Nossas tempestades nas montanhas são terríveis.

- Oh, não...

Margaret bebeu tudo. Estremeceu antes de tornar a mergulhar nos sonhos. Tinha certeza de que ouvira os pensamentos de Hannah, de que nenhuma palavra fora mencionada. E soube que alguma coisa a aguardava, algo que ela não queria encontrar. Quase que podia sentir o impulso nos músculos doloridos.

A luz incidiu em seu rosto. Doía! Ela ergueu a mão para proteger os olhos. Sentiu um movimento de balanço por baixo, e estendeu as mãos para se segurar na armação da cama. Não havia nenhuma cama, apenas tábuas grossas nos dois lados do seu corpo protestando. Podia ouvir o som de cascos, sentir o cheiro de cavalos. o lugar em que se encontrava deitada balançava para a frente e para trás. Seu corpo tornou a se rebelar. o estômago reclamou. Mas como não tinha mais nada a expelir, limitou-se a ter contrações. o rosto de Rafaella pairou acima dela.

- Marguerida!

- Onde estamos? O que aconteceu? Sinto tanta dor!

- Sei disso, chiya, mas chegaremos a Ardais em breve, e prometo que você voltará para a cama.

- Por que a cama está balançando?

- É uma padiola de cavalo. Não se preocupe. Chegaremos ao Castelo de Ardais daqui a pouco.

- A claridade dói em meus olhos! - As palavras de Rafaella penetraram em seu cérebro. - Ardais? Oh, não! Não deixe Danilo me fazer mal!

Margaret ouviu uma voz de homem, profunda e perturbada:

- Sobre o que ela delira?

- Não sei - respondeu Rafaella. - Parece assustada com alguma coisa. Vem se comportando assim há dois dias.

- É melhor prendê-la direito, mestra. Caso contrário, ela pode cair e se machucar.

Nada do que eles diziam fazia sentido. Margaret só podia pensar em Danilo, o paxman de Regis Hastur, e o medo irracional que tinha dele. Danilo vai me transformar em outra pessoal! Esse foi seu último pensamento coerente durante muito tempo.

 

11

O balanço violento da padiola de cavalo mudou. Margaret estava consciente o bastante para perceber que haviam deixado o terreno acidentado, percorrendo agora uma superfície mais plana. Logo em seguida ouviu os cascos batendo em pedra, um som profundo e ressonante. Fez um esforço e abriu os olhos. A claridade intensa se desvanecera, era o crepúsculo, frio e agradável. Um passarinho cantava. Ela bem que gostaria de poder apreciar. Ao seu redor, o barulho de cascos e botas sobre pedra, vozes aflitas. Ela conteve um tremor ao virar a cabeça na direção das vozes.

Estavam num pátio largo. Ao redor, espalhando-se como os braços abertos de uma mãe, havia um prédio grande, de pedra cinzenta. Parecia preencher toda a paisagem, de horizonte a horizonte, andares sucessivos se projetando para o céu nublado. O líquen crescia nas pedras. As janelas dos andares inferiores eram mais estreitas.

Apesar de exausta e um pouco febril, Margaret se descobriu a tentar fazer anotações mentais sobre a arquitetura do castelo. Os hábitos de uma pesquisadora não eram fáceis de romper, refletiu ela, enquanto estudava o lugar. Era bem diferente do Castelo do Comyn. Mais parecia uma fortaleza. Ela se perguntou contra o que precisavam se proteger assim. Salteadores? Sentiu-se aliviada ao descobrir que parecia não ter memória anterior do Castelo de Ardais. Apesar de sua forte aversão ao nome, decidiu que os estranhos medos eram infundados.

Quando os homens retiraram a padiola entre os cavalos, por mais gentis que fossem, Margaret não pôde evitar um grito de dor. Ainda mordeu o lábio para tentar evitá-lo, mas escapou apesar do seu esforço. Levaram-na para a porta principal do Castelo de Ardais. Entraram num vestíbulo que se erguia por mais de dois andares. De sua posição na padiola, ela podia ver a luz passando pelas janelas superiores, povoando o vestíbulo com a claridade evanescente do dia. Lembrava um pouco a catedral na universidade. A diferença é que lá não se podiam ouvir as vozes estridentes que soavam aqui. Podia ouvir Rafaella discutindo com alguém próximo. Desejou que todos ficassem quietos. Parecia haver várias vozes envolvidas, a maioria feminina, numa altura que doía em seus ouvidos. Uma voz de homem, firme e autoritária, interrompeu subitamente a confusão:

- Alguém pode me explicar o que significa tudo isso?

- Eu dizia a esta pessoa que Ardais não é uma casa pública para onde se pode levar...

- Já chega! Mestra Rafaella e sua companheira são esperadas, Martha. Não cabe a você questionar a presença delas. Se não tivesse descido até a aldeia para ver sua filha, saberia que aguardávamos a chegada das duas.

O homem parecia muito calmo, no controle da situação. Margaret especulou vagamente se seria o dono do castelo.

- Era quase a hora do parto, Julian, e eu não podia deixá-la sozinha!

- Ela estava em boas mãos, com a parteira, que tenho certeza que não apreciou sua interferência.

- Interferência? Essa é muito boa! Você é apenas um homem! Não pode compreender essas coisas!

Martha, quem quer que fosse, dava a impressão de que não desistiria tão cedo da discussão. Margaret viu um rosto de homem inclinar-se em sua direção.

- Eu lhe dou as boas-vindas ao Castelo de Ardais. - A expressão do homem era perplexa. - Sou Julian Monterey, coridom de Lady Marilla.

Margaret tentou recordar o que o termo significava, vasculhando o cérebro cansado. Era um cargo intermediário entre mordomo e capataz, mas era difícil determinar a distinção exata no estado em que se encontrava no momento.

- Obrigada por sua acolhida - balbuciou ela. - Peço que me perdoe por chegar neste estado precário. Não tinha a menor intenção de ficar doente.

- Sei que não tinha - murmurou o homem, gentilmente, como se a chegada de visitantes em padiolas de cavalos e com febre alta fosse uma ocorrência corriqueira.

- Por que o meu vestíbulo fervilha de conversa? - interveio uma voz suave. - E por que, se me permitem perguntar, nossa hóspede ainda espera aqui? Ordenei que um quarto fosse preparado. Já está pronto?

Apesar do tom gentil, Margaret desconfiou que aquela mulher tinha uma vontade de aço.

- Domna Marilla, não fui informada de que esperávamos hóspedes - lamentou-se Martha. - Nem sabia que devia preparar um quarto.

- Desculpas não vão levar nossa hóspede para a cama - respondeu Marilla. - E Mestra Rafaella teve um dia cansativo, pois passou três vezes pela trilha, sem dormir e quase sem comer. Agora, parem de discutir e cumpram seu dever. Julian, quero falar com você.

Margaret ouviu o murmúrio da conversa de Julian com a dona do castelo. Também ouviu o farfalhar de saias, enquanto várias criadas se afastavam apressadas para fazer o que tinham de fazer. Os dois padioleiros esperavam pacientes. Margaret podia ver as costas daquele que se postava na frente. Uma preocupada Rafaella inclinou-se em sua direção. Sentiu o pulso de Margaret, depois pegou sua mão, com extrema ternura.

- Como se sente?

- Horrível. - Ela notou as manchas escuras por baixo dos olhos brilhantes da guia, a tensão que contraía a boca generosa. Experimentou uma pontada de culpa por se queixar. Rafaella tinha os cabelos crespos grudados no crânio, como se tivesse se molhado recentemente. - Continuo a perder e recobrar a consciência, tenho visões terríveis... e minha garganta dói.

- Não me surpreende. Gritou bastante alto para assustar um banshee por todo o caminho até aqui. Mas agora será bem cuidada.

- Deixei-a preocupada, não é mesmo? - Margaret parecia determinada a agravar ainda mais uma situação que já era ruim. - Não é nada divertido... e seu contrato não incluía serviços de enfermeira. Sinto muito, Rafaella.

- Não diga bobagem. Nada disso é culpa sua. Nunca vi nada parecido com sua febre. Se não tivesse me assegurado que não era uma leronis, eu seria capaz de jurar que tinha a doença do limiar.

- Estou velha demais para isso... não é mesmo?

Um medo gelado dominou-a agora. Rafaella falara o suficiente sobre a doença do limiar, durante a viagem, para deixá-la apreensiva. Era uma doença de criança, e ela não era mais uma criança... mas não podia ter certeza de que a idade lhe proporcionava alguma imunidade. E Margaret sabia agora que pressagiava o início do misterioso laran. Sabia o que isso significava, de maneira vaga, e sabia também que não queria ter nada a ver com aquilo!

Uma mulher clara, em torno dos cinqüenta anos, foi se postar no outro lado da padiola. Tinha feições firmes, num rosto outrora bonito, agora alterado pela idade para um queixo estreito e um nariz afilado.

- Seja bem-vinda a Ardais. Sou Lady Marilla Lindir-Aillard. - Ela afagou a outra mão de Margaret. - Rafaella, vá se deitar! Parece que vai cair dormindo no chão a qualquer instante. Pode deixar que cuidarei de sua companheira. Qual é o seu nome, criança? Rafaella nada nos disse a seu respeito, a não ser que passava mal, com uma doença desconhecida.

- Sou Marguerida Alton - sussurrou Margaret, tão baixo que ela própria teve dificuldade para ouvir.

- Como? Diga de novo, por favor. Tenho um problema de audição.

Pela expressão de Marilla, o rosto franzido, os lábios um pouco contraídos, Margaret teve certeza de que ela ouvira muito bem, apenas não queria acreditar em seus ouvidos.

- Esta é Domna Marguerida Alton, Domna Marilla - respondeu Rafaella.

A mulher virou a cabeça para fitar a guia.

- Se bem me lembro, já a mandei ir se deitar.

Então esta é a filha de Lewis! Não pode ser nenhuma outra pessoa. Pensei que ela tivesse morrido durante a Rebelião... Não, lembro agora que foi outra. Lew levou-a embora quando partiu. Ela tem mesmo a aparência de sua família. Espero estar fazendo a coisa certa ao acolhê-la aqui. Por Zandru! Podia ser a irmã gêmea de Felicia Darriell! Enquanto Lady Marilla tinha esses pensamentos, Margaret viu um rosto, envelhecido da melhor forma possível, tão parecido com o seu que não pôde deixar de estremecer. Não tinha a menor idéia de quem podia ser Felicia, mas não havia como negar a semelhança. Rafaella ainda hesitava, com uma relutância óbvia em abandonar Margaret, mas tremendo à beira da exaustão.

- Como quiser, domna.

A Renunciante largou a mão de Margaret e desapareceu. Ela está com uma cara horrível. Não quero abandoná-la, mas estou quase morta de exaustão. Por que essas coisas me acontecem? Ela passou a ser como uma irmã, mas sei que se encontra agora sob mãos competentes. E não vai adiantar nada para ninguém se eu também ficar doente! Lady Marilla sorriu, mostrando o que pareciam ser dentes muito afiados.

- Rafaella é uma boa mulher, mas não gosta de receber ordens. E agora vamos levá-la para a cama, descobrir qual é a sua doença.

- Lamento causar tantos problemas - balbuciou Margaret.

Ela sentia-se quente outra vez, a cabeça recomeçava a girar. A pele parecia fina como papel de seda; e tinha a impressão de que a luz que entrava pelas janelas altas podia passar por seu corpo. Doía demais.

- Não diga bobagem. Você não causa nenhum problema. Levem a dama para o Quarto da Rosa, rapazes, e tomem muito cuidado.

Problemas? Os Altons não têm feito outra coisa que não causar problemas, há várias gerações. Pobre coitada. Com a doença do limiar, e já deve ter pelo menos vinte e seis anos! Está além da minha capacidade. Não sei o que fazer... e olhe que eu sempre soube o que fazer! Mas sempre mesmo! É o que ganho por ser tão orgulhosa. Vou precisar de mais que uma curandeira... e depressa!

O tempo perdeu todo e qualquer significado. Havia vozes, várias mulheres diferentes, beberagens de gosto horrível que a faziam engasgar e cuspir. Havia compressas frias estendidas em sua testa, toalhas molhadas para lavar seu corpo. As mãos eram sempre gentis, mas Margaret ainda gritava quando encostavam em sua pele. E, ofuscando todo o resto, havia os pesadelos. Ela via Lew e as duas irmãs, Marjorie e Thyra. Por trás deles surgia Felicia, cujo rosto ela parecia usar. Todos pareciam querer alguma coisa dela, algo que Margaret não conseguia entender. o que os deixava furiosos. Ela bem que tentava permanecer acordada para evitá-los, mas seu corpo sempre acabava por traí-la.

Durante os poucos momentos de lucidez, ela deparava com uma velha enrugada, que a obrigava a tomar líquidos de gosto horrível, Lady Marilla e Rafaella. Todas pareciam ansiosas. Margaret tentava lhes dizer que estava tudo bem, mas a garganta parecia em carne viva, e só saíam grunhidos. Depois de um longo tempo, ela ouviu uma voz dizer, com toda a nitidez:

- Sinto muito, Milady, mas isto está além da minha capacidade como curandeira. Terá de chamar uma leronis.

- Já chamei, Beltrana, mas ela não poderá chegar hoje. Faça o que puder. Uma pena que ela tivesse vindo para cá... seria muito mais simples se fosse para Armida.

A voz de Lady Marilla era cansada, com uma amargura inconfundível.

- Ora, Milady, não adianta desejar o que não aconteceu. Já devia saber disso a esta altura... mas sempre foi de querer o que não tinha.

Uma risada rouca arrematou o comentário... e foi acompanhada, de uma forma surpreendente, por uma sonora gargalhada.

- Tem toda a razão. Ainda acontece, depois de tantos anos e tantos desapontamentos. Ela começa a recuperar a consciência. Acho melhor dar outra dose.

- Está bem, embora isso não me agrade.

- Nem a mim, Beltrana, nem a mim...

O turbilhão em sua mente se dissipou. Margaret descobriu-se no meio de uma enorme cama. Olhou para as cortinas rendadas, sem saber onde se encontrava, por que se achava tão aconchegada nas cobertas. E depois tudo voltou, a febre súbita e a terrível viagem na padiola. E com essas lembranças também voltaram os sonhos.

Sentia-se muito fraca, mas tinha a cabeça lúcida pela primeira vez em vários dias. Ou pelo menos pensava que eram dias, porque tinha a impressão de recordar mudanças na claridade além das cortinas da cama, os dias se transformando em noites e voltando a ser dias. Com todo o cuidado, ela sentou na cama. Avistou uma mulher no assento largo na janela. Era muito velha, a pele parecia pergaminho, mas levantou a cabeça no instante em que percebeu o movimento na cama.

- Bom dia, domna. Sou Beltrana, a curandeira. Como se sente? Margaret não respondeu de imediato. Em vez disso, ficou escutando o barulho da chuva contra a janela. Estava tão sensível que ressoava como tímpanos em seus ouvidos, embora soubesse que era apenas um ruído comum. Então fora aquela mulher que lhe dera tantas beberagens horríveis. Deviam ter sido benéficas, mas ela ainda podia sentir na boca o gosto da última... e era repulsivo.

- Tenho a sensação de que percorri dez quilômetros da pior estrada do mundo, mas estou faminta. Isto é bom?

Só então Margaret compreendeu que falara em Padrão Terráqueo, não em casta. Passou a língua pelos lábios rachados e fez uma careta.

- Acho que estou faminta - repetiu ela, em casta. - Isto é bom? A velha balançou a cabeça e riu, parecendo aliviada.

- É um sinal da saúde voltando. O último remédio que experimentei deve ter acabado com a febre.

- Remédio? - Margaret teve uma lembrança nítida de se debater, enquanto outra beberagem era entornada por sua garganta. - Refere-se àquela coisa que tinha gosto de titica de passarinho?

Ela esticou a língua para fora e fez uma careta. Doeu demais. Cada músculo em seu corpo parecia muito sensível. Beltrana acenou com a cabeça. Os cabelos brancos brilhavam como um halo na luz. Margaret baixou os olhos, porque o movimento de cabeça da curandeira deixou-a tonta.

- Ninguém jamais descreveu assim antes, mas é isso mesmo.

- Quando posso me levantar?

- Não por algum tempo, domna. Teve febre alta por três dias e noites. Quase desesperei. Agora, deve descansar, comer e recuperar as forças.

- Mas... eu já estava descansando!

Margaret sabia que se comportava muito mal. Mas sempre que ficava doente, quando criança, insistia que já melhorara e queria se levantar logo. Na verdade, porém, o mero ato de sentar deixara-a exausta de novo, mas recusava-se a admitir para qualquer outra pessoa.

- Chiya, esteve muito doente e não pode deixar as cobertas de repente. Faça o que Beltrana diz, e voltará a ficar em forma como antes.

Sua aparência ainda não é boa. O rosto continua corado, e terá outro acesso de febre se não tomarmos cuidado... que mulher obstinada e determinada! Ainda não saiu da floresta... e quero que esteja melhor quando a leronis chegar.

Margaret ouviu as palavras que não foram pronunciadas e estremeceu. Por que isso está me acontecendo? Por que posso de repente captar coisas que não são ditas?Já acontecia um pouco antes, mas agora parece que ouço cada vez mais os pensamentos das outras pessoas. Não é certo! Não é justo! Não quero ficar doente, nem ouvir pensamentos! Não quero uma leronis, o que quer que isso seja! Quero voltar a meus aposentos na universidade, ir para qualquer outro lugar, desde que seja longe daqui! Se Ivor não tivesse morrido... eu gostaria de nunca ter vindo para Darkover!

As lágrimas brotaram nos olhos, começaram a escorrer pelas faces. A pele estava tão sensível que até o contato das gotas era doloroso. Margaret arriou sobre os travesseiros. Beltrana levantou-se, veio ajeitar as cobertas.

- Eu sei como se sente, menina. Mas deixe a velha Beltrana cuidar de você, e ficará boa num instante.

- Eu é que cuido das pessoas, não o inverso - soluçou Margaret. -Mas não cuidei direito de Ivor, e ele morreu. É tudo culpa minha!

Ela fechou uma das mãos e bateu com o punho na cama, sem muita força. A velha afagou seu braço gentilmente... mas mesmo assim doeu. Margaret estremeceu. Era desesperador... chorar como um bebê e ficar doente. Mas parecia impossível se controlar, e depois de um momento ela desistir de tentar.

- Rafaella, não agüento mais ficar doente! - protestou Margaret, na manhã seguinte. - Quero sair da cama!

A guia sorriu.

- Se quer ser mandona, terá de fazer algo melhor. Acaba de nos dar um terrível susto, Marguerida. Cheguei a pensar que Lady Marilla ia se borrar de medo... por mais vulgar que seja dizer isso a respeito de uma dama do Comyn.

Rafaella parecia esgotada, mas tinha nos olhos o brilho malicioso habitual. Os cabelos faiscavam por terem sido lavados há pouco tempo, as olheiras já não eram tão profundas e escuras como antes.

Margaret remexeu-se por baixo das cobertas, tentando encontrar uma posição confortável, mas não conseguiu. Invejava a limpeza de Rafaella. Sentia-se imunda, mesmo sabendo que tomara vários banhos de esponja e que a camisola fora trocada mais de uma vez. A perspectiva de um banho era extremamente desejável, mas sentia-se tão fraca que era bem provável que se afogaria se tentasse tomá-lo.

Desejou ser mais eficiente em não fazer nada... e descansar em seguida. Depois de alguns momentos, ela sentiu-se entediada, além de irrequieta.

Não devia haver nada para ler naquela enorme casa; e, de qualquer maneira, era bem provável que não conseguiria ler. Esquadrinhou a mente à procura de algum assunto para discutir. Decidiu que queria ouvir mais sobre a anfitriã. Afinal, ocupava um quarto em sua casa e devia dar bastante trabalho aos criados.

- Pode me falar um pouco sobre ela? Pareceu uma mulher formidável, pelo pouco que posso me lembrar.

- É uma boa palavra para descrevê-la. Ela tinha de ser, para suportar Lorde Dyan Ardais. Gostavam um do outro, o que é estranho. Ele era... diferente. - Rafaella parecia bastante constrangida agora, a voz baixa e tensa. - Morreu antes de meu nascimento. Por isso, não conheço a maior parte da história. As pessoas não gostam de falar sobre ele. E não é apropriado comentar essas coisas aqui.

o rosto da guia exibia uma expressão conflitante, mas pelo menos Margaret ouviu apenas as palavras enunciadas. o que era um grande alívio. Talvez não fosse mesmo uma telepata, no final das contas. Talvez apenas tivesse ouvido coisas que pensava que as outras pessoas haviam pensado. Pare com isso! Pare de tentar se convencer de que imaginou tudo! Seja a pesquisadora treinada, aceite os fatos como são!

E foi então que ela absorveu as palavras de Rafaella. Arriou nos travesseiros. A mente encolheu-se, como se tentasse escapar. Conhecia aquele nome e tinha a lembrança de um rosto para acompanhá-lo. Podia ver um homem de rosto aquilino, bonito e impetuoso. E o nome Dyan Ardais desencadeou outra lembrança, de um quarto frio, e alguma coisa... "Não deve lembrar e não deve perguntar. Não permitirei que me destrua... você está doente agora, mas em breve não estará mais doente. Ficará livre da dor e do medo, menina. Apenas faça o que eu mandar, e logo tudo acabará."

Margaret não sabia quem falava em sua mente, mas descobriu que tremia toda. A voz era peculiar, familiar, mas ao mesmo tempo desconhecida. Havia alguma coisa ali que a fazia pensar em espelhos, e como os detestava. Não queria pensar a respeito, nem naquele homem, o tal de Dyan. Ele a pegara, fora isso mesmo, e levara-a para um lugar frio. A lembrança assustava-a ainda mais do que a memória do homem de olhos prateados. Teve vontade de correr. Só que suas pernas eram de criança, curtas demais para escapar ao perigo.

Uma visão familiar surgiu diante de seus olhos. Já a vira muitas vezes, mas sempre conseguira sepultá-la no fundo de sua mente. Margaret podia ver uma batalha, com luzes e espadas. Prolongava-se interminável, embora na verdade tivesse sido muito breve. Seu cérebro cansado não podia lidar com as contradições. Por isso, ela desistiu de tentar compreender.

Os eventos foram se desenrolando, como num antigo videodrama. Quando tudo acabou, ele havia morrido, o homem chamado Dyan Ardais. Ela tinha certeza... testemunhara de fato aquela memória. Ele parecia bastante inofensivo na derrota, nada que pudesse assustar. Mas agora Margaret sabia por que se sentira tão apreensiva quando encontrara Danilo no Castelo do Comyn. Nada tinha a ver com o tranqüilo ajudante de Regis Hastur, exceto pelo de fato de que ele tinha um nome que a perturbava.

o corpo de Dyan estava estendido no chão. Havia outro corpo ao lado. Na memória, o rosto se achava virado para o outro lado, mas os cabelos vermelhos espalhados sobre as pedras revelavam que era Thyra. Margaret não vira a mãe morrer, mas vira-a morta. Por um momento, sentiu-se furiosa. Por que não fora protegida daquela situação? Onde Lewis entrava em tudo isso? Ela tinha certeza de que o pai se encontrava nas proximidades, mas a memória nada lhe dizia. A casca vazia que fora Thyra, que tanto a apavorara, parecia agora apenas uma coisa trágica, um vaso quebrado.

Ela queria rejeitar as lembranças, mas sabia agora que nunca mais poderia eliminá-las. Era inútil sequer tentar. Margaret deixou escapar um pequeno suspiro. Notou que Rafaella a observava, com algum alarme no rosto cansado. Margaret deu de ombros.

- Está tudo bem. Eu apenas lembrava uma coisa que queria esquecer.

- Você empalideceu... pensei que não poderia ficar nem um pouco mais branca, mas foi o que aconteceu. Parecia prestes a desmaiar.

- Não vou desmaiar, embora isso pudesse ser um ato de misericórdia neste momento.

Pela primeira vez, ela especulou o que mais esquecera deliberadamente, e por que fizera isso. Era muito pequena e vulnerável. As pessoas levavam-na de um lugar para outro. Se não eram cruéis, também não eram gentis. Era quase como se ela não tivesse a menor importância, a não ser como uma espécie de instrumento de negociação, para obrigar seu pai a fazer alguma coisa. Ele não era um velho então, mas sim mais jovem do que Margaret agora, já sem uma das mãos, talvez tão inseguro quanto ela sabia que era.

Os pensamentos de Margaret voltaram relutantes a Dyan Ardais, alto e severo. Fora um homem atraente, mas remoto e frio. O que o fizera assim? Ela podia se lembrar de seus movimentos, como Dyan nunca se apressava, como suas mãos eram duras e fortes quando a pegava. Por que ele fizera isso? Havia alguma coisa...

Dyan levara-a para um lugar que estava ao mesmo tempo vazio e ocupado, uma sala estreita, com vidro azul nas paredes. Mas não era vidro, era pedra, deixava passar a luz. E não eram as paredes apenas. o teto e o chão eram feitos do mesmo material. Era como estar dentro de um diamante azul... inteiramente impossível, é claro. A sala era fria demais, e ela tremia, porque só usava uma camisola. E porque tinha medo.

As impressões brotavam agora na mente de Margaret mais do que as lembranças concretas. A sala parecia vazia, exceto por uma cadeira de encosto alto, esculpida em pedra cinzenta, bem no meio. Era como um trono, pensou ela. Queria desviar o rosto, mas seus olhos pareciam atraídos para o lugar vazio. Quase que podia divisar uma presença, uma mulher muito pequena, com olhos que absorviam luz e som... e acima de tudo sentimentos. Quando a estranha entidade fitara-a, ela sentira-se vazia, não mais a menina chamada Marja, mas um nada sem identidade.

O nome Ardais desencadeara uma sucessão de lembranças. Então por que ela ainda tinha a sensação de que havia algo perigoso em Danilo Syrtis-Ardais? Era uma emoção nítida... bem diferente do medo lembrado na câmara cristalina. Seria porque ele faria qualquer coisa para proteger Regis Hastur? Mas isso nada tinha a ver com ela, não é mesmo? Talvez ele não fosse uma ameaça, mas apenas um homem que a lembrava do que ela não queria lembrar. Sabia desde o seu retorno a Darkover que os sons e os cheiros conjuravam todas as coisas que escondera nos recessos mais profundos de sua mente. Algo ocorrera que ela não queria lembrar, algo relacionado com a pequena mulher que tremeluzia num trono de pedra. Onde ficava aquela sala, aquele palácio de cristal? Margaret não queria saber... mas sabia que precisava descobrir!

Era mais do que desejar não recordar o passado, refletiu ela, com um sobressalto. Aquela voz! A voz fria que lhe dizia para não perguntar, para não lembrar! Não era de Dyan. Nem do outro homem, o prateado, que atormentava seus sonhos. Era a voz de uma mulher, ela tinha certeza, e tinha alguma relação com a sala de cristal azul. Só pensar a respeito já era suficiente para deixá-la tonta.

- O que houve, Marguerida? - indagou Rafaella, sacudindo seu pulso.

- Acho que não estou tão bem quanto pensava.

- Revirou os olhos, chiya, e pensei que ia ter outro ataque.

- Outro o quê?

- Um ataque... teve vários durante a viagem para cá. Pequenos, é verdade, mas nem por isso menos assustadores.

- É mesmo? Peço desculpas se a assustei.

Margaret falou calmamente, recusando-se a expressar o terror que comprimia seu coração. Nunca apresentara antes qualquer sinal de epilepsia, mas ninguém podia prever o que aquela estranha doença seria capaz de provocar. Depois de um momento, o medo dissipou-se um pouco. Ela refletiu que era terrível cair doente tão longe da ajuda médica terráquea. Desta vez me meti numa situação terrível, não é mesmo?

- As febres às vezes causam ataques.

- Eu não sabia.

Rafaella parecia tranqüilizada pelo aparente otimismo de Margaret. As linhas da preocupação em sua testa sumiram, a boca relaxou um pouco. Margaret fitou-a em silêncio, descobrindo que sentia uma profunda afeição por sua guia. Nunca tivera muitas amigas da sua idade. As colegas na universidade eram bastante simpáticas, mas ela sempre se mantinha à distância. Era quase como se relutasse em ter um contato mais estreito com outra pessoa. Os Davidsons haviam sido mais do que amigos, mas também eram duas gerações mais velhos, e não era a mesma coisa.

Margaret deixou-se mergulhar na sensação de amizade, em silêncio, apertando a mão calejada de Rafaella. Era um sentimento novo para ela, tão viçoso quanto flores da primavera. Queria saboreá-lo ao máximo. Sabia, de alguma forma, que podia confiar completamente em Rafaella, em qualquer situação.

Não! Você tem de se manter apartada!

Ela se encolheu ao ouvir essas palavras, enunciadas por uma voz feminina, suave mas inflexível, uma voz que não pertencia a qualquer mulher que ela conhecia. Não era de Dio. Nem de Thyra. Por um instante, ela viu outra vez a sala azul. Sabia que a voz era da mulher cuja presença invisível ocupava o trono ali. Não dava para adivinhar como ela criara essa barreira contra a intimidade, quando Margaret era muito jovem para se proteger. Mas Margaret tinha certeza de que isso acontecera mesmo, era real, não imaginário. Sentiu que era atraída para o trono vazio, sugada contra a sua vontade. Quase gritou.

A visão desapareceu, ela se encontrava outra vez na cama, aconchegada sob as cobertas, tão segura quanto possível. Enquanto não se lembrasse - e não permitisse que ninguém se aproximasse - estaria sã e salva. Sua mente era repleta de salas trancadas, portas que deviam permanecer fechadas. Mas a cada momento em que ela permanecia em Darkover, tinha certeza, tornava-se maior a possibilidade de lembrar o que não devia. Não poderia escapar daquela terrível presença em sua mente, enquanto o corpo vivesse. Era isso o que significava quando a voz dizia que em breve seria livre.

Margaret sentiu o desespero subir pela garganta. Ia morrer. Quase queria morrer, em vez de continuar como prisioneira de sua própria mente, de memórias esquivas... e daquela coisa que habitava dentro dela. Outra parte sua, no entanto, assumia uma posição indignada. Por um instante, ela compreendeu que muitos de seus acessos de raiva, tão estranhos e poderosos, vinham dessa parte sua. E era uma parte que não apenas queria viver, mas também queria se vingar...

Ainda sentia-se muito fraca para controlar essas emoções conflitantes. Tinha vontade de chorar, gritar, saltar da cama, brigar com alguém, desmaiar, e várias outras ações que carecia de energia para nomear. Em vez de tentar enfrentar seu turbilhão, ela disse:

- Acho melhor tirar outro cochilo agora. Embora eu sinta que venho dormindo por toda a eternidade.

- Também acho melhor. Seu pulso está disparado, e Beltrana vai me arrancar a pele se acontecer alguma coisa com você, enquanto estiver sob os meus cuidados.

Rafaella inclinou-se e beijou o rosto de Margaret, com muita ternura. Margaret ficou surpresa e comovida com essa demonstração de afeição. Sentiu-se embaraçada. Retribuiu o gesto, depois virou o rosto para o lado, contra o travesseiro, a fim de que ninguém pudesse ver o rubor que se espalhava por suas faces.

Pobre coitada. Como será que ela teria reagido, se eu lhe desse um abraço apertado?

 

12

Margaret sentia-se um pouco melhor na manhã seguinte, mas o pulso disparava se tentava levantar, os joelhos pareciam feitos de gelatina. Essa desagradável descoberta ocorreu quando Rafaella ajudou-a a ficar de pé, para que duas criadas trocassem as roupas da cama. Ela se criticou até não poder mais continuar. Também descobriu que entrava em pânico sempre que ficava sozinha no quarto.

Por sorte, Rafaella parecia disposta a lhe fazer companhia. Quase conseguiu se persuadir de que os súbitos ataques de medo, quando ficava sozinha, eram decorrentes da doença. Tinha o pressentimento de que recordara uma coisa no dia anterior que era ruim, muito ruim, mas não podia lembrar mais. Quase se sentia aliviada por ter esquecido por completo.

A fim de passar o tempo, ela pediu a Rafaella para falar sobre as aventuras que tivera em outras viagens. A Renunciante, depois de uma demonstração de modéstia, pôs-se a deliciá-la com histórias de tempestades de neve e enormes penhascos, salteadores e outros perigos que rondavam as trilhas. Era interessante, mas fez Margaret sentir que sua própria vida fora insípida em comparação. Não que ela se sentisse ansiosa por aventuras... não era esse tipo de pessoa.

Uma batida de leve na porta interrompeu uma boa história sobre um encontro com um banshee. Rafaella levantou-se para abrir a porta. Margaret ouviu o murmúrio de vozes, depois o som de dois conjuntos de botas aproximando-se da cama. Uma das vozes era de homem. Ela apressou-se em puxar as cobertas sobre o peito e enfiar os cabelos desgrenhados pela gola da camisola.

- Domna, quero lhe apresentar Lorde Dyan Ardais - disse Rafaella, o corpo rígido de indignação.

Que vergonha! Ele sabe que não tem o direito de entrar no quarto de uma mulher solteira que está doente! É típico de um Ardais reivindicar um direito que viola as boas maneiras!

o som do nome fez Margaret estremecer, mas sabia que aquele não era o homem em suas memórias. Ele morrera, não é mesmo? Vira-o morto! Ela mal sentiu o tremeluzir da lembrança, pairando à beira de sua mente, e tratou de empurrá-la de volta para os recessos escuros, com todas as forças que possuía. Aquele devia ser um filho ou um neto, ou mesmo um parente de Danilo. Não havia motivo para temê-lo. Devia haver pelo menos dez pessoas com o nome de Dyan Ardais vagueando por Darkover. Provavelmente era um nome comum! Então por que ela não acreditava nisso?

Apesar da cautela, Margaret descobriu que a curiosidade se agitava em seu íntimo. Ouviu os pensamentos de Rafaella com alguma inquietação. Como nenhum outro incidente de ouvir os pensamentos de pessoas ocorrera durante a manhã, ela quase conseguira se persuadir de que não era uma questão importante, que não passava de um pequeno talento, como a capacidade de fazer malabarismo. Especulou agora: por que vinha e voltava? Por que acontecia em algumas ocasiões, mas não em outras? Seriam as emoções fortes que causavam? Tinha de haver uma explicação lógica, se ao menos ela pudesse descobrir. Contudo, por mais que quisesse perguntar, alguma coisa dentro dela a mantinha silenciosa e furiosa.

Começava a sentir outra dor de cabeça, tentando descobrir. Assim, deixou de lado o problema. Em vez disso, especulou o que a Renunciante teria pensado se a visse com Ivor em Relegan, coberta apenas por algumas plumas e flores. Rafaella ficaria escandalizada, embora Ivor tivesse idade suficiente para ser avô de Margaret. Pelo que ela pudera deduzir sobre os costumes darkovianos, isso poderia não ser um problema. Mas não tinha certeza. Eles pareciam ter algumas idéias muito estranhas sobre o relacionamento entre os sexos, que Margaret ainda não compreendia direito. Considerava-se com idade suficiente para não precisar de uma acompanhante, mas era evidente que Rafaella se mostrava disposta a defender sua honra. Se não estivesse tão fraca, ela teria soltado uma gargalhada.

O homem que a fitou entre as cortinas da cama era de estatura mediana, cabelos louros e surpreendentemente bonito. Parecia ser da idade de Margaret ou um pouco mais jovem. Os olhos eram tão claros que quase pareciam incolores. Não era igual ao outro Dyan, o de suas recordações, pois aquele homem tinha cabelos escuros, não é mesmo? Ele apressou-se em desviar os olhos. Margaret lembrou que era considerado uma grosseria em Darkover fitar nos olhos as pessoas do sexo oposto.

Por apenas um segundo, ela viu o rosto mais velho de Dyan Ardais se superpor ao do jovem. Tremeu um pouco. Eram muito parecidos na estrutura óssea, mas afora isso o visitante parecia mais com Lady Marilla. Não havia a impressão de poder que ela lembrava do outro Dyan. o queixo era estreito, como o de Marilla, e um tanto delicado. Ele se remexeu irrequieto ao lado da cama, olhando para as paredes e cortinas com a maior ansiedade, como se não gostasse de ficar dentro de casa.

- Dom Dyan - murmurou Margaret - não tenho palavras suficientes para lhe agradecer e à sua mãe por terem cuidado de mim.

Ele pegou uma das cortinas da cama e começou a pregueá-la entre os dedos.

- Você é mesmo Marguerida Alton?

A pergunta saiu de seus lábios como se não pudesse evitá-la. Ela tem a aparência de uma Alton... com um nariz grande demais para a beleza. Eu gostaria que a mãe fosse menos ambiciosa. Se ela me disser mais uma vez que pode ser uma aliança vantajosa, vou cair sobre a espada, e acabar logo com isso!

- Até onde eu sei, sou mesmo Marguerida Alton.

Ela queria ter ignorado os pensamentos, por mais desagradáveis que fossem. Um nariz grande demais para a beleza! Ainda bem que ela não era vaidosa. o rapaz, concluiu Margaret, procurava de propósito distraí-la de seus próprios pensamentos e da ansiedade que a dominava. Parecia muito dramático, ainda sob o controle da mãe.

- E realmente viajou nas espaçonaves para a Terra?

- Nunca estive na Terra, mas já visitei diversos outros mundos.

- Ahn... - Ele deslocou o peso do corpo de um pé para outro, apreensivo. - Eu gostaria de fazer isso também, mas não posso, porque tenho de ficar aqui.

- Deve ser difícil para você.

- Já chega-interveio Rafaella. - Disse que queria verificar se Domna Marguerida estava melhorando, não que queria conversar sobre lugares aos quais não poderá ir.

- Eu... peço desculpas. Espero que melhore depressa. Rafaella diz que é uma grande música. Talvez possa cantar para nós, quando estiver se sentindo melhor. Meu avô era um bom cantor, pelo que dizem. Não cheguei a conhecê-lo. Não herdei seu talento, mas adoro música.

- Agora é demais - interveio Rafaella, firme. - Não pode continuar aqui. Ela está fraca demais para ser incomodada.

Especialmente por alguém como você! Ao que tudo indicava, o jovem Lorde Ardais estava acostumado a receber ordens de mulheres, porque fez uma reverência e se retirou.

- Qual é o problema? - perguntou Margaret, depois que ele saiu. Rafaella ofereceu uma de suas fungadelas reveladoras.

- Os homens! Pensam que todas as mulheres estão ansiosas para casar e ter filhos... como se não tivéssemos nenhum outro propósito no mundo!

Margaret estava achando engraçado, mas evitou o sorriso.

- Todos os homens... ou apenas este em particular?

- Ele! Tem três filhos nedestro, mas até agora ainda não conseguiu arrumar uma esposa. Quase casou com uma das gêmeas Lanart-Hastur há poucos anos, mas ela tinha laran e foi para uma Torre. Não me lembro se foi Ariel ou Liriel... não posso determinar qual das duas, embora para gêmeas elas sejam tão diferentes quanto água e vinho. Ele é irmão de adoção de Mikhail Lanart-Hastur e foi criado com as meninas. O Comyn tem alguma cautela em casar um Ardais, desde a Rebelião de Sharra.

Rafaella fez uma pausa, os olhos se contraindo ao perceber que falara demais.

- Mas tudo isso é história antiga. Foi uma longa manhã para você. Por que não tira um cochilo? Mais tarde eu lhe trarei uma bandeja com sopa.

O termo irmão de adoção despertou uma vaga lembrança na mente de Margaret. Sabia que era uma prática comum em Darkover criar uma criança em outra família. Podia lembrar que o Senador mencionara algumas vezes seu irmão de adoção... e compreendeu agora que ele devia estar se referindo a Lorde Regis Hastur. Parecia-lhe um costume muito estranho dar um filho para parentes ou estranhos criarem, mas não era uma prática desconhecida em outras sociedades humanas. A idéia, ao que tudo indicava, era a de que estranhos podiam disciplinar adolescentes melhor que os pais, podiam ser mais objetivos. Margaret tinha opiniões firmes sobre a questão da objetividade. Achava que era ótima para as ciências, mas um total absurdo para pessoas reais.

Havia alguma coisa no que Rafaella dissera em que ela não queria pensar... que sua mente parecia evitar deliberadamente. Sempre que tentava se concentrar no problema, o cérebro recusava-se a cooperar. Havia uma palavra, apenas uma palavra, que insistia em se esquivar, o que a irritava. Já era bastante ruim ter na mente uma porção de salas trancadas, sem que palavras isoladas provocassem um desconforto mental. Margaret lembrou-se de repente da história do Barba Azul, o homem que matava suas esposas. Ele sempre dava à última cônjuge as chaves do castelo, com a advertência de que não deveria abrir uma sala determinada... e é claro que a mulher ia abrir, tendo uma curiosidade humana.

Qual era mesmo a palavra? Ela vasculhou a mente por um momento. Ah, sim... Sharra! Não, não era essa. Era outra palavra, muito parecida, mas completamente diferente. Tinha alguma relação com a enorme pedra com que ela sonhava... ou seria a pedra com a cadeira dentro? Margaret sentiu que tremia toda, enquanto fazia um esforço para absorver fragmentos de memória.

E agora voltou o que pensara no dia anterior, com menos nitidez do que antes. Por isso, ela foi capaz de pensar a respeito, apenas tremendo um pouco. A cadeira e a presença que sentava nela, naquela câmara gelada, representavam seu Barba Azul pessoal. Tinha certeza. As pessoas punham chaves em sua mão a todo instante, mas ela não sabia que portas abriam... e tinha medo do que poderia encontrar no outro lado. Para ela, devia ser algo pior do que os cadáveres de esposas mortas.

Gostaria de nunca ter vindo para Darkover, mas agora era tarde demais. Margaret forçou-se a aceitar o presente sem arrependimento. Não gostava, mas tinha de enfrentá-lo, não importava o que acontecesse. Se ao menos não tivesse ficado doente...

Tudo ao seu redor, o cheiro das roupas de cama, o som da chuva caindo, o próprio ar, falava ao seu coração do lar que jamais encontrara em nenhum outro lugar. Sua vida segura como associada de Ivor Davidson desvanecia-se para uma espécie de sonho. o que a deixava ressentida. Fora uma vida simples e feliz, repleta de interessantes desafios intelectuais e estranhos planetas, sem as complicações da família.

Família! Essa palavra significava muito em Darkover. Pela primeira vez, ela tinha uma família, que antes ignorava por completo. Descobrira um tio que, como ela, tinha um pé no Império Terráqueo e outro em Darkover. Desconfiava que Rafe era apenas a ponta de um iceberg. Parecia que todos em Darkover - ou pelo menos as famílias do Comyn - eram aparentados com todos, pelo sangue ou lealdade. E os parentes de Dio? Ela podia ter uma dúzia de tios e tias, centenas de primos de que Margaret nunca ouvira falar. Estes podiam não ser parentes de sangue, mas eram também sua "família".

Pela primeira vez, ela pensou no Senador e Dio como os exilados que eram, isolados da cultura em que haviam nascido, longe das ligações que transformavam o Comyn num corpo político e social. Margaret jamais considerara que seus pais podiam ser infelizes, que Lew podia beber em excesso para esquecer os cheiros e sons de Darkover. E Dio? Margaret nunca a ouvira se queixar, mas havia noites em que ela ficava olhando para o fogo na lareira com uma expressão de profundo pesar. Atiçava a lenha e fungava. Margaret sabia agora que ela devia estar ansiando pela agradável fragrância do bálsamo queimando, que parecia impregnar todos os lugares, da choupana de Gavin aos corredores do Castelo do Comyn. Se ela reagia com tanta intensidade aos odores e sons depois de deixar Darkover quando tinha apenas cinco ou seis anos de idade, o quanto fora terrível para Dio e Lew, que haviam passado tantos anos de suas vidas naquele planeta?

Margaret persistiu na empatia recém-descoberta pelos pais durante algum tempo. Mas logo admitiu que se sentia irritada por ter sido mantida na ignorância de sua herança. Não fazia o menor sentido! Tinha de haver uma razão para o silêncio, alguma causa racional. Seu pai representava Darkover no Senado, mas nunca falava sobre o planeta em casa.

Lew, não posso mais suportar! A voz de Dio soava tão nítida como se ela estivesse no quarto no Castelo de Ardais. Cada vez que menciono Darkover, Marja começa a gritar! Ela se enrosca toda, esconde os olhos. Tenho medo que comece a ter convulsões ou qualquer coisa parecida.

Eu sei, meu amor, eu sei. E lamento muito que você tenha de lidar com isso. Ela estava bem quando partimos... uma criança normal, se bem que um pouco agressiva. Era muito pequena para saber como ser uma telepata polida, não é mesmo?

Jamais esquecerei! A garota atrevida observava cada vez que fazíamos amor... era pior do que impolida; era intrometida! Mas quer saber de uma coisa? Eu gostaria muito que ela voltasse a ser assim, em vez de uma adulta remota num corpo de criança. o que aconteceu com ela?

Acho que a viagem foi traumática - sua alergia às drogas da viagem espacial- mas creio que há também algo mais. De alguma forma, houve uma... interferência em seus canais. Eu era apenas um mecânico, não uma Guardiã, mas não é preciso ser uma leronis para saber que Marja manteve alguma espécie de choque profundo. É bem provável que ela acabe se livrando, com o passar do tempo. As crianças têm uma flexibilidade maravilhosa.

Não creio que isso venha a acontecer, Lew. Não passa tanto tempo com ela quanto eu e, por isso, não pode julgar...

Não posso mesmo! Cada vez que olho para ela, lembro de Sharra e como Thyra parecia pequena ao morrer, como os cabelos de Regis ficaram brancos...

Creio que deveríamos levá-la de volta a Darkover, Lew.

Não, Dio. Acho que voltar a mataria... e com certeza me mataria!

Margaret piscou, aturdida. Ouvira mesmo essa conversa, ou era uma criação de sua fértil imaginação? o pai queria mantê-la em segurança, embora se angustiasse cada vez que a contemplava. Devia ter sido ainda pior quando crescera, porque ela sabia agora que tinha uma grande semelhança com a mãe, Thyra. Como ele devia ter se sentido aliviado, quando Margaret partira para a universidade em Coronis. Sem dúvida pensara que ela permaneceria sã e salva ali. Como o Senador poderia imaginar que o trabalho da filha, tão simples e tranqüilo, acabaria por levá-la de volta ao lugar que era mais perigoso para ela do que qualquer doença conhecida? Ele não poderia saber, a menos que visse o futuro, o que ninguém podia fazer... ou será que eles eram capazes?

Naquele momento, ela sentia que não corria qualquer perigo imediato de morrer. E verdade que poucos dias antes não poderia acreditar que sobreviveria ao estranho vírus que a dominara. Parecia que os piores medos de Lew não seriam consumados. Mas ela sentia-se ameaçada, acima de tudo pelos ardis que a mente vinha lhe pregando. Havia coisas espreitando dentro dela que poderiam, se não fosse capaz de lembrá-las em breve, levá-la à loucura. O que faziam com as loucas em Darkover?

Sharra! A palavra ressoou em sua mente, como um enorme sino num dobre de finados. O pai também a usara quando conversara com Dio. Brigham Conover a mencionara, relacionada com alguma rebelião. O que seria? Parecia um nome de mulher, mas não havia a lembrança de nenhuma pessoa para acompanhá-lo. Espere! Havia algo mais... a palavra tentava escapulir em sua mente. Quase a pegara! o suor brotou em gotas na testa. Quase, quase! Um som similar. Ela era música e lidava com sons. Então por que não podia... Ashara! Era isso! Um lugar e uma pessoa ao mesmo tempo. Margaret quase soluçou em triunfo.

Por um instante, "viu" a figura indistinta entronizada naquela sala fria e horrível. E depois o estômago se contraiu, o coração quase parou. Margaret comprimiu as mãos contra as cobertas, apegando-se com todo o empenho à vida. As palavras que recuperara com tanto esforço afundaram em sua mente, fazendo passar a sensação da mão enorme apertando seu coração. Espero que tenham um bom lugar para as loucas aqui, pensou ela, enquanto resvalava para a segurança da inconsciência.

No início da noite, Margaret quase que voltara a ser como antes. Rafaella acordou-a com a tigela de sopa e várias fatias de pão. Ela comeu tudo tão depressa que quase passou mal. Mas depois que o alimento assentou no estômago, começou a se sentir quase normal. A força retornava a seu corpo. Sabia que desataria a gritar, se tivesse de continuar na cama por mais um minuto sequer.

- Vou me levantar - anunciou ela.

- Estou vendo - respondeu Rafaella, desaprovadora, enquanto Margaret estendia as pernas pela beira da cama. - Acha que pode?

- Preciso me movimentar. Se permanecer na cama por muito mais tempo, começarei a contar os pontos nos bordados das cortinas, por puro tédio. Não há nada para ler aqui. Eu quase que seria capaz de vender minhas crianças que vão nascer por um bom romance e uma caixa de bombons. Rafaella mostrou-se escandalizada.

- Como pode dizer uma coisa dessas? Não fala sério, não é? Só os habitantes das Cidades Secas vendem crianças.

- Claro que não falo literalmente. Onde estão minhas roupas?

- Ahn... - A guia ficou aliviada. - Vou buscá-las. Os Terranan não vendem crianças, não é?

- Não, Rafaella, não vendem, nem as devoram. Pelo menos não nos mundos civilizados. Mas ouvi falar de uns poucos lugares, planetas muito primitivos, em que isso ainda acontece.

- Que coisa terrível!

Rafaella, com uma expressão de incredulidade, foi buscar as roupas de Margaret. Estavam bem lavadas e perfumadas com bálsamo. Ela levou a túnica ao nariz e aspirou fundo. Foi então que notou seu próprio cheiro. Mesmo com os freqüentes banhos de esponja, ainda era bem forte.

- Quero um banho de verdade primeiro.

- Está bem. - Rafaella parecia em dúvida. - Mas é melhor eu acompanhá-la, para não se afogar.

A Renunciante pegou as roupas de volta, depois ofereceu a Margaret um roupão quente e um braço forte. Deixaram o quarto a que ela estivera confinada por vários dias. Atravessaram o corredor e entraram na sala de banho, cheia de vapor. Ao chegarem, os ouvidos de Margaret zuniam. Ela teve de sentar por um minuto. Não estava tão bem quanto pensara.

Rafaella ajudou-a a tirar a roupa, depois levou-a para a enorme tina. Inclinou-se, consternada, tentando amparar Margaret. Acabou dando de ombros, tirou as próprias roupas, e entrou junto na tina.

- Hum... está muito agradável - murmurou Margaret.

A água quente dissipava suas dores. Sentia-se grata por Rafaella ter entrado na tina, pois o calor deixara-a um pouco tonta.

- Quer que eu esfregue suas costas?

- Seria ótimo.

Margaret sentia-se mais relaxada a cada segundo. Nem mesmo a presença tão próxima de outra mulher a perturbava. Afinal, já haviam partilhado uma cama; então por que não tomarem um banho juntas? Mesmo assim, era um pouco inquietante estar tão perto de outra pessoa sem roupa.

- Você falou há pouco sobre alguns planetas em que vendem crianças.

- Falei?

- Falou. Estou curiosa... se não se importa de me contar. Margaret deu de ombros e sentiu a água quente deslocar-se de um lado para outro. Rafaella pegou uma esponja grande ao lado da tina e começou a esfregar suas costas, gentilmente. Quando acabou, ela entregou a esponja a Margaret, para lavar o resto do corpo. Enquanto se esfregava, Margaret sentiu que relaxava tanto que era difícil pensar com clareza. Gostaria de se dissolver por completo na água.

- Não me importo nem um pouco, mas é difícil explicar para alguém que nunca esteve em outro mundo. Qualquer coisa... e é mesmo qualquer coisa... proibida num mundo pode ser um costume em outro, até mesmo algo obrigatório. Uma das maravilhas do Império Terráqueo é o fato de tantos planetas conseguirem conviver com tantas noções diferentes do que é o ser humano. Há alguns lugares... não muitos... em que um homem tem de casar com uma de suas irmãs ou primas mais próximas para que seus filhos herdem as propriedades. Há outros em que uma mulher só pode casar com alguém com quem não tenha qualquer parentesco. Há estudiosos que passam a vida inteira pesquisando costumes sociais e escrevendo ensaios sobre suas descobertas. Todos presumem que a maneira como fazem as coisas em sua terra é o comportamento universal.

- Como alguém pode suportar? - Rafaella estava perplexa e angustiada. Margaret virou a cabeça para trás e fitou-a. - Casar com a irmã... que coisa terrível!

Ela passou sabonete nos cabelos de Margaret e começou a ensaboá-los.

- Mais terrível do que se reproduzir pelo laran?

De onde tirara essa idéia?, especulou Margaret. Ah, sim... da conversa com Lady Linnea no Castelo do Comyn. Ela suspirou. A impressão era a de que isso ocorrera em outra vida, com outra Margaret. Ela fechou os olhos para evitar a espuma do sabonete, respirou devagar e continuou:

- Há muito tempo um cientista disse que todo o propósito humano era a preservação dos zigotos, e nada mais importava. - Ela usou a palavra terráquea, pois não havia nenhuma equivalente em casta, ao que soubesse.

- Ele acrescentou que a Natureza não se importa nem um pouco com amor, dever ou qualquer outra coisa... só está interessada na perpetuação da raça.

Rafaella soltou uma pequena risada nervosa.

- Não deve ter sido alguém de Darkover. o que é um zigoto? Margaret pensou por um momento.

- O início de um bebê.

- Entendo... Ora, talvez ele fosse um pouco darkoviano. Mas não muito, porque o dever tem a maior importância aqui. E o amor também, embora um pouco menos.

A pele clara tornou-se rosada. Margaret não precisava ser uma telepata para adivinhar que Rafaella estava pensando no homem que não tivera tempo de ver antes de deixarem Thendara. Especulou se deveria perguntar à outra mulher se conhecia Rafe Scott, mas depois refletiu que isso não era da sua conta.

E de repente, como se ele estivesse na sala, ouviu a voz de Lew, curiosa e trovejante. Cumpri meu dever, durante toda a minha vida! Tentei fazer meu pai feliz e tentei proteger Darkover da estupidez e ganância da Federação. Tenho sido um escravo do dever, Dio, e não sei se conseguirei suportar por mais tempo!

Margaret não podia determinar se lembrava essas palavras, ou se as ouvia enquanto eram ditas. Mas continham um certo imediatismo, uma estranha proximidade. Deixaram-na abalada, mais do que deveria acontecer. Ela se perguntou se algum dia se acostumaria a essas intromissões em sua mente, ou se desapareceriam por completo. Torcia pela segunda hipótese, mas tinha a incômoda suspeita de que ficaria muito desapontada.

- Acho que é melhor sairmos do banho agora... pois me sinto bastante tonta.

- Deixe-me enxaguá-la primeiro. - A Renunciante despejou água quente sobre a cabeça de Margaret, enquanto ela se segurava na beira da tina. - Agora, vou sair primeiro, depois a ajudarei.

Rafaella saiu da tina, pegou uma enorme toalha numa prateleira. Estendeu-a sobre os ombros, depois inclinou-se para a amiga. Enfiou as mãos sob as axilas de Margaret e ajudou-a a sair da tina. Margaret conseguiu passar as pernas pela beira e quase se manter de pé sozinha. Por um momento, apoiou-se em Rafaella, sem nada para separá-las, a não ser a toalha. Pôde sentir a pulsação da outra mulher, aspirar a fragrância de sua pele limpa. Mas logo Rafaella envolveu-a com a toalha, depois pegou outra para si mesma. Margaret teve uma vertigem momentânea, mas em seguida a cabeça desanuviou. Sentiu alguma coisa em seu íntimo, uma força que nada tinha a ver com ossos e músculos. Nem sequer tinha certeza de que a força era mesmo sua... pois havia alguma coisa fria e remota. As pernas, trôpegas um instante antes, pareciam firmes de novo. Ela aspirou o ar aquecido do banheiro. Compreendeu que estivera prendendo a respiração, como se tivesse medo da proximidade de outra pessoa, como se o contato físico fosse perigoso.

- Posso me enxugar sozinha - murmurou ela.

E Margaret deu um passo para trás, a fim de se esquivar ao contato. Rafaella fez uma cara de dúvida, mas limitou-se a acenar com a cabeça. Margaret enxugou-se um pouco, estremecendo nos pontos em que a pele era mais sensível. Ao terminar, o fluxo de força já havia se dissipado. Tinha a sensação de que poderia cair de novo a qualquer instante. Rafaella já vestia suas roupas. Notou a aflição de Margaret.

- Vamos sentar. - Ela pegou o braço de Margaret e levou-a até uma cadeira perto da parede. Acrescentou, jovial: - Mas que menina boba!

Margaret sorriu ao ouvir isso. Compreendeu que precisava de ajuda, mesmo que a deixasse contrafeita. Deixou que Rafaella a ajudasse a se vestir.

- Desculpe causar tantos problemas.

- Não são os problemas que me incomodam, mas sim a preocupação.

- Como assim?

- Marguerida, chiya, tenho andado fora de mim de tanta preocupação com você há vários dias. É o que tem acontecido com todo mundo. Dos problemas posso cuidar... sempre enfrentei muitos na vida. E agora levante os braços, para que eu possa pôr sua túnica.

- Sinto-me como um bebê!

- Sei disso... e é tão independente que detesta a situação. Mas uma das coisas que aprendemos na Casa de Thendara é a de que não devemos ter vergonha de precisar de ajuda... que somos irmãs, e irmãs devem se ajudar. E pode ter certeza de que não é fácil, porque as mulheres que ingressam nas Renunciantes são galinhas assustadas que não conseguem tomar uma decisão, ou autênticos galos de briga, querendo mandar em todo mundo.

Margaret teve de rir da descrição.

- E que tipo você é?

Rafaella sacudiu a cabeça, fazendo esvoaçar os cabelos soltos.

- Ninguém jamais me assustou!

Eu não permitiria, e quem tentar vai se dar mal. Mas você me faz sentir uma galinha chocadeira com um ninho de um ovo só. Um ovo de galo! E demais!

- Eu já imaginava isso. - Margaret fez um esforço para se levantar, a fim de vestir a saia com mais facilidade. - Gosta de ser uma Renunciante, Rafaella? Afinal, há uma ênfase muito forte em Darkover para o casamento e a família.

- É verdade. Mas minhas irmãs são minha família. E as crianças são bem-vindas na Casa de Thendara, tanto quanto em qualquer outro lugar. Apenas não preciso de algum homem para me dizer o que fazer. - E "ele" me proporciona o sentimento de que nunca faria isso! Espero poder confiar nele... mas os homens são criaturas tão estranhas!- Agora, vamos voltar ao quarto. Você precisa deitar um pouco. Se estiver se sentindo mais forte depois de um descanso, poderemos jantar à mesa.

- É uma perspectiva maravilhosa. Quase esqueci como é comer à mesa. E, de repente, me sinto faminta!

- Um bom sinal, que me deixa bastante aliviada. - Rafaella sorriu. -Foi uma boa paciente, exceto pela insistência em querer se levantar a cada segundo!

Duas horas depois, Margaret desceu a escada comprida, apoiada no braço de Rafaella e segurando o corrimão com a outra mão. Sua energia parecia aumentar e diminuir a todo instante, sem qualquer padrão definido. Assim, ela sentia-se fraca num momento e forte no seguinte. Rangia os dentes, contente pelo braço forte de Rafaella para se apoiar, e apreensiva pelo contato físico ao mesmo tempo. Julian Monterey, o coridom, esperava na base da escada.

- É um prazer vê-la de pé e andando, domna - disse ele a Margaret. - Ficamos muito preocupados.

- Lamento muito se causei preocupações a alguém... que maneira para uma hóspede se comportar!

Ela fez uma careta, e ficou satisfeita quando o coridom riu.

- Vou conduzi-las ao salão de jantar.

- Obrigada. O aroma delicioso chega até aqui.

Agora que não estavam mais na escada, Rafaella largou o braço de Margaret. Mas permaneceu ao seu lado, pronta para ampará-la, se cambaleasse. Era uma presença confortadora, confiável e forte. Margaret lançou-lhe um olhar afetuoso.

Julian atravessou o vestíbulo na frente. Entraram num salão grande, onde a mesa fora posta para a refeição noturna. Um fogo agradável ardia na lareira. Havia lindas tapeçarias penduradas nos lados da lareira. Uma delas mostrava um homem empunhando uma espada flamejante, a outra uma mulher com uma pedra cintilante nas mãos. Seus rostos eram obras-primas da arte dos tapeceiros. Contemplavam o salão dos fios com uma profunda serenidade.

Dois homens estavam de pé na frente da lareira. Um deles era o jovem Lorde Ardais, que invadira antes o quarto de Margaret, para a grande irritação de Rafaella. o outro era um estranho. Viraram-se ao som dos passos, observando as recém-chegadas com olhares de esguelha, a fim de evitar a grosseria do olhar direto.

Dyan Ardais adiantou-se e abriu a boca para falar, mas Julian Monterrey antecipou-se:

- Senhoras, permitam que lhes apresente Lorde Dyan Ardais e Mikhail Lanart-Hastur, seu irmão de adoção e pajem. Senhores, esta é Domna Marguerida Alton. Já conhece sua companheira, Dom Dyan, Rafaella n'ha Liriel. Mas não sei se já a encontrou antes, Dom Mikhail.

o tom de sua voz deixava claro que ele esperava que as formalidades apropriadas fossem respeitadas. Quase que certamente sabia da invasão do quarto de Margaret por Dyan, e não aprovava. Dyan lançou para o coridom um olhar de rebelião moderada, depois assumiu um ar de arrogância que fez Margaret estremecer. Era muito parecida com a atitude do outro Dyan.

- Mestra Rafaella e eu já nos conhecemos, mas é com prazer que dou as boas-vindas à Dama de Alton no Castelo de Ardais.

Ele fez uma pequena reverência. Margaret refletiu que Dyan podia ser um jovem mimado, mas tinha maneiras requintadas quando decidia demonstrá-las.

Apesar disso, ela mal o notou. Foi o outro homem que atraiu sua atenção.. . e atraiu com muito mais intensidade do que ela gostaria. Quase o fitou fixamente, e teve de fazer um esforço grande para desviar os olhos.

Mikhail Lanart-Hastur tinha alguma semelhança com Lorde Regis, mas era mais alto e, Margaret calculou, mais ou menos de sua idade. Tinha cabelos claros emoldurando uma testa larga, a boca feita para o riso, os olhos de um azul extraordinário. Ao mesmo tempo, havia algo hesitante em sua postura, como se não tivesse certeza de sua posição. Apesar disso, Margaret sentiu uma simpatia instantânea por ele, pois havia uma certa firmeza em Mikhail, uma qualidade de que Dyan carecia por completo.

- É um prazer conhecê-la - disse ele, com uma bela voz de tenor, embora não parecesse muito satisfeito.

Margaret sentiu-se ligeiramente repelida, o que aumentou seu interesse. Mas logo se repreendeu por ser uma idiota rematada. o que havia de especial nele? Já vira homens bonitos antes, pois não havia nenhuma deficiência de machos atraentes na universidade... e muitos tinham uma aparência melhor que a de Mikhail Lanart-Hastur. Ela contemplou a boca cheia, tão cautelosa apesar de sua generosidade, os olhos que exibiam uma certa tristeza. Observou-o deslocar-se de um pé para outro, irrequieto. Ela também fazia isso, quando não se sentia segura. Lady Marilla entrou no salão nesse instante, sorrindo, para interromper os pensamentos de Margaret.

- É um prazer vê-la de pé e recuperada, Marguerida. Espero que não se importe com esse tratamento íntimo... mas me parece um absurdo usar títulos e formalidades num jantar de família. Somos bem modernos aqui em Ardais, como sabe. Meu filho foi educado ao estilo terráqueo, e as mulheres da casa aprenderam a ler e escrever com alguém da Guilda de Rafaella... da Casa de Neskaya. Não que isso tenha sido de grande proveito. Elas ainda não conseguem perceber a vantagem da instrução. Mas vivemos isolados aqui, e pensei que deveríamos ser bem informados. Lorde Dyan... o pai de meu filho... deve estar se revirando na sepultura. Ele desaprovava tudo o que era terráqueo.

Ela gesticulou para que todos sentassem à mesa, enquanto continuava a falar:

- Além do mais, Marguerida, já tenho idade suficiente para ser sua mãe. Puxa, como você é alta! Eu não tinha percebido antes.

E uma pena que ela seja um palmo mais alta do que Dyan!

Margaret ignorou esse comentário silencioso. Há muito que desistira de se sentir angustiada por causa de sua altura, embora fosse um fardo terrível quando era garota.

- Meu pai é muito alto. Suponho que saí a ele.

Ela sentiu uma súbita dúvida, se seria capaz de suportar uma refeição inteira com esse tipo de conversa. Tinha a boca ressequida, com as primeiras indicações de uma tremenda dor de cabeça. Talvez se levantar não tivesse sido uma idéia tão boa, no final das contas.

Margaret sentou entre Manila, à cabeceira da mesa, e Mikhail, à sua esquerda. Rafaella sentou na sua frente, com Dyan no seu outro lado. A disposição, a julgar pelas expressões azedas, não agradou a ninguém.

- Julian, por favor, pode mandar trazer a comida - disse Manila. Poucos momentos depois um criado entrou no salão, carregando uma terrina com sopa. Erguia-a bem alto, como se fosse uma ocasião muito especial. Quase que estragou o efeito ao virar os olhos na direção de Margaret, como se estivesse na maior curiosidade. Julian tossiu de leve, fazendo-o recuperar o controle. Outro criado apareceu, com uma bandeja em que havia tigelas em azul e branco. Ficou segurando a bandeja, enquanto o primeiro servia a sopa em cada tigela, e depois a punha na frente dos comensais, com uma expressão solene.

Os vapores que se elevavam da sopa tinham um aroma delicioso. Margaret teve alguma dificuldade para conter sua fome, até que Lady Marilla pegou sua colher e começou a comer. Estava uma delícia. Só depois de tomar tudo é que ela examinou a porcelana. Era muito delicada. Margaret compreendeu que era a primeira vez que via artefatos para comer que não eram de madeira.

- São lindas tigelas, Lady Marilla. Ainda não vi nada igual em Darkover. Era um comentário polido, mas Margaret, animada pela excelente sopa, estava senso sincera.

- Muito obrigada.

A mulher quase transbordava de orgulho.

- Essa não! - murmurou Dyan, atraindo um olhar surpreso de Margaret. - Lá vamos nós outra vez...

- Esta louça foi feita em nossos fornos, aqui em Ardais – informou Marilla, como se o filho não tivesse falado.

- Terá de perdoar minha mãe. Ela tem uma obsessão por argila... uma coisa vulgar.

Ele fungou, como se estivesse embaraçado. Margaret começava a pensar que o jovem Lorde Dyan precisava corrigir suas maneiras. Sentiu Mikhail se remexer ao seu lado, e lançou-lhe um olhar rápido. Ele tinha algum rubor espalhado pelas faces, e olhava para Dyan com uma expressão dura nas feições simpáticas.

- Ao contrário, Lorde Dyan. Em alguns planetas, a boa porcelana é apreciada acima de pedras e metais preciosos. Não sou perita, mas estas tigelas são muito bonitas, com um ótimo padrão... e originais também.

Marilla tentou disfarçar sua satisfação, mas não conseguiu, pois o rosto se tornou radiante de prazer. o que tirou vários anos de sua idade, pois algumas rugas desapareceram, a boca relaxou, como não acontecia antes.

- É apenas um padrão antigo, mas fico feliz por você ter gostado. Já deve ter comido em peças muito melhores, com toda a certeza, sendo a filha do Senador.

Margaret riu e balançou a cabeça. Alguns fios de cabelos escaparam da travessa de borboleta na nuca. Rafaella prendera a travessa, mas os cabelos sedosos tinham o péssimo hábito de se soltar de qualquer restrição. Fizeram cócegas em seu rosto de maneira incômoda.

- Talvez meu pai usasse porcelana, mas na maioria das vezes eu comia em horrores de plástico inquebráveis... quando não usava folhas como prato em algum mundo estranho.

Ela largou a colher, compreendendo que se tomasse mais uma gota sequer não deixaria espaço para qualquer outra coisa.

- Folhas? - Dyan fitou-a através da mesa, depois baixou os olhos. -E um novo costume no Império?

- Não - respondeu Margaret, calmamente. - Apesar da posição de meu pai, eu não freqüentava os círculos mais elevados da Federação. Passei a maior parte da minha vida adulta visitando lugares da galáxia em que as pessoas ainda não haviam inventado... ou não desejavam inventar... coisas como boa porcelana. Uma folha larga é um bom prato, pois não é preciso lavar depois do jantar.

Ela pôde sentir a incredulidade ao redor da mesa, exceto de Rafaella. Mas pelo menos não ouviu pensamentos, o que era um alívio.

Julian Monterey sentou ao lado de Dyan Ardais, quando o prato seguinte foi servido: peixe fresco fritado com perfeição. Margaret ficou contente porque as cabeças haviam sido removidas. Detestava comer qualquer coisa que olhasse para ela. o criado serviu taças com vinho. Ela tomou um gole. Era seco, um bom acompanhamento para o peixe. Ela especulou onde em Darkover fazia bastante calor para se cultivar uvas. Quase perguntou, mas exigiria um grande esforço.

Não houve conversa por vários minutos, com todos concentrados em remover as pequenas espinhas, e depois comer a carne delicada. Margaret já se sentia satisfeita. Concluiu que seu estômago encolhera durante a doença, pois em circunstâncias normais tinha um saudável apetite... quando se lembrava de comer. Muitas vezes ficava tão absorvida em seu trabalho que pulava algumas refeições, compensadas depois. Ela deixou que a mente vagueasse no silêncio. Começava a relaxar, com o vinho e o calor.

Mikhail tornou a se remexer na cadeira. Margaret levantou os olhos da comida para fitá-lo. Ele também a fitou, os olhos contraídos, quase hostis. Abriu a boca para dizer alguma coisa, tornou a fechá-la. Mas um instante depois abriu de novo, obviamente decidindo fazer algo que achava que não deveria fazer.

- Quer dizer que voltou a Darkover para expulsar meus idosos pais de sua casa?

Margaret ficou tão surpresa que quase deixou cair o garfo.

- Como? Por que eu faria isso?

Ela podia sentir que Mikhail enfrentava algum conflito, uma tremenda aflição, mas não tinha idéia do que o causava. Detestava discussões. Costumava se afastar ao primeiro sinal de briga, a menos que envolvesse a burocracia terráquea. Como a maioria das pessoas na Federação, ela achava que tinha o dever de frustrar burocratas sempre que possível.

Para variar, no entanto, ela não experimentou o menor desejo de recuar ante a provocação. Mais do que isso, concluiu Margaret, até queria discutir com aquele estranho. Toda a sua raiva reprimida parecia ansiosa por encontrar um foco, alguma coisa para atacar. E, sem qualquer motivo que pudesse discernir, sentia-se bastante segura para discutir com ele. Era uma sensação intrigante, como se ele não fosse um estranho, mas alguém que ela quase conhecia. Um absurdo, é claro. Queria gostar de Mikhail, e não podia imaginar por quê. Sentiu um súbito afeto por ele, logo seguido por um calafrio que a envolveu por completo. Vai se manter apartada de todo mundo... não importa o que possa acontecer!

- Armida é sua, por direito, embora meu pai a tenha mantido há anos e anos.

Margaret ficou tão distraída pela súbita intromissão em sua mente que demorou um pouco para responder. Sentia o corpo frio e ameaçado, embora não soubesse se era pelo senso da presença estranha dentro dela, ou pelo homem furioso ao seu lado. Talvez pelas duas coisas. Havia algo intimidativo no olhar de Mikhail, pois ele fitava seu rosto diretamente, o que não combinava com as boas maneiras. Margaret baixou os olhos, porque havia alguma coisa nele que pressionava seu coração de maneira perturbadora.

Tornou a levantá-los um momento depois, incapaz de continuar a olhar para seu colo por mais tempo. Quem era aquele homem? E por que ela sentia que o conhecia? E como podia pressionar seu coração daquele jeito? Ela estava velha demais para ter a cabeça virada por um perfil bonito e olhos azuis fascinantes.

- Seu pai? - balbuciou ela. - Perdoe-me, Lorde Mikhail, mas não tenho a menor idéia do que está falando. Ou devo chamá-lo de Lorde Hastur-Lanart?

Ele se mostrou perplexo com a resposta, como se a ignorância de Margaret o pegasse de surpresa. Mexeu os ombros, como se fizesse um esforço para se controlar. Droga! Ela tem os olhos mais lindos que já vi! E esse queixo... nunca pensei que um queixo quadrado pudesse ser tão encantador numa mulher. Deve pensar que não passo de um caipira idiota... e sou o único culpado por isso!

- Não sabe realmente, não é? o que é espantoso. - Ele desviou os olhos, respirou fundo e continuou a falar, como se recitasse uma lição que detestava: - Sou o filho mais jovem de Gabriel Lanart-Hastur, que é parente de seu pai, e Javanne Hastur, que é a irmã mais velha de Lorde Regis Hastur. Tenho dois irmãos, Gabriel e Rafael. Nós três somos conhecidos como os "Anjos Lanart", porque temos os nomes dos arcanjos cristoforos. Também temos duas irmãs, Ariel e Liriel.

Havia um tom de sarcasmo em sua voz. Ele fez uma pausa e olhou para ela, esperando uma resposta.

- Deve ser ótimo. Sempre desejei ter irmãos e irmãs. Suas irmãs também são anjos?

Margaret sentiu-se como uma idiota, assim que as palavras saíram de sua boca. Mas ainda não conseguia encontrar o menor sentido no que ele dissera. Percebeu que Lady Marilla continuava a comer o peixe, em porções pequenas, enquanto Dyan a observava em evidente confusão. Só Rafaella parecia consciente de que havia algo fora do normal, pois alteou as sobrancelhas para Margaret e ofereceu um rápido sorriso de apoio, como se dissesse "Não se preocupe". Mas Mikhail soltou uma risada. Margaret sentiu que a tensão dele se dissipava.

- Minha mãe não acha que qualquer um de nós seja angelical.

- As mães raramente acham isso - interveio Lady Marilla, secamente.

Ela lançou um olhar para o filho, como se estivesse infeliz por Dyan não conversar com Margaret, deixando que Mikhail conquistasse toda a sua atenção.

- Ainda não entendo nada - queixou-se Margaret, começando a se sentir ao mesmo tempo cansada e um pouco aborrecida com seus companheiros à mesa. - Devo ficar impressionada, intimidada ou apenas humilde?

- Todas essas coisas seriam convenientes - comentou Dyan, um tanto malicioso.

Lady Marilla silenciou o filho com um único olhar.

- Não pensei que você soubesse tão pouco sobre os Altons, Marguerida.

- Pouco? Às vezes acho que nem isso eu sei! Ela foi recompensada por risos.

- Deve admitir, Mik, que você confundiu tudo - comentou Dyan, ignorando a mãe.

- Tem razão.

- Então por que não começa do início? - sugeriu Margaret, com pena de Mikhail.

Podia sentir o embaraço de Mikhail, e não esquecera que ele gostara de seus olhos. Ninguém jamais os admirara antes. Ela descobria que gostava bastante de ser admirada. Era um estranho sentimento, no entanto, e Margaret notou a agitação irrequieta da presença fria dentro dela.

- Oh, não! Desde o início? - Mikhail fez uma pausa, organizando os pensamentos. - Não sei o que posso dizer.

Ela podia sentir o conflito do homem, embora os pensamentos de Mikhail não fossem bastante claros para causar uma impressão em sua mente. Concluiu que era melhor assim, porque havia alguma coisa nele que preferia não conhecer.

- Acusou-me de planejar despejar seus velhos pais na neve, como algum senhorio num melodrama. E depois desfia sua linhagem, como se isso explicasse tudo. Mas não explica... e ainda espero que me conte tudo direito.

Margaret tentava se manter calma e racional, mas ainda se sentia fraca demais para impedir que a voz se elevasse em estridência. Rafaella fitou-a, um pouco alarmada, e fez menção de falar. Mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Mikhail perguntou, como se fosse uma coisa que ela devesse responder:

- Mas o que planeja fazer com Armida?

- Por que eu deveria fazer qualquer coisa com Armida? E por que todo mundo presume que vou reivindicar uma coisa que nem sequer me pertence? Meu pai continua vivo, pelo que sei, e portanto Armida é problema dele, não meu.

- Ele renunciou aos direitos que tinha, mas não aos direitos de sua filha - comentou Mikhail.

- Pode se intitular um anjo, mas suas maneiras não têm nada de angelicais, Lorde Mikhail. o que eu faria com Armida? Nada sei de agricultura ou criação de cavalos. Sou uma pesquisadora da universidade, não a intrusa que todos insistem que eu deveria ser.

Margaret sentiu o rosto arder em sua fúria por não ser entendida. Não era justo.

- Perdoe-me se não acredito, damisela.

Quero acreditar, mas como posso? E o pai não vai me agradecer por defender seus interesses... não consigo fazer nada certo! Mas ela não pode ser tão ignorante quanto alega... é impossível!

- Pode acreditar no que bem quiser!

Margaret podia sentir que Lady Marilla a observava, de maneira que parecia mais desconfiada do que solícita. Sua cabeça recomeçou a latejar, o estômago se contraía, embora ela não pudesse determinar se era pelos efeitos persistentes da estranha doença ou em decorrência da conversa com Mikhail. Se as pernas estivessem mais firmes, ela teria se levantado e se retirado, tratando das conseqüências mais tarde.

A raiva fervilhava em seu corpo, e ela tentou silenciá-la. Projetou o rosto do pai em sua mente, tentando desviar a fúria para ele, já que achava que Lew era o culpado pela maior parte de seus problemas. Mas não conseguiu. Em vez disso, divisou apenas o rosto bonito de Mikhail, sendo deliberada-mente insuportável, por motivos que ela desconhecia. Margaret sentiu um desejo de esmurrá-lo no queixo forte, apenas para aliviar os sentimentos conflitantes de atração e repulsa.

Antes que alguém pudesse falar de novo, houve uma batida firme na porta da frente. Julian levantou-se, calmamente, e deixou o salão de jantar. No silêncio subseqüente, Lady Marilla aproveitou a brecha quase com ansiedade:

- Acha que a nossa porcelana encontraria um mercado nos mundos em que as pessoas comem em folhas, Marguerida?

Havia alguma coisa na voz de Marilla que sugeria que ela achava que Margaret zombava ao falar das folhas. Era uma insinuação de humor que ela não percebera antes em sua anfitriã.

- É muito bonita e bem feita, e há uma grande demanda por produtos assim em muitos mundos.

Era um alívio ser capaz de entender uma pergunta e dar uma resposta racional. Aquelas pessoas eram mesmo estranhas. Mas o que mais ela podia esperar? Não sabiam praticamente nada a seu respeito, exceto que seu pai era Lewis Alton e que ela era a herdeira legal de um Domínio. Claro que não acreditariam que ela não queria a propriedade... pois não condizia com a experiência de todos ali.

Margaret podia ouvir duas vozes no vestíbulo, a de Julian e a de uma mulher. Tentou não prestar atenção ao que diziam, mas não foi capaz de se conter. Começava a sentir a nuca arrepiada. Teve certeza de que a recém-chegada era alguém que queria evitar.

Julian voltou, acompanhado por uma mulher pequena, com um manto de viagem por cima do vestido escarlate, que parecia cintilar à luz do salão de jantar. Apesar da estatura reduzida, ela irradiava um ar de enorme autoridade. Correu os olhos pela sala, fixando-os em Margaret. Por um instante, os olhos das duas se encontraram. Margaret se encolheu toda.

- A leronis Istvana Ridenow, Milady - anunciou o coridom.

 

13

Margaret deu uma olhada na mulher, e o resto de seu apetite desapareceu por completo. Havia alguma coisa misteriosa na firmeza daqueles olhos cinza, uma impressão de implacável no jeito empinado dos ombros estreitos. Só a boca, larga demais para o rosto oval, oferecia uma insinuação de flexibilidade, pois havia rugas ali que falavam de um riso antigo.

Sua mente repetiu o nome da mulher - Istvana Ridenow - e Margaret começou a perceber uma ligeira semelhança com Dio, sua madrasta. Dio talvez fosse três ou quatro centímetros mais alta, mas tinha a mesma estrutura óssea. Os cabelos por cima da testa alta eram claros, prateados agora, mas com aquele tom amarelado que as louras sempre conservam. Era o mesmo padrão dos cabelos de Dio. Há muito tempo que ela não via Dio, e não tinha um retrato recente. Era bem possível que ela também estivesse agora com a cabeça branca.

Por um instante, Margaret teve uma impressão do rosto de Dio, contraído pela dor e com um cansaço profundo. Parecia velha, muito velha. Margaret sentiu que estremecia e agarrou a beira da mesa com dedos gelados.

Lady Marilla levantou-se, deixando o guardanapo cair no chão de pedra. Um sorriso genuíno abrandou suas feições afiladas, enquanto atravessava a sala para cumprimentar a recém-chegada.

- Isty! Não esperava por você antes de amanhã! Julian... pegue o casaco, e ponha outro lugar à mesa! Você deve estar exausta.

- Pare com esse estardalhaço, Mari. Sabe que nunca me canso. - A voz era profunda, um suave contralto, firme e autoritária, de uma pessoa acostumada a ser obedecida. - Lorde Ardais, Lorde Hastur.

Ela cumprimentou os homens por um breve instante, mas seus olhos focalizavam Rafaella e Margaret.

- Ah, Isty, sempre a mesma! - Marilla Aillard não parecia nem um pouco intimidada. Balançou a cabeça, como se recordasse algum incidente agradável. - Se não se sente cansada depois da viagem, devia estar. Os cavalos são muito mais cansativos do que trabalhar nas redes de transmissão.

Ela se inclinou e deu um beijo de leve no rosto da outra mulher. o gesto foi retribuído com carinho.

- Vim tão depressa quanto pude. Sua mensagem indicava que era urgente.

Istvana dava a impressão de que desconfiava que fora arrastada do lugar em que se encontrava sem um bom motivo, o que a deixaria aborrecida. Marilla mostrou-se um pouco ansiosa agora.

- E era mesmo, Isty.

Uma pena que ela tenha chegado agora, não amanhã, como eu esperava.

- Mas não é mais urgente?

Havia uma certa qualidade na voz de Istvana, uma tensão que contradizia a sua alegação de que não se sentia cansada.

- Deve julgar por si mesma - esquivou-se Marilla, a ansiedade aumentando, já não mais a grande dama como antes. - Quero lhe apresentar minhas hóspedes, Istvana.

Ela levou a recém-chegada, agora sem o manto, até a mesa, onde um criado já punha um prato limpo e talheres.

- Não me diga que continua a ser a mesma jovem volúvel que esteve em Neskaya há tantos anos, Mari.

A leronis disse as palavras gentilmente. Margaret pôde perceber a profunda afeição por trás. Também percebeu que Mikhail e Dyan faziam um esforço para não rir do comentário, as faces se avermelhando da risada reprimida. Ela não podia culpá-los nem um pouco. Volúvel era uma palavra bastante apropriada para a anfitriã. Marilla ignorou o riso contido e a crítica, apressando-se em dizer:

- Istvana, eu gostaria de lhe apresentar Domna Marguerida Alton e sua companheira, Rafaella n'ha Liriel.

Os olhos cinza estudaram as duas mulheres. Margaret sentiu que fora examinada e considerada deficiente, sem que uma única palavra fosse pronunciada. Depois, especulou se a mulher sabia quem era quem. Afinal, ela e Rafaella eram parecidas na cor dos cabelos, idade e altura, o suficiente para serem confundidas. Não... os cabelos mais curtos da Renunciante serviriam como um aviso para Istvana. Mas logo as palavras da leronis baniram a questão de sua mente. Ela fitou Margaret e disse:

- É uma honra conhecê-la, Lady Alton. É uma situação... inesperada. Esteve doente?

- A honra é minha - respondeu Margaret, a voz fria. - Ao que parece, as imunizações fornecidas pelos terráqueos não são tão eficazes quanto eles prometeram que seriam. Tive uma reação a organismos locais. Ou foi um problema da altitude.

Ela não acreditava em suas próprias palavras. Sentia-se fraca e doente, mas estava determinada a não deixar transparecer, por um instante sequer. A cabeça latejava e a boca começava a dar a impressão de que comera limalha de ferro, não uma sopa excelente e um peixe fresco.

Istvana e Marilla trocaram um olhar eloqüente. Margaret observou, e sentiu a pele arrepiar. Baixou os olhos para seu prato. O resto do peixe estava frio agora, e ela sentia a garganta quase fechada. A simples idéia de comer mais alguma coisa a fazia estremecer. o impulso para levantar da mesa e voltar para seu quarto, tão depressa quanto possível, foi enorme. Só a certeza de que carecia da força necessária para subir a escada sozinha a manteve na cadeira. Em vez de se retirar, cruzou as mãos sobre o colo e tentou se fazer invisível, a atitude que assumia com freqüência quando era pequena.

Istvana, obviamente, concluíra que comer era uma boa idéia, pois tratou de sentar à mesa. Margaret fez um esforço para não observá-la, mas a todo instante seus olhos eram atraídos para a estranha. Seu peixe inacabado foi removido, e um prato de cereais, legumes e alguma carne servido. Ela contemplou-o, horrorizada, e mordeu o lábio.

A leronis comia com delicadeza, mas sem parar, com um apetite que Margaret achou extraordinário. Onde ela punha toda aquela comida? Silêncios prolongados entremeavam os poucos acessos de conversa que pareciam definhar quase antes mesmo de começarem. A refeição foi se arrastando. Havia uma certa cautela ao redor da mesa, a descontração fácil anterior e a discussão com Mikhail banidas pela presença da recém-chegada. Era evidente que todos procuravam fingir que não havia nada de extraordinário na presença da leronis. Mas Rafaella contara o suficiente, durante a viagem, para que Margaret soubesse que era raro para as Guardiãs deixarem suas Torres, o que quer que fosse isso. Ela sabia também que a presença da mulher fora motivada por sua doença, e que naquele momento Istvana e Marilla conferenciavam, sem trocar uma só palavra em voz alta. o que também a deixava arrepiada, mas não era capaz de pensar em nada que pudesse fazer. Poucas vezes, em toda a sua vida, sentira-se tão impotente e desamparada.

Lorde Dyan, depois de um olhar da mãe, iniciou um bravo esforço para animar a conversa. Fez uma pergunta sobre cavalos a Rafaella, que respondeu. Mikhail entrou na conversa, e os três passaram a discutir algumas linhagens famosas de cavalos, Era tudo incompreensível para Margaret, mas ela sentiu-se agradecida por não contarem com sua participação. Mal conseguia respirar naquele momento, seria totalmente impossível falar. Ela revisou sua opinião anterior sobre Dyan como um jovem fraco. Sentiu Mikhail remexer-se ao seu lado. Lançou-lhe um olhar rápido. Ficou surpresa quando seus olhos se encontraram. Ele exibia uma expressão indecifrável. Margaret apressou-se em baixar os olhos para seu prato, contemplando a comida repulsiva com crescente náusea. o olhar de Mikhail fora quase de compaixão, o que ela não podia suportar. Como ele ousava? Não passava de um idiota. E, se a fitasse de novo daquele jeito, ela lhe daria um tapa!

Margaret podia sentir que sua temperatura recomeçava a subir. Bebeu água, sedenta. O pensamento de tomar vinho era abominável. Ansiava por sua cama, o silêncio em vez do barulho de talheres contra o prato. O ruído penetrava até o fundo de seu cérebro, como lascas de vidro. Se não tivesse insistido em se levantar!

Istvana Ridenow largou o guardanapo ao lado do prato e levantou-se, abruptamente. Todos se apressaram a empurrar suas cadeiras para trás, levantando ao mesmo tempo. Margaret foi lenta na reação. Percebeu que Mikhail a observava com preocupação, o que a agradou e irritou. De pé, foi dominada por uma vertigem que a fez balançar. Rafaella deu a volta à mesa com surpreendente rapidez, segurando seu cotovelo para ampará-la com firmeza. Depois, a Renunciante lançou um olhar furioso e acusador para todos. Margaret sentiu que a força e a lealdade da mulher envolviam-na como um cobertor quente.

- Pode usar minha sala de estar, Istvana - sugeriu Lady Marilla. -Não mudou muito desde a sua última visita.

Margaret olhou de Istvana para Marilla, constatando que ambas mantinham expressões neutras. Tinha certeza de que conversavam entre si sem que os outros ouvissem... embora dissesse a si mesma que isso era impossível. Não captou nenhuma indicação, pelo que sentia-se grata. Deveria ficar contente por não ouvir a conversa entre as duas, não é mesmo? Podia agora escapar para seu quarto e se meter na cama. E assim que estivesse recuperada, voltaria para Thendara e... a cabeça doía demais para pensar além disso. Mas sua esperança foi logo frustrada.

- Domna, se quiser me acompanhar - disse Istvana, calmamente -poderemos tentar descobrir a causa de sua doença.

- Eu disse que era apenas...

- Deve confiar em mim, chiya. Sei o que é melhor.

A leronis falou de tal maneira que não admitia discussão. Margaret não se sentia bastante forte para discordar. Por que todos pensam que sabem o que é melhor para mim? Nem sequer me conhecem direito! E pior ainda, nem eu mesma me conheço mais. Gostaria de nunca ter vindo para cá. Por que tinha de ficar doente! E quem é ela para dar ordens a todo mundo, inclusive a mim? Acho que todos têm um pouco de medo dela... sei que eu tenho. Mas por quê?

Rafaella ajudou-a a deixar o salão de jantar e atravessar o vestíbulo. Seguiram Istvana para uma sala modesta, onde um fogo crepitava na lareira. Havia ali um sofá confortável, várias poltronas, e uma armação de bordado, com um trabalho inacabado. As cores predominantes na sala eram azuis suaves e brancos cremosos. Era bastante aconchegante. Margaret teria gostado, se não se sentisse tão mal.

- Deixe-nos - murmurou Istvana para Rafaella, com uma expressão gentil. - Prometo que Marguerida estará em absoluta segurança comigo.

- Não a canse, vai domna. Só hoje é que ela saiu da cama.

A Renunciante deixou a sala, ainda relutante. Margaret arriou num sofá, exausta pela curta caminhada. Mas que mulher intrometida! Se ela fizer mal a Marguerida, eu vou... o pensamento não foi concluído, pois Rafaella não foi capaz de decidir o que faria. Margaret sentiu-se sozinha e assustada sem a presença de sua companheira.

Istvana Ridenow sentou na sua frente e ajeitou as dobras da túnica no colo. o silêncio entre as duas só foi rompido, quando um criado trouxe uma bandeja com um bule de chá, xícaras e uma garrafa delgada, com o que parecia ser um licor. Era de um azul surpreendente... ou então era essa a cor do vidro. Margaret olhou para a garrafa com uma certa cautela. Não queria ingerir nenhuma bebida alcoólica.

- Confesso que nunca imaginei que encontraria a filha de Lew Alton quando vim para cá - disse Istvana, servindo chá numa xícara e estendendo para Margaret.

Ela aceitou o chá porque sentia uma tremenda sede.

- Você e todas as outras pessoas que encontrei aqui. - A voz de Margaret era brusca. - Desde que desembarquei da espaçonave, as pessoas têm feito reverências para mim, oferecido vestidos de baile e... não sei o que mais. Tem sido desconcertante... e não gosto de me sentir confusa!

- O que me parece bastante razoável - respondeu a leronis, com uma surpreendente suavidade. - Não conheço ninguém que goste de ficar confusa. Talvez eu possa responder a algumas de suas perguntas.

- Aqui vai a primeira - declarou Margaret, amargurada. - Ninguém em Darkover parece disposto a me dar uma resposta objetiva para uma pergunta simples... apenas falam em termos vagos e dizem que é melhor não discutir "essas coisas". Ou presumem que já sei de tudo, ou me dizem que são meus parentes. Juro que tenho vontade de gritar de raiva, só que minha garganta não deixa. Sou mesmo parenta de todas as pessoas em Darkover?

Istvana soltou uma risada.

- Essencialmente, é isso mesmo. É relacionada pelo sangue ou casamento com todas as famílias dos Domínios, que no seu caso é o que conta.

- Não conta para mim - protestou Margaret. - Prefiro Rafaella a qualquer desses "novos parentes", se quer saber a verdade.

- Entendo. Então provavelmente não devo lhe dizer que Diotima Ridenow é minha sobrinha, não é?

Havia um brilho jovial nos olhos da velha. Um pouco da tensão de Margaret se dissipou.

- Nem precisava dizer... parece muito com ela. E tem o mesmo sobrenome. Isso faz com que seja minha tia adotiva?

- Claro. Espero que não se importe demais.

A voz de Istvana era irônica, mas não indelicada.

- Não faria qualquer diferença se eu me importasse. Voltarei a Thendara, assim que puder montar num cavalo, e de lá seguirei para a universidade, que é o meu lugar.

- Marguerida, o que você sabe sobre os Dons dos Domínios?

- Sei que falam muito a respeito... embora eu ainda permaneça em dúvida sobre sua existência. Lorde Regis Hastur e meu tio Rafe Scott referiram-se ao Dom de Alton. Tio Rafe disse que era o "contato forçado". Mas nenhum dos dois se deu ao trabalho de explicar.

Também não lhes dei uma oportunidade de explicar, tenho de admitir. Tive medo de ouvir o que eles podiam dizer, e aquela... pessoa em mim... Não devo pensara respeito! Tenho de me manter apartada! Isso mesmo, é o que devo fazer!

Margaret sentiu que precisava impedir de alguma forma que a conversa se tornasse séria demais. Agora que tinha a oportunidade de ouvir as respostas para muitas de suas perguntas, descobria que não queria conhecê-las. Podia sentir que havia algum perigo para ela, que o conhecimento a transformaria de tal maneira que não a agradaria nem um pouco!

- Os Dons são talentos mentais que refinamos ao longo dos séculos. O Dom de Ridenow é o da empatia. Por isso, tenho uma idéia de como você se sente neste momento. Não posso evitar. Portanto, não pense que estou me intrometendo, por favor. Um dos problemas numa sociedade telepática é o da privacidade. Tentamos ao máximo não meter o nariz onde não devemos.

Uma sociedade telepática? Como aquela mulher podia dizer tal coisa como se fosse corriqueira e simples? Empatia? Dio tinha muita, embora Margaret tivesse dúvidas se chamaria isso de dom. Compreendia agora que Dio tentara ajudá-la, fazer contato com ela, mas vivia furiosa, não é mesmo? E fria. Ela especulou como seria sentir empatia junto de uma adolescente revoltada. Concluiu que devia ser horrível. Teve vontade de chorar pelo passado, mas se conteve. Istvana esperou paciente que Margaret falasse. Se ouviu os pensamentos que passou pela mente da jovem, não deixou transparecer.

- Acho que já tinha chegado a essa conclusão, mesmo não acreditando. Descubro-me a "ouvir" fragmentos dos pensamentos de pessoas. Pensei que estava enlouquecendo. E parece que não consigo evitar.

- Isso acontecia antes de sua vinda para Darkover?

- De vez em quando, mas não tanto quanto agora. E sempre disse a mim mesma que era apenas a imaginação.

- E Lew nunca lhe falou sobre os Dons? Margaret esvaziou sua xícara.

- Esse é outro problema. Todo mundo parece presumir que meu pai me contou uma porção de coisas... mas ele nunca me disse nada! Quase não nos falávamos, muito menos tínhamos conversas íntimas, mentais ou não. Tentávamos nos manter à distância um do outro, quando ele estava em casa.

- Você devia se sentir muito solitária.

Margaret ficou irritada. Não suportava que sentissem compaixão por ela! Mas aspirou o ar bem fundo, para os pulmões doloridos, e disse a si mesma para não se transtornar. Aquela mulher queria ajudá-la, não é mesmo?

- Nem tanto. Aprendi a não me sentir solitária quase antes mesmo de andar. No orfanato. E, com toda a sinceridade, não posso dizer que tenha sido uma coisa ruim. Tudo o que me aconteceu quando era pequena... os fatos sobre os quais ninguém quer falar... deixaram-me desconfiada.

Eu procuro me manter isolada e sou muito boa nisso!

- Posso sentir essa atitude. Mas só porque é cautelosa com as pessoas não significa que goste de ficar sozinha. Portanto, já sabe que o Dom de Alton é o contato forçado. Mas entende o que isso representa?

- A capacidade de fazer contato com as pessoas quer elas queiram ou não? Não é um Dom. Prefiro chamar de maldição... e me sinto contente por não tê-lo.

- Sem controle, pode mesmo ser uma maldição. Aprendemos ao longo dos anos que esses talentos... todos os talentos... devem ser treinados. Seu pai foi relapso ao não lhe ensinar...

- Não tenho nenhum Dom! - gritou Margaret para a leronis, observando-a recuar como se tivesse sido agredida. - Não quero saber o que as pessoas estão pensando ou sentindo. Quero apenas sair deste maldito planeta, ir para algum lugar onde não tenha parentes que querem...

- Já foi despertado, chiya. Você não pode mais voltar atrás. Ou aprende a usar seu Dom, ou vai mesmo enlouquecer. Devemos testá-la, para determinar a força de seu talento. Mas não pode se esquivar. É tarde demais.

- Você não pode saber disso! Margaret sentia que o desespero a sufocava.

- Posso, sim. Sinto o Dom de Alton em você neste momento, por mais fraca que esteja do pior acesso da doença do limiar que já encontrei. Em geral acontece quando a pessoa é mais jovem, no início da adolescência. Lembra de algo parecido quando era adolescente?

- Não. Fui uma criança absolutamente normal e nunca... Quando eu era pequena, aconteceu alguma coisa. Não consigo lembrar.

Ela me disse para não lembrar!

Quem disse a você para não lembrar, Marguerida?

o diálogo mental acabou num instante. Margaret sentiu uma pontada de dor por cima das sobrancelhas. Piscou os olhos, tentando contê-la. A respiração saía em ofegos curtos, como se estivesse correndo, sentia-se quente e suada. Estava apavorada, não com a mulher à sua frente, mas com outra coisa.

Istvana Ridenow pegou uma pequena bolsa, suspensa por um cordão. Margaret olhou e se encolheu toda. A mão que via era pequena, de criança, estendendo-se para outra bolsa de seda, como aquela. Ouviu uma voz lhe dizendo para não tocá-la. Sabia que havia algo na bolsa que era mais perigoso para ela do que veneno.

A leronis tirou uma pedra brilhante de sua bolsa. Era azul e facetada, refletia as chamas dançando na lareira em suas superfícies reluzentes. Istvana segurou-a nas mãos em concha. As chamas refletidas tingiram seu rosto com uma tonalidade alaranjada. Margaret baixou os olhos para seu colo e cerrou as mãos, cravando as unhas nas palmas com tanta força que a pele foi rasgada.

- Não tenha medo, chiya. Olhe para o cristal. Não tente tocá-lo... apenas olhe.

A voz de Istvana era baixa e compulsiva, mas Margaret recusou-se a fazer qualquer movimento. Continuou a olhar para suas mãos, observando um filete de sangue escorrer debaixo das unhas, enquanto o crânio latejava como se todos os tambores do demônio de Algol estivessem ressoando ao mesmo tempo. Concentrou sua atenção de tal maneira que só via e pensava nas unhas cravadas nas palmas.

Momentos passaram. Margaret podia ouvir o crepitar na lareira, o tamborilar da chuva contra as janelas, o murmúrio das árvores além. Sentia o cheiro do fogo, as roupas contra sua pele, as pedras antigas do Castelo de Ardais, e o tênue perfume da mulher sentada à sua frente, esperando com uma infinita paciência que ela olhasse para o cristal.

Margaret tentou não pensar no cristal, concentrando-se nas notas de uma música bastante complexa. Apesar dos seus esforços, descobriu que sua mente se deslocava para uma câmara fria, com um trono entre as cores cristalinas das paredes. A terrível presença no trono esperava. E de repente inclinou-se para ela, com mãos quase visíveis... mãos pequenas, mas assustadoras. Vai se manter apartada!

Ela sentiu a voz ecoar por seus ossos, mais do que ouviu-a. Era como um choque de quartzo e metal... um som tão poderoso que teve vontade de fugir. Mas não podia... estava dentro dela! Se ao menos pudesse parar de ver aquela câmara em sua mente! Se ao menos pudesse escapar à voz que ressoava em sua carne! Mas era tarde demais!

- Guarde essa pedra antes que eu a destrua... e você junto com ela! Margaret disse as palavras em voz alta. Só que não foi a sua própria voz que deu a ordem, mas a de outra pessoa.

Ela também sentiu uma mudança, uma súbita alteração na sala. o fogo era o mesmo, assim como a chuva e as árvores, mas a energia ao seu redor estava agora impregnada de força, como se uma torre de pedra tivesse surgido em torno da leronis. A sensação de Margaret foi a de que se encontrava acuada entre duas forças, iguais em poder, batalhando pela posse de seu corpo dolorido.

- Parem com isso! Não serei um osso disputado entre dois cachorros!

Era sua própria voz agora, mas tênue, como a de uma criança, estridente. Mesmo assim, possuía uma estranha potência. A pressão em seu peito abrandou um pouco. Ela engoliu em seco, respirou trêmula, o mais fundo que conseguia. o ar parecia queimar seus pulmões.

- Acho melhor você guardar essa pedra, porque vou espatifá-la se olhar para ela.

A Margaret criança desaparecera agora, substituída pela voz que ela usava quando falava com alunos na universidade. Estava acostumada a essa voz, era a que melhor conhecia. Experimentou um tremendo alívio ao som de sua voz normal, que não era de uma estranha, nem de uma criança pequena. Ouviu um farfalhar de pano à sua frente.

- Já escondi minha matriz, Marguerida. Agora, por favor, olhe para mim. Diga-me, se puder, o que sentiu e viu... e quem falou através de sua boca.

- Não sei.

Margaret estendeu a mão trêmula para a xícara de chá. Olhou aturdida para as profundezas vazias, depois serviu-se de mais. Tomou um gole, antes de voltar a falar:

- Ou melhor, sei, mas não sou capaz de dizer.

Ela sentiu que liberava alguma coisa, uma espécie de tensão que sempre carregara, mas estava cansada demais para dispensar qualquer atenção.

- Sempre soube?

- De certa forma, sim. Era meio nebuloso, como um sonho, mas se tornou um pouco mais nítido durante a minha doença. - Margaret franziu o rosto. - Acho que Dio sabe... pois alguma coisa em mim a perturbava, quando eu era pequena. Ela contou a meu pai, e lembro que ele fez um comentário sobre meus "canais", o que quer que isso seja. Quando eu tinha febre, ouvia-os conversando muito... em minha imaginação, eu acho. Não consigo lembrar quase nada agora, mas algo me aconteceu depois que deixamos Darkover.

Parte de Margaret não queria falar, mas outra parte era compelida a descobrir os segredos ocultos em sua mente, qualquer que fosse o custo. Istvana Ridenow não seria a pessoa que ela escolheria para revelar seus segredos, mas um sentimento profundo confiava naquela mulher tão pequena... e Margaret sabia que não teria melhor oportunidade do que aquela. o ponto de tensão em seu íntimo cedeu mais um pouco. Ela decidiu que finalmente tomaria uma iniciativa. Descobrira que não se importava nem um pouco com Dons ou Domínios, mas queria saber qual era o segredo enterrado dentro dela. Era a coisa mais importante do mundo naquele instante.

- Seu pai sabia que havia uma interferência em seus canais, e não fez nada?

Istvana mostrava-se furiosa agora, indignada de tal maneira que animou Margaret, fazendo com que se sentisse protegida por um momento.

- Ele achava que eu me livraria de tudo ao crescer.

- Então Lew é um tolo maior do que eu pensava! Ninguém se livra de algo assim naturalmente. É preciso cuidar, reparar. - Istvana fez uma pausa. - Acho que a melhor providência seria a sua ida para Neskaya comigo, por algum tempo.

Margaret captou a imagem de uma torre de pedra alta, brilhando contra a noite. Lá dentro havia pessoas se movimentando de um lado para outro. Ela divisou cristais em séries, as muitas facetas faiscando. Começou a tremer violentamente. Era outra sala como a que já conhecia, uma armadilha de cristal. A mão tremeu, derramando o chá sobre os cortes nas palmas, o que a fez soltar um grito de dor.

Não! Não me obrigue a voltar para dentro do espelho! Não quero morrer ali!

Istvana recuou, como se tivesse levado um tapa na cara. Esfregou a testa e flexionou os ombros estreitos, como se quisesse se desvencilhar de algum fardo.

- Pode me falar sobre o espelho, Marguerida? - perguntou a leronis, depois de um longo momento.

- Espelho? - Margaret olhou ao redor, aturdida. Largou a xícara e limpou a mão na saia, manchando de chá e sangue o tecido castanho avermelhado. - Não há nenhum espelho aqui, não é?

- Não, não há. Mas há um lugar em sua mente, um lugar cheio de espelhos ou cristais, um lugar que a deixa apavorada. Não é isso mesmo?

- É, sim.

- E minha matriz de cristal lembrou-a desse lugar?

- Acho que sim.

Margaret sentia-se cansada. Por que não podiam deixá-la em paz? Porque você é uma ameaça para si mesma e para todos os outros, até que essa questão seja resolvida. Era uma advertência firme, mas gentil.

- Pode contar o que lembra? Pare quando se sentir ameaçada.

- Eu me sinto ameaçada durante todo o tempo. Mas há palavras, palavras específicas, que são piores. Na maioria das vezes, não consigo lembrar as palavras. Só posso contorná-las, como se fossem barreiras. Rafaella fez um comentário hoje, sobre alguma Rebelião, e desencadeou alguma coisa em mim. Por um instante, quase me lembrei, mas depois... ela me fez parar. Não Rafaella, mas alguém em minha mente. E muito frio no espelho, frio demais...

- Você possui uma mente poderosa, Marguerida, pelo que podemos ser gratas. Se fosse menos poderosa, já teria enlouquecido há muito tempo. Mas essa própria força a está prejudicando agora. Precisamos encontrar meios de ajudá-la a se curar. O que Rafaella disse exatamente?

- Não lembro direito. Era alguma coisa sobre os Ardais... Dyan apareceu e falou comigo quando eu estava na cama, o que deixou Rafaella furiosa. Acho que a mãe quer que ele case comigo, ou algo parecido. E, assim que Dyan se retirou, ela disse que todo o Comyn era cauteloso com os Ardais, desde a Rebelião... e depois acrescentou que era melhor não falar a respeito.

- Ótimo! - Istvana parecia muito satisfeita. - Já desconfiava que ela se referia à Rebelião de Sharra, mas agora tenho certeza. Eu era jovem naquele tempo, mas tinha idade suficiente para ouvir o que se dizia. Foi uma época terrível para Darkover. Mas eu não sabia que você esteve envolvida... não podia ter mais do que quatro anos na ocasião.

- Tinha cinco, quase seis, eu acho, quando deixamos Darkover. Depende do calendário que é usado.

Alguma coisa se debatia nas profundezas da mente de Margaret, tão terrível que ela não queria saber o que era. Sharra matou minha mãe e o homem prateado. Por que ela nunca me amou? Por que me mandou para o orfanato?

- É verdade, chiya, sua mãe morreu ao final da Rebelião. - Istvana falou com tristeza. Fez um esforço para se concentrar, ergueu os ombros, decidida. - Quando falei a palavra "Sharra", seu corpo reagiu, como está acontecendo agora. E quando pensou a respeito, um momento atrás, todos os músculos de sua garganta se contraíram. Pude sentir que sua voz era sufocada. E posso lhe garantir que sentir um estrangulamento não é nada agradável para uma pessoa que tem empatia!

Istvana enxugou o suor da testa com a manga. Margaret percebeu que as duas suavam, embora a sala não estivesse tão quente assim. Era um gesto normal, simples e humano. Acho que os telepatas não são superpessoas, se ainda são capazes de suar. Era um pensamento confortador... e naquele momento ela precisava de todo o conforto que pudesse encontrar.

E de repente ela teve consciência de que esse pensamento fora quase gritado. Estremeceu no desconforto. Podia sentir agora a diferença entre a conversa interminável da mente consigo mesma e os pensamentos que de alguma forma eram comunicados àquelas pessoas. Como podiam suportar?

- Desculpe. Não queria pensar tão alto. A mulher mais velha soltou uma risada.

- Com o Dom de Alton, você não pode realmente evitar. E para ser franca, faz um bom trabalho de limitar suas transmissões, para uma telepata destreinada. Tem certeza de que seu pai nunca lhe disse como se comportar?

- Quando eu era bem pequena e me intrometia na intimidade deles, acho que me disseram para não fazer isso. Dio até se queixou que eu... sabe como é, quando eles faziam amor...

Margaret descobriu que suas faces ardiam em constrangimento. Havia alguma coisa sutilmente virginal em Istvana Ridenow, e ela teve certeza de que violara um tabu desconhecido.

- A energia da paixão, chiya, é para um telepata como o néctar para uma abelha. Ainda mais quando as pessoas se amam. Mas deixe-me ver se entendi direito. Tinha cinco anos quando deixaram Darkover, mas já podia "ouvir" os pensamentos das pessoas ao seu redor. E, mais tarde, perdeu de alguma forma essa capacidade?

- Foi mais ou menos o que aconteceu. o Senador achou que talvez fosse por causa das drogas da viagem espacial... ele é alérgico, como eu também.

- Uma explicação superficial - comentou Istvana, secamente. - É típico de um homem pensar que foi uma causa simples, sem examinar todos os fatos.

- Creio que ele sofria muito ao se lembrar, vai domna.

- Tenho certeza de que sim, mas não é desculpa para não usar o cérebro. Seu pai é um grande homem, serviu muito bem a Darkover no Senado Imperial, mas isso não altera o fato lamentável de que nunca teve a sensatez de pensar antes de agir nas questões pessoais. Eu o repreenderia com o maior prazer, se pudesse alcançá-lo.

- Dio disse a mesma coisa muitas vezes. Ele é irritante, não é mesmo? Sempre pensei que era apenas comigo, que fiz alguma coisa para torná-lo... como ele é.

- Lewis Alton já era um homem perturbado antes mesmo de você nascer, Marguerida. Jamais o encontrei pessoalmente, mas sabia o que ele fazia. A família não ficou muito satisfeita, quando Diotima decidiu casar com ele, mas ela sempre seguiu seu coração. Ela tem sido feliz?

Margaret descobriu que seus olhos se enchiam de lágrimas.

- Não sei. Só posso dizer que ela tenta ser, mas não sei se alguém pode ser feliz com meu pai. Sempre desejei que eles fossem felizes. Havia algumas famílias em Thetis, nossos vizinhos, que eu visitava sempre que meus pais deixavam o planeta. Eles pareciam tão... serenos, suponho que é a palavra correta. Aqueles pessoas eram muito gentis comigo, e muitas vezes desejei que o Senador e Dio pudessem ser assim.

- Nunca o chama pelo nome?

- Raramente. E preciso conhecer a pessoa para fazer isso. Não conheço meu pai... jamais conheci.

- Creio que você o conhece melhor do que imagina... talvez melhor do que qualquer outra pessoa, mas não gosta do que sabe.

- E possível - murmurou Margaret, sentindo a exaustão dominar seu corpo.

Havia algo mais do que cansaço, porém, um certo conforto e alívio. Ela pensou por um momento e compreendeu que Istvana gentilmente removia suas defesas, que sua gentileza, compreensão e semelhança com Dio eram tranqüilizantes e bastante agradáveis. Começava a confiar na leronis... o que era assustador.

Confiava em Ivor, mas ele morreu!

- Sei como é isso - murmurou Istvana.

- O quê?

- Confiar em alguém, para depois ver a pessoa morrer. Meu pai, Kester Ridenow, está morto há quase vinte anos, mas às vezes ainda me sinto furiosa por ele ter me deixado. E nem sequer foi culpa sua... ele foi assassinado. Mas ainda penso, quando fico deprimida, que ele poderia ter evitado.

Margaret desatou a rir. Mas logo voltou a ficar séria.

- Estou sendo difícil? Sei que veio de muito longe para me ver, mas tenho a sensação de que não estou sendo muito cooperativa. Tanta coisa aconteceu desde que cheguei aqui que me sinto perdida... e, quando me sinto perdida, fico muito teimosa. É como se estivesse num piquenique. Começa a chover. Sento numa pedra, e me recuso a sair dali, até o sol voltar a brilhar. Deixo de me importar se vou ficar encharcada, se corro o risco de pegar uma pneumonia... Não me mexo até que tudo volte a ser como quero.

Istvana sorriu e balançou a cabeça.

- Não está sendo difícil, mas ergueu uma defesa muito forte. Controlou seus talentos da melhor forma possível, ao se tornar voluntariosa e determinada. É uma boa qualidade, mas também pode ser prejudicial. Uma fortaleza só é útil quando você pode deixá-la no momento em que quiser. E as barreiras não são suas, mas originárias daquele lugar com todos os espelhos que tenta não lembrar.

- O que posso fazer então? Queria me levar para a tal Torre, mas acho que seria um erro.

Margaret estremeceu. A idéia de ser trancada em qualquer lugar era insuportável... e havia alguma coisa numa torre que a fazia pensar numa prisão.

- Agora que sei mais a seu respeito, tenho de concordar. Seria prejudicial... e ainda por cima perigoso.

- Perigoso?

- Não perigoso para você, mas para os outros. E uma situação muito difícil. Não posso permitir que você vagueie por Darkover meio desperta, uma telepata destreinada, porque isso seria uma irresponsabilidade. Deixar Darkover também não resolveria o problema. Mas, se acha que pode confiar em mim, talvez consigamos libertá-la dessa sala que tanto teme.

- Sem cristais!

Margaret ainda podia sentir a pedra oculta por trás da roupa de Istvana.

- Está certo, sem matrizes. o que aconteceu com você fez com que se tornasse muito sensível a espelhos, vidros e matrizes. Acredito... e é apenas um palpite, mas acho muito possível... que foi acuada dentro de uma matriz, embora não tenha a menor idéia de como isso pode ser feito. As armadilhas de matriz não são desconhecidas em nossa história, mas há décadas que ninguém as usa. - Istvana fez uma careta, como se farejasse alguma coisa fétida. - Confesso que estou tateando neste caso. Nunca vi ninguém reagir como você a uma matriz.

- Pode me explicar o que são?

Istvana fitou-a em silêncio por um longo momento.

- Descobrimos ao longo de muitos anos que podemos usar certos cristais para focalizar a mente, a fim de aumentar os talentos natos e ampliar o alcance dos Dons. A matriz não é uma necessidade absoluta, mas é extremamente útil. A matriz é um instrumento, e cada uma é sintonizada para uma única pessoa.

Margaret não sabia o que deduzir daquela explicação, mas aceitou-a para o momento. Na verdade, era mais fácil acreditar em cristais do que aceitar a telepatia. Só que a idéia de telepatia podia apavorá-la, mas não deixava sua pele toda arrepiada como acontecera com a matriz de Istvana.

- O que posso fazer então... se não posso ir para uma Torre sem causar problemas, e você não pode usar a matriz sem... sem que a coisa em mim se manifeste? Cruzar os braços e esperar que o próximo episódio da doença do limiar acabe comigo? Não quero me iludir nesse ponto... houve duas ou três ocasiões na semana passada em que quase morri, além de outras em que desejei morrer.

Istvana contraiu os lábios, considerando algo que obviamente não lhe agradava. Olhou para o líquido azul na garrafa na bandeja.

- Temos outros recursos. Ao longo dos séculos, desenvolvemos certas substâncias que ajudam a reduzir as barreiras mentais. Há riscos, mas não posso pensar em qualquer outro meio de descobrir o que bloqueia seu Dom. Estaria disposta a tentar?

- Usar drogas? - Margaret franziu o rosto. - Experimentei algumas em meu primeiro ano na universidade, e não foi nada agradável. Tive visões, eu acho, que me fizeram sentir muito... vulnerável. Não tenho pensado a respeito há muitos anos, mas creio agora que talvez tenha lembrado o que não deveria lembrar quando as tomei. Nunca mais tornei a experimentar qualquer droga.

- É uma jovem muito sensata.

Por mais desesperadamente que precisasse da aprovação de Istvana, Margaret não podia concordar.

- Sou mesmo? Não me sinto nem um pouco sensata, apenas obstinada e um tanto estúpida.

- Nunca correspondemos a nossos padrões impossíveis, não é mesmo? Proponho que você tenha uma boa noite de descanso. Pela manhã, usaremos um pouco de kirian para descobrir se não podemos desobstruir alguns de seus canais.

Parecia muito simples e prático. Mas Margaret podia sentir a tensão na outra mulher, e concluiu que devia ser bem mais complexo do que imaginava. Pensou a respeito por um longo momento.

- Tenho medo de esperar. Tenho medo de ficar presa dentro do espelho se for dormir. Essa parte minha... a parte que falou antes, a que ameaçou você... está muito mais próxima do que antes, como se pudesse saltar e me devorar a qualquer instante. Posso mantê-la silenciosa enquanto estou consciente, mas não sei se serei capaz de controlá-la se voltar a dormir.

- É uma mulher muito corajosa, Marguerida Alton. Em outra época, teriam feito canções sobre você, que seriam cantadas ao longo das gerações.

- Corajosa? - Margaret soltou uma risada nervosa. - Só quero acabar logo com isso, para poder continuar em minha vida.

Ela pensou nas baladas que ouvira e se perguntou se realmente valia uma canção.

- Você é filha de seu pai, sem dúvida. Muito bem. Vamos experimentar o kirian, uma pequena dose, e ver o que acontece. Espere um instante. - Istvana fechou os olhos e recostou-se na cadeira. - Pronto. Pedi a Marilla para monitorar... era muito boa nisso quando trabalhava na Torre... e ela concordou.

Margaret olhou para a porta, esperando que Lady Marilla entrasse na sala. Como isso não acontecesse, ela fitou Istvana Ridenow, o rosto franzido.

- Onde ela está?

- Na sala ao lado. Sua presença física não é necessária. Achei que seria melhor se permanecêssemos a sós.

- Obrigada. É muito gentil.

- Talvez.

Istvana inclinou-se para a frente e pegou a garrafa na bandeja de chá. Despejou uma quantidade mínima numa taça, tão pequena que parecia um brinquedo de criança. o líquido era de um azul extraordinário, com um perfume que se espalhou pela sala, misturando-se com os cheiros do fogo e da chuva. Ela estendeu a taça para Margaret.

- Agora, tente controlar sua mente, expulsando os medos. Respire devagar e fundo. Quando se sentir calma, pode beber. Não se apresse.

- O que é isto?

- É a destilação de uma planta. Usamos há gerações para suspender o controle da mente consciente.

- É exatamente o que quero evitar.

Margaret sentiu que seus medos afloravam. Tratou de repeli-los, da melhor forma que podia. Sua vontade era como um caniço delgado, uma coisa frágil que podia se partir com um sopro.

- Ora, vamos lá. Quem não arrisca não petisca. - Ela falou com mais confiança do que sentia. - O que vai acontecer?

- Não posso prever com precisão... cada pessoa tem uma reação diferente. Com a dose que lhe dei, você deve entrar num transe leve. Pode ver lugares estranhos, mas estará segura. Será como sonhar acordada.

Segura? Parecia maravilhoso, mas Margaret duvidava que seria assim. Ela respirou devagar várias vezes, um tanto superficial.

- Muito bem. Já tomei várias substâncias químicas. Portanto, sei o que esperar.

Ela fechou os olhos e tentou pensar em algo tranqüilizador. o crepitar do fogo perturbava-a. Tentou excluí-lo de sua mente. Parte de Margaret queria descobrir por que o som do fogo a incomodava, mas ela silenciou a pergunta antes que aflorasse. O ruído da chuva contra as paredes de pedra do Castelo de Ardais era agradável. Ela ficou prestando atenção, enquanto começava a respirar mais profundamente. Imaginou que se aprontava para cantar, em vez de se preparar para qualquer coisa alarmante. Sentiu-se um pouco tonta a princípio. Compreendeu como sua respiração era superficial antes. A garganta se abriu, relaxando. Ela pensou na letra de uma doce serenata que Ivor muito apreciava. Era um pensamento seguro e familiar.

Depois de algum tempo, os músculos do corpo relaxaram. Sua mente focalizou o som da chuva e a música que o acompanhava. Havia uma linguagem na chuva... não, ela não devia se permitir qualquer distração. Com um tremendo esforço, levou a pequena taça à boca e bebeu. O gosto era de flores e sol.

O tempo se tornou mais lento, os momentos se prolongavam por uma eternidade, de tal forma que ela podia ouvir cada gota de chuva que caía. Desceu por um corredor, cada passo mais lento do que o anterior, passando por portas, até alcançar uma escada que subia e subia em curvas. Ficou parada ao pé da escada por um longo tempo, sem se mexer, depois ergueu um pé para as pedras antigas.

Um degrau, outro em seguida, e logo ela subia correndo, sem que os pés tocassem em qualquer coisa. Ela estava voando, e era maravilhoso. Não queria parar, mas alguma coisa a continha, gentilmente, com extrema ternura, como se sua mão fosse envolvida por um aperto afetuoso. Olhou para baixo e viu outra mão, fantasma, reluzente, os dedos entrelaçados com os seus. Um medo de que não estivera consciente, de que voaria para o nada, se desvaneceu enquanto observava a mão que segurava a sua.

E de repente ela se descobriu numa planície indefinida, uma vasta extensão de vazio ao seu redor. Parou. Parecia se encontrar numa plataforma invisível, de onde podia divisar todos os lados. Fazia frio. Ela começou a tremer, mas logo um calor espalhou-se por seu corpo. Tornou a olhar ao redor. A planície não estava vazia, como pensara a princípio, mas repleta de estruturas feitas coma luz das estrelas, faróis na noite.

Uma em particular atraiu sua atenção. Era antiga, as pedras estreladas que a compunham já se esfarelavam, a argamassa mal conseguia mantê-las juntas. Apesar de sua aparência de decadência, transbordava de energia e poder. Ao mesmo tempo a atraía e assustava. Ela se obrigou a permanecer imóvel, embora ansiasse por correr na sua direção. Havia uma presença naquela Torre que ela podia sentir, antiga e fraca, mas ainda bastante forte para ameaçá-la. E, como se soubesse de sua atenção, parecia brilhar ainda mais. As pedras foram se tornando mais densas, a argamassa mais espessa.

- Venha!

A ordem ressoou em sua mente, firme e peremptória. Ela se intimidou ao ouvi-la, resistindo e lutando para continuar onde estava. Mas o prédio distante começou a se aproximar, as pedras faiscando com uma luz fantástica, que doía em seus olhos. Eram como espelhos! Ela sentiu o coração vacilar, a garganta quase fechar. Mais e mais perto, a Torre projetava-se para ela através das extensões ilimitadas de tempo e espaço.

E de repente a Torre se encontrava ao seu lado, assomando por cima, arrastando-a para as pedras brilhantes. 0 poder da Torre pulsava em seu sangue, parando seu coração e sufocando a respiração, pelo que pareceu uma eternidade. Seria toda consumida! Era tão pequena e a Torre tão grande!

Ela sentiu sua mão direita ser apertada com mais firmeza. O terror diminuiu por um momento. Teve de recorrer a toda a sua vontade obstinada para permanecer imóvel. Sentia os maxilares se contraírem no esforço. A Torre começou a se inclinar para ela, movimentando-se como uma serpente.

- Venha!

- Não! - A sensação foi de levar uma eternidade para pronunciar a recusa, e foi a voz de uma criança que falou. Para seu espanto, a Torre parou. - Você não existe!

- Olhe para o espelho, Marja!

As pedras da Torre refletiam-se em seus olhos. Podia se ver mil vezes. Tantas Marjas fitavam-na que se sentiu perdida entre elas. Desejou poder fechar os olhos, excluir a multiplicação interminável de sua imagem. Devia haver outra coisa para olhar que não ela própria!

O que era aquela Torre? E quem ou o que a ocupava? Era muito antiga, e talvez tivesse existido antes de qualquer outra coisa naquele estranho reino. Ela seria capaz de jurar que podia sentir a idade daquelas pedras. Sabia que possuíam alguma coisa que proporcionava poder à voz que tentava comandá-la. o segredo está nas pedras, sussurrou algo em sua mente, alguém que se esgueirara para o seu lado, como um camundongo.

Desapareceu antes que ela pudesse pensar a respeito, tão depressa que quase acreditou que imaginara o sussurro. Podia sentir o pânico se avolumar em uma parte sua, uma calma fria dominando a outra, como se estivesse separada em duas pessoas. Aparte apavorada parecia prestes a prevalecer. Era com dificuldade que ela a mantinha sob controle. A outra parte, a fria, procurava frenética por alguma pista entre as pedras.

Quando finalmente encontrou a única pedra que não mostrava seu rosto nas facetas, ficou atônita, mais assustada do que acreditava que seria possível. Um semblante brilhava em sua superfície, um rosto pequeno, redondo como a lua, com olhos que pareciam poços vazios. Exceto pelos olhos, não havia nada de extraordinário ou mesmo assustador naquele rosto. Mas Margaret ainda sentia o impulso de gritar de medo. Tentou desviar os olhos do rosto, dos cabelos avermelhados ao redor, da pequena boca que lhe sorria. Não havia nada de afeição ou humano naquele sorriso. Ela estendeu as mãos pequenas para Margaret... mãos que eram como garras.

- Agora eu tenho você! Agora eu viverei de novo!

- Viver de novo? O que é você?

- Sou Ashara, e previ sua vinda. Não pode me destruir. Eu voltarei, e recuperarei meu poder!

A fome nessas palavras parecia corroer os próprios ossos, enquanto os olhos cinza e vazios se tornavam cada vez maiores.

- Largue-me!

Margaret deu um puxão para se soltar, para se afastar daqueles olhos, como espelhos escuros, que tentavam aprisioná-la. Sentiu que as garras deixavam seus braços. Sua imagem no resto das pedras encolheu. A coisa chamada Ashara tornou-se menos distinta, menos presente, enquanto ela se inclinava para trás, em sua tentativa de escapar. o segredo estava nas pedras e nos olhos! Se ao menos ela pudesse pensar em alguma coisa para fazer! Ofegava agora, um suor frio escorria pelos lados do corpo. Desviou o olhar, contemplou as outras Torres, à distância, através da planície. o tempo se tornou mais lento, quase parou. Ela não se mexeu. Podia sentir alguém pairando ao seu lado, protegendo-a, despejando força nela.

Depois, devagar, relutante, Margaret olhou mais uma vez para a Torre espelhada. Viu-se muitas vezes, pálida e trêmula. A mulher pequena fitava-a de um único espelho na Torre, os olhos cinza vorazes, as mãos agitadas, como se ela também estivesse presa nos incontáveis reflexos. Margaret ergueu as mãos para se defender. A direita foi segura num firme aperto fantasma. Com uma lentidão angustiante, ela estendeu a mão esquerda para os espelhos. Inclinou-se para a frente, na direção da Torre reluzente.

Projetou-se pelo vazio, esticou-se até sentir os dedos se fecharem em torno da única pedra que mostrava Ashara com nitidez. Ela comprimiu a palma contra o rosto, enfiando os dedos fantasmas nos olhos vazios, o polegar na boca horrível. Sentiu resistência, mas não a sensação de carne ou osso. Houve um som, um débil grito, enquanto seus dedos envolviam a pedra, apertavam com força. Nada podia sentir em sua mão, mas sabia que segurava alguma coisa, que não devia largar.

E agora? Ela não podia continuar a segurar a pedra para sempre. Estava cansada demais. Sentiu que os dedos semivisíveis começavam a afrouxar. Houve uma agitação de triunfo sob sua palma. Seu próprio rosto, pálido e suado, refletia-se ao redor, parecendo escarnecer.

Margaret recorreu a toda a sua força, ordenou que voltasse, e começou a puxar a pedra. A resistência era grande. Ela compreendeu que não poderia puxá-la sozinha. Mas estava sozinha, seria em breve devorada por aquela coisa terrível, como já acontecera com outros antes. O desespero a invadiu, minando sua energia. A pedra gritava em sua mão.

Foi nesse instante que Margaret sentiu um fluxo de poder, proveniente de algum ponto além dos limites daquele lugar. Era estranho, nada tinha a ver com a presença de Istvana. E tinha algo muito masculino. Fortaleceu seus músculos, esquentou o corpo gelado.

- Puxe! Vamos, puxe com toda força! - Ela não reconheceu a voz, mas não era a de Istvana.

Puxou a pedra em sua mão, e sentiu que cedia um pouco. o som do grito em sua mente aumentou de intensidade, enquanto arrancava a pedra da parede da Torre de espelhos. Estava apavorada com a possibilidade de soltar a pedra, determinada a evitar que isso acontecesse. Era como arrastar alguma coisa através de um líquido denso, algo tão pesado que parecia uma montanha inteira.

NÃO! NÃO!

Dor! Uma angústia explodiu em sua mão, subiu pelo braço, penetrou no peito. Apontada no coração foi tão violenta que ela teve vontade de largar. Era como uma faca gelada cortando a palma da mão, cravada no coração. A boca se arredondou num grito que pareceu sacudir a estrutura espelhada e a planície enevoada por baixo. Nesse momento a pedra em sua mão soltou, com um tremendo fluxo de energia. Margaret quase caiu para trás.

- Pare! Pare! Eu sou... A... sha... ra!

Ela continuou a cambalear para trás, até que de repente se descobriu longe da Torre espelhada, na plataforma onde emergira, agarrando a pedra com uma das mãos, enquanto a outra era segura pela mão fantasma. Sentia-se fraca e exausta, mas não ousava largar a pedra ou a mão.

- Você não existe!

As palavras saíram de seus lábios mordidos como um vendaval, enquanto a pedra queimava fria contra sua carne. Ela estava dominada pelo desespero e terror, ofegante e trêmula. Apertou a pedra entre os dedos com toda a força que lhe restava. Parecia resistir para sempre, mas depois de uma eternidade começou a ceder e se espatifar. Houve um fluxo de som e luz nesse instante. o resto da Torre reluzente foi lançado para o vazio, explodindo numa claridade que a ofuscou por um momento. E muito longe, em algum lugar que Margaret não podia determinar, outra Torre balançou em suas fundações.

Margaret afastou-se da destruição daquela estranha Torre. Começou a cair, segura apenas, com firmeza, pela mão fantasma.

- Boa menina!- trovejou a voz masculina desconhecida. E, depois, isso também desapareceu.

Ela estava de novo na sala de Lady Manila, encharcada de suor, lágrimas escorrendo pelas faces, tremendo em todos os músculos do corpo exausto. Istvana Ridenow se encontrava arriada à sua frente, mal parecendo respirar, os cabelos prateados grudados na testa.

A porta foi aberta. Lady Marilla entrou correndo, os olhos arregalados, o peito subindo e descendo depressa. Foi se inclinar sobre a leronis, com todo o cuidado para não tocá-la.

- Eu nunca deveria ter deixado que ela fizesse isso!

Marilla lançou um olhar furioso para Margaret, depois se acalmou. Margaret queria se esquivar do olhar, mas sentia-se tão cansada que mal podia se mexer, muito menos protestar sua inocência. Tinha o cérebro abalado, os pensamentos eram um turbilhão. Mesmo assim, descobriu que tinha uma centena de perguntas. Se ao menos pudesse formulá-las com a boca ressequida. .. É bem provável que elas não respondam. E quem era o homem em minha mente?

Não esta noite, chiya. Tenha um pouco mais de paciência.

- Nunca deveria ter deixado que eu fizesse o quê, Mari? - Istvana disse num fio de voz, mas ainda assim com firmeza. - Providencie alguma coisa para eu comer.

Lady Marilla olhou de uma para a outra, balançou a cabeça, e gritou:

- Julian! Acorde a cozinheira! Imediatamente!

A leronis afastou os cabelos da testa larga e respirou fundo, várias vezes, com dificuldade.

- Pelos deuses, tenho pena de qualquer um que estivesse no mundo superior esta noite.

- O que aconteceu? - balbuciou Margaret.

- Você quebrou o espelho, chiya, você quebrou o espelho... Istvana e Marilla fitavam-na, incredulidade e exaustão estampadas em seus rostos. Por quê?

Margaret baixou os olhos para suas mãos. Constatou que eram as mesmas mãos familiares que conhecera durante toda a sua vida. A palma direita ainda exibia os cortes que ela fizera ao cravar as unhas na carne, mas a esquerda estava completamente lisa, como se alguma coisa tivesse removido as marcas. Ela estendeu a mão para o fogo, a fim de examiná-la melhor... e viu, gravada na carne, os contornos de uma pedra multifacetada.

 

14

Mais tarde, Margaret nunca mais se lembrou de ter ido para a cama, por mais que tentasse. Pôde reconstituir apenas alguns fragmentos, como braços masculinos vigorosos levantando-a, embora nunca soubesse de quem eram; e vozes falando, muitas vozes, nenhuma das quais era identificável. Só tinha conhecimento de uma profunda exaustão e da sensação de ressaca sem a embriaguez anterior.

Entrava e saía da consciência normal, para um estado insone que era diferente de tudo o que já experimentara antes. Quando se encontrava "desperta", havia dor física, como se cada célula de seu corpo se rebelasse contra alguma coisa. Poderia suportar, se não fosse pelo terror. Tinha medo de alguma coisa. Não podia evitar, e também não era capaz de definir do que se tratava.

o outro estado era quase pior, pois embora a dor diminuísse, o medo era ainda maior. Margaret esforçava-se para permanecer acordada, a fim de não se afogar no terror. Quase que acolhia com satisfação a dor no corpo, porque podia focalizá-la e assim diminuir um pouco o medo.

o tempo perdeu o sentido. Nada mais restava, exceto o medo e o tormento. Havia uns poucos momentos de lucidez, quando sua mente parecia desanuviada, e o medo retrocedia. Durante esses períodos, ela sabia que tinha febres e calafrios, que se encontrava outra vez com a doença do limiar, e que as pessoas ao redor tentavam ajudá-la. Procurava cooperar, mas sempre vomitava as beberagens horríveis que despejavam por sua garganta. Podia sentir o desespero ao redor, os medos que alimentavam o seu. Sabia que estava sofrendo mais ataques, que deixavam todos alarmados. Não podia explicar a ninguém que eram na verdade pequenas bênçãos, porque durante os ataques não havia dor ou medo... apenas o vazio. Seu corpo parecia descansar, relaxar depois da violência. Por isso, quase que os acolhia com prazer. Quando se encontrava no estado de quase vigília, tudo doía. Tentava se enfiar nos travesseiros encharcados, a fim de escapar aos terrores. Às vezes sabia que se encontrava no quarto Rosa, no Castelo de Ardais, em Darkover. Em outras ocasiões, porém, tinha certeza de que voltara a Thetis, ou mesmo que deitava em seu catre no orfanato. E onde quer que se imaginasse, Margaret ainda sentia a presença do terror... e do ser que o criara.

O contato gentil de mãos era uma agonia. A proximidade de várias mulheres era mais ameaçadora do que confortadora. Tentava se lembrar de que nenhuma daquelas mulheres era a criatura pequena, de olhos vazios, que por pouco a destruíra. Quase conseguiu. Pouco a pouco, compreendeu que não eram todas as mulheres que pareciam ameaçadoras, mas apenas Istvana, a leronis. Havia alguma coisa nela que lembrava Margaret da outra, a Ashara, embora soubesse que isso era um absurdo.

Nos raros momentos de coerência, quando sua mente parecia quase lúcida, ela tinha certeza de que ia morrer, como Ivor. Era uma perspectiva tentadora, escapar do sofrimento de seu corpo. Mas parte dela rejeitava essa possibilidade, furiosa. Não passei tudo isso para morrer! E não vou morrer! Que se dane a tal de Ashara!

A raiva era purificadora, quase revigorante, embora a deixasse ainda mais exausta. E as febres acompanhavam-na, o que ela notou de maneira um tanto remota, como se fosse alguma forma peculiar de música que clamava por sua atenção. Se pudesse parar de se sentir furiosa, as febres a deixariam, com toda a certeza.

Mas parecia haver muita coisa para provocar sua ira. Era como se tivesse adiado toda a raiva de sua vida até agora. De vez em quando ouvia os pensamentos da leronis concordando com isso, o que era ao mesmo tempo confortador e assustador. Não queria ninguém em sua mente... nunca mais! Margaret gritava com ela quando isso acontecia, embora nunca tivesse certeza de que falava pela garganta dolorida ou pela mente dolorida.

Às vezes relacionava todas as pessoas com que se sentia furiosa, porque isso parecia manter o medo à distância. Havia seu pai, sobre quem remoía com freqüência. Pensava nas várias coisas que lhe diria se tornasse a vê-lo... nenhuma delas agradável ou respeitosa. Por mais estranho que pudesse parecer, no entanto, descobriu que não sentia tanta raiva de Lew Alton quanto dos outros... de Thyra, do homem de olhos prateados cujo nome não conhecia, de Dyan Ardais, que a entregara à sua algoz, Ashara, e acima de tudo de Ivor, por morrer e deixá-la abandonada em Darkover. Detestava sentir raiva de Ivor, embora soubesse que ele se encontrava além de ser atingido por sua fúria, mas não podia evitar.

Era impossível manter a raiva em caráter permanente. Quando se dissipava, Margaret voltava a ficar apavorada. Era um ciclo interminável, que ela parecia incapaz de romper. Tinha certeza, apesar da voz tranqüilizadora de Istvana dizendo o contrário, de que Ashara voltaria e tornaria a capturá-la. Resistia ao sono com toda a força de vontade de que era capaz, pois sabia que o sono significava sonhos... e não queria sonhar. A lógica que restava em sua mente perturbada dizia-lhe que destruíra o ser na Torre de Espelhos, mas o resto dela não concordava. Como se podia destruir uma coisa que só existia naquele outro lugar, o mundo superior? Estava doente demais para acreditar em qualquer outra coisa que não o pior.

Até mesmo o som, seu aliado de confiança, tornava-se um inimigo, pois o menor ruído a fazia choramingar. O sussurro da chuva contra a janela, um som agradável de que gostava, tudo a fazia lembrar da voz de Ashara em sua mente. As vozes abafadas de Istvana ou Rafaella no quarto lançavam-na num frenesi de terror, até que finalmente elas desistiram de tentar conversar em voz baixa. Só falavam em tom normal, o que ajudava bastante, por mais estranho que pudesse parecer.

- Por favor, Marguerida, tente descansar.

- Não deixem que ela me pegue!

- Não há nada a temer.

- Ela vai voltar e me capturar!

- Não, chiya, não vai. Ela se foi para sempre.

- Não acredito! Oh, faça com que a dor pare!

- Você mesma está se machucando com seu medo. Tente descansar. Tente dormir.

- Se eu dormir, ela vai me pegar!

Houve diversos diálogos assim. Durante os raros períodos de calma, Margaret sabia que a velha Beltrana e Istvana tinham razão. Mas não conseguia conter o fluxo de terror que a envolvia sempre que começava a relaxar, por menos que fosse. Quase que lhe parecia que era alguma manobra final, uma última tentativa de Ashara: se não podia controlar Margaret, então a mataria.

Isty... o que está acontecendo? Já testemunhei alguns acessos da doença do limiar, mas nunca vi nada parecido.

Nem eu, Mari. Não sei direito o que está acontecendo, mas sinto que é uma coisa normal.

Normal? Ela não dorme há três dias. Teve ataques que matariam outra pessoa. Sei que você tem empatia, mas isso não pode ser normal.

Tem razão. Mas esta é uma situação excepcional, uma adulta passando pelo que só costuma acontecer com alguém no início da adolescência. Não sabemos quais são as reações do corpo.

Ela está desidratada e faminta! Havia um forte sentimento de indignação nessas palavras. Margaret, apesar da dor, concordou silenciosamente que era mesmo uma indignidade. Descobriu-se a começar a gostar de Lady Marilla, mas depois lembrou que devia se manter apartada, que as pessoas morriam se deixava que se aproximassem. Esse pensamento lançou-a num terror renovado, e ela fez um esforço para bani-lo. Voltou a prestar atenção ao diálogo, embora se sentisse um pouco culpada, como se estivesse bisbiIhotando. Como pode falar que é normal? Não é possível, Isty! Às vezes você consegue ser irritante. Não há nada que possamos fazer?

Ela está apavorada... e não posso culpá-la por isso. Só vi Ashara através de seus olhos, e ainda assim me deixou assustada. Mas ela vive com essa presença em sua mente há vinte anos. Pode imaginar como seria para uma menina de cinco ou seis anos ser controlada pela vontade de uma leronis morta? Se pudéssemos romper o ciclo de terror, creio que ela começaria a se recuperar.

Nenhuma das coisas que lhe demos até agora permanece em seu estômago por muito tempo. E não creio que seu pobre corpo ainda consiga suportar por um período mais longo. Ela perdeu muito peso... e já era magra antes de começar.

Sei que devemos fazer algo, mas não imagino o quê. Mas há uma coisa... Houve interferência em seus canais quando era muito pequena! Sempre teorizamos que os canais ficavam impressos na mente durante a doença do limiar. Meu melhor palpite é o de que estamos testemunhando a criação de novos canais, que nunca existiram antes. Tem alguma relação com aquelas estranhas marcas em sua mão.

Novos canais? Sabe muito bem que isso é impossível!

Nada é impossível. Eu jamais teria acreditado que o espírito de uma Guardiã há muito morta poderia se projetar ao longo dos séculos para dominar a vontade de uma descendente, mas é exatamente isso o que aconteceu. Mari, você está exausta. E não me serve de ajuda quando só conta com metade de sua mente. Mande Rafaella vir falar comigo. E você trate de descansar.

Mas ela não pode monitorar! Poderia pedir a Mikhail, que é o único na casa que tem o treinamento apropriado, mas seria impróprio.

<Risos> Este não é o momento para se preocupar com escândalos, minha cara amiga. Chame Rafaella. Já notei que Marguerida fica mais quieta quando ela está presente. Acho que ela pode confiar em Rafaella mais do que em nós. As duas viajaram pela trilha juntas, o que cria um vínculo quase tão forte quanto o que aprendemos nas Torres.

Margaret ouviu a "conversa" e desejou ter a força para dizer que queria muito a presença de Rafaella. Os lábios rachados estavam inchados demais para que pudesse enunciar palavras inteligíveis. Sua garganta doía. Sentia o corpo todo dolorido. Notou que a mente estava lúcida naquele momento, nem irada nem assustada, uma condição que tratou de saborear.

Havia outra coisa, se ao menos conseguisse fazer o cérebro recordar o que era. Tinha relação com sua bagagem. Ela sentiu um pano molhado no rosto. A umidade em sua boca foi maravilhosa. Não doeu tanto quanto esperava. Suas pálpebras foram lavadas com tanto cuidado que depois ela conseguiu abrir os olhos.

A claridade era dolorosa. Margaret quase que tornou a fechar os olhos no mesmo instante. Só a visão do rosto de Rafaella fez com que os mantivesse abertos. A Renunciante tinha uma expressão de cansaço, com rugas de preocupação entre as sobrancelhas. Não queria que Rafaella se angustiasse!

- Vou passar uma pomada nos seus lábios, chiya, e pode doer um pouco. Mas vai ajudar a fechar os cortes e diminuir a inchação. Farei tudo o que for possível para não doer.

- Está bem.

Doeu bastante para pronunciar essas palavras, mas Margaret já passara do ponto em que se importava. Se ao menos uma parte de seu corpo pudesse parar de doer tanto, ela ficaria contente. Estremeceu quando Rafaella passou alguma coisa em seus lábios, com a ponta do dedo, cuidadosa. Mas sentiu os lábios melhorarem quase que no mesmo instante.

- O que é isso?

- Para ser franca, é uma coisa que usamos em cavalos, para inchações e equimoses. Só que fiz uma mistura um pouco diferente.

- A dor vai passar?

- Não sei. Tem um pouco da erva da dormência. Por isso, não passe a língua pelos lábios, ou ela ficará dormente.

Erva da dormência... o cérebro cansado de Margaret repetiu as palavras. Recordou que tentava se lembrar de uma coisa em sua bagagem. - O kit médico! - balbuciou ela.

- Como?

Ela lambera os lábios, em sua sede. A língua ficou subitamente dormente, como se não estivesse mais na boca. Margaret fez um esforço para enunciar as palavras.

- Na mochila. Kit médico. Emplastro.

A voz era engrolada a seus ouvidos, como se estivesse embriagada. Mas aparentemente Rafaella compreendeu, porque afastou-se no mesmo instante.

Margaret fechou os olhos ardendo, mas ouviu bastante barulho no outro lado do quarto. Parecia haver muitos passarinhos junto da janela, todos cantando. Ela queria pedir que ficassem quietos, mas não tinha energia nem para isso.

Depois de algum tempo, tornou a abrir os olhos. Descobriu Istvana e Rafaella inclinadas sobre a cama, pairando por cima dela como anjos ansiosos. Não sabia há quanto tempo as duas se encontravam ali, porque vinha se esforçando para não ouvir os passarinhos e o sussurro do vento contra as pedras do castelo, o que lhe provocava calafrios.

- Encontramos seu kit médico - informou Rafaella.

- Emplastro.

A língua parecia um pouco menos dormente agora. Margaret calculou que o efeito da erva da dormência já começava a passar. Poderiam estar inclinadas sobre a cama há horas, sem que ela soubesse. Rafaella perguntou a

Istvana:

- O que será que ela quis dizer com isso? Não há pedaços de pano aqui dentro. Será que se refere a esses chumaços de gaze?

Marguerida, diga-me a que está se referindo. Ela sentiu a urgência na mensagem telepática de Istvana, mas recuou ao contato.

Não entre em minha mente!

Eu a deixarei em paz assim que me disser o que está querendo no kit médico.

Margaret esquadrinhou o cérebro, projetando o conteúdo familiar do kit médico. Era distribuído a todos os terráqueos que viajavam. Esquecera-o por completo, o que fora uma estupidez, já que continha uma ampla variedade de antibióticos, curativos, bandagens e até uma tala de espuma de borracha que podia ser usada para consertar um braço ou perna fraturados. Sentiu que Istvana observava suas imagens mentais sem uma verdadeira intromissão. Era quase como se a leronis se mantivesse a alguma distância, observando sua mente sem fazer com que tivesse vontade de gritar outra vez, no terror renovado.

A maioria dos medicamentos tinha a forma de pequenos quadrados, para serem aplicados na pele, da mesma maneira como se ministrava a hiper-drome nas viagens espaciais. Um deles era um eufórico, que atenuaria a dor e induziria um sono profundo e sem sonhos. Ela não queria dormir, mas sabia que morreria se continuasse acordada por mais algum tempo. Por isso, projetou uma imagem mental do emplastro e das letras nele. Depois, pensou na aplicação em seu braço. o esforço foi extenuante. Sentiu que gotas de suor brotavam em sua testa, mas concluiu que valia a pena.

Margaret ouviu o barulho do kit médico sendo vasculhado, com murmúrios ocasionais de Istvana e perguntas de Rafaella. Não foi capaz de acompanhar direito a conversa, porque o terror começava a voltar. Tinha de recorrer a toda a sua força de vontade para não gritar e se debater. Manteve o corpo imóvel, dizendo a si mesma que em breve se sentiria diferente, se não melhor.

- Ah, aqui está! Nunca lamentei antes não conhecer a escrita Terranan, mas foi isso que ela imaginou.

- Mas ela está tão confusa, domna! E se for alguma coisa mortífera... um veneno?

- A imagem é muito nítida, Rafaella. o que faço com isto agora? Ah, sim... um expediente muito hábil.

- O que é isso?

Houve o som de plástico sendo rasgado.

- Pelo que pude deduzir da mente de Marguerida, esta coisa contém uma droga que penetra no sangue através da pele... o que é muito útil quando a pessoa não consegue manter nada no estômago. Tem um material adesivo num lado, para grudar na pele... assim.

Istvana parecia bastante satisfeita, além de aliviada. Margaret sentiu o emplastro ser comprimido contra sua pele, com extremo cuidado. Estremeceu um pouco. Depois esperou. Primeiro, o braço ficou dormente, em seguida os ombros e o outro braço. Depois do que pareceu uma eternidade, a dormência espalhou-se pelo resto do corpo. o terror sempre presente começou a se dissipar, a retroceder por uma longa distância mental. Não demorou muito para que ela mergulhasse num sono profundo e abençoado.

Ela despertou subitamente. Num momento flutuava numa paisagem branca, no instante seguinte se descobriu na cama. Abriu os olhos, ficou observando as cortinas. Havia silêncio no quarto, quebrado apenas pelo crepitar na lareira, um som suave e agradável. Seu primeiro pensamento foi o de que não sentia dor, o segundo de que tinha muita sede.

O quarto estava escuro, e ela concluiu que devia ser de noite. Que noite não dava para determinar, pois não tinha noção de quanto tempo passara com a doença. Não parecia ser importante. Nada era importante, exceto...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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