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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASA DE ESPIÕES / Daniel Silva
CASA DE ESPIÕES / Daniel Silva

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Para algo tão inusitado, tão cheio de risco institucional, foi tudo gerido com o mínimo de agitação. E silenciosamente, também. Esse foi o aspeto mais notável, o silêncio operacional com que foi realizado. Sim, tinha havido o anúncio dramático transmitido à nação, em direto, pelos meios de comunicação social; a ostentosa primeira reunião de Gabinete; a sumptuosa festa na villa de Ari Shamron junto ao lago, em Tiberíades, onde todos os amigos e colaboradores do seu extraordinário passado (os mestres de espionagem, os políticos, os sacerdotes do Vaticano, os negociantes de arte, até mesmo um inveterado ladrão de arte de Paris) tinham vindo desejar-lhe felicidades. Mas, à exceção disso, tudo ocorrera sem grandes ondas. Num dia, Uzi Navot estava sentado à sua grande secretária com um tampo de vidro fumado no escritório de chefe e, no seguinte, Gabriel estava no seu lugar. Mas atenção, sem a presença da moderna secretária de Navot, pois o vidro não fazia o estilo de Gabriel.
A madeira agradava-lhe mais. Madeira muito antiga. E quadros, evidentemente; aprendeu rapidamente que não conseguia passar doze horas por dia numa sala sem quadros. Pendurou um ou dois dos seus próprios trabalhos, sem assinatura, e diversos da sua mãe, que fora uma das mais proeminentes artistas israelitas do seu tempo. Até pendurou uma enorme pintura abstrata da sua primeira esposa, Leah, pintada quando eram ambos estudantes da Academia de Arte e Desenho Bezalel, em Jerusalém. Ao final do dia, quem visitasse o andar das chefias poderia ouvir um pouco de ópera (La Bohème era uma das suas favoritas) a fluir através da sua porta. A música só poderia significar uma coisa: Gabriel Allon, o príncipe de fogo, o anjo vingador, o filho escolhido de Ari Shamron, finalmente assumira a sua legítima posição como chefe dos serviços secretos de Israel.

 

 


 

 


Mas o seu antecessor não foi para muito longe. Na verdade, Uzi Navot mudou-se precisamente para o lado oposto do corredor, para um escritório que, na configuração original do edifício, fora o pequeno refúgio fortificado de Shamron. Nunca antes um chefe cessante permanecera debaixo do mesmo teto do que o seu sucessor. Era uma violação de um dos mais sagrados princípios do Departamento, que ordenava que, periodicamente, se realizasse uma limpeza completa da vegetação, uma lavragem dos solos. Era verdade que alguns ex-chefes mantinham um envolvimento menor com a organização. Davam um passeio, de vez em quando, pela Avenida Rei Saul, trocavam histórias de guerra, distribuíam conselhos que eram ignorados e, geralmente, acabavam por se tornar inconvenientes. E depois, claro, havia Shamron, o eterno, a sarça-ardente. Shamron construíra o Departamento do zero e fizera-o à sua imagem e semelhança. Dera ao serviço a sua identidade, a sua própria linguagem, e considerava que imiscuir-se nos seus assuntos quando assim o entendesse era um direito divino que lhe assistia. Fora Shamron quem premiara Navot com o cargo de chefe e, quando finalmente chegara o momento, fora Shamron quem lho tirara.

Mas foi Gabriel que insistiu para que Navot permanecesse, conservando todas as regalias de que gozara na encarnação anterior. Partilhavam a mesma secretária (a formidável Orit, conhecida na Avenida Rei Saul como a Cúpula de Ferro, pela sua capacidade para abater visitantes indesejados), e Navot manteve o uso do seu carro oficial, bem como uma equipa completa de guarda-costas, o que provocou alguns queixumes no Knesset, mas que, de uma forma geral, foi aceite como necessário para manter a paz. O seu título exato era bastante vago, mas isso era típico do Departamento. Eram mentirosos de profissão. Diziam a verdade apenas entre si. Perante todas as outras pessoas (as esposas, os filhos, os cidadãos que tinham jurado proteger), ocultavam-se atrás de uma capa de engano.

Quando as suas respetivas portas estavam abertas, o que habitualmente acontecia, Gabriel e Navot conseguiam ver-se através do corredor. Falavam todos os dias, logo de manhã, através de uma ligação telefónica segura, almoçavam juntos (por vezes na sala de refeições dos funcionários, outras vezes sozinhos, no escritório de Gabriel) e passavam alguns minutos de paz e sossego, ao final da tarde, em companhia da ópera de Gabriel, que Navot detestava, apesar da sua sofisticada linhagem vienense. Navot não tinha qualquer apreço pela música e as artes visuais aborreciam-no. Tirando isso, ele e Gabriel eram unânimes em todos os outros assuntos, pelo menos aqueles que envolviam o Departamento e a segurança do Estado de Israel. Navot lutara por ter acesso ao ouvido de Gabriel sempre que quisesse e conseguira-o, insistindo em estar presente em todos os encontros importantes com a equipa das chefias. Geralmente, mantinha um silêncio esfíngico, com os braços grossos cruzados sobre o peito de pugilista e uma expressão inescrutável no rosto. No entanto, ocasionalmente, terminava uma das frases de Gabriel, como se quisesse deixar claro a todos os presentes que, como se costumava dizer, eram unha e carne. Eram como Boaz e Jaquim, os dois pilares que se erguiam à entrada do Primeiro Templo de Jerusalém, e qualquer pessoa que ousasse semear a discórdia entre eles pagaria um preço elevado. Gabriel era o chefe do povo, mas era, ainda assim, o chefe, e não toleraria intrigas na sua corte.

Não que fosse provável a existência de qualquer intriga, já que os restantes agentes que constituíam a sua equipa eram inseparáveis. Provinham todos da Barak, a equipa de elite que executara algumas das operações mais lendárias dos anais de um serviço lendário. Durante anos, tinham realizado o seu trabalho a partir de um conjunto de salas subterrâneas atulhadas que, em tempos, tinham sido usadas como local de depósito de mobiliário e equipamentos velhos. Agora, ocupavam uma fila de escritórios que se espraiava a partir da porta de Gabriel. Até mesmo Eli Lavon, um dos mais proeminentes arqueólogos bíblicos de Israel, concordara em renunciar à posição que ocupava como professor na Universidade Hebraica e regressar ao trabalho a tempo inteiro para o Departamento. Teoricamente, Lavon supervisionava as sentinelas, os carteiristas e aqueles que se especializavam em colocar dispositivos de escuta e câmaras ocultas. Na verdade, Gabriel usava-o de qualquer forma que considerasse necessária. Sendo o melhor artista de vigilância física que o Departamento alguma vez produzira, Lavon protegia Gabriel desde os tempos da Operação Ira de Deus. O seu pequeno cubículo, com os seus cacos de cerâmica, moedas antigas e ferramentas, era o local onde Gabriel frequentemente se refugiava para ter alguns minutos de sossego. Lavon nunca fora muito falador. Tal como Gabriel, trabalhava melhor na sombra e em silêncio.

Alguns dos agentes mais antigos do Departamento questionavam se seria sensato que Gabriel enchesse os gabinetes com tantos amigos incondicionais e relíquias do seu passado glorioso. Contudo, a imensa maioria guardava tais receios para si própria. Nenhum diretor-geral (exceto Shamron, evidentemente) assumira o controlo do Departamento com tanta experiência ou boa vontade do que Gabriel. Estava envolvido no ofício há mais tempo do que qualquer outra pessoa e, pelo caminho, colecionara um extraordinário leque de amigos e cúmplices. O primeiro-ministro britânico devia-lhe a carreira; o Papa, a vida. Ainda assim, não era o género de colega que cobrava despudoradamente uma dívida antiga. O homem verdadeiramente poderoso, dizia Shamron, nunca tinha de pedir um favor.

Contudo, também tinha inimigos. Inimigos que tinham destruído a sua primeira esposa e que tinham tentado, igualmente, destruir a segunda. Inimigos em Moscovo e Teerão que o viam como o único obstáculo às suas ambições. De momento, estavam sob controlo, mas, indubitavelmente, voltariam a atacar. Tal como o homem contra quem travara a derradeira batalha. Aliás, esse mesmo homem ocupava o lugar cimeiro na lista de prioridades do novo diretor-geral. Os computadores do Departamento tinham-lhe atribuído um nome de código gerado aleatoriamente. Mas, atrás das portas protegidas por códigos da Avenida Rei Saul, Gabriel e os novos líderes do Departamento referiam-se a ele pelo grandioso nome de guerra que atribuíra a si próprio: Saladino. Falavam dele com respeito e até com um laivo de temor. A desforra era iminente. Era só uma questão de tempo.

 

Havia uma fotografia a circular pelos serviços de espionagem aliados. Fora tirada por um ativo da CIA na cidade paraguaia de Ciudad del Este, que se situava na célebre zona do Marco das Três Fronteiras da América do Sul. Mostrava um homem alto e corpulento, de aparência árabe, a beber café numa esplanada, acompanhado por um certo comerciante libanês suspeito de ter vínculos ao movimento jihadista global. O ângulo da câmara tornava o software de reconhecimento facial ineficaz. Mas Gabriel, abençoado com um dos melhores pares de olhos do ofício, estava convicto de que o homem era Saladino. Vira Saladino em pessoa, no átrio do Hotel Four Seasons, em Washington, D.C., dois dias antes do pior atentado terrorista em solo americano desde o 11 de Setembro. Gabriel sabia qual era a aparência de Saladino, como era o seu cheiro, como o ar reagia quando ele entrava ou saía de uma sala. E reconhecia o andar de Saladino. Tal como o seu homónimo, deslocava-se com um acentuado coxear, que resultara de um ferimento provocado por um estilhaço, do qual se recuperara com dificuldade numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, no norte do Iraque. O coxear era, agora, o seu cartão-de-visita. A aparência física de um homem poderia ser transformada de muitas formas. O cabelo poderia ser cortado ou pintado, o rosto poderia ser alterado com cirurgia plástica. Mas um coxear como o de Saladino era para sempre.

A forma como conseguira escapar da América era alvo de intenso debate, e todos os esforços subsequentes para o localizar tinham sido infrutíferos. Havia relatórios que o faziam, diversamente, em Asunción, em Santiago e em Buenos Aires. Corria até o rumor de que tinha encontrado abrigo em Bariloche, a estação de esqui argentina tão adorada pelos criminosos de guerra nazis foragidos. Gabriel descartou a ideia rapidamente. Ainda assim, estava disposto a considerar a possibilidade de Saladino estar escondido algures à vista de todos. Onde quer que estivesse, estava a planear o seu próximo passo. Disso, Gabriel tinha a certeza.

O recente atentado em Washington, com os edifícios e monumentos destruídos e o catastrófico balanço de mortes, conferira a Saladino o estatuto de novo rosto do terrorismo islâmico. Mas qual seria o seu próximo golpe? O presidente americano, numa das últimas entrevistas antes de deixar o cargo, declarou que Saladino seria incapaz de executar outra operação em grande escala, que a resposta do exército americano deixara a sua outrora temível rede em farrapos. Saladino respondera, ordenando que um bombista suicida se fizesse explodir no exterior da embaixada dos Estados Unidos no Cairo. Uma preocupação menor, ripostara a Casa Branca. Um número de vítimas limitado, nenhum cidadão americano entre os mortos. O ato desesperado de um homem em declínio.

Talvez, mas também houve outros atentados. Saladino atingira a Turquia praticamente a seu bel-prazer (casamentos, autocarros, praças públicas, o movimentado Aeroporto de Istambul) e os seus seguidores na Europa Ocidental, aqueles que proferiam o seu nome quase com fervor religioso, tinham executado uma série de atentados, na qualidade de lobos solitários, que deixaram um rasto de morte em França, na Bélgica e na Alemanha. Porém, algo maior se avizinhava, algo coordenado, um espetáculo de terror que rivalizaria com a calamidade infligida em Washington.

Mas onde? Outro atentado na América parecia improvável. Com toda a certeza, diziam os peritos, o raio não cairia duas vezes no mesmo lugar. Por fim, a cidade escolhida por Saladino para a sua última performance não constituiu uma surpresa para ninguém, especialmente para aqueles que dedicavam a vida a combater terroristas. Apesar da sua propensão para o secretismo, Saladino amava o espetáculo. E que melhor lugar para um espetáculo do que o West End de Londres?


2

 

ST. JAMES, LONDRES

 

 


Talvez fosse verdade, pensou Julian Isherwood enquanto observava a tromba de água soprada pelo vento que caía de um céu negro. Afinal de contas, talvez o planeta estivesse mesmo nas últimas. Um furacão em Londres, para além do mais em pleno fevereiro. Alto e de gestos ligeiramente titubeantes, Isherwood não era dado a tais inclemências. Nesse momento, encontrava-se abrigado à entrada do Wilton, um restaurante na Jermyn Street que conhecia bem. Puxou a manga do impermeável para cima e olhou para o relógio de pulso de sobrolho franzido. Eram 19h40; estava atrasado. Inspecionou a rua à procura de um táxi. Não havia nenhum à vista.

Do bar do Wilton chegou-lhe um gotejar de gargalhadas fingidas, seguidas da ribombante voz de barítono do anafado Oliver Dimbleby. Atualmente, o Wilton era o local mais frequentado por um pequeno grupo de marchands especializados em Grandes Mestres, que exerciam a sua atividade nas ruelas estreitas de St. James. Outrora costumavam reunir-se no Green, o restaurante e Oyster Bar da Duke Street, mas o Green fora obrigado a fechar portas devido a uma disputa com a empresa que geria o vasto património imobiliário da rainha em Londres. Era sintomático das mudanças que tinham varrido o bairro e a totalidade do mundo artístico londrino. Os Grandes Mestres estavam absolutamente fora de moda. Os colecionadores de hoje em dia, bilionários globais cujas fortunas instantâneas se construíam graças às redes sociais e aplicações para iPhone, só estavam interessados em arte contemporânea. Até mesmo os Impressionistas estavam a tornar-se ultrapassados. Isherwood vendera apenas dois quadros desde o Ano Novo. Ambos eram trabalhos para um mercado mediano, escola de pouca monta, estilo carente de bom gosto. Oliver Dimbleby não vendera nada em seis meses. Tal como Roddy Hutchinson, que era sobejamente considerado o comerciante mais inescrupuloso de toda a cidade de Londres. Porém, todos os dias, ao final da tarde, reuniam-se no bar do Wilton e asseguravam a si próprios que a tempestade iria passar. Mas, mais do que nunca, Julian Isherwood temia que assim não fosse.

Atravessara períodos conturbados anteriormente. O seu porte e indumentária, ambos esmeradamente ingleses, bem como o seu apelido de profundas reminiscências inglesas, ocultavam o facto de não ser, pelo menos não em sentido estrito, de todo inglês. Britânico de nacionalidade e passaporte, sim, mas alemão de nascimento, francês de educação e judeu de confissão religiosa. Só alguns amigos de confiança sabiam que Isherwood tinha chegado a Londres em 1942, na condição de criança refugiada, após ter atravessado os Pirenéus nevados com o auxílio de dois pastores bascos. Ou que o seu pai, Samuel Isakowitz, um conceituado marchand de arte em Paris, fora assassinado no campo de extermínio de Sobibor, juntamente com a sua mãe. Embora Isherwood tivesse guardado sigilosamente os segredos do seu passado, a história da sua fuga dramática da Europa ocupada pelos nazis chegara aos ouvidos dos serviços secretos de Israel. E, em meados dos anos setenta, durante a vaga de atentados terroristas palestinianos contra alvos israelitas na Europa, fora recrutado como sayan, um colaborador voluntário. Isherwood tinha apenas uma missão: ajudar a construir e manter o disfarce operacional de um restaurador de arte e assassino profissional chamado Gabriel Allon. Ultimamente, as suas carreiras tinham enveredado por direções definitivamente distintas. Gabriel era, agora, chefe dos serviços secretos israelitas, um dos espiões mais poderosos do mundo. E Isherwood? Encontrava-se à entrada do restaurante Wilton, na Jermyn Street, fustigado pelo vento de oeste, ligeiramente bêbado, à espera de um táxi que nunca chegaria.

Olhou para o relógio pela segunda vez. Eram agora 19h43. Não tendo guarda-chuva consigo, pousou a velha pasta de couro sobre a cabeça e saltitou sobre poças de água até Piccadilly, onde, após uma espera de cinco minutos debaixo de chuva, conseguiu entrar, agradecido e ensopado, para o banco de trás de um táxi. Deu ao taxista uma morada aproximada (sentiu-se demasiado embaraçado para dizer o nome do seu verdadeiro destino) e monitorizou ansiosamente o passar dos minutos enquanto o táxi avançava vagarosamente na direção de Piccadilly Circus. Aí, virou para a Shaftesbury Avenue, chegando à Charing Cross Road às oito em ponto. Isherwood estava, agora, oficialmente atrasado para a sua reserva.

Talvez devesse ter telefonado a avisar que estava atrasado, mas havia uma forte probabilidade de o estabelecimento em questão dar a sua mesa a outra pessoa. Fora necessário um mês de súplicas e subornos para conseguir aquela mesa; Isherwood não estava disposto a arriscar tudo, agora, com uma chamada precipitada. Para além disso, com um pouco de sorte, Fiona já teria chegado. Era uma das coisas de que Isherwood mais gostava em Fiona: a sua pontualidade. Também gostava do cabelo louro, dos olhos azuis, das pernas longas e da sua idade, trinta e seis anos. Na verdade, naquele momento, não conseguia pensar em nada que não lhe agradasse em Fiona Gardner, razão pela qual envidara tanto esforço e tempo preciosos para garantir uma reserva num restaurante onde, em circunstâncias normais, nunca poria os pés.

Passaram mais cinco minutos antes que o táxi deixasse finalmente Isherwood à porta do St. Martin’s Theatre, sede permanente de A Ratoeira, de Agatha Christie. Atravessou apressadamente a West Street até à entrada do afamado Ivy, o seu verdadeiro destino. O maître informou-o de que a menina Gardner ainda não chegara e de que, por algum milagre, a sua mesa continuava disponível. Isherwood entregou o impermeável à empregada do bengaleiro e foi conduzido a um sofá corrido com vista para a Litchfield Street.

Já a sós, fitou criticamente o seu reflexo na janela. Com o seu fato Savile Row, gravata carmim e abundantes caracóis grisalhos, projetava uma imagem bastante elegante, embora duvidosa, um estilo que descrevia como de depravação digna. De qualquer modo, não havia como negar que atingira aqueles anos a que os gestores de património se referiam como «o outono da vida». Não, pensou melancolicamente: era velho. Demasiado velho para andar atrás de mulheres como Fiona Gardner. Quantas outras tinham existido? As estudantes de arte, as curadoras inexperientes, as rececionistas, as jovens bonitas que atendiam as licitações telefónicas na Christie’s ou na Sotheby’s. Isherwood não o fazia por desporto; amara-as a todas. Acreditava no amor, como acreditava na arte. Amor à primeira vista. Amor eterno. Amor até que a morte nos separe. O problema era que jamais o encontrara verdadeiramente.

Subitamente, pensou numa tarde recente em Veneza, uma mesa de canto no Harry’s Bar, um Bellini, Gabriel... Este dissera a Isherwood que não era demasiado tarde, que ainda tinha tempo para casar e ter um ou dois filhos. A face maltratada no vidro não era da mesma opinião. Ultrapassara, há muito, o prazo de validade, pensou. Morreria sozinho, sem filhos, e sem outra esposa que não a sua galeria.

Examinou novamente as horas. Oito e um quarto. Agora, era Fiona que estava atrasada. Não era habitual. Desenterrou o telemóvel do bolso da frente do fato e viu que recebera uma mensagem. DESCULPA JULIAN, MAS INFELIZMENTE NÃO VOU PODER... Parou de ler. Calculou que fosse melhor. Poupar-lhe-ia um coração partido. Mais importante do que isso, impedi-lo-ia de fazer novamente figura de urso.

Devolveu o telefone ao bolso e ponderou as suas opções. Poderia ficar e jantar sozinho, ou poderia ir-se embora. Escolheu a segunda; não se jantava sozinho no Ivy. Erguendo-se, recolheu a sua capa para a chuva e, com uma desculpa murmurada ao maître, saiu aceleradamente para a rua, exatamente no momento em que uma Ford Transit branca travava bruscamente no exterior do St. Martin’s Theatre. O condutor apeou-se imediatamente do veículo, vestido com um grosso casaco de lã e segurando na mão algo que parecia ser uma arma. Não era uma arma qualquer, pensou Isherwood, era uma arma de guerra. Outros quatro homens estavam, agora, a sair do compartimento de carga nas traseiras da carrinha; cada um deles envergava um casaco pesado e empunhava o mesmo tipo de espingarda de assalto. Isherwood mal conseguia acreditar no que estava a ver. Parecia uma cena de um filme. Um filme que já vira antes, em Paris e em Washington.

Os cinco homens deslocaram-se calmamente na direção das portas do teatro, formando uma sólida unidade de combate. Isherwood ouviu o estilhaçar de madeira, seguido de disparos. Então, poucos segundos depois, chegaram os primeiros gritos, abafados, distantes. Eram os gritos dos pesadelos de Isherwood. Pensou novamente em Gabriel e interrogou-se sobre o que faria ele numa situação como essa. Acorreria velozmente para o interior do teatro e salvaria o máximo de vidas possível. Mas Isherwood não tinha as competências de Gabriel, nem a sua coragem. Não era nenhum herói. Na verdade, em grande medida, era o oposto disso.

Os gritos aterradores foram-se intensificando. Isherwood desenterrou o telemóvel do bolso, marcou o 999, e comunicou que o St. Martin’s Theatre estava a ser alvo de um atentado terrorista. Depois, virou-se para trás e fitou o famoso restaurante do qual acabava de sair. Os seus abastados clientes pareciam alheios à carnificina que decorria a só alguns metros de distância. Decerto, pensou, os terroristas não se contentariam com um único massacre. O icónico Ivy seria a próxima paragem.

Isherwood ponderou as suas opções. Mais uma vez, tinha duas. Poderia fugir ou poderia tentar salvar o máximo de vidas possível. Foi a decisão mais fácil da sua vida. Enquanto atravessava a rua atabalhoadamente, ouviu uma explosão vinda da Charing Cross Road. Depois outra. E uma terceira. Não era um herói, pensou enquanto voava através da porta do Ivy, a esbracejar como um louco, mas poderia agir como tal, nem que fosse apenas por um minuto ou dois. Talvez Gabriel tivesse razão. Afinal, talvez não fosse demasiado tarde para ele.


3

 

VAUXHALL CROSS, LONDRES

 

 


Eram doze ao todo, de etnia árabe e africana e passaporte europeu. Todos eles tinham passado algum tempo no califado do ISIS (num campo de treino, agora destruído, próximo da antiga cidade síria de Palmira) e regressado à Europa Ocidental sem serem detetados. Mais tarde, determinar-se-ia que tinham recebido as suas ordens via Telegram, o serviço gratuito de mensagens instantâneas com base na cloud que utilizava um sistema de encriptação ponta-a-ponta. Receberam apenas informação relativa à morada, data e hora do ataque. Ignoravam que outros tinham recebido instruções parecidas: não sabiam que faziam parte de uma rede mais vasta. Na verdade, nem sequer sabiam que faziam parte de uma rede.

Entraram paulatinamente no Reino Unido, um a um, de comboio e de ferry. Dois ou três tinham sido submetidos a interrogatórios na fronteira; os restantes tinham sido recebidos de braços abertos. Quatro deles encaminharam-se para a cidade de Luton, quatro para Harlow, e quatro para Gravesend. Em cada uma das moradas, aguardava-os um agente da rede na Grã-Bretanha. Também os aguardavam as armas: coletes suicidas, espingardas de assalto. Cada um dos coletes continha um quilo de TATP, um explosivo cristalino altamente volátil, manufaturado a partir de acetona e água oxigenada. As espingardas de assalto eram AK-47 de fabrico bielorrusso.

Os agentes radicados na Grã-Bretanha informaram rapidamente as células do atentado sobre os alvos e os objetivos da missão. Não eram bombistas suicidas, mas sim guerreiros suicidas. Deveriam matar com as espingardas de assalto o máximo possível de infiéis e só deveriam detonar os coletes suicidas quando fossem encurralados pela polícia. O objetivo da operação não era a destruição de edifícios ou lugares emblemáticos, mas sim o derramamento de sangue, sem distinção de género ou idade. Não deveriam demonstrar nenhuma piedade.

Ao final da tarde (em Luton, Harlow e Gravesend), os membros das três células partilharam uma última refeição. Depois disso, prepararam ritualmente os seus corpos para a morte. Finalmente, às sete horas dessa noite, subiram para três carrinhas Ford Transit brancas idênticas. Os agentes radicados na Grã-Bretanha encarregaram-se da condução, os guerreiros suicidas sentaram-se atrás, com os coletes e as armas. Nenhuma das células sabia da existência das outras, mas todas se estavam a dirigir para o West End de Londres e estava previsto atacarem à mesma hora. A sincronia era a marca registada de Saladino, pois acreditava que, no terrorismo, como na vida, o timing era tudo.

O venerável Garrick Theatre assistira a guerras mundiais, a uma guerra fria, a uma depressão e à abdicação de um rei. Mas jamais testemunhara nada como o que ocorreu às oito e vinte dessa noite, quando cinco terroristas do ISIS irromperam pelo teatro adentro e começaram a disparar contra a multidão. Mais de cem pereceram nos primeiros trinta segundos do ataque e outros cem morreriam nos terríveis cinco minutos que se seguiram, enquanto os terroristas se moviam metodicamente pelo teatro, fila a fila, lugar a lugar. Cerca de duzentas almas afortunadas conseguiram escapar pelas saídas laterais e traseiras, juntamente com todo o elenco da produção e os assistentes de palco. Muitos jamais voltariam a trabalhar no teatro.

Os terroristas saíram do Garrick sete minutos depois de entrarem. No exterior, encontraram dois agentes desarmados da Polícia Metropolitana. Depois de os matarem a ambos, encaminharam-se para a Irving Street e iniciaram uma chacina, de restaurante em restaurante, até que, finalmente, na periferia de Leicester Square, se confrontaram com dois agentes especiais da Polícia Metropolitana. Os agentes estavam armados apenas com pistolas Glock 17 de nove milímetros. Em todo o caso, conseguiram matar dois terroristas antes de eles conseguirem detonar os coletes suicidas. Dois dos terroristas sobreviventes imolaram-se no átrio do cavernoso cinema Odéon; o terceiro, num frequentado restaurante italiano. Ao todo, quase quatrocentos pereceriam apenas nessa parte do atentado, transformando-o no mais mortífero da história britânica, pior ainda do que o atentado à bomba no voo 103 da Pan Am, em 1988, enquanto sobrevoava Lockerbie, na Escócia.

Mas infelizmente, a célula de cinco membros não agia sozinha. Uma segunda célula (a célula de Luton, como viria a ser conhecida) atacou o Prince Edward Theatre, também precisamente às oito horas e vinte minutos, durante o espetáculo Miss Saigon. O Prince Edward era muito maior do que o Garrick, 1600 lugares em vez de 656, logo, o número de vítimas mortais no interior do teatro foi consideravelmente superior. Para além disso, os cinco terroristas detonaram os seus coletes suicidas em bares e restaurantes ao longo da Old Compton Street. Perderam-se mais de quinhentas vidas num espaço de apenas seis minutos.

O terceiro alvo foi o St. Martin: cinco terroristas, precisamente às oito horas e vinte minutos. Contudo, dessa vez, uma equipa de agentes especialistas em armas de fogo interveio. Mais tarde, seria revelado que um transeunte, um homem identificado unicamente como um proeminente negociante de arte londrino, informara as autoridades do atentado segundos depois de os terroristas entrarem no teatro. O mesmo negociante de arte londrino que ajudara depois a evacuar a sala de refeições do restaurante Ivy. Como resultado, só tinham perecido oitenta e quatro pessoas nessa parte do atentado. Em qualquer outra noite, em qualquer outra cidade, esse número teria sido impensável. Agora, era um motivo de alívio. Saladino infligira terror no coração de Londres. E a cidade jamais voltaria a ser a mesma.

De manhã, a dimensão da calamidade estava à vista. A maioria dos mortos ainda jazia onde tinha tombado; de facto, muitos continuavam sentados nos seus lugares do teatro. O comissário da Polícia Metropolitana declarou todo o West End como um cenário de crime ativo e instou londrinos e turistas a evitarem a zona. O serviço de metro foi encerrado como medida preventiva; negócios e instituições públicas permaneceram fechados ao longo do dia. A Bolsa de Valores de Londres abriu a horas, mas as transações foram suspensas quando o valor das ações caiu a pique. A perda económica, tal como a perda de vidas, foi catastrófica.

Por motivos de segurança, o primeiro-ministro, Jonathan Lancaster, aguardou até ao meio-dia para visitar o cenário da catástrofe. Com a esposa, Diana, ao lado, dirigiu-se, a pé, do Garrick até ao Prince Edward e, finalmente, até ao St. Martin. Posteriormente, no exterior do posto de comando temporário da Polícia Metropolitana em Leicester Square, fez uma breve declaração aos meios de comunicação social. Pálido e visivelmente abalado, prometeu que os autores do atentado responderiam perante a justiça.

— O inimigo está determinado — declarou —, mas nós também.

Todavia, o inimigo manteve-se curiosamente silencioso. Sim, houve várias publicações comemorativas nos habituais websites extremistas, mas nada oficial por parte do comando central do ISIS. Finalmente, às cinco da tarde, hora de Londres, surgiu, num dos muitos feeds do Twitter, uma reivindicação formal de responsabilidade, juntamente com fotografias dos quinze agentes que tinham executado o atentado. Alguns analistas de terrorismo expressaram surpresa pelo facto de a declaração não fazer qualquer menção a alguém chamado Saladino. Os mais experientes, não. Saladino, disseram eles, era um mestre. E, como muitos mestres, preferia deixar o seu trabalho sem assinatura.

Se o primeiro dia se caracterizou por solidariedade e pesar, o segundo foi de divisão e recriminações. Na Câmara dos Comuns, vários membros do partido da oposição fustigaram o primeiro-ministro e os diretores dos serviços de espionagem por não terem sido capazes de detetar e interromper o complô. Questionaram, principalmente, como era possível que os terroristas tivessem conseguido adquirir espingardas de assalto num país que se caracterizava por ter algumas das mais draconianas leis de controlo de armas do mundo. O chefe do Comando Antiterrorista da Polícia Metropolitana emitiu uma declaração a defender as suas ações, bem como Amanda Wallace, diretora-geral do MI5. Mas Graham Seymour, o chefe dos serviços secretos, também conhecidos como MI6, optou por permanecer em silêncio. Até recentemente, o governo britânico nem sequer reconhecera a existência do MI6, e nenhum ministro no seu perfeito juízo alguma vez teria sonhado em mencionar publicamente o nome do seu chefe. Seymour preferia os velhos hábitos aos novos. Era um espião por natureza e educação. E um espião nunca falava oficialmente, quando bastava passar uma informação envenenada a um jornalista prestável.

A responsabilidade pela proteção do território britânico contra atentados terroristas recaía primeiramente no MI5, na Polícia Metropolitana e no Centro Conjunto de Análise de Terrorismo. Ainda assim, os serviços secretos desempenhavam um papel importante na deteção de conspirações no estrangeiro antes de estas atingirem as vulneráveis costas britânicas. Graham Seymour advertira repetidamente o primeiro-ministro de que um atentado do ISIS no Reino Unido estava iminente, mas os seus espiões não tinham conseguido recolher as informações concretas necessárias para o impedir. Consequentemente, considerava o atentado de Londres, com a sua terrível perda de vidas inocentes, o maior falhanço individual da sua longa e ilustre carreira.

Seymour estava no seu magnífico escritório do alto de Vauxhall Cross no momento do atentado (vira lampejos das explosões da sua janela) e, nos dias sombrios que se seguiram, raramente o abandonou. Os seus assessores mais próximos suplicaram-lhe que dormisse um pouco e, em privado, inquietaram-se com a sua aparência atipicamente desgastada. Seymour advertiu-os, asperamente, de que o seu tempo seria melhor empregue à procura de informação vital que prevenisse o atentado seguinte. O que ele queria era uma ponta solta, um membro da rede de Saladino que pudesse ser manipulado para se submeter às suas ordens. Não uma figura pertencente às chefias; eram demasiado leais. O homem de quem Graham Seymour estava à procura era um figurante, um moço de recados, um transportador de bagagens dos outros. Era possível que esse homem nem sequer soubesse que era membro de uma organização terrorista. Era possível, até, que nunca tivesse ouvido o nome Saladino.

Agentes da polícia, secreta ou não, têm certas vantagens em tempos de crise. Preparam rusgas, efetuam detenções, organizam conferências de imprensa para assegurarem ao público que estão a fazer tudo ao seu alcance para manter a segurança. Os espiões, por outro lado, não possuem tais recursos. Por definição, labutam em segredo, em vielas recônditas e quartos de hotel e casas seguras e em todos os outros locais esquecidos por Deus onde agentes são persuadidos ou coagidos a entregar informação vital a uma potência estrangeira. No início da sua carreira, Graham Seymour realizara esse tipo de trabalho. Agora, limitava-se a monitorizar os esforços de outros a partir da gaiola dourada do seu escritório. O seu pior medo era que outro serviço encontrasse a ponta solta primeiro e que ele fosse, mais uma vez, relegado para um papel secundário. O MI6 não conseguiria desmantelar a rede de Saladino por si só; necessitaria da ajuda dos seus aliados da Europa Ocidental, do Médio Oriente e do outro lado do oceano, da América. Porém, se o MI6 fosse capaz de desenterrar atempadamente o fragmento certo de informação, Graham Seymour seria o primeiro entre iguais. No mundo moderno, era o máximo a que um mestre de espionagem poderia aspirar.

E, portanto, permaneceu no seu escritório, dia após dia, noite após noite, a observar, não sem considerável inveja, como a Polícia Metropolitana e o MI5 descobriam vestígios da rede de Saladino na Grã-Bretanha. Contudo, os esforços do MI6 foram inconsequentes. Efetivamente, Seymour soube mais a partir dos seus amigos de Langley e Telavive do que da sua própria equipa. Finalmente, uma semana e um dia depois do atentado, decidiu que uma noite em casa lhe faria bem. Os registos informáticos mostrariam que a sua limusina Jaguar deixou o parque de estacionamento subterrâneo, por coincidência, precisamente às oito e vinte da noite. Mas enquanto atravessava o Tamisa em direção à sua casa em Belgravia, o seu telefone seguro vibrou suavemente. Reconheceu o número, bem como a voz feminina que lhe chegou pela linha momentos depois.

— Espero não te ter apanhado num mau momento — disse Amanda Wallace —, mas tenho uma coisa que talvez te interesse. Porque é que não passas pela minha casa para beber um copo? É por minha conta.


4

 

THAMES HOUSE, LONDRES

 

 


Graham Seymour conhecia bem a Thames House, o quartelgeneral do MI5 nas margens do Tamisa onde trabalhara durante mais de trinta anos, antes de assumir a chefia do MI6. Enquanto avançava pelo corredor da direção, parou à entrada da porta do gabinete que fora seu quando era subdiretor-geral. Miles Kent, o atual subdiretor, ainda estava na sua secretária. Era, possivelmente, o único homem em Londres que tinha pior aspeto do que Seymour.

— Graham — disse Kent, erguendo o olhar do computador. — O que é que te traz a este nosso cantinho do reino?

— Diz-me tu.

— Se dissesse — disse Kent em voz baixa —, a abelha-mestra punha-me a andar.

— Como é que ela está?

— Não ouviste dizer? — Kent acenou a Seymour para que entrasse e fechou a porta. — O Charles pirou-se com a secretária.

— Quando?

— Uns dias depois do atentado. Estava a jantar no Ivy quando a terceira célula entrou no St. Martin. Disse que isso o obrigou a olhar-se seriamente ao espelho. Disse que não conseguia continuar a viver como estava a viver.

— Tinha uma amante e uma esposa. O que é que ele queria mais?

— Um divórcio, aparentemente. A Amanda já saiu do apartamento. Tem estado a dormir aqui, no escritório.

— Há muito disso por aí.

Seymour ficou surpreendido com as novidades. Vira Amanda, nessa mesma manhã, no número 10 da Downing Street, e ela não mencionara nada. Honestamente, Seymour sentiu-se aliviado pelo facto de a imprudente vida amorosa de Charles ter sido, finalmente, exposta. Os russos tinham uma habilidade especial para descobrir esse tipo de indiscrições e nunca tinham tido quaisquer dilemas morais quanto a usá-las em seu proveito.

— Quem mais é que sabe?

— Eu descobri quase por acidente. Tu conheces a Amanda, é muito discreta.

— É uma pena que o Charles não o tenha sido. — Seymour começou a dirigir-se para a porta, mas parou. — Fazes alguma ideia do motivo pelo qual ela me quer ver com tanta urgência?

— Pelo prazer da tua companhia?

— Vá lá, Miles.

— Tudo quanto sei — disse Kent — é que tem alguma coisa a ver com armas.

Seymour saiu para o corredor. A luz sobre a porta de Amanda brilhava a verde. Mesmo assim, bateu suavemente antes de entrar. Encontrou Amanda sentada à sua grande secretária, com os olhos pousados num processo aberto. Ao erguer o olhar, concedeu a Seymour um sorriso frio. Parecia, pensou ele, que ensinara o gesto a si própria, depois de praticar muito ao espelho.

— Graham — disse ela, levantando-se —, ainda bem que vieste.

Saiu lentamente de trás da secretária. Envergava, como habitualmente, um fato feito à medida que favorecia a sua figura alta e um pouco desajeitada. A sua abordagem foi cautelosa. Graham Seymour e Amanda Wallace tinham entrado no MI5 como parte do mesmo contingente e tinham passado a maior parte dos últimos trinta anos a competir entre si à mínima ocasião. Atualmente, ocupavam duas das posições mais poderosas dos serviços de espionagem ocidentais, contudo, a velha rivalidade persistia. Era tentador pensar que o atentado alteraria a dinâmica da sua relação, mas Seymour não acreditava nisso. Aproximava-se o inevitável inquérito parlamentar que indubitavelmente desvendaria falhas graves e passos em falso por parte do MI5. Amanda defender-se-ia com unhas e dentes. E faria tudo o que pudesse para garantir que Seymour e o MI6 arcassem com uma quota-parte das culpas.

Um tabuleiro com bebidas fora colocado na extremidade da reluzente mesa de reuniões de Amanda. Preparou um gim tónico para Seymour e um martíni com azeitonas e cebolinhas em vinagre para si própria. O seu brinde foi silencioso, contido. Depois, conduziu Seymour até à área onde se podiam sentar e fez um gesto na direção de uma moderna poltrona de couro. A BBC tremeluzia na grande televisão de ecrã plano. Aviões militares americanos e britânicos estavam a atingir alvos do ISIS perto da cidade síria de Raqqa. A porção iraquiana do califado fora largamente recuperada pelo governo central de Bagdade. Só o santuário sírio permanecia em poder do ISIS, e estava sitiado. No entanto, a perda de território nada fizera para diminuir a capacidade do ISIS para levar a cabo operações terroristas no estrangeiro. O atentado de Londres era prova disso.

— Onde é que achas que ele está? — perguntou Amanda, após um momento.

— O Saladino?

— Quem é que havia de ser?

— Fomos incapazes de determinar com certeza...

— Não estás a falar com o primeiro-ministro, Graham.

— Se tivesse de adivinhar, diria que não está no califado do ISIS, que continua a encolher a toda a velocidade.

— Então, onde?

— Talvez na Líbia ou num dos emirados do Golfo. Ou talvez esteja no Paquistão ou no outro lado da fronteira, no Afeganistão controlado pelo ISIS. Ou — disse Seymour —, pode estar mais próximo. Tem amigos e recursos. E lembra-te de que já foi um de nós. O Saladino trabalhou para a Mukhabarat iraquiana antes da invasão. O trabalho dele era fornecer apoio material aos terroristas palestinianos favoritos do Saddam. Ele sabe o que está a fazer.

— Isso — disse Amanda Wallace — é um eufemismo. O Saladino quase nos faz sentir saudades dos dias dos espiões do KGB e das bombas do IRA. — Sentou-se em frente de Seymour e, pensativamente, colocou a sua bebida na mesinha de apoio. — Tenho uma coisa para te contar, Graham. Uma coisa pessoal, uma coisa horrível. O Charles deixou-me por causa da secretária. Tem metade da idade dele. Que cliché.

— Lamento muito, Amanda.

— Sabias que eles tinham um caso?

— Ouviam-se rumores... — disse Seymour, delicadamente.

— Eu não ouvia, e sou a diretora-geral do MI5. Parece que é verdade aquilo que dizem. A esposa é sempre a última a saber.

— Não há hipótese de reconciliação?

— Nenhuma.

— Um divórcio vai ser complicado.

— E caro — acrescentou Amanda. — Especialmente para o Charles.

— Vai haver pressão para que te demitas.

— E é por esse motivo — disse Amanda — que vou precisar do teu apoio. — Ficou em silêncio durante um momento. — Sei que, em grande medida, sou responsável pela nossa guerra fria, Graham, mas isto já dura há demasiado tempo. Se o Muro de Berlim caiu, certamente tu e eu podemos ter qualquer coisa semelhante a uma amizade.

— Não poderia estar mais de acordo.

Desta vez, o sorriso de Amanda quase pareceu genuíno.

— E, agora, o verdadeiro motivo para te ter pedido que viesses. — Apontou um comando na direção da televisão de ecrã plano, onde surgiu um rosto: um homem de descendência egípcia, com uma barba rala, de cerca de trinta anos. Pertencia a Omar Salah, o líder da chamada célula de Harlow, que fora abatido por um agente das forças especiais, no interior do St. Martin’s Theatre, antes de poder detonar o seu colete suicida. Seymour conhecia bem o processo de Salah. Era um dos vários milhares de muçulmanos europeus que tinham viajado para a Síria e para o Iraque depois de o ISIS ter declarado o seu califado, em junho de 2014. Durante mais de um ano após o seu regresso à Grã-Bretanha, Omar Salah fora alvo de vigilância a tempo inteiro por parte do MI5, tanto física como eletrónica. Mas, seis meses antes do atentado, o MI5 concluiu que Salah já não constituía uma ameaça iminente. O A4, as sentinelas, estava no limite das suas capacidades e Salah parecia ter perdido o gosto pelo islamismo radical e pelo jihadismo. A ordem para cessar a vigilância continha a assinatura de Amanda. Do que nem ela nem o resto dos serviços de espionagem britânicos se tinham apercebido fora de que Salah andava a comunicar com o comando central do ISIS utilizando métodos de encriptação que nem a poderosa Agência de Segurança Nacional Americana era capaz de decifrar.

— A culpa não foi tua — disse Seymour, serenamente.

— Talvez não — respondeu Amanda. — Mas alguém vai ter de assumir a responsabilidade, e provavelmente vou ser eu. A não ser, claro, que consiga dar a volta ao caso infeliz do Omar Salah e o use a meu favor. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Ou, melhor, a nosso favor.

— E como é que poderíamos fazer isso?

— O Omar Salah fez mais do que liderar uma equipa de assassinos islâmicos e conduzi-la ao interior do St. Martin’s Theatre. Foi ele que contrabandeou as armas para a Grã-Bretanha.

— Onde é que ele as arranjou?

— Através de um agente do ISIS que reside em França.

— Quem é que diz isso?

— O Omar.

— Por favor, Amanda — disse Seymour, agastado —, é tarde.

Ela olhou de soslaio para o rosto no ecrã.

— Era competente o nosso Omar, mas cometeu um pequeno erro. Usou o computador portátil da irmã para tratar dos seus assuntos com o ISIS. Apreendemo-lo no dia posterior ao atentado e temos estado a passar o disco rígido a pente fino desde essa altura. Esta tarde, encontrámos o rasto digital de uma mensagem encriptada do comando central do ISIS, onde davam instruções ao Omar para que viajasse até Calais para se encontrar com um homem que se autodenomina o Escorpião.

— Fica no ouvido — disse Seymour com sarcasmo. — Havia alguma referência a armas na mensagem?

— A linguagem estava codificada, mas era óbvia. Também é coerente com um comunicado que recebemos da DGSI no final do ano passado. Aparentemente, os franceses têm o Escorpião no seu radar há já algum tempo. Infelizmente, não sabem muito sobre ele, incluindo o seu verdadeiro nome. A teoria em que têm andado a trabalhar é que faz parte de um gangue de droga, provavelmente marroquino.

Fazia sentido, pensou Seymour. A ligação entre o ISIS e as redes criminosas europeias era inegável.

— Contaste aos franceses alguma coisa sobre isto? — perguntou.

— Não vou deixar a segurança do povo britânico nas mãos da DGSI. Para além disso, gostaria de encontrar o Escorpião antes dos franceses. Mas não posso — acrescentou rapidamente. — O meu mandato para nas margens da água.

Seymour ficou em silêncio.

— Longe de mim querer ensinar-te a fazer o teu trabalho, Graham. Mas, se fosse a ti, a primeira coisa que faria, amanhã de manhã, seria enviar um agente para França. Alguém que fale a língua. Alguém que se sinta à vontade no seio de redes criminosas. Alguém que não tenha medo de sujar as mãos. — Sorriu. — Por acaso não conheces ninguém assim, ou conheces, Graham?


5

 

HAMPSHIRE, INGLATERRA

 

 


Viera para a cidade portuária do sul de Inglaterra como muitos outros antes dele, na parte de trás de uma carrinha governamental com vidros fumados. Passara velozmente pelo porto e pelos antigos armazéns vitorianos de tijolo vermelho, antes de finalmente virar para um pequeno caminho que o conduziu através do primeiro fairway de um campo de golfe que, na manhã da sua chegada, se encontrava entregue às gaivotas. Imediatamente depois do fairway, havia um fosso vazio e, para lá do fosso, havia um antigo forte com paredes de pedra cinzenta. Originalmente construído por Henrique VIII, em 1545, era, agora, a principal escola de espiões do MI6.

A carrinha fez uma breve pausa no portão de entrada antes de entrar no pátio central, onde os carros da ED, a Equipa de Direção, se encontravam ordeiramente alinhados em três filas. O motorista da carrinha, que se chamava Reg, desligou o motor e, com pouco mais do que um pequeno aceno da cabeça, indicou ao homem no banco de trás que podia sair sozinho da viatura. O Forte não era um hotel, poderia ter acrescentado, mas não o fez. O novo recruta era um caso especial, ou, pelo menos, fora essa a informação que Vauxhall Cross dera à ED. Tal como acontecia com todos os novos recrutas, sempre que houvesse oportunidade, dir-lhe-iam que estava a ser admitido num clube exclusivo. Os membros do clube regiam-se por um conjunto diferente de regras das dos seus compatriotas. Sabiam coisas, faziam coisas que os outros não sabiam, não faziam. Dito isso, o homem sentado no banco de trás não pareceu a Reg o tipo de pessoa que se impressionaria com tal lisonja. Na verdade, parecia reger-se por um conjunto diferente de regras há muito tempo.

O Forte era constituído por três alas: a este, a oeste e a principal, onde decorria a maior parte do treino. Exatamente por cima do portão de entrada, ficava um conjunto de divisões reservadas ao chefe e, para lá das muralhas, havia um campo de ténis, uma instalação para a prática de squash, um campo de croquet, um heliporto e uma carreira de tiro ao ar livre. Também havia uma carreira de tiro coberta, embora Reg suspeitasse que o seu passageiro não iria precisar de muito no que se referia a treino com armas, fossem elas armas de fogo ou de outro tipo. Era um soldado de elite. Dava para perceber pela forma do seu corpo, pela posição da sua mandíbula e pelo modo como colocou o saco de lona ao ombro antes de atravessar com determinação o pátio. Sem emitir um som, notou Reg. Era, definitivamente, do género silencioso. Estivera em lugares que desejava esquecer e executara missões de que ninguém falava fora das salas insonorizadas e instalações seguras. A sua inteira existência estava imersa na mais absoluta confidencialidade. Era um tipo problemático.

Logo à entrada da ala ocidental, havia um pequeno recanto onde George Halliday, o porteiro, aguardava para o receber.

— Marlowe — disse o novo recruta, com pouca convicção. E depois, quase como se se tivesse lembrado tardiamente, acrescentou: — Peter Marlowe.

E Halliday, que era o mais antigo membro ao serviço da Equipa de Direção (um resquício dos dias do rei Henrique, segundo rezava a lenda do Forte) percorreu uma lista de nomes com um dedo indicador esguio e pálido.

— Ah, sim, senhor Marlowe. Estávamos à sua espera. Lamento muito pelo tempo, mas, se fosse a si, ia-me habituando.

Halliday disse isto enquanto se curvava para retirar uma chave de uma fila de chaveiros por baixo da sua secretária.

— Parece-me que se consegue encarregar do seu saco.

— Parece-me que sim — disse o novo recruta, com algo semelhante a um sorriso.

— Oh — disse Halliday subitamente. — Quase me esquecia. — Virou-se para trás e agarrou num pequeno envelope de um dos cubículos para a correspondência que havia na parede atrás da sua secretária. — Ontem à noite, chegou isto para si. É do «C».

O novo recruta pegou na carta e enfiou-a no bolso do sobretudo. Depois, colocou o saco de lona ao ombro (como um soldado, concordou Halliday) e carregou-o pelo lanço de escadas antigas que conduzia à zona residencial. A porta do quarto abriu-se com um rangido. Ao entrar, deixou que o saco deslizasse do seu ombro robusto para o chão. Com o olhar sagaz de um perito em observação rigorosa, inspecionou a área circundante. Uma cama de solteiro, uma mesa de cabeceira, um armário simples para as suas coisas, uma casa de banho privada com sanita e banheira. Um recém-licenciado de uma universidade de elite poderia ter achado o apartamento mais do que satisfatório, mas o novo recruta não ficou impressionado. Como homem de considerável fortuna (ilegítima, mas, ainda assim, considerável), estava acostumado a aposentos mais confortáveis.

Despiu o casaco e atirou-o para cima da cama, extraindo o envelope do bolso. Relutantemente, rasgou a aba e retirou o pequeno cartão. Não havia qualquer cabeçalho, apenas três linhas de texto elegantemente manuscrito com a característica cor verde.

A Grã-Bretanha está melhor agora que estás aqui para tomares conta dela...

Um recruta vulgar poderia ter guardado um bilhete como esse como lembrança do seu primeiro dia enquanto agente de um dos serviços de espionagem mais antigos e orgulhosos do mundo. Mas o homem conhecido como Peter Marlowe não era um recruta vulgar. Mais ainda, trabalhara em lugares onde um bilhete assim poderia custar a vida a um homem. E, portanto, depois de o ler (duas vezes, como era seu hábito), queimou-o no lavatório da casa de banho e abriu a torneira para as cinzas escorrerem pelo ralo. Depois, dirigiu-se à janelinha do quarto, em forma de seteira, e olhou fixamente para o outro lado do mar, na direção da ilha de Wight. E questionou-se, não por vez primeira, se não teria cometido o pior erro da sua vida.

 

O seu verdadeiro nome, escusado será dizer, não era Peter Marlowe. Era Christopher Keller, o que só por si era intrigante, pois tanto quanto o governo de Sua Majestade sabia, Keller estava morto há uns vinte e cinco anos. Consequentemente, acreditava-se que era o primeiro falecido a servir às ordens dos serviços secretos britânicos desde Glyndwr Michael, o sem-abrigo galês cujo corpo fora usado pelos magníficos mestres do engano dos tempos da Segunda Guerra Mundial para fornecer documentos falsos à Alemanha Nazi, como parte da Operação Mincemeat.

Contudo, a Equipa de Direção do Forte desconhecia este dado acerca do novo recruta. De facto, não sabiam praticamente nada sobre ele. Não sabiam, por exemplo, que era um veterano do restrito SAS, o Serviço Aéreo Especial britânico, que continuava a deter o recorde do regimento na prova de resistência de sessenta e cinco quilómetros através dos abruptos montes de Brecon Beacons, no sul de Gales, ou que obtivera a classificação mais elevada de sempre da Killing House, o temido centro de treino do SAS onde os membros aperfeiçoavam as suas aptidões de combate corpo a corpo. Uma análise mais detalhada do seu processo (classificado por ordem do próprio primeiro-ministro) teria revelado que, no final dos anos oitenta, durante um período particularmente violento da guerra na Irlanda do Norte, se infiltrara em West Belfast, onde vivera entre os católicos da cidade e conseguira infiltrar vários agentes no IRA. Esse mesmo processo teria mencionado, em termos bastante vagos, um incidente numa quinta em South Armagh para onde Keller fora levado para ser interrogado e executado, após o seu disfarce ter sido descoberto. As circunstâncias exatas que rodeavam a sua fuga eram pouco claras, embora tivessem envolvido a morte de quatro experientes homens do IRA, dois dos quais tinham sido praticamente cortados aos pedaços.

Depois da sua evacuação apressada da Irlanda do Norte, Keller regressou ao quartel-general do SAS, em Hereford, para o que, pensava ele, seria um longo descanso e uma temporada de trabalho como instrutor. Porém, depois da invasão do Kuwait pelo Iraque, em agosto de 1990, foi-lhe atribuída uma missão no esquadrão Sabre, especializado na guerra no deserto, e foi enviado para o oeste do Iraque com o intuito de encontrar o mortífero arsenal de mísseis Scud de Saddam Hussein. Na noite de 28 de janeiro de 1991, Keller e a sua equipa localizaram lança-mísseis a cerca de cento e sessenta quilómetros a noroeste de Bagdade e enviaram, via rádio, as coordenadas para os seus comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros aliados sobrevoou o deserto a baixa altitude. Mas, num caso trágico de fogo aliado, a aeronave atacou o esquadrão do SAS em vez do local onde se encontravam os Scuds. As autoridades britânicas concluíram que toda a unidade se perdera, incluindo Keller.

Na verdade, sobrevivera ao incidente sem um arranhão, para o qual parecia possuir um talento especial. O seu primeiro instinto foi entrar em contacto, via rádio, com a base e solicitar o resgate. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos seus superiores, começou a caminhar. Oculto sob as vestes de um árabe do deserto e altamente treinado na arte da movimentação clandestina, abriu caminho por entre as forças aliadas e entrou furtivamente na Síria. Daí, caminhou para oeste, atravessando a Turquia, a Grécia e a Itália, até chegar por fim à costa na acidentada ilha da Córsega, onde caiu nos braços acolhedores de Don Anton Orsati, um chefe mafioso cuja ancestral família de bandidos era especialista no assassinato a soldo.

O don deu a Keller uma villa e uma mulher para lhe tratar das feridas. Posteriormente, quando Keller se restabeleceu, deu-lhe trabalho. Com a sua aparência característica do norte da Europa e o treino do SAS, Keller era capaz de levar a cabo missões que estavam para além das capacidades dos sicários corsos de Orsati, os taddunaghiu. Fazendo-se passar por diretor da pequena empresa de azeite de Orsati, Keller tinha deambulado pela Europa Ocidental durante quase vinte e cinco anos com o objetivo de assassinar às ordens do don. Os corsos aceitaram-no como um dos seus, tendo ele retribuído a generosidade adotando os seus costumes. Vestia-se como um corso, comia e bebia como um corso, e via o resto do mundo com o desdém fatalista de um corso. Até usava um talismã corso ao do pescoço, um pedaço de coral vermelho com o formato de uma mão, para repelir o mau-olhado. Agora, por fim, voltara para casa, para uma antiga fortaleza de pedra cinzenta virada para um mar gélido e implacável. Iam ensiná-lo a ser um autêntico espião britânico. Porém, antes disso, teria de aprender a ser novamente inglês.

 

Os restantes membros do contingente de Keller estavam mais em consonância com os gostos tradicionais do MI6: homens, brancos e de classe média ou privilegiada. Para além disso, todos eles erem recém-licenciados de Oxford ou de Cambridge. Todos exceto Thomas Finch, que frequentara a London School of Economics e trabalhara como banqueiro de investimento na cidade, antes de finalmente ceder ao assédio repetido do MI6. Finch falava fluentemente chinês e considerava-se particularmente astuto. Durante a sua primeira sessão conjunta, queixara-se, só meio a brincar, de que estava a aceitar um corte substancial de salário pela honra de servir o seu país. Keller poderia ter-se gabado do mesmo, mas teve o bom senso de não o fazer. Disse aos colegas recrutas que trabalhara no setor alimentar e que, no seu tempo livre, gostava de praticar montanhismo, sendo ambas as afirmações verdadeiras. Quanto à sua idade (era, de longe, o mais velho do grupo, talvez o mais velho recruta de sempre), alegou ser uma espécie de talento de revelação tardia, o que não era, de todo, o caso.

O curso, formalmente conhecido como Curso de Iniciação para Novos Agentes dos Serviços Secretos[1], tinha por objetivo preparar os recrutas para desempenharem funções básicas em Vauxhall Cross, embora fosse necessário um treino adicional antes de estarem preparados para operar no terreno, para que não causassem danos irreparáveis aos interesses do país ou às próprias carreiras. Havia dois instrutores principais: Andy Mayhew, grande, ruivo, charlatão, e Tony Quill, um ex-agente magro como um espeto que, segundo as más línguas, era capaz de engatar uma freira até lhe despir o hábito e roubar-lhe o terço sem que ela desse por isso. Vauxhall Cross investigou minuciosamente os processos de ambos os homens para determinar se, nas suas vidas passadas, poderiam ter-se cruzado com um agente do SAS chamado Christopher Keller. Não tinham. Mayhew era, em grande medida, um homem de quartel-general. Quill estivera envolvido em operações na Cortina de Ferro e Médio Oriente. Nenhum deles jamais pusera os pés na Irlanda do Norte.

A primeira parte do curso versava sobre o MI6 em si: a história, os sucessos, os fracassos mais badalados, a estrutura. Era muito mais pequeno do que os homólogos americanos e russos, mas batia-se olhos nos olhos com os maiores, como Quill gostava de dizer, graças à astúcia natural e aos ardis daqueles que o dirigiam. Enquanto os americanos dependiam da tecnologia, a especialidade do MI6 era a espionagem humana, e os seus agentes eram considerados os melhores recrutadores e gestores de agentes do ramo. O trabalho árduo de convencer homens e mulheres a traírem os seus países e organizações era levado a cabo pelo IB, a secção de espionagem. Essa missão fora atribuída a cerca de trezentos e cinquenta agentes; a maioria trabalhava nas embaixadas britânicas de todo o mundo, ao abrigo do disfarce diplomático. Outros oitocentos, aproximadamente, trabalhavam no departamento de serviços gerais. Eram agentes especializados em questões técnicas ou que desempenhavam funções administrativas nas diversas divisões geográficas do MI6. Cada divisão era chefiada por um diretor que respondia perante o chefe. Embora Mayhew e Quill não o soubessem, «C» já determinara que o recruta conhecido como Peter Marlowe não iria trabalhar em nenhuma das divisões existentes. Seria ele próprio uma divisão. Uma divisão de uma só pessoa.

Após terem despejado a palha institucional, Mayhew e Quill centraram a atenção nos truques do ofício da espionagem humana: a manutenção do disfarce adequado, a deteção e despiste da vigilância, o uso de códigos secretos, o depósito de itens em lugares secretos, os brevíssimos encontros para troca de informações entre agentes, os exercícios mnemotécnicos. A memória de um espião, dizia Quill, era o seu único amigo no mundo. E depois vieram, como era lógico, longas e detalhadas palestras sobre como localizar informadores e posteriormente recrutá-los com êxito. Keller dispunha de uma vantagem injusta sobre os seus colegas: recrutara e dirigira agentes num lugar onde o mais pequeno passo em falso resultaria numa morte atroz. De facto, estava convencido de que poderia ter ensinado a Mayhew e Quill uma ou duas coisas sobre como organizar uma reunião clandestina de forma a que tanto o agente infiltrado como o seu contacto saíssem incólumes do encontro. Em vez disso, nas salas de aula da ala principal, adotou o comportamento de um aluno silencioso e atento, ansioso por aprender, mas não por agradar ou impressionar. Deixou isso para Finch e para Baker, um estudante de literatura de Oxford que já andava a tirar apontamentos para o seu primeiro romance de espiões. Keller falava apenas quando lhe dirigiam a palavra e nem uma só vez levantou a mão ou deu voluntariamente uma resposta. Foi tão invisível quanto um homem conseguia ser numa sala exígua com doze alunos. Mas, mais uma vez, esse era o seu talento especial: tornar-se invisível perante aqueles que o rodeavam.

Nas ruas da cidade vizinha de Portsmouth, onde realizaram a maioria dos seus exercícios no terreno, as formidáveis habilidades de Keller foram mais difíceis de ocultar. Recolheu todos os itens dos locais secretos sem erguer sequer um sobrolho; as suas trocas velozes e discretas de informações entre agentes foram exemplares. Seis semanas após o início do curso, o MI5 enviou uma equipa de sentinelas A4 para auxiliar num exercício de contraespionagem que duraria o dia todo. O objetivo do exercício era demonstrar que a vigilância física adequada (a vigilância a sério, não a que se praticava na república das bananas) era quase impossível de detetar. Os restantes recrutas não conseguiram reconhecer nem uma das sentinelas do MI5, mas Keller foi capaz de identificar corretamente quatro membros da equipa especializada que o seguiu durante um passeio ao centro comercial Cascades. Incrédulos, os agentes do MI5 exigiram uma réplica, cujos resultados foram os mesmos. A sessão do dia seguinte foi dedicada não a identificar a vigilância, mas a despistá-la. Keller livrou-se da sua equipa nuns meros cinco minutos e desapareceu sem deixar rasto. Encontraram-no mais tarde, nessa mesma noite, a cantar com sotaque francês num karaoke do Druid’s Arms, na Binsteed Road. Abandonou o pub com o nome, número de telefone e morada de toda a gente que lá estava, para além de uma proposta de casamento. Na manhã seguinte, Quill telefonou à divisão de Pessoal em Vauxhall Cross e perguntou onde é que tinham encontrado o homem chamado Peter Marlowe.

— Não o encontrámos — responderam da divisão de Pessoal. — É da reserva privada do «C».

— Mandem-me mais dez exatamente como ele — disse Quill. — E a Grã-Bretanha voltará a governar o mundo.

O verdadeiro trabalho do IONEC era feito à noite, na sala de refeições e no bar privado dos recrutas. Eram encorajados a beber (o álcool, diziam-lhes, desempenhava um papel importante na vida de um espião) e, várias vezes por semana, um convidado especial juntava-se a eles para jantar. Diretores de divisão, especialistas da polícia, agentes lendários. Alguns ainda estavam no ativo. Outros eram figuras cobertas de teias de aranha, com fatos amarrotados, que recordavam os seus duelos com o KGB em Berlim, Viena e Moscovo. A Rússia era, mais uma vez, o alvo prioritário e o maior adversário do MI6: o grande jogo, disse um encarquilhado combatente da Guerra Fria, tinha recomeçado. Quill advertiu os alunos de que, a seu tempo, os russos tentariam seduzir cada um deles, com bajulação, ofertas de dinheiro ou chantagem. A forma como respondessem à chamada do urso determinaria se conseguiriam dormir à noite ou se apodreceriam num inferno construído por si próprios. Depois, passou um vídeo da famosa conferência de imprensa de Kim Philby, em 1955, onde este negou ser um espião do KGB. Quill chamou-lhe a maior mentira que alguma vez vira ou veria.

James Bond poderia ter tido licença para matar, mas, no mundo real, os agentes do MI6 não tinham. O assassinato como ferramenta era estritamente proibido e a maioria dos espiões britânicos raramente transportava uma arma, muito menos a disparava no cumprimento do dever. Ainda assim, não eram meramente espiões de bancada, pelo menos não todos, e o mundo era um local cada vez mais perigoso. O que significava que tinham de possuir conhecimentos básicos de como usar uma arma: onde introduzir o carregador, como colocar a bala na câmara, como segurar na geringonça para não dar um tiro em si próprios ou num colega agente, esse tipo de coisas. Aqui, novamente, a destreza de Keller foi difícil de camuflar. No primeiro dia de treino com armas, o instrutor entregou-lhe uma pistola, uma Browning de nove milímetros, e disse-lhe que a disparasse na direção do alvo com silhueta humana que se encontrava no fundo da carreira de tiro, a quinze metros de distância. Keller ergueu a arma rapidamente e, aparentemente sem fazer pontaria, despejou as treze balas do carregador, perfurando a cabeça do alvo com todas. Quando lhe pediram que repetisse o exercício, fez com que todas as balas do carregador atravessassem o olho esquerdo do alvo. Daí em diante, foi dispensado de qualquer treino adicional com armas de fogo. Nem sequer lhe foi requerido que participasse no rudimentar curso de autodefesa do IONEC. Não depois de quase ter deslocado o ombro de um instrutor que, insensatamente, lhe apontara uma arma. Depois disso, ninguém, nem sequer Mayhew, que tinha a constituição de um jogador de râguebi, se atreveria a pisar um tapete de treino com ele.

Em grande medida, eram mantidos afastados da população civil que os rodeava, mas Mayhew e Quill não faziam qualquer esforço para os isolarem do mundo exterior; na verdade, longe disso. Todas as manhãs, uma pilha de jornais britânicos e internacionais aguardava-os ao pequeno-almoço e, na sala de estar, havia uma televisão que transmitia todos os canais de notícias europeus e internacionais. Reuniram-se à sua volta na noite do atentado em Londres, com desespero, com raiva e com a consciência de que aquela era a guerra que, em breve, todos estariam a combater. Um deles, antes dos restantes.

Na semana seguinte, o IONEC chegou ao fim. Os doze membros do contingente passaram com facilidade, com Peter Marlowe a receber a nota mais elevada e Finch a surgir num respeitável, mas distante, segundo lugar. Nessa noite, jantaram juntos pela última vez na companhia de Mayhew e Quill. E, de manhã, colocaram as chaves dos seus quartos na secretária do velho George Halliday e carregaram a respetiva bagagem para o pátio exterior, onde Reg, o motorista, aguardava ao volante de um autocarro para os levar, já como espiões recém-formados, para Londres. Contudo, um deles estava ausente. Procuraram-no incessantemente, nos quartos da ala este, na ala oeste e na ala principal, na carreira de tiro, no campo de ténis, no de croquet e no ginásio até que, finalmente, às nove da manhã, Reg partiu para Londres com onze recrutas em vez de doze. Foi Quill quem encontrou a corda sob a sua janela, a minúscula amostra de tecido a esvoaçar como um galhardete no arame que havia no topo da vedação do perímetro e as pegadas recentes ao longo da praia, feitas por um homem apressado que pesava, aproximadamente, uns noventa quilos, na sua maioria de massa muscular. Uma pena, pensou Quill. Mais dez exatamente como ele e a Grã-Bretanha teria voltado a governar o mundo.

 

[1] No original IONEC (Intelligence Officers New Entry Course). (N.T.)


6

 

WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR

 

 


A rota precisa da sua fuga, tal como a evasão de Saladino da América, nunca foi determinada com exatidão. Contudo, havia pistas, como o Volkswagen Jetta, azul pálido, cujo furto do parque de estacionamento do supermercado Morrisons, em Gosport, foi participado nessa mesma manhã. Foi descoberto à tarde, cerca de cento e sessenta quilómetros a oeste, em Devon, estacionado à porta da loja e posto dos correios do minúsculo lugarejo de Coldeast. O depósito fora atestado com gasolina e no tabliê havia um bilhete, manuscrito, onde se pedia desculpa ao proprietário por qualquer inconveniente. A Polícia de Hampshire, que possuía jurisdição sobre o assunto, abriu uma investigação que terminou de forma abrupta, depois de um telefonema de Tony Quill para o chefe da polícia, que lhe entregou respeitosamente o bilhete e a gravação de videovigilância do parque de estacionamento do Morrisons, embora, mais tarde, tenham ouvido o chefe comentar que estava farto das artimanhas dos rapazes da velha fortaleza cinzenta do rei Henrique. Fazer brincadeiras de espiões nas ruas de Portsmouth era uma coisa. Mas roubar o carro de um pobre coitado, embora com o objetivo de realizar um exercício de treino, era simplesmente má educação.

A cidade de Coldeast era digna de nota apenas pelo facto de repousar na extremidade do Parque Nacional de Dartmoor. No dia em questão, chovia copiosamente e escurecera antes do previsto. Consequentemente, ninguém reparou em Christopher Keller que caminhava ao longo da Old Liverton Road, de mochila ao ombro. Quando chegou ao Liverton Village Hall, a noite estava escura como breu. Não importava; sabia o caminho. Virou para um caminho ladeado de sebes e seguiu-o para norte, passando pela Old Leys Farm. Uma vez, teve de afastar-se para a berma para permitir a passagem de uma carrinha agrícola, antiga e ruidosa, mas, fora isso, parecia ser o último homem à face da terra.

A Grã-Bretanha está melhor agora que estás aqui para tomares conta dela...

Em Brimley, mudou de direção para oeste e seguiu uma série de caminhos pedestres até Postbridge. Para lá da povoação, havia uma estrada que não constava de nenhum mapa e, no final da estrada, havia um portão que revelava uma serena autoridade. Parish, o guarda permanente, esquecera-se de o destrancar. Keller trepou-o, sem produzir um som, e subiu pelo longo caminho de gravilha em direção à casa de campo de pedra que se erguia sobre um promontório na charneca desolada. Uma luz amarela brilhava, como uma vela, sobre a porta da frente destrancada. Entrando, Keller limpou cuidadosamente os pés no tapete. O ar cheirava a carne, ervas aromáticas e batata. Espreitou para o interior da cozinha e viu a senhora Coventry de pé, coberta de pó e com uma aparência vagamente imponente, diante de um forno aberto, com um avental atado à larga cintura.

— Senhor Marlowe — disse ela, virando-se. — Estávamos à sua espera mais cedo.

— Atrasei-me um bocadinho a sair.

— Espero que não tenha tido nenhum problema.

— Não, nenhum.

— Mas olhem só para si! Coitadinho. Veio a pé de Londres?

— Não exatamente — disse Keller com um sorriso.

— Está a pingar o meu chão todo.

— Consegue perdoar-me?

— Não me parece muito provável. — Ela aliviou-o do casaco encharcado. — Preparei o seu antigo quarto. Tem roupa lavada e alguns artigos de higiene. Tem tempo para tomar um belo banho quente antes de o «C» chegar.

— O que é o jantar?

— Empadão de carne.

— A minha refeição favorita.

— Foi por isso que o fiz. Uma chávena de chá, senhor Marlowe? Ou prefere alguma coisa mais forte?

— Talvez um bocadinho de uísque para aquecer os ossos.

— Vou preparar-lho. Agora, vá lá para cima antes que se constipe.

Keller deixou os sapatos no hall de entrada e subiu as escadas até ao seu quarto. Havia uma muda de roupa disposta organizadamente sobre a cama. Calças de bombazina, uma camisola verde-azeitona, roupa interior, um par de sapatos de camurça, tudo do tamanho apropriado. Havia também um maço de Marlboro e um isqueiro dourado. Keller leu a inscrição. Ao futuro... Sem saudação, sem nome. Não era necessário.

Keller arrancou a roupa molhada e permaneceu de pé sob um chuveiro a escaldar durante muito tempo. Quando regressou ao quarto, havia um copo de uísque na mesa de cabeceira, sobre um naperão branco do MI6. Já vestido, transportou a bebida para a sala de visitas no andar de baixo, onde encontrou Graham Seymour sentado diante da lareira, elegantemente envolto em tweed e flanela. Estava a ouvir as notícias num velho rádio de baquelite.

— O carro roubado — disse, erguendo-se — foi um belo detalhe.

— É melhor agitar um pouco as águas num caso como este, não foi isso que me ensinaste nos velhos tempos?

— Foi? — Seymour fez um sorriso travesso. — Estou simplesmente feliz por não teres recorrido à violência.

— Um agente do MI6 — disse Keller com severidade fingida — nunca recorre à violência. E se, efetivamente, sentir necessidade de empunhar uma arma ou de dar um soco, é apenas porque não fez devidamente o seu trabalho.

— Talvez tenhamos de repensar essa abordagem — disse Seymour. — Só tenho pena de perder um homem como o Peter Marlowe. Ouvi dizer que as notas dele no IONEC foram deveras impressionantes. O Andy Mayhew ficou tão perturbado com o teu desaparecimento que pôs o lugar à disposição.

— Mas o Quill não?

— Não — respondeu Seymour. — O Quill é feito de um material mais resistente.

— Espero que não tenhas sido demasiado severo com o pobre Andy.

— Assumi a responsabilidade, embora tenha ordenado uma revisão completa do perímetro de segurança do Forte.

— Quem mais é que sabe da nossa pequena artimanha?

— O diretor de divisão da Europa Ocidental e dois dos seus mais altos funcionários administrativos.

— Então e o Whitehall?

— A Comissão Conjunta dos Serviços Secretos — disse Seymour, abanando a cabeça — está totalmente às cegas.

Os membros da Comissão eram os supervisores e superintendentes do MI5 e MI6. Estabeleciam prioridades, avaliavam o produto, aconselhavam o primeiro-ministro e obrigavam certos espiões a cumprir as regras do jogo. Graham Seymour chegara à conclusão de que os serviços secretos precisavam de espaço de manobra e de que, num mundo perigoso, rodeado de ameaças, ocasionalmente, precisavam de sujar um pouco as mãos. Daí a sua renovada relação com Christopher Keller.

— Sabes — disse Seymour, com os olhos pousados na robusta figura de Keller —, pareces quase um dos nossos novamente. É uma pena que tenhas de te ir embora.

Entraram na cozinha e sentaram-se à mesa, no pequeno recanto aconchegado, com as suas janelas de chumbo viradas para a charneca. A senhora Coventry serviu-lhes o empadão de carne com um vinho de Bordéus, proveniente da adega bem abastecida, e uma salada verde para facilitar a digestão. Seymour passou grande parte da refeição a interrogar Keller sobre o IONEC. Interessava-lhe particularmente a qualidade dos outros membros do contingente.

— Não vês as avaliações e as notas? — perguntou Keller.

— Claro. Mas valorizo a tua opinião.

— O Finch dá má reputação às serpentes — disse Keller —, o que significa que tem o que é preciso para ser um bom espião.

— As notas do Baker também foram bastante boas.

— Tal como o primeiro capítulo do thriller em que está a trabalhar.

— E o curso em si? — perguntou Seymour. — Conseguiram ensinar-te alguma coisa?

— Isso depende.

— De quê?

— De como tencionas utilizar-me.

Com o sorriso cuidadoso de um espião, Seymour declinou o subtil convite de Keller para o informar sobre a sua missão inaugural como agente de pleno direito do MI6. Em vez disso, enquanto a chuva fustigava intensamente as janelas da copa, falou do seu pai. Arthur Seymour servira a Inglaterra como espião durante mais de trinta anos. Porém, no final da sua carreira, quando foi completamente destruído por Philby e pelos outros espiões e traidores, o serviço enviou-o para o promontório de pedra cinzenta junto ao mar, para que ateasse o fogo secreto da sua paixão pelo ofício no seio da geração seguinte de espiões britânicos.

— E ele odiou cada minuto desse trabalho — disse Seymour. — Viu aquilo como o que realmente era: o fim da linha. O meu pai sempre pensou no Forte como uma cripta para onde o Serviço tinha enviado o seu corpo velho e desgastado.

— Se o teu pai te pudesse ver agora...

— Sim — disse Seymour. — Se me pudesse ver agora, de facto.

— O velhote era exigente contigo?

— Era exigente com toda a gente, especialmente com a minha mãe. Felizmente, mal se lembrava de mim. Estive com ele em Beirute durante seis meses, nos anos sessenta, quando o Philby também estava lá. A seguir, despachou-me para a escola. Depois disso, era alguém que eu só via duas vezes por ano.

— Deve ter ficado dececionado contigo, quando te juntaste ao MI5.

— Ameaçou deserdar-me. Achava que o MI5 eram polícias e agentes proletários, a mesma coisa que todos os membros do MI6 achavam.

— Então, porque é que o fizeste?

— Porque preferia ser julgado com base nos meus próprios feitos. Ou talvez — disse Seymour, passado um momento — não quisesse juntar-me a um serviço que tinha sido deixado nas últimas pelos traidores. Talvez quisesse apanhar espiões, em vez de os recrutar. Talvez quisesse impedir que as bombas do IRA explodissem nas nossas ruas. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Foi aí que tu entraste.

Houve um silêncio.

— Fizemos um bom trabalho juntos em Belfast, tu e eu. Impedimos muitos atentados, salvámos inúmeras vidas. E o que é que tu fizeste? Fugiste e juntaste-te à quadrilha de assassinos do Don Orsati.

— Omitiste algumas coisas desse teu relato.

— Apenas por uma questão de tempo. — Seymour abanou a cabeça, lentamente. — Fiz o luto por ti, seu filho da mãe. E os teus pais também. No teu funeral, tentei confortar o teu pai, mas estava inconsolável. O que lhes fizeste foi uma coisa terrível.

Keller acendeu um cigarro e, depois, entregou o novo isqueiro dourado a Seymour.

— Lembras-te do que diz a inscrição?

— Já percebi. É tudo passado. Foste plenamente restaurado, Christopher. Estás como novo. Agora, só precisas de uma rapariga jeitosa para partilhar aquela tua linda casa em Kensington. — Seymour esticou a mão para pegar nos cigarros de Keller, mas parou. — Oito milhões de libras, uma quantia bem generosa. Pelos meus cálculos, isso deixa-te com uns meros vinte e cinco milhões, tudo isso a trabalhar para o Don Orsati. Agora, pelo menos, o dinheiro está numa instituição britânica respeitável, e não num daqueles bancos da Suíça ou das Bahamas que costumavas usar. Foi repatriado, exatamente como tu.

— Tínhamos um acordo — disse Keller serenamente.

— E tenciono cumpri-lo. Não te preocupes, podes ficar com o teu dinheiro sujo.

Keller não deu qualquer resposta.

— E a rapariga? — inquiriu Seymour, mudando de assunto. — Alguém em perspetiva? Tens consciência de que teremos de a investigar minuciosamente, não tens?

— Tenho andado um bocado ocupado, Graham. Não tive oportunidade de conhecer muitas raparigas.

— Então e aquela que te fez um pedido de casamento no Druid’s Arms?

— Estava bastante bêbada, na altura. Para além disso, achava que eu era francês.

Seymour sorriu.

— Não será a primeira a cometer esse erro.


7

 

LONDRES – CÓRSEGA

 

 


Há quinze anos que Christopher Keller não permitia que ninguém lhe tirasse uma fotografia. Da última vez, estava empoleirado sobre um banco de madeira alto e bambo, numa lojinha no alto dos montes do centro da Córsega. Das paredes da loja pendiam retratos (noivas, viúvas, patriarcas), todos com expressões carrancudas, pois os habitantes da povoação eram gente séria que desconfiava de forasteiros e de geringonças modernas como máquinas fotográficas, consideradas distribuidoras de mau-olhado. O fotógrafo era parente de Don Antoni Orsati, um primo afastado, não de sangue mas por afinidade. Ainda assim, sentira-se intimidado na presença daquele inglês duro e taciturno de quem se dizia que executava missões para o clã Orsati que os taddunaghiu vulgares não conseguiam levar a cabo. O fotógrafo tirara-lhe seis fotografias nesse dia; Keller não parecia, nem sequer remotamente, a mesma pessoa em nenhuma delas. As fotografias apareceram em seis passaportes franceses falsos que Keller usou ao longo da sua carreira de assassino profissional. Dois dos passaportes ainda estavam válidos. Mantinha um deles num cofre de um banco em Zurique, o outro em Marselha, um facto que não mencionara aos seus novos empregadores dos serviços secretos. Nunca se sabia, cogitou, quando seria necessário ter um trunfo na manga.

O técnico que tirou a fotografia de Keller para o MI6 também se sentiu amedrontado pelo sujeito e, por conseguinte, trabalhara com uma pressa invulgar. A sessão teve lugar não em Vauxhall Cross (a exposição de Keller ao edifício deveria ser estritamente limitada), mas numa cave em Bloomsbury. O produto acabado mostrava um homem carrancudo, de cerca de cinquenta anos, que parecia ter regressado recentemente de umas longas férias ao sol. O seu nome, de acordo com o passaporte no qual a fotografia foi eventualmente colocada, era Nicholas Evans, e não tinha cinquenta anos, mas sim quarenta e oito. O MI6 forneceu a Keller uma carta de condução britânica com o mesmo nome, juntamente com três cartões de crédito e uma pasta cheia de ficheiros relacionados com o seu disfarce, que tinha algo a ver com vendas e marketing. Keller também se apossou de um telemóvel do MI6 que lhe permitiria comunicar de forma segura com Vauxhall Cross enquanto estivesse no terreno. Deduzia, e com razão, que por sua vez Vauxhall Cross utilizaria o telefone para monitorizar os seus movimentos e, se necessário, espiar as suas conversas. Por conseguinte, planeou desfazer-se do aparelho na primeira oportunidade.

Deixou Londres na manhã seguinte, no Eurostar das cinco e quarenta para Paris, que chegou ao seu destino às nove menos um quarto, daí que Keller tenha disposto de quase duas horas para determinar se estava a ser seguido. Usando as técnicas ensinadas por Mayhew e Quill no Forte (e outras que aprendera nas ruas de West Belfast) determinou, sem sombra de dúvidas, que não estava.

O seu comboio seguinte, o TGV para Marselha, partiu da Gare de Lyon às onze e meia da manhã. Passou a viagem a trabalhar diligentemente no computador portátil para manter o seu disfarce, enquanto, para lá da janela, as cores do sul de Cézanne (amarelo de crómio, terra de siena queimada, verde viridian, azul ultramarino) passavam num lampejo pela sua visão periférica, como uma agradável memória de infância. Chegou a Marselha às duas e passou a hora seguinte a deambular pelas ruas encardidas e familiares do centro da cidade, até se certificar de que a sua chegada passara inadvertida. Finalmente, na Place de la Joliette, entrou no banco privado Société Générale, onde Monsieur Laval, o seu gestor de conta, lhe concedeu acesso ao cofre. Dele, retirou o passaporte francês falso, juntamente com cinco mil dólares em dinheiro. No seu interior depositou o telefone, o passaporte, a carta de condução, os cartões de crédito e o computador portátil do MI6.

No exterior, percorreu uma curta distância ao longo do Quai du Lazaret até ao terminal do ferry, onde comprou um bilhete para a travessia noturna para a Córsega, num camarote em primeira classe. O funcionário do balcão não estranhou o facto de ter pagado com dinheiro. Afinal de contas, estavam em Marselha e o ferry tinha Ajaccio como destino. Num café das proximidades, pediu uma garrafa de um Bandol rosé que bebeu até meio do rótulo enquanto lia o Le Figaro, satisfeito pela primeira vez em muitos meses. Uma hora depois, alerta, mas agradavelmente inebriado, estava de pé, na proa do ferry que sulcava o Mediterrâneo rumo ao sul, e um antigo provérbio veio-lhe à cabeça: Quem tem duas mulheres perde a alma. Mas quem tem duas casas perde o juízo.

 

Pouco antes do romper da aurora, Keller acordou com o cheiro de alecrim e alfazema que penetrava pela janela entreaberta do camarote. Levantou-se, vestiu a sua roupa inglesa cinzenta e branca e, vinte minutos depois, saiu do ferry em fila indiana, na companhia de uma família de corsos anafados, que estavam mais mal-humorados do que o habitual devido ao horário madrugador. Num bar do outro lado da rua, em frente do terminal, perguntou se podia usar o telefone para fazer uma chamada local. Em circunstâncias normais, o proprietário poderia ter encolhido os ombros em sinal de contrariedade perante tal pedido vindo de um estrangeiro. Ou até lhe poderia ter explicado que o telefone não funcionava desde o último siroco. Mas Keller fez o seu pedido utilizando impecavelmente o dialeto da ilha. E o proprietário ficou tão chocado que até sorriu, enquanto colocava o telefone sobre o balcão. Depois, espontaneamente, preparou uma chávena de café forte e um pequeno copo de água para Keller, pois estava muito frio nessa manhã e um homem não poderia enfrentar um tempo assim sem qualquer coisinha para fortalecer o sangue.

O número que Keller marcou só era do conhecimento de um reduzido número de ilhéus, entre os quais não constava nenhum elemento das autoridades francesas. O homem que atendeu pareceu ficar satisfeito e, curiosamente, nada surpreendido ao ouvir a voz de Keller. Instruiu-o para permanecer no café; enviaria um carro para o ir buscar. Este chegou uma hora depois, conduzido por um jovem chamado Giancomo. Keller conhecia-o desde miúdo. O desejo de Giancomo era ser um taddunaghiu como Keller, que idolatrava. Por agora, era um moço de recados para o don. Na Córsega, havia coisas piores que um jovem rapaz de vinte e cinco anos poderia ser.

— O don disse que o senhor nunca mais ia voltar.

— Até o don — disse Keller filosoficamente — se engana às vezes.

Giancomo franziu o sobrolho, como se Keller tivesse proferido uma heresia.

— O don é como o Santo Padre. É infalível.

— Agora e para sempre — disse Keller, em voz baixa.

Percorriam a costa ocidental da ilha. Na cidade de Porto, viraram para o interior por uma estrada ladeada de olivais e pinheiros-larícios, e iniciaram a longa e sinuosa subida até às montanhas. Keller abriu a janela. Eis novamente, alecrim e alfazema, o cheiro da macchia, um tapete denso e emaranhado de vegetação rasteira que definia a mesmíssima identidade da ilha e que cobria a Córsega de este a oeste, de uma ponta à outra. Os corsos usavam a macchia para temperarem os seus pratos, para aquecerem as suas casas no inverno e para nela se refugiarem em tempos de guerra e vendetta. De acordo com uma lenda corsa, um homem perseguido poderia refugiar-se na macchia e, se o desejasse, ali permanecer escondido para sempre sem ser descoberto. Keller sabia que era verdade.

Pouco depois, chegaram à antiga aldeia dos Orsatis, um aglomerado de casas cor de grés com telhados vermelhos, agrupadas em redor do campanário de uma igreja. Diziam que existia desde o tempo dos Vândalos, quando os povoadores da costa procuravam refúgio nos montes. A propriedade histórica de Don Orsati estendia-se mesmo ao lado da aldeia, num pequeno vale povoado de olivais que produziam o melhor azeite da ilha. Dois homens armados montavam guarda à entrada. Em sinal de respeito, tocaram nos seus chapéus tipicamente corsos, enquanto Giancomo virava para atravessar o portão e começava a subir o longo caminho de acesso à casa.

Estacionou entre as espessas sombras do pátio da frente. Keller entrou sozinho na villa e subiu os degraus de pedra fria até ao escritório do don. Este estava sentado numa grande mesa de carvalho, a perscrutar um livro de contas aberto, com encadernação de couro. Era um homem grande para os parâmetros corsos, com uma altura superior a um metro e oitenta e largo de ombros e costas. Envergava um par de calças largas, sandálias de couro empoeiradas e uma camisa branca impoluta que a sua esposa engomava todas as manhãs e, novamente, à tarde, quando se levantava da sesta. Tinha o cabelo preto, tal como os olhos. Junto ao seu cotovelo, havia uma garrafa decorativa de azeite Orsati, o negócio legal através do qual o don lavava os dividendos da morte.

— Como vai o negócio? — perguntou Keller, finalmente.

— Qual deles? O do sangue ou o do azeite? — No mundo de Don Orsati, sangue e azeite fluíam juntos numa única empresa sem fissuras.

— Ambos.

— O do azeite, não muito bem. Esta economia estagnada está a dar cabo de mim. E os britânicos com este disparate do Brexit! — Gesticulou como se estivesse a dispersar um odor pestilento.

— E o do sangue? — perguntou Keller.

— Por acaso viste a notícia sobre o empresário alemão que desapareceu do Hotel Carlton, em Cannes, na semana passada?

— Onde é que ele está?

— Oito quilómetros a oeste de Ajaccio. — O don sorriu. — Ou coisa que o valha.

— Vivo numa hora — disse Keller, citando um provérbio corso —, morto na seguinte.

— Lembra-te, Christopher, a vida dura apenas o tempo que demoramos a passar por uma janela. — O don fechou o livro de contas com a firmeza de quem fecha um caixão e observou Keller pensativamente. — Não esperava ver-te de volta à ilha tão cedo. Tens dúvidas quanto à tua nova vida?

— Tenho mais do que dúvidas — respondeu Keller.

Aquilo agradou ao don. Continuou a avaliar Keller com os seus olhos negros. Era como sentir-se observado por um cão.

— Espero que os teus amigos dos serviços de espionagem britânicos não saibam que estás aqui.

— É possível — disse Keller, candidamente. — Mas, não se preocupe, o seu segredo está a salvo comigo.

— Não me posso dar ao luxo de não me preocupar. Quanto aos britânicos — disse o don —, não são de confiança. És o único habitante dessa ilha pavorosa com quem simpatizo. Se, pelo menos, deixassem de vir passar as férias de verão para cá, tudo seria muito mais agradável.

— É bom para a economia da ilha.

— Bebem demasiado.

— Temo que seja um mal cultural.

— E agora — disse o don —, és novamente um deles.

— Quase.

— Deram-te um nome novo?

— Peter Marlowe.

— Prefiro o antigo.

— Não estava disponível. O pobre sujeito morreu, sabe.

— E os teus novos empregadores? — perguntou o don.

— Todas as camas têm pulgas — disse Keller.

— Só a colher — respondeu o don — conhece as dores da panela.

Com isso, um silêncio cúmplice instalou-se entre eles. Só se ouvia o vento nos pinheiros-larícios e a crepitação da lenha de macchia que perfumava o ar no grande escritório do don. Muito tempo depois, perguntou a Keller porque é que regressara à Córsega e o inglês, com um gesto indiferente de cabeça, insinuou que voltara por motivos relacionados com o seu novo ramo de atividade.

— Foram os serviços secretos britânicos que te enviaram?

— Mais ou menos.

— Não fales comigo através de enigmas, Christopher.

— Não tinha um provérbio adequado na ponta da língua.

— Os nossos provérbios — disse o don — são sagrados e acertam sempre. Agora, diz-me porque é que estás aqui.

— Estou à procura de um homem. Um marroquino que se autodenomina o Escorpião.

— E se eu aceitar ajudar-te? — O don bateu suavemente com os dedos na capa de couro do seu livro de contas.

Keller não disse nada.

— Não ganho dinheiro a cantar, Christopher.

— Estava à espera que pudesse fazer isto como um favor pessoal.

— Abandonas-me, e agora queres utilizar os meus serviços gratuitamente?

— Isso também é um provérbio?

O don franziu o sobrolho.

— E se eu conseguir encontrar esse homem? O que é que acontece a seguir?

— Os meus amigos dos serviços secretos britânicos acham que talvez seja uma boa ideia fazer negócio com ele.

— Qual é o ramo de atividade dele?

— Droga, aparentemente. Mas, nos tempos livres, fornece armas ao ISIS.

— Ao ISIS? — Don Orsati abanou a cabeça gravemente. — Suponho que isto tenha alguma coisa a ver com os atentados em Londres.

— Suponho que sim.

— Nesse caso — disse o don —, vou fazê-lo de graça.


8

 

CÓRSEGA

 

 


A esperança média de vida da espécie Capra aegagrus hircus, também conhecida como cabra doméstica, é de quinze a dezoito anos. Por conseguinte, o velho bode pertencente a Don Casabianca, um notável que detinha grande parte do vale adjacente ao dos Orsatis, excedera definitivamente o seu tempo de permanência na Terra. Segundo os cálculos de Keller, o animal consumia oxigénio precioso há mais de vinte e quatro anos, grande parte deles à sombra das três oliveiras antigas que se erguiam, exatamente, antes da curva apertada para a esquerda, no caminho de terra e gravilha que conduzia à villa de Keller. Uma criatura anónima, com as manchas de um cavalo palomino e uma barba ruiva, que bloqueava o caminho a seu bel-prazer, negando o acesso àqueles que não lhe agradavam. Keller, um forasteiro do continente que não possuía sangue corso nas veias, nutria por ele um especial ressentimento. A deles era uma guerra de vontades de longa data e, frequentemente, era o bode que levava a melhor. Em diversas ocasiões, Keller ponderara pôr fim ao impasse com um tiro certeiro entre os olhos malévolos do animal. Contudo, isso teria sido um erro grave. O bode desfrutava da proteção de Don Casabianca. E, se Keller tocasse num pelo da sua maldita cabeça, haveria uma disputa. Nunca se sabia onde uma disputa poderia terminar. Poderia ser resolvida amigavelmente, com um copo de vinho, um pedido de desculpas ou algum tipo de restituição. Ou poderia arrastar-se durante meses, ou até mesmo anos. Consequentemente, Keller não tinha outra opção senão aguardar pacientemente pelo falecimento do bode. Sentia-se como um filho avarento que fazia contas à sua herança, enquanto o pai abastado se agarrava à vida teimosamente e por pura maldade.

— Tinha esperança — disse Keller, maldisposto — de evitar esta cena.

— Ele apanhou um susto em outubro. — Giancomo bateu impacientemente com um dedo no volante. — Ou talvez tenha sido em novembro.

— A sério?

— Cancro. Ou talvez tenha sido uma infeção nos intestinos. O Don Casabianca trouxe cá o padre para administrar a extrema unção.

— O que é que aconteceu?

— Um milagre — disse Giancomo, encolhendo os ombros.

— Que infelicidade. — Keller e o bode trocaram um olhar longo, tenso. — Tenta buzinar.

— Não pode estar a falar a sério.

— Talvez desta vez funcione.

— Obviamente — disse Giancomo —, esteve fora algum tempo.

Com um profundo suspiro, Keller saiu do carro. O bode ergueu o queixo de modo provocador e manteve firmemente a sua posição, enquanto Keller, com as pontas dos dedos a apertarem a ponte do nariz, ponderou as suas opções. A sua tática habitual era um ataque frontal acompanhado por uma série de impropérios e movimentos furiosos de braços no ar; na maioria dos casos, o velho bode cedia e fugia para a macchia, o esconderijo de patifes e bandidos. Mas, naquela manhã, Keller não se sentia com estômago para um confronto. Estava exausto da viagem e um pouco enjoado do ferry. Para além disso, o bode, esse velho filho da mãe, tinha passado um mau bocado ultimamente, com o cancro e o problema nos intestinos e a extrema unção administrada pelo padre da aldeia. E desde quando é que a Igreja admitia a dispensa de sacramentos sagrados a caprinos de cascos fendidos? Só mesmo na Córsega, pensou Keller.

— Ouve — disse ele finalmente, encostando-se contra o capô do carro —, a vida é demasiado curta para este tipo de disparates. — Poderia ter acrescentado que a vida dura apenas o tempo que demoramos a passar por uma janela, mas achou que o bode, que afinal de contas era simplesmente um bode, não entenderia a analogia. Em vez disso, Keller falou da importância dos amigos e da família. Confessou que cometera muitos erros na vida e que, agora, depois de muitos anos em território selvagem, regressara a casa e se sentia quase feliz. Tinha apenas uma quezília, aquela, e desejava resolver as coisas antes que fosse demasiado tarde. O tempo, esse grande conquistador, não poderia ser mantido ao largo para sempre.

Perante isso, o bode inclinou a cabeça para o lado, da mesma forma que fizera um homem que Keller fora contratado para matar muitos anos antes. Então, deu alguns passos à frente e lambeu as costas da mão de Keller antes de se retirar para a sombra das três oliveiras centenárias. O sol brilhava intensamente sobre a villa de Keller, enquanto Giancomo virava para o caminho de acesso à casa. O ar cheirava a alecrim e alfazema.

 

No interior, Keller encontrou os seus bens (a extensa biblioteca, a modesta coleção de quadros de impressionistas franceses) precisamente como os deixara, embora cobertos com uma camada de poeira fina. Era a poeira saariana, supôs, transportada através do Mediterrâneo pelo último siroco. Tunisina, argelina, talvez marroquina, tal como o homem que Don Orsati se propusera encontrar em nome de Keller.

Ao entrar na cozinha, descobriu a despensa e o frigorífico abastecidos de produtos. De alguma forma, o don tivera conhecimento antecipado do regresso de Keller. Serviu um copo de um rosé pálido da Córsega e transportou-o para o seu quarto no andar de cima. Havia uma pistola Tanfoglio carregada pousada na mesa de cabeceira, sobre um livro de McEwan. Vários fatos de negócios pendiam, em ordem, do armário (a indumentária do ex-diretor de vendas para o norte e centro da Europa da Companhia Olivícola Orsati) e, atrás de uma porta secreta, havia uma vasta seleção de roupa para qualquer ocasião ou assassinato. As calças de ganga rasgadas e as camisolas de lã do boémio errante, a seda e ouro de um ricaço do jet set, os forros polares e Gore-Tex de um montanhista aventureiro. Havia até uma batina e cabeção de um padre católico, juntamente com um breviário e um kit de viagem para dar missas. Ocorreu a Keller que os disfarces, tal como os seus passaportes franceses falsos, poderiam vir a revelar-se úteis no seu novo ramo de atividade. Pensou no telemóvel e no computador portátil do MI6, cujas baterias se esgotavam lentamente no cofre do banco, em Marselha. Certamente, nesse momento, Vauxhall Cross já tinha conhecimento de que os aparelhos estavam imóveis há mais de doze horas. A dada altura, Keller teria de dizer a Graham Seymour que estava vivo e de boa saúde. A dada altura, pensou novamente.

Keller mudou de roupa, vestindo um par de calças amarrotadas e uma camisola felpuda de lã, e transportou o vinho e o livro de McEwan para o terraço no andar de baixo. Estendido na espreguiçadeira de ferro forjado, recomeçou a ler o romance onde o deixara, a meio de uma frase, como se a interrupção tivesse ocorrido há alguns minutos, e não há muitos meses. Era a história de uma jovem mulher, estudante em Cambridge, atraída para os serviços secretos britânicos no início dos anos setenta. Keller achava que tinha pouco em comum com a personagem, mas, ainda assim, gostava do livro. Passado pouco tempo, uma sombra invadiu a página. Arrastou a espreguiçadeira através do terraço e encostou-a à balaustrada, onde permaneceu até que a escuridão e o frio o conduziram para dentro. Nessa noite, uma tramontana gélida soprou de nordeste, soltando várias telhas do telhado de Keller. Isso não o incomodou. Dar-lhe-ia algo para fazer enquanto aguardava que o don encontrasse o homem chamado o Escorpião.

Passou os dias seguintes sem qualquer plano ou propósito. A reparação do telhado consumiu apenas parte de uma manhã, incluindo as duas horas que passou na loja de ferragens de Porto, a discutir sobre os estragos provocados pela recente série de ventos com diversos homens das aldeias circundantes. Parecia que a tramontana, que vinha da região do Pó, soprara com mais frequência do que era habitual, tal como o maestrale, que era como os corsos, donos de uma independência feroz, denominavam o vento que vinha do Vale do Rhône. Todos concordavam que fora um inverno difícil, o que, segundo os provérbios corsos, prometia uma primavera benevolente. Keller, cujo futuro era incerto, absteve-se de comentar.

Durante as tardes, trepava os picos íngremes do centro da ilha (Rotondo, d’Oro, Renoso) e fazia caminhadas pelos vales de macchia banhados pelo sol. Na maioria das noites, jantava com Don Orsati na propriedade. Depois disso, enquanto tomavam brandy no escritório do don, sondava-o delicadamente sobre pormenores relativos à busca do Escorpião. O don falava apenas em forma de provérbios, e Keller, que estava sob a disciplina de um serviço de espionagem, respondia com os seus próprios provérbios. Acima de tudo, escutavam a tramontana e o maestrale a rondarem os beirais, que era a forma como os homens corsos preferiam passar o serão.

Na sexta manhã após o regresso de Keller, houve um atentado na Alemanha, um único bombista suicida no terminal ferroviário de Estugarda, dois mortos, vinte feridos. Seguiram-se as questões habituais. O autor do atentado era um lobo solitário ou agira sob as ordens do comando central do ISIS no califado? Aquele a quem chamavam Saladino. Keller observou a cobertura noticiosa na televisão até ao meio da tarde, quando entrou para a sua maltratada carrinha Renault e a conduziu até à aldeia. A praça central ficava no ponto mais elevado da povoação. Em três lados da praça, havia lojas e cafés e, no quarto, havia uma igreja antiga. Keller ocupou uma mesa num dos cafés e observou um jogo de petanca até o sino da igreja repicar as cinco horas. A sua porta abriu-se pouco depois e vários paroquianos, a maioria deles idosos, desceram tremulamente as escadas. Um deles, uma mulher idosa vestida inteiramente de preto, parou durante um momento e olhou de soslaio na direção de Keller, antes de entrar na casinha torta adjacente ao presbitério. Keller terminou o seu vinho, enquanto a escuridão se abatia sobre a aldeia. Depois, pousou algumas moedas na mesa e encaminhou-se para o lado oposto da praça.

 

Ela cumprimentou-o, como sempre, com um sorriso preocupado e uma mão leve e cálida sobre a maçã do seu rosto. A sua pele era da cor da farinha; um lenço negro cobria-lhe o cabelo branco e seco como palha. Era estranho, pensou Keller, como as marcas da origem étnica e nacional eram apagadas pelo tempo. Se não fosse pela língua corsa e o comportamento católico místico, poderia ter sido confundida com a sua velha tia Beatrice, de Ipswich.

— Estás na ilha há uma semana — disse ela finalmente —, e só agora é que vens ver-me. — Fitou profundamente os olhos dele. — O mal regressou, meu filho.

— Onde é que o apanhei?

— No castelo junto ao mar, na terra de druidas e feiticeiros. Havia um homem com nome de pássaro[2]. Cuidado com ele no futuro. Ele não deseja o teu bem.

A mão da velha mulher continuava pressionada contra a maçã do rosto de Keller. Na linguagem da ilha, era conhecida como uma signadora. A sua tarefa era cuidar dos que eram afetados pelo mau-olhado, embora tivesse igualmente o poder de ver o passado e o futuro. Quando Keller ainda trabalhava para Don Orsati, nunca deixava a ilha sem fazer uma visita à velha mulher. E, quando regressava, a casinha torta na extremidade da praça estava sempre entre as suas primeiras paragens.

Retirou a mão do rosto de Keller e remexeu na pesada cruz à volta do seu pescoço.

— Estás à procura de alguém, não estás?

— Sabe onde é que ele está?

— Cada coisa a seu tempo, meu querido.

Com um movimento de mão, convidou Keller a sentar-se junto da mesinha de madeira da sua sala de visitas. Diante dele, colocou um prato cheio de água e um recipiente com azeite. Keller mergulhou o indicador no azeite. Depois, susteve-o sobre o prato e permitiu que três pingos caíssem na água. O azeite deveria ter-se agrupado numa única gota. Em vez disso, desfez-se em mil gotas, e, pouco depois, não havia vestígios dele.

— Tal como eu suspeitava — disse a velha mulher, franzindo o sobrolho. — E é pior do que o habitual. O mundo para lá da ilha é um lugar problemático, repleto de mal. Deverias ter ficado aqui connosco.

— Estava na altura de partir.

— Porquê?

Keller não tinha uma resposta.

— Foi tudo obra do israelita. Aquele com nome de anjo.

— Foi opção minha, não dele.

— Ainda não aprendeste, pois não? É escusado mentires-me. — Fitou o prato de água e azeite. — É importante que saibas — disse — que o teu caminho te conduzirá novamente a ele.

— Ao israelita?

— Temo que sim.

Sem mais palavras, agarrou na mão de Keller e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal passara do corpo dele para o dela. Depois, fechou os olhos e parecia estar a dormir. Quando acordou, instruiu Keller para que repetisse o teste do azeite e da água. Desta vez, o azeite aglutinou-se numa única gota.

— Não esperes tanto tempo da próxima vez — disse ela. — É melhor não permitires que o mal se demore no teu sangue.

— Preciso de alguém em Londres.

— Conheço uma mulher num lugar chamado Soho. É grega, uma herege. Usa-a apenas em caso de emergência.

Keller empurrou o prato na direção do centro da mesa.

— Fale-me daquele a quem chamam o Escorpião.

— O don vai encontrá-lo numa cidade que é o destino de um dos nossos ferries. Não está ao meu alcance dizer-te qual. Esse homem não é importante. Mas pode conduzir-te àquele que é.

— Quem?

— Não está ao meu alcance — disse novamente.

— Quanto tempo terei de esperar?

— Quando fores para casa, faz a tua mala. Vais deixar-nos em breve.

— Tem a certeza?

— Duvidas de mim? — Sorrindo, examinou os olhos dele. — És feliz, Christopher?

— Tão feliz quanto um homem como eu pode ser.

— Mas ainda sofres por aquela que perdeste em Belfast?

Ele não disse nada.

— É natural, meu filho. A forma como ela morreu foi terrível. Mas mataste o homem que ta tirou, aquele com o nome de Quinn. Obtiveste a tua vingança.

— Será que a vingança cura verdadeiramente feridas como esta?

— Estás a perguntar à pessoa errada. Afinal de contas, sou corsa. Tu também costumavas ser. — Olhou de relance para o fio de couro à volta do pescoço de Keller. — Pelo menos, ainda usas o teu talismã. Vais precisar dele. Ela também.

— Quem?

Os olhos dela começaram a fechar-se.

— Agora estou cansada, Christopher. Preciso de descansar.

Keller beijou-lhe a mão e fez deslizar um maço de notas para o interior da sua palma.

— É demasiado — disse ela, suavemente, enquanto ele se despedia. — Dás-me sempre demasiado.

 

[2] No original «finch» (tentilhão), que designa várias espécies de pequenos pássaros da família dos fringilídeos. (N.T.)


9

 

CÓRSEGA – NICE

 

 


Mais tarde, nessa mesma noite, no aconchego proporcionado pela lareira do escritório de Don Orsati, Christopher Keller soube que o homem que se autodenominava o Escorpião estaria à espera, dali a dois dias, no Le Bar Saint Étienne, na Rue Dabray, em Nice. Keller fingiu surpresa. E o don, que sabia que Keller visitara a signadora, fez um esforço fraco para ocultar a sua irritação pelo facto de a velha mulher mística, que conhecia desde que era um rapazinho, lhe ter roubado, mais uma vez, os louros.

Havia muito sobre o encontro que nem mesmo a signadora, com os seus extraordinários poderes extrassensoriais, poderia ter adivinhado. Não sabia, por exemplo, que o verdadeiro nome do Escorpião era Nouredine Zakaria, que detinha passaportes de nacionalidade francesa e marroquina, que fora um criminoso de rua de nível inferior a maior parte da vida e cumprira pena numa prisão francesa, e que havia rumores de que passara vários meses no califado, provavelmente em Raqqa. O que significava que era possível que estivesse sob vigilância da DGSI, embora os homens do don não tivessem observado quaisquer provas disso. Estava previsto que chegasse ao Le Bar Saint Étienne, sozinho, às duas e um quarto da tarde. Estaria à espera de se encontrar com um francês chamado Yannick Ménard, um criminoso profissional especializado na venda de armamento. Contudo, Ménard não poderia comparecer. Jazia já no fundo do mar, a oito quilómetros a oeste de Ajaccio, no cemitério aquático dos Orsatis. E as armas que planeava vender a Nouredine Zakaria (dez espingardas de assalto Kalashnikov e dez metralhadoras compactas Heckler & Koch MP7 com silenciadores e miras ELCAN antirreflexo) estavam num armazém dos Orsati à saída da cidade provençal de Grasse.

— Quanto é que isto valeria para os teus amigos de Londres? — perguntou o don.

— Pensei que tínhamos acordado que o seu trabalho seria pro bono.

— Faz-me lá a vontade.

— A morte do Ménard poderia complicar as coisas — disse Keller, pensativamente.

— Como assim?

— Os britânicos não aprovam sangue.

— Não é verdade que vocês têm licença para matar?

Não, explicou Keller, não era.

 

Le Bar Saint Étienne ocupava o rés-do-chão de um edifício com forma de bolo de três andares, na esquina da Rue Vernier. Tinha um toldo verde; mesas e cadeiras de alumínio pintalgado com marcas de gelado derramado. Era um lugarzinho de bairro, um sítio para tomar um café crème rápido, uma cerveja ou talvez uma sandes. Os turistas raramente se aventuravam a ir até lá, a não ser que estivessem perdidos.

Do lado oposto do cruzamento ficava La Fantasia, onde se servia pizza, mas de resto era em tudo praticamente idêntico ao anterior. Keller chegou à uma e meia e, depois de ter pedido um café ao balcão, ocupou uma mesa na esplanada. Estava vestido como um homem do sul. Não o género de homem próspero que vivia numa villa nas montanhas ou num apartamento junto ao mar, mas o tipo de homem que vivia da sua esperteza de rua. Empregado de mesa num dia, operário no dia seguinte, ladrão à noite. Aquela versão de Keller passara algum tempo na prisão e era bom com os punhos e com uma navalha. Era um excelente amigo para se ter em momentos problemáticos, mas também um perigoso inimigo.

Tirou um cigarro do seu maço de Marlboro e acendeu-o com um isqueiro descartável. O telefone também era de usar e deitar fora. Através de uma baforada de fumo, examinou rapidamente com o olhar a rua sossegada e as janelas com persianas fechadas dos apartamentos circundantes. Não conseguiu ver qualquer sinal da oposição. Mayhew e Quill, os seus instrutores no Forte, ter-lhe-iam recordado que a vigilância por parte de um serviço profissional era quase impossível de detetar. Contudo, Keller confiava nos seus instintos. Trabalhara como assassino em França durante mais de vinte anos e, mesmo assim, para a polícia, ele não passava de um rumor. Isso não se devia a sorte. Devia-se à sua eficiência profissional.

Uma pequena carrinha de carga Peugeot, amolgada e poeirenta, passou na rua, com um rosto norte-africano ao volante, outro no lugar do passageiro. Lá se ia o acordo de vir sozinho. Keller também não estava sozinho. Violando todas as regras conhecidas do MI6, escritas e não escritas, transportava uma pistola Tanfoglio ilegal no fundo das costas. Se a arma fosse descarregada (e a bala atingisse outro ser humano), a carreira de Keller poderia ser a carreira mais curta na história dos Serviços Secretos de Sua Majestade.

A Peugeot estacionou num lugar vago na Rue Dabray, enquanto um segundo carro, um sedan Citroën, parava à porta do Le Bar Saint Étienne. Este também transportava dois homens de aparência norte-africana. O passageiro saiu do carro e sentou-se numa das mesas da esplanada, enquanto o condutor encontrava um lugar vazio na Rue Vernier.

Keller esmagou o cigarro e refletiu sobre a situação. Não havia sinal dos serviços de segurança franceses, pensou, apenas de quatro membros de um gangue de criminosos marroquinos, muito possivelmente com ligações ao ISIS. Recordou as muitas palestras a que assistira durante o IONEC relativas às regras para realizar ou abortar uma reunião. Dadas as circunstâncias, a doutrina do MI6 ditava uma retirada célere. No mínimo, Keller estava obrigado a entrar em contacto com o seu diretor de divisão em Londres para solicitar orientação. Infelizmente, o seu telefone seguro do MI6 estava trancado no cofre de um banco em Marselha.

Com o telefone descartável, Keller tirou uma fotografia ao homem que o aguardava no Le Bar Saint Étienne. Depois, erguendo-se, deixou algumas moedas em cima da mesa e começou a atravessar a rua. Ele não é importante, disse a velha mulher. Mas pode conduzir-te àquele que é.


10

 

RUE DABRAY, NICE

 

 


Era cidadão de uma França esquecida, das grandes faixas de subúrbios, os banlieues, que circundavam os grandes centros metropolitanos como Paris, Lyon e Toulouse. Em geral, os seus residentes viviam em miseráveis blocos altos de habitação social, que eram fábricas do crime, abuso de droga, ressentimento e, cada vez mais, do islamismo radical. A esmagadora maioria da crescente população muçulmana em França desejava, acima de tudo, viver em paz e cuidar das suas famílias. Porém, uma pequena minoria tornara-se vítima do canto da sereia do ISIS. E alguns, como Nouredine Zakaria, estavam preparados para chacinar em nome do califado. Keller deparara-se com muitos como ele (membros de gangues de rua norte-africanos) enquanto trabalhava para Don Orsati. Suspeitava que Zakaria pouco sabia sobre o Islão, a doutrina do jihadismo ou os costumes dos salaf al Salih, os seguidores originais do profeta Maomé que os assassinos do ISIS aspiravam a emular. Mas o marroquino possuía algo mais valioso para o ISIS do que o conhecimento do Islão. Como criminoso profissional, era um trapaceiro nato que sabia como adquirir armas e explosivos, como roubar carros e telemóveis, e onde encontrar locais para os membros de uma célula terrorista se esconderem antes e depois de um atentado. Resumidamente, sabia como fazer as coisas sem chamar a atenção da polícia. Para um grupo terrorista (ou, já agora, para um serviço de espionagem) era uma competência essencial.

Era três ou quatro centímetros mais baixo do que Keller e tinha uma constituição possante. O seu corpo não era esculpido num ginásio. Era o físico de um presidiário, aperfeiçoado pela calistenia contínua num espaço fechado. Aparentava ter cerca de trinta e cinco anos, mas Keller não conseguia ter a certeza; nunca fora bom a adivinhar as idades de homens norte-africanos. A sua aparência era arquetípica: uma testa alta com arcos nas têmporas, maçãs do rosto largas, boca carnuda, lábios escuros. Óculos de aviador com lentes amarelas protegiam-lhe os olhos; Keller teve a impressão de que eram quase negros. No pulso direito havia um grande relógio suíço, indubitavelmente roubado. Pelo facto de o usar à direita poder-se-ia deduzir que, provavelmente, era canhoto. Portanto, seria a mão esquerda, e não a direita, que tentaria agarrar na arma que transportava no interior do seu casaco de cabedal com o fecho parcialmente apertado. A saliência era bastante óbvia. E intencional, pensou Keller.

Nesse preciso momento, uma unidade da Police Nationale passou lentamente pelo café, um Peugeot 308 amigo do ambiente, basicamente um kart com luzes e uma pintura vistosa. O agente ao volante lançou um longo olhar na direção dos dois homens sentados no exterior do Le Bar Saint Étienne. Keller observou o carro a dobrar a esquina, enquanto acendia um cigarro. Quando finalmente falou, fê-lo à maneira corsa, para que Nouredine Zakaria soubesse que era um homem que não deveria ser encarado com ligeireza.

— Deram-te instruções — disse ele — para vires sozinho.

— Vês mais alguém aqui sentado, meu amigo?

— Não sou teu amigo. Nem sequer perto disso. — Keller olhou de soslaio para o Citroën estacionado do outro lado da rua e para a carrinha Peugeot na Rue Dabray. — Então e eles?

— Gajos do bairro — disse Zakaria com um encolher de ombros evasivo.

— Diz-lhes para irem dar uma volta.

— Não posso.

Keller começou a levantar-se.

— Espera.

Keller ficou imóvel e, após um momento de hesitação, voltou a sentar-se na cadeira. Mayhew e Quill ficariam orgulhosos com o desempenho do seu aluno estrela; acabara de estabelecer domínio sobre a fonte. Era uma técnica de regatear tão antiga quanto o próprio bazar, aparentar que se está disposto a abandonar um negócio. Mas Nouredine Zakaria também era um homem do bazar. Os marroquinos eram negociantes natos.

Começou a esticar a mão para o interior do casaco.

— Calma — disse Keller.

Lentamente, a mão retirou um telemóvel de um bolso interior. Era descartável, tal como o de Keller. O marroquino usou-o para enviar uma breve mensagem de texto. Ping, pensou Keller, enquanto a mensagem atravessava velozmente a rede celular francesa. Alguns segundos mais tarde, houve dois motores que se ligaram e dois exemplos da indústria automobilística francesa, um Peugeot e um Citroën, que se afastaram.

— Contente? — perguntou Nouredine Zakaria.

— Extasiado.

O marroquino acendeu, ele próprio, um cigarro, um Gauloise.

— Onde é que está o Yannick?

— Não se estava a sentir bem.

— Então, tu és o patrão?

Keller permitiu que a questão passasse sem resposta. O facto de ser o patrão, pensou, era evidente.

— Não gosto de mudanças — disse o marroquino. — Fazem-me sentir desconfortável.

— As mudanças são boas, Nouredine. Mantêm toda a gente alerta.

Uma sobrancelha ergueu-se sobre os óculos de aviador com lentes amarelas.

— Como é que sabes o meu nome verdadeiro?

Keller conseguiu aparentar ficar ofendido com a questão.

— Não estaria aqui — disse, sem alterar o tom de voz — se não soubesse.

— Falas como um corso — disse Zakaria —, mas não pareces corso.

— As aparências iludem.

O marroquino não respondeu. A dança estava quase completa, pensou Keller, a dança que dois criminosos experientes realizavam antes de passarem aos negócios. Não tinha qualquer interesse em vê-la terminar, ainda não. Já não era um assassino a soldo, estava ali para reunir informação. E a única forma de obter informação era conversar. Decidiu colocar outra moeda na jukebox e permanecer na pista mais algum tempo.

— O Yannick disse-me que estavas interessado em adquirir vinte peças de mercadoria.

— É problemático, conseguir vinte?

— Não, de todo. Na verdade, a minha organização normalmente lida com quantidades muito superiores.

— Quão superiores?

Keller olhou de relance para as nuvens, como se quisesse dizer que o céu era o limite.

— Para dizer a verdade, vinte unidades dificilmente são merecedoras do nosso tempo e esforço. O Yannick deveria ter-me consultado antes de ter feito quaisquer promessas. Tem um futuro brilhante, mas é jovem. E, por vezes — acrescentou Keller —, não faz perguntas suficientes.

— Tais como?

— A minha organização funciona um pouco como um governo — explicou Keller. — Queremos conhecer os nossos compradores e como é que eles tencionam usar a nossa mercadoria. Quando os americanos vendem aviões aos seus amigos sauditas, por exemplo, os sauditas têm de prometer que não irão usar as armas contra os israelitas.

— Porcos sionistas — murmurou o marroquino.

— Ainda assim — disse Keller franzindo o sobrolho —, acredito que entendas a minha questão. Não vamos satisfazer a vossa encomenda sem certas restrições.

— Que tipo de restrições?

— Precisamos que nos garantam que nada será usado aqui em França nem contra cidadãos da República. Somos criminosos, mas também somos patriotas.

— Nós também.

— Patriotas?

— Criminosos.

— Não me digas? — Keller fumou em silêncio durante um momento. — Ouve, Nouredine, o que vocês lá fazem no vosso tempo livre não me interessa. Se querem fazer a jihad, força. Provavelmente, eu também faria a jihad se estivesse na vossa posição. Mas, se usarem as armas em solo francês, há grandes probabilidades de que o rasto conduza até ao meu patrão. E isso fá-lo-ia ficar extremamente insatisfeito.

— Pensava que tu é que eras o patrão.

Uma nuvem de fumo veio a ondular do outro lado da mesa. Os olhos de Keller humedeceram-se involuntariamente. Nunca gostara do cheiro de Gauloises.

— Vá, Nouredine. Promete-me que não vão usar as minhas armas contra os meus compatriotas. Promete-me que não me vão dar um motivo para vos perseguir e matar.

— Não estás a ameaçar-me, pois não?

— Isso nem me passaria pela cabeça. Só não quero que faças algo de que venhas a arrepender-te mais tarde. Porque, se te comportares corretamente, o meu patrão consegue arranjar-te tudo o que quiseres. Percebes?

O marroquino esmagou o seu cigarro lentamente.

— Ouve, habibi, estou a começar a perder a paciência. Vamos fazer negócio ou é melhor encontrar outra pessoa para me vender as armas? Alguém que não me faça tantas malditas perguntas.

Keller não disse nada.

— Onde é que elas estão?

Keller olhou de soslaio para ocidente.

— Espanha?

— Não tão longe. Eu levo-te lá, só nós os dois.

— Não, não levas. — Zakaria agarrou no telemóvel e, com uma segunda mensagem, convocou o Citroën. — Mudança de planos.

— Não gosto de mudanças.

— As mudanças são boas, habibi. Mantêm toda a gente alerta.


11

 

GRASSE, FRANÇA

 

 


Keller, conforme fora instruído, sentou-se no assento do passageiro com Nouredine Zakaria exatamente atrás de si. O marroquino indagou, em voz alta, se Keller quereria colocar as mãos no tabliê, uma sugestão que Keller rejeitou, em dialeto corso, com algumas obscenidades insultuosas e um provérbio murmurado. Zakaria não se deu ao trabalho de perguntar se Keller tinha uma arma. Afinal de contas, Keller estava a fazer-se passar por um traficante de armas. Zakaria provavelmente presumiu que ele tinha um lança-granadas no bolso de trás.

O Citroën parou uma vez na periferia de Nice, apenas o tempo suficiente para que outro norte-africano entrasse rapidamente para o banco de trás. Era uma versão mais pequena de Zakaria, talvez um ou dois anos mais novo, com uma profunda cicatriz que lhe atravessava uma das maçãs do rosto. Muito provavelmente, Keller estava agora rodeado por três criminosos profissionais com ligações ao ISIS. Consequentemente, passou os vários minutos seguintes a coreografar a complexa sequência de movimentos que seriam necessários para se libertar do carro se a transação corresse mal.

Não estavam de acordo quanto ao caminho que deveriam seguir de Nice até ao seu destino. Zakaria queria usar a Autoroute A8, mas Keller convenceu-o que a D4, de duas vias, era uma opção melhor. Entraram onde a estrada começava, na praia perto do aeroporto, e seguiram-na até ao sopé dos Alpes Marítimos, atravessando Biot e Valbonne e, finalmente, os arredores de Grasse. Keller espreitou pelo espelho lateral. Aparentemente, não havia outros membros do gangue no seu encalço. Esta conclusão não lhe proporcionou qualquer conforto. A permuta final de dinheiro por bens era a parte mais perigosa de qualquer transação criminosa. Não era invulgar que uma das partes, comprador ou vendedor, acabasse com uma bala na cabeça.

O armazém da Companhia Olivícola Orsati, em Grasse, servia como principal centro de distribuição para toda a Provença. Contudo, tal como a maioria das instalações de Orsati, passava facilmente despercebida. Erguia-se numa estrada empoeirada denominada Chemin de la Madeleine, num bairro industrial a nordeste do centro histórico da cidade. Keller premiu o código no teclado numérico do portão principal e entrou na propriedade a pé, seguido pelo Citroën. Em seguida, abriu a porta do armazém e conduziu Zakaria e o homem da cicatriz no rosto para o interior. Zakaria levava uma pasta de aço inoxidável. Provavelmente, continha uma soma de sessenta mil euros (três mil euros por cada arma de contrabando). Keller considerava-o um preço bastante justo. Acionou um interruptor e, sobre as suas cabeças, uma fila de luzes fluorescentes tremeluziu para a vida. As luzes iluminaram várias centenas de caixotes de madeira. Três continham armas, os restantes, azeite Orsati.

— Bem jogado — disse o marroquino.

— Esta é a parte — replicou Keller — em que me mostras o dinheiro.

Estava à espera da habitual discussão sobre o protocolo. Em vez disso, Zakaria colocou a pasta no chão de cimento, abriu as fechaduras de combinação e levantou a tampa. Notas de dez, de vinte, de cinquenta e de cem, todas presas com elásticos. Keller ergueu um dos maços até ao nariz. Cheirava vagamente a haxixe.

Keller fechou a pasta e gesticulou com a cabeça na direção do canto mais afastado do armazém. Zakaria e o segundo marroquino hesitaram e, depois, começaram a caminhar, com Keller alguns passos atrás, com a pasta a balouçar na mão esquerda. Por fim, chegaram a uma pilha ordenada de caixotes retangulares. Com um aceno de cabeça, Keller instruiu Zakaria para que removesse a tampa da caixa mais alta. No interior, havia cinco AK-47 de fabrico bielorrusso. O marroquino retirou uma das armas e inspecionou-a cuidadosamente. Era óbvio que tinha bastante conhecimento de armas de fogo.

— Vamos precisar de munições. Estou interessado em adquirir cinco mil balas. É suficiente para a tua organização?

— Parece-me que sim.

— Esperava que fosse essa a tua resposta.

O marroquino voltou a colocar a Kalashnikov no caixote. Depois, entregou a Keller um pedaço de papel, dobrado ao meio.

— O que é isto?

— Considera-o uma pequena demonstração de boa vontade.

Keller desdobrou o papel e viu algumas linhas em francês, manuscritas a vermelho. Ergueu bruscamente o olhar.

— Porquê? — perguntou.

— Para me provares que não és da bófia. — O marroquino fez uma pausa, depois acrescentou: — Nem um espião.

— Pareço-te um espião?

— As aparências — disse Zakaria — iludem. — O seu olhar pousou no segundo marroquino, o que tinha a cicatriz na face. — Prova-me, monsieur. Prova que és realmente um traficante de armas e não um espião francês.

— E se recusar?

— Então, é altamente improvável que saias daqui vivo.

O segundo marroquino encontrava-se a poucos metros de distância do ombro direito de Keller e Zakaria mesmo à sua frente, junto aos caixotes. Sorrindo, Keller permitiu que o pedaço de papel lhe escorregasse das pontas dos dedos. Enquanto o papel esvoaçava para o chão, já tinha sacado a Tanfoglio do fundo das costas. Apontou-a ao rosto de Nouredine Zakaria.

— Deveras impressionante — disse o marroquino. — E sempre a segurar no dinheiro. Mas se calhar não sabes ler assim tão bem.

— Sei ler perfeitamente. Também ouço bastante bem, E tenho a certeza de que acabaste de me ameaçar. Erro crasso, habibi. — Keller fez uma pausa, depois disse: — Fatal, na verdade.

Zakaria olhou de soslaio, nervosamente, para o segundo marroquino, que fez uma tentativa atabalhoada de puxar de uma arma do interior do casaco. O braço de Keller girou quarenta e cinco graus para a direita e, sem hesitar, premiu o gatilho da Tanfoglio duas vezes. O pum pum de um profissional treinado. Ambos os disparos atingiram o marroquino no centro da testa. Depois, voltou a girar o braço para a sua posição original. Se Zakaria tivesse permanecido imóvel, poderia ter colocado a Keller um dilema sobre como proceder. Em vez disso, tentou igualmente puxar da arma, tornando, assim, instintiva a decisão de Keller. Pum pum... Outro marroquino morto.

Keller devolveu a Tanfoglio ao cós das calças. Depois, recuperou o pedaço de papel do chão do armazém e leu novamente as palavras que Nouredine Zakaria escrevera a vermelho.

Mata o meu amigo ou mato-te.

Mudança de planos, pensou Keller. Colocou a pasta no chão do armazém, junto dos corpos, e dirigiu-se para o exterior, onde o terceiro marroquino estava sentado ao volante do Citroën. Keller bateu com o nó de um dedo na janela do lado do condutor e o vidro deslizou para baixo.

— Pareceu-me ouvir tiros — disse o marroquino.

— O teu amigo Nouredine insistiu em testar a mercadoria. — Abriu a porta. — Entra, meu amigo. Ele quer que vejas uma coisa.

 

Keller passou a noite num pequeno hotel próximo do Porto Velho de Cannes e, de manhã, alugou um carro com motorista para o levar até Marselha. Passavam alguns minutos das dez quando chegou; entrou no Société Générale da Place de la Joliette e solicitou acesso ao seu cofre. As baterias do seu computador e telemóvel tinham-se esgotado há muito. Carregou ambas no TGV para Paris e descobriu, na caixa de entrada do seu e-mail, várias mensagens não lidas de Vauxhall Cross, cujo tom denotava uma escala ascendente de alarme. Aguardou até estar em segurança a bordo do seu segundo comboio, um Eurostar com destino a Londres, antes de informar o seu diretor de divisão que estava a caminho de casa. Duvidava que a sua receção fosse agradável.

Não houve mais mensagens de Vauxhall Cross até ao momento em que o comboio se aproximava de St. Pancras International. Foi aí que recebeu uma transmissão insípida de seis palavras, declarando que seria recebido no átrio das chegadas. Veio a revelar-se que o seu comité de boas-vindas era constituído apenas por Nigel Whitcombe, o ajudante de campo, provador de comida e faz-tudo de aparência jovial de Graham Seymour. Whitcombe não disse uma palavra, enquanto conduzia Keller da Euston Street até uma fileira de casas do pós-guerra cobertas de fuligem, perto da estação de metro de Stockwell. Enquanto Keller subia o passeio do jardim, a agarrar a pasta de aço inoxidável que continha sessenta mil euros de dinheiro do ISIS, compôs o relatório verbal que faria, em breve, ao seu chefe. Conseguira encontrar o agente do ISIS conhecido como o Escorpião e, conforme fora instruído a fazer, tentara fazer negócio com ele. Lamentavelmente, a primeira transação não decorrera como planeado, e três membros da célula do ISIS estavam, agora, mortos. À exceção disso, a sua primeira missão como agente dos Serviços Secretos de Sua Majestade decorrera sem percalços.


12

 

STOCKWELL, LONDRES

 

 


— Não podias ter falhado?

— Eu tentei — respondeu Keller. — Mas os malditos idiotas saltaram para a frente das minhas balas.

— E porque é que tinhas uma arma?

— Ponderei levar um ramo de narcisos, mas achei que uma arma seria melhor para o meu disfarce. Afinal de contas, eles tinham a impressão de que a minha profissão era vendê-las.

— Onde é que está agora?

— A arma? De volta à Córsega, calculo.

— E os corpos?

— Alguns quilómetros para oeste.

Seymour olhou desconsoladamente em redor da pequena sala de estar. Estava mobilada com o charme da sala de embarque de um aeroporto. A casa segura dificilmente poderia ser considerada uma das joias da coroa do MI6 (havia propriedades do Serviço muito mais grandiosas nas zonas exclusivas de Mayfair e Belgravia), mas Seymour usava frequentemente aquela, devido à sua proximidade relativamente a Vauxhall Cross. O sistema de gravação automática fora desativado há muito. Ainda assim, verificou o módulo de energia para se certificar de que o sistema não fora ligado por engano. Estava localizado num armário da cozinha. As luzes e os medidores de sinal estavam escuros e inanimados.

Fechou o armário e olhou para Keller.

— Tinham mesmo de morrer?

— Não eram exatamente pilares da comunidade, Graham. Para além disso, não tive muita escolha na matéria. Eram eles ou eu.

— Eu aconselharia o teu amigo, o don, a esfregar minuciosamente aquele armazém. O sangue deixa vestígios, sabias?

— Tens andado outra vez a ver o CSI?

Seymour não deu qualquer resposta.

— A polícia francesa nunca se atreveria a investigar o armazém — disse Keller —, os agentes estão na folha de pagamentos do don. É assim que as coisas funcionam no mundo real. É por isso que os tipos maus nunca são apanhados. Pelo menos, os que são espertos.

— Mas, ocasionalmente — disse Seymour —, até os espiões são apanhados. E, quando envolve homicídio, às vezes vão parar à prisão.

— Define homicídio.

— O ato ilegal de matar outro...

— Se quiséssemos ser escoteiros, tínhamo-nos juntado aos Escoteiros.

Seymour ergueu uma sobrancelha.

— T. S. Eliot?

— Richard Helms.

— O meu pai odiava-o.

— Se quisesses o trabalho feito no estrito cumprimento das regras — disse Keller —, tê-lo-ias dado a um agente certinho que estivesse de olho no cargo de diretor de divisão. Mas, em vez disso, mandaste-me a mim.

— Pedi-te que te infiltrasses na célula, fazendo-te passar por um traficante de armas corso. Estou bastante convencido de que nunca te disse nada sobre matares três terroristas do ISIS em solo francês.

— Não era a minha intenção inicial. Mas não finjas que os meus métodos te perturbam, Graham. Já não estamos nesse ponto. A nossa história vem de há demasiado tempo atrás.

— Sim, é verdade — disse Seymour, em voz baixa. — Dos tempos de uma quinta em South Armagh.

Abriu a porta de outro armário e tirou uma garrafa de Tanqueray e uma segunda garrafa de água tónica. Em seguida, abriu o frigorífico e espreitou para o interior. Estava vazio, à exceção de duas limas ressequidas. As cascas estavam da cor de um saco de papel.

— Uma heresia.

— O quê?

— Um gim tónico sem lima. — Seymour agarrou num punhado de gelo do congelador e dividiu-o entre dois copos manchados. — As tuas ações têm consequências. A principal é o facto de o nosso único elo de ligação entre o atentado e a rede do Saladino jazer, agora, no fundo do Mediterrâneo.

— Onde não poderá matar mais ninguém.

— Às vezes, um terrorista vivo é mais útil do que um terrorista morto.

— Às vezes — concordou Keller relutantemente. — Onde é que queres chegar?

— Quero chegar ao facto — disse Seymour, entregando a Keller a sua bebida — de agora não termos outra opção senão partilhar o nome do Nouredine Zakaria com os nossos amigos da espionagem francesa.

— E o que é que dizemos aos franceses sobre o atual paradeiro do Nouredine?

— O mínimo possível.

— Se não te importares — disse Keller —, acho que vou saltar essa reunião.

— Na verdade, também não tenho qualquer intenção de ir falar com eles.

— Quem é que estás a planear enviar?

Quando Graham Seymour disse o nome, Keller sorriu.

— Ele sabe alguma coisa sobre isto?

— Ainda não.

— És um sacana diabólico.

— Está-nos no sangue. — Seymour deu um gole na bebida e franziu o sobrolho. — Não te ensinaram nada no Forte?


13

 

AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE

 

 


Se existisse um registo oficial do assunto, que naturalmente não existia, teria revelado o facto de Gabriel Allon ter passado grande parte dessa mesma noite no Centro de Operações da Avenida Rei Saul. Da travessia de Christopher Keller para França (ou da reunião na casa segura de Stockwell) não sabia nada. Só tinha olhos para os monitores de vídeo, onde uma caravana de quatro camiões de carga se deslocava para oeste a partir de Damasco, na direção da fronteira com o Líbano. Um ecrã mostrava as imagens obtidas a partir do Ofek 10, um satélite espião israelita que pairava sobre a Síria a uma altitude elevada. Noutro, a vista era de uma câmara de vigilância do exército israelita colocada no topo do Monte Hérmon. Ambas as gravações recorriam à tecnologia de infravermelhos. Como resultado, os motores dos camiões cintilavam, brancos e quentes, contra um fundo negro. O Departamento sabia, de fonte segura, que a caravana continha armas químicas que se destinavam ao Hezbollah, como pagamento em género pelo apoio do grupo radical xiita ao sitiado regime sírio. Por motivos óbvios, não poderiam permitir que as armas chegassem ao destino pretendido, que era o armazém do Hezbollah no Vale do Beqaa.

O Centro de Operações era muito mais pequeno do que o dos seus homólogos ingleses ou americanos, mais espartano e utilitário, a sala de um guerreiro secreto. Havia uma cadeira reservada para o chefe e uma segunda para o seu subdiretor. Contudo, estavam ambos de pé; Navot com os braços pesados cruzados sobre o peito, Gabriel com uma mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. Os seus olhos verdes estavam fixos na imagem do Ofek. Não tinha agentes no terreno, não havia operacionais em risco. Ainda assim, estava tenso e inquieto. Era isto que significava ser chefe, pensou. O terrível fardo do comando. Por outro lado, não apreciava a ultramoderna parafernália tecnológica da operação dessa noite. Preferia, sobremaneira, enfrentar os seus inimigos a um metro de distância do que a um quilómetro.

Subitamente, foi assolado por uma memória. Era outubro de 1972, na Piazza Annibaliano, em Roma, a sua primeira missão. Um anjo vingador à espera junto do elevador que funcionava com moedas, um terrorista palestiniano com o sangue de onze treinadores e atletas israelitas nas mãos.

— Desculpe-me, mas o senhor é o Wadal Zwaiter?

— Não! Por favor, não!

O toque característico do telefone do chefe arrastou Gabriel de volta para o presente. Navot esticou instintivamente o braço para o agarrar, mas deteve-se. Sorrindo, Gabriel levantou o auscultador até ao ouvido, ouviu em silêncio e desligou. Depois disso, ele e Navot colocaram-se de pé lado a lado, como Boaz e Jaquim, cada um deles a contemplar o ecrã.

Finalmente, Gabriel disse:

— A Força Aérea vai atingi-los assim que atravessarem a fronteira.

Navot assentiu com a cabeça, pensativamente. Esperar que a caravana chegasse ao Líbano eliminaria o risco de atingir por erro quaisquer forças russas ou sírias, reduzindo, assim, a probabilidade de começar a Terceira Guerra Mundial.

— Em que é que estavas a pensar agora mesmo? — perguntou Navot, após um momento.

— Na operação — respondeu Gabriel, surpreendido.

— Tretas.

— Como é que sabes?

— Estavas a premir o gatilho com o indicador direito.

— Estava?

— Onze vezes.

Gabriel ficou em silêncio durante um momento.

— Roma — disse, finalmente. — Estava a pensar em Roma.

— Porquê agora?

— Porquê, seja em que momento for?

— Achava que o tinhas baleado com a mão esquerda.

Gabriel observou a caravana de quatro camiões a deslocar-se para oeste a uma velocidade constante. Às nove horas e dez minutos, hora de Telavive, atravessou a fronteira para o Líbano.

— Oh, oh — disse Navot.

— Deviam ter verificado a rota — gracejou Gabriel.

Houve um crepitar na rede segura de comunicações e, alguns segundos mais tarde, dois mísseis atravessaram o ecrã num lampejo, da esquerda para a direita. Observadas através das câmaras de infravermelhos, as explosões foram tão brilhantes que Gabriel teve de desviar o olhar. Quando voltou a erguer os olhos, viu um único homem em chamas a fugir a correr da caravana despedaçada. Só desejava que se tratasse de Saladino. Não, pensou friamente enquanto deixava o Centro de Operações. É preferível a um metro de distância do que a um quilómetro.

 

Gabriel parou no escritório para ir buscar o casaco e a pasta, antes de se dirigir para o parque de estacionamento subterrâneo e deslizar para as traseiras do seu jipe blindado. Enquanto se aproximava da periferia de Jerusalém Ocidental, o seu telefone seguro tocou. Era uma chamada da Kaplan Street: o primeiro-ministro queria dar-lhe uma palavrinha. Durante noventa minutos, enquanto jantava frango kung pao e crepes, fez de Gabriel seu prisioneiro, interrogando-o sobre operações atuais e iminentes. O Irão era a sua principal obsessão, com a nova administração de Washington a vir em segundo lugar. A sua relação com o último presidente americano fora desastrosa. O novo presidente prometera estreitar os laços entre Washington e Israel e estava até a ameaçar deslocar, formalmente, a embaixada americana de Telavive para Jerusalém, uma iniciativa que, provavelmente, levaria a uma tempestade de protestos no mundo árabe e islâmico. Havia elementos na coligação do primeiro-ministro que queriam aproveitar as condições favoráveis para expandir rapidamente os colonatos judeus na Cisjordânia. A anexação estava no ar. Gabriel era a voz da prudência. Como chefe do Departamento, precisava da ajuda dos serviços de espionagem árabe em Amã e no Cairo para proteger a periferia de Israel. Para além disso, estava a fazer progressos importantes com os sauditas e com os emirados sunitas do Golfo, que temiam mais os persas do que os judeus. A última coisa que queria, agora, era um avanço unilateral sobre a frente palestiniana.

— Quando é que está a planear ir a Washington? — questionou o primeiro-ministro.

— Não fui convidado.

— Desde quando é que precisa de convite? — O líder israelita tentou pegar num crepe com dois pauzinhos e, fracassando, empalou-o. — Tem a certeza de que não quer um?

— Agradeço, mas não.

— E um pouco de frango?

Gabriel ergueu a mão defensivamente.

— Mas é kung pao — disse o primeiro-ministro, incrédulo.

 

Era quase meia-noite quando o jipe de Gabriel virou para a Narkiss Street. Outrora uma das ruas mais tranquilas da cidade, assemelhava-se, agora, a um campo militar. Havia controlos de segurança em cada ponta e, no exterior do velho prédio de calcário do número 16, havia um homem que mantinha guarda constante. À exceção disso, pouco mudara. O portão do jardim continuava a chiar ao abrir, um eucalipto demasiado grande continuava a dar sombra aos três pequenos terraços, a luz das escadas continuava a ser verde enjoativa. Ao chegar ao patamar do terceiro andar, Gabriel encontrou a porta entreaberta. Entrou silenciosamente e viu Chiara sentada numa extremidade do sofá, com um livro aberto no colo. Retirou-lho suavemente da mão e olhou para a capa. Era uma edição italiana de um thriller americano de espiões.

— Não te fartas disto na vida real?

— Parece muito mais glamoroso quando ele escreve sobre isso.

— Como é que é o herói?

— Um assassino com consciência, um bocadinho como tu.

— Também é um restaurador de arte?

Ela fez uma careta.

— Quem é que conseguiria inventar uma coisa dessas?

Gabriel despiu o sobretudo e o blazer e atirou ambos, de modo provocador, para as costas de uma poltrona. Chiara abanou a cabeça lentamente, em sinal de desaprovação, e, lambendo a ponta do indicador, virou a página do seu livro. Envergava um par de calças de fato de treino cinzentas vulgares e um pulôver de forro polar contra o frio do inverno. Mesmo assim, com o seu longo cabelo indomável caído sobre um ombro, tinha uma aparência espantosamente bela. Chiara tinha, agora, perto de quarenta anos, mas nem o tempo nem o intenso stresse do trabalho de Gabriel tinham deixado marcas no seu rosto. Nele, Gabriel via vestígios da Arábia e do Norte de África e de Espanha e de todos os outros locais por onde os seus antepassados tinham vagueado antes de darem por si num antigo gueto judeu de Veneza. Mas, acima de tudo, eram os seus olhos que sempre o tinham fascinado. Eram cor de caramelo sarapintados de dourado, uma combinação que ele fora incapaz de reproduzir numa tela. Quando estavam felizes, enchiam-no de uma satisfação que ele jamais conhecera. E, quando estavam dececionados ou zangados, sentia-se como a mais reles criatura a caminhar sobre a Terra.

— Como é que estão os miúdos? — perguntou ele.

— Se os acordares... — Lambeu o indicador e virou outra página.

Gabriel descalçou os sapatos e, de meias, entrou no quarto das crianças. Dois berços estavam encostados, lateralmente, contra uma parede que Gabriel pintara com nuvens. Dois bebés, um menino e uma menina, com catorze meses de idade, dormiam, cabeça com cabeça, como tinham feito no útero da mãe. Gabriel debruçou-se na direção da filha, que se chamava Irene em honra da avó, mas parou. Ela era uma criatura da noite, que acordava facilmente, uma espia por natureza. Porém, Raphael conseguia dormir em quaisquer circunstâncias, mesmo sob o toque da mão do pai a meio da noite.

Subitamente, Gabriel apercebeu-se de que tinham passado três dias desde que vira, pela última vez, as crianças acordadas. Era chefe há pouco mais de um mês e já perdera momentos importantes: a primeira palavra de Gabriel, os primeiros passos titubeantes de Irene. Prometera a si próprio que não seria assim, que não permitiria que o trabalho se intrometesse na sua vida pessoal. Era uma fantasia, obviamente; o chefe do Departamento não tinha vida pessoal. Não tinha família, não tinha outra esposa senão o país que jurara proteger. Não era uma sentença perpétua, assegurava a si próprio. Eram apenas seis anos. As crianças teriam sete no final do seu mandato. Haveria bastante tempo para as compensar. A não ser, claro, que o primeiro-ministro lhe impusesse uma continuação de funções. Calculou a idade que teria no final de dois mandatos. O número deprimiu-o. Era tão velho como Abrão. Ou Noé...

Saiu sorrateiramente do quarto das crianças e entrou na cozinha, onde a mesinha ao estilo de mesa de café fora preparada com o seu jantar. Tagliatelle com favas e queijo, um sortido de bruschettas, uma omeleta com tomate e ervas, tudo disposto como se se destinasse a ser fotografado para um livro de receitas. Gabriel sentou-se e colocou o telemóvel no centro da mesa, cautelosamente, como se fosse uma granada. Depois de aceitar o emprego como chefe, ponderara brevemente mudar-se com a família para um dos bairros residenciais dos arredores de Telavive, para estar mais perto da Avenida Rei Saul. Apercebia-se, agora, de que tinha sido melhor permanecer em Jerusalém para estar perto do gabinete do primeiro-ministro. Fora convocado para ir à Kaplan Street a meio da noite três vezes, uma delas porque o primeiro-ministro estava inquieto e necessitava de companhia. Tinham discutido o estado do mundo, enquanto viam um filme de ação americano na televisão. A cabeça de Gabriel tombara durante o desenlace e, ao amanhecer, fora conduzido de carro, com os olhos sonolentos, até à sua secretária.

— Vinho? — perguntou Chiara, segurando no ar uma garrafa de vinho tinto da Galileia.

Gabriel recusou.

— É tarde — disse ele.

Chiara colocou o vinho na bancada da cozinha.

— Como estava o primeiro-ministro?

— Invulgarmente interessado em assuntos asiáticos.

— Outra vez comida chinesa?

— Kung Pao e crepes.

— É muito coerente.

Chiara sentou-se diante de Gabriel e observou-o com apreço enquanto este enchia o prato.

— Não vais comer nada? — perguntou ele.

— Jantei há cinco horas.

— Come qualquer coisa, para eu não me sentir um absoluto cretino.

Ela pegou numa fatia de bruschetta, polvilhada com azeitonas cortadas e salsa, e mordiscou a ponta.

— Como é que correu o trabalho?

Ele encolheu os ombros evasivamente e enrolou o tagliatelle no garfo.

— Nem te atrevas — advertiu ela. — És o meu único contacto com o mundo real.

— O Departamento não é propriamente o mundo real.

— O Departamento — contrapôs ela — é o mais real que pode haver. Tudo o resto é faz-de-conta.

Contou-lhe uma versão pública, de Livro Branco, do ataque dessa noite à caravana, mas os lindos olhos de Chiara rapidamente se aborreceram. Preferia, muito mais, ouvir os mexericos do Departamento do que os detalhes das operações do Departamento. As disputas políticas, as batalhas mutuamente destrutivas, os casos românticos. Tinham passado muitos anos desde que deixara o serviço ativo e, mesmo assim, se tivesse oportunidade, regressaria ao terreno num abrir e fechar de olhos. Gabriel tinha demasiados inimigos para que tal acontecesse, inimigos que, anteriormente, tinham feito da sua família um alvo. E, portanto, Chiara tinha de se contentar com desempenhar o papel de primeira-dama. Ao contrário da esposa do chefe anterior, a intriguista Bella Navot, Chiara era imensamente querida pelas tropas.

— É assim que vai ser durante os próximos seis anos? — perguntou ela.

— O quê?

— Jantares à meia-noite. Tu a comeres, eu a ver.

— Sabíamos que ia ser difícil.

— Sim — disse ela distraidamente.

— É demasiado tarde para ter dúvidas, Chiara.

— Não são dúvidas. Simplesmente, tenho saudades do meu marido.

— Também tenho saudades tuas. Mas não há nada...

— Os Shamrons convidaram-nos para jantar amanhã à noite — disse ela subitamente.

— Amanhã à noite não dá. — Não explicou porquê.

— Talvez pudéssemos ir até Tiberíades no sábado.

— Talvez — disse ele, sem convicção.

Um silêncio pesado abateu-se sobre eles.

— Sabes, Gabriel, Deus nem sempre foi bondoso contigo.

— Não, não foi.

— Mas deu-te uma segunda oportunidade para seres pai. Não a desperdices. Não sejas um homem que vai e vem na escuridão. Isso é tudo quanto eles se vão lembrar. E não tentes justificar-te, dizendo a ti próprio que estás a protegê-los. Isso não é suficiente.

Nesse preciso momento, o seu telemóvel iluminou-se. Hesitantemente, premiu a palavra-passe e leu a mensagem de texto.

— O primeiro-ministro? — perguntou Chiara.

— Graham Seymour.

— O que é que ele quer?

— Falar comigo em privado.

— Cá ou lá?

— Lá — disse Gabriel.

Sem dizer mais nada, telefonou para a Avenida Rei Saul e ordenou à divisão de Viagens que tratasse dos preparativos necessários para aquela que seria a sua primeira viagem ao estrangeiro como chefe do Departamento. Havia um voo que saía do Ben Gurion às sete, chegando a Londres às dez e meia. Seria providenciado um espaço em primeira classe para Gabriel e para o seu destacamento. Os britânicos encarregar-se-iam da segurança do seu lado.

Com o itinerário completo, terminou a chamada e, erguendo o olhar, viu que Chiara desaparecera. Sozinho, fez uma segunda chamada para Uzi Navot e contou-lhe sobre os seus planos de viagem. Depois, ligou a televisão a terminou o jantar. Com um pouco de sorte, pensou, conseguiria dormir uma ou duas horas. Deixaria os seus filhos na escuridão, pensou, e regressaria na escuridão. Mantê-los-ia protegidos. E, como recompensa, talvez um dia eles se lembrassem do toque da sua mão a meio da noite.


14

 

JERUSALÉM – LONDRES

 

 


E foi assim que Gabriel Allon, tendo dormido de forma intermitente, se dormiu, deslizou para fora da cama e para o ventre do seu jipe blindado. Chegou ao Aeroporto Ben Gurion alguns minutos antes da partida do seu voo e, acompanhado por dois guarda-costas, embarcou pela área do asfalto adjacente ao avião. Não tinha bilhete, o seu nome não aparecia na lista de passageiros. Como regra, o ramsad, o chefe do Departamento, nunca fazia viagens internacionais utilizando o nome verdadeiro, mesmo que fosse para um destino razoavelmente amigável como o Reino Unido. Agentes hostis como os iranianos e os russos também tinham acesso aos registos de voo. Tal como os americanos.

Passou o voo de cinco horas a ler os jornais, um exercício bastante inútil para um homem que sabia demasiado, e, à chegada a Heathrow, entregou-se ao cuidado de uma equipa de boas-vindas do MI6. Enquanto viajava para o centro de Londres na parte de trás de uma limusina Jaguar, arrependeu-se brevemente de não ter atirado uma gravata para dentro da pasta. Fundamentalmente, fitou o exterior pela janela e relembrou as inúmeras vezes em que entrara furtivamente nessa cidade, usando diferentes nomes, hasteando diferentes bandeiras, combatendo diferentes guerras. A geografia de Londres era, para Gabriel, um campo de batalha. Hyde Park, Westminster Abbey, Covent Garden, a Brompton Road... Sangrara em Londres, sofrera em Londres e, em tempos, num apartamento seguro do Departamento na Bayswater Road, recitara votos de casamento secretos a Chiara, pois temia não sobreviver no dia seguinte. Tinha uma profunda dívida para com os serviços secretos britânicos. A Grã-Bretanha concedera-lhe um santuário no período mais sombrio da sua vida e protegera-o quando outro país poderia tê-lo atirado aos lobos. Em troca, lidara com a sua quota-parte de problemas em nome do Governo de Sua Majestade. Segundo os cálculos de Gabriel, o balanço estava, agora, aproximadamente equilibrado.

Finalmente, o carro virou para a Vauxhall Bridge e atravessou o Tamisa a alta velocidade na direção do templo de espionagem na margem oposta. No último andar, Gabriel atravessou o jardim inglês de um átrio e entrou no mais elegante escritório de todo o universo da espionagem, onde Graham Seymour, rodeado de vários membros da sua equipa de chefias, aguardava para o receber. Seguiu-se uma ronda de apresentações, breve e superficial. Depois, as chefias foram saindo, lentamente, em fila indiana, e Seymour e Gabriel ficaram sozinhos. Durante um longo momento, avaliaram-se mutuamente, em silêncio. Não poderiam ser mais diferentes um do outro (em tamanho e forma, em educação, em orientação religiosa), mas o laço que os unia era inquebrável. Fora forjado durante numerosas operações conjuntas, dirigido contra um diversificado leque de alvos e inimigos. Terroristas jihadistas, o programa nuclear iraniano, um traficante de armas chamado Ivan Kharkov. Desconfiavam só um bocadinho um do outro. No ramo da espionagem, isso tornava-os melhores amigos.

— Então — disse Seymour finalmente —, que tal é a sensação de ser membro do clube?

— A nossa secção do clube não é tão grandiosa como a vossa — disse Gabriel, a olhar em redor do magnífico escritório. — Nem tão antiga.

— Não foi Moisés que enviou uma equipa de agentes para espiar a terra de Canaã?

— O primeiro fracasso de espionagem da História — disse Gabriel. — Imagina como poderiam ter sido as coisas para o povo judeu se Moisés tivesse escolhido outro pedaço de terra.

— E agora cabe-vos proteger esse pedaço de terra.

— O que explica porque é que o meu cabelo está mais grisalho a cada dia que passa. Quando era um miúdo a crescer no Vale de Jezreel, costumava ter pesadelos em que o país era invadido pelos nossos inimigos. Agora, tenho sonhos desses todas as noites. E, nos meus sonhos — disse Gabriel —, a culpa é sempre minha.

— Até eu tenho tido sonhos desses ultimamente. — Seymour fitou o outro lado do rio, na direção do West End. — E pensar que teria sido pior se um proeminente negociante de arte não tivesse visto os terroristas a entrarem no teatro.

— Alguém que eu conheça?

— Na verdade — disse Seymour —, talvez. É proprietário de uma galeria de Grandes Mestres em St. James. Tem setenta e cinco anos embora não o confesse, mas continua a andar por aí na companhia de mulheres mais novas. Na verdade, era suposto ter jantado no Ivy, com uma rapariga que tinha metade da idade dele, na noite do atentado, mas a rapariga não apareceu. Foi a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido. — Seymour olhou para Gabriel. — Ele não te referiu nada disto?

— Tentamos limitar os nossos contactos ao mínimo.

— Deves ter deixado marca nele. Agiu como um verdadeiro herói.

— Tens a certeza de que estamos a falar do mesmo Julian Isherwood?

Seymour não conseguiu evitar sorrir.

— Tenho de dar crédito ao teu amigo Saladino — disse ele, passado um momento. — Dirigiu a operação de forma extremamente eficiente. Até agora, só conseguimos identificar um outro indivíduo diretamente relacionado com a trama, um operacional em França que forneceu as espingardas automáticas. Enviei um dos nossos agentes para localizar esse operacional, mas infelizmente houve um pequeno contratempo.

— Que tipo de contratempo?

— Uma morte. Três, na verdade.

— Estou a ver — disse Gabriel. — E o nome do agente?

— Peter Marlowe. Cumpriu algum tempo de serviço na Irlanda do Norte. Costumava trabalhar no negócio do azeite, na Córsega.

— Nesse caso — disse Gabriel —, considera-te afortunado por só terem morrido três pessoas.

— Duvido que os franceses vejam as coisas assim. — Seymour fez uma pausa, depois acrescentou: — É por isso que preciso que fales com eles por mim.

— Porquê eu?

— Apesar do teu terrível historial em solo francês, conseguiste fazer alguns amigos importantes no seio dos serviços de segurança franceses.

— Não vão ser meus amigos durante muito tempo, se me misturar na tua operação desordenada.

Seymour não disse nada.

— E se aceitar ajudar-te? — perguntou Gabriel. — O que é que eu ganho com isso?

— A gratidão eterna dos Serviços Secretos de Sua Majestade.

— Vá lá, Graham, consegues fazer melhor do que isso.

Seymour sorriu.

— Por acaso, consigo mesmo.

 

Aproximava-se o entardecer quando Gabriel finalmente deixou Vauxhall Cross. Não o fez na parte de trás de uma limusina Jaguar, mas no lugar do passageiro de um pequeno Ford hatchback, pilotado por Nigel Whitcombe. O jovem inglês conduzia muito depressa e com a descontração lânguida de quem pilotava carros de corrida ao fim de semana. Gabriel equilibrou a sua pasta nos joelhos e agarrou-se firmemente ao apoio de braço.

— Onde é que ele vive agora?

— Temo que isso seja confidencial — respondeu Whitcombe sem vestígios de ironia.

— Então, talvez devesse estar de olhos vendados.

— Peço desculpa.

— Não faz mal, Nigel. Mas podes abrandar um pouco? Preferia não ser o primeiro chefe do Departamento a morrer no exercício de funções.

— Pensava que o senhor estava morto — disse Whitcombe. — Que tinha morrido na Brompton Road, à porta do Harrods. Foi o que escreveram no Telegraph.

Whitcombe soltou o acelerador, mas apenas ligeiramente. Seguiu a Grosvenor Road ao longo do Tamisa e, depois, dirigiu-se para norte, através de Chelsea e Kensington, para a Queen’s Gate Terrace, onde finalmente parou no exterior de uma grande casa georgiana com cor de natas coalhadas.

— Isso tudo é dele? — perguntou Gabriel.

— Só os dois andares inferiores. Foi uma pechincha de oito milhões.

Gabriel observou a janela do primeiro andar. As cortinas estavam fechadas e parecia não haver luz no interior.

— Onde é que achas que ele está?

— Preferia não arriscar um palpite.

— Tenta ligar-lhe para o telemóvel.

— Ainda está a tentar perceber como usá-lo.

— O que é que isso significa?

— Vou deixar que seja ele a explicar-lhe.

Whitcombe digitou o número. Tocou várias vezes, sem resposta. Digitou o número uma segunda vez, com o mesmo resultado.

— Achas que há uma chave debaixo do tapete?

— Duvido.

— Então, acho que vamos ter de usar a minha.

Gabriel saiu do carro e desceu o curto lanço de escadas que conduzia à entrada da cave do duplex. Tentou o ferrolho; estava trancado. Whitcombe franziu o sobrolho.

— Pensei que tinha uma chave.

— E tenho. — Gabriel sacou uma ferramenta fina de metal do bolso da frente do sobretudo.

— Não pode estar a falar a sério.

— É difícil perder hábitos antigos.

— Talvez lhe custe acreditar — disse Whitcombe —, mas o «C» nunca transporta consigo uma gazua.

— Se calhar, devia.

Gabriel deslizou a ferramenta para o interior da fechadura e movimentou-a suavemente para trás e para a frente até o mecanismo ceder.

— E se houver um alarme? — perguntou Whitcombe.

— Tenho a certeza de que te vais lembrar de alguma solução.

Gabriel girou o ferrolho e abriu a porta alguns centímetros. Houve apenas silêncio.

— Diz ao Graham que vou sozinho para casa hoje. Diz-lhe que lhe ligo de Paris assim que tiver resolvido a confusão com os franceses.

— E o seu destacamento de segurança?

— Trago comigo mais do que uma gazua para arrombar fechaduras — disse Gabriel, e entrou.

 

A porta dava para uma cozinha que seria tudo com que Chiara sempre sonhara. Um enorme espaço de bancada iluminado de forma requintada, uma ilha com um lava-louça de chef, dois fornos de convecção, um fogão a gás Vulcano com um exaustor de categoria profissional. O frigorífico era um Sub-Zero de aço inoxidável. No interior, havia várias garrafas de vinho rosé corso e um queijo temperado com alecrim, alfazema e tomilho. Aparentemente, o proprietário ainda se encontrava em processo de adaptação.

Gabriel retirou um copo de vinho do armário e encheu-o com um pouco de rosé. Depois, apagou as luzes da cozinha e levou o vinho para a sala de visitas no andar superior. Estava mobilada apenas com uma cadeira com repousa-pés e uma televisão do tamanho de um outdoor. Gabriel dirigiu-se até à janela e, separando as cortinas, espreitou para a rua, onde um homem de sobretudo dispendioso estava, naquele momento, a sair da parte de trás de um táxi. O homem começou a subir os degraus de entrada da casa, mas deteve-se subitamente e disparou um olhar de soslaio na direção da janela onde estava Gabriel. Depois, virou-se para trás abruptamente e desceu o lanço de escadas em direção à entrada da cave.

Alguns segundos mais tarde, Gabriel ouviu o som de uma porta a abrir-se e a fechar-se, o acionar de um interruptor e um palavrão sussurrado no dialeto dos nativos da Córsega. Era a cápsula de alumínio da garrafa de rosé. Gabriel deixara-a à vista, na bancada da cozinha. Um erro de amador, pensou.

Havia um pouco de luz que escoava da cozinha para a escadaria que conduzia ao andar superior, o suficiente para revelar, à contraluz, a silhueta do homem que apareceu, pouco depois, à entrada da sala de visitas, a segurar uma arma nas mãos esticadas. Contudo, na extremidade da divisão onde Gabriel se encontrava a escuridão era absoluta. Observou, enquanto o homem girava para a esquerda e depois para a direita, com os movimentos compactos de alguém que sabia esvaziar uma divisão de adversários fortemente armados. Então, o homem avançou furtivamente e, acionando um interruptor, inundou a sala de luz. Girou uma última vez, apontando a arma na direção de Gabriel, antes de baixar rapidamente o cano para o chão.

— Seu maldito idiota — disse Christopher Keller. — Tens sorte de não te ter matado.

— Sim — disse Gabriel, sorrindo. — E não é a primeira vez.


15

 

KENSINGTON, LONDRES

 

 


— Uma Walther PPK — disse Gabriel, admirando a arma de Keller. — Tão Bond da tua parte.

— É fácil de esconder e tem um poder de fogo impressionante. — Keller sorriu. — Um tijolo atirado contra uma janela de vidro laminado.

— Não sabia que os agentes do MI6 estavam autorizados a andar com armas de fogo.

— Não estamos. — Keller encheu um copo de vinho com o rosé e, depois, ofereceu a garrafa a Gabriel. — Queres?

— Vou conduzir.

Keller franziu o sobrolho e encheu o copo de Gabriel até restar apenas um centímetro de espaço vazio até à borda.

— Como é que entraste?

— Deixaste a porta destrancada.

— Tretas.

Gabriel respondeu honestamente.

— Um dia — disse Keller — vais ter de me ensinar a fazer isso.

Despiu o sobretudo Crombie e atirou-o, descuidadamente, para cima da bancada da cozinha. O seu fato era cor de carvão, a gravata era cor de prata oxidada. Tinha uma aparência quase respeitável.

— Onde é que estiveste? — perguntou Gabriel. — Num funeral?

— Numa reunião com o meu consultor de investimentos. Levou-me a almoçar ao Royal Exchange e informou-me de que o valor do meu património caiu mais de um milhão de libras. Graças ao Brexit, tenho estado a apanhar uma bela surra, ultimamente.

— O mundo é um lugar perigoso e imprevisível.

— Nem me digas nada — disse Keller. — O vosso cantinho começa a parecer uma ilha de paz e tranquilidade, principalmente agora que és tu a mandar naquilo. Desculpa não ter podido estar presente na tua festinha de tomada de posse. Estava ocupado na altura e não consegui escapar-me.

— No IONEC?

Keller fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Três meses de aborrecimento ininterrupto junto ao mar.

— Mas bem-sucedido — disse Gabriel. — Deixaste as sentinelas A4 esfrangalhadas. Nota recorde no exame final. Mas foi pena aquilo de França. Não foi forma de começar uma carreira.

— Olha quem fala. A tua carreira tem sido uma série de desastres, intercalados com a ocasional calamidade. E olha até onde é que isso te levou. Agora és o chefe.

— O Shamron dizia sempre que uma carreira sem controvérsia não é uma carreira como deve ser.

— Como é que está o velhote?

— Vai resistindo — disse Gabriel.

— É bastante parecido com Israel.

— O Shamron? Ele é Israel.

Keller acendeu um cigarro e soprou um jato de fumo na direção do teto.

— Isqueiro novo? — perguntou Gabriel.

— Não te escapa nada.

Gabriel tirou o isqueiro da mão de Keller e leu a inscrição.

— Não se esmerou lá muito.

— O que conta é a intenção — disse Keller. Depois perguntou: — O que é que ele te contou?

— Contou-me que te enviaram para França para descobrires a localização do marroquino que forneceu as Kalashnikovs para o atentado de Londres. Disse que conseguiste encontrar o marroquino numa questão de dias, apesar de a DGSI nunca ter conseguido sequer saber o nome dele. Insinuou que o teu antigo empregador, o inigualável Don Anton Orsati, poderá ter proporcionado um auxílio precioso. Não entrou em detalhes.

— Fez bem.

— Parece que te encontraste com esse marroquino, cujo nome era Nouredine Zakaria, num café em Nice e o levaste a crer que eras um traficante de armas corso. Para provares a tua boa-fé, aceitaste vender-lhe dez Kalashnikovs e dez Heckler & Koch MP7s pelo valor bastante razoável de sessenta mil euros. Infelizmente, o negócio não correu conforme planeado e pareceu-te necessário matar o Zakaria e dois dos seus parceiros, eliminando, assim, o único elo de ligação conhecido entre a rede do Saladino e o atentado de Londres. Analisando bem as coisas — disse Gabriel —, diria que excedeste os limites da tua missão.

— A merda acontece.

— Bastante. E agora cabe-me a mim limpar a trapalhada.

— Para que conste — disse Keller —, não foi ideia minha mandar-te falar com os franceses de chapéu na mão.

— Estás a confundir-me com outra pessoa.

— Com quem?

— Com alguém que tira o chapéu quando entra numa sala.

— Então, qual é o teu plano?

— Primeiro, vou pedir aos franceses tudo o que têm sobre o Nouredine Zakaria. E, depois — disse Gabriel —, vou convidá-los para se unirem à minha operação para encontrar o Saladino.

— À tua operação? Os franceses nunca vão cair nessa. E o Graham também não.

— O Graham deu autorização esta tarde. E também aceitou emprestar-te. Agora, trabalhas para mim.

— Filho da mãe — disse Keller, esmagando o cigarro. — Devia ter-te matado quando tive oportunidade.

 

Jantaram num pequeno restaurante italiano, próximo de Sloane Square, onde nenhum deles era conhecido. Depois, Gabriel apanhou, sozinho, um táxi para a embaixada israelita, que se situava numa esquina tranquila mesmo ao lado da High Street. O embaixador e o chefe de delegação ficaram desmedidamente satisfeitos de o verem, tal como os seus guarda-costas. No andar de baixo, na sala de comunicações segura (no léxico do Departamento, era conhecida como o Santíssimo Lugar) telefonou para o número privado do homem com quem precisava de se encontrar em Paris. A chamada encontrou-o na cama, no seu apartamento de solteiro pequeno e triste na Rue Saint-Jacques. Não ficou nada insatisfeito por ouvir o som da voz de Gabriel.

— Estava a pensar se terias um minuto ou dois para me dispensar amanhã.

— Tenho uma reunião com o meu ministro que vai durar toda a manhã.

— Os meus pêsames. Então, e à tarde?

— Estou livre depois das duas.

— Onde?

— Na Rue de Grenelle.

Em seguida, Gabriel ligou para a Avenida Rei Saul e informou o departamento de Operações de que iria prolongar a sua estadia no estrangeiro pelo menos mais um dia. A divisão de Viagens tratou dos preparativos. Sentiu-se tentado a passar a noite no velho apartamento seguro da Bayswater Road, mas os seus guarda-costas persuadiram-no a permanecer onde se encontrava. Tal como a maioria dos postos avançados do Departamento, este continha quatro pequenos quartos para momentos de crise. Gabriel estendeu-se na odiosa cama de campanha, mas o sono fugiu-lhe. Era a atração da operação, a pequena excitação de estar de volta ao terreno, mesmo que «o terreno» fosse, nesse momento, uma embaixada num dos bairros mais exclusivos do mundo.

Finalmente, nas horas que precederam a alvorada, o sono apoderou-se dele. Levantou-se às oito, tomou o pequeno-almoço com os agentes da delegação de Londres e, às nove, entrou para a parte de trás de um Jaguar do MI6 com destino ao Aeroporto de Heathrow. O seu voo era o 334 da British Airways. Embarcou no último minuto, acompanhado pelos guarda-costas, e ocupou o seu lugar em primeira classe junto à janela. Enquanto a aeronave levantava voo sobre o sudeste de Inglaterra, espreitou para baixo, para os campos verdes-acinzentados que se afundavam sob ele. Contudo, interiormente estava a observar um homem grande, de constituição poderosa e aparência árabe, a coxear através do átrio de um hotel em Washington. O cabelo poderia ser cortado ou pintado, o rosto poderia ser alterado com cirurgia plástica. Mas um coxear como aquele, pensou Gabriel, era para sempre.


16

 

RUE DE GRENELLE, PARIS

 

 


Dizia-se de Paul Rousseau que tinha tramado mais atentados do que Osama Bin Laden. Ele não contestava a afirmação, embora fosse rápido a assinalar que nenhuma das suas bombas tinha, de facto, explodido. Paul Rousseau era um praticante habilidoso da arte do engano a quem fora concedida a autoridade de tomar «medidas ativas» para retirar potenciais terroristas de circulação antes de os terroristas poderem tomar medidas ativas contra a República ou a cidadania. Os oitenta e quatro agentes do Grupo Alpha, a unidade de elite de Rousseau no interior da DGSI, não desperdiçavam recursos preciosos a vigiar suspeitos de terrorismo, a ouvir as suas chamadas ou a monitorizar as suas reflexões maníacas na Internet. Em vez disso, abanavam a árvore e esperavam que o fruto venenoso lhes caísse nas mãos. Noutro país, noutro momento, um defensor das liberdades civis poderia ter condenado os seus métodos por se tratarem quase de uma emboscada. Paul Rousseau também não teria contestado essa alegação.

Durante os primeiros seis anos de existência, o Grupo Alpha foi um dos segredos mais bem guardados de França e os seus agentes operaram com impunidade. Isso mudou no rescaldo do atentado em Washington, quando relatos da imprensa americana revelaram que Rousseau fora ferido no atentado com camiões-bomba ao Centro Nacional de Antiterrorismo, na região suburbana do Norte da Virgínia. Relatos subsequentes, principalmente nos meios de comunicação franceses, continuaram a detalhar alguns dos métodos mais repulsivos do Grupo Alpha. Houve operações comprometidas, confidentes identificados. O ministro do Interior e o chefe da DGSI responderam através da negação categórica da existência de tal unidade, denominada Grupo Alpha. Mas era tarde demais; o estrago estava feito. Discretamente, incentivaram Rousseau a abandonar o seu quartel-general anónimo na Rue de Grenelle e a deslocar a sua operação para o interior das paredes do quartel-general da DGSI, em Levallois-Perret. Contudo, Rousseau recusou-se a arredar pé. Nunca apreciara os subúrbios de Paris. E os seus agentes não poderiam executar devidamente os seus deveres se fossem vistos a entrar e a sair do complexo amuralhado que ostentava um sinal que dizia MINISTÈRE DE L’INTÉRIEUR.

E portanto, apesar do nível elevado de ameaça, Paul Rousseau e o Grupo Alpha continuaram a combater a sua guerra silenciosa contra as forças do islamismo radical a partir de um elegante edifício do século dezanove no exclusivo sétimo arrondissement. Uma discreta placa de latão proclamava que o edifício albergava algo chamado Sociedade Internacional para a Literatura Francesa, um toque particularmente rousseauniano. Contudo, no interior do edifício todos os subterfúgios se esfumavam. A equipa de apoio técnico ocupava a cave; as sentinelas, o rés-do-chão. No segundo andar, ficava o transbordante Registo do Grupo Alpha já que Rousseau preferia dossiês de papel à moda antiga a ficheiros digitais, e o terceiro e quarto andares eram a reserva dos agentes operacionais. A maioria entrava e saía pelo pesado portão negro da Rue de Grenelle, a pé ou no carro oficial. Outros entravam por uma passagem secreta que ligava o edifício à desmazelada lojinha de antiguidades que lhe era vizinha, cujo proprietário era um idoso francês que desempenhara funções secretas durante a guerra na Argélia. Rousseau era o único membro do Grupo Alpha que fora autorizado a ler o aterrador processo do antiquário.

O quinto andar era austero, lúgubre e silencioso, a não ser pelo som de Chopin que, ocasionalmente, flutuava através da porta aberta de Paul Rousseau. Madame Treville, a sua martirizada secretária de longa data, ocupava uma ordenada secretária na antessala e, na extremidade oposta de um corredor estreito, ficava o escritório do jovem e ambicioso subdiretor de Rousseau, Christian Bouchard. Era crença firme no interior das instituições de segurança francesas que Bouchard assumiria o comando do Grupo Alpha se e quando Rousseau decidisse reformar-se. Tentara fazê-lo uma vez anteriormente, após a morte da sua amada Colette. O livro que esperava escrever, uma biografia de Proust em vários volumes, não era mais do que um amontoado de notas manuscritas. Atualmente, resignara-se ao facto de que a luta contra o terrorismo radical islâmico seria a obra da sua vida. Não era um combate que a França pudesse perder. Rousseau acreditava que estava em causa a própria sobrevivência da República.

Em Gabriel Allon, encontrara um parceiro solícito, embora improvável. A sua aliança constituíra-se na sequência da estreia de Saladino em Paris, o letal atentado à bomba no Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Antissemitismo em França. Saladino não escolhera o alvo de ânimo leve; conhecia os laços secretos que uniam Gabriel à mulher que o dirigia. Também Paul Rousseau os conhecia, e, juntos, Gabriel e ele tinham infiltrado uma agente na corte de Saladino. A operação não conseguira evitar o atentado em Washington, mas acabara quase completamente com décadas de animosidade e desconfiança entre o Departamento e os serviços de espionagem franceses. Uma consequência bem-vinda da nova relação era Gabriel ser agora livre de viajar por França sem medo de ser detido e julgado. O seu rol de pecados em solo francês, os assassinatos, os danos colaterais, tinham sido oficialmente perdoados. Tinha um estatuto tão legítimo quanto um espião profissional algum dia poderia ter.

As novas medidas de segurança rigorosas do Grupo Alpha exigiam que Gabriel se livrasse do seu carro oficial e da escolta perto da Torre Eiffel e que caminhasse sozinho o resto do percurso. Normalmente, entrava no edifício pelo portão da Rue de Grenelle, mas em vez disso, a pedido de Rousseau, entrou através da passagem da loja de antiguidades. Rousseau aguardava-o no quinto andar, na sala de conferências com paredes de vidro à prova de som. Envergava um casaco de tweed amarrotado que Gabriel vira muitas vezes antes e, como era habitual, estava a fumar cachimbo, uma violação à lei francesa que proibia o fumo de tabaco no local de trabalho. Gabriel era um não-fumador devoto. Ainda assim, havia algo na rebelião privada de Rousseau que considerava reconfortante.

Tirou uma fotografia da pasta e fê-la deslizar sobre o tampo da mesa. Rousseau olhou de soslaio para o rosto do sujeito e, depois, olhou abruptamente para cima.

— Nouredine Zakaria?

— Conhece-lo?

— Só de reputação. — Rousseau levantou a fotografia. — Onde é que arranjaste isto?

— Não é importante.

— Desculpa, mas é.

— Vem dos britânicos — cedeu Gabriel.

— De que agência?

— MI6.

— E porque é que o MI6 está subitamente interessado no Nouredine Zakaria?

— Porque foi o Nouredine que forneceu as Kalashnikovs para o atentado em Londres. O Nouredine é aquele a quem chamam o Escorpião.

Não existe pior sensação para um espião profissional do que ouvir algo de um agente de outro serviço que ele próprio já deveria saber. Paul Rousseau suportou esta indignidade enquanto recarregava lentamente o seu cachimbo.

— O que é que sabes sobre ele? — perguntou Gabriel.

— Trabalha para a maior rede de tráfico de droga da Europa.

— A fazer o quê?

— A forma educada de te responder é dizer que se encarrega da segurança.

— E a forma mal-educada?

— É um capanga e um assassino. A Police Nationale acredita que matou pessoalmente pelo menos doze pessoas. Não que o consigam provar — acrescentou Rousseau. — O Nouredine é o mais cauteloso possível. Tal como o seu patrão.

— Quem é esse?

— Cada coisa a seu tempo. — Rousseau levantou novamente a fotografia. — Onde é que arranjaste isto?

— Já te disse, dos britânicos.

— Sim, eu ouvi-te da primeira vez. Mas onde é que os britânicos a arranjaram?

— Não é importante.

— Desculpa — disse Rousseau —, mas é.


17

 

RUE DE GRENELLE, PARIS

 

 


— Estamos a falar exatamente de quantas armas?

— Acho que eram vinte.

— E como é que esse agente da espionagem inglesa conseguiu pôr as mãos em vinte Kalashnikovs e HK?

A expressão de Gabriel conseguiu transmitir simultaneamente ignorância e indiferença, ou algo entre as duas.

— E fez-se passar por corso? — perguntou Rousseau. — Tens a certeza disso?

— Isso é relevante?

— Talvez seja. Sabes que só alguém que tenha vivido na ilha durante muitos anos é que consegue imitar o modo de falar dos corsos.

Gabriel não disse nada.

— Esse agente britânico é teu amigo?

— Somos conhecidos.

— Deve ter uma excelente rede de contactos, para conseguir fazer uma coisa dessas. E ser bastante talentoso.

— Tem muito que aprender.

— Qual é o teu interesse neste assunto sujo? — perguntou Rousseau.

— O meu interesse— disse Gabriel — é o Saladino.

— O meu também. E é por esse motivo que vou contar até dez e conter a minha raiva. Porque é bastante possível que esse teu amigo britânico tenha conseguido provar algo de que eu suspeitava há muito tempo.

— O quê?

Rousseau não respondeu, pelo menos não diretamente. Em vez disso, adotou um ar professoral e fez um desvio para o passado, remontando-se ao esperançoso inverno de 2011. Na Tunísia e no Egito, dois regimes opressivos tinham sido varridos por uma súbita vaga de raiva e ressentimento popular. A Líbia tinha vindo depois. Em janeiro, tinha havido uma série de protestos devido à falta de habitação e à corrupção política, que rapidamente se tornou numa insurreição à escala nacional. Foi imediatamente evidente que Muammar Kadhafi, o tirânico governante da Líbia, não seguiria o exemplo dos seus homólogos na Tunísia e no Cairo e não entraria nessa noite árabe com doçura. Governara a Líbia com mão de ferro durante mais de quatro décadas, roubando as suas riquezas petrolíferas e assassinando os seus oponentes, por vezes apenas para sua própria diversão. Como homem do deserto, sabia que destino o aguardava se caísse. E, portanto, mergulhou a sua nação virada do avesso numa tremenda guerra civil. Temendo um banho de sangue, o Ocidente interveio militarmente, com a França a assumir a liderança. Em outubro, Kadhafi estava morto e a Líbia estava livre.

— E o que é que nós fizemos? Inundámos a Líbia de dinheiro e outras formas de assistência? Demos-lhe a mão, enquanto tentava fazer a transição de uma sociedade tribal para uma democracia ao estilo ocidental? Não — disse Rousseau —, não fizemos nada disso. Na verdade, não fizemos praticamente nada de nada. E o que é que aconteceu como resultado da nossa inação? A Líbia tornou-se mais um estado falhado e o ISIS ocupou o vazio.

O perigo de um porto seguro do ISIS no Norte de África, continuou Rousseau, era óbvio. Permitiria aos terroristas infiltrar combatentes e armamento na Europa Ocidental e, praticamente, realizar atentados sempre que desejassem. Porém, pouco meses depois da chegada do ISIS à Líbia, as forças policiais gregas e espanholas repararam noutra tendência preocupante. O fluxo de estupefacientes do Norte de África, principalmente haxixe vindo de Marrocos, cresceu para níveis sem precedentes. Para além disso, verificou-se uma alteração nas rotas tradicionais de contrabando. Quando, outrora, os gangues de droga se contentavam com traficar o seu produto através do Estreito de Gibraltar, usando um barquinho ou uma mota de água de cada vez (ou percorrendo, por via terrestre, o Egito e, depois, os Balcãs), agora, este chegava por via marítima em gigantescos navios de carga.

— Olha, por exemplo, para o caso do Apollo, um monte de ferrugem registado em nome grego e apreendido pela marinha italiana ao largo da Sicília pouco tempo depois de o ISIS se ter estabelecido na Líbia. Os italianos tinham recebido indicação por parte de um informador residente no Norte de África de que o navio continha um carregamento invulgarmente grande de haxixe. Mesmo assim, ficaram chocados com o que encontraram. Dezassete mil quilos, uma apreensão recorde.

Mas o Apollo, explicou Rousseau, foi apenas o início. Ao longo dos três anos seguintes, as autoridades europeias fizeram outras apreensões espantosas. Todos os navios tinham uma coisa em comum; todos tinham passado por portos líbios. E todas as rusgas se baseavam em indicações de informadores bem posicionados no Norte de África. Tudo contabilizado, mais de trezentos mil quilos de estupefacientes, com um valor de mercado estimado de dois mil milhões e meio de euros, foram retirados de circulação. Então, os informadores, subitamente, pararam de falar, e as apreensões abrandaram até se tornarem um gotejar.

— Mas porquê? Porquê a mudança repentina da rota de contrabando? Porque é que os produtores estavam, subitamente, a forçar a entrada de quantidades astronómicas de mercadoria no mercado? E porque é que os informadores — perguntou Rousseau — deixaram de falar? Aqui em França, concluímos que havia um novo interveniente poderoso em cena. Alguém com o músculo necessário para assumir o controlo das rotas de contrabando. Alguém cujos métodos foram capazes de assustar os informadores para que se calassem. Alguém que estava disposto a arriscar a perda de toneladas de carga preciosa, porque estava mais interessado em ganhar uma enorme quantia de dinheiro o mais rapidamente possível. Concluímos que só havia um grupo com esse perfil.

— O ISIS.

Rousseau anuiu lentamente com a cabeça.

— A união entre o haxixe e o terrorismo — disse ele — é tão antiga quanto o próprio tempo. Como sabes, a palavra assassino deriva do árabe hashashin, os homicidas xiitas que atuavam sob o efeito de haxixe. O Hezbollah, os seus descendentes no Líbano, financiam parcialmente as suas operações através da venda de haxixe, grande parte dele a consumidores no teu país. E, quase desde o início, o ISIS tem sido um interveniente ativo no mundo da droga, principalmente através da imposição de taxas sobre o produto que é movimentado pelo território que controla. Atualmente, acreditamos que o Estado Islâmico assumiu o controlo de grande parte do comércio europeu de estupefacientes ilícitos. E a maioria dessas drogas circula através da organização de um homem. O homem para quem o teu amigo trabalha — acrescentou, batendo suavemente com os dedos na fotografia de Nouredine Zakaria.

O cachimbo de Rousseau tinha-se apagado. Para deceção de Gabriel, o francês esticou a mão para agarrar na sua bolsa de tabaco.

— O meu maior medo — continuou Rousseau — era que a relação fosse mais do que financeira, que o ISIS usasse a infraestrutura da rede de distribuição deste homem para levar a cabo atentados na Europa. Se o teu amigo britânico estiver correto, se o Nouredine Zakaria tiver fornecido as armas usadas em Londres, então parece que os meus receios se confirmaram. A questão é: estaria o Nouredine a agir sozinho? Ou terá contado com a bênção do patrão?

— Talvez devêssemos perguntar-lhe.

— Ao patrão do Nouredine? É mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Sabes — explicou Rousseau —, ele é um homem muito popular aqui em França. Principalmente entre os ricos e bem relacionados. Jantam nos seus restaurantes e dançam nas suas discotecas. Dormem nos seus hotéis, compram nas suas boutiques e adornam os dedos e pescoços com objetos da sua linha exclusiva de joalharia. E sim, de vez em quando, fumam ou snifam ou injetam as suas drogas. O atual presidente francês é amigo pessoal dele. Tal como o ministro do Interior e muitos outros no seio das autoridades policiais francesas. Eles garantem que nunca são colocadas questões desconfortáveis e que as investigações nunca se se aproximam demasiado do seu império empresarial.

— Ele tem um nome?

— Jean-Luc Martel.

— JLM?

Rousseau pareceu ficar genuinamente surpreendido.

— Conheces o nome?

— Passei muito tempo no teu país ao longo dos anos. É difícil não conhecer o Jean-Luc Martel.

— É uma celebridade e tanto, isso é verdade. Um dos nossos empresários mais bem-sucedidos. Mas é tudo um embuste. O verdadeiro negócio do Martel é a droga. — Rousseau ficou em silêncio durante um momento. — E, se eu dissesse estas palavras no escritório do meu ministro, ele expulsava-me do gabinete às gargalhadas. E, depois, apressar-se-ia a ir jantar ao novo restaurante do Martel no Boulevard Saint-Germain. Está na berra.

— Ouvi dizer que sim.

Rousseau sorriu involuntariamente.

— Talvez o Martel possa ser persuadido — disse Gabriel. — Com um apelo ao seu patriotismo.

— O Jean-Luc Martel? Impossível.

— Então suponho que temos de lhe dar a volta à maneira antiga.

— Como?

— Deixa isso comigo.

Houve um silêncio.

— E se conseguirmos? — perguntou Rousseau.

— Talvez isso nos conduza àquele de quem ambos andamos à procura.

— Sim — disse Rousseau. — Talvez, efetivamente. Mas o meu ministro nunca irá aprovar.

— Olhos de ministro que não veem, coração de ministro que não sente.

O francês fez um sorriso travesso.

— E as regras básicas?

— Iguais às da última vez. Uma parceria igualitária. Tenho autonomia no estrangeiro, tens poder de veto sobre tudo o que acontecer em solo francês.

— E os britânicos?

— Vou precisar dos serviços daquele que fala francês como um corso.

— Quanto é que eu sei sobre o que realmente aconteceu com o Nouredine Zakaria e aquelas armas?

— Cerca de cinquenta por cento.

— Quero saber o resto?

— Nem pensar.

— Nesse caso — disse Rousseau — parece-me que temos um acordo.

 

Rousseau telefonou para o Ministério do Interior e pediu cópias de dois processos, um com o nome de Nouredine Zakaria, o outro com o nome do homem para quem ele trabalhava. O chefe do Registo, um fonctionnaire da melhor tradição francesa, levantou imediatamente problemas ao pedido. Porque é que Rousseau, cuja missão se restringia ao terrorismo jihadista, estava subitamente interessado num criminoso marroquino de pouca monta e num dos mais admirados empresários franceses? Era, assinalou o funcionário do Registo, uma combinação bastante estranha, como vinho tinto e ostras. Num gesto merecedor de reconhecimento, Rousseau não disse ao seu oponente que achava a sua analogia, no mínimo, infantil. Em vez disso, referiu que, como chefe de uma divisão da DGSI, apesar de ser uma divisão que, oficialmente, não existia, tinha o direito de ver praticamente todos os processos existentes no sistema francês. O funcionário do Registo capitulou rapidamente, embora tivesse insinuado que haveria um atraso de várias horas, pois os processos eram bastante volumosos. Desperdiçar o tempo valioso dos outros, pensou Rousseau, era a derradeira vingança de um burocrata.

Afinal, foi necessário ligeiramente menos de uma hora para localizar e copiar os ficheiros em questão. Um estafeta de mota do Grupo Alpha recolheu os documentos às quatro horas e cinquenta e dois minutos e, por um pequeno milagre, entregou-os na Rue de Grenelle onze minutos depois das cinco. Não houve qualquer contestação à hora; o segurança, uma contratação recente, fez uma anotação da mesma no seu livro de registos, como exigiam os novos protocolos do Grupo Alpha. O guarda fez uma rápida inspeção aos documentos (quinhentas páginas, unidas por dois clipes metálicos) antes de fazer sinal ao estafeta para que entrasse no edifício. Para bem da sua preparação física, o estafeta utilizou as escadas em vez do instável elevador e, passados treze minutos, colocou os documentos na secretária de Madame Treville. Aqui, uma vez mais, houve certeza absoluta relativamente às horas. Madame Treville apontou-as no seu diário de secretária, que foi mais tarde recuperado.

Foi neste ponto que Christian Bouchard, sempre alerta para perigos ou oportunidades, espreitou, com a sua cabeça cuidada, para o exterior da sua toca e, vendo a pilha de ficheiros recentemente entregues na mesa de Madame Treville, caminhou até lá para dar uma olhada.

— JLM? Quem é que pediu isto?

— O Monsieur Rousseau.

— Porquê?

— Terá de lhe perguntar a ele.

— Onde é que ele está?

— Na sala de conferências segura. — Baixou a voz e acrescentou: — Com o israelita.

— O Allon?

Madame Treville assentiu com gravidade.

— Porque é que eu não fui incluído?

— O senhor estava a almoçar quando ele chegou. — Fez com que estas palavras soassem a acusação. — Monsieur Rousseau pediu-me para lhe entregar os ficheiros assim que chegassem. Talvez queira fazê-lo por mim.

Bouchard agarrou na pilha de papéis e carregou-a ao longo do corredor para a sala de conferências segura, onde encontrou Gabriel e Rousseau abstraídos numa conversa, atrás de uma parede de vidro à prova de som. Digitou o código na fechadura eletrónica, entrou e deixou cair os pesados processos sobre a mesa, como se estes fossem a prova de uma conspiração.

Foi aí, no instante em que as quinhentas páginas aterraram com um pesado estrondo, que a bomba detonou. Na verdade, a sincronização foi tal que Gabriel pensou, inicialmente, que tinham sido os próprios documentos a explodir, de alguma forma. Felizmente, viria a ter apenas uma vaga recordação do que sucedeu depois. Teve consciência de que estava a cair através de uma nevasca de vidro e alvenaria e sangue humano e de que Paul Rousseau e Christian Bouchard estavam a cair com ele. Quando finalmente parou, sentiu como se estivesse confinado ao seu próprio caixão. Os seus últimos pensamentos conscientes foram do seu funeral, um nó de enlutados em redor de uma sepultura aberta no Monte das Oliveiras, duas jovens crianças, uma filha chamada Irene em honra da avó, um rapaz que ostentava o nome de um magnífico pintor. Para eles, era um homem que fora e viera na escuridão. E à escuridão regressara.


SEGUNDA PARTE

 


UMA RAPARIGA ASSIM


18

 

PARIS – JERUSALÉM

 

 


Foi o papel (os dossiês, os relatórios de vigilância, as mensagens de texto e os e-mails intercetados, os históricos de casos) que expôs a verdadeira natureza da organização sigilosa alojada no interior do elegante edifício antigo da Rue de Grenelle. Durante várias horas depois do atentado, rodopiou pelas ruas do sétimo arrondissement, da Torre Eiffel aos Les Invalides, até aos jardins do Musée Rodin, ao sabor de um vento incerto. Houve numerosos relatos de polícias fardados e à paisana a recolherem freneticamente os documentos, até mesmo enquanto as equipas de resgate e os paramédicos estavam a retirar os sobreviventes atordoados dos destroços. Porém, ao início da noite, começaram a surgir no Twitter e noutras redes sociais fotografias de documentos recuperados, cada um deles exibindo o logótipo da DGSI. O Le Monde foi o primeiro a contar a história, seguido, pouco depois, pelos restantes grandes meios de comunicação franceses. Finalmente, sem que lhe restasse outra alternativa senão a verdade, o ministro do Interior confirmou o óbvio. O alvo do segundo grande atentado em Paris em menos de um ano não fora uma obscura sociedade dedicada à promoção da literatura francesa; fora uma unidade secreta de elite da DGSI cuja mesmíssima existência o ministro negara recentemente. Depois, pediu aos cidadãos da República que entregassem às autoridades todos os documentos recuperados e que cessassem a publicação de imagens dos mesmos na Internet. Muito poucos acataram o pedido.

Infelizmente, o escândalo político que se seguiu, e as muitas questões que rodeavam as táticas do Grupo Alpha, ofuscariam a precisão e a brutalidade friamente calculada do atentado em si. Havia simbolismo não só no alvo, mas também na forma de entrega da bomba: uma carrinha Renault Trafic branca, o mesmo modelo utilizado no atentado contra o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Antissemitismo em França, dez meses antes. Todavia, com apenas duzentos quilos, era bastante mais pequena do que o engenho do Centro Weinberg. Ainda assim, era comparável em termos de poder de explosão, o que sugeria aos especialistas que o fabricante de bombas de Saladino, quem quer que fosse, aperfeiçoara a sua arte. A força da explosão deixou o quartel-general do Grupo Alpha em ruínas e danificou edifícios em várias centenas de metros ao longo da Rue de Grenelle. Quatro transeuntes que estavam a passar, por acaso, pela carrinha quando esta explodiu foram mortos de imediato, bem como uma mãe e a sua filha de seis anos, que estavam a entrar na farmácia do outro lado da rua. À exceção destes, os únicos óbitos foram de agentes do Grupo Alpha.

Da carrinha em si, não restou praticamente nada. Uma porta aterrou perto de uma boucherie na Rue Cler; uma porção do tejadilho, num parque infantil no Champ de Mars. Mais tarde, determinar-se-ia que o veículo fora dado como roubado três semanas antes, num subúrbio de Bruxelas, e que entrara em Paris vindo de noroeste pela A13. O local onde a bomba fora montada nunca seria determinado com fiabilidade. As autoridades francesas jamais conseguiriam sequer identificar o homem que estacionara a carrinha mesmo por baixo da janela do escritório de Paul Rousseau no quinto andar. Fora visto pela última vez a trepar para uma mota que lhe fora deixada na Praça de la Tour-Maubourg. A mota, tal como o homem, jamais seria encontrada.

Felizmente, metade da equipa do Grupo Alpha não se encontrava de serviço ou estava fora no cumprimento de alguma missão quando a bomba explodiu. Os atingidos com maior gravidade foram a equipa de apoio técnico e as sentinelas, cujos espaços de trabalho ocupavam a cave e o rés-do-chão. Perderam-se duas jovens do Registo, bem como nove dos mais experientes agentes do Grupo Alpha. Paul Rousseau e Christian Bouchard sofreram apenas ferimentos ligeiros, em parte devido ao facto de estarem no interior da sala de conferências segura no momento da explosão. Infelizmente, Madame Treville escolhera esse preciso momento para arrumar o desordenado escritório de Rousseau e fora exposta ao impacto total da detonação. Foi retirada ainda viva dos escombros, mas veio a falecer mais tarde, nessa mesma noite, enquanto o resto da França chafurdava em intrigas políticas.

Mas o escândalo não acabava ali. Efetivamente, no dia posterior ao atentado, surgiram questões sobre se as vítimas no interior do edifício se limitavam ou não a agentes do Grupo Alpha. A fonte da controvérsia foi um relato de que algumas testemunhas tinham visto dois homens (jovens, robustos e armados com pistolas) a vasculharem freneticamente os escombros no rescaldo imediato da explosão, enquanto repetiam aos gritos um nome. O nome era Gabriel, que, casualmente, era a versão em hebreu do nome do atual chefe dos serviços secretos israelitas. Isso deu azo a especulações sobre a possibilidade de o homem em questão, cuja história em França era longa e sórdida, estar no interior do edifício quando a bomba detonou. O ministro do Interior e o chefe da DGSI negaram que ele tivesse estado presente, ou que tivesse, sequer, estado em França. Dado o historial recente de ambos, as suas declarações foram recebidas com o ceticismo natural.

Na realidade, o homem em questão estivera, efetivamente, no interior do quartel-general do Grupo Alpha no momento do atentado e passara quarenta e cinco longos minutos enterrado nos escombros, dobrado e torcido como um contorcionista, antes de ser finalmente arrastado para o exterior pelos seus guarda-costas e uma equipa de resgate francesa. Ensanguentado e coberto de pó, foi levado para o hospital militar vizinho de Val-de-Grâce, onde foi cosido, remendado e tratado a várias costelas severamente partidas, duas vértebras fraturadas na região lombar e uma comoção cerebral grave. Os médicos recordariam que ele falara francês fluente, embora com um ligeiro sotaque, que fora infalivelmente educado, embora estivesse algo atordoado, e que recusara todos os medicamentos para as dores, apesar do intenso desconforto das suas lesões. No entanto, mais tarde, após uma visita dos agentes dos serviços secretos franceses, os médicos e enfermeiras de serviço negariam ter mantido qualquer contacto com ele.

Na verdade, permaneceu no hospital durante três dias, num quarto adjacente ao ocupado por Paul Rousseau e Christian Bouchard, cuidado por uma equipa conjunta de médicos franceses e israelitas e vigiado por uma equipa de guarda-costas de idêntica composição. Finalmente, depois de uma série de radiografias e ressonâncias magnéticas ter confirmado que era seguro deslocá-lo, foi vestido com um fato e camisa limpos e conduzido de ambulância para o Aeroporto Charles de Gaulle. Aí, depois de recusar todas as ofertas de ajuda, subiu um íngreme lanço de escadas, parando diversas vezes para descansar e recuperar o equilíbrio, e entrou na cabina da primeira classe de um avião a jato da El Al. Estava vazia, à exceção de uma bela mulher de cabelo escuro indomável. Baixou lentamente o corpo para se sentar ao lado dela, descansou a cabeça no seu ombro e fechou os olhos. O cabelo da mulher cheirava a baunilha. Só nesse momento teve a certeza de que estava vivo.

 

Após o seu regresso a Israel, Gabriel foi diretamente para a Narkiss Street e aí permaneceu, escondido, a maior parte da semana seguinte. No início, mantinha-se essencialmente na cama, erguendo-se apenas para apanhar os poucos minutos de sol de final de inverno que caíam todas as tardes sobre o pequeno terraço. A dor dos seus ferimentos, embora suportável, era imensa. Cada inspiração era um suplício e até o mais pequeno movimento era como se estivesse a espetar a ponta de um ferro em brasa na base da sua coluna. E, depois, havia os efeitos persistentes da comoção cerebral: a dor de cabeça crónica, a sensibilidade à luz e ao som, a incapacidade para se concentrar durante mais do que um minuto ou dois. Estava mais confortável num quarto escuro, atrás de uma porta fechada. Quando estava a sós, com os seus pensamentos confusos como única companhia, afligia-se com a possibilidade de o seu estado ser permanente, de ter finalmente sofrido o ferimento que não conseguiria ultrapassar, de ter esgotado a capacidade que lhe fora concedida de se curar. De que nenhum retoque, por mais intenso, fosse capaz de lhe devolver a saúde. Em suma, de que o seu corpo fosse uma tela impossível de restaurar.

Porém, o resto de Israel desconhecia que o lendário chefe dos serviços secretos jazia incapacitado numa cama, com quatro costelas partidas, duas vértebras rachadas e uma enxaqueca descomunal. Sim, houve rumores, alimentados principalmente pela imprensa francesa, mas foram silenciados com catorze segundos de um vídeo divulgado pelo gabinete do primeiro-ministro e emitido na televisão israelita. Mostrava, alegadamente, uma reunião na Kaplan Street. Nele, o primeiro-ministro exibia um sorriso satisfeito e uma gravata azul; Gabriel estava vestido de cinzento e não apresentava quaisquer sinais de ferimentos. O vídeo fora gravado pouco depois de ele se ter tornado chefe e reservado para uma ocasião como aquela. Havia igualmente outros vídeos, com roupas diferentes e condições de iluminação diversas, para o caso de Gabriel alguma vez sentir necessidade de passar um período significativo longe do olhar do público. O próprio Gabriel era consciente de que esse momento tinha chegado muito antes do previsto. O chefe do Departamento quase morrera num atentado friamente calculado ao quartel-general de um amigo de confiança e aliado na guerra contra o terrorismo. Por conseguinte, o chefe não tinha outra opção senão retaliar. Eram essas as regras da vizinhança. Gabriel não delegaria a outros a tarefa da vingança. Também não atacaria alvos insignificantes nos desertos do Iraque e da Síria. O seu alvo era um homem. Um homem que construíra uma rede de morte que sitiara as grandes cidades do mundo civilizado. Um homem que estava a financiar as suas operações através da venda de estupefacientes na Europa Ocidental. Encontraria esse homem e varrê-lo-ia da face da terra. Seria detalhista na sua abordagem, meticuloso. Pois não havia nada mais perigoso, pensou, do que um homem paciente.

Mas não podia travar uma guerra contra o seu inimigo sem um corpo e um cérebro. A dor recuava gradualmente, como a água de uma grave inundação, mas os seus pensamentos continuavam um emaranhado. A operação estava algures lá fora, sabia-o, mas o enredo e as personagens principais estavam perdidos no nevoeiro da comoção cerebral. Decidiu que era necessário exercitar-se vigorosamente, não a nível físico, mas mental, portanto recorreu aos velhos jogos de memória de Shamron e, na sua cabeça, releu densas monografias sobre Ticiano, Bellini, Tintoretto e Veronese. O esforço fatigava-o (afinal de contas, era exercício), mas, paulatinamente, os contornos da operação começaram a tornar-se mais nítidos, para seu alívio. Apenas o desfecho lhe escapava. Via um homem abastado arruinado, exposto ao escárnio público e disposto a cumprir as suas ordens. Mas, como conseguiria manobrar o homem até chegar a esse ponto? Paulatinamente, foi relembrando. Cuidado com a fúria de um homem paciente.

O seu sono era perturbado pela dor, bem como por pesadelos em que caía através de um tufão de alvenaria, vidro e sangue. Apesar disso, acordou cedo na quarta manhã para descobrir que a dor de cabeça desaparecera e que os seus pensamentos se tinham tornado claros. Levantou-se antes de Chiara e das crianças, foi para a cozinha e fez café, que bebeu enquanto via as notícias na televisão. Depois disso, entrou furtivamente na casa de banho e confrontou o seu reflexo no espelho. De um ponto de vista objetivo, a imagem era perturbadora. O lado esquerdo do rosto estava razoavelmente intacto, mas o direito (o lado que estivera virado para o impacto total da explosão) era uma história completamente diferente. O olho estava escuro e inchado, e havia numerosos pequenos cortes e escoriações deixados pelo vidro e destroços esvoaçantes. Não era o rosto de um chefe, pensou; era o rosto de um vingador. Encheu o lavatório com água a escaldar e, lenta e dolorosamente, fez a barba de uma semana no queixo e nas maçãs do rosto. Cada vez que a lâmina passava pela sua pele, sentia uma descarga de dor na base da espinha, e um espirro, completamente inesperado, deixou-o curvado sobre si próprio durante vários segundos de agonia.

Depois de ter tomado um duche, regressou ao quarto para descobrir que Chiara já se levantara. Vestiu um par de calças impermeáveis e uma camisa sentindo, apenas, um nível mínimo de dor, mas o esforço de apertar os sapatos de vela quase o conduziu novamente para o santuário da sua cama. Sorrindo firmemente para esconder o desconforto, foi para a cozinha, onde Chiara estava a preparar uma cafeteira fresca de café.

— Já te sentes bem? — Entregou-lhe uma chávena de café e olhou-o de cima a baixo. — Por favor, não me digas que estás a pensar em ir para a Avenida Rei Saul.

Honestamente, estava. Mas o tom de voz de Chiara levou-o a reconsiderar.

— Na verdade — disse ele —, estava com esperança de passar algum tempo com os miúdos e queria parecer novamente uma pessoa, em vez de um paciente.

— Deste bem a volta à questão — disse Chiara, ceticamente. Nesse preciso momento, um chilrear de gargalhadas veio do quarto das crianças. Ela sorriu e sussurrou: — E assim começa o dia.

Ele mostrou corajosamente que queria cumprir a sua palavra. Ajudou Chiara a vestir as crianças, uma atividade que lhe infligiu uma quantidade considerável de dores, e supervisionou a caótica luta de comida também conhecida como pequeno-almoço. Passou o resto da manhã a jogar jogos, a ler histórias, a ver vídeos educativos e a mudar um desfile interminável de fraldas sujas. Entretanto, perguntava-se como é que Chiara conseguia tratar dos filhos sozinha, dia após dia, sem colapsar de exaustão ou perder o juízo. Dirigir um dos mais desafiantes serviços de espionagem do mundo parecia, subitamente, uma atividade bastante trivial em comparação com esta.

A hora da sesta foi um oásis. Gabriel também dormiu e, quando acordou, foi para o terraço para aquecer o corpo exausto sob o sol de Jerusalém. Contudo, desta vez levou consigo uma pilha de material de leitura: as quinhentas páginas do processo de Jean-Luc Martel que trouxera consigo de França. Martel fora alvo do interesse francês, intermitentemente, ao longo de mais de uma década. E, mesmo assim, com exceção de dois problemas menores relacionados com o não pagamento de impostos, ambos resolvidos longe do domínio público, a sua reputação continuava a ser irrepreensível. A mais recente investigação ao seu império empresarial tivera lugar dois anos antes. Fora iniciada depois de um traficante de droga de nível intermédio se ter oferecido para testemunhar contra Martel em troca de uma redução da sua pena de prisão. No final, o caso foi arquivado por falta de provas, embora o chefe da investigação, um homem com um caráter inatacável, se tenha reformado antecipadamente em protesto. Talvez não por coincidência, o traficante de droga cuja acusação dera início à investigação foi, mais tarde, encontrado morto na sua cela de prisão, com a garganta cortada.

A investigação produziu resmas de interceções de comunicações (algumas obscenas, muitas prosaicas, todas insignificantes) e várias centenas de fotografias de vigilância. Rousseau enviou, com o processo, uma amostragem das melhores. Havia Jean-Luc Martel no Festival de Cinema de Cannes, Jean-Luc Martel na Bienal de Veneza, Jean-Luc Martel na primeira fila da Semana da Moda em Nova Iorque, Jean-Luc Martel no seu iate de quarenta e cinco metros no Mediterrâneo, Jean-Luc Martel na Rue de Rhône em Genebra e Jean-Luc Martel na inauguração de gala do seu novo restaurante em Paris, que foi um sucesso porque, de acordo com uma estimativa, gastara uns descontraídos cinco milhões de euros para se assegurar de que todas as celebridades francesas relevantes estavam presentes, juntamente com uma estrela americana de reality shows que era famosa por ser famosa e dois artistas de hip-hop americanos que tinham coisas desagradáveis para dizer sobre o tratamento dado pela França às minorias raciais.

Martel não estava sozinho em nenhuma das fotografias; a mulher estava sempre com ele. A mulher invulgarmente alta e de membros longos, com enormes olhos azuis e cabelo louro nórdico que caía a direito sobre os seus ombros quadrados. Não era francesa, mas inglesa; era curioso, pois Martel era um defensor acérrimo de todas as coisas gaulesas. O seu nome não dizia nada a Gabriel, mas o rosto perfeito era-lhe vagamente familiar. Uma pesquisa normal na Internet produziu mais de quatro mil imagens altamente profissionais. Anúncios de roupa. De joias. De uma linha exclusiva de relógios de pulso. De perfume. De fatos de banho. De um carro desportivo italiano de duvidosa fiabilidade. No entanto, tudo isso era passado. Atualmente, era a proprietária oficial de uma conceituada galeria de arte na Place de l’Ormeau, em Saint-Tropez, contra a qual as autoridades francesas não tinham encontrado nada. Uma pesquisa adicional de documentos e notícias publicamente disponíveis revelou que era uma condutora atroz, que fora detida duas vezes com acusações menores relacionadas com droga e que estivera envolvida numa série de relações amorosas questionáveis: futebolistas, atores, um membro do Parlamento, uma estrela de glam rock envelhecida que dormira com todas as outras modelos da Grã-Bretanha. Nunca fora casada, não tinha filhos, nem pais, nem irmãos. Estava, pensou Gabriel, sozinha no mundo.

Na maioria das fotografias de vigilância, o seu olhar estava desviado, o rosto virado para baixo. Mas numa delas, tirada na Île Saint-Louis, em Paris, fora apanhada a fitar diretamente a objetiva da máquina fotográfica. Foi essa fotografia que Gabriel mostrou a Uzi Navot, já tarde nessa noite, na pequena mesa da cozinha de Gabriel. Era quase meia-noite; Navot, que passara a maior parte da última década numa ou noutra dieta da moda, estava a devorar lentamente os restos do jantar de Chiara. Entre dentadas, estudou cuidadosamente a fotografia. Como ex-recruta e coordenador de agentes, tinha um olhar apurado para o talento.

— É problemática — disse ele. — A evitar.

— Achas que sabe onde é que o seu namorado famoso realmente arranja o dinheiro?

— Uma rapariga assim... — Navot encolheu os ombros pesados. — Sabe. Sabem sempre.

— A galeria está em nome dela.

— Estás a pensar ser agressivo com ela?

— Não é a minha primeira escolha, mas nunca devemos limitar as nossas opções.

— O que é que estás a pensar?

Gabriel explicou, enquanto Navot terminava os últimos resquícios de comida.

— Vais precisar de um traficante de armas russo — disse Navot.

— Já tenho um.

— É casado, ou anda à caça?

— É casado — disse Gabriel. — Muito casado.

— Com quem?

— Com uma rapariga francesa simpática.

— Alguém que eu conheça?

Gabriel não respondeu. Navot fitou a fotografia da bela mulher de longas pernas.

— Uma rapariga assim não vai sair barata — disse ele. — Vais precisar de dinheiro.

— Eu sei onde é que podemos arranjar dinheiro, Uzi. — Gabriel sorriu. — Muito dinheiro.


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AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE

 

 


Passariam outras setenta e duas horas até Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia, e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se tornar alvo de vigilância a tempo inteiro por parte do Departamento, juntamente com Olivia Watson, a sua «não-exatamente» esposa. O atraso teve a ver com a sua localização e a estação do ano. A sua localização era a encantada ilha das Caraíbas de Saint Barth e a estação do ano era o final do inverno, o que significava que não havia uma villa para alugar, nem um quarto de hotel para reservar no resort inteiro. Sob a implacável pressão de Gabriel, a divisão de Viagens finalmente conseguira pôr as mãos numa cabana infestada de mosquitos com vista para os pântanos salgados de Saline. Mordecai e Oded, dois agentes de campo que eram pau para toda a obra, instalaram-se pouco depois, acompanhados por duas agentes do sexo feminino que falavam inglês americano. Os franceses não contribuíram com pessoal, apesar do facto de, teoricamente, se tratar de solo francês. O Grupo Alpha de Paul Rousseau não estava em condições de operar contra ninguém; ainda estava a fazer o luto pelos seus mortos e à procura de um novo quartel-general clandestino em Paris. E, para o resto da França oficial (os vários ministros, os diretores de espionagem e dos serviços de segurança, a polícia e os procuradores), não existia qualquer operação.

Contudo, o alvo dessa operação inexistente não tinha dificuldades em encontrar alojamento em Saint Barth. Era proprietário de uma enorme villa nas colinas acima da povoação de Saint-Jean, de onde conseguia contemplar o seu hotel de luxo, a sua boutique especializada em roupa de praia para senhora, e o seu restaurante, chamado Chez Olivia. O primeiro lote de fotografias de vigilância mostrava-a nua, estendida junto da piscina, na villa de Martel. O seguinte captava-a em várias fases, enquanto se despia. Gabriel aconselhou a equipa a dedicar a energia a mais do que fotografias. Já sabia qual era a aparência de Olivia Watson; o que queria era espionagem a sério. Foi recompensado com outra fotografia, dessa feita de Martel em flagrante delito com uma das vendedoras da sua boutique. Gabriel guardou a fotografia em segurança, embora tivesse dúvidas quanto ao seu potencial impacto. Quando uma mulher entrava numa relação com um francês, especialmente um tão bem-parecido como Jean-Luc Martel, a infidelidade fazia parte do acordo. Interrogava-se, apenas, se Olivia Watson se regia pelo mesmo conjunto de regras.

Permaneceriam em Saint Barth durante os dez dias seguintes, desconhecendo que, a vários milhares de quilómetros de distância, num bloco de apartamentos anónimo em Telavive, as suas vidas estavam a ser alvo de um escrutínio contínuo, embora sigiloso. Eli Lavon, um investigador financeiro habilidoso, esquadrinhou a JLM Enterprises, cuja sede, apesar de todo o seu chauvinismo, ficava logo após a fronteira, na sigilosa Genebra. Com a ajuda da Unidade 8200, o serviço de espionagem ultrassecreta de sinais e códigos de Israel, Lavon estudou cuidadosamente os balancetes e registos fiscais de JLM à sua vontade, os quais revelaram que a empresa era, de facto, altamente lucrativa. Anormalmente lucrativa, na opinião de Lavon, que tinha um olho altamente treinado para detetar dinheiro sujo. Depois, analisou a empresa unidade por unidade. Os restaurantes, os hotéis, as discotecas, as boutiques e as lojas de joalharia. Todas tinham um balanço financeiro positivo, um golpe de sorte verdadeiramente notável durante um período global de crescimento económico lento. O mesmo poderia dizer-se da Galeria Olivia Watson, em Saint-Tropez. Efetivamente, enquanto o resto do mundo da arte passava por dificuldades no mercado posterior à Grande Recessão, a Galeria Olivia Watson vendera mais de cento e setenta milhões de euros em arte, apenas durante os últimos dezoito meses.

— Calder, Pollock, Rothko, Basquiat, três obras de Roy Lichtenstein, outras três de Kooning, dois Rauschenbergs e mais Warhols do que seria capaz de contabilizar.

— Deveras impressionante — disse Gabriel.

— Principalmente, se tiveres em conta os preços a que está a conseguir vendê-los. Comparei-os com as vendas em casas de leilões de Nova Iorque e Londres.

— E?

— Não estão nem próximos.

— Talvez seja uma boa negociante — disse Gabriel.

— Posso dizer-te uma coisa. É discreta. Quase todas as vendas são totalmente privadas.

— Conseguiste encontrar alguma guia de remessa?

— Na verdade, consegui.

— E?

— Durante os últimos seis meses, enviou quatro quadros para a mesma morada no Freeport de Genebra.

Inicialmente, Lavon conduziu a investigação a partir do seu escritório no último andar. Mas, depois de o anzol ter sido lançado, reuniu os seus ficheiros e migrou pelo edifício para a zona inferior, a atulhada sala subterrânea conhecida como Sala 456C. Os restantes membros da antiga equipa do Barak juntaram-se a ele pouco tempo depois. Havia o alto e quase careca Yossi Gavish, com o seu hebreu de sotaque britânico e ar erudito, e Rimona Stern, de cabelo louro, ancas largas e língua ácida. Yaakov Rossman, o ex-agente de rosto bexigoso que era agora o chefe das Operações Especiais, reivindicou o seu antigo lugar na mesa comum, junto ao último quadro de ardósia de toda a Avenida Rei Saul. Dina Saris, a base de dados ambulante do Departamento sobre terrorismo palestiniano e islâmico, ocupou o seu lugar habitual no canto mais distante. Na parede vazia sobre a sua secretária, pendurou uma ampliação da última fotografia conhecida de Saladino, a fotografia de vigilância tirada na zona das Três Fronteira, na América do Sul. A mensagem para os outros era inconfundível. Jean-Luc Martel e Olivia Watson eram meros pontos de partida. O prémio derradeiro era Saladino.

Gabriel, com as costas e costelas doridas, não precisava que lho relembrassem. Ocasionalmente, assomava à porta para verificar o progresso da equipa, mas permanecia a maior parte do tempo no último andar e caminhava sobre uma corda bamba administrativa: chefe num minuto, homem de campo e planificador no seguinte. Desde os dias de Ari Shamron que um diretor-geral não controlava tão de perto uma operação. Ainda assim, os restantes assuntos diários do Departamento (a miríade de operações menores, o recrutamento em curso, a análise e avaliação de atuais ameaças) prosseguia normalmente, graças à presença de Uzi Navot logo do outro lado do corredor. Era a viagem inaugural da sua nova parceria e descolara sem qualquer percalço. Navot até acompanhou Gabriel a uma reunião com o primeiro-ministro, embora, ao contrário de Gabriel, se tivesse mostrado impotente para resistir ao frango kung pao.

— É o sal — confessou enquanto saíam em fila indiana da Kaplan Street. — Até comia o meu sapato se fosse frito em óleo e coberto de molho de soja.

Enquanto Eli Lavon investigava a fundo o duvidoso conglomerado do setor hoteleiro conhecido como JLM Enterprises, Yossi Gavish e Rimona Stern centraram os seus esforços na pessoa de Jean-Luc Martel. A história do seu início humilde fora contada muitas vezes. Nunca se esforçou por ocultá-lo; era, tal como a sua juba de cabelo quase negro, parte do seu charme. Enquanto criança, vivera numa aldeia ínfima nas colinas da Provença. Era o tipo de local, narrava ele muitas vezes, pelo qual os ricos e bonitos passavam a caminho do mar. O pai montava azulejos em casas, a mãe varria-os e limpava. Ela era parte argelina, pelo menos era esse o rumor que circulava pela aldeia. O pai de Jean-Luc espancava-a frequentemente. Também espancava Jean-Luc. O pai desapareceu quando Jean-Luc tinha dezassete anos. Alguns meses mais tarde, o seu corpo foi descoberto no fundo de uma ravina isolada, a alguns quilómetros da aldeia. O crânio estava desfeito, traumatismo por lesão contundente, provavelmente com um martelo. No seio das agências policiais francesas, era amplamente considerado como o primeiro homicídio de Jean-Luc Martel.

Em conferências de imprensa, Martel falava frequentemente do facto de ter sido um estudante pobre e malcomportado. A universidade não era uma possibilidade, portanto aos dezoito anos, encaminhou-se para Marselha, onde começou a trabalhar a servir à mesa num restaurante perto do Porto Velho. Estudou cuidadosamente o negócio (ou assim rezava a história) e conseguiu juntar dinheiro suficiente para abrir o seu próprio restaurante. Com o tempo, abriu um segundo, depois um terceiro. E assim nasceu um império.

No entanto, as quinhentas páginas do processo do francês contavam uma versão bastante diferente do tempo que Jean-Luc Martel passara em Marselha. Era verdade que trabalhara, durante um breve período de tempo, como empregado de mesa, mas o restaurante não era um restaurante vulgar. Tratava-se de uma operação de lavagem de dinheiro gerida por Philippe Renard, uma figura de alto nível no basfond francês que se especializara na importação e distribuição de estupefacientes ilegais. Renard afeiçoou-se imediatamente ao jovem bem-parecido que viera das colinas, principalmente depois de saber que Jean-Luc assassinara o próprio pai. Renard ensinou ao jovem aprendiz tudo o que havia para saber sobre o negócio. Apresentou-o a fornecedores no Norte de África e na Turquia. Aconselhou-o sobre como gerir as rivalidades com outros gangues de forma a evitar derramamento de sangue e publicidade desnecessários. E instruiu-o sobre como usar negócios aparentemente legítimos para lavar dinheiro e ocultar lucros. Martel recompensou a confiança de Renard assassinando-o como assassinara o seu pai, com um martelo, e assumindo o controlo do seu negócio.

Do dia para a noite, Jean-Luc Martel tornou-se numa das figuras mais importantes no mundo da droga francês. Mas não ficou satisfeito por ser apenas um entre muitos; o seu objetivo era o domínio total do negócio. E, portanto, montou um exército de assassinos experientes, principalmente marroquinos e argelinos, e soltou-os sobre os rivais. Quando o sangue parou finalmente de jorrar, Martel era o único que continuava de pé. A sua expansão no comércio de droga coincidiu com a sua ascensão no mundo legítimo. Cada lado do negócio alimentava o outro. A JLM Enterprises era uma firma criminosa de alto a baixo, uma gigantesca máquina de lavar com abertura frontal, que produzia centenas de milhões de euros limpos todos os anos.

Fora casado uma vez, brevemente, com uma bonita atriz que desempenhava papéis secundários em filmes medíocres. Durante o processo de divórcio, ela ameaçou contar à polícia tudo o que sabia sobre a verdadeira fonte dos rendimentos do marido. Uma overdose de comprimidos para dormir e álcool foi o seu destino. Depois disso, evitou romances públicos durante muitos meses, o que a imprensa considerou enternecedor. A polícia não ficou tão impressionada. Discretamente, tentaram estabelecer uma ligação entre Martel e a morte da esposa. A investigação não deu em nada.

Quando finalmente emergiu do seu Período Azul, fê-lo de braço dado com Olivia Watson. Ela tinha, na altura, trinta e três anos e era um membro da tribo perdida de exilados ingleses que tinham ido parar à Provença e jamais tinham conseguido encontrar o caminho de volta para casa. Demasiado velha para continuar a ser modelo, estava a gerir uma pequena galeria de arte que vendia trabalhos menores (— E isso — explicou Rimona Stern — é ser caridosa.) para os turistas que sitiavam a aldeia todos os verões. Com a ajuda financeira de Martel, abriu a sua própria galeria. Também desenhou uma linha de roupa de praia e uma coleção de mobiliário de estilo provençal. Tal como a galeria, ambos os negócios ostentavam o seu nome.

— Aparentemente — acrescentou Ramona — há um perfume em desenvolvimento.

— A que é que cheira? — perguntou Gabriel.

— A haxixe — gracejou ela.

Mas será que havia outro lado da JLM Enterprises? Um lado que ficava para lá do setor hoteleiro e das drogas? O caso de Nouredine Zakaria sugeria que assim fosse. O marroquino conseguira meter, pelo menos, quinze espingardas de assalto Kalashnikov no Reino Unido, uma proeza impressionante de contrabando e logística. Indubitavelmente, usara uma parte da rede que introduzia as drogas de Martel na Grã-Bretanha e no resto da Europa. Mas será que Nouredine era a exceção, ou existiriam outros? Felizmente, o Departamento tinha em sua posse vários milhares de documentos dos serviços de espionagem franceses que Paul Rousseau entregara, depois do atentado no Centro Weinberg, em Paris. Com a ajuda de um analista do Grupo Alpha em Paris, Dina Sarid comparou os nomes da base de dados com membros conhecidos ou suspeitos do exército de traficantes e capangas de Jean-Luc Martel, a maioria dos quais era de ascendência norte-africana. Seis nomes surgiram em ambas as listas: três marroquinos, dois argelinos e um tunisino. Quatro dos homens tinham cumprido penas em prisões francesas por crimes relacionados com droga; pensava-se que dois deles tinham passado algum tempo na Síria, a combater pelo ISIS. Mas, quando Dina alargou os parâmetros de busca para incluir o segundo e o terceiro níveis da associação, os resultados foram ainda mais alarmantes.

— A JLM Enterprises — concluiu ela — é um batalhão do ISIS à espera de atuar.

Gabriel reenviou a análise de Dina para Paul Rousseau, em Paris, e Rousseau colocou os piores dos piores sob vigilância do Grupo Alpha. Nessa mesma noite, o último membro da equipa do Barak chegou a Telavive a bordo de um avião proveniente de Zurique, onde passara os últimos dias a lidar com um assunto sem qualquer relação com este. Ao entrar na Sala 456C, fez uma breve pausa diante da fotografia ampliada de Saladino, desejou-lhe uma noite desagradável e sentou-se na sua antiga secretária, onde Gabriel colocara, pessoalmente, duas pilhas altas de processos. Abriu o primeiro e franziu o sobrolho:

— Ivan Kharkov — murmurou. — Há quanto tempo, seu filho da mãe miserável.

 

Fora Ari Shamron que uma vez descrevera Mikhail Abramov como um «Gabriel sem consciência». Não era uma caracterização absolutamente justa, mas não andava longe da verdade. Nascido em Moscovo, filho de um casal de académicos soviéticos dissidentes, Mikhail servira nas forças de elite Sayeret Matkal, a versão israelita do SAS britânico, antes de se juntar ao Departamento. Contudo, os seus vastos talentos não se limitavam ao uso da arma, daí as duas pilhas de processos que Gabriel colocara na sua secretária.

Em termos de aparência, era o oposto de Gabriel. Alto e esguio, com uma palidez absoluta e olhos cinzentos incolores, era o príncipe do gelo que contrastava com o príncipe do fogo que era Gabriel. Ao longo daqueles dias intensos de preparação, praticamente ignorou Jean-Luc Martel e Olivia Watson. Eram luzes numa margem distante (ou, como Gabriel gostava de dizer, do outro lado de uma baía em forma de U). Mikhail tinha apenas uma tarefa, preparar-se para o papel que desempenharia em breve. Não por coincidência, a personagem em cuja vida habitaria tinha muito em comum com a sua presa. Tal como Jean-Luc Martel, era um homem de duas faces, uma que mostrava ao resto do mundo, outra que mantinha cuidadosamente oculta.

Grande parte do programa de estudos de Mikhail era ensinado por si próprio, pois envolvia armamento russo, um assunto que conhecia bem. Mas Gabriel, em mais uma quebra da tradição do Departamento, monitorizava pessoalmente o resto. Na noite em que Martel e Olivia Watson deixaram Saint Barth, convocou Mikhail até à sua suíte para um exame final. Gabriel colocou-se de pé diante de um monitor de vídeo, com um comando na mão, enquanto Mikhail se sentava no sofá de couro de executivo, com as pernas compridas apoiadas sobre a mesinha de apoio e os olhos semicerrados com aborrecimento fingido, a sua expressão padrão.

— Tintoretto — disse ele.

Gabriel premiu o comando e outra imagem surgiu no ecrã.

— Ticiano — disse Mikhail, contendo um elaborado bocejo.

A imagem mudou.

— Rembrandt, por amor de Deus. Seguinte.

Quando a imagem apareceu, colocou a mão na testa fazendo um ar de profunda reflexão.

— É um Parmigianino ou um Perugino?

— Qual deles é? — perguntou Gabriel.

— Parmigianino.

— Correto, mais uma vez.

— Porque é que não me dás qualquer coisa um pouco mais desafiante?

Outra imagem surgiu no ecrã. Desta vez, não era uma pintura, mas o rosto de uma mulher.

— Natalie Mizrahi — disse Mikhail.

— Não é isso que estou a perguntar.

— Se está preparada? É isso que queres saber?

— Sim.

— Queres que fale com ela?

Gabriel desligou o monitor e abanou a cabeça lentamente. Não era o género de trabalho para um amante, pensou. Só um chefe poderia pedir algo assim.


20

 

VALE DE JEZREEL, ISRAEL

 

 


No início da tarde seguinte, depois de ler todos os e-mails da sua caixa de entrada e devolver as chamadas necessárias, Gabriel entrou cuidadosamente na parte de trás do seu jipe blindado e partiu para o vale da sua juventude. A paisagem para lá da janela era amarelada como uma velha fotografia. Durante a noite, um incendiário palestiniano ateara fogo ao Monte Carmelo. Fustigadas por ventos fortes, as chamas tinham consumido mil e duzentos hectares de pinheiro de Alepo altamente inflamável e estavam agora a avançar na direção da periferia de Haifa. Os bombeiros de Israel tinham-se mostrado incapazes de extinguir o incêndio, deixando o primeiro-ministro sem outra opção senão solicitar assistência internacional. A Grécia economicamente deprimida enviara duzentos homens; a Rússia aceitara enviar um avião-cisterna. Até mesmo o governante da Síria, que estava a batalhar pela sua própria sobrevivência, se oferecera, ironicamente, para vir em auxílio de Israel. Gabriel considerava a impotência do seu país profundamente inquietante. O povo judeu drenara os pântanos de malária, regara os desertos e vencera três conflitos existenciais contra um inimigo que o superava largamente em número. E, contudo, um palestiniano com uma caixa de fósforos conseguia paralisar completamente o canto noroeste do país e ameaçar a sua terceira maior cidade.

A Autoestrada 6, a principal ligação entre o norte e o sul de Israel, estava bloqueada no nó do ferro. A caravana de Gabriel virou para a Autoestrada 65 e seguiu-a no sentido este para Megido, o outeiro onde, de acordo com o Livro do Apocalipse, Cristo e o Demónio travariam um duelo climático que provocaria o final dos dias. O monte ancestral parecia tranquilo, embora estivesse envolto num véu de fumo em tons de sépia proveniente dos incêndios distantes na cordilheira. Dirigiram-se para norte, para o Vale de Jezreel, permanecendo em estradas secundárias para evitar o tráfego desviado, até que, finalmente, um portão de segurança, de metal e com espigões, lhes bloqueou o caminho. Para lá dele ficava Nahalal, um colonato agrícola cooperativo, ou moshav, fundado por judeus da Europa de Leste em 1921, quando a Palestina ainda estava nas mãos no Império Britânico. Não foi o primeiro Nahalal, mas o segundo. O primeiro colonato judeu neste pedaço de terra fora estabelecido pouco depois da conquista de Canaã. Conforme registado no décimo nono capítulo do Livro de Josué, pertencia à tribo de Zebulom, uma das doze tribos ancestrais de Israel.

Gabriel inclinou-se para o exterior da janela, premiu o código no teclado numérico e o portão de segurança abriu-se. Loendros e eucaliptos bordeavam a via ligeiramente curva que se estendia diante deles. A Nahalal moderna tinha uma configuração circular. De frente para a estrada, havia vários bungalows e, atrás das casas, quais dobras de um leque, espraiavam-se pastagens serenas e terrenos cultivados. As crianças que enchiam a única escola da aldeia prestaram escassa atenção ao grande jipe preto de Gabriel. Vários residentes de Nahalal serviam no exército israelita ou nos serviços de segurança. Moshe Dayan, possivelmente o mais famoso general de Israel, estava enterrado no cemitério de Nahalal.

Na extremidade sul da moshav, o jipe virou para o caminho de acesso a uma casa de aspeto contemporâneo. Um segurança de colete caqui apareceu instantaneamente no alpendre sombreado e, vendo Gabriel sair lentamente do veículo, ergueu uma mão para o cumprimentar. Na outra, agarrava a coronha de uma arma automática.

— Ela acabou de sair.

— Onde é que está?

O guarda-costas inclinou a cabeça na direção da terra cultivada.

— Há quanto tempo saiu?

— Vinte minutos. Talvez meia hora.

— Por favor diz-me que não foi sozinha.

— Tentou, mas eu mandei dois dos rapazes com ela. Levaram uma moto-quatro. Nenhum de nós a consegue acompanhar.

A sorrir, Gabriel entrou no bungalow. O mobiliário era parco e funcional, mais escritório do que casa. Em tempos, das paredes tinham pendido fotografias a preto e branco, em tamanho grande, de palestinianos em sofrimento: o longo caminho empoeirado para o exílio, os campos deploráveis, os rostos gastos dos idosos que sonhavam com um paraíso perdido. Agora havia quadros. Alguns eram de Gabriel, obras juvenis, imitações. Os restantes eram da sua mãe. Eram obras cubistas e expressionistas abstratas, repletas de fogo e dor, produzidas por uma artista no seu auge. Uma representava uma mulher em semiperfil, macilenta, sem vida, envolta em trapos. Recordava-se da semana em que a sua mãe o pintara: fora na semana da execução de Eichmann. O esforço deixara-a exausta e acamada. Muito anos mais tarde, Gabriel descobriria o testemunho que a sua mãe gravara e depois trancara nos arquivos do Yad Vashem. Só nesse momento perceberia que a representação cubista de uma mulher cadavérica em farrapos era um autorretrato.

Foi para o jardim. O fumo erguia-se sobre o Monte Carmelo como a coluna de fumo de um vulcão em erupção, mas o céu sobre o vale estava limpo e perfumado com o cheiro de terra e excrementos bovinos. Gabriel olhou de soslaio sobre o ombro e viu que estava sozinho; o seu destacamento de segurança parecia ter-se esquecido dele. Seguiu um caminho empoeirado para lá do curral dos animais, observado por vacas leiteiras de olhar vazio. O pedaço de terra cultivável da quinta espraiava-se à sua frente. A parte mais próxima do bungalow estava plantada com algum tipo de cultura (Gabriel sofria de uma ignorância ressentida relativamente a todos os assuntos que envolviam agricultura), mas a secção distante da parcela estava lavrada e em pousio, aguardando semente. Para lá do limite exterior, ficava Ramat David, o kibbutz onde Gabriel nascera e fora criado. Fora estabelecido alguns anos depois de Nahalal, em 1962, e o seu nome advinha não do antigo rei judeu, mas de David Lloyd George, o primeiro-ministro britânico cujo governo vira favoravelmente a ideia de estabelecer uma pátria judia no território da Palestina.

Os residentes de Ramat David não eram do Leste; eram, maioritariamente, judeus alemães. A mãe de Gabriel chegara à povoação no outono de 1948. O seu nome era Irene Frankel, na altura, e, pouco tempo depois, conheceu um homem de Munique, um escritor, um intelectual, que adotara o nome hebreu de Allon. Esperava ter seis filhos, um por cada milhão perdido no Holocausto, mas uma criança fora tudo quanto o seu útero conseguira suportar, um rapaz chamado Gabriel, o mensageiro de Deus, o defensor de Israel, o intérprete das visões de Daniel. A casa deles, como a maioria em Ramat David, era um local de tristeza (de velas que ardiam por pais e irmãos que não tinham sobrevivido, de gritos aterrorizados na noite) e, portanto, Gabriel passava os dias a vaguear pelo antigo vale da tribo de Zebulom. Quando era criança, pensava nele como o seu vale. E agora cabia-lhe cuidá-lo e protegê-lo.

O sol deslizara para trás do monte a arder; a luz do dia estava a retirar-se. Nesse preciso momento, Gabriel ouviu o que soou como um grito distante de socorro. Eram apenas as primeiras notas do chamamento para a oração que flutuavam a partir da aldeia árabe empoleirada nas encostas das colinas a este. Quando era criança, Gabriel conhecera um menino da aldeia chamado Yusuf. Yusuf referia-se a ele como Jibril, a versão árabe do seu nome, e contara-lhe histórias sobre o passado do vale antes do regresso dos judeus. A sua amizade era um segredo muito bem guardado. Gabriel nunca ia à aldeia de Yusuf, Yusuf nunca vinha à sua. Essa divisão fora intransponível. Ainda o era.

O chamamento para a oração esmoreceu lentamente, juntamente com a última luz do dia. Gabriel olhou para lá dos campos sombrios, na direção do bungalow. Onde raios estavam os seus guarda-costas? Estava grato pelo indulto; não conseguia recordar-se da última vez que estivera completamente sozinho. Repentinamente, ouviu a voz de uma mulher a chamar o seu nome. Por um instante, imaginou que era a sua mãe. Depois, virando-se para trás, vislumbrou uma figura esbelta que vinha na sua direção, pelo caminho, perseguida por dois homens numa moto-quatro. Subitamente, sentiu uma punhalada de dor no fundo das costas. Ou seria culpa? É o que fazemos, assegurou a si próprio enquanto esfregava a dor para a afastar. É o nosso castigo por termos sobrevivido nesta terra.


21

 

NAHALAL, ISRAEL

 

 


Tal como Gabriel, a Dra. Natalie Mizrahi tivera o singular desprazer de ver Saladino em carne e osso. O encontro de Gabriel com o monstro fora fugaz, mas Natalie fora obrigada a passar vários dias com ele numa enorme casa com muitos quartos e pátios perto da cidade de Mossul, no Norte do Iraque. Aí, tratara Saladino de dois ferimentos graves sofridos num ataque aéreo norte-americano, um no peito, o outro na perna direita. Infelizmente, Natalie e Saladino tinham-se encontrado novamente, numa minúscula cabana em forma de A no Norte da Virgínia rural. Uma pintura ao estilo de Caravaggio que representava o instante anterior ao seu resgate pendia da aterradora galeria da memória de Gabriel. Por mais que tentasse, era incapaz de a remover. Também isso era algo que ele e Natalie tinham em comum.

A história da jornada dela para o interior do obscuro coração do califado do ISIS era uma das mais extraordinárias nos anais do Departamento. Efetivamente, até mesmo Saladino, que conhecia apenas parte dela, previra que, um dia, alguém escreveria um livro sobre isso. Nascida e educada em França, fluente no dialeto do árabe argelino, imigrou para Israel com os seus pais para escapar à crescente vaga de antissemitismo na sua terra natal e aceitou um cargo nas urgências do Centro Médico Hadassah, em Jerusalém Ocidental. A sua chegada a Israel não passou despercebida aos caça-talentos do Departamento. E, quando Gabriel estava à procura de uma agente para infiltrar na rede de Saladino, foi a Natalie que recorreu. Na pequena quinta em Nahalal, removeu as muitas camadas da sua identidade e transformou-a em Leila Hadawi, uma mulher árabe de linhagem palestiniana, uma viúva negra determinada a vingar-se. Depois, com a ajuda de Paul Rousseau e do Grupo Alpha, introduziu-a na corrente de franceses e outros muçulmanos europeus que se dirigiam para a Síria para combater pelo ISIS.

Ela passara quase um mês no califado, num apartamento próximo do Parque al-Rasheed, na baixa de Raqqa, num campo de treino na antiga cidade de Palmira e, finalmente, na casa próxima de Mossul onde, ameaçada de morte, salvara a vida do maior cérebro operacional do terrorismo desde Osama bin Laden. Durante o período de recuperação, ele fora extremamente gentil com ela. Referia-se a ela apenas como Maimónides, o filósofo e académico talmúdico que fora um dos médicos da corte do verdadeiro Saladino no Cairo, e autorizara-a a estar na sua presença sem ter o rosto coberto por um véu. Ela não saíra de perto dele uma única vez. Monitorizara os seus sinais vitais, mudara os seus pensos ensanguentados e silenciara a sua dor com injeções de morfina. Ponderara muitas vezes empurrá-lo para a porta da morte com uma overdose. Em vez disso, vinculada ao seu juramento como médica e à sua crença de que era essencial relatar o que testemunhara, cuidara dele até que estivesse curado, um ato de misericórdia que ele recompensara enviando-a para Washington numa missão suicida.

Tinham passado três meses desde aquela noite e, no entanto, ainda agora, Gabriel notava resquícios de Leila Hadawi no comportamento de Natalie e nos seus olhos escuros. Perdera o véu de Leila e a raiva de Leila, mas não a sua silenciosa piedade nem a sua dignidade. À exceção disso, não havia qualquer rasto visível do martírio que sofrera no califado islâmico ou na cabana de Virgínia, onde Saladino a sujeitara, pessoalmente, a um brutal interrogatório. A sua intenção era executar Natalie da forma preferida do ISIS, por decapitação, e a sua morte iminente teve o efeito de lhe soltar a língua. Reconheceu que estivera ao serviço da Mukhabarat iraquiana às ordens de Saddam Hussein, que fornecera apoio material e logístico a terroristas palestinianos rejeicionistas tais como Abu Nidal e que se juntara à insurgência iraquiana depois da invasão americana de 2003. Aqueles três elementos do seu curriculum vitae representavam o total da informação que os serviços secretos do Ocidente sabiam sobre ele. Até mesmo o seu nome verdadeiro permanecia um mistério. Contudo, Natalie tivera permissão para aceder ao claustro de Saladino, num momento em que este estava fisicamente debilitado. Conhecia cada centímetro do seu corpo alto e poderoso, cada sinal e marca de nascença, cada cicatriz. Esse era apenas um dos motivos pelos quais Gabriel viera à quinta em Nahalal, no vale do seu nascimento.

A noite tornou-se fria rapidamente, como acontecia sempre na Galileia. Não obstante, sentaram-se no exterior, no jardim, à mesma mesa onde, dez meses antes, Gabriel conduzira o recrutamento inicial de Natalie. Agora, como então, ela estava sentada muito direita, com as mãos recatadamente colocadas no colo. Envergava um fato de treino azul justo e ténis verdes-néon, sujos pela poeira das estradas da quinta. O seu cabelo escuro estava afastado do rosto e apertado na base do pescoço com um elástico. A boca grande, sensual, exibia um meio-sorriso. Parecia feliz pela primeira vez em muitos meses. Subitamente, Gabriel sentiu outra punhalada de dor. Desta vez era real.

— Sabes — disse Natalie, com uma expressão séria —, vais sarar mais rapidamente se tomares alguma coisa.

— É assim tão óbvio?

— Estás a inclinar-te para o lado para retirar pressão das fraturas.

Fazendo uma careta, Gabriel tentou imitar a postura ereta de Natalie.

— E a tua respiração — disse ela — é pouco profunda.

— Isso é porque me dói a respirar. E de cada vez que tusso ou espirro, vejo estrelas.

— Tens conseguido dormir?

— O suficiente. — Depois, perguntou calmamente: — E tu?

Natalie retirou a rolha de uma garrafa de branco da Galileia e serviu dois copos. Bebeu apenas uma pequena quantidade do seu e, depois, devolveu o copo à mesa. Durante os muitos meses em que vivera como muçulmana radicalizada abstivera-se, em grande medida, do álcool. O seu consumo diário de vinho branco (os caça-talentos do Departamento tinham-no considerado o seu único vício) baixara drasticamente desde o seu regresso a Israel.

— Tu tens conseguido? — perguntou Gabriel uma segunda vez.

— Dormir? Nunca fui muito boa nisso, mesmo antes da operação. Para além do mais — acrescentou, com um olhar de soslaio para o exterior do bungalow —, não é exatamente uma casa de segredos, pois não? Todas as divisões estão sob vigilância e todos os movimentos que faço são gravados e analisados pelos vossos psiquiatras.

Gabriel não se deu ao trabalho de negar. O bungalow estava, efetivamente, sob vigilância, tanto de áudio como de vídeo, e uma equipa de médicos do Departamento tinha registado todas as facetas da recuperação de Natalie. As suas avaliações pintavam um retrato de uma agente que ainda estava a sentir dificuldades com os efeitos do transtorno de stresse pós-traumático. A agente sofria de períodos prolongados de insónia, terrores noturnos e ataques de depressão severa. As suas corridas de treino diárias no vale tinham melhorado globalmente a sua saúde e acalmado as mudanças de humor. Tal como a sua relação romântica com Mikhail, que era um visitante regular de Nahalal. No geral, os médicos de Natalie (e Mikhail) eram da opinião de que ela estava pronta para regressar ao serviço com certas limitações. Contudo, não era propriamente essa a ideia de Gabriel. Tinha Saladino na mira.

Gabriel remexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Natalie franziu o sobrolho.

— Pelo menos bebe um bocadinho de vinho. Talvez alivie a dor.

Ele assim fez. Isso não aconteceu.

— Ele era igual — disse Natalie.

— Quem?

— O Saladino. Não queria analgésicos. Tive praticamente de o torturar para o convencer de que precisava deles. E, sempre que lhe acrescentava morfina à solução intravenosa, ele lutava para permanecer consciente. Se eu tivesse...

— Fizeste o que era correto.

— Não tenho a certeza se as vítimas de Londres estariam de acordo com isso. Ou as de Paris — acrescentou. — Tens sorte em estar vivo. E nada disso teria acontecido se eu o tivesse matado quando tive oportunidade.

— Não somos como eles, Natalie. Não fazemos missões suicidas. Para além disso — continuou Gabriel —, outra pessoa teria ocupado o lugar dele.

— Não existe outra pessoa como o Saladino. Ele é especial. Acredita, eu sei.

Ela aqueceu a mão sobre a vela que ardia entre eles. A direção do vento mudou subtilmente, trazendo consigo o odor acre dos incêndios. Gabriel preferia isso ao cheiro do vale. Mesmo quando era criança, detestava-o.

Natalie retirou a mão da chama.

— Estava a começar a pensar que te tinhas esquecido de mim.

— Nem por um minuto. E também não me esqueci daquilo pelo qual passaste.

— Já somos dois.

Ela esticou a mão para pegar no vinho, mas deteve-se. A temperança de Leila, aparentemente, apoderara-se dela.

— O Mikhail garante-me que um dia não me vou lembrar de nada daquilo, que vai ser semelhante a uma recordação desagradável de infância, como aquela vez em que quase fiquei sem dedo enquanto brincava com uma das facas de cozinha da minha mãe. — Ergueu a mão na escuridão. — Ainda tenho a cicatriz.

O vento esmoreceu, a chama da vela ardia direita.

— Aprova-lo? — perguntou ela.

— O Mikhail?

— Sim.

— Não interessa o que eu acho.

— Claro que interessa. És o chefe.

Ele sorriu.

— Sim, Natalie, aprovo. Completamente, na verdade.

— E aprovavas aquela rapariga americana com quem ele esteve envolvido? Aquela que trabalhava para a CIA? O nome dela — acrescentou Natalie friamente — está-me a escapar...

— Chamava-se Sarah.

— Sarah Bancroft — acrescentou ela, enfatizando a primeira sílaba do apelido, que soava bastante aristocrático.

— Sim — disse Gabriel. — Sara Bancroft.

— Não parece judeu, Bancroft.

— Porque não é. E não — disse Gabriel. — Não aprovava a relação. Pelo menos, não no início.

— Porque ela não era judia?

— Porque as relações entre agentes secretos são complicadas por natureza. E relações entre agentes que trabalham para serviços de países diferentes são inauditas.

— Mas ela era próxima do Departamento.

— Muito.

— E tu gostavas dela.

— Gostava.

— Quem é que terminou a relação?

— Não estava a par de todos os pormenores.

— Por favor — disse ela, sem fazer caso do que ele dissera.

— Creio — disse ele cautelosamente — que foi o Mikhail.

Natalie pareceu refletir cuidadosamente sobre essa última afirmação. Gabriel esperava não ter dito algo que não devia. Nunca se sabia verdadeiramente como eram as conversas entre amantes, especialmente no que se referia a antigas relações. Era possível que Mikhail se tivesse retratado a si próprio como a parte lesada. Não, pensou, não era esse o estilo de Mikhail. Tinha muitas qualidades excelentes, mas o seu coração era feito de ferro fundido.

— Calculo que ele vá partir em breve — disse ela.

— Tenho mais algumas peças para pôr no lugar.

— Trabalhos preliminares?

Ele sorriu.

— E quanto tempo calculas que ele vá estar fora?

— É difícil de prever.

— Ouvi dizer que o vais transformar num traficante de armas.

— Um muito rico.

— Vai precisar de uma rapariga. Caso contrário, o Jean-Luc Martel não vai acreditar que ele seja real

— Sabes muito sobre ele?

— O JLM? — Encolheu os ombros. — Só o que costumava ler nos jornais.

— Achas que está envolvido com drogas?

— Era esse o rumor. Cresci em Marselha, sabias?

— Sim — disse Gabriel monotonamente. — Acho que talvez tenha lido qualquer coisa sobre isso no teu processo, uma vez.

— E tratei a minha quota-parte de pacientes com overdoses de heroína quando trabalhava lá — continuou Natalie. — Dizia-se que era heroína do Martel. Mas suponho que não se pode acreditar em tudo o que se ouve.

— Às vezes, pode-se.

Um silêncio abateu-se entre eles.

— Então, quem é a sortuda? — perguntou Natalie finalmente.

— A rapariga do Mikhail? Tenho uma pessoa em mente para o papel — disse Gabriel —, mas não tenho a certeza de que ela o queira.

— Perguntaste-lhe?

— Ainda não.

— De que é que estás à espera?

— De perdão.

— Por quê?

Nesse preciso momento, uma rajada de vento ergueu-se subitamente e extinguiu a chama. Ficaram sentados sozinhos na escuridão, sem dizer absolutamente nada, e observaram as montanhas a arder.

 

Natalie demorou apenas alguns minutos a atirar os seus pertences para dentro de um saco. Depois, ainda de fato de treino, instalou-se na parte de trás do jipe de Gabriel e voltou com ele para Telavive. A doutrina ditava que ela estabelecesse residência num «trampolim», um andar seguro onde os agentes do Departamento assumiam as identidades que levariam consigo para o terreno. Em vez disso, Gabriel deixou-a no apartamento de Mikhail junto à HaYarkon Street. Considerava que não era uma violação absoluta do protocolo; afinal de contas, Mikhail e Natalie iriam fazer-se passar por marido e mulher. Com um pouco de sorte, até poderiam aprender a não gostar um bocadinho um do outro. Dessa forma, ninguém duvidaria da autenticidade do seu disfarce.

Eram quase nove horas quando o jipe de Gabriel iniciou a longa subida pela Bab al-Wad em direção a Jerusalém. Desde que não houvesse acidentes nem alertas de segurança (nem chamadas do primeiro-ministro), estaria na Narkiss Street no máximo às nove e meia. Provavelmente, as crianças estariam a dormir, mas pelo menos poderia partilhar uma refeição tranquila com Chiara. Mas, quando estavam a aproximar-se da extremidade ocidental da cidade, o seu telemóvel iluminou-se ao receber uma mensagem. Fitou-a durante um longo momento, ponderando se poderia fingir que esta se perdera de alguma forma durante a transmissão. Lamentavelmente, não podia. Estava prestes a fazer a sua segunda viagem ao estrangeiro como chefe. Mas desta vez, ia para a América.


22

 

MEMORIAL DE LINCOLN, WASHINGTON

 

 


Langley enviou um avião para o ir buscar, o que nunca era bom sinal. Era um Gulfstream G650, com um interior em couro e madeira de teca, uma vasta seleção de filmes para ver durante o voo e cestos repletos de snacks nocivos para a saúde. Na parte de trás da aeronave, havia um camarote privado. Gabriel esticou-se na cama estreita, mas não conseguiu encontrar nenhuma posição do tronco e dos membros que não lhe causasse dor. O céu para lá da janela não se iluminava; estava a perseguir a noite em direção ao ocidente. Sem conseguir dormir, tinha pouco mais para fazer do que interrogar-se sobre a razão da inesperada convocatória para ir a Washington. Duvidava que fosse de natureza social. O novo pessoal da Casa Branca não se dedicava a ser simpático.

O avião tocou no chão do Aeroporto Dulles às três e meia e deslizou até um hangar privado onde uma caravana de três Suburban blindados aguardava, com os tubos de escape a fumegar suavemente no ar frio e húmido. Por uma vez, havia pouco trânsito, afinal de contas era de madrugada. Enquanto atravessavam a autoestrada de circunvalação da capital, Gabriel olhou de soslaio na direção do Campus de Informação de Liberty Crossing, o antigo quartel-general do gabinete do diretor dos serviços secretos nacionais e do Centro Nacional de Antiterrorismo. Um matagal de árvores bloqueava a visão da devastação. Até agora, o Congresso não alocara os milhares de milhões de dólares necessários à reconstrução de Liberty Crossing, em tempos um símbolo resplandecente da caótica expansão do estado de segurança nacional americano pós-11/09. Tal como os membros do Grupo Alpha de Paul Rousseau, as equipas do ODNI e do NCTC tinham sido obrigadas a procurar instalações noutros locais. No mínimo, Saladino transformara muitos espiões e analistas em sem-abrigo.

A caravana de jipes virou para a Route 123 e dirigiu-se para a McLean. Gabriel temeu estar a ser levado para o quartel-general da CIA (evitava-o sempre que podia), mas os jipes passaram a alta velocidade pela entrada sem sequer abrandar e encaminharam-se para a George Washington Memorial Parkway. Esta conduziu-os ao longo do Potomac, do lado da Virgínia, para as torres de vidro e aço de Rosslyn. No outro lado do rio, erguiam-se os graciosos pináculos da Universidade de Georgetown, mas o olhar de Gabriel foi atraído para a hedionda laje retangular do Key Bridge Marriott, onde Natalie passara muitas horas encurralada num quarto com uma terrorista franco-argelina chamada Safia Bourihane. Através de uma câmara de vídeo oculta, Gabriel observara Natalie gravar um vídeo de mártir e, depois, envolver o corpo com um colete suicida. Só mais tarde, na cabana da Virgínia, ela saberia que o colete estava inoperacional. Saladino enganara-a. E também enganara Gabriel.

Continuaram para sul ao longo do rio, para lá da periferia do Cemitério Nacional de Arlington, e viraram para a Memorial Bridge. Na margem oposta, incandescente como se estivesse iluminado a partir do interior, ficava o Memorial de Lincoln. Normalmente, o trânsito que fluía da Virgínia para Washington era encaminhado para a Twenty-Third Street. Mas os três jipes da caravana de Gabriel passaram lentamente sobre um separador de cimento e depois estacionaram na avenida pedonal do flanco sul do memorial. Alguns agentes fardados da Polícia de Parques dos Estados Unidos estavam de pé na escuridão, mas, à exceção destes, o espaço estava deserto. Nesse preciso momento, o telefone de Gabriel vibrou com uma mensagem recebida. Saiu do jipe, encaminhou-se para a base das escadas do memorial e, com uma mão a pressionar o fundo das costas, começou a subir.

 

Uma pesada lona que se movia com o vento ténue estendia-se de um lado ao outro da entrada. Gabriel afastou a lona com o ombro, atravessou a abertura e entrou hesitantemente na câmara central. Lincoln olhava contemplativamente para baixo a partir do seu trono de mármore, como quem está pesaroso pela destruição circundante. A base da estátua estava perfurada de minúsculas crateras. Também o estavam os murais de Jules Guérin e as colunas jónicas que separavam a câmara central das câmaras laterais, norte e sul. Uma das colunas sofrera danos estruturais significativos na base. Fora aí que um membro da rede de Saladino colocara uma mochila cheia de explosivos e esferas de rolamentos. A explosão fora suficientemente poderosa para fazer estremecer a Casa Branca. Vinte e uma pessoas tinham perecido no interior do memorial, outras sete nas escadas, onde o terrorista abrira fogo com uma pistola. E isso fora apenas o início.

Gabriel passou entre duas colunas desfiguradas e entrou na câmara norte, onde Adrian Carter, com o rosto inclinado para cima, estava a ler as palavras do segundo discurso da tomada de posse de Lincoln. Baixou o olhar na direção da face de Gabriel e franziu o sobrolho.

— Parece que os rumores, afinal, eram verdade — disse.

— Que rumores são esses?

— Os rumores de que estavas dentro do quartel-general do Grupo Alpha quando a bomba explodiu.

— Péssimo timing da minha parte.

— A tua especialidade.

Carter retomou o estudo do imponente painel. Envergava uma canadiana, calças amarrotadas e sapatos que pareciam ter sido desenhados para caminhar nos bosques de Nova Inglaterra. A indumentária, combinada com o seu cabelo escasso e desgrenhado e o bigode antiquado, dava-lhe um ar de professor de uma universidade pouco importante, do tipo que defendia causas nobres e era uma espinha constante atravessada na garganta do reitor. Na verdade, Carter era o chefe da Direção de Operações da CIA, a pessoa que aí trabalhara durante mais tempo na história da Agência. O facto de ter convocado Gabriel era uma violação do protocolo; globalmente falando, o ramsad não se encontrava com subalternos. Porém, Adrian Carter era um caso especial. Admirado entre espiões, era uma lenda que, nos dias sombrios após o 11/09, elaborara o plano da Agência para destruir a Al-Qaeda e eliminar as suas redes globais. As prisões secretas, as extradições ilegais, os métodos avançados de interrogatório: todos exibiam o seu cunho. Durante uma década e meia, fora capaz de dizer a si próprio (e aos seus críticos) que, apesar de todos os seus pecados, conseguira proteger o solo americano de um segundo espetáculo de terror. E, num abrir e fechar de olhos, Saladino transformara-o num mentiroso.

— O meu pai trouxe-me aqui para ver o Dr. King em 63 — disse Carter. — O meu pai estava envolvido no movimento dos direitos civis; era pastor episcopal. — Olhou de soslaio para Gabriel. — Alguma vez te falei disso?

— Uma ou duas vezes.

— Lembro-me de me orgulhar muito do meu país nesse dia — continuou Carter. — Senti que tudo era possível. E senti-me orgulhoso quando elegemos o nosso primeiro presidente afro-americano, apesar de todas as coisas desagradáveis que ele disse sobre a Agência durante a campanha. Eu e ele tivemos as nossas divergências ao longo dos anos, mas nunca me esqueci do que representava. A eleição foi um milagre. E nunca teria acontecido se não fossem as palavras que Martin Luther King proferiu aqui naquele dia. Este é o nosso espaço abençoado, o nosso solo sagrado. E é por isso que nunca vou perdoar o Saladino pelo que fez.

Carter virou-se de costas para o painel e dirigiu-se lentamente para a câmara central, onde se deteve aos pés de Lincoln.

— Tu és o especialista. Pode ser restaurado?

— O mármore não é o meu material — respondeu Gabriel. — Mas, sim, quase tudo pode ser restaurado.

— Então e o meu país? — perguntou Carter subitamente. — Pode ser consertado?

— As vossas divisões são pequenas fendas comparadas com as nossas. A América vai encontrar o seu caminho.

— Vai? Não tenho tanta certeza disso. — Carter agarrou Gabriel pelo braço. — Anda comigo. Há uma coisa que quero mostrar-te.


23

GEORGETOWN, WASHINGTON

Não é fácil o chefe do Departamento e o subdiretor da CIA passearem-se por Washington sem chamarem a atenção, nem mesmo antes do nascer do sol, mas fizeram o seu melhor. Foram seguidos por um único guarda-costas ao longo do passeio pedonal na margem do Potomac; os restantes ficaram confinados à constelação de Suburbans pretos que se moviam na sua órbita. O ritmo da passada de Carter foi cuidadoso, atencioso. Pelo menos por isso, Gabriel estava agradecido. As suas costas ardiam de dor, um facto que não conseguia ocultar do seu velho amigo.

— É muito grave? — perguntou Carter.

— Infelizmente, dizem que vou sobreviver.

— Espero que o voo não tenha sido demasiado duro para ti.

— O Gulfstream tornou-o tolerável.

— Pertence a um amigo meu chamado Bill Blackburn. O Bill trabalhava no departamento de Atividades Especiais. Era um verdadeiro gorila[3], na altura. América Central, principalmente. Deu uma última volta no Afeganistão depois do 11 de Setembro. Agora, é proprietário de uma empresa de espionagem privada. Chama-lhe Black Ops.

— Astuto.

— É mesmo, na verdade. O Bill é bastante bem-sucedido. Uso-o para trabalhos que requerem um pouco de discrição extra.

— Pensava que me usavas a mim para esse tipo de trabalhos.

— O Bill e os homens dele jogam baixo e sujo — explicou Carter. — Eu reservo-te para aqueles trabalhos que exigem um pouco de requinte.

— É bom vermos o nosso trabalho reconhecido.

Caminharam em silêncio durante um momento. À sua volta, a cidade gemia e agitava-se.

— O Bill anda há anos a tentar convencer-me a ir trabalhar com ele — disse Carter finalmente. — Diz que me pagaria um valor de sete dígitos no primeiro ano. Aparentemente, não teria de fazer grande coisa. O Bill quer usar-me para atrair clientes, para garantir que os contratos lucrativos continuam a fluir na direção dele. A luta global contra o terrorismo tem sido muito lucrativa para muita gente nesta cidade. Sou o único idiota que não se aproveitou disso.

— Merece-lo, Adrian.

— Aceitarias um trabalho assim?

— Nunca na vida.

— Nem eu. Para além disso, tenho coisas mais importantes para fazer antes de me mandarem embora de Langley.

— Como o quê?

— Como apanhar o homem que fez aquilo.

Carter ergueu os olhos na direção do Centro Kennedy. Alguns minutos após o atentado no Memorial de Lincoln, um bombista suicida detonara o seu dispositivo no Hall of States. Depois, outros três terroristas tinham-se deslocado metodicamente pelo resto do complexo (o Teatro Eisenhower, a Opera House, o Concert Hall) abatendo todas as pessoas que encontraram.

— Conhecia duas das vítimas — disse Carter. — Um casal jovem que vivia ao virar da esquina da rua onde vivo, em Herndon. Ele trabalhava no setor tecnológico, ela era gestora financeira. Estavam na crista da onda. Boas carreiras, uma hipoteca, dois filhos lindos. Agora, a casa está à venda e os filhos vivem com a tia em Baltimore. É o que acontece quando pessoas como nós cometem erros. Morrem pessoas. Muitas pessoas.

— Fizemos tudo o que podíamos para evitar os atentados, Adrian.

— O meu novo diretor não vê as coisas assim. É um verdadeiro osso duro de roer, um autêntico fanático. Pessoalmente, sempre me pareceu perigoso misturar ideologia e espionagem — disse Carter. — Turva-nos o pensamento e faz-nos ver exatamente o que queremos ver. O meu novo diretor discorda. Tal como os jovens zelosos que trouxe com ele para a Agência. Consideram-me um falhado, o que, no mundo deles, é a pior coisa que um homem pode ser. Quando apelo à cautela operacional, acusam-me de fraqueza. E quando ofereço uma avaliação que entra em contradição com a visão deles do mundo, acusam-me de deslealdade.

— As eleições têm consequências — disse Gabriel.

— Tal como os atentados terroristas bem-sucedidos em solo americano. Aparentemente, é tudo culpa minha, apesar do facto de eu ter dito a toda a gente que quis ouvir que o ISIS estava a conspirar para nos atingir com algo grande. De acordo com os boatos, tenho os dias contados.

— Quanto tempo te resta?

— Algumas semanas, talvez menos. A não ser — acrescentou Carter tranquilamente — que possa fazer algo para alterar drasticamente o panorama.

Subitamente, Gabriel percebeu porque é que Adrian Carter o trouxera para Washington a bordo de um Gulfstream pertencente a um empresário do ramo da espionagem chamado Bill Blackburn.

— O teu diretor sabe que eu estou aqui?

— Talvez me tenha esquecido de lhe mencionar isso — disse Carter.

Tinham chegado ao Thompson Boat Center. Atravessaram uma ponte pedonal que cruzava a Rock Creek e passaram pela embaixada sueca, encaminhando-se para Harbor Place. Talvez não por coincidência, era a mesma rota que três atiradores do ISIS tinham feito naquela noite, depois de deixarem o Centro Kennedy. Ali, a sua obra letal continuava a ser evidente. O Nick’s Riverside Grill, um popular local turístico, tinha as janelas e portas tapadas com tábuas e encontrava-se encerrado até nova ordem. Tal como os mais requintados Sequoia e Fiola Mare.

— Como é que se estão a aguentar as tuas costas? — perguntou Carter enquanto caminhavam pela K Street, por baixo da Whitehurst Freeway.

— Depende de quanto mais tencionas fazer-me andar.

— Não muito mais. Há só mais uma coisa que quero que vejas.

Viraram para a Wisconsin Avenue e subiram a ladeira da colina até à M Street. A um quarteirão para norte ficava a Prospect Street. Dobraram a esquina e, depois de alguns passos, detiveram-se à entrada do Café Milano. Tal como os restaurantes de Harbor Place, encontrava-se encerrado até nova ordem. Quarenta e nove pessoas tinham perecido ali. Ainda assim, o número teria sido muito superior se não fosse por Mikhail Abramov, que matara sozinho quatro terroristas do ISIS. O restaurante era digno de nota por outro motivo. Era o único alvo onde Saladino aparecera pessoalmente.

— Um símbolo bastante trágico da nossa sólida parceria — disse Carter. — O Mikhail salvou muitas vidas naquela noite. Mas talvez isso nunca tivesse acontecido se eu tivesse ouvido o teu aviso sobre o homem que encontraste no átrio do Four Seasons.

— Sabes o que é que se diz sobre chorar sobre o leite derramado, Adrian.

— Sei. E sempre considerei que era uma desculpa para o fracasso.

Carter virou-se sem dizer mais nada e conduziu Gabriel para o coração do bairro residencial de Georgetown. O bairro estava a começar a despertar. Havia luzes a cintilar nas janelas das cozinhas; os cães conduziam os donos sonolentos pelos passeios de tijolos vermelhos. Finalmente, chegaram à escadaria curvilínea de uma enorme vivenda de estilo federal na N Street, a propriedade segura mais exclusiva da Agência. No interior, a majestosa casa antiga parecia uma câmara frigorífica, mais uma prova de que a visita de Gabriel a Washington era de natureza privada.

— Alguém se esqueceu de pagar a conta da eletricidade? — perguntou.

— Novos regulamentos. A Agência está a tornar-se ecológica. Oferecia-te um café, mas...

— Não faz mal, Adrian. Tenho mesmo de me ir embora.

— Assuntos urgentes em casa?

— O trabalho de um chefe nunca acaba.

— Não saberia dizer-te. — Carter deambulou até ao termostato e semicerrou os olhos na direção do mostrador, confuso.

— Por favor diz-me que não me arrastaste até Washington para passear pela rota dos pesadelos, Adrian. Eu estava cá, lembras-te? Tinha uma agente no interior da operação do Saladino.

— Um trabalho verdadeiramente excecional da tua parte — disse Carter. — Mas foi tudo em vão. No final, o Saladino venceu-te. Sei bem quanto odeias perder, especialmente para uma criatura como ele.

— Onde é que queres chegar com isso?

— Diz-se por aí que andas a cozinhar algo com os franceses que não é um belo tacho de coq au vin. Algo que envolve o Saladino. Quero lembrar-te de que foi o meu país que ele atacou em novembro passado, não o teu. E se alguém o vai apanhar, vou ser eu.

— Alguma operação em curso?

— Várias.

— Alguma delas prestes a dar frutos?

— Nem uma. A tua?

Gabriel manteve-se em silêncio.

— Nunca fui tímido quanto a invadir festas operacionais para as quais não fui convidado — disse Carter. — Bastaria um único telefonema para o chefe da DGSI e seria minha.

— Ele não sabe da existência da operação.

— Então deve ser das boas.

— Deve ser — concordou Gabriel.

— Talvez eu possa contribuir.

— E assim manter o teu poder na Direção de Operações.

— Absolutamente.

— Aprecio a tua honestidade, Adrian. É refrescante no nosso ramo de atividade.

— Tempos difíceis — disse Carter.

— De que é que precisas para continuares na mó de cima?

— Neste ponto, só o Saladino poderá salvar-me.

— Nesse caso — disse Gabriel — talvez possa ajudar-te.

 

Conversaram na sala de estar, embrulhados nos seus sobretudos, sem a distração de uma refeição ligeira. A versão de Gabriel da operação até ao momento foi abreviada, mas suficientemente honesta para que nada se perdesse na tradução. Carter não vacilou perante a menção do nome de Jean-Luc Martel; Carter era um homem do mundo real. Ofereceu apoio no que podia, principalmente sob a forma de vigilância eletrónica e digital, o ponto forte da América. Em troca, Gabriel permitiu que Carter levasse a operação até ao sétimo andar de Langley e a apresentasse como um esforço conjunto entre a Agência e os seus amigos de Telavive. Do ponto de vista de Gabriel, era um preço elevado a pagar e não estava isento de risco. Mas, se isso mantivesse Carter no seu posto, valeria o seu peso em ouro.

Deixaram juntos a casa segura pouco antes das oito e viajaram de carro até ao Aeroporto Dulles, onde o Gulfstream de Bill Blackburn repousava abastecido e preparado para a partida. A tripulação já apresentara um plano de voo para o Ben Gurion, mas, após a entrada na aeronave, Gabriel pediu para ser levado, em vez disso, para Londres. Esticado na cama do camarote privado, caiu num sono sem sonhos. A sua mente estava em paz pela primeira vez em muitos dias. Estava prestes a fazer um velho amigo bastante rico. Era, pensou, o mínimo que podia fazer.

 

[3] Soldado paramilitar que trabalha para a CIA. (N.T.)


24

 

MAYFAIR, LONDRES

 

 


Julian Isherwood era um homem de muitos defeitos, mas a avareza não era um deles. De facto, nos negócios, tal como na vida privada, sempre fora, de algum modo, excessivamente liberal com a sua carteira. Adquirira um grande número de quadros quando deveria ter-se abstido de o fazer (dizia-se que a sua coleção pessoal e profissional rivalizava com a da própria rainha) e, invariavelmente, era o seu cartão de crédito que acabava no prato da conta todas as noites no bar do Wilton. Sem surpresa, as suas finanças encontravam-se num estado de perpétua negligência. Nos últimos tempos, a situação tornara-se calamitosa. O seu tristonho contabilista, adequadamente chamado Blunt[4], sugerira uma venda relâmpago de bens disponíveis, juntamente com uma redução drástica nas despesas. Isherwood recusara. A maior parte do seu inventário profissional tinha pouco ou nenhum valor. Estava acabado, como se dizia no ramo. Completamente queimado. Feito num oito. E quanto à ideia de cortar nas despesas, bom, isso estava simplesmente fora de questão. Uma pessoa tinha de viver a sua vida, principalmente com a sua idade. Para além disso, as suas ações na noite do atentado tinham-no imbuído de uma sensação de otimismo pessoal. Se o malandro Julian Isherwood conseguia arriscar a vida para salvar outras pessoas, tudo era possível.

Foi esta crença de que melhores dias se avistavam no horizonte que compeliu Isherwood a abrir as portas da sua galeria de Mason’s Yard a Brady Boswell, o diretor de um museu pequeno, mas respeitado, no centro-oeste americano, no final dessa tarde. Boswell tinha uma reputação merecida de observador, não de comprador. Passou a maior parte das duas horas a acariciar o inventário de Isherwood, antes de finalmente confessar que o seu orçamento de aquisição estava em pior estado do que a conta bancária de Isherwood e que não estava em posição de comprar alcatifas novas para o seu museu, muito menos um quadro novo para pendurar nas paredes. Isherwood sentiu-se tentado a dizer a Boswell que, na próxima vez que quisesse ver os Grandes Mestres em Londres, deveria tentar a National Gallery. Em vez disso, aceitou o convite do americano para jantar, quanto mais não fosse porque não conseguia suportar a ideia de passar mais uma noite a ouvir o anafado Oliver Dimbleby a descrever a sua última conquista sexual.

Boswell sugeriu o Alain Ducasse, no Dorchester, e Isherwood, não tendo alternativa na ponta da língua, concordou. Jantaram caranguejo de Dorset e linguado de Dover e, entre os dois, beberam duas garrafas de Domaine Billaud-Simon Les Clos grand cru Chablis. Boswell passou grande parte da noite a lamentar as terríveis políticas do seu país. Isherwood ouviu atentamente. Contudo, interiormente interrogou-se sobre o motivo pelo qual os americanos cultos consideravam sempre necessário criticar o seu país quando colocavam um pé na antiga metrópole.

— Estou a pensar em ir-me embora. — Boswell estava a cuspir de indignação. — Toda a gente está.

— Toda a gente?

— Bom, toda a gente não. Só pessoas como eu.

Só os que eram completamente enfadonhos. Em breve, pensou Isherwood, a América seria um local muito mais interessante.

— Para onde iria?

— Posso candidatar-me à cidadania irlandesa.

— Irlanda? Valha-me Deus.

— Ou talvez arranje uma casinha aqui em Inglaterra até que tudo isto passe.

— Nós temos os nossos próprios problemas. É melhor ficar onde está.

A noção de que a Inglaterra moderna poderia não ser um paraíso cultural pareceu chocar Brady Boswell. Era um daqueles americanos que formavam as suas impressões sobre a vida no Reino Unido vendo repetições de Masterpiece Theater.

— Uma pena, os atentados terroristas — disse Boswell.

— Sim — disse Isherwood distraidamente.

— Estava à espera de ver qualquer coisa no West End enquanto cá estou, mas não tenho a certeza se é seguro.

— Disparate.

— Conhaque?

— Porque não?

Boswell pediu o mais caro da lista e, quando a conta chegou, adotou a pose favorita de Oliver Dimbleby, a de um desnorteado sobrevivente de um desastre natural.

— Com quem é que se vai encontrar amanhã? — perguntou Isherwood enquanto fazia deslizar discretamente o seu cartão de crédito para o interior da pequena caixa de couro, o cartão que esperava que não se autodestruísse automaticamente quando fosse inserido no leitor.

— Tenho o Jeremy Crabbe de manhã e o Roddy Hutchinson à tarde. Confio que não lhes vá contar sobre os meus pequenos problemas de financiamento. Não gostaria que pensassem que não estou a ser honesto.

— O seu segredo está a salvo comigo.

Na realidade, não estava. De facto, Isherwood planeava telefonar a Roddy logo de manhã e aconselhá-lo a adoecer com um súbito ataque de malária. Caso contrário, seria Roddy a pagar a conta da próxima refeição de Brady Boswell.

Lá fora, Isherwood agradeceu a Boswell pelo que fora a sua mais desagradável saída à noite desde o seu heroísmo no Ivy. Depois, meteu o americano num táxi (estava hospedado numa espelunca qualquer em Russel Square) e mandou-o à sua vida. Outro táxi aguardava-o. Isherwood deu a morada da sua casa em Kensington ao condutor e afundou-se no banco de trás. Porém, enquanto o táxi virava para Park Lane, sentiu a vibração do telemóvel contra o coração. Presumiu que se tratasse do agradecimento obrigatório de Boswell e, por um instante, ponderou ignorá-lo. Em vez disso, retirou o telemóvel e franziu o olhar para o ecrã. A mensagem era concisa, uma ordem em vez de um pedido, e parecia não ter remetente. Por conseguinte, apenas poderia ter vindo de uma pessoa. Isherwood sorriu. A sua noite, pensou, estava prestes a tornar-se muito mais interessante.

— Mudança de planos — disse ao condutor. — Leve-me para Mason’s Yard.

 

A galeria de Isherwood ocupava três andares de um armazém vitoriano de teto descaído que fora, em tempos, propriedade da Fortnum & Mason. Num dos lados ficavam os escritórios de uma empresa grega de transportes pouco importante, noutro um pub cuja clientela era constituída por meninas de escritório bonitas que conduziam scooters. A porta era feita de vidro à prova de arrombamento e protegida por três fechaduras de última geração. Cedeu perante o toque gentil de Isherwood.

— Raios partam — sussurrou.

O espaço limitado da galeria compelira Isherwood a ordenar o seu império verticalmente: armazéns no rés-do-chão, escritórios de negócio no primeiro andar e, no segundo, uma gloriosa sala de exposições inspirada na famosa galeria de Paul Rosenberg, em Paris, onde Isherwood passara muitas horas de felicidade quando era criança. Entrando, esticou a mão para o interruptor.

— Não — disse uma voz vinda da extremidade oposta da sala. — Deixa-as apagadas.

Isherwood moveu-se furtivamente para a frente, contornando uma otomana com um estilo de museu, e juntou-se ao homem que parecia estar a contemplar uma grande paisagem de Claude. O homem, como a pintura, estava envolto em escuridão. Mas os seus olhos verdes, quando fixos em Isherwood, pareceram brilhar como se possuíssem uma fonte interna de calor.

— Estava a começar a perguntar-me — disse Gabriel — se o teu jantar alguma vez teria fim.

— Também eu — respondeu Isherwood desalentadamente. — Importas-te de me dizer como é que entraste aqui?

— Deves lembrar-te de que fomos nós que instalámos o teu sistema de segurança.

De facto, Isherwood lembrava-se. Também recordava que o sistema recebera uma importante atualização depois de uma operação que envolvera um traficante de armas russo chamado Ivan Kharkov.

— Parabéns, Julian. Os meus amigos dos serviços secretos britânicos disseram-me que foste um verdadeiro herói na outra noite.

— Ora essa... — Isherwood acenou com a mão, desvalorizando a questão.

— Não sejas modesto. A coragem é algo que escasseia hoje em dia. E pensar que não teria acontecido se aquela tua jovem namorada bonita não te tivesse deixado pendurado.

— A Fiona? Como raio é que tu sabes dela?

— Os britânicos deram-me uma cópia da mensagem de texto que ela te enviou enquanto estavas sentado no restaurante.

— Será que nada é sagrado?

— Também me mostraram alguns minutos das imagens das câmaras de videovigilância — disse Gabriel. — Estou orgulhoso de ti, Julian. Salvaste um grande número de vidas naquela noite.

— Só consigo imaginar o que deve ter parecido. Um Dom Quixote envelhecido a perseguir moinhos de vento.

Sobre as suas cabeças, a chuva noturna embatia na claraboia.

— Então, o que é que te traz à cidade? — perguntou Isherwood. — Negócios ou prazer?

— Não me dedico ao prazer, Julian. Pelo menos, agora já não.

— Já somos dois.

— Está assim tão mau?

— Estou a atravessar um pequeno período de seca, para não dizer mais.

— Quão seco?

— Como o Saara — disse Isherwood.

— Talvez eu possa proporcionar um pouco de chuva.

— Nada muito perigoso, espero. Não tenho a certeza se consigo aguentar mais emoções.

— Não, Julian, não é nada disso. Só preciso que aconselhes um amigo meu que está interessado em construir uma coleção.

— Esse sujeito é israelita?

— Russo, na verdade.

— Oh, meu Deus. Como é que ele ganha dinheiro?

— De formas das quais não gosta de falar.

— Estou a ver — disse Isherwood. — Suponho que não tenha nada a ver com todas as bombas que têm andado a explodir ultimamente.

— Talvez tenha.

— E se eu concordar em servir de consultor a esse sujeito?

— Aplicar-se-ão as regras standard para este tipo de relações.

— Com isso, queres dizer que vou poder cobrar-lhe uma comissão por cada quadro que o ajudar a adquirir.

— Na verdade — disse Gabriel —, podes extorqui-lo à vontade. Ele não vai estar a prestar muita atenção.

— O teu homem gosta de Grandes Mestres?

— Adora. Mas também aprecia trabalhos contemporâneos.

— Não vou levar-lhe isso a mal. Quanto é que ele está disposto a gastar?

— Duzentos — disse Gabriel. — Talvez trezentos.

Isherwood franziu o sobrolho.

— Com isso, não vai longe.

— Milhões, Julian. Duzentos milhões.

— Não podes estar a falar a sério.

A expressão de Gabriel disse que estava.

— Vai chegar a Londres daqui a alguns dias. Leva-o às casas de leilões e galerias. Compra cuidadosa, mas apressadamente. E faz um pouco de ruído, Julian. Quero que as pessoas reparem.

— Não consigo fazer isso com charme e boa aparência — disse Isherwood. — Vou precisar de dinheiro a sério.

— Não te preocupes, Julian. O cheque está no correio.

— Duzentos milhões? — perguntou Isherwood.

— Talvez trezentos.

— Trezentos é definitivamente melhor do que duzentos.

Gabriel encolheu os ombros.

— Então, que sejam trezentos.

 

[4] Franco, direto. (N.T.)


25

 

LONDRES – GENEBRA

 

 


Saladino atacou novamente às oito e meia da manhã seguinte. O alvo foi a estação ferroviária Central de Antuérpia, dois bombistas suicidas, dois atiradores, sessenta e nove mortos. Gabriel estava, nesse momento, na estação de St. Pancras, em Londres, à espera de embarcar no Eurostar para Paris. O comboio partiu com quarenta minutos de atraso, embora não tivesse sido facultada qualquer explicação para a demora. Parecia que Saladino conseguira criar uma nova normalidade na Europa Ocidental.

— Se ele continuar assim — disse Christian Bouchard —, vai ficar sem alvos.

Bouchard estivera à espera de Gabriel no átrio das chegadas da Gare du Nord. Agora, estava ao volante de um Citroën do Grupo Alpha, a acelerar no Boulevard de la Chapelle em direção a leste. Não exibia quaisquer vestígios visíveis dos ferimentos que sofrera no atentado na Rue de Grenelle. Aliás, a aparência do elegante francês era melhor do que nunca.

— Já agora — disse ele —, devo-lhe um pedido de desculpas pela forma como agi antes do atentado à bomba. Fico simplesmente satisfeito pelo facto de essa não ser a sua última impressão de mim.

— Para ser sincero, Christian, não me recordo sequer de o ver nesse dia.

Bouchard sorriu, contrariado.

— Para onde é que me está a levar?

— Para uma casa segura no vigésimo distrito.

— Já conseguiram encontrar um novo quartel-general?

— Ainda não. Estamos um pouco como os antigos israelitas — disse Bouchard. — Espalhados aos quatro ventos.

O andar seguro situava-se num bloco de apartamentos moderno que não ficava longe de um supermercado kosher. Paul Rousseau, sentado numa mesa de linóleo barata na cozinha, fumou incessantemente cachimbo enquanto Gabriel fazia o seu relatório. Rousseau tinha motivos para se sentir desconfortável. Dera rédea solta a um serviço de espionagem estrangeira para seguir um proeminente empresário francês e agora estava a deleitar-se com o fruto de uma árvore venenosa. Resumidamente, estava de facto a caminhar sobre gelo muito fino.

— Não estou contente com a participação dos americanos. Atualmente, as prioridades deles parecem ser fusões e aquisições.

— Fi-lo por uma única e exclusiva razão.

— Mesmo assim... — Rousseau mordiscou pensativamente a ponta do cachimbo. — Quão seguro estás em relação à galeria?

— Devo saber mais ao final do dia.

— Porque se conseguires provar que a galeria é suja...

— A ideia é essa, Paul.

— Quando é que pretendes entrar em modo operacional?

— Assim que obtiver o financiamento necessário — disse Gabriel.

— Há mais alguma coisa de que precises da nossa parte?

— De uma propriedade perto de Saint-Tropez.

— Há muitas para alugar, principalmente nesta época do ano.

— Na verdade, não estou à procura de um aluguer.

— Queres comprar?

Gabriel assentiu com a cabeça.

— Na verdade — disse ele —, já tenho uma propriedade em mente.

— Qual?

Gabriel respondeu. Rousseau pareceu ficar incrédulo.

— A que pertenceu ao...

— Sim, essa mesma.

— Está embargada.

— Então, desembarga-a. Confia em mim. Vai valer a pena. Os contribuintes franceses vão ficar agradecidos.

— Quanto é que estás preparado para oferecer?

Gabriel levantou o olhar em direção ao teto.

— Doze milhões parecem-me bem.

— Aparentemente, caiu num estado de degradação avançada.

— Pretendemos restaurá-la.

— Na Provença? — Rousseau abanou a cabeça. — Desejo-te a melhor das sortes.

Cinco minutos depois, tendo tratado de alguns assuntos operacionais mais prosaicos, Gabriel estava novamente no lugar do passageiro do Citroën de Bouchard. Desta vez, conduziram do vigésimo arrondissement para o décimo segundo e pararam no Boulevard Diderot, no exterior da Gare de Lyon. Parecia estar sob ocupação militar. O mesmo se passava em todas as estações ferroviárias de França.

— Tem a certeza de que quer entrar aí? — perguntou Bouchard. — Posso arranjar-lhe um carro, se preferir.

— Eu cá me arranjo.

Longas filas espraiavam-se a partir da entrada da estação, onde polícia fortemente armada estava a revistar sacos e malas e a questionar qualquer pessoa, especialmente homens jovens, de aparência remotamente árabe. A nova normalidade, pensou Gabriel, enquanto era autorizado a entrar no átrio elevado das partidas. O famoso relógio mostrava cinco minutos depois das três, o embarque para o seu comboio fazia-se na linha D. Linha Dalet[5], pensou. Porque é que tinha de ser aquela? Não podiam ter escolhido outra?

Caminhou ao longo da plataforma, entrou numa das carruagens de primeira classe e instalou-se no lugar que lhe fora atribuído. Só quando as recordações desapareceram é que pegou no telemóvel. O número que digitou era de Berna. Um homem atendeu em suíço alemão. Gabriel dirigiu-se a ele no alemão com sotaque berlinense da sua mãe.

— Estou a caminho do teu lindo país, e estava a pensar se poderias mostrar-me um pouco de diversão.

Houve um silêncio, seguido de uma demorada exalação de ar.

— Quando é que chegas?

— Seis e um quarto.

— Como?

— No TGV de Paris.

— O que é desta vez?

— A mesma coisa que da última vez. Uma espreitadela, só isso.

— Não vai explodir nada, pois não?

Gabriel terminou a chamada e observou a plataforma a deslizar lentamente para lá da sua janela. Mais uma vez, foi assaltado por recordações. Viu uma mulher, com cicatrizes e prematuramente grisalha, sentada numa cadeira de rodas, e um homem a correr desenfreadamente na sua direção com uma arma na mão. Fechou os olhos e agarrou o apoio de braço para impedir a sua mão de tremer. Eu cá me arranjo, pensou.

 

O NDB, tal como a própria Suíça, era pequeno mas eficiente. Sediado num monótono prédio de escritórios em Berna, o serviço era responsável por impedir os inúmeros problemas de um mundo desordenado de atravessarem as fronteiras da Confederação Suíça. Espiava os espiões que exerciam a sua atividade em solo suíço, vigiava os estrangeiros que escondiam o dinheiro em bancos suíços e monitorizava as atividades do crescente número de muçulmanos que faziam da Suíça a sua casa. Até agora, o país fora poupado a um grande atentado terrorista por parte da Al-Qaeda, ISIS e afins, e não era por acaso. Christoph Bittel, o chefe da divisão antiterrorista do NDB, era muito bom no seu trabalho.

Era também pontual como um relógio suíço. Alto e magro, estava encostado contra o capô de um sedan alemão quando Gabriel saiu da Gare de Cornavin, em Genebra, às seis e meia. O polícia secreto suíço franziu o sobrolho. Na Suíça, seis e um quarto significavam seis e um quarto.

— Sabes a localização do cofre?

— Edifício três, corredor oito, cofre dezanove.

— Quem é o titular do aluguer?

— Uma empresa chamada TXM Capital. Mas suspeito que o verdadeiro proprietário seja o JLM.

— O Jean-Luc Martel?

— O próprio.

Bittel praguejou suavemente.

— Não quero problemas com os franceses. Preciso da DGSI para proteger o meu flanco ocidental.

— Não te preocupes com os franceses. Quanto ao teu flanco ocidental, eu estaria muito assustado.

— É verdade o que dizem sobre o Martel? Que o verdadeiro negócio dele são as drogas?

— Vamos saber daqui a alguns minutos.

Atravessaram o Ródano e, depois, passado um momento, as águas verde-muco do Arve. A sul, estendia-se um quartier de Genebra onde turistas e diplomatas raramente se aventuravam a ir. Era um terreno de armazéns ordenados e prédios baixos de escritórios. Era também a casa do sigiloso Freeport de Genebra, um depósito seguro e isento de impostos onde os magnatas do mundo guardavam tesouros de todo o tipo: barras de ouro, joalharia, vinho vintage, automóveis e, claro, arte. Não era arte para ser vista e apreciada. Era arte como mercadoria, arte como salvaguarda para tempos de incerteza.

— O local mudou desde a última vez que cá estivemos — disse Bittel. — A última gota foi o escândalo que envolveu o Modigliani, o que tinha sido roubado pelos nazis. Muitos colecionadores retiraram-se depois disso e deslocaram os bens para lugares como Delaware e Londres. As autoridades do cantão chamaram um homem novo para dirigir o local. É um ex-ministro das Finanças suíço, verdadeiramente exigente quanto a cumprir a lei à letra.

— Afinal, talvez haja esperança para o teu país.

— Vamos saltar essa parte — disse Bittel. — Gosto mais quando estamos do mesmo lado.

Uma fila de estruturas brancas uniformes apareceu à direita, rodeada por uma cerca verde opaca com arame de concertina e câmaras de vigilância no topo. O local poderia ter sido confundido com uma prisão, se não fosse pela placa vermelha e branca onde se podia ler PORTS FRANCS. Bittel virou para a entrada e aguardou que o portão de segurança se abrisse. Depois, avançou suavemente alguns metros e colocou o carro em ponto-morto.

— Edifício três, corredor oito, cofre dezanove.

— Muito bem — disse Gabriel.

— Não vamos encontrar drogas lá dentro, pois não?

— Não.

— Como é que podes ter a certeza?

— Porque os traficantes de droga não trancam o seu produto em instalações de armazenamento seguras e isentas de impostos. Vendem-no a idiotas que o fumam, snifam e injetam nas veias. É assim que fazem dinheiro.

Bittel entrou no escritório da segurança. Através dos estores semiabertos das janelas, Gabriel conseguiu vê-lo numa conversa íntima com uma atraente morena. Era óbvio que estavam a falar em francês, em vez de suíço alemão. Finalmente, houve alguns acenos com a cabeça e garantias e, depois, uma chave trocou de mãos. Bittel transportou-a de volta até ao carro e deslizou novamente para trás do volante.

— Tens a certeza de que não há nada entre vocês os dois? — perguntou Gabriel.

— Não comeces outra vez com isso.

— Talvez ma pudesses apresentar. Poupar-te-ia o trabalho de teres de conduzir de Berna até aqui sempre que preciso de dar uma espreitadela ao cofre de algum criminoso.

— Prefiro o nosso sistema atual.

Bittel estacionou no exterior do edifício três e conduziu Gabriel para o interior. A partir da entrada, estendia-se um corredor aparentemente interminável de portas. Subiram um lanço de escadas até ao segundo andar e encaminharam-se para o corredor oito. A porta do cofre dezanove era de metal cinzento. Bittel inseriu a chave na fechadura e, entrando, acendeu a luz. O cofre continha dois compartimentos. Ambos estavam cheios de caixas de madeira retangulares, do género que era utilizado para transportar arte valiosa. Todas eram de tamanho idêntico, cerca de 1,80 m por 1,20 m.

— Outra vez não — disse Bittel.

— Não — disse Gabriel. — Outra vez não.

Examinou uma das caixas. Presa a ela, havia uma guia de remessa que exibia o nome de Galerie Olivia Watson de Saint-Tropez. Gabriel puxou a tampa, mas esta não se moveu. Estava firmemente fixa com pregos.

— Por acaso, não tens um martelo de carpinteiro no teu bolso de trás, não?

— Desculpa.

— Então e uma chave de desmontar pneus?

— Talvez tenha uma no porta-bagagens.

Gabriel escrutinou as restantes caixas enquanto Bittel descia até ao andar de baixo. Havia quarenta e oito. Todas tinham vindo da Galerie Olivia Watson. A TXM Capital era o destinatário de vinte e sete das caixas. As restantes exibiam nomes igualmente vagos (o tipo de nomes, pensou Gabriel, inventados por advogados astutos e banqueiros privados).

Bittel regressou com a chave de desmontar pneus. Gabriel utilizou-a para abrir a primeira caixa. Trabalhou lenta e suavemente, de forma a deixar as mínimas marcas possíveis na madeira. No interior, encontrou uma tela envolta em papel cristal, que repousava numa moldura protetora de poliuretano. Tudo tinha uma aparência extremamente profissional, à exceção da tela em si.

— Que contemporâneo — disse Bittel.

— Gostos não se discutem — respondeu Gabriel.

Abriu outra caixa. Os conteúdos eram idênticos aos da primeira. O mesmo sucedeu com a terceira caixa. E a quarta. Uma tela envolta em papel cristal, uma moldura protetora de poliuretano. Tudo muito profissional, à exceção das telas em si.

Todas estavam em branco.

— Importas-te de me dizer o que é que isto significa? — perguntou Bittel.

— Significa que o verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel são as drogas e que está a usar a galeria de arte da namorada para lavar alguns dos seus lucros.

— É exatamente disso que o Freeport precisa. De outro escândalo.

— Não te preocupes, Cristoph. Vai ser o nosso segredinho.

 

[5] Referência ao romance Príncipe de Fogo. Dalet é a quarta letra do alfabeto hebreu (d). (N.T.)

 

 

 


CONTINUA