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CASA DE ESPIÕES
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Biblio VT

 

 

 

 

 

26

TELAVIVE – SAINT-TROPEZ

Assim sendo, faltava apenas o dinheiro. O dinheiro necessário para levar a operação de Gabriel da fase de produção à cena. Os duzentos ou trezentos milhões para adquirir uma coleção de arte vistosa. Os doze milhões para uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e os cinco milhões, mais coisa menos coisa, para a tornar apresentável. E, depois, havia o dinheiro para todos os pequenos extras da vida. Os carros, as roupas, as joias, os restaurantes, as viagens de avião privado, as festas luxuosas. Gabriel tinha um número em mente, ao qual acrescentou outros vinte milhões, para o caso de serem necessários. As operações, como a própria vida, eram incertas.

— Isso é muito dinheiro — disse o primeiro-ministro.

— Quinhentos milhões já não dão para tanta coisa como antigamente.

— Onde fica o banco?

— Temos vários à escolha, mas o Banco Nacional do Panamá é a nossa melhor opção. Conseguimos fazer tudo lá — explicou Gabriel — e a ameaça de retaliação é reduzida, depois do escândalo com os Papéis do Panamá. Ainda assim, vamos deixar algumas pistas falsas para cobrir o nosso rasto.

— Quem é que vai culpar?

— Os norte-coreanos.

— Porque não os iranianos?

— Da próxima vez — prometeu Gabriel.

Os fundos visados estavam distribuídos por oito contas separadas, todas em nome da mesma empresa de investimentos fantasma. Faziam parte de uma vasta fortuna de dinheiro furtado, controlada pelo governante da Síria e pelos seus amigos e parentes próximos. Pouco tempo antes de se tornar chefe, Gabriel localizara e depois confiscara a maior parte da fortuna, numa tentativa de moderar a conduta assassina do governante na guerra civil síria. Mas fora obrigado a devolver o dinheiro, mais de oito mil milhões de dólares, em troca de uma única vida humana. Pagara o resgate sem arrependimento: tinha sido, dizia sempre, o melhor negócio que alguma vez fizera. Ainda assim, tinha estado à procura de uma desculpa, qualquer desculpa, para ter a última palavra. Encontrar Saladino era um motivo tão bom como qualquer outro.

Gabriel não devolvera os oito mil milhões diretamente ao governante sírio. Depositara-o, conforme fora instruído a fazer, no Gazprombank, em Moscovo, por conseguinte colocando-o, na prática, nas mãos do czar, o benfeitor e amigo mais próximo do governante sírio. O czar tirara metade do dinheiro para si: taxas de serviço, despesas de transporte, envio e manutenção. Os restantes fundos, ligeiramente superiores a quatro mil milhões de dólares, tinham sido depositados numa série de contas secretas na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein, Dubai, Hong Kong e, claro, no Banco Nacional do Panamá.

Gabriel sabia disso porque, com o auxílio de uma unidade altamente sigilosa de hackers do Departamento, observara cada uma das movimentações do dinheiro. A unidade não tinha nome oficial porque, oficialmente, não existia. Aqueles que tinham sido informados do seu trabalho referiam-se a ela unicamente como «o Minyan», pois era constituída por dez elementos, todos do sexo masculino. Premindo, simplesmente, algumas teclas do computador, conseguiam deixar uma cidade às escuras, cegar os radares de um centro de controlo aéreo ou fazer as turbinas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem furiosa e descontroladamente. Em suma, tinham a capacidade de virar as máquinas contra os seus amos. Em privado, Uzi Navot referia-se ao Minyan como dez boas razões pelas quais ninguém no seu perfeito juízo alguma vez usaria um computador ou um telemóvel.

O Minyan trabalhava numa sala ao fundo do mesmo corredor que albergava a divisão onde a equipa de Gabriel estava a fazer os retoques finais do planeamento pré-operacional. O seu líder formal era um miúdo chamado Ilan. Era o equivalente cibernético de Mozart. Primeiro código informático aos cinco, primeiro hack aos oito, primeira operação secreta contra os iranianos aos vinte e um. Era magro como um indigente e tinha a palidez macilenta de alguém que não saía muito para o exterior.

— Basta-me carregar num botão — disse com um sorriso travesso — e puf: o dinheiro desaparece.

— Sem deixar impressões digitais?

— Só norte-coreanas.

— E não há nenhuma forma de conseguirem seguir o rasto do dinheiro do Banco do Panamá para o HSBC em Paris?

— Nem pensar.

— Lembra-me — disse Gabriel — para guardar o meu dinheiro debaixo do colchão.

— Guarda o teu dinheiro debaixo do colchão.

— Era um pedido retórico, Ilan. Não queria realmente que me lembrasses.

— Oh.

— Tens de sair para o mundo real de vez em quando.

— Isto é o mundo real.

Gabriel fitou o ecrã do computador. Ilan também o fitou.

— Então? — perguntou Gabriel.

— Então o quê?

— Estás à espera de quê?

— De autorização para roubar quinhentos milhões de dólares.

— Isto não é roubar.

— Duvido que os sírios vejam isso da mesma forma. Ou os panamenhos.

— Carrega no botão, Ilan.

— Ia sentir-me melhor se fosses tu a fazê-lo.

— Qual é?

Ilan indicou a tecla enter. Gabriel premiu-a uma vez. Depois, caminhou até ao fundo do corredor e informou a sua equipa das notícias. O financiamento necessário tinha chegado. Estavam em ação.

 

Deixou-se ver pela primeira vez na semana seguinte, na quarta-feira, a sair da Bonhams, na New Bond Street, com Julian Isherwood no seu encalço. Quis a sorte (ou, olhando para trás, talvez não tivesse sido, de todo, sorte) que Amelia March da ARTnews estivesse no passeio nesse momento, a matar tempo para o encontro agendado para as duas horas com o presidente do departamento de pós-guerra e contemporânea da Bonhams. Era uma jornalista de arte, não uma verdadeira jornalista, mas tinha faro para uma boa história e olho para o pormenor. Alto, elegante, bastante louro, mais para o pálido, sem qualquer cor nos olhos. O seu casaco e sobretudo eram perfeitos, o perfume cheirava a dinheiro. Achou estranho que estivesse na companhia de um fóssil como Julian. Aparentava ter um gosto mais virado para o moderno, em vez de anjos, santos e mártires. Isherwood fez uma apresentação apressada antes de enfiar o seu cúmplice no banco de trás de uma limusina Jaguar que os aguardava. Dmitri Qualquer Coisa. Só podia.

No interior da Bonhams, Amelia conseguiu apurar que Isherwood e o amigo alto e pálido tinham passado várias horas com Jeremy Crabbe, o especialista em Grandes Mestres da casa de leilões. Localizou Jeremy no Wilton mais tarde nessa mesma noite. Conversaram como dois espiões num café de Viena no pós-guerra.

— O nome é Antonov. Dmitri Antonov. Russo, suponho, mas o assunto não veio à baila na conversa informal. Está completamente a nadar em dinheiro. Trabalha em qualquer coisa no setor dos recursos naturais. Não é o que fazem todos? — disse Jeremy, arrastando a voz. — O Julian agarrou-se a ele como uma lapa ao casco de um navio. Aparentemente, age tanto na qualidade de vendedor como de consultor. Uma relação bem confortável, financeiramente falando. Parece que o Dmitri tirou vários quadros das mãos do Julian e agora andam à caça grossa. Mas não me cites em relação a isso. Na verdade, não me cites em relação a nada. Isto é tudo off the record. Estritamente entre nous, minha querida.

Amelia concordou em manter a informação confidencial, mas Jeremy não foi tão discreto. Na verdade, disse a toda a gente no bar, incluindo a Oliver Dimbleby. No final da noite, era o único tema de conversa entre todos ali presentes.

Em meados de março, ambos foram vistos na Christie’s e na Sotheby’s. Também fizeram uma visita à galeria de Oliver na Bury Street, onde, após uma hora de negociação inócua, se comprometeram com a aquisição de uma paisagem de uma duna montanhosa do pintor holandês Jacob van Ruisdael, de duas cenas de canais venezianos de Francesco Guardi e de um funeral de Zelotti. Roddy Hutchinson vendeu-lhe cinco quadros no total, incluindo uma natureza morta com fruta e um lagarto de Ambrosius Bosschaert II. No dia seguinte, Amelia March publicou um pequeno artigo sobre um jovem russo que andava a agitar as águas do mercado de arte londrino. Julian Isherwood, na qualidade de porta-voz do russo, recusou tecer quaisquer comentários.

— Quaisquer compras efetuadas pelo meu cliente foram privadas — disse ele — e continuarão a sê-lo.

O início de abril viu Isherwood e o seu amigo russo do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, onde a sua chegada foi ansiosamente antecipada. Visitaram as casas de leilões e as galerias, jantaram em todos os restaurantes certos e até assistiram a um musical na Broadway. Um colunista de mexericos do Post relatou que adquiriram vários quadros de Grandes Mestres da Otto Naumann Lda., na East Eightieth Street, mas, uma vez mais, Isherwood balbuciou qualquer coisa sobre o desejo de privacidade do seu cliente. Segundo constava, esse desejo não era assim tão intenso. Quem se encontrou com ele ficou com a impressão de que era um homem que gostava de ser visto. O mesmo se aplicava à bonita jovem (aparentemente era sua esposa, mas tal nunca foi irrefutavelmente provado) que o acompanhou à América. Era esbelta, morena, francesa e profundamente antipática.

— Não perdeu uma única oportunidade de se ver ao espelho — disse o gerente de uma joalharia exclusiva da Quinta Avenida. — Uma verdadeira peça.

Mas quem era aquele homem chamado Dmitri Antonov? E, talvez mais importante do que isso, de onde vinha tanto dinheiro? Tornou-se rapidamente no foco de muitos rumores ao estilo de Gatsby, alguns maliciosos, outros bastante certeiros. Dizia-se que matara um homem, que matara muitos homens, e que amealhara a sua fortuna ilicitamente, tudo coisas que, por acaso, eram verdade. Não que isso o tornasse menos apetecível para aqueles que faziam da venda de arte a sua profissão. Não se importavam muito com o modo como ganhava dinheiro, desde que o cheque chegasse a horas e não houvesse problemas por parte do banco. Não havia. Tinha os seus fundos respeitavelmente depositados no HSBC de Paris, mas, curiosamente, todas as suas aquisições eram enviadas para um cofre no Freeport de Genebra.

— É um daqueles — disse uma mulher que trabalhava no departamento de negócios da Sotheby’s. Um superior recordou-a calmamente que «aqueles» eram os que mantinham lugares como a Sotheby’s a funcionar.

O cofre no Freeport era o mais parecido que tinha com uma morada permanente. Em Londres, vivia no Dorchester, em Paris no Hôtel de Crillon. E quando os negócios o levavam até Zurique, só a suíte Terrazza no Dolder Grand servia. Até mesmo Julian Isherwood, que comunicava com ele através de telemóvel e mensagens de texto, alegava não saber onde ele estava de um dia para o outro. Mas havia rumores (aqui, uma vez mais, tratavam-se apenas de rumores) de que adquirira um castelo para si algures em França.

— Está a usar o Freeport como armazém temporário — sussurrou Isherwood ao ouvido de Oliver Dimbleby. — Há qualquer coisa grande em preparação. — Depois, Isherwood obrigou Oliver a jurar segredo absoluto, garantindo, dessa forma, que a notícia se tornaria global até à manhã seguinte.

Mas onde, em França? Mais uma vez, a fábrica de boatos começou a funcionar pois, no dia em que o homem chamado Dmitri Antonov deixou Nova Iorque, surgiu um pequeno artigo no Nice-Matin sobre uma certa propriedade imobiliária célebre, perto de Saint-Tropez. Conhecida como Villa Soleil, o extenso complexo à beira-mar na Baie de Cavalaire fora, em tempos, propriedade de Ivan Kharkov, o oligarca e traficante de armas russo morto a tiro à porta de um exclusivo restaurante em Saint-Tropez. Durante quase uma década, a propriedade estivera nas mãos do governo francês. Agora, por motivos nunca esclarecidos, o governo estava subitamente ansioso por se desfazer da Villa Soleil. Aparentemente, fora encontrado um comprador. Apesar dos árduos esforços, o Nice-Matin ainda não fora capaz de o identificar.

A renovação da propriedade começou imediatamente. De facto, no dia seguinte à publicação do artigo, um exército de pintores, eletricistas, pedreiros e paisagistas aterraram na Villa Soleil e aí permaneceram, sem interrupções, até que o grandioso palácio à beira-mar se tornou novamente habitável. A natureza empreendedora da mão-de-obra provocou uma dose de ressentimento significativa entre os vizinhos, todos eles veteranos da construção na Provença. Até mesmo Jean-Luc Martel, que vivia numa grandiosa villa no lado oposto da baía, ficou impressionado com a velocidade com que o projeto foi terminado. Gabriel e a equipa sabiam disso pois, com a ajuda da poderosa NSA americana, estavam agora a par de todas as comunicações privadas de Martel, incluindo o e-mail que enviou ao seu empreiteiro, indagando por que motivo a renovação da sua casa de apoio à piscina estava dois meses atrasada em relação ao previsto. Se as obras não estiverem concluídas até ao final de abril, escreveu, despeço-o e contrato a empresa que tratou da antiga casa do Ivan.

A decoração interior da Villa Soleil foi realizada no mesmo ritmo célere tão pouco habitual na Provença, supervisionada por uma das mais proeminentes empresas da Côte d’Azur. Houve apenas um atraso: dois sofás a condizer, encomendados da loja de design de Olivia Watson em Saint-Tropez. Devido a um erro administrativo menor (na verdade, absolutamente intencional), o nome do proprietário da villa apareceu na nota de encomenda. Olivia Watson partilhou o nome com Martel, que, por sua vez, o deu a um colunista do Nice-Matin que escrevera favoravelmente sobre ele no passado. Gabriel e a sua equipa souberam disso porque a poderosa NSA americana assim o assegurava.

Assim sendo, faltavam apenas os quadros, os quadros adquiridos sob o olhar impecável de Julian Isherwood e armazenados num cofre do Freeport de Genebra. Em meados de maio, foram transportados para a Provença numa caravana de furgões, vigiada por agentes de uma empresa de segurança privada e vários agentes de uma unidade secreta da DGSI conhecida como Grupo Alpha. Isherwood supervisionou a sua fixação nas paredes, com o auxílio da esposa francesa do proprietário. Depois, voaram para Paris, onde o proprietário em pessoa estava hospedado na sua suíte habitual no Crillon. Nessa noite, jantaram no próspero restaurante novo de Martel, no Boulevard Saint-Germain, acompanhados por um homem de aspeto resiliente, que falava francês com um acentuado sotaque corso. Martel também estava lá, juntamente com a glamorosa namorada inglesa. Gabriel e a equipa não foram surpreendidos pela presença da sua presa; souberam dos planos de Martel com vários dias de antecedência e reservaram uma mesa para quatro em nome de Dmitri Antonov. Poucos minutos depois da chegada do grupo do jantar, surgiu na mesa uma garrafa de champanhe, juntamente com um bilhete manuscrito. O champanhe era um Dom Pérignon de 1998, o bilhete era de Jean-Luc Martel. «Bem-vindo à vizinhança. Vemo-nos em Saint Tropez...». Era, globalmente, um início promissor.


27

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— Acho que vou à vila daqui a pouco.

— Fazer o quê?

— É dia de mercado. Sabes como eu adoro o mercado.

— Ah, sim, fantástico.

— Podes vir comigo?

— Infelizmente, não posso. Tenho umas chamadas para fazer.

— Tudo bem.

Tinham transcorrido dez dias desde que Mikhail e Natalie (também conhecidos como Dmitri e Sophie Antonov) se tinham instalado na sua nova casa na Baie de Cavalaire, e já parecia que estavam aborrecidos. Não era aborrecimento operacional, era de natureza conjugal. Gabriel determinara que os Antonovs não seriam uma união inteiramente feliz. Poucos casamentos eram perfeitos, argumentou, e um casamento entre um criminoso russo e uma francesa de proveniência duvidosa não seria isento dos seus maus momentos. Também decretara que deveriam manter as suas identidades falsas permanentemente, mesmo quando estivessem seguros atrás das paredes de três metros e meio da Villa Soleil. Tal explicava a frígida troca verbal ao pequeno-almoço. Foi realizada em inglês, visto que o francês de Dmitri Antonov era atroz e o russo da sua esposa inexistente. Os empregados da casa, todos agentes do Grupo Alpha de Paul Rousseau, dirigiam-se apenas à Madame Sophie. Em geral, evitavam o Monsieur Antonov. Achavam-no rude e grosseiro, e ele considerava-os, com alguma razão, os piores empregados domésticos de toda a Provença. Gabriel partilhava a sua opinião. Em privado, instara Rousseau a pô-los rapidamente em sentido. Caso contrário, arriscavam-se a afundar toda a operação.

Mikhail e Natalie estavam sentados, como personagens de um filme, numa mesa do vasto terraço rodeado por colunas com vista para a piscina. Era onde tinham tomado o pequeno-almoço em cada uma das nove manhãs anteriores, pois o Monsieur Antonov preferia aquele local sobre todos os outros. Ele começara o dia com uns vigorosos trinta minutos de natação na piscina. Agora envergava um roupão de banho branco impoluto contra a pele pálida. O olhar de Natalie foi atraído pelo riacho de água que escorria pelo leito esculpido dos seus músculos abdominais na direção da cintura dos calções de banho. Rapidamente, desviou o olhar. A Madame Sophie, recordou a si própria, estava irritada com o Monsieur Antonov. Ele não conseguiria voltar a cair nas suas boas graças simplesmente com uma demonstração insignificante de beleza física.

Ela serviu uma chávena de café forte simples do bule de prata e acrescentou uma medida generosa de leite evaporado. Ao fazê-lo, parecia inegavelmente francesa. Em seguida, puxou um Gitane do maço e acendeu-o. Os cigarros, tal como o seu comportamento indelicado, serviam unicamente o seu disfarce. Como médica, vira em primeira mão os efeitos terríveis do tabaco no corpo humano e era uma não-fumadora convicta. A primeira inalação arranhou-lhe a parte de trás da garganta, mas, com um gole de café, conseguiu reprimir a vontade de tossir. O café era quase perfeito; só no sul de França, pensou, tinha tal sabor. A manhã estava limpa e agradável, com um vento suave a circular na fila de ciprestes que marcava a fronteira entre a Villa Soleil e o vizinho. Uma ondulação salpicava a Baie de Cavalaire e, do outro lado, Natalie conseguia distinguir as linhas ténues da villa pertencente a Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos.

— Croissant? — perguntou ela.

— Desculpa? — Mikhail estava a ler qualquer coisa num tablet com grande intensidade e não se podia dar ao trabalho de erguer o olhar para que se encontrasse com o dela.

— Perguntei se querias outro croissant.

— Não.

— Então e o almoço?

— Agora?

— Em Saint-Tropez. Podes encontrar-te comigo lá.

— Vou tentar. A que horas?

— À hora do almoço, querido. À hora a que as pessoas normalmente almoçam.

Ele deslizou um dedo indicador pela superfície do tablet, mas não disse nada. Natalie apagou o cigarro e, comportando-se como Sophie Antonov, levantou-se abruptamente. Depois, inclinou-se para baixo e aproximou a boca do ouvido de Mikhail.

— Pareces estar a gostar demasiado disto — sussurrou em hebreu. — Se fosse a ti, não me habituava muito.

Entrou na villa e caminhou lentamente, com os pés descalços, pelas suas inúmeras divisões cavernosas, até chegar à base da imponente escadaria principal. Os seus aposentos, pensou, eram bem melhores do que os que tivera de suportar na primeira operação: o apartamento pardacento no banlieue parisiense de Aubervilliers, o quartinho esquálido num dormitório do ISIS em Raqqa, o campo de treino no deserto nos arredores de Palmira, o quarto na casa de Mossul onde cuidara de Saladino até que estivesse curado.

Tu és o meu Maimónides...

No quarto, os lençóis de cetim continuavam desordenados. Evidentemente, as criadas do Grupo Alpha não tinham encontrado tempo na sua atarefada agenda para arrumar o quarto. Natalie esboçou um sorriso culpado. Essa era a única divisão da casa onde ela e Mikhail não faziam qualquer tentativa de ocultar os seus verdadeiros sentimentos um pelo outro. Em rigor, as suas ações na noite anterior tinham sido uma violação do regulamento do Departamento, que proibia relações íntimas entre agentes no terreno. Era, celebremente, umas das regras menos cumpridas em todo o serviço. De facto, sabia-se que o atual chefe e a sua esposa tinham desrespeitado a regra em inúmeras ocasiões. Para além disso, pensou Natalie enquanto alisava os lençóis, fazerem amor servia o disfarce. Nem mesmo cônjuges desavindos eram imunes à obscura atração do desejo.

O closet estava a transbordar de roupa, sapatos e acessórios de marca, tudo pago pelo sanguinário governante da Síria. Só o melhor para a Madame Sophie. De uma gaveta, retirou um par de leggings de licra e um sutiã de desporto. Os seus ténis Nike estavam na prateleira dos sapatos, junto a um par de sapatos de salto alto Bruno Magli. Vestida, caminhou por um corredor fresco de mármore até à sala de fitness e subiu para a passadeira. Odiava correr dentro de casa, mas não tinha outra opção. A Madame Sophie não estava autorizada a correr no exterior. A Madame Sophie tinha problemas de segurança. Natalie Mizrahi também os tinha.

Colocou uns auscultadores nos ouvidos e começou com uma corrida fácil, mas foi aumentando a velocidade da passadeira a cada quilómetro, até estar a correr velozmente, em ritmo apressado. A sua respiração manteve-se controlada e estável; as muitas semanas que passara na quinta em Nahalal tinham-na deixado no auge da sua forma física. Terminou com uma corrida final a alta velocidade e passou trinta minutos a levantar pesos antes de regressar ao quarto para tomar um duche e vestir-se. Calças capri brancas, um pulôver de malha elástica e corte justo que lhe favorecia os seios e a cintura esguia, sandálias rasas douradas. De pé diante do espelho, pensou na última operação, no hijab e nas roupas pias da Dra. Leila Hadawi. Leila, pensou ela, não teria aprovado Sophie Antonov. Nisso, Natalie e ela estavam completamente de acordo.

Saiu para a varanda e espreitou para baixo, na direção do terraço onde Mikhail estava esticado numa chaise longue, expondo a sua pele incolor aos raios de sol matinal. Em dez dias, a sua palidez não se alterara. Parecia ser incapaz de se bronzear.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — gritou ela para baixo.

— Estou ocupado.

Natalie deixou cair o telemóvel do Departamento na sua mala de senhora e encaminhou-se para o andar de baixo, rumo ao pátio, onde a limusina Maybach de Antonov aguardava junto à fonte salpicante, com um motorista do Grupo Alpha ao volante. No banco de trás, havia um segundo agente do Grupo Alpha. O seu nome era Roland Girard. Durante a primeira operação, desempenhara a função de diretor da pequena clínica em Aubervilliers onde a Dra. Leila Hadawi exercera medicina. Agora, era o guarda-costas favorito da Madame Sophie. Havia rumores de que mantinham um caso tórrido, rumores que tinham chegado aos ouvidos do Monsieur Antonov. Este tentara despedir o guarda-costas várias vezes, mas a Madame Sophie nem sequer queria ouvir falar dessa possibilidade. Enquanto a Maybach atravessava lentamente o imponente portão de segurança, acendeu outro Gitane e fitou o exterior da janela, mal-humorada. Desta vez, não conseguiu reprimir a vontade de tossir.

— Sabias — disse Girard — que não tens de fumar essas coisas deploráveis quando estamos só os dois?

— É a única forma de me habituar a eles.

— Quais são os teus planos?

— O mercado.

— E depois?

— Tinha esperança de almoçar com o meu marido, mas parece que ele não pode ser incomodado.

Girard sorriu, mas não disse nada. Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie tocou com uma mensagem recebida. Depois de a ler, voltou a meter o aparelho na mala e, tossindo, fumou o que restava do Gitane. Estava quase na hora de a Madame Sophie conhecer a Madame Olivia. Tinha de praticar.


28

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Enquanto passavam pela saída para a Plage de Pampelonne, Natalie foi inundada por memórias. Dessa vez, não eram as memórias de Leila, eram as suas. Uma manhã perfeita no final de agosto. Natalie e os pais fizeram a difícil viagem de carro de Marselha até Saint-Tropez porque nenhuma outra praia em França (nem no mundo, já agora) se compara àquela. Corria o ano de 2011. Natalie terminou a sua formação médica e embarcou no que promete ser uma carreira bem-sucedida no sistema de saúde público francês. É uma cidadã francesa modelo; não consegue imaginar-se a viver em nenhum outro lugar. Mas a França está a mudar vertiginosamente. Já não é um lugar onde seja seguro ser-se judeu. Cada dia, aparentemente, traz consigo notícias de mais um horror. Outra criança que espancaram ou em quem cuspiram, outra montra de loja que partiram, outra sinagoga que pintaram com graffiti, outra lápide que derrubaram. E, portanto, naquele dia do final de agosto, na praia de Pampelonne, Natalie e os pais fazem os possíveis para ocultar o facto de serem judeus. Não conseguem, e o dia não decorre sem olhares desdenhosos e um insulto murmurado pelo empregado de mesa que, de má vontade, lhes serve o almoço. Durante a viagem de regresso a Marselha, os pais de Natalie tomam uma decisão que mudará os seus destinos. Abandonarão França e estabelecer-se-ão em Israel. Pedem a Natalie, a sua única filha, que se junte a eles. Ela aceita, sem hesitar. E agora, pensava, fitando o exterior através dos vidros fumados da limusina Maybach, estava de volta.

Para lá das praias havia vinhedos recentemente plantados e minúsculas villas sombreadas por ciprestes e pinheiros mansos. No entanto, assim que alcançaram os limites exteriores de Saint-Tropez as villas passaram a estar escondidas por muros altos cobertos por trepadeiras floridas. Essas eram as casas dos meramente ricos, não dos milionários como Dmitri Antonov ou Ivan Kharkov antes dele. Quando era criança, Natalie sonhara com viver numa casa grandiosa rodeada de muros. Gabriel concedera-lhe o desejo. Gabriel, não, pensou subitamente. Fora Saladino.

O motorista conduziu suavemente a Mayback para a Avenue Foch e seguiu por esta até ao centre ville. Era apenas junho, ainda não o pico do verão, portanto as multidões eram toleráveis, até mesmo na Place des Lices, onde se situava o fervilhante mercado ao ar livre de Saint-Tropez. Enquanto Natalie abria lentamente caminho por entre as banquinhas, sentiu uma avassaladora sensação de perda. Este era o seu país, pensou, e, contudo, a sua família fora obrigada a abandoná-lo devido ao mais antigo dos ódios. A presença de Roland Girard centrou a sua atenção na tarefa que tinha em mãos. Não caminhava ao seu lado, mas atrás de si. Não havia forma de o confundirem com um marido. Estava ali por uma única e exclusiva razão: para proteger a Madame Sophie Antonov, a nova residente do célebre palácio na Baie de Cavalaire.

Subitamente, ouviu alguém chamar o seu nome de um café no Boulevard Vasserot.

— Madame Sophie, Madame Sophie! Sou eu, o Nicolas. Aqui, Madame Sophie. — Ela ergueu o olhar e viu Christopher Keller a acenar-lhe de uma mesa no Le Clemenceau. A sorrir, atravessou a rua, com Roland Girard um passo atrás dela. Keller levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. Quando Natalie se sentou, Roland Girard regressou à Place des Lices e ficou, de pé, sob a sombra sarapintada de um plátano.

— Que agradável surpresa — disse Keller quando ficaram sozinhos.

— Sim, é verdade. — O tom de Natalie foi frio. Era a voz que a Madame Sophie utilizava quando se dirigia aos homens que trabalhavam para o seu marido. — O que te traz por cá?

— Vim tratar de um recado. E a senhora?

— Fazer umas compras. — Olhou de relance em redor do mercado. — Há alguém a ver-nos?

— Claro, Madame Sophie. Os senhores causaram uma agitação e tanto.

— Era esse o objetivo, não era?

Keller estava a beber Campari.

— Teve oportunidade de visitar alguma das galerias de arte? — perguntou ele.

— Ainda não.

— Há uma bastante boa perto do Porto Velho. Teria todo o gosto em mostrar-lha. É uma caminhada de cinco minutos, no máximo.

— A proprietária vai lá estar?

— Diria que sim, com certeza.

— Como é que o nosso amigo quer que eu me comporte?

— Parece pensar que se justificaria uma boa humilhação.

Natalie sorriu.

— Acho que a Madame Sophie consegue fazer isso bastante bem.

 

Caminharam na direção do Porto Velho, para lá do desfile de lojas que ladeavam a Rue Gambetta. Keller envergava calças brancas, mocassins pretos e um pulôver justo igualmente preto. Com o seu bronzeado escuro e gel no cabelo, tinha uma aparência absolutamente duvidosa. Natalie, desempenhando o papel de Madame Sophie, fingia um intenso e profundo tédio. Deambulou por várias montras de lojas, incluindo a de uma boutique que exibia o nome de Olivia Watson. Roland Girard, o seu falso guarda-costas, manteve-se vigilantemente junto dela.

— O que é que achas daquele? — perguntou, apontando na direção de um vestido fino que pendia de um manequim sem cabeça como um négligé. — Achas que o Dmitri repararia em mim se usasse aquilo? Ou então aquele? Aquele talvez conseguisse chamar a atenção dele.

Recebida por um silêncio profissional, continuou a caminhar, balouçando a sua mala de senhora como uma menina mimada. Yossi Gavish e Rimona Stern vinham pela rua estreita na direção deles, de mãos dadas, rindo-se de uma piada privada. Dina Sarid estava a examinar um par de sandálias na montra da Minelli e, um pouco mais ao fundo da rua, Natalie identificou Eli Lavon a entrar apressado numa farmácia, com a urgência de um homem cujas entranhas estão em estado de rebelião.

Finalmente, chegaram à Place de l’Ormeau. Não era um verdadeiro quadrado, como a Place des Lices, mas um minúsculo triângulo no cruzamento de três ruas. No centro, havia um fontanário antigo, sombreado por uma única árvore. Num dos lados havia uma loja de vestidos, no outro um café. E, junto do café, ficava o elegante edifício de quatro andares (grande para os cânones de Saint-Tropez, cinzento-pálido em vez de castanho-claro) ocupado pela Galerie Olivia Watson.

A pesada porta de madeira estava fechada e trancada. Ao lado, havia uma placa de bronze que declarava, em francês e inglês, que o visionamento do inventário da galeria se fazia unicamente por marcação. Na montra, havia três quadros em exposição: um Lichtenstein, um Basquiat e um trabalho do pintor e escultor francês Jean Dubuffet. Natalie aproximou-se para observar mais de perto o Basquiat, enquanto Keller examinava o telemóvel. Depois de um momento, apercebeu-se de uma presença nas suas costas. O aroma intoxicante a lilás tornou claro que não se tratava de Roland Girard.

— É lindo, não é? — perguntou uma voz feminina em francês.

— O Basquiat?

— Sim.

— Na verdade — disse Natalie para o vidro —, prefiro o Dubuffet.

— Tem bom gosto.

Natalie virou-se lentamente e avaliou a quarta obra de arte que se erguia a alguns centímetros de distância, na Place de l’Ormeau. Era espantosamente alta, tão alta, na verdade, que Natalie teve de levantar o olhar para encontrar o dela. Não era bonita, era profissionalmente bonita. Até àquele momento, Natalie nunca se apercebera de que havia uma diferença.

— Gostaria de o ver mais de perto? — perguntou a mulher.

— Desculpe?

— O Dubuffet. Tenho alguns minutos antes da minha próxima marcação. — Sorriu e esticou uma mão. — Desculpe, devia ter-me apresentado. O meu nome é Olivia. Olivia Watson — acrescentou. — Esta é a minha galeria.

Natalie aceitou a mão estendida. Era invulgarmente longa, tal como o braço nu, suave e dourado, ao qual estava unida. Olhos azuis luminosos fitavam-na a partir de um rosto tão perfeito que quase parecia irreal. Ostentava nele uma expressão de moderada curiosidade.

— É a Sophie Antonov, não é?

— Já nos conhecemos?

— Não. Mas Saint-Tropez é uma cidade pequena.

— Muito pequena — disse Natalie friamente.

— Vivemos do outro lado da baía onde vive com o seu marido — explicou Olivia Watson. — Na verdade, conseguimos ver a vossa villa da nossa. Talvez gostassem de nos vir visitar, um destes dias.

— Receio que o meu marido esteja extremamente ocupado.

— Parece o Jean-Luc.

— O Jean-Luc é o seu marido?

— Parceiro — disse Olivia Watson. — O nome dele é Jean-Luc Martel. Talvez tenha ouvido falar dele. A Sophie e o seu marido jantaram na nossa nova brasserie em Paris, há duas semanas. Ele enviou-vos uma garrafa de champanhe. — Olhou de soslaio para Keller, que parecia estar absorto nalguma coisa que estava a ler no telemóvel. — Ele também estava lá.

— Trabalha para o meu marido.

— E aquele? — Olivia Watson apontou na direção de Roland Girard com a cabeça.

— Trabalha para mim.

Os olhos luminosos fixaram-se novamente em Natalie, que estudara centenas de fotografias de Olivia Watson como preparação para o primeiro encontro, mas, mesmo assim, o impacto da sua beleza continuava a ser absolutamente surpreendente. Agora, estava a sorrir ligeiramente. Era um sorriso astuto, sedutor, superior. Tinha perfeita consciência do efeito que a sua aparência tinha sobre as outras mulheres.

— O seu marido é colecionador de arte — disse ela.

— O meu marido é um empresário que aprecia arte — disse Natalie cautelosamente.

— Talvez ele gostasse de visitar a galeria.

— O meu marido prefere quadros de Grandes Mestres a trabalhos contemporâneos.

— Sim, eu sei. Causou uma verdadeira sensação em Londres e Nova Iorque, nesta primavera. — Mergulhou a mão na sua mala de senhora e retirou um cartão-de-visita, que ofereceu a Natalie. — O meu número privado está no verso. Tenho algumas peças especiais que creio que poderiam interessar ao seu marido. E, por favor, venham almoçar à nossa villa este fim de semana. O Jean-Luc está ansioso por conhecê-los a ambos.

— Eu e o meu marido temos outros planos para este fim de semana — disse Natalie bruscamente. — Tenha um bom dia, Madame Wilson. Foi um prazer conhecê-la.

— Watson — gritou ela, enquanto Natalie se afastava. — O meu nome é Olivia Watson.

Ainda estava a segurar o cartão-de-visita entre o polegar e o indicador. Keller aproximou-se e puxou-lho da mão.

— Por vezes, a Madame Sophie é um pouco temperamental. Não se preocupe. Vou ter uma conversa com o patrão em seu nome. — Ofereceu a sua mão. — O meu nome é Nicolas, já agora. Nicolas Carnot.

 

Keller caminhou com Natalie e Roland Girard no regresso à Place des Lices e acompanhou-os enquanto aguardavam a Maybach, que alguns segundos mais tarde abandonou o centre ville qual borrão negro, observada de forma igualmente invejosa por turistas e residentes locais. Sozinho, Keller cortou através das banquinhas do mercado até ao outro lado da praça e subiu para a mota Peugeot Satelis que ali deixara. Dirigiu-se para oeste ao longo da extremidade do golfo de Saint-Tropez, depois para sul para as montanhas do Var, até chegar à povoação de Ramatuelle. Não era muito diferente da aldeia dos Orsati na Córsega Central, um aglomerado de casas de cor parda com telhados vermelhos, empoleirada defensivamente no topo de uma montanha. Havia villas maiores escondidas nas planícies arborizadas em baixo. Uma delas chamava-se La Pastorale. Keller assegurou-se de que não estava a ser seguido antes de se apresentar no portão de segurança de ferro. Estava pintado de verde e tinha uma aparência bastante temível. Premiu o botão do intercomunicador com o polegar e depois virou-se para ver um camião de entregas passar na estrada.

— Oui? — disse uma fina voz metálica passado um momento.

— C’est moi — disse Keller. — Abre a merda do portão.

O caminho de acesso à casa era longo e sinuoso e ensombrado por pinheiros e choupos. Terminava no pátio de gravilha de uma enorme villa de pedra com portadas amarelas. Keller encaminhou-se para a sala de estar, que fora transformada num centro de operações temporário. Gabriel e Paul Rousseau estavam curvados sobre um computador portátil. Rousseau reconheceu a chegada de Keller com um aceno cuidadoso de cabeça (continuava profundamente desconfiado desse talentoso agente do MI6 que falava francês como um corso e estava à vontade na presença de criminosos), mas Gabriel tinha um sorriso rasgado.

— Bem jogado, Monsieur Carnot. Levar o cartão-de-visita foi um belo detalhe.

— As primeiras impressões são importantes.

— Efetivamente, são. Ouve isto.

Gabriel bateu suavemente no teclado do computador portátil e, alguns segundos depois, ouviu-se a voz de uma mulher enraivecida a gritar em francês. Era fluente e obsceno, mas marcado por um inconfundível sotaque inglês.

— Com quem é que ela está a falar?

— Com o Jean-Luc Martel, claro.

— Como é que ele reagiu?

— Vais ouvir daqui a um minuto.

Keller encolheu-se, enquanto a voz de Martel ribombava a partir das colunas.

— Claramente — disse Gabriel —, não está habituado a que as pessoas lhe digam que não.

— Qual é a tua próxima jogada?

— Outra humilhação. Várias, na verdade.

As colunas silenciaram-se depois de Olivia Watson terminar a chamada com uma enxurrada final de obscenidades aos gritos. Keller caminhou até um conjunto de monitores de vídeo e observou uma limusina Maybach a virar para uma villa palaciana à beira-mar. Uma mulher saiu e abriu caminho por entre divisões cavernosas de onde pendiam quadros de Grandes Mestres até um terraço com vista para uma piscina do tamanho de uma lagoa. Aí, dormitava um homem com a pele pálida a ruborizar-se debaixo da implacável ofensiva do sol. A mulher disse-lhe algo diretamente ao ouvido que os microfones não conseguiram captar e conduziu-o até ao andar de cima, para um quarto onde não havia câmaras. Keller sorriu, enquanto a porta se fechava. Afinal, talvez houvesse esperança para a Madame Sophie e o Monsieur Antonov.


29

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Não era verdade que Madame Sophie e Monsieur Antonov tivessem planos para esse fim de semana. Mas, de alguma fora, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. Efetivamente, mal o sol se tinha posto, numa tarde perfeita de sexta-feira, uma fileira de faróis de carros qual colar de diamantes estendeu-se ao longo da faixa costeira da Baie de Cavalaire, na direção dos portões da Villa Soleil, que brilhava e cintilava e pulsava ao ritmo de música tão alta que era possível ouvi-la do outro lado da água, que era o que se pretendia. Os convidados vieram de todo o mundo. Havia atores e escritores e aristocratas em declínio e ladrões. Havia o filho de um fabricante de automóveis italiano que chegou entre um cardume de mulheres seminuas e uma estrela pop que não tivera um álbum de sucesso desde que a música se tornara digital. Metade do mundo artístico londrino estava lá, juntamente com um contingente de Nova Iorque que, diziam os rumores, tinha atravessado o Atlântico num voo privado pago pelo anfitrião. E havia muitos outros que mais tarde admitiriam não terem recebido qualquer convite. Essas almas menores tinham ouvido falar do assunto através dos canais habituais (a fábrica de boatos da Riviera, as redes sociais) e tinham-se dirigido avidamente para a porta banhada a ouro do Monsieur Antonov.

Se ele esteve realmente presente nessa noite, não se viu rasto dele. De facto, nem um único convidado conseguiria oferecer provas fiáveis, em primeira-mão, de o ter visto. Nem mesmo Julian Isherwood, o seu consultor artístico, foi capaz de explicar o seu paradeiro. Isherwood realizou uma visita privada à impressionante coleção de quadros de Grandes Mestres da villa para o punhado de convidados que mostrou algum interesse em vê-la. Depois, tal como toda a gente, ficou podre de bêbado. À meia-noite, o buffet tinha sido devorado e havia mulheres a nadar nuas nas piscinas e nas fontes. Houve um combate com socos, a realização muito pública de um ato sexual e a ameaça de um processo judicial. Rivalidades antigas atearam-se, casamentos colapsaram e muitos automóveis de luxo sofreram danos. Toda a gente concordou que a diversão fora de arromba.

Mas a festa não terminou nessa noite, entrou meramente numa breve remissão. Ao final da manhã, os carros entupiram mais uma vez as estradas, e uma frota de iates brancos a motor ancoraram nas águas junto à doca da Villa Soleil, servidos pela lancha do Monsieur Antonov que levou os convidados até à margem. As festividades da segunda noite foram piores do que as da primeira, pelo facto de a maioria dos convidados ter chegado embriagada ou ainda estar embriagada da noite anterior. A vasta equipa de seguranças do Monsieur Antonov vigiou cuidadosamente os quadros, e diversos convidados mais indisciplinados foram expulsos do local com silenciosa eficiência. Ainda assim, não houve nenhum que, efetivamente, tivesse dado um aperto de mão ao anfitrião ou lhe tivesse sequer posto a vista em cima. Oh, houve a divorciada americana de meia-idade e pele curtida que alegou tê-lo visto a observar a festa, ao estilo de Gatsby, do terraço privado nos aposentos superiores do seu palácio, mas estava bastante inebriada na altura e o seu relato foi completamente ignorado. Humilhada, fez uma tentativa desajeitada de seduzir um jovem e bonito piloto de fórmula um, mas teve de se consolar com a companhia de Oliver Dimbleby. Foram vistos pela última vez a cambalear para o interior da noite, com a mão de Oliver no seu rabo.

Houve um brunch com champanhe no domingo, depois do qual os últimos convidados dispersaram. Os feridos que ainda caminhavam dirigiram-se para a porta pelo próprio pé; os comatosos e sem reação partiram por outros meios. Então, um exército de trabalhadores chegou e eliminou todas as provas da destruição do fim de semana. E, na segunda de manhã, o Monsieur Antonov e a Madame Sophie estavam no seu lugar habitual do terraço com vista para a piscina, o Monsieur Antonov perdido no seu tablet, a Madame Sophie nos seus pensamentos. Ao meio-dia, ela foi até à vila, acompanhada por Roland Girard, e almoçou com o Monsieur Carnot num restaurante do Porto Velho que era propriedade de Jean-Luc Martel. Olivia Watson almoçou com uma amiga, uma mulher quase tão bela quanto ela, a algumas mesas de distância. Ao sair, passou pela mesa da Madame Sophie sem uma palavra ou um olhar de soslaio, embora o Monsieur Carnot estivesse bastante certo de que ouvira acidentalmente uma obscenidade anatómica que nem ele, um homem de reputação duvidosa, alguma vez se atrevera a proferir.

Houve outra festa no fim de semana seguinte, mais pequena, mas não menos perversa, e uma farra na semana seguinte que bateu o recorde de queixas aos gendarmes na Côte d’Azur. Nesse ponto, os Antonovs decretaram um cessar-fogo e a vida na Baie de Cavalaire voltou a algo parecido com o normal. Durante a maior parte do tempo, permaneciam prisioneiros da Villa Soleil, embora, várias vezes por semana, a Madame Sophie, depois da sua corrida matinal na passadeira, viajasse até Saint-Tropez na sua limusina Maybach para fazer compras ou almoçar. Normalmente, comia com Roland Girard ou com o Monsieur Carnot, embora em duas ocasiões tivesse sido vista com um inglês alto e bronzeado que arranjara uma villa para passar o verão perto da povoação de montanha de Ramatuelle. Tinha uma esposa curvilínea e sarcástica que Madame Sophie adorava.

A villa não albergava unicamente o casal. Havia uma mulher pequena de cabelo escuro que se deslocava com um ligeiro coxear e exibia o comportamento de uma viuvez recente. E um homem esquivo, no final da sua meia-idade, que parecia nunca vestir a mesma roupa duas vezes. E um sujeito com aspeto severo e rosto bexigoso que aparentava estar sempre a ponderar um ato de violência. E um francês de porte professoral que empestava as divisões da villa com o seu omnipresente cachimbo. E um homem com as têmporas grisalhas e olhos verdes que implorava constantemente ao francês que encontrasse outro vício, um que não colocasse em perigo a saúde daqueles que o rodeavam.

Os residentes da villa não davam quaisquer mostras de se dedicarem à recreação ou ao lazer; tinham vindo para a Provença tratar de um assunto de extrema seriedade. O francês professoral e o homem de olhos verdes eram, aparentemente, parceiros em pé de igualdade, mas, na prática, o francês aceitava as decisões do colega em quase todas as matérias. Ambos os homens passavam uma quantidade significativa de tempo fora da villa. O francês, por exemplo, deslocava-se constantemente entre a Provença e Paris, enquanto o homem de olhos verdes fazia várias viagens clandestinas até Telavive. Também viajou para Londres, onde negociou os termos da nova fase do seu projeto, e para Washington, onde foi repreendido pelo seu ritmo lento. Foi indulgente com a disposição desagradável do seu parceiro americano. Os americanos tinham-se habituado a resolver os problemas com o premir de um botão. Paciência não era uma virtude americana.

Mas o homem de olhos verdes era a encarnação da paciência, principalmente quando estava na villa de Ramatuelle. As travessuras do Monsieur Antonov e da Madame Sophie interessavam-lhe pouco. A sua obsessão era a bela inglesa que detinha a galeria de arte na Place de l’Ormeau. Com a assistência dos outros residentes da villa, observava-a dia e noite. E, com o auxílio do seu amigo na América, ouvia todas as suas chamadas e lia todas as suas mensagens e e-mails.

Ela abominava o novo casal ruidoso que vivia no lado oposto da Baie de Cavalaire (isso era evidente), mas, apesar disso, eles intrigavam-na. Interrogava-se, sobretudo, por que motivo todas as celebridades menores do sul de França tinham sido convidadas para a villa dos Antonov, mas ela fora excluída. O seu «não-exatamente» marido tinha pensamentos semelhantes. Afinal de contas, ele próprio era uma celebridade. Uma verdadeira celebridade, não um desses farsantes pretensiosos que tinham aberto caminho a rastejar até ao interior da duvidosa órbita de Antonov. Pouco tempo depois, estava a fazer as suas próprias investigações sobre o novo vizinho e a fonte do seu considerável rendimento. Quanto mais ouvia, mais se convencia de que Monsieur Dmitri Antonov era uma alma gémea. Instruiu a sua «não-exatamente esposa» a fazer um novo convite. Ela respondeu que mais depressa cortaria os pulsos do que passaria outro minuto na companhia daquela criatura mimada do outro lado da baía, ou algo nesse sentido.

E, portanto, o homem de olhos verdes esperou pelo momento certo. Observou todos os seus movimentos e ouviu todas as suas palavras e leu todas as suas missivas eletrónicas. E interrogou-se se ela seria merecedora da sua obsessão. Será que era a rapariga dos seus sonhos ou partir-lhe-ia o seu coração de espião? Render-se-ia a ele, ou seria necessário o uso da força? Se isso acontecesse, ele tinha força em abundância. Nomeadamente, os quarenta e oito quadros que encontrara no Freeport de Genebra. Esperava não ter de chegar a isso. Pensava nela como um quadro a precisar desesperadamente de um restauro. Ele oferecer-lhe-ia os seus serviços. E, se ela fosse suficientemente insensata para recusar, era possível que as coisas se tornassem desagradáveis.

Na segunda semana de julho, já vira e ouvira o suficiente. Aproximava-se o Dia da Bastilha, após o qual principiaria a reta final da temporada de verão. Mas, como superar a divisória que ele próprio criara? Decidiu que só um convite formal o conseguiria fazer. Ele próprio o escreveu, com uma mão tão precisa que parecia ter sido escrito por uma impressora a laser, e deu-o ao Monsieur Carnot para que o entregasse na galeria da Place de l’Ormeau. Ele assim fez, às onze e um quarto de uma manhã perfeita na Provença, e ao meio-dia da manhã seguinte tinham recebido a resposta que esperavam. Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, iria à Villa Soleil almoçar. E Olivia Watson, a rapariga dos sonhos de Gabriel, iria com ele.


30

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— O que é que achas, querida? Com arma ou sem arma?

Mikhail estava a admirar-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir. Envergava um fato escuro de linho (demasiado escuro para a ocasião e para o tempo, que estava quente, até mesmo para os padrões da Côte d’Azur) e uma camisa branca impoluta, desabotoada até ao esterno. Só os sapatos, um par de mocassins de mil e quinhentos euros, que usava sem meias, eram inteiramente apropriados. As fivelas de ouro condiziam com o relógio de ouro que repousava no seu pulso como um barómetro fora de lugar. Fora manufaturado para ele pelo seu homem em Genebra, uma pechincha de um milhão e meio.

— Sem arma — disse Natalie. — Pode passar a mensagem errada.

Estava de pé ao seu lado, com a imagem refletida no mesmo espelho. Envergava um vestido branco sem mangas e mais joias do que as necessárias para um almoço vespertino no jardim. A sua pele estava muito escura devido ao tempo excessivo passado ao sol. Pensou que não combinava bem com a cor do seu cabelo, que fora aclarado vários tons antes da sua partida de Telavive.

— Achas que alguma vez se tornaria aborrecido?

— O quê?

— Viver assim.

— Acho que depende da alternativa.

Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie vibrou.

— O que é?

— O Martel e a Olivia acabaram de sair da villa deles.

Mikhail franziu o sobrolho para o relógio de pulso.

— Já cá deviam estar há vinte minutos.

— Tempo JLM — disse Natalie.

O telemóvel vibrou uma segunda vez.

— O que foi agora?

— Dizem que fazemos um belo casal.

Natalie beijou a maçã do rosto de Mikhail e saiu. No andar de baixo, no terraço sombreado, um trio de empregados domésticos do Grupo Alpha estava a preparar uma mesa para o almoço com desmedido cuidado. Na extremidade oposta do terraço, Christopher Keller estava a beber rosé. Natalie puxou um Marlboro do maço dele e dirigiu-se a ele em francês.

— Não podes sequer fingir estar um bocadinho nervoso?

— Na verdade, estou ansioso por finalmente conhecê-lo. Aí vem ele.

Natalie olhou na direção do horizonte e viu dois Range Rover pretos a contornar a baía, um para Martel e Olivia, o outro para o seu destacamento de segurança.

— Guarda-costas para o almoço — disse ela com o desdém da Madame Sophie. — Que grosseiro. — Depois, acendeu o cigarro e fumou durante algum tempo sem tossir.

— Estás a ficar bastante boa nisso.

— É um hábito nojento.

— É melhor do que alguns. Na verdade, consigo lembrar-me de vários que são muito piores. — Keller observou os Range Rover que se aproximavam. — A senhora tem mesmo de descontrair, Madame Sophie. Afinal de contas, é uma festa.

— O Jean Luc-Martel e eu vimos da mesma parte de França. Tenho receio de que ele olhe para mim e veja uma rapariga judia de Marselha.

— Ele vai ver o que tu quiseres que ele veja. Para além disso — disse Keller —, se conseguiste convencer o Saladino de que eras palestiniana, consegues fazer seja o que for.

Natalie conteve a tosse e observou os criados do Grupo Alpha a colocar os retoques finais na mesa.

— Porquê velas? — murmurou ela. — Estamos perdidos.

 

Durante as horas finais de preparação para a reunião há muito aguardada entre Jean-Luc Martel e Monsieur Dmitri Antonov, houvera uma discussão invulgarmente acalorada entre Gabriel e Paul Rousseau sobre o que parecia ser um detalhe trivial. Especificamente, se o imponente portão da Villa Soleil deveria estar aberto para a chegada de Martel ou ser deixado fechado, colocando assim, diante dele, uma última barreira metafórica que superar. Rousseau fez pressão a favor de uma abordagem acolhedora: Martel, argumentou, já sofrera o suficiente. Mas Gabriel estava numa disposição menos indulgente e, após uma disputa de vários minutos, levou a melhor sobre Rousseau quanto a deixar o portão fechado.

— E façam-no tocar à campainha como toda a gente — disse Gabriel. — Para Dmitri Antonov, o Martel não passa de um ajudante de cozinha. É importante que o tratemos assim.

E foi assim que, vinte e nove minutos depois da uma da tarde, o motorista de Martel teve de premir o botão do intercomunicador não uma, mas duas vezes, antes de o portão da Villa Soleil finalmente se abrir com um inóspito rangido. Roland Girard, de fato e gravata escuros, assava lentamente no pátio abundantemente banhado pelo sol, com um intercomunicador no ouvido. Por conseguinte, foi o rosto de um agente do Grupo Alpha, não do seu anfitrião, que Martel viu quando saiu das traseiras do seu veículo, vestido com um fato de popelina branco como um bolo de casamento e com a juba de cabelo, que era a sua marca registada, a revolver-se nos remoinhos de vento quente que rodopiavam e morriam em redor das águas dançantes da fonte. Seis câmaras gravaram a sua chegada, e o transmissor usado por Roland Girard captou um intercâmbio tenso relativamente ao destino dos seus guarda-costas. Aparentemente, Martel queria que o acompanhassem até ao interior da villa, um pedido que Girard, educada, mas firmemente, recusou. Enfurecido, Martel afastou-se e atravessou o pátio com uma celeridade predatória, com um trejeito semelhante ao de um gangster empreendedor, um rufia estrela de rock. Olivia era, nessa altura, uma consideração secundária. Seguiu-o, alguns passos atrás, como se já estivesse a preparar as desculpas pelo seu comportamento.

Nessa altura, os Antonovs estavam de pé à sombra do pórtico, como se estivessem a posar para uma fotografia, o que efetivamente era o caso. As saudações fizeram-se com base no género. A Madame Sophie deu as boas-vindas a Olivia Watson como se o frígido encontro à porta da galeria nunca tivesse ocorrido, enquanto Martel e Dmitri Antonov apertaram as mãos como adversários que se preparavam para se derrotarem um ao outro no campo de jogo. Com um sorriso contido, Martel disse que ouvira falar muito do Monsieur Antonov e que estava satisfeito por finalmente o conhecer. Fê-lo em inglês, o que sugeria que tinha conhecimento de que o Monsieur Antonov não falava francês.

— A sua villa é verdadeiramente magnífica. Mas tenho a certeza de que conhece a história dela.

— Disseram-me que, em tempos, foi propriedade de um membro da família real britânica.

— Estava a referir-me ao Ivan Kharkov.

— Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais concordei em retirá-la das mãos do governo francês.

— Conhecia o Monsieur Kharkov?

— Receio que o Ivan e eu nos movêssemos em círculos bastante diferentes.

— Eu conhecia-o bastante bem — vangloriou-se Martel, enquanto atravessava o hall principal da villa ao lado do seu anfitrião, seguido pela Madame Sophie e Olivia e observado pelos olhos imperturbáveis das câmaras de vigilância. — Recebi os Kharkovs muitas vezes nos meus restaurantes em Saint-Tropez e Paris. A forma como morreu foi terrível.

— Os israelitas estiveram por trás disso. Pelo menos, foi esse o rumor.

— Foi mais do que um simples rumor.

— Parece bastante seguro de si.

— Não há muita coisa que aconteça na Côte d’Azur que eu desconheça.

Continuaram para o terraço, onde o último membro do grupo do almoço aguardava entre as colunas.

— Jean-Luc Martel, apresento-lhe Nicolas Carnot. O Nicolas é o meu assistente e consultor mais próximo. É natural da Córsega, mas não lhe leve isso a mal.

 

Na villa nos arredores de Ramatuelle, Gabriel observou atentamente enquanto Jean-Luc Martel aceitava a mão esticada na sua direção. Seguiram-se alguns segundos tensos, enquanto os dois homens se avaliavam mutuamente como só criaturas de nascimento, educação e aspirações de carreira semelhantes conseguem fazer. Claramente, Martel via algo que reconhecia no homem de aspeto duro da ilha da Córsega. Apresentou o Monsieur Carnot a Olivia, que explicou que já se tinham encontrado em duas ocasiões anteriores na galeria. Mas Martel pareceu não a ouvir; estava a admirar a garrafa de Bandol rosé que suava no balde de gelo. A sua aprovação do vinho não foi acidental. Este figurava proeminentemente em todos os seus bares e restaurantes. Gabriel encomendara quantidades suficientes do líquido para fazer flutuar um navio de carga repleto de haxixe.

Seguindo a sugestão da Madame Sophie, sentaram-se nos sofás e cadeiras dispostos na extremidade mais afastada do terraço. Ela foi fria e distante, uma observadora, tal como Gabriel, que estava de pé diante dos monitores de vídeo, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado e uma mão pousada no queixo. A outra pressionava o fundo das costas, que estavam a incomodá-lo. Eli Lavon estava de pé ao seu lado e, ao lado de Lavon, encontrava-se Paul Rousseau. Observaram ansiosamente enquanto um agente do Grupo Alpha, vestido com uma imaculada túnica branca, retirava uma garrafa vazia de rosé do balde de gelo e a substituía com êxito por uma nova. Calmamente, a Madame Sophie instruiu-o para que trouxesse os aperitivos. Também isso o criado conseguiu fazer sem causar vítimas nem danos colaterais. Aliviado, Paul Rousseau carregou o cachimbo e soprou uma nuvem de fumo para os ecrãs de vídeo. A Madame Sophie também pareceu ficar aliviada. Acendeu um Gitane e, com o polegar e dedo anelar, removeu discretamente um resto de tabaco da ponta da língua.

A conversa foi educada, mas reservada, que era como Gabriel pretendia que fosse. Realizou-se em inglês, para benefício de Dmitri Antonov, embora, ocasionalmente, fosse deixado à deriva por uma explosão de francês. Não se ofendeu com isso. Na verdade, parecia apreciar o sossego, pois permitia-lhe desfrutar de uma pausa em relação às perguntas persistentes de Martel relativamente ao seu negócio. Explicou que fizera muito dinheiro com o comércio de matérias-primas russas e conseguira trocar as suas fichas por dinheiro antes da Grande Recessão e da queda abrupta dos preços do petróleo. Embarcara recentemente num conjunto de negócios no Ocidente e na Ásia. Vários deles, disse, tinham-se revelado bastante lucrativos.

— Evidentemente — disse Martel, com um olhar de relance em redor.

O Monsieur Antonov limitou-se a sorrir.

— Em que tipo de coisas está a investir?

— Nas coisas habituais — respondeu evasivamente. — Acima de tudo, tenho satisfeito a minha paixão pela arte.

— Eu e a Olivia adoraríamos ver a sua coleção.

— Talvez depois do almoço.

— Devia realmente dar uma olhadela no inventário dela. Tem muitas peças extraordinárias.

— Gostaria muito de o fazer.

— Quando? — perguntou Martel.

— Amanhã — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e alguns segundos depois Dmitri Antonov disse:

— Passo por lá amanhã, se for conveniente.

Com isso, deslocaram-se para a mesa de refeições. Aqui, mais uma vez, Gabriel não se poupara a despesas e não deixara nada ao acaso. De facto, contratara o chef executivo de um célebre restaurante parisiense e tinha-o trazido num voo privado para a Provença, exclusivamente para a ocasião. A Madame Sophie escolhera o menu. Batatas em molho quente com caviar, rabanete picante e marinada de gengibre; vieiras apanhadas à mão com couve-flor caramelizada e uma emulsão de alcaparras e passas; robalo com crosta de frutos secos e sementes e molho agridoce. Impressionado, Martel pediu para conhecer o chef. A Madame Sophie, acendendo outro cigarro, opôs-se. O chef e a sua equipa, explicou, nunca eram autorizados a deixar a cozinha.

Durante a sobremesa, a conversa virou-se para a política. As eleições na América, a guerra na Síria, os atentados terroristas do ISIS na Europa. Perante a menção do Islão, Martel mostrou-se subitamente animado. A França como em tempos a tinham conhecido desaparecera, rosnou. Em breve, seria apenas outro posto avançado do Magrebe Islâmico. Gabriel achou a atuação bastante convincente, embora Olivia parecesse pensar de outra forma. Aborrecida, perguntou a Madame Sophie se podia tirar um dos seus Gitanes.

— O Jean-Luc tem opiniões muito fortes no que se refere à questão das minorias em França — confidenciou. — Eu gosto de lhe lembrar que, se não fossem os árabes e os africanos, não teria ninguém para lavar os pratos nos restaurantes ou mudar as camas nos seus hotéis.

A Madame Sophie, com a sua expressão, deixou claro que achava o tema de mau gosto. Pediu aos criados do Grupo Alpha que trouxessem o café. Nessa altura, eram quase cinco da tarde. Todos concordaram que uma visita aos quadros teria de esperar por outra ocasião, embora tivessem visto vários enquanto atravessavam lentamente as vastas salas de estar e corredores em tons rosados, observados pelas câmaras de vigilância.

— Está realmente interessado em vir à galeria amanhã? — perguntou Olivia, enquanto fazia uma pausa para admirar as duas cenas de canais venezianos de Guardi.

— Absolutamente — respondeu Dmitri Antonov.

— Estou livre às onze.

— À tarde é melhor — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e Dmitri Antonov explicou, então, que tinha vários telefonemas importantes para fazer de manhã e preferiria visitar a galeria depois do almoço.

— Se isso for conveniente.

— É.

— O Monsieur Carnot fará os preparativos necessários. Creio que ele tem o seu número.

Os Antonovs despediram-se dos seus convidados no pórtico que, nessa altura, já não se encontrava à sombra, mas incandescente com uma ténue luz alaranjada. Passado um momento, estavam mais uma vez de pé no terraço, observando os Range Rover negros a acelerarem na direção da villa que ficava do outro lado da Baie de Cavalaire. Imediatamente, o telemóvel da Madame Sophie vibrou.

— O que é que diz? — perguntou o marido.

— Diz que fomos perfeitos.

— Eles divertiram-se?

— O Martel está convencido de que és um traficante de armas a fazer-se passar por um empresário legítimo.

— E a Olivia?

— Está ansiosa por amanhã.

Sorrindo, Dmitri Antonov despiu o fato e desceu até à piscina para nadar um pouco. A Madame Sophie e o Monsieur Carnot observaram-no do terraço enquanto terminavam o que restava do rosé. O telefone da Madame Sophie estremeceu com a chegada de outra mensagem.

— O que foi agora? — perguntou o Monsieur Carnot.

— Aparentemente, o Martel acha que eu pareço judia. — Acendeu outro Gitane e sorriu. — O Saladino disse a mesma coisa.


31

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Às dez horas da manhã seguinte, a Place de l’Ormeau estava deserta, a não ser pela presença de um homem no final da meia-idade a lavar as mãos num fio de água do fontanário. Olivia pensou que já o vira na vila anteriormente uma ou duas vezes, mas, após uma análise mais atenta, decidiu que estava enganada. As pedras da calçada aqueceram os seus pés por baixo das sandálias enquanto atravessava a praça para a galeria. Retirando as chaves da mala de senhora, destrancou a porta de madeira exterior e entrou para o hall abafado. Em seguida, abriu a porta de vidro de alta segurança e, entrando, desativou o alarme. Fechou a porta atrás de si. Esta trancou-se automaticamente.

O interior da galeria estava escuro e fresco, um alívio em relação ao exterior. No seu escritório privado, Olivia premiu um interruptor que abriu os estores e grades de segurança. Depois, como era seu hábito, foi até ao andar de cima, às salas de exposição, para se assegurar de que nada faltava. O Lichtenstein, o Basquiat e o Dubuffet em exibição na sua montra eram apenas a ponta do inventário da galeria. A considerável coleção profissional de Olivia incluía trabalhos de Warhol, Twombly, de Kooning, Gerhard Richter e Pollock, bem como de numerosos artistas contemporâneos franceses e espanhóis. Fizera aquisições com sabedoria e granjeara uma clientela de confiança entre os milionários da Côte d’Azur (homens como Dmitri Antonov, pensou). Era uma proeza extraordinária para uma mulher sem título universitário e sem qualquer formação artística formal. E pensar que, apenas alguns anos antes, geria uma pequena galeria que distribuía os rabiscos de artistas locais a turistas suados que saíam estonteados de navios cruzeiro e autocarros. Por vezes, permitia a si própria pensar que tinha chegado até ali como resultado da sua determinação e argúcia empresarial, mas, na verdade, sabia que não era assim. Era tudo obra de Jean-Luc. Olivia era o rosto público da galeria que ostentava o seu nome, mas fora comprada e paga por Jean-Luc Martel. Aliás, ela também.

Depois de se asseverar de que a sua coleção sobrevivera intacta a essa noite, dirigiu-se ao andar de baixo e encontrou Monique, a sua rececionista, a preparar um café crème na máquina automática. Era uma rapariga de vinte e quatro anos, magra e com seios pequenos, uma encarnação de uma bailarina de Degas. À noite, trabalhava como rececionista num dos restaurantes de Jean-Luc. Aparentava ter-se deitado tarde. No que se referia a Monique, isso acontecia com mais frequência do que o contrário.

— Também quer? — perguntou enquanto a última porção de leite a ferver gorgolejava e cuspia para a sua chávena.

— Por favor.

Monique entregou o café a Olivia e preparou outro para si.

— Há marcações para esta manhã?

— Não era suposto seres tu a dizer-me isso?

Monique fez uma careta.

— Quem foi desta vez?

— Um americano. Tão fofo. É de um lugar chamado Virgínia. — Dito por Monique, soava como o lugar mais exótico e sensual do mundo. — É criador de cavalos.

— Pensava que odiavas americanos.

— Claro. Mas este é muito rico.

— Vais voltar a vê-lo alguma vez?

— Talvez esta noite.

Ou talvez não, pensou Olivia. Em tempos, fora uma rapariga como Monique. Talvez ainda fosse.

— Se consultares o calendário — disse ela —, tenho a certeza de que vais descobrir que o Herr Müller vem às onze.

Monique franziu o sobrolho.

— O Herr Müller gosta de olhar para as minhas mamas.

— Para as minhas também.

De facto, o Herr Müller gostava de olhar para Olivia mais do que para os seus quadros. Não era o único. A sua aparência era um trunfo profissional, mas, ocasionalmente, era uma distração e um desperdício de tempo. Homens ricos (e alguns não tão ricos) faziam marcações na galeria simplesmente para passarem alguns minutos na sua presença. Alguns arranjavam coragem para lhe fazerem propostas de cariz sexual. Outros fugiam sem nunca tornarem as suas intenções conhecidas. Ela aprendera há muito tempo como projetar um ar de indisponibilidade. Embora, teoricamente, fosse solteira, era a rapariga de JLM. Toda a gente em França sabia disso. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.

Monique sentou-se na secretária de vidro da receção. Tinha apenas um telefone e o calendário de marcações. Olivia não lhe confiava muito mais do que isso. Encarregava-se ela própria de todos os assuntos comerciais e administrativos da galeria, com a ajuda de Jean-Luc. Monique era apenas mais uma obra de arte que, se incentivada a isso, era capaz de atender o telefone. Fora Jean-Luc, não Olivia, quem lhe dera trabalho na galeria. Olivia tinha praticamente a certeza de que eram amantes. Não sentia rancor de Monique. Na verdade, sentia um pouco de pena dela. A coisa não acabaria bem. Nunca acabava.

O Herr Müller chegou dez minutos atrasados, o que não era seu hábito. Era gordo e rosado e cheirava ao vinho da noite anterior. Um confronto recente com um cirurgião plástico em Zurique deixara-o com uma expressão de assombro perpétuo. Estava interessado num quadro do artista americano Philip Guston. Um trabalho semelhante atingira um valor de vinte e cinco milhões de dólares na América. O Herr Müller esperava adquirir o de Olivia por quinze. Olivia rejeitou a oferta.

— Mas eu tenho de o ter! — exclamou enquanto fitava descaradamente a parte frontal da blusa de Olivia.

— Então, vai ter de arranjar mais cinco milhões.

— Deixe-me dormir sobre o assunto. Entretanto, não deixe que mais ninguém o veja.

— Na verdade, estou a planear mostrá-lo esta tarde.

— Maldição! A quem?

— Vá lá, Herr Müller, sabe que dizer-lhe seria cometer uma indiscrição.

— Não será o tal Antonov?

Ela ficou em silêncio.

— Fui a uma festa na villa dele recentemente. Sobrevivi por pouco. Outros não tiveram tanta sorte. — Mordiscou o interior do lábio. — Dezasseis. Mas é a minha oferta final.

— Prefiro arriscar com o Monsieur Antonov.

— Eu sabia!

Ao meio-dia e meia, em plena torreira do sol, Olivia despachou-o. Quando regressou à secretária, viu que recebera uma mensagem de Jean-Luc. Estava a embarcar no seu helicóptero para ir até Nice, onde tinha reuniões durante toda a tarde. Tentou enviar-lhe uma mensagem de volta, mas não recebeu qualquer resposta. Calculou que já estivesse no ar.

Devolveu o telefone à secretária. Alguns segundos mais tarde, este tocou. Olivia não reconheceu o número. Ainda assim, atendeu e aproximou o telefone do ouvido.

— Bonjour.

— Madame Watson?

— Sim.

— Daqui fala Nicolas Carnot. Almoçámos ontem na...

— Sim, claro. Como está?

— Estava a perguntar-me se continua a ter tempo para mostrar a sua coleção ao Monsieur Antonov.

— Limpei a minha agenda — mentiu. — A que horas é que ele gostaria de vir?

— Pode ser às duas horas?

— Às duas seria perfeito.

— Preciso de passar por aí primeiro para dar uma vista de olhos.

— Desculpe?

— O Monsieur Antonov é cauteloso em relação à segurança.

— Garanto-lhe, a minha galeria é bastante segura.

Houve um silêncio.

— A que horas gostaria de vir? — perguntou Olivia, exasperada.

— Estou livre agora, se a senhora estiver.

— Pode vir agora, não há problema.

— Perfeito. Oh, e mais uma coisa, Madame Watson.

— Sim?

— A sua rececionista.

— A Monique? O que é que tem?

— Dê-lhe um recado para fazer, algo que a mantenha fora da galeria durante alguns minutos. Pode fazer isso por mim, Madame Watson?

 

Transcorreram cinco minutos antes de a rececionista finalmente sair da galeria. Deteve-se na fornalha da praça, os seus olhos moveram-se para a esquerda e para a direita. Depois, deambulou vagarosamente, passando pela mesa de Keller no café vizinho com os braços a pender ao lado do corpo como flores de caule longo. Ele escreveu uma mensagem breve no telemóvel e disparou-a para a casa segura de Ramatuelle. A resposta chegou imediatamente. O helicóptero de Martel estava a leste de Cannes. Tudo decorria conforme o planeado.

Como bom agente operacional, Keller pagara a conta antecipadamente. Erguendo-se, dirigiu-se para a galeria e colocou o polegar pesadamente sobre a campainha. Não houve resposta. Amor com amor se paga, pensou. Tocou à campainha uma segunda vez. As fechaduras de segurança abriram-se com um estalido e ele entrou.

 

Havia algo diferente nele, Olivia tinha a certeza disso. Exteriormente, era a mesma criatura superficial e indiferente com quem almoçara na villa de Antonov (o homem de poucas palavras e funções indeterminadas), mas o seu comportamento mudara. Subitamente, parecia muito seguro de si e da virtude da sua causa. Atravessando a galeria, retirou os óculos de sol e colocou-os na cabeça. O seu sorriso era cordial, mas os olhos azuis eram totalmente profissionais. Dirigiu-se a ela sem antes lhe estender a mão para a cumprimentar.

— Receio que tenha havido uma ligeira mudança de planos. Afinal, o Monsieur Antonov não vai poder vir.

— Porque não?

— Um pequeno problema que exigia a sua atenção imediata. Nada de urgente, ouça. Não há motivo para alarme. — Disse tudo isto no seu francês com sotaque corso, com o mesmo sorriso inofensivo.

— Então porque é que me telefonou? E porque é que — perguntou Olivia — está aqui?

— Porque a sua galeria suscitou o interesse de alguns amigos do Monsieur Antonov que gostariam de falar consigo em privado.

— Que tipo de interesse?

— Diz respeito a várias transações recentes suas. Foram bastante lucrativas, mas pouco ortodoxas.

— As transações desta galeria — disse ela friamente — são privadas.

— Não tão privadas quanto pensa.

Olivia sentiu o rosto a começar a arder. Caminhou lentamente até à secretária de Monique e levantou o auscultador do descanso. A sua mão tremia enquanto marcava o número.

— Não se incomode a telefonar ao seu marido, Olivia. Ele não vai atender.

Ela ergueu o olhar repentinamente. Ele dissera estas palavras não em francês, mas em inglês com sotaque britânico.

— Ele não é meu marido — ouviu-se a si própria dizer.

— Oh, sim, esqueci-me. Ele continua no ar — continuou. — Algures entre Cannes e Nice. Mas tomámos a precaução adicional de bloquear todas as suas chamadas recebidas.

— Tomámos?

— Os serviços secretos britânicos — respondeu calmamente. — Não se preocupe, Olivia, está em muito boas mãos.

Ela pressionou o telefone contra o ouvido e ouviu a gravação de voice mail de Jean-Luc.

— Pouse o telefone, Olivia, e respire bem fundo. Não vou magoá-la. Estou aqui para ajudar. Pense em mim como a sua última oportunidade. Se fosse a si, aproveitava-a.

Ela devolveu o telefone ao descanso.

— Linda menina — disse ele.

— Quem é você?

— O meu nome é Nicolas Carnot e trabalho para o Monsieur Antonov, é importante que se lembre disso. Agora, pegue na sua mala, no seu telefone e nas chaves e leve-os para aquele seu belo Range Rover. E, por favor, despache-se, Olivia. Não temos muito tempo.


32

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


O Range Rover estava no seu local habitual, estacionado ilegalmente à porta do restaurante de Jean-Luc no Porto Velho. Olivia deslizou para trás do volante e, seguindo as indicações, conduziu para oeste ao longo do golfo de Saint-Tropez. Por duas vezes, pediu-lhe que explicasse porque é que a sua galeria tinha interesse suficiente para justificar um estratagema tão elaborado por parte dos serviços secretos britânicos. Por duas vezes, ele fez comentários sobre o cenário e o tempo, ao estilo de Nicolas Carnot, amigo do Monsieur Dmitri Antonov.

— Como é que aprendeu a falar assim?

— Assim como?

— Como um corso.

— A minha tia Beatrice era da Córsega. Está prestes a passar o sítio onde tem de virar.

— Para que lado?

Ele apontou na direção da saída para Gassin e Ramatuelle. Ela guinou bruscamente o volante para a esquerda e, pouco depois, dirigiram-se para sul, para a zona rural escarpada que separava o golfo e a Baie de Cavalaire.

— Para onde me está a levar?

— Para ver uns amigos do Monsieur Antonov, claro.

Ela rendeu-se e conduziu em silêncio. Nenhum deles falou até depois de terem passado Ramatuelle. Ele deu-lhe indicações para que se dirigisse para uma estrada secundária mais pequena e, eventualmente, até à entrada da villa. O portão estava aberto para os receber. Ela estacionou no pátio e desligou o motor.

— Não é tão luxuosa como a Villa Soleil — disse ele —, mas vai achá-la bastante confortável.

Subitamente, havia um homem de pé junto da porta de Olivia. Ela reconheceu-o. Vira-o nessa mesma manhã na Place de l’Ormeau. Ele ajudou-a a sair do Range Rover e, com um único movimento da mão, guiou-a na direção da entrada da villa. O homem que ela conhecia apenas como Nicolas Carnot (o homem que falava francês como um corso e inglês com um sotaque chique do West End) caminhou ao seu lado.

— Ele também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Quem?

— O que me abriu a porta.

— Não vi ninguém.

Olivia virou-se para trás, mas o homem tinha desaparecido. Talvez tivesse sido uma alucinação. Foi o calor, pensou ela. Sentia-se verdadeiramente fraca devido à temperatura.

Enquanto se aproximava da villa, a porta moveu-se para trás e Dmitri Antonov surgiu no meio da brecha.

— Olivia! — exclamou, como se ela fosse a sua amiga mais antiga do mundo. — Peço imensa desculpa por incomodá-la, mas receio que não houvesse alternativa. Entre e esteja à vontade. Está cá toda a gente. Estão bastante desejosos de a conhecerem por fim em carne e osso.

Disse tudo isso no seu inglês com sotaque russo. Olivia não sabia bem se seria verdadeiro ou uma atuação. Na verdade, naquele momento, não sabia nada de nada.

Segui-o através do hall de entrada e por baixo de uma arcada que dava para a sala de estar, que estava mobilada de forma confortável e com muitas telas penduradas na parede.

Todas estavam em branco.

As pernas de Olivia pareceram liquidificar-se. O Monsieur Antonov equilibrou-a e empurrou-a suavemente para a frente.

Havia outros três homens presentes. Um era alto, bonito e distinto e indiscutivelmente inglês. Estava, calmamente, a dizer algo em francês a uma figura amarrotada que envergava um casaco de tweed e parecia ter sido extraída de um alfarrabista. O silêncio abateu-se sobre a conversa quando Olivia entrou e os seus rostos viraram-se para ela como girassóis para a aurora. Contudo, o terceiro homem parecia totalmente alheio à sua chegada. Fitava uma das telas em branco, com uma mão pressionada contra o queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. A tela era idêntica, em termos de dimensões, a todas as outras, mas estava apoiada sobre um cavalete. O homem parecia confortável diante dela, observou Olivia. Era de altura e constituição medianas. O seu cabelo estava cortado curto e era grisalho nas têmporas. Os seus olhos, que estavam resolutamente fixos na tela, eram de um invulgar tom de verde.

— Acho — disse ele, finalmente — que este é o meu favorito. A técnica do desenho é absolutamente extraordinária e o uso da cor e da luz é inigualável. Invejo a paleta dele.

Despejou tudo isto sem pausas e em francês, com um sotaque que Olivia não conseguiu identificar com precisão. Era uma mistura peculiar, um pouco de alemão, uma pitada de italiano. Continuava a olhar fixamente para o quadro. A sua postura mantinha-se inalterada.

— A primeira vez que o vi — continuou —, pensei que era realmente único. Mas estava enganado. Quadros como este parecem ser a especialidade da sua galeria. Na verdade, tanto quanto consegui perceber, conseguiu o monopólio do mercado no que se refere a telas em branco. — Os olhos verdes viraram-se finalmente para ela. — Parabéns, Olivia. É uma proeza e tanto.

— Quem é você?

— Sou um amigo do Monsieur Antonov.

— Também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Por amor de Deus, não! Mas ele sim — disse, apontando na direção do inglês com aparência distinta. — Na verdade, é o chefe da Divisão dos Serviços Secretos que é por vezes referida como MI6. Antigamente, o nome dele era um segredo de Estado, mas os tempos mudaram. Ocasionalmente, concede uma entrevista e permite que lhe tirem uma fotografia. Em tempos, isso teria sido uma heresia, mas já não.

— E ele? — perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da figura amarrotada vestida de tweed.

— Francês — explicou o homem de olhos verdes. — É chefe de algo chamado Grupo Alpha. Talvez tenha ouvido o nome. O quartel-general em Paris foi bombardeado há não muito tempo e vários dos seus agentes perderam a vida. Como seria de esperar, está interessado em descobrir o homem que fez isso. E gostava que a Olivia o ajudasse a encontrá-lo.

— Eu? — perguntou, incrédula. — Como?

— Chegaremos a isso daqui a pouco. Quanto à minha origem — disse ele —, sou o homem esquisito que está de fora. Sou do local de que não gostamos de falar.

Foi nesse momento que ela conseguiu finalmente identificar o seu peculiar sotaque.

— É de Israel.

— Receio que sim. Mas, voltando ao assunto em questão — acrescentou rapidamente —, que é a Olivia e a sua galeria. Não é uma verdadeira galeria, pois não, Olivia? Oh, vende aquele quadro ocasional, como o Guston que estava a tentar impingir ao pobre Herr Müller hoje de manhã pelo preço obsceno de vinte milhões de euros. Mas serve, basicamente, como uma máquina de lavagem de dinheiro do verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel, que são as drogas.

Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala.

— Este é o momento — disse o homem de olhos verdes — em que a Olivia me diz que o seu... — Deteve-se a si próprio. — Desculpe-me, mas sou exigente com os pormenores. Como é que a Olivia se refere ao Jean-Luc?

— É meu parceiro.

— Parceiro? Que infelicidade.

— Porquê?

— Porque a palavra parceiro implica uma relação de negócios.

— Acho que gostaria de telefonar ao meu advogado.

— Se o fizer, perderá a única e exclusiva oportunidade que tem de se salvar a si própria. — Fez uma pausa para avaliar o impacto das suas palavras. — A sua galeria é pequena, mas é uma parte importante de uma vasta organização criminosa. O negócio dessa organização é a droga. Droga que vem sobretudo do Norte de África. Droga que flui através das mãos do grupo terrorista que se autodenomina Estado Islâmico. O Jean-Luc Martel é o distribuidor dessa droga aqui na Europa Ocidental. Faz negócios com o ISIS. Consciente ou inconscientemente, está a ajudar a financiar as operações do grupo. O que significa que a Olivia também está.

— Desejo-lhe sorte a tentar provar isso num tribunal francês.

Ele sorriu pela primeira vez. Foi frio e rápido.

— Uma demonstração de coragem — disse com admiração trocista —, mas ainda nenhuma negação sobre o negócio do seu marido.

— Ele não é meu marido.

— Oh, sim — disse ele desdenhosamente —, esqueci-me.

Eram as mesmas palavras que o homem chamado Nicolas Carnot proferira na galeria de arte.

— Quanto a telefonar ao seu advogado — continuou o israelita — isso não será necessário. Pelo menos, para já. Sabe, Olivia, não há agentes da polícia nesta sala. Nós somos agentes dos serviços secretos. Atenção, não temos nada contra a polícia. Eles têm o seu trabalho para fazer e nós temos o nosso. Eles resolvem crimes e fazem detenções, mas o nosso ramo é a informação. A Olivia tem-na, nós precisamos dela. Esta é a sua oportunidade, Olivia. É a sua única e exclusiva hipótese. Se eu fosse seu advogado, aconselhá-la-ia a aproveitá-la. É o melhor acordo que algum dia conseguirá.

Houve outro silêncio, mais demorado do que o anterior.

— Desculpem — disse ela, finalmente —, mas não posso ajudá-los.

— Não pode ajudar-nos, Olivia, ou não quer?

— Não sei nada sobre o negócio do Jean-Luc.

— As quarenta e oito telas em branco que encontrei no Freeport de Genebra dizem o contrário. Foram enviadas para lá pela Galerie Olivia Watson. O que significa que será a Olivia a enfrentar acusações, não ele. E o que é que acha que o seu parceiro fará nessa altura? Irá a cavalgar para a salvar? Irá colocar-se diante de uma bala por si? — Abanou a cabeça lentamente. — Não, Olivia, não o fará. De tudo o que sei sobre o Jean-Luc Martel, não é esse tipo de homem.

Ela não deu qualquer resposta.

— Então como é que vai ser, Olivia? Vai ajudar-nos?

Ela abanou a cabeça.

— Porque não?

— Porque, se o fizer — disse ela calmamente —, o Jean-Luc mata-me.

Ele sorriu novamente. Desta vez, parecia genuíno.

— Disse alguma coisa engraçada? — perguntou ela.

— Não, Olivia, disse-me a verdade. — Os olhos verdes deixaram o rosto dela e pousaram mais uma vez na tela em branco. — O que é que vê quando olha para aqui?

— Vejo uma coisa que o Jean-Luc me obrigou a fazer para poder manter a minha galeria.

— Interessante interpretação. Sabe o que é que eu vejo?

— O quê?

— Vejo-a a si sem o Jean-Luc.

— E que tal lhe pareço?

— Venha cá, Olivia. — Ele afastou-se da tela. — Veja por si própria.


33

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


As telas em branco foram retiradas das paredes e do cavalete, e uma mulher de cabelo escuro de cerca de trinta e cinco anos serviu silenciosamente bebidas frias. Olivia foi convidada a sentar-se. Por sua vez, o inglês garboso e o seu parceiro francês amarrotado foram devidamente apresentados. Os seus nomes eram suficientemente familiares. Também o era o rosto anguloso do israelita de olhos verdes. Olivia tinha praticamente a certeza de que o vira nalgum lado anteriormente, mas não conseguia decidir onde fora. Ele apresentou-se apenas como Gideon e caminhou lentamente pelo perímetro da divisão, enquanto todos os outros se sentavam a transpirar no incansável calor. Uma ventoinha giratória batia monotonamente e sem qualquer efeito no canto; moscas enormes moviam-se como abutres para dentro e para fora das portas francesas abertas. Subitamente, o israelita parou de caminhar e, com um movimento rápido da mão, apanhou uma no ar.

— Gostava daquilo? — perguntou ele.

— De quê?

— De ver a sua cara em revistas e outdoors.

— Não é tão fácil como parece.

— Não é glamoroso?

— Nem sempre.

— Então e as festas e desfiles?

— Para mim, os desfiles eram trabalho. E as festas — disse — tornaram-se bastante aborrecidas passado algum tempo.

Ele lançou o cadáver da mosca para o jardim inundado de sol e, virando-se, avaliou Olivia exaustivamente.

— Então porque é que escolheu uma vida assim?

— Não escolhi. Foi ela que me escolheu.

— A Olivia foi descoberta?

— Por assim dizer.

— Aconteceu quando tinha dezasseis anos, não foi?

— É evidente que leu os artigos sobre mim.

— Com grande interesse — admitiu. — A Olivia fez uma audição para figurante num filme de época que estava a ser gravado na costa de Norfolk. Não conseguiu o papel, mas alguém na equipa de produção lhe sugeriu que devia pensar em ser modelo. E, portanto, a Olivia decidiu abandonar os seus estudos e ir para Nova Iorque para enveredar por uma carreira na moda. Aos dezoito anos, era uma das modelos mais em voga na Europa. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Esqueci-me de alguma coisa?

— De muita coisa, na verdade.

— Tal como?

— Nova Iorque.

— Então porque é que não continua a história a partir daí? — disse ele. — De Nova Iorque.

Foi um inferno, contou-lhe ela. Depois de assinar um contrato com uma agência conhecida, puseram-na num apartamento no West Side de Manhattan com mais oito raparigas que dormiam em beliches, em turnos rotativos. Durante o dia, mandavam-na ir a castings com potenciais clientes e jovens fotógrafos que estavam a tentar entrar no ramo. Se tivesse sorte, o fotógrafo aceitava tirar-lhe algumas fotografias que poderia colocar no portfólio. Caso contrário, saía de mãos a abanar e regressava ao exíguo apartamento para combater as baratas e as formigas. À noite, ela e as restantes raparigas alugavam-se a discotecas para ganharem algum dinheiro. Olivia foi agredida sexualmente duas vezes. O segundo ataque deixou-a com um olho negro que a impediu de trabalhar durante quase um mês.

— Mas a Olivia perseverou — disse o israelita.

— Suponho que sim.

— O que é que aconteceu depois de Nova Iorque?

— Aconteceu o Freddie.

Freddie, explicou, era Freddie Mansur, o agente mais em voga no ramo e um dos mais célebres predadores. Freddie trouxe Olivia para Paris e para a sua cama. Também lhe deu drogas: erva, cocaína, barbitúricos para a ajudar a dormir. À medida que o seu consumo calórico se reduzia a níveis próximos da inanição, o seu peso caía a pique. Rapidamente, era apenas pele e osso. Quando tinha fome, fumava um cigarro ou snifava um risco. Coca e tabaco: Freddie chamava-lhe a dieta de modelo.

— E o mais engraçado é que funcionou. Quanto mais magra ficava, melhor aparência tinha. Por dentro, estava a morrer lentamente, mas a máquina fotográfica adorava-me. E os anunciantes também.

— A Olivia era uma supermodelo?

— Nem por sombras, mas safava-me bastante bem. E o Freddie também. Ficava com um terço de tudo o que eu ganhava. E um terço do salário de todas as outras raparigas que representava na altura.

— E com quem dormia?

— Digamos, simplesmente, que a nossa relação não era monogâmica.

Aos vinte e seis, a aparência cadavérica e toxicodependente com a qual estava associada passou de moda e a sua estrela começou a esmorecer. Muito do seu trabalho tinha lugar na passarela, onde a sua estrutura alta e membros compridos continuavam com grande procura. Mas o trigésimo aniversário foi um ponto de viragem. Houve um antes dos trinta e um depois dos trinta, explicou, e depois dos trinta o trabalho praticamente acabou. Aguentou durante mais três anos, até o próprio Freddie a advertir de que tinha chegado o momento de deixar o ramo. Fê-lo gentilmente, no início, e, quando ela resistiu, cortou os laços profissionais e românticos que tinha com ela e atirou-a para o meio da rua. Tinha trinta e três anos, não tinha estudos, estava desempregada e acabada.

— Mas era rica?

— Dificilmente.

— Então, e todo o dinheiro que ganhou?

— O dinheiro vem e o dinheiro vai.

— Drogas?

— E outras coisas.

— A Olivia gostava das drogas?

— Precisava delas, há uma diferença. Infelizmente, o Freddie deixou-me com uns quantos vícios caros.

— Então, o que é que fez?

— Fiz o que faria qualquer mulher na minha posição. Fiz as malas e fui para Saint-Tropez.

Com o que restava do seu dinheiro, arranjou uma villa nas montanhas («Era um barracão, na verdade, não muito longe daqui») e comprou uma scooter em segunda mão. Passava os dias na praia em Pampelonne e as noites em bares e discotecas da povoação. Naturalmente, encontrou aí muitos homens: árabes, russos, lixo europeu de cabelo prateado. Permitiu que alguns a levassem para a cama em troca de presentes e dinheiro, o que a fez sentir-se praticamente como uma prostituta. Acima de tudo, procurou um companheiro adequado, alguém que pudesse sustentar o estilo de vida ao qual se habituara. Alguém que não lhe causasse demasiada repulsa. Rapidamente, concluiu que viera para o local errado e, com o dinheiro a começar a escassear, aceitou um emprego numa pequena galeria de arte que era propriedade de um britânico expatriado. Então, bastante casualmente, conheceu o homem que mudaria a sua vida.

— O Jean-Luc Martel?

Ela não conseguiu evitar sorrir.

— Onde é que o conheceu?

— Numa festa, onde mais poderia ser? O Jean-Luc estava sempre numa festa. O Jean-Luc era a festa.

Na realidade, explicou, não foi a primeira vez que se conheceram. A primeira vez fora na Fashion Week em Milão, mas, nessa altura Jean-Luc estava com a esposa e mal olhara Olivia nos olhos ao apertar-lhe a mão. Mas, aquando do seu segundo encontro, era um viúvo em recuperação e desejoso de atividade. E Olivia apaixonou-se perdida e instantaneamente por ele.

— Eu era a Rosemary e ele era o Dick. Fiquei absolutamente impotente de amor.

— A Rosemary e o Dick?

— Rosemary Hoyt e Dick Diver. São personagens do...

— Eu sei quem são, Olivia. E está a lisonjear-se com a comparação.

As palavras foram como um estalo na sua face. As maçãs do seu rosto incendiaram-se de cor.

— Ele deu-lhe presentes e dinheiro como os outros?

— O Jean-Luc não tinha de pagar pelas suas miúdas. Era incrivelmente bonito e fabulosamente bem-sucedido. Era... o Jean-Luc.

— E o que é que acha que ele viu em si?

— Costumava perguntar-lhe a mesma coisa.

— Qual era a resposta dele?

— Achava que fazíamos uma boa equipa.

— Então foi uma parceria desde o início?

— Mais ou menos.

— Alguma vez falaram de casamento?

— Eu falei, mas o Jean-Luc não estava interessado. Costumávamos ter discussões terríveis sobre isso. Disse-lhe que não ia desperdiçar os melhores anos da minha vida a ser a concubina dele, que queria casar com ele e ter filhos. No final, chegámos a um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Ele deu-me outra coisa em vez do casamento e dos filhos.

— E que coisa foi essa?

— A Galerie Olivia Watson.


34

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


Olivia estava habituada a ter homens a fitarem-na. Homens ofegantes. Homens arquejantes. Homens de olhos húmidos, desejosos. Homens que fariam qualquer coisa, pagariam quase qualquer preço, para a ter nas suas camas. Os três homens agora alinhados diante dela (o mestre de espionagem britânico, o polícia secreto francês e o israelita sem origem declarada, mas de rosto vagamente familiar) também a estavam a fitar, mas definitivamente por um motivo diferente. Pareciam impenetráveis ao feitiço da sua aparência. Para eles, ela não era um objeto digno de ser admirado; era um meio para atingir um fim. Um fim que ainda não tinham considerado adequado revelar. Não estava, de todo, convencida de que gostassem dela. Ainda assim, sentiu-se aliviada por saber que ainda existiam homens assim. Uma carreira na indústria da moda e dez anos no mundo do faz-de-conta de Saint-Tropez tinham-na deixado com uma opinião bastante baixa sobre a espécie.

Galerie Olivia Watson...

Disse-lhes que o nome fora ideia de Jean-Luc, não sua. Ela quisera pendurar o nome consolidado da JLM sobre a porta da galeria, mas Jean-Luc insistira que a galeria ostentasse o nome dela em vez do seu. Deu-lhe o dinheiro para comprar o edifício antigo e elegante na Place de l’Ormeau e, depois, financiou a aquisição de uma coleção de nível mundial de arte contemporânea. Olivia quisera adquirir o acervo lenta e modestamente, com especial ênfase em artistas mediterrânicos. Mas Jean-Luc não quisera sequer ouvir falar nessa hipótese. Ele não fazia as coisas de forma lenta e modesta, explicou. Unicamente grande e vistosa. A galeria abriu com um nível de ostentação e glamour que só JLM poderia proporcionar. Depois disso, ele afastou-se e cedeu a Olivia um absoluto controlo artístico e financeiro.

— Mas apenas até certo ponto — disse ela.

— O que é que isso quer dizer? — perguntou o israelita. — Ou se detém controlo absoluto ou não se detém. Não existe um meio-termo.

— Existe, quando o Jean-Luc está envolvido.

Ele convidou-a a desenvolver o assunto.

— O Jean-Luc encarregava-se da contabilidade da galeria.

— Não achou isso estranho?

— Na verdade, fiquei aliviada. Eu era uma antiga modelo e ele era um empresário extremamente bem-sucedido.

— Quanto tempo demorou a descobrir que alguma coisa não estava bem?

— Dois anos. Talvez um pouco mais.

— O que é que aconteceu?

— Comecei a ver os registos da galeria sem ter o Jean-Luc a espreitar por cima do meu ombro.

— E o que é que descobriu?

— Que estava a adquirir e a vender mais trabalhos do que alguma vez imaginei ser possível.

— O negócio da galeria ia de vento em popa?

— Isso é pouco. Na verdade, logo no segundo ano de atividade, a Galerie Olivia Watson fez mais de trezentos milhões de euros de lucro. A maioria das vendas era totalmente privada e envolviam quadros que eu nunca tinha visto.

— O que é que fez?

— Confrontei-o.

— E como é que ele reagiu?

— Disse-me para me meter nos meus negócios. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — O jogo de palavras não foi intencional.

— Foi o que fez?

Ela hesitou antes de assentir lentamente com a cabeça.

— Porquê?

Quando ela não deu qualquer explicação, ele sugeriu-lhe uma.

— Porque a sua vida era perfeita e não queria fazer nada que a perturbasse.

— Todos fazemos concessões nas nossas vidas.

— Mas nem todos encontramos refúgio nos braços de um traficante de droga. — Fez uma pequena pausa para permitir que as palavras a ferissem o suficiente. — Sabia que o verdadeiro negócio do Jean-Luc eram os estupefacientes, não sabia?

— Continuo a não saber.

O israelita recebeu a resposta com um desdém justificado.

— Não temos muito tempo, Olivia. Era melhor que não o desperdiçasse com negações inúteis.

Houve um silêncio, para dentro do qual o inglês que se autodenominava Nicolas Carnot rastejou. Foi até à estante e, esticando o pescoço para o lado, retirou um volume com uma capa gasta. Era O Céu Que Nos Protege, do romancista americano Paul Bowles. Enfiou o livro debaixo do braço e, com um olhar de soslaio para Olivia, saiu sorrateiramente da divisão de novo. Ela olhou para o israelita, que lhe devolveu um olhar destituído de julgamento.

— Estava prestes a contar-me — disse ele finalmente — quando é que se apercebeu de que o seu parceiro doméstico e empresarial era um traficante de droga.

— Ouvi rumores, tal como toda a gente.

— Mas, ao contrário de toda a gente, a Olivia encontrava-se numa posição única para saber se eram ou não verdade. Afinal de contas, a Olivia era a proprietária formal de uma galeria de arte que servia como uma das suas mais eficazes fachadas para lavar dinheiro.

Ela sorriu.

— Que ingénuo da sua parte.

— Porquê?

— Porque o Jean-Luc é muito bom a manter segredos. — Depois acrescentou: — Quase tão bom como o senhor e os seus amigos.

— Nós somos profissionais.

— O Jean-Luc também — disse ela sombriamente.

— Alguma vez lho perguntou?

— Se ele é traficante de droga?

— Sim.

— Só uma vez. Ele riu-se. E depois disse-me que nunca mais lhe fizesse perguntas sobre o negócio dele.

— E fez?

— Nunca.

— Porque não?

— Porque tinha ouvido outros rumores — disse ela. — Rumores sobre o que acontecia às pessoas que se lhe atravessavam no caminho.

— E, ainda assim, ficou — referiu ele.

— Fiquei — retorquiu ela — porque tive medo de partir.

— Medo de partir ou medo de perder a galeria?

— Ambos — admitiu.

Um lampejo de um sorriso surgiu nos lábios dele e depois desapareceu.

— Admiro a sua honestidade, Olivia.

— Pelo menos isso...

— Tal como o Nicolas Carnot, tenho tendência para me abster de qualquer julgamento. Principalmente, quando há informação valiosa em jogo.

— Que tipo de informação?

— A organização do negócio do Jean-Luc, por exemplo. A Olivia deve ter conseguido reunir uma quantidade de informação considerável sobre a forma como a empresa está estruturada. É bastante opaca, no mínimo. Olhando para ela do exterior, conseguimos identificar alguns dos atores. Há um chefe para cada divisão (para os restaurantes, para os hotéis, para a parte do retalho), mas, por mais que tentemos, não somos capazes de identificar o chefe da unidade de estupefacientes ilícitos da JLM.

— Está a brincar.

— Só um bocadinho. É um homem ou são dois? É o próprio Jean-Luc?

Ela não disse nada.

— Tempo, Olivia. Não temos muito tempo. Precisamos de saber como é que o Jean-Luc gere o seu negócio de droga. Como é que dá as ordens. Como é que se isola para que a polícia não lhe consiga tocar. Não acontece por osmose ou telecinesia. Existe, algures, uma figura de confiança que trata dos interesses dele. Alguém que consegue entrar e sair da sua órbita sem levantar suspeitas. Alguém com quem ele comunica apenas pessoalmente, em voz baixa, num quarto onde não existem telefones presentes. Certamente, sabe quem é esse homem, Olivia. Talvez se conheçam. Talvez a Olivia seja amiga dele.

— Amiga, não — disse ela, passado um momento. — Mas realmente sei quem ele é. E sei o que me aconteceria se lhe dissesse o nome dele. Ele matava-me. E nem sequer o Jean-Luc conseguiria impedi-lo.

— Ninguém lhe vai fazer mal, Olivia.

Ela olhou-o com ceticismo. Ele fingiu ficar moderadamente ofendido.

— Pense nos esforços extraordinários que fizemos para trazê-la aqui hoje. Não demonstrámos o nosso profissionalismo? Não provámos que merecemos a sua confiança?

— E quando desaparecerem? Quem é que me vai proteger nessa altura?

— A Olivia não vai precisar de proteção — replicou ele — porque também terá desaparecido.

— Onde é que eu estarei?

— Isso cabe-lhe a si e ao seu compatriota decidir — disse ele, com uma inclinação da cabeça na direção do chefe dos serviços secretos britânicos. — Bem, calculo que possa oferecer-lhe um apartamento agradável com vista para o mar em Telavive, mas suspeito que se sinta mais confortável em Inglaterra.

— O que é que vou fazer para ganhar dinheiro?

— Gerir uma galeria de arte, evidentemente.

— Qual?

— A Galerie Olivia Watson. — Ele sorriu. — Apesar de o seu inventário profissional ter sido adquirido com dinheiro proveniente da droga, estamos preparados para a deixar mantê-lo. Com duas exceções — acrescentou.

— Quais?

— O Guston e o Basquiat. O Monsieur Antonov gostaria de lhe passar um cheque de cinquenta milhões por ambos, o que deverá dissipar quaisquer preocupações que o Jean-Luc possa ter sobre a forma como passou esta tarde. E não se preocupe — acrescentou. — Ao contrário do Monsieur Antonov, o dinheiro é absolutamente real.

— Que generoso da vossa parte — disse ela. — Mas ainda não me disseram o motivo de tudo isto.

— O motivo é Paris — respondeu ele. — E Londres. E Antuérpia. E Amesterdão. E Estugarda. E Washington. E uma centena de outros atentados de que a Olivia nunca ouviu falar.

— O Jean-Luc não é nenhum anjo, mas também não é nenhum terrorista.

— É verdade. Mas acreditamos que faz negócios com um, o que significa que está a ajudar a financiar os atentados. Mas receio que isto seja o máximo que lhe vou dizer em relação a este assunto. Quanto menos souber, melhor, É assim que funciona no nosso ramo. E a única coisa que precisa de saber é que lhe está a ser concedida uma oportunidade única. É uma possibilidade de começar do zero. Pense nela como uma tela em branco na qual pode pintar a imagem que quiser. E só lhe custará o nome dele. — Ele sorriu e perguntou: — Temos acordo, senhora Wilson?

— Watson. O meu nome é Olivia Watson. E, sim — disse, passado um momento. — Creio que temos acordo.

 

Falaram durante toda a tarde, enquanto o calor abrandava e as sombras se tornavam mais finas e longas no jardim e no olival prateado que trepava pela encosta ao lado. As circunstâncias do seu repatriamento para o Reino Unido. A forma como deveria comportar-se na presença de Jean-Luc ao longo dos dias seguintes. Os procedimentos que deveria seguir caso ocorresse alguma urgência imprevista. O israelita de olhos verdes referiu-se a isso como o plano «quebrar-em-caso-de-emergência» e advertiu Olivia de que deveria ser ativado apenas em caso de extremo perigo, pois implicaria, necessariamente, um enorme gasto de tempo e esforço e o desperdício de incontáveis milhões em despesas operacionais.

Só depois disso Gabriel pediu o nome a Olivia. O nome do homem em quem Jean-Luc confiava para gerir o seu império de muitos milhares de milhões de euros em estupefacientes. O lado sujo da JLM Enterprises, como o israelita lhe chamou. O lado que tornava tudo o resto (os restaurantes, os hotéis, as boutiques e as lojas, a galeria de arte na Place de l’Ormeau) possível. A primeira vez que Olivia o proferiu, fê-lo suavemente, como se tivesse uma mão a apertar-lhe a garganta. O israelita pediu-lhe que repetisse o nome e, ouvindo-o claramente, trocou um olhar longo, especulativo com Paul Rousseau. Passado algum tempo, Rousseau assentiu lentamente com a cabeça e, depois, voltou a contemplar o seu cachimbo dormente enquanto, no outro lado da sala, Nicolas Carnot devolvia o volume de Bowles ao seu lugar original na prateleira.

Depois disso, não houve mais discussão sobre droga ou terrorismo ou sobre o verdadeiro motivo pelo qual Olivia fora trazida à modesta villa nos arredores de Ramatuelle. O Monsieur Antonov materializou-se, todo sorrisos e bonomia com sotaque russo, e, juntos, prepararam a transferência de cinquenta milhões de euros das suas contas para as da galeria. Foi aberta uma garrafa de champanhe para comemorar a venda. Olivia não bebeu do copo que lhe colocaram na mão. O israelita também não tocou no seu copo. Era, pensou Olivia, um homem de uma disciplina admirável.

Pouco depois das seis da tarde, Nicolas Carnot devolveu o telemóvel a Olivia. Ela não sabia em que momento lho tirara. Calculou que o tivesse retirado da sua mala durante a viagem de carro de Saint-Tropez. Olhando de relance para o ecrã, viu várias mensagens de texto que tinham chegado durante o interrogatório. A última era de Jean-Luc. Chegara apenas um instante antes. Dizia que estava prestes a embarcar no seu helicóptero e chegaria a casa dentro de uma hora.

Olivia ergueu o olhar, alarmada.

— O que é que eu devo dizer-lhe?

— O que é que lhe diria normalmente? — perguntou o israelita.

— Dir-lhe-ia que fizesse boa viagem.

— Então, por favor, diga isso. E talvez queira mencionar que tem uma surpresa de cinquenta milhões de euros para ele. Isso deve alegrar-lhe a disposição. Mas não revele demasiado. Não queremos estragar a surpresa.

Olivia digitou a resposta na caixa de texto com o polegar e levantou o ecrã para que ele visse.

— Muito bem feito.

Com um toque suave, enviou a mensagem.

— Está na hora de se ir embora — disse o israelita. — Não queremos que a sua carruagem se transforme numa abóbora, pois não?

No exterior, algumas nuvens sopradas pelo vento moviam-se velozmente pelo céu noturno. Nicolas Carnot falou apenas em francês durante a viagem para sul em direção à Baie de Cavalaire, e apenas sobre o Monsieur Antonov e os quadros. Deveriam ser entregues na Villa Soleil imediatamente após a receção do dinheiro. A Madame Sophie, disse ele, já escolhera o local onde seriam pendurados.

— Ela odeia-me — disse Olivia.

— Não é assim tão má, depois de a conhecermos.

— É francesa?

— O que mais é que poderia ser?

Os Antonovs viviam no lado ocidental da baía, Jean-Luc e Olivia no oriental. Enquanto se aproximavam do minimercado Spar na esquina do Boulevard Saint-Michel, o Monsieur Carnot indicou-lhe que parasse. Apertou a mão dela firmemente e, em inglês, assegurou-lhe que não tinha nada a temer, que estava a fazer a coisa certa. Depois, desejou-lhe uma noite agradável e, sorrindo como se nada de invulgar tivesse acontecido nessa tarde, saiu do carro. Quando o viu pela última vez, foi no espelho retrovisor, a acelerar na direção oposta em cima de uma pequena mota. A fugir do local do crime, pensou ela.

Olivia continuou para leste ao longo da baía e, alguns minutos mais tarde, entrou na luxuosa villa que partilhava com o homem que acabara de trair. Na cozinha, serviu um grande copo de rosé para si e levou-o para o terraço no exterior. Através do brilho intenso do sol poente, conseguiu distinguir os contornos vagos da villa monstruosa do Monsieur Antonov. Nesse preciso momento, o seu telemóvel vibrou. Fitou o ecrã. EM CASA DAQUI A CINCO MINUTOS... QUAL É A SURPRESA?

— A surpresa — disse ela em voz alta — é que o teu amigo russo e a cabra da mulher dele acabaram de me passar um cheque de cinquenta milhões de euros. — Repetiu-o vezes sem conta, até acreditar que era verdade.


35

MARSELHA, FRANÇA

Às onze e quarenta e cinco da manhã seguinte, a quantia de cinquenta milhões de euros apareceu na conta da Galerie Olivia Watson, 9 Place de l’Ormeau, Saint-Tropez, França. O dinheiro não teve de viajar até muito longe, visto que tanto emissor como destinatário tinham as suas contas no HSBC do Boulevard Haussmann, em Paris. A meio da tarde, repousava confortavelmente num conceituado banco suíço em Genebra, numa conta controlada pela JLM Enterprises. E, às cinco horas, dois quadros (um de Guston, outro de Basquiat) foram entregues na Villa Soleil, numa carrinha sem identificação exterior. Olivia Watson ia atrás, no seu Range Rover preto. No hall de entrada, passou por Christopher Keller, que estava a sair. Ele beijou-a prodigamente em ambas as maçãs do rosto, fez um comentário sobre a sua aparência, que era deslumbrante, e depois subiu para a sua mota Peugeot Satelis. Pouco depois, estava a acelerar para oeste ao longo da costa do Mediterrâneo.

Era quase crepúsculo quando chegou aos subúrbios de Marselha. Os violentos gangues de droga prosperavam nos banlieues a norte da cidade, principalmente nos bairros sociais de Bassens e Paternelle, mas Keller aproximou-se através dos subúrbios mais tranquilos a leste. O túnel Prado-Carénage levou-o até ao Porto Velho e, daí, encaminhou-se para a Rue Grignan. Esguia e direita como uma régua, estava ladeada de lojas Boss, Vuitton, Armani e semelhantes. Havia até uma boutique-joalharia JLM. Keller jurou ter conseguido detetar o cheiro azedo a haxixe enquanto passava.

Enquanto continuava através do centro da cidade para o interior do quartier de Marselha conhecido como Le Camas, as ruas tornaram-se sujas e pobres e as lojas e cafés passaram a ter, claramente, uma clientela imigrante e de classe trabalhadora. Um desses negócios, situado no rés-do-chão de um edifício salpicado de graffitis com vista para a Place Jean Jaurès, vendia artigos eletrónicos e telemóveis com desconto a uma carteira de clientes essencialmente marroquina e argelina. Contudo, o seu proprietário era um francês chamado René Devereaux. Devereaux era proprietário de vários pequenos negócios em Marselha (todos eles orientados para fazer dinheiro, alguns numa categoria definida, de forma vaga, como entretenimento para adultos), mas a loja de produtos eletrónicos servia como uma espécie de sede operacional. O seu escritório ficava no segundo andar do edifício. A divisão não continha nenhum telefone nem dispositivos eletrónicos de qualquer tipo, um conjunto de circunstâncias curiosas para um homem que, alegadamente, tinha como profissão a venda das referidas engenhocas de conveniência modernas. René Devereaux não gostava muito de telefones e dizia-se que nunca tinha enviado, pessoalmente, um e-mail ou uma mensagem de texto. Só comunicava com os seus parceiros de negócio e subordinados ao vivo, muitas vezes na sombria praça ou numa mesa na esplanada do Au Petit Nice, um café razoavelmente agradável localizado a alguns passos da sua loja.

Keller sabia de tudo isto porque René Devereaux era uma figura proeminente no mundo onde ele, em tempos, habitara. Toda a gente no submundo criminoso francês sabia que o verdadeiro negócio de Devereaux era o tráfico de droga. Não apenas o tráfico de rua, mas o tráfico numa escala continental mais alargada. Provavelmente, a polícia francesa também estava a par disso, mas Devereaux, ao contrário de muitos dos seus concorrentes, nunca passara um único dia atrás das grades. Era um verdadeiro mafioso, um intocável. Até esta noite, pensou Keller. Pois fora o nome de René Devereaux que Olivia Watson proferira na casa segura nos arredores de Ramatuelle. Devereaux era a pessoa que fazia tudo correr sobre rodas, a pessoa que movia o haxixe das docas do sul da Europa para as ruas de Paris, Amesterdão e Bruxelas. A pessoa, pensou Keller, que conhecia todos os segredos de Jean-Luc Martel. Teriam apenas uma hipótese de o apanhar discreta e eficazmente. Felizmente, tinham à sua disposição alguns dos melhores agentes de campo do ramo.

Keller deixou a mota na extremidade da Place Jean Jaurès e caminhou até à loja de Devereaux. Espreitando para a mercadoria em exibição na montra atulhada, viu dois homens, ambos de aparência francesa, a observá-lo a partir do posto avançado atrás do balcão. No segundo andar, havia luz a cintilar atrás da porta francesa fechada que dava para a varanda degradada.

Keller afastou-se e continuou a caminhar ao longo da rua cerca de cinquenta metros, antes de parar junto de uma carrinha estacionada. Giancomo, moço de recados de Don Orsati, estava sentado ao volante. Dois outros agentes de Orsati estavam agachados no compartimento de carga traseiro, a fumar nervosamente. Giancomo, no entanto, parecia estar calmo. Keller suspeitava que era para o convencer das suas capacidades.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há uns vinte minutos. Veio à varanda fumar um cigarro.

— Tens a certeza de que ainda está lá dentro?

— Temos um homem a vigiar as traseiras do edifício.

— Onde é que estão os outros?

O jovem corso apontou com a cabeça na direção da Place Jean Jaurès. A praça estava apinhada de residentes do quartier, muitos deles vestidos com indumentária tradicional africana ou do mundo árabe. Nem mesmo Keller conseguia identificar os homens do don.

Olhou para Giancomo.

— Sem erros, estás a ouvir-me? Caso contrário, estás sujeito a ser responsabilizado por dar início a uma guerra. E sabes qual é a opinião do don sobre guerras.

— As guerras são boas para o negócio do don.

— Não são, quando ele é um dos combatentes.

— Não se preocupe. Já não sou um miudinho. Para além disso, tenho isto. — Giancomo puxou o talismã em redor do pescoço. Era idêntico ao de Keller. — Já agora, ela manda cumprimentos.

— Disse mais alguma coisa?

— Qualquer coisa sobre uma mulher.

— O que é que tem a mulher?

Giancomo encolheu os ombros.

— Sabe como é a signadora. Fala por meio de adivinhas.

Keller fumou um cigarro enquanto caminhava para o Au Petit Nice. O interior estava numa grande agitação (o Marselha estava a jogar contra o Lyon), mas havia algumas mesas livres na rua. Numa delas, estava sentado um homem de constituição mediana, com cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos. Numa mesa adjacente, dois homens de olhos escuros com cerca de vinte anos observavam os transeuntes que se movimentavam pelos passeios com invulgar intensidade. Keller aproximou-se do homem de cabelo de prata e, sem esperar por um convite, sentou-se. Havia uma garrafa de pastis e um único copo. Keller fez sinal ao empregado e pediu um segundo.

— Sabes — disse ele em francês —, devias mesmo beber um bocadinho.

— Parece gasolina com sabor a alcaçuz — respondeu Gabriel. Observou dois homens de túnica a caminhar de braço dado na rua. — Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— No Au Petit Nice?

— Em Marselha — disse Gabriel.

— Era inevitável. Quando uma pessoa está a tentar infiltrar-se numa rede europeia de droga, todos os caminhos vão dar a Marselha. — Keller também observou os transeuntes. — Achas que o Rousseau foi fiel à palavra?

— Porque é que não haveria de ser?

— Porque é um espião. O que significa que, inevitavelmente, mente.

— Tu também és um espião.

— Mas, até há pouco tempo atrás, trabalhava para o Don Anton Orsati. O mesmo Anton Orsati — acrescentou Keller — que está prestes a ajudar-nos com um trabalhinho sujo esta noite. E, se o Rousseau e os amigos dele do Grupo Alpha por acaso estiverem a observar, isso irá colocar o don, louvado seja, numa posição bastante delicada.

— O Rousseau não quer ter nada a ver com o que está prestes a acontecer aqui. Quanto ao don — continuou Gabriel —, ajudar-nos com este trabalhinho sujo, como tu tão duramente lhe chamas, foi a melhor decisão que tomou desde que te contratou.

— Então porquê?

— Porque, depois desta noite, ninguém poderá tocar-lhe sequer com um dedo. Ficará imune.

— Pensas como um criminoso.

— É o que se tem de fazer, no nosso ramo.

O empregado de mesa entregou o segundo copo. Keller encheu-o com pastis enquanto Gabriel consultava o telemóvel.

— Algum problema?

— A Madame Sophie e o Monsieur Antonov estão a discutir por causa do sítio onde pendurar os novos quadros.

— E andavam tão bem.

— Sim — disse Gabriel distraidamente, enquanto devolvia o telefone ao bolso do casaco.

— Achas que vão conseguir manter-se juntos?

— Tenho cá as minhas dúvidas.

Keller bebeu um pouco do pastis.

— Então, o que é que pretendes fazer com todos esses quadros quando a operação acabar?

— Tenho um pressentimento de que o Monsieur Antonov irá descobrir as suas raízes judias e fazer uma doação de grande notoriedade ao Museu de Israel.

— E os cinquenta milhões que deste à Olivia?

— Não lhe dei nada. Comprei dois quadros da galeria dela.

— Isso — disse Keller — é uma forma diferente de dizer a mesma coisa.

— É um preço bastante baixo a pagar se isso nos levar até ao Saladino.

— Se... — disse Keller.

— É imaginação minha — disse Gabriel —, ou passa-se alguma coisa entre ti e a...

— É imaginação tua.

— É uma rapariga muito bonita. E, quando tudo isto terminar, vai ficar bastante bem na vida.

— Tento manter-me afastado de raparigas que se agarram a traficantes de droga franceses abastados.

— Estás a esquecer-te de qual era a tua profissão?

Franzindo o sobrolho, Keller bebeu mais pastis.

— Então, o Monsieur Antonov é judeu?

— Aparentemente, sim.

— Nunca teria adivinhado.

Gabriel encolheu os ombros com indiferença.

— Eu sou um bocadinho judeu. Alguma vez te disse isso?

— Talvez tenhas dito.

Um silêncio abateu-se entre eles. Gabriel fitou taciturnamente a rua.

— Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— Não vai demorar muito mais.

Keller observou dois homens a saírem da parte de trás da carrinha e a entrarem na loja de eletrónica que pertencia a René Devereaux. Depois, olhou de soslaio para o relógio.

— Uns cinco minutos. Talvez menos.

 

Da mesa na esplanada do Au Petit Nice, Keller e Gabriel só conseguiram ver parcialmente o que aconteceu a seguir. Alguns segundos depois de os dois homens terem entrado na loja, vários clarões de luz transbordaram da montra para a rua. Foram ténues (na verdade, poderiam ter sido confundidos com o cintilar de uma televisão) e não houve absolutamente nenhum som. Pelo menos, nenhum que chegasse ao ruidoso café. Depois disso, a loja ficou completamente às escuras, à exceção de um pequeno sinal de néon na porta onde podia ler-se: FERMÉ. Os transeuntes fluíam ao longo do passeio como se nada de invulgar estivesse a acontecer.

Os olhos de Keller regressaram à carrinha, onde Giancomo estava a retirar uma grande caixa retangular de papelão do compartimento de trás. Era uma caixa com um formato estranho, manufaturada por uma fábrica de produtos de papel da Córsega, exatamente segundo as instruções fornecidas por Don Orsati. Era bastante evidente que estava vazia, pois Giancomo não teve qualquer problema em transportá-la para o outro lado da rua e atravessar a porta da frente da loja com ela nas mãos. Mas, alguns minutos mais tarde, quando a caixa reapareceu, veio carregada pelos dois homens que tinham entrado na loja primeiro, com Giancomo a segurar um dos lados como um cangalheiro. Os dois homens introduziram a caixa nas traseiras da carrinha e rastejaram para o interior atrás dela, enquanto Giancomo recuperava o seu lugar ao volante. Depois, a carrinha deslizou para longe do passeio, dobrou a esquina e desapareceu. Do interior do Au Petit Nice, ouviram-se festejos ruidosos. O Marselha marcara um golo contra o Lyon.

— Nada mau — disse Gabriel.

Keller olhou para as horas.

— Quatro minutos e doze segundos.

— Inaceitável segundo os padrões do Departamento, mas mais do que apropriado para esta noite.

— De certeza que não queres juntar-te à festa?

— Já tive o suficiente disso para a vida toda. Mas manda cumprimentos meus ao don — disse Gabriel. — E diz-lhe que o cheque está no correio.

Com isso, Keller partiu. Passado um momento, montado na Peugeot Satelis, passou a alta velocidade pelo Au Petit Nice, onde um homem de cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos estava sentado sozinho, interrogando-se quanto tempo passaria antes de Jean-Luc Martel descobrir que o chefe da sua divisão de estupefacientes ilícitos estava desaparecido.


36

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Celine era um Baia Atlantica 78 com três camarotes, um motor a gasóleo MTV capaz de atingir velocidades de cinquenta e quatro nós e uma proa longa e esguia que poderia receber um pequeno helicóptero. Todavia, Keller chegou à embarcação por meios menos vistosos, nomeadamente através de um barco insuflável Zodiac que fora deixado para ele numa marina isolada do estuário do Rhône, perto da cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer. Atou a lancha à plataforma para entrar na água que havia na popa e subiu até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo Marselha-Lyon na televisão por satélite. Vestido como estava agora, com a sua roupa corsa simples e sandálias empoeiradas, parecia nitidamente deslocado entre a decoração sumptuosa de couro e madeira. Giancomo estava na ponte com o timoneiro.

— O Marselha voltou a marcar — disse o don, desconsolado. Apontou o comando para o ecrã e desligou-o.

Keller passou os olhos pelo interior do salão.

— Esperava algo um pouco mais modesto.

— Estou demasiado velho para andar a deslocar-me pelo Mediterrâneo num barco de pesca. Para além disso, vais ficar contente por teres vinte e quatro metros de barco debaixo de ti hoje à noite. Parece que o vento vai soprar com força.

— A quem é que pertence?

— A um amigo de um amigo.

— E o timoneiro?

— É meu.

Keller baixou o olhar e, pela primeira vez, reparou em várias gotas de sangue que secavam no chão.

— Tinha uma arma na secretária quando eles entraram — explicou o don. — Levou um tiro no ombro.

— Vai sobreviver?

— Receio bem que sim.

— Ele viu a sua cara?

— Ainda não.

— Trouxe um martelo?

— Um bom — disse o don.

— Onde é que está o Devereaux?

— No quarto individual. Não quis que sujasse um dos quartos de casal.

Keller olhou novamente para o chão.

— Alguém devia mesmo limpar isto.

— Eu não — disse o don. — Não suporto ver sangue.

 

Um dos homens do don estava de guarda à porta do quarto individual. Do interior, não vinha qualquer som.

— Está consciente? — perguntou Keller.

— Vê por ti próprio.

Keller entrou e fechou a porta atrás de si. O quarto estava às escuras; cheirava a suor e a medo e vagamente a sangue. Acendeu a lâmpada de leitura embutida e apontou o cone de luz na direção da figura imóvel, esticada sobre a cama de solteiro. Fita adesiva prateada obscurecia-lhe os olhos e a boca. As mãos estavam atadas e presas ao tronco, as pernas e os tornozelos amarrados. Keller examinou o ferimento no ombro direito. Tinha havido uma perda significativa de sangue, mas, por agora, o fluxo parara. Ainda assim, a roupa de cama estava encharcada. O amigo de um amigo, pensou Keller, iria precisar de um novo colchão quando isto acabasse.

Arrancou-lhe a fita adesiva dos olhos. René Devereaux pestanejou rapidamente várias vezes. Então, quando Keller se inclinou para a luz, mostrando o seu rosto a Devereaux, o traficante de droga encolheu-se de medo. Aparentemente, conheciam-se mutuamente.

— Bonsoir, René. Obrigado por apareceres por cá. Como é que está o ombro?

Os seus olhos semicerraram-se, o medo evaporou-se. Devereaux estava a tentar enviar uma mensagem ao inglês da Córsega: não era homem para ser baleado, raptado e atado como uma ave de caça. Keller retirou a fita adesiva da boca de Devereaux, permitindo-lhe, assim, expressar os seus sentimentos,

— És um homem morto. Tu e esse corso gordo para quem trabalhas.

— Estás a referir-te ao Don Orsati?

— Que se foda o Don Orsati.

— Essas são palavras muito insensatas. Pergunto-me se te atreverias a proferi-las na cara do don.

— Cagava em cima do don. E do resto da família dele.

— Cagavas, a sério?

Keller saiu. Ao corso que se encontrava à saída da porta, disse:

— Pede a sua santidade que desça por um minuto.

— Está a ver o jogo.

— Tenho a certeza de que vai conseguir afastar-se da televisão — disse Keller. — E traz-me o martelo.

O corso subiu as escadas do barco e, passado um momento, com alguma dificuldade, Don Orsati desceu. Keller conduziu-o ao interior do camarote e exibiu-o para que René Devereaux o visse. O don sorriu perante o evidente desconforto de Devereaux.

— O Monsieur Devereaux tem uma coisa que gostaria de dizer-lhe — disse Keller. — Vá lá, René. Por favor diz ao Don Orsati o que me disseste há pouco.

Tendo sido recebido por silêncio, Keller acompanhou o don até à saída. Depois, pôs-se ameaçadoramente de pé por cima do traficante de droga cativo.

— É escusado dizer-te que não tens muitas opções. Podes contar-me o que eu quero saber, ou posso explicar ao don todas as coisas atrevidas que disseste sobre ele e a sua adorada família. E então... — Keller levantou as mãos para indicar a incerteza do destino de Devereaux perante um cenário tão carregado de emoções.

— Desde quando é que estás no ramo da informação? — perguntou Devereaux.

— Desde que mudei de carreira. Agora, estou a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Não ouviste dizer, René?

— Tu? Um espião inglês? Não acredito.

— Às vezes, eu próprio não acredito. Mas acontece que é verdade. E tu vais ajudar-me. Vais ser uma fonte confidencial e eu vou ser o teu agente superior.

— Não podes estar a falar a sério.

— Pensa nas tuas atuais circunstâncias. Não poderiam ser mais sérias. Tal como a nossa missão. Vais ajudar-me a encontrar o homem que tem andado a orquestrar todos os atentados terroristas aqui na Europa e na América.

— Como é que eu vou fazer isso? Sou um traficante de droga, pelo amor de Deus.

— Ainda bem que esclarecemos essa parte. Mas não és um traficante de droga qualquer, pois não? Traficante é uma palavra demasiado branda para o que tu fazes. Geres uma rede global inteira a partir daquela espelunca na Place Jean Jaurès. E fazes isso — disse Keller — para o Jean-Luc Martel.

— Quem? — perguntou Devereaux.

— O Jean-Luc Martel. O que é dono daqueles restaurantes todos e dos hotéis e que tem aquele cabelo.

— E a namorada inglesa bonita — disse Devereaux.

— Então conhece-lo mesmo.

— Claro. Costumava ir ao primeiro restaurante dele em Marselha. Ele era um zé-ninguém, na altura. Agora, é uma grande estrela.

— Graças à droga — disse Keller. — Haxixe, para ser mais específico. Haxixe que vem de Marrocos. Haxixe que tu distribuis por toda a Europa. O império do Martel colapsaria se não fosse pelo haxixe. Mas nunca te passaria pela cabeça excluí-lo do negócio, pois isso significaria que terias de encontrar um novo método para lavar cinco ou dez mil milhões por ano em lucros de droga. Os teus chamados «negócios legítimos» poderiam ser suficientes para te fazer parecer razoavelmente respeitável perante as autoridades fiscais francesas, mas nunca conseguirias lidar com todos os lucros de uma rede global de estupefacientes. Para isso, precisas de um verdadeiro conglomerado empresarial. Um conglomerado onde entram centenas de milhões de dólares por ano em receitas de caixa. Um conglomerado que adquire e constrói vastas quantidades de património imobiliário.

— E compra e vende quadros. — Após um silêncio, Devereaux acrescentou: — Soube que ela ia dar problemas assim que a conheci.

— Quem?

— Aquela cabra inglesa.

Keller fechou a mão direita num punho e dirigiu-o com toda a força para o ombro encharcado de sangue de Devereaux.

— Mas, voltando ao assunto que temos em mãos — disse, enquanto o francês se contorcia na cama em agonia. — Vais dizer-me tudo o que sabes sobre o Jean-Luc Martel. Os nomes dos vossos fornecedores em Marrocos. As rotas que utilizam para trazerem a droga para a Europa. Os métodos que usam para inserirem dinheiro na circulação financeira da JLM Enterprises. Tudo, René.

— E se eu concordar?

— Vamos gravar um vídeo — disse Keller.

— E se não concordar?

— Vais receber o tratamento JLM. E não estou a falar de um belo jantar nem de uma noite numa suíte de hotel luxuosa.

Devereaux conseguiu sorrir. Depois, bem do fundo da garganta, produziu uma bola abundante e gelatinosa de muco e cuspiu-a para o rosto de Keller. Com um canto da roupa de cama, Keller limpou calmamente a sujidade antes de sair para recuperar o martelo do corso. Golpeou Devereaux com ele várias vezes, concentrando os esforços no ombro direito e evitando totalmente a cabeça e o rosto. Depois, subiu as escadas até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo de futebol.

— Foi alguma coisa que ele disse ou que não disse?

— Foi alguma coisa que ele fez — respondeu Keller.

— Houve sangue?

— Um bocadinho.

— Ainda bem que esperaste até eu sair. Não suporto ver sangue.

Um festejo ribombante surgiu na televisão.

— Perdemos — disse o don melancolicamente.

— Sim — respondeu Keller. — Mas não percamos a esperança.


37

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Christopher Keller fez mais três visitas ao camarote mais pequeno do Celine: uma às onze, a segunda pouco depois da meia-noite e uma visita demorada com início à uma e meia da manhã que deixou René Devereaux, um calejado criminoso marselhês, com muito sangue nas mãos, a chorar descontroladamente e a implorar misericórdia. Keller fez-lhe a vontade, mas só com uma condição. Devereaux iria dizer-lhe tudo, para a câmara. Caso contrário, Keller partir-lhe-ia todos os ossos do corpo, lentamente, com cuidado e premeditação e pausas para renovação de energias e reflexão.

Já fizera enormes progressos nesse sentido. O ombro direito de Devereaux, no qual estava alojada uma bala, sofrera inúmeras fraturas. Adicionalmente, o cotovelo direto estava fraturado, tal como o esquerdo. Ambas as mãos estavam numa condição deplorável, e o ferimento no joelho direito, caso lhe fosse permitido sarar devidamente, provavelmente deixaria Devereaux com um coxear permanente a condizer com o de Saladino.

Deslocá-lo para o salão, onde fora montada uma câmara sobre um tripé, revelou-se um desafio. Giancomo puxou-o pelas escadas acima, enquanto Keller empurrava por baixo, oferecendo o apoio muitíssimo necessário para a perna arruinada. Foi providenciado conhaque, juntamente com um poderoso analgésico francês de venda livre que poderia fazer uma pessoa esquecer-se da falta de um membro. Keller ajudou Devereaux a vestir um casaco de marinheiro amarelo e, com um pente, arranjou-lhe o escasso cabelo fino. Então, ligou a câmara de vídeo e, depois de examinar cuidadosamente o plano, colocou a primeira questão:

— Como é que te chamas?

— René Devereaux.

— Qual é a tua profissão?

— Sou dono da loja de produtos eletrónicos da Place Jean Jaurès.

— Qual é a verdadeira natureza do teu trabalho?

— Droga.

— Onde é que conheceste o Jean-Luc Martel?

— Num restaurante em Marselha.

— Quem era o proprietário do restaurante?

— Philippe Renard.

— Qual era o verdadeiro negócio do Renard?

— Droga.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

— O que é que o Jean-Luc Martel faz agora?

— É proprietário de vários restaurantes, hotéis e estabelecimentos de venda a retalho.

— Qual é o verdadeiro negócio dele?

— Droga — disse René Devereaux.

 

Atracaram em Ajaccio às nove e meia. Daí, bastou uma agradável caminhada em redor da linha costeira curvilínea do golfo para chegar ao aeroporto. O voo seguinte para Marselha partia ao meio-dia. Keller chegou às onze e um quarto, depois de parar para um pequeno-almoço tardio e para comprar uma muda de roupa. Vestiu-a numa casa de banho do aeroporto e, depois, passou facilmente pela segurança sem nada na sua posse exceto a carteira, um passaporte britânico e o seu telemóvel do MI6, no qual havia um vídeo comprimido e fortemente encriptado do interrogatório de René Devereaux. Naquele momento, era provavelmente a informação mais importante de toda a guerra global contra o terrorismo.

Keller desligou o telefone antes da descolagem e não o voltou a ligar até estar a atravessar o terminal de Marselha. Mikhail estava à espera no exterior, na parte de trás da Maybach de Dmitri Antonov. Yaakov Rossman estava ao volante. Ouviram o interrogatório através do magnífico sistema sonoro do automóvel, enquanto se dirigiam para leste pela Autoroute.

— Deixaste escapar a tua verdadeira vocação — disse Mikhail. — Devias ter sido entrevistador de televisão. Ou inquisidor-geral.

— Arrependimento, meu filho.

— Achas que ele se vai arrepender?

— O Martel? Não sem dar luta.

— Não tem qualquer hipótese de se esconder deste vídeo. Agora, é nosso.

— Vamos ver — disse Keller.

Eram quase quatro da tarde quando a Maybach atravessou o portão da casa segura de Ramatuelle. Já no interior, Keller transferiu o ficheiro de vídeo para a rede informática operacional central. Passado um momento, o rosto de René Devereaux surgiu nos monitores.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

E assim continuou durante a maior parte de duas horas. Nomes, datas, locais, rotas, métodos, dinheiro... Tudo se resumia a dinheiro. Sujeito ao implacável interrogatório de Keller (e à ameaça, invisível no vídeo, do martelo), René Devereaux entregou os segredos mais preciosos da rede. Como o dinheiro era recolhido dos traficantes de rua. Como era carregado para a lavandaria que era a JLM Enterprises. E como, depois de limpo e passado, se dispersava. Tudo com um detalhe minucioso, de alta resolução. Não havia como esconder-se dele. Jean-Luc Martel estava na mira deles. Mas quem é que lhe ofereceria uma tábua de salvação? Paul Rousseau declarou que seria ele. Martel, disse, era um problema francês. Só uma solução francesa serviria.

E, portanto, com a ajuda de Gabriel, Rousseau preparou um clipe editado do interrogatório, com trinta e três segundos de duração. Era um teaser, um aperitivo. «Uma palmadinha de amor», como lhe chamou Gabriel. Martel estava rodeado da sua corte, no bar do seu restaurante do Porto Velho, quando o vídeo apareceu no seu telefone através de uma mensagem de texto anónima. O próprio telefone estava sob vigilância exaustiva, permitindo a Gabriel e Rousseau e ao resto da equipa observar as diversas tonalidades do alarme crescente de Martel enquanto o visualizava. Alguns segundos mais tarde, surgiu um segundo vídeo, apenas por segurança. Mostrava um breve encontro sexual entre Martel e Monique, a rececionista de Olivia na galeria. Fora gravado com o mesmo telefone que Martel tinha agora na mão e que, da perspetiva singular da equipa, parecia estar a tremer incontrolavelmente.

Foi neste ponto que Rousseau telefonou a Martel diretamente. Sem surpresa, este não atendeu, não deixando a Rousseau outra opção senão oferecer as suas condições numa mensagem de voz. Eram o equivalente a uma rendição incondicional. Jean-Luc Martel deveria apresentar-se imediatamente na Villa Soleil, sozinho, sem guarda-costas. Qualquer tentativa de fuga, advertiu Rousseau, seria intercetada. Os seus aviões e helicópteros seriam obrigados a aterrar, o seu iate a motor de quarenta e cinco metros seria bloqueado no porto.

— Obviamente — disse Rousseau — os seus movimentos e comunicações estão a ser monitorizados. Tem uma oportunidade de evitar a prisão e a ruína. Aconselho-o a aproveitá-la.

Com isso, Rouseau terminou a chamada. Transcorreram cinco minutos até que Martel ouviu a mensagem. Nesse momento, a espera começou. Gabriel colocou-se de pé diante dos monitores, com uma mão no queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, enquanto, no jardim, Christopher Keller esmagava o seu telefone do MI6 aos pedaços com um martelo. Rousseau observou a partir das portas francesas. Daria a Martel uma oportunidade para se salvar. Esperava que fosse suficientemente sensato para a aproveitar.


38

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

Dessa vez, deixaram-lhe o portão aberto, embora, seguindo a sugestão de Gabriel, tivessem bloqueado a estrada para lá da Villa Soleil, para o caso de ele mudar de ideias e tentar fugir para oeste ao longo da Côte d’Azur. Chegou, sozinho, às nove e um quarto dessa mesma noite, após uma série de telefonemas tensos com Paul Rousseau. A sua comparência na villa, alegou, não era, de forma alguma, uma admissão de nada. Não conhecia o homem do vídeo, as suas alegações eram absurdas. O seu negócio era o setor hoteleiro e o comércio de luxo, não a droga, e qualquer pessoa que alegasse o contrário enfrentaria graves consequências legais. Em resposta, Rousseau deixou claro que aquela não era uma questão legal, mas um assunto que envolvia a segurança nacional francesa. Durante um intercâmbio final tenso, Martel, na verdade, soou intrigado. Exigiu levar um advogado.

— Sem advogados — disse Rousseau. — Só atrapalham.

Mais uma vez, foi Roland Girard, do Grupo Alpha, quem o aguardou no pátio. Decididamente, a sua saudação foi menos cordial.

— Tem alguma arma consigo?

— Não seja ridículo.

— Levante os braços.

Relutantemente, Martel aceitou. Girard revistou-o minuciosamente, começando na parte de trás do pescoço e terminando nos tornozelos. Ao erguer-se, o agente do Grupo Alpha deu por si a fitar dois olhos escuros furiosos.

— Há alguma coisa que queira dizer-me, Jean-Luc?

Martel permaneceu em silêncio, algo inédito.

— Por aqui — disse Girard.

Levou Martel pelo cotovelo e conduziu-o até ao interior da villa. Christopher Keller aguardava no hall de entrada.

— Jean-Luc! Lamento imenso pelas circunstâncias do convite, mas precisávamos de atrair a sua atenção. — Foram as últimas palavras em francês que Keller proferiu. As restantes fluíram num inglês com sotaque britânico. — Há vidas em jogo, sabe, e não temos muito tempo. Por aqui, por favor.

Martel manteve-se imóvel.

— Passa-se alguma coisa, Jean-Luc?

— O senhor é...

— Não sou francês — interrompeu Keller. — E também não sou da ilha da Córsega. Foi tudo uma montagem feita especialmente para si. Receio bem que tenha sido alvo de um embuste bastante elaborado.

Atordoado, Martel seguiu Keller até à maior das salas de estar da villa, onde longas cortinas brancas ondulavam quais velas de navio empurradas pelo vento noturno. Natalie estava sentada na extremidade de um sofá, vestida com um fato de treino e os seus ténis verde-néon. Mikhail estava sentado à frente, com umas calças de ganga e um pulôver de algodão com decote em bico. Paul Rousseau estava a contemplar um dos quadros. E, no canto mais afastado da divisão, a sós na sua própria ilha privada, Gabriel examinava Jean-Luc Martel.

Foi Rousseau que, virando-se para trás, falou a seguir:

— Gostaria que pudéssemos dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não é. Quando olhamos para si, indagamo-nos sobre o motivo pelo qual fazemos o que fazemos. Sendo bastante honesto, a sua vida não é digna de proteção. Mas isso agora não é relevante. Precisamos da sua ajuda e, portanto, não temos outra opção senão acolhê-lo no nosso seio, por mais relutantemente que o façamos.

Os olhos de Martel saltitaram de rosto em rosto (o homem que conhecia como Monsieur Carnot, os Antonovs, a figura silenciosa que o observava do posto avançado solitário no canto da sala) até pousarem novamente em Rousseau.

— Quem é o senhor?

— O meu nome — respondeu Rousseau — não é importante. Na verdade, no nosso ramo de atividade, os nomes, realmente, não significam grande coisa, como tenho a certeza de que, neste momento, já se apercebeu.

— Para quem é que trabalha?

— Para um departamento do Ministério do Interior.

— A DGSI?

— Isso não é relevante. Efetivamente — acrescentou Rousseau —, o único aspeto a destacar quanto ao meu emprego é que não sou da polícia.

— E os outros? — perguntou Martel, olhando de relance para a divisão.

— São meus parceiros.

Martel olhou para Gabriel.

— Então, e ele?

— Pense nele como um observador.

Martel franziu o sobrolho.

— Porque é que eu estou aqui? Isto é sobre o quê?

— Droga — respondeu Rousseau.

— Já lhe disse, não estou envolvido com droga.

Rousseau expirou lentamente.

— Vamos saltar esta parte, sim? O Jean-Luc sabe como ganha a vida e nós também. Num mundo perfeito, estaria algemado neste preciso momento. Mas, escusado será dizer, este nosso mundo está longe de ser perfeito. É uma balbúrdia caótica e perigosa. Mas, o seu trabalho — disse Rousseau desdenhosamente — deixou-o numa posição singular para fazer alguma coisa a esse respeito. Estamos preparados para ser generosos se nos ajudar. E igualmente inclementes se não o fizer.

Martel endireitou os ombros e esticou-se para ficar um pouco mais alto.

— Esse vídeo — disse ele — não prova nada.

— Ouviu apenas uma pequena parte dele. O vídeo completo tem quase duas horas e é bastante extraordinário em termos de detalhe. Resumidamente, deixa a nu todos os seus segredos sujos. Se tal documento caísse nas mãos da polícia, certamente passaria os anos que lhe restam atrás das grades. Que é — acrescentou Rousseau enfaticamente — onde pertence. E se a gravação fosse dada a um jornalista zeloso que nunca acreditou no conto de fadas JLM, o impacto no seu império empresarial seria catastrófico. Todos os seus amigos poderosos, aqueles que suborna com comida e bebida e hospedagens de luxo, abandoná-lo-iam como ratos que fogem de um navio a afundar-se. Ninguém o protegeria.

Martel abriu a boca para responder, mas Rousseau prosseguiu.

— E depois há a questão da Galerie Olivia Watson. Tivemos oportunidade de analisar diversas transações da empresa. São, no mínimo, questionáveis. Principalmente aquelas quarenta e oito telas em branco que foram enviadas para o Freeport de Genebra. Colocou a Madame Watson numa posição insustentável. A galeria de arte dela, como o resto do seu império, é uma organização criminosa. Oh, suponho que seja possível para si evitar a forca, mas a sua esposa...

— Não é minha esposa.

— Oh, sim, desculpe — disse Rousseau. — Como é que devo referir-me a ela?

Martel ignorou a pergunta.

— Envolveram-na nisto?

— A Madame Watson não sabe de nada, e preferiríamos que assim continuasse. Não há necessidade de a arrastar para isto. Pelo menos, por agora. — Rousseau fez uma pausa, depois perguntou: — Como é que explicou a sua vinda aqui esta noite?

— Disse-lhe que tinha uma reunião de negócios.

— E ela acreditou?

— Porque é que não haveria de acreditar?

— Porque o Jean-Luc tem alguns antecedentes. — Rousseau fez um sorriso cúmplice. — O que faz no seu tempo livre não é da minha conta. Eu e o senhor somos franceses. Homens do mundo. Onde quero chegar é que não seria de todo problemático para nós se a Madame Watson ficasse com a impressão de que esteve com outra mulher esta noite.

— Não seria problemático para vocês — disse Martel —, mas para mim...

— Tenho a certeza de que vai pensar nalguma coisa para lhe dizer. Pensa sempre. Mas, voltando ao tema em questão — disse Rousseau. — Deveria ser evidente, neste momento, que o Jean-Luc foi alvo de uma operação cuidadosamente planeada. Agora, chegou o momento de passar para a próxima fase.

— A próxima fase?

— O prémio — disse Rousseau. — Vai ajudar-nos a encontrá-lo. E, se não o fizer, o objetivo da minha vida, de agora em diante, vai ser destruir o Jean-Luc Martel. E a Madame Watson. — Após um silêncio, Rousseau acrescentou: — Ou talvez a ideia de a Madame Watson sofrer pelos seus crimes não o incomode. Talvez ache esses sentimentos antiquados. Talvez não seja esse tipo de homem.

Martel retribuiu calmamente o olhar de Rousseau. Mas, quando os seus olhos pousaram novamente em Gabriel, a sua confiança pareceu vacilar.

— De qualquer forma — estava Rousseau a dizer —, agora pode ser um bom momento para ouvir o resto do interrogatório do René Devereaux. Não tudo, isso demoraria demasiado tempo. Apenas a parte relevante.

Olhou de soslaio para Mikhail, que premiu uma tecla de um computador portátil. Instantaneamente, o quarto expandiu-se com o som de dois homens a falarem em francês, um com um marcado sotaque corso, o outro como se estivesse em sofrimento físico.

— De onde é que vem a droga?

— De todo o lado. Turquia, Líbano, Afeganistão, de todo o lado.

— E o haxixe?

— O haxixe vem de Marrocos.

— Quem é o vosso fornecedor?

— Costumávamos ter vários. Agora trabalhamos com um homem. É o maior produtor do país.

— O nome dele?

— Mohammad.

— Mohammad quê?

— Bakkar.

Mikhail colocou a gravação em pausa. Rousseau olhou para Jean-Luc Martel e sorriu.

— Porque é que não começamos por aí? — disse. — Pelo Mohammad Bakkar.


39

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Há muitos motivos pelos quais um indivíduo pode aceitar trabalhar para um serviço secreto, poucos deles admiráveis. Alguns fazem-no por avareza, alguns por amor ou convicção política. E alguns fazem-no porque se sentem aborrecidos ou insatisfeitos ou têm sede de vingança por terem sido preteridos numa promoção, enquanto colegas que consideram invariavelmente inferiores são empurrados pela escada do sucesso. Com um pouco de adulação e um pote de dinheiro, essas almas desprezíveis podem ser convencidas a revelar os segredos que passam pelas pontas dos seus dedos ou através das redes informáticas que são contratados para manter. Agentes secretos profissionais não têm qualquer problema em aproveitar-se desses homens, mas, secretamente, desprezam-nos. Quase tanto quanto o homem que trai o seu país por motivos de consciência. Esses são os idiotas úteis do ofício. Para os profissionais, não existe forma de vida mais baixa.

O profissional nem sequer confia naqueles que oferecem voluntariamente os seus serviços, pois, frequentemente, é difícil avaliar os seus verdadeiros motivos. Em vez disso, prefere identificar um potencial recruta e, depois, dar o primeiro passo. Normalmente, aproxima-se com presentes, mas, por vezes, tem necessidade de utilizar métodos menos agradáveis. Consequentemente, o profissional está sempre à espreita de falhas e fraquezas: um caso extraconjugal, uma predileção por pornografa, uma indiscrição financeira. Essas são as chaves mestras do ofício. Destrancam qualquer porta. Para além disso, a coerção é um excelente clarificador de intenções. Ilumina os recantos obscuros do coração humano. O homem que espia porque não tem outra hipótese é um mistério menor do que um que entra numa embaixada com uma pasta repleta de documentos roubados. Ainda assim, nunca se pode confiar plenamente no confidente coagido. Inevitavelmente, tentará encontrar alguma forma de retribuir a injustiça que recaiu sobre ele, e só pode ser controlado durante o tempo em que o seu pecado original continuar a ser uma ameaça para ele. Por conseguinte, o colaborador e agente responsável por o controlar dão por si, invariavelmente, enredados num caso amoroso destinado ao fracasso.

Era nessa categoria de colaborador que Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se enquadrava. Não oferecera voluntariamente os seus serviços. Nem fora atraído para o festim através do poder da persuasão. Fora identificado, avaliado e selecionado como alvo através de uma operação elaborada e dispendiosa. A sua relação com Olivia Watson fora dilacerada, o seu parceiro de negócios fora espancado impiedosamente com um martelo, ele fora ameaçado com prisão e ruína. Apesar disso, continuava a ser necessário fazer um recrutamento. A coerção poderia abrir uma porta, mas fechar um acordo exigia habilidade e sedução. Um compromisso teria de ser alcançado. Precisavam de Jean-Luc Martel muito mais do que ele precisava deles. Traficantes de droga existiam com fartura. Mas Saladino era único.

Jean-Luc não se entregou facilmente ao seu destino, mas isso era de esperar; um homem que mata tanto o pai como o seu mentor não é um homem que se assuste facilmente. Esquivou-se, contra-atacou, fez as suas próprias ameaças. Contudo, Rousseau, não mordeu o isco. Foi o contraste perfeito: inofensivo na aparência, controlado no temperamento, tolerante perante as falhas. Martel testou a paciência de Rousseau muitas vezes, tal como quando exigiu garantias escritas, em papel timbrado oficial do Ministério do Interior, da concessão de imunidade para uma possível acusação, agora e para sempre, ámen. Não competia a Rousseau conceder tal clemência, pois estava a operar sem mandado do ministro, nem sequer conhecimento dos seus chefes da DGSI. E, portanto, sorriu perante a intransigência de Martel e, com um aceno de cabeça na direção de Mikhail, passou um momento ou dois do interrogatório marítimo de René Devereaux.

— Está a mentir — explodiu Martel quando o som se silenciou. — É uma fantasia completa.

Foi nesse ponto, recordaria mais tarde Gabriel (e as câmaras ocultas confirmaram que assim foi) que Martel começou a ceder. Instalou-se ao lado de Mikhail, uma escolha curiosa, e fitou o rosto de Natalie, que por sua vez pespegou os olhos no chão. Seguiu-se um longo silêncio, suficientemente longo para que Rousseau considerasse apropriado voltar a passar o fragmento relevante da gravação, o fragmento relativo a um tal de Mohammad Bakkar, um dos maiores produtores de haxixe de Marrocos (segundo alguns relatos, o maior), um homem que gostava de se autodenominar o rei das Montanhas do Rife, a região do país onde o haxixe é cultivado e processado para exportar para a Europa e para lá dela. O homem que, de acordo com René Devereaux, era o único e exclusivo fornecedor de Martel.

— Presumo — disse Rousseau tranquilamente — que já ouviu o nome.

E Martel, com um movimento mínimo da cabeça, confirmou que sim. Então, os olhos moveram-se de Natalie para Keller, que estava de pé atrás dela de forma protetora. Keller enganara-o, Keller traíra-o. E, contudo, parecia que Jean-Luc Martel via Keller como o seu único amigo na divisão.

— Porque é que não nos dá um pouco de contexto? — sugeriu Rousseau. — Afinal de contas, somos amadores. Pelo menos no que se refere ao negócio de estupefacientes. Ajude-nos a entender como tudo funciona. Ilumine-nos quanto às maldades do seu mundo.

O pedido de Rousseau não era tão inocente como parecia. René Devereaux já fornecera a Keller informações detalhadas sobre as ligações de Mohammad Bakkar à rede. Mas Rousseau queria pôr Martel a falar, o que lhes permitiria testar a veracidade das suas palavras. Era de esperar uma certa quantidade de engano. Rousseau exigiria verdade absoluta apenas quando isso fosse importante.

— Fale-nos um pouco sobre esse tal Mohammad Bakkar — estava a dizer. — É baixo ou alto? É magro ou é gordo como eu? Tem algum cabelo ou é careca? Tem uma mulher ou duas? Fuma? Bebe? É religioso?

— É baixo — respondeu Martel passado um momento. — E, não, não bebe. O Mohammad é religioso. Muito religioso, na verdade.

— Acha isso surpreendente? — perguntou Rousseau rapidamente, aproveitando-se do facto de Martel ter, finalmente, respondido a uma questão. — Que um produtor de haxixe seja um homem religioso?

— Eu não disse que o Mohammad Bakkar era produtor de haxixe. O negócio dele são as laranjas.

— Laranjas?

— Sim, laranjas. Portanto, não, não acho surpreendente que seja um homem religioso. As laranjas são um modo de vida no Rife. O rei tem tentado encorajar os produtores a cultivar outros produtos, mas as laranjas são mais lucrativas do que a soja e os rabanetes. Muito mais — acrescentou Martel com um sorriso.

— Talvez o rei se devesse esforçar mais.

— Na minha opinião, o rei prefere que as coisas fiquem como estão.

— Então porquê?

— Porque as laranjas levam vários milhares de milhões de dólares por ano para o país. Ajudam a manter a paz. — Baixando a voz, Martel acrescentou: — O Mohammad Bakkar não é o único homem religioso de Marrocos.

— Há muitos extremistas em Marrocos?

— Vocês devem saber isso melhor do que eu — disse Martel.

— O ISIS tem muitas células em Marrocos?

— Dizem que sim. Mas o rei não gosta de falar disso — acrescentou. — O ISIS é mau para o turismo.

— O Jean-Luc tem um negócio em Marrocos, não tem? Um hotel em Marraquexe, se não estou em erro.

— Dois — vangloriou-se Martel.

— Como é que vai o negócio?

— Fraco.

— Lamento ouvir isso.

— Vamos dar a volta à situação.

— Tenho a certeza que sim. E a que é que atribui esta queda no negócio? — perguntou Rousseau. — É o ISIS?

— Os atentados nos hotéis da Tunísia tiveram um grande impacto nas nossas reservas. As pessoas temem que Marrocos venha a seguir.

— É seguro para os turistas irem até lá?

— É seguro — disse Martel — até deixar de ser.

Rousseau permitiu a si próprio um sorriso perante a perspicácia da observação. Depois, assinalou que os interesses empresariais de Martel lhe permitiam entrar e sair de Marrocos, um famigerado país produtor de droga, sem levantar suspeitas. Martel, encolhendo os ombros, não contestou a conclusão de Rousseau.

— Recebe o Mohammad Bakkar no seu hotel em Marraquexe?

— Nunca.

— Porque não?

— Ele não gosta de Marraquexe. Ou daquilo em que Marraquexe se tornou, diria eu.

— Demasiados estrangeiros?

— E homossexuais — disse Martel.

— E ele não gosta de homossexuais devido às suas crenças religiosas?

— Suponho que sim.

— Habitualmente, onde é que se encontra com ele?

— Em Casa — disse Martel, utilizando a abreviatura local para Casablanca — ou em Fez. Tem um riad no coração da medina. Também é proprietário de várias villas no Rife e no Médio Atlas.

— Desloca-se muito de um lado para o outro?

— As laranjas são um negócio perigoso.

Rousseau sorriu novamente. Nem mesmo ele era imune ao imenso charme de Martel.

— E, quando se encontra com o Monsieur Bakkar, de que é que falam?

— Do Brexit. Do novo presidente americano. Das perspetivas para a paz no Médio Oriente. O costume.

— Obviamente — disse Rousseau —, está a brincar.

— Não, de todo. O Mohammad é bastante inteligente e interessa-se pelo mundo para lá do Rife.

— Como é que descreveria a ideologia política dele?

— Não é um admirador do Ocidente. Cultiva um particular ressentimento em relação à França e à América. Por norma, tento não proferir a palavra Israel na presença dele.

— Enraivece-o?

— Pode-se dizer que sim.

— E, no entanto, faz negócios com um homem assim.

— As laranjas dele — disse Martel — são de muito boa qualidade.

— E, quando acabam de falar do estado do mundo, de que é que falam?

— De preços, horário de produção, datas de entrega, esse tipo de coisas.

— Os preços flutuam?

— Oferta e procura — explicou Martel.

— Há alguns anos — continuou Rousseau — reparámos numa mudança evidente na forma como as laranjas estavam a sair do Norte de África. Em vez de virem através do Mediterrâneo, uma ou duas de cada vez, a bordo de pequenas embarcações, começaram a chegar toneladas de laranjas em grandes navios de carga, todos provenientes de portos da Líbia. Houve um súbito excedente no mercado? Ou há alguma outra razão para explicar a mudança na estratégia?

— A segunda opção — disse Martel.

— E qual foi essa razão?

— O Mohammad decidiu unir-se a um parceiro.

— Uma pessoa física?

— Sim.

— Suponho que teria de ser um homem, porque alguém como o Mohammad Bakkar nunca lidaria com uma mulher.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Esse parceiro queria assumir uma postura mais agressiva no mercado?

— Muito mais agressiva.

— Porquê?

— Porque queria maximizar os lucros rapidamente.

— Encontrou-se com ele?

— Duas vezes.

— O nome dele?

— Khalil.

— Khalil quê?

— Só isso, simplesmente Khalil.

— Era marroquino?

— Não, definitivamente não era marroquino,

— De onde era?

— Nunca disse.

— E se tivesse de arriscar um palpite?

Jean-Luc Martel encolheu os ombros.

— Diria que era iraquiano.


40

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Foi evidente para toda a gente na sala (e, uma vez mais, as câmaras ocultas assim o confirmaram) que Jean-Luc Martel não percebeu o significado das palavras que acabara de proferir. Diria que era iraquiano... Um iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido, sem patronímico nem um gentílico ancestral, apenas Khalil. O mesmo Khalil que encontrara um parceiro em Mohammad Bakkar, um produtor de haxixe de profunda fé islâmica que odiava a América e o Ocidente e se enfurecia perante a simples menção de Israel. O Khalil que queria maximizar lucros forçando a entrada de mais produto no mercado europeu. Gabriel, o observador silencioso do drama que concebera e produzira, advertiu a si próprio para não se precipitar para uma conclusão prematura. Era possível que o homem que se autodenominava Khalil não fosse o homem de que andavam à procura, que fosse um mero criminoso banal sem outros interesses a não ser fazer dinheiro; que fosse um gambozino que lhes faria desperdiçar tempo e recursos preciosos. Ainda assim, até mesmo Gabriel teve dificuldade em controlar o bater desenfreado do seu coração. Ele puxara a ponta solta, unira os pontos e o rasto tinha-o conduzido até ali, à antiga casa de um inimigo derrotado. Contudo, os outros membros da sua equipa pareciam totalmente indiferentes à revelação de Martel. Natalie, Mikhail e Christopher Keller estavam, cada um deles, absortos nos seus pensamentos e Paul Rousseau aproveitara aquele momento para carregar o seu primeiro cachimbo. Passado um momento, o seu isqueiro acendeu-se e uma nuvem de fumo rolou sobre as duas cenas venezianas de Guardi. Gabriel, o restaurador, estremeceu involuntariamente.

Se Rousseau ficou minimamente intrigado pelo iraquiano que se autodenominava Khalil, não revelou qualquer sinal exterior disso. Khalil era um pensamento secundário. Khalil não tinha qualquer importância. Rousseau estava mais interessado, ou assim parecia, nos aspetos práticos da relação de Martel com Mohammad Bakkar. Quem dirigia as operações? Era isso que ele queria saber. Quem ocupava a posição superior? Era Martel, o distribuidor, ou Bakkar, o produtor marroquino?

— Não percebe muito de negócios, pois não?

— Sou um académico — desculpou-se Rousseau.

— É uma negociação — explicou Martel. — Mas, em última análise, o produtor ocupa a posição superior.

— Porque pode excluir o distribuidor a qualquer momento?

— Correto.

— O Jean-Luc não conseguiria encontrar outra fonte de droga?

— Laranjas — disse Martel.

— Ah, sim, laranjas — concordou Rousseau.

— Não é assim tão fácil.

— Pela qualidade das laranjas do Mohammad Bakkar?

— Pelo facto de o Mohammad Bakkar ser um homem com poder e influência consideráveis.

— Desencorajaria outros produtores a venderem-lhe o seu produto?

— Intensamente.

— E quando o Mohammad Bakkar lhe disse que queria aumentar drasticamente a quantidade de laranjas que estava a enviar para a Europa?

— Aconselhei-o a não o fazer.

— Porquê?

— Por inúmeras razões.

— Tais como?

— Grandes carregamentos são perigosos por natureza.

— Porque é mais fácil para as autoridades encontrarem-nos?

— Obviamente.

— Que mais?

— Estava preocupado com a possibilidade de saturarmos o mercado.

— E, por conseguinte, fazer cair o preço das laranjas na Europa Ocidental.

— Oferta e procura — disse Martel novamente, com um encolher de ombros.

— E quando mencionou essas preocupações?

— Deu-me uma escolha muito simples.

— Pegar ou largar?

— Com todas as letras.

— E o Jean-Luc pegou — disse Rousseau.

Martel ficou em silêncio. Rousseau mudou de ângulo abruptamente.

— O envio — disse ele. — Quem é o responsável pelo envio?

— O Mohammad. Ele põe a embalagem no correio e nós vamos buscá-la do outro lado.

— Presumo que ele lhe diz quando esperar a encomenda.

— Claro.

— Quais são os métodos preferidos dele?

— Antigamente, usava barcos pequenos para trazer a mercadoria diretamente através do Mediterrâneo, de Marrocos para Espanha. Depois, os espanhóis apertaram o controlo na costa, portanto ele começou a movê-la através do Norte de África para os Balcãs. Era uma viagem longa e onerosa. Muitas laranjas desapareciam pelo caminho. Principalmente quando chegavam ao Líbano e aos Balcãs.

— Eram roubadas por gangues criminosos locais?

— As máfias sérvia e búlgara gostam bastante de citrinos — disse Martel. — O Mohammad passou anos a tentar arranjar uma forma de fazer as laranjas chegarem à Europa sem terem de atravessar esse território. E, depois, caiu-lhe uma solução no colo.

— A solução — disse Rousseau — foi a Líbia.

Martel assentiu lentamente com a cabeça.

— Foi um sonho tornado realidade, possibilitado pelo presidente francês e pelos amigos de Washington e Londres que declararam que o Kadhafi tinha de cair. Assim que o regime se desmoronou, a Líbia abriu as portas da loja. Era o Oeste Selvagem. Sem governo central, sem polícia, sem qualquer tipo de autoridade exceto as milícias e os psicopatas islâmicos. Mas havia um problema.

— Qual era?

— As milícias e os psicopatas islâmicos — disse Martel.

— Não aprovavam as laranjas?

— Não era isso. Queriam uma parte. Caso contrário, não deixariam as laranjas chegarem aos portos líbios. O Mohammad precisava de um parceiro local, alguém que pudesse manter as milícias e guerreiros sagrados na linha. Alguém que conseguisse garantir que as laranjas encontravam o caminho até ao interior dos navios de carga.

— Alguém como o Khalil? — perguntou Rousseau.

Martel não deu qualquer resposta.

— Lembra-se de um navio chamado Apollo? — perguntou Rousseau. — Os italianos apreenderam-no ao largo da Sicília com dezassete toneladas de laranjas nos porões.

— O nome — disse Martel dissimuladamente — é-me familiar.

— Suponho que a carga era sua.

Martel, com o seu olhar inexpressivo, confirmou que era.

— Houve outros navios antes do Apollo que não tenham sido intercetados?

— Vários.

— E, recorde-me — disse Rousseau, fingindo confusão —, quem é que suporta o custo de uma apreensão? O produtor ou o distribuidor?

— Não posso vender laranjas se não as receber.

— Então, o que me está a dizer, e por favor desculpe-me, Monsieur Martel, não pretendo insistir excessivamente na questão, é que o Mohammad Bakkar perdeu, pessoalmente, milhões de euros quando o Apollo foi apreendido?

— Correto.

— Deve ter ficado furioso.

— Bem mais do que isso — disse Martel. — Convocou-me para ir a Marrocos e acusou-me de filtrar a informação aos italianos.

— Porque é que faria uma coisa dessas?

— Porque estava contra os grandes carregamentos desde o início. E a melhor forma de os fazer parar seria perder um ou dois navios.

— Foi o Jean-Luc o responsável pela fuga de informação que conduziu os italianos até ao Apollo?

— Claro que não. Disse ao Mohammad de forma absolutamente categórica que o problema estava do lado dele.

— Com isso — disse Rousseau — referia-se ao Norte de África.

— À Líbia — disse Martel.

— E quando as apreensões continuaram?

— O Khalil conteve as fugas. E as laranjas começaram a chegar novamente em segurança.

 

Ei-lo novamente. O nome do novo parceiro agressivo de Mohammad Bakkar. O homem que Paul Rousseau andara a evitar. Depois de uma pausa prolongada para carregar e acender outro cachimbo, indagou quando é que Jean-Luc se encontrara pela primeira vez com esse iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido. Sem patronímico nem gentílico ancestral. Só Khalil. Martel disse que fora em 2012. Na primavera, pensava. No final de março, talvez, mas não sabia precisar com certeza. Contudo, Rousseau, não acreditou. Martel era dono e senhor de uma vasta organização criminosa, cujo funcionamento conhecia de cor e salteado. Certamente, insistiu Rousseau, conseguia recordar-se da data de tão memorável encontro.

— Foi no dia vinte e nove de março.

— E as circunstâncias? O Jean-Luc foi convocado ou era um encontro agendado previamente?

Martel indicou que a sua presença fora solicitada.

— E, geralmente, como é que isso se faz? É uma questão menor, sabe, mas estou curioso.

— Deixam-me uma mensagem no meu hotel em Marraquexe.

— Uma mensagem de voz?

— Sim.

— E a primeira reunião em que o Khalil esteve presente?

— Foi em Casa. Voei para lá no meu avião e instalei-me no hotel. Algumas horas depois, disseram-me onde ir.

— O Mohammad telefonou-lhe pessoalmente?

— Um dos homens dele. O Mohammad não gosta de usar o telefone para tratar de negócios.

— E o hotel? Qual foi, por favor?

— O Sofitel.

— E foi sozinho?

— A Olivia foi comigo.

Rousseau franziu o sobrolho pensativamente.

— Leva-a sempre consigo?

— Sempre que possível.

— Porquê?

— As aparências são importantes.

— Ela foi à reunião?

— Não. Ficou no hotel enquanto eu fui a Anfa.

— Anfa?

Era um enclave abastado numa colina a oeste do centro, explicou Martel, uma zona de avenidas ladeadas de palmeiras e villas amuralhadas onde o preço por metro quadrado rivalizava com Londres e Paris. Mohammad Bakkar era dono de uma propriedade aí. Como de costume, Martel teve de se submeter a uma revista antes de ser autorizado a entrar. Foi, recordava agora, mais invasiva do que o normal. No interior, esperava encontrar Bakkar sozinho, como era habitual nas reuniões. Em vez disso, havia outro homem presente.

— Descreva-o, por favor.

— Alto, ombros largos, rosto e mãos grandes.

— A pele?

— Escura, mas não muito.

— Como é que estava vestido?

— À ocidental. Fato escuro, camisa branca, sem gravata.

— Cicatrizes ou características distintivas?

— Não.

— Tatuagens?

— Só consegui ver-lhe as mãos.

— E?

Martel abanou a cabeça.

— Foram apresentados?

— Sucintamente.

— Ele falou?

— Comigo não. Só com o Mohammad.

— Em árabe, presumo.

— Sim.

— O Mohammad Bakkar fala árabe magrebino.

— Darija — disse Martel.

— E o outro homem? Também falava darija?

Martel abanou a cabeça.

— Consegue perceber a diferença?

— Aprendi a falar um pouco de árabe quando era criança. Com a minha mãe — acrescentou. — Portanto, sim, consigo perceber a diferença. Falava como alguém do Iraque.

— E não se interrogou sobre a origem desse homem, dado que o ISIS tinha conquistado grande parte do Iraque e da Síria e estabelecido uma base de operações na Líbia? Ou talvez não quisesse saber — acrescentou Rousseau desdenhosamente. — Talvez seja melhor não fazer demasiadas perguntas numa situação dessas.

— Regra geral — disse Martel —, podem ser más para o negócio.

— Principalmente quando o ISIS e semelhantes estão envolvidos. — Rousseau controlou a raiva. — E a segunda reunião? Quando foi?

— Em dezembro passado.

— Depois dos atentados de Washington?

— Sem dúvida.

— A data exata, por favor.

— Creio que foi no dia dezanove.

— E as circunstâncias?

— Foi na nossa reunião anual de inverno.

— Onde é que teve lugar?

— O Mohammad estava sempre a mudar a localização. Acabámos por nos encontrar numa pequena povoação no topo do Rife.

— Qual era a ordem de trabalhos?

— Previsões de preços e datas de entrega para o novo ano. O Mohammad e o iraquiano queriam introduzir ainda mais produto no mercado. Muito produto. E rapidamente.

— Como é que ele estava vestido dessa vez?

— Como um marroquino.

— O que é que isso significa?

— Tinha uma jilaba.

— Uma túnica tradicional muçulmana com capuz.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o rosto dele estava mais magro e anguloso.

— Tinha perdido peso?

— Cirurgia plástica.

— Havia mais alguma coisa diferente nele?

— Sim — disse Martel. — Ao caminhar, coxeava.


CONTINUA

26

TELAVIVE – SAINT-TROPEZ

Assim sendo, faltava apenas o dinheiro. O dinheiro necessário para levar a operação de Gabriel da fase de produção à cena. Os duzentos ou trezentos milhões para adquirir uma coleção de arte vistosa. Os doze milhões para uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e os cinco milhões, mais coisa menos coisa, para a tornar apresentável. E, depois, havia o dinheiro para todos os pequenos extras da vida. Os carros, as roupas, as joias, os restaurantes, as viagens de avião privado, as festas luxuosas. Gabriel tinha um número em mente, ao qual acrescentou outros vinte milhões, para o caso de serem necessários. As operações, como a própria vida, eram incertas.

— Isso é muito dinheiro — disse o primeiro-ministro.

— Quinhentos milhões já não dão para tanta coisa como antigamente.

— Onde fica o banco?

— Temos vários à escolha, mas o Banco Nacional do Panamá é a nossa melhor opção. Conseguimos fazer tudo lá — explicou Gabriel — e a ameaça de retaliação é reduzida, depois do escândalo com os Papéis do Panamá. Ainda assim, vamos deixar algumas pistas falsas para cobrir o nosso rasto.

— Quem é que vai culpar?

— Os norte-coreanos.

— Porque não os iranianos?

— Da próxima vez — prometeu Gabriel.

Os fundos visados estavam distribuídos por oito contas separadas, todas em nome da mesma empresa de investimentos fantasma. Faziam parte de uma vasta fortuna de dinheiro furtado, controlada pelo governante da Síria e pelos seus amigos e parentes próximos. Pouco tempo antes de se tornar chefe, Gabriel localizara e depois confiscara a maior parte da fortuna, numa tentativa de moderar a conduta assassina do governante na guerra civil síria. Mas fora obrigado a devolver o dinheiro, mais de oito mil milhões de dólares, em troca de uma única vida humana. Pagara o resgate sem arrependimento: tinha sido, dizia sempre, o melhor negócio que alguma vez fizera. Ainda assim, tinha estado à procura de uma desculpa, qualquer desculpa, para ter a última palavra. Encontrar Saladino era um motivo tão bom como qualquer outro.

Gabriel não devolvera os oito mil milhões diretamente ao governante sírio. Depositara-o, conforme fora instruído a fazer, no Gazprombank, em Moscovo, por conseguinte colocando-o, na prática, nas mãos do czar, o benfeitor e amigo mais próximo do governante sírio. O czar tirara metade do dinheiro para si: taxas de serviço, despesas de transporte, envio e manutenção. Os restantes fundos, ligeiramente superiores a quatro mil milhões de dólares, tinham sido depositados numa série de contas secretas na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein, Dubai, Hong Kong e, claro, no Banco Nacional do Panamá.

Gabriel sabia disso porque, com o auxílio de uma unidade altamente sigilosa de hackers do Departamento, observara cada uma das movimentações do dinheiro. A unidade não tinha nome oficial porque, oficialmente, não existia. Aqueles que tinham sido informados do seu trabalho referiam-se a ela unicamente como «o Minyan», pois era constituída por dez elementos, todos do sexo masculino. Premindo, simplesmente, algumas teclas do computador, conseguiam deixar uma cidade às escuras, cegar os radares de um centro de controlo aéreo ou fazer as turbinas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem furiosa e descontroladamente. Em suma, tinham a capacidade de virar as máquinas contra os seus amos. Em privado, Uzi Navot referia-se ao Minyan como dez boas razões pelas quais ninguém no seu perfeito juízo alguma vez usaria um computador ou um telemóvel.

O Minyan trabalhava numa sala ao fundo do mesmo corredor que albergava a divisão onde a equipa de Gabriel estava a fazer os retoques finais do planeamento pré-operacional. O seu líder formal era um miúdo chamado Ilan. Era o equivalente cibernético de Mozart. Primeiro código informático aos cinco, primeiro hack aos oito, primeira operação secreta contra os iranianos aos vinte e um. Era magro como um indigente e tinha a palidez macilenta de alguém que não saía muito para o exterior.

— Basta-me carregar num botão — disse com um sorriso travesso — e puf: o dinheiro desaparece.

— Sem deixar impressões digitais?

— Só norte-coreanas.

— E não há nenhuma forma de conseguirem seguir o rasto do dinheiro do Banco do Panamá para o HSBC em Paris?

— Nem pensar.

— Lembra-me — disse Gabriel — para guardar o meu dinheiro debaixo do colchão.

— Guarda o teu dinheiro debaixo do colchão.

— Era um pedido retórico, Ilan. Não queria realmente que me lembrasses.

— Oh.

— Tens de sair para o mundo real de vez em quando.

— Isto é o mundo real.

Gabriel fitou o ecrã do computador. Ilan também o fitou.

— Então? — perguntou Gabriel.

— Então o quê?

— Estás à espera de quê?

— De autorização para roubar quinhentos milhões de dólares.

— Isto não é roubar.

— Duvido que os sírios vejam isso da mesma forma. Ou os panamenhos.

— Carrega no botão, Ilan.

— Ia sentir-me melhor se fosses tu a fazê-lo.

— Qual é?

Ilan indicou a tecla enter. Gabriel premiu-a uma vez. Depois, caminhou até ao fundo do corredor e informou a sua equipa das notícias. O financiamento necessário tinha chegado. Estavam em ação.

 

Deixou-se ver pela primeira vez na semana seguinte, na quarta-feira, a sair da Bonhams, na New Bond Street, com Julian Isherwood no seu encalço. Quis a sorte (ou, olhando para trás, talvez não tivesse sido, de todo, sorte) que Amelia March da ARTnews estivesse no passeio nesse momento, a matar tempo para o encontro agendado para as duas horas com o presidente do departamento de pós-guerra e contemporânea da Bonhams. Era uma jornalista de arte, não uma verdadeira jornalista, mas tinha faro para uma boa história e olho para o pormenor. Alto, elegante, bastante louro, mais para o pálido, sem qualquer cor nos olhos. O seu casaco e sobretudo eram perfeitos, o perfume cheirava a dinheiro. Achou estranho que estivesse na companhia de um fóssil como Julian. Aparentava ter um gosto mais virado para o moderno, em vez de anjos, santos e mártires. Isherwood fez uma apresentação apressada antes de enfiar o seu cúmplice no banco de trás de uma limusina Jaguar que os aguardava. Dmitri Qualquer Coisa. Só podia.

No interior da Bonhams, Amelia conseguiu apurar que Isherwood e o amigo alto e pálido tinham passado várias horas com Jeremy Crabbe, o especialista em Grandes Mestres da casa de leilões. Localizou Jeremy no Wilton mais tarde nessa mesma noite. Conversaram como dois espiões num café de Viena no pós-guerra.

— O nome é Antonov. Dmitri Antonov. Russo, suponho, mas o assunto não veio à baila na conversa informal. Está completamente a nadar em dinheiro. Trabalha em qualquer coisa no setor dos recursos naturais. Não é o que fazem todos? — disse Jeremy, arrastando a voz. — O Julian agarrou-se a ele como uma lapa ao casco de um navio. Aparentemente, age tanto na qualidade de vendedor como de consultor. Uma relação bem confortável, financeiramente falando. Parece que o Dmitri tirou vários quadros das mãos do Julian e agora andam à caça grossa. Mas não me cites em relação a isso. Na verdade, não me cites em relação a nada. Isto é tudo off the record. Estritamente entre nous, minha querida.

Amelia concordou em manter a informação confidencial, mas Jeremy não foi tão discreto. Na verdade, disse a toda a gente no bar, incluindo a Oliver Dimbleby. No final da noite, era o único tema de conversa entre todos ali presentes.

Em meados de março, ambos foram vistos na Christie’s e na Sotheby’s. Também fizeram uma visita à galeria de Oliver na Bury Street, onde, após uma hora de negociação inócua, se comprometeram com a aquisição de uma paisagem de uma duna montanhosa do pintor holandês Jacob van Ruisdael, de duas cenas de canais venezianos de Francesco Guardi e de um funeral de Zelotti. Roddy Hutchinson vendeu-lhe cinco quadros no total, incluindo uma natureza morta com fruta e um lagarto de Ambrosius Bosschaert II. No dia seguinte, Amelia March publicou um pequeno artigo sobre um jovem russo que andava a agitar as águas do mercado de arte londrino. Julian Isherwood, na qualidade de porta-voz do russo, recusou tecer quaisquer comentários.

— Quaisquer compras efetuadas pelo meu cliente foram privadas — disse ele — e continuarão a sê-lo.

O início de abril viu Isherwood e o seu amigo russo do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, onde a sua chegada foi ansiosamente antecipada. Visitaram as casas de leilões e as galerias, jantaram em todos os restaurantes certos e até assistiram a um musical na Broadway. Um colunista de mexericos do Post relatou que adquiriram vários quadros de Grandes Mestres da Otto Naumann Lda., na East Eightieth Street, mas, uma vez mais, Isherwood balbuciou qualquer coisa sobre o desejo de privacidade do seu cliente. Segundo constava, esse desejo não era assim tão intenso. Quem se encontrou com ele ficou com a impressão de que era um homem que gostava de ser visto. O mesmo se aplicava à bonita jovem (aparentemente era sua esposa, mas tal nunca foi irrefutavelmente provado) que o acompanhou à América. Era esbelta, morena, francesa e profundamente antipática.

— Não perdeu uma única oportunidade de se ver ao espelho — disse o gerente de uma joalharia exclusiva da Quinta Avenida. — Uma verdadeira peça.

Mas quem era aquele homem chamado Dmitri Antonov? E, talvez mais importante do que isso, de onde vinha tanto dinheiro? Tornou-se rapidamente no foco de muitos rumores ao estilo de Gatsby, alguns maliciosos, outros bastante certeiros. Dizia-se que matara um homem, que matara muitos homens, e que amealhara a sua fortuna ilicitamente, tudo coisas que, por acaso, eram verdade. Não que isso o tornasse menos apetecível para aqueles que faziam da venda de arte a sua profissão. Não se importavam muito com o modo como ganhava dinheiro, desde que o cheque chegasse a horas e não houvesse problemas por parte do banco. Não havia. Tinha os seus fundos respeitavelmente depositados no HSBC de Paris, mas, curiosamente, todas as suas aquisições eram enviadas para um cofre no Freeport de Genebra.

— É um daqueles — disse uma mulher que trabalhava no departamento de negócios da Sotheby’s. Um superior recordou-a calmamente que «aqueles» eram os que mantinham lugares como a Sotheby’s a funcionar.

O cofre no Freeport era o mais parecido que tinha com uma morada permanente. Em Londres, vivia no Dorchester, em Paris no Hôtel de Crillon. E quando os negócios o levavam até Zurique, só a suíte Terrazza no Dolder Grand servia. Até mesmo Julian Isherwood, que comunicava com ele através de telemóvel e mensagens de texto, alegava não saber onde ele estava de um dia para o outro. Mas havia rumores (aqui, uma vez mais, tratavam-se apenas de rumores) de que adquirira um castelo para si algures em França.

— Está a usar o Freeport como armazém temporário — sussurrou Isherwood ao ouvido de Oliver Dimbleby. — Há qualquer coisa grande em preparação. — Depois, Isherwood obrigou Oliver a jurar segredo absoluto, garantindo, dessa forma, que a notícia se tornaria global até à manhã seguinte.

Mas onde, em França? Mais uma vez, a fábrica de boatos começou a funcionar pois, no dia em que o homem chamado Dmitri Antonov deixou Nova Iorque, surgiu um pequeno artigo no Nice-Matin sobre uma certa propriedade imobiliária célebre, perto de Saint-Tropez. Conhecida como Villa Soleil, o extenso complexo à beira-mar na Baie de Cavalaire fora, em tempos, propriedade de Ivan Kharkov, o oligarca e traficante de armas russo morto a tiro à porta de um exclusivo restaurante em Saint-Tropez. Durante quase uma década, a propriedade estivera nas mãos do governo francês. Agora, por motivos nunca esclarecidos, o governo estava subitamente ansioso por se desfazer da Villa Soleil. Aparentemente, fora encontrado um comprador. Apesar dos árduos esforços, o Nice-Matin ainda não fora capaz de o identificar.

A renovação da propriedade começou imediatamente. De facto, no dia seguinte à publicação do artigo, um exército de pintores, eletricistas, pedreiros e paisagistas aterraram na Villa Soleil e aí permaneceram, sem interrupções, até que o grandioso palácio à beira-mar se tornou novamente habitável. A natureza empreendedora da mão-de-obra provocou uma dose de ressentimento significativa entre os vizinhos, todos eles veteranos da construção na Provença. Até mesmo Jean-Luc Martel, que vivia numa grandiosa villa no lado oposto da baía, ficou impressionado com a velocidade com que o projeto foi terminado. Gabriel e a equipa sabiam disso pois, com a ajuda da poderosa NSA americana, estavam agora a par de todas as comunicações privadas de Martel, incluindo o e-mail que enviou ao seu empreiteiro, indagando por que motivo a renovação da sua casa de apoio à piscina estava dois meses atrasada em relação ao previsto. Se as obras não estiverem concluídas até ao final de abril, escreveu, despeço-o e contrato a empresa que tratou da antiga casa do Ivan.

A decoração interior da Villa Soleil foi realizada no mesmo ritmo célere tão pouco habitual na Provença, supervisionada por uma das mais proeminentes empresas da Côte d’Azur. Houve apenas um atraso: dois sofás a condizer, encomendados da loja de design de Olivia Watson em Saint-Tropez. Devido a um erro administrativo menor (na verdade, absolutamente intencional), o nome do proprietário da villa apareceu na nota de encomenda. Olivia Watson partilhou o nome com Martel, que, por sua vez, o deu a um colunista do Nice-Matin que escrevera favoravelmente sobre ele no passado. Gabriel e a sua equipa souberam disso porque a poderosa NSA americana assim o assegurava.

Assim sendo, faltavam apenas os quadros, os quadros adquiridos sob o olhar impecável de Julian Isherwood e armazenados num cofre do Freeport de Genebra. Em meados de maio, foram transportados para a Provença numa caravana de furgões, vigiada por agentes de uma empresa de segurança privada e vários agentes de uma unidade secreta da DGSI conhecida como Grupo Alpha. Isherwood supervisionou a sua fixação nas paredes, com o auxílio da esposa francesa do proprietário. Depois, voaram para Paris, onde o proprietário em pessoa estava hospedado na sua suíte habitual no Crillon. Nessa noite, jantaram no próspero restaurante novo de Martel, no Boulevard Saint-Germain, acompanhados por um homem de aspeto resiliente, que falava francês com um acentuado sotaque corso. Martel também estava lá, juntamente com a glamorosa namorada inglesa. Gabriel e a equipa não foram surpreendidos pela presença da sua presa; souberam dos planos de Martel com vários dias de antecedência e reservaram uma mesa para quatro em nome de Dmitri Antonov. Poucos minutos depois da chegada do grupo do jantar, surgiu na mesa uma garrafa de champanhe, juntamente com um bilhete manuscrito. O champanhe era um Dom Pérignon de 1998, o bilhete era de Jean-Luc Martel. «Bem-vindo à vizinhança. Vemo-nos em Saint Tropez...». Era, globalmente, um início promissor.


27

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— Acho que vou à vila daqui a pouco.

— Fazer o quê?

— É dia de mercado. Sabes como eu adoro o mercado.

— Ah, sim, fantástico.

— Podes vir comigo?

— Infelizmente, não posso. Tenho umas chamadas para fazer.

— Tudo bem.

Tinham transcorrido dez dias desde que Mikhail e Natalie (também conhecidos como Dmitri e Sophie Antonov) se tinham instalado na sua nova casa na Baie de Cavalaire, e já parecia que estavam aborrecidos. Não era aborrecimento operacional, era de natureza conjugal. Gabriel determinara que os Antonovs não seriam uma união inteiramente feliz. Poucos casamentos eram perfeitos, argumentou, e um casamento entre um criminoso russo e uma francesa de proveniência duvidosa não seria isento dos seus maus momentos. Também decretara que deveriam manter as suas identidades falsas permanentemente, mesmo quando estivessem seguros atrás das paredes de três metros e meio da Villa Soleil. Tal explicava a frígida troca verbal ao pequeno-almoço. Foi realizada em inglês, visto que o francês de Dmitri Antonov era atroz e o russo da sua esposa inexistente. Os empregados da casa, todos agentes do Grupo Alpha de Paul Rousseau, dirigiam-se apenas à Madame Sophie. Em geral, evitavam o Monsieur Antonov. Achavam-no rude e grosseiro, e ele considerava-os, com alguma razão, os piores empregados domésticos de toda a Provença. Gabriel partilhava a sua opinião. Em privado, instara Rousseau a pô-los rapidamente em sentido. Caso contrário, arriscavam-se a afundar toda a operação.

Mikhail e Natalie estavam sentados, como personagens de um filme, numa mesa do vasto terraço rodeado por colunas com vista para a piscina. Era onde tinham tomado o pequeno-almoço em cada uma das nove manhãs anteriores, pois o Monsieur Antonov preferia aquele local sobre todos os outros. Ele começara o dia com uns vigorosos trinta minutos de natação na piscina. Agora envergava um roupão de banho branco impoluto contra a pele pálida. O olhar de Natalie foi atraído pelo riacho de água que escorria pelo leito esculpido dos seus músculos abdominais na direção da cintura dos calções de banho. Rapidamente, desviou o olhar. A Madame Sophie, recordou a si própria, estava irritada com o Monsieur Antonov. Ele não conseguiria voltar a cair nas suas boas graças simplesmente com uma demonstração insignificante de beleza física.

Ela serviu uma chávena de café forte simples do bule de prata e acrescentou uma medida generosa de leite evaporado. Ao fazê-lo, parecia inegavelmente francesa. Em seguida, puxou um Gitane do maço e acendeu-o. Os cigarros, tal como o seu comportamento indelicado, serviam unicamente o seu disfarce. Como médica, vira em primeira mão os efeitos terríveis do tabaco no corpo humano e era uma não-fumadora convicta. A primeira inalação arranhou-lhe a parte de trás da garganta, mas, com um gole de café, conseguiu reprimir a vontade de tossir. O café era quase perfeito; só no sul de França, pensou, tinha tal sabor. A manhã estava limpa e agradável, com um vento suave a circular na fila de ciprestes que marcava a fronteira entre a Villa Soleil e o vizinho. Uma ondulação salpicava a Baie de Cavalaire e, do outro lado, Natalie conseguia distinguir as linhas ténues da villa pertencente a Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos.

— Croissant? — perguntou ela.

— Desculpa? — Mikhail estava a ler qualquer coisa num tablet com grande intensidade e não se podia dar ao trabalho de erguer o olhar para que se encontrasse com o dela.

— Perguntei se querias outro croissant.

— Não.

— Então e o almoço?

— Agora?

— Em Saint-Tropez. Podes encontrar-te comigo lá.

— Vou tentar. A que horas?

— À hora do almoço, querido. À hora a que as pessoas normalmente almoçam.

Ele deslizou um dedo indicador pela superfície do tablet, mas não disse nada. Natalie apagou o cigarro e, comportando-se como Sophie Antonov, levantou-se abruptamente. Depois, inclinou-se para baixo e aproximou a boca do ouvido de Mikhail.

— Pareces estar a gostar demasiado disto — sussurrou em hebreu. — Se fosse a ti, não me habituava muito.

Entrou na villa e caminhou lentamente, com os pés descalços, pelas suas inúmeras divisões cavernosas, até chegar à base da imponente escadaria principal. Os seus aposentos, pensou, eram bem melhores do que os que tivera de suportar na primeira operação: o apartamento pardacento no banlieue parisiense de Aubervilliers, o quartinho esquálido num dormitório do ISIS em Raqqa, o campo de treino no deserto nos arredores de Palmira, o quarto na casa de Mossul onde cuidara de Saladino até que estivesse curado.

Tu és o meu Maimónides...

No quarto, os lençóis de cetim continuavam desordenados. Evidentemente, as criadas do Grupo Alpha não tinham encontrado tempo na sua atarefada agenda para arrumar o quarto. Natalie esboçou um sorriso culpado. Essa era a única divisão da casa onde ela e Mikhail não faziam qualquer tentativa de ocultar os seus verdadeiros sentimentos um pelo outro. Em rigor, as suas ações na noite anterior tinham sido uma violação do regulamento do Departamento, que proibia relações íntimas entre agentes no terreno. Era, celebremente, umas das regras menos cumpridas em todo o serviço. De facto, sabia-se que o atual chefe e a sua esposa tinham desrespeitado a regra em inúmeras ocasiões. Para além disso, pensou Natalie enquanto alisava os lençóis, fazerem amor servia o disfarce. Nem mesmo cônjuges desavindos eram imunes à obscura atração do desejo.

O closet estava a transbordar de roupa, sapatos e acessórios de marca, tudo pago pelo sanguinário governante da Síria. Só o melhor para a Madame Sophie. De uma gaveta, retirou um par de leggings de licra e um sutiã de desporto. Os seus ténis Nike estavam na prateleira dos sapatos, junto a um par de sapatos de salto alto Bruno Magli. Vestida, caminhou por um corredor fresco de mármore até à sala de fitness e subiu para a passadeira. Odiava correr dentro de casa, mas não tinha outra opção. A Madame Sophie não estava autorizada a correr no exterior. A Madame Sophie tinha problemas de segurança. Natalie Mizrahi também os tinha.

Colocou uns auscultadores nos ouvidos e começou com uma corrida fácil, mas foi aumentando a velocidade da passadeira a cada quilómetro, até estar a correr velozmente, em ritmo apressado. A sua respiração manteve-se controlada e estável; as muitas semanas que passara na quinta em Nahalal tinham-na deixado no auge da sua forma física. Terminou com uma corrida final a alta velocidade e passou trinta minutos a levantar pesos antes de regressar ao quarto para tomar um duche e vestir-se. Calças capri brancas, um pulôver de malha elástica e corte justo que lhe favorecia os seios e a cintura esguia, sandálias rasas douradas. De pé diante do espelho, pensou na última operação, no hijab e nas roupas pias da Dra. Leila Hadawi. Leila, pensou ela, não teria aprovado Sophie Antonov. Nisso, Natalie e ela estavam completamente de acordo.

Saiu para a varanda e espreitou para baixo, na direção do terraço onde Mikhail estava esticado numa chaise longue, expondo a sua pele incolor aos raios de sol matinal. Em dez dias, a sua palidez não se alterara. Parecia ser incapaz de se bronzear.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — gritou ela para baixo.

— Estou ocupado.

Natalie deixou cair o telemóvel do Departamento na sua mala de senhora e encaminhou-se para o andar de baixo, rumo ao pátio, onde a limusina Maybach de Antonov aguardava junto à fonte salpicante, com um motorista do Grupo Alpha ao volante. No banco de trás, havia um segundo agente do Grupo Alpha. O seu nome era Roland Girard. Durante a primeira operação, desempenhara a função de diretor da pequena clínica em Aubervilliers onde a Dra. Leila Hadawi exercera medicina. Agora, era o guarda-costas favorito da Madame Sophie. Havia rumores de que mantinham um caso tórrido, rumores que tinham chegado aos ouvidos do Monsieur Antonov. Este tentara despedir o guarda-costas várias vezes, mas a Madame Sophie nem sequer queria ouvir falar dessa possibilidade. Enquanto a Maybach atravessava lentamente o imponente portão de segurança, acendeu outro Gitane e fitou o exterior da janela, mal-humorada. Desta vez, não conseguiu reprimir a vontade de tossir.

— Sabias — disse Girard — que não tens de fumar essas coisas deploráveis quando estamos só os dois?

— É a única forma de me habituar a eles.

— Quais são os teus planos?

— O mercado.

— E depois?

— Tinha esperança de almoçar com o meu marido, mas parece que ele não pode ser incomodado.

Girard sorriu, mas não disse nada. Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie tocou com uma mensagem recebida. Depois de a ler, voltou a meter o aparelho na mala e, tossindo, fumou o que restava do Gitane. Estava quase na hora de a Madame Sophie conhecer a Madame Olivia. Tinha de praticar.


28

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Enquanto passavam pela saída para a Plage de Pampelonne, Natalie foi inundada por memórias. Dessa vez, não eram as memórias de Leila, eram as suas. Uma manhã perfeita no final de agosto. Natalie e os pais fizeram a difícil viagem de carro de Marselha até Saint-Tropez porque nenhuma outra praia em França (nem no mundo, já agora) se compara àquela. Corria o ano de 2011. Natalie terminou a sua formação médica e embarcou no que promete ser uma carreira bem-sucedida no sistema de saúde público francês. É uma cidadã francesa modelo; não consegue imaginar-se a viver em nenhum outro lugar. Mas a França está a mudar vertiginosamente. Já não é um lugar onde seja seguro ser-se judeu. Cada dia, aparentemente, traz consigo notícias de mais um horror. Outra criança que espancaram ou em quem cuspiram, outra montra de loja que partiram, outra sinagoga que pintaram com graffiti, outra lápide que derrubaram. E, portanto, naquele dia do final de agosto, na praia de Pampelonne, Natalie e os pais fazem os possíveis para ocultar o facto de serem judeus. Não conseguem, e o dia não decorre sem olhares desdenhosos e um insulto murmurado pelo empregado de mesa que, de má vontade, lhes serve o almoço. Durante a viagem de regresso a Marselha, os pais de Natalie tomam uma decisão que mudará os seus destinos. Abandonarão França e estabelecer-se-ão em Israel. Pedem a Natalie, a sua única filha, que se junte a eles. Ela aceita, sem hesitar. E agora, pensava, fitando o exterior através dos vidros fumados da limusina Maybach, estava de volta.

Para lá das praias havia vinhedos recentemente plantados e minúsculas villas sombreadas por ciprestes e pinheiros mansos. No entanto, assim que alcançaram os limites exteriores de Saint-Tropez as villas passaram a estar escondidas por muros altos cobertos por trepadeiras floridas. Essas eram as casas dos meramente ricos, não dos milionários como Dmitri Antonov ou Ivan Kharkov antes dele. Quando era criança, Natalie sonhara com viver numa casa grandiosa rodeada de muros. Gabriel concedera-lhe o desejo. Gabriel, não, pensou subitamente. Fora Saladino.

O motorista conduziu suavemente a Mayback para a Avenue Foch e seguiu por esta até ao centre ville. Era apenas junho, ainda não o pico do verão, portanto as multidões eram toleráveis, até mesmo na Place des Lices, onde se situava o fervilhante mercado ao ar livre de Saint-Tropez. Enquanto Natalie abria lentamente caminho por entre as banquinhas, sentiu uma avassaladora sensação de perda. Este era o seu país, pensou, e, contudo, a sua família fora obrigada a abandoná-lo devido ao mais antigo dos ódios. A presença de Roland Girard centrou a sua atenção na tarefa que tinha em mãos. Não caminhava ao seu lado, mas atrás de si. Não havia forma de o confundirem com um marido. Estava ali por uma única e exclusiva razão: para proteger a Madame Sophie Antonov, a nova residente do célebre palácio na Baie de Cavalaire.

Subitamente, ouviu alguém chamar o seu nome de um café no Boulevard Vasserot.

— Madame Sophie, Madame Sophie! Sou eu, o Nicolas. Aqui, Madame Sophie. — Ela ergueu o olhar e viu Christopher Keller a acenar-lhe de uma mesa no Le Clemenceau. A sorrir, atravessou a rua, com Roland Girard um passo atrás dela. Keller levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. Quando Natalie se sentou, Roland Girard regressou à Place des Lices e ficou, de pé, sob a sombra sarapintada de um plátano.

— Que agradável surpresa — disse Keller quando ficaram sozinhos.

— Sim, é verdade. — O tom de Natalie foi frio. Era a voz que a Madame Sophie utilizava quando se dirigia aos homens que trabalhavam para o seu marido. — O que te traz por cá?

— Vim tratar de um recado. E a senhora?

— Fazer umas compras. — Olhou de relance em redor do mercado. — Há alguém a ver-nos?

— Claro, Madame Sophie. Os senhores causaram uma agitação e tanto.

— Era esse o objetivo, não era?

Keller estava a beber Campari.

— Teve oportunidade de visitar alguma das galerias de arte? — perguntou ele.

— Ainda não.

— Há uma bastante boa perto do Porto Velho. Teria todo o gosto em mostrar-lha. É uma caminhada de cinco minutos, no máximo.

— A proprietária vai lá estar?

— Diria que sim, com certeza.

— Como é que o nosso amigo quer que eu me comporte?

— Parece pensar que se justificaria uma boa humilhação.

Natalie sorriu.

— Acho que a Madame Sophie consegue fazer isso bastante bem.

 

Caminharam na direção do Porto Velho, para lá do desfile de lojas que ladeavam a Rue Gambetta. Keller envergava calças brancas, mocassins pretos e um pulôver justo igualmente preto. Com o seu bronzeado escuro e gel no cabelo, tinha uma aparência absolutamente duvidosa. Natalie, desempenhando o papel de Madame Sophie, fingia um intenso e profundo tédio. Deambulou por várias montras de lojas, incluindo a de uma boutique que exibia o nome de Olivia Watson. Roland Girard, o seu falso guarda-costas, manteve-se vigilantemente junto dela.

— O que é que achas daquele? — perguntou, apontando na direção de um vestido fino que pendia de um manequim sem cabeça como um négligé. — Achas que o Dmitri repararia em mim se usasse aquilo? Ou então aquele? Aquele talvez conseguisse chamar a atenção dele.

Recebida por um silêncio profissional, continuou a caminhar, balouçando a sua mala de senhora como uma menina mimada. Yossi Gavish e Rimona Stern vinham pela rua estreita na direção deles, de mãos dadas, rindo-se de uma piada privada. Dina Sarid estava a examinar um par de sandálias na montra da Minelli e, um pouco mais ao fundo da rua, Natalie identificou Eli Lavon a entrar apressado numa farmácia, com a urgência de um homem cujas entranhas estão em estado de rebelião.

Finalmente, chegaram à Place de l’Ormeau. Não era um verdadeiro quadrado, como a Place des Lices, mas um minúsculo triângulo no cruzamento de três ruas. No centro, havia um fontanário antigo, sombreado por uma única árvore. Num dos lados havia uma loja de vestidos, no outro um café. E, junto do café, ficava o elegante edifício de quatro andares (grande para os cânones de Saint-Tropez, cinzento-pálido em vez de castanho-claro) ocupado pela Galerie Olivia Watson.

A pesada porta de madeira estava fechada e trancada. Ao lado, havia uma placa de bronze que declarava, em francês e inglês, que o visionamento do inventário da galeria se fazia unicamente por marcação. Na montra, havia três quadros em exposição: um Lichtenstein, um Basquiat e um trabalho do pintor e escultor francês Jean Dubuffet. Natalie aproximou-se para observar mais de perto o Basquiat, enquanto Keller examinava o telemóvel. Depois de um momento, apercebeu-se de uma presença nas suas costas. O aroma intoxicante a lilás tornou claro que não se tratava de Roland Girard.

— É lindo, não é? — perguntou uma voz feminina em francês.

— O Basquiat?

— Sim.

— Na verdade — disse Natalie para o vidro —, prefiro o Dubuffet.

— Tem bom gosto.

Natalie virou-se lentamente e avaliou a quarta obra de arte que se erguia a alguns centímetros de distância, na Place de l’Ormeau. Era espantosamente alta, tão alta, na verdade, que Natalie teve de levantar o olhar para encontrar o dela. Não era bonita, era profissionalmente bonita. Até àquele momento, Natalie nunca se apercebera de que havia uma diferença.

— Gostaria de o ver mais de perto? — perguntou a mulher.

— Desculpe?

— O Dubuffet. Tenho alguns minutos antes da minha próxima marcação. — Sorriu e esticou uma mão. — Desculpe, devia ter-me apresentado. O meu nome é Olivia. Olivia Watson — acrescentou. — Esta é a minha galeria.

Natalie aceitou a mão estendida. Era invulgarmente longa, tal como o braço nu, suave e dourado, ao qual estava unida. Olhos azuis luminosos fitavam-na a partir de um rosto tão perfeito que quase parecia irreal. Ostentava nele uma expressão de moderada curiosidade.

— É a Sophie Antonov, não é?

— Já nos conhecemos?

— Não. Mas Saint-Tropez é uma cidade pequena.

— Muito pequena — disse Natalie friamente.

— Vivemos do outro lado da baía onde vive com o seu marido — explicou Olivia Watson. — Na verdade, conseguimos ver a vossa villa da nossa. Talvez gostassem de nos vir visitar, um destes dias.

— Receio que o meu marido esteja extremamente ocupado.

— Parece o Jean-Luc.

— O Jean-Luc é o seu marido?

— Parceiro — disse Olivia Watson. — O nome dele é Jean-Luc Martel. Talvez tenha ouvido falar dele. A Sophie e o seu marido jantaram na nossa nova brasserie em Paris, há duas semanas. Ele enviou-vos uma garrafa de champanhe. — Olhou de soslaio para Keller, que parecia estar absorto nalguma coisa que estava a ler no telemóvel. — Ele também estava lá.

— Trabalha para o meu marido.

— E aquele? — Olivia Watson apontou na direção de Roland Girard com a cabeça.

— Trabalha para mim.

Os olhos luminosos fixaram-se novamente em Natalie, que estudara centenas de fotografias de Olivia Watson como preparação para o primeiro encontro, mas, mesmo assim, o impacto da sua beleza continuava a ser absolutamente surpreendente. Agora, estava a sorrir ligeiramente. Era um sorriso astuto, sedutor, superior. Tinha perfeita consciência do efeito que a sua aparência tinha sobre as outras mulheres.

— O seu marido é colecionador de arte — disse ela.

— O meu marido é um empresário que aprecia arte — disse Natalie cautelosamente.

— Talvez ele gostasse de visitar a galeria.

— O meu marido prefere quadros de Grandes Mestres a trabalhos contemporâneos.

— Sim, eu sei. Causou uma verdadeira sensação em Londres e Nova Iorque, nesta primavera. — Mergulhou a mão na sua mala de senhora e retirou um cartão-de-visita, que ofereceu a Natalie. — O meu número privado está no verso. Tenho algumas peças especiais que creio que poderiam interessar ao seu marido. E, por favor, venham almoçar à nossa villa este fim de semana. O Jean-Luc está ansioso por conhecê-los a ambos.

— Eu e o meu marido temos outros planos para este fim de semana — disse Natalie bruscamente. — Tenha um bom dia, Madame Wilson. Foi um prazer conhecê-la.

— Watson — gritou ela, enquanto Natalie se afastava. — O meu nome é Olivia Watson.

Ainda estava a segurar o cartão-de-visita entre o polegar e o indicador. Keller aproximou-se e puxou-lho da mão.

— Por vezes, a Madame Sophie é um pouco temperamental. Não se preocupe. Vou ter uma conversa com o patrão em seu nome. — Ofereceu a sua mão. — O meu nome é Nicolas, já agora. Nicolas Carnot.

 

Keller caminhou com Natalie e Roland Girard no regresso à Place des Lices e acompanhou-os enquanto aguardavam a Maybach, que alguns segundos mais tarde abandonou o centre ville qual borrão negro, observada de forma igualmente invejosa por turistas e residentes locais. Sozinho, Keller cortou através das banquinhas do mercado até ao outro lado da praça e subiu para a mota Peugeot Satelis que ali deixara. Dirigiu-se para oeste ao longo da extremidade do golfo de Saint-Tropez, depois para sul para as montanhas do Var, até chegar à povoação de Ramatuelle. Não era muito diferente da aldeia dos Orsati na Córsega Central, um aglomerado de casas de cor parda com telhados vermelhos, empoleirada defensivamente no topo de uma montanha. Havia villas maiores escondidas nas planícies arborizadas em baixo. Uma delas chamava-se La Pastorale. Keller assegurou-se de que não estava a ser seguido antes de se apresentar no portão de segurança de ferro. Estava pintado de verde e tinha uma aparência bastante temível. Premiu o botão do intercomunicador com o polegar e depois virou-se para ver um camião de entregas passar na estrada.

— Oui? — disse uma fina voz metálica passado um momento.

— C’est moi — disse Keller. — Abre a merda do portão.

O caminho de acesso à casa era longo e sinuoso e ensombrado por pinheiros e choupos. Terminava no pátio de gravilha de uma enorme villa de pedra com portadas amarelas. Keller encaminhou-se para a sala de estar, que fora transformada num centro de operações temporário. Gabriel e Paul Rousseau estavam curvados sobre um computador portátil. Rousseau reconheceu a chegada de Keller com um aceno cuidadoso de cabeça (continuava profundamente desconfiado desse talentoso agente do MI6 que falava francês como um corso e estava à vontade na presença de criminosos), mas Gabriel tinha um sorriso rasgado.

— Bem jogado, Monsieur Carnot. Levar o cartão-de-visita foi um belo detalhe.

— As primeiras impressões são importantes.

— Efetivamente, são. Ouve isto.

Gabriel bateu suavemente no teclado do computador portátil e, alguns segundos depois, ouviu-se a voz de uma mulher enraivecida a gritar em francês. Era fluente e obsceno, mas marcado por um inconfundível sotaque inglês.

— Com quem é que ela está a falar?

— Com o Jean-Luc Martel, claro.

— Como é que ele reagiu?

— Vais ouvir daqui a um minuto.

Keller encolheu-se, enquanto a voz de Martel ribombava a partir das colunas.

— Claramente — disse Gabriel —, não está habituado a que as pessoas lhe digam que não.

— Qual é a tua próxima jogada?

— Outra humilhação. Várias, na verdade.

As colunas silenciaram-se depois de Olivia Watson terminar a chamada com uma enxurrada final de obscenidades aos gritos. Keller caminhou até um conjunto de monitores de vídeo e observou uma limusina Maybach a virar para uma villa palaciana à beira-mar. Uma mulher saiu e abriu caminho por entre divisões cavernosas de onde pendiam quadros de Grandes Mestres até um terraço com vista para uma piscina do tamanho de uma lagoa. Aí, dormitava um homem com a pele pálida a ruborizar-se debaixo da implacável ofensiva do sol. A mulher disse-lhe algo diretamente ao ouvido que os microfones não conseguiram captar e conduziu-o até ao andar de cima, para um quarto onde não havia câmaras. Keller sorriu, enquanto a porta se fechava. Afinal, talvez houvesse esperança para a Madame Sophie e o Monsieur Antonov.


29

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Não era verdade que Madame Sophie e Monsieur Antonov tivessem planos para esse fim de semana. Mas, de alguma fora, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. Efetivamente, mal o sol se tinha posto, numa tarde perfeita de sexta-feira, uma fileira de faróis de carros qual colar de diamantes estendeu-se ao longo da faixa costeira da Baie de Cavalaire, na direção dos portões da Villa Soleil, que brilhava e cintilava e pulsava ao ritmo de música tão alta que era possível ouvi-la do outro lado da água, que era o que se pretendia. Os convidados vieram de todo o mundo. Havia atores e escritores e aristocratas em declínio e ladrões. Havia o filho de um fabricante de automóveis italiano que chegou entre um cardume de mulheres seminuas e uma estrela pop que não tivera um álbum de sucesso desde que a música se tornara digital. Metade do mundo artístico londrino estava lá, juntamente com um contingente de Nova Iorque que, diziam os rumores, tinha atravessado o Atlântico num voo privado pago pelo anfitrião. E havia muitos outros que mais tarde admitiriam não terem recebido qualquer convite. Essas almas menores tinham ouvido falar do assunto através dos canais habituais (a fábrica de boatos da Riviera, as redes sociais) e tinham-se dirigido avidamente para a porta banhada a ouro do Monsieur Antonov.

Se ele esteve realmente presente nessa noite, não se viu rasto dele. De facto, nem um único convidado conseguiria oferecer provas fiáveis, em primeira-mão, de o ter visto. Nem mesmo Julian Isherwood, o seu consultor artístico, foi capaz de explicar o seu paradeiro. Isherwood realizou uma visita privada à impressionante coleção de quadros de Grandes Mestres da villa para o punhado de convidados que mostrou algum interesse em vê-la. Depois, tal como toda a gente, ficou podre de bêbado. À meia-noite, o buffet tinha sido devorado e havia mulheres a nadar nuas nas piscinas e nas fontes. Houve um combate com socos, a realização muito pública de um ato sexual e a ameaça de um processo judicial. Rivalidades antigas atearam-se, casamentos colapsaram e muitos automóveis de luxo sofreram danos. Toda a gente concordou que a diversão fora de arromba.

Mas a festa não terminou nessa noite, entrou meramente numa breve remissão. Ao final da manhã, os carros entupiram mais uma vez as estradas, e uma frota de iates brancos a motor ancoraram nas águas junto à doca da Villa Soleil, servidos pela lancha do Monsieur Antonov que levou os convidados até à margem. As festividades da segunda noite foram piores do que as da primeira, pelo facto de a maioria dos convidados ter chegado embriagada ou ainda estar embriagada da noite anterior. A vasta equipa de seguranças do Monsieur Antonov vigiou cuidadosamente os quadros, e diversos convidados mais indisciplinados foram expulsos do local com silenciosa eficiência. Ainda assim, não houve nenhum que, efetivamente, tivesse dado um aperto de mão ao anfitrião ou lhe tivesse sequer posto a vista em cima. Oh, houve a divorciada americana de meia-idade e pele curtida que alegou tê-lo visto a observar a festa, ao estilo de Gatsby, do terraço privado nos aposentos superiores do seu palácio, mas estava bastante inebriada na altura e o seu relato foi completamente ignorado. Humilhada, fez uma tentativa desajeitada de seduzir um jovem e bonito piloto de fórmula um, mas teve de se consolar com a companhia de Oliver Dimbleby. Foram vistos pela última vez a cambalear para o interior da noite, com a mão de Oliver no seu rabo.

Houve um brunch com champanhe no domingo, depois do qual os últimos convidados dispersaram. Os feridos que ainda caminhavam dirigiram-se para a porta pelo próprio pé; os comatosos e sem reação partiram por outros meios. Então, um exército de trabalhadores chegou e eliminou todas as provas da destruição do fim de semana. E, na segunda de manhã, o Monsieur Antonov e a Madame Sophie estavam no seu lugar habitual do terraço com vista para a piscina, o Monsieur Antonov perdido no seu tablet, a Madame Sophie nos seus pensamentos. Ao meio-dia, ela foi até à vila, acompanhada por Roland Girard, e almoçou com o Monsieur Carnot num restaurante do Porto Velho que era propriedade de Jean-Luc Martel. Olivia Watson almoçou com uma amiga, uma mulher quase tão bela quanto ela, a algumas mesas de distância. Ao sair, passou pela mesa da Madame Sophie sem uma palavra ou um olhar de soslaio, embora o Monsieur Carnot estivesse bastante certo de que ouvira acidentalmente uma obscenidade anatómica que nem ele, um homem de reputação duvidosa, alguma vez se atrevera a proferir.

Houve outra festa no fim de semana seguinte, mais pequena, mas não menos perversa, e uma farra na semana seguinte que bateu o recorde de queixas aos gendarmes na Côte d’Azur. Nesse ponto, os Antonovs decretaram um cessar-fogo e a vida na Baie de Cavalaire voltou a algo parecido com o normal. Durante a maior parte do tempo, permaneciam prisioneiros da Villa Soleil, embora, várias vezes por semana, a Madame Sophie, depois da sua corrida matinal na passadeira, viajasse até Saint-Tropez na sua limusina Maybach para fazer compras ou almoçar. Normalmente, comia com Roland Girard ou com o Monsieur Carnot, embora em duas ocasiões tivesse sido vista com um inglês alto e bronzeado que arranjara uma villa para passar o verão perto da povoação de montanha de Ramatuelle. Tinha uma esposa curvilínea e sarcástica que Madame Sophie adorava.

A villa não albergava unicamente o casal. Havia uma mulher pequena de cabelo escuro que se deslocava com um ligeiro coxear e exibia o comportamento de uma viuvez recente. E um homem esquivo, no final da sua meia-idade, que parecia nunca vestir a mesma roupa duas vezes. E um sujeito com aspeto severo e rosto bexigoso que aparentava estar sempre a ponderar um ato de violência. E um francês de porte professoral que empestava as divisões da villa com o seu omnipresente cachimbo. E um homem com as têmporas grisalhas e olhos verdes que implorava constantemente ao francês que encontrasse outro vício, um que não colocasse em perigo a saúde daqueles que o rodeavam.

Os residentes da villa não davam quaisquer mostras de se dedicarem à recreação ou ao lazer; tinham vindo para a Provença tratar de um assunto de extrema seriedade. O francês professoral e o homem de olhos verdes eram, aparentemente, parceiros em pé de igualdade, mas, na prática, o francês aceitava as decisões do colega em quase todas as matérias. Ambos os homens passavam uma quantidade significativa de tempo fora da villa. O francês, por exemplo, deslocava-se constantemente entre a Provença e Paris, enquanto o homem de olhos verdes fazia várias viagens clandestinas até Telavive. Também viajou para Londres, onde negociou os termos da nova fase do seu projeto, e para Washington, onde foi repreendido pelo seu ritmo lento. Foi indulgente com a disposição desagradável do seu parceiro americano. Os americanos tinham-se habituado a resolver os problemas com o premir de um botão. Paciência não era uma virtude americana.

Mas o homem de olhos verdes era a encarnação da paciência, principalmente quando estava na villa de Ramatuelle. As travessuras do Monsieur Antonov e da Madame Sophie interessavam-lhe pouco. A sua obsessão era a bela inglesa que detinha a galeria de arte na Place de l’Ormeau. Com a assistência dos outros residentes da villa, observava-a dia e noite. E, com o auxílio do seu amigo na América, ouvia todas as suas chamadas e lia todas as suas mensagens e e-mails.

Ela abominava o novo casal ruidoso que vivia no lado oposto da Baie de Cavalaire (isso era evidente), mas, apesar disso, eles intrigavam-na. Interrogava-se, sobretudo, por que motivo todas as celebridades menores do sul de França tinham sido convidadas para a villa dos Antonov, mas ela fora excluída. O seu «não-exatamente» marido tinha pensamentos semelhantes. Afinal de contas, ele próprio era uma celebridade. Uma verdadeira celebridade, não um desses farsantes pretensiosos que tinham aberto caminho a rastejar até ao interior da duvidosa órbita de Antonov. Pouco tempo depois, estava a fazer as suas próprias investigações sobre o novo vizinho e a fonte do seu considerável rendimento. Quanto mais ouvia, mais se convencia de que Monsieur Dmitri Antonov era uma alma gémea. Instruiu a sua «não-exatamente esposa» a fazer um novo convite. Ela respondeu que mais depressa cortaria os pulsos do que passaria outro minuto na companhia daquela criatura mimada do outro lado da baía, ou algo nesse sentido.

E, portanto, o homem de olhos verdes esperou pelo momento certo. Observou todos os seus movimentos e ouviu todas as suas palavras e leu todas as suas missivas eletrónicas. E interrogou-se se ela seria merecedora da sua obsessão. Será que era a rapariga dos seus sonhos ou partir-lhe-ia o seu coração de espião? Render-se-ia a ele, ou seria necessário o uso da força? Se isso acontecesse, ele tinha força em abundância. Nomeadamente, os quarenta e oito quadros que encontrara no Freeport de Genebra. Esperava não ter de chegar a isso. Pensava nela como um quadro a precisar desesperadamente de um restauro. Ele oferecer-lhe-ia os seus serviços. E, se ela fosse suficientemente insensata para recusar, era possível que as coisas se tornassem desagradáveis.

Na segunda semana de julho, já vira e ouvira o suficiente. Aproximava-se o Dia da Bastilha, após o qual principiaria a reta final da temporada de verão. Mas, como superar a divisória que ele próprio criara? Decidiu que só um convite formal o conseguiria fazer. Ele próprio o escreveu, com uma mão tão precisa que parecia ter sido escrito por uma impressora a laser, e deu-o ao Monsieur Carnot para que o entregasse na galeria da Place de l’Ormeau. Ele assim fez, às onze e um quarto de uma manhã perfeita na Provença, e ao meio-dia da manhã seguinte tinham recebido a resposta que esperavam. Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, iria à Villa Soleil almoçar. E Olivia Watson, a rapariga dos sonhos de Gabriel, iria com ele.


30

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— O que é que achas, querida? Com arma ou sem arma?

Mikhail estava a admirar-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir. Envergava um fato escuro de linho (demasiado escuro para a ocasião e para o tempo, que estava quente, até mesmo para os padrões da Côte d’Azur) e uma camisa branca impoluta, desabotoada até ao esterno. Só os sapatos, um par de mocassins de mil e quinhentos euros, que usava sem meias, eram inteiramente apropriados. As fivelas de ouro condiziam com o relógio de ouro que repousava no seu pulso como um barómetro fora de lugar. Fora manufaturado para ele pelo seu homem em Genebra, uma pechincha de um milhão e meio.

— Sem arma — disse Natalie. — Pode passar a mensagem errada.

Estava de pé ao seu lado, com a imagem refletida no mesmo espelho. Envergava um vestido branco sem mangas e mais joias do que as necessárias para um almoço vespertino no jardim. A sua pele estava muito escura devido ao tempo excessivo passado ao sol. Pensou que não combinava bem com a cor do seu cabelo, que fora aclarado vários tons antes da sua partida de Telavive.

— Achas que alguma vez se tornaria aborrecido?

— O quê?

— Viver assim.

— Acho que depende da alternativa.

Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie vibrou.

— O que é?

— O Martel e a Olivia acabaram de sair da villa deles.

Mikhail franziu o sobrolho para o relógio de pulso.

— Já cá deviam estar há vinte minutos.

— Tempo JLM — disse Natalie.

O telemóvel vibrou uma segunda vez.

— O que foi agora?

— Dizem que fazemos um belo casal.

Natalie beijou a maçã do rosto de Mikhail e saiu. No andar de baixo, no terraço sombreado, um trio de empregados domésticos do Grupo Alpha estava a preparar uma mesa para o almoço com desmedido cuidado. Na extremidade oposta do terraço, Christopher Keller estava a beber rosé. Natalie puxou um Marlboro do maço dele e dirigiu-se a ele em francês.

— Não podes sequer fingir estar um bocadinho nervoso?

— Na verdade, estou ansioso por finalmente conhecê-lo. Aí vem ele.

Natalie olhou na direção do horizonte e viu dois Range Rover pretos a contornar a baía, um para Martel e Olivia, o outro para o seu destacamento de segurança.

— Guarda-costas para o almoço — disse ela com o desdém da Madame Sophie. — Que grosseiro. — Depois, acendeu o cigarro e fumou durante algum tempo sem tossir.

— Estás a ficar bastante boa nisso.

— É um hábito nojento.

— É melhor do que alguns. Na verdade, consigo lembrar-me de vários que são muito piores. — Keller observou os Range Rover que se aproximavam. — A senhora tem mesmo de descontrair, Madame Sophie. Afinal de contas, é uma festa.

— O Jean Luc-Martel e eu vimos da mesma parte de França. Tenho receio de que ele olhe para mim e veja uma rapariga judia de Marselha.

— Ele vai ver o que tu quiseres que ele veja. Para além disso — disse Keller —, se conseguiste convencer o Saladino de que eras palestiniana, consegues fazer seja o que for.

Natalie conteve a tosse e observou os criados do Grupo Alpha a colocar os retoques finais na mesa.

— Porquê velas? — murmurou ela. — Estamos perdidos.

 

Durante as horas finais de preparação para a reunião há muito aguardada entre Jean-Luc Martel e Monsieur Dmitri Antonov, houvera uma discussão invulgarmente acalorada entre Gabriel e Paul Rousseau sobre o que parecia ser um detalhe trivial. Especificamente, se o imponente portão da Villa Soleil deveria estar aberto para a chegada de Martel ou ser deixado fechado, colocando assim, diante dele, uma última barreira metafórica que superar. Rousseau fez pressão a favor de uma abordagem acolhedora: Martel, argumentou, já sofrera o suficiente. Mas Gabriel estava numa disposição menos indulgente e, após uma disputa de vários minutos, levou a melhor sobre Rousseau quanto a deixar o portão fechado.

— E façam-no tocar à campainha como toda a gente — disse Gabriel. — Para Dmitri Antonov, o Martel não passa de um ajudante de cozinha. É importante que o tratemos assim.

E foi assim que, vinte e nove minutos depois da uma da tarde, o motorista de Martel teve de premir o botão do intercomunicador não uma, mas duas vezes, antes de o portão da Villa Soleil finalmente se abrir com um inóspito rangido. Roland Girard, de fato e gravata escuros, assava lentamente no pátio abundantemente banhado pelo sol, com um intercomunicador no ouvido. Por conseguinte, foi o rosto de um agente do Grupo Alpha, não do seu anfitrião, que Martel viu quando saiu das traseiras do seu veículo, vestido com um fato de popelina branco como um bolo de casamento e com a juba de cabelo, que era a sua marca registada, a revolver-se nos remoinhos de vento quente que rodopiavam e morriam em redor das águas dançantes da fonte. Seis câmaras gravaram a sua chegada, e o transmissor usado por Roland Girard captou um intercâmbio tenso relativamente ao destino dos seus guarda-costas. Aparentemente, Martel queria que o acompanhassem até ao interior da villa, um pedido que Girard, educada, mas firmemente, recusou. Enfurecido, Martel afastou-se e atravessou o pátio com uma celeridade predatória, com um trejeito semelhante ao de um gangster empreendedor, um rufia estrela de rock. Olivia era, nessa altura, uma consideração secundária. Seguiu-o, alguns passos atrás, como se já estivesse a preparar as desculpas pelo seu comportamento.

Nessa altura, os Antonovs estavam de pé à sombra do pórtico, como se estivessem a posar para uma fotografia, o que efetivamente era o caso. As saudações fizeram-se com base no género. A Madame Sophie deu as boas-vindas a Olivia Watson como se o frígido encontro à porta da galeria nunca tivesse ocorrido, enquanto Martel e Dmitri Antonov apertaram as mãos como adversários que se preparavam para se derrotarem um ao outro no campo de jogo. Com um sorriso contido, Martel disse que ouvira falar muito do Monsieur Antonov e que estava satisfeito por finalmente o conhecer. Fê-lo em inglês, o que sugeria que tinha conhecimento de que o Monsieur Antonov não falava francês.

— A sua villa é verdadeiramente magnífica. Mas tenho a certeza de que conhece a história dela.

— Disseram-me que, em tempos, foi propriedade de um membro da família real britânica.

— Estava a referir-me ao Ivan Kharkov.

— Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais concordei em retirá-la das mãos do governo francês.

— Conhecia o Monsieur Kharkov?

— Receio que o Ivan e eu nos movêssemos em círculos bastante diferentes.

— Eu conhecia-o bastante bem — vangloriou-se Martel, enquanto atravessava o hall principal da villa ao lado do seu anfitrião, seguido pela Madame Sophie e Olivia e observado pelos olhos imperturbáveis das câmaras de vigilância. — Recebi os Kharkovs muitas vezes nos meus restaurantes em Saint-Tropez e Paris. A forma como morreu foi terrível.

— Os israelitas estiveram por trás disso. Pelo menos, foi esse o rumor.

— Foi mais do que um simples rumor.

— Parece bastante seguro de si.

— Não há muita coisa que aconteça na Côte d’Azur que eu desconheça.

Continuaram para o terraço, onde o último membro do grupo do almoço aguardava entre as colunas.

— Jean-Luc Martel, apresento-lhe Nicolas Carnot. O Nicolas é o meu assistente e consultor mais próximo. É natural da Córsega, mas não lhe leve isso a mal.

 

Na villa nos arredores de Ramatuelle, Gabriel observou atentamente enquanto Jean-Luc Martel aceitava a mão esticada na sua direção. Seguiram-se alguns segundos tensos, enquanto os dois homens se avaliavam mutuamente como só criaturas de nascimento, educação e aspirações de carreira semelhantes conseguem fazer. Claramente, Martel via algo que reconhecia no homem de aspeto duro da ilha da Córsega. Apresentou o Monsieur Carnot a Olivia, que explicou que já se tinham encontrado em duas ocasiões anteriores na galeria. Mas Martel pareceu não a ouvir; estava a admirar a garrafa de Bandol rosé que suava no balde de gelo. A sua aprovação do vinho não foi acidental. Este figurava proeminentemente em todos os seus bares e restaurantes. Gabriel encomendara quantidades suficientes do líquido para fazer flutuar um navio de carga repleto de haxixe.

Seguindo a sugestão da Madame Sophie, sentaram-se nos sofás e cadeiras dispostos na extremidade mais afastada do terraço. Ela foi fria e distante, uma observadora, tal como Gabriel, que estava de pé diante dos monitores de vídeo, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado e uma mão pousada no queixo. A outra pressionava o fundo das costas, que estavam a incomodá-lo. Eli Lavon estava de pé ao seu lado e, ao lado de Lavon, encontrava-se Paul Rousseau. Observaram ansiosamente enquanto um agente do Grupo Alpha, vestido com uma imaculada túnica branca, retirava uma garrafa vazia de rosé do balde de gelo e a substituía com êxito por uma nova. Calmamente, a Madame Sophie instruiu-o para que trouxesse os aperitivos. Também isso o criado conseguiu fazer sem causar vítimas nem danos colaterais. Aliviado, Paul Rousseau carregou o cachimbo e soprou uma nuvem de fumo para os ecrãs de vídeo. A Madame Sophie também pareceu ficar aliviada. Acendeu um Gitane e, com o polegar e dedo anelar, removeu discretamente um resto de tabaco da ponta da língua.

A conversa foi educada, mas reservada, que era como Gabriel pretendia que fosse. Realizou-se em inglês, para benefício de Dmitri Antonov, embora, ocasionalmente, fosse deixado à deriva por uma explosão de francês. Não se ofendeu com isso. Na verdade, parecia apreciar o sossego, pois permitia-lhe desfrutar de uma pausa em relação às perguntas persistentes de Martel relativamente ao seu negócio. Explicou que fizera muito dinheiro com o comércio de matérias-primas russas e conseguira trocar as suas fichas por dinheiro antes da Grande Recessão e da queda abrupta dos preços do petróleo. Embarcara recentemente num conjunto de negócios no Ocidente e na Ásia. Vários deles, disse, tinham-se revelado bastante lucrativos.

— Evidentemente — disse Martel, com um olhar de relance em redor.

O Monsieur Antonov limitou-se a sorrir.

— Em que tipo de coisas está a investir?

— Nas coisas habituais — respondeu evasivamente. — Acima de tudo, tenho satisfeito a minha paixão pela arte.

— Eu e a Olivia adoraríamos ver a sua coleção.

— Talvez depois do almoço.

— Devia realmente dar uma olhadela no inventário dela. Tem muitas peças extraordinárias.

— Gostaria muito de o fazer.

— Quando? — perguntou Martel.

— Amanhã — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e alguns segundos depois Dmitri Antonov disse:

— Passo por lá amanhã, se for conveniente.

Com isso, deslocaram-se para a mesa de refeições. Aqui, mais uma vez, Gabriel não se poupara a despesas e não deixara nada ao acaso. De facto, contratara o chef executivo de um célebre restaurante parisiense e tinha-o trazido num voo privado para a Provença, exclusivamente para a ocasião. A Madame Sophie escolhera o menu. Batatas em molho quente com caviar, rabanete picante e marinada de gengibre; vieiras apanhadas à mão com couve-flor caramelizada e uma emulsão de alcaparras e passas; robalo com crosta de frutos secos e sementes e molho agridoce. Impressionado, Martel pediu para conhecer o chef. A Madame Sophie, acendendo outro cigarro, opôs-se. O chef e a sua equipa, explicou, nunca eram autorizados a deixar a cozinha.

Durante a sobremesa, a conversa virou-se para a política. As eleições na América, a guerra na Síria, os atentados terroristas do ISIS na Europa. Perante a menção do Islão, Martel mostrou-se subitamente animado. A França como em tempos a tinham conhecido desaparecera, rosnou. Em breve, seria apenas outro posto avançado do Magrebe Islâmico. Gabriel achou a atuação bastante convincente, embora Olivia parecesse pensar de outra forma. Aborrecida, perguntou a Madame Sophie se podia tirar um dos seus Gitanes.

— O Jean-Luc tem opiniões muito fortes no que se refere à questão das minorias em França — confidenciou. — Eu gosto de lhe lembrar que, se não fossem os árabes e os africanos, não teria ninguém para lavar os pratos nos restaurantes ou mudar as camas nos seus hotéis.

A Madame Sophie, com a sua expressão, deixou claro que achava o tema de mau gosto. Pediu aos criados do Grupo Alpha que trouxessem o café. Nessa altura, eram quase cinco da tarde. Todos concordaram que uma visita aos quadros teria de esperar por outra ocasião, embora tivessem visto vários enquanto atravessavam lentamente as vastas salas de estar e corredores em tons rosados, observados pelas câmaras de vigilância.

— Está realmente interessado em vir à galeria amanhã? — perguntou Olivia, enquanto fazia uma pausa para admirar as duas cenas de canais venezianos de Guardi.

— Absolutamente — respondeu Dmitri Antonov.

— Estou livre às onze.

— À tarde é melhor — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e Dmitri Antonov explicou, então, que tinha vários telefonemas importantes para fazer de manhã e preferiria visitar a galeria depois do almoço.

— Se isso for conveniente.

— É.

— O Monsieur Carnot fará os preparativos necessários. Creio que ele tem o seu número.

Os Antonovs despediram-se dos seus convidados no pórtico que, nessa altura, já não se encontrava à sombra, mas incandescente com uma ténue luz alaranjada. Passado um momento, estavam mais uma vez de pé no terraço, observando os Range Rover negros a acelerarem na direção da villa que ficava do outro lado da Baie de Cavalaire. Imediatamente, o telemóvel da Madame Sophie vibrou.

— O que é que diz? — perguntou o marido.

— Diz que fomos perfeitos.

— Eles divertiram-se?

— O Martel está convencido de que és um traficante de armas a fazer-se passar por um empresário legítimo.

— E a Olivia?

— Está ansiosa por amanhã.

Sorrindo, Dmitri Antonov despiu o fato e desceu até à piscina para nadar um pouco. A Madame Sophie e o Monsieur Carnot observaram-no do terraço enquanto terminavam o que restava do rosé. O telefone da Madame Sophie estremeceu com a chegada de outra mensagem.

— O que foi agora? — perguntou o Monsieur Carnot.

— Aparentemente, o Martel acha que eu pareço judia. — Acendeu outro Gitane e sorriu. — O Saladino disse a mesma coisa.


31

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Às dez horas da manhã seguinte, a Place de l’Ormeau estava deserta, a não ser pela presença de um homem no final da meia-idade a lavar as mãos num fio de água do fontanário. Olivia pensou que já o vira na vila anteriormente uma ou duas vezes, mas, após uma análise mais atenta, decidiu que estava enganada. As pedras da calçada aqueceram os seus pés por baixo das sandálias enquanto atravessava a praça para a galeria. Retirando as chaves da mala de senhora, destrancou a porta de madeira exterior e entrou para o hall abafado. Em seguida, abriu a porta de vidro de alta segurança e, entrando, desativou o alarme. Fechou a porta atrás de si. Esta trancou-se automaticamente.

O interior da galeria estava escuro e fresco, um alívio em relação ao exterior. No seu escritório privado, Olivia premiu um interruptor que abriu os estores e grades de segurança. Depois, como era seu hábito, foi até ao andar de cima, às salas de exposição, para se assegurar de que nada faltava. O Lichtenstein, o Basquiat e o Dubuffet em exibição na sua montra eram apenas a ponta do inventário da galeria. A considerável coleção profissional de Olivia incluía trabalhos de Warhol, Twombly, de Kooning, Gerhard Richter e Pollock, bem como de numerosos artistas contemporâneos franceses e espanhóis. Fizera aquisições com sabedoria e granjeara uma clientela de confiança entre os milionários da Côte d’Azur (homens como Dmitri Antonov, pensou). Era uma proeza extraordinária para uma mulher sem título universitário e sem qualquer formação artística formal. E pensar que, apenas alguns anos antes, geria uma pequena galeria que distribuía os rabiscos de artistas locais a turistas suados que saíam estonteados de navios cruzeiro e autocarros. Por vezes, permitia a si própria pensar que tinha chegado até ali como resultado da sua determinação e argúcia empresarial, mas, na verdade, sabia que não era assim. Era tudo obra de Jean-Luc. Olivia era o rosto público da galeria que ostentava o seu nome, mas fora comprada e paga por Jean-Luc Martel. Aliás, ela também.

Depois de se asseverar de que a sua coleção sobrevivera intacta a essa noite, dirigiu-se ao andar de baixo e encontrou Monique, a sua rececionista, a preparar um café crème na máquina automática. Era uma rapariga de vinte e quatro anos, magra e com seios pequenos, uma encarnação de uma bailarina de Degas. À noite, trabalhava como rececionista num dos restaurantes de Jean-Luc. Aparentava ter-se deitado tarde. No que se referia a Monique, isso acontecia com mais frequência do que o contrário.

— Também quer? — perguntou enquanto a última porção de leite a ferver gorgolejava e cuspia para a sua chávena.

— Por favor.

Monique entregou o café a Olivia e preparou outro para si.

— Há marcações para esta manhã?

— Não era suposto seres tu a dizer-me isso?

Monique fez uma careta.

— Quem foi desta vez?

— Um americano. Tão fofo. É de um lugar chamado Virgínia. — Dito por Monique, soava como o lugar mais exótico e sensual do mundo. — É criador de cavalos.

— Pensava que odiavas americanos.

— Claro. Mas este é muito rico.

— Vais voltar a vê-lo alguma vez?

— Talvez esta noite.

Ou talvez não, pensou Olivia. Em tempos, fora uma rapariga como Monique. Talvez ainda fosse.

— Se consultares o calendário — disse ela —, tenho a certeza de que vais descobrir que o Herr Müller vem às onze.

Monique franziu o sobrolho.

— O Herr Müller gosta de olhar para as minhas mamas.

— Para as minhas também.

De facto, o Herr Müller gostava de olhar para Olivia mais do que para os seus quadros. Não era o único. A sua aparência era um trunfo profissional, mas, ocasionalmente, era uma distração e um desperdício de tempo. Homens ricos (e alguns não tão ricos) faziam marcações na galeria simplesmente para passarem alguns minutos na sua presença. Alguns arranjavam coragem para lhe fazerem propostas de cariz sexual. Outros fugiam sem nunca tornarem as suas intenções conhecidas. Ela aprendera há muito tempo como projetar um ar de indisponibilidade. Embora, teoricamente, fosse solteira, era a rapariga de JLM. Toda a gente em França sabia disso. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.

Monique sentou-se na secretária de vidro da receção. Tinha apenas um telefone e o calendário de marcações. Olivia não lhe confiava muito mais do que isso. Encarregava-se ela própria de todos os assuntos comerciais e administrativos da galeria, com a ajuda de Jean-Luc. Monique era apenas mais uma obra de arte que, se incentivada a isso, era capaz de atender o telefone. Fora Jean-Luc, não Olivia, quem lhe dera trabalho na galeria. Olivia tinha praticamente a certeza de que eram amantes. Não sentia rancor de Monique. Na verdade, sentia um pouco de pena dela. A coisa não acabaria bem. Nunca acabava.

O Herr Müller chegou dez minutos atrasados, o que não era seu hábito. Era gordo e rosado e cheirava ao vinho da noite anterior. Um confronto recente com um cirurgião plástico em Zurique deixara-o com uma expressão de assombro perpétuo. Estava interessado num quadro do artista americano Philip Guston. Um trabalho semelhante atingira um valor de vinte e cinco milhões de dólares na América. O Herr Müller esperava adquirir o de Olivia por quinze. Olivia rejeitou a oferta.

— Mas eu tenho de o ter! — exclamou enquanto fitava descaradamente a parte frontal da blusa de Olivia.

— Então, vai ter de arranjar mais cinco milhões.

— Deixe-me dormir sobre o assunto. Entretanto, não deixe que mais ninguém o veja.

— Na verdade, estou a planear mostrá-lo esta tarde.

— Maldição! A quem?

— Vá lá, Herr Müller, sabe que dizer-lhe seria cometer uma indiscrição.

— Não será o tal Antonov?

Ela ficou em silêncio.

— Fui a uma festa na villa dele recentemente. Sobrevivi por pouco. Outros não tiveram tanta sorte. — Mordiscou o interior do lábio. — Dezasseis. Mas é a minha oferta final.

— Prefiro arriscar com o Monsieur Antonov.

— Eu sabia!

Ao meio-dia e meia, em plena torreira do sol, Olivia despachou-o. Quando regressou à secretária, viu que recebera uma mensagem de Jean-Luc. Estava a embarcar no seu helicóptero para ir até Nice, onde tinha reuniões durante toda a tarde. Tentou enviar-lhe uma mensagem de volta, mas não recebeu qualquer resposta. Calculou que já estivesse no ar.

Devolveu o telefone à secretária. Alguns segundos mais tarde, este tocou. Olivia não reconheceu o número. Ainda assim, atendeu e aproximou o telefone do ouvido.

— Bonjour.

— Madame Watson?

— Sim.

— Daqui fala Nicolas Carnot. Almoçámos ontem na...

— Sim, claro. Como está?

— Estava a perguntar-me se continua a ter tempo para mostrar a sua coleção ao Monsieur Antonov.

— Limpei a minha agenda — mentiu. — A que horas é que ele gostaria de vir?

— Pode ser às duas horas?

— Às duas seria perfeito.

— Preciso de passar por aí primeiro para dar uma vista de olhos.

— Desculpe?

— O Monsieur Antonov é cauteloso em relação à segurança.

— Garanto-lhe, a minha galeria é bastante segura.

Houve um silêncio.

— A que horas gostaria de vir? — perguntou Olivia, exasperada.

— Estou livre agora, se a senhora estiver.

— Pode vir agora, não há problema.

— Perfeito. Oh, e mais uma coisa, Madame Watson.

— Sim?

— A sua rececionista.

— A Monique? O que é que tem?

— Dê-lhe um recado para fazer, algo que a mantenha fora da galeria durante alguns minutos. Pode fazer isso por mim, Madame Watson?

 

Transcorreram cinco minutos antes de a rececionista finalmente sair da galeria. Deteve-se na fornalha da praça, os seus olhos moveram-se para a esquerda e para a direita. Depois, deambulou vagarosamente, passando pela mesa de Keller no café vizinho com os braços a pender ao lado do corpo como flores de caule longo. Ele escreveu uma mensagem breve no telemóvel e disparou-a para a casa segura de Ramatuelle. A resposta chegou imediatamente. O helicóptero de Martel estava a leste de Cannes. Tudo decorria conforme o planeado.

Como bom agente operacional, Keller pagara a conta antecipadamente. Erguendo-se, dirigiu-se para a galeria e colocou o polegar pesadamente sobre a campainha. Não houve resposta. Amor com amor se paga, pensou. Tocou à campainha uma segunda vez. As fechaduras de segurança abriram-se com um estalido e ele entrou.

 

Havia algo diferente nele, Olivia tinha a certeza disso. Exteriormente, era a mesma criatura superficial e indiferente com quem almoçara na villa de Antonov (o homem de poucas palavras e funções indeterminadas), mas o seu comportamento mudara. Subitamente, parecia muito seguro de si e da virtude da sua causa. Atravessando a galeria, retirou os óculos de sol e colocou-os na cabeça. O seu sorriso era cordial, mas os olhos azuis eram totalmente profissionais. Dirigiu-se a ela sem antes lhe estender a mão para a cumprimentar.

— Receio que tenha havido uma ligeira mudança de planos. Afinal, o Monsieur Antonov não vai poder vir.

— Porque não?

— Um pequeno problema que exigia a sua atenção imediata. Nada de urgente, ouça. Não há motivo para alarme. — Disse tudo isto no seu francês com sotaque corso, com o mesmo sorriso inofensivo.

— Então porque é que me telefonou? E porque é que — perguntou Olivia — está aqui?

— Porque a sua galeria suscitou o interesse de alguns amigos do Monsieur Antonov que gostariam de falar consigo em privado.

— Que tipo de interesse?

— Diz respeito a várias transações recentes suas. Foram bastante lucrativas, mas pouco ortodoxas.

— As transações desta galeria — disse ela friamente — são privadas.

— Não tão privadas quanto pensa.

Olivia sentiu o rosto a começar a arder. Caminhou lentamente até à secretária de Monique e levantou o auscultador do descanso. A sua mão tremia enquanto marcava o número.

— Não se incomode a telefonar ao seu marido, Olivia. Ele não vai atender.

Ela ergueu o olhar repentinamente. Ele dissera estas palavras não em francês, mas em inglês com sotaque britânico.

— Ele não é meu marido — ouviu-se a si própria dizer.

— Oh, sim, esqueci-me. Ele continua no ar — continuou. — Algures entre Cannes e Nice. Mas tomámos a precaução adicional de bloquear todas as suas chamadas recebidas.

— Tomámos?

— Os serviços secretos britânicos — respondeu calmamente. — Não se preocupe, Olivia, está em muito boas mãos.

Ela pressionou o telefone contra o ouvido e ouviu a gravação de voice mail de Jean-Luc.

— Pouse o telefone, Olivia, e respire bem fundo. Não vou magoá-la. Estou aqui para ajudar. Pense em mim como a sua última oportunidade. Se fosse a si, aproveitava-a.

Ela devolveu o telefone ao descanso.

— Linda menina — disse ele.

— Quem é você?

— O meu nome é Nicolas Carnot e trabalho para o Monsieur Antonov, é importante que se lembre disso. Agora, pegue na sua mala, no seu telefone e nas chaves e leve-os para aquele seu belo Range Rover. E, por favor, despache-se, Olivia. Não temos muito tempo.


32

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


O Range Rover estava no seu local habitual, estacionado ilegalmente à porta do restaurante de Jean-Luc no Porto Velho. Olivia deslizou para trás do volante e, seguindo as indicações, conduziu para oeste ao longo do golfo de Saint-Tropez. Por duas vezes, pediu-lhe que explicasse porque é que a sua galeria tinha interesse suficiente para justificar um estratagema tão elaborado por parte dos serviços secretos britânicos. Por duas vezes, ele fez comentários sobre o cenário e o tempo, ao estilo de Nicolas Carnot, amigo do Monsieur Dmitri Antonov.

— Como é que aprendeu a falar assim?

— Assim como?

— Como um corso.

— A minha tia Beatrice era da Córsega. Está prestes a passar o sítio onde tem de virar.

— Para que lado?

Ele apontou na direção da saída para Gassin e Ramatuelle. Ela guinou bruscamente o volante para a esquerda e, pouco depois, dirigiram-se para sul, para a zona rural escarpada que separava o golfo e a Baie de Cavalaire.

— Para onde me está a levar?

— Para ver uns amigos do Monsieur Antonov, claro.

Ela rendeu-se e conduziu em silêncio. Nenhum deles falou até depois de terem passado Ramatuelle. Ele deu-lhe indicações para que se dirigisse para uma estrada secundária mais pequena e, eventualmente, até à entrada da villa. O portão estava aberto para os receber. Ela estacionou no pátio e desligou o motor.

— Não é tão luxuosa como a Villa Soleil — disse ele —, mas vai achá-la bastante confortável.

Subitamente, havia um homem de pé junto da porta de Olivia. Ela reconheceu-o. Vira-o nessa mesma manhã na Place de l’Ormeau. Ele ajudou-a a sair do Range Rover e, com um único movimento da mão, guiou-a na direção da entrada da villa. O homem que ela conhecia apenas como Nicolas Carnot (o homem que falava francês como um corso e inglês com um sotaque chique do West End) caminhou ao seu lado.

— Ele também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Quem?

— O que me abriu a porta.

— Não vi ninguém.

Olivia virou-se para trás, mas o homem tinha desaparecido. Talvez tivesse sido uma alucinação. Foi o calor, pensou ela. Sentia-se verdadeiramente fraca devido à temperatura.

Enquanto se aproximava da villa, a porta moveu-se para trás e Dmitri Antonov surgiu no meio da brecha.

— Olivia! — exclamou, como se ela fosse a sua amiga mais antiga do mundo. — Peço imensa desculpa por incomodá-la, mas receio que não houvesse alternativa. Entre e esteja à vontade. Está cá toda a gente. Estão bastante desejosos de a conhecerem por fim em carne e osso.

Disse tudo isso no seu inglês com sotaque russo. Olivia não sabia bem se seria verdadeiro ou uma atuação. Na verdade, naquele momento, não sabia nada de nada.

Segui-o através do hall de entrada e por baixo de uma arcada que dava para a sala de estar, que estava mobilada de forma confortável e com muitas telas penduradas na parede.

Todas estavam em branco.

As pernas de Olivia pareceram liquidificar-se. O Monsieur Antonov equilibrou-a e empurrou-a suavemente para a frente.

Havia outros três homens presentes. Um era alto, bonito e distinto e indiscutivelmente inglês. Estava, calmamente, a dizer algo em francês a uma figura amarrotada que envergava um casaco de tweed e parecia ter sido extraída de um alfarrabista. O silêncio abateu-se sobre a conversa quando Olivia entrou e os seus rostos viraram-se para ela como girassóis para a aurora. Contudo, o terceiro homem parecia totalmente alheio à sua chegada. Fitava uma das telas em branco, com uma mão pressionada contra o queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. A tela era idêntica, em termos de dimensões, a todas as outras, mas estava apoiada sobre um cavalete. O homem parecia confortável diante dela, observou Olivia. Era de altura e constituição medianas. O seu cabelo estava cortado curto e era grisalho nas têmporas. Os seus olhos, que estavam resolutamente fixos na tela, eram de um invulgar tom de verde.

— Acho — disse ele, finalmente — que este é o meu favorito. A técnica do desenho é absolutamente extraordinária e o uso da cor e da luz é inigualável. Invejo a paleta dele.

Despejou tudo isto sem pausas e em francês, com um sotaque que Olivia não conseguiu identificar com precisão. Era uma mistura peculiar, um pouco de alemão, uma pitada de italiano. Continuava a olhar fixamente para o quadro. A sua postura mantinha-se inalterada.

— A primeira vez que o vi — continuou —, pensei que era realmente único. Mas estava enganado. Quadros como este parecem ser a especialidade da sua galeria. Na verdade, tanto quanto consegui perceber, conseguiu o monopólio do mercado no que se refere a telas em branco. — Os olhos verdes viraram-se finalmente para ela. — Parabéns, Olivia. É uma proeza e tanto.

— Quem é você?

— Sou um amigo do Monsieur Antonov.

— Também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Por amor de Deus, não! Mas ele sim — disse, apontando na direção do inglês com aparência distinta. — Na verdade, é o chefe da Divisão dos Serviços Secretos que é por vezes referida como MI6. Antigamente, o nome dele era um segredo de Estado, mas os tempos mudaram. Ocasionalmente, concede uma entrevista e permite que lhe tirem uma fotografia. Em tempos, isso teria sido uma heresia, mas já não.

— E ele? — perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da figura amarrotada vestida de tweed.

— Francês — explicou o homem de olhos verdes. — É chefe de algo chamado Grupo Alpha. Talvez tenha ouvido o nome. O quartel-general em Paris foi bombardeado há não muito tempo e vários dos seus agentes perderam a vida. Como seria de esperar, está interessado em descobrir o homem que fez isso. E gostava que a Olivia o ajudasse a encontrá-lo.

— Eu? — perguntou, incrédula. — Como?

— Chegaremos a isso daqui a pouco. Quanto à minha origem — disse ele —, sou o homem esquisito que está de fora. Sou do local de que não gostamos de falar.

Foi nesse momento que ela conseguiu finalmente identificar o seu peculiar sotaque.

— É de Israel.

— Receio que sim. Mas, voltando ao assunto em questão — acrescentou rapidamente —, que é a Olivia e a sua galeria. Não é uma verdadeira galeria, pois não, Olivia? Oh, vende aquele quadro ocasional, como o Guston que estava a tentar impingir ao pobre Herr Müller hoje de manhã pelo preço obsceno de vinte milhões de euros. Mas serve, basicamente, como uma máquina de lavagem de dinheiro do verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel, que são as drogas.

Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala.

— Este é o momento — disse o homem de olhos verdes — em que a Olivia me diz que o seu... — Deteve-se a si próprio. — Desculpe-me, mas sou exigente com os pormenores. Como é que a Olivia se refere ao Jean-Luc?

— É meu parceiro.

— Parceiro? Que infelicidade.

— Porquê?

— Porque a palavra parceiro implica uma relação de negócios.

— Acho que gostaria de telefonar ao meu advogado.

— Se o fizer, perderá a única e exclusiva oportunidade que tem de se salvar a si própria. — Fez uma pausa para avaliar o impacto das suas palavras. — A sua galeria é pequena, mas é uma parte importante de uma vasta organização criminosa. O negócio dessa organização é a droga. Droga que vem sobretudo do Norte de África. Droga que flui através das mãos do grupo terrorista que se autodenomina Estado Islâmico. O Jean-Luc Martel é o distribuidor dessa droga aqui na Europa Ocidental. Faz negócios com o ISIS. Consciente ou inconscientemente, está a ajudar a financiar as operações do grupo. O que significa que a Olivia também está.

— Desejo-lhe sorte a tentar provar isso num tribunal francês.

Ele sorriu pela primeira vez. Foi frio e rápido.

— Uma demonstração de coragem — disse com admiração trocista —, mas ainda nenhuma negação sobre o negócio do seu marido.

— Ele não é meu marido.

— Oh, sim — disse ele desdenhosamente —, esqueci-me.

Eram as mesmas palavras que o homem chamado Nicolas Carnot proferira na galeria de arte.

— Quanto a telefonar ao seu advogado — continuou o israelita — isso não será necessário. Pelo menos, para já. Sabe, Olivia, não há agentes da polícia nesta sala. Nós somos agentes dos serviços secretos. Atenção, não temos nada contra a polícia. Eles têm o seu trabalho para fazer e nós temos o nosso. Eles resolvem crimes e fazem detenções, mas o nosso ramo é a informação. A Olivia tem-na, nós precisamos dela. Esta é a sua oportunidade, Olivia. É a sua única e exclusiva hipótese. Se eu fosse seu advogado, aconselhá-la-ia a aproveitá-la. É o melhor acordo que algum dia conseguirá.

Houve outro silêncio, mais demorado do que o anterior.

— Desculpem — disse ela, finalmente —, mas não posso ajudá-los.

— Não pode ajudar-nos, Olivia, ou não quer?

— Não sei nada sobre o negócio do Jean-Luc.

— As quarenta e oito telas em branco que encontrei no Freeport de Genebra dizem o contrário. Foram enviadas para lá pela Galerie Olivia Watson. O que significa que será a Olivia a enfrentar acusações, não ele. E o que é que acha que o seu parceiro fará nessa altura? Irá a cavalgar para a salvar? Irá colocar-se diante de uma bala por si? — Abanou a cabeça lentamente. — Não, Olivia, não o fará. De tudo o que sei sobre o Jean-Luc Martel, não é esse tipo de homem.

Ela não deu qualquer resposta.

— Então como é que vai ser, Olivia? Vai ajudar-nos?

Ela abanou a cabeça.

— Porque não?

— Porque, se o fizer — disse ela calmamente —, o Jean-Luc mata-me.

Ele sorriu novamente. Desta vez, parecia genuíno.

— Disse alguma coisa engraçada? — perguntou ela.

— Não, Olivia, disse-me a verdade. — Os olhos verdes deixaram o rosto dela e pousaram mais uma vez na tela em branco. — O que é que vê quando olha para aqui?

— Vejo uma coisa que o Jean-Luc me obrigou a fazer para poder manter a minha galeria.

— Interessante interpretação. Sabe o que é que eu vejo?

— O quê?

— Vejo-a a si sem o Jean-Luc.

— E que tal lhe pareço?

— Venha cá, Olivia. — Ele afastou-se da tela. — Veja por si própria.


33

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


As telas em branco foram retiradas das paredes e do cavalete, e uma mulher de cabelo escuro de cerca de trinta e cinco anos serviu silenciosamente bebidas frias. Olivia foi convidada a sentar-se. Por sua vez, o inglês garboso e o seu parceiro francês amarrotado foram devidamente apresentados. Os seus nomes eram suficientemente familiares. Também o era o rosto anguloso do israelita de olhos verdes. Olivia tinha praticamente a certeza de que o vira nalgum lado anteriormente, mas não conseguia decidir onde fora. Ele apresentou-se apenas como Gideon e caminhou lentamente pelo perímetro da divisão, enquanto todos os outros se sentavam a transpirar no incansável calor. Uma ventoinha giratória batia monotonamente e sem qualquer efeito no canto; moscas enormes moviam-se como abutres para dentro e para fora das portas francesas abertas. Subitamente, o israelita parou de caminhar e, com um movimento rápido da mão, apanhou uma no ar.

— Gostava daquilo? — perguntou ele.

— De quê?

— De ver a sua cara em revistas e outdoors.

— Não é tão fácil como parece.

— Não é glamoroso?

— Nem sempre.

— Então e as festas e desfiles?

— Para mim, os desfiles eram trabalho. E as festas — disse — tornaram-se bastante aborrecidas passado algum tempo.

Ele lançou o cadáver da mosca para o jardim inundado de sol e, virando-se, avaliou Olivia exaustivamente.

— Então porque é que escolheu uma vida assim?

— Não escolhi. Foi ela que me escolheu.

— A Olivia foi descoberta?

— Por assim dizer.

— Aconteceu quando tinha dezasseis anos, não foi?

— É evidente que leu os artigos sobre mim.

— Com grande interesse — admitiu. — A Olivia fez uma audição para figurante num filme de época que estava a ser gravado na costa de Norfolk. Não conseguiu o papel, mas alguém na equipa de produção lhe sugeriu que devia pensar em ser modelo. E, portanto, a Olivia decidiu abandonar os seus estudos e ir para Nova Iorque para enveredar por uma carreira na moda. Aos dezoito anos, era uma das modelos mais em voga na Europa. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Esqueci-me de alguma coisa?

— De muita coisa, na verdade.

— Tal como?

— Nova Iorque.

— Então porque é que não continua a história a partir daí? — disse ele. — De Nova Iorque.

Foi um inferno, contou-lhe ela. Depois de assinar um contrato com uma agência conhecida, puseram-na num apartamento no West Side de Manhattan com mais oito raparigas que dormiam em beliches, em turnos rotativos. Durante o dia, mandavam-na ir a castings com potenciais clientes e jovens fotógrafos que estavam a tentar entrar no ramo. Se tivesse sorte, o fotógrafo aceitava tirar-lhe algumas fotografias que poderia colocar no portfólio. Caso contrário, saía de mãos a abanar e regressava ao exíguo apartamento para combater as baratas e as formigas. À noite, ela e as restantes raparigas alugavam-se a discotecas para ganharem algum dinheiro. Olivia foi agredida sexualmente duas vezes. O segundo ataque deixou-a com um olho negro que a impediu de trabalhar durante quase um mês.

— Mas a Olivia perseverou — disse o israelita.

— Suponho que sim.

— O que é que aconteceu depois de Nova Iorque?

— Aconteceu o Freddie.

Freddie, explicou, era Freddie Mansur, o agente mais em voga no ramo e um dos mais célebres predadores. Freddie trouxe Olivia para Paris e para a sua cama. Também lhe deu drogas: erva, cocaína, barbitúricos para a ajudar a dormir. À medida que o seu consumo calórico se reduzia a níveis próximos da inanição, o seu peso caía a pique. Rapidamente, era apenas pele e osso. Quando tinha fome, fumava um cigarro ou snifava um risco. Coca e tabaco: Freddie chamava-lhe a dieta de modelo.

— E o mais engraçado é que funcionou. Quanto mais magra ficava, melhor aparência tinha. Por dentro, estava a morrer lentamente, mas a máquina fotográfica adorava-me. E os anunciantes também.

— A Olivia era uma supermodelo?

— Nem por sombras, mas safava-me bastante bem. E o Freddie também. Ficava com um terço de tudo o que eu ganhava. E um terço do salário de todas as outras raparigas que representava na altura.

— E com quem dormia?

— Digamos, simplesmente, que a nossa relação não era monogâmica.

Aos vinte e seis, a aparência cadavérica e toxicodependente com a qual estava associada passou de moda e a sua estrela começou a esmorecer. Muito do seu trabalho tinha lugar na passarela, onde a sua estrutura alta e membros compridos continuavam com grande procura. Mas o trigésimo aniversário foi um ponto de viragem. Houve um antes dos trinta e um depois dos trinta, explicou, e depois dos trinta o trabalho praticamente acabou. Aguentou durante mais três anos, até o próprio Freddie a advertir de que tinha chegado o momento de deixar o ramo. Fê-lo gentilmente, no início, e, quando ela resistiu, cortou os laços profissionais e românticos que tinha com ela e atirou-a para o meio da rua. Tinha trinta e três anos, não tinha estudos, estava desempregada e acabada.

— Mas era rica?

— Dificilmente.

— Então, e todo o dinheiro que ganhou?

— O dinheiro vem e o dinheiro vai.

— Drogas?

— E outras coisas.

— A Olivia gostava das drogas?

— Precisava delas, há uma diferença. Infelizmente, o Freddie deixou-me com uns quantos vícios caros.

— Então, o que é que fez?

— Fiz o que faria qualquer mulher na minha posição. Fiz as malas e fui para Saint-Tropez.

Com o que restava do seu dinheiro, arranjou uma villa nas montanhas («Era um barracão, na verdade, não muito longe daqui») e comprou uma scooter em segunda mão. Passava os dias na praia em Pampelonne e as noites em bares e discotecas da povoação. Naturalmente, encontrou aí muitos homens: árabes, russos, lixo europeu de cabelo prateado. Permitiu que alguns a levassem para a cama em troca de presentes e dinheiro, o que a fez sentir-se praticamente como uma prostituta. Acima de tudo, procurou um companheiro adequado, alguém que pudesse sustentar o estilo de vida ao qual se habituara. Alguém que não lhe causasse demasiada repulsa. Rapidamente, concluiu que viera para o local errado e, com o dinheiro a começar a escassear, aceitou um emprego numa pequena galeria de arte que era propriedade de um britânico expatriado. Então, bastante casualmente, conheceu o homem que mudaria a sua vida.

— O Jean-Luc Martel?

Ela não conseguiu evitar sorrir.

— Onde é que o conheceu?

— Numa festa, onde mais poderia ser? O Jean-Luc estava sempre numa festa. O Jean-Luc era a festa.

Na realidade, explicou, não foi a primeira vez que se conheceram. A primeira vez fora na Fashion Week em Milão, mas, nessa altura Jean-Luc estava com a esposa e mal olhara Olivia nos olhos ao apertar-lhe a mão. Mas, aquando do seu segundo encontro, era um viúvo em recuperação e desejoso de atividade. E Olivia apaixonou-se perdida e instantaneamente por ele.

— Eu era a Rosemary e ele era o Dick. Fiquei absolutamente impotente de amor.

— A Rosemary e o Dick?

— Rosemary Hoyt e Dick Diver. São personagens do...

— Eu sei quem são, Olivia. E está a lisonjear-se com a comparação.

As palavras foram como um estalo na sua face. As maçãs do seu rosto incendiaram-se de cor.

— Ele deu-lhe presentes e dinheiro como os outros?

— O Jean-Luc não tinha de pagar pelas suas miúdas. Era incrivelmente bonito e fabulosamente bem-sucedido. Era... o Jean-Luc.

— E o que é que acha que ele viu em si?

— Costumava perguntar-lhe a mesma coisa.

— Qual era a resposta dele?

— Achava que fazíamos uma boa equipa.

— Então foi uma parceria desde o início?

— Mais ou menos.

— Alguma vez falaram de casamento?

— Eu falei, mas o Jean-Luc não estava interessado. Costumávamos ter discussões terríveis sobre isso. Disse-lhe que não ia desperdiçar os melhores anos da minha vida a ser a concubina dele, que queria casar com ele e ter filhos. No final, chegámos a um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Ele deu-me outra coisa em vez do casamento e dos filhos.

— E que coisa foi essa?

— A Galerie Olivia Watson.


34

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


Olivia estava habituada a ter homens a fitarem-na. Homens ofegantes. Homens arquejantes. Homens de olhos húmidos, desejosos. Homens que fariam qualquer coisa, pagariam quase qualquer preço, para a ter nas suas camas. Os três homens agora alinhados diante dela (o mestre de espionagem britânico, o polícia secreto francês e o israelita sem origem declarada, mas de rosto vagamente familiar) também a estavam a fitar, mas definitivamente por um motivo diferente. Pareciam impenetráveis ao feitiço da sua aparência. Para eles, ela não era um objeto digno de ser admirado; era um meio para atingir um fim. Um fim que ainda não tinham considerado adequado revelar. Não estava, de todo, convencida de que gostassem dela. Ainda assim, sentiu-se aliviada por saber que ainda existiam homens assim. Uma carreira na indústria da moda e dez anos no mundo do faz-de-conta de Saint-Tropez tinham-na deixado com uma opinião bastante baixa sobre a espécie.

Galerie Olivia Watson...

Disse-lhes que o nome fora ideia de Jean-Luc, não sua. Ela quisera pendurar o nome consolidado da JLM sobre a porta da galeria, mas Jean-Luc insistira que a galeria ostentasse o nome dela em vez do seu. Deu-lhe o dinheiro para comprar o edifício antigo e elegante na Place de l’Ormeau e, depois, financiou a aquisição de uma coleção de nível mundial de arte contemporânea. Olivia quisera adquirir o acervo lenta e modestamente, com especial ênfase em artistas mediterrânicos. Mas Jean-Luc não quisera sequer ouvir falar nessa hipótese. Ele não fazia as coisas de forma lenta e modesta, explicou. Unicamente grande e vistosa. A galeria abriu com um nível de ostentação e glamour que só JLM poderia proporcionar. Depois disso, ele afastou-se e cedeu a Olivia um absoluto controlo artístico e financeiro.

— Mas apenas até certo ponto — disse ela.

— O que é que isso quer dizer? — perguntou o israelita. — Ou se detém controlo absoluto ou não se detém. Não existe um meio-termo.

— Existe, quando o Jean-Luc está envolvido.

Ele convidou-a a desenvolver o assunto.

— O Jean-Luc encarregava-se da contabilidade da galeria.

— Não achou isso estranho?

— Na verdade, fiquei aliviada. Eu era uma antiga modelo e ele era um empresário extremamente bem-sucedido.

— Quanto tempo demorou a descobrir que alguma coisa não estava bem?

— Dois anos. Talvez um pouco mais.

— O que é que aconteceu?

— Comecei a ver os registos da galeria sem ter o Jean-Luc a espreitar por cima do meu ombro.

— E o que é que descobriu?

— Que estava a adquirir e a vender mais trabalhos do que alguma vez imaginei ser possível.

— O negócio da galeria ia de vento em popa?

— Isso é pouco. Na verdade, logo no segundo ano de atividade, a Galerie Olivia Watson fez mais de trezentos milhões de euros de lucro. A maioria das vendas era totalmente privada e envolviam quadros que eu nunca tinha visto.

— O que é que fez?

— Confrontei-o.

— E como é que ele reagiu?

— Disse-me para me meter nos meus negócios. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — O jogo de palavras não foi intencional.

— Foi o que fez?

Ela hesitou antes de assentir lentamente com a cabeça.

— Porquê?

Quando ela não deu qualquer explicação, ele sugeriu-lhe uma.

— Porque a sua vida era perfeita e não queria fazer nada que a perturbasse.

— Todos fazemos concessões nas nossas vidas.

— Mas nem todos encontramos refúgio nos braços de um traficante de droga. — Fez uma pequena pausa para permitir que as palavras a ferissem o suficiente. — Sabia que o verdadeiro negócio do Jean-Luc eram os estupefacientes, não sabia?

— Continuo a não saber.

O israelita recebeu a resposta com um desdém justificado.

— Não temos muito tempo, Olivia. Era melhor que não o desperdiçasse com negações inúteis.

Houve um silêncio, para dentro do qual o inglês que se autodenominava Nicolas Carnot rastejou. Foi até à estante e, esticando o pescoço para o lado, retirou um volume com uma capa gasta. Era O Céu Que Nos Protege, do romancista americano Paul Bowles. Enfiou o livro debaixo do braço e, com um olhar de soslaio para Olivia, saiu sorrateiramente da divisão de novo. Ela olhou para o israelita, que lhe devolveu um olhar destituído de julgamento.

— Estava prestes a contar-me — disse ele finalmente — quando é que se apercebeu de que o seu parceiro doméstico e empresarial era um traficante de droga.

— Ouvi rumores, tal como toda a gente.

— Mas, ao contrário de toda a gente, a Olivia encontrava-se numa posição única para saber se eram ou não verdade. Afinal de contas, a Olivia era a proprietária formal de uma galeria de arte que servia como uma das suas mais eficazes fachadas para lavar dinheiro.

Ela sorriu.

— Que ingénuo da sua parte.

— Porquê?

— Porque o Jean-Luc é muito bom a manter segredos. — Depois acrescentou: — Quase tão bom como o senhor e os seus amigos.

— Nós somos profissionais.

— O Jean-Luc também — disse ela sombriamente.

— Alguma vez lho perguntou?

— Se ele é traficante de droga?

— Sim.

— Só uma vez. Ele riu-se. E depois disse-me que nunca mais lhe fizesse perguntas sobre o negócio dele.

— E fez?

— Nunca.

— Porque não?

— Porque tinha ouvido outros rumores — disse ela. — Rumores sobre o que acontecia às pessoas que se lhe atravessavam no caminho.

— E, ainda assim, ficou — referiu ele.

— Fiquei — retorquiu ela — porque tive medo de partir.

— Medo de partir ou medo de perder a galeria?

— Ambos — admitiu.

Um lampejo de um sorriso surgiu nos lábios dele e depois desapareceu.

— Admiro a sua honestidade, Olivia.

— Pelo menos isso...

— Tal como o Nicolas Carnot, tenho tendência para me abster de qualquer julgamento. Principalmente, quando há informação valiosa em jogo.

— Que tipo de informação?

— A organização do negócio do Jean-Luc, por exemplo. A Olivia deve ter conseguido reunir uma quantidade de informação considerável sobre a forma como a empresa está estruturada. É bastante opaca, no mínimo. Olhando para ela do exterior, conseguimos identificar alguns dos atores. Há um chefe para cada divisão (para os restaurantes, para os hotéis, para a parte do retalho), mas, por mais que tentemos, não somos capazes de identificar o chefe da unidade de estupefacientes ilícitos da JLM.

— Está a brincar.

— Só um bocadinho. É um homem ou são dois? É o próprio Jean-Luc?

Ela não disse nada.

— Tempo, Olivia. Não temos muito tempo. Precisamos de saber como é que o Jean-Luc gere o seu negócio de droga. Como é que dá as ordens. Como é que se isola para que a polícia não lhe consiga tocar. Não acontece por osmose ou telecinesia. Existe, algures, uma figura de confiança que trata dos interesses dele. Alguém que consegue entrar e sair da sua órbita sem levantar suspeitas. Alguém com quem ele comunica apenas pessoalmente, em voz baixa, num quarto onde não existem telefones presentes. Certamente, sabe quem é esse homem, Olivia. Talvez se conheçam. Talvez a Olivia seja amiga dele.

— Amiga, não — disse ela, passado um momento. — Mas realmente sei quem ele é. E sei o que me aconteceria se lhe dissesse o nome dele. Ele matava-me. E nem sequer o Jean-Luc conseguiria impedi-lo.

— Ninguém lhe vai fazer mal, Olivia.

Ela olhou-o com ceticismo. Ele fingiu ficar moderadamente ofendido.

— Pense nos esforços extraordinários que fizemos para trazê-la aqui hoje. Não demonstrámos o nosso profissionalismo? Não provámos que merecemos a sua confiança?

— E quando desaparecerem? Quem é que me vai proteger nessa altura?

— A Olivia não vai precisar de proteção — replicou ele — porque também terá desaparecido.

— Onde é que eu estarei?

— Isso cabe-lhe a si e ao seu compatriota decidir — disse ele, com uma inclinação da cabeça na direção do chefe dos serviços secretos britânicos. — Bem, calculo que possa oferecer-lhe um apartamento agradável com vista para o mar em Telavive, mas suspeito que se sinta mais confortável em Inglaterra.

— O que é que vou fazer para ganhar dinheiro?

— Gerir uma galeria de arte, evidentemente.

— Qual?

— A Galerie Olivia Watson. — Ele sorriu. — Apesar de o seu inventário profissional ter sido adquirido com dinheiro proveniente da droga, estamos preparados para a deixar mantê-lo. Com duas exceções — acrescentou.

— Quais?

— O Guston e o Basquiat. O Monsieur Antonov gostaria de lhe passar um cheque de cinquenta milhões por ambos, o que deverá dissipar quaisquer preocupações que o Jean-Luc possa ter sobre a forma como passou esta tarde. E não se preocupe — acrescentou. — Ao contrário do Monsieur Antonov, o dinheiro é absolutamente real.

— Que generoso da vossa parte — disse ela. — Mas ainda não me disseram o motivo de tudo isto.

— O motivo é Paris — respondeu ele. — E Londres. E Antuérpia. E Amesterdão. E Estugarda. E Washington. E uma centena de outros atentados de que a Olivia nunca ouviu falar.

— O Jean-Luc não é nenhum anjo, mas também não é nenhum terrorista.

— É verdade. Mas acreditamos que faz negócios com um, o que significa que está a ajudar a financiar os atentados. Mas receio que isto seja o máximo que lhe vou dizer em relação a este assunto. Quanto menos souber, melhor, É assim que funciona no nosso ramo. E a única coisa que precisa de saber é que lhe está a ser concedida uma oportunidade única. É uma possibilidade de começar do zero. Pense nela como uma tela em branco na qual pode pintar a imagem que quiser. E só lhe custará o nome dele. — Ele sorriu e perguntou: — Temos acordo, senhora Wilson?

— Watson. O meu nome é Olivia Watson. E, sim — disse, passado um momento. — Creio que temos acordo.

 

Falaram durante toda a tarde, enquanto o calor abrandava e as sombras se tornavam mais finas e longas no jardim e no olival prateado que trepava pela encosta ao lado. As circunstâncias do seu repatriamento para o Reino Unido. A forma como deveria comportar-se na presença de Jean-Luc ao longo dos dias seguintes. Os procedimentos que deveria seguir caso ocorresse alguma urgência imprevista. O israelita de olhos verdes referiu-se a isso como o plano «quebrar-em-caso-de-emergência» e advertiu Olivia de que deveria ser ativado apenas em caso de extremo perigo, pois implicaria, necessariamente, um enorme gasto de tempo e esforço e o desperdício de incontáveis milhões em despesas operacionais.

Só depois disso Gabriel pediu o nome a Olivia. O nome do homem em quem Jean-Luc confiava para gerir o seu império de muitos milhares de milhões de euros em estupefacientes. O lado sujo da JLM Enterprises, como o israelita lhe chamou. O lado que tornava tudo o resto (os restaurantes, os hotéis, as boutiques e as lojas, a galeria de arte na Place de l’Ormeau) possível. A primeira vez que Olivia o proferiu, fê-lo suavemente, como se tivesse uma mão a apertar-lhe a garganta. O israelita pediu-lhe que repetisse o nome e, ouvindo-o claramente, trocou um olhar longo, especulativo com Paul Rousseau. Passado algum tempo, Rousseau assentiu lentamente com a cabeça e, depois, voltou a contemplar o seu cachimbo dormente enquanto, no outro lado da sala, Nicolas Carnot devolvia o volume de Bowles ao seu lugar original na prateleira.

Depois disso, não houve mais discussão sobre droga ou terrorismo ou sobre o verdadeiro motivo pelo qual Olivia fora trazida à modesta villa nos arredores de Ramatuelle. O Monsieur Antonov materializou-se, todo sorrisos e bonomia com sotaque russo, e, juntos, prepararam a transferência de cinquenta milhões de euros das suas contas para as da galeria. Foi aberta uma garrafa de champanhe para comemorar a venda. Olivia não bebeu do copo que lhe colocaram na mão. O israelita também não tocou no seu copo. Era, pensou Olivia, um homem de uma disciplina admirável.

Pouco depois das seis da tarde, Nicolas Carnot devolveu o telemóvel a Olivia. Ela não sabia em que momento lho tirara. Calculou que o tivesse retirado da sua mala durante a viagem de carro de Saint-Tropez. Olhando de relance para o ecrã, viu várias mensagens de texto que tinham chegado durante o interrogatório. A última era de Jean-Luc. Chegara apenas um instante antes. Dizia que estava prestes a embarcar no seu helicóptero e chegaria a casa dentro de uma hora.

Olivia ergueu o olhar, alarmada.

— O que é que eu devo dizer-lhe?

— O que é que lhe diria normalmente? — perguntou o israelita.

— Dir-lhe-ia que fizesse boa viagem.

— Então, por favor, diga isso. E talvez queira mencionar que tem uma surpresa de cinquenta milhões de euros para ele. Isso deve alegrar-lhe a disposição. Mas não revele demasiado. Não queremos estragar a surpresa.

Olivia digitou a resposta na caixa de texto com o polegar e levantou o ecrã para que ele visse.

— Muito bem feito.

Com um toque suave, enviou a mensagem.

— Está na hora de se ir embora — disse o israelita. — Não queremos que a sua carruagem se transforme numa abóbora, pois não?

No exterior, algumas nuvens sopradas pelo vento moviam-se velozmente pelo céu noturno. Nicolas Carnot falou apenas em francês durante a viagem para sul em direção à Baie de Cavalaire, e apenas sobre o Monsieur Antonov e os quadros. Deveriam ser entregues na Villa Soleil imediatamente após a receção do dinheiro. A Madame Sophie, disse ele, já escolhera o local onde seriam pendurados.

— Ela odeia-me — disse Olivia.

— Não é assim tão má, depois de a conhecermos.

— É francesa?

— O que mais é que poderia ser?

Os Antonovs viviam no lado ocidental da baía, Jean-Luc e Olivia no oriental. Enquanto se aproximavam do minimercado Spar na esquina do Boulevard Saint-Michel, o Monsieur Carnot indicou-lhe que parasse. Apertou a mão dela firmemente e, em inglês, assegurou-lhe que não tinha nada a temer, que estava a fazer a coisa certa. Depois, desejou-lhe uma noite agradável e, sorrindo como se nada de invulgar tivesse acontecido nessa tarde, saiu do carro. Quando o viu pela última vez, foi no espelho retrovisor, a acelerar na direção oposta em cima de uma pequena mota. A fugir do local do crime, pensou ela.

Olivia continuou para leste ao longo da baía e, alguns minutos mais tarde, entrou na luxuosa villa que partilhava com o homem que acabara de trair. Na cozinha, serviu um grande copo de rosé para si e levou-o para o terraço no exterior. Através do brilho intenso do sol poente, conseguiu distinguir os contornos vagos da villa monstruosa do Monsieur Antonov. Nesse preciso momento, o seu telemóvel vibrou. Fitou o ecrã. EM CASA DAQUI A CINCO MINUTOS... QUAL É A SURPRESA?

— A surpresa — disse ela em voz alta — é que o teu amigo russo e a cabra da mulher dele acabaram de me passar um cheque de cinquenta milhões de euros. — Repetiu-o vezes sem conta, até acreditar que era verdade.


35

MARSELHA, FRANÇA

Às onze e quarenta e cinco da manhã seguinte, a quantia de cinquenta milhões de euros apareceu na conta da Galerie Olivia Watson, 9 Place de l’Ormeau, Saint-Tropez, França. O dinheiro não teve de viajar até muito longe, visto que tanto emissor como destinatário tinham as suas contas no HSBC do Boulevard Haussmann, em Paris. A meio da tarde, repousava confortavelmente num conceituado banco suíço em Genebra, numa conta controlada pela JLM Enterprises. E, às cinco horas, dois quadros (um de Guston, outro de Basquiat) foram entregues na Villa Soleil, numa carrinha sem identificação exterior. Olivia Watson ia atrás, no seu Range Rover preto. No hall de entrada, passou por Christopher Keller, que estava a sair. Ele beijou-a prodigamente em ambas as maçãs do rosto, fez um comentário sobre a sua aparência, que era deslumbrante, e depois subiu para a sua mota Peugeot Satelis. Pouco depois, estava a acelerar para oeste ao longo da costa do Mediterrâneo.

Era quase crepúsculo quando chegou aos subúrbios de Marselha. Os violentos gangues de droga prosperavam nos banlieues a norte da cidade, principalmente nos bairros sociais de Bassens e Paternelle, mas Keller aproximou-se através dos subúrbios mais tranquilos a leste. O túnel Prado-Carénage levou-o até ao Porto Velho e, daí, encaminhou-se para a Rue Grignan. Esguia e direita como uma régua, estava ladeada de lojas Boss, Vuitton, Armani e semelhantes. Havia até uma boutique-joalharia JLM. Keller jurou ter conseguido detetar o cheiro azedo a haxixe enquanto passava.

Enquanto continuava através do centro da cidade para o interior do quartier de Marselha conhecido como Le Camas, as ruas tornaram-se sujas e pobres e as lojas e cafés passaram a ter, claramente, uma clientela imigrante e de classe trabalhadora. Um desses negócios, situado no rés-do-chão de um edifício salpicado de graffitis com vista para a Place Jean Jaurès, vendia artigos eletrónicos e telemóveis com desconto a uma carteira de clientes essencialmente marroquina e argelina. Contudo, o seu proprietário era um francês chamado René Devereaux. Devereaux era proprietário de vários pequenos negócios em Marselha (todos eles orientados para fazer dinheiro, alguns numa categoria definida, de forma vaga, como entretenimento para adultos), mas a loja de produtos eletrónicos servia como uma espécie de sede operacional. O seu escritório ficava no segundo andar do edifício. A divisão não continha nenhum telefone nem dispositivos eletrónicos de qualquer tipo, um conjunto de circunstâncias curiosas para um homem que, alegadamente, tinha como profissão a venda das referidas engenhocas de conveniência modernas. René Devereaux não gostava muito de telefones e dizia-se que nunca tinha enviado, pessoalmente, um e-mail ou uma mensagem de texto. Só comunicava com os seus parceiros de negócio e subordinados ao vivo, muitas vezes na sombria praça ou numa mesa na esplanada do Au Petit Nice, um café razoavelmente agradável localizado a alguns passos da sua loja.

Keller sabia de tudo isto porque René Devereaux era uma figura proeminente no mundo onde ele, em tempos, habitara. Toda a gente no submundo criminoso francês sabia que o verdadeiro negócio de Devereaux era o tráfico de droga. Não apenas o tráfico de rua, mas o tráfico numa escala continental mais alargada. Provavelmente, a polícia francesa também estava a par disso, mas Devereaux, ao contrário de muitos dos seus concorrentes, nunca passara um único dia atrás das grades. Era um verdadeiro mafioso, um intocável. Até esta noite, pensou Keller. Pois fora o nome de René Devereaux que Olivia Watson proferira na casa segura nos arredores de Ramatuelle. Devereaux era a pessoa que fazia tudo correr sobre rodas, a pessoa que movia o haxixe das docas do sul da Europa para as ruas de Paris, Amesterdão e Bruxelas. A pessoa, pensou Keller, que conhecia todos os segredos de Jean-Luc Martel. Teriam apenas uma hipótese de o apanhar discreta e eficazmente. Felizmente, tinham à sua disposição alguns dos melhores agentes de campo do ramo.

Keller deixou a mota na extremidade da Place Jean Jaurès e caminhou até à loja de Devereaux. Espreitando para a mercadoria em exibição na montra atulhada, viu dois homens, ambos de aparência francesa, a observá-lo a partir do posto avançado atrás do balcão. No segundo andar, havia luz a cintilar atrás da porta francesa fechada que dava para a varanda degradada.

Keller afastou-se e continuou a caminhar ao longo da rua cerca de cinquenta metros, antes de parar junto de uma carrinha estacionada. Giancomo, moço de recados de Don Orsati, estava sentado ao volante. Dois outros agentes de Orsati estavam agachados no compartimento de carga traseiro, a fumar nervosamente. Giancomo, no entanto, parecia estar calmo. Keller suspeitava que era para o convencer das suas capacidades.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há uns vinte minutos. Veio à varanda fumar um cigarro.

— Tens a certeza de que ainda está lá dentro?

— Temos um homem a vigiar as traseiras do edifício.

— Onde é que estão os outros?

O jovem corso apontou com a cabeça na direção da Place Jean Jaurès. A praça estava apinhada de residentes do quartier, muitos deles vestidos com indumentária tradicional africana ou do mundo árabe. Nem mesmo Keller conseguia identificar os homens do don.

Olhou para Giancomo.

— Sem erros, estás a ouvir-me? Caso contrário, estás sujeito a ser responsabilizado por dar início a uma guerra. E sabes qual é a opinião do don sobre guerras.

— As guerras são boas para o negócio do don.

— Não são, quando ele é um dos combatentes.

— Não se preocupe. Já não sou um miudinho. Para além disso, tenho isto. — Giancomo puxou o talismã em redor do pescoço. Era idêntico ao de Keller. — Já agora, ela manda cumprimentos.

— Disse mais alguma coisa?

— Qualquer coisa sobre uma mulher.

— O que é que tem a mulher?

Giancomo encolheu os ombros.

— Sabe como é a signadora. Fala por meio de adivinhas.

Keller fumou um cigarro enquanto caminhava para o Au Petit Nice. O interior estava numa grande agitação (o Marselha estava a jogar contra o Lyon), mas havia algumas mesas livres na rua. Numa delas, estava sentado um homem de constituição mediana, com cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos. Numa mesa adjacente, dois homens de olhos escuros com cerca de vinte anos observavam os transeuntes que se movimentavam pelos passeios com invulgar intensidade. Keller aproximou-se do homem de cabelo de prata e, sem esperar por um convite, sentou-se. Havia uma garrafa de pastis e um único copo. Keller fez sinal ao empregado e pediu um segundo.

— Sabes — disse ele em francês —, devias mesmo beber um bocadinho.

— Parece gasolina com sabor a alcaçuz — respondeu Gabriel. Observou dois homens de túnica a caminhar de braço dado na rua. — Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— No Au Petit Nice?

— Em Marselha — disse Gabriel.

— Era inevitável. Quando uma pessoa está a tentar infiltrar-se numa rede europeia de droga, todos os caminhos vão dar a Marselha. — Keller também observou os transeuntes. — Achas que o Rousseau foi fiel à palavra?

— Porque é que não haveria de ser?

— Porque é um espião. O que significa que, inevitavelmente, mente.

— Tu também és um espião.

— Mas, até há pouco tempo atrás, trabalhava para o Don Anton Orsati. O mesmo Anton Orsati — acrescentou Keller — que está prestes a ajudar-nos com um trabalhinho sujo esta noite. E, se o Rousseau e os amigos dele do Grupo Alpha por acaso estiverem a observar, isso irá colocar o don, louvado seja, numa posição bastante delicada.

— O Rousseau não quer ter nada a ver com o que está prestes a acontecer aqui. Quanto ao don — continuou Gabriel —, ajudar-nos com este trabalhinho sujo, como tu tão duramente lhe chamas, foi a melhor decisão que tomou desde que te contratou.

— Então porquê?

— Porque, depois desta noite, ninguém poderá tocar-lhe sequer com um dedo. Ficará imune.

— Pensas como um criminoso.

— É o que se tem de fazer, no nosso ramo.

O empregado de mesa entregou o segundo copo. Keller encheu-o com pastis enquanto Gabriel consultava o telemóvel.

— Algum problema?

— A Madame Sophie e o Monsieur Antonov estão a discutir por causa do sítio onde pendurar os novos quadros.

— E andavam tão bem.

— Sim — disse Gabriel distraidamente, enquanto devolvia o telefone ao bolso do casaco.

— Achas que vão conseguir manter-se juntos?

— Tenho cá as minhas dúvidas.

Keller bebeu um pouco do pastis.

— Então, o que é que pretendes fazer com todos esses quadros quando a operação acabar?

— Tenho um pressentimento de que o Monsieur Antonov irá descobrir as suas raízes judias e fazer uma doação de grande notoriedade ao Museu de Israel.

— E os cinquenta milhões que deste à Olivia?

— Não lhe dei nada. Comprei dois quadros da galeria dela.

— Isso — disse Keller — é uma forma diferente de dizer a mesma coisa.

— É um preço bastante baixo a pagar se isso nos levar até ao Saladino.

— Se... — disse Keller.

— É imaginação minha — disse Gabriel —, ou passa-se alguma coisa entre ti e a...

— É imaginação tua.

— É uma rapariga muito bonita. E, quando tudo isto terminar, vai ficar bastante bem na vida.

— Tento manter-me afastado de raparigas que se agarram a traficantes de droga franceses abastados.

— Estás a esquecer-te de qual era a tua profissão?

Franzindo o sobrolho, Keller bebeu mais pastis.

— Então, o Monsieur Antonov é judeu?

— Aparentemente, sim.

— Nunca teria adivinhado.

Gabriel encolheu os ombros com indiferença.

— Eu sou um bocadinho judeu. Alguma vez te disse isso?

— Talvez tenhas dito.

Um silêncio abateu-se entre eles. Gabriel fitou taciturnamente a rua.

— Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— Não vai demorar muito mais.

Keller observou dois homens a saírem da parte de trás da carrinha e a entrarem na loja de eletrónica que pertencia a René Devereaux. Depois, olhou de soslaio para o relógio.

— Uns cinco minutos. Talvez menos.

 

Da mesa na esplanada do Au Petit Nice, Keller e Gabriel só conseguiram ver parcialmente o que aconteceu a seguir. Alguns segundos depois de os dois homens terem entrado na loja, vários clarões de luz transbordaram da montra para a rua. Foram ténues (na verdade, poderiam ter sido confundidos com o cintilar de uma televisão) e não houve absolutamente nenhum som. Pelo menos, nenhum que chegasse ao ruidoso café. Depois disso, a loja ficou completamente às escuras, à exceção de um pequeno sinal de néon na porta onde podia ler-se: FERMÉ. Os transeuntes fluíam ao longo do passeio como se nada de invulgar estivesse a acontecer.

Os olhos de Keller regressaram à carrinha, onde Giancomo estava a retirar uma grande caixa retangular de papelão do compartimento de trás. Era uma caixa com um formato estranho, manufaturada por uma fábrica de produtos de papel da Córsega, exatamente segundo as instruções fornecidas por Don Orsati. Era bastante evidente que estava vazia, pois Giancomo não teve qualquer problema em transportá-la para o outro lado da rua e atravessar a porta da frente da loja com ela nas mãos. Mas, alguns minutos mais tarde, quando a caixa reapareceu, veio carregada pelos dois homens que tinham entrado na loja primeiro, com Giancomo a segurar um dos lados como um cangalheiro. Os dois homens introduziram a caixa nas traseiras da carrinha e rastejaram para o interior atrás dela, enquanto Giancomo recuperava o seu lugar ao volante. Depois, a carrinha deslizou para longe do passeio, dobrou a esquina e desapareceu. Do interior do Au Petit Nice, ouviram-se festejos ruidosos. O Marselha marcara um golo contra o Lyon.

— Nada mau — disse Gabriel.

Keller olhou para as horas.

— Quatro minutos e doze segundos.

— Inaceitável segundo os padrões do Departamento, mas mais do que apropriado para esta noite.

— De certeza que não queres juntar-te à festa?

— Já tive o suficiente disso para a vida toda. Mas manda cumprimentos meus ao don — disse Gabriel. — E diz-lhe que o cheque está no correio.

Com isso, Keller partiu. Passado um momento, montado na Peugeot Satelis, passou a alta velocidade pelo Au Petit Nice, onde um homem de cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos estava sentado sozinho, interrogando-se quanto tempo passaria antes de Jean-Luc Martel descobrir que o chefe da sua divisão de estupefacientes ilícitos estava desaparecido.


36

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Celine era um Baia Atlantica 78 com três camarotes, um motor a gasóleo MTV capaz de atingir velocidades de cinquenta e quatro nós e uma proa longa e esguia que poderia receber um pequeno helicóptero. Todavia, Keller chegou à embarcação por meios menos vistosos, nomeadamente através de um barco insuflável Zodiac que fora deixado para ele numa marina isolada do estuário do Rhône, perto da cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer. Atou a lancha à plataforma para entrar na água que havia na popa e subiu até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo Marselha-Lyon na televisão por satélite. Vestido como estava agora, com a sua roupa corsa simples e sandálias empoeiradas, parecia nitidamente deslocado entre a decoração sumptuosa de couro e madeira. Giancomo estava na ponte com o timoneiro.

— O Marselha voltou a marcar — disse o don, desconsolado. Apontou o comando para o ecrã e desligou-o.

Keller passou os olhos pelo interior do salão.

— Esperava algo um pouco mais modesto.

— Estou demasiado velho para andar a deslocar-me pelo Mediterrâneo num barco de pesca. Para além disso, vais ficar contente por teres vinte e quatro metros de barco debaixo de ti hoje à noite. Parece que o vento vai soprar com força.

— A quem é que pertence?

— A um amigo de um amigo.

— E o timoneiro?

— É meu.

Keller baixou o olhar e, pela primeira vez, reparou em várias gotas de sangue que secavam no chão.

— Tinha uma arma na secretária quando eles entraram — explicou o don. — Levou um tiro no ombro.

— Vai sobreviver?

— Receio bem que sim.

— Ele viu a sua cara?

— Ainda não.

— Trouxe um martelo?

— Um bom — disse o don.

— Onde é que está o Devereaux?

— No quarto individual. Não quis que sujasse um dos quartos de casal.

Keller olhou novamente para o chão.

— Alguém devia mesmo limpar isto.

— Eu não — disse o don. — Não suporto ver sangue.

 

Um dos homens do don estava de guarda à porta do quarto individual. Do interior, não vinha qualquer som.

— Está consciente? — perguntou Keller.

— Vê por ti próprio.

Keller entrou e fechou a porta atrás de si. O quarto estava às escuras; cheirava a suor e a medo e vagamente a sangue. Acendeu a lâmpada de leitura embutida e apontou o cone de luz na direção da figura imóvel, esticada sobre a cama de solteiro. Fita adesiva prateada obscurecia-lhe os olhos e a boca. As mãos estavam atadas e presas ao tronco, as pernas e os tornozelos amarrados. Keller examinou o ferimento no ombro direito. Tinha havido uma perda significativa de sangue, mas, por agora, o fluxo parara. Ainda assim, a roupa de cama estava encharcada. O amigo de um amigo, pensou Keller, iria precisar de um novo colchão quando isto acabasse.

Arrancou-lhe a fita adesiva dos olhos. René Devereaux pestanejou rapidamente várias vezes. Então, quando Keller se inclinou para a luz, mostrando o seu rosto a Devereaux, o traficante de droga encolheu-se de medo. Aparentemente, conheciam-se mutuamente.

— Bonsoir, René. Obrigado por apareceres por cá. Como é que está o ombro?

Os seus olhos semicerraram-se, o medo evaporou-se. Devereaux estava a tentar enviar uma mensagem ao inglês da Córsega: não era homem para ser baleado, raptado e atado como uma ave de caça. Keller retirou a fita adesiva da boca de Devereaux, permitindo-lhe, assim, expressar os seus sentimentos,

— És um homem morto. Tu e esse corso gordo para quem trabalhas.

— Estás a referir-te ao Don Orsati?

— Que se foda o Don Orsati.

— Essas são palavras muito insensatas. Pergunto-me se te atreverias a proferi-las na cara do don.

— Cagava em cima do don. E do resto da família dele.

— Cagavas, a sério?

Keller saiu. Ao corso que se encontrava à saída da porta, disse:

— Pede a sua santidade que desça por um minuto.

— Está a ver o jogo.

— Tenho a certeza de que vai conseguir afastar-se da televisão — disse Keller. — E traz-me o martelo.

O corso subiu as escadas do barco e, passado um momento, com alguma dificuldade, Don Orsati desceu. Keller conduziu-o ao interior do camarote e exibiu-o para que René Devereaux o visse. O don sorriu perante o evidente desconforto de Devereaux.

— O Monsieur Devereaux tem uma coisa que gostaria de dizer-lhe — disse Keller. — Vá lá, René. Por favor diz ao Don Orsati o que me disseste há pouco.

Tendo sido recebido por silêncio, Keller acompanhou o don até à saída. Depois, pôs-se ameaçadoramente de pé por cima do traficante de droga cativo.

— É escusado dizer-te que não tens muitas opções. Podes contar-me o que eu quero saber, ou posso explicar ao don todas as coisas atrevidas que disseste sobre ele e a sua adorada família. E então... — Keller levantou as mãos para indicar a incerteza do destino de Devereaux perante um cenário tão carregado de emoções.

— Desde quando é que estás no ramo da informação? — perguntou Devereaux.

— Desde que mudei de carreira. Agora, estou a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Não ouviste dizer, René?

— Tu? Um espião inglês? Não acredito.

— Às vezes, eu próprio não acredito. Mas acontece que é verdade. E tu vais ajudar-me. Vais ser uma fonte confidencial e eu vou ser o teu agente superior.

— Não podes estar a falar a sério.

— Pensa nas tuas atuais circunstâncias. Não poderiam ser mais sérias. Tal como a nossa missão. Vais ajudar-me a encontrar o homem que tem andado a orquestrar todos os atentados terroristas aqui na Europa e na América.

— Como é que eu vou fazer isso? Sou um traficante de droga, pelo amor de Deus.

— Ainda bem que esclarecemos essa parte. Mas não és um traficante de droga qualquer, pois não? Traficante é uma palavra demasiado branda para o que tu fazes. Geres uma rede global inteira a partir daquela espelunca na Place Jean Jaurès. E fazes isso — disse Keller — para o Jean-Luc Martel.

— Quem? — perguntou Devereaux.

— O Jean-Luc Martel. O que é dono daqueles restaurantes todos e dos hotéis e que tem aquele cabelo.

— E a namorada inglesa bonita — disse Devereaux.

— Então conhece-lo mesmo.

— Claro. Costumava ir ao primeiro restaurante dele em Marselha. Ele era um zé-ninguém, na altura. Agora, é uma grande estrela.

— Graças à droga — disse Keller. — Haxixe, para ser mais específico. Haxixe que vem de Marrocos. Haxixe que tu distribuis por toda a Europa. O império do Martel colapsaria se não fosse pelo haxixe. Mas nunca te passaria pela cabeça excluí-lo do negócio, pois isso significaria que terias de encontrar um novo método para lavar cinco ou dez mil milhões por ano em lucros de droga. Os teus chamados «negócios legítimos» poderiam ser suficientes para te fazer parecer razoavelmente respeitável perante as autoridades fiscais francesas, mas nunca conseguirias lidar com todos os lucros de uma rede global de estupefacientes. Para isso, precisas de um verdadeiro conglomerado empresarial. Um conglomerado onde entram centenas de milhões de dólares por ano em receitas de caixa. Um conglomerado que adquire e constrói vastas quantidades de património imobiliário.

— E compra e vende quadros. — Após um silêncio, Devereaux acrescentou: — Soube que ela ia dar problemas assim que a conheci.

— Quem?

— Aquela cabra inglesa.

Keller fechou a mão direita num punho e dirigiu-o com toda a força para o ombro encharcado de sangue de Devereaux.

— Mas, voltando ao assunto que temos em mãos — disse, enquanto o francês se contorcia na cama em agonia. — Vais dizer-me tudo o que sabes sobre o Jean-Luc Martel. Os nomes dos vossos fornecedores em Marrocos. As rotas que utilizam para trazerem a droga para a Europa. Os métodos que usam para inserirem dinheiro na circulação financeira da JLM Enterprises. Tudo, René.

— E se eu concordar?

— Vamos gravar um vídeo — disse Keller.

— E se não concordar?

— Vais receber o tratamento JLM. E não estou a falar de um belo jantar nem de uma noite numa suíte de hotel luxuosa.

Devereaux conseguiu sorrir. Depois, bem do fundo da garganta, produziu uma bola abundante e gelatinosa de muco e cuspiu-a para o rosto de Keller. Com um canto da roupa de cama, Keller limpou calmamente a sujidade antes de sair para recuperar o martelo do corso. Golpeou Devereaux com ele várias vezes, concentrando os esforços no ombro direito e evitando totalmente a cabeça e o rosto. Depois, subiu as escadas até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo de futebol.

— Foi alguma coisa que ele disse ou que não disse?

— Foi alguma coisa que ele fez — respondeu Keller.

— Houve sangue?

— Um bocadinho.

— Ainda bem que esperaste até eu sair. Não suporto ver sangue.

Um festejo ribombante surgiu na televisão.

— Perdemos — disse o don melancolicamente.

— Sim — respondeu Keller. — Mas não percamos a esperança.


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MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Christopher Keller fez mais três visitas ao camarote mais pequeno do Celine: uma às onze, a segunda pouco depois da meia-noite e uma visita demorada com início à uma e meia da manhã que deixou René Devereaux, um calejado criminoso marselhês, com muito sangue nas mãos, a chorar descontroladamente e a implorar misericórdia. Keller fez-lhe a vontade, mas só com uma condição. Devereaux iria dizer-lhe tudo, para a câmara. Caso contrário, Keller partir-lhe-ia todos os ossos do corpo, lentamente, com cuidado e premeditação e pausas para renovação de energias e reflexão.

Já fizera enormes progressos nesse sentido. O ombro direito de Devereaux, no qual estava alojada uma bala, sofrera inúmeras fraturas. Adicionalmente, o cotovelo direto estava fraturado, tal como o esquerdo. Ambas as mãos estavam numa condição deplorável, e o ferimento no joelho direito, caso lhe fosse permitido sarar devidamente, provavelmente deixaria Devereaux com um coxear permanente a condizer com o de Saladino.

Deslocá-lo para o salão, onde fora montada uma câmara sobre um tripé, revelou-se um desafio. Giancomo puxou-o pelas escadas acima, enquanto Keller empurrava por baixo, oferecendo o apoio muitíssimo necessário para a perna arruinada. Foi providenciado conhaque, juntamente com um poderoso analgésico francês de venda livre que poderia fazer uma pessoa esquecer-se da falta de um membro. Keller ajudou Devereaux a vestir um casaco de marinheiro amarelo e, com um pente, arranjou-lhe o escasso cabelo fino. Então, ligou a câmara de vídeo e, depois de examinar cuidadosamente o plano, colocou a primeira questão:

— Como é que te chamas?

— René Devereaux.

— Qual é a tua profissão?

— Sou dono da loja de produtos eletrónicos da Place Jean Jaurès.

— Qual é a verdadeira natureza do teu trabalho?

— Droga.

— Onde é que conheceste o Jean-Luc Martel?

— Num restaurante em Marselha.

— Quem era o proprietário do restaurante?

— Philippe Renard.

— Qual era o verdadeiro negócio do Renard?

— Droga.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

— O que é que o Jean-Luc Martel faz agora?

— É proprietário de vários restaurantes, hotéis e estabelecimentos de venda a retalho.

— Qual é o verdadeiro negócio dele?

— Droga — disse René Devereaux.

 

Atracaram em Ajaccio às nove e meia. Daí, bastou uma agradável caminhada em redor da linha costeira curvilínea do golfo para chegar ao aeroporto. O voo seguinte para Marselha partia ao meio-dia. Keller chegou às onze e um quarto, depois de parar para um pequeno-almoço tardio e para comprar uma muda de roupa. Vestiu-a numa casa de banho do aeroporto e, depois, passou facilmente pela segurança sem nada na sua posse exceto a carteira, um passaporte britânico e o seu telemóvel do MI6, no qual havia um vídeo comprimido e fortemente encriptado do interrogatório de René Devereaux. Naquele momento, era provavelmente a informação mais importante de toda a guerra global contra o terrorismo.

Keller desligou o telefone antes da descolagem e não o voltou a ligar até estar a atravessar o terminal de Marselha. Mikhail estava à espera no exterior, na parte de trás da Maybach de Dmitri Antonov. Yaakov Rossman estava ao volante. Ouviram o interrogatório através do magnífico sistema sonoro do automóvel, enquanto se dirigiam para leste pela Autoroute.

— Deixaste escapar a tua verdadeira vocação — disse Mikhail. — Devias ter sido entrevistador de televisão. Ou inquisidor-geral.

— Arrependimento, meu filho.

— Achas que ele se vai arrepender?

— O Martel? Não sem dar luta.

— Não tem qualquer hipótese de se esconder deste vídeo. Agora, é nosso.

— Vamos ver — disse Keller.

Eram quase quatro da tarde quando a Maybach atravessou o portão da casa segura de Ramatuelle. Já no interior, Keller transferiu o ficheiro de vídeo para a rede informática operacional central. Passado um momento, o rosto de René Devereaux surgiu nos monitores.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

E assim continuou durante a maior parte de duas horas. Nomes, datas, locais, rotas, métodos, dinheiro... Tudo se resumia a dinheiro. Sujeito ao implacável interrogatório de Keller (e à ameaça, invisível no vídeo, do martelo), René Devereaux entregou os segredos mais preciosos da rede. Como o dinheiro era recolhido dos traficantes de rua. Como era carregado para a lavandaria que era a JLM Enterprises. E como, depois de limpo e passado, se dispersava. Tudo com um detalhe minucioso, de alta resolução. Não havia como esconder-se dele. Jean-Luc Martel estava na mira deles. Mas quem é que lhe ofereceria uma tábua de salvação? Paul Rousseau declarou que seria ele. Martel, disse, era um problema francês. Só uma solução francesa serviria.

E, portanto, com a ajuda de Gabriel, Rousseau preparou um clipe editado do interrogatório, com trinta e três segundos de duração. Era um teaser, um aperitivo. «Uma palmadinha de amor», como lhe chamou Gabriel. Martel estava rodeado da sua corte, no bar do seu restaurante do Porto Velho, quando o vídeo apareceu no seu telefone através de uma mensagem de texto anónima. O próprio telefone estava sob vigilância exaustiva, permitindo a Gabriel e Rousseau e ao resto da equipa observar as diversas tonalidades do alarme crescente de Martel enquanto o visualizava. Alguns segundos mais tarde, surgiu um segundo vídeo, apenas por segurança. Mostrava um breve encontro sexual entre Martel e Monique, a rececionista de Olivia na galeria. Fora gravado com o mesmo telefone que Martel tinha agora na mão e que, da perspetiva singular da equipa, parecia estar a tremer incontrolavelmente.

Foi neste ponto que Rousseau telefonou a Martel diretamente. Sem surpresa, este não atendeu, não deixando a Rousseau outra opção senão oferecer as suas condições numa mensagem de voz. Eram o equivalente a uma rendição incondicional. Jean-Luc Martel deveria apresentar-se imediatamente na Villa Soleil, sozinho, sem guarda-costas. Qualquer tentativa de fuga, advertiu Rousseau, seria intercetada. Os seus aviões e helicópteros seriam obrigados a aterrar, o seu iate a motor de quarenta e cinco metros seria bloqueado no porto.

— Obviamente — disse Rousseau — os seus movimentos e comunicações estão a ser monitorizados. Tem uma oportunidade de evitar a prisão e a ruína. Aconselho-o a aproveitá-la.

Com isso, Rouseau terminou a chamada. Transcorreram cinco minutos até que Martel ouviu a mensagem. Nesse momento, a espera começou. Gabriel colocou-se de pé diante dos monitores, com uma mão no queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, enquanto, no jardim, Christopher Keller esmagava o seu telefone do MI6 aos pedaços com um martelo. Rousseau observou a partir das portas francesas. Daria a Martel uma oportunidade para se salvar. Esperava que fosse suficientemente sensato para a aproveitar.


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CÔTE D’AZUR, FRANÇA

Dessa vez, deixaram-lhe o portão aberto, embora, seguindo a sugestão de Gabriel, tivessem bloqueado a estrada para lá da Villa Soleil, para o caso de ele mudar de ideias e tentar fugir para oeste ao longo da Côte d’Azur. Chegou, sozinho, às nove e um quarto dessa mesma noite, após uma série de telefonemas tensos com Paul Rousseau. A sua comparência na villa, alegou, não era, de forma alguma, uma admissão de nada. Não conhecia o homem do vídeo, as suas alegações eram absurdas. O seu negócio era o setor hoteleiro e o comércio de luxo, não a droga, e qualquer pessoa que alegasse o contrário enfrentaria graves consequências legais. Em resposta, Rousseau deixou claro que aquela não era uma questão legal, mas um assunto que envolvia a segurança nacional francesa. Durante um intercâmbio final tenso, Martel, na verdade, soou intrigado. Exigiu levar um advogado.

— Sem advogados — disse Rousseau. — Só atrapalham.

Mais uma vez, foi Roland Girard, do Grupo Alpha, quem o aguardou no pátio. Decididamente, a sua saudação foi menos cordial.

— Tem alguma arma consigo?

— Não seja ridículo.

— Levante os braços.

Relutantemente, Martel aceitou. Girard revistou-o minuciosamente, começando na parte de trás do pescoço e terminando nos tornozelos. Ao erguer-se, o agente do Grupo Alpha deu por si a fitar dois olhos escuros furiosos.

— Há alguma coisa que queira dizer-me, Jean-Luc?

Martel permaneceu em silêncio, algo inédito.

— Por aqui — disse Girard.

Levou Martel pelo cotovelo e conduziu-o até ao interior da villa. Christopher Keller aguardava no hall de entrada.

— Jean-Luc! Lamento imenso pelas circunstâncias do convite, mas precisávamos de atrair a sua atenção. — Foram as últimas palavras em francês que Keller proferiu. As restantes fluíram num inglês com sotaque britânico. — Há vidas em jogo, sabe, e não temos muito tempo. Por aqui, por favor.

Martel manteve-se imóvel.

— Passa-se alguma coisa, Jean-Luc?

— O senhor é...

— Não sou francês — interrompeu Keller. — E também não sou da ilha da Córsega. Foi tudo uma montagem feita especialmente para si. Receio bem que tenha sido alvo de um embuste bastante elaborado.

Atordoado, Martel seguiu Keller até à maior das salas de estar da villa, onde longas cortinas brancas ondulavam quais velas de navio empurradas pelo vento noturno. Natalie estava sentada na extremidade de um sofá, vestida com um fato de treino e os seus ténis verde-néon. Mikhail estava sentado à frente, com umas calças de ganga e um pulôver de algodão com decote em bico. Paul Rousseau estava a contemplar um dos quadros. E, no canto mais afastado da divisão, a sós na sua própria ilha privada, Gabriel examinava Jean-Luc Martel.

Foi Rousseau que, virando-se para trás, falou a seguir:

— Gostaria que pudéssemos dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não é. Quando olhamos para si, indagamo-nos sobre o motivo pelo qual fazemos o que fazemos. Sendo bastante honesto, a sua vida não é digna de proteção. Mas isso agora não é relevante. Precisamos da sua ajuda e, portanto, não temos outra opção senão acolhê-lo no nosso seio, por mais relutantemente que o façamos.

Os olhos de Martel saltitaram de rosto em rosto (o homem que conhecia como Monsieur Carnot, os Antonovs, a figura silenciosa que o observava do posto avançado solitário no canto da sala) até pousarem novamente em Rousseau.

— Quem é o senhor?

— O meu nome — respondeu Rousseau — não é importante. Na verdade, no nosso ramo de atividade, os nomes, realmente, não significam grande coisa, como tenho a certeza de que, neste momento, já se apercebeu.

— Para quem é que trabalha?

— Para um departamento do Ministério do Interior.

— A DGSI?

— Isso não é relevante. Efetivamente — acrescentou Rousseau —, o único aspeto a destacar quanto ao meu emprego é que não sou da polícia.

— E os outros? — perguntou Martel, olhando de relance para a divisão.

— São meus parceiros.

Martel olhou para Gabriel.

— Então, e ele?

— Pense nele como um observador.

Martel franziu o sobrolho.

— Porque é que eu estou aqui? Isto é sobre o quê?

— Droga — respondeu Rousseau.

— Já lhe disse, não estou envolvido com droga.

Rousseau expirou lentamente.

— Vamos saltar esta parte, sim? O Jean-Luc sabe como ganha a vida e nós também. Num mundo perfeito, estaria algemado neste preciso momento. Mas, escusado será dizer, este nosso mundo está longe de ser perfeito. É uma balbúrdia caótica e perigosa. Mas, o seu trabalho — disse Rousseau desdenhosamente — deixou-o numa posição singular para fazer alguma coisa a esse respeito. Estamos preparados para ser generosos se nos ajudar. E igualmente inclementes se não o fizer.

Martel endireitou os ombros e esticou-se para ficar um pouco mais alto.

— Esse vídeo — disse ele — não prova nada.

— Ouviu apenas uma pequena parte dele. O vídeo completo tem quase duas horas e é bastante extraordinário em termos de detalhe. Resumidamente, deixa a nu todos os seus segredos sujos. Se tal documento caísse nas mãos da polícia, certamente passaria os anos que lhe restam atrás das grades. Que é — acrescentou Rousseau enfaticamente — onde pertence. E se a gravação fosse dada a um jornalista zeloso que nunca acreditou no conto de fadas JLM, o impacto no seu império empresarial seria catastrófico. Todos os seus amigos poderosos, aqueles que suborna com comida e bebida e hospedagens de luxo, abandoná-lo-iam como ratos que fogem de um navio a afundar-se. Ninguém o protegeria.

Martel abriu a boca para responder, mas Rousseau prosseguiu.

— E depois há a questão da Galerie Olivia Watson. Tivemos oportunidade de analisar diversas transações da empresa. São, no mínimo, questionáveis. Principalmente aquelas quarenta e oito telas em branco que foram enviadas para o Freeport de Genebra. Colocou a Madame Watson numa posição insustentável. A galeria de arte dela, como o resto do seu império, é uma organização criminosa. Oh, suponho que seja possível para si evitar a forca, mas a sua esposa...

— Não é minha esposa.

— Oh, sim, desculpe — disse Rousseau. — Como é que devo referir-me a ela?

Martel ignorou a pergunta.

— Envolveram-na nisto?

— A Madame Watson não sabe de nada, e preferiríamos que assim continuasse. Não há necessidade de a arrastar para isto. Pelo menos, por agora. — Rousseau fez uma pausa, depois perguntou: — Como é que explicou a sua vinda aqui esta noite?

— Disse-lhe que tinha uma reunião de negócios.

— E ela acreditou?

— Porque é que não haveria de acreditar?

— Porque o Jean-Luc tem alguns antecedentes. — Rousseau fez um sorriso cúmplice. — O que faz no seu tempo livre não é da minha conta. Eu e o senhor somos franceses. Homens do mundo. Onde quero chegar é que não seria de todo problemático para nós se a Madame Watson ficasse com a impressão de que esteve com outra mulher esta noite.

— Não seria problemático para vocês — disse Martel —, mas para mim...

— Tenho a certeza de que vai pensar nalguma coisa para lhe dizer. Pensa sempre. Mas, voltando ao tema em questão — disse Rousseau. — Deveria ser evidente, neste momento, que o Jean-Luc foi alvo de uma operação cuidadosamente planeada. Agora, chegou o momento de passar para a próxima fase.

— A próxima fase?

— O prémio — disse Rousseau. — Vai ajudar-nos a encontrá-lo. E, se não o fizer, o objetivo da minha vida, de agora em diante, vai ser destruir o Jean-Luc Martel. E a Madame Watson. — Após um silêncio, Rousseau acrescentou: — Ou talvez a ideia de a Madame Watson sofrer pelos seus crimes não o incomode. Talvez ache esses sentimentos antiquados. Talvez não seja esse tipo de homem.

Martel retribuiu calmamente o olhar de Rousseau. Mas, quando os seus olhos pousaram novamente em Gabriel, a sua confiança pareceu vacilar.

— De qualquer forma — estava Rousseau a dizer —, agora pode ser um bom momento para ouvir o resto do interrogatório do René Devereaux. Não tudo, isso demoraria demasiado tempo. Apenas a parte relevante.

Olhou de soslaio para Mikhail, que premiu uma tecla de um computador portátil. Instantaneamente, o quarto expandiu-se com o som de dois homens a falarem em francês, um com um marcado sotaque corso, o outro como se estivesse em sofrimento físico.

— De onde é que vem a droga?

— De todo o lado. Turquia, Líbano, Afeganistão, de todo o lado.

— E o haxixe?

— O haxixe vem de Marrocos.

— Quem é o vosso fornecedor?

— Costumávamos ter vários. Agora trabalhamos com um homem. É o maior produtor do país.

— O nome dele?

— Mohammad.

— Mohammad quê?

— Bakkar.

Mikhail colocou a gravação em pausa. Rousseau olhou para Jean-Luc Martel e sorriu.

— Porque é que não começamos por aí? — disse. — Pelo Mohammad Bakkar.


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CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Há muitos motivos pelos quais um indivíduo pode aceitar trabalhar para um serviço secreto, poucos deles admiráveis. Alguns fazem-no por avareza, alguns por amor ou convicção política. E alguns fazem-no porque se sentem aborrecidos ou insatisfeitos ou têm sede de vingança por terem sido preteridos numa promoção, enquanto colegas que consideram invariavelmente inferiores são empurrados pela escada do sucesso. Com um pouco de adulação e um pote de dinheiro, essas almas desprezíveis podem ser convencidas a revelar os segredos que passam pelas pontas dos seus dedos ou através das redes informáticas que são contratados para manter. Agentes secretos profissionais não têm qualquer problema em aproveitar-se desses homens, mas, secretamente, desprezam-nos. Quase tanto quanto o homem que trai o seu país por motivos de consciência. Esses são os idiotas úteis do ofício. Para os profissionais, não existe forma de vida mais baixa.

O profissional nem sequer confia naqueles que oferecem voluntariamente os seus serviços, pois, frequentemente, é difícil avaliar os seus verdadeiros motivos. Em vez disso, prefere identificar um potencial recruta e, depois, dar o primeiro passo. Normalmente, aproxima-se com presentes, mas, por vezes, tem necessidade de utilizar métodos menos agradáveis. Consequentemente, o profissional está sempre à espreita de falhas e fraquezas: um caso extraconjugal, uma predileção por pornografa, uma indiscrição financeira. Essas são as chaves mestras do ofício. Destrancam qualquer porta. Para além disso, a coerção é um excelente clarificador de intenções. Ilumina os recantos obscuros do coração humano. O homem que espia porque não tem outra hipótese é um mistério menor do que um que entra numa embaixada com uma pasta repleta de documentos roubados. Ainda assim, nunca se pode confiar plenamente no confidente coagido. Inevitavelmente, tentará encontrar alguma forma de retribuir a injustiça que recaiu sobre ele, e só pode ser controlado durante o tempo em que o seu pecado original continuar a ser uma ameaça para ele. Por conseguinte, o colaborador e agente responsável por o controlar dão por si, invariavelmente, enredados num caso amoroso destinado ao fracasso.

Era nessa categoria de colaborador que Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se enquadrava. Não oferecera voluntariamente os seus serviços. Nem fora atraído para o festim através do poder da persuasão. Fora identificado, avaliado e selecionado como alvo através de uma operação elaborada e dispendiosa. A sua relação com Olivia Watson fora dilacerada, o seu parceiro de negócios fora espancado impiedosamente com um martelo, ele fora ameaçado com prisão e ruína. Apesar disso, continuava a ser necessário fazer um recrutamento. A coerção poderia abrir uma porta, mas fechar um acordo exigia habilidade e sedução. Um compromisso teria de ser alcançado. Precisavam de Jean-Luc Martel muito mais do que ele precisava deles. Traficantes de droga existiam com fartura. Mas Saladino era único.

Jean-Luc não se entregou facilmente ao seu destino, mas isso era de esperar; um homem que mata tanto o pai como o seu mentor não é um homem que se assuste facilmente. Esquivou-se, contra-atacou, fez as suas próprias ameaças. Contudo, Rousseau, não mordeu o isco. Foi o contraste perfeito: inofensivo na aparência, controlado no temperamento, tolerante perante as falhas. Martel testou a paciência de Rousseau muitas vezes, tal como quando exigiu garantias escritas, em papel timbrado oficial do Ministério do Interior, da concessão de imunidade para uma possível acusação, agora e para sempre, ámen. Não competia a Rousseau conceder tal clemência, pois estava a operar sem mandado do ministro, nem sequer conhecimento dos seus chefes da DGSI. E, portanto, sorriu perante a intransigência de Martel e, com um aceno de cabeça na direção de Mikhail, passou um momento ou dois do interrogatório marítimo de René Devereaux.

— Está a mentir — explodiu Martel quando o som se silenciou. — É uma fantasia completa.

Foi nesse ponto, recordaria mais tarde Gabriel (e as câmaras ocultas confirmaram que assim foi) que Martel começou a ceder. Instalou-se ao lado de Mikhail, uma escolha curiosa, e fitou o rosto de Natalie, que por sua vez pespegou os olhos no chão. Seguiu-se um longo silêncio, suficientemente longo para que Rousseau considerasse apropriado voltar a passar o fragmento relevante da gravação, o fragmento relativo a um tal de Mohammad Bakkar, um dos maiores produtores de haxixe de Marrocos (segundo alguns relatos, o maior), um homem que gostava de se autodenominar o rei das Montanhas do Rife, a região do país onde o haxixe é cultivado e processado para exportar para a Europa e para lá dela. O homem que, de acordo com René Devereaux, era o único e exclusivo fornecedor de Martel.

— Presumo — disse Rousseau tranquilamente — que já ouviu o nome.

E Martel, com um movimento mínimo da cabeça, confirmou que sim. Então, os olhos moveram-se de Natalie para Keller, que estava de pé atrás dela de forma protetora. Keller enganara-o, Keller traíra-o. E, contudo, parecia que Jean-Luc Martel via Keller como o seu único amigo na divisão.

— Porque é que não nos dá um pouco de contexto? — sugeriu Rousseau. — Afinal de contas, somos amadores. Pelo menos no que se refere ao negócio de estupefacientes. Ajude-nos a entender como tudo funciona. Ilumine-nos quanto às maldades do seu mundo.

O pedido de Rousseau não era tão inocente como parecia. René Devereaux já fornecera a Keller informações detalhadas sobre as ligações de Mohammad Bakkar à rede. Mas Rousseau queria pôr Martel a falar, o que lhes permitiria testar a veracidade das suas palavras. Era de esperar uma certa quantidade de engano. Rousseau exigiria verdade absoluta apenas quando isso fosse importante.

— Fale-nos um pouco sobre esse tal Mohammad Bakkar — estava a dizer. — É baixo ou alto? É magro ou é gordo como eu? Tem algum cabelo ou é careca? Tem uma mulher ou duas? Fuma? Bebe? É religioso?

— É baixo — respondeu Martel passado um momento. — E, não, não bebe. O Mohammad é religioso. Muito religioso, na verdade.

— Acha isso surpreendente? — perguntou Rousseau rapidamente, aproveitando-se do facto de Martel ter, finalmente, respondido a uma questão. — Que um produtor de haxixe seja um homem religioso?

— Eu não disse que o Mohammad Bakkar era produtor de haxixe. O negócio dele são as laranjas.

— Laranjas?

— Sim, laranjas. Portanto, não, não acho surpreendente que seja um homem religioso. As laranjas são um modo de vida no Rife. O rei tem tentado encorajar os produtores a cultivar outros produtos, mas as laranjas são mais lucrativas do que a soja e os rabanetes. Muito mais — acrescentou Martel com um sorriso.

— Talvez o rei se devesse esforçar mais.

— Na minha opinião, o rei prefere que as coisas fiquem como estão.

— Então porquê?

— Porque as laranjas levam vários milhares de milhões de dólares por ano para o país. Ajudam a manter a paz. — Baixando a voz, Martel acrescentou: — O Mohammad Bakkar não é o único homem religioso de Marrocos.

— Há muitos extremistas em Marrocos?

— Vocês devem saber isso melhor do que eu — disse Martel.

— O ISIS tem muitas células em Marrocos?

— Dizem que sim. Mas o rei não gosta de falar disso — acrescentou. — O ISIS é mau para o turismo.

— O Jean-Luc tem um negócio em Marrocos, não tem? Um hotel em Marraquexe, se não estou em erro.

— Dois — vangloriou-se Martel.

— Como é que vai o negócio?

— Fraco.

— Lamento ouvir isso.

— Vamos dar a volta à situação.

— Tenho a certeza que sim. E a que é que atribui esta queda no negócio? — perguntou Rousseau. — É o ISIS?

— Os atentados nos hotéis da Tunísia tiveram um grande impacto nas nossas reservas. As pessoas temem que Marrocos venha a seguir.

— É seguro para os turistas irem até lá?

— É seguro — disse Martel — até deixar de ser.

Rousseau permitiu a si próprio um sorriso perante a perspicácia da observação. Depois, assinalou que os interesses empresariais de Martel lhe permitiam entrar e sair de Marrocos, um famigerado país produtor de droga, sem levantar suspeitas. Martel, encolhendo os ombros, não contestou a conclusão de Rousseau.

— Recebe o Mohammad Bakkar no seu hotel em Marraquexe?

— Nunca.

— Porque não?

— Ele não gosta de Marraquexe. Ou daquilo em que Marraquexe se tornou, diria eu.

— Demasiados estrangeiros?

— E homossexuais — disse Martel.

— E ele não gosta de homossexuais devido às suas crenças religiosas?

— Suponho que sim.

— Habitualmente, onde é que se encontra com ele?

— Em Casa — disse Martel, utilizando a abreviatura local para Casablanca — ou em Fez. Tem um riad no coração da medina. Também é proprietário de várias villas no Rife e no Médio Atlas.

— Desloca-se muito de um lado para o outro?

— As laranjas são um negócio perigoso.

Rousseau sorriu novamente. Nem mesmo ele era imune ao imenso charme de Martel.

— E, quando se encontra com o Monsieur Bakkar, de que é que falam?

— Do Brexit. Do novo presidente americano. Das perspetivas para a paz no Médio Oriente. O costume.

— Obviamente — disse Rousseau —, está a brincar.

— Não, de todo. O Mohammad é bastante inteligente e interessa-se pelo mundo para lá do Rife.

— Como é que descreveria a ideologia política dele?

— Não é um admirador do Ocidente. Cultiva um particular ressentimento em relação à França e à América. Por norma, tento não proferir a palavra Israel na presença dele.

— Enraivece-o?

— Pode-se dizer que sim.

— E, no entanto, faz negócios com um homem assim.

— As laranjas dele — disse Martel — são de muito boa qualidade.

— E, quando acabam de falar do estado do mundo, de que é que falam?

— De preços, horário de produção, datas de entrega, esse tipo de coisas.

— Os preços flutuam?

— Oferta e procura — explicou Martel.

— Há alguns anos — continuou Rousseau — reparámos numa mudança evidente na forma como as laranjas estavam a sair do Norte de África. Em vez de virem através do Mediterrâneo, uma ou duas de cada vez, a bordo de pequenas embarcações, começaram a chegar toneladas de laranjas em grandes navios de carga, todos provenientes de portos da Líbia. Houve um súbito excedente no mercado? Ou há alguma outra razão para explicar a mudança na estratégia?

— A segunda opção — disse Martel.

— E qual foi essa razão?

— O Mohammad decidiu unir-se a um parceiro.

— Uma pessoa física?

— Sim.

— Suponho que teria de ser um homem, porque alguém como o Mohammad Bakkar nunca lidaria com uma mulher.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Esse parceiro queria assumir uma postura mais agressiva no mercado?

— Muito mais agressiva.

— Porquê?

— Porque queria maximizar os lucros rapidamente.

— Encontrou-se com ele?

— Duas vezes.

— O nome dele?

— Khalil.

— Khalil quê?

— Só isso, simplesmente Khalil.

— Era marroquino?

— Não, definitivamente não era marroquino,

— De onde era?

— Nunca disse.

— E se tivesse de arriscar um palpite?

Jean-Luc Martel encolheu os ombros.

— Diria que era iraquiano.


40

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Foi evidente para toda a gente na sala (e, uma vez mais, as câmaras ocultas assim o confirmaram) que Jean-Luc Martel não percebeu o significado das palavras que acabara de proferir. Diria que era iraquiano... Um iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido, sem patronímico nem um gentílico ancestral, apenas Khalil. O mesmo Khalil que encontrara um parceiro em Mohammad Bakkar, um produtor de haxixe de profunda fé islâmica que odiava a América e o Ocidente e se enfurecia perante a simples menção de Israel. O Khalil que queria maximizar lucros forçando a entrada de mais produto no mercado europeu. Gabriel, o observador silencioso do drama que concebera e produzira, advertiu a si próprio para não se precipitar para uma conclusão prematura. Era possível que o homem que se autodenominava Khalil não fosse o homem de que andavam à procura, que fosse um mero criminoso banal sem outros interesses a não ser fazer dinheiro; que fosse um gambozino que lhes faria desperdiçar tempo e recursos preciosos. Ainda assim, até mesmo Gabriel teve dificuldade em controlar o bater desenfreado do seu coração. Ele puxara a ponta solta, unira os pontos e o rasto tinha-o conduzido até ali, à antiga casa de um inimigo derrotado. Contudo, os outros membros da sua equipa pareciam totalmente indiferentes à revelação de Martel. Natalie, Mikhail e Christopher Keller estavam, cada um deles, absortos nos seus pensamentos e Paul Rousseau aproveitara aquele momento para carregar o seu primeiro cachimbo. Passado um momento, o seu isqueiro acendeu-se e uma nuvem de fumo rolou sobre as duas cenas venezianas de Guardi. Gabriel, o restaurador, estremeceu involuntariamente.

Se Rousseau ficou minimamente intrigado pelo iraquiano que se autodenominava Khalil, não revelou qualquer sinal exterior disso. Khalil era um pensamento secundário. Khalil não tinha qualquer importância. Rousseau estava mais interessado, ou assim parecia, nos aspetos práticos da relação de Martel com Mohammad Bakkar. Quem dirigia as operações? Era isso que ele queria saber. Quem ocupava a posição superior? Era Martel, o distribuidor, ou Bakkar, o produtor marroquino?

— Não percebe muito de negócios, pois não?

— Sou um académico — desculpou-se Rousseau.

— É uma negociação — explicou Martel. — Mas, em última análise, o produtor ocupa a posição superior.

— Porque pode excluir o distribuidor a qualquer momento?

— Correto.

— O Jean-Luc não conseguiria encontrar outra fonte de droga?

— Laranjas — disse Martel.

— Ah, sim, laranjas — concordou Rousseau.

— Não é assim tão fácil.

— Pela qualidade das laranjas do Mohammad Bakkar?

— Pelo facto de o Mohammad Bakkar ser um homem com poder e influência consideráveis.

— Desencorajaria outros produtores a venderem-lhe o seu produto?

— Intensamente.

— E quando o Mohammad Bakkar lhe disse que queria aumentar drasticamente a quantidade de laranjas que estava a enviar para a Europa?

— Aconselhei-o a não o fazer.

— Porquê?

— Por inúmeras razões.

— Tais como?

— Grandes carregamentos são perigosos por natureza.

— Porque é mais fácil para as autoridades encontrarem-nos?

— Obviamente.

— Que mais?

— Estava preocupado com a possibilidade de saturarmos o mercado.

— E, por conseguinte, fazer cair o preço das laranjas na Europa Ocidental.

— Oferta e procura — disse Martel novamente, com um encolher de ombros.

— E quando mencionou essas preocupações?

— Deu-me uma escolha muito simples.

— Pegar ou largar?

— Com todas as letras.

— E o Jean-Luc pegou — disse Rousseau.

Martel ficou em silêncio. Rousseau mudou de ângulo abruptamente.

— O envio — disse ele. — Quem é o responsável pelo envio?

— O Mohammad. Ele põe a embalagem no correio e nós vamos buscá-la do outro lado.

— Presumo que ele lhe diz quando esperar a encomenda.

— Claro.

— Quais são os métodos preferidos dele?

— Antigamente, usava barcos pequenos para trazer a mercadoria diretamente através do Mediterrâneo, de Marrocos para Espanha. Depois, os espanhóis apertaram o controlo na costa, portanto ele começou a movê-la através do Norte de África para os Balcãs. Era uma viagem longa e onerosa. Muitas laranjas desapareciam pelo caminho. Principalmente quando chegavam ao Líbano e aos Balcãs.

— Eram roubadas por gangues criminosos locais?

— As máfias sérvia e búlgara gostam bastante de citrinos — disse Martel. — O Mohammad passou anos a tentar arranjar uma forma de fazer as laranjas chegarem à Europa sem terem de atravessar esse território. E, depois, caiu-lhe uma solução no colo.

— A solução — disse Rousseau — foi a Líbia.

Martel assentiu lentamente com a cabeça.

— Foi um sonho tornado realidade, possibilitado pelo presidente francês e pelos amigos de Washington e Londres que declararam que o Kadhafi tinha de cair. Assim que o regime se desmoronou, a Líbia abriu as portas da loja. Era o Oeste Selvagem. Sem governo central, sem polícia, sem qualquer tipo de autoridade exceto as milícias e os psicopatas islâmicos. Mas havia um problema.

— Qual era?

— As milícias e os psicopatas islâmicos — disse Martel.

— Não aprovavam as laranjas?

— Não era isso. Queriam uma parte. Caso contrário, não deixariam as laranjas chegarem aos portos líbios. O Mohammad precisava de um parceiro local, alguém que pudesse manter as milícias e guerreiros sagrados na linha. Alguém que conseguisse garantir que as laranjas encontravam o caminho até ao interior dos navios de carga.

— Alguém como o Khalil? — perguntou Rousseau.

Martel não deu qualquer resposta.

— Lembra-se de um navio chamado Apollo? — perguntou Rousseau. — Os italianos apreenderam-no ao largo da Sicília com dezassete toneladas de laranjas nos porões.

— O nome — disse Martel dissimuladamente — é-me familiar.

— Suponho que a carga era sua.

Martel, com o seu olhar inexpressivo, confirmou que era.

— Houve outros navios antes do Apollo que não tenham sido intercetados?

— Vários.

— E, recorde-me — disse Rousseau, fingindo confusão —, quem é que suporta o custo de uma apreensão? O produtor ou o distribuidor?

— Não posso vender laranjas se não as receber.

— Então, o que me está a dizer, e por favor desculpe-me, Monsieur Martel, não pretendo insistir excessivamente na questão, é que o Mohammad Bakkar perdeu, pessoalmente, milhões de euros quando o Apollo foi apreendido?

— Correto.

— Deve ter ficado furioso.

— Bem mais do que isso — disse Martel. — Convocou-me para ir a Marrocos e acusou-me de filtrar a informação aos italianos.

— Porque é que faria uma coisa dessas?

— Porque estava contra os grandes carregamentos desde o início. E a melhor forma de os fazer parar seria perder um ou dois navios.

— Foi o Jean-Luc o responsável pela fuga de informação que conduziu os italianos até ao Apollo?

— Claro que não. Disse ao Mohammad de forma absolutamente categórica que o problema estava do lado dele.

— Com isso — disse Rousseau — referia-se ao Norte de África.

— À Líbia — disse Martel.

— E quando as apreensões continuaram?

— O Khalil conteve as fugas. E as laranjas começaram a chegar novamente em segurança.

 

Ei-lo novamente. O nome do novo parceiro agressivo de Mohammad Bakkar. O homem que Paul Rousseau andara a evitar. Depois de uma pausa prolongada para carregar e acender outro cachimbo, indagou quando é que Jean-Luc se encontrara pela primeira vez com esse iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido. Sem patronímico nem gentílico ancestral. Só Khalil. Martel disse que fora em 2012. Na primavera, pensava. No final de março, talvez, mas não sabia precisar com certeza. Contudo, Rousseau, não acreditou. Martel era dono e senhor de uma vasta organização criminosa, cujo funcionamento conhecia de cor e salteado. Certamente, insistiu Rousseau, conseguia recordar-se da data de tão memorável encontro.

— Foi no dia vinte e nove de março.

— E as circunstâncias? O Jean-Luc foi convocado ou era um encontro agendado previamente?

Martel indicou que a sua presença fora solicitada.

— E, geralmente, como é que isso se faz? É uma questão menor, sabe, mas estou curioso.

— Deixam-me uma mensagem no meu hotel em Marraquexe.

— Uma mensagem de voz?

— Sim.

— E a primeira reunião em que o Khalil esteve presente?

— Foi em Casa. Voei para lá no meu avião e instalei-me no hotel. Algumas horas depois, disseram-me onde ir.

— O Mohammad telefonou-lhe pessoalmente?

— Um dos homens dele. O Mohammad não gosta de usar o telefone para tratar de negócios.

— E o hotel? Qual foi, por favor?

— O Sofitel.

— E foi sozinho?

— A Olivia foi comigo.

Rousseau franziu o sobrolho pensativamente.

— Leva-a sempre consigo?

— Sempre que possível.

— Porquê?

— As aparências são importantes.

— Ela foi à reunião?

— Não. Ficou no hotel enquanto eu fui a Anfa.

— Anfa?

Era um enclave abastado numa colina a oeste do centro, explicou Martel, uma zona de avenidas ladeadas de palmeiras e villas amuralhadas onde o preço por metro quadrado rivalizava com Londres e Paris. Mohammad Bakkar era dono de uma propriedade aí. Como de costume, Martel teve de se submeter a uma revista antes de ser autorizado a entrar. Foi, recordava agora, mais invasiva do que o normal. No interior, esperava encontrar Bakkar sozinho, como era habitual nas reuniões. Em vez disso, havia outro homem presente.

— Descreva-o, por favor.

— Alto, ombros largos, rosto e mãos grandes.

— A pele?

— Escura, mas não muito.

— Como é que estava vestido?

— À ocidental. Fato escuro, camisa branca, sem gravata.

— Cicatrizes ou características distintivas?

— Não.

— Tatuagens?

— Só consegui ver-lhe as mãos.

— E?

Martel abanou a cabeça.

— Foram apresentados?

— Sucintamente.

— Ele falou?

— Comigo não. Só com o Mohammad.

— Em árabe, presumo.

— Sim.

— O Mohammad Bakkar fala árabe magrebino.

— Darija — disse Martel.

— E o outro homem? Também falava darija?

Martel abanou a cabeça.

— Consegue perceber a diferença?

— Aprendi a falar um pouco de árabe quando era criança. Com a minha mãe — acrescentou. — Portanto, sim, consigo perceber a diferença. Falava como alguém do Iraque.

— E não se interrogou sobre a origem desse homem, dado que o ISIS tinha conquistado grande parte do Iraque e da Síria e estabelecido uma base de operações na Líbia? Ou talvez não quisesse saber — acrescentou Rousseau desdenhosamente. — Talvez seja melhor não fazer demasiadas perguntas numa situação dessas.

— Regra geral — disse Martel —, podem ser más para o negócio.

— Principalmente quando o ISIS e semelhantes estão envolvidos. — Rousseau controlou a raiva. — E a segunda reunião? Quando foi?

— Em dezembro passado.

— Depois dos atentados de Washington?

— Sem dúvida.

— A data exata, por favor.

— Creio que foi no dia dezanove.

— E as circunstâncias?

— Foi na nossa reunião anual de inverno.

— Onde é que teve lugar?

— O Mohammad estava sempre a mudar a localização. Acabámos por nos encontrar numa pequena povoação no topo do Rife.

— Qual era a ordem de trabalhos?

— Previsões de preços e datas de entrega para o novo ano. O Mohammad e o iraquiano queriam introduzir ainda mais produto no mercado. Muito produto. E rapidamente.

— Como é que ele estava vestido dessa vez?

— Como um marroquino.

— O que é que isso significa?

— Tinha uma jilaba.

— Uma túnica tradicional muçulmana com capuz.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o rosto dele estava mais magro e anguloso.

— Tinha perdido peso?

— Cirurgia plástica.

— Havia mais alguma coisa diferente nele?

— Sim — disse Martel. — Ao caminhar, coxeava.


CONTINUA

26

TELAVIVE – SAINT-TROPEZ

Assim sendo, faltava apenas o dinheiro. O dinheiro necessário para levar a operação de Gabriel da fase de produção à cena. Os duzentos ou trezentos milhões para adquirir uma coleção de arte vistosa. Os doze milhões para uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e os cinco milhões, mais coisa menos coisa, para a tornar apresentável. E, depois, havia o dinheiro para todos os pequenos extras da vida. Os carros, as roupas, as joias, os restaurantes, as viagens de avião privado, as festas luxuosas. Gabriel tinha um número em mente, ao qual acrescentou outros vinte milhões, para o caso de serem necessários. As operações, como a própria vida, eram incertas.

— Isso é muito dinheiro — disse o primeiro-ministro.

— Quinhentos milhões já não dão para tanta coisa como antigamente.

— Onde fica o banco?

— Temos vários à escolha, mas o Banco Nacional do Panamá é a nossa melhor opção. Conseguimos fazer tudo lá — explicou Gabriel — e a ameaça de retaliação é reduzida, depois do escândalo com os Papéis do Panamá. Ainda assim, vamos deixar algumas pistas falsas para cobrir o nosso rasto.

— Quem é que vai culpar?

— Os norte-coreanos.

— Porque não os iranianos?

— Da próxima vez — prometeu Gabriel.

Os fundos visados estavam distribuídos por oito contas separadas, todas em nome da mesma empresa de investimentos fantasma. Faziam parte de uma vasta fortuna de dinheiro furtado, controlada pelo governante da Síria e pelos seus amigos e parentes próximos. Pouco tempo antes de se tornar chefe, Gabriel localizara e depois confiscara a maior parte da fortuna, numa tentativa de moderar a conduta assassina do governante na guerra civil síria. Mas fora obrigado a devolver o dinheiro, mais de oito mil milhões de dólares, em troca de uma única vida humana. Pagara o resgate sem arrependimento: tinha sido, dizia sempre, o melhor negócio que alguma vez fizera. Ainda assim, tinha estado à procura de uma desculpa, qualquer desculpa, para ter a última palavra. Encontrar Saladino era um motivo tão bom como qualquer outro.

Gabriel não devolvera os oito mil milhões diretamente ao governante sírio. Depositara-o, conforme fora instruído a fazer, no Gazprombank, em Moscovo, por conseguinte colocando-o, na prática, nas mãos do czar, o benfeitor e amigo mais próximo do governante sírio. O czar tirara metade do dinheiro para si: taxas de serviço, despesas de transporte, envio e manutenção. Os restantes fundos, ligeiramente superiores a quatro mil milhões de dólares, tinham sido depositados numa série de contas secretas na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein, Dubai, Hong Kong e, claro, no Banco Nacional do Panamá.

Gabriel sabia disso porque, com o auxílio de uma unidade altamente sigilosa de hackers do Departamento, observara cada uma das movimentações do dinheiro. A unidade não tinha nome oficial porque, oficialmente, não existia. Aqueles que tinham sido informados do seu trabalho referiam-se a ela unicamente como «o Minyan», pois era constituída por dez elementos, todos do sexo masculino. Premindo, simplesmente, algumas teclas do computador, conseguiam deixar uma cidade às escuras, cegar os radares de um centro de controlo aéreo ou fazer as turbinas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem furiosa e descontroladamente. Em suma, tinham a capacidade de virar as máquinas contra os seus amos. Em privado, Uzi Navot referia-se ao Minyan como dez boas razões pelas quais ninguém no seu perfeito juízo alguma vez usaria um computador ou um telemóvel.

O Minyan trabalhava numa sala ao fundo do mesmo corredor que albergava a divisão onde a equipa de Gabriel estava a fazer os retoques finais do planeamento pré-operacional. O seu líder formal era um miúdo chamado Ilan. Era o equivalente cibernético de Mozart. Primeiro código informático aos cinco, primeiro hack aos oito, primeira operação secreta contra os iranianos aos vinte e um. Era magro como um indigente e tinha a palidez macilenta de alguém que não saía muito para o exterior.

— Basta-me carregar num botão — disse com um sorriso travesso — e puf: o dinheiro desaparece.

— Sem deixar impressões digitais?

— Só norte-coreanas.

— E não há nenhuma forma de conseguirem seguir o rasto do dinheiro do Banco do Panamá para o HSBC em Paris?

— Nem pensar.

— Lembra-me — disse Gabriel — para guardar o meu dinheiro debaixo do colchão.

— Guarda o teu dinheiro debaixo do colchão.

— Era um pedido retórico, Ilan. Não queria realmente que me lembrasses.

— Oh.

— Tens de sair para o mundo real de vez em quando.

— Isto é o mundo real.

Gabriel fitou o ecrã do computador. Ilan também o fitou.

— Então? — perguntou Gabriel.

— Então o quê?

— Estás à espera de quê?

— De autorização para roubar quinhentos milhões de dólares.

— Isto não é roubar.

— Duvido que os sírios vejam isso da mesma forma. Ou os panamenhos.

— Carrega no botão, Ilan.

— Ia sentir-me melhor se fosses tu a fazê-lo.

— Qual é?

Ilan indicou a tecla enter. Gabriel premiu-a uma vez. Depois, caminhou até ao fundo do corredor e informou a sua equipa das notícias. O financiamento necessário tinha chegado. Estavam em ação.

 

Deixou-se ver pela primeira vez na semana seguinte, na quarta-feira, a sair da Bonhams, na New Bond Street, com Julian Isherwood no seu encalço. Quis a sorte (ou, olhando para trás, talvez não tivesse sido, de todo, sorte) que Amelia March da ARTnews estivesse no passeio nesse momento, a matar tempo para o encontro agendado para as duas horas com o presidente do departamento de pós-guerra e contemporânea da Bonhams. Era uma jornalista de arte, não uma verdadeira jornalista, mas tinha faro para uma boa história e olho para o pormenor. Alto, elegante, bastante louro, mais para o pálido, sem qualquer cor nos olhos. O seu casaco e sobretudo eram perfeitos, o perfume cheirava a dinheiro. Achou estranho que estivesse na companhia de um fóssil como Julian. Aparentava ter um gosto mais virado para o moderno, em vez de anjos, santos e mártires. Isherwood fez uma apresentação apressada antes de enfiar o seu cúmplice no banco de trás de uma limusina Jaguar que os aguardava. Dmitri Qualquer Coisa. Só podia.

No interior da Bonhams, Amelia conseguiu apurar que Isherwood e o amigo alto e pálido tinham passado várias horas com Jeremy Crabbe, o especialista em Grandes Mestres da casa de leilões. Localizou Jeremy no Wilton mais tarde nessa mesma noite. Conversaram como dois espiões num café de Viena no pós-guerra.

— O nome é Antonov. Dmitri Antonov. Russo, suponho, mas o assunto não veio à baila na conversa informal. Está completamente a nadar em dinheiro. Trabalha em qualquer coisa no setor dos recursos naturais. Não é o que fazem todos? — disse Jeremy, arrastando a voz. — O Julian agarrou-se a ele como uma lapa ao casco de um navio. Aparentemente, age tanto na qualidade de vendedor como de consultor. Uma relação bem confortável, financeiramente falando. Parece que o Dmitri tirou vários quadros das mãos do Julian e agora andam à caça grossa. Mas não me cites em relação a isso. Na verdade, não me cites em relação a nada. Isto é tudo off the record. Estritamente entre nous, minha querida.

Amelia concordou em manter a informação confidencial, mas Jeremy não foi tão discreto. Na verdade, disse a toda a gente no bar, incluindo a Oliver Dimbleby. No final da noite, era o único tema de conversa entre todos ali presentes.

Em meados de março, ambos foram vistos na Christie’s e na Sotheby’s. Também fizeram uma visita à galeria de Oliver na Bury Street, onde, após uma hora de negociação inócua, se comprometeram com a aquisição de uma paisagem de uma duna montanhosa do pintor holandês Jacob van Ruisdael, de duas cenas de canais venezianos de Francesco Guardi e de um funeral de Zelotti. Roddy Hutchinson vendeu-lhe cinco quadros no total, incluindo uma natureza morta com fruta e um lagarto de Ambrosius Bosschaert II. No dia seguinte, Amelia March publicou um pequeno artigo sobre um jovem russo que andava a agitar as águas do mercado de arte londrino. Julian Isherwood, na qualidade de porta-voz do russo, recusou tecer quaisquer comentários.

— Quaisquer compras efetuadas pelo meu cliente foram privadas — disse ele — e continuarão a sê-lo.

O início de abril viu Isherwood e o seu amigo russo do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, onde a sua chegada foi ansiosamente antecipada. Visitaram as casas de leilões e as galerias, jantaram em todos os restaurantes certos e até assistiram a um musical na Broadway. Um colunista de mexericos do Post relatou que adquiriram vários quadros de Grandes Mestres da Otto Naumann Lda., na East Eightieth Street, mas, uma vez mais, Isherwood balbuciou qualquer coisa sobre o desejo de privacidade do seu cliente. Segundo constava, esse desejo não era assim tão intenso. Quem se encontrou com ele ficou com a impressão de que era um homem que gostava de ser visto. O mesmo se aplicava à bonita jovem (aparentemente era sua esposa, mas tal nunca foi irrefutavelmente provado) que o acompanhou à América. Era esbelta, morena, francesa e profundamente antipática.

— Não perdeu uma única oportunidade de se ver ao espelho — disse o gerente de uma joalharia exclusiva da Quinta Avenida. — Uma verdadeira peça.

Mas quem era aquele homem chamado Dmitri Antonov? E, talvez mais importante do que isso, de onde vinha tanto dinheiro? Tornou-se rapidamente no foco de muitos rumores ao estilo de Gatsby, alguns maliciosos, outros bastante certeiros. Dizia-se que matara um homem, que matara muitos homens, e que amealhara a sua fortuna ilicitamente, tudo coisas que, por acaso, eram verdade. Não que isso o tornasse menos apetecível para aqueles que faziam da venda de arte a sua profissão. Não se importavam muito com o modo como ganhava dinheiro, desde que o cheque chegasse a horas e não houvesse problemas por parte do banco. Não havia. Tinha os seus fundos respeitavelmente depositados no HSBC de Paris, mas, curiosamente, todas as suas aquisições eram enviadas para um cofre no Freeport de Genebra.

— É um daqueles — disse uma mulher que trabalhava no departamento de negócios da Sotheby’s. Um superior recordou-a calmamente que «aqueles» eram os que mantinham lugares como a Sotheby’s a funcionar.

O cofre no Freeport era o mais parecido que tinha com uma morada permanente. Em Londres, vivia no Dorchester, em Paris no Hôtel de Crillon. E quando os negócios o levavam até Zurique, só a suíte Terrazza no Dolder Grand servia. Até mesmo Julian Isherwood, que comunicava com ele através de telemóvel e mensagens de texto, alegava não saber onde ele estava de um dia para o outro. Mas havia rumores (aqui, uma vez mais, tratavam-se apenas de rumores) de que adquirira um castelo para si algures em França.

— Está a usar o Freeport como armazém temporário — sussurrou Isherwood ao ouvido de Oliver Dimbleby. — Há qualquer coisa grande em preparação. — Depois, Isherwood obrigou Oliver a jurar segredo absoluto, garantindo, dessa forma, que a notícia se tornaria global até à manhã seguinte.

Mas onde, em França? Mais uma vez, a fábrica de boatos começou a funcionar pois, no dia em que o homem chamado Dmitri Antonov deixou Nova Iorque, surgiu um pequeno artigo no Nice-Matin sobre uma certa propriedade imobiliária célebre, perto de Saint-Tropez. Conhecida como Villa Soleil, o extenso complexo à beira-mar na Baie de Cavalaire fora, em tempos, propriedade de Ivan Kharkov, o oligarca e traficante de armas russo morto a tiro à porta de um exclusivo restaurante em Saint-Tropez. Durante quase uma década, a propriedade estivera nas mãos do governo francês. Agora, por motivos nunca esclarecidos, o governo estava subitamente ansioso por se desfazer da Villa Soleil. Aparentemente, fora encontrado um comprador. Apesar dos árduos esforços, o Nice-Matin ainda não fora capaz de o identificar.

A renovação da propriedade começou imediatamente. De facto, no dia seguinte à publicação do artigo, um exército de pintores, eletricistas, pedreiros e paisagistas aterraram na Villa Soleil e aí permaneceram, sem interrupções, até que o grandioso palácio à beira-mar se tornou novamente habitável. A natureza empreendedora da mão-de-obra provocou uma dose de ressentimento significativa entre os vizinhos, todos eles veteranos da construção na Provença. Até mesmo Jean-Luc Martel, que vivia numa grandiosa villa no lado oposto da baía, ficou impressionado com a velocidade com que o projeto foi terminado. Gabriel e a equipa sabiam disso pois, com a ajuda da poderosa NSA americana, estavam agora a par de todas as comunicações privadas de Martel, incluindo o e-mail que enviou ao seu empreiteiro, indagando por que motivo a renovação da sua casa de apoio à piscina estava dois meses atrasada em relação ao previsto. Se as obras não estiverem concluídas até ao final de abril, escreveu, despeço-o e contrato a empresa que tratou da antiga casa do Ivan.

A decoração interior da Villa Soleil foi realizada no mesmo ritmo célere tão pouco habitual na Provença, supervisionada por uma das mais proeminentes empresas da Côte d’Azur. Houve apenas um atraso: dois sofás a condizer, encomendados da loja de design de Olivia Watson em Saint-Tropez. Devido a um erro administrativo menor (na verdade, absolutamente intencional), o nome do proprietário da villa apareceu na nota de encomenda. Olivia Watson partilhou o nome com Martel, que, por sua vez, o deu a um colunista do Nice-Matin que escrevera favoravelmente sobre ele no passado. Gabriel e a sua equipa souberam disso porque a poderosa NSA americana assim o assegurava.

Assim sendo, faltavam apenas os quadros, os quadros adquiridos sob o olhar impecável de Julian Isherwood e armazenados num cofre do Freeport de Genebra. Em meados de maio, foram transportados para a Provença numa caravana de furgões, vigiada por agentes de uma empresa de segurança privada e vários agentes de uma unidade secreta da DGSI conhecida como Grupo Alpha. Isherwood supervisionou a sua fixação nas paredes, com o auxílio da esposa francesa do proprietário. Depois, voaram para Paris, onde o proprietário em pessoa estava hospedado na sua suíte habitual no Crillon. Nessa noite, jantaram no próspero restaurante novo de Martel, no Boulevard Saint-Germain, acompanhados por um homem de aspeto resiliente, que falava francês com um acentuado sotaque corso. Martel também estava lá, juntamente com a glamorosa namorada inglesa. Gabriel e a equipa não foram surpreendidos pela presença da sua presa; souberam dos planos de Martel com vários dias de antecedência e reservaram uma mesa para quatro em nome de Dmitri Antonov. Poucos minutos depois da chegada do grupo do jantar, surgiu na mesa uma garrafa de champanhe, juntamente com um bilhete manuscrito. O champanhe era um Dom Pérignon de 1998, o bilhete era de Jean-Luc Martel. «Bem-vindo à vizinhança. Vemo-nos em Saint Tropez...». Era, globalmente, um início promissor.


27

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— Acho que vou à vila daqui a pouco.

— Fazer o quê?

— É dia de mercado. Sabes como eu adoro o mercado.

— Ah, sim, fantástico.

— Podes vir comigo?

— Infelizmente, não posso. Tenho umas chamadas para fazer.

— Tudo bem.

Tinham transcorrido dez dias desde que Mikhail e Natalie (também conhecidos como Dmitri e Sophie Antonov) se tinham instalado na sua nova casa na Baie de Cavalaire, e já parecia que estavam aborrecidos. Não era aborrecimento operacional, era de natureza conjugal. Gabriel determinara que os Antonovs não seriam uma união inteiramente feliz. Poucos casamentos eram perfeitos, argumentou, e um casamento entre um criminoso russo e uma francesa de proveniência duvidosa não seria isento dos seus maus momentos. Também decretara que deveriam manter as suas identidades falsas permanentemente, mesmo quando estivessem seguros atrás das paredes de três metros e meio da Villa Soleil. Tal explicava a frígida troca verbal ao pequeno-almoço. Foi realizada em inglês, visto que o francês de Dmitri Antonov era atroz e o russo da sua esposa inexistente. Os empregados da casa, todos agentes do Grupo Alpha de Paul Rousseau, dirigiam-se apenas à Madame Sophie. Em geral, evitavam o Monsieur Antonov. Achavam-no rude e grosseiro, e ele considerava-os, com alguma razão, os piores empregados domésticos de toda a Provença. Gabriel partilhava a sua opinião. Em privado, instara Rousseau a pô-los rapidamente em sentido. Caso contrário, arriscavam-se a afundar toda a operação.

Mikhail e Natalie estavam sentados, como personagens de um filme, numa mesa do vasto terraço rodeado por colunas com vista para a piscina. Era onde tinham tomado o pequeno-almoço em cada uma das nove manhãs anteriores, pois o Monsieur Antonov preferia aquele local sobre todos os outros. Ele começara o dia com uns vigorosos trinta minutos de natação na piscina. Agora envergava um roupão de banho branco impoluto contra a pele pálida. O olhar de Natalie foi atraído pelo riacho de água que escorria pelo leito esculpido dos seus músculos abdominais na direção da cintura dos calções de banho. Rapidamente, desviou o olhar. A Madame Sophie, recordou a si própria, estava irritada com o Monsieur Antonov. Ele não conseguiria voltar a cair nas suas boas graças simplesmente com uma demonstração insignificante de beleza física.

Ela serviu uma chávena de café forte simples do bule de prata e acrescentou uma medida generosa de leite evaporado. Ao fazê-lo, parecia inegavelmente francesa. Em seguida, puxou um Gitane do maço e acendeu-o. Os cigarros, tal como o seu comportamento indelicado, serviam unicamente o seu disfarce. Como médica, vira em primeira mão os efeitos terríveis do tabaco no corpo humano e era uma não-fumadora convicta. A primeira inalação arranhou-lhe a parte de trás da garganta, mas, com um gole de café, conseguiu reprimir a vontade de tossir. O café era quase perfeito; só no sul de França, pensou, tinha tal sabor. A manhã estava limpa e agradável, com um vento suave a circular na fila de ciprestes que marcava a fronteira entre a Villa Soleil e o vizinho. Uma ondulação salpicava a Baie de Cavalaire e, do outro lado, Natalie conseguia distinguir as linhas ténues da villa pertencente a Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos.

— Croissant? — perguntou ela.

— Desculpa? — Mikhail estava a ler qualquer coisa num tablet com grande intensidade e não se podia dar ao trabalho de erguer o olhar para que se encontrasse com o dela.

— Perguntei se querias outro croissant.

— Não.

— Então e o almoço?

— Agora?

— Em Saint-Tropez. Podes encontrar-te comigo lá.

— Vou tentar. A que horas?

— À hora do almoço, querido. À hora a que as pessoas normalmente almoçam.

Ele deslizou um dedo indicador pela superfície do tablet, mas não disse nada. Natalie apagou o cigarro e, comportando-se como Sophie Antonov, levantou-se abruptamente. Depois, inclinou-se para baixo e aproximou a boca do ouvido de Mikhail.

— Pareces estar a gostar demasiado disto — sussurrou em hebreu. — Se fosse a ti, não me habituava muito.

Entrou na villa e caminhou lentamente, com os pés descalços, pelas suas inúmeras divisões cavernosas, até chegar à base da imponente escadaria principal. Os seus aposentos, pensou, eram bem melhores do que os que tivera de suportar na primeira operação: o apartamento pardacento no banlieue parisiense de Aubervilliers, o quartinho esquálido num dormitório do ISIS em Raqqa, o campo de treino no deserto nos arredores de Palmira, o quarto na casa de Mossul onde cuidara de Saladino até que estivesse curado.

Tu és o meu Maimónides...

No quarto, os lençóis de cetim continuavam desordenados. Evidentemente, as criadas do Grupo Alpha não tinham encontrado tempo na sua atarefada agenda para arrumar o quarto. Natalie esboçou um sorriso culpado. Essa era a única divisão da casa onde ela e Mikhail não faziam qualquer tentativa de ocultar os seus verdadeiros sentimentos um pelo outro. Em rigor, as suas ações na noite anterior tinham sido uma violação do regulamento do Departamento, que proibia relações íntimas entre agentes no terreno. Era, celebremente, umas das regras menos cumpridas em todo o serviço. De facto, sabia-se que o atual chefe e a sua esposa tinham desrespeitado a regra em inúmeras ocasiões. Para além disso, pensou Natalie enquanto alisava os lençóis, fazerem amor servia o disfarce. Nem mesmo cônjuges desavindos eram imunes à obscura atração do desejo.

O closet estava a transbordar de roupa, sapatos e acessórios de marca, tudo pago pelo sanguinário governante da Síria. Só o melhor para a Madame Sophie. De uma gaveta, retirou um par de leggings de licra e um sutiã de desporto. Os seus ténis Nike estavam na prateleira dos sapatos, junto a um par de sapatos de salto alto Bruno Magli. Vestida, caminhou por um corredor fresco de mármore até à sala de fitness e subiu para a passadeira. Odiava correr dentro de casa, mas não tinha outra opção. A Madame Sophie não estava autorizada a correr no exterior. A Madame Sophie tinha problemas de segurança. Natalie Mizrahi também os tinha.

Colocou uns auscultadores nos ouvidos e começou com uma corrida fácil, mas foi aumentando a velocidade da passadeira a cada quilómetro, até estar a correr velozmente, em ritmo apressado. A sua respiração manteve-se controlada e estável; as muitas semanas que passara na quinta em Nahalal tinham-na deixado no auge da sua forma física. Terminou com uma corrida final a alta velocidade e passou trinta minutos a levantar pesos antes de regressar ao quarto para tomar um duche e vestir-se. Calças capri brancas, um pulôver de malha elástica e corte justo que lhe favorecia os seios e a cintura esguia, sandálias rasas douradas. De pé diante do espelho, pensou na última operação, no hijab e nas roupas pias da Dra. Leila Hadawi. Leila, pensou ela, não teria aprovado Sophie Antonov. Nisso, Natalie e ela estavam completamente de acordo.

Saiu para a varanda e espreitou para baixo, na direção do terraço onde Mikhail estava esticado numa chaise longue, expondo a sua pele incolor aos raios de sol matinal. Em dez dias, a sua palidez não se alterara. Parecia ser incapaz de se bronzear.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — gritou ela para baixo.

— Estou ocupado.

Natalie deixou cair o telemóvel do Departamento na sua mala de senhora e encaminhou-se para o andar de baixo, rumo ao pátio, onde a limusina Maybach de Antonov aguardava junto à fonte salpicante, com um motorista do Grupo Alpha ao volante. No banco de trás, havia um segundo agente do Grupo Alpha. O seu nome era Roland Girard. Durante a primeira operação, desempenhara a função de diretor da pequena clínica em Aubervilliers onde a Dra. Leila Hadawi exercera medicina. Agora, era o guarda-costas favorito da Madame Sophie. Havia rumores de que mantinham um caso tórrido, rumores que tinham chegado aos ouvidos do Monsieur Antonov. Este tentara despedir o guarda-costas várias vezes, mas a Madame Sophie nem sequer queria ouvir falar dessa possibilidade. Enquanto a Maybach atravessava lentamente o imponente portão de segurança, acendeu outro Gitane e fitou o exterior da janela, mal-humorada. Desta vez, não conseguiu reprimir a vontade de tossir.

— Sabias — disse Girard — que não tens de fumar essas coisas deploráveis quando estamos só os dois?

— É a única forma de me habituar a eles.

— Quais são os teus planos?

— O mercado.

— E depois?

— Tinha esperança de almoçar com o meu marido, mas parece que ele não pode ser incomodado.

Girard sorriu, mas não disse nada. Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie tocou com uma mensagem recebida. Depois de a ler, voltou a meter o aparelho na mala e, tossindo, fumou o que restava do Gitane. Estava quase na hora de a Madame Sophie conhecer a Madame Olivia. Tinha de praticar.


28

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Enquanto passavam pela saída para a Plage de Pampelonne, Natalie foi inundada por memórias. Dessa vez, não eram as memórias de Leila, eram as suas. Uma manhã perfeita no final de agosto. Natalie e os pais fizeram a difícil viagem de carro de Marselha até Saint-Tropez porque nenhuma outra praia em França (nem no mundo, já agora) se compara àquela. Corria o ano de 2011. Natalie terminou a sua formação médica e embarcou no que promete ser uma carreira bem-sucedida no sistema de saúde público francês. É uma cidadã francesa modelo; não consegue imaginar-se a viver em nenhum outro lugar. Mas a França está a mudar vertiginosamente. Já não é um lugar onde seja seguro ser-se judeu. Cada dia, aparentemente, traz consigo notícias de mais um horror. Outra criança que espancaram ou em quem cuspiram, outra montra de loja que partiram, outra sinagoga que pintaram com graffiti, outra lápide que derrubaram. E, portanto, naquele dia do final de agosto, na praia de Pampelonne, Natalie e os pais fazem os possíveis para ocultar o facto de serem judeus. Não conseguem, e o dia não decorre sem olhares desdenhosos e um insulto murmurado pelo empregado de mesa que, de má vontade, lhes serve o almoço. Durante a viagem de regresso a Marselha, os pais de Natalie tomam uma decisão que mudará os seus destinos. Abandonarão França e estabelecer-se-ão em Israel. Pedem a Natalie, a sua única filha, que se junte a eles. Ela aceita, sem hesitar. E agora, pensava, fitando o exterior através dos vidros fumados da limusina Maybach, estava de volta.

Para lá das praias havia vinhedos recentemente plantados e minúsculas villas sombreadas por ciprestes e pinheiros mansos. No entanto, assim que alcançaram os limites exteriores de Saint-Tropez as villas passaram a estar escondidas por muros altos cobertos por trepadeiras floridas. Essas eram as casas dos meramente ricos, não dos milionários como Dmitri Antonov ou Ivan Kharkov antes dele. Quando era criança, Natalie sonhara com viver numa casa grandiosa rodeada de muros. Gabriel concedera-lhe o desejo. Gabriel, não, pensou subitamente. Fora Saladino.

O motorista conduziu suavemente a Mayback para a Avenue Foch e seguiu por esta até ao centre ville. Era apenas junho, ainda não o pico do verão, portanto as multidões eram toleráveis, até mesmo na Place des Lices, onde se situava o fervilhante mercado ao ar livre de Saint-Tropez. Enquanto Natalie abria lentamente caminho por entre as banquinhas, sentiu uma avassaladora sensação de perda. Este era o seu país, pensou, e, contudo, a sua família fora obrigada a abandoná-lo devido ao mais antigo dos ódios. A presença de Roland Girard centrou a sua atenção na tarefa que tinha em mãos. Não caminhava ao seu lado, mas atrás de si. Não havia forma de o confundirem com um marido. Estava ali por uma única e exclusiva razão: para proteger a Madame Sophie Antonov, a nova residente do célebre palácio na Baie de Cavalaire.

Subitamente, ouviu alguém chamar o seu nome de um café no Boulevard Vasserot.

— Madame Sophie, Madame Sophie! Sou eu, o Nicolas. Aqui, Madame Sophie. — Ela ergueu o olhar e viu Christopher Keller a acenar-lhe de uma mesa no Le Clemenceau. A sorrir, atravessou a rua, com Roland Girard um passo atrás dela. Keller levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. Quando Natalie se sentou, Roland Girard regressou à Place des Lices e ficou, de pé, sob a sombra sarapintada de um plátano.

— Que agradável surpresa — disse Keller quando ficaram sozinhos.

— Sim, é verdade. — O tom de Natalie foi frio. Era a voz que a Madame Sophie utilizava quando se dirigia aos homens que trabalhavam para o seu marido. — O que te traz por cá?

— Vim tratar de um recado. E a senhora?

— Fazer umas compras. — Olhou de relance em redor do mercado. — Há alguém a ver-nos?

— Claro, Madame Sophie. Os senhores causaram uma agitação e tanto.

— Era esse o objetivo, não era?

Keller estava a beber Campari.

— Teve oportunidade de visitar alguma das galerias de arte? — perguntou ele.

— Ainda não.

— Há uma bastante boa perto do Porto Velho. Teria todo o gosto em mostrar-lha. É uma caminhada de cinco minutos, no máximo.

— A proprietária vai lá estar?

— Diria que sim, com certeza.

— Como é que o nosso amigo quer que eu me comporte?

— Parece pensar que se justificaria uma boa humilhação.

Natalie sorriu.

— Acho que a Madame Sophie consegue fazer isso bastante bem.

 

Caminharam na direção do Porto Velho, para lá do desfile de lojas que ladeavam a Rue Gambetta. Keller envergava calças brancas, mocassins pretos e um pulôver justo igualmente preto. Com o seu bronzeado escuro e gel no cabelo, tinha uma aparência absolutamente duvidosa. Natalie, desempenhando o papel de Madame Sophie, fingia um intenso e profundo tédio. Deambulou por várias montras de lojas, incluindo a de uma boutique que exibia o nome de Olivia Watson. Roland Girard, o seu falso guarda-costas, manteve-se vigilantemente junto dela.

— O que é que achas daquele? — perguntou, apontando na direção de um vestido fino que pendia de um manequim sem cabeça como um négligé. — Achas que o Dmitri repararia em mim se usasse aquilo? Ou então aquele? Aquele talvez conseguisse chamar a atenção dele.

Recebida por um silêncio profissional, continuou a caminhar, balouçando a sua mala de senhora como uma menina mimada. Yossi Gavish e Rimona Stern vinham pela rua estreita na direção deles, de mãos dadas, rindo-se de uma piada privada. Dina Sarid estava a examinar um par de sandálias na montra da Minelli e, um pouco mais ao fundo da rua, Natalie identificou Eli Lavon a entrar apressado numa farmácia, com a urgência de um homem cujas entranhas estão em estado de rebelião.

Finalmente, chegaram à Place de l’Ormeau. Não era um verdadeiro quadrado, como a Place des Lices, mas um minúsculo triângulo no cruzamento de três ruas. No centro, havia um fontanário antigo, sombreado por uma única árvore. Num dos lados havia uma loja de vestidos, no outro um café. E, junto do café, ficava o elegante edifício de quatro andares (grande para os cânones de Saint-Tropez, cinzento-pálido em vez de castanho-claro) ocupado pela Galerie Olivia Watson.

A pesada porta de madeira estava fechada e trancada. Ao lado, havia uma placa de bronze que declarava, em francês e inglês, que o visionamento do inventário da galeria se fazia unicamente por marcação. Na montra, havia três quadros em exposição: um Lichtenstein, um Basquiat e um trabalho do pintor e escultor francês Jean Dubuffet. Natalie aproximou-se para observar mais de perto o Basquiat, enquanto Keller examinava o telemóvel. Depois de um momento, apercebeu-se de uma presença nas suas costas. O aroma intoxicante a lilás tornou claro que não se tratava de Roland Girard.

— É lindo, não é? — perguntou uma voz feminina em francês.

— O Basquiat?

— Sim.

— Na verdade — disse Natalie para o vidro —, prefiro o Dubuffet.

— Tem bom gosto.

Natalie virou-se lentamente e avaliou a quarta obra de arte que se erguia a alguns centímetros de distância, na Place de l’Ormeau. Era espantosamente alta, tão alta, na verdade, que Natalie teve de levantar o olhar para encontrar o dela. Não era bonita, era profissionalmente bonita. Até àquele momento, Natalie nunca se apercebera de que havia uma diferença.

— Gostaria de o ver mais de perto? — perguntou a mulher.

— Desculpe?

— O Dubuffet. Tenho alguns minutos antes da minha próxima marcação. — Sorriu e esticou uma mão. — Desculpe, devia ter-me apresentado. O meu nome é Olivia. Olivia Watson — acrescentou. — Esta é a minha galeria.

Natalie aceitou a mão estendida. Era invulgarmente longa, tal como o braço nu, suave e dourado, ao qual estava unida. Olhos azuis luminosos fitavam-na a partir de um rosto tão perfeito que quase parecia irreal. Ostentava nele uma expressão de moderada curiosidade.

— É a Sophie Antonov, não é?

— Já nos conhecemos?

— Não. Mas Saint-Tropez é uma cidade pequena.

— Muito pequena — disse Natalie friamente.

— Vivemos do outro lado da baía onde vive com o seu marido — explicou Olivia Watson. — Na verdade, conseguimos ver a vossa villa da nossa. Talvez gostassem de nos vir visitar, um destes dias.

— Receio que o meu marido esteja extremamente ocupado.

— Parece o Jean-Luc.

— O Jean-Luc é o seu marido?

— Parceiro — disse Olivia Watson. — O nome dele é Jean-Luc Martel. Talvez tenha ouvido falar dele. A Sophie e o seu marido jantaram na nossa nova brasserie em Paris, há duas semanas. Ele enviou-vos uma garrafa de champanhe. — Olhou de soslaio para Keller, que parecia estar absorto nalguma coisa que estava a ler no telemóvel. — Ele também estava lá.

— Trabalha para o meu marido.

— E aquele? — Olivia Watson apontou na direção de Roland Girard com a cabeça.

— Trabalha para mim.

Os olhos luminosos fixaram-se novamente em Natalie, que estudara centenas de fotografias de Olivia Watson como preparação para o primeiro encontro, mas, mesmo assim, o impacto da sua beleza continuava a ser absolutamente surpreendente. Agora, estava a sorrir ligeiramente. Era um sorriso astuto, sedutor, superior. Tinha perfeita consciência do efeito que a sua aparência tinha sobre as outras mulheres.

— O seu marido é colecionador de arte — disse ela.

— O meu marido é um empresário que aprecia arte — disse Natalie cautelosamente.

— Talvez ele gostasse de visitar a galeria.

— O meu marido prefere quadros de Grandes Mestres a trabalhos contemporâneos.

— Sim, eu sei. Causou uma verdadeira sensação em Londres e Nova Iorque, nesta primavera. — Mergulhou a mão na sua mala de senhora e retirou um cartão-de-visita, que ofereceu a Natalie. — O meu número privado está no verso. Tenho algumas peças especiais que creio que poderiam interessar ao seu marido. E, por favor, venham almoçar à nossa villa este fim de semana. O Jean-Luc está ansioso por conhecê-los a ambos.

— Eu e o meu marido temos outros planos para este fim de semana — disse Natalie bruscamente. — Tenha um bom dia, Madame Wilson. Foi um prazer conhecê-la.

— Watson — gritou ela, enquanto Natalie se afastava. — O meu nome é Olivia Watson.

Ainda estava a segurar o cartão-de-visita entre o polegar e o indicador. Keller aproximou-se e puxou-lho da mão.

— Por vezes, a Madame Sophie é um pouco temperamental. Não se preocupe. Vou ter uma conversa com o patrão em seu nome. — Ofereceu a sua mão. — O meu nome é Nicolas, já agora. Nicolas Carnot.

 

Keller caminhou com Natalie e Roland Girard no regresso à Place des Lices e acompanhou-os enquanto aguardavam a Maybach, que alguns segundos mais tarde abandonou o centre ville qual borrão negro, observada de forma igualmente invejosa por turistas e residentes locais. Sozinho, Keller cortou através das banquinhas do mercado até ao outro lado da praça e subiu para a mota Peugeot Satelis que ali deixara. Dirigiu-se para oeste ao longo da extremidade do golfo de Saint-Tropez, depois para sul para as montanhas do Var, até chegar à povoação de Ramatuelle. Não era muito diferente da aldeia dos Orsati na Córsega Central, um aglomerado de casas de cor parda com telhados vermelhos, empoleirada defensivamente no topo de uma montanha. Havia villas maiores escondidas nas planícies arborizadas em baixo. Uma delas chamava-se La Pastorale. Keller assegurou-se de que não estava a ser seguido antes de se apresentar no portão de segurança de ferro. Estava pintado de verde e tinha uma aparência bastante temível. Premiu o botão do intercomunicador com o polegar e depois virou-se para ver um camião de entregas passar na estrada.

— Oui? — disse uma fina voz metálica passado um momento.

— C’est moi — disse Keller. — Abre a merda do portão.

O caminho de acesso à casa era longo e sinuoso e ensombrado por pinheiros e choupos. Terminava no pátio de gravilha de uma enorme villa de pedra com portadas amarelas. Keller encaminhou-se para a sala de estar, que fora transformada num centro de operações temporário. Gabriel e Paul Rousseau estavam curvados sobre um computador portátil. Rousseau reconheceu a chegada de Keller com um aceno cuidadoso de cabeça (continuava profundamente desconfiado desse talentoso agente do MI6 que falava francês como um corso e estava à vontade na presença de criminosos), mas Gabriel tinha um sorriso rasgado.

— Bem jogado, Monsieur Carnot. Levar o cartão-de-visita foi um belo detalhe.

— As primeiras impressões são importantes.

— Efetivamente, são. Ouve isto.

Gabriel bateu suavemente no teclado do computador portátil e, alguns segundos depois, ouviu-se a voz de uma mulher enraivecida a gritar em francês. Era fluente e obsceno, mas marcado por um inconfundível sotaque inglês.

— Com quem é que ela está a falar?

— Com o Jean-Luc Martel, claro.

— Como é que ele reagiu?

— Vais ouvir daqui a um minuto.

Keller encolheu-se, enquanto a voz de Martel ribombava a partir das colunas.

— Claramente — disse Gabriel —, não está habituado a que as pessoas lhe digam que não.

— Qual é a tua próxima jogada?

— Outra humilhação. Várias, na verdade.

As colunas silenciaram-se depois de Olivia Watson terminar a chamada com uma enxurrada final de obscenidades aos gritos. Keller caminhou até um conjunto de monitores de vídeo e observou uma limusina Maybach a virar para uma villa palaciana à beira-mar. Uma mulher saiu e abriu caminho por entre divisões cavernosas de onde pendiam quadros de Grandes Mestres até um terraço com vista para uma piscina do tamanho de uma lagoa. Aí, dormitava um homem com a pele pálida a ruborizar-se debaixo da implacável ofensiva do sol. A mulher disse-lhe algo diretamente ao ouvido que os microfones não conseguiram captar e conduziu-o até ao andar de cima, para um quarto onde não havia câmaras. Keller sorriu, enquanto a porta se fechava. Afinal, talvez houvesse esperança para a Madame Sophie e o Monsieur Antonov.


29

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Não era verdade que Madame Sophie e Monsieur Antonov tivessem planos para esse fim de semana. Mas, de alguma fora, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. Efetivamente, mal o sol se tinha posto, numa tarde perfeita de sexta-feira, uma fileira de faróis de carros qual colar de diamantes estendeu-se ao longo da faixa costeira da Baie de Cavalaire, na direção dos portões da Villa Soleil, que brilhava e cintilava e pulsava ao ritmo de música tão alta que era possível ouvi-la do outro lado da água, que era o que se pretendia. Os convidados vieram de todo o mundo. Havia atores e escritores e aristocratas em declínio e ladrões. Havia o filho de um fabricante de automóveis italiano que chegou entre um cardume de mulheres seminuas e uma estrela pop que não tivera um álbum de sucesso desde que a música se tornara digital. Metade do mundo artístico londrino estava lá, juntamente com um contingente de Nova Iorque que, diziam os rumores, tinha atravessado o Atlântico num voo privado pago pelo anfitrião. E havia muitos outros que mais tarde admitiriam não terem recebido qualquer convite. Essas almas menores tinham ouvido falar do assunto através dos canais habituais (a fábrica de boatos da Riviera, as redes sociais) e tinham-se dirigido avidamente para a porta banhada a ouro do Monsieur Antonov.

Se ele esteve realmente presente nessa noite, não se viu rasto dele. De facto, nem um único convidado conseguiria oferecer provas fiáveis, em primeira-mão, de o ter visto. Nem mesmo Julian Isherwood, o seu consultor artístico, foi capaz de explicar o seu paradeiro. Isherwood realizou uma visita privada à impressionante coleção de quadros de Grandes Mestres da villa para o punhado de convidados que mostrou algum interesse em vê-la. Depois, tal como toda a gente, ficou podre de bêbado. À meia-noite, o buffet tinha sido devorado e havia mulheres a nadar nuas nas piscinas e nas fontes. Houve um combate com socos, a realização muito pública de um ato sexual e a ameaça de um processo judicial. Rivalidades antigas atearam-se, casamentos colapsaram e muitos automóveis de luxo sofreram danos. Toda a gente concordou que a diversão fora de arromba.

Mas a festa não terminou nessa noite, entrou meramente numa breve remissão. Ao final da manhã, os carros entupiram mais uma vez as estradas, e uma frota de iates brancos a motor ancoraram nas águas junto à doca da Villa Soleil, servidos pela lancha do Monsieur Antonov que levou os convidados até à margem. As festividades da segunda noite foram piores do que as da primeira, pelo facto de a maioria dos convidados ter chegado embriagada ou ainda estar embriagada da noite anterior. A vasta equipa de seguranças do Monsieur Antonov vigiou cuidadosamente os quadros, e diversos convidados mais indisciplinados foram expulsos do local com silenciosa eficiência. Ainda assim, não houve nenhum que, efetivamente, tivesse dado um aperto de mão ao anfitrião ou lhe tivesse sequer posto a vista em cima. Oh, houve a divorciada americana de meia-idade e pele curtida que alegou tê-lo visto a observar a festa, ao estilo de Gatsby, do terraço privado nos aposentos superiores do seu palácio, mas estava bastante inebriada na altura e o seu relato foi completamente ignorado. Humilhada, fez uma tentativa desajeitada de seduzir um jovem e bonito piloto de fórmula um, mas teve de se consolar com a companhia de Oliver Dimbleby. Foram vistos pela última vez a cambalear para o interior da noite, com a mão de Oliver no seu rabo.

Houve um brunch com champanhe no domingo, depois do qual os últimos convidados dispersaram. Os feridos que ainda caminhavam dirigiram-se para a porta pelo próprio pé; os comatosos e sem reação partiram por outros meios. Então, um exército de trabalhadores chegou e eliminou todas as provas da destruição do fim de semana. E, na segunda de manhã, o Monsieur Antonov e a Madame Sophie estavam no seu lugar habitual do terraço com vista para a piscina, o Monsieur Antonov perdido no seu tablet, a Madame Sophie nos seus pensamentos. Ao meio-dia, ela foi até à vila, acompanhada por Roland Girard, e almoçou com o Monsieur Carnot num restaurante do Porto Velho que era propriedade de Jean-Luc Martel. Olivia Watson almoçou com uma amiga, uma mulher quase tão bela quanto ela, a algumas mesas de distância. Ao sair, passou pela mesa da Madame Sophie sem uma palavra ou um olhar de soslaio, embora o Monsieur Carnot estivesse bastante certo de que ouvira acidentalmente uma obscenidade anatómica que nem ele, um homem de reputação duvidosa, alguma vez se atrevera a proferir.

Houve outra festa no fim de semana seguinte, mais pequena, mas não menos perversa, e uma farra na semana seguinte que bateu o recorde de queixas aos gendarmes na Côte d’Azur. Nesse ponto, os Antonovs decretaram um cessar-fogo e a vida na Baie de Cavalaire voltou a algo parecido com o normal. Durante a maior parte do tempo, permaneciam prisioneiros da Villa Soleil, embora, várias vezes por semana, a Madame Sophie, depois da sua corrida matinal na passadeira, viajasse até Saint-Tropez na sua limusina Maybach para fazer compras ou almoçar. Normalmente, comia com Roland Girard ou com o Monsieur Carnot, embora em duas ocasiões tivesse sido vista com um inglês alto e bronzeado que arranjara uma villa para passar o verão perto da povoação de montanha de Ramatuelle. Tinha uma esposa curvilínea e sarcástica que Madame Sophie adorava.

A villa não albergava unicamente o casal. Havia uma mulher pequena de cabelo escuro que se deslocava com um ligeiro coxear e exibia o comportamento de uma viuvez recente. E um homem esquivo, no final da sua meia-idade, que parecia nunca vestir a mesma roupa duas vezes. E um sujeito com aspeto severo e rosto bexigoso que aparentava estar sempre a ponderar um ato de violência. E um francês de porte professoral que empestava as divisões da villa com o seu omnipresente cachimbo. E um homem com as têmporas grisalhas e olhos verdes que implorava constantemente ao francês que encontrasse outro vício, um que não colocasse em perigo a saúde daqueles que o rodeavam.

Os residentes da villa não davam quaisquer mostras de se dedicarem à recreação ou ao lazer; tinham vindo para a Provença tratar de um assunto de extrema seriedade. O francês professoral e o homem de olhos verdes eram, aparentemente, parceiros em pé de igualdade, mas, na prática, o francês aceitava as decisões do colega em quase todas as matérias. Ambos os homens passavam uma quantidade significativa de tempo fora da villa. O francês, por exemplo, deslocava-se constantemente entre a Provença e Paris, enquanto o homem de olhos verdes fazia várias viagens clandestinas até Telavive. Também viajou para Londres, onde negociou os termos da nova fase do seu projeto, e para Washington, onde foi repreendido pelo seu ritmo lento. Foi indulgente com a disposição desagradável do seu parceiro americano. Os americanos tinham-se habituado a resolver os problemas com o premir de um botão. Paciência não era uma virtude americana.

Mas o homem de olhos verdes era a encarnação da paciência, principalmente quando estava na villa de Ramatuelle. As travessuras do Monsieur Antonov e da Madame Sophie interessavam-lhe pouco. A sua obsessão era a bela inglesa que detinha a galeria de arte na Place de l’Ormeau. Com a assistência dos outros residentes da villa, observava-a dia e noite. E, com o auxílio do seu amigo na América, ouvia todas as suas chamadas e lia todas as suas mensagens e e-mails.

Ela abominava o novo casal ruidoso que vivia no lado oposto da Baie de Cavalaire (isso era evidente), mas, apesar disso, eles intrigavam-na. Interrogava-se, sobretudo, por que motivo todas as celebridades menores do sul de França tinham sido convidadas para a villa dos Antonov, mas ela fora excluída. O seu «não-exatamente» marido tinha pensamentos semelhantes. Afinal de contas, ele próprio era uma celebridade. Uma verdadeira celebridade, não um desses farsantes pretensiosos que tinham aberto caminho a rastejar até ao interior da duvidosa órbita de Antonov. Pouco tempo depois, estava a fazer as suas próprias investigações sobre o novo vizinho e a fonte do seu considerável rendimento. Quanto mais ouvia, mais se convencia de que Monsieur Dmitri Antonov era uma alma gémea. Instruiu a sua «não-exatamente esposa» a fazer um novo convite. Ela respondeu que mais depressa cortaria os pulsos do que passaria outro minuto na companhia daquela criatura mimada do outro lado da baía, ou algo nesse sentido.

E, portanto, o homem de olhos verdes esperou pelo momento certo. Observou todos os seus movimentos e ouviu todas as suas palavras e leu todas as suas missivas eletrónicas. E interrogou-se se ela seria merecedora da sua obsessão. Será que era a rapariga dos seus sonhos ou partir-lhe-ia o seu coração de espião? Render-se-ia a ele, ou seria necessário o uso da força? Se isso acontecesse, ele tinha força em abundância. Nomeadamente, os quarenta e oito quadros que encontrara no Freeport de Genebra. Esperava não ter de chegar a isso. Pensava nela como um quadro a precisar desesperadamente de um restauro. Ele oferecer-lhe-ia os seus serviços. E, se ela fosse suficientemente insensata para recusar, era possível que as coisas se tornassem desagradáveis.

Na segunda semana de julho, já vira e ouvira o suficiente. Aproximava-se o Dia da Bastilha, após o qual principiaria a reta final da temporada de verão. Mas, como superar a divisória que ele próprio criara? Decidiu que só um convite formal o conseguiria fazer. Ele próprio o escreveu, com uma mão tão precisa que parecia ter sido escrito por uma impressora a laser, e deu-o ao Monsieur Carnot para que o entregasse na galeria da Place de l’Ormeau. Ele assim fez, às onze e um quarto de uma manhã perfeita na Provença, e ao meio-dia da manhã seguinte tinham recebido a resposta que esperavam. Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, iria à Villa Soleil almoçar. E Olivia Watson, a rapariga dos sonhos de Gabriel, iria com ele.


30

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— O que é que achas, querida? Com arma ou sem arma?

Mikhail estava a admirar-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir. Envergava um fato escuro de linho (demasiado escuro para a ocasião e para o tempo, que estava quente, até mesmo para os padrões da Côte d’Azur) e uma camisa branca impoluta, desabotoada até ao esterno. Só os sapatos, um par de mocassins de mil e quinhentos euros, que usava sem meias, eram inteiramente apropriados. As fivelas de ouro condiziam com o relógio de ouro que repousava no seu pulso como um barómetro fora de lugar. Fora manufaturado para ele pelo seu homem em Genebra, uma pechincha de um milhão e meio.

— Sem arma — disse Natalie. — Pode passar a mensagem errada.

Estava de pé ao seu lado, com a imagem refletida no mesmo espelho. Envergava um vestido branco sem mangas e mais joias do que as necessárias para um almoço vespertino no jardim. A sua pele estava muito escura devido ao tempo excessivo passado ao sol. Pensou que não combinava bem com a cor do seu cabelo, que fora aclarado vários tons antes da sua partida de Telavive.

— Achas que alguma vez se tornaria aborrecido?

— O quê?

— Viver assim.

— Acho que depende da alternativa.

Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie vibrou.

— O que é?

— O Martel e a Olivia acabaram de sair da villa deles.

Mikhail franziu o sobrolho para o relógio de pulso.

— Já cá deviam estar há vinte minutos.

— Tempo JLM — disse Natalie.

O telemóvel vibrou uma segunda vez.

— O que foi agora?

— Dizem que fazemos um belo casal.

Natalie beijou a maçã do rosto de Mikhail e saiu. No andar de baixo, no terraço sombreado, um trio de empregados domésticos do Grupo Alpha estava a preparar uma mesa para o almoço com desmedido cuidado. Na extremidade oposta do terraço, Christopher Keller estava a beber rosé. Natalie puxou um Marlboro do maço dele e dirigiu-se a ele em francês.

— Não podes sequer fingir estar um bocadinho nervoso?

— Na verdade, estou ansioso por finalmente conhecê-lo. Aí vem ele.

Natalie olhou na direção do horizonte e viu dois Range Rover pretos a contornar a baía, um para Martel e Olivia, o outro para o seu destacamento de segurança.

— Guarda-costas para o almoço — disse ela com o desdém da Madame Sophie. — Que grosseiro. — Depois, acendeu o cigarro e fumou durante algum tempo sem tossir.

— Estás a ficar bastante boa nisso.

— É um hábito nojento.

— É melhor do que alguns. Na verdade, consigo lembrar-me de vários que são muito piores. — Keller observou os Range Rover que se aproximavam. — A senhora tem mesmo de descontrair, Madame Sophie. Afinal de contas, é uma festa.

— O Jean Luc-Martel e eu vimos da mesma parte de França. Tenho receio de que ele olhe para mim e veja uma rapariga judia de Marselha.

— Ele vai ver o que tu quiseres que ele veja. Para além disso — disse Keller —, se conseguiste convencer o Saladino de que eras palestiniana, consegues fazer seja o que for.

Natalie conteve a tosse e observou os criados do Grupo Alpha a colocar os retoques finais na mesa.

— Porquê velas? — murmurou ela. — Estamos perdidos.

 

Durante as horas finais de preparação para a reunião há muito aguardada entre Jean-Luc Martel e Monsieur Dmitri Antonov, houvera uma discussão invulgarmente acalorada entre Gabriel e Paul Rousseau sobre o que parecia ser um detalhe trivial. Especificamente, se o imponente portão da Villa Soleil deveria estar aberto para a chegada de Martel ou ser deixado fechado, colocando assim, diante dele, uma última barreira metafórica que superar. Rousseau fez pressão a favor de uma abordagem acolhedora: Martel, argumentou, já sofrera o suficiente. Mas Gabriel estava numa disposição menos indulgente e, após uma disputa de vários minutos, levou a melhor sobre Rousseau quanto a deixar o portão fechado.

— E façam-no tocar à campainha como toda a gente — disse Gabriel. — Para Dmitri Antonov, o Martel não passa de um ajudante de cozinha. É importante que o tratemos assim.

E foi assim que, vinte e nove minutos depois da uma da tarde, o motorista de Martel teve de premir o botão do intercomunicador não uma, mas duas vezes, antes de o portão da Villa Soleil finalmente se abrir com um inóspito rangido. Roland Girard, de fato e gravata escuros, assava lentamente no pátio abundantemente banhado pelo sol, com um intercomunicador no ouvido. Por conseguinte, foi o rosto de um agente do Grupo Alpha, não do seu anfitrião, que Martel viu quando saiu das traseiras do seu veículo, vestido com um fato de popelina branco como um bolo de casamento e com a juba de cabelo, que era a sua marca registada, a revolver-se nos remoinhos de vento quente que rodopiavam e morriam em redor das águas dançantes da fonte. Seis câmaras gravaram a sua chegada, e o transmissor usado por Roland Girard captou um intercâmbio tenso relativamente ao destino dos seus guarda-costas. Aparentemente, Martel queria que o acompanhassem até ao interior da villa, um pedido que Girard, educada, mas firmemente, recusou. Enfurecido, Martel afastou-se e atravessou o pátio com uma celeridade predatória, com um trejeito semelhante ao de um gangster empreendedor, um rufia estrela de rock. Olivia era, nessa altura, uma consideração secundária. Seguiu-o, alguns passos atrás, como se já estivesse a preparar as desculpas pelo seu comportamento.

Nessa altura, os Antonovs estavam de pé à sombra do pórtico, como se estivessem a posar para uma fotografia, o que efetivamente era o caso. As saudações fizeram-se com base no género. A Madame Sophie deu as boas-vindas a Olivia Watson como se o frígido encontro à porta da galeria nunca tivesse ocorrido, enquanto Martel e Dmitri Antonov apertaram as mãos como adversários que se preparavam para se derrotarem um ao outro no campo de jogo. Com um sorriso contido, Martel disse que ouvira falar muito do Monsieur Antonov e que estava satisfeito por finalmente o conhecer. Fê-lo em inglês, o que sugeria que tinha conhecimento de que o Monsieur Antonov não falava francês.

— A sua villa é verdadeiramente magnífica. Mas tenho a certeza de que conhece a história dela.

— Disseram-me que, em tempos, foi propriedade de um membro da família real britânica.

— Estava a referir-me ao Ivan Kharkov.

— Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais concordei em retirá-la das mãos do governo francês.

— Conhecia o Monsieur Kharkov?

— Receio que o Ivan e eu nos movêssemos em círculos bastante diferentes.

— Eu conhecia-o bastante bem — vangloriou-se Martel, enquanto atravessava o hall principal da villa ao lado do seu anfitrião, seguido pela Madame Sophie e Olivia e observado pelos olhos imperturbáveis das câmaras de vigilância. — Recebi os Kharkovs muitas vezes nos meus restaurantes em Saint-Tropez e Paris. A forma como morreu foi terrível.

— Os israelitas estiveram por trás disso. Pelo menos, foi esse o rumor.

— Foi mais do que um simples rumor.

— Parece bastante seguro de si.

— Não há muita coisa que aconteça na Côte d’Azur que eu desconheça.

Continuaram para o terraço, onde o último membro do grupo do almoço aguardava entre as colunas.

— Jean-Luc Martel, apresento-lhe Nicolas Carnot. O Nicolas é o meu assistente e consultor mais próximo. É natural da Córsega, mas não lhe leve isso a mal.

 

Na villa nos arredores de Ramatuelle, Gabriel observou atentamente enquanto Jean-Luc Martel aceitava a mão esticada na sua direção. Seguiram-se alguns segundos tensos, enquanto os dois homens se avaliavam mutuamente como só criaturas de nascimento, educação e aspirações de carreira semelhantes conseguem fazer. Claramente, Martel via algo que reconhecia no homem de aspeto duro da ilha da Córsega. Apresentou o Monsieur Carnot a Olivia, que explicou que já se tinham encontrado em duas ocasiões anteriores na galeria. Mas Martel pareceu não a ouvir; estava a admirar a garrafa de Bandol rosé que suava no balde de gelo. A sua aprovação do vinho não foi acidental. Este figurava proeminentemente em todos os seus bares e restaurantes. Gabriel encomendara quantidades suficientes do líquido para fazer flutuar um navio de carga repleto de haxixe.

Seguindo a sugestão da Madame Sophie, sentaram-se nos sofás e cadeiras dispostos na extremidade mais afastada do terraço. Ela foi fria e distante, uma observadora, tal como Gabriel, que estava de pé diante dos monitores de vídeo, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado e uma mão pousada no queixo. A outra pressionava o fundo das costas, que estavam a incomodá-lo. Eli Lavon estava de pé ao seu lado e, ao lado de Lavon, encontrava-se Paul Rousseau. Observaram ansiosamente enquanto um agente do Grupo Alpha, vestido com uma imaculada túnica branca, retirava uma garrafa vazia de rosé do balde de gelo e a substituía com êxito por uma nova. Calmamente, a Madame Sophie instruiu-o para que trouxesse os aperitivos. Também isso o criado conseguiu fazer sem causar vítimas nem danos colaterais. Aliviado, Paul Rousseau carregou o cachimbo e soprou uma nuvem de fumo para os ecrãs de vídeo. A Madame Sophie também pareceu ficar aliviada. Acendeu um Gitane e, com o polegar e dedo anelar, removeu discretamente um resto de tabaco da ponta da língua.

A conversa foi educada, mas reservada, que era como Gabriel pretendia que fosse. Realizou-se em inglês, para benefício de Dmitri Antonov, embora, ocasionalmente, fosse deixado à deriva por uma explosão de francês. Não se ofendeu com isso. Na verdade, parecia apreciar o sossego, pois permitia-lhe desfrutar de uma pausa em relação às perguntas persistentes de Martel relativamente ao seu negócio. Explicou que fizera muito dinheiro com o comércio de matérias-primas russas e conseguira trocar as suas fichas por dinheiro antes da Grande Recessão e da queda abrupta dos preços do petróleo. Embarcara recentemente num conjunto de negócios no Ocidente e na Ásia. Vários deles, disse, tinham-se revelado bastante lucrativos.

— Evidentemente — disse Martel, com um olhar de relance em redor.

O Monsieur Antonov limitou-se a sorrir.

— Em que tipo de coisas está a investir?

— Nas coisas habituais — respondeu evasivamente. — Acima de tudo, tenho satisfeito a minha paixão pela arte.

— Eu e a Olivia adoraríamos ver a sua coleção.

— Talvez depois do almoço.

— Devia realmente dar uma olhadela no inventário dela. Tem muitas peças extraordinárias.

— Gostaria muito de o fazer.

— Quando? — perguntou Martel.

— Amanhã — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e alguns segundos depois Dmitri Antonov disse:

— Passo por lá amanhã, se for conveniente.

Com isso, deslocaram-se para a mesa de refeições. Aqui, mais uma vez, Gabriel não se poupara a despesas e não deixara nada ao acaso. De facto, contratara o chef executivo de um célebre restaurante parisiense e tinha-o trazido num voo privado para a Provença, exclusivamente para a ocasião. A Madame Sophie escolhera o menu. Batatas em molho quente com caviar, rabanete picante e marinada de gengibre; vieiras apanhadas à mão com couve-flor caramelizada e uma emulsão de alcaparras e passas; robalo com crosta de frutos secos e sementes e molho agridoce. Impressionado, Martel pediu para conhecer o chef. A Madame Sophie, acendendo outro cigarro, opôs-se. O chef e a sua equipa, explicou, nunca eram autorizados a deixar a cozinha.

Durante a sobremesa, a conversa virou-se para a política. As eleições na América, a guerra na Síria, os atentados terroristas do ISIS na Europa. Perante a menção do Islão, Martel mostrou-se subitamente animado. A França como em tempos a tinham conhecido desaparecera, rosnou. Em breve, seria apenas outro posto avançado do Magrebe Islâmico. Gabriel achou a atuação bastante convincente, embora Olivia parecesse pensar de outra forma. Aborrecida, perguntou a Madame Sophie se podia tirar um dos seus Gitanes.

— O Jean-Luc tem opiniões muito fortes no que se refere à questão das minorias em França — confidenciou. — Eu gosto de lhe lembrar que, se não fossem os árabes e os africanos, não teria ninguém para lavar os pratos nos restaurantes ou mudar as camas nos seus hotéis.

A Madame Sophie, com a sua expressão, deixou claro que achava o tema de mau gosto. Pediu aos criados do Grupo Alpha que trouxessem o café. Nessa altura, eram quase cinco da tarde. Todos concordaram que uma visita aos quadros teria de esperar por outra ocasião, embora tivessem visto vários enquanto atravessavam lentamente as vastas salas de estar e corredores em tons rosados, observados pelas câmaras de vigilância.

— Está realmente interessado em vir à galeria amanhã? — perguntou Olivia, enquanto fazia uma pausa para admirar as duas cenas de canais venezianos de Guardi.

— Absolutamente — respondeu Dmitri Antonov.

— Estou livre às onze.

— À tarde é melhor — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e Dmitri Antonov explicou, então, que tinha vários telefonemas importantes para fazer de manhã e preferiria visitar a galeria depois do almoço.

— Se isso for conveniente.

— É.

— O Monsieur Carnot fará os preparativos necessários. Creio que ele tem o seu número.

Os Antonovs despediram-se dos seus convidados no pórtico que, nessa altura, já não se encontrava à sombra, mas incandescente com uma ténue luz alaranjada. Passado um momento, estavam mais uma vez de pé no terraço, observando os Range Rover negros a acelerarem na direção da villa que ficava do outro lado da Baie de Cavalaire. Imediatamente, o telemóvel da Madame Sophie vibrou.

— O que é que diz? — perguntou o marido.

— Diz que fomos perfeitos.

— Eles divertiram-se?

— O Martel está convencido de que és um traficante de armas a fazer-se passar por um empresário legítimo.

— E a Olivia?

— Está ansiosa por amanhã.

Sorrindo, Dmitri Antonov despiu o fato e desceu até à piscina para nadar um pouco. A Madame Sophie e o Monsieur Carnot observaram-no do terraço enquanto terminavam o que restava do rosé. O telefone da Madame Sophie estremeceu com a chegada de outra mensagem.

— O que foi agora? — perguntou o Monsieur Carnot.

— Aparentemente, o Martel acha que eu pareço judia. — Acendeu outro Gitane e sorriu. — O Saladino disse a mesma coisa.


31

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Às dez horas da manhã seguinte, a Place de l’Ormeau estava deserta, a não ser pela presença de um homem no final da meia-idade a lavar as mãos num fio de água do fontanário. Olivia pensou que já o vira na vila anteriormente uma ou duas vezes, mas, após uma análise mais atenta, decidiu que estava enganada. As pedras da calçada aqueceram os seus pés por baixo das sandálias enquanto atravessava a praça para a galeria. Retirando as chaves da mala de senhora, destrancou a porta de madeira exterior e entrou para o hall abafado. Em seguida, abriu a porta de vidro de alta segurança e, entrando, desativou o alarme. Fechou a porta atrás de si. Esta trancou-se automaticamente.

O interior da galeria estava escuro e fresco, um alívio em relação ao exterior. No seu escritório privado, Olivia premiu um interruptor que abriu os estores e grades de segurança. Depois, como era seu hábito, foi até ao andar de cima, às salas de exposição, para se assegurar de que nada faltava. O Lichtenstein, o Basquiat e o Dubuffet em exibição na sua montra eram apenas a ponta do inventário da galeria. A considerável coleção profissional de Olivia incluía trabalhos de Warhol, Twombly, de Kooning, Gerhard Richter e Pollock, bem como de numerosos artistas contemporâneos franceses e espanhóis. Fizera aquisições com sabedoria e granjeara uma clientela de confiança entre os milionários da Côte d’Azur (homens como Dmitri Antonov, pensou). Era uma proeza extraordinária para uma mulher sem título universitário e sem qualquer formação artística formal. E pensar que, apenas alguns anos antes, geria uma pequena galeria que distribuía os rabiscos de artistas locais a turistas suados que saíam estonteados de navios cruzeiro e autocarros. Por vezes, permitia a si própria pensar que tinha chegado até ali como resultado da sua determinação e argúcia empresarial, mas, na verdade, sabia que não era assim. Era tudo obra de Jean-Luc. Olivia era o rosto público da galeria que ostentava o seu nome, mas fora comprada e paga por Jean-Luc Martel. Aliás, ela também.

Depois de se asseverar de que a sua coleção sobrevivera intacta a essa noite, dirigiu-se ao andar de baixo e encontrou Monique, a sua rececionista, a preparar um café crème na máquina automática. Era uma rapariga de vinte e quatro anos, magra e com seios pequenos, uma encarnação de uma bailarina de Degas. À noite, trabalhava como rececionista num dos restaurantes de Jean-Luc. Aparentava ter-se deitado tarde. No que se referia a Monique, isso acontecia com mais frequência do que o contrário.

— Também quer? — perguntou enquanto a última porção de leite a ferver gorgolejava e cuspia para a sua chávena.

— Por favor.

Monique entregou o café a Olivia e preparou outro para si.

— Há marcações para esta manhã?

— Não era suposto seres tu a dizer-me isso?

Monique fez uma careta.

— Quem foi desta vez?

— Um americano. Tão fofo. É de um lugar chamado Virgínia. — Dito por Monique, soava como o lugar mais exótico e sensual do mundo. — É criador de cavalos.

— Pensava que odiavas americanos.

— Claro. Mas este é muito rico.

— Vais voltar a vê-lo alguma vez?

— Talvez esta noite.

Ou talvez não, pensou Olivia. Em tempos, fora uma rapariga como Monique. Talvez ainda fosse.

— Se consultares o calendário — disse ela —, tenho a certeza de que vais descobrir que o Herr Müller vem às onze.

Monique franziu o sobrolho.

— O Herr Müller gosta de olhar para as minhas mamas.

— Para as minhas também.

De facto, o Herr Müller gostava de olhar para Olivia mais do que para os seus quadros. Não era o único. A sua aparência era um trunfo profissional, mas, ocasionalmente, era uma distração e um desperdício de tempo. Homens ricos (e alguns não tão ricos) faziam marcações na galeria simplesmente para passarem alguns minutos na sua presença. Alguns arranjavam coragem para lhe fazerem propostas de cariz sexual. Outros fugiam sem nunca tornarem as suas intenções conhecidas. Ela aprendera há muito tempo como projetar um ar de indisponibilidade. Embora, teoricamente, fosse solteira, era a rapariga de JLM. Toda a gente em França sabia disso. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.

Monique sentou-se na secretária de vidro da receção. Tinha apenas um telefone e o calendário de marcações. Olivia não lhe confiava muito mais do que isso. Encarregava-se ela própria de todos os assuntos comerciais e administrativos da galeria, com a ajuda de Jean-Luc. Monique era apenas mais uma obra de arte que, se incentivada a isso, era capaz de atender o telefone. Fora Jean-Luc, não Olivia, quem lhe dera trabalho na galeria. Olivia tinha praticamente a certeza de que eram amantes. Não sentia rancor de Monique. Na verdade, sentia um pouco de pena dela. A coisa não acabaria bem. Nunca acabava.

O Herr Müller chegou dez minutos atrasados, o que não era seu hábito. Era gordo e rosado e cheirava ao vinho da noite anterior. Um confronto recente com um cirurgião plástico em Zurique deixara-o com uma expressão de assombro perpétuo. Estava interessado num quadro do artista americano Philip Guston. Um trabalho semelhante atingira um valor de vinte e cinco milhões de dólares na América. O Herr Müller esperava adquirir o de Olivia por quinze. Olivia rejeitou a oferta.

— Mas eu tenho de o ter! — exclamou enquanto fitava descaradamente a parte frontal da blusa de Olivia.

— Então, vai ter de arranjar mais cinco milhões.

— Deixe-me dormir sobre o assunto. Entretanto, não deixe que mais ninguém o veja.

— Na verdade, estou a planear mostrá-lo esta tarde.

— Maldição! A quem?

— Vá lá, Herr Müller, sabe que dizer-lhe seria cometer uma indiscrição.

— Não será o tal Antonov?

Ela ficou em silêncio.

— Fui a uma festa na villa dele recentemente. Sobrevivi por pouco. Outros não tiveram tanta sorte. — Mordiscou o interior do lábio. — Dezasseis. Mas é a minha oferta final.

— Prefiro arriscar com o Monsieur Antonov.

— Eu sabia!

Ao meio-dia e meia, em plena torreira do sol, Olivia despachou-o. Quando regressou à secretária, viu que recebera uma mensagem de Jean-Luc. Estava a embarcar no seu helicóptero para ir até Nice, onde tinha reuniões durante toda a tarde. Tentou enviar-lhe uma mensagem de volta, mas não recebeu qualquer resposta. Calculou que já estivesse no ar.

Devolveu o telefone à secretária. Alguns segundos mais tarde, este tocou. Olivia não reconheceu o número. Ainda assim, atendeu e aproximou o telefone do ouvido.

— Bonjour.

— Madame Watson?

— Sim.

— Daqui fala Nicolas Carnot. Almoçámos ontem na...

— Sim, claro. Como está?

— Estava a perguntar-me se continua a ter tempo para mostrar a sua coleção ao Monsieur Antonov.

— Limpei a minha agenda — mentiu. — A que horas é que ele gostaria de vir?

— Pode ser às duas horas?

— Às duas seria perfeito.

— Preciso de passar por aí primeiro para dar uma vista de olhos.

— Desculpe?

— O Monsieur Antonov é cauteloso em relação à segurança.

— Garanto-lhe, a minha galeria é bastante segura.

Houve um silêncio.

— A que horas gostaria de vir? — perguntou Olivia, exasperada.

— Estou livre agora, se a senhora estiver.

— Pode vir agora, não há problema.

— Perfeito. Oh, e mais uma coisa, Madame Watson.

— Sim?

— A sua rececionista.

— A Monique? O que é que tem?

— Dê-lhe um recado para fazer, algo que a mantenha fora da galeria durante alguns minutos. Pode fazer isso por mim, Madame Watson?

 

Transcorreram cinco minutos antes de a rececionista finalmente sair da galeria. Deteve-se na fornalha da praça, os seus olhos moveram-se para a esquerda e para a direita. Depois, deambulou vagarosamente, passando pela mesa de Keller no café vizinho com os braços a pender ao lado do corpo como flores de caule longo. Ele escreveu uma mensagem breve no telemóvel e disparou-a para a casa segura de Ramatuelle. A resposta chegou imediatamente. O helicóptero de Martel estava a leste de Cannes. Tudo decorria conforme o planeado.

Como bom agente operacional, Keller pagara a conta antecipadamente. Erguendo-se, dirigiu-se para a galeria e colocou o polegar pesadamente sobre a campainha. Não houve resposta. Amor com amor se paga, pensou. Tocou à campainha uma segunda vez. As fechaduras de segurança abriram-se com um estalido e ele entrou.

 

Havia algo diferente nele, Olivia tinha a certeza disso. Exteriormente, era a mesma criatura superficial e indiferente com quem almoçara na villa de Antonov (o homem de poucas palavras e funções indeterminadas), mas o seu comportamento mudara. Subitamente, parecia muito seguro de si e da virtude da sua causa. Atravessando a galeria, retirou os óculos de sol e colocou-os na cabeça. O seu sorriso era cordial, mas os olhos azuis eram totalmente profissionais. Dirigiu-se a ela sem antes lhe estender a mão para a cumprimentar.

— Receio que tenha havido uma ligeira mudança de planos. Afinal, o Monsieur Antonov não vai poder vir.

— Porque não?

— Um pequeno problema que exigia a sua atenção imediata. Nada de urgente, ouça. Não há motivo para alarme. — Disse tudo isto no seu francês com sotaque corso, com o mesmo sorriso inofensivo.

— Então porque é que me telefonou? E porque é que — perguntou Olivia — está aqui?

— Porque a sua galeria suscitou o interesse de alguns amigos do Monsieur Antonov que gostariam de falar consigo em privado.

— Que tipo de interesse?

— Diz respeito a várias transações recentes suas. Foram bastante lucrativas, mas pouco ortodoxas.

— As transações desta galeria — disse ela friamente — são privadas.

— Não tão privadas quanto pensa.

Olivia sentiu o rosto a começar a arder. Caminhou lentamente até à secretária de Monique e levantou o auscultador do descanso. A sua mão tremia enquanto marcava o número.

— Não se incomode a telefonar ao seu marido, Olivia. Ele não vai atender.

Ela ergueu o olhar repentinamente. Ele dissera estas palavras não em francês, mas em inglês com sotaque britânico.

— Ele não é meu marido — ouviu-se a si própria dizer.

— Oh, sim, esqueci-me. Ele continua no ar — continuou. — Algures entre Cannes e Nice. Mas tomámos a precaução adicional de bloquear todas as suas chamadas recebidas.

— Tomámos?

— Os serviços secretos britânicos — respondeu calmamente. — Não se preocupe, Olivia, está em muito boas mãos.

Ela pressionou o telefone contra o ouvido e ouviu a gravação de voice mail de Jean-Luc.

— Pouse o telefone, Olivia, e respire bem fundo. Não vou magoá-la. Estou aqui para ajudar. Pense em mim como a sua última oportunidade. Se fosse a si, aproveitava-a.

Ela devolveu o telefone ao descanso.

— Linda menina — disse ele.

— Quem é você?

— O meu nome é Nicolas Carnot e trabalho para o Monsieur Antonov, é importante que se lembre disso. Agora, pegue na sua mala, no seu telefone e nas chaves e leve-os para aquele seu belo Range Rover. E, por favor, despache-se, Olivia. Não temos muito tempo.


32

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


O Range Rover estava no seu local habitual, estacionado ilegalmente à porta do restaurante de Jean-Luc no Porto Velho. Olivia deslizou para trás do volante e, seguindo as indicações, conduziu para oeste ao longo do golfo de Saint-Tropez. Por duas vezes, pediu-lhe que explicasse porque é que a sua galeria tinha interesse suficiente para justificar um estratagema tão elaborado por parte dos serviços secretos britânicos. Por duas vezes, ele fez comentários sobre o cenário e o tempo, ao estilo de Nicolas Carnot, amigo do Monsieur Dmitri Antonov.

— Como é que aprendeu a falar assim?

— Assim como?

— Como um corso.

— A minha tia Beatrice era da Córsega. Está prestes a passar o sítio onde tem de virar.

— Para que lado?

Ele apontou na direção da saída para Gassin e Ramatuelle. Ela guinou bruscamente o volante para a esquerda e, pouco depois, dirigiram-se para sul, para a zona rural escarpada que separava o golfo e a Baie de Cavalaire.

— Para onde me está a levar?

— Para ver uns amigos do Monsieur Antonov, claro.

Ela rendeu-se e conduziu em silêncio. Nenhum deles falou até depois de terem passado Ramatuelle. Ele deu-lhe indicações para que se dirigisse para uma estrada secundária mais pequena e, eventualmente, até à entrada da villa. O portão estava aberto para os receber. Ela estacionou no pátio e desligou o motor.

— Não é tão luxuosa como a Villa Soleil — disse ele —, mas vai achá-la bastante confortável.

Subitamente, havia um homem de pé junto da porta de Olivia. Ela reconheceu-o. Vira-o nessa mesma manhã na Place de l’Ormeau. Ele ajudou-a a sair do Range Rover e, com um único movimento da mão, guiou-a na direção da entrada da villa. O homem que ela conhecia apenas como Nicolas Carnot (o homem que falava francês como um corso e inglês com um sotaque chique do West End) caminhou ao seu lado.

— Ele também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Quem?

— O que me abriu a porta.

— Não vi ninguém.

Olivia virou-se para trás, mas o homem tinha desaparecido. Talvez tivesse sido uma alucinação. Foi o calor, pensou ela. Sentia-se verdadeiramente fraca devido à temperatura.

Enquanto se aproximava da villa, a porta moveu-se para trás e Dmitri Antonov surgiu no meio da brecha.

— Olivia! — exclamou, como se ela fosse a sua amiga mais antiga do mundo. — Peço imensa desculpa por incomodá-la, mas receio que não houvesse alternativa. Entre e esteja à vontade. Está cá toda a gente. Estão bastante desejosos de a conhecerem por fim em carne e osso.

Disse tudo isso no seu inglês com sotaque russo. Olivia não sabia bem se seria verdadeiro ou uma atuação. Na verdade, naquele momento, não sabia nada de nada.

Segui-o através do hall de entrada e por baixo de uma arcada que dava para a sala de estar, que estava mobilada de forma confortável e com muitas telas penduradas na parede.

Todas estavam em branco.

As pernas de Olivia pareceram liquidificar-se. O Monsieur Antonov equilibrou-a e empurrou-a suavemente para a frente.

Havia outros três homens presentes. Um era alto, bonito e distinto e indiscutivelmente inglês. Estava, calmamente, a dizer algo em francês a uma figura amarrotada que envergava um casaco de tweed e parecia ter sido extraída de um alfarrabista. O silêncio abateu-se sobre a conversa quando Olivia entrou e os seus rostos viraram-se para ela como girassóis para a aurora. Contudo, o terceiro homem parecia totalmente alheio à sua chegada. Fitava uma das telas em branco, com uma mão pressionada contra o queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. A tela era idêntica, em termos de dimensões, a todas as outras, mas estava apoiada sobre um cavalete. O homem parecia confortável diante dela, observou Olivia. Era de altura e constituição medianas. O seu cabelo estava cortado curto e era grisalho nas têmporas. Os seus olhos, que estavam resolutamente fixos na tela, eram de um invulgar tom de verde.

— Acho — disse ele, finalmente — que este é o meu favorito. A técnica do desenho é absolutamente extraordinária e o uso da cor e da luz é inigualável. Invejo a paleta dele.

Despejou tudo isto sem pausas e em francês, com um sotaque que Olivia não conseguiu identificar com precisão. Era uma mistura peculiar, um pouco de alemão, uma pitada de italiano. Continuava a olhar fixamente para o quadro. A sua postura mantinha-se inalterada.

— A primeira vez que o vi — continuou —, pensei que era realmente único. Mas estava enganado. Quadros como este parecem ser a especialidade da sua galeria. Na verdade, tanto quanto consegui perceber, conseguiu o monopólio do mercado no que se refere a telas em branco. — Os olhos verdes viraram-se finalmente para ela. — Parabéns, Olivia. É uma proeza e tanto.

— Quem é você?

— Sou um amigo do Monsieur Antonov.

— Também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Por amor de Deus, não! Mas ele sim — disse, apontando na direção do inglês com aparência distinta. — Na verdade, é o chefe da Divisão dos Serviços Secretos que é por vezes referida como MI6. Antigamente, o nome dele era um segredo de Estado, mas os tempos mudaram. Ocasionalmente, concede uma entrevista e permite que lhe tirem uma fotografia. Em tempos, isso teria sido uma heresia, mas já não.

— E ele? — perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da figura amarrotada vestida de tweed.

— Francês — explicou o homem de olhos verdes. — É chefe de algo chamado Grupo Alpha. Talvez tenha ouvido o nome. O quartel-general em Paris foi bombardeado há não muito tempo e vários dos seus agentes perderam a vida. Como seria de esperar, está interessado em descobrir o homem que fez isso. E gostava que a Olivia o ajudasse a encontrá-lo.

— Eu? — perguntou, incrédula. — Como?

— Chegaremos a isso daqui a pouco. Quanto à minha origem — disse ele —, sou o homem esquisito que está de fora. Sou do local de que não gostamos de falar.

Foi nesse momento que ela conseguiu finalmente identificar o seu peculiar sotaque.

— É de Israel.

— Receio que sim. Mas, voltando ao assunto em questão — acrescentou rapidamente —, que é a Olivia e a sua galeria. Não é uma verdadeira galeria, pois não, Olivia? Oh, vende aquele quadro ocasional, como o Guston que estava a tentar impingir ao pobre Herr Müller hoje de manhã pelo preço obsceno de vinte milhões de euros. Mas serve, basicamente, como uma máquina de lavagem de dinheiro do verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel, que são as drogas.

Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala.

— Este é o momento — disse o homem de olhos verdes — em que a Olivia me diz que o seu... — Deteve-se a si próprio. — Desculpe-me, mas sou exigente com os pormenores. Como é que a Olivia se refere ao Jean-Luc?

— É meu parceiro.

— Parceiro? Que infelicidade.

— Porquê?

— Porque a palavra parceiro implica uma relação de negócios.

— Acho que gostaria de telefonar ao meu advogado.

— Se o fizer, perderá a única e exclusiva oportunidade que tem de se salvar a si própria. — Fez uma pausa para avaliar o impacto das suas palavras. — A sua galeria é pequena, mas é uma parte importante de uma vasta organização criminosa. O negócio dessa organização é a droga. Droga que vem sobretudo do Norte de África. Droga que flui através das mãos do grupo terrorista que se autodenomina Estado Islâmico. O Jean-Luc Martel é o distribuidor dessa droga aqui na Europa Ocidental. Faz negócios com o ISIS. Consciente ou inconscientemente, está a ajudar a financiar as operações do grupo. O que significa que a Olivia também está.

— Desejo-lhe sorte a tentar provar isso num tribunal francês.

Ele sorriu pela primeira vez. Foi frio e rápido.

— Uma demonstração de coragem — disse com admiração trocista —, mas ainda nenhuma negação sobre o negócio do seu marido.

— Ele não é meu marido.

— Oh, sim — disse ele desdenhosamente —, esqueci-me.

Eram as mesmas palavras que o homem chamado Nicolas Carnot proferira na galeria de arte.

— Quanto a telefonar ao seu advogado — continuou o israelita — isso não será necessário. Pelo menos, para já. Sabe, Olivia, não há agentes da polícia nesta sala. Nós somos agentes dos serviços secretos. Atenção, não temos nada contra a polícia. Eles têm o seu trabalho para fazer e nós temos o nosso. Eles resolvem crimes e fazem detenções, mas o nosso ramo é a informação. A Olivia tem-na, nós precisamos dela. Esta é a sua oportunidade, Olivia. É a sua única e exclusiva hipótese. Se eu fosse seu advogado, aconselhá-la-ia a aproveitá-la. É o melhor acordo que algum dia conseguirá.

Houve outro silêncio, mais demorado do que o anterior.

— Desculpem — disse ela, finalmente —, mas não posso ajudá-los.

— Não pode ajudar-nos, Olivia, ou não quer?

— Não sei nada sobre o negócio do Jean-Luc.

— As quarenta e oito telas em branco que encontrei no Freeport de Genebra dizem o contrário. Foram enviadas para lá pela Galerie Olivia Watson. O que significa que será a Olivia a enfrentar acusações, não ele. E o que é que acha que o seu parceiro fará nessa altura? Irá a cavalgar para a salvar? Irá colocar-se diante de uma bala por si? — Abanou a cabeça lentamente. — Não, Olivia, não o fará. De tudo o que sei sobre o Jean-Luc Martel, não é esse tipo de homem.

Ela não deu qualquer resposta.

— Então como é que vai ser, Olivia? Vai ajudar-nos?

Ela abanou a cabeça.

— Porque não?

— Porque, se o fizer — disse ela calmamente —, o Jean-Luc mata-me.

Ele sorriu novamente. Desta vez, parecia genuíno.

— Disse alguma coisa engraçada? — perguntou ela.

— Não, Olivia, disse-me a verdade. — Os olhos verdes deixaram o rosto dela e pousaram mais uma vez na tela em branco. — O que é que vê quando olha para aqui?

— Vejo uma coisa que o Jean-Luc me obrigou a fazer para poder manter a minha galeria.

— Interessante interpretação. Sabe o que é que eu vejo?

— O quê?

— Vejo-a a si sem o Jean-Luc.

— E que tal lhe pareço?

— Venha cá, Olivia. — Ele afastou-se da tela. — Veja por si própria.


33

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


As telas em branco foram retiradas das paredes e do cavalete, e uma mulher de cabelo escuro de cerca de trinta e cinco anos serviu silenciosamente bebidas frias. Olivia foi convidada a sentar-se. Por sua vez, o inglês garboso e o seu parceiro francês amarrotado foram devidamente apresentados. Os seus nomes eram suficientemente familiares. Também o era o rosto anguloso do israelita de olhos verdes. Olivia tinha praticamente a certeza de que o vira nalgum lado anteriormente, mas não conseguia decidir onde fora. Ele apresentou-se apenas como Gideon e caminhou lentamente pelo perímetro da divisão, enquanto todos os outros se sentavam a transpirar no incansável calor. Uma ventoinha giratória batia monotonamente e sem qualquer efeito no canto; moscas enormes moviam-se como abutres para dentro e para fora das portas francesas abertas. Subitamente, o israelita parou de caminhar e, com um movimento rápido da mão, apanhou uma no ar.

— Gostava daquilo? — perguntou ele.

— De quê?

— De ver a sua cara em revistas e outdoors.

— Não é tão fácil como parece.

— Não é glamoroso?

— Nem sempre.

— Então e as festas e desfiles?

— Para mim, os desfiles eram trabalho. E as festas — disse — tornaram-se bastante aborrecidas passado algum tempo.

Ele lançou o cadáver da mosca para o jardim inundado de sol e, virando-se, avaliou Olivia exaustivamente.

— Então porque é que escolheu uma vida assim?

— Não escolhi. Foi ela que me escolheu.

— A Olivia foi descoberta?

— Por assim dizer.

— Aconteceu quando tinha dezasseis anos, não foi?

— É evidente que leu os artigos sobre mim.

— Com grande interesse — admitiu. — A Olivia fez uma audição para figurante num filme de época que estava a ser gravado na costa de Norfolk. Não conseguiu o papel, mas alguém na equipa de produção lhe sugeriu que devia pensar em ser modelo. E, portanto, a Olivia decidiu abandonar os seus estudos e ir para Nova Iorque para enveredar por uma carreira na moda. Aos dezoito anos, era uma das modelos mais em voga na Europa. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Esqueci-me de alguma coisa?

— De muita coisa, na verdade.

— Tal como?

— Nova Iorque.

— Então porque é que não continua a história a partir daí? — disse ele. — De Nova Iorque.

Foi um inferno, contou-lhe ela. Depois de assinar um contrato com uma agência conhecida, puseram-na num apartamento no West Side de Manhattan com mais oito raparigas que dormiam em beliches, em turnos rotativos. Durante o dia, mandavam-na ir a castings com potenciais clientes e jovens fotógrafos que estavam a tentar entrar no ramo. Se tivesse sorte, o fotógrafo aceitava tirar-lhe algumas fotografias que poderia colocar no portfólio. Caso contrário, saía de mãos a abanar e regressava ao exíguo apartamento para combater as baratas e as formigas. À noite, ela e as restantes raparigas alugavam-se a discotecas para ganharem algum dinheiro. Olivia foi agredida sexualmente duas vezes. O segundo ataque deixou-a com um olho negro que a impediu de trabalhar durante quase um mês.

— Mas a Olivia perseverou — disse o israelita.

— Suponho que sim.

— O que é que aconteceu depois de Nova Iorque?

— Aconteceu o Freddie.

Freddie, explicou, era Freddie Mansur, o agente mais em voga no ramo e um dos mais célebres predadores. Freddie trouxe Olivia para Paris e para a sua cama. Também lhe deu drogas: erva, cocaína, barbitúricos para a ajudar a dormir. À medida que o seu consumo calórico se reduzia a níveis próximos da inanição, o seu peso caía a pique. Rapidamente, era apenas pele e osso. Quando tinha fome, fumava um cigarro ou snifava um risco. Coca e tabaco: Freddie chamava-lhe a dieta de modelo.

— E o mais engraçado é que funcionou. Quanto mais magra ficava, melhor aparência tinha. Por dentro, estava a morrer lentamente, mas a máquina fotográfica adorava-me. E os anunciantes também.

— A Olivia era uma supermodelo?

— Nem por sombras, mas safava-me bastante bem. E o Freddie também. Ficava com um terço de tudo o que eu ganhava. E um terço do salário de todas as outras raparigas que representava na altura.

— E com quem dormia?

— Digamos, simplesmente, que a nossa relação não era monogâmica.

Aos vinte e seis, a aparência cadavérica e toxicodependente com a qual estava associada passou de moda e a sua estrela começou a esmorecer. Muito do seu trabalho tinha lugar na passarela, onde a sua estrutura alta e membros compridos continuavam com grande procura. Mas o trigésimo aniversário foi um ponto de viragem. Houve um antes dos trinta e um depois dos trinta, explicou, e depois dos trinta o trabalho praticamente acabou. Aguentou durante mais três anos, até o próprio Freddie a advertir de que tinha chegado o momento de deixar o ramo. Fê-lo gentilmente, no início, e, quando ela resistiu, cortou os laços profissionais e românticos que tinha com ela e atirou-a para o meio da rua. Tinha trinta e três anos, não tinha estudos, estava desempregada e acabada.

— Mas era rica?

— Dificilmente.

— Então, e todo o dinheiro que ganhou?

— O dinheiro vem e o dinheiro vai.

— Drogas?

— E outras coisas.

— A Olivia gostava das drogas?

— Precisava delas, há uma diferença. Infelizmente, o Freddie deixou-me com uns quantos vícios caros.

— Então, o que é que fez?

— Fiz o que faria qualquer mulher na minha posição. Fiz as malas e fui para Saint-Tropez.

Com o que restava do seu dinheiro, arranjou uma villa nas montanhas («Era um barracão, na verdade, não muito longe daqui») e comprou uma scooter em segunda mão. Passava os dias na praia em Pampelonne e as noites em bares e discotecas da povoação. Naturalmente, encontrou aí muitos homens: árabes, russos, lixo europeu de cabelo prateado. Permitiu que alguns a levassem para a cama em troca de presentes e dinheiro, o que a fez sentir-se praticamente como uma prostituta. Acima de tudo, procurou um companheiro adequado, alguém que pudesse sustentar o estilo de vida ao qual se habituara. Alguém que não lhe causasse demasiada repulsa. Rapidamente, concluiu que viera para o local errado e, com o dinheiro a começar a escassear, aceitou um emprego numa pequena galeria de arte que era propriedade de um britânico expatriado. Então, bastante casualmente, conheceu o homem que mudaria a sua vida.

— O Jean-Luc Martel?

Ela não conseguiu evitar sorrir.

— Onde é que o conheceu?

— Numa festa, onde mais poderia ser? O Jean-Luc estava sempre numa festa. O Jean-Luc era a festa.

Na realidade, explicou, não foi a primeira vez que se conheceram. A primeira vez fora na Fashion Week em Milão, mas, nessa altura Jean-Luc estava com a esposa e mal olhara Olivia nos olhos ao apertar-lhe a mão. Mas, aquando do seu segundo encontro, era um viúvo em recuperação e desejoso de atividade. E Olivia apaixonou-se perdida e instantaneamente por ele.

— Eu era a Rosemary e ele era o Dick. Fiquei absolutamente impotente de amor.

— A Rosemary e o Dick?

— Rosemary Hoyt e Dick Diver. São personagens do...

— Eu sei quem são, Olivia. E está a lisonjear-se com a comparação.

As palavras foram como um estalo na sua face. As maçãs do seu rosto incendiaram-se de cor.

— Ele deu-lhe presentes e dinheiro como os outros?

— O Jean-Luc não tinha de pagar pelas suas miúdas. Era incrivelmente bonito e fabulosamente bem-sucedido. Era... o Jean-Luc.

— E o que é que acha que ele viu em si?

— Costumava perguntar-lhe a mesma coisa.

— Qual era a resposta dele?

— Achava que fazíamos uma boa equipa.

— Então foi uma parceria desde o início?

— Mais ou menos.

— Alguma vez falaram de casamento?

— Eu falei, mas o Jean-Luc não estava interessado. Costumávamos ter discussões terríveis sobre isso. Disse-lhe que não ia desperdiçar os melhores anos da minha vida a ser a concubina dele, que queria casar com ele e ter filhos. No final, chegámos a um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Ele deu-me outra coisa em vez do casamento e dos filhos.

— E que coisa foi essa?

— A Galerie Olivia Watson.


34

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


Olivia estava habituada a ter homens a fitarem-na. Homens ofegantes. Homens arquejantes. Homens de olhos húmidos, desejosos. Homens que fariam qualquer coisa, pagariam quase qualquer preço, para a ter nas suas camas. Os três homens agora alinhados diante dela (o mestre de espionagem britânico, o polícia secreto francês e o israelita sem origem declarada, mas de rosto vagamente familiar) também a estavam a fitar, mas definitivamente por um motivo diferente. Pareciam impenetráveis ao feitiço da sua aparência. Para eles, ela não era um objeto digno de ser admirado; era um meio para atingir um fim. Um fim que ainda não tinham considerado adequado revelar. Não estava, de todo, convencida de que gostassem dela. Ainda assim, sentiu-se aliviada por saber que ainda existiam homens assim. Uma carreira na indústria da moda e dez anos no mundo do faz-de-conta de Saint-Tropez tinham-na deixado com uma opinião bastante baixa sobre a espécie.

Galerie Olivia Watson...

Disse-lhes que o nome fora ideia de Jean-Luc, não sua. Ela quisera pendurar o nome consolidado da JLM sobre a porta da galeria, mas Jean-Luc insistira que a galeria ostentasse o nome dela em vez do seu. Deu-lhe o dinheiro para comprar o edifício antigo e elegante na Place de l’Ormeau e, depois, financiou a aquisição de uma coleção de nível mundial de arte contemporânea. Olivia quisera adquirir o acervo lenta e modestamente, com especial ênfase em artistas mediterrânicos. Mas Jean-Luc não quisera sequer ouvir falar nessa hipótese. Ele não fazia as coisas de forma lenta e modesta, explicou. Unicamente grande e vistosa. A galeria abriu com um nível de ostentação e glamour que só JLM poderia proporcionar. Depois disso, ele afastou-se e cedeu a Olivia um absoluto controlo artístico e financeiro.

— Mas apenas até certo ponto — disse ela.

— O que é que isso quer dizer? — perguntou o israelita. — Ou se detém controlo absoluto ou não se detém. Não existe um meio-termo.

— Existe, quando o Jean-Luc está envolvido.

Ele convidou-a a desenvolver o assunto.

— O Jean-Luc encarregava-se da contabilidade da galeria.

— Não achou isso estranho?

— Na verdade, fiquei aliviada. Eu era uma antiga modelo e ele era um empresário extremamente bem-sucedido.

— Quanto tempo demorou a descobrir que alguma coisa não estava bem?

— Dois anos. Talvez um pouco mais.

— O que é que aconteceu?

— Comecei a ver os registos da galeria sem ter o Jean-Luc a espreitar por cima do meu ombro.

— E o que é que descobriu?

— Que estava a adquirir e a vender mais trabalhos do que alguma vez imaginei ser possível.

— O negócio da galeria ia de vento em popa?

— Isso é pouco. Na verdade, logo no segundo ano de atividade, a Galerie Olivia Watson fez mais de trezentos milhões de euros de lucro. A maioria das vendas era totalmente privada e envolviam quadros que eu nunca tinha visto.

— O que é que fez?

— Confrontei-o.

— E como é que ele reagiu?

— Disse-me para me meter nos meus negócios. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — O jogo de palavras não foi intencional.

— Foi o que fez?

Ela hesitou antes de assentir lentamente com a cabeça.

— Porquê?

Quando ela não deu qualquer explicação, ele sugeriu-lhe uma.

— Porque a sua vida era perfeita e não queria fazer nada que a perturbasse.

— Todos fazemos concessões nas nossas vidas.

— Mas nem todos encontramos refúgio nos braços de um traficante de droga. — Fez uma pequena pausa para permitir que as palavras a ferissem o suficiente. — Sabia que o verdadeiro negócio do Jean-Luc eram os estupefacientes, não sabia?

— Continuo a não saber.

O israelita recebeu a resposta com um desdém justificado.

— Não temos muito tempo, Olivia. Era melhor que não o desperdiçasse com negações inúteis.

Houve um silêncio, para dentro do qual o inglês que se autodenominava Nicolas Carnot rastejou. Foi até à estante e, esticando o pescoço para o lado, retirou um volume com uma capa gasta. Era O Céu Que Nos Protege, do romancista americano Paul Bowles. Enfiou o livro debaixo do braço e, com um olhar de soslaio para Olivia, saiu sorrateiramente da divisão de novo. Ela olhou para o israelita, que lhe devolveu um olhar destituído de julgamento.

— Estava prestes a contar-me — disse ele finalmente — quando é que se apercebeu de que o seu parceiro doméstico e empresarial era um traficante de droga.

— Ouvi rumores, tal como toda a gente.

— Mas, ao contrário de toda a gente, a Olivia encontrava-se numa posição única para saber se eram ou não verdade. Afinal de contas, a Olivia era a proprietária formal de uma galeria de arte que servia como uma das suas mais eficazes fachadas para lavar dinheiro.

Ela sorriu.

— Que ingénuo da sua parte.

— Porquê?

— Porque o Jean-Luc é muito bom a manter segredos. — Depois acrescentou: — Quase tão bom como o senhor e os seus amigos.

— Nós somos profissionais.

— O Jean-Luc também — disse ela sombriamente.

— Alguma vez lho perguntou?

— Se ele é traficante de droga?

— Sim.

— Só uma vez. Ele riu-se. E depois disse-me que nunca mais lhe fizesse perguntas sobre o negócio dele.

— E fez?

— Nunca.

— Porque não?

— Porque tinha ouvido outros rumores — disse ela. — Rumores sobre o que acontecia às pessoas que se lhe atravessavam no caminho.

— E, ainda assim, ficou — referiu ele.

— Fiquei — retorquiu ela — porque tive medo de partir.

— Medo de partir ou medo de perder a galeria?

— Ambos — admitiu.

Um lampejo de um sorriso surgiu nos lábios dele e depois desapareceu.

— Admiro a sua honestidade, Olivia.

— Pelo menos isso...

— Tal como o Nicolas Carnot, tenho tendência para me abster de qualquer julgamento. Principalmente, quando há informação valiosa em jogo.

— Que tipo de informação?

— A organização do negócio do Jean-Luc, por exemplo. A Olivia deve ter conseguido reunir uma quantidade de informação considerável sobre a forma como a empresa está estruturada. É bastante opaca, no mínimo. Olhando para ela do exterior, conseguimos identificar alguns dos atores. Há um chefe para cada divisão (para os restaurantes, para os hotéis, para a parte do retalho), mas, por mais que tentemos, não somos capazes de identificar o chefe da unidade de estupefacientes ilícitos da JLM.

— Está a brincar.

— Só um bocadinho. É um homem ou são dois? É o próprio Jean-Luc?

Ela não disse nada.

— Tempo, Olivia. Não temos muito tempo. Precisamos de saber como é que o Jean-Luc gere o seu negócio de droga. Como é que dá as ordens. Como é que se isola para que a polícia não lhe consiga tocar. Não acontece por osmose ou telecinesia. Existe, algures, uma figura de confiança que trata dos interesses dele. Alguém que consegue entrar e sair da sua órbita sem levantar suspeitas. Alguém com quem ele comunica apenas pessoalmente, em voz baixa, num quarto onde não existem telefones presentes. Certamente, sabe quem é esse homem, Olivia. Talvez se conheçam. Talvez a Olivia seja amiga dele.

— Amiga, não — disse ela, passado um momento. — Mas realmente sei quem ele é. E sei o que me aconteceria se lhe dissesse o nome dele. Ele matava-me. E nem sequer o Jean-Luc conseguiria impedi-lo.

— Ninguém lhe vai fazer mal, Olivia.

Ela olhou-o com ceticismo. Ele fingiu ficar moderadamente ofendido.

— Pense nos esforços extraordinários que fizemos para trazê-la aqui hoje. Não demonstrámos o nosso profissionalismo? Não provámos que merecemos a sua confiança?

— E quando desaparecerem? Quem é que me vai proteger nessa altura?

— A Olivia não vai precisar de proteção — replicou ele — porque também terá desaparecido.

— Onde é que eu estarei?

— Isso cabe-lhe a si e ao seu compatriota decidir — disse ele, com uma inclinação da cabeça na direção do chefe dos serviços secretos britânicos. — Bem, calculo que possa oferecer-lhe um apartamento agradável com vista para o mar em Telavive, mas suspeito que se sinta mais confortável em Inglaterra.

— O que é que vou fazer para ganhar dinheiro?

— Gerir uma galeria de arte, evidentemente.

— Qual?

— A Galerie Olivia Watson. — Ele sorriu. — Apesar de o seu inventário profissional ter sido adquirido com dinheiro proveniente da droga, estamos preparados para a deixar mantê-lo. Com duas exceções — acrescentou.

— Quais?

— O Guston e o Basquiat. O Monsieur Antonov gostaria de lhe passar um cheque de cinquenta milhões por ambos, o que deverá dissipar quaisquer preocupações que o Jean-Luc possa ter sobre a forma como passou esta tarde. E não se preocupe — acrescentou. — Ao contrário do Monsieur Antonov, o dinheiro é absolutamente real.

— Que generoso da vossa parte — disse ela. — Mas ainda não me disseram o motivo de tudo isto.

— O motivo é Paris — respondeu ele. — E Londres. E Antuérpia. E Amesterdão. E Estugarda. E Washington. E uma centena de outros atentados de que a Olivia nunca ouviu falar.

— O Jean-Luc não é nenhum anjo, mas também não é nenhum terrorista.

— É verdade. Mas acreditamos que faz negócios com um, o que significa que está a ajudar a financiar os atentados. Mas receio que isto seja o máximo que lhe vou dizer em relação a este assunto. Quanto menos souber, melhor, É assim que funciona no nosso ramo. E a única coisa que precisa de saber é que lhe está a ser concedida uma oportunidade única. É uma possibilidade de começar do zero. Pense nela como uma tela em branco na qual pode pintar a imagem que quiser. E só lhe custará o nome dele. — Ele sorriu e perguntou: — Temos acordo, senhora Wilson?

— Watson. O meu nome é Olivia Watson. E, sim — disse, passado um momento. — Creio que temos acordo.

 

Falaram durante toda a tarde, enquanto o calor abrandava e as sombras se tornavam mais finas e longas no jardim e no olival prateado que trepava pela encosta ao lado. As circunstâncias do seu repatriamento para o Reino Unido. A forma como deveria comportar-se na presença de Jean-Luc ao longo dos dias seguintes. Os procedimentos que deveria seguir caso ocorresse alguma urgência imprevista. O israelita de olhos verdes referiu-se a isso como o plano «quebrar-em-caso-de-emergência» e advertiu Olivia de que deveria ser ativado apenas em caso de extremo perigo, pois implicaria, necessariamente, um enorme gasto de tempo e esforço e o desperdício de incontáveis milhões em despesas operacionais.

Só depois disso Gabriel pediu o nome a Olivia. O nome do homem em quem Jean-Luc confiava para gerir o seu império de muitos milhares de milhões de euros em estupefacientes. O lado sujo da JLM Enterprises, como o israelita lhe chamou. O lado que tornava tudo o resto (os restaurantes, os hotéis, as boutiques e as lojas, a galeria de arte na Place de l’Ormeau) possível. A primeira vez que Olivia o proferiu, fê-lo suavemente, como se tivesse uma mão a apertar-lhe a garganta. O israelita pediu-lhe que repetisse o nome e, ouvindo-o claramente, trocou um olhar longo, especulativo com Paul Rousseau. Passado algum tempo, Rousseau assentiu lentamente com a cabeça e, depois, voltou a contemplar o seu cachimbo dormente enquanto, no outro lado da sala, Nicolas Carnot devolvia o volume de Bowles ao seu lugar original na prateleira.

Depois disso, não houve mais discussão sobre droga ou terrorismo ou sobre o verdadeiro motivo pelo qual Olivia fora trazida à modesta villa nos arredores de Ramatuelle. O Monsieur Antonov materializou-se, todo sorrisos e bonomia com sotaque russo, e, juntos, prepararam a transferência de cinquenta milhões de euros das suas contas para as da galeria. Foi aberta uma garrafa de champanhe para comemorar a venda. Olivia não bebeu do copo que lhe colocaram na mão. O israelita também não tocou no seu copo. Era, pensou Olivia, um homem de uma disciplina admirável.

Pouco depois das seis da tarde, Nicolas Carnot devolveu o telemóvel a Olivia. Ela não sabia em que momento lho tirara. Calculou que o tivesse retirado da sua mala durante a viagem de carro de Saint-Tropez. Olhando de relance para o ecrã, viu várias mensagens de texto que tinham chegado durante o interrogatório. A última era de Jean-Luc. Chegara apenas um instante antes. Dizia que estava prestes a embarcar no seu helicóptero e chegaria a casa dentro de uma hora.

Olivia ergueu o olhar, alarmada.

— O que é que eu devo dizer-lhe?

— O que é que lhe diria normalmente? — perguntou o israelita.

— Dir-lhe-ia que fizesse boa viagem.

— Então, por favor, diga isso. E talvez queira mencionar que tem uma surpresa de cinquenta milhões de euros para ele. Isso deve alegrar-lhe a disposição. Mas não revele demasiado. Não queremos estragar a surpresa.

Olivia digitou a resposta na caixa de texto com o polegar e levantou o ecrã para que ele visse.

— Muito bem feito.

Com um toque suave, enviou a mensagem.

— Está na hora de se ir embora — disse o israelita. — Não queremos que a sua carruagem se transforme numa abóbora, pois não?

No exterior, algumas nuvens sopradas pelo vento moviam-se velozmente pelo céu noturno. Nicolas Carnot falou apenas em francês durante a viagem para sul em direção à Baie de Cavalaire, e apenas sobre o Monsieur Antonov e os quadros. Deveriam ser entregues na Villa Soleil imediatamente após a receção do dinheiro. A Madame Sophie, disse ele, já escolhera o local onde seriam pendurados.

— Ela odeia-me — disse Olivia.

— Não é assim tão má, depois de a conhecermos.

— É francesa?

— O que mais é que poderia ser?

Os Antonovs viviam no lado ocidental da baía, Jean-Luc e Olivia no oriental. Enquanto se aproximavam do minimercado Spar na esquina do Boulevard Saint-Michel, o Monsieur Carnot indicou-lhe que parasse. Apertou a mão dela firmemente e, em inglês, assegurou-lhe que não tinha nada a temer, que estava a fazer a coisa certa. Depois, desejou-lhe uma noite agradável e, sorrindo como se nada de invulgar tivesse acontecido nessa tarde, saiu do carro. Quando o viu pela última vez, foi no espelho retrovisor, a acelerar na direção oposta em cima de uma pequena mota. A fugir do local do crime, pensou ela.

Olivia continuou para leste ao longo da baía e, alguns minutos mais tarde, entrou na luxuosa villa que partilhava com o homem que acabara de trair. Na cozinha, serviu um grande copo de rosé para si e levou-o para o terraço no exterior. Através do brilho intenso do sol poente, conseguiu distinguir os contornos vagos da villa monstruosa do Monsieur Antonov. Nesse preciso momento, o seu telemóvel vibrou. Fitou o ecrã. EM CASA DAQUI A CINCO MINUTOS... QUAL É A SURPRESA?

— A surpresa — disse ela em voz alta — é que o teu amigo russo e a cabra da mulher dele acabaram de me passar um cheque de cinquenta milhões de euros. — Repetiu-o vezes sem conta, até acreditar que era verdade.


35

MARSELHA, FRANÇA

Às onze e quarenta e cinco da manhã seguinte, a quantia de cinquenta milhões de euros apareceu na conta da Galerie Olivia Watson, 9 Place de l’Ormeau, Saint-Tropez, França. O dinheiro não teve de viajar até muito longe, visto que tanto emissor como destinatário tinham as suas contas no HSBC do Boulevard Haussmann, em Paris. A meio da tarde, repousava confortavelmente num conceituado banco suíço em Genebra, numa conta controlada pela JLM Enterprises. E, às cinco horas, dois quadros (um de Guston, outro de Basquiat) foram entregues na Villa Soleil, numa carrinha sem identificação exterior. Olivia Watson ia atrás, no seu Range Rover preto. No hall de entrada, passou por Christopher Keller, que estava a sair. Ele beijou-a prodigamente em ambas as maçãs do rosto, fez um comentário sobre a sua aparência, que era deslumbrante, e depois subiu para a sua mota Peugeot Satelis. Pouco depois, estava a acelerar para oeste ao longo da costa do Mediterrâneo.

Era quase crepúsculo quando chegou aos subúrbios de Marselha. Os violentos gangues de droga prosperavam nos banlieues a norte da cidade, principalmente nos bairros sociais de Bassens e Paternelle, mas Keller aproximou-se através dos subúrbios mais tranquilos a leste. O túnel Prado-Carénage levou-o até ao Porto Velho e, daí, encaminhou-se para a Rue Grignan. Esguia e direita como uma régua, estava ladeada de lojas Boss, Vuitton, Armani e semelhantes. Havia até uma boutique-joalharia JLM. Keller jurou ter conseguido detetar o cheiro azedo a haxixe enquanto passava.

Enquanto continuava através do centro da cidade para o interior do quartier de Marselha conhecido como Le Camas, as ruas tornaram-se sujas e pobres e as lojas e cafés passaram a ter, claramente, uma clientela imigrante e de classe trabalhadora. Um desses negócios, situado no rés-do-chão de um edifício salpicado de graffitis com vista para a Place Jean Jaurès, vendia artigos eletrónicos e telemóveis com desconto a uma carteira de clientes essencialmente marroquina e argelina. Contudo, o seu proprietário era um francês chamado René Devereaux. Devereaux era proprietário de vários pequenos negócios em Marselha (todos eles orientados para fazer dinheiro, alguns numa categoria definida, de forma vaga, como entretenimento para adultos), mas a loja de produtos eletrónicos servia como uma espécie de sede operacional. O seu escritório ficava no segundo andar do edifício. A divisão não continha nenhum telefone nem dispositivos eletrónicos de qualquer tipo, um conjunto de circunstâncias curiosas para um homem que, alegadamente, tinha como profissão a venda das referidas engenhocas de conveniência modernas. René Devereaux não gostava muito de telefones e dizia-se que nunca tinha enviado, pessoalmente, um e-mail ou uma mensagem de texto. Só comunicava com os seus parceiros de negócio e subordinados ao vivo, muitas vezes na sombria praça ou numa mesa na esplanada do Au Petit Nice, um café razoavelmente agradável localizado a alguns passos da sua loja.

Keller sabia de tudo isto porque René Devereaux era uma figura proeminente no mundo onde ele, em tempos, habitara. Toda a gente no submundo criminoso francês sabia que o verdadeiro negócio de Devereaux era o tráfico de droga. Não apenas o tráfico de rua, mas o tráfico numa escala continental mais alargada. Provavelmente, a polícia francesa também estava a par disso, mas Devereaux, ao contrário de muitos dos seus concorrentes, nunca passara um único dia atrás das grades. Era um verdadeiro mafioso, um intocável. Até esta noite, pensou Keller. Pois fora o nome de René Devereaux que Olivia Watson proferira na casa segura nos arredores de Ramatuelle. Devereaux era a pessoa que fazia tudo correr sobre rodas, a pessoa que movia o haxixe das docas do sul da Europa para as ruas de Paris, Amesterdão e Bruxelas. A pessoa, pensou Keller, que conhecia todos os segredos de Jean-Luc Martel. Teriam apenas uma hipótese de o apanhar discreta e eficazmente. Felizmente, tinham à sua disposição alguns dos melhores agentes de campo do ramo.

Keller deixou a mota na extremidade da Place Jean Jaurès e caminhou até à loja de Devereaux. Espreitando para a mercadoria em exibição na montra atulhada, viu dois homens, ambos de aparência francesa, a observá-lo a partir do posto avançado atrás do balcão. No segundo andar, havia luz a cintilar atrás da porta francesa fechada que dava para a varanda degradada.

Keller afastou-se e continuou a caminhar ao longo da rua cerca de cinquenta metros, antes de parar junto de uma carrinha estacionada. Giancomo, moço de recados de Don Orsati, estava sentado ao volante. Dois outros agentes de Orsati estavam agachados no compartimento de carga traseiro, a fumar nervosamente. Giancomo, no entanto, parecia estar calmo. Keller suspeitava que era para o convencer das suas capacidades.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há uns vinte minutos. Veio à varanda fumar um cigarro.

— Tens a certeza de que ainda está lá dentro?

— Temos um homem a vigiar as traseiras do edifício.

— Onde é que estão os outros?

O jovem corso apontou com a cabeça na direção da Place Jean Jaurès. A praça estava apinhada de residentes do quartier, muitos deles vestidos com indumentária tradicional africana ou do mundo árabe. Nem mesmo Keller conseguia identificar os homens do don.

Olhou para Giancomo.

— Sem erros, estás a ouvir-me? Caso contrário, estás sujeito a ser responsabilizado por dar início a uma guerra. E sabes qual é a opinião do don sobre guerras.

— As guerras são boas para o negócio do don.

— Não são, quando ele é um dos combatentes.

— Não se preocupe. Já não sou um miudinho. Para além disso, tenho isto. — Giancomo puxou o talismã em redor do pescoço. Era idêntico ao de Keller. — Já agora, ela manda cumprimentos.

— Disse mais alguma coisa?

— Qualquer coisa sobre uma mulher.

— O que é que tem a mulher?

Giancomo encolheu os ombros.

— Sabe como é a signadora. Fala por meio de adivinhas.

Keller fumou um cigarro enquanto caminhava para o Au Petit Nice. O interior estava numa grande agitação (o Marselha estava a jogar contra o Lyon), mas havia algumas mesas livres na rua. Numa delas, estava sentado um homem de constituição mediana, com cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos. Numa mesa adjacente, dois homens de olhos escuros com cerca de vinte anos observavam os transeuntes que se movimentavam pelos passeios com invulgar intensidade. Keller aproximou-se do homem de cabelo de prata e, sem esperar por um convite, sentou-se. Havia uma garrafa de pastis e um único copo. Keller fez sinal ao empregado e pediu um segundo.

— Sabes — disse ele em francês —, devias mesmo beber um bocadinho.

— Parece gasolina com sabor a alcaçuz — respondeu Gabriel. Observou dois homens de túnica a caminhar de braço dado na rua. — Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— No Au Petit Nice?

— Em Marselha — disse Gabriel.

— Era inevitável. Quando uma pessoa está a tentar infiltrar-se numa rede europeia de droga, todos os caminhos vão dar a Marselha. — Keller também observou os transeuntes. — Achas que o Rousseau foi fiel à palavra?

— Porque é que não haveria de ser?

— Porque é um espião. O que significa que, inevitavelmente, mente.

— Tu também és um espião.

— Mas, até há pouco tempo atrás, trabalhava para o Don Anton Orsati. O mesmo Anton Orsati — acrescentou Keller — que está prestes a ajudar-nos com um trabalhinho sujo esta noite. E, se o Rousseau e os amigos dele do Grupo Alpha por acaso estiverem a observar, isso irá colocar o don, louvado seja, numa posição bastante delicada.

— O Rousseau não quer ter nada a ver com o que está prestes a acontecer aqui. Quanto ao don — continuou Gabriel —, ajudar-nos com este trabalhinho sujo, como tu tão duramente lhe chamas, foi a melhor decisão que tomou desde que te contratou.

— Então porquê?

— Porque, depois desta noite, ninguém poderá tocar-lhe sequer com um dedo. Ficará imune.

— Pensas como um criminoso.

— É o que se tem de fazer, no nosso ramo.

O empregado de mesa entregou o segundo copo. Keller encheu-o com pastis enquanto Gabriel consultava o telemóvel.

— Algum problema?

— A Madame Sophie e o Monsieur Antonov estão a discutir por causa do sítio onde pendurar os novos quadros.

— E andavam tão bem.

— Sim — disse Gabriel distraidamente, enquanto devolvia o telefone ao bolso do casaco.

— Achas que vão conseguir manter-se juntos?

— Tenho cá as minhas dúvidas.

Keller bebeu um pouco do pastis.

— Então, o que é que pretendes fazer com todos esses quadros quando a operação acabar?

— Tenho um pressentimento de que o Monsieur Antonov irá descobrir as suas raízes judias e fazer uma doação de grande notoriedade ao Museu de Israel.

— E os cinquenta milhões que deste à Olivia?

— Não lhe dei nada. Comprei dois quadros da galeria dela.

— Isso — disse Keller — é uma forma diferente de dizer a mesma coisa.

— É um preço bastante baixo a pagar se isso nos levar até ao Saladino.

— Se... — disse Keller.

— É imaginação minha — disse Gabriel —, ou passa-se alguma coisa entre ti e a...

— É imaginação tua.

— É uma rapariga muito bonita. E, quando tudo isto terminar, vai ficar bastante bem na vida.

— Tento manter-me afastado de raparigas que se agarram a traficantes de droga franceses abastados.

— Estás a esquecer-te de qual era a tua profissão?

Franzindo o sobrolho, Keller bebeu mais pastis.

— Então, o Monsieur Antonov é judeu?

— Aparentemente, sim.

— Nunca teria adivinhado.

Gabriel encolheu os ombros com indiferença.

— Eu sou um bocadinho judeu. Alguma vez te disse isso?

— Talvez tenhas dito.

Um silêncio abateu-se entre eles. Gabriel fitou taciturnamente a rua.

— Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— Não vai demorar muito mais.

Keller observou dois homens a saírem da parte de trás da carrinha e a entrarem na loja de eletrónica que pertencia a René Devereaux. Depois, olhou de soslaio para o relógio.

— Uns cinco minutos. Talvez menos.

 

Da mesa na esplanada do Au Petit Nice, Keller e Gabriel só conseguiram ver parcialmente o que aconteceu a seguir. Alguns segundos depois de os dois homens terem entrado na loja, vários clarões de luz transbordaram da montra para a rua. Foram ténues (na verdade, poderiam ter sido confundidos com o cintilar de uma televisão) e não houve absolutamente nenhum som. Pelo menos, nenhum que chegasse ao ruidoso café. Depois disso, a loja ficou completamente às escuras, à exceção de um pequeno sinal de néon na porta onde podia ler-se: FERMÉ. Os transeuntes fluíam ao longo do passeio como se nada de invulgar estivesse a acontecer.

Os olhos de Keller regressaram à carrinha, onde Giancomo estava a retirar uma grande caixa retangular de papelão do compartimento de trás. Era uma caixa com um formato estranho, manufaturada por uma fábrica de produtos de papel da Córsega, exatamente segundo as instruções fornecidas por Don Orsati. Era bastante evidente que estava vazia, pois Giancomo não teve qualquer problema em transportá-la para o outro lado da rua e atravessar a porta da frente da loja com ela nas mãos. Mas, alguns minutos mais tarde, quando a caixa reapareceu, veio carregada pelos dois homens que tinham entrado na loja primeiro, com Giancomo a segurar um dos lados como um cangalheiro. Os dois homens introduziram a caixa nas traseiras da carrinha e rastejaram para o interior atrás dela, enquanto Giancomo recuperava o seu lugar ao volante. Depois, a carrinha deslizou para longe do passeio, dobrou a esquina e desapareceu. Do interior do Au Petit Nice, ouviram-se festejos ruidosos. O Marselha marcara um golo contra o Lyon.

— Nada mau — disse Gabriel.

Keller olhou para as horas.

— Quatro minutos e doze segundos.

— Inaceitável segundo os padrões do Departamento, mas mais do que apropriado para esta noite.

— De certeza que não queres juntar-te à festa?

— Já tive o suficiente disso para a vida toda. Mas manda cumprimentos meus ao don — disse Gabriel. — E diz-lhe que o cheque está no correio.

Com isso, Keller partiu. Passado um momento, montado na Peugeot Satelis, passou a alta velocidade pelo Au Petit Nice, onde um homem de cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos estava sentado sozinho, interrogando-se quanto tempo passaria antes de Jean-Luc Martel descobrir que o chefe da sua divisão de estupefacientes ilícitos estava desaparecido.


36

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Celine era um Baia Atlantica 78 com três camarotes, um motor a gasóleo MTV capaz de atingir velocidades de cinquenta e quatro nós e uma proa longa e esguia que poderia receber um pequeno helicóptero. Todavia, Keller chegou à embarcação por meios menos vistosos, nomeadamente através de um barco insuflável Zodiac que fora deixado para ele numa marina isolada do estuário do Rhône, perto da cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer. Atou a lancha à plataforma para entrar na água que havia na popa e subiu até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo Marselha-Lyon na televisão por satélite. Vestido como estava agora, com a sua roupa corsa simples e sandálias empoeiradas, parecia nitidamente deslocado entre a decoração sumptuosa de couro e madeira. Giancomo estava na ponte com o timoneiro.

— O Marselha voltou a marcar — disse o don, desconsolado. Apontou o comando para o ecrã e desligou-o.

Keller passou os olhos pelo interior do salão.

— Esperava algo um pouco mais modesto.

— Estou demasiado velho para andar a deslocar-me pelo Mediterrâneo num barco de pesca. Para além disso, vais ficar contente por teres vinte e quatro metros de barco debaixo de ti hoje à noite. Parece que o vento vai soprar com força.

— A quem é que pertence?

— A um amigo de um amigo.

— E o timoneiro?

— É meu.

Keller baixou o olhar e, pela primeira vez, reparou em várias gotas de sangue que secavam no chão.

— Tinha uma arma na secretária quando eles entraram — explicou o don. — Levou um tiro no ombro.

— Vai sobreviver?

— Receio bem que sim.

— Ele viu a sua cara?

— Ainda não.

— Trouxe um martelo?

— Um bom — disse o don.

— Onde é que está o Devereaux?

— No quarto individual. Não quis que sujasse um dos quartos de casal.

Keller olhou novamente para o chão.

— Alguém devia mesmo limpar isto.

— Eu não — disse o don. — Não suporto ver sangue.

 

Um dos homens do don estava de guarda à porta do quarto individual. Do interior, não vinha qualquer som.

— Está consciente? — perguntou Keller.

— Vê por ti próprio.

Keller entrou e fechou a porta atrás de si. O quarto estava às escuras; cheirava a suor e a medo e vagamente a sangue. Acendeu a lâmpada de leitura embutida e apontou o cone de luz na direção da figura imóvel, esticada sobre a cama de solteiro. Fita adesiva prateada obscurecia-lhe os olhos e a boca. As mãos estavam atadas e presas ao tronco, as pernas e os tornozelos amarrados. Keller examinou o ferimento no ombro direito. Tinha havido uma perda significativa de sangue, mas, por agora, o fluxo parara. Ainda assim, a roupa de cama estava encharcada. O amigo de um amigo, pensou Keller, iria precisar de um novo colchão quando isto acabasse.

Arrancou-lhe a fita adesiva dos olhos. René Devereaux pestanejou rapidamente várias vezes. Então, quando Keller se inclinou para a luz, mostrando o seu rosto a Devereaux, o traficante de droga encolheu-se de medo. Aparentemente, conheciam-se mutuamente.

— Bonsoir, René. Obrigado por apareceres por cá. Como é que está o ombro?

Os seus olhos semicerraram-se, o medo evaporou-se. Devereaux estava a tentar enviar uma mensagem ao inglês da Córsega: não era homem para ser baleado, raptado e atado como uma ave de caça. Keller retirou a fita adesiva da boca de Devereaux, permitindo-lhe, assim, expressar os seus sentimentos,

— És um homem morto. Tu e esse corso gordo para quem trabalhas.

— Estás a referir-te ao Don Orsati?

— Que se foda o Don Orsati.

— Essas são palavras muito insensatas. Pergunto-me se te atreverias a proferi-las na cara do don.

— Cagava em cima do don. E do resto da família dele.

— Cagavas, a sério?

Keller saiu. Ao corso que se encontrava à saída da porta, disse:

— Pede a sua santidade que desça por um minuto.

— Está a ver o jogo.

— Tenho a certeza de que vai conseguir afastar-se da televisão — disse Keller. — E traz-me o martelo.

O corso subiu as escadas do barco e, passado um momento, com alguma dificuldade, Don Orsati desceu. Keller conduziu-o ao interior do camarote e exibiu-o para que René Devereaux o visse. O don sorriu perante o evidente desconforto de Devereaux.

— O Monsieur Devereaux tem uma coisa que gostaria de dizer-lhe — disse Keller. — Vá lá, René. Por favor diz ao Don Orsati o que me disseste há pouco.

Tendo sido recebido por silêncio, Keller acompanhou o don até à saída. Depois, pôs-se ameaçadoramente de pé por cima do traficante de droga cativo.

— É escusado dizer-te que não tens muitas opções. Podes contar-me o que eu quero saber, ou posso explicar ao don todas as coisas atrevidas que disseste sobre ele e a sua adorada família. E então... — Keller levantou as mãos para indicar a incerteza do destino de Devereaux perante um cenário tão carregado de emoções.

— Desde quando é que estás no ramo da informação? — perguntou Devereaux.

— Desde que mudei de carreira. Agora, estou a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Não ouviste dizer, René?

— Tu? Um espião inglês? Não acredito.

— Às vezes, eu próprio não acredito. Mas acontece que é verdade. E tu vais ajudar-me. Vais ser uma fonte confidencial e eu vou ser o teu agente superior.

— Não podes estar a falar a sério.

— Pensa nas tuas atuais circunstâncias. Não poderiam ser mais sérias. Tal como a nossa missão. Vais ajudar-me a encontrar o homem que tem andado a orquestrar todos os atentados terroristas aqui na Europa e na América.

— Como é que eu vou fazer isso? Sou um traficante de droga, pelo amor de Deus.

— Ainda bem que esclarecemos essa parte. Mas não és um traficante de droga qualquer, pois não? Traficante é uma palavra demasiado branda para o que tu fazes. Geres uma rede global inteira a partir daquela espelunca na Place Jean Jaurès. E fazes isso — disse Keller — para o Jean-Luc Martel.

— Quem? — perguntou Devereaux.

— O Jean-Luc Martel. O que é dono daqueles restaurantes todos e dos hotéis e que tem aquele cabelo.

— E a namorada inglesa bonita — disse Devereaux.

— Então conhece-lo mesmo.

— Claro. Costumava ir ao primeiro restaurante dele em Marselha. Ele era um zé-ninguém, na altura. Agora, é uma grande estrela.

— Graças à droga — disse Keller. — Haxixe, para ser mais específico. Haxixe que vem de Marrocos. Haxixe que tu distribuis por toda a Europa. O império do Martel colapsaria se não fosse pelo haxixe. Mas nunca te passaria pela cabeça excluí-lo do negócio, pois isso significaria que terias de encontrar um novo método para lavar cinco ou dez mil milhões por ano em lucros de droga. Os teus chamados «negócios legítimos» poderiam ser suficientes para te fazer parecer razoavelmente respeitável perante as autoridades fiscais francesas, mas nunca conseguirias lidar com todos os lucros de uma rede global de estupefacientes. Para isso, precisas de um verdadeiro conglomerado empresarial. Um conglomerado onde entram centenas de milhões de dólares por ano em receitas de caixa. Um conglomerado que adquire e constrói vastas quantidades de património imobiliário.

— E compra e vende quadros. — Após um silêncio, Devereaux acrescentou: — Soube que ela ia dar problemas assim que a conheci.

— Quem?

— Aquela cabra inglesa.

Keller fechou a mão direita num punho e dirigiu-o com toda a força para o ombro encharcado de sangue de Devereaux.

— Mas, voltando ao assunto que temos em mãos — disse, enquanto o francês se contorcia na cama em agonia. — Vais dizer-me tudo o que sabes sobre o Jean-Luc Martel. Os nomes dos vossos fornecedores em Marrocos. As rotas que utilizam para trazerem a droga para a Europa. Os métodos que usam para inserirem dinheiro na circulação financeira da JLM Enterprises. Tudo, René.

— E se eu concordar?

— Vamos gravar um vídeo — disse Keller.

— E se não concordar?

— Vais receber o tratamento JLM. E não estou a falar de um belo jantar nem de uma noite numa suíte de hotel luxuosa.

Devereaux conseguiu sorrir. Depois, bem do fundo da garganta, produziu uma bola abundante e gelatinosa de muco e cuspiu-a para o rosto de Keller. Com um canto da roupa de cama, Keller limpou calmamente a sujidade antes de sair para recuperar o martelo do corso. Golpeou Devereaux com ele várias vezes, concentrando os esforços no ombro direito e evitando totalmente a cabeça e o rosto. Depois, subiu as escadas até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo de futebol.

— Foi alguma coisa que ele disse ou que não disse?

— Foi alguma coisa que ele fez — respondeu Keller.

— Houve sangue?

— Um bocadinho.

— Ainda bem que esperaste até eu sair. Não suporto ver sangue.

Um festejo ribombante surgiu na televisão.

— Perdemos — disse o don melancolicamente.

— Sim — respondeu Keller. — Mas não percamos a esperança.


37

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Christopher Keller fez mais três visitas ao camarote mais pequeno do Celine: uma às onze, a segunda pouco depois da meia-noite e uma visita demorada com início à uma e meia da manhã que deixou René Devereaux, um calejado criminoso marselhês, com muito sangue nas mãos, a chorar descontroladamente e a implorar misericórdia. Keller fez-lhe a vontade, mas só com uma condição. Devereaux iria dizer-lhe tudo, para a câmara. Caso contrário, Keller partir-lhe-ia todos os ossos do corpo, lentamente, com cuidado e premeditação e pausas para renovação de energias e reflexão.

Já fizera enormes progressos nesse sentido. O ombro direito de Devereaux, no qual estava alojada uma bala, sofrera inúmeras fraturas. Adicionalmente, o cotovelo direto estava fraturado, tal como o esquerdo. Ambas as mãos estavam numa condição deplorável, e o ferimento no joelho direito, caso lhe fosse permitido sarar devidamente, provavelmente deixaria Devereaux com um coxear permanente a condizer com o de Saladino.

Deslocá-lo para o salão, onde fora montada uma câmara sobre um tripé, revelou-se um desafio. Giancomo puxou-o pelas escadas acima, enquanto Keller empurrava por baixo, oferecendo o apoio muitíssimo necessário para a perna arruinada. Foi providenciado conhaque, juntamente com um poderoso analgésico francês de venda livre que poderia fazer uma pessoa esquecer-se da falta de um membro. Keller ajudou Devereaux a vestir um casaco de marinheiro amarelo e, com um pente, arranjou-lhe o escasso cabelo fino. Então, ligou a câmara de vídeo e, depois de examinar cuidadosamente o plano, colocou a primeira questão:

— Como é que te chamas?

— René Devereaux.

— Qual é a tua profissão?

— Sou dono da loja de produtos eletrónicos da Place Jean Jaurès.

— Qual é a verdadeira natureza do teu trabalho?

— Droga.

— Onde é que conheceste o Jean-Luc Martel?

— Num restaurante em Marselha.

— Quem era o proprietário do restaurante?

— Philippe Renard.

— Qual era o verdadeiro negócio do Renard?

— Droga.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

— O que é que o Jean-Luc Martel faz agora?

— É proprietário de vários restaurantes, hotéis e estabelecimentos de venda a retalho.

— Qual é o verdadeiro negócio dele?

— Droga — disse René Devereaux.

 

Atracaram em Ajaccio às nove e meia. Daí, bastou uma agradável caminhada em redor da linha costeira curvilínea do golfo para chegar ao aeroporto. O voo seguinte para Marselha partia ao meio-dia. Keller chegou às onze e um quarto, depois de parar para um pequeno-almoço tardio e para comprar uma muda de roupa. Vestiu-a numa casa de banho do aeroporto e, depois, passou facilmente pela segurança sem nada na sua posse exceto a carteira, um passaporte britânico e o seu telemóvel do MI6, no qual havia um vídeo comprimido e fortemente encriptado do interrogatório de René Devereaux. Naquele momento, era provavelmente a informação mais importante de toda a guerra global contra o terrorismo.

Keller desligou o telefone antes da descolagem e não o voltou a ligar até estar a atravessar o terminal de Marselha. Mikhail estava à espera no exterior, na parte de trás da Maybach de Dmitri Antonov. Yaakov Rossman estava ao volante. Ouviram o interrogatório através do magnífico sistema sonoro do automóvel, enquanto se dirigiam para leste pela Autoroute.

— Deixaste escapar a tua verdadeira vocação — disse Mikhail. — Devias ter sido entrevistador de televisão. Ou inquisidor-geral.

— Arrependimento, meu filho.

— Achas que ele se vai arrepender?

— O Martel? Não sem dar luta.

— Não tem qualquer hipótese de se esconder deste vídeo. Agora, é nosso.

— Vamos ver — disse Keller.

Eram quase quatro da tarde quando a Maybach atravessou o portão da casa segura de Ramatuelle. Já no interior, Keller transferiu o ficheiro de vídeo para a rede informática operacional central. Passado um momento, o rosto de René Devereaux surgiu nos monitores.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

E assim continuou durante a maior parte de duas horas. Nomes, datas, locais, rotas, métodos, dinheiro... Tudo se resumia a dinheiro. Sujeito ao implacável interrogatório de Keller (e à ameaça, invisível no vídeo, do martelo), René Devereaux entregou os segredos mais preciosos da rede. Como o dinheiro era recolhido dos traficantes de rua. Como era carregado para a lavandaria que era a JLM Enterprises. E como, depois de limpo e passado, se dispersava. Tudo com um detalhe minucioso, de alta resolução. Não havia como esconder-se dele. Jean-Luc Martel estava na mira deles. Mas quem é que lhe ofereceria uma tábua de salvação? Paul Rousseau declarou que seria ele. Martel, disse, era um problema francês. Só uma solução francesa serviria.

E, portanto, com a ajuda de Gabriel, Rousseau preparou um clipe editado do interrogatório, com trinta e três segundos de duração. Era um teaser, um aperitivo. «Uma palmadinha de amor», como lhe chamou Gabriel. Martel estava rodeado da sua corte, no bar do seu restaurante do Porto Velho, quando o vídeo apareceu no seu telefone através de uma mensagem de texto anónima. O próprio telefone estava sob vigilância exaustiva, permitindo a Gabriel e Rousseau e ao resto da equipa observar as diversas tonalidades do alarme crescente de Martel enquanto o visualizava. Alguns segundos mais tarde, surgiu um segundo vídeo, apenas por segurança. Mostrava um breve encontro sexual entre Martel e Monique, a rececionista de Olivia na galeria. Fora gravado com o mesmo telefone que Martel tinha agora na mão e que, da perspetiva singular da equipa, parecia estar a tremer incontrolavelmente.

Foi neste ponto que Rousseau telefonou a Martel diretamente. Sem surpresa, este não atendeu, não deixando a Rousseau outra opção senão oferecer as suas condições numa mensagem de voz. Eram o equivalente a uma rendição incondicional. Jean-Luc Martel deveria apresentar-se imediatamente na Villa Soleil, sozinho, sem guarda-costas. Qualquer tentativa de fuga, advertiu Rousseau, seria intercetada. Os seus aviões e helicópteros seriam obrigados a aterrar, o seu iate a motor de quarenta e cinco metros seria bloqueado no porto.

— Obviamente — disse Rousseau — os seus movimentos e comunicações estão a ser monitorizados. Tem uma oportunidade de evitar a prisão e a ruína. Aconselho-o a aproveitá-la.

Com isso, Rouseau terminou a chamada. Transcorreram cinco minutos até que Martel ouviu a mensagem. Nesse momento, a espera começou. Gabriel colocou-se de pé diante dos monitores, com uma mão no queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, enquanto, no jardim, Christopher Keller esmagava o seu telefone do MI6 aos pedaços com um martelo. Rousseau observou a partir das portas francesas. Daria a Martel uma oportunidade para se salvar. Esperava que fosse suficientemente sensato para a aproveitar.


38

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

Dessa vez, deixaram-lhe o portão aberto, embora, seguindo a sugestão de Gabriel, tivessem bloqueado a estrada para lá da Villa Soleil, para o caso de ele mudar de ideias e tentar fugir para oeste ao longo da Côte d’Azur. Chegou, sozinho, às nove e um quarto dessa mesma noite, após uma série de telefonemas tensos com Paul Rousseau. A sua comparência na villa, alegou, não era, de forma alguma, uma admissão de nada. Não conhecia o homem do vídeo, as suas alegações eram absurdas. O seu negócio era o setor hoteleiro e o comércio de luxo, não a droga, e qualquer pessoa que alegasse o contrário enfrentaria graves consequências legais. Em resposta, Rousseau deixou claro que aquela não era uma questão legal, mas um assunto que envolvia a segurança nacional francesa. Durante um intercâmbio final tenso, Martel, na verdade, soou intrigado. Exigiu levar um advogado.

— Sem advogados — disse Rousseau. — Só atrapalham.

Mais uma vez, foi Roland Girard, do Grupo Alpha, quem o aguardou no pátio. Decididamente, a sua saudação foi menos cordial.

— Tem alguma arma consigo?

— Não seja ridículo.

— Levante os braços.

Relutantemente, Martel aceitou. Girard revistou-o minuciosamente, começando na parte de trás do pescoço e terminando nos tornozelos. Ao erguer-se, o agente do Grupo Alpha deu por si a fitar dois olhos escuros furiosos.

— Há alguma coisa que queira dizer-me, Jean-Luc?

Martel permaneceu em silêncio, algo inédito.

— Por aqui — disse Girard.

Levou Martel pelo cotovelo e conduziu-o até ao interior da villa. Christopher Keller aguardava no hall de entrada.

— Jean-Luc! Lamento imenso pelas circunstâncias do convite, mas precisávamos de atrair a sua atenção. — Foram as últimas palavras em francês que Keller proferiu. As restantes fluíram num inglês com sotaque britânico. — Há vidas em jogo, sabe, e não temos muito tempo. Por aqui, por favor.

Martel manteve-se imóvel.

— Passa-se alguma coisa, Jean-Luc?

— O senhor é...

— Não sou francês — interrompeu Keller. — E também não sou da ilha da Córsega. Foi tudo uma montagem feita especialmente para si. Receio bem que tenha sido alvo de um embuste bastante elaborado.

Atordoado, Martel seguiu Keller até à maior das salas de estar da villa, onde longas cortinas brancas ondulavam quais velas de navio empurradas pelo vento noturno. Natalie estava sentada na extremidade de um sofá, vestida com um fato de treino e os seus ténis verde-néon. Mikhail estava sentado à frente, com umas calças de ganga e um pulôver de algodão com decote em bico. Paul Rousseau estava a contemplar um dos quadros. E, no canto mais afastado da divisão, a sós na sua própria ilha privada, Gabriel examinava Jean-Luc Martel.

Foi Rousseau que, virando-se para trás, falou a seguir:

— Gostaria que pudéssemos dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não é. Quando olhamos para si, indagamo-nos sobre o motivo pelo qual fazemos o que fazemos. Sendo bastante honesto, a sua vida não é digna de proteção. Mas isso agora não é relevante. Precisamos da sua ajuda e, portanto, não temos outra opção senão acolhê-lo no nosso seio, por mais relutantemente que o façamos.

Os olhos de Martel saltitaram de rosto em rosto (o homem que conhecia como Monsieur Carnot, os Antonovs, a figura silenciosa que o observava do posto avançado solitário no canto da sala) até pousarem novamente em Rousseau.

— Quem é o senhor?

— O meu nome — respondeu Rousseau — não é importante. Na verdade, no nosso ramo de atividade, os nomes, realmente, não significam grande coisa, como tenho a certeza de que, neste momento, já se apercebeu.

— Para quem é que trabalha?

— Para um departamento do Ministério do Interior.

— A DGSI?

— Isso não é relevante. Efetivamente — acrescentou Rousseau —, o único aspeto a destacar quanto ao meu emprego é que não sou da polícia.

— E os outros? — perguntou Martel, olhando de relance para a divisão.

— São meus parceiros.

Martel olhou para Gabriel.

— Então, e ele?

— Pense nele como um observador.

Martel franziu o sobrolho.

— Porque é que eu estou aqui? Isto é sobre o quê?

— Droga — respondeu Rousseau.

— Já lhe disse, não estou envolvido com droga.

Rousseau expirou lentamente.

— Vamos saltar esta parte, sim? O Jean-Luc sabe como ganha a vida e nós também. Num mundo perfeito, estaria algemado neste preciso momento. Mas, escusado será dizer, este nosso mundo está longe de ser perfeito. É uma balbúrdia caótica e perigosa. Mas, o seu trabalho — disse Rousseau desdenhosamente — deixou-o numa posição singular para fazer alguma coisa a esse respeito. Estamos preparados para ser generosos se nos ajudar. E igualmente inclementes se não o fizer.

Martel endireitou os ombros e esticou-se para ficar um pouco mais alto.

— Esse vídeo — disse ele — não prova nada.

— Ouviu apenas uma pequena parte dele. O vídeo completo tem quase duas horas e é bastante extraordinário em termos de detalhe. Resumidamente, deixa a nu todos os seus segredos sujos. Se tal documento caísse nas mãos da polícia, certamente passaria os anos que lhe restam atrás das grades. Que é — acrescentou Rousseau enfaticamente — onde pertence. E se a gravação fosse dada a um jornalista zeloso que nunca acreditou no conto de fadas JLM, o impacto no seu império empresarial seria catastrófico. Todos os seus amigos poderosos, aqueles que suborna com comida e bebida e hospedagens de luxo, abandoná-lo-iam como ratos que fogem de um navio a afundar-se. Ninguém o protegeria.

Martel abriu a boca para responder, mas Rousseau prosseguiu.

— E depois há a questão da Galerie Olivia Watson. Tivemos oportunidade de analisar diversas transações da empresa. São, no mínimo, questionáveis. Principalmente aquelas quarenta e oito telas em branco que foram enviadas para o Freeport de Genebra. Colocou a Madame Watson numa posição insustentável. A galeria de arte dela, como o resto do seu império, é uma organização criminosa. Oh, suponho que seja possível para si evitar a forca, mas a sua esposa...

— Não é minha esposa.

— Oh, sim, desculpe — disse Rousseau. — Como é que devo referir-me a ela?

Martel ignorou a pergunta.

— Envolveram-na nisto?

— A Madame Watson não sabe de nada, e preferiríamos que assim continuasse. Não há necessidade de a arrastar para isto. Pelo menos, por agora. — Rousseau fez uma pausa, depois perguntou: — Como é que explicou a sua vinda aqui esta noite?

— Disse-lhe que tinha uma reunião de negócios.

— E ela acreditou?

— Porque é que não haveria de acreditar?

— Porque o Jean-Luc tem alguns antecedentes. — Rousseau fez um sorriso cúmplice. — O que faz no seu tempo livre não é da minha conta. Eu e o senhor somos franceses. Homens do mundo. Onde quero chegar é que não seria de todo problemático para nós se a Madame Watson ficasse com a impressão de que esteve com outra mulher esta noite.

— Não seria problemático para vocês — disse Martel —, mas para mim...

— Tenho a certeza de que vai pensar nalguma coisa para lhe dizer. Pensa sempre. Mas, voltando ao tema em questão — disse Rousseau. — Deveria ser evidente, neste momento, que o Jean-Luc foi alvo de uma operação cuidadosamente planeada. Agora, chegou o momento de passar para a próxima fase.

— A próxima fase?

— O prémio — disse Rousseau. — Vai ajudar-nos a encontrá-lo. E, se não o fizer, o objetivo da minha vida, de agora em diante, vai ser destruir o Jean-Luc Martel. E a Madame Watson. — Após um silêncio, Rousseau acrescentou: — Ou talvez a ideia de a Madame Watson sofrer pelos seus crimes não o incomode. Talvez ache esses sentimentos antiquados. Talvez não seja esse tipo de homem.

Martel retribuiu calmamente o olhar de Rousseau. Mas, quando os seus olhos pousaram novamente em Gabriel, a sua confiança pareceu vacilar.

— De qualquer forma — estava Rousseau a dizer —, agora pode ser um bom momento para ouvir o resto do interrogatório do René Devereaux. Não tudo, isso demoraria demasiado tempo. Apenas a parte relevante.

Olhou de soslaio para Mikhail, que premiu uma tecla de um computador portátil. Instantaneamente, o quarto expandiu-se com o som de dois homens a falarem em francês, um com um marcado sotaque corso, o outro como se estivesse em sofrimento físico.

— De onde é que vem a droga?

— De todo o lado. Turquia, Líbano, Afeganistão, de todo o lado.

— E o haxixe?

— O haxixe vem de Marrocos.

— Quem é o vosso fornecedor?

— Costumávamos ter vários. Agora trabalhamos com um homem. É o maior produtor do país.

— O nome dele?

— Mohammad.

— Mohammad quê?

— Bakkar.

Mikhail colocou a gravação em pausa. Rousseau olhou para Jean-Luc Martel e sorriu.

— Porque é que não começamos por aí? — disse. — Pelo Mohammad Bakkar.


39

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Há muitos motivos pelos quais um indivíduo pode aceitar trabalhar para um serviço secreto, poucos deles admiráveis. Alguns fazem-no por avareza, alguns por amor ou convicção política. E alguns fazem-no porque se sentem aborrecidos ou insatisfeitos ou têm sede de vingança por terem sido preteridos numa promoção, enquanto colegas que consideram invariavelmente inferiores são empurrados pela escada do sucesso. Com um pouco de adulação e um pote de dinheiro, essas almas desprezíveis podem ser convencidas a revelar os segredos que passam pelas pontas dos seus dedos ou através das redes informáticas que são contratados para manter. Agentes secretos profissionais não têm qualquer problema em aproveitar-se desses homens, mas, secretamente, desprezam-nos. Quase tanto quanto o homem que trai o seu país por motivos de consciência. Esses são os idiotas úteis do ofício. Para os profissionais, não existe forma de vida mais baixa.

O profissional nem sequer confia naqueles que oferecem voluntariamente os seus serviços, pois, frequentemente, é difícil avaliar os seus verdadeiros motivos. Em vez disso, prefere identificar um potencial recruta e, depois, dar o primeiro passo. Normalmente, aproxima-se com presentes, mas, por vezes, tem necessidade de utilizar métodos menos agradáveis. Consequentemente, o profissional está sempre à espreita de falhas e fraquezas: um caso extraconjugal, uma predileção por pornografa, uma indiscrição financeira. Essas são as chaves mestras do ofício. Destrancam qualquer porta. Para além disso, a coerção é um excelente clarificador de intenções. Ilumina os recantos obscuros do coração humano. O homem que espia porque não tem outra hipótese é um mistério menor do que um que entra numa embaixada com uma pasta repleta de documentos roubados. Ainda assim, nunca se pode confiar plenamente no confidente coagido. Inevitavelmente, tentará encontrar alguma forma de retribuir a injustiça que recaiu sobre ele, e só pode ser controlado durante o tempo em que o seu pecado original continuar a ser uma ameaça para ele. Por conseguinte, o colaborador e agente responsável por o controlar dão por si, invariavelmente, enredados num caso amoroso destinado ao fracasso.

Era nessa categoria de colaborador que Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se enquadrava. Não oferecera voluntariamente os seus serviços. Nem fora atraído para o festim através do poder da persuasão. Fora identificado, avaliado e selecionado como alvo através de uma operação elaborada e dispendiosa. A sua relação com Olivia Watson fora dilacerada, o seu parceiro de negócios fora espancado impiedosamente com um martelo, ele fora ameaçado com prisão e ruína. Apesar disso, continuava a ser necessário fazer um recrutamento. A coerção poderia abrir uma porta, mas fechar um acordo exigia habilidade e sedução. Um compromisso teria de ser alcançado. Precisavam de Jean-Luc Martel muito mais do que ele precisava deles. Traficantes de droga existiam com fartura. Mas Saladino era único.

Jean-Luc não se entregou facilmente ao seu destino, mas isso era de esperar; um homem que mata tanto o pai como o seu mentor não é um homem que se assuste facilmente. Esquivou-se, contra-atacou, fez as suas próprias ameaças. Contudo, Rousseau, não mordeu o isco. Foi o contraste perfeito: inofensivo na aparência, controlado no temperamento, tolerante perante as falhas. Martel testou a paciência de Rousseau muitas vezes, tal como quando exigiu garantias escritas, em papel timbrado oficial do Ministério do Interior, da concessão de imunidade para uma possível acusação, agora e para sempre, ámen. Não competia a Rousseau conceder tal clemência, pois estava a operar sem mandado do ministro, nem sequer conhecimento dos seus chefes da DGSI. E, portanto, sorriu perante a intransigência de Martel e, com um aceno de cabeça na direção de Mikhail, passou um momento ou dois do interrogatório marítimo de René Devereaux.

— Está a mentir — explodiu Martel quando o som se silenciou. — É uma fantasia completa.

Foi nesse ponto, recordaria mais tarde Gabriel (e as câmaras ocultas confirmaram que assim foi) que Martel começou a ceder. Instalou-se ao lado de Mikhail, uma escolha curiosa, e fitou o rosto de Natalie, que por sua vez pespegou os olhos no chão. Seguiu-se um longo silêncio, suficientemente longo para que Rousseau considerasse apropriado voltar a passar o fragmento relevante da gravação, o fragmento relativo a um tal de Mohammad Bakkar, um dos maiores produtores de haxixe de Marrocos (segundo alguns relatos, o maior), um homem que gostava de se autodenominar o rei das Montanhas do Rife, a região do país onde o haxixe é cultivado e processado para exportar para a Europa e para lá dela. O homem que, de acordo com René Devereaux, era o único e exclusivo fornecedor de Martel.

— Presumo — disse Rousseau tranquilamente — que já ouviu o nome.

E Martel, com um movimento mínimo da cabeça, confirmou que sim. Então, os olhos moveram-se de Natalie para Keller, que estava de pé atrás dela de forma protetora. Keller enganara-o, Keller traíra-o. E, contudo, parecia que Jean-Luc Martel via Keller como o seu único amigo na divisão.

— Porque é que não nos dá um pouco de contexto? — sugeriu Rousseau. — Afinal de contas, somos amadores. Pelo menos no que se refere ao negócio de estupefacientes. Ajude-nos a entender como tudo funciona. Ilumine-nos quanto às maldades do seu mundo.

O pedido de Rousseau não era tão inocente como parecia. René Devereaux já fornecera a Keller informações detalhadas sobre as ligações de Mohammad Bakkar à rede. Mas Rousseau queria pôr Martel a falar, o que lhes permitiria testar a veracidade das suas palavras. Era de esperar uma certa quantidade de engano. Rousseau exigiria verdade absoluta apenas quando isso fosse importante.

— Fale-nos um pouco sobre esse tal Mohammad Bakkar — estava a dizer. — É baixo ou alto? É magro ou é gordo como eu? Tem algum cabelo ou é careca? Tem uma mulher ou duas? Fuma? Bebe? É religioso?

— É baixo — respondeu Martel passado um momento. — E, não, não bebe. O Mohammad é religioso. Muito religioso, na verdade.

— Acha isso surpreendente? — perguntou Rousseau rapidamente, aproveitando-se do facto de Martel ter, finalmente, respondido a uma questão. — Que um produtor de haxixe seja um homem religioso?

— Eu não disse que o Mohammad Bakkar era produtor de haxixe. O negócio dele são as laranjas.

— Laranjas?

— Sim, laranjas. Portanto, não, não acho surpreendente que seja um homem religioso. As laranjas são um modo de vida no Rife. O rei tem tentado encorajar os produtores a cultivar outros produtos, mas as laranjas são mais lucrativas do que a soja e os rabanetes. Muito mais — acrescentou Martel com um sorriso.

— Talvez o rei se devesse esforçar mais.

— Na minha opinião, o rei prefere que as coisas fiquem como estão.

— Então porquê?

— Porque as laranjas levam vários milhares de milhões de dólares por ano para o país. Ajudam a manter a paz. — Baixando a voz, Martel acrescentou: — O Mohammad Bakkar não é o único homem religioso de Marrocos.

— Há muitos extremistas em Marrocos?

— Vocês devem saber isso melhor do que eu — disse Martel.

— O ISIS tem muitas células em Marrocos?

— Dizem que sim. Mas o rei não gosta de falar disso — acrescentou. — O ISIS é mau para o turismo.

— O Jean-Luc tem um negócio em Marrocos, não tem? Um hotel em Marraquexe, se não estou em erro.

— Dois — vangloriou-se Martel.

— Como é que vai o negócio?

— Fraco.

— Lamento ouvir isso.

— Vamos dar a volta à situação.

— Tenho a certeza que sim. E a que é que atribui esta queda no negócio? — perguntou Rousseau. — É o ISIS?

— Os atentados nos hotéis da Tunísia tiveram um grande impacto nas nossas reservas. As pessoas temem que Marrocos venha a seguir.

— É seguro para os turistas irem até lá?

— É seguro — disse Martel — até deixar de ser.

Rousseau permitiu a si próprio um sorriso perante a perspicácia da observação. Depois, assinalou que os interesses empresariais de Martel lhe permitiam entrar e sair de Marrocos, um famigerado país produtor de droga, sem levantar suspeitas. Martel, encolhendo os ombros, não contestou a conclusão de Rousseau.

— Recebe o Mohammad Bakkar no seu hotel em Marraquexe?

— Nunca.

— Porque não?

— Ele não gosta de Marraquexe. Ou daquilo em que Marraquexe se tornou, diria eu.

— Demasiados estrangeiros?

— E homossexuais — disse Martel.

— E ele não gosta de homossexuais devido às suas crenças religiosas?

— Suponho que sim.

— Habitualmente, onde é que se encontra com ele?

— Em Casa — disse Martel, utilizando a abreviatura local para Casablanca — ou em Fez. Tem um riad no coração da medina. Também é proprietário de várias villas no Rife e no Médio Atlas.

— Desloca-se muito de um lado para o outro?

— As laranjas são um negócio perigoso.

Rousseau sorriu novamente. Nem mesmo ele era imune ao imenso charme de Martel.

— E, quando se encontra com o Monsieur Bakkar, de que é que falam?

— Do Brexit. Do novo presidente americano. Das perspetivas para a paz no Médio Oriente. O costume.

— Obviamente — disse Rousseau —, está a brincar.

— Não, de todo. O Mohammad é bastante inteligente e interessa-se pelo mundo para lá do Rife.

— Como é que descreveria a ideologia política dele?

— Não é um admirador do Ocidente. Cultiva um particular ressentimento em relação à França e à América. Por norma, tento não proferir a palavra Israel na presença dele.

— Enraivece-o?

— Pode-se dizer que sim.

— E, no entanto, faz negócios com um homem assim.

— As laranjas dele — disse Martel — são de muito boa qualidade.

— E, quando acabam de falar do estado do mundo, de que é que falam?

— De preços, horário de produção, datas de entrega, esse tipo de coisas.

— Os preços flutuam?

— Oferta e procura — explicou Martel.

— Há alguns anos — continuou Rousseau — reparámos numa mudança evidente na forma como as laranjas estavam a sair do Norte de África. Em vez de virem através do Mediterrâneo, uma ou duas de cada vez, a bordo de pequenas embarcações, começaram a chegar toneladas de laranjas em grandes navios de carga, todos provenientes de portos da Líbia. Houve um súbito excedente no mercado? Ou há alguma outra razão para explicar a mudança na estratégia?

— A segunda opção — disse Martel.

— E qual foi essa razão?

— O Mohammad decidiu unir-se a um parceiro.

— Uma pessoa física?

— Sim.

— Suponho que teria de ser um homem, porque alguém como o Mohammad Bakkar nunca lidaria com uma mulher.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Esse parceiro queria assumir uma postura mais agressiva no mercado?

— Muito mais agressiva.

— Porquê?

— Porque queria maximizar os lucros rapidamente.

— Encontrou-se com ele?

— Duas vezes.

— O nome dele?

— Khalil.

— Khalil quê?

— Só isso, simplesmente Khalil.

— Era marroquino?

— Não, definitivamente não era marroquino,

— De onde era?

— Nunca disse.

— E se tivesse de arriscar um palpite?

Jean-Luc Martel encolheu os ombros.

— Diria que era iraquiano.


40

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Foi evidente para toda a gente na sala (e, uma vez mais, as câmaras ocultas assim o confirmaram) que Jean-Luc Martel não percebeu o significado das palavras que acabara de proferir. Diria que era iraquiano... Um iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido, sem patronímico nem um gentílico ancestral, apenas Khalil. O mesmo Khalil que encontrara um parceiro em Mohammad Bakkar, um produtor de haxixe de profunda fé islâmica que odiava a América e o Ocidente e se enfurecia perante a simples menção de Israel. O Khalil que queria maximizar lucros forçando a entrada de mais produto no mercado europeu. Gabriel, o observador silencioso do drama que concebera e produzira, advertiu a si próprio para não se precipitar para uma conclusão prematura. Era possível que o homem que se autodenominava Khalil não fosse o homem de que andavam à procura, que fosse um mero criminoso banal sem outros interesses a não ser fazer dinheiro; que fosse um gambozino que lhes faria desperdiçar tempo e recursos preciosos. Ainda assim, até mesmo Gabriel teve dificuldade em controlar o bater desenfreado do seu coração. Ele puxara a ponta solta, unira os pontos e o rasto tinha-o conduzido até ali, à antiga casa de um inimigo derrotado. Contudo, os outros membros da sua equipa pareciam totalmente indiferentes à revelação de Martel. Natalie, Mikhail e Christopher Keller estavam, cada um deles, absortos nos seus pensamentos e Paul Rousseau aproveitara aquele momento para carregar o seu primeiro cachimbo. Passado um momento, o seu isqueiro acendeu-se e uma nuvem de fumo rolou sobre as duas cenas venezianas de Guardi. Gabriel, o restaurador, estremeceu involuntariamente.

Se Rousseau ficou minimamente intrigado pelo iraquiano que se autodenominava Khalil, não revelou qualquer sinal exterior disso. Khalil era um pensamento secundário. Khalil não tinha qualquer importância. Rousseau estava mais interessado, ou assim parecia, nos aspetos práticos da relação de Martel com Mohammad Bakkar. Quem dirigia as operações? Era isso que ele queria saber. Quem ocupava a posição superior? Era Martel, o distribuidor, ou Bakkar, o produtor marroquino?

— Não percebe muito de negócios, pois não?

— Sou um académico — desculpou-se Rousseau.

— É uma negociação — explicou Martel. — Mas, em última análise, o produtor ocupa a posição superior.

— Porque pode excluir o distribuidor a qualquer momento?

— Correto.

— O Jean-Luc não conseguiria encontrar outra fonte de droga?

— Laranjas — disse Martel.

— Ah, sim, laranjas — concordou Rousseau.

— Não é assim tão fácil.

— Pela qualidade das laranjas do Mohammad Bakkar?

— Pelo facto de o Mohammad Bakkar ser um homem com poder e influência consideráveis.

— Desencorajaria outros produtores a venderem-lhe o seu produto?

— Intensamente.

— E quando o Mohammad Bakkar lhe disse que queria aumentar drasticamente a quantidade de laranjas que estava a enviar para a Europa?

— Aconselhei-o a não o fazer.

— Porquê?

— Por inúmeras razões.

— Tais como?

— Grandes carregamentos são perigosos por natureza.

— Porque é mais fácil para as autoridades encontrarem-nos?

— Obviamente.

— Que mais?

— Estava preocupado com a possibilidade de saturarmos o mercado.

— E, por conseguinte, fazer cair o preço das laranjas na Europa Ocidental.

— Oferta e procura — disse Martel novamente, com um encolher de ombros.

— E quando mencionou essas preocupações?

— Deu-me uma escolha muito simples.

— Pegar ou largar?

— Com todas as letras.

— E o Jean-Luc pegou — disse Rousseau.

Martel ficou em silêncio. Rousseau mudou de ângulo abruptamente.

— O envio — disse ele. — Quem é o responsável pelo envio?

— O Mohammad. Ele põe a embalagem no correio e nós vamos buscá-la do outro lado.

— Presumo que ele lhe diz quando esperar a encomenda.

— Claro.

— Quais são os métodos preferidos dele?

— Antigamente, usava barcos pequenos para trazer a mercadoria diretamente através do Mediterrâneo, de Marrocos para Espanha. Depois, os espanhóis apertaram o controlo na costa, portanto ele começou a movê-la através do Norte de África para os Balcãs. Era uma viagem longa e onerosa. Muitas laranjas desapareciam pelo caminho. Principalmente quando chegavam ao Líbano e aos Balcãs.

— Eram roubadas por gangues criminosos locais?

— As máfias sérvia e búlgara gostam bastante de citrinos — disse Martel. — O Mohammad passou anos a tentar arranjar uma forma de fazer as laranjas chegarem à Europa sem terem de atravessar esse território. E, depois, caiu-lhe uma solução no colo.

— A solução — disse Rousseau — foi a Líbia.

Martel assentiu lentamente com a cabeça.

— Foi um sonho tornado realidade, possibilitado pelo presidente francês e pelos amigos de Washington e Londres que declararam que o Kadhafi tinha de cair. Assim que o regime se desmoronou, a Líbia abriu as portas da loja. Era o Oeste Selvagem. Sem governo central, sem polícia, sem qualquer tipo de autoridade exceto as milícias e os psicopatas islâmicos. Mas havia um problema.

— Qual era?

— As milícias e os psicopatas islâmicos — disse Martel.

— Não aprovavam as laranjas?

— Não era isso. Queriam uma parte. Caso contrário, não deixariam as laranjas chegarem aos portos líbios. O Mohammad precisava de um parceiro local, alguém que pudesse manter as milícias e guerreiros sagrados na linha. Alguém que conseguisse garantir que as laranjas encontravam o caminho até ao interior dos navios de carga.

— Alguém como o Khalil? — perguntou Rousseau.

Martel não deu qualquer resposta.

— Lembra-se de um navio chamado Apollo? — perguntou Rousseau. — Os italianos apreenderam-no ao largo da Sicília com dezassete toneladas de laranjas nos porões.

— O nome — disse Martel dissimuladamente — é-me familiar.

— Suponho que a carga era sua.

Martel, com o seu olhar inexpressivo, confirmou que era.

— Houve outros navios antes do Apollo que não tenham sido intercetados?

— Vários.

— E, recorde-me — disse Rousseau, fingindo confusão —, quem é que suporta o custo de uma apreensão? O produtor ou o distribuidor?

— Não posso vender laranjas se não as receber.

— Então, o que me está a dizer, e por favor desculpe-me, Monsieur Martel, não pretendo insistir excessivamente na questão, é que o Mohammad Bakkar perdeu, pessoalmente, milhões de euros quando o Apollo foi apreendido?

— Correto.

— Deve ter ficado furioso.

— Bem mais do que isso — disse Martel. — Convocou-me para ir a Marrocos e acusou-me de filtrar a informação aos italianos.

— Porque é que faria uma coisa dessas?

— Porque estava contra os grandes carregamentos desde o início. E a melhor forma de os fazer parar seria perder um ou dois navios.

— Foi o Jean-Luc o responsável pela fuga de informação que conduziu os italianos até ao Apollo?

— Claro que não. Disse ao Mohammad de forma absolutamente categórica que o problema estava do lado dele.

— Com isso — disse Rousseau — referia-se ao Norte de África.

— À Líbia — disse Martel.

— E quando as apreensões continuaram?

— O Khalil conteve as fugas. E as laranjas começaram a chegar novamente em segurança.

 

Ei-lo novamente. O nome do novo parceiro agressivo de Mohammad Bakkar. O homem que Paul Rousseau andara a evitar. Depois de uma pausa prolongada para carregar e acender outro cachimbo, indagou quando é que Jean-Luc se encontrara pela primeira vez com esse iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido. Sem patronímico nem gentílico ancestral. Só Khalil. Martel disse que fora em 2012. Na primavera, pensava. No final de março, talvez, mas não sabia precisar com certeza. Contudo, Rousseau, não acreditou. Martel era dono e senhor de uma vasta organização criminosa, cujo funcionamento conhecia de cor e salteado. Certamente, insistiu Rousseau, conseguia recordar-se da data de tão memorável encontro.

— Foi no dia vinte e nove de março.

— E as circunstâncias? O Jean-Luc foi convocado ou era um encontro agendado previamente?

Martel indicou que a sua presença fora solicitada.

— E, geralmente, como é que isso se faz? É uma questão menor, sabe, mas estou curioso.

— Deixam-me uma mensagem no meu hotel em Marraquexe.

— Uma mensagem de voz?

— Sim.

— E a primeira reunião em que o Khalil esteve presente?

— Foi em Casa. Voei para lá no meu avião e instalei-me no hotel. Algumas horas depois, disseram-me onde ir.

— O Mohammad telefonou-lhe pessoalmente?

— Um dos homens dele. O Mohammad não gosta de usar o telefone para tratar de negócios.

— E o hotel? Qual foi, por favor?

— O Sofitel.

— E foi sozinho?

— A Olivia foi comigo.

Rousseau franziu o sobrolho pensativamente.

— Leva-a sempre consigo?

— Sempre que possível.

— Porquê?

— As aparências são importantes.

— Ela foi à reunião?

— Não. Ficou no hotel enquanto eu fui a Anfa.

— Anfa?

Era um enclave abastado numa colina a oeste do centro, explicou Martel, uma zona de avenidas ladeadas de palmeiras e villas amuralhadas onde o preço por metro quadrado rivalizava com Londres e Paris. Mohammad Bakkar era dono de uma propriedade aí. Como de costume, Martel teve de se submeter a uma revista antes de ser autorizado a entrar. Foi, recordava agora, mais invasiva do que o normal. No interior, esperava encontrar Bakkar sozinho, como era habitual nas reuniões. Em vez disso, havia outro homem presente.

— Descreva-o, por favor.

— Alto, ombros largos, rosto e mãos grandes.

— A pele?

— Escura, mas não muito.

— Como é que estava vestido?

— À ocidental. Fato escuro, camisa branca, sem gravata.

— Cicatrizes ou características distintivas?

— Não.

— Tatuagens?

— Só consegui ver-lhe as mãos.

— E?

Martel abanou a cabeça.

— Foram apresentados?

— Sucintamente.

— Ele falou?

— Comigo não. Só com o Mohammad.

— Em árabe, presumo.

— Sim.

— O Mohammad Bakkar fala árabe magrebino.

— Darija — disse Martel.

— E o outro homem? Também falava darija?

Martel abanou a cabeça.

— Consegue perceber a diferença?

— Aprendi a falar um pouco de árabe quando era criança. Com a minha mãe — acrescentou. — Portanto, sim, consigo perceber a diferença. Falava como alguém do Iraque.

— E não se interrogou sobre a origem desse homem, dado que o ISIS tinha conquistado grande parte do Iraque e da Síria e estabelecido uma base de operações na Líbia? Ou talvez não quisesse saber — acrescentou Rousseau desdenhosamente. — Talvez seja melhor não fazer demasiadas perguntas numa situação dessas.

— Regra geral — disse Martel —, podem ser más para o negócio.

— Principalmente quando o ISIS e semelhantes estão envolvidos. — Rousseau controlou a raiva. — E a segunda reunião? Quando foi?

— Em dezembro passado.

— Depois dos atentados de Washington?

— Sem dúvida.

— A data exata, por favor.

— Creio que foi no dia dezanove.

— E as circunstâncias?

— Foi na nossa reunião anual de inverno.

— Onde é que teve lugar?

— O Mohammad estava sempre a mudar a localização. Acabámos por nos encontrar numa pequena povoação no topo do Rife.

— Qual era a ordem de trabalhos?

— Previsões de preços e datas de entrega para o novo ano. O Mohammad e o iraquiano queriam introduzir ainda mais produto no mercado. Muito produto. E rapidamente.

— Como é que ele estava vestido dessa vez?

— Como um marroquino.

— O que é que isso significa?

— Tinha uma jilaba.

— Uma túnica tradicional muçulmana com capuz.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o rosto dele estava mais magro e anguloso.

— Tinha perdido peso?

— Cirurgia plástica.

— Havia mais alguma coisa diferente nele?

— Sim — disse Martel. — Ao caminhar, coxeava.


CONTINUA

26

TELAVIVE – SAINT-TROPEZ

Assim sendo, faltava apenas o dinheiro. O dinheiro necessário para levar a operação de Gabriel da fase de produção à cena. Os duzentos ou trezentos milhões para adquirir uma coleção de arte vistosa. Os doze milhões para uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e os cinco milhões, mais coisa menos coisa, para a tornar apresentável. E, depois, havia o dinheiro para todos os pequenos extras da vida. Os carros, as roupas, as joias, os restaurantes, as viagens de avião privado, as festas luxuosas. Gabriel tinha um número em mente, ao qual acrescentou outros vinte milhões, para o caso de serem necessários. As operações, como a própria vida, eram incertas.

— Isso é muito dinheiro — disse o primeiro-ministro.

— Quinhentos milhões já não dão para tanta coisa como antigamente.

— Onde fica o banco?

— Temos vários à escolha, mas o Banco Nacional do Panamá é a nossa melhor opção. Conseguimos fazer tudo lá — explicou Gabriel — e a ameaça de retaliação é reduzida, depois do escândalo com os Papéis do Panamá. Ainda assim, vamos deixar algumas pistas falsas para cobrir o nosso rasto.

— Quem é que vai culpar?

— Os norte-coreanos.

— Porque não os iranianos?

— Da próxima vez — prometeu Gabriel.

Os fundos visados estavam distribuídos por oito contas separadas, todas em nome da mesma empresa de investimentos fantasma. Faziam parte de uma vasta fortuna de dinheiro furtado, controlada pelo governante da Síria e pelos seus amigos e parentes próximos. Pouco tempo antes de se tornar chefe, Gabriel localizara e depois confiscara a maior parte da fortuna, numa tentativa de moderar a conduta assassina do governante na guerra civil síria. Mas fora obrigado a devolver o dinheiro, mais de oito mil milhões de dólares, em troca de uma única vida humana. Pagara o resgate sem arrependimento: tinha sido, dizia sempre, o melhor negócio que alguma vez fizera. Ainda assim, tinha estado à procura de uma desculpa, qualquer desculpa, para ter a última palavra. Encontrar Saladino era um motivo tão bom como qualquer outro.

Gabriel não devolvera os oito mil milhões diretamente ao governante sírio. Depositara-o, conforme fora instruído a fazer, no Gazprombank, em Moscovo, por conseguinte colocando-o, na prática, nas mãos do czar, o benfeitor e amigo mais próximo do governante sírio. O czar tirara metade do dinheiro para si: taxas de serviço, despesas de transporte, envio e manutenção. Os restantes fundos, ligeiramente superiores a quatro mil milhões de dólares, tinham sido depositados numa série de contas secretas na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein, Dubai, Hong Kong e, claro, no Banco Nacional do Panamá.

Gabriel sabia disso porque, com o auxílio de uma unidade altamente sigilosa de hackers do Departamento, observara cada uma das movimentações do dinheiro. A unidade não tinha nome oficial porque, oficialmente, não existia. Aqueles que tinham sido informados do seu trabalho referiam-se a ela unicamente como «o Minyan», pois era constituída por dez elementos, todos do sexo masculino. Premindo, simplesmente, algumas teclas do computador, conseguiam deixar uma cidade às escuras, cegar os radares de um centro de controlo aéreo ou fazer as turbinas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem furiosa e descontroladamente. Em suma, tinham a capacidade de virar as máquinas contra os seus amos. Em privado, Uzi Navot referia-se ao Minyan como dez boas razões pelas quais ninguém no seu perfeito juízo alguma vez usaria um computador ou um telemóvel.

O Minyan trabalhava numa sala ao fundo do mesmo corredor que albergava a divisão onde a equipa de Gabriel estava a fazer os retoques finais do planeamento pré-operacional. O seu líder formal era um miúdo chamado Ilan. Era o equivalente cibernético de Mozart. Primeiro código informático aos cinco, primeiro hack aos oito, primeira operação secreta contra os iranianos aos vinte e um. Era magro como um indigente e tinha a palidez macilenta de alguém que não saía muito para o exterior.

— Basta-me carregar num botão — disse com um sorriso travesso — e puf: o dinheiro desaparece.

— Sem deixar impressões digitais?

— Só norte-coreanas.

— E não há nenhuma forma de conseguirem seguir o rasto do dinheiro do Banco do Panamá para o HSBC em Paris?

— Nem pensar.

— Lembra-me — disse Gabriel — para guardar o meu dinheiro debaixo do colchão.

— Guarda o teu dinheiro debaixo do colchão.

— Era um pedido retórico, Ilan. Não queria realmente que me lembrasses.

— Oh.

— Tens de sair para o mundo real de vez em quando.

— Isto é o mundo real.

Gabriel fitou o ecrã do computador. Ilan também o fitou.

— Então? — perguntou Gabriel.

— Então o quê?

— Estás à espera de quê?

— De autorização para roubar quinhentos milhões de dólares.

— Isto não é roubar.

— Duvido que os sírios vejam isso da mesma forma. Ou os panamenhos.

— Carrega no botão, Ilan.

— Ia sentir-me melhor se fosses tu a fazê-lo.

— Qual é?

Ilan indicou a tecla enter. Gabriel premiu-a uma vez. Depois, caminhou até ao fundo do corredor e informou a sua equipa das notícias. O financiamento necessário tinha chegado. Estavam em ação.

 

Deixou-se ver pela primeira vez na semana seguinte, na quarta-feira, a sair da Bonhams, na New Bond Street, com Julian Isherwood no seu encalço. Quis a sorte (ou, olhando para trás, talvez não tivesse sido, de todo, sorte) que Amelia March da ARTnews estivesse no passeio nesse momento, a matar tempo para o encontro agendado para as duas horas com o presidente do departamento de pós-guerra e contemporânea da Bonhams. Era uma jornalista de arte, não uma verdadeira jornalista, mas tinha faro para uma boa história e olho para o pormenor. Alto, elegante, bastante louro, mais para o pálido, sem qualquer cor nos olhos. O seu casaco e sobretudo eram perfeitos, o perfume cheirava a dinheiro. Achou estranho que estivesse na companhia de um fóssil como Julian. Aparentava ter um gosto mais virado para o moderno, em vez de anjos, santos e mártires. Isherwood fez uma apresentação apressada antes de enfiar o seu cúmplice no banco de trás de uma limusina Jaguar que os aguardava. Dmitri Qualquer Coisa. Só podia.

No interior da Bonhams, Amelia conseguiu apurar que Isherwood e o amigo alto e pálido tinham passado várias horas com Jeremy Crabbe, o especialista em Grandes Mestres da casa de leilões. Localizou Jeremy no Wilton mais tarde nessa mesma noite. Conversaram como dois espiões num café de Viena no pós-guerra.

— O nome é Antonov. Dmitri Antonov. Russo, suponho, mas o assunto não veio à baila na conversa informal. Está completamente a nadar em dinheiro. Trabalha em qualquer coisa no setor dos recursos naturais. Não é o que fazem todos? — disse Jeremy, arrastando a voz. — O Julian agarrou-se a ele como uma lapa ao casco de um navio. Aparentemente, age tanto na qualidade de vendedor como de consultor. Uma relação bem confortável, financeiramente falando. Parece que o Dmitri tirou vários quadros das mãos do Julian e agora andam à caça grossa. Mas não me cites em relação a isso. Na verdade, não me cites em relação a nada. Isto é tudo off the record. Estritamente entre nous, minha querida.

Amelia concordou em manter a informação confidencial, mas Jeremy não foi tão discreto. Na verdade, disse a toda a gente no bar, incluindo a Oliver Dimbleby. No final da noite, era o único tema de conversa entre todos ali presentes.

Em meados de março, ambos foram vistos na Christie’s e na Sotheby’s. Também fizeram uma visita à galeria de Oliver na Bury Street, onde, após uma hora de negociação inócua, se comprometeram com a aquisição de uma paisagem de uma duna montanhosa do pintor holandês Jacob van Ruisdael, de duas cenas de canais venezianos de Francesco Guardi e de um funeral de Zelotti. Roddy Hutchinson vendeu-lhe cinco quadros no total, incluindo uma natureza morta com fruta e um lagarto de Ambrosius Bosschaert II. No dia seguinte, Amelia March publicou um pequeno artigo sobre um jovem russo que andava a agitar as águas do mercado de arte londrino. Julian Isherwood, na qualidade de porta-voz do russo, recusou tecer quaisquer comentários.

— Quaisquer compras efetuadas pelo meu cliente foram privadas — disse ele — e continuarão a sê-lo.

O início de abril viu Isherwood e o seu amigo russo do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, onde a sua chegada foi ansiosamente antecipada. Visitaram as casas de leilões e as galerias, jantaram em todos os restaurantes certos e até assistiram a um musical na Broadway. Um colunista de mexericos do Post relatou que adquiriram vários quadros de Grandes Mestres da Otto Naumann Lda., na East Eightieth Street, mas, uma vez mais, Isherwood balbuciou qualquer coisa sobre o desejo de privacidade do seu cliente. Segundo constava, esse desejo não era assim tão intenso. Quem se encontrou com ele ficou com a impressão de que era um homem que gostava de ser visto. O mesmo se aplicava à bonita jovem (aparentemente era sua esposa, mas tal nunca foi irrefutavelmente provado) que o acompanhou à América. Era esbelta, morena, francesa e profundamente antipática.

— Não perdeu uma única oportunidade de se ver ao espelho — disse o gerente de uma joalharia exclusiva da Quinta Avenida. — Uma verdadeira peça.

Mas quem era aquele homem chamado Dmitri Antonov? E, talvez mais importante do que isso, de onde vinha tanto dinheiro? Tornou-se rapidamente no foco de muitos rumores ao estilo de Gatsby, alguns maliciosos, outros bastante certeiros. Dizia-se que matara um homem, que matara muitos homens, e que amealhara a sua fortuna ilicitamente, tudo coisas que, por acaso, eram verdade. Não que isso o tornasse menos apetecível para aqueles que faziam da venda de arte a sua profissão. Não se importavam muito com o modo como ganhava dinheiro, desde que o cheque chegasse a horas e não houvesse problemas por parte do banco. Não havia. Tinha os seus fundos respeitavelmente depositados no HSBC de Paris, mas, curiosamente, todas as suas aquisições eram enviadas para um cofre no Freeport de Genebra.

— É um daqueles — disse uma mulher que trabalhava no departamento de negócios da Sotheby’s. Um superior recordou-a calmamente que «aqueles» eram os que mantinham lugares como a Sotheby’s a funcionar.

O cofre no Freeport era o mais parecido que tinha com uma morada permanente. Em Londres, vivia no Dorchester, em Paris no Hôtel de Crillon. E quando os negócios o levavam até Zurique, só a suíte Terrazza no Dolder Grand servia. Até mesmo Julian Isherwood, que comunicava com ele através de telemóvel e mensagens de texto, alegava não saber onde ele estava de um dia para o outro. Mas havia rumores (aqui, uma vez mais, tratavam-se apenas de rumores) de que adquirira um castelo para si algures em França.

— Está a usar o Freeport como armazém temporário — sussurrou Isherwood ao ouvido de Oliver Dimbleby. — Há qualquer coisa grande em preparação. — Depois, Isherwood obrigou Oliver a jurar segredo absoluto, garantindo, dessa forma, que a notícia se tornaria global até à manhã seguinte.

Mas onde, em França? Mais uma vez, a fábrica de boatos começou a funcionar pois, no dia em que o homem chamado Dmitri Antonov deixou Nova Iorque, surgiu um pequeno artigo no Nice-Matin sobre uma certa propriedade imobiliária célebre, perto de Saint-Tropez. Conhecida como Villa Soleil, o extenso complexo à beira-mar na Baie de Cavalaire fora, em tempos, propriedade de Ivan Kharkov, o oligarca e traficante de armas russo morto a tiro à porta de um exclusivo restaurante em Saint-Tropez. Durante quase uma década, a propriedade estivera nas mãos do governo francês. Agora, por motivos nunca esclarecidos, o governo estava subitamente ansioso por se desfazer da Villa Soleil. Aparentemente, fora encontrado um comprador. Apesar dos árduos esforços, o Nice-Matin ainda não fora capaz de o identificar.

A renovação da propriedade começou imediatamente. De facto, no dia seguinte à publicação do artigo, um exército de pintores, eletricistas, pedreiros e paisagistas aterraram na Villa Soleil e aí permaneceram, sem interrupções, até que o grandioso palácio à beira-mar se tornou novamente habitável. A natureza empreendedora da mão-de-obra provocou uma dose de ressentimento significativa entre os vizinhos, todos eles veteranos da construção na Provença. Até mesmo Jean-Luc Martel, que vivia numa grandiosa villa no lado oposto da baía, ficou impressionado com a velocidade com que o projeto foi terminado. Gabriel e a equipa sabiam disso pois, com a ajuda da poderosa NSA americana, estavam agora a par de todas as comunicações privadas de Martel, incluindo o e-mail que enviou ao seu empreiteiro, indagando por que motivo a renovação da sua casa de apoio à piscina estava dois meses atrasada em relação ao previsto. Se as obras não estiverem concluídas até ao final de abril, escreveu, despeço-o e contrato a empresa que tratou da antiga casa do Ivan.

A decoração interior da Villa Soleil foi realizada no mesmo ritmo célere tão pouco habitual na Provença, supervisionada por uma das mais proeminentes empresas da Côte d’Azur. Houve apenas um atraso: dois sofás a condizer, encomendados da loja de design de Olivia Watson em Saint-Tropez. Devido a um erro administrativo menor (na verdade, absolutamente intencional), o nome do proprietário da villa apareceu na nota de encomenda. Olivia Watson partilhou o nome com Martel, que, por sua vez, o deu a um colunista do Nice-Matin que escrevera favoravelmente sobre ele no passado. Gabriel e a sua equipa souberam disso porque a poderosa NSA americana assim o assegurava.

Assim sendo, faltavam apenas os quadros, os quadros adquiridos sob o olhar impecável de Julian Isherwood e armazenados num cofre do Freeport de Genebra. Em meados de maio, foram transportados para a Provença numa caravana de furgões, vigiada por agentes de uma empresa de segurança privada e vários agentes de uma unidade secreta da DGSI conhecida como Grupo Alpha. Isherwood supervisionou a sua fixação nas paredes, com o auxílio da esposa francesa do proprietário. Depois, voaram para Paris, onde o proprietário em pessoa estava hospedado na sua suíte habitual no Crillon. Nessa noite, jantaram no próspero restaurante novo de Martel, no Boulevard Saint-Germain, acompanhados por um homem de aspeto resiliente, que falava francês com um acentuado sotaque corso. Martel também estava lá, juntamente com a glamorosa namorada inglesa. Gabriel e a equipa não foram surpreendidos pela presença da sua presa; souberam dos planos de Martel com vários dias de antecedência e reservaram uma mesa para quatro em nome de Dmitri Antonov. Poucos minutos depois da chegada do grupo do jantar, surgiu na mesa uma garrafa de champanhe, juntamente com um bilhete manuscrito. O champanhe era um Dom Pérignon de 1998, o bilhete era de Jean-Luc Martel. «Bem-vindo à vizinhança. Vemo-nos em Saint Tropez...». Era, globalmente, um início promissor.


27

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— Acho que vou à vila daqui a pouco.

— Fazer o quê?

— É dia de mercado. Sabes como eu adoro o mercado.

— Ah, sim, fantástico.

— Podes vir comigo?

— Infelizmente, não posso. Tenho umas chamadas para fazer.

— Tudo bem.

Tinham transcorrido dez dias desde que Mikhail e Natalie (também conhecidos como Dmitri e Sophie Antonov) se tinham instalado na sua nova casa na Baie de Cavalaire, e já parecia que estavam aborrecidos. Não era aborrecimento operacional, era de natureza conjugal. Gabriel determinara que os Antonovs não seriam uma união inteiramente feliz. Poucos casamentos eram perfeitos, argumentou, e um casamento entre um criminoso russo e uma francesa de proveniência duvidosa não seria isento dos seus maus momentos. Também decretara que deveriam manter as suas identidades falsas permanentemente, mesmo quando estivessem seguros atrás das paredes de três metros e meio da Villa Soleil. Tal explicava a frígida troca verbal ao pequeno-almoço. Foi realizada em inglês, visto que o francês de Dmitri Antonov era atroz e o russo da sua esposa inexistente. Os empregados da casa, todos agentes do Grupo Alpha de Paul Rousseau, dirigiam-se apenas à Madame Sophie. Em geral, evitavam o Monsieur Antonov. Achavam-no rude e grosseiro, e ele considerava-os, com alguma razão, os piores empregados domésticos de toda a Provença. Gabriel partilhava a sua opinião. Em privado, instara Rousseau a pô-los rapidamente em sentido. Caso contrário, arriscavam-se a afundar toda a operação.

Mikhail e Natalie estavam sentados, como personagens de um filme, numa mesa do vasto terraço rodeado por colunas com vista para a piscina. Era onde tinham tomado o pequeno-almoço em cada uma das nove manhãs anteriores, pois o Monsieur Antonov preferia aquele local sobre todos os outros. Ele começara o dia com uns vigorosos trinta minutos de natação na piscina. Agora envergava um roupão de banho branco impoluto contra a pele pálida. O olhar de Natalie foi atraído pelo riacho de água que escorria pelo leito esculpido dos seus músculos abdominais na direção da cintura dos calções de banho. Rapidamente, desviou o olhar. A Madame Sophie, recordou a si própria, estava irritada com o Monsieur Antonov. Ele não conseguiria voltar a cair nas suas boas graças simplesmente com uma demonstração insignificante de beleza física.

Ela serviu uma chávena de café forte simples do bule de prata e acrescentou uma medida generosa de leite evaporado. Ao fazê-lo, parecia inegavelmente francesa. Em seguida, puxou um Gitane do maço e acendeu-o. Os cigarros, tal como o seu comportamento indelicado, serviam unicamente o seu disfarce. Como médica, vira em primeira mão os efeitos terríveis do tabaco no corpo humano e era uma não-fumadora convicta. A primeira inalação arranhou-lhe a parte de trás da garganta, mas, com um gole de café, conseguiu reprimir a vontade de tossir. O café era quase perfeito; só no sul de França, pensou, tinha tal sabor. A manhã estava limpa e agradável, com um vento suave a circular na fila de ciprestes que marcava a fronteira entre a Villa Soleil e o vizinho. Uma ondulação salpicava a Baie de Cavalaire e, do outro lado, Natalie conseguia distinguir as linhas ténues da villa pertencente a Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos.

— Croissant? — perguntou ela.

— Desculpa? — Mikhail estava a ler qualquer coisa num tablet com grande intensidade e não se podia dar ao trabalho de erguer o olhar para que se encontrasse com o dela.

— Perguntei se querias outro croissant.

— Não.

— Então e o almoço?

— Agora?

— Em Saint-Tropez. Podes encontrar-te comigo lá.

— Vou tentar. A que horas?

— À hora do almoço, querido. À hora a que as pessoas normalmente almoçam.

Ele deslizou um dedo indicador pela superfície do tablet, mas não disse nada. Natalie apagou o cigarro e, comportando-se como Sophie Antonov, levantou-se abruptamente. Depois, inclinou-se para baixo e aproximou a boca do ouvido de Mikhail.

— Pareces estar a gostar demasiado disto — sussurrou em hebreu. — Se fosse a ti, não me habituava muito.

Entrou na villa e caminhou lentamente, com os pés descalços, pelas suas inúmeras divisões cavernosas, até chegar à base da imponente escadaria principal. Os seus aposentos, pensou, eram bem melhores do que os que tivera de suportar na primeira operação: o apartamento pardacento no banlieue parisiense de Aubervilliers, o quartinho esquálido num dormitório do ISIS em Raqqa, o campo de treino no deserto nos arredores de Palmira, o quarto na casa de Mossul onde cuidara de Saladino até que estivesse curado.

Tu és o meu Maimónides...

No quarto, os lençóis de cetim continuavam desordenados. Evidentemente, as criadas do Grupo Alpha não tinham encontrado tempo na sua atarefada agenda para arrumar o quarto. Natalie esboçou um sorriso culpado. Essa era a única divisão da casa onde ela e Mikhail não faziam qualquer tentativa de ocultar os seus verdadeiros sentimentos um pelo outro. Em rigor, as suas ações na noite anterior tinham sido uma violação do regulamento do Departamento, que proibia relações íntimas entre agentes no terreno. Era, celebremente, umas das regras menos cumpridas em todo o serviço. De facto, sabia-se que o atual chefe e a sua esposa tinham desrespeitado a regra em inúmeras ocasiões. Para além disso, pensou Natalie enquanto alisava os lençóis, fazerem amor servia o disfarce. Nem mesmo cônjuges desavindos eram imunes à obscura atração do desejo.

O closet estava a transbordar de roupa, sapatos e acessórios de marca, tudo pago pelo sanguinário governante da Síria. Só o melhor para a Madame Sophie. De uma gaveta, retirou um par de leggings de licra e um sutiã de desporto. Os seus ténis Nike estavam na prateleira dos sapatos, junto a um par de sapatos de salto alto Bruno Magli. Vestida, caminhou por um corredor fresco de mármore até à sala de fitness e subiu para a passadeira. Odiava correr dentro de casa, mas não tinha outra opção. A Madame Sophie não estava autorizada a correr no exterior. A Madame Sophie tinha problemas de segurança. Natalie Mizrahi também os tinha.

Colocou uns auscultadores nos ouvidos e começou com uma corrida fácil, mas foi aumentando a velocidade da passadeira a cada quilómetro, até estar a correr velozmente, em ritmo apressado. A sua respiração manteve-se controlada e estável; as muitas semanas que passara na quinta em Nahalal tinham-na deixado no auge da sua forma física. Terminou com uma corrida final a alta velocidade e passou trinta minutos a levantar pesos antes de regressar ao quarto para tomar um duche e vestir-se. Calças capri brancas, um pulôver de malha elástica e corte justo que lhe favorecia os seios e a cintura esguia, sandálias rasas douradas. De pé diante do espelho, pensou na última operação, no hijab e nas roupas pias da Dra. Leila Hadawi. Leila, pensou ela, não teria aprovado Sophie Antonov. Nisso, Natalie e ela estavam completamente de acordo.

Saiu para a varanda e espreitou para baixo, na direção do terraço onde Mikhail estava esticado numa chaise longue, expondo a sua pele incolor aos raios de sol matinal. Em dez dias, a sua palidez não se alterara. Parecia ser incapaz de se bronzear.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — gritou ela para baixo.

— Estou ocupado.

Natalie deixou cair o telemóvel do Departamento na sua mala de senhora e encaminhou-se para o andar de baixo, rumo ao pátio, onde a limusina Maybach de Antonov aguardava junto à fonte salpicante, com um motorista do Grupo Alpha ao volante. No banco de trás, havia um segundo agente do Grupo Alpha. O seu nome era Roland Girard. Durante a primeira operação, desempenhara a função de diretor da pequena clínica em Aubervilliers onde a Dra. Leila Hadawi exercera medicina. Agora, era o guarda-costas favorito da Madame Sophie. Havia rumores de que mantinham um caso tórrido, rumores que tinham chegado aos ouvidos do Monsieur Antonov. Este tentara despedir o guarda-costas várias vezes, mas a Madame Sophie nem sequer queria ouvir falar dessa possibilidade. Enquanto a Maybach atravessava lentamente o imponente portão de segurança, acendeu outro Gitane e fitou o exterior da janela, mal-humorada. Desta vez, não conseguiu reprimir a vontade de tossir.

— Sabias — disse Girard — que não tens de fumar essas coisas deploráveis quando estamos só os dois?

— É a única forma de me habituar a eles.

— Quais são os teus planos?

— O mercado.

— E depois?

— Tinha esperança de almoçar com o meu marido, mas parece que ele não pode ser incomodado.

Girard sorriu, mas não disse nada. Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie tocou com uma mensagem recebida. Depois de a ler, voltou a meter o aparelho na mala e, tossindo, fumou o que restava do Gitane. Estava quase na hora de a Madame Sophie conhecer a Madame Olivia. Tinha de praticar.


28

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Enquanto passavam pela saída para a Plage de Pampelonne, Natalie foi inundada por memórias. Dessa vez, não eram as memórias de Leila, eram as suas. Uma manhã perfeita no final de agosto. Natalie e os pais fizeram a difícil viagem de carro de Marselha até Saint-Tropez porque nenhuma outra praia em França (nem no mundo, já agora) se compara àquela. Corria o ano de 2011. Natalie terminou a sua formação médica e embarcou no que promete ser uma carreira bem-sucedida no sistema de saúde público francês. É uma cidadã francesa modelo; não consegue imaginar-se a viver em nenhum outro lugar. Mas a França está a mudar vertiginosamente. Já não é um lugar onde seja seguro ser-se judeu. Cada dia, aparentemente, traz consigo notícias de mais um horror. Outra criança que espancaram ou em quem cuspiram, outra montra de loja que partiram, outra sinagoga que pintaram com graffiti, outra lápide que derrubaram. E, portanto, naquele dia do final de agosto, na praia de Pampelonne, Natalie e os pais fazem os possíveis para ocultar o facto de serem judeus. Não conseguem, e o dia não decorre sem olhares desdenhosos e um insulto murmurado pelo empregado de mesa que, de má vontade, lhes serve o almoço. Durante a viagem de regresso a Marselha, os pais de Natalie tomam uma decisão que mudará os seus destinos. Abandonarão França e estabelecer-se-ão em Israel. Pedem a Natalie, a sua única filha, que se junte a eles. Ela aceita, sem hesitar. E agora, pensava, fitando o exterior através dos vidros fumados da limusina Maybach, estava de volta.

Para lá das praias havia vinhedos recentemente plantados e minúsculas villas sombreadas por ciprestes e pinheiros mansos. No entanto, assim que alcançaram os limites exteriores de Saint-Tropez as villas passaram a estar escondidas por muros altos cobertos por trepadeiras floridas. Essas eram as casas dos meramente ricos, não dos milionários como Dmitri Antonov ou Ivan Kharkov antes dele. Quando era criança, Natalie sonhara com viver numa casa grandiosa rodeada de muros. Gabriel concedera-lhe o desejo. Gabriel, não, pensou subitamente. Fora Saladino.

O motorista conduziu suavemente a Mayback para a Avenue Foch e seguiu por esta até ao centre ville. Era apenas junho, ainda não o pico do verão, portanto as multidões eram toleráveis, até mesmo na Place des Lices, onde se situava o fervilhante mercado ao ar livre de Saint-Tropez. Enquanto Natalie abria lentamente caminho por entre as banquinhas, sentiu uma avassaladora sensação de perda. Este era o seu país, pensou, e, contudo, a sua família fora obrigada a abandoná-lo devido ao mais antigo dos ódios. A presença de Roland Girard centrou a sua atenção na tarefa que tinha em mãos. Não caminhava ao seu lado, mas atrás de si. Não havia forma de o confundirem com um marido. Estava ali por uma única e exclusiva razão: para proteger a Madame Sophie Antonov, a nova residente do célebre palácio na Baie de Cavalaire.

Subitamente, ouviu alguém chamar o seu nome de um café no Boulevard Vasserot.

— Madame Sophie, Madame Sophie! Sou eu, o Nicolas. Aqui, Madame Sophie. — Ela ergueu o olhar e viu Christopher Keller a acenar-lhe de uma mesa no Le Clemenceau. A sorrir, atravessou a rua, com Roland Girard um passo atrás dela. Keller levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. Quando Natalie se sentou, Roland Girard regressou à Place des Lices e ficou, de pé, sob a sombra sarapintada de um plátano.

— Que agradável surpresa — disse Keller quando ficaram sozinhos.

— Sim, é verdade. — O tom de Natalie foi frio. Era a voz que a Madame Sophie utilizava quando se dirigia aos homens que trabalhavam para o seu marido. — O que te traz por cá?

— Vim tratar de um recado. E a senhora?

— Fazer umas compras. — Olhou de relance em redor do mercado. — Há alguém a ver-nos?

— Claro, Madame Sophie. Os senhores causaram uma agitação e tanto.

— Era esse o objetivo, não era?

Keller estava a beber Campari.

— Teve oportunidade de visitar alguma das galerias de arte? — perguntou ele.

— Ainda não.

— Há uma bastante boa perto do Porto Velho. Teria todo o gosto em mostrar-lha. É uma caminhada de cinco minutos, no máximo.

— A proprietária vai lá estar?

— Diria que sim, com certeza.

— Como é que o nosso amigo quer que eu me comporte?

— Parece pensar que se justificaria uma boa humilhação.

Natalie sorriu.

— Acho que a Madame Sophie consegue fazer isso bastante bem.

 

Caminharam na direção do Porto Velho, para lá do desfile de lojas que ladeavam a Rue Gambetta. Keller envergava calças brancas, mocassins pretos e um pulôver justo igualmente preto. Com o seu bronzeado escuro e gel no cabelo, tinha uma aparência absolutamente duvidosa. Natalie, desempenhando o papel de Madame Sophie, fingia um intenso e profundo tédio. Deambulou por várias montras de lojas, incluindo a de uma boutique que exibia o nome de Olivia Watson. Roland Girard, o seu falso guarda-costas, manteve-se vigilantemente junto dela.

— O que é que achas daquele? — perguntou, apontando na direção de um vestido fino que pendia de um manequim sem cabeça como um négligé. — Achas que o Dmitri repararia em mim se usasse aquilo? Ou então aquele? Aquele talvez conseguisse chamar a atenção dele.

Recebida por um silêncio profissional, continuou a caminhar, balouçando a sua mala de senhora como uma menina mimada. Yossi Gavish e Rimona Stern vinham pela rua estreita na direção deles, de mãos dadas, rindo-se de uma piada privada. Dina Sarid estava a examinar um par de sandálias na montra da Minelli e, um pouco mais ao fundo da rua, Natalie identificou Eli Lavon a entrar apressado numa farmácia, com a urgência de um homem cujas entranhas estão em estado de rebelião.

Finalmente, chegaram à Place de l’Ormeau. Não era um verdadeiro quadrado, como a Place des Lices, mas um minúsculo triângulo no cruzamento de três ruas. No centro, havia um fontanário antigo, sombreado por uma única árvore. Num dos lados havia uma loja de vestidos, no outro um café. E, junto do café, ficava o elegante edifício de quatro andares (grande para os cânones de Saint-Tropez, cinzento-pálido em vez de castanho-claro) ocupado pela Galerie Olivia Watson.

A pesada porta de madeira estava fechada e trancada. Ao lado, havia uma placa de bronze que declarava, em francês e inglês, que o visionamento do inventário da galeria se fazia unicamente por marcação. Na montra, havia três quadros em exposição: um Lichtenstein, um Basquiat e um trabalho do pintor e escultor francês Jean Dubuffet. Natalie aproximou-se para observar mais de perto o Basquiat, enquanto Keller examinava o telemóvel. Depois de um momento, apercebeu-se de uma presença nas suas costas. O aroma intoxicante a lilás tornou claro que não se tratava de Roland Girard.

— É lindo, não é? — perguntou uma voz feminina em francês.

— O Basquiat?

— Sim.

— Na verdade — disse Natalie para o vidro —, prefiro o Dubuffet.

— Tem bom gosto.

Natalie virou-se lentamente e avaliou a quarta obra de arte que se erguia a alguns centímetros de distância, na Place de l’Ormeau. Era espantosamente alta, tão alta, na verdade, que Natalie teve de levantar o olhar para encontrar o dela. Não era bonita, era profissionalmente bonita. Até àquele momento, Natalie nunca se apercebera de que havia uma diferença.

— Gostaria de o ver mais de perto? — perguntou a mulher.

— Desculpe?

— O Dubuffet. Tenho alguns minutos antes da minha próxima marcação. — Sorriu e esticou uma mão. — Desculpe, devia ter-me apresentado. O meu nome é Olivia. Olivia Watson — acrescentou. — Esta é a minha galeria.

Natalie aceitou a mão estendida. Era invulgarmente longa, tal como o braço nu, suave e dourado, ao qual estava unida. Olhos azuis luminosos fitavam-na a partir de um rosto tão perfeito que quase parecia irreal. Ostentava nele uma expressão de moderada curiosidade.

— É a Sophie Antonov, não é?

— Já nos conhecemos?

— Não. Mas Saint-Tropez é uma cidade pequena.

— Muito pequena — disse Natalie friamente.

— Vivemos do outro lado da baía onde vive com o seu marido — explicou Olivia Watson. — Na verdade, conseguimos ver a vossa villa da nossa. Talvez gostassem de nos vir visitar, um destes dias.

— Receio que o meu marido esteja extremamente ocupado.

— Parece o Jean-Luc.

— O Jean-Luc é o seu marido?

— Parceiro — disse Olivia Watson. — O nome dele é Jean-Luc Martel. Talvez tenha ouvido falar dele. A Sophie e o seu marido jantaram na nossa nova brasserie em Paris, há duas semanas. Ele enviou-vos uma garrafa de champanhe. — Olhou de soslaio para Keller, que parecia estar absorto nalguma coisa que estava a ler no telemóvel. — Ele também estava lá.

— Trabalha para o meu marido.

— E aquele? — Olivia Watson apontou na direção de Roland Girard com a cabeça.

— Trabalha para mim.

Os olhos luminosos fixaram-se novamente em Natalie, que estudara centenas de fotografias de Olivia Watson como preparação para o primeiro encontro, mas, mesmo assim, o impacto da sua beleza continuava a ser absolutamente surpreendente. Agora, estava a sorrir ligeiramente. Era um sorriso astuto, sedutor, superior. Tinha perfeita consciência do efeito que a sua aparência tinha sobre as outras mulheres.

— O seu marido é colecionador de arte — disse ela.

— O meu marido é um empresário que aprecia arte — disse Natalie cautelosamente.

— Talvez ele gostasse de visitar a galeria.

— O meu marido prefere quadros de Grandes Mestres a trabalhos contemporâneos.

— Sim, eu sei. Causou uma verdadeira sensação em Londres e Nova Iorque, nesta primavera. — Mergulhou a mão na sua mala de senhora e retirou um cartão-de-visita, que ofereceu a Natalie. — O meu número privado está no verso. Tenho algumas peças especiais que creio que poderiam interessar ao seu marido. E, por favor, venham almoçar à nossa villa este fim de semana. O Jean-Luc está ansioso por conhecê-los a ambos.

— Eu e o meu marido temos outros planos para este fim de semana — disse Natalie bruscamente. — Tenha um bom dia, Madame Wilson. Foi um prazer conhecê-la.

— Watson — gritou ela, enquanto Natalie se afastava. — O meu nome é Olivia Watson.

Ainda estava a segurar o cartão-de-visita entre o polegar e o indicador. Keller aproximou-se e puxou-lho da mão.

— Por vezes, a Madame Sophie é um pouco temperamental. Não se preocupe. Vou ter uma conversa com o patrão em seu nome. — Ofereceu a sua mão. — O meu nome é Nicolas, já agora. Nicolas Carnot.

 

Keller caminhou com Natalie e Roland Girard no regresso à Place des Lices e acompanhou-os enquanto aguardavam a Maybach, que alguns segundos mais tarde abandonou o centre ville qual borrão negro, observada de forma igualmente invejosa por turistas e residentes locais. Sozinho, Keller cortou através das banquinhas do mercado até ao outro lado da praça e subiu para a mota Peugeot Satelis que ali deixara. Dirigiu-se para oeste ao longo da extremidade do golfo de Saint-Tropez, depois para sul para as montanhas do Var, até chegar à povoação de Ramatuelle. Não era muito diferente da aldeia dos Orsati na Córsega Central, um aglomerado de casas de cor parda com telhados vermelhos, empoleirada defensivamente no topo de uma montanha. Havia villas maiores escondidas nas planícies arborizadas em baixo. Uma delas chamava-se La Pastorale. Keller assegurou-se de que não estava a ser seguido antes de se apresentar no portão de segurança de ferro. Estava pintado de verde e tinha uma aparência bastante temível. Premiu o botão do intercomunicador com o polegar e depois virou-se para ver um camião de entregas passar na estrada.

— Oui? — disse uma fina voz metálica passado um momento.

— C’est moi — disse Keller. — Abre a merda do portão.

O caminho de acesso à casa era longo e sinuoso e ensombrado por pinheiros e choupos. Terminava no pátio de gravilha de uma enorme villa de pedra com portadas amarelas. Keller encaminhou-se para a sala de estar, que fora transformada num centro de operações temporário. Gabriel e Paul Rousseau estavam curvados sobre um computador portátil. Rousseau reconheceu a chegada de Keller com um aceno cuidadoso de cabeça (continuava profundamente desconfiado desse talentoso agente do MI6 que falava francês como um corso e estava à vontade na presença de criminosos), mas Gabriel tinha um sorriso rasgado.

— Bem jogado, Monsieur Carnot. Levar o cartão-de-visita foi um belo detalhe.

— As primeiras impressões são importantes.

— Efetivamente, são. Ouve isto.

Gabriel bateu suavemente no teclado do computador portátil e, alguns segundos depois, ouviu-se a voz de uma mulher enraivecida a gritar em francês. Era fluente e obsceno, mas marcado por um inconfundível sotaque inglês.

— Com quem é que ela está a falar?

— Com o Jean-Luc Martel, claro.

— Como é que ele reagiu?

— Vais ouvir daqui a um minuto.

Keller encolheu-se, enquanto a voz de Martel ribombava a partir das colunas.

— Claramente — disse Gabriel —, não está habituado a que as pessoas lhe digam que não.

— Qual é a tua próxima jogada?

— Outra humilhação. Várias, na verdade.

As colunas silenciaram-se depois de Olivia Watson terminar a chamada com uma enxurrada final de obscenidades aos gritos. Keller caminhou até um conjunto de monitores de vídeo e observou uma limusina Maybach a virar para uma villa palaciana à beira-mar. Uma mulher saiu e abriu caminho por entre divisões cavernosas de onde pendiam quadros de Grandes Mestres até um terraço com vista para uma piscina do tamanho de uma lagoa. Aí, dormitava um homem com a pele pálida a ruborizar-se debaixo da implacável ofensiva do sol. A mulher disse-lhe algo diretamente ao ouvido que os microfones não conseguiram captar e conduziu-o até ao andar de cima, para um quarto onde não havia câmaras. Keller sorriu, enquanto a porta se fechava. Afinal, talvez houvesse esperança para a Madame Sophie e o Monsieur Antonov.


29

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Não era verdade que Madame Sophie e Monsieur Antonov tivessem planos para esse fim de semana. Mas, de alguma fora, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. Efetivamente, mal o sol se tinha posto, numa tarde perfeita de sexta-feira, uma fileira de faróis de carros qual colar de diamantes estendeu-se ao longo da faixa costeira da Baie de Cavalaire, na direção dos portões da Villa Soleil, que brilhava e cintilava e pulsava ao ritmo de música tão alta que era possível ouvi-la do outro lado da água, que era o que se pretendia. Os convidados vieram de todo o mundo. Havia atores e escritores e aristocratas em declínio e ladrões. Havia o filho de um fabricante de automóveis italiano que chegou entre um cardume de mulheres seminuas e uma estrela pop que não tivera um álbum de sucesso desde que a música se tornara digital. Metade do mundo artístico londrino estava lá, juntamente com um contingente de Nova Iorque que, diziam os rumores, tinha atravessado o Atlântico num voo privado pago pelo anfitrião. E havia muitos outros que mais tarde admitiriam não terem recebido qualquer convite. Essas almas menores tinham ouvido falar do assunto através dos canais habituais (a fábrica de boatos da Riviera, as redes sociais) e tinham-se dirigido avidamente para a porta banhada a ouro do Monsieur Antonov.

Se ele esteve realmente presente nessa noite, não se viu rasto dele. De facto, nem um único convidado conseguiria oferecer provas fiáveis, em primeira-mão, de o ter visto. Nem mesmo Julian Isherwood, o seu consultor artístico, foi capaz de explicar o seu paradeiro. Isherwood realizou uma visita privada à impressionante coleção de quadros de Grandes Mestres da villa para o punhado de convidados que mostrou algum interesse em vê-la. Depois, tal como toda a gente, ficou podre de bêbado. À meia-noite, o buffet tinha sido devorado e havia mulheres a nadar nuas nas piscinas e nas fontes. Houve um combate com socos, a realização muito pública de um ato sexual e a ameaça de um processo judicial. Rivalidades antigas atearam-se, casamentos colapsaram e muitos automóveis de luxo sofreram danos. Toda a gente concordou que a diversão fora de arromba.

Mas a festa não terminou nessa noite, entrou meramente numa breve remissão. Ao final da manhã, os carros entupiram mais uma vez as estradas, e uma frota de iates brancos a motor ancoraram nas águas junto à doca da Villa Soleil, servidos pela lancha do Monsieur Antonov que levou os convidados até à margem. As festividades da segunda noite foram piores do que as da primeira, pelo facto de a maioria dos convidados ter chegado embriagada ou ainda estar embriagada da noite anterior. A vasta equipa de seguranças do Monsieur Antonov vigiou cuidadosamente os quadros, e diversos convidados mais indisciplinados foram expulsos do local com silenciosa eficiência. Ainda assim, não houve nenhum que, efetivamente, tivesse dado um aperto de mão ao anfitrião ou lhe tivesse sequer posto a vista em cima. Oh, houve a divorciada americana de meia-idade e pele curtida que alegou tê-lo visto a observar a festa, ao estilo de Gatsby, do terraço privado nos aposentos superiores do seu palácio, mas estava bastante inebriada na altura e o seu relato foi completamente ignorado. Humilhada, fez uma tentativa desajeitada de seduzir um jovem e bonito piloto de fórmula um, mas teve de se consolar com a companhia de Oliver Dimbleby. Foram vistos pela última vez a cambalear para o interior da noite, com a mão de Oliver no seu rabo.

Houve um brunch com champanhe no domingo, depois do qual os últimos convidados dispersaram. Os feridos que ainda caminhavam dirigiram-se para a porta pelo próprio pé; os comatosos e sem reação partiram por outros meios. Então, um exército de trabalhadores chegou e eliminou todas as provas da destruição do fim de semana. E, na segunda de manhã, o Monsieur Antonov e a Madame Sophie estavam no seu lugar habitual do terraço com vista para a piscina, o Monsieur Antonov perdido no seu tablet, a Madame Sophie nos seus pensamentos. Ao meio-dia, ela foi até à vila, acompanhada por Roland Girard, e almoçou com o Monsieur Carnot num restaurante do Porto Velho que era propriedade de Jean-Luc Martel. Olivia Watson almoçou com uma amiga, uma mulher quase tão bela quanto ela, a algumas mesas de distância. Ao sair, passou pela mesa da Madame Sophie sem uma palavra ou um olhar de soslaio, embora o Monsieur Carnot estivesse bastante certo de que ouvira acidentalmente uma obscenidade anatómica que nem ele, um homem de reputação duvidosa, alguma vez se atrevera a proferir.

Houve outra festa no fim de semana seguinte, mais pequena, mas não menos perversa, e uma farra na semana seguinte que bateu o recorde de queixas aos gendarmes na Côte d’Azur. Nesse ponto, os Antonovs decretaram um cessar-fogo e a vida na Baie de Cavalaire voltou a algo parecido com o normal. Durante a maior parte do tempo, permaneciam prisioneiros da Villa Soleil, embora, várias vezes por semana, a Madame Sophie, depois da sua corrida matinal na passadeira, viajasse até Saint-Tropez na sua limusina Maybach para fazer compras ou almoçar. Normalmente, comia com Roland Girard ou com o Monsieur Carnot, embora em duas ocasiões tivesse sido vista com um inglês alto e bronzeado que arranjara uma villa para passar o verão perto da povoação de montanha de Ramatuelle. Tinha uma esposa curvilínea e sarcástica que Madame Sophie adorava.

A villa não albergava unicamente o casal. Havia uma mulher pequena de cabelo escuro que se deslocava com um ligeiro coxear e exibia o comportamento de uma viuvez recente. E um homem esquivo, no final da sua meia-idade, que parecia nunca vestir a mesma roupa duas vezes. E um sujeito com aspeto severo e rosto bexigoso que aparentava estar sempre a ponderar um ato de violência. E um francês de porte professoral que empestava as divisões da villa com o seu omnipresente cachimbo. E um homem com as têmporas grisalhas e olhos verdes que implorava constantemente ao francês que encontrasse outro vício, um que não colocasse em perigo a saúde daqueles que o rodeavam.

Os residentes da villa não davam quaisquer mostras de se dedicarem à recreação ou ao lazer; tinham vindo para a Provença tratar de um assunto de extrema seriedade. O francês professoral e o homem de olhos verdes eram, aparentemente, parceiros em pé de igualdade, mas, na prática, o francês aceitava as decisões do colega em quase todas as matérias. Ambos os homens passavam uma quantidade significativa de tempo fora da villa. O francês, por exemplo, deslocava-se constantemente entre a Provença e Paris, enquanto o homem de olhos verdes fazia várias viagens clandestinas até Telavive. Também viajou para Londres, onde negociou os termos da nova fase do seu projeto, e para Washington, onde foi repreendido pelo seu ritmo lento. Foi indulgente com a disposição desagradável do seu parceiro americano. Os americanos tinham-se habituado a resolver os problemas com o premir de um botão. Paciência não era uma virtude americana.

Mas o homem de olhos verdes era a encarnação da paciência, principalmente quando estava na villa de Ramatuelle. As travessuras do Monsieur Antonov e da Madame Sophie interessavam-lhe pouco. A sua obsessão era a bela inglesa que detinha a galeria de arte na Place de l’Ormeau. Com a assistência dos outros residentes da villa, observava-a dia e noite. E, com o auxílio do seu amigo na América, ouvia todas as suas chamadas e lia todas as suas mensagens e e-mails.

Ela abominava o novo casal ruidoso que vivia no lado oposto da Baie de Cavalaire (isso era evidente), mas, apesar disso, eles intrigavam-na. Interrogava-se, sobretudo, por que motivo todas as celebridades menores do sul de França tinham sido convidadas para a villa dos Antonov, mas ela fora excluída. O seu «não-exatamente» marido tinha pensamentos semelhantes. Afinal de contas, ele próprio era uma celebridade. Uma verdadeira celebridade, não um desses farsantes pretensiosos que tinham aberto caminho a rastejar até ao interior da duvidosa órbita de Antonov. Pouco tempo depois, estava a fazer as suas próprias investigações sobre o novo vizinho e a fonte do seu considerável rendimento. Quanto mais ouvia, mais se convencia de que Monsieur Dmitri Antonov era uma alma gémea. Instruiu a sua «não-exatamente esposa» a fazer um novo convite. Ela respondeu que mais depressa cortaria os pulsos do que passaria outro minuto na companhia daquela criatura mimada do outro lado da baía, ou algo nesse sentido.

E, portanto, o homem de olhos verdes esperou pelo momento certo. Observou todos os seus movimentos e ouviu todas as suas palavras e leu todas as suas missivas eletrónicas. E interrogou-se se ela seria merecedora da sua obsessão. Será que era a rapariga dos seus sonhos ou partir-lhe-ia o seu coração de espião? Render-se-ia a ele, ou seria necessário o uso da força? Se isso acontecesse, ele tinha força em abundância. Nomeadamente, os quarenta e oito quadros que encontrara no Freeport de Genebra. Esperava não ter de chegar a isso. Pensava nela como um quadro a precisar desesperadamente de um restauro. Ele oferecer-lhe-ia os seus serviços. E, se ela fosse suficientemente insensata para recusar, era possível que as coisas se tornassem desagradáveis.

Na segunda semana de julho, já vira e ouvira o suficiente. Aproximava-se o Dia da Bastilha, após o qual principiaria a reta final da temporada de verão. Mas, como superar a divisória que ele próprio criara? Decidiu que só um convite formal o conseguiria fazer. Ele próprio o escreveu, com uma mão tão precisa que parecia ter sido escrito por uma impressora a laser, e deu-o ao Monsieur Carnot para que o entregasse na galeria da Place de l’Ormeau. Ele assim fez, às onze e um quarto de uma manhã perfeita na Provença, e ao meio-dia da manhã seguinte tinham recebido a resposta que esperavam. Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, iria à Villa Soleil almoçar. E Olivia Watson, a rapariga dos sonhos de Gabriel, iria com ele.


30

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— O que é que achas, querida? Com arma ou sem arma?

Mikhail estava a admirar-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir. Envergava um fato escuro de linho (demasiado escuro para a ocasião e para o tempo, que estava quente, até mesmo para os padrões da Côte d’Azur) e uma camisa branca impoluta, desabotoada até ao esterno. Só os sapatos, um par de mocassins de mil e quinhentos euros, que usava sem meias, eram inteiramente apropriados. As fivelas de ouro condiziam com o relógio de ouro que repousava no seu pulso como um barómetro fora de lugar. Fora manufaturado para ele pelo seu homem em Genebra, uma pechincha de um milhão e meio.

— Sem arma — disse Natalie. — Pode passar a mensagem errada.

Estava de pé ao seu lado, com a imagem refletida no mesmo espelho. Envergava um vestido branco sem mangas e mais joias do que as necessárias para um almoço vespertino no jardim. A sua pele estava muito escura devido ao tempo excessivo passado ao sol. Pensou que não combinava bem com a cor do seu cabelo, que fora aclarado vários tons antes da sua partida de Telavive.

— Achas que alguma vez se tornaria aborrecido?

— O quê?

— Viver assim.

— Acho que depende da alternativa.

Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie vibrou.

— O que é?

— O Martel e a Olivia acabaram de sair da villa deles.

Mikhail franziu o sobrolho para o relógio de pulso.

— Já cá deviam estar há vinte minutos.

— Tempo JLM — disse Natalie.

O telemóvel vibrou uma segunda vez.

— O que foi agora?

— Dizem que fazemos um belo casal.

Natalie beijou a maçã do rosto de Mikhail e saiu. No andar de baixo, no terraço sombreado, um trio de empregados domésticos do Grupo Alpha estava a preparar uma mesa para o almoço com desmedido cuidado. Na extremidade oposta do terraço, Christopher Keller estava a beber rosé. Natalie puxou um Marlboro do maço dele e dirigiu-se a ele em francês.

— Não podes sequer fingir estar um bocadinho nervoso?

— Na verdade, estou ansioso por finalmente conhecê-lo. Aí vem ele.

Natalie olhou na direção do horizonte e viu dois Range Rover pretos a contornar a baía, um para Martel e Olivia, o outro para o seu destacamento de segurança.

— Guarda-costas para o almoço — disse ela com o desdém da Madame Sophie. — Que grosseiro. — Depois, acendeu o cigarro e fumou durante algum tempo sem tossir.

— Estás a ficar bastante boa nisso.

— É um hábito nojento.

— É melhor do que alguns. Na verdade, consigo lembrar-me de vários que são muito piores. — Keller observou os Range Rover que se aproximavam. — A senhora tem mesmo de descontrair, Madame Sophie. Afinal de contas, é uma festa.

— O Jean Luc-Martel e eu vimos da mesma parte de França. Tenho receio de que ele olhe para mim e veja uma rapariga judia de Marselha.

— Ele vai ver o que tu quiseres que ele veja. Para além disso — disse Keller —, se conseguiste convencer o Saladino de que eras palestiniana, consegues fazer seja o que for.

Natalie conteve a tosse e observou os criados do Grupo Alpha a colocar os retoques finais na mesa.

— Porquê velas? — murmurou ela. — Estamos perdidos.

 

Durante as horas finais de preparação para a reunião há muito aguardada entre Jean-Luc Martel e Monsieur Dmitri Antonov, houvera uma discussão invulgarmente acalorada entre Gabriel e Paul Rousseau sobre o que parecia ser um detalhe trivial. Especificamente, se o imponente portão da Villa Soleil deveria estar aberto para a chegada de Martel ou ser deixado fechado, colocando assim, diante dele, uma última barreira metafórica que superar. Rousseau fez pressão a favor de uma abordagem acolhedora: Martel, argumentou, já sofrera o suficiente. Mas Gabriel estava numa disposição menos indulgente e, após uma disputa de vários minutos, levou a melhor sobre Rousseau quanto a deixar o portão fechado.

— E façam-no tocar à campainha como toda a gente — disse Gabriel. — Para Dmitri Antonov, o Martel não passa de um ajudante de cozinha. É importante que o tratemos assim.

E foi assim que, vinte e nove minutos depois da uma da tarde, o motorista de Martel teve de premir o botão do intercomunicador não uma, mas duas vezes, antes de o portão da Villa Soleil finalmente se abrir com um inóspito rangido. Roland Girard, de fato e gravata escuros, assava lentamente no pátio abundantemente banhado pelo sol, com um intercomunicador no ouvido. Por conseguinte, foi o rosto de um agente do Grupo Alpha, não do seu anfitrião, que Martel viu quando saiu das traseiras do seu veículo, vestido com um fato de popelina branco como um bolo de casamento e com a juba de cabelo, que era a sua marca registada, a revolver-se nos remoinhos de vento quente que rodopiavam e morriam em redor das águas dançantes da fonte. Seis câmaras gravaram a sua chegada, e o transmissor usado por Roland Girard captou um intercâmbio tenso relativamente ao destino dos seus guarda-costas. Aparentemente, Martel queria que o acompanhassem até ao interior da villa, um pedido que Girard, educada, mas firmemente, recusou. Enfurecido, Martel afastou-se e atravessou o pátio com uma celeridade predatória, com um trejeito semelhante ao de um gangster empreendedor, um rufia estrela de rock. Olivia era, nessa altura, uma consideração secundária. Seguiu-o, alguns passos atrás, como se já estivesse a preparar as desculpas pelo seu comportamento.

Nessa altura, os Antonovs estavam de pé à sombra do pórtico, como se estivessem a posar para uma fotografia, o que efetivamente era o caso. As saudações fizeram-se com base no género. A Madame Sophie deu as boas-vindas a Olivia Watson como se o frígido encontro à porta da galeria nunca tivesse ocorrido, enquanto Martel e Dmitri Antonov apertaram as mãos como adversários que se preparavam para se derrotarem um ao outro no campo de jogo. Com um sorriso contido, Martel disse que ouvira falar muito do Monsieur Antonov e que estava satisfeito por finalmente o conhecer. Fê-lo em inglês, o que sugeria que tinha conhecimento de que o Monsieur Antonov não falava francês.

— A sua villa é verdadeiramente magnífica. Mas tenho a certeza de que conhece a história dela.

— Disseram-me que, em tempos, foi propriedade de um membro da família real britânica.

— Estava a referir-me ao Ivan Kharkov.

— Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais concordei em retirá-la das mãos do governo francês.

— Conhecia o Monsieur Kharkov?

— Receio que o Ivan e eu nos movêssemos em círculos bastante diferentes.

— Eu conhecia-o bastante bem — vangloriou-se Martel, enquanto atravessava o hall principal da villa ao lado do seu anfitrião, seguido pela Madame Sophie e Olivia e observado pelos olhos imperturbáveis das câmaras de vigilância. — Recebi os Kharkovs muitas vezes nos meus restaurantes em Saint-Tropez e Paris. A forma como morreu foi terrível.

— Os israelitas estiveram por trás disso. Pelo menos, foi esse o rumor.

— Foi mais do que um simples rumor.

— Parece bastante seguro de si.

— Não há muita coisa que aconteça na Côte d’Azur que eu desconheça.

Continuaram para o terraço, onde o último membro do grupo do almoço aguardava entre as colunas.

— Jean-Luc Martel, apresento-lhe Nicolas Carnot. O Nicolas é o meu assistente e consultor mais próximo. É natural da Córsega, mas não lhe leve isso a mal.

 

Na villa nos arredores de Ramatuelle, Gabriel observou atentamente enquanto Jean-Luc Martel aceitava a mão esticada na sua direção. Seguiram-se alguns segundos tensos, enquanto os dois homens se avaliavam mutuamente como só criaturas de nascimento, educação e aspirações de carreira semelhantes conseguem fazer. Claramente, Martel via algo que reconhecia no homem de aspeto duro da ilha da Córsega. Apresentou o Monsieur Carnot a Olivia, que explicou que já se tinham encontrado em duas ocasiões anteriores na galeria. Mas Martel pareceu não a ouvir; estava a admirar a garrafa de Bandol rosé que suava no balde de gelo. A sua aprovação do vinho não foi acidental. Este figurava proeminentemente em todos os seus bares e restaurantes. Gabriel encomendara quantidades suficientes do líquido para fazer flutuar um navio de carga repleto de haxixe.

Seguindo a sugestão da Madame Sophie, sentaram-se nos sofás e cadeiras dispostos na extremidade mais afastada do terraço. Ela foi fria e distante, uma observadora, tal como Gabriel, que estava de pé diante dos monitores de vídeo, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado e uma mão pousada no queixo. A outra pressionava o fundo das costas, que estavam a incomodá-lo. Eli Lavon estava de pé ao seu lado e, ao lado de Lavon, encontrava-se Paul Rousseau. Observaram ansiosamente enquanto um agente do Grupo Alpha, vestido com uma imaculada túnica branca, retirava uma garrafa vazia de rosé do balde de gelo e a substituía com êxito por uma nova. Calmamente, a Madame Sophie instruiu-o para que trouxesse os aperitivos. Também isso o criado conseguiu fazer sem causar vítimas nem danos colaterais. Aliviado, Paul Rousseau carregou o cachimbo e soprou uma nuvem de fumo para os ecrãs de vídeo. A Madame Sophie também pareceu ficar aliviada. Acendeu um Gitane e, com o polegar e dedo anelar, removeu discretamente um resto de tabaco da ponta da língua.

A conversa foi educada, mas reservada, que era como Gabriel pretendia que fosse. Realizou-se em inglês, para benefício de Dmitri Antonov, embora, ocasionalmente, fosse deixado à deriva por uma explosão de francês. Não se ofendeu com isso. Na verdade, parecia apreciar o sossego, pois permitia-lhe desfrutar de uma pausa em relação às perguntas persistentes de Martel relativamente ao seu negócio. Explicou que fizera muito dinheiro com o comércio de matérias-primas russas e conseguira trocar as suas fichas por dinheiro antes da Grande Recessão e da queda abrupta dos preços do petróleo. Embarcara recentemente num conjunto de negócios no Ocidente e na Ásia. Vários deles, disse, tinham-se revelado bastante lucrativos.

— Evidentemente — disse Martel, com um olhar de relance em redor.

O Monsieur Antonov limitou-se a sorrir.

— Em que tipo de coisas está a investir?

— Nas coisas habituais — respondeu evasivamente. — Acima de tudo, tenho satisfeito a minha paixão pela arte.

— Eu e a Olivia adoraríamos ver a sua coleção.

— Talvez depois do almoço.

— Devia realmente dar uma olhadela no inventário dela. Tem muitas peças extraordinárias.

— Gostaria muito de o fazer.

— Quando? — perguntou Martel.

— Amanhã — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e alguns segundos depois Dmitri Antonov disse:

— Passo por lá amanhã, se for conveniente.

Com isso, deslocaram-se para a mesa de refeições. Aqui, mais uma vez, Gabriel não se poupara a despesas e não deixara nada ao acaso. De facto, contratara o chef executivo de um célebre restaurante parisiense e tinha-o trazido num voo privado para a Provença, exclusivamente para a ocasião. A Madame Sophie escolhera o menu. Batatas em molho quente com caviar, rabanete picante e marinada de gengibre; vieiras apanhadas à mão com couve-flor caramelizada e uma emulsão de alcaparras e passas; robalo com crosta de frutos secos e sementes e molho agridoce. Impressionado, Martel pediu para conhecer o chef. A Madame Sophie, acendendo outro cigarro, opôs-se. O chef e a sua equipa, explicou, nunca eram autorizados a deixar a cozinha.

Durante a sobremesa, a conversa virou-se para a política. As eleições na América, a guerra na Síria, os atentados terroristas do ISIS na Europa. Perante a menção do Islão, Martel mostrou-se subitamente animado. A França como em tempos a tinham conhecido desaparecera, rosnou. Em breve, seria apenas outro posto avançado do Magrebe Islâmico. Gabriel achou a atuação bastante convincente, embora Olivia parecesse pensar de outra forma. Aborrecida, perguntou a Madame Sophie se podia tirar um dos seus Gitanes.

— O Jean-Luc tem opiniões muito fortes no que se refere à questão das minorias em França — confidenciou. — Eu gosto de lhe lembrar que, se não fossem os árabes e os africanos, não teria ninguém para lavar os pratos nos restaurantes ou mudar as camas nos seus hotéis.

A Madame Sophie, com a sua expressão, deixou claro que achava o tema de mau gosto. Pediu aos criados do Grupo Alpha que trouxessem o café. Nessa altura, eram quase cinco da tarde. Todos concordaram que uma visita aos quadros teria de esperar por outra ocasião, embora tivessem visto vários enquanto atravessavam lentamente as vastas salas de estar e corredores em tons rosados, observados pelas câmaras de vigilância.

— Está realmente interessado em vir à galeria amanhã? — perguntou Olivia, enquanto fazia uma pausa para admirar as duas cenas de canais venezianos de Guardi.

— Absolutamente — respondeu Dmitri Antonov.

— Estou livre às onze.

— À tarde é melhor — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e Dmitri Antonov explicou, então, que tinha vários telefonemas importantes para fazer de manhã e preferiria visitar a galeria depois do almoço.

— Se isso for conveniente.

— É.

— O Monsieur Carnot fará os preparativos necessários. Creio que ele tem o seu número.

Os Antonovs despediram-se dos seus convidados no pórtico que, nessa altura, já não se encontrava à sombra, mas incandescente com uma ténue luz alaranjada. Passado um momento, estavam mais uma vez de pé no terraço, observando os Range Rover negros a acelerarem na direção da villa que ficava do outro lado da Baie de Cavalaire. Imediatamente, o telemóvel da Madame Sophie vibrou.

— O que é que diz? — perguntou o marido.

— Diz que fomos perfeitos.

— Eles divertiram-se?

— O Martel está convencido de que és um traficante de armas a fazer-se passar por um empresário legítimo.

— E a Olivia?

— Está ansiosa por amanhã.

Sorrindo, Dmitri Antonov despiu o fato e desceu até à piscina para nadar um pouco. A Madame Sophie e o Monsieur Carnot observaram-no do terraço enquanto terminavam o que restava do rosé. O telefone da Madame Sophie estremeceu com a chegada de outra mensagem.

— O que foi agora? — perguntou o Monsieur Carnot.

— Aparentemente, o Martel acha que eu pareço judia. — Acendeu outro Gitane e sorriu. — O Saladino disse a mesma coisa.


31

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Às dez horas da manhã seguinte, a Place de l’Ormeau estava deserta, a não ser pela presença de um homem no final da meia-idade a lavar as mãos num fio de água do fontanário. Olivia pensou que já o vira na vila anteriormente uma ou duas vezes, mas, após uma análise mais atenta, decidiu que estava enganada. As pedras da calçada aqueceram os seus pés por baixo das sandálias enquanto atravessava a praça para a galeria. Retirando as chaves da mala de senhora, destrancou a porta de madeira exterior e entrou para o hall abafado. Em seguida, abriu a porta de vidro de alta segurança e, entrando, desativou o alarme. Fechou a porta atrás de si. Esta trancou-se automaticamente.

O interior da galeria estava escuro e fresco, um alívio em relação ao exterior. No seu escritório privado, Olivia premiu um interruptor que abriu os estores e grades de segurança. Depois, como era seu hábito, foi até ao andar de cima, às salas de exposição, para se assegurar de que nada faltava. O Lichtenstein, o Basquiat e o Dubuffet em exibição na sua montra eram apenas a ponta do inventário da galeria. A considerável coleção profissional de Olivia incluía trabalhos de Warhol, Twombly, de Kooning, Gerhard Richter e Pollock, bem como de numerosos artistas contemporâneos franceses e espanhóis. Fizera aquisições com sabedoria e granjeara uma clientela de confiança entre os milionários da Côte d’Azur (homens como Dmitri Antonov, pensou). Era uma proeza extraordinária para uma mulher sem título universitário e sem qualquer formação artística formal. E pensar que, apenas alguns anos antes, geria uma pequena galeria que distribuía os rabiscos de artistas locais a turistas suados que saíam estonteados de navios cruzeiro e autocarros. Por vezes, permitia a si própria pensar que tinha chegado até ali como resultado da sua determinação e argúcia empresarial, mas, na verdade, sabia que não era assim. Era tudo obra de Jean-Luc. Olivia era o rosto público da galeria que ostentava o seu nome, mas fora comprada e paga por Jean-Luc Martel. Aliás, ela também.

Depois de se asseverar de que a sua coleção sobrevivera intacta a essa noite, dirigiu-se ao andar de baixo e encontrou Monique, a sua rececionista, a preparar um café crème na máquina automática. Era uma rapariga de vinte e quatro anos, magra e com seios pequenos, uma encarnação de uma bailarina de Degas. À noite, trabalhava como rececionista num dos restaurantes de Jean-Luc. Aparentava ter-se deitado tarde. No que se referia a Monique, isso acontecia com mais frequência do que o contrário.

— Também quer? — perguntou enquanto a última porção de leite a ferver gorgolejava e cuspia para a sua chávena.

— Por favor.

Monique entregou o café a Olivia e preparou outro para si.

— Há marcações para esta manhã?

— Não era suposto seres tu a dizer-me isso?

Monique fez uma careta.

— Quem foi desta vez?

— Um americano. Tão fofo. É de um lugar chamado Virgínia. — Dito por Monique, soava como o lugar mais exótico e sensual do mundo. — É criador de cavalos.

— Pensava que odiavas americanos.

— Claro. Mas este é muito rico.

— Vais voltar a vê-lo alguma vez?

— Talvez esta noite.

Ou talvez não, pensou Olivia. Em tempos, fora uma rapariga como Monique. Talvez ainda fosse.

— Se consultares o calendário — disse ela —, tenho a certeza de que vais descobrir que o Herr Müller vem às onze.

Monique franziu o sobrolho.

— O Herr Müller gosta de olhar para as minhas mamas.

— Para as minhas também.

De facto, o Herr Müller gostava de olhar para Olivia mais do que para os seus quadros. Não era o único. A sua aparência era um trunfo profissional, mas, ocasionalmente, era uma distração e um desperdício de tempo. Homens ricos (e alguns não tão ricos) faziam marcações na galeria simplesmente para passarem alguns minutos na sua presença. Alguns arranjavam coragem para lhe fazerem propostas de cariz sexual. Outros fugiam sem nunca tornarem as suas intenções conhecidas. Ela aprendera há muito tempo como projetar um ar de indisponibilidade. Embora, teoricamente, fosse solteira, era a rapariga de JLM. Toda a gente em França sabia disso. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.

Monique sentou-se na secretária de vidro da receção. Tinha apenas um telefone e o calendário de marcações. Olivia não lhe confiava muito mais do que isso. Encarregava-se ela própria de todos os assuntos comerciais e administrativos da galeria, com a ajuda de Jean-Luc. Monique era apenas mais uma obra de arte que, se incentivada a isso, era capaz de atender o telefone. Fora Jean-Luc, não Olivia, quem lhe dera trabalho na galeria. Olivia tinha praticamente a certeza de que eram amantes. Não sentia rancor de Monique. Na verdade, sentia um pouco de pena dela. A coisa não acabaria bem. Nunca acabava.

O Herr Müller chegou dez minutos atrasados, o que não era seu hábito. Era gordo e rosado e cheirava ao vinho da noite anterior. Um confronto recente com um cirurgião plástico em Zurique deixara-o com uma expressão de assombro perpétuo. Estava interessado num quadro do artista americano Philip Guston. Um trabalho semelhante atingira um valor de vinte e cinco milhões de dólares na América. O Herr Müller esperava adquirir o de Olivia por quinze. Olivia rejeitou a oferta.

— Mas eu tenho de o ter! — exclamou enquanto fitava descaradamente a parte frontal da blusa de Olivia.

— Então, vai ter de arranjar mais cinco milhões.

— Deixe-me dormir sobre o assunto. Entretanto, não deixe que mais ninguém o veja.

— Na verdade, estou a planear mostrá-lo esta tarde.

— Maldição! A quem?

— Vá lá, Herr Müller, sabe que dizer-lhe seria cometer uma indiscrição.

— Não será o tal Antonov?

Ela ficou em silêncio.

— Fui a uma festa na villa dele recentemente. Sobrevivi por pouco. Outros não tiveram tanta sorte. — Mordiscou o interior do lábio. — Dezasseis. Mas é a minha oferta final.

— Prefiro arriscar com o Monsieur Antonov.

— Eu sabia!

Ao meio-dia e meia, em plena torreira do sol, Olivia despachou-o. Quando regressou à secretária, viu que recebera uma mensagem de Jean-Luc. Estava a embarcar no seu helicóptero para ir até Nice, onde tinha reuniões durante toda a tarde. Tentou enviar-lhe uma mensagem de volta, mas não recebeu qualquer resposta. Calculou que já estivesse no ar.

Devolveu o telefone à secretária. Alguns segundos mais tarde, este tocou. Olivia não reconheceu o número. Ainda assim, atendeu e aproximou o telefone do ouvido.

— Bonjour.

— Madame Watson?

— Sim.

— Daqui fala Nicolas Carnot. Almoçámos ontem na...

— Sim, claro. Como está?

— Estava a perguntar-me se continua a ter tempo para mostrar a sua coleção ao Monsieur Antonov.

— Limpei a minha agenda — mentiu. — A que horas é que ele gostaria de vir?

— Pode ser às duas horas?

— Às duas seria perfeito.

— Preciso de passar por aí primeiro para dar uma vista de olhos.

— Desculpe?

— O Monsieur Antonov é cauteloso em relação à segurança.

— Garanto-lhe, a minha galeria é bastante segura.

Houve um silêncio.

— A que horas gostaria de vir? — perguntou Olivia, exasperada.

— Estou livre agora, se a senhora estiver.

— Pode vir agora, não há problema.

— Perfeito. Oh, e mais uma coisa, Madame Watson.

— Sim?

— A sua rececionista.

— A Monique? O que é que tem?

— Dê-lhe um recado para fazer, algo que a mantenha fora da galeria durante alguns minutos. Pode fazer isso por mim, Madame Watson?

 

Transcorreram cinco minutos antes de a rececionista finalmente sair da galeria. Deteve-se na fornalha da praça, os seus olhos moveram-se para a esquerda e para a direita. Depois, deambulou vagarosamente, passando pela mesa de Keller no café vizinho com os braços a pender ao lado do corpo como flores de caule longo. Ele escreveu uma mensagem breve no telemóvel e disparou-a para a casa segura de Ramatuelle. A resposta chegou imediatamente. O helicóptero de Martel estava a leste de Cannes. Tudo decorria conforme o planeado.

Como bom agente operacional, Keller pagara a conta antecipadamente. Erguendo-se, dirigiu-se para a galeria e colocou o polegar pesadamente sobre a campainha. Não houve resposta. Amor com amor se paga, pensou. Tocou à campainha uma segunda vez. As fechaduras de segurança abriram-se com um estalido e ele entrou.

 

Havia algo diferente nele, Olivia tinha a certeza disso. Exteriormente, era a mesma criatura superficial e indiferente com quem almoçara na villa de Antonov (o homem de poucas palavras e funções indeterminadas), mas o seu comportamento mudara. Subitamente, parecia muito seguro de si e da virtude da sua causa. Atravessando a galeria, retirou os óculos de sol e colocou-os na cabeça. O seu sorriso era cordial, mas os olhos azuis eram totalmente profissionais. Dirigiu-se a ela sem antes lhe estender a mão para a cumprimentar.

— Receio que tenha havido uma ligeira mudança de planos. Afinal, o Monsieur Antonov não vai poder vir.

— Porque não?

— Um pequeno problema que exigia a sua atenção imediata. Nada de urgente, ouça. Não há motivo para alarme. — Disse tudo isto no seu francês com sotaque corso, com o mesmo sorriso inofensivo.

— Então porque é que me telefonou? E porque é que — perguntou Olivia — está aqui?

— Porque a sua galeria suscitou o interesse de alguns amigos do Monsieur Antonov que gostariam de falar consigo em privado.

— Que tipo de interesse?

— Diz respeito a várias transações recentes suas. Foram bastante lucrativas, mas pouco ortodoxas.

— As transações desta galeria — disse ela friamente — são privadas.

— Não tão privadas quanto pensa.

Olivia sentiu o rosto a começar a arder. Caminhou lentamente até à secretária de Monique e levantou o auscultador do descanso. A sua mão tremia enquanto marcava o número.

— Não se incomode a telefonar ao seu marido, Olivia. Ele não vai atender.

Ela ergueu o olhar repentinamente. Ele dissera estas palavras não em francês, mas em inglês com sotaque britânico.

— Ele não é meu marido — ouviu-se a si própria dizer.

— Oh, sim, esqueci-me. Ele continua no ar — continuou. — Algures entre Cannes e Nice. Mas tomámos a precaução adicional de bloquear todas as suas chamadas recebidas.

— Tomámos?

— Os serviços secretos britânicos — respondeu calmamente. — Não se preocupe, Olivia, está em muito boas mãos.

Ela pressionou o telefone contra o ouvido e ouviu a gravação de voice mail de Jean-Luc.

— Pouse o telefone, Olivia, e respire bem fundo. Não vou magoá-la. Estou aqui para ajudar. Pense em mim como a sua última oportunidade. Se fosse a si, aproveitava-a.

Ela devolveu o telefone ao descanso.

— Linda menina — disse ele.

— Quem é você?

— O meu nome é Nicolas Carnot e trabalho para o Monsieur Antonov, é importante que se lembre disso. Agora, pegue na sua mala, no seu telefone e nas chaves e leve-os para aquele seu belo Range Rover. E, por favor, despache-se, Olivia. Não temos muito tempo.


32

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


O Range Rover estava no seu local habitual, estacionado ilegalmente à porta do restaurante de Jean-Luc no Porto Velho. Olivia deslizou para trás do volante e, seguindo as indicações, conduziu para oeste ao longo do golfo de Saint-Tropez. Por duas vezes, pediu-lhe que explicasse porque é que a sua galeria tinha interesse suficiente para justificar um estratagema tão elaborado por parte dos serviços secretos britânicos. Por duas vezes, ele fez comentários sobre o cenário e o tempo, ao estilo de Nicolas Carnot, amigo do Monsieur Dmitri Antonov.

— Como é que aprendeu a falar assim?

— Assim como?

— Como um corso.

— A minha tia Beatrice era da Córsega. Está prestes a passar o sítio onde tem de virar.

— Para que lado?

Ele apontou na direção da saída para Gassin e Ramatuelle. Ela guinou bruscamente o volante para a esquerda e, pouco depois, dirigiram-se para sul, para a zona rural escarpada que separava o golfo e a Baie de Cavalaire.

— Para onde me está a levar?

— Para ver uns amigos do Monsieur Antonov, claro.

Ela rendeu-se e conduziu em silêncio. Nenhum deles falou até depois de terem passado Ramatuelle. Ele deu-lhe indicações para que se dirigisse para uma estrada secundária mais pequena e, eventualmente, até à entrada da villa. O portão estava aberto para os receber. Ela estacionou no pátio e desligou o motor.

— Não é tão luxuosa como a Villa Soleil — disse ele —, mas vai achá-la bastante confortável.

Subitamente, havia um homem de pé junto da porta de Olivia. Ela reconheceu-o. Vira-o nessa mesma manhã na Place de l’Ormeau. Ele ajudou-a a sair do Range Rover e, com um único movimento da mão, guiou-a na direção da entrada da villa. O homem que ela conhecia apenas como Nicolas Carnot (o homem que falava francês como um corso e inglês com um sotaque chique do West End) caminhou ao seu lado.

— Ele também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Quem?

— O que me abriu a porta.

— Não vi ninguém.

Olivia virou-se para trás, mas o homem tinha desaparecido. Talvez tivesse sido uma alucinação. Foi o calor, pensou ela. Sentia-se verdadeiramente fraca devido à temperatura.

Enquanto se aproximava da villa, a porta moveu-se para trás e Dmitri Antonov surgiu no meio da brecha.

— Olivia! — exclamou, como se ela fosse a sua amiga mais antiga do mundo. — Peço imensa desculpa por incomodá-la, mas receio que não houvesse alternativa. Entre e esteja à vontade. Está cá toda a gente. Estão bastante desejosos de a conhecerem por fim em carne e osso.

Disse tudo isso no seu inglês com sotaque russo. Olivia não sabia bem se seria verdadeiro ou uma atuação. Na verdade, naquele momento, não sabia nada de nada.

Segui-o através do hall de entrada e por baixo de uma arcada que dava para a sala de estar, que estava mobilada de forma confortável e com muitas telas penduradas na parede.

Todas estavam em branco.

As pernas de Olivia pareceram liquidificar-se. O Monsieur Antonov equilibrou-a e empurrou-a suavemente para a frente.

Havia outros três homens presentes. Um era alto, bonito e distinto e indiscutivelmente inglês. Estava, calmamente, a dizer algo em francês a uma figura amarrotada que envergava um casaco de tweed e parecia ter sido extraída de um alfarrabista. O silêncio abateu-se sobre a conversa quando Olivia entrou e os seus rostos viraram-se para ela como girassóis para a aurora. Contudo, o terceiro homem parecia totalmente alheio à sua chegada. Fitava uma das telas em branco, com uma mão pressionada contra o queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. A tela era idêntica, em termos de dimensões, a todas as outras, mas estava apoiada sobre um cavalete. O homem parecia confortável diante dela, observou Olivia. Era de altura e constituição medianas. O seu cabelo estava cortado curto e era grisalho nas têmporas. Os seus olhos, que estavam resolutamente fixos na tela, eram de um invulgar tom de verde.

— Acho — disse ele, finalmente — que este é o meu favorito. A técnica do desenho é absolutamente extraordinária e o uso da cor e da luz é inigualável. Invejo a paleta dele.

Despejou tudo isto sem pausas e em francês, com um sotaque que Olivia não conseguiu identificar com precisão. Era uma mistura peculiar, um pouco de alemão, uma pitada de italiano. Continuava a olhar fixamente para o quadro. A sua postura mantinha-se inalterada.

— A primeira vez que o vi — continuou —, pensei que era realmente único. Mas estava enganado. Quadros como este parecem ser a especialidade da sua galeria. Na verdade, tanto quanto consegui perceber, conseguiu o monopólio do mercado no que se refere a telas em branco. — Os olhos verdes viraram-se finalmente para ela. — Parabéns, Olivia. É uma proeza e tanto.

— Quem é você?

— Sou um amigo do Monsieur Antonov.

— Também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Por amor de Deus, não! Mas ele sim — disse, apontando na direção do inglês com aparência distinta. — Na verdade, é o chefe da Divisão dos Serviços Secretos que é por vezes referida como MI6. Antigamente, o nome dele era um segredo de Estado, mas os tempos mudaram. Ocasionalmente, concede uma entrevista e permite que lhe tirem uma fotografia. Em tempos, isso teria sido uma heresia, mas já não.

— E ele? — perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da figura amarrotada vestida de tweed.

— Francês — explicou o homem de olhos verdes. — É chefe de algo chamado Grupo Alpha. Talvez tenha ouvido o nome. O quartel-general em Paris foi bombardeado há não muito tempo e vários dos seus agentes perderam a vida. Como seria de esperar, está interessado em descobrir o homem que fez isso. E gostava que a Olivia o ajudasse a encontrá-lo.

— Eu? — perguntou, incrédula. — Como?

— Chegaremos a isso daqui a pouco. Quanto à minha origem — disse ele —, sou o homem esquisito que está de fora. Sou do local de que não gostamos de falar.

Foi nesse momento que ela conseguiu finalmente identificar o seu peculiar sotaque.

— É de Israel.

— Receio que sim. Mas, voltando ao assunto em questão — acrescentou rapidamente —, que é a Olivia e a sua galeria. Não é uma verdadeira galeria, pois não, Olivia? Oh, vende aquele quadro ocasional, como o Guston que estava a tentar impingir ao pobre Herr Müller hoje de manhã pelo preço obsceno de vinte milhões de euros. Mas serve, basicamente, como uma máquina de lavagem de dinheiro do verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel, que são as drogas.

Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala.

— Este é o momento — disse o homem de olhos verdes — em que a Olivia me diz que o seu... — Deteve-se a si próprio. — Desculpe-me, mas sou exigente com os pormenores. Como é que a Olivia se refere ao Jean-Luc?

— É meu parceiro.

— Parceiro? Que infelicidade.

— Porquê?

— Porque a palavra parceiro implica uma relação de negócios.

— Acho que gostaria de telefonar ao meu advogado.

— Se o fizer, perderá a única e exclusiva oportunidade que tem de se salvar a si própria. — Fez uma pausa para avaliar o impacto das suas palavras. — A sua galeria é pequena, mas é uma parte importante de uma vasta organização criminosa. O negócio dessa organização é a droga. Droga que vem sobretudo do Norte de África. Droga que flui através das mãos do grupo terrorista que se autodenomina Estado Islâmico. O Jean-Luc Martel é o distribuidor dessa droga aqui na Europa Ocidental. Faz negócios com o ISIS. Consciente ou inconscientemente, está a ajudar a financiar as operações do grupo. O que significa que a Olivia também está.

— Desejo-lhe sorte a tentar provar isso num tribunal francês.

Ele sorriu pela primeira vez. Foi frio e rápido.

— Uma demonstração de coragem — disse com admiração trocista —, mas ainda nenhuma negação sobre o negócio do seu marido.

— Ele não é meu marido.

— Oh, sim — disse ele desdenhosamente —, esqueci-me.

Eram as mesmas palavras que o homem chamado Nicolas Carnot proferira na galeria de arte.

— Quanto a telefonar ao seu advogado — continuou o israelita — isso não será necessário. Pelo menos, para já. Sabe, Olivia, não há agentes da polícia nesta sala. Nós somos agentes dos serviços secretos. Atenção, não temos nada contra a polícia. Eles têm o seu trabalho para fazer e nós temos o nosso. Eles resolvem crimes e fazem detenções, mas o nosso ramo é a informação. A Olivia tem-na, nós precisamos dela. Esta é a sua oportunidade, Olivia. É a sua única e exclusiva hipótese. Se eu fosse seu advogado, aconselhá-la-ia a aproveitá-la. É o melhor acordo que algum dia conseguirá.

Houve outro silêncio, mais demorado do que o anterior.

— Desculpem — disse ela, finalmente —, mas não posso ajudá-los.

— Não pode ajudar-nos, Olivia, ou não quer?

— Não sei nada sobre o negócio do Jean-Luc.

— As quarenta e oito telas em branco que encontrei no Freeport de Genebra dizem o contrário. Foram enviadas para lá pela Galerie Olivia Watson. O que significa que será a Olivia a enfrentar acusações, não ele. E o que é que acha que o seu parceiro fará nessa altura? Irá a cavalgar para a salvar? Irá colocar-se diante de uma bala por si? — Abanou a cabeça lentamente. — Não, Olivia, não o fará. De tudo o que sei sobre o Jean-Luc Martel, não é esse tipo de homem.

Ela não deu qualquer resposta.

— Então como é que vai ser, Olivia? Vai ajudar-nos?

Ela abanou a cabeça.

— Porque não?

— Porque, se o fizer — disse ela calmamente —, o Jean-Luc mata-me.

Ele sorriu novamente. Desta vez, parecia genuíno.

— Disse alguma coisa engraçada? — perguntou ela.

— Não, Olivia, disse-me a verdade. — Os olhos verdes deixaram o rosto dela e pousaram mais uma vez na tela em branco. — O que é que vê quando olha para aqui?

— Vejo uma coisa que o Jean-Luc me obrigou a fazer para poder manter a minha galeria.

— Interessante interpretação. Sabe o que é que eu vejo?

— O quê?

— Vejo-a a si sem o Jean-Luc.

— E que tal lhe pareço?

— Venha cá, Olivia. — Ele afastou-se da tela. — Veja por si própria.


33

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


As telas em branco foram retiradas das paredes e do cavalete, e uma mulher de cabelo escuro de cerca de trinta e cinco anos serviu silenciosamente bebidas frias. Olivia foi convidada a sentar-se. Por sua vez, o inglês garboso e o seu parceiro francês amarrotado foram devidamente apresentados. Os seus nomes eram suficientemente familiares. Também o era o rosto anguloso do israelita de olhos verdes. Olivia tinha praticamente a certeza de que o vira nalgum lado anteriormente, mas não conseguia decidir onde fora. Ele apresentou-se apenas como Gideon e caminhou lentamente pelo perímetro da divisão, enquanto todos os outros se sentavam a transpirar no incansável calor. Uma ventoinha giratória batia monotonamente e sem qualquer efeito no canto; moscas enormes moviam-se como abutres para dentro e para fora das portas francesas abertas. Subitamente, o israelita parou de caminhar e, com um movimento rápido da mão, apanhou uma no ar.

— Gostava daquilo? — perguntou ele.

— De quê?

— De ver a sua cara em revistas e outdoors.

— Não é tão fácil como parece.

— Não é glamoroso?

— Nem sempre.

— Então e as festas e desfiles?

— Para mim, os desfiles eram trabalho. E as festas — disse — tornaram-se bastante aborrecidas passado algum tempo.

Ele lançou o cadáver da mosca para o jardim inundado de sol e, virando-se, avaliou Olivia exaustivamente.

— Então porque é que escolheu uma vida assim?

— Não escolhi. Foi ela que me escolheu.

— A Olivia foi descoberta?

— Por assim dizer.

— Aconteceu quando tinha dezasseis anos, não foi?

— É evidente que leu os artigos sobre mim.

— Com grande interesse — admitiu. — A Olivia fez uma audição para figurante num filme de época que estava a ser gravado na costa de Norfolk. Não conseguiu o papel, mas alguém na equipa de produção lhe sugeriu que devia pensar em ser modelo. E, portanto, a Olivia decidiu abandonar os seus estudos e ir para Nova Iorque para enveredar por uma carreira na moda. Aos dezoito anos, era uma das modelos mais em voga na Europa. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Esqueci-me de alguma coisa?

— De muita coisa, na verdade.

— Tal como?

— Nova Iorque.

— Então porque é que não continua a história a partir daí? — disse ele. — De Nova Iorque.

Foi um inferno, contou-lhe ela. Depois de assinar um contrato com uma agência conhecida, puseram-na num apartamento no West Side de Manhattan com mais oito raparigas que dormiam em beliches, em turnos rotativos. Durante o dia, mandavam-na ir a castings com potenciais clientes e jovens fotógrafos que estavam a tentar entrar no ramo. Se tivesse sorte, o fotógrafo aceitava tirar-lhe algumas fotografias que poderia colocar no portfólio. Caso contrário, saía de mãos a abanar e regressava ao exíguo apartamento para combater as baratas e as formigas. À noite, ela e as restantes raparigas alugavam-se a discotecas para ganharem algum dinheiro. Olivia foi agredida sexualmente duas vezes. O segundo ataque deixou-a com um olho negro que a impediu de trabalhar durante quase um mês.

— Mas a Olivia perseverou — disse o israelita.

— Suponho que sim.

— O que é que aconteceu depois de Nova Iorque?

— Aconteceu o Freddie.

Freddie, explicou, era Freddie Mansur, o agente mais em voga no ramo e um dos mais célebres predadores. Freddie trouxe Olivia para Paris e para a sua cama. Também lhe deu drogas: erva, cocaína, barbitúricos para a ajudar a dormir. À medida que o seu consumo calórico se reduzia a níveis próximos da inanição, o seu peso caía a pique. Rapidamente, era apenas pele e osso. Quando tinha fome, fumava um cigarro ou snifava um risco. Coca e tabaco: Freddie chamava-lhe a dieta de modelo.

— E o mais engraçado é que funcionou. Quanto mais magra ficava, melhor aparência tinha. Por dentro, estava a morrer lentamente, mas a máquina fotográfica adorava-me. E os anunciantes também.

— A Olivia era uma supermodelo?

— Nem por sombras, mas safava-me bastante bem. E o Freddie também. Ficava com um terço de tudo o que eu ganhava. E um terço do salário de todas as outras raparigas que representava na altura.

— E com quem dormia?

— Digamos, simplesmente, que a nossa relação não era monogâmica.

Aos vinte e seis, a aparência cadavérica e toxicodependente com a qual estava associada passou de moda e a sua estrela começou a esmorecer. Muito do seu trabalho tinha lugar na passarela, onde a sua estrutura alta e membros compridos continuavam com grande procura. Mas o trigésimo aniversário foi um ponto de viragem. Houve um antes dos trinta e um depois dos trinta, explicou, e depois dos trinta o trabalho praticamente acabou. Aguentou durante mais três anos, até o próprio Freddie a advertir de que tinha chegado o momento de deixar o ramo. Fê-lo gentilmente, no início, e, quando ela resistiu, cortou os laços profissionais e românticos que tinha com ela e atirou-a para o meio da rua. Tinha trinta e três anos, não tinha estudos, estava desempregada e acabada.

— Mas era rica?

— Dificilmente.

— Então, e todo o dinheiro que ganhou?

— O dinheiro vem e o dinheiro vai.

— Drogas?

— E outras coisas.

— A Olivia gostava das drogas?

— Precisava delas, há uma diferença. Infelizmente, o Freddie deixou-me com uns quantos vícios caros.

— Então, o que é que fez?

— Fiz o que faria qualquer mulher na minha posição. Fiz as malas e fui para Saint-Tropez.

Com o que restava do seu dinheiro, arranjou uma villa nas montanhas («Era um barracão, na verdade, não muito longe daqui») e comprou uma scooter em segunda mão. Passava os dias na praia em Pampelonne e as noites em bares e discotecas da povoação. Naturalmente, encontrou aí muitos homens: árabes, russos, lixo europeu de cabelo prateado. Permitiu que alguns a levassem para a cama em troca de presentes e dinheiro, o que a fez sentir-se praticamente como uma prostituta. Acima de tudo, procurou um companheiro adequado, alguém que pudesse sustentar o estilo de vida ao qual se habituara. Alguém que não lhe causasse demasiada repulsa. Rapidamente, concluiu que viera para o local errado e, com o dinheiro a começar a escassear, aceitou um emprego numa pequena galeria de arte que era propriedade de um britânico expatriado. Então, bastante casualmente, conheceu o homem que mudaria a sua vida.

— O Jean-Luc Martel?

Ela não conseguiu evitar sorrir.

— Onde é que o conheceu?

— Numa festa, onde mais poderia ser? O Jean-Luc estava sempre numa festa. O Jean-Luc era a festa.

Na realidade, explicou, não foi a primeira vez que se conheceram. A primeira vez fora na Fashion Week em Milão, mas, nessa altura Jean-Luc estava com a esposa e mal olhara Olivia nos olhos ao apertar-lhe a mão. Mas, aquando do seu segundo encontro, era um viúvo em recuperação e desejoso de atividade. E Olivia apaixonou-se perdida e instantaneamente por ele.

— Eu era a Rosemary e ele era o Dick. Fiquei absolutamente impotente de amor.

— A Rosemary e o Dick?

— Rosemary Hoyt e Dick Diver. São personagens do...

— Eu sei quem são, Olivia. E está a lisonjear-se com a comparação.

As palavras foram como um estalo na sua face. As maçãs do seu rosto incendiaram-se de cor.

— Ele deu-lhe presentes e dinheiro como os outros?

— O Jean-Luc não tinha de pagar pelas suas miúdas. Era incrivelmente bonito e fabulosamente bem-sucedido. Era... o Jean-Luc.

— E o que é que acha que ele viu em si?

— Costumava perguntar-lhe a mesma coisa.

— Qual era a resposta dele?

— Achava que fazíamos uma boa equipa.

— Então foi uma parceria desde o início?

— Mais ou menos.

— Alguma vez falaram de casamento?

— Eu falei, mas o Jean-Luc não estava interessado. Costumávamos ter discussões terríveis sobre isso. Disse-lhe que não ia desperdiçar os melhores anos da minha vida a ser a concubina dele, que queria casar com ele e ter filhos. No final, chegámos a um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Ele deu-me outra coisa em vez do casamento e dos filhos.

— E que coisa foi essa?

— A Galerie Olivia Watson.


34

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


Olivia estava habituada a ter homens a fitarem-na. Homens ofegantes. Homens arquejantes. Homens de olhos húmidos, desejosos. Homens que fariam qualquer coisa, pagariam quase qualquer preço, para a ter nas suas camas. Os três homens agora alinhados diante dela (o mestre de espionagem britânico, o polícia secreto francês e o israelita sem origem declarada, mas de rosto vagamente familiar) também a estavam a fitar, mas definitivamente por um motivo diferente. Pareciam impenetráveis ao feitiço da sua aparência. Para eles, ela não era um objeto digno de ser admirado; era um meio para atingir um fim. Um fim que ainda não tinham considerado adequado revelar. Não estava, de todo, convencida de que gostassem dela. Ainda assim, sentiu-se aliviada por saber que ainda existiam homens assim. Uma carreira na indústria da moda e dez anos no mundo do faz-de-conta de Saint-Tropez tinham-na deixado com uma opinião bastante baixa sobre a espécie.

Galerie Olivia Watson...

Disse-lhes que o nome fora ideia de Jean-Luc, não sua. Ela quisera pendurar o nome consolidado da JLM sobre a porta da galeria, mas Jean-Luc insistira que a galeria ostentasse o nome dela em vez do seu. Deu-lhe o dinheiro para comprar o edifício antigo e elegante na Place de l’Ormeau e, depois, financiou a aquisição de uma coleção de nível mundial de arte contemporânea. Olivia quisera adquirir o acervo lenta e modestamente, com especial ênfase em artistas mediterrânicos. Mas Jean-Luc não quisera sequer ouvir falar nessa hipótese. Ele não fazia as coisas de forma lenta e modesta, explicou. Unicamente grande e vistosa. A galeria abriu com um nível de ostentação e glamour que só JLM poderia proporcionar. Depois disso, ele afastou-se e cedeu a Olivia um absoluto controlo artístico e financeiro.

— Mas apenas até certo ponto — disse ela.

— O que é que isso quer dizer? — perguntou o israelita. — Ou se detém controlo absoluto ou não se detém. Não existe um meio-termo.

— Existe, quando o Jean-Luc está envolvido.

Ele convidou-a a desenvolver o assunto.

— O Jean-Luc encarregava-se da contabilidade da galeria.

— Não achou isso estranho?

— Na verdade, fiquei aliviada. Eu era uma antiga modelo e ele era um empresário extremamente bem-sucedido.

— Quanto tempo demorou a descobrir que alguma coisa não estava bem?

— Dois anos. Talvez um pouco mais.

— O que é que aconteceu?

— Comecei a ver os registos da galeria sem ter o Jean-Luc a espreitar por cima do meu ombro.

— E o que é que descobriu?

— Que estava a adquirir e a vender mais trabalhos do que alguma vez imaginei ser possível.

— O negócio da galeria ia de vento em popa?

— Isso é pouco. Na verdade, logo no segundo ano de atividade, a Galerie Olivia Watson fez mais de trezentos milhões de euros de lucro. A maioria das vendas era totalmente privada e envolviam quadros que eu nunca tinha visto.

— O que é que fez?

— Confrontei-o.

— E como é que ele reagiu?

— Disse-me para me meter nos meus negócios. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — O jogo de palavras não foi intencional.

— Foi o que fez?

Ela hesitou antes de assentir lentamente com a cabeça.

— Porquê?

Quando ela não deu qualquer explicação, ele sugeriu-lhe uma.

— Porque a sua vida era perfeita e não queria fazer nada que a perturbasse.

— Todos fazemos concessões nas nossas vidas.

— Mas nem todos encontramos refúgio nos braços de um traficante de droga. — Fez uma pequena pausa para permitir que as palavras a ferissem o suficiente. — Sabia que o verdadeiro negócio do Jean-Luc eram os estupefacientes, não sabia?

— Continuo a não saber.

O israelita recebeu a resposta com um desdém justificado.

— Não temos muito tempo, Olivia. Era melhor que não o desperdiçasse com negações inúteis.

Houve um silêncio, para dentro do qual o inglês que se autodenominava Nicolas Carnot rastejou. Foi até à estante e, esticando o pescoço para o lado, retirou um volume com uma capa gasta. Era O Céu Que Nos Protege, do romancista americano Paul Bowles. Enfiou o livro debaixo do braço e, com um olhar de soslaio para Olivia, saiu sorrateiramente da divisão de novo. Ela olhou para o israelita, que lhe devolveu um olhar destituído de julgamento.

— Estava prestes a contar-me — disse ele finalmente — quando é que se apercebeu de que o seu parceiro doméstico e empresarial era um traficante de droga.

— Ouvi rumores, tal como toda a gente.

— Mas, ao contrário de toda a gente, a Olivia encontrava-se numa posição única para saber se eram ou não verdade. Afinal de contas, a Olivia era a proprietária formal de uma galeria de arte que servia como uma das suas mais eficazes fachadas para lavar dinheiro.

Ela sorriu.

— Que ingénuo da sua parte.

— Porquê?

— Porque o Jean-Luc é muito bom a manter segredos. — Depois acrescentou: — Quase tão bom como o senhor e os seus amigos.

— Nós somos profissionais.

— O Jean-Luc também — disse ela sombriamente.

— Alguma vez lho perguntou?

— Se ele é traficante de droga?

— Sim.

— Só uma vez. Ele riu-se. E depois disse-me que nunca mais lhe fizesse perguntas sobre o negócio dele.

— E fez?

— Nunca.

— Porque não?

— Porque tinha ouvido outros rumores — disse ela. — Rumores sobre o que acontecia às pessoas que se lhe atravessavam no caminho.

— E, ainda assim, ficou — referiu ele.

— Fiquei — retorquiu ela — porque tive medo de partir.

— Medo de partir ou medo de perder a galeria?

— Ambos — admitiu.

Um lampejo de um sorriso surgiu nos lábios dele e depois desapareceu.

— Admiro a sua honestidade, Olivia.

— Pelo menos isso...

— Tal como o Nicolas Carnot, tenho tendência para me abster de qualquer julgamento. Principalmente, quando há informação valiosa em jogo.

— Que tipo de informação?

— A organização do negócio do Jean-Luc, por exemplo. A Olivia deve ter conseguido reunir uma quantidade de informação considerável sobre a forma como a empresa está estruturada. É bastante opaca, no mínimo. Olhando para ela do exterior, conseguimos identificar alguns dos atores. Há um chefe para cada divisão (para os restaurantes, para os hotéis, para a parte do retalho), mas, por mais que tentemos, não somos capazes de identificar o chefe da unidade de estupefacientes ilícitos da JLM.

— Está a brincar.

— Só um bocadinho. É um homem ou são dois? É o próprio Jean-Luc?

Ela não disse nada.

— Tempo, Olivia. Não temos muito tempo. Precisamos de saber como é que o Jean-Luc gere o seu negócio de droga. Como é que dá as ordens. Como é que se isola para que a polícia não lhe consiga tocar. Não acontece por osmose ou telecinesia. Existe, algures, uma figura de confiança que trata dos interesses dele. Alguém que consegue entrar e sair da sua órbita sem levantar suspeitas. Alguém com quem ele comunica apenas pessoalmente, em voz baixa, num quarto onde não existem telefones presentes. Certamente, sabe quem é esse homem, Olivia. Talvez se conheçam. Talvez a Olivia seja amiga dele.

— Amiga, não — disse ela, passado um momento. — Mas realmente sei quem ele é. E sei o que me aconteceria se lhe dissesse o nome dele. Ele matava-me. E nem sequer o Jean-Luc conseguiria impedi-lo.

— Ninguém lhe vai fazer mal, Olivia.

Ela olhou-o com ceticismo. Ele fingiu ficar moderadamente ofendido.

— Pense nos esforços extraordinários que fizemos para trazê-la aqui hoje. Não demonstrámos o nosso profissionalismo? Não provámos que merecemos a sua confiança?

— E quando desaparecerem? Quem é que me vai proteger nessa altura?

— A Olivia não vai precisar de proteção — replicou ele — porque também terá desaparecido.

— Onde é que eu estarei?

— Isso cabe-lhe a si e ao seu compatriota decidir — disse ele, com uma inclinação da cabeça na direção do chefe dos serviços secretos britânicos. — Bem, calculo que possa oferecer-lhe um apartamento agradável com vista para o mar em Telavive, mas suspeito que se sinta mais confortável em Inglaterra.

— O que é que vou fazer para ganhar dinheiro?

— Gerir uma galeria de arte, evidentemente.

— Qual?

— A Galerie Olivia Watson. — Ele sorriu. — Apesar de o seu inventário profissional ter sido adquirido com dinheiro proveniente da droga, estamos preparados para a deixar mantê-lo. Com duas exceções — acrescentou.

— Quais?

— O Guston e o Basquiat. O Monsieur Antonov gostaria de lhe passar um cheque de cinquenta milhões por ambos, o que deverá dissipar quaisquer preocupações que o Jean-Luc possa ter sobre a forma como passou esta tarde. E não se preocupe — acrescentou. — Ao contrário do Monsieur Antonov, o dinheiro é absolutamente real.

— Que generoso da vossa parte — disse ela. — Mas ainda não me disseram o motivo de tudo isto.

— O motivo é Paris — respondeu ele. — E Londres. E Antuérpia. E Amesterdão. E Estugarda. E Washington. E uma centena de outros atentados de que a Olivia nunca ouviu falar.

— O Jean-Luc não é nenhum anjo, mas também não é nenhum terrorista.

— É verdade. Mas acreditamos que faz negócios com um, o que significa que está a ajudar a financiar os atentados. Mas receio que isto seja o máximo que lhe vou dizer em relação a este assunto. Quanto menos souber, melhor, É assim que funciona no nosso ramo. E a única coisa que precisa de saber é que lhe está a ser concedida uma oportunidade única. É uma possibilidade de começar do zero. Pense nela como uma tela em branco na qual pode pintar a imagem que quiser. E só lhe custará o nome dele. — Ele sorriu e perguntou: — Temos acordo, senhora Wilson?

— Watson. O meu nome é Olivia Watson. E, sim — disse, passado um momento. — Creio que temos acordo.

 

Falaram durante toda a tarde, enquanto o calor abrandava e as sombras se tornavam mais finas e longas no jardim e no olival prateado que trepava pela encosta ao lado. As circunstâncias do seu repatriamento para o Reino Unido. A forma como deveria comportar-se na presença de Jean-Luc ao longo dos dias seguintes. Os procedimentos que deveria seguir caso ocorresse alguma urgência imprevista. O israelita de olhos verdes referiu-se a isso como o plano «quebrar-em-caso-de-emergência» e advertiu Olivia de que deveria ser ativado apenas em caso de extremo perigo, pois implicaria, necessariamente, um enorme gasto de tempo e esforço e o desperdício de incontáveis milhões em despesas operacionais.

Só depois disso Gabriel pediu o nome a Olivia. O nome do homem em quem Jean-Luc confiava para gerir o seu império de muitos milhares de milhões de euros em estupefacientes. O lado sujo da JLM Enterprises, como o israelita lhe chamou. O lado que tornava tudo o resto (os restaurantes, os hotéis, as boutiques e as lojas, a galeria de arte na Place de l’Ormeau) possível. A primeira vez que Olivia o proferiu, fê-lo suavemente, como se tivesse uma mão a apertar-lhe a garganta. O israelita pediu-lhe que repetisse o nome e, ouvindo-o claramente, trocou um olhar longo, especulativo com Paul Rousseau. Passado algum tempo, Rousseau assentiu lentamente com a cabeça e, depois, voltou a contemplar o seu cachimbo dormente enquanto, no outro lado da sala, Nicolas Carnot devolvia o volume de Bowles ao seu lugar original na prateleira.

Depois disso, não houve mais discussão sobre droga ou terrorismo ou sobre o verdadeiro motivo pelo qual Olivia fora trazida à modesta villa nos arredores de Ramatuelle. O Monsieur Antonov materializou-se, todo sorrisos e bonomia com sotaque russo, e, juntos, prepararam a transferência de cinquenta milhões de euros das suas contas para as da galeria. Foi aberta uma garrafa de champanhe para comemorar a venda. Olivia não bebeu do copo que lhe colocaram na mão. O israelita também não tocou no seu copo. Era, pensou Olivia, um homem de uma disciplina admirável.

Pouco depois das seis da tarde, Nicolas Carnot devolveu o telemóvel a Olivia. Ela não sabia em que momento lho tirara. Calculou que o tivesse retirado da sua mala durante a viagem de carro de Saint-Tropez. Olhando de relance para o ecrã, viu várias mensagens de texto que tinham chegado durante o interrogatório. A última era de Jean-Luc. Chegara apenas um instante antes. Dizia que estava prestes a embarcar no seu helicóptero e chegaria a casa dentro de uma hora.

Olivia ergueu o olhar, alarmada.

— O que é que eu devo dizer-lhe?

— O que é que lhe diria normalmente? — perguntou o israelita.

— Dir-lhe-ia que fizesse boa viagem.

— Então, por favor, diga isso. E talvez queira mencionar que tem uma surpresa de cinquenta milhões de euros para ele. Isso deve alegrar-lhe a disposição. Mas não revele demasiado. Não queremos estragar a surpresa.

Olivia digitou a resposta na caixa de texto com o polegar e levantou o ecrã para que ele visse.

— Muito bem feito.

Com um toque suave, enviou a mensagem.

— Está na hora de se ir embora — disse o israelita. — Não queremos que a sua carruagem se transforme numa abóbora, pois não?

No exterior, algumas nuvens sopradas pelo vento moviam-se velozmente pelo céu noturno. Nicolas Carnot falou apenas em francês durante a viagem para sul em direção à Baie de Cavalaire, e apenas sobre o Monsieur Antonov e os quadros. Deveriam ser entregues na Villa Soleil imediatamente após a receção do dinheiro. A Madame Sophie, disse ele, já escolhera o local onde seriam pendurados.

— Ela odeia-me — disse Olivia.

— Não é assim tão má, depois de a conhecermos.

— É francesa?

— O que mais é que poderia ser?

Os Antonovs viviam no lado ocidental da baía, Jean-Luc e Olivia no oriental. Enquanto se aproximavam do minimercado Spar na esquina do Boulevard Saint-Michel, o Monsieur Carnot indicou-lhe que parasse. Apertou a mão dela firmemente e, em inglês, assegurou-lhe que não tinha nada a temer, que estava a fazer a coisa certa. Depois, desejou-lhe uma noite agradável e, sorrindo como se nada de invulgar tivesse acontecido nessa tarde, saiu do carro. Quando o viu pela última vez, foi no espelho retrovisor, a acelerar na direção oposta em cima de uma pequena mota. A fugir do local do crime, pensou ela.

Olivia continuou para leste ao longo da baía e, alguns minutos mais tarde, entrou na luxuosa villa que partilhava com o homem que acabara de trair. Na cozinha, serviu um grande copo de rosé para si e levou-o para o terraço no exterior. Através do brilho intenso do sol poente, conseguiu distinguir os contornos vagos da villa monstruosa do Monsieur Antonov. Nesse preciso momento, o seu telemóvel vibrou. Fitou o ecrã. EM CASA DAQUI A CINCO MINUTOS... QUAL É A SURPRESA?

— A surpresa — disse ela em voz alta — é que o teu amigo russo e a cabra da mulher dele acabaram de me passar um cheque de cinquenta milhões de euros. — Repetiu-o vezes sem conta, até acreditar que era verdade.


35

MARSELHA, FRANÇA

Às onze e quarenta e cinco da manhã seguinte, a quantia de cinquenta milhões de euros apareceu na conta da Galerie Olivia Watson, 9 Place de l’Ormeau, Saint-Tropez, França. O dinheiro não teve de viajar até muito longe, visto que tanto emissor como destinatário tinham as suas contas no HSBC do Boulevard Haussmann, em Paris. A meio da tarde, repousava confortavelmente num conceituado banco suíço em Genebra, numa conta controlada pela JLM Enterprises. E, às cinco horas, dois quadros (um de Guston, outro de Basquiat) foram entregues na Villa Soleil, numa carrinha sem identificação exterior. Olivia Watson ia atrás, no seu Range Rover preto. No hall de entrada, passou por Christopher Keller, que estava a sair. Ele beijou-a prodigamente em ambas as maçãs do rosto, fez um comentário sobre a sua aparência, que era deslumbrante, e depois subiu para a sua mota Peugeot Satelis. Pouco depois, estava a acelerar para oeste ao longo da costa do Mediterrâneo.

Era quase crepúsculo quando chegou aos subúrbios de Marselha. Os violentos gangues de droga prosperavam nos banlieues a norte da cidade, principalmente nos bairros sociais de Bassens e Paternelle, mas Keller aproximou-se através dos subúrbios mais tranquilos a leste. O túnel Prado-Carénage levou-o até ao Porto Velho e, daí, encaminhou-se para a Rue Grignan. Esguia e direita como uma régua, estava ladeada de lojas Boss, Vuitton, Armani e semelhantes. Havia até uma boutique-joalharia JLM. Keller jurou ter conseguido detetar o cheiro azedo a haxixe enquanto passava.

Enquanto continuava através do centro da cidade para o interior do quartier de Marselha conhecido como Le Camas, as ruas tornaram-se sujas e pobres e as lojas e cafés passaram a ter, claramente, uma clientela imigrante e de classe trabalhadora. Um desses negócios, situado no rés-do-chão de um edifício salpicado de graffitis com vista para a Place Jean Jaurès, vendia artigos eletrónicos e telemóveis com desconto a uma carteira de clientes essencialmente marroquina e argelina. Contudo, o seu proprietário era um francês chamado René Devereaux. Devereaux era proprietário de vários pequenos negócios em Marselha (todos eles orientados para fazer dinheiro, alguns numa categoria definida, de forma vaga, como entretenimento para adultos), mas a loja de produtos eletrónicos servia como uma espécie de sede operacional. O seu escritório ficava no segundo andar do edifício. A divisão não continha nenhum telefone nem dispositivos eletrónicos de qualquer tipo, um conjunto de circunstâncias curiosas para um homem que, alegadamente, tinha como profissão a venda das referidas engenhocas de conveniência modernas. René Devereaux não gostava muito de telefones e dizia-se que nunca tinha enviado, pessoalmente, um e-mail ou uma mensagem de texto. Só comunicava com os seus parceiros de negócio e subordinados ao vivo, muitas vezes na sombria praça ou numa mesa na esplanada do Au Petit Nice, um café razoavelmente agradável localizado a alguns passos da sua loja.

Keller sabia de tudo isto porque René Devereaux era uma figura proeminente no mundo onde ele, em tempos, habitara. Toda a gente no submundo criminoso francês sabia que o verdadeiro negócio de Devereaux era o tráfico de droga. Não apenas o tráfico de rua, mas o tráfico numa escala continental mais alargada. Provavelmente, a polícia francesa também estava a par disso, mas Devereaux, ao contrário de muitos dos seus concorrentes, nunca passara um único dia atrás das grades. Era um verdadeiro mafioso, um intocável. Até esta noite, pensou Keller. Pois fora o nome de René Devereaux que Olivia Watson proferira na casa segura nos arredores de Ramatuelle. Devereaux era a pessoa que fazia tudo correr sobre rodas, a pessoa que movia o haxixe das docas do sul da Europa para as ruas de Paris, Amesterdão e Bruxelas. A pessoa, pensou Keller, que conhecia todos os segredos de Jean-Luc Martel. Teriam apenas uma hipótese de o apanhar discreta e eficazmente. Felizmente, tinham à sua disposição alguns dos melhores agentes de campo do ramo.

Keller deixou a mota na extremidade da Place Jean Jaurès e caminhou até à loja de Devereaux. Espreitando para a mercadoria em exibição na montra atulhada, viu dois homens, ambos de aparência francesa, a observá-lo a partir do posto avançado atrás do balcão. No segundo andar, havia luz a cintilar atrás da porta francesa fechada que dava para a varanda degradada.

Keller afastou-se e continuou a caminhar ao longo da rua cerca de cinquenta metros, antes de parar junto de uma carrinha estacionada. Giancomo, moço de recados de Don Orsati, estava sentado ao volante. Dois outros agentes de Orsati estavam agachados no compartimento de carga traseiro, a fumar nervosamente. Giancomo, no entanto, parecia estar calmo. Keller suspeitava que era para o convencer das suas capacidades.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há uns vinte minutos. Veio à varanda fumar um cigarro.

— Tens a certeza de que ainda está lá dentro?

— Temos um homem a vigiar as traseiras do edifício.

— Onde é que estão os outros?

O jovem corso apontou com a cabeça na direção da Place Jean Jaurès. A praça estava apinhada de residentes do quartier, muitos deles vestidos com indumentária tradicional africana ou do mundo árabe. Nem mesmo Keller conseguia identificar os homens do don.

Olhou para Giancomo.

— Sem erros, estás a ouvir-me? Caso contrário, estás sujeito a ser responsabilizado por dar início a uma guerra. E sabes qual é a opinião do don sobre guerras.

— As guerras são boas para o negócio do don.

— Não são, quando ele é um dos combatentes.

— Não se preocupe. Já não sou um miudinho. Para além disso, tenho isto. — Giancomo puxou o talismã em redor do pescoço. Era idêntico ao de Keller. — Já agora, ela manda cumprimentos.

— Disse mais alguma coisa?

— Qualquer coisa sobre uma mulher.

— O que é que tem a mulher?

Giancomo encolheu os ombros.

— Sabe como é a signadora. Fala por meio de adivinhas.

Keller fumou um cigarro enquanto caminhava para o Au Petit Nice. O interior estava numa grande agitação (o Marselha estava a jogar contra o Lyon), mas havia algumas mesas livres na rua. Numa delas, estava sentado um homem de constituição mediana, com cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos. Numa mesa adjacente, dois homens de olhos escuros com cerca de vinte anos observavam os transeuntes que se movimentavam pelos passeios com invulgar intensidade. Keller aproximou-se do homem de cabelo de prata e, sem esperar por um convite, sentou-se. Havia uma garrafa de pastis e um único copo. Keller fez sinal ao empregado e pediu um segundo.

— Sabes — disse ele em francês —, devias mesmo beber um bocadinho.

— Parece gasolina com sabor a alcaçuz — respondeu Gabriel. Observou dois homens de túnica a caminhar de braço dado na rua. — Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— No Au Petit Nice?

— Em Marselha — disse Gabriel.

— Era inevitável. Quando uma pessoa está a tentar infiltrar-se numa rede europeia de droga, todos os caminhos vão dar a Marselha. — Keller também observou os transeuntes. — Achas que o Rousseau foi fiel à palavra?

— Porque é que não haveria de ser?

— Porque é um espião. O que significa que, inevitavelmente, mente.

— Tu também és um espião.

— Mas, até há pouco tempo atrás, trabalhava para o Don Anton Orsati. O mesmo Anton Orsati — acrescentou Keller — que está prestes a ajudar-nos com um trabalhinho sujo esta noite. E, se o Rousseau e os amigos dele do Grupo Alpha por acaso estiverem a observar, isso irá colocar o don, louvado seja, numa posição bastante delicada.

— O Rousseau não quer ter nada a ver com o que está prestes a acontecer aqui. Quanto ao don — continuou Gabriel —, ajudar-nos com este trabalhinho sujo, como tu tão duramente lhe chamas, foi a melhor decisão que tomou desde que te contratou.

— Então porquê?

— Porque, depois desta noite, ninguém poderá tocar-lhe sequer com um dedo. Ficará imune.

— Pensas como um criminoso.

— É o que se tem de fazer, no nosso ramo.

O empregado de mesa entregou o segundo copo. Keller encheu-o com pastis enquanto Gabriel consultava o telemóvel.

— Algum problema?

— A Madame Sophie e o Monsieur Antonov estão a discutir por causa do sítio onde pendurar os novos quadros.

— E andavam tão bem.

— Sim — disse Gabriel distraidamente, enquanto devolvia o telefone ao bolso do casaco.

— Achas que vão conseguir manter-se juntos?

— Tenho cá as minhas dúvidas.

Keller bebeu um pouco do pastis.

— Então, o que é que pretendes fazer com todos esses quadros quando a operação acabar?

— Tenho um pressentimento de que o Monsieur Antonov irá descobrir as suas raízes judias e fazer uma doação de grande notoriedade ao Museu de Israel.

— E os cinquenta milhões que deste à Olivia?

— Não lhe dei nada. Comprei dois quadros da galeria dela.

— Isso — disse Keller — é uma forma diferente de dizer a mesma coisa.

— É um preço bastante baixo a pagar se isso nos levar até ao Saladino.

— Se... — disse Keller.

— É imaginação minha — disse Gabriel —, ou passa-se alguma coisa entre ti e a...

— É imaginação tua.

— É uma rapariga muito bonita. E, quando tudo isto terminar, vai ficar bastante bem na vida.

— Tento manter-me afastado de raparigas que se agarram a traficantes de droga franceses abastados.

— Estás a esquecer-te de qual era a tua profissão?

Franzindo o sobrolho, Keller bebeu mais pastis.

— Então, o Monsieur Antonov é judeu?

— Aparentemente, sim.

— Nunca teria adivinhado.

Gabriel encolheu os ombros com indiferença.

— Eu sou um bocadinho judeu. Alguma vez te disse isso?

— Talvez tenhas dito.

Um silêncio abateu-se entre eles. Gabriel fitou taciturnamente a rua.

— Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— Não vai demorar muito mais.

Keller observou dois homens a saírem da parte de trás da carrinha e a entrarem na loja de eletrónica que pertencia a René Devereaux. Depois, olhou de soslaio para o relógio.

— Uns cinco minutos. Talvez menos.

 

Da mesa na esplanada do Au Petit Nice, Keller e Gabriel só conseguiram ver parcialmente o que aconteceu a seguir. Alguns segundos depois de os dois homens terem entrado na loja, vários clarões de luz transbordaram da montra para a rua. Foram ténues (na verdade, poderiam ter sido confundidos com o cintilar de uma televisão) e não houve absolutamente nenhum som. Pelo menos, nenhum que chegasse ao ruidoso café. Depois disso, a loja ficou completamente às escuras, à exceção de um pequeno sinal de néon na porta onde podia ler-se: FERMÉ. Os transeuntes fluíam ao longo do passeio como se nada de invulgar estivesse a acontecer.

Os olhos de Keller regressaram à carrinha, onde Giancomo estava a retirar uma grande caixa retangular de papelão do compartimento de trás. Era uma caixa com um formato estranho, manufaturada por uma fábrica de produtos de papel da Córsega, exatamente segundo as instruções fornecidas por Don Orsati. Era bastante evidente que estava vazia, pois Giancomo não teve qualquer problema em transportá-la para o outro lado da rua e atravessar a porta da frente da loja com ela nas mãos. Mas, alguns minutos mais tarde, quando a caixa reapareceu, veio carregada pelos dois homens que tinham entrado na loja primeiro, com Giancomo a segurar um dos lados como um cangalheiro. Os dois homens introduziram a caixa nas traseiras da carrinha e rastejaram para o interior atrás dela, enquanto Giancomo recuperava o seu lugar ao volante. Depois, a carrinha deslizou para longe do passeio, dobrou a esquina e desapareceu. Do interior do Au Petit Nice, ouviram-se festejos ruidosos. O Marselha marcara um golo contra o Lyon.

— Nada mau — disse Gabriel.

Keller olhou para as horas.

— Quatro minutos e doze segundos.

— Inaceitável segundo os padrões do Departamento, mas mais do que apropriado para esta noite.

— De certeza que não queres juntar-te à festa?

— Já tive o suficiente disso para a vida toda. Mas manda cumprimentos meus ao don — disse Gabriel. — E diz-lhe que o cheque está no correio.

Com isso, Keller partiu. Passado um momento, montado na Peugeot Satelis, passou a alta velocidade pelo Au Petit Nice, onde um homem de cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos estava sentado sozinho, interrogando-se quanto tempo passaria antes de Jean-Luc Martel descobrir que o chefe da sua divisão de estupefacientes ilícitos estava desaparecido.


36

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Celine era um Baia Atlantica 78 com três camarotes, um motor a gasóleo MTV capaz de atingir velocidades de cinquenta e quatro nós e uma proa longa e esguia que poderia receber um pequeno helicóptero. Todavia, Keller chegou à embarcação por meios menos vistosos, nomeadamente através de um barco insuflável Zodiac que fora deixado para ele numa marina isolada do estuário do Rhône, perto da cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer. Atou a lancha à plataforma para entrar na água que havia na popa e subiu até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo Marselha-Lyon na televisão por satélite. Vestido como estava agora, com a sua roupa corsa simples e sandálias empoeiradas, parecia nitidamente deslocado entre a decoração sumptuosa de couro e madeira. Giancomo estava na ponte com o timoneiro.

— O Marselha voltou a marcar — disse o don, desconsolado. Apontou o comando para o ecrã e desligou-o.

Keller passou os olhos pelo interior do salão.

— Esperava algo um pouco mais modesto.

— Estou demasiado velho para andar a deslocar-me pelo Mediterrâneo num barco de pesca. Para além disso, vais ficar contente por teres vinte e quatro metros de barco debaixo de ti hoje à noite. Parece que o vento vai soprar com força.

— A quem é que pertence?

— A um amigo de um amigo.

— E o timoneiro?

— É meu.

Keller baixou o olhar e, pela primeira vez, reparou em várias gotas de sangue que secavam no chão.

— Tinha uma arma na secretária quando eles entraram — explicou o don. — Levou um tiro no ombro.

— Vai sobreviver?

— Receio bem que sim.

— Ele viu a sua cara?

— Ainda não.

— Trouxe um martelo?

— Um bom — disse o don.

— Onde é que está o Devereaux?

— No quarto individual. Não quis que sujasse um dos quartos de casal.

Keller olhou novamente para o chão.

— Alguém devia mesmo limpar isto.

— Eu não — disse o don. — Não suporto ver sangue.

 

Um dos homens do don estava de guarda à porta do quarto individual. Do interior, não vinha qualquer som.

— Está consciente? — perguntou Keller.

— Vê por ti próprio.

Keller entrou e fechou a porta atrás de si. O quarto estava às escuras; cheirava a suor e a medo e vagamente a sangue. Acendeu a lâmpada de leitura embutida e apontou o cone de luz na direção da figura imóvel, esticada sobre a cama de solteiro. Fita adesiva prateada obscurecia-lhe os olhos e a boca. As mãos estavam atadas e presas ao tronco, as pernas e os tornozelos amarrados. Keller examinou o ferimento no ombro direito. Tinha havido uma perda significativa de sangue, mas, por agora, o fluxo parara. Ainda assim, a roupa de cama estava encharcada. O amigo de um amigo, pensou Keller, iria precisar de um novo colchão quando isto acabasse.

Arrancou-lhe a fita adesiva dos olhos. René Devereaux pestanejou rapidamente várias vezes. Então, quando Keller se inclinou para a luz, mostrando o seu rosto a Devereaux, o traficante de droga encolheu-se de medo. Aparentemente, conheciam-se mutuamente.

— Bonsoir, René. Obrigado por apareceres por cá. Como é que está o ombro?

Os seus olhos semicerraram-se, o medo evaporou-se. Devereaux estava a tentar enviar uma mensagem ao inglês da Córsega: não era homem para ser baleado, raptado e atado como uma ave de caça. Keller retirou a fita adesiva da boca de Devereaux, permitindo-lhe, assim, expressar os seus sentimentos,

— És um homem morto. Tu e esse corso gordo para quem trabalhas.

— Estás a referir-te ao Don Orsati?

— Que se foda o Don Orsati.

— Essas são palavras muito insensatas. Pergunto-me se te atreverias a proferi-las na cara do don.

— Cagava em cima do don. E do resto da família dele.

— Cagavas, a sério?

Keller saiu. Ao corso que se encontrava à saída da porta, disse:

— Pede a sua santidade que desça por um minuto.

— Está a ver o jogo.

— Tenho a certeza de que vai conseguir afastar-se da televisão — disse Keller. — E traz-me o martelo.

O corso subiu as escadas do barco e, passado um momento, com alguma dificuldade, Don Orsati desceu. Keller conduziu-o ao interior do camarote e exibiu-o para que René Devereaux o visse. O don sorriu perante o evidente desconforto de Devereaux.

— O Monsieur Devereaux tem uma coisa que gostaria de dizer-lhe — disse Keller. — Vá lá, René. Por favor diz ao Don Orsati o que me disseste há pouco.

Tendo sido recebido por silêncio, Keller acompanhou o don até à saída. Depois, pôs-se ameaçadoramente de pé por cima do traficante de droga cativo.

— É escusado dizer-te que não tens muitas opções. Podes contar-me o que eu quero saber, ou posso explicar ao don todas as coisas atrevidas que disseste sobre ele e a sua adorada família. E então... — Keller levantou as mãos para indicar a incerteza do destino de Devereaux perante um cenário tão carregado de emoções.

— Desde quando é que estás no ramo da informação? — perguntou Devereaux.

— Desde que mudei de carreira. Agora, estou a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Não ouviste dizer, René?

— Tu? Um espião inglês? Não acredito.

— Às vezes, eu próprio não acredito. Mas acontece que é verdade. E tu vais ajudar-me. Vais ser uma fonte confidencial e eu vou ser o teu agente superior.

— Não podes estar a falar a sério.

— Pensa nas tuas atuais circunstâncias. Não poderiam ser mais sérias. Tal como a nossa missão. Vais ajudar-me a encontrar o homem que tem andado a orquestrar todos os atentados terroristas aqui na Europa e na América.

— Como é que eu vou fazer isso? Sou um traficante de droga, pelo amor de Deus.

— Ainda bem que esclarecemos essa parte. Mas não és um traficante de droga qualquer, pois não? Traficante é uma palavra demasiado branda para o que tu fazes. Geres uma rede global inteira a partir daquela espelunca na Place Jean Jaurès. E fazes isso — disse Keller — para o Jean-Luc Martel.

— Quem? — perguntou Devereaux.

— O Jean-Luc Martel. O que é dono daqueles restaurantes todos e dos hotéis e que tem aquele cabelo.

— E a namorada inglesa bonita — disse Devereaux.

— Então conhece-lo mesmo.

— Claro. Costumava ir ao primeiro restaurante dele em Marselha. Ele era um zé-ninguém, na altura. Agora, é uma grande estrela.

— Graças à droga — disse Keller. — Haxixe, para ser mais específico. Haxixe que vem de Marrocos. Haxixe que tu distribuis por toda a Europa. O império do Martel colapsaria se não fosse pelo haxixe. Mas nunca te passaria pela cabeça excluí-lo do negócio, pois isso significaria que terias de encontrar um novo método para lavar cinco ou dez mil milhões por ano em lucros de droga. Os teus chamados «negócios legítimos» poderiam ser suficientes para te fazer parecer razoavelmente respeitável perante as autoridades fiscais francesas, mas nunca conseguirias lidar com todos os lucros de uma rede global de estupefacientes. Para isso, precisas de um verdadeiro conglomerado empresarial. Um conglomerado onde entram centenas de milhões de dólares por ano em receitas de caixa. Um conglomerado que adquire e constrói vastas quantidades de património imobiliário.

— E compra e vende quadros. — Após um silêncio, Devereaux acrescentou: — Soube que ela ia dar problemas assim que a conheci.

— Quem?

— Aquela cabra inglesa.

Keller fechou a mão direita num punho e dirigiu-o com toda a força para o ombro encharcado de sangue de Devereaux.

— Mas, voltando ao assunto que temos em mãos — disse, enquanto o francês se contorcia na cama em agonia. — Vais dizer-me tudo o que sabes sobre o Jean-Luc Martel. Os nomes dos vossos fornecedores em Marrocos. As rotas que utilizam para trazerem a droga para a Europa. Os métodos que usam para inserirem dinheiro na circulação financeira da JLM Enterprises. Tudo, René.

— E se eu concordar?

— Vamos gravar um vídeo — disse Keller.

— E se não concordar?

— Vais receber o tratamento JLM. E não estou a falar de um belo jantar nem de uma noite numa suíte de hotel luxuosa.

Devereaux conseguiu sorrir. Depois, bem do fundo da garganta, produziu uma bola abundante e gelatinosa de muco e cuspiu-a para o rosto de Keller. Com um canto da roupa de cama, Keller limpou calmamente a sujidade antes de sair para recuperar o martelo do corso. Golpeou Devereaux com ele várias vezes, concentrando os esforços no ombro direito e evitando totalmente a cabeça e o rosto. Depois, subiu as escadas até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo de futebol.

— Foi alguma coisa que ele disse ou que não disse?

— Foi alguma coisa que ele fez — respondeu Keller.

— Houve sangue?

— Um bocadinho.

— Ainda bem que esperaste até eu sair. Não suporto ver sangue.

Um festejo ribombante surgiu na televisão.

— Perdemos — disse o don melancolicamente.

— Sim — respondeu Keller. — Mas não percamos a esperança.


37

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Christopher Keller fez mais três visitas ao camarote mais pequeno do Celine: uma às onze, a segunda pouco depois da meia-noite e uma visita demorada com início à uma e meia da manhã que deixou René Devereaux, um calejado criminoso marselhês, com muito sangue nas mãos, a chorar descontroladamente e a implorar misericórdia. Keller fez-lhe a vontade, mas só com uma condição. Devereaux iria dizer-lhe tudo, para a câmara. Caso contrário, Keller partir-lhe-ia todos os ossos do corpo, lentamente, com cuidado e premeditação e pausas para renovação de energias e reflexão.

Já fizera enormes progressos nesse sentido. O ombro direito de Devereaux, no qual estava alojada uma bala, sofrera inúmeras fraturas. Adicionalmente, o cotovelo direto estava fraturado, tal como o esquerdo. Ambas as mãos estavam numa condição deplorável, e o ferimento no joelho direito, caso lhe fosse permitido sarar devidamente, provavelmente deixaria Devereaux com um coxear permanente a condizer com o de Saladino.

Deslocá-lo para o salão, onde fora montada uma câmara sobre um tripé, revelou-se um desafio. Giancomo puxou-o pelas escadas acima, enquanto Keller empurrava por baixo, oferecendo o apoio muitíssimo necessário para a perna arruinada. Foi providenciado conhaque, juntamente com um poderoso analgésico francês de venda livre que poderia fazer uma pessoa esquecer-se da falta de um membro. Keller ajudou Devereaux a vestir um casaco de marinheiro amarelo e, com um pente, arranjou-lhe o escasso cabelo fino. Então, ligou a câmara de vídeo e, depois de examinar cuidadosamente o plano, colocou a primeira questão:

— Como é que te chamas?

— René Devereaux.

— Qual é a tua profissão?

— Sou dono da loja de produtos eletrónicos da Place Jean Jaurès.

— Qual é a verdadeira natureza do teu trabalho?

— Droga.

— Onde é que conheceste o Jean-Luc Martel?

— Num restaurante em Marselha.

— Quem era o proprietário do restaurante?

— Philippe Renard.

— Qual era o verdadeiro negócio do Renard?

— Droga.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

— O que é que o Jean-Luc Martel faz agora?

— É proprietário de vários restaurantes, hotéis e estabelecimentos de venda a retalho.

— Qual é o verdadeiro negócio dele?

— Droga — disse René Devereaux.

 

Atracaram em Ajaccio às nove e meia. Daí, bastou uma agradável caminhada em redor da linha costeira curvilínea do golfo para chegar ao aeroporto. O voo seguinte para Marselha partia ao meio-dia. Keller chegou às onze e um quarto, depois de parar para um pequeno-almoço tardio e para comprar uma muda de roupa. Vestiu-a numa casa de banho do aeroporto e, depois, passou facilmente pela segurança sem nada na sua posse exceto a carteira, um passaporte britânico e o seu telemóvel do MI6, no qual havia um vídeo comprimido e fortemente encriptado do interrogatório de René Devereaux. Naquele momento, era provavelmente a informação mais importante de toda a guerra global contra o terrorismo.

Keller desligou o telefone antes da descolagem e não o voltou a ligar até estar a atravessar o terminal de Marselha. Mikhail estava à espera no exterior, na parte de trás da Maybach de Dmitri Antonov. Yaakov Rossman estava ao volante. Ouviram o interrogatório através do magnífico sistema sonoro do automóvel, enquanto se dirigiam para leste pela Autoroute.

— Deixaste escapar a tua verdadeira vocação — disse Mikhail. — Devias ter sido entrevistador de televisão. Ou inquisidor-geral.

— Arrependimento, meu filho.

— Achas que ele se vai arrepender?

— O Martel? Não sem dar luta.

— Não tem qualquer hipótese de se esconder deste vídeo. Agora, é nosso.

— Vamos ver — disse Keller.

Eram quase quatro da tarde quando a Maybach atravessou o portão da casa segura de Ramatuelle. Já no interior, Keller transferiu o ficheiro de vídeo para a rede informática operacional central. Passado um momento, o rosto de René Devereaux surgiu nos monitores.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

E assim continuou durante a maior parte de duas horas. Nomes, datas, locais, rotas, métodos, dinheiro... Tudo se resumia a dinheiro. Sujeito ao implacável interrogatório de Keller (e à ameaça, invisível no vídeo, do martelo), René Devereaux entregou os segredos mais preciosos da rede. Como o dinheiro era recolhido dos traficantes de rua. Como era carregado para a lavandaria que era a JLM Enterprises. E como, depois de limpo e passado, se dispersava. Tudo com um detalhe minucioso, de alta resolução. Não havia como esconder-se dele. Jean-Luc Martel estava na mira deles. Mas quem é que lhe ofereceria uma tábua de salvação? Paul Rousseau declarou que seria ele. Martel, disse, era um problema francês. Só uma solução francesa serviria.

E, portanto, com a ajuda de Gabriel, Rousseau preparou um clipe editado do interrogatório, com trinta e três segundos de duração. Era um teaser, um aperitivo. «Uma palmadinha de amor», como lhe chamou Gabriel. Martel estava rodeado da sua corte, no bar do seu restaurante do Porto Velho, quando o vídeo apareceu no seu telefone através de uma mensagem de texto anónima. O próprio telefone estava sob vigilância exaustiva, permitindo a Gabriel e Rousseau e ao resto da equipa observar as diversas tonalidades do alarme crescente de Martel enquanto o visualizava. Alguns segundos mais tarde, surgiu um segundo vídeo, apenas por segurança. Mostrava um breve encontro sexual entre Martel e Monique, a rececionista de Olivia na galeria. Fora gravado com o mesmo telefone que Martel tinha agora na mão e que, da perspetiva singular da equipa, parecia estar a tremer incontrolavelmente.

Foi neste ponto que Rousseau telefonou a Martel diretamente. Sem surpresa, este não atendeu, não deixando a Rousseau outra opção senão oferecer as suas condições numa mensagem de voz. Eram o equivalente a uma rendição incondicional. Jean-Luc Martel deveria apresentar-se imediatamente na Villa Soleil, sozinho, sem guarda-costas. Qualquer tentativa de fuga, advertiu Rousseau, seria intercetada. Os seus aviões e helicópteros seriam obrigados a aterrar, o seu iate a motor de quarenta e cinco metros seria bloqueado no porto.

— Obviamente — disse Rousseau — os seus movimentos e comunicações estão a ser monitorizados. Tem uma oportunidade de evitar a prisão e a ruína. Aconselho-o a aproveitá-la.

Com isso, Rouseau terminou a chamada. Transcorreram cinco minutos até que Martel ouviu a mensagem. Nesse momento, a espera começou. Gabriel colocou-se de pé diante dos monitores, com uma mão no queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, enquanto, no jardim, Christopher Keller esmagava o seu telefone do MI6 aos pedaços com um martelo. Rousseau observou a partir das portas francesas. Daria a Martel uma oportunidade para se salvar. Esperava que fosse suficientemente sensato para a aproveitar.


38

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

Dessa vez, deixaram-lhe o portão aberto, embora, seguindo a sugestão de Gabriel, tivessem bloqueado a estrada para lá da Villa Soleil, para o caso de ele mudar de ideias e tentar fugir para oeste ao longo da Côte d’Azur. Chegou, sozinho, às nove e um quarto dessa mesma noite, após uma série de telefonemas tensos com Paul Rousseau. A sua comparência na villa, alegou, não era, de forma alguma, uma admissão de nada. Não conhecia o homem do vídeo, as suas alegações eram absurdas. O seu negócio era o setor hoteleiro e o comércio de luxo, não a droga, e qualquer pessoa que alegasse o contrário enfrentaria graves consequências legais. Em resposta, Rousseau deixou claro que aquela não era uma questão legal, mas um assunto que envolvia a segurança nacional francesa. Durante um intercâmbio final tenso, Martel, na verdade, soou intrigado. Exigiu levar um advogado.

— Sem advogados — disse Rousseau. — Só atrapalham.

Mais uma vez, foi Roland Girard, do Grupo Alpha, quem o aguardou no pátio. Decididamente, a sua saudação foi menos cordial.

— Tem alguma arma consigo?

— Não seja ridículo.

— Levante os braços.

Relutantemente, Martel aceitou. Girard revistou-o minuciosamente, começando na parte de trás do pescoço e terminando nos tornozelos. Ao erguer-se, o agente do Grupo Alpha deu por si a fitar dois olhos escuros furiosos.

— Há alguma coisa que queira dizer-me, Jean-Luc?

Martel permaneceu em silêncio, algo inédito.

— Por aqui — disse Girard.

Levou Martel pelo cotovelo e conduziu-o até ao interior da villa. Christopher Keller aguardava no hall de entrada.

— Jean-Luc! Lamento imenso pelas circunstâncias do convite, mas precisávamos de atrair a sua atenção. — Foram as últimas palavras em francês que Keller proferiu. As restantes fluíram num inglês com sotaque britânico. — Há vidas em jogo, sabe, e não temos muito tempo. Por aqui, por favor.

Martel manteve-se imóvel.

— Passa-se alguma coisa, Jean-Luc?

— O senhor é...

— Não sou francês — interrompeu Keller. — E também não sou da ilha da Córsega. Foi tudo uma montagem feita especialmente para si. Receio bem que tenha sido alvo de um embuste bastante elaborado.

Atordoado, Martel seguiu Keller até à maior das salas de estar da villa, onde longas cortinas brancas ondulavam quais velas de navio empurradas pelo vento noturno. Natalie estava sentada na extremidade de um sofá, vestida com um fato de treino e os seus ténis verde-néon. Mikhail estava sentado à frente, com umas calças de ganga e um pulôver de algodão com decote em bico. Paul Rousseau estava a contemplar um dos quadros. E, no canto mais afastado da divisão, a sós na sua própria ilha privada, Gabriel examinava Jean-Luc Martel.

Foi Rousseau que, virando-se para trás, falou a seguir:

— Gostaria que pudéssemos dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não é. Quando olhamos para si, indagamo-nos sobre o motivo pelo qual fazemos o que fazemos. Sendo bastante honesto, a sua vida não é digna de proteção. Mas isso agora não é relevante. Precisamos da sua ajuda e, portanto, não temos outra opção senão acolhê-lo no nosso seio, por mais relutantemente que o façamos.

Os olhos de Martel saltitaram de rosto em rosto (o homem que conhecia como Monsieur Carnot, os Antonovs, a figura silenciosa que o observava do posto avançado solitário no canto da sala) até pousarem novamente em Rousseau.

— Quem é o senhor?

— O meu nome — respondeu Rousseau — não é importante. Na verdade, no nosso ramo de atividade, os nomes, realmente, não significam grande coisa, como tenho a certeza de que, neste momento, já se apercebeu.

— Para quem é que trabalha?

— Para um departamento do Ministério do Interior.

— A DGSI?

— Isso não é relevante. Efetivamente — acrescentou Rousseau —, o único aspeto a destacar quanto ao meu emprego é que não sou da polícia.

— E os outros? — perguntou Martel, olhando de relance para a divisão.

— São meus parceiros.

Martel olhou para Gabriel.

— Então, e ele?

— Pense nele como um observador.

Martel franziu o sobrolho.

— Porque é que eu estou aqui? Isto é sobre o quê?

— Droga — respondeu Rousseau.

— Já lhe disse, não estou envolvido com droga.

Rousseau expirou lentamente.

— Vamos saltar esta parte, sim? O Jean-Luc sabe como ganha a vida e nós também. Num mundo perfeito, estaria algemado neste preciso momento. Mas, escusado será dizer, este nosso mundo está longe de ser perfeito. É uma balbúrdia caótica e perigosa. Mas, o seu trabalho — disse Rousseau desdenhosamente — deixou-o numa posição singular para fazer alguma coisa a esse respeito. Estamos preparados para ser generosos se nos ajudar. E igualmente inclementes se não o fizer.

Martel endireitou os ombros e esticou-se para ficar um pouco mais alto.

— Esse vídeo — disse ele — não prova nada.

— Ouviu apenas uma pequena parte dele. O vídeo completo tem quase duas horas e é bastante extraordinário em termos de detalhe. Resumidamente, deixa a nu todos os seus segredos sujos. Se tal documento caísse nas mãos da polícia, certamente passaria os anos que lhe restam atrás das grades. Que é — acrescentou Rousseau enfaticamente — onde pertence. E se a gravação fosse dada a um jornalista zeloso que nunca acreditou no conto de fadas JLM, o impacto no seu império empresarial seria catastrófico. Todos os seus amigos poderosos, aqueles que suborna com comida e bebida e hospedagens de luxo, abandoná-lo-iam como ratos que fogem de um navio a afundar-se. Ninguém o protegeria.

Martel abriu a boca para responder, mas Rousseau prosseguiu.

— E depois há a questão da Galerie Olivia Watson. Tivemos oportunidade de analisar diversas transações da empresa. São, no mínimo, questionáveis. Principalmente aquelas quarenta e oito telas em branco que foram enviadas para o Freeport de Genebra. Colocou a Madame Watson numa posição insustentável. A galeria de arte dela, como o resto do seu império, é uma organização criminosa. Oh, suponho que seja possível para si evitar a forca, mas a sua esposa...

— Não é minha esposa.

— Oh, sim, desculpe — disse Rousseau. — Como é que devo referir-me a ela?

Martel ignorou a pergunta.

— Envolveram-na nisto?

— A Madame Watson não sabe de nada, e preferiríamos que assim continuasse. Não há necessidade de a arrastar para isto. Pelo menos, por agora. — Rousseau fez uma pausa, depois perguntou: — Como é que explicou a sua vinda aqui esta noite?

— Disse-lhe que tinha uma reunião de negócios.

— E ela acreditou?

— Porque é que não haveria de acreditar?

— Porque o Jean-Luc tem alguns antecedentes. — Rousseau fez um sorriso cúmplice. — O que faz no seu tempo livre não é da minha conta. Eu e o senhor somos franceses. Homens do mundo. Onde quero chegar é que não seria de todo problemático para nós se a Madame Watson ficasse com a impressão de que esteve com outra mulher esta noite.

— Não seria problemático para vocês — disse Martel —, mas para mim...

— Tenho a certeza de que vai pensar nalguma coisa para lhe dizer. Pensa sempre. Mas, voltando ao tema em questão — disse Rousseau. — Deveria ser evidente, neste momento, que o Jean-Luc foi alvo de uma operação cuidadosamente planeada. Agora, chegou o momento de passar para a próxima fase.

— A próxima fase?

— O prémio — disse Rousseau. — Vai ajudar-nos a encontrá-lo. E, se não o fizer, o objetivo da minha vida, de agora em diante, vai ser destruir o Jean-Luc Martel. E a Madame Watson. — Após um silêncio, Rousseau acrescentou: — Ou talvez a ideia de a Madame Watson sofrer pelos seus crimes não o incomode. Talvez ache esses sentimentos antiquados. Talvez não seja esse tipo de homem.

Martel retribuiu calmamente o olhar de Rousseau. Mas, quando os seus olhos pousaram novamente em Gabriel, a sua confiança pareceu vacilar.

— De qualquer forma — estava Rousseau a dizer —, agora pode ser um bom momento para ouvir o resto do interrogatório do René Devereaux. Não tudo, isso demoraria demasiado tempo. Apenas a parte relevante.

Olhou de soslaio para Mikhail, que premiu uma tecla de um computador portátil. Instantaneamente, o quarto expandiu-se com o som de dois homens a falarem em francês, um com um marcado sotaque corso, o outro como se estivesse em sofrimento físico.

— De onde é que vem a droga?

— De todo o lado. Turquia, Líbano, Afeganistão, de todo o lado.

— E o haxixe?

— O haxixe vem de Marrocos.

— Quem é o vosso fornecedor?

— Costumávamos ter vários. Agora trabalhamos com um homem. É o maior produtor do país.

— O nome dele?

— Mohammad.

— Mohammad quê?

— Bakkar.

Mikhail colocou a gravação em pausa. Rousseau olhou para Jean-Luc Martel e sorriu.

— Porque é que não começamos por aí? — disse. — Pelo Mohammad Bakkar.


39

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Há muitos motivos pelos quais um indivíduo pode aceitar trabalhar para um serviço secreto, poucos deles admiráveis. Alguns fazem-no por avareza, alguns por amor ou convicção política. E alguns fazem-no porque se sentem aborrecidos ou insatisfeitos ou têm sede de vingança por terem sido preteridos numa promoção, enquanto colegas que consideram invariavelmente inferiores são empurrados pela escada do sucesso. Com um pouco de adulação e um pote de dinheiro, essas almas desprezíveis podem ser convencidas a revelar os segredos que passam pelas pontas dos seus dedos ou através das redes informáticas que são contratados para manter. Agentes secretos profissionais não têm qualquer problema em aproveitar-se desses homens, mas, secretamente, desprezam-nos. Quase tanto quanto o homem que trai o seu país por motivos de consciência. Esses são os idiotas úteis do ofício. Para os profissionais, não existe forma de vida mais baixa.

O profissional nem sequer confia naqueles que oferecem voluntariamente os seus serviços, pois, frequentemente, é difícil avaliar os seus verdadeiros motivos. Em vez disso, prefere identificar um potencial recruta e, depois, dar o primeiro passo. Normalmente, aproxima-se com presentes, mas, por vezes, tem necessidade de utilizar métodos menos agradáveis. Consequentemente, o profissional está sempre à espreita de falhas e fraquezas: um caso extraconjugal, uma predileção por pornografa, uma indiscrição financeira. Essas são as chaves mestras do ofício. Destrancam qualquer porta. Para além disso, a coerção é um excelente clarificador de intenções. Ilumina os recantos obscuros do coração humano. O homem que espia porque não tem outra hipótese é um mistério menor do que um que entra numa embaixada com uma pasta repleta de documentos roubados. Ainda assim, nunca se pode confiar plenamente no confidente coagido. Inevitavelmente, tentará encontrar alguma forma de retribuir a injustiça que recaiu sobre ele, e só pode ser controlado durante o tempo em que o seu pecado original continuar a ser uma ameaça para ele. Por conseguinte, o colaborador e agente responsável por o controlar dão por si, invariavelmente, enredados num caso amoroso destinado ao fracasso.

Era nessa categoria de colaborador que Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se enquadrava. Não oferecera voluntariamente os seus serviços. Nem fora atraído para o festim através do poder da persuasão. Fora identificado, avaliado e selecionado como alvo através de uma operação elaborada e dispendiosa. A sua relação com Olivia Watson fora dilacerada, o seu parceiro de negócios fora espancado impiedosamente com um martelo, ele fora ameaçado com prisão e ruína. Apesar disso, continuava a ser necessário fazer um recrutamento. A coerção poderia abrir uma porta, mas fechar um acordo exigia habilidade e sedução. Um compromisso teria de ser alcançado. Precisavam de Jean-Luc Martel muito mais do que ele precisava deles. Traficantes de droga existiam com fartura. Mas Saladino era único.

Jean-Luc não se entregou facilmente ao seu destino, mas isso era de esperar; um homem que mata tanto o pai como o seu mentor não é um homem que se assuste facilmente. Esquivou-se, contra-atacou, fez as suas próprias ameaças. Contudo, Rousseau, não mordeu o isco. Foi o contraste perfeito: inofensivo na aparência, controlado no temperamento, tolerante perante as falhas. Martel testou a paciência de Rousseau muitas vezes, tal como quando exigiu garantias escritas, em papel timbrado oficial do Ministério do Interior, da concessão de imunidade para uma possível acusação, agora e para sempre, ámen. Não competia a Rousseau conceder tal clemência, pois estava a operar sem mandado do ministro, nem sequer conhecimento dos seus chefes da DGSI. E, portanto, sorriu perante a intransigência de Martel e, com um aceno de cabeça na direção de Mikhail, passou um momento ou dois do interrogatório marítimo de René Devereaux.

— Está a mentir — explodiu Martel quando o som se silenciou. — É uma fantasia completa.

Foi nesse ponto, recordaria mais tarde Gabriel (e as câmaras ocultas confirmaram que assim foi) que Martel começou a ceder. Instalou-se ao lado de Mikhail, uma escolha curiosa, e fitou o rosto de Natalie, que por sua vez pespegou os olhos no chão. Seguiu-se um longo silêncio, suficientemente longo para que Rousseau considerasse apropriado voltar a passar o fragmento relevante da gravação, o fragmento relativo a um tal de Mohammad Bakkar, um dos maiores produtores de haxixe de Marrocos (segundo alguns relatos, o maior), um homem que gostava de se autodenominar o rei das Montanhas do Rife, a região do país onde o haxixe é cultivado e processado para exportar para a Europa e para lá dela. O homem que, de acordo com René Devereaux, era o único e exclusivo fornecedor de Martel.

— Presumo — disse Rousseau tranquilamente — que já ouviu o nome.

E Martel, com um movimento mínimo da cabeça, confirmou que sim. Então, os olhos moveram-se de Natalie para Keller, que estava de pé atrás dela de forma protetora. Keller enganara-o, Keller traíra-o. E, contudo, parecia que Jean-Luc Martel via Keller como o seu único amigo na divisão.

— Porque é que não nos dá um pouco de contexto? — sugeriu Rousseau. — Afinal de contas, somos amadores. Pelo menos no que se refere ao negócio de estupefacientes. Ajude-nos a entender como tudo funciona. Ilumine-nos quanto às maldades do seu mundo.

O pedido de Rousseau não era tão inocente como parecia. René Devereaux já fornecera a Keller informações detalhadas sobre as ligações de Mohammad Bakkar à rede. Mas Rousseau queria pôr Martel a falar, o que lhes permitiria testar a veracidade das suas palavras. Era de esperar uma certa quantidade de engano. Rousseau exigiria verdade absoluta apenas quando isso fosse importante.

— Fale-nos um pouco sobre esse tal Mohammad Bakkar — estava a dizer. — É baixo ou alto? É magro ou é gordo como eu? Tem algum cabelo ou é careca? Tem uma mulher ou duas? Fuma? Bebe? É religioso?

— É baixo — respondeu Martel passado um momento. — E, não, não bebe. O Mohammad é religioso. Muito religioso, na verdade.

— Acha isso surpreendente? — perguntou Rousseau rapidamente, aproveitando-se do facto de Martel ter, finalmente, respondido a uma questão. — Que um produtor de haxixe seja um homem religioso?

— Eu não disse que o Mohammad Bakkar era produtor de haxixe. O negócio dele são as laranjas.

— Laranjas?

— Sim, laranjas. Portanto, não, não acho surpreendente que seja um homem religioso. As laranjas são um modo de vida no Rife. O rei tem tentado encorajar os produtores a cultivar outros produtos, mas as laranjas são mais lucrativas do que a soja e os rabanetes. Muito mais — acrescentou Martel com um sorriso.

— Talvez o rei se devesse esforçar mais.

— Na minha opinião, o rei prefere que as coisas fiquem como estão.

— Então porquê?

— Porque as laranjas levam vários milhares de milhões de dólares por ano para o país. Ajudam a manter a paz. — Baixando a voz, Martel acrescentou: — O Mohammad Bakkar não é o único homem religioso de Marrocos.

— Há muitos extremistas em Marrocos?

— Vocês devem saber isso melhor do que eu — disse Martel.

— O ISIS tem muitas células em Marrocos?

— Dizem que sim. Mas o rei não gosta de falar disso — acrescentou. — O ISIS é mau para o turismo.

— O Jean-Luc tem um negócio em Marrocos, não tem? Um hotel em Marraquexe, se não estou em erro.

— Dois — vangloriou-se Martel.

— Como é que vai o negócio?

— Fraco.

— Lamento ouvir isso.

— Vamos dar a volta à situação.

— Tenho a certeza que sim. E a que é que atribui esta queda no negócio? — perguntou Rousseau. — É o ISIS?

— Os atentados nos hotéis da Tunísia tiveram um grande impacto nas nossas reservas. As pessoas temem que Marrocos venha a seguir.

— É seguro para os turistas irem até lá?

— É seguro — disse Martel — até deixar de ser.

Rousseau permitiu a si próprio um sorriso perante a perspicácia da observação. Depois, assinalou que os interesses empresariais de Martel lhe permitiam entrar e sair de Marrocos, um famigerado país produtor de droga, sem levantar suspeitas. Martel, encolhendo os ombros, não contestou a conclusão de Rousseau.

— Recebe o Mohammad Bakkar no seu hotel em Marraquexe?

— Nunca.

— Porque não?

— Ele não gosta de Marraquexe. Ou daquilo em que Marraquexe se tornou, diria eu.

— Demasiados estrangeiros?

— E homossexuais — disse Martel.

— E ele não gosta de homossexuais devido às suas crenças religiosas?

— Suponho que sim.

— Habitualmente, onde é que se encontra com ele?

— Em Casa — disse Martel, utilizando a abreviatura local para Casablanca — ou em Fez. Tem um riad no coração da medina. Também é proprietário de várias villas no Rife e no Médio Atlas.

— Desloca-se muito de um lado para o outro?

— As laranjas são um negócio perigoso.

Rousseau sorriu novamente. Nem mesmo ele era imune ao imenso charme de Martel.

— E, quando se encontra com o Monsieur Bakkar, de que é que falam?

— Do Brexit. Do novo presidente americano. Das perspetivas para a paz no Médio Oriente. O costume.

— Obviamente — disse Rousseau —, está a brincar.

— Não, de todo. O Mohammad é bastante inteligente e interessa-se pelo mundo para lá do Rife.

— Como é que descreveria a ideologia política dele?

— Não é um admirador do Ocidente. Cultiva um particular ressentimento em relação à França e à América. Por norma, tento não proferir a palavra Israel na presença dele.

— Enraivece-o?

— Pode-se dizer que sim.

— E, no entanto, faz negócios com um homem assim.

— As laranjas dele — disse Martel — são de muito boa qualidade.

— E, quando acabam de falar do estado do mundo, de que é que falam?

— De preços, horário de produção, datas de entrega, esse tipo de coisas.

— Os preços flutuam?

— Oferta e procura — explicou Martel.

— Há alguns anos — continuou Rousseau — reparámos numa mudança evidente na forma como as laranjas estavam a sair do Norte de África. Em vez de virem através do Mediterrâneo, uma ou duas de cada vez, a bordo de pequenas embarcações, começaram a chegar toneladas de laranjas em grandes navios de carga, todos provenientes de portos da Líbia. Houve um súbito excedente no mercado? Ou há alguma outra razão para explicar a mudança na estratégia?

— A segunda opção — disse Martel.

— E qual foi essa razão?

— O Mohammad decidiu unir-se a um parceiro.

— Uma pessoa física?

— Sim.

— Suponho que teria de ser um homem, porque alguém como o Mohammad Bakkar nunca lidaria com uma mulher.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Esse parceiro queria assumir uma postura mais agressiva no mercado?

— Muito mais agressiva.

— Porquê?

— Porque queria maximizar os lucros rapidamente.

— Encontrou-se com ele?

— Duas vezes.

— O nome dele?

— Khalil.

— Khalil quê?

— Só isso, simplesmente Khalil.

— Era marroquino?

— Não, definitivamente não era marroquino,

— De onde era?

— Nunca disse.

— E se tivesse de arriscar um palpite?

Jean-Luc Martel encolheu os ombros.

— Diria que era iraquiano.


40

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Foi evidente para toda a gente na sala (e, uma vez mais, as câmaras ocultas assim o confirmaram) que Jean-Luc Martel não percebeu o significado das palavras que acabara de proferir. Diria que era iraquiano... Um iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido, sem patronímico nem um gentílico ancestral, apenas Khalil. O mesmo Khalil que encontrara um parceiro em Mohammad Bakkar, um produtor de haxixe de profunda fé islâmica que odiava a América e o Ocidente e se enfurecia perante a simples menção de Israel. O Khalil que queria maximizar lucros forçando a entrada de mais produto no mercado europeu. Gabriel, o observador silencioso do drama que concebera e produzira, advertiu a si próprio para não se precipitar para uma conclusão prematura. Era possível que o homem que se autodenominava Khalil não fosse o homem de que andavam à procura, que fosse um mero criminoso banal sem outros interesses a não ser fazer dinheiro; que fosse um gambozino que lhes faria desperdiçar tempo e recursos preciosos. Ainda assim, até mesmo Gabriel teve dificuldade em controlar o bater desenfreado do seu coração. Ele puxara a ponta solta, unira os pontos e o rasto tinha-o conduzido até ali, à antiga casa de um inimigo derrotado. Contudo, os outros membros da sua equipa pareciam totalmente indiferentes à revelação de Martel. Natalie, Mikhail e Christopher Keller estavam, cada um deles, absortos nos seus pensamentos e Paul Rousseau aproveitara aquele momento para carregar o seu primeiro cachimbo. Passado um momento, o seu isqueiro acendeu-se e uma nuvem de fumo rolou sobre as duas cenas venezianas de Guardi. Gabriel, o restaurador, estremeceu involuntariamente.

Se Rousseau ficou minimamente intrigado pelo iraquiano que se autodenominava Khalil, não revelou qualquer sinal exterior disso. Khalil era um pensamento secundário. Khalil não tinha qualquer importância. Rousseau estava mais interessado, ou assim parecia, nos aspetos práticos da relação de Martel com Mohammad Bakkar. Quem dirigia as operações? Era isso que ele queria saber. Quem ocupava a posição superior? Era Martel, o distribuidor, ou Bakkar, o produtor marroquino?

— Não percebe muito de negócios, pois não?

— Sou um académico — desculpou-se Rousseau.

— É uma negociação — explicou Martel. — Mas, em última análise, o produtor ocupa a posição superior.

— Porque pode excluir o distribuidor a qualquer momento?

— Correto.

— O Jean-Luc não conseguiria encontrar outra fonte de droga?

— Laranjas — disse Martel.

— Ah, sim, laranjas — concordou Rousseau.

— Não é assim tão fácil.

— Pela qualidade das laranjas do Mohammad Bakkar?

— Pelo facto de o Mohammad Bakkar ser um homem com poder e influência consideráveis.

— Desencorajaria outros produtores a venderem-lhe o seu produto?

— Intensamente.

— E quando o Mohammad Bakkar lhe disse que queria aumentar drasticamente a quantidade de laranjas que estava a enviar para a Europa?

— Aconselhei-o a não o fazer.

— Porquê?

— Por inúmeras razões.

— Tais como?

— Grandes carregamentos são perigosos por natureza.

— Porque é mais fácil para as autoridades encontrarem-nos?

— Obviamente.

— Que mais?

— Estava preocupado com a possibilidade de saturarmos o mercado.

— E, por conseguinte, fazer cair o preço das laranjas na Europa Ocidental.

— Oferta e procura — disse Martel novamente, com um encolher de ombros.

— E quando mencionou essas preocupações?

— Deu-me uma escolha muito simples.

— Pegar ou largar?

— Com todas as letras.

— E o Jean-Luc pegou — disse Rousseau.

Martel ficou em silêncio. Rousseau mudou de ângulo abruptamente.

— O envio — disse ele. — Quem é o responsável pelo envio?

— O Mohammad. Ele põe a embalagem no correio e nós vamos buscá-la do outro lado.

— Presumo que ele lhe diz quando esperar a encomenda.

— Claro.

— Quais são os métodos preferidos dele?

— Antigamente, usava barcos pequenos para trazer a mercadoria diretamente através do Mediterrâneo, de Marrocos para Espanha. Depois, os espanhóis apertaram o controlo na costa, portanto ele começou a movê-la através do Norte de África para os Balcãs. Era uma viagem longa e onerosa. Muitas laranjas desapareciam pelo caminho. Principalmente quando chegavam ao Líbano e aos Balcãs.

— Eram roubadas por gangues criminosos locais?

— As máfias sérvia e búlgara gostam bastante de citrinos — disse Martel. — O Mohammad passou anos a tentar arranjar uma forma de fazer as laranjas chegarem à Europa sem terem de atravessar esse território. E, depois, caiu-lhe uma solução no colo.

— A solução — disse Rousseau — foi a Líbia.

Martel assentiu lentamente com a cabeça.

— Foi um sonho tornado realidade, possibilitado pelo presidente francês e pelos amigos de Washington e Londres que declararam que o Kadhafi tinha de cair. Assim que o regime se desmoronou, a Líbia abriu as portas da loja. Era o Oeste Selvagem. Sem governo central, sem polícia, sem qualquer tipo de autoridade exceto as milícias e os psicopatas islâmicos. Mas havia um problema.

— Qual era?

— As milícias e os psicopatas islâmicos — disse Martel.

— Não aprovavam as laranjas?

— Não era isso. Queriam uma parte. Caso contrário, não deixariam as laranjas chegarem aos portos líbios. O Mohammad precisava de um parceiro local, alguém que pudesse manter as milícias e guerreiros sagrados na linha. Alguém que conseguisse garantir que as laranjas encontravam o caminho até ao interior dos navios de carga.

— Alguém como o Khalil? — perguntou Rousseau.

Martel não deu qualquer resposta.

— Lembra-se de um navio chamado Apollo? — perguntou Rousseau. — Os italianos apreenderam-no ao largo da Sicília com dezassete toneladas de laranjas nos porões.

— O nome — disse Martel dissimuladamente — é-me familiar.

— Suponho que a carga era sua.

Martel, com o seu olhar inexpressivo, confirmou que era.

— Houve outros navios antes do Apollo que não tenham sido intercetados?

— Vários.

— E, recorde-me — disse Rousseau, fingindo confusão —, quem é que suporta o custo de uma apreensão? O produtor ou o distribuidor?

— Não posso vender laranjas se não as receber.

— Então, o que me está a dizer, e por favor desculpe-me, Monsieur Martel, não pretendo insistir excessivamente na questão, é que o Mohammad Bakkar perdeu, pessoalmente, milhões de euros quando o Apollo foi apreendido?

— Correto.

— Deve ter ficado furioso.

— Bem mais do que isso — disse Martel. — Convocou-me para ir a Marrocos e acusou-me de filtrar a informação aos italianos.

— Porque é que faria uma coisa dessas?

— Porque estava contra os grandes carregamentos desde o início. E a melhor forma de os fazer parar seria perder um ou dois navios.

— Foi o Jean-Luc o responsável pela fuga de informação que conduziu os italianos até ao Apollo?

— Claro que não. Disse ao Mohammad de forma absolutamente categórica que o problema estava do lado dele.

— Com isso — disse Rousseau — referia-se ao Norte de África.

— À Líbia — disse Martel.

— E quando as apreensões continuaram?

— O Khalil conteve as fugas. E as laranjas começaram a chegar novamente em segurança.

 

Ei-lo novamente. O nome do novo parceiro agressivo de Mohammad Bakkar. O homem que Paul Rousseau andara a evitar. Depois de uma pausa prolongada para carregar e acender outro cachimbo, indagou quando é que Jean-Luc se encontrara pela primeira vez com esse iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido. Sem patronímico nem gentílico ancestral. Só Khalil. Martel disse que fora em 2012. Na primavera, pensava. No final de março, talvez, mas não sabia precisar com certeza. Contudo, Rousseau, não acreditou. Martel era dono e senhor de uma vasta organização criminosa, cujo funcionamento conhecia de cor e salteado. Certamente, insistiu Rousseau, conseguia recordar-se da data de tão memorável encontro.

— Foi no dia vinte e nove de março.

— E as circunstâncias? O Jean-Luc foi convocado ou era um encontro agendado previamente?

Martel indicou que a sua presença fora solicitada.

— E, geralmente, como é que isso se faz? É uma questão menor, sabe, mas estou curioso.

— Deixam-me uma mensagem no meu hotel em Marraquexe.

— Uma mensagem de voz?

— Sim.

— E a primeira reunião em que o Khalil esteve presente?

— Foi em Casa. Voei para lá no meu avião e instalei-me no hotel. Algumas horas depois, disseram-me onde ir.

— O Mohammad telefonou-lhe pessoalmente?

— Um dos homens dele. O Mohammad não gosta de usar o telefone para tratar de negócios.

— E o hotel? Qual foi, por favor?

— O Sofitel.

— E foi sozinho?

— A Olivia foi comigo.

Rousseau franziu o sobrolho pensativamente.

— Leva-a sempre consigo?

— Sempre que possível.

— Porquê?

— As aparências são importantes.

— Ela foi à reunião?

— Não. Ficou no hotel enquanto eu fui a Anfa.

— Anfa?

Era um enclave abastado numa colina a oeste do centro, explicou Martel, uma zona de avenidas ladeadas de palmeiras e villas amuralhadas onde o preço por metro quadrado rivalizava com Londres e Paris. Mohammad Bakkar era dono de uma propriedade aí. Como de costume, Martel teve de se submeter a uma revista antes de ser autorizado a entrar. Foi, recordava agora, mais invasiva do que o normal. No interior, esperava encontrar Bakkar sozinho, como era habitual nas reuniões. Em vez disso, havia outro homem presente.

— Descreva-o, por favor.

— Alto, ombros largos, rosto e mãos grandes.

— A pele?

— Escura, mas não muito.

— Como é que estava vestido?

— À ocidental. Fato escuro, camisa branca, sem gravata.

— Cicatrizes ou características distintivas?

— Não.

— Tatuagens?

— Só consegui ver-lhe as mãos.

— E?

Martel abanou a cabeça.

— Foram apresentados?

— Sucintamente.

— Ele falou?

— Comigo não. Só com o Mohammad.

— Em árabe, presumo.

— Sim.

— O Mohammad Bakkar fala árabe magrebino.

— Darija — disse Martel.

— E o outro homem? Também falava darija?

Martel abanou a cabeça.

— Consegue perceber a diferença?

— Aprendi a falar um pouco de árabe quando era criança. Com a minha mãe — acrescentou. — Portanto, sim, consigo perceber a diferença. Falava como alguém do Iraque.

— E não se interrogou sobre a origem desse homem, dado que o ISIS tinha conquistado grande parte do Iraque e da Síria e estabelecido uma base de operações na Líbia? Ou talvez não quisesse saber — acrescentou Rousseau desdenhosamente. — Talvez seja melhor não fazer demasiadas perguntas numa situação dessas.

— Regra geral — disse Martel —, podem ser más para o negócio.

— Principalmente quando o ISIS e semelhantes estão envolvidos. — Rousseau controlou a raiva. — E a segunda reunião? Quando foi?

— Em dezembro passado.

— Depois dos atentados de Washington?

— Sem dúvida.

— A data exata, por favor.

— Creio que foi no dia dezanove.

— E as circunstâncias?

— Foi na nossa reunião anual de inverno.

— Onde é que teve lugar?

— O Mohammad estava sempre a mudar a localização. Acabámos por nos encontrar numa pequena povoação no topo do Rife.

— Qual era a ordem de trabalhos?

— Previsões de preços e datas de entrega para o novo ano. O Mohammad e o iraquiano queriam introduzir ainda mais produto no mercado. Muito produto. E rapidamente.

— Como é que ele estava vestido dessa vez?

— Como um marroquino.

— O que é que isso significa?

— Tinha uma jilaba.

— Uma túnica tradicional muçulmana com capuz.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o rosto dele estava mais magro e anguloso.

— Tinha perdido peso?

— Cirurgia plástica.

— Havia mais alguma coisa diferente nele?

— Sim — disse Martel. — Ao caminhar, coxeava.


CONTINUA

26

TELAVIVE – SAINT-TROPEZ

Assim sendo, faltava apenas o dinheiro. O dinheiro necessário para levar a operação de Gabriel da fase de produção à cena. Os duzentos ou trezentos milhões para adquirir uma coleção de arte vistosa. Os doze milhões para uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e os cinco milhões, mais coisa menos coisa, para a tornar apresentável. E, depois, havia o dinheiro para todos os pequenos extras da vida. Os carros, as roupas, as joias, os restaurantes, as viagens de avião privado, as festas luxuosas. Gabriel tinha um número em mente, ao qual acrescentou outros vinte milhões, para o caso de serem necessários. As operações, como a própria vida, eram incertas.

— Isso é muito dinheiro — disse o primeiro-ministro.

— Quinhentos milhões já não dão para tanta coisa como antigamente.

— Onde fica o banco?

— Temos vários à escolha, mas o Banco Nacional do Panamá é a nossa melhor opção. Conseguimos fazer tudo lá — explicou Gabriel — e a ameaça de retaliação é reduzida, depois do escândalo com os Papéis do Panamá. Ainda assim, vamos deixar algumas pistas falsas para cobrir o nosso rasto.

— Quem é que vai culpar?

— Os norte-coreanos.

— Porque não os iranianos?

— Da próxima vez — prometeu Gabriel.

Os fundos visados estavam distribuídos por oito contas separadas, todas em nome da mesma empresa de investimentos fantasma. Faziam parte de uma vasta fortuna de dinheiro furtado, controlada pelo governante da Síria e pelos seus amigos e parentes próximos. Pouco tempo antes de se tornar chefe, Gabriel localizara e depois confiscara a maior parte da fortuna, numa tentativa de moderar a conduta assassina do governante na guerra civil síria. Mas fora obrigado a devolver o dinheiro, mais de oito mil milhões de dólares, em troca de uma única vida humana. Pagara o resgate sem arrependimento: tinha sido, dizia sempre, o melhor negócio que alguma vez fizera. Ainda assim, tinha estado à procura de uma desculpa, qualquer desculpa, para ter a última palavra. Encontrar Saladino era um motivo tão bom como qualquer outro.

Gabriel não devolvera os oito mil milhões diretamente ao governante sírio. Depositara-o, conforme fora instruído a fazer, no Gazprombank, em Moscovo, por conseguinte colocando-o, na prática, nas mãos do czar, o benfeitor e amigo mais próximo do governante sírio. O czar tirara metade do dinheiro para si: taxas de serviço, despesas de transporte, envio e manutenção. Os restantes fundos, ligeiramente superiores a quatro mil milhões de dólares, tinham sido depositados numa série de contas secretas na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein, Dubai, Hong Kong e, claro, no Banco Nacional do Panamá.

Gabriel sabia disso porque, com o auxílio de uma unidade altamente sigilosa de hackers do Departamento, observara cada uma das movimentações do dinheiro. A unidade não tinha nome oficial porque, oficialmente, não existia. Aqueles que tinham sido informados do seu trabalho referiam-se a ela unicamente como «o Minyan», pois era constituída por dez elementos, todos do sexo masculino. Premindo, simplesmente, algumas teclas do computador, conseguiam deixar uma cidade às escuras, cegar os radares de um centro de controlo aéreo ou fazer as turbinas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem furiosa e descontroladamente. Em suma, tinham a capacidade de virar as máquinas contra os seus amos. Em privado, Uzi Navot referia-se ao Minyan como dez boas razões pelas quais ninguém no seu perfeito juízo alguma vez usaria um computador ou um telemóvel.

O Minyan trabalhava numa sala ao fundo do mesmo corredor que albergava a divisão onde a equipa de Gabriel estava a fazer os retoques finais do planeamento pré-operacional. O seu líder formal era um miúdo chamado Ilan. Era o equivalente cibernético de Mozart. Primeiro código informático aos cinco, primeiro hack aos oito, primeira operação secreta contra os iranianos aos vinte e um. Era magro como um indigente e tinha a palidez macilenta de alguém que não saía muito para o exterior.

— Basta-me carregar num botão — disse com um sorriso travesso — e puf: o dinheiro desaparece.

— Sem deixar impressões digitais?

— Só norte-coreanas.

— E não há nenhuma forma de conseguirem seguir o rasto do dinheiro do Banco do Panamá para o HSBC em Paris?

— Nem pensar.

— Lembra-me — disse Gabriel — para guardar o meu dinheiro debaixo do colchão.

— Guarda o teu dinheiro debaixo do colchão.

— Era um pedido retórico, Ilan. Não queria realmente que me lembrasses.

— Oh.

— Tens de sair para o mundo real de vez em quando.

— Isto é o mundo real.

Gabriel fitou o ecrã do computador. Ilan também o fitou.

— Então? — perguntou Gabriel.

— Então o quê?

— Estás à espera de quê?

— De autorização para roubar quinhentos milhões de dólares.

— Isto não é roubar.

— Duvido que os sírios vejam isso da mesma forma. Ou os panamenhos.

— Carrega no botão, Ilan.

— Ia sentir-me melhor se fosses tu a fazê-lo.

— Qual é?

Ilan indicou a tecla enter. Gabriel premiu-a uma vez. Depois, caminhou até ao fundo do corredor e informou a sua equipa das notícias. O financiamento necessário tinha chegado. Estavam em ação.

 

Deixou-se ver pela primeira vez na semana seguinte, na quarta-feira, a sair da Bonhams, na New Bond Street, com Julian Isherwood no seu encalço. Quis a sorte (ou, olhando para trás, talvez não tivesse sido, de todo, sorte) que Amelia March da ARTnews estivesse no passeio nesse momento, a matar tempo para o encontro agendado para as duas horas com o presidente do departamento de pós-guerra e contemporânea da Bonhams. Era uma jornalista de arte, não uma verdadeira jornalista, mas tinha faro para uma boa história e olho para o pormenor. Alto, elegante, bastante louro, mais para o pálido, sem qualquer cor nos olhos. O seu casaco e sobretudo eram perfeitos, o perfume cheirava a dinheiro. Achou estranho que estivesse na companhia de um fóssil como Julian. Aparentava ter um gosto mais virado para o moderno, em vez de anjos, santos e mártires. Isherwood fez uma apresentação apressada antes de enfiar o seu cúmplice no banco de trás de uma limusina Jaguar que os aguardava. Dmitri Qualquer Coisa. Só podia.

No interior da Bonhams, Amelia conseguiu apurar que Isherwood e o amigo alto e pálido tinham passado várias horas com Jeremy Crabbe, o especialista em Grandes Mestres da casa de leilões. Localizou Jeremy no Wilton mais tarde nessa mesma noite. Conversaram como dois espiões num café de Viena no pós-guerra.

— O nome é Antonov. Dmitri Antonov. Russo, suponho, mas o assunto não veio à baila na conversa informal. Está completamente a nadar em dinheiro. Trabalha em qualquer coisa no setor dos recursos naturais. Não é o que fazem todos? — disse Jeremy, arrastando a voz. — O Julian agarrou-se a ele como uma lapa ao casco de um navio. Aparentemente, age tanto na qualidade de vendedor como de consultor. Uma relação bem confortável, financeiramente falando. Parece que o Dmitri tirou vários quadros das mãos do Julian e agora andam à caça grossa. Mas não me cites em relação a isso. Na verdade, não me cites em relação a nada. Isto é tudo off the record. Estritamente entre nous, minha querida.

Amelia concordou em manter a informação confidencial, mas Jeremy não foi tão discreto. Na verdade, disse a toda a gente no bar, incluindo a Oliver Dimbleby. No final da noite, era o único tema de conversa entre todos ali presentes.

Em meados de março, ambos foram vistos na Christie’s e na Sotheby’s. Também fizeram uma visita à galeria de Oliver na Bury Street, onde, após uma hora de negociação inócua, se comprometeram com a aquisição de uma paisagem de uma duna montanhosa do pintor holandês Jacob van Ruisdael, de duas cenas de canais venezianos de Francesco Guardi e de um funeral de Zelotti. Roddy Hutchinson vendeu-lhe cinco quadros no total, incluindo uma natureza morta com fruta e um lagarto de Ambrosius Bosschaert II. No dia seguinte, Amelia March publicou um pequeno artigo sobre um jovem russo que andava a agitar as águas do mercado de arte londrino. Julian Isherwood, na qualidade de porta-voz do russo, recusou tecer quaisquer comentários.

— Quaisquer compras efetuadas pelo meu cliente foram privadas — disse ele — e continuarão a sê-lo.

O início de abril viu Isherwood e o seu amigo russo do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, onde a sua chegada foi ansiosamente antecipada. Visitaram as casas de leilões e as galerias, jantaram em todos os restaurantes certos e até assistiram a um musical na Broadway. Um colunista de mexericos do Post relatou que adquiriram vários quadros de Grandes Mestres da Otto Naumann Lda., na East Eightieth Street, mas, uma vez mais, Isherwood balbuciou qualquer coisa sobre o desejo de privacidade do seu cliente. Segundo constava, esse desejo não era assim tão intenso. Quem se encontrou com ele ficou com a impressão de que era um homem que gostava de ser visto. O mesmo se aplicava à bonita jovem (aparentemente era sua esposa, mas tal nunca foi irrefutavelmente provado) que o acompanhou à América. Era esbelta, morena, francesa e profundamente antipática.

— Não perdeu uma única oportunidade de se ver ao espelho — disse o gerente de uma joalharia exclusiva da Quinta Avenida. — Uma verdadeira peça.

Mas quem era aquele homem chamado Dmitri Antonov? E, talvez mais importante do que isso, de onde vinha tanto dinheiro? Tornou-se rapidamente no foco de muitos rumores ao estilo de Gatsby, alguns maliciosos, outros bastante certeiros. Dizia-se que matara um homem, que matara muitos homens, e que amealhara a sua fortuna ilicitamente, tudo coisas que, por acaso, eram verdade. Não que isso o tornasse menos apetecível para aqueles que faziam da venda de arte a sua profissão. Não se importavam muito com o modo como ganhava dinheiro, desde que o cheque chegasse a horas e não houvesse problemas por parte do banco. Não havia. Tinha os seus fundos respeitavelmente depositados no HSBC de Paris, mas, curiosamente, todas as suas aquisições eram enviadas para um cofre no Freeport de Genebra.

— É um daqueles — disse uma mulher que trabalhava no departamento de negócios da Sotheby’s. Um superior recordou-a calmamente que «aqueles» eram os que mantinham lugares como a Sotheby’s a funcionar.

O cofre no Freeport era o mais parecido que tinha com uma morada permanente. Em Londres, vivia no Dorchester, em Paris no Hôtel de Crillon. E quando os negócios o levavam até Zurique, só a suíte Terrazza no Dolder Grand servia. Até mesmo Julian Isherwood, que comunicava com ele através de telemóvel e mensagens de texto, alegava não saber onde ele estava de um dia para o outro. Mas havia rumores (aqui, uma vez mais, tratavam-se apenas de rumores) de que adquirira um castelo para si algures em França.

— Está a usar o Freeport como armazém temporário — sussurrou Isherwood ao ouvido de Oliver Dimbleby. — Há qualquer coisa grande em preparação. — Depois, Isherwood obrigou Oliver a jurar segredo absoluto, garantindo, dessa forma, que a notícia se tornaria global até à manhã seguinte.

Mas onde, em França? Mais uma vez, a fábrica de boatos começou a funcionar pois, no dia em que o homem chamado Dmitri Antonov deixou Nova Iorque, surgiu um pequeno artigo no Nice-Matin sobre uma certa propriedade imobiliária célebre, perto de Saint-Tropez. Conhecida como Villa Soleil, o extenso complexo à beira-mar na Baie de Cavalaire fora, em tempos, propriedade de Ivan Kharkov, o oligarca e traficante de armas russo morto a tiro à porta de um exclusivo restaurante em Saint-Tropez. Durante quase uma década, a propriedade estivera nas mãos do governo francês. Agora, por motivos nunca esclarecidos, o governo estava subitamente ansioso por se desfazer da Villa Soleil. Aparentemente, fora encontrado um comprador. Apesar dos árduos esforços, o Nice-Matin ainda não fora capaz de o identificar.

A renovação da propriedade começou imediatamente. De facto, no dia seguinte à publicação do artigo, um exército de pintores, eletricistas, pedreiros e paisagistas aterraram na Villa Soleil e aí permaneceram, sem interrupções, até que o grandioso palácio à beira-mar se tornou novamente habitável. A natureza empreendedora da mão-de-obra provocou uma dose de ressentimento significativa entre os vizinhos, todos eles veteranos da construção na Provença. Até mesmo Jean-Luc Martel, que vivia numa grandiosa villa no lado oposto da baía, ficou impressionado com a velocidade com que o projeto foi terminado. Gabriel e a equipa sabiam disso pois, com a ajuda da poderosa NSA americana, estavam agora a par de todas as comunicações privadas de Martel, incluindo o e-mail que enviou ao seu empreiteiro, indagando por que motivo a renovação da sua casa de apoio à piscina estava dois meses atrasada em relação ao previsto. Se as obras não estiverem concluídas até ao final de abril, escreveu, despeço-o e contrato a empresa que tratou da antiga casa do Ivan.

A decoração interior da Villa Soleil foi realizada no mesmo ritmo célere tão pouco habitual na Provença, supervisionada por uma das mais proeminentes empresas da Côte d’Azur. Houve apenas um atraso: dois sofás a condizer, encomendados da loja de design de Olivia Watson em Saint-Tropez. Devido a um erro administrativo menor (na verdade, absolutamente intencional), o nome do proprietário da villa apareceu na nota de encomenda. Olivia Watson partilhou o nome com Martel, que, por sua vez, o deu a um colunista do Nice-Matin que escrevera favoravelmente sobre ele no passado. Gabriel e a sua equipa souberam disso porque a poderosa NSA americana assim o assegurava.

Assim sendo, faltavam apenas os quadros, os quadros adquiridos sob o olhar impecável de Julian Isherwood e armazenados num cofre do Freeport de Genebra. Em meados de maio, foram transportados para a Provença numa caravana de furgões, vigiada por agentes de uma empresa de segurança privada e vários agentes de uma unidade secreta da DGSI conhecida como Grupo Alpha. Isherwood supervisionou a sua fixação nas paredes, com o auxílio da esposa francesa do proprietário. Depois, voaram para Paris, onde o proprietário em pessoa estava hospedado na sua suíte habitual no Crillon. Nessa noite, jantaram no próspero restaurante novo de Martel, no Boulevard Saint-Germain, acompanhados por um homem de aspeto resiliente, que falava francês com um acentuado sotaque corso. Martel também estava lá, juntamente com a glamorosa namorada inglesa. Gabriel e a equipa não foram surpreendidos pela presença da sua presa; souberam dos planos de Martel com vários dias de antecedência e reservaram uma mesa para quatro em nome de Dmitri Antonov. Poucos minutos depois da chegada do grupo do jantar, surgiu na mesa uma garrafa de champanhe, juntamente com um bilhete manuscrito. O champanhe era um Dom Pérignon de 1998, o bilhete era de Jean-Luc Martel. «Bem-vindo à vizinhança. Vemo-nos em Saint Tropez...». Era, globalmente, um início promissor.


27

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— Acho que vou à vila daqui a pouco.

— Fazer o quê?

— É dia de mercado. Sabes como eu adoro o mercado.

— Ah, sim, fantástico.

— Podes vir comigo?

— Infelizmente, não posso. Tenho umas chamadas para fazer.

— Tudo bem.

Tinham transcorrido dez dias desde que Mikhail e Natalie (também conhecidos como Dmitri e Sophie Antonov) se tinham instalado na sua nova casa na Baie de Cavalaire, e já parecia que estavam aborrecidos. Não era aborrecimento operacional, era de natureza conjugal. Gabriel determinara que os Antonovs não seriam uma união inteiramente feliz. Poucos casamentos eram perfeitos, argumentou, e um casamento entre um criminoso russo e uma francesa de proveniência duvidosa não seria isento dos seus maus momentos. Também decretara que deveriam manter as suas identidades falsas permanentemente, mesmo quando estivessem seguros atrás das paredes de três metros e meio da Villa Soleil. Tal explicava a frígida troca verbal ao pequeno-almoço. Foi realizada em inglês, visto que o francês de Dmitri Antonov era atroz e o russo da sua esposa inexistente. Os empregados da casa, todos agentes do Grupo Alpha de Paul Rousseau, dirigiam-se apenas à Madame Sophie. Em geral, evitavam o Monsieur Antonov. Achavam-no rude e grosseiro, e ele considerava-os, com alguma razão, os piores empregados domésticos de toda a Provença. Gabriel partilhava a sua opinião. Em privado, instara Rousseau a pô-los rapidamente em sentido. Caso contrário, arriscavam-se a afundar toda a operação.

Mikhail e Natalie estavam sentados, como personagens de um filme, numa mesa do vasto terraço rodeado por colunas com vista para a piscina. Era onde tinham tomado o pequeno-almoço em cada uma das nove manhãs anteriores, pois o Monsieur Antonov preferia aquele local sobre todos os outros. Ele começara o dia com uns vigorosos trinta minutos de natação na piscina. Agora envergava um roupão de banho branco impoluto contra a pele pálida. O olhar de Natalie foi atraído pelo riacho de água que escorria pelo leito esculpido dos seus músculos abdominais na direção da cintura dos calções de banho. Rapidamente, desviou o olhar. A Madame Sophie, recordou a si própria, estava irritada com o Monsieur Antonov. Ele não conseguiria voltar a cair nas suas boas graças simplesmente com uma demonstração insignificante de beleza física.

Ela serviu uma chávena de café forte simples do bule de prata e acrescentou uma medida generosa de leite evaporado. Ao fazê-lo, parecia inegavelmente francesa. Em seguida, puxou um Gitane do maço e acendeu-o. Os cigarros, tal como o seu comportamento indelicado, serviam unicamente o seu disfarce. Como médica, vira em primeira mão os efeitos terríveis do tabaco no corpo humano e era uma não-fumadora convicta. A primeira inalação arranhou-lhe a parte de trás da garganta, mas, com um gole de café, conseguiu reprimir a vontade de tossir. O café era quase perfeito; só no sul de França, pensou, tinha tal sabor. A manhã estava limpa e agradável, com um vento suave a circular na fila de ciprestes que marcava a fronteira entre a Villa Soleil e o vizinho. Uma ondulação salpicava a Baie de Cavalaire e, do outro lado, Natalie conseguia distinguir as linhas ténues da villa pertencente a Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos.

— Croissant? — perguntou ela.

— Desculpa? — Mikhail estava a ler qualquer coisa num tablet com grande intensidade e não se podia dar ao trabalho de erguer o olhar para que se encontrasse com o dela.

— Perguntei se querias outro croissant.

— Não.

— Então e o almoço?

— Agora?

— Em Saint-Tropez. Podes encontrar-te comigo lá.

— Vou tentar. A que horas?

— À hora do almoço, querido. À hora a que as pessoas normalmente almoçam.

Ele deslizou um dedo indicador pela superfície do tablet, mas não disse nada. Natalie apagou o cigarro e, comportando-se como Sophie Antonov, levantou-se abruptamente. Depois, inclinou-se para baixo e aproximou a boca do ouvido de Mikhail.

— Pareces estar a gostar demasiado disto — sussurrou em hebreu. — Se fosse a ti, não me habituava muito.

Entrou na villa e caminhou lentamente, com os pés descalços, pelas suas inúmeras divisões cavernosas, até chegar à base da imponente escadaria principal. Os seus aposentos, pensou, eram bem melhores do que os que tivera de suportar na primeira operação: o apartamento pardacento no banlieue parisiense de Aubervilliers, o quartinho esquálido num dormitório do ISIS em Raqqa, o campo de treino no deserto nos arredores de Palmira, o quarto na casa de Mossul onde cuidara de Saladino até que estivesse curado.

Tu és o meu Maimónides...

No quarto, os lençóis de cetim continuavam desordenados. Evidentemente, as criadas do Grupo Alpha não tinham encontrado tempo na sua atarefada agenda para arrumar o quarto. Natalie esboçou um sorriso culpado. Essa era a única divisão da casa onde ela e Mikhail não faziam qualquer tentativa de ocultar os seus verdadeiros sentimentos um pelo outro. Em rigor, as suas ações na noite anterior tinham sido uma violação do regulamento do Departamento, que proibia relações íntimas entre agentes no terreno. Era, celebremente, umas das regras menos cumpridas em todo o serviço. De facto, sabia-se que o atual chefe e a sua esposa tinham desrespeitado a regra em inúmeras ocasiões. Para além disso, pensou Natalie enquanto alisava os lençóis, fazerem amor servia o disfarce. Nem mesmo cônjuges desavindos eram imunes à obscura atração do desejo.

O closet estava a transbordar de roupa, sapatos e acessórios de marca, tudo pago pelo sanguinário governante da Síria. Só o melhor para a Madame Sophie. De uma gaveta, retirou um par de leggings de licra e um sutiã de desporto. Os seus ténis Nike estavam na prateleira dos sapatos, junto a um par de sapatos de salto alto Bruno Magli. Vestida, caminhou por um corredor fresco de mármore até à sala de fitness e subiu para a passadeira. Odiava correr dentro de casa, mas não tinha outra opção. A Madame Sophie não estava autorizada a correr no exterior. A Madame Sophie tinha problemas de segurança. Natalie Mizrahi também os tinha.

Colocou uns auscultadores nos ouvidos e começou com uma corrida fácil, mas foi aumentando a velocidade da passadeira a cada quilómetro, até estar a correr velozmente, em ritmo apressado. A sua respiração manteve-se controlada e estável; as muitas semanas que passara na quinta em Nahalal tinham-na deixado no auge da sua forma física. Terminou com uma corrida final a alta velocidade e passou trinta minutos a levantar pesos antes de regressar ao quarto para tomar um duche e vestir-se. Calças capri brancas, um pulôver de malha elástica e corte justo que lhe favorecia os seios e a cintura esguia, sandálias rasas douradas. De pé diante do espelho, pensou na última operação, no hijab e nas roupas pias da Dra. Leila Hadawi. Leila, pensou ela, não teria aprovado Sophie Antonov. Nisso, Natalie e ela estavam completamente de acordo.

Saiu para a varanda e espreitou para baixo, na direção do terraço onde Mikhail estava esticado numa chaise longue, expondo a sua pele incolor aos raios de sol matinal. Em dez dias, a sua palidez não se alterara. Parecia ser incapaz de se bronzear.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — gritou ela para baixo.

— Estou ocupado.

Natalie deixou cair o telemóvel do Departamento na sua mala de senhora e encaminhou-se para o andar de baixo, rumo ao pátio, onde a limusina Maybach de Antonov aguardava junto à fonte salpicante, com um motorista do Grupo Alpha ao volante. No banco de trás, havia um segundo agente do Grupo Alpha. O seu nome era Roland Girard. Durante a primeira operação, desempenhara a função de diretor da pequena clínica em Aubervilliers onde a Dra. Leila Hadawi exercera medicina. Agora, era o guarda-costas favorito da Madame Sophie. Havia rumores de que mantinham um caso tórrido, rumores que tinham chegado aos ouvidos do Monsieur Antonov. Este tentara despedir o guarda-costas várias vezes, mas a Madame Sophie nem sequer queria ouvir falar dessa possibilidade. Enquanto a Maybach atravessava lentamente o imponente portão de segurança, acendeu outro Gitane e fitou o exterior da janela, mal-humorada. Desta vez, não conseguiu reprimir a vontade de tossir.

— Sabias — disse Girard — que não tens de fumar essas coisas deploráveis quando estamos só os dois?

— É a única forma de me habituar a eles.

— Quais são os teus planos?

— O mercado.

— E depois?

— Tinha esperança de almoçar com o meu marido, mas parece que ele não pode ser incomodado.

Girard sorriu, mas não disse nada. Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie tocou com uma mensagem recebida. Depois de a ler, voltou a meter o aparelho na mala e, tossindo, fumou o que restava do Gitane. Estava quase na hora de a Madame Sophie conhecer a Madame Olivia. Tinha de praticar.


28

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Enquanto passavam pela saída para a Plage de Pampelonne, Natalie foi inundada por memórias. Dessa vez, não eram as memórias de Leila, eram as suas. Uma manhã perfeita no final de agosto. Natalie e os pais fizeram a difícil viagem de carro de Marselha até Saint-Tropez porque nenhuma outra praia em França (nem no mundo, já agora) se compara àquela. Corria o ano de 2011. Natalie terminou a sua formação médica e embarcou no que promete ser uma carreira bem-sucedida no sistema de saúde público francês. É uma cidadã francesa modelo; não consegue imaginar-se a viver em nenhum outro lugar. Mas a França está a mudar vertiginosamente. Já não é um lugar onde seja seguro ser-se judeu. Cada dia, aparentemente, traz consigo notícias de mais um horror. Outra criança que espancaram ou em quem cuspiram, outra montra de loja que partiram, outra sinagoga que pintaram com graffiti, outra lápide que derrubaram. E, portanto, naquele dia do final de agosto, na praia de Pampelonne, Natalie e os pais fazem os possíveis para ocultar o facto de serem judeus. Não conseguem, e o dia não decorre sem olhares desdenhosos e um insulto murmurado pelo empregado de mesa que, de má vontade, lhes serve o almoço. Durante a viagem de regresso a Marselha, os pais de Natalie tomam uma decisão que mudará os seus destinos. Abandonarão França e estabelecer-se-ão em Israel. Pedem a Natalie, a sua única filha, que se junte a eles. Ela aceita, sem hesitar. E agora, pensava, fitando o exterior através dos vidros fumados da limusina Maybach, estava de volta.

Para lá das praias havia vinhedos recentemente plantados e minúsculas villas sombreadas por ciprestes e pinheiros mansos. No entanto, assim que alcançaram os limites exteriores de Saint-Tropez as villas passaram a estar escondidas por muros altos cobertos por trepadeiras floridas. Essas eram as casas dos meramente ricos, não dos milionários como Dmitri Antonov ou Ivan Kharkov antes dele. Quando era criança, Natalie sonhara com viver numa casa grandiosa rodeada de muros. Gabriel concedera-lhe o desejo. Gabriel, não, pensou subitamente. Fora Saladino.

O motorista conduziu suavemente a Mayback para a Avenue Foch e seguiu por esta até ao centre ville. Era apenas junho, ainda não o pico do verão, portanto as multidões eram toleráveis, até mesmo na Place des Lices, onde se situava o fervilhante mercado ao ar livre de Saint-Tropez. Enquanto Natalie abria lentamente caminho por entre as banquinhas, sentiu uma avassaladora sensação de perda. Este era o seu país, pensou, e, contudo, a sua família fora obrigada a abandoná-lo devido ao mais antigo dos ódios. A presença de Roland Girard centrou a sua atenção na tarefa que tinha em mãos. Não caminhava ao seu lado, mas atrás de si. Não havia forma de o confundirem com um marido. Estava ali por uma única e exclusiva razão: para proteger a Madame Sophie Antonov, a nova residente do célebre palácio na Baie de Cavalaire.

Subitamente, ouviu alguém chamar o seu nome de um café no Boulevard Vasserot.

— Madame Sophie, Madame Sophie! Sou eu, o Nicolas. Aqui, Madame Sophie. — Ela ergueu o olhar e viu Christopher Keller a acenar-lhe de uma mesa no Le Clemenceau. A sorrir, atravessou a rua, com Roland Girard um passo atrás dela. Keller levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. Quando Natalie se sentou, Roland Girard regressou à Place des Lices e ficou, de pé, sob a sombra sarapintada de um plátano.

— Que agradável surpresa — disse Keller quando ficaram sozinhos.

— Sim, é verdade. — O tom de Natalie foi frio. Era a voz que a Madame Sophie utilizava quando se dirigia aos homens que trabalhavam para o seu marido. — O que te traz por cá?

— Vim tratar de um recado. E a senhora?

— Fazer umas compras. — Olhou de relance em redor do mercado. — Há alguém a ver-nos?

— Claro, Madame Sophie. Os senhores causaram uma agitação e tanto.

— Era esse o objetivo, não era?

Keller estava a beber Campari.

— Teve oportunidade de visitar alguma das galerias de arte? — perguntou ele.

— Ainda não.

— Há uma bastante boa perto do Porto Velho. Teria todo o gosto em mostrar-lha. É uma caminhada de cinco minutos, no máximo.

— A proprietária vai lá estar?

— Diria que sim, com certeza.

— Como é que o nosso amigo quer que eu me comporte?

— Parece pensar que se justificaria uma boa humilhação.

Natalie sorriu.

— Acho que a Madame Sophie consegue fazer isso bastante bem.

 

Caminharam na direção do Porto Velho, para lá do desfile de lojas que ladeavam a Rue Gambetta. Keller envergava calças brancas, mocassins pretos e um pulôver justo igualmente preto. Com o seu bronzeado escuro e gel no cabelo, tinha uma aparência absolutamente duvidosa. Natalie, desempenhando o papel de Madame Sophie, fingia um intenso e profundo tédio. Deambulou por várias montras de lojas, incluindo a de uma boutique que exibia o nome de Olivia Watson. Roland Girard, o seu falso guarda-costas, manteve-se vigilantemente junto dela.

— O que é que achas daquele? — perguntou, apontando na direção de um vestido fino que pendia de um manequim sem cabeça como um négligé. — Achas que o Dmitri repararia em mim se usasse aquilo? Ou então aquele? Aquele talvez conseguisse chamar a atenção dele.

Recebida por um silêncio profissional, continuou a caminhar, balouçando a sua mala de senhora como uma menina mimada. Yossi Gavish e Rimona Stern vinham pela rua estreita na direção deles, de mãos dadas, rindo-se de uma piada privada. Dina Sarid estava a examinar um par de sandálias na montra da Minelli e, um pouco mais ao fundo da rua, Natalie identificou Eli Lavon a entrar apressado numa farmácia, com a urgência de um homem cujas entranhas estão em estado de rebelião.

Finalmente, chegaram à Place de l’Ormeau. Não era um verdadeiro quadrado, como a Place des Lices, mas um minúsculo triângulo no cruzamento de três ruas. No centro, havia um fontanário antigo, sombreado por uma única árvore. Num dos lados havia uma loja de vestidos, no outro um café. E, junto do café, ficava o elegante edifício de quatro andares (grande para os cânones de Saint-Tropez, cinzento-pálido em vez de castanho-claro) ocupado pela Galerie Olivia Watson.

A pesada porta de madeira estava fechada e trancada. Ao lado, havia uma placa de bronze que declarava, em francês e inglês, que o visionamento do inventário da galeria se fazia unicamente por marcação. Na montra, havia três quadros em exposição: um Lichtenstein, um Basquiat e um trabalho do pintor e escultor francês Jean Dubuffet. Natalie aproximou-se para observar mais de perto o Basquiat, enquanto Keller examinava o telemóvel. Depois de um momento, apercebeu-se de uma presença nas suas costas. O aroma intoxicante a lilás tornou claro que não se tratava de Roland Girard.

— É lindo, não é? — perguntou uma voz feminina em francês.

— O Basquiat?

— Sim.

— Na verdade — disse Natalie para o vidro —, prefiro o Dubuffet.

— Tem bom gosto.

Natalie virou-se lentamente e avaliou a quarta obra de arte que se erguia a alguns centímetros de distância, na Place de l’Ormeau. Era espantosamente alta, tão alta, na verdade, que Natalie teve de levantar o olhar para encontrar o dela. Não era bonita, era profissionalmente bonita. Até àquele momento, Natalie nunca se apercebera de que havia uma diferença.

— Gostaria de o ver mais de perto? — perguntou a mulher.

— Desculpe?

— O Dubuffet. Tenho alguns minutos antes da minha próxima marcação. — Sorriu e esticou uma mão. — Desculpe, devia ter-me apresentado. O meu nome é Olivia. Olivia Watson — acrescentou. — Esta é a minha galeria.

Natalie aceitou a mão estendida. Era invulgarmente longa, tal como o braço nu, suave e dourado, ao qual estava unida. Olhos azuis luminosos fitavam-na a partir de um rosto tão perfeito que quase parecia irreal. Ostentava nele uma expressão de moderada curiosidade.

— É a Sophie Antonov, não é?

— Já nos conhecemos?

— Não. Mas Saint-Tropez é uma cidade pequena.

— Muito pequena — disse Natalie friamente.

— Vivemos do outro lado da baía onde vive com o seu marido — explicou Olivia Watson. — Na verdade, conseguimos ver a vossa villa da nossa. Talvez gostassem de nos vir visitar, um destes dias.

— Receio que o meu marido esteja extremamente ocupado.

— Parece o Jean-Luc.

— O Jean-Luc é o seu marido?

— Parceiro — disse Olivia Watson. — O nome dele é Jean-Luc Martel. Talvez tenha ouvido falar dele. A Sophie e o seu marido jantaram na nossa nova brasserie em Paris, há duas semanas. Ele enviou-vos uma garrafa de champanhe. — Olhou de soslaio para Keller, que parecia estar absorto nalguma coisa que estava a ler no telemóvel. — Ele também estava lá.

— Trabalha para o meu marido.

— E aquele? — Olivia Watson apontou na direção de Roland Girard com a cabeça.

— Trabalha para mim.

Os olhos luminosos fixaram-se novamente em Natalie, que estudara centenas de fotografias de Olivia Watson como preparação para o primeiro encontro, mas, mesmo assim, o impacto da sua beleza continuava a ser absolutamente surpreendente. Agora, estava a sorrir ligeiramente. Era um sorriso astuto, sedutor, superior. Tinha perfeita consciência do efeito que a sua aparência tinha sobre as outras mulheres.

— O seu marido é colecionador de arte — disse ela.

— O meu marido é um empresário que aprecia arte — disse Natalie cautelosamente.

— Talvez ele gostasse de visitar a galeria.

— O meu marido prefere quadros de Grandes Mestres a trabalhos contemporâneos.

— Sim, eu sei. Causou uma verdadeira sensação em Londres e Nova Iorque, nesta primavera. — Mergulhou a mão na sua mala de senhora e retirou um cartão-de-visita, que ofereceu a Natalie. — O meu número privado está no verso. Tenho algumas peças especiais que creio que poderiam interessar ao seu marido. E, por favor, venham almoçar à nossa villa este fim de semana. O Jean-Luc está ansioso por conhecê-los a ambos.

— Eu e o meu marido temos outros planos para este fim de semana — disse Natalie bruscamente. — Tenha um bom dia, Madame Wilson. Foi um prazer conhecê-la.

— Watson — gritou ela, enquanto Natalie se afastava. — O meu nome é Olivia Watson.

Ainda estava a segurar o cartão-de-visita entre o polegar e o indicador. Keller aproximou-se e puxou-lho da mão.

— Por vezes, a Madame Sophie é um pouco temperamental. Não se preocupe. Vou ter uma conversa com o patrão em seu nome. — Ofereceu a sua mão. — O meu nome é Nicolas, já agora. Nicolas Carnot.

 

Keller caminhou com Natalie e Roland Girard no regresso à Place des Lices e acompanhou-os enquanto aguardavam a Maybach, que alguns segundos mais tarde abandonou o centre ville qual borrão negro, observada de forma igualmente invejosa por turistas e residentes locais. Sozinho, Keller cortou através das banquinhas do mercado até ao outro lado da praça e subiu para a mota Peugeot Satelis que ali deixara. Dirigiu-se para oeste ao longo da extremidade do golfo de Saint-Tropez, depois para sul para as montanhas do Var, até chegar à povoação de Ramatuelle. Não era muito diferente da aldeia dos Orsati na Córsega Central, um aglomerado de casas de cor parda com telhados vermelhos, empoleirada defensivamente no topo de uma montanha. Havia villas maiores escondidas nas planícies arborizadas em baixo. Uma delas chamava-se La Pastorale. Keller assegurou-se de que não estava a ser seguido antes de se apresentar no portão de segurança de ferro. Estava pintado de verde e tinha uma aparência bastante temível. Premiu o botão do intercomunicador com o polegar e depois virou-se para ver um camião de entregas passar na estrada.

— Oui? — disse uma fina voz metálica passado um momento.

— C’est moi — disse Keller. — Abre a merda do portão.

O caminho de acesso à casa era longo e sinuoso e ensombrado por pinheiros e choupos. Terminava no pátio de gravilha de uma enorme villa de pedra com portadas amarelas. Keller encaminhou-se para a sala de estar, que fora transformada num centro de operações temporário. Gabriel e Paul Rousseau estavam curvados sobre um computador portátil. Rousseau reconheceu a chegada de Keller com um aceno cuidadoso de cabeça (continuava profundamente desconfiado desse talentoso agente do MI6 que falava francês como um corso e estava à vontade na presença de criminosos), mas Gabriel tinha um sorriso rasgado.

— Bem jogado, Monsieur Carnot. Levar o cartão-de-visita foi um belo detalhe.

— As primeiras impressões são importantes.

— Efetivamente, são. Ouve isto.

Gabriel bateu suavemente no teclado do computador portátil e, alguns segundos depois, ouviu-se a voz de uma mulher enraivecida a gritar em francês. Era fluente e obsceno, mas marcado por um inconfundível sotaque inglês.

— Com quem é que ela está a falar?

— Com o Jean-Luc Martel, claro.

— Como é que ele reagiu?

— Vais ouvir daqui a um minuto.

Keller encolheu-se, enquanto a voz de Martel ribombava a partir das colunas.

— Claramente — disse Gabriel —, não está habituado a que as pessoas lhe digam que não.

— Qual é a tua próxima jogada?

— Outra humilhação. Várias, na verdade.

As colunas silenciaram-se depois de Olivia Watson terminar a chamada com uma enxurrada final de obscenidades aos gritos. Keller caminhou até um conjunto de monitores de vídeo e observou uma limusina Maybach a virar para uma villa palaciana à beira-mar. Uma mulher saiu e abriu caminho por entre divisões cavernosas de onde pendiam quadros de Grandes Mestres até um terraço com vista para uma piscina do tamanho de uma lagoa. Aí, dormitava um homem com a pele pálida a ruborizar-se debaixo da implacável ofensiva do sol. A mulher disse-lhe algo diretamente ao ouvido que os microfones não conseguiram captar e conduziu-o até ao andar de cima, para um quarto onde não havia câmaras. Keller sorriu, enquanto a porta se fechava. Afinal, talvez houvesse esperança para a Madame Sophie e o Monsieur Antonov.


29

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Não era verdade que Madame Sophie e Monsieur Antonov tivessem planos para esse fim de semana. Mas, de alguma fora, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. Efetivamente, mal o sol se tinha posto, numa tarde perfeita de sexta-feira, uma fileira de faróis de carros qual colar de diamantes estendeu-se ao longo da faixa costeira da Baie de Cavalaire, na direção dos portões da Villa Soleil, que brilhava e cintilava e pulsava ao ritmo de música tão alta que era possível ouvi-la do outro lado da água, que era o que se pretendia. Os convidados vieram de todo o mundo. Havia atores e escritores e aristocratas em declínio e ladrões. Havia o filho de um fabricante de automóveis italiano que chegou entre um cardume de mulheres seminuas e uma estrela pop que não tivera um álbum de sucesso desde que a música se tornara digital. Metade do mundo artístico londrino estava lá, juntamente com um contingente de Nova Iorque que, diziam os rumores, tinha atravessado o Atlântico num voo privado pago pelo anfitrião. E havia muitos outros que mais tarde admitiriam não terem recebido qualquer convite. Essas almas menores tinham ouvido falar do assunto através dos canais habituais (a fábrica de boatos da Riviera, as redes sociais) e tinham-se dirigido avidamente para a porta banhada a ouro do Monsieur Antonov.

Se ele esteve realmente presente nessa noite, não se viu rasto dele. De facto, nem um único convidado conseguiria oferecer provas fiáveis, em primeira-mão, de o ter visto. Nem mesmo Julian Isherwood, o seu consultor artístico, foi capaz de explicar o seu paradeiro. Isherwood realizou uma visita privada à impressionante coleção de quadros de Grandes Mestres da villa para o punhado de convidados que mostrou algum interesse em vê-la. Depois, tal como toda a gente, ficou podre de bêbado. À meia-noite, o buffet tinha sido devorado e havia mulheres a nadar nuas nas piscinas e nas fontes. Houve um combate com socos, a realização muito pública de um ato sexual e a ameaça de um processo judicial. Rivalidades antigas atearam-se, casamentos colapsaram e muitos automóveis de luxo sofreram danos. Toda a gente concordou que a diversão fora de arromba.

Mas a festa não terminou nessa noite, entrou meramente numa breve remissão. Ao final da manhã, os carros entupiram mais uma vez as estradas, e uma frota de iates brancos a motor ancoraram nas águas junto à doca da Villa Soleil, servidos pela lancha do Monsieur Antonov que levou os convidados até à margem. As festividades da segunda noite foram piores do que as da primeira, pelo facto de a maioria dos convidados ter chegado embriagada ou ainda estar embriagada da noite anterior. A vasta equipa de seguranças do Monsieur Antonov vigiou cuidadosamente os quadros, e diversos convidados mais indisciplinados foram expulsos do local com silenciosa eficiência. Ainda assim, não houve nenhum que, efetivamente, tivesse dado um aperto de mão ao anfitrião ou lhe tivesse sequer posto a vista em cima. Oh, houve a divorciada americana de meia-idade e pele curtida que alegou tê-lo visto a observar a festa, ao estilo de Gatsby, do terraço privado nos aposentos superiores do seu palácio, mas estava bastante inebriada na altura e o seu relato foi completamente ignorado. Humilhada, fez uma tentativa desajeitada de seduzir um jovem e bonito piloto de fórmula um, mas teve de se consolar com a companhia de Oliver Dimbleby. Foram vistos pela última vez a cambalear para o interior da noite, com a mão de Oliver no seu rabo.

Houve um brunch com champanhe no domingo, depois do qual os últimos convidados dispersaram. Os feridos que ainda caminhavam dirigiram-se para a porta pelo próprio pé; os comatosos e sem reação partiram por outros meios. Então, um exército de trabalhadores chegou e eliminou todas as provas da destruição do fim de semana. E, na segunda de manhã, o Monsieur Antonov e a Madame Sophie estavam no seu lugar habitual do terraço com vista para a piscina, o Monsieur Antonov perdido no seu tablet, a Madame Sophie nos seus pensamentos. Ao meio-dia, ela foi até à vila, acompanhada por Roland Girard, e almoçou com o Monsieur Carnot num restaurante do Porto Velho que era propriedade de Jean-Luc Martel. Olivia Watson almoçou com uma amiga, uma mulher quase tão bela quanto ela, a algumas mesas de distância. Ao sair, passou pela mesa da Madame Sophie sem uma palavra ou um olhar de soslaio, embora o Monsieur Carnot estivesse bastante certo de que ouvira acidentalmente uma obscenidade anatómica que nem ele, um homem de reputação duvidosa, alguma vez se atrevera a proferir.

Houve outra festa no fim de semana seguinte, mais pequena, mas não menos perversa, e uma farra na semana seguinte que bateu o recorde de queixas aos gendarmes na Côte d’Azur. Nesse ponto, os Antonovs decretaram um cessar-fogo e a vida na Baie de Cavalaire voltou a algo parecido com o normal. Durante a maior parte do tempo, permaneciam prisioneiros da Villa Soleil, embora, várias vezes por semana, a Madame Sophie, depois da sua corrida matinal na passadeira, viajasse até Saint-Tropez na sua limusina Maybach para fazer compras ou almoçar. Normalmente, comia com Roland Girard ou com o Monsieur Carnot, embora em duas ocasiões tivesse sido vista com um inglês alto e bronzeado que arranjara uma villa para passar o verão perto da povoação de montanha de Ramatuelle. Tinha uma esposa curvilínea e sarcástica que Madame Sophie adorava.

A villa não albergava unicamente o casal. Havia uma mulher pequena de cabelo escuro que se deslocava com um ligeiro coxear e exibia o comportamento de uma viuvez recente. E um homem esquivo, no final da sua meia-idade, que parecia nunca vestir a mesma roupa duas vezes. E um sujeito com aspeto severo e rosto bexigoso que aparentava estar sempre a ponderar um ato de violência. E um francês de porte professoral que empestava as divisões da villa com o seu omnipresente cachimbo. E um homem com as têmporas grisalhas e olhos verdes que implorava constantemente ao francês que encontrasse outro vício, um que não colocasse em perigo a saúde daqueles que o rodeavam.

Os residentes da villa não davam quaisquer mostras de se dedicarem à recreação ou ao lazer; tinham vindo para a Provença tratar de um assunto de extrema seriedade. O francês professoral e o homem de olhos verdes eram, aparentemente, parceiros em pé de igualdade, mas, na prática, o francês aceitava as decisões do colega em quase todas as matérias. Ambos os homens passavam uma quantidade significativa de tempo fora da villa. O francês, por exemplo, deslocava-se constantemente entre a Provença e Paris, enquanto o homem de olhos verdes fazia várias viagens clandestinas até Telavive. Também viajou para Londres, onde negociou os termos da nova fase do seu projeto, e para Washington, onde foi repreendido pelo seu ritmo lento. Foi indulgente com a disposição desagradável do seu parceiro americano. Os americanos tinham-se habituado a resolver os problemas com o premir de um botão. Paciência não era uma virtude americana.

Mas o homem de olhos verdes era a encarnação da paciência, principalmente quando estava na villa de Ramatuelle. As travessuras do Monsieur Antonov e da Madame Sophie interessavam-lhe pouco. A sua obsessão era a bela inglesa que detinha a galeria de arte na Place de l’Ormeau. Com a assistência dos outros residentes da villa, observava-a dia e noite. E, com o auxílio do seu amigo na América, ouvia todas as suas chamadas e lia todas as suas mensagens e e-mails.

Ela abominava o novo casal ruidoso que vivia no lado oposto da Baie de Cavalaire (isso era evidente), mas, apesar disso, eles intrigavam-na. Interrogava-se, sobretudo, por que motivo todas as celebridades menores do sul de França tinham sido convidadas para a villa dos Antonov, mas ela fora excluída. O seu «não-exatamente» marido tinha pensamentos semelhantes. Afinal de contas, ele próprio era uma celebridade. Uma verdadeira celebridade, não um desses farsantes pretensiosos que tinham aberto caminho a rastejar até ao interior da duvidosa órbita de Antonov. Pouco tempo depois, estava a fazer as suas próprias investigações sobre o novo vizinho e a fonte do seu considerável rendimento. Quanto mais ouvia, mais se convencia de que Monsieur Dmitri Antonov era uma alma gémea. Instruiu a sua «não-exatamente esposa» a fazer um novo convite. Ela respondeu que mais depressa cortaria os pulsos do que passaria outro minuto na companhia daquela criatura mimada do outro lado da baía, ou algo nesse sentido.

E, portanto, o homem de olhos verdes esperou pelo momento certo. Observou todos os seus movimentos e ouviu todas as suas palavras e leu todas as suas missivas eletrónicas. E interrogou-se se ela seria merecedora da sua obsessão. Será que era a rapariga dos seus sonhos ou partir-lhe-ia o seu coração de espião? Render-se-ia a ele, ou seria necessário o uso da força? Se isso acontecesse, ele tinha força em abundância. Nomeadamente, os quarenta e oito quadros que encontrara no Freeport de Genebra. Esperava não ter de chegar a isso. Pensava nela como um quadro a precisar desesperadamente de um restauro. Ele oferecer-lhe-ia os seus serviços. E, se ela fosse suficientemente insensata para recusar, era possível que as coisas se tornassem desagradáveis.

Na segunda semana de julho, já vira e ouvira o suficiente. Aproximava-se o Dia da Bastilha, após o qual principiaria a reta final da temporada de verão. Mas, como superar a divisória que ele próprio criara? Decidiu que só um convite formal o conseguiria fazer. Ele próprio o escreveu, com uma mão tão precisa que parecia ter sido escrito por uma impressora a laser, e deu-o ao Monsieur Carnot para que o entregasse na galeria da Place de l’Ormeau. Ele assim fez, às onze e um quarto de uma manhã perfeita na Provença, e ao meio-dia da manhã seguinte tinham recebido a resposta que esperavam. Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, iria à Villa Soleil almoçar. E Olivia Watson, a rapariga dos sonhos de Gabriel, iria com ele.


30

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


— O que é que achas, querida? Com arma ou sem arma?

Mikhail estava a admirar-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir. Envergava um fato escuro de linho (demasiado escuro para a ocasião e para o tempo, que estava quente, até mesmo para os padrões da Côte d’Azur) e uma camisa branca impoluta, desabotoada até ao esterno. Só os sapatos, um par de mocassins de mil e quinhentos euros, que usava sem meias, eram inteiramente apropriados. As fivelas de ouro condiziam com o relógio de ouro que repousava no seu pulso como um barómetro fora de lugar. Fora manufaturado para ele pelo seu homem em Genebra, uma pechincha de um milhão e meio.

— Sem arma — disse Natalie. — Pode passar a mensagem errada.

Estava de pé ao seu lado, com a imagem refletida no mesmo espelho. Envergava um vestido branco sem mangas e mais joias do que as necessárias para um almoço vespertino no jardim. A sua pele estava muito escura devido ao tempo excessivo passado ao sol. Pensou que não combinava bem com a cor do seu cabelo, que fora aclarado vários tons antes da sua partida de Telavive.

— Achas que alguma vez se tornaria aborrecido?

— O quê?

— Viver assim.

— Acho que depende da alternativa.

Nesse preciso momento, o telemóvel de Natalie vibrou.

— O que é?

— O Martel e a Olivia acabaram de sair da villa deles.

Mikhail franziu o sobrolho para o relógio de pulso.

— Já cá deviam estar há vinte minutos.

— Tempo JLM — disse Natalie.

O telemóvel vibrou uma segunda vez.

— O que foi agora?

— Dizem que fazemos um belo casal.

Natalie beijou a maçã do rosto de Mikhail e saiu. No andar de baixo, no terraço sombreado, um trio de empregados domésticos do Grupo Alpha estava a preparar uma mesa para o almoço com desmedido cuidado. Na extremidade oposta do terraço, Christopher Keller estava a beber rosé. Natalie puxou um Marlboro do maço dele e dirigiu-se a ele em francês.

— Não podes sequer fingir estar um bocadinho nervoso?

— Na verdade, estou ansioso por finalmente conhecê-lo. Aí vem ele.

Natalie olhou na direção do horizonte e viu dois Range Rover pretos a contornar a baía, um para Martel e Olivia, o outro para o seu destacamento de segurança.

— Guarda-costas para o almoço — disse ela com o desdém da Madame Sophie. — Que grosseiro. — Depois, acendeu o cigarro e fumou durante algum tempo sem tossir.

— Estás a ficar bastante boa nisso.

— É um hábito nojento.

— É melhor do que alguns. Na verdade, consigo lembrar-me de vários que são muito piores. — Keller observou os Range Rover que se aproximavam. — A senhora tem mesmo de descontrair, Madame Sophie. Afinal de contas, é uma festa.

— O Jean Luc-Martel e eu vimos da mesma parte de França. Tenho receio de que ele olhe para mim e veja uma rapariga judia de Marselha.

— Ele vai ver o que tu quiseres que ele veja. Para além disso — disse Keller —, se conseguiste convencer o Saladino de que eras palestiniana, consegues fazer seja o que for.

Natalie conteve a tosse e observou os criados do Grupo Alpha a colocar os retoques finais na mesa.

— Porquê velas? — murmurou ela. — Estamos perdidos.

 

Durante as horas finais de preparação para a reunião há muito aguardada entre Jean-Luc Martel e Monsieur Dmitri Antonov, houvera uma discussão invulgarmente acalorada entre Gabriel e Paul Rousseau sobre o que parecia ser um detalhe trivial. Especificamente, se o imponente portão da Villa Soleil deveria estar aberto para a chegada de Martel ou ser deixado fechado, colocando assim, diante dele, uma última barreira metafórica que superar. Rousseau fez pressão a favor de uma abordagem acolhedora: Martel, argumentou, já sofrera o suficiente. Mas Gabriel estava numa disposição menos indulgente e, após uma disputa de vários minutos, levou a melhor sobre Rousseau quanto a deixar o portão fechado.

— E façam-no tocar à campainha como toda a gente — disse Gabriel. — Para Dmitri Antonov, o Martel não passa de um ajudante de cozinha. É importante que o tratemos assim.

E foi assim que, vinte e nove minutos depois da uma da tarde, o motorista de Martel teve de premir o botão do intercomunicador não uma, mas duas vezes, antes de o portão da Villa Soleil finalmente se abrir com um inóspito rangido. Roland Girard, de fato e gravata escuros, assava lentamente no pátio abundantemente banhado pelo sol, com um intercomunicador no ouvido. Por conseguinte, foi o rosto de um agente do Grupo Alpha, não do seu anfitrião, que Martel viu quando saiu das traseiras do seu veículo, vestido com um fato de popelina branco como um bolo de casamento e com a juba de cabelo, que era a sua marca registada, a revolver-se nos remoinhos de vento quente que rodopiavam e morriam em redor das águas dançantes da fonte. Seis câmaras gravaram a sua chegada, e o transmissor usado por Roland Girard captou um intercâmbio tenso relativamente ao destino dos seus guarda-costas. Aparentemente, Martel queria que o acompanhassem até ao interior da villa, um pedido que Girard, educada, mas firmemente, recusou. Enfurecido, Martel afastou-se e atravessou o pátio com uma celeridade predatória, com um trejeito semelhante ao de um gangster empreendedor, um rufia estrela de rock. Olivia era, nessa altura, uma consideração secundária. Seguiu-o, alguns passos atrás, como se já estivesse a preparar as desculpas pelo seu comportamento.

Nessa altura, os Antonovs estavam de pé à sombra do pórtico, como se estivessem a posar para uma fotografia, o que efetivamente era o caso. As saudações fizeram-se com base no género. A Madame Sophie deu as boas-vindas a Olivia Watson como se o frígido encontro à porta da galeria nunca tivesse ocorrido, enquanto Martel e Dmitri Antonov apertaram as mãos como adversários que se preparavam para se derrotarem um ao outro no campo de jogo. Com um sorriso contido, Martel disse que ouvira falar muito do Monsieur Antonov e que estava satisfeito por finalmente o conhecer. Fê-lo em inglês, o que sugeria que tinha conhecimento de que o Monsieur Antonov não falava francês.

— A sua villa é verdadeiramente magnífica. Mas tenho a certeza de que conhece a história dela.

— Disseram-me que, em tempos, foi propriedade de um membro da família real britânica.

— Estava a referir-me ao Ivan Kharkov.

— Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais concordei em retirá-la das mãos do governo francês.

— Conhecia o Monsieur Kharkov?

— Receio que o Ivan e eu nos movêssemos em círculos bastante diferentes.

— Eu conhecia-o bastante bem — vangloriou-se Martel, enquanto atravessava o hall principal da villa ao lado do seu anfitrião, seguido pela Madame Sophie e Olivia e observado pelos olhos imperturbáveis das câmaras de vigilância. — Recebi os Kharkovs muitas vezes nos meus restaurantes em Saint-Tropez e Paris. A forma como morreu foi terrível.

— Os israelitas estiveram por trás disso. Pelo menos, foi esse o rumor.

— Foi mais do que um simples rumor.

— Parece bastante seguro de si.

— Não há muita coisa que aconteça na Côte d’Azur que eu desconheça.

Continuaram para o terraço, onde o último membro do grupo do almoço aguardava entre as colunas.

— Jean-Luc Martel, apresento-lhe Nicolas Carnot. O Nicolas é o meu assistente e consultor mais próximo. É natural da Córsega, mas não lhe leve isso a mal.

 

Na villa nos arredores de Ramatuelle, Gabriel observou atentamente enquanto Jean-Luc Martel aceitava a mão esticada na sua direção. Seguiram-se alguns segundos tensos, enquanto os dois homens se avaliavam mutuamente como só criaturas de nascimento, educação e aspirações de carreira semelhantes conseguem fazer. Claramente, Martel via algo que reconhecia no homem de aspeto duro da ilha da Córsega. Apresentou o Monsieur Carnot a Olivia, que explicou que já se tinham encontrado em duas ocasiões anteriores na galeria. Mas Martel pareceu não a ouvir; estava a admirar a garrafa de Bandol rosé que suava no balde de gelo. A sua aprovação do vinho não foi acidental. Este figurava proeminentemente em todos os seus bares e restaurantes. Gabriel encomendara quantidades suficientes do líquido para fazer flutuar um navio de carga repleto de haxixe.

Seguindo a sugestão da Madame Sophie, sentaram-se nos sofás e cadeiras dispostos na extremidade mais afastada do terraço. Ela foi fria e distante, uma observadora, tal como Gabriel, que estava de pé diante dos monitores de vídeo, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado e uma mão pousada no queixo. A outra pressionava o fundo das costas, que estavam a incomodá-lo. Eli Lavon estava de pé ao seu lado e, ao lado de Lavon, encontrava-se Paul Rousseau. Observaram ansiosamente enquanto um agente do Grupo Alpha, vestido com uma imaculada túnica branca, retirava uma garrafa vazia de rosé do balde de gelo e a substituía com êxito por uma nova. Calmamente, a Madame Sophie instruiu-o para que trouxesse os aperitivos. Também isso o criado conseguiu fazer sem causar vítimas nem danos colaterais. Aliviado, Paul Rousseau carregou o cachimbo e soprou uma nuvem de fumo para os ecrãs de vídeo. A Madame Sophie também pareceu ficar aliviada. Acendeu um Gitane e, com o polegar e dedo anelar, removeu discretamente um resto de tabaco da ponta da língua.

A conversa foi educada, mas reservada, que era como Gabriel pretendia que fosse. Realizou-se em inglês, para benefício de Dmitri Antonov, embora, ocasionalmente, fosse deixado à deriva por uma explosão de francês. Não se ofendeu com isso. Na verdade, parecia apreciar o sossego, pois permitia-lhe desfrutar de uma pausa em relação às perguntas persistentes de Martel relativamente ao seu negócio. Explicou que fizera muito dinheiro com o comércio de matérias-primas russas e conseguira trocar as suas fichas por dinheiro antes da Grande Recessão e da queda abrupta dos preços do petróleo. Embarcara recentemente num conjunto de negócios no Ocidente e na Ásia. Vários deles, disse, tinham-se revelado bastante lucrativos.

— Evidentemente — disse Martel, com um olhar de relance em redor.

O Monsieur Antonov limitou-se a sorrir.

— Em que tipo de coisas está a investir?

— Nas coisas habituais — respondeu evasivamente. — Acima de tudo, tenho satisfeito a minha paixão pela arte.

— Eu e a Olivia adoraríamos ver a sua coleção.

— Talvez depois do almoço.

— Devia realmente dar uma olhadela no inventário dela. Tem muitas peças extraordinárias.

— Gostaria muito de o fazer.

— Quando? — perguntou Martel.

— Amanhã — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e alguns segundos depois Dmitri Antonov disse:

— Passo por lá amanhã, se for conveniente.

Com isso, deslocaram-se para a mesa de refeições. Aqui, mais uma vez, Gabriel não se poupara a despesas e não deixara nada ao acaso. De facto, contratara o chef executivo de um célebre restaurante parisiense e tinha-o trazido num voo privado para a Provença, exclusivamente para a ocasião. A Madame Sophie escolhera o menu. Batatas em molho quente com caviar, rabanete picante e marinada de gengibre; vieiras apanhadas à mão com couve-flor caramelizada e uma emulsão de alcaparras e passas; robalo com crosta de frutos secos e sementes e molho agridoce. Impressionado, Martel pediu para conhecer o chef. A Madame Sophie, acendendo outro cigarro, opôs-se. O chef e a sua equipa, explicou, nunca eram autorizados a deixar a cozinha.

Durante a sobremesa, a conversa virou-se para a política. As eleições na América, a guerra na Síria, os atentados terroristas do ISIS na Europa. Perante a menção do Islão, Martel mostrou-se subitamente animado. A França como em tempos a tinham conhecido desaparecera, rosnou. Em breve, seria apenas outro posto avançado do Magrebe Islâmico. Gabriel achou a atuação bastante convincente, embora Olivia parecesse pensar de outra forma. Aborrecida, perguntou a Madame Sophie se podia tirar um dos seus Gitanes.

— O Jean-Luc tem opiniões muito fortes no que se refere à questão das minorias em França — confidenciou. — Eu gosto de lhe lembrar que, se não fossem os árabes e os africanos, não teria ninguém para lavar os pratos nos restaurantes ou mudar as camas nos seus hotéis.

A Madame Sophie, com a sua expressão, deixou claro que achava o tema de mau gosto. Pediu aos criados do Grupo Alpha que trouxessem o café. Nessa altura, eram quase cinco da tarde. Todos concordaram que uma visita aos quadros teria de esperar por outra ocasião, embora tivessem visto vários enquanto atravessavam lentamente as vastas salas de estar e corredores em tons rosados, observados pelas câmaras de vigilância.

— Está realmente interessado em vir à galeria amanhã? — perguntou Olivia, enquanto fazia uma pausa para admirar as duas cenas de canais venezianos de Guardi.

— Absolutamente — respondeu Dmitri Antonov.

— Estou livre às onze.

— À tarde é melhor — disse Gabriel para os ecrãs de vídeo, e Dmitri Antonov explicou, então, que tinha vários telefonemas importantes para fazer de manhã e preferiria visitar a galeria depois do almoço.

— Se isso for conveniente.

— É.

— O Monsieur Carnot fará os preparativos necessários. Creio que ele tem o seu número.

Os Antonovs despediram-se dos seus convidados no pórtico que, nessa altura, já não se encontrava à sombra, mas incandescente com uma ténue luz alaranjada. Passado um momento, estavam mais uma vez de pé no terraço, observando os Range Rover negros a acelerarem na direção da villa que ficava do outro lado da Baie de Cavalaire. Imediatamente, o telemóvel da Madame Sophie vibrou.

— O que é que diz? — perguntou o marido.

— Diz que fomos perfeitos.

— Eles divertiram-se?

— O Martel está convencido de que és um traficante de armas a fazer-se passar por um empresário legítimo.

— E a Olivia?

— Está ansiosa por amanhã.

Sorrindo, Dmitri Antonov despiu o fato e desceu até à piscina para nadar um pouco. A Madame Sophie e o Monsieur Carnot observaram-no do terraço enquanto terminavam o que restava do rosé. O telefone da Madame Sophie estremeceu com a chegada de outra mensagem.

— O que foi agora? — perguntou o Monsieur Carnot.

— Aparentemente, o Martel acha que eu pareço judia. — Acendeu outro Gitane e sorriu. — O Saladino disse a mesma coisa.


31

 

SAINT-TROPEZ, FRANÇA

 

 


Às dez horas da manhã seguinte, a Place de l’Ormeau estava deserta, a não ser pela presença de um homem no final da meia-idade a lavar as mãos num fio de água do fontanário. Olivia pensou que já o vira na vila anteriormente uma ou duas vezes, mas, após uma análise mais atenta, decidiu que estava enganada. As pedras da calçada aqueceram os seus pés por baixo das sandálias enquanto atravessava a praça para a galeria. Retirando as chaves da mala de senhora, destrancou a porta de madeira exterior e entrou para o hall abafado. Em seguida, abriu a porta de vidro de alta segurança e, entrando, desativou o alarme. Fechou a porta atrás de si. Esta trancou-se automaticamente.

O interior da galeria estava escuro e fresco, um alívio em relação ao exterior. No seu escritório privado, Olivia premiu um interruptor que abriu os estores e grades de segurança. Depois, como era seu hábito, foi até ao andar de cima, às salas de exposição, para se assegurar de que nada faltava. O Lichtenstein, o Basquiat e o Dubuffet em exibição na sua montra eram apenas a ponta do inventário da galeria. A considerável coleção profissional de Olivia incluía trabalhos de Warhol, Twombly, de Kooning, Gerhard Richter e Pollock, bem como de numerosos artistas contemporâneos franceses e espanhóis. Fizera aquisições com sabedoria e granjeara uma clientela de confiança entre os milionários da Côte d’Azur (homens como Dmitri Antonov, pensou). Era uma proeza extraordinária para uma mulher sem título universitário e sem qualquer formação artística formal. E pensar que, apenas alguns anos antes, geria uma pequena galeria que distribuía os rabiscos de artistas locais a turistas suados que saíam estonteados de navios cruzeiro e autocarros. Por vezes, permitia a si própria pensar que tinha chegado até ali como resultado da sua determinação e argúcia empresarial, mas, na verdade, sabia que não era assim. Era tudo obra de Jean-Luc. Olivia era o rosto público da galeria que ostentava o seu nome, mas fora comprada e paga por Jean-Luc Martel. Aliás, ela também.

Depois de se asseverar de que a sua coleção sobrevivera intacta a essa noite, dirigiu-se ao andar de baixo e encontrou Monique, a sua rececionista, a preparar um café crème na máquina automática. Era uma rapariga de vinte e quatro anos, magra e com seios pequenos, uma encarnação de uma bailarina de Degas. À noite, trabalhava como rececionista num dos restaurantes de Jean-Luc. Aparentava ter-se deitado tarde. No que se referia a Monique, isso acontecia com mais frequência do que o contrário.

— Também quer? — perguntou enquanto a última porção de leite a ferver gorgolejava e cuspia para a sua chávena.

— Por favor.

Monique entregou o café a Olivia e preparou outro para si.

— Há marcações para esta manhã?

— Não era suposto seres tu a dizer-me isso?

Monique fez uma careta.

— Quem foi desta vez?

— Um americano. Tão fofo. É de um lugar chamado Virgínia. — Dito por Monique, soava como o lugar mais exótico e sensual do mundo. — É criador de cavalos.

— Pensava que odiavas americanos.

— Claro. Mas este é muito rico.

— Vais voltar a vê-lo alguma vez?

— Talvez esta noite.

Ou talvez não, pensou Olivia. Em tempos, fora uma rapariga como Monique. Talvez ainda fosse.

— Se consultares o calendário — disse ela —, tenho a certeza de que vais descobrir que o Herr Müller vem às onze.

Monique franziu o sobrolho.

— O Herr Müller gosta de olhar para as minhas mamas.

— Para as minhas também.

De facto, o Herr Müller gostava de olhar para Olivia mais do que para os seus quadros. Não era o único. A sua aparência era um trunfo profissional, mas, ocasionalmente, era uma distração e um desperdício de tempo. Homens ricos (e alguns não tão ricos) faziam marcações na galeria simplesmente para passarem alguns minutos na sua presença. Alguns arranjavam coragem para lhe fazerem propostas de cariz sexual. Outros fugiam sem nunca tornarem as suas intenções conhecidas. Ela aprendera há muito tempo como projetar um ar de indisponibilidade. Embora, teoricamente, fosse solteira, era a rapariga de JLM. Toda a gente em França sabia disso. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.

Monique sentou-se na secretária de vidro da receção. Tinha apenas um telefone e o calendário de marcações. Olivia não lhe confiava muito mais do que isso. Encarregava-se ela própria de todos os assuntos comerciais e administrativos da galeria, com a ajuda de Jean-Luc. Monique era apenas mais uma obra de arte que, se incentivada a isso, era capaz de atender o telefone. Fora Jean-Luc, não Olivia, quem lhe dera trabalho na galeria. Olivia tinha praticamente a certeza de que eram amantes. Não sentia rancor de Monique. Na verdade, sentia um pouco de pena dela. A coisa não acabaria bem. Nunca acabava.

O Herr Müller chegou dez minutos atrasados, o que não era seu hábito. Era gordo e rosado e cheirava ao vinho da noite anterior. Um confronto recente com um cirurgião plástico em Zurique deixara-o com uma expressão de assombro perpétuo. Estava interessado num quadro do artista americano Philip Guston. Um trabalho semelhante atingira um valor de vinte e cinco milhões de dólares na América. O Herr Müller esperava adquirir o de Olivia por quinze. Olivia rejeitou a oferta.

— Mas eu tenho de o ter! — exclamou enquanto fitava descaradamente a parte frontal da blusa de Olivia.

— Então, vai ter de arranjar mais cinco milhões.

— Deixe-me dormir sobre o assunto. Entretanto, não deixe que mais ninguém o veja.

— Na verdade, estou a planear mostrá-lo esta tarde.

— Maldição! A quem?

— Vá lá, Herr Müller, sabe que dizer-lhe seria cometer uma indiscrição.

— Não será o tal Antonov?

Ela ficou em silêncio.

— Fui a uma festa na villa dele recentemente. Sobrevivi por pouco. Outros não tiveram tanta sorte. — Mordiscou o interior do lábio. — Dezasseis. Mas é a minha oferta final.

— Prefiro arriscar com o Monsieur Antonov.

— Eu sabia!

Ao meio-dia e meia, em plena torreira do sol, Olivia despachou-o. Quando regressou à secretária, viu que recebera uma mensagem de Jean-Luc. Estava a embarcar no seu helicóptero para ir até Nice, onde tinha reuniões durante toda a tarde. Tentou enviar-lhe uma mensagem de volta, mas não recebeu qualquer resposta. Calculou que já estivesse no ar.

Devolveu o telefone à secretária. Alguns segundos mais tarde, este tocou. Olivia não reconheceu o número. Ainda assim, atendeu e aproximou o telefone do ouvido.

— Bonjour.

— Madame Watson?

— Sim.

— Daqui fala Nicolas Carnot. Almoçámos ontem na...

— Sim, claro. Como está?

— Estava a perguntar-me se continua a ter tempo para mostrar a sua coleção ao Monsieur Antonov.

— Limpei a minha agenda — mentiu. — A que horas é que ele gostaria de vir?

— Pode ser às duas horas?

— Às duas seria perfeito.

— Preciso de passar por aí primeiro para dar uma vista de olhos.

— Desculpe?

— O Monsieur Antonov é cauteloso em relação à segurança.

— Garanto-lhe, a minha galeria é bastante segura.

Houve um silêncio.

— A que horas gostaria de vir? — perguntou Olivia, exasperada.

— Estou livre agora, se a senhora estiver.

— Pode vir agora, não há problema.

— Perfeito. Oh, e mais uma coisa, Madame Watson.

— Sim?

— A sua rececionista.

— A Monique? O que é que tem?

— Dê-lhe um recado para fazer, algo que a mantenha fora da galeria durante alguns minutos. Pode fazer isso por mim, Madame Watson?

 

Transcorreram cinco minutos antes de a rececionista finalmente sair da galeria. Deteve-se na fornalha da praça, os seus olhos moveram-se para a esquerda e para a direita. Depois, deambulou vagarosamente, passando pela mesa de Keller no café vizinho com os braços a pender ao lado do corpo como flores de caule longo. Ele escreveu uma mensagem breve no telemóvel e disparou-a para a casa segura de Ramatuelle. A resposta chegou imediatamente. O helicóptero de Martel estava a leste de Cannes. Tudo decorria conforme o planeado.

Como bom agente operacional, Keller pagara a conta antecipadamente. Erguendo-se, dirigiu-se para a galeria e colocou o polegar pesadamente sobre a campainha. Não houve resposta. Amor com amor se paga, pensou. Tocou à campainha uma segunda vez. As fechaduras de segurança abriram-se com um estalido e ele entrou.

 

Havia algo diferente nele, Olivia tinha a certeza disso. Exteriormente, era a mesma criatura superficial e indiferente com quem almoçara na villa de Antonov (o homem de poucas palavras e funções indeterminadas), mas o seu comportamento mudara. Subitamente, parecia muito seguro de si e da virtude da sua causa. Atravessando a galeria, retirou os óculos de sol e colocou-os na cabeça. O seu sorriso era cordial, mas os olhos azuis eram totalmente profissionais. Dirigiu-se a ela sem antes lhe estender a mão para a cumprimentar.

— Receio que tenha havido uma ligeira mudança de planos. Afinal, o Monsieur Antonov não vai poder vir.

— Porque não?

— Um pequeno problema que exigia a sua atenção imediata. Nada de urgente, ouça. Não há motivo para alarme. — Disse tudo isto no seu francês com sotaque corso, com o mesmo sorriso inofensivo.

— Então porque é que me telefonou? E porque é que — perguntou Olivia — está aqui?

— Porque a sua galeria suscitou o interesse de alguns amigos do Monsieur Antonov que gostariam de falar consigo em privado.

— Que tipo de interesse?

— Diz respeito a várias transações recentes suas. Foram bastante lucrativas, mas pouco ortodoxas.

— As transações desta galeria — disse ela friamente — são privadas.

— Não tão privadas quanto pensa.

Olivia sentiu o rosto a começar a arder. Caminhou lentamente até à secretária de Monique e levantou o auscultador do descanso. A sua mão tremia enquanto marcava o número.

— Não se incomode a telefonar ao seu marido, Olivia. Ele não vai atender.

Ela ergueu o olhar repentinamente. Ele dissera estas palavras não em francês, mas em inglês com sotaque britânico.

— Ele não é meu marido — ouviu-se a si própria dizer.

— Oh, sim, esqueci-me. Ele continua no ar — continuou. — Algures entre Cannes e Nice. Mas tomámos a precaução adicional de bloquear todas as suas chamadas recebidas.

— Tomámos?

— Os serviços secretos britânicos — respondeu calmamente. — Não se preocupe, Olivia, está em muito boas mãos.

Ela pressionou o telefone contra o ouvido e ouviu a gravação de voice mail de Jean-Luc.

— Pouse o telefone, Olivia, e respire bem fundo. Não vou magoá-la. Estou aqui para ajudar. Pense em mim como a sua última oportunidade. Se fosse a si, aproveitava-a.

Ela devolveu o telefone ao descanso.

— Linda menina — disse ele.

— Quem é você?

— O meu nome é Nicolas Carnot e trabalho para o Monsieur Antonov, é importante que se lembre disso. Agora, pegue na sua mala, no seu telefone e nas chaves e leve-os para aquele seu belo Range Rover. E, por favor, despache-se, Olivia. Não temos muito tempo.


32

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


O Range Rover estava no seu local habitual, estacionado ilegalmente à porta do restaurante de Jean-Luc no Porto Velho. Olivia deslizou para trás do volante e, seguindo as indicações, conduziu para oeste ao longo do golfo de Saint-Tropez. Por duas vezes, pediu-lhe que explicasse porque é que a sua galeria tinha interesse suficiente para justificar um estratagema tão elaborado por parte dos serviços secretos britânicos. Por duas vezes, ele fez comentários sobre o cenário e o tempo, ao estilo de Nicolas Carnot, amigo do Monsieur Dmitri Antonov.

— Como é que aprendeu a falar assim?

— Assim como?

— Como um corso.

— A minha tia Beatrice era da Córsega. Está prestes a passar o sítio onde tem de virar.

— Para que lado?

Ele apontou na direção da saída para Gassin e Ramatuelle. Ela guinou bruscamente o volante para a esquerda e, pouco depois, dirigiram-se para sul, para a zona rural escarpada que separava o golfo e a Baie de Cavalaire.

— Para onde me está a levar?

— Para ver uns amigos do Monsieur Antonov, claro.

Ela rendeu-se e conduziu em silêncio. Nenhum deles falou até depois de terem passado Ramatuelle. Ele deu-lhe indicações para que se dirigisse para uma estrada secundária mais pequena e, eventualmente, até à entrada da villa. O portão estava aberto para os receber. Ela estacionou no pátio e desligou o motor.

— Não é tão luxuosa como a Villa Soleil — disse ele —, mas vai achá-la bastante confortável.

Subitamente, havia um homem de pé junto da porta de Olivia. Ela reconheceu-o. Vira-o nessa mesma manhã na Place de l’Ormeau. Ele ajudou-a a sair do Range Rover e, com um único movimento da mão, guiou-a na direção da entrada da villa. O homem que ela conhecia apenas como Nicolas Carnot (o homem que falava francês como um corso e inglês com um sotaque chique do West End) caminhou ao seu lado.

— Ele também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Quem?

— O que me abriu a porta.

— Não vi ninguém.

Olivia virou-se para trás, mas o homem tinha desaparecido. Talvez tivesse sido uma alucinação. Foi o calor, pensou ela. Sentia-se verdadeiramente fraca devido à temperatura.

Enquanto se aproximava da villa, a porta moveu-se para trás e Dmitri Antonov surgiu no meio da brecha.

— Olivia! — exclamou, como se ela fosse a sua amiga mais antiga do mundo. — Peço imensa desculpa por incomodá-la, mas receio que não houvesse alternativa. Entre e esteja à vontade. Está cá toda a gente. Estão bastante desejosos de a conhecerem por fim em carne e osso.

Disse tudo isso no seu inglês com sotaque russo. Olivia não sabia bem se seria verdadeiro ou uma atuação. Na verdade, naquele momento, não sabia nada de nada.

Segui-o através do hall de entrada e por baixo de uma arcada que dava para a sala de estar, que estava mobilada de forma confortável e com muitas telas penduradas na parede.

Todas estavam em branco.

As pernas de Olivia pareceram liquidificar-se. O Monsieur Antonov equilibrou-a e empurrou-a suavemente para a frente.

Havia outros três homens presentes. Um era alto, bonito e distinto e indiscutivelmente inglês. Estava, calmamente, a dizer algo em francês a uma figura amarrotada que envergava um casaco de tweed e parecia ter sido extraída de um alfarrabista. O silêncio abateu-se sobre a conversa quando Olivia entrou e os seus rostos viraram-se para ela como girassóis para a aurora. Contudo, o terceiro homem parecia totalmente alheio à sua chegada. Fitava uma das telas em branco, com uma mão pressionada contra o queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. A tela era idêntica, em termos de dimensões, a todas as outras, mas estava apoiada sobre um cavalete. O homem parecia confortável diante dela, observou Olivia. Era de altura e constituição medianas. O seu cabelo estava cortado curto e era grisalho nas têmporas. Os seus olhos, que estavam resolutamente fixos na tela, eram de um invulgar tom de verde.

— Acho — disse ele, finalmente — que este é o meu favorito. A técnica do desenho é absolutamente extraordinária e o uso da cor e da luz é inigualável. Invejo a paleta dele.

Despejou tudo isto sem pausas e em francês, com um sotaque que Olivia não conseguiu identificar com precisão. Era uma mistura peculiar, um pouco de alemão, uma pitada de italiano. Continuava a olhar fixamente para o quadro. A sua postura mantinha-se inalterada.

— A primeira vez que o vi — continuou —, pensei que era realmente único. Mas estava enganado. Quadros como este parecem ser a especialidade da sua galeria. Na verdade, tanto quanto consegui perceber, conseguiu o monopólio do mercado no que se refere a telas em branco. — Os olhos verdes viraram-se finalmente para ela. — Parabéns, Olivia. É uma proeza e tanto.

— Quem é você?

— Sou um amigo do Monsieur Antonov.

— Também pertence aos serviços secretos britânicos?

— Por amor de Deus, não! Mas ele sim — disse, apontando na direção do inglês com aparência distinta. — Na verdade, é o chefe da Divisão dos Serviços Secretos que é por vezes referida como MI6. Antigamente, o nome dele era um segredo de Estado, mas os tempos mudaram. Ocasionalmente, concede uma entrevista e permite que lhe tirem uma fotografia. Em tempos, isso teria sido uma heresia, mas já não.

— E ele? — perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da figura amarrotada vestida de tweed.

— Francês — explicou o homem de olhos verdes. — É chefe de algo chamado Grupo Alpha. Talvez tenha ouvido o nome. O quartel-general em Paris foi bombardeado há não muito tempo e vários dos seus agentes perderam a vida. Como seria de esperar, está interessado em descobrir o homem que fez isso. E gostava que a Olivia o ajudasse a encontrá-lo.

— Eu? — perguntou, incrédula. — Como?

— Chegaremos a isso daqui a pouco. Quanto à minha origem — disse ele —, sou o homem esquisito que está de fora. Sou do local de que não gostamos de falar.

Foi nesse momento que ela conseguiu finalmente identificar o seu peculiar sotaque.

— É de Israel.

— Receio que sim. Mas, voltando ao assunto em questão — acrescentou rapidamente —, que é a Olivia e a sua galeria. Não é uma verdadeira galeria, pois não, Olivia? Oh, vende aquele quadro ocasional, como o Guston que estava a tentar impingir ao pobre Herr Müller hoje de manhã pelo preço obsceno de vinte milhões de euros. Mas serve, basicamente, como uma máquina de lavagem de dinheiro do verdadeiro negócio do Jean-Luc Martel, que são as drogas.

Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala.

— Este é o momento — disse o homem de olhos verdes — em que a Olivia me diz que o seu... — Deteve-se a si próprio. — Desculpe-me, mas sou exigente com os pormenores. Como é que a Olivia se refere ao Jean-Luc?

— É meu parceiro.

— Parceiro? Que infelicidade.

— Porquê?

— Porque a palavra parceiro implica uma relação de negócios.

— Acho que gostaria de telefonar ao meu advogado.

— Se o fizer, perderá a única e exclusiva oportunidade que tem de se salvar a si própria. — Fez uma pausa para avaliar o impacto das suas palavras. — A sua galeria é pequena, mas é uma parte importante de uma vasta organização criminosa. O negócio dessa organização é a droga. Droga que vem sobretudo do Norte de África. Droga que flui através das mãos do grupo terrorista que se autodenomina Estado Islâmico. O Jean-Luc Martel é o distribuidor dessa droga aqui na Europa Ocidental. Faz negócios com o ISIS. Consciente ou inconscientemente, está a ajudar a financiar as operações do grupo. O que significa que a Olivia também está.

— Desejo-lhe sorte a tentar provar isso num tribunal francês.

Ele sorriu pela primeira vez. Foi frio e rápido.

— Uma demonstração de coragem — disse com admiração trocista —, mas ainda nenhuma negação sobre o negócio do seu marido.

— Ele não é meu marido.

— Oh, sim — disse ele desdenhosamente —, esqueci-me.

Eram as mesmas palavras que o homem chamado Nicolas Carnot proferira na galeria de arte.

— Quanto a telefonar ao seu advogado — continuou o israelita — isso não será necessário. Pelo menos, para já. Sabe, Olivia, não há agentes da polícia nesta sala. Nós somos agentes dos serviços secretos. Atenção, não temos nada contra a polícia. Eles têm o seu trabalho para fazer e nós temos o nosso. Eles resolvem crimes e fazem detenções, mas o nosso ramo é a informação. A Olivia tem-na, nós precisamos dela. Esta é a sua oportunidade, Olivia. É a sua única e exclusiva hipótese. Se eu fosse seu advogado, aconselhá-la-ia a aproveitá-la. É o melhor acordo que algum dia conseguirá.

Houve outro silêncio, mais demorado do que o anterior.

— Desculpem — disse ela, finalmente —, mas não posso ajudá-los.

— Não pode ajudar-nos, Olivia, ou não quer?

— Não sei nada sobre o negócio do Jean-Luc.

— As quarenta e oito telas em branco que encontrei no Freeport de Genebra dizem o contrário. Foram enviadas para lá pela Galerie Olivia Watson. O que significa que será a Olivia a enfrentar acusações, não ele. E o que é que acha que o seu parceiro fará nessa altura? Irá a cavalgar para a salvar? Irá colocar-se diante de uma bala por si? — Abanou a cabeça lentamente. — Não, Olivia, não o fará. De tudo o que sei sobre o Jean-Luc Martel, não é esse tipo de homem.

Ela não deu qualquer resposta.

— Então como é que vai ser, Olivia? Vai ajudar-nos?

Ela abanou a cabeça.

— Porque não?

— Porque, se o fizer — disse ela calmamente —, o Jean-Luc mata-me.

Ele sorriu novamente. Desta vez, parecia genuíno.

— Disse alguma coisa engraçada? — perguntou ela.

— Não, Olivia, disse-me a verdade. — Os olhos verdes deixaram o rosto dela e pousaram mais uma vez na tela em branco. — O que é que vê quando olha para aqui?

— Vejo uma coisa que o Jean-Luc me obrigou a fazer para poder manter a minha galeria.

— Interessante interpretação. Sabe o que é que eu vejo?

— O quê?

— Vejo-a a si sem o Jean-Luc.

— E que tal lhe pareço?

— Venha cá, Olivia. — Ele afastou-se da tela. — Veja por si própria.


33

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


As telas em branco foram retiradas das paredes e do cavalete, e uma mulher de cabelo escuro de cerca de trinta e cinco anos serviu silenciosamente bebidas frias. Olivia foi convidada a sentar-se. Por sua vez, o inglês garboso e o seu parceiro francês amarrotado foram devidamente apresentados. Os seus nomes eram suficientemente familiares. Também o era o rosto anguloso do israelita de olhos verdes. Olivia tinha praticamente a certeza de que o vira nalgum lado anteriormente, mas não conseguia decidir onde fora. Ele apresentou-se apenas como Gideon e caminhou lentamente pelo perímetro da divisão, enquanto todos os outros se sentavam a transpirar no incansável calor. Uma ventoinha giratória batia monotonamente e sem qualquer efeito no canto; moscas enormes moviam-se como abutres para dentro e para fora das portas francesas abertas. Subitamente, o israelita parou de caminhar e, com um movimento rápido da mão, apanhou uma no ar.

— Gostava daquilo? — perguntou ele.

— De quê?

— De ver a sua cara em revistas e outdoors.

— Não é tão fácil como parece.

— Não é glamoroso?

— Nem sempre.

— Então e as festas e desfiles?

— Para mim, os desfiles eram trabalho. E as festas — disse — tornaram-se bastante aborrecidas passado algum tempo.

Ele lançou o cadáver da mosca para o jardim inundado de sol e, virando-se, avaliou Olivia exaustivamente.

— Então porque é que escolheu uma vida assim?

— Não escolhi. Foi ela que me escolheu.

— A Olivia foi descoberta?

— Por assim dizer.

— Aconteceu quando tinha dezasseis anos, não foi?

— É evidente que leu os artigos sobre mim.

— Com grande interesse — admitiu. — A Olivia fez uma audição para figurante num filme de época que estava a ser gravado na costa de Norfolk. Não conseguiu o papel, mas alguém na equipa de produção lhe sugeriu que devia pensar em ser modelo. E, portanto, a Olivia decidiu abandonar os seus estudos e ir para Nova Iorque para enveredar por uma carreira na moda. Aos dezoito anos, era uma das modelos mais em voga na Europa. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Esqueci-me de alguma coisa?

— De muita coisa, na verdade.

— Tal como?

— Nova Iorque.

— Então porque é que não continua a história a partir daí? — disse ele. — De Nova Iorque.

Foi um inferno, contou-lhe ela. Depois de assinar um contrato com uma agência conhecida, puseram-na num apartamento no West Side de Manhattan com mais oito raparigas que dormiam em beliches, em turnos rotativos. Durante o dia, mandavam-na ir a castings com potenciais clientes e jovens fotógrafos que estavam a tentar entrar no ramo. Se tivesse sorte, o fotógrafo aceitava tirar-lhe algumas fotografias que poderia colocar no portfólio. Caso contrário, saía de mãos a abanar e regressava ao exíguo apartamento para combater as baratas e as formigas. À noite, ela e as restantes raparigas alugavam-se a discotecas para ganharem algum dinheiro. Olivia foi agredida sexualmente duas vezes. O segundo ataque deixou-a com um olho negro que a impediu de trabalhar durante quase um mês.

— Mas a Olivia perseverou — disse o israelita.

— Suponho que sim.

— O que é que aconteceu depois de Nova Iorque?

— Aconteceu o Freddie.

Freddie, explicou, era Freddie Mansur, o agente mais em voga no ramo e um dos mais célebres predadores. Freddie trouxe Olivia para Paris e para a sua cama. Também lhe deu drogas: erva, cocaína, barbitúricos para a ajudar a dormir. À medida que o seu consumo calórico se reduzia a níveis próximos da inanição, o seu peso caía a pique. Rapidamente, era apenas pele e osso. Quando tinha fome, fumava um cigarro ou snifava um risco. Coca e tabaco: Freddie chamava-lhe a dieta de modelo.

— E o mais engraçado é que funcionou. Quanto mais magra ficava, melhor aparência tinha. Por dentro, estava a morrer lentamente, mas a máquina fotográfica adorava-me. E os anunciantes também.

— A Olivia era uma supermodelo?

— Nem por sombras, mas safava-me bastante bem. E o Freddie também. Ficava com um terço de tudo o que eu ganhava. E um terço do salário de todas as outras raparigas que representava na altura.

— E com quem dormia?

— Digamos, simplesmente, que a nossa relação não era monogâmica.

Aos vinte e seis, a aparência cadavérica e toxicodependente com a qual estava associada passou de moda e a sua estrela começou a esmorecer. Muito do seu trabalho tinha lugar na passarela, onde a sua estrutura alta e membros compridos continuavam com grande procura. Mas o trigésimo aniversário foi um ponto de viragem. Houve um antes dos trinta e um depois dos trinta, explicou, e depois dos trinta o trabalho praticamente acabou. Aguentou durante mais três anos, até o próprio Freddie a advertir de que tinha chegado o momento de deixar o ramo. Fê-lo gentilmente, no início, e, quando ela resistiu, cortou os laços profissionais e românticos que tinha com ela e atirou-a para o meio da rua. Tinha trinta e três anos, não tinha estudos, estava desempregada e acabada.

— Mas era rica?

— Dificilmente.

— Então, e todo o dinheiro que ganhou?

— O dinheiro vem e o dinheiro vai.

— Drogas?

— E outras coisas.

— A Olivia gostava das drogas?

— Precisava delas, há uma diferença. Infelizmente, o Freddie deixou-me com uns quantos vícios caros.

— Então, o que é que fez?

— Fiz o que faria qualquer mulher na minha posição. Fiz as malas e fui para Saint-Tropez.

Com o que restava do seu dinheiro, arranjou uma villa nas montanhas («Era um barracão, na verdade, não muito longe daqui») e comprou uma scooter em segunda mão. Passava os dias na praia em Pampelonne e as noites em bares e discotecas da povoação. Naturalmente, encontrou aí muitos homens: árabes, russos, lixo europeu de cabelo prateado. Permitiu que alguns a levassem para a cama em troca de presentes e dinheiro, o que a fez sentir-se praticamente como uma prostituta. Acima de tudo, procurou um companheiro adequado, alguém que pudesse sustentar o estilo de vida ao qual se habituara. Alguém que não lhe causasse demasiada repulsa. Rapidamente, concluiu que viera para o local errado e, com o dinheiro a começar a escassear, aceitou um emprego numa pequena galeria de arte que era propriedade de um britânico expatriado. Então, bastante casualmente, conheceu o homem que mudaria a sua vida.

— O Jean-Luc Martel?

Ela não conseguiu evitar sorrir.

— Onde é que o conheceu?

— Numa festa, onde mais poderia ser? O Jean-Luc estava sempre numa festa. O Jean-Luc era a festa.

Na realidade, explicou, não foi a primeira vez que se conheceram. A primeira vez fora na Fashion Week em Milão, mas, nessa altura Jean-Luc estava com a esposa e mal olhara Olivia nos olhos ao apertar-lhe a mão. Mas, aquando do seu segundo encontro, era um viúvo em recuperação e desejoso de atividade. E Olivia apaixonou-se perdida e instantaneamente por ele.

— Eu era a Rosemary e ele era o Dick. Fiquei absolutamente impotente de amor.

— A Rosemary e o Dick?

— Rosemary Hoyt e Dick Diver. São personagens do...

— Eu sei quem são, Olivia. E está a lisonjear-se com a comparação.

As palavras foram como um estalo na sua face. As maçãs do seu rosto incendiaram-se de cor.

— Ele deu-lhe presentes e dinheiro como os outros?

— O Jean-Luc não tinha de pagar pelas suas miúdas. Era incrivelmente bonito e fabulosamente bem-sucedido. Era... o Jean-Luc.

— E o que é que acha que ele viu em si?

— Costumava perguntar-lhe a mesma coisa.

— Qual era a resposta dele?

— Achava que fazíamos uma boa equipa.

— Então foi uma parceria desde o início?

— Mais ou menos.

— Alguma vez falaram de casamento?

— Eu falei, mas o Jean-Luc não estava interessado. Costumávamos ter discussões terríveis sobre isso. Disse-lhe que não ia desperdiçar os melhores anos da minha vida a ser a concubina dele, que queria casar com ele e ter filhos. No final, chegámos a um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Ele deu-me outra coisa em vez do casamento e dos filhos.

— E que coisa foi essa?

— A Galerie Olivia Watson.


34

 

RAMATUELLE, PROVENÇA

 

 


Olivia estava habituada a ter homens a fitarem-na. Homens ofegantes. Homens arquejantes. Homens de olhos húmidos, desejosos. Homens que fariam qualquer coisa, pagariam quase qualquer preço, para a ter nas suas camas. Os três homens agora alinhados diante dela (o mestre de espionagem britânico, o polícia secreto francês e o israelita sem origem declarada, mas de rosto vagamente familiar) também a estavam a fitar, mas definitivamente por um motivo diferente. Pareciam impenetráveis ao feitiço da sua aparência. Para eles, ela não era um objeto digno de ser admirado; era um meio para atingir um fim. Um fim que ainda não tinham considerado adequado revelar. Não estava, de todo, convencida de que gostassem dela. Ainda assim, sentiu-se aliviada por saber que ainda existiam homens assim. Uma carreira na indústria da moda e dez anos no mundo do faz-de-conta de Saint-Tropez tinham-na deixado com uma opinião bastante baixa sobre a espécie.

Galerie Olivia Watson...

Disse-lhes que o nome fora ideia de Jean-Luc, não sua. Ela quisera pendurar o nome consolidado da JLM sobre a porta da galeria, mas Jean-Luc insistira que a galeria ostentasse o nome dela em vez do seu. Deu-lhe o dinheiro para comprar o edifício antigo e elegante na Place de l’Ormeau e, depois, financiou a aquisição de uma coleção de nível mundial de arte contemporânea. Olivia quisera adquirir o acervo lenta e modestamente, com especial ênfase em artistas mediterrânicos. Mas Jean-Luc não quisera sequer ouvir falar nessa hipótese. Ele não fazia as coisas de forma lenta e modesta, explicou. Unicamente grande e vistosa. A galeria abriu com um nível de ostentação e glamour que só JLM poderia proporcionar. Depois disso, ele afastou-se e cedeu a Olivia um absoluto controlo artístico e financeiro.

— Mas apenas até certo ponto — disse ela.

— O que é que isso quer dizer? — perguntou o israelita. — Ou se detém controlo absoluto ou não se detém. Não existe um meio-termo.

— Existe, quando o Jean-Luc está envolvido.

Ele convidou-a a desenvolver o assunto.

— O Jean-Luc encarregava-se da contabilidade da galeria.

— Não achou isso estranho?

— Na verdade, fiquei aliviada. Eu era uma antiga modelo e ele era um empresário extremamente bem-sucedido.

— Quanto tempo demorou a descobrir que alguma coisa não estava bem?

— Dois anos. Talvez um pouco mais.

— O que é que aconteceu?

— Comecei a ver os registos da galeria sem ter o Jean-Luc a espreitar por cima do meu ombro.

— E o que é que descobriu?

— Que estava a adquirir e a vender mais trabalhos do que alguma vez imaginei ser possível.

— O negócio da galeria ia de vento em popa?

— Isso é pouco. Na verdade, logo no segundo ano de atividade, a Galerie Olivia Watson fez mais de trezentos milhões de euros de lucro. A maioria das vendas era totalmente privada e envolviam quadros que eu nunca tinha visto.

— O que é que fez?

— Confrontei-o.

— E como é que ele reagiu?

— Disse-me para me meter nos meus negócios. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — O jogo de palavras não foi intencional.

— Foi o que fez?

Ela hesitou antes de assentir lentamente com a cabeça.

— Porquê?

Quando ela não deu qualquer explicação, ele sugeriu-lhe uma.

— Porque a sua vida era perfeita e não queria fazer nada que a perturbasse.

— Todos fazemos concessões nas nossas vidas.

— Mas nem todos encontramos refúgio nos braços de um traficante de droga. — Fez uma pequena pausa para permitir que as palavras a ferissem o suficiente. — Sabia que o verdadeiro negócio do Jean-Luc eram os estupefacientes, não sabia?

— Continuo a não saber.

O israelita recebeu a resposta com um desdém justificado.

— Não temos muito tempo, Olivia. Era melhor que não o desperdiçasse com negações inúteis.

Houve um silêncio, para dentro do qual o inglês que se autodenominava Nicolas Carnot rastejou. Foi até à estante e, esticando o pescoço para o lado, retirou um volume com uma capa gasta. Era O Céu Que Nos Protege, do romancista americano Paul Bowles. Enfiou o livro debaixo do braço e, com um olhar de soslaio para Olivia, saiu sorrateiramente da divisão de novo. Ela olhou para o israelita, que lhe devolveu um olhar destituído de julgamento.

— Estava prestes a contar-me — disse ele finalmente — quando é que se apercebeu de que o seu parceiro doméstico e empresarial era um traficante de droga.

— Ouvi rumores, tal como toda a gente.

— Mas, ao contrário de toda a gente, a Olivia encontrava-se numa posição única para saber se eram ou não verdade. Afinal de contas, a Olivia era a proprietária formal de uma galeria de arte que servia como uma das suas mais eficazes fachadas para lavar dinheiro.

Ela sorriu.

— Que ingénuo da sua parte.

— Porquê?

— Porque o Jean-Luc é muito bom a manter segredos. — Depois acrescentou: — Quase tão bom como o senhor e os seus amigos.

— Nós somos profissionais.

— O Jean-Luc também — disse ela sombriamente.

— Alguma vez lho perguntou?

— Se ele é traficante de droga?

— Sim.

— Só uma vez. Ele riu-se. E depois disse-me que nunca mais lhe fizesse perguntas sobre o negócio dele.

— E fez?

— Nunca.

— Porque não?

— Porque tinha ouvido outros rumores — disse ela. — Rumores sobre o que acontecia às pessoas que se lhe atravessavam no caminho.

— E, ainda assim, ficou — referiu ele.

— Fiquei — retorquiu ela — porque tive medo de partir.

— Medo de partir ou medo de perder a galeria?

— Ambos — admitiu.

Um lampejo de um sorriso surgiu nos lábios dele e depois desapareceu.

— Admiro a sua honestidade, Olivia.

— Pelo menos isso...

— Tal como o Nicolas Carnot, tenho tendência para me abster de qualquer julgamento. Principalmente, quando há informação valiosa em jogo.

— Que tipo de informação?

— A organização do negócio do Jean-Luc, por exemplo. A Olivia deve ter conseguido reunir uma quantidade de informação considerável sobre a forma como a empresa está estruturada. É bastante opaca, no mínimo. Olhando para ela do exterior, conseguimos identificar alguns dos atores. Há um chefe para cada divisão (para os restaurantes, para os hotéis, para a parte do retalho), mas, por mais que tentemos, não somos capazes de identificar o chefe da unidade de estupefacientes ilícitos da JLM.

— Está a brincar.

— Só um bocadinho. É um homem ou são dois? É o próprio Jean-Luc?

Ela não disse nada.

— Tempo, Olivia. Não temos muito tempo. Precisamos de saber como é que o Jean-Luc gere o seu negócio de droga. Como é que dá as ordens. Como é que se isola para que a polícia não lhe consiga tocar. Não acontece por osmose ou telecinesia. Existe, algures, uma figura de confiança que trata dos interesses dele. Alguém que consegue entrar e sair da sua órbita sem levantar suspeitas. Alguém com quem ele comunica apenas pessoalmente, em voz baixa, num quarto onde não existem telefones presentes. Certamente, sabe quem é esse homem, Olivia. Talvez se conheçam. Talvez a Olivia seja amiga dele.

— Amiga, não — disse ela, passado um momento. — Mas realmente sei quem ele é. E sei o que me aconteceria se lhe dissesse o nome dele. Ele matava-me. E nem sequer o Jean-Luc conseguiria impedi-lo.

— Ninguém lhe vai fazer mal, Olivia.

Ela olhou-o com ceticismo. Ele fingiu ficar moderadamente ofendido.

— Pense nos esforços extraordinários que fizemos para trazê-la aqui hoje. Não demonstrámos o nosso profissionalismo? Não provámos que merecemos a sua confiança?

— E quando desaparecerem? Quem é que me vai proteger nessa altura?

— A Olivia não vai precisar de proteção — replicou ele — porque também terá desaparecido.

— Onde é que eu estarei?

— Isso cabe-lhe a si e ao seu compatriota decidir — disse ele, com uma inclinação da cabeça na direção do chefe dos serviços secretos britânicos. — Bem, calculo que possa oferecer-lhe um apartamento agradável com vista para o mar em Telavive, mas suspeito que se sinta mais confortável em Inglaterra.

— O que é que vou fazer para ganhar dinheiro?

— Gerir uma galeria de arte, evidentemente.

— Qual?

— A Galerie Olivia Watson. — Ele sorriu. — Apesar de o seu inventário profissional ter sido adquirido com dinheiro proveniente da droga, estamos preparados para a deixar mantê-lo. Com duas exceções — acrescentou.

— Quais?

— O Guston e o Basquiat. O Monsieur Antonov gostaria de lhe passar um cheque de cinquenta milhões por ambos, o que deverá dissipar quaisquer preocupações que o Jean-Luc possa ter sobre a forma como passou esta tarde. E não se preocupe — acrescentou. — Ao contrário do Monsieur Antonov, o dinheiro é absolutamente real.

— Que generoso da vossa parte — disse ela. — Mas ainda não me disseram o motivo de tudo isto.

— O motivo é Paris — respondeu ele. — E Londres. E Antuérpia. E Amesterdão. E Estugarda. E Washington. E uma centena de outros atentados de que a Olivia nunca ouviu falar.

— O Jean-Luc não é nenhum anjo, mas também não é nenhum terrorista.

— É verdade. Mas acreditamos que faz negócios com um, o que significa que está a ajudar a financiar os atentados. Mas receio que isto seja o máximo que lhe vou dizer em relação a este assunto. Quanto menos souber, melhor, É assim que funciona no nosso ramo. E a única coisa que precisa de saber é que lhe está a ser concedida uma oportunidade única. É uma possibilidade de começar do zero. Pense nela como uma tela em branco na qual pode pintar a imagem que quiser. E só lhe custará o nome dele. — Ele sorriu e perguntou: — Temos acordo, senhora Wilson?

— Watson. O meu nome é Olivia Watson. E, sim — disse, passado um momento. — Creio que temos acordo.

 

Falaram durante toda a tarde, enquanto o calor abrandava e as sombras se tornavam mais finas e longas no jardim e no olival prateado que trepava pela encosta ao lado. As circunstâncias do seu repatriamento para o Reino Unido. A forma como deveria comportar-se na presença de Jean-Luc ao longo dos dias seguintes. Os procedimentos que deveria seguir caso ocorresse alguma urgência imprevista. O israelita de olhos verdes referiu-se a isso como o plano «quebrar-em-caso-de-emergência» e advertiu Olivia de que deveria ser ativado apenas em caso de extremo perigo, pois implicaria, necessariamente, um enorme gasto de tempo e esforço e o desperdício de incontáveis milhões em despesas operacionais.

Só depois disso Gabriel pediu o nome a Olivia. O nome do homem em quem Jean-Luc confiava para gerir o seu império de muitos milhares de milhões de euros em estupefacientes. O lado sujo da JLM Enterprises, como o israelita lhe chamou. O lado que tornava tudo o resto (os restaurantes, os hotéis, as boutiques e as lojas, a galeria de arte na Place de l’Ormeau) possível. A primeira vez que Olivia o proferiu, fê-lo suavemente, como se tivesse uma mão a apertar-lhe a garganta. O israelita pediu-lhe que repetisse o nome e, ouvindo-o claramente, trocou um olhar longo, especulativo com Paul Rousseau. Passado algum tempo, Rousseau assentiu lentamente com a cabeça e, depois, voltou a contemplar o seu cachimbo dormente enquanto, no outro lado da sala, Nicolas Carnot devolvia o volume de Bowles ao seu lugar original na prateleira.

Depois disso, não houve mais discussão sobre droga ou terrorismo ou sobre o verdadeiro motivo pelo qual Olivia fora trazida à modesta villa nos arredores de Ramatuelle. O Monsieur Antonov materializou-se, todo sorrisos e bonomia com sotaque russo, e, juntos, prepararam a transferência de cinquenta milhões de euros das suas contas para as da galeria. Foi aberta uma garrafa de champanhe para comemorar a venda. Olivia não bebeu do copo que lhe colocaram na mão. O israelita também não tocou no seu copo. Era, pensou Olivia, um homem de uma disciplina admirável.

Pouco depois das seis da tarde, Nicolas Carnot devolveu o telemóvel a Olivia. Ela não sabia em que momento lho tirara. Calculou que o tivesse retirado da sua mala durante a viagem de carro de Saint-Tropez. Olhando de relance para o ecrã, viu várias mensagens de texto que tinham chegado durante o interrogatório. A última era de Jean-Luc. Chegara apenas um instante antes. Dizia que estava prestes a embarcar no seu helicóptero e chegaria a casa dentro de uma hora.

Olivia ergueu o olhar, alarmada.

— O que é que eu devo dizer-lhe?

— O que é que lhe diria normalmente? — perguntou o israelita.

— Dir-lhe-ia que fizesse boa viagem.

— Então, por favor, diga isso. E talvez queira mencionar que tem uma surpresa de cinquenta milhões de euros para ele. Isso deve alegrar-lhe a disposição. Mas não revele demasiado. Não queremos estragar a surpresa.

Olivia digitou a resposta na caixa de texto com o polegar e levantou o ecrã para que ele visse.

— Muito bem feito.

Com um toque suave, enviou a mensagem.

— Está na hora de se ir embora — disse o israelita. — Não queremos que a sua carruagem se transforme numa abóbora, pois não?

No exterior, algumas nuvens sopradas pelo vento moviam-se velozmente pelo céu noturno. Nicolas Carnot falou apenas em francês durante a viagem para sul em direção à Baie de Cavalaire, e apenas sobre o Monsieur Antonov e os quadros. Deveriam ser entregues na Villa Soleil imediatamente após a receção do dinheiro. A Madame Sophie, disse ele, já escolhera o local onde seriam pendurados.

— Ela odeia-me — disse Olivia.

— Não é assim tão má, depois de a conhecermos.

— É francesa?

— O que mais é que poderia ser?

Os Antonovs viviam no lado ocidental da baía, Jean-Luc e Olivia no oriental. Enquanto se aproximavam do minimercado Spar na esquina do Boulevard Saint-Michel, o Monsieur Carnot indicou-lhe que parasse. Apertou a mão dela firmemente e, em inglês, assegurou-lhe que não tinha nada a temer, que estava a fazer a coisa certa. Depois, desejou-lhe uma noite agradável e, sorrindo como se nada de invulgar tivesse acontecido nessa tarde, saiu do carro. Quando o viu pela última vez, foi no espelho retrovisor, a acelerar na direção oposta em cima de uma pequena mota. A fugir do local do crime, pensou ela.

Olivia continuou para leste ao longo da baía e, alguns minutos mais tarde, entrou na luxuosa villa que partilhava com o homem que acabara de trair. Na cozinha, serviu um grande copo de rosé para si e levou-o para o terraço no exterior. Através do brilho intenso do sol poente, conseguiu distinguir os contornos vagos da villa monstruosa do Monsieur Antonov. Nesse preciso momento, o seu telemóvel vibrou. Fitou o ecrã. EM CASA DAQUI A CINCO MINUTOS... QUAL É A SURPRESA?

— A surpresa — disse ela em voz alta — é que o teu amigo russo e a cabra da mulher dele acabaram de me passar um cheque de cinquenta milhões de euros. — Repetiu-o vezes sem conta, até acreditar que era verdade.


35

MARSELHA, FRANÇA

Às onze e quarenta e cinco da manhã seguinte, a quantia de cinquenta milhões de euros apareceu na conta da Galerie Olivia Watson, 9 Place de l’Ormeau, Saint-Tropez, França. O dinheiro não teve de viajar até muito longe, visto que tanto emissor como destinatário tinham as suas contas no HSBC do Boulevard Haussmann, em Paris. A meio da tarde, repousava confortavelmente num conceituado banco suíço em Genebra, numa conta controlada pela JLM Enterprises. E, às cinco horas, dois quadros (um de Guston, outro de Basquiat) foram entregues na Villa Soleil, numa carrinha sem identificação exterior. Olivia Watson ia atrás, no seu Range Rover preto. No hall de entrada, passou por Christopher Keller, que estava a sair. Ele beijou-a prodigamente em ambas as maçãs do rosto, fez um comentário sobre a sua aparência, que era deslumbrante, e depois subiu para a sua mota Peugeot Satelis. Pouco depois, estava a acelerar para oeste ao longo da costa do Mediterrâneo.

Era quase crepúsculo quando chegou aos subúrbios de Marselha. Os violentos gangues de droga prosperavam nos banlieues a norte da cidade, principalmente nos bairros sociais de Bassens e Paternelle, mas Keller aproximou-se através dos subúrbios mais tranquilos a leste. O túnel Prado-Carénage levou-o até ao Porto Velho e, daí, encaminhou-se para a Rue Grignan. Esguia e direita como uma régua, estava ladeada de lojas Boss, Vuitton, Armani e semelhantes. Havia até uma boutique-joalharia JLM. Keller jurou ter conseguido detetar o cheiro azedo a haxixe enquanto passava.

Enquanto continuava através do centro da cidade para o interior do quartier de Marselha conhecido como Le Camas, as ruas tornaram-se sujas e pobres e as lojas e cafés passaram a ter, claramente, uma clientela imigrante e de classe trabalhadora. Um desses negócios, situado no rés-do-chão de um edifício salpicado de graffitis com vista para a Place Jean Jaurès, vendia artigos eletrónicos e telemóveis com desconto a uma carteira de clientes essencialmente marroquina e argelina. Contudo, o seu proprietário era um francês chamado René Devereaux. Devereaux era proprietário de vários pequenos negócios em Marselha (todos eles orientados para fazer dinheiro, alguns numa categoria definida, de forma vaga, como entretenimento para adultos), mas a loja de produtos eletrónicos servia como uma espécie de sede operacional. O seu escritório ficava no segundo andar do edifício. A divisão não continha nenhum telefone nem dispositivos eletrónicos de qualquer tipo, um conjunto de circunstâncias curiosas para um homem que, alegadamente, tinha como profissão a venda das referidas engenhocas de conveniência modernas. René Devereaux não gostava muito de telefones e dizia-se que nunca tinha enviado, pessoalmente, um e-mail ou uma mensagem de texto. Só comunicava com os seus parceiros de negócio e subordinados ao vivo, muitas vezes na sombria praça ou numa mesa na esplanada do Au Petit Nice, um café razoavelmente agradável localizado a alguns passos da sua loja.

Keller sabia de tudo isto porque René Devereaux era uma figura proeminente no mundo onde ele, em tempos, habitara. Toda a gente no submundo criminoso francês sabia que o verdadeiro negócio de Devereaux era o tráfico de droga. Não apenas o tráfico de rua, mas o tráfico numa escala continental mais alargada. Provavelmente, a polícia francesa também estava a par disso, mas Devereaux, ao contrário de muitos dos seus concorrentes, nunca passara um único dia atrás das grades. Era um verdadeiro mafioso, um intocável. Até esta noite, pensou Keller. Pois fora o nome de René Devereaux que Olivia Watson proferira na casa segura nos arredores de Ramatuelle. Devereaux era a pessoa que fazia tudo correr sobre rodas, a pessoa que movia o haxixe das docas do sul da Europa para as ruas de Paris, Amesterdão e Bruxelas. A pessoa, pensou Keller, que conhecia todos os segredos de Jean-Luc Martel. Teriam apenas uma hipótese de o apanhar discreta e eficazmente. Felizmente, tinham à sua disposição alguns dos melhores agentes de campo do ramo.

Keller deixou a mota na extremidade da Place Jean Jaurès e caminhou até à loja de Devereaux. Espreitando para a mercadoria em exibição na montra atulhada, viu dois homens, ambos de aparência francesa, a observá-lo a partir do posto avançado atrás do balcão. No segundo andar, havia luz a cintilar atrás da porta francesa fechada que dava para a varanda degradada.

Keller afastou-se e continuou a caminhar ao longo da rua cerca de cinquenta metros, antes de parar junto de uma carrinha estacionada. Giancomo, moço de recados de Don Orsati, estava sentado ao volante. Dois outros agentes de Orsati estavam agachados no compartimento de carga traseiro, a fumar nervosamente. Giancomo, no entanto, parecia estar calmo. Keller suspeitava que era para o convencer das suas capacidades.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há uns vinte minutos. Veio à varanda fumar um cigarro.

— Tens a certeza de que ainda está lá dentro?

— Temos um homem a vigiar as traseiras do edifício.

— Onde é que estão os outros?

O jovem corso apontou com a cabeça na direção da Place Jean Jaurès. A praça estava apinhada de residentes do quartier, muitos deles vestidos com indumentária tradicional africana ou do mundo árabe. Nem mesmo Keller conseguia identificar os homens do don.

Olhou para Giancomo.

— Sem erros, estás a ouvir-me? Caso contrário, estás sujeito a ser responsabilizado por dar início a uma guerra. E sabes qual é a opinião do don sobre guerras.

— As guerras são boas para o negócio do don.

— Não são, quando ele é um dos combatentes.

— Não se preocupe. Já não sou um miudinho. Para além disso, tenho isto. — Giancomo puxou o talismã em redor do pescoço. Era idêntico ao de Keller. — Já agora, ela manda cumprimentos.

— Disse mais alguma coisa?

— Qualquer coisa sobre uma mulher.

— O que é que tem a mulher?

Giancomo encolheu os ombros.

— Sabe como é a signadora. Fala por meio de adivinhas.

Keller fumou um cigarro enquanto caminhava para o Au Petit Nice. O interior estava numa grande agitação (o Marselha estava a jogar contra o Lyon), mas havia algumas mesas livres na rua. Numa delas, estava sentado um homem de constituição mediana, com cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos. Numa mesa adjacente, dois homens de olhos escuros com cerca de vinte anos observavam os transeuntes que se movimentavam pelos passeios com invulgar intensidade. Keller aproximou-se do homem de cabelo de prata e, sem esperar por um convite, sentou-se. Havia uma garrafa de pastis e um único copo. Keller fez sinal ao empregado e pediu um segundo.

— Sabes — disse ele em francês —, devias mesmo beber um bocadinho.

— Parece gasolina com sabor a alcaçuz — respondeu Gabriel. Observou dois homens de túnica a caminhar de braço dado na rua. — Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— No Au Petit Nice?

— Em Marselha — disse Gabriel.

— Era inevitável. Quando uma pessoa está a tentar infiltrar-se numa rede europeia de droga, todos os caminhos vão dar a Marselha. — Keller também observou os transeuntes. — Achas que o Rousseau foi fiel à palavra?

— Porque é que não haveria de ser?

— Porque é um espião. O que significa que, inevitavelmente, mente.

— Tu também és um espião.

— Mas, até há pouco tempo atrás, trabalhava para o Don Anton Orsati. O mesmo Anton Orsati — acrescentou Keller — que está prestes a ajudar-nos com um trabalhinho sujo esta noite. E, se o Rousseau e os amigos dele do Grupo Alpha por acaso estiverem a observar, isso irá colocar o don, louvado seja, numa posição bastante delicada.

— O Rousseau não quer ter nada a ver com o que está prestes a acontecer aqui. Quanto ao don — continuou Gabriel —, ajudar-nos com este trabalhinho sujo, como tu tão duramente lhe chamas, foi a melhor decisão que tomou desde que te contratou.

— Então porquê?

— Porque, depois desta noite, ninguém poderá tocar-lhe sequer com um dedo. Ficará imune.

— Pensas como um criminoso.

— É o que se tem de fazer, no nosso ramo.

O empregado de mesa entregou o segundo copo. Keller encheu-o com pastis enquanto Gabriel consultava o telemóvel.

— Algum problema?

— A Madame Sophie e o Monsieur Antonov estão a discutir por causa do sítio onde pendurar os novos quadros.

— E andavam tão bem.

— Sim — disse Gabriel distraidamente, enquanto devolvia o telefone ao bolso do casaco.

— Achas que vão conseguir manter-se juntos?

— Tenho cá as minhas dúvidas.

Keller bebeu um pouco do pastis.

— Então, o que é que pretendes fazer com todos esses quadros quando a operação acabar?

— Tenho um pressentimento de que o Monsieur Antonov irá descobrir as suas raízes judias e fazer uma doação de grande notoriedade ao Museu de Israel.

— E os cinquenta milhões que deste à Olivia?

— Não lhe dei nada. Comprei dois quadros da galeria dela.

— Isso — disse Keller — é uma forma diferente de dizer a mesma coisa.

— É um preço bastante baixo a pagar se isso nos levar até ao Saladino.

— Se... — disse Keller.

— É imaginação minha — disse Gabriel —, ou passa-se alguma coisa entre ti e a...

— É imaginação tua.

— É uma rapariga muito bonita. E, quando tudo isto terminar, vai ficar bastante bem na vida.

— Tento manter-me afastado de raparigas que se agarram a traficantes de droga franceses abastados.

— Estás a esquecer-te de qual era a tua profissão?

Franzindo o sobrolho, Keller bebeu mais pastis.

— Então, o Monsieur Antonov é judeu?

— Aparentemente, sim.

— Nunca teria adivinhado.

Gabriel encolheu os ombros com indiferença.

— Eu sou um bocadinho judeu. Alguma vez te disse isso?

— Talvez tenhas dito.

Um silêncio abateu-se entre eles. Gabriel fitou taciturnamente a rua.

— Não consigo acreditar que estamos aqui outra vez.

— Não vai demorar muito mais.

Keller observou dois homens a saírem da parte de trás da carrinha e a entrarem na loja de eletrónica que pertencia a René Devereaux. Depois, olhou de soslaio para o relógio.

— Uns cinco minutos. Talvez menos.

 

Da mesa na esplanada do Au Petit Nice, Keller e Gabriel só conseguiram ver parcialmente o que aconteceu a seguir. Alguns segundos depois de os dois homens terem entrado na loja, vários clarões de luz transbordaram da montra para a rua. Foram ténues (na verdade, poderiam ter sido confundidos com o cintilar de uma televisão) e não houve absolutamente nenhum som. Pelo menos, nenhum que chegasse ao ruidoso café. Depois disso, a loja ficou completamente às escuras, à exceção de um pequeno sinal de néon na porta onde podia ler-se: FERMÉ. Os transeuntes fluíam ao longo do passeio como se nada de invulgar estivesse a acontecer.

Os olhos de Keller regressaram à carrinha, onde Giancomo estava a retirar uma grande caixa retangular de papelão do compartimento de trás. Era uma caixa com um formato estranho, manufaturada por uma fábrica de produtos de papel da Córsega, exatamente segundo as instruções fornecidas por Don Orsati. Era bastante evidente que estava vazia, pois Giancomo não teve qualquer problema em transportá-la para o outro lado da rua e atravessar a porta da frente da loja com ela nas mãos. Mas, alguns minutos mais tarde, quando a caixa reapareceu, veio carregada pelos dois homens que tinham entrado na loja primeiro, com Giancomo a segurar um dos lados como um cangalheiro. Os dois homens introduziram a caixa nas traseiras da carrinha e rastejaram para o interior atrás dela, enquanto Giancomo recuperava o seu lugar ao volante. Depois, a carrinha deslizou para longe do passeio, dobrou a esquina e desapareceu. Do interior do Au Petit Nice, ouviram-se festejos ruidosos. O Marselha marcara um golo contra o Lyon.

— Nada mau — disse Gabriel.

Keller olhou para as horas.

— Quatro minutos e doze segundos.

— Inaceitável segundo os padrões do Departamento, mas mais do que apropriado para esta noite.

— De certeza que não queres juntar-te à festa?

— Já tive o suficiente disso para a vida toda. Mas manda cumprimentos meus ao don — disse Gabriel. — E diz-lhe que o cheque está no correio.

Com isso, Keller partiu. Passado um momento, montado na Peugeot Satelis, passou a alta velocidade pelo Au Petit Nice, onde um homem de cabelo espesso prateado e óculos pretos grossos estava sentado sozinho, interrogando-se quanto tempo passaria antes de Jean-Luc Martel descobrir que o chefe da sua divisão de estupefacientes ilícitos estava desaparecido.


36

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Celine era um Baia Atlantica 78 com três camarotes, um motor a gasóleo MTV capaz de atingir velocidades de cinquenta e quatro nós e uma proa longa e esguia que poderia receber um pequeno helicóptero. Todavia, Keller chegou à embarcação por meios menos vistosos, nomeadamente através de um barco insuflável Zodiac que fora deixado para ele numa marina isolada do estuário do Rhône, perto da cidade de Saintes-Maries-de-la-Mer. Atou a lancha à plataforma para entrar na água que havia na popa e subiu até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo Marselha-Lyon na televisão por satélite. Vestido como estava agora, com a sua roupa corsa simples e sandálias empoeiradas, parecia nitidamente deslocado entre a decoração sumptuosa de couro e madeira. Giancomo estava na ponte com o timoneiro.

— O Marselha voltou a marcar — disse o don, desconsolado. Apontou o comando para o ecrã e desligou-o.

Keller passou os olhos pelo interior do salão.

— Esperava algo um pouco mais modesto.

— Estou demasiado velho para andar a deslocar-me pelo Mediterrâneo num barco de pesca. Para além disso, vais ficar contente por teres vinte e quatro metros de barco debaixo de ti hoje à noite. Parece que o vento vai soprar com força.

— A quem é que pertence?

— A um amigo de um amigo.

— E o timoneiro?

— É meu.

Keller baixou o olhar e, pela primeira vez, reparou em várias gotas de sangue que secavam no chão.

— Tinha uma arma na secretária quando eles entraram — explicou o don. — Levou um tiro no ombro.

— Vai sobreviver?

— Receio bem que sim.

— Ele viu a sua cara?

— Ainda não.

— Trouxe um martelo?

— Um bom — disse o don.

— Onde é que está o Devereaux?

— No quarto individual. Não quis que sujasse um dos quartos de casal.

Keller olhou novamente para o chão.

— Alguém devia mesmo limpar isto.

— Eu não — disse o don. — Não suporto ver sangue.

 

Um dos homens do don estava de guarda à porta do quarto individual. Do interior, não vinha qualquer som.

— Está consciente? — perguntou Keller.

— Vê por ti próprio.

Keller entrou e fechou a porta atrás de si. O quarto estava às escuras; cheirava a suor e a medo e vagamente a sangue. Acendeu a lâmpada de leitura embutida e apontou o cone de luz na direção da figura imóvel, esticada sobre a cama de solteiro. Fita adesiva prateada obscurecia-lhe os olhos e a boca. As mãos estavam atadas e presas ao tronco, as pernas e os tornozelos amarrados. Keller examinou o ferimento no ombro direito. Tinha havido uma perda significativa de sangue, mas, por agora, o fluxo parara. Ainda assim, a roupa de cama estava encharcada. O amigo de um amigo, pensou Keller, iria precisar de um novo colchão quando isto acabasse.

Arrancou-lhe a fita adesiva dos olhos. René Devereaux pestanejou rapidamente várias vezes. Então, quando Keller se inclinou para a luz, mostrando o seu rosto a Devereaux, o traficante de droga encolheu-se de medo. Aparentemente, conheciam-se mutuamente.

— Bonsoir, René. Obrigado por apareceres por cá. Como é que está o ombro?

Os seus olhos semicerraram-se, o medo evaporou-se. Devereaux estava a tentar enviar uma mensagem ao inglês da Córsega: não era homem para ser baleado, raptado e atado como uma ave de caça. Keller retirou a fita adesiva da boca de Devereaux, permitindo-lhe, assim, expressar os seus sentimentos,

— És um homem morto. Tu e esse corso gordo para quem trabalhas.

— Estás a referir-te ao Don Orsati?

— Que se foda o Don Orsati.

— Essas são palavras muito insensatas. Pergunto-me se te atreverias a proferi-las na cara do don.

— Cagava em cima do don. E do resto da família dele.

— Cagavas, a sério?

Keller saiu. Ao corso que se encontrava à saída da porta, disse:

— Pede a sua santidade que desça por um minuto.

— Está a ver o jogo.

— Tenho a certeza de que vai conseguir afastar-se da televisão — disse Keller. — E traz-me o martelo.

O corso subiu as escadas do barco e, passado um momento, com alguma dificuldade, Don Orsati desceu. Keller conduziu-o ao interior do camarote e exibiu-o para que René Devereaux o visse. O don sorriu perante o evidente desconforto de Devereaux.

— O Monsieur Devereaux tem uma coisa que gostaria de dizer-lhe — disse Keller. — Vá lá, René. Por favor diz ao Don Orsati o que me disseste há pouco.

Tendo sido recebido por silêncio, Keller acompanhou o don até à saída. Depois, pôs-se ameaçadoramente de pé por cima do traficante de droga cativo.

— É escusado dizer-te que não tens muitas opções. Podes contar-me o que eu quero saber, ou posso explicar ao don todas as coisas atrevidas que disseste sobre ele e a sua adorada família. E então... — Keller levantou as mãos para indicar a incerteza do destino de Devereaux perante um cenário tão carregado de emoções.

— Desde quando é que estás no ramo da informação? — perguntou Devereaux.

— Desde que mudei de carreira. Agora, estou a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Não ouviste dizer, René?

— Tu? Um espião inglês? Não acredito.

— Às vezes, eu próprio não acredito. Mas acontece que é verdade. E tu vais ajudar-me. Vais ser uma fonte confidencial e eu vou ser o teu agente superior.

— Não podes estar a falar a sério.

— Pensa nas tuas atuais circunstâncias. Não poderiam ser mais sérias. Tal como a nossa missão. Vais ajudar-me a encontrar o homem que tem andado a orquestrar todos os atentados terroristas aqui na Europa e na América.

— Como é que eu vou fazer isso? Sou um traficante de droga, pelo amor de Deus.

— Ainda bem que esclarecemos essa parte. Mas não és um traficante de droga qualquer, pois não? Traficante é uma palavra demasiado branda para o que tu fazes. Geres uma rede global inteira a partir daquela espelunca na Place Jean Jaurès. E fazes isso — disse Keller — para o Jean-Luc Martel.

— Quem? — perguntou Devereaux.

— O Jean-Luc Martel. O que é dono daqueles restaurantes todos e dos hotéis e que tem aquele cabelo.

— E a namorada inglesa bonita — disse Devereaux.

— Então conhece-lo mesmo.

— Claro. Costumava ir ao primeiro restaurante dele em Marselha. Ele era um zé-ninguém, na altura. Agora, é uma grande estrela.

— Graças à droga — disse Keller. — Haxixe, para ser mais específico. Haxixe que vem de Marrocos. Haxixe que tu distribuis por toda a Europa. O império do Martel colapsaria se não fosse pelo haxixe. Mas nunca te passaria pela cabeça excluí-lo do negócio, pois isso significaria que terias de encontrar um novo método para lavar cinco ou dez mil milhões por ano em lucros de droga. Os teus chamados «negócios legítimos» poderiam ser suficientes para te fazer parecer razoavelmente respeitável perante as autoridades fiscais francesas, mas nunca conseguirias lidar com todos os lucros de uma rede global de estupefacientes. Para isso, precisas de um verdadeiro conglomerado empresarial. Um conglomerado onde entram centenas de milhões de dólares por ano em receitas de caixa. Um conglomerado que adquire e constrói vastas quantidades de património imobiliário.

— E compra e vende quadros. — Após um silêncio, Devereaux acrescentou: — Soube que ela ia dar problemas assim que a conheci.

— Quem?

— Aquela cabra inglesa.

Keller fechou a mão direita num punho e dirigiu-o com toda a força para o ombro encharcado de sangue de Devereaux.

— Mas, voltando ao assunto que temos em mãos — disse, enquanto o francês se contorcia na cama em agonia. — Vais dizer-me tudo o que sabes sobre o Jean-Luc Martel. Os nomes dos vossos fornecedores em Marrocos. As rotas que utilizam para trazerem a droga para a Europa. Os métodos que usam para inserirem dinheiro na circulação financeira da JLM Enterprises. Tudo, René.

— E se eu concordar?

— Vamos gravar um vídeo — disse Keller.

— E se não concordar?

— Vais receber o tratamento JLM. E não estou a falar de um belo jantar nem de uma noite numa suíte de hotel luxuosa.

Devereaux conseguiu sorrir. Depois, bem do fundo da garganta, produziu uma bola abundante e gelatinosa de muco e cuspiu-a para o rosto de Keller. Com um canto da roupa de cama, Keller limpou calmamente a sujidade antes de sair para recuperar o martelo do corso. Golpeou Devereaux com ele várias vezes, concentrando os esforços no ombro direito e evitando totalmente a cabeça e o rosto. Depois, subiu as escadas até ao salão principal, onde encontrou Don Orsati a ver o jogo de futebol.

— Foi alguma coisa que ele disse ou que não disse?

— Foi alguma coisa que ele fez — respondeu Keller.

— Houve sangue?

— Um bocadinho.

— Ainda bem que esperaste até eu sair. Não suporto ver sangue.

Um festejo ribombante surgiu na televisão.

— Perdemos — disse o don melancolicamente.

— Sim — respondeu Keller. — Mas não percamos a esperança.


37

 

MAR MEDITERRÂNEO

 

 


Christopher Keller fez mais três visitas ao camarote mais pequeno do Celine: uma às onze, a segunda pouco depois da meia-noite e uma visita demorada com início à uma e meia da manhã que deixou René Devereaux, um calejado criminoso marselhês, com muito sangue nas mãos, a chorar descontroladamente e a implorar misericórdia. Keller fez-lhe a vontade, mas só com uma condição. Devereaux iria dizer-lhe tudo, para a câmara. Caso contrário, Keller partir-lhe-ia todos os ossos do corpo, lentamente, com cuidado e premeditação e pausas para renovação de energias e reflexão.

Já fizera enormes progressos nesse sentido. O ombro direito de Devereaux, no qual estava alojada uma bala, sofrera inúmeras fraturas. Adicionalmente, o cotovelo direto estava fraturado, tal como o esquerdo. Ambas as mãos estavam numa condição deplorável, e o ferimento no joelho direito, caso lhe fosse permitido sarar devidamente, provavelmente deixaria Devereaux com um coxear permanente a condizer com o de Saladino.

Deslocá-lo para o salão, onde fora montada uma câmara sobre um tripé, revelou-se um desafio. Giancomo puxou-o pelas escadas acima, enquanto Keller empurrava por baixo, oferecendo o apoio muitíssimo necessário para a perna arruinada. Foi providenciado conhaque, juntamente com um poderoso analgésico francês de venda livre que poderia fazer uma pessoa esquecer-se da falta de um membro. Keller ajudou Devereaux a vestir um casaco de marinheiro amarelo e, com um pente, arranjou-lhe o escasso cabelo fino. Então, ligou a câmara de vídeo e, depois de examinar cuidadosamente o plano, colocou a primeira questão:

— Como é que te chamas?

— René Devereaux.

— Qual é a tua profissão?

— Sou dono da loja de produtos eletrónicos da Place Jean Jaurès.

— Qual é a verdadeira natureza do teu trabalho?

— Droga.

— Onde é que conheceste o Jean-Luc Martel?

— Num restaurante em Marselha.

— Quem era o proprietário do restaurante?

— Philippe Renard.

— Qual era o verdadeiro negócio do Renard?

— Droga.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

— O que é que o Jean-Luc Martel faz agora?

— É proprietário de vários restaurantes, hotéis e estabelecimentos de venda a retalho.

— Qual é o verdadeiro negócio dele?

— Droga — disse René Devereaux.

 

Atracaram em Ajaccio às nove e meia. Daí, bastou uma agradável caminhada em redor da linha costeira curvilínea do golfo para chegar ao aeroporto. O voo seguinte para Marselha partia ao meio-dia. Keller chegou às onze e um quarto, depois de parar para um pequeno-almoço tardio e para comprar uma muda de roupa. Vestiu-a numa casa de banho do aeroporto e, depois, passou facilmente pela segurança sem nada na sua posse exceto a carteira, um passaporte britânico e o seu telemóvel do MI6, no qual havia um vídeo comprimido e fortemente encriptado do interrogatório de René Devereaux. Naquele momento, era provavelmente a informação mais importante de toda a guerra global contra o terrorismo.

Keller desligou o telefone antes da descolagem e não o voltou a ligar até estar a atravessar o terminal de Marselha. Mikhail estava à espera no exterior, na parte de trás da Maybach de Dmitri Antonov. Yaakov Rossman estava ao volante. Ouviram o interrogatório através do magnífico sistema sonoro do automóvel, enquanto se dirigiam para leste pela Autoroute.

— Deixaste escapar a tua verdadeira vocação — disse Mikhail. — Devias ter sido entrevistador de televisão. Ou inquisidor-geral.

— Arrependimento, meu filho.

— Achas que ele se vai arrepender?

— O Martel? Não sem dar luta.

— Não tem qualquer hipótese de se esconder deste vídeo. Agora, é nosso.

— Vamos ver — disse Keller.

Eram quase quatro da tarde quando a Maybach atravessou o portão da casa segura de Ramatuelle. Já no interior, Keller transferiu o ficheiro de vídeo para a rede informática operacional central. Passado um momento, o rosto de René Devereaux surgiu nos monitores.

— Onde é que está o Philippe Renard agora?

— Morto.

— Quem é que o matou?

— O Jean-Luc Martel.

— Como é que o matou?

— Com um martelo.

E assim continuou durante a maior parte de duas horas. Nomes, datas, locais, rotas, métodos, dinheiro... Tudo se resumia a dinheiro. Sujeito ao implacável interrogatório de Keller (e à ameaça, invisível no vídeo, do martelo), René Devereaux entregou os segredos mais preciosos da rede. Como o dinheiro era recolhido dos traficantes de rua. Como era carregado para a lavandaria que era a JLM Enterprises. E como, depois de limpo e passado, se dispersava. Tudo com um detalhe minucioso, de alta resolução. Não havia como esconder-se dele. Jean-Luc Martel estava na mira deles. Mas quem é que lhe ofereceria uma tábua de salvação? Paul Rousseau declarou que seria ele. Martel, disse, era um problema francês. Só uma solução francesa serviria.

E, portanto, com a ajuda de Gabriel, Rousseau preparou um clipe editado do interrogatório, com trinta e três segundos de duração. Era um teaser, um aperitivo. «Uma palmadinha de amor», como lhe chamou Gabriel. Martel estava rodeado da sua corte, no bar do seu restaurante do Porto Velho, quando o vídeo apareceu no seu telefone através de uma mensagem de texto anónima. O próprio telefone estava sob vigilância exaustiva, permitindo a Gabriel e Rousseau e ao resto da equipa observar as diversas tonalidades do alarme crescente de Martel enquanto o visualizava. Alguns segundos mais tarde, surgiu um segundo vídeo, apenas por segurança. Mostrava um breve encontro sexual entre Martel e Monique, a rececionista de Olivia na galeria. Fora gravado com o mesmo telefone que Martel tinha agora na mão e que, da perspetiva singular da equipa, parecia estar a tremer incontrolavelmente.

Foi neste ponto que Rousseau telefonou a Martel diretamente. Sem surpresa, este não atendeu, não deixando a Rousseau outra opção senão oferecer as suas condições numa mensagem de voz. Eram o equivalente a uma rendição incondicional. Jean-Luc Martel deveria apresentar-se imediatamente na Villa Soleil, sozinho, sem guarda-costas. Qualquer tentativa de fuga, advertiu Rousseau, seria intercetada. Os seus aviões e helicópteros seriam obrigados a aterrar, o seu iate a motor de quarenta e cinco metros seria bloqueado no porto.

— Obviamente — disse Rousseau — os seus movimentos e comunicações estão a ser monitorizados. Tem uma oportunidade de evitar a prisão e a ruína. Aconselho-o a aproveitá-la.

Com isso, Rouseau terminou a chamada. Transcorreram cinco minutos até que Martel ouviu a mensagem. Nesse momento, a espera começou. Gabriel colocou-se de pé diante dos monitores, com uma mão no queixo, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, enquanto, no jardim, Christopher Keller esmagava o seu telefone do MI6 aos pedaços com um martelo. Rousseau observou a partir das portas francesas. Daria a Martel uma oportunidade para se salvar. Esperava que fosse suficientemente sensato para a aproveitar.


38

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

Dessa vez, deixaram-lhe o portão aberto, embora, seguindo a sugestão de Gabriel, tivessem bloqueado a estrada para lá da Villa Soleil, para o caso de ele mudar de ideias e tentar fugir para oeste ao longo da Côte d’Azur. Chegou, sozinho, às nove e um quarto dessa mesma noite, após uma série de telefonemas tensos com Paul Rousseau. A sua comparência na villa, alegou, não era, de forma alguma, uma admissão de nada. Não conhecia o homem do vídeo, as suas alegações eram absurdas. O seu negócio era o setor hoteleiro e o comércio de luxo, não a droga, e qualquer pessoa que alegasse o contrário enfrentaria graves consequências legais. Em resposta, Rousseau deixou claro que aquela não era uma questão legal, mas um assunto que envolvia a segurança nacional francesa. Durante um intercâmbio final tenso, Martel, na verdade, soou intrigado. Exigiu levar um advogado.

— Sem advogados — disse Rousseau. — Só atrapalham.

Mais uma vez, foi Roland Girard, do Grupo Alpha, quem o aguardou no pátio. Decididamente, a sua saudação foi menos cordial.

— Tem alguma arma consigo?

— Não seja ridículo.

— Levante os braços.

Relutantemente, Martel aceitou. Girard revistou-o minuciosamente, começando na parte de trás do pescoço e terminando nos tornozelos. Ao erguer-se, o agente do Grupo Alpha deu por si a fitar dois olhos escuros furiosos.

— Há alguma coisa que queira dizer-me, Jean-Luc?

Martel permaneceu em silêncio, algo inédito.

— Por aqui — disse Girard.

Levou Martel pelo cotovelo e conduziu-o até ao interior da villa. Christopher Keller aguardava no hall de entrada.

— Jean-Luc! Lamento imenso pelas circunstâncias do convite, mas precisávamos de atrair a sua atenção. — Foram as últimas palavras em francês que Keller proferiu. As restantes fluíram num inglês com sotaque britânico. — Há vidas em jogo, sabe, e não temos muito tempo. Por aqui, por favor.

Martel manteve-se imóvel.

— Passa-se alguma coisa, Jean-Luc?

— O senhor é...

— Não sou francês — interrompeu Keller. — E também não sou da ilha da Córsega. Foi tudo uma montagem feita especialmente para si. Receio bem que tenha sido alvo de um embuste bastante elaborado.

Atordoado, Martel seguiu Keller até à maior das salas de estar da villa, onde longas cortinas brancas ondulavam quais velas de navio empurradas pelo vento noturno. Natalie estava sentada na extremidade de um sofá, vestida com um fato de treino e os seus ténis verde-néon. Mikhail estava sentado à frente, com umas calças de ganga e um pulôver de algodão com decote em bico. Paul Rousseau estava a contemplar um dos quadros. E, no canto mais afastado da divisão, a sós na sua própria ilha privada, Gabriel examinava Jean-Luc Martel.

Foi Rousseau que, virando-se para trás, falou a seguir:

— Gostaria que pudéssemos dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não é. Quando olhamos para si, indagamo-nos sobre o motivo pelo qual fazemos o que fazemos. Sendo bastante honesto, a sua vida não é digna de proteção. Mas isso agora não é relevante. Precisamos da sua ajuda e, portanto, não temos outra opção senão acolhê-lo no nosso seio, por mais relutantemente que o façamos.

Os olhos de Martel saltitaram de rosto em rosto (o homem que conhecia como Monsieur Carnot, os Antonovs, a figura silenciosa que o observava do posto avançado solitário no canto da sala) até pousarem novamente em Rousseau.

— Quem é o senhor?

— O meu nome — respondeu Rousseau — não é importante. Na verdade, no nosso ramo de atividade, os nomes, realmente, não significam grande coisa, como tenho a certeza de que, neste momento, já se apercebeu.

— Para quem é que trabalha?

— Para um departamento do Ministério do Interior.

— A DGSI?

— Isso não é relevante. Efetivamente — acrescentou Rousseau —, o único aspeto a destacar quanto ao meu emprego é que não sou da polícia.

— E os outros? — perguntou Martel, olhando de relance para a divisão.

— São meus parceiros.

Martel olhou para Gabriel.

— Então, e ele?

— Pense nele como um observador.

Martel franziu o sobrolho.

— Porque é que eu estou aqui? Isto é sobre o quê?

— Droga — respondeu Rousseau.

— Já lhe disse, não estou envolvido com droga.

Rousseau expirou lentamente.

— Vamos saltar esta parte, sim? O Jean-Luc sabe como ganha a vida e nós também. Num mundo perfeito, estaria algemado neste preciso momento. Mas, escusado será dizer, este nosso mundo está longe de ser perfeito. É uma balbúrdia caótica e perigosa. Mas, o seu trabalho — disse Rousseau desdenhosamente — deixou-o numa posição singular para fazer alguma coisa a esse respeito. Estamos preparados para ser generosos se nos ajudar. E igualmente inclementes se não o fizer.

Martel endireitou os ombros e esticou-se para ficar um pouco mais alto.

— Esse vídeo — disse ele — não prova nada.

— Ouviu apenas uma pequena parte dele. O vídeo completo tem quase duas horas e é bastante extraordinário em termos de detalhe. Resumidamente, deixa a nu todos os seus segredos sujos. Se tal documento caísse nas mãos da polícia, certamente passaria os anos que lhe restam atrás das grades. Que é — acrescentou Rousseau enfaticamente — onde pertence. E se a gravação fosse dada a um jornalista zeloso que nunca acreditou no conto de fadas JLM, o impacto no seu império empresarial seria catastrófico. Todos os seus amigos poderosos, aqueles que suborna com comida e bebida e hospedagens de luxo, abandoná-lo-iam como ratos que fogem de um navio a afundar-se. Ninguém o protegeria.

Martel abriu a boca para responder, mas Rousseau prosseguiu.

— E depois há a questão da Galerie Olivia Watson. Tivemos oportunidade de analisar diversas transações da empresa. São, no mínimo, questionáveis. Principalmente aquelas quarenta e oito telas em branco que foram enviadas para o Freeport de Genebra. Colocou a Madame Watson numa posição insustentável. A galeria de arte dela, como o resto do seu império, é uma organização criminosa. Oh, suponho que seja possível para si evitar a forca, mas a sua esposa...

— Não é minha esposa.

— Oh, sim, desculpe — disse Rousseau. — Como é que devo referir-me a ela?

Martel ignorou a pergunta.

— Envolveram-na nisto?

— A Madame Watson não sabe de nada, e preferiríamos que assim continuasse. Não há necessidade de a arrastar para isto. Pelo menos, por agora. — Rousseau fez uma pausa, depois perguntou: — Como é que explicou a sua vinda aqui esta noite?

— Disse-lhe que tinha uma reunião de negócios.

— E ela acreditou?

— Porque é que não haveria de acreditar?

— Porque o Jean-Luc tem alguns antecedentes. — Rousseau fez um sorriso cúmplice. — O que faz no seu tempo livre não é da minha conta. Eu e o senhor somos franceses. Homens do mundo. Onde quero chegar é que não seria de todo problemático para nós se a Madame Watson ficasse com a impressão de que esteve com outra mulher esta noite.

— Não seria problemático para vocês — disse Martel —, mas para mim...

— Tenho a certeza de que vai pensar nalguma coisa para lhe dizer. Pensa sempre. Mas, voltando ao tema em questão — disse Rousseau. — Deveria ser evidente, neste momento, que o Jean-Luc foi alvo de uma operação cuidadosamente planeada. Agora, chegou o momento de passar para a próxima fase.

— A próxima fase?

— O prémio — disse Rousseau. — Vai ajudar-nos a encontrá-lo. E, se não o fizer, o objetivo da minha vida, de agora em diante, vai ser destruir o Jean-Luc Martel. E a Madame Watson. — Após um silêncio, Rousseau acrescentou: — Ou talvez a ideia de a Madame Watson sofrer pelos seus crimes não o incomode. Talvez ache esses sentimentos antiquados. Talvez não seja esse tipo de homem.

Martel retribuiu calmamente o olhar de Rousseau. Mas, quando os seus olhos pousaram novamente em Gabriel, a sua confiança pareceu vacilar.

— De qualquer forma — estava Rousseau a dizer —, agora pode ser um bom momento para ouvir o resto do interrogatório do René Devereaux. Não tudo, isso demoraria demasiado tempo. Apenas a parte relevante.

Olhou de soslaio para Mikhail, que premiu uma tecla de um computador portátil. Instantaneamente, o quarto expandiu-se com o som de dois homens a falarem em francês, um com um marcado sotaque corso, o outro como se estivesse em sofrimento físico.

— De onde é que vem a droga?

— De todo o lado. Turquia, Líbano, Afeganistão, de todo o lado.

— E o haxixe?

— O haxixe vem de Marrocos.

— Quem é o vosso fornecedor?

— Costumávamos ter vários. Agora trabalhamos com um homem. É o maior produtor do país.

— O nome dele?

— Mohammad.

— Mohammad quê?

— Bakkar.

Mikhail colocou a gravação em pausa. Rousseau olhou para Jean-Luc Martel e sorriu.

— Porque é que não começamos por aí? — disse. — Pelo Mohammad Bakkar.


39

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Há muitos motivos pelos quais um indivíduo pode aceitar trabalhar para um serviço secreto, poucos deles admiráveis. Alguns fazem-no por avareza, alguns por amor ou convicção política. E alguns fazem-no porque se sentem aborrecidos ou insatisfeitos ou têm sede de vingança por terem sido preteridos numa promoção, enquanto colegas que consideram invariavelmente inferiores são empurrados pela escada do sucesso. Com um pouco de adulação e um pote de dinheiro, essas almas desprezíveis podem ser convencidas a revelar os segredos que passam pelas pontas dos seus dedos ou através das redes informáticas que são contratados para manter. Agentes secretos profissionais não têm qualquer problema em aproveitar-se desses homens, mas, secretamente, desprezam-nos. Quase tanto quanto o homem que trai o seu país por motivos de consciência. Esses são os idiotas úteis do ofício. Para os profissionais, não existe forma de vida mais baixa.

O profissional nem sequer confia naqueles que oferecem voluntariamente os seus serviços, pois, frequentemente, é difícil avaliar os seus verdadeiros motivos. Em vez disso, prefere identificar um potencial recruta e, depois, dar o primeiro passo. Normalmente, aproxima-se com presentes, mas, por vezes, tem necessidade de utilizar métodos menos agradáveis. Consequentemente, o profissional está sempre à espreita de falhas e fraquezas: um caso extraconjugal, uma predileção por pornografa, uma indiscrição financeira. Essas são as chaves mestras do ofício. Destrancam qualquer porta. Para além disso, a coerção é um excelente clarificador de intenções. Ilumina os recantos obscuros do coração humano. O homem que espia porque não tem outra hipótese é um mistério menor do que um que entra numa embaixada com uma pasta repleta de documentos roubados. Ainda assim, nunca se pode confiar plenamente no confidente coagido. Inevitavelmente, tentará encontrar alguma forma de retribuir a injustiça que recaiu sobre ele, e só pode ser controlado durante o tempo em que o seu pecado original continuar a ser uma ameaça para ele. Por conseguinte, o colaborador e agente responsável por o controlar dão por si, invariavelmente, enredados num caso amoroso destinado ao fracasso.

Era nessa categoria de colaborador que Jean-Luc Martel, hoteleiro, empresário da restauração, de roupa, de joalharia e comerciante internacional de estupefacientes ilícitos, se enquadrava. Não oferecera voluntariamente os seus serviços. Nem fora atraído para o festim através do poder da persuasão. Fora identificado, avaliado e selecionado como alvo através de uma operação elaborada e dispendiosa. A sua relação com Olivia Watson fora dilacerada, o seu parceiro de negócios fora espancado impiedosamente com um martelo, ele fora ameaçado com prisão e ruína. Apesar disso, continuava a ser necessário fazer um recrutamento. A coerção poderia abrir uma porta, mas fechar um acordo exigia habilidade e sedução. Um compromisso teria de ser alcançado. Precisavam de Jean-Luc Martel muito mais do que ele precisava deles. Traficantes de droga existiam com fartura. Mas Saladino era único.

Jean-Luc não se entregou facilmente ao seu destino, mas isso era de esperar; um homem que mata tanto o pai como o seu mentor não é um homem que se assuste facilmente. Esquivou-se, contra-atacou, fez as suas próprias ameaças. Contudo, Rousseau, não mordeu o isco. Foi o contraste perfeito: inofensivo na aparência, controlado no temperamento, tolerante perante as falhas. Martel testou a paciência de Rousseau muitas vezes, tal como quando exigiu garantias escritas, em papel timbrado oficial do Ministério do Interior, da concessão de imunidade para uma possível acusação, agora e para sempre, ámen. Não competia a Rousseau conceder tal clemência, pois estava a operar sem mandado do ministro, nem sequer conhecimento dos seus chefes da DGSI. E, portanto, sorriu perante a intransigência de Martel e, com um aceno de cabeça na direção de Mikhail, passou um momento ou dois do interrogatório marítimo de René Devereaux.

— Está a mentir — explodiu Martel quando o som se silenciou. — É uma fantasia completa.

Foi nesse ponto, recordaria mais tarde Gabriel (e as câmaras ocultas confirmaram que assim foi) que Martel começou a ceder. Instalou-se ao lado de Mikhail, uma escolha curiosa, e fitou o rosto de Natalie, que por sua vez pespegou os olhos no chão. Seguiu-se um longo silêncio, suficientemente longo para que Rousseau considerasse apropriado voltar a passar o fragmento relevante da gravação, o fragmento relativo a um tal de Mohammad Bakkar, um dos maiores produtores de haxixe de Marrocos (segundo alguns relatos, o maior), um homem que gostava de se autodenominar o rei das Montanhas do Rife, a região do país onde o haxixe é cultivado e processado para exportar para a Europa e para lá dela. O homem que, de acordo com René Devereaux, era o único e exclusivo fornecedor de Martel.

— Presumo — disse Rousseau tranquilamente — que já ouviu o nome.

E Martel, com um movimento mínimo da cabeça, confirmou que sim. Então, os olhos moveram-se de Natalie para Keller, que estava de pé atrás dela de forma protetora. Keller enganara-o, Keller traíra-o. E, contudo, parecia que Jean-Luc Martel via Keller como o seu único amigo na divisão.

— Porque é que não nos dá um pouco de contexto? — sugeriu Rousseau. — Afinal de contas, somos amadores. Pelo menos no que se refere ao negócio de estupefacientes. Ajude-nos a entender como tudo funciona. Ilumine-nos quanto às maldades do seu mundo.

O pedido de Rousseau não era tão inocente como parecia. René Devereaux já fornecera a Keller informações detalhadas sobre as ligações de Mohammad Bakkar à rede. Mas Rousseau queria pôr Martel a falar, o que lhes permitiria testar a veracidade das suas palavras. Era de esperar uma certa quantidade de engano. Rousseau exigiria verdade absoluta apenas quando isso fosse importante.

— Fale-nos um pouco sobre esse tal Mohammad Bakkar — estava a dizer. — É baixo ou alto? É magro ou é gordo como eu? Tem algum cabelo ou é careca? Tem uma mulher ou duas? Fuma? Bebe? É religioso?

— É baixo — respondeu Martel passado um momento. — E, não, não bebe. O Mohammad é religioso. Muito religioso, na verdade.

— Acha isso surpreendente? — perguntou Rousseau rapidamente, aproveitando-se do facto de Martel ter, finalmente, respondido a uma questão. — Que um produtor de haxixe seja um homem religioso?

— Eu não disse que o Mohammad Bakkar era produtor de haxixe. O negócio dele são as laranjas.

— Laranjas?

— Sim, laranjas. Portanto, não, não acho surpreendente que seja um homem religioso. As laranjas são um modo de vida no Rife. O rei tem tentado encorajar os produtores a cultivar outros produtos, mas as laranjas são mais lucrativas do que a soja e os rabanetes. Muito mais — acrescentou Martel com um sorriso.

— Talvez o rei se devesse esforçar mais.

— Na minha opinião, o rei prefere que as coisas fiquem como estão.

— Então porquê?

— Porque as laranjas levam vários milhares de milhões de dólares por ano para o país. Ajudam a manter a paz. — Baixando a voz, Martel acrescentou: — O Mohammad Bakkar não é o único homem religioso de Marrocos.

— Há muitos extremistas em Marrocos?

— Vocês devem saber isso melhor do que eu — disse Martel.

— O ISIS tem muitas células em Marrocos?

— Dizem que sim. Mas o rei não gosta de falar disso — acrescentou. — O ISIS é mau para o turismo.

— O Jean-Luc tem um negócio em Marrocos, não tem? Um hotel em Marraquexe, se não estou em erro.

— Dois — vangloriou-se Martel.

— Como é que vai o negócio?

— Fraco.

— Lamento ouvir isso.

— Vamos dar a volta à situação.

— Tenho a certeza que sim. E a que é que atribui esta queda no negócio? — perguntou Rousseau. — É o ISIS?

— Os atentados nos hotéis da Tunísia tiveram um grande impacto nas nossas reservas. As pessoas temem que Marrocos venha a seguir.

— É seguro para os turistas irem até lá?

— É seguro — disse Martel — até deixar de ser.

Rousseau permitiu a si próprio um sorriso perante a perspicácia da observação. Depois, assinalou que os interesses empresariais de Martel lhe permitiam entrar e sair de Marrocos, um famigerado país produtor de droga, sem levantar suspeitas. Martel, encolhendo os ombros, não contestou a conclusão de Rousseau.

— Recebe o Mohammad Bakkar no seu hotel em Marraquexe?

— Nunca.

— Porque não?

— Ele não gosta de Marraquexe. Ou daquilo em que Marraquexe se tornou, diria eu.

— Demasiados estrangeiros?

— E homossexuais — disse Martel.

— E ele não gosta de homossexuais devido às suas crenças religiosas?

— Suponho que sim.

— Habitualmente, onde é que se encontra com ele?

— Em Casa — disse Martel, utilizando a abreviatura local para Casablanca — ou em Fez. Tem um riad no coração da medina. Também é proprietário de várias villas no Rife e no Médio Atlas.

— Desloca-se muito de um lado para o outro?

— As laranjas são um negócio perigoso.

Rousseau sorriu novamente. Nem mesmo ele era imune ao imenso charme de Martel.

— E, quando se encontra com o Monsieur Bakkar, de que é que falam?

— Do Brexit. Do novo presidente americano. Das perspetivas para a paz no Médio Oriente. O costume.

— Obviamente — disse Rousseau —, está a brincar.

— Não, de todo. O Mohammad é bastante inteligente e interessa-se pelo mundo para lá do Rife.

— Como é que descreveria a ideologia política dele?

— Não é um admirador do Ocidente. Cultiva um particular ressentimento em relação à França e à América. Por norma, tento não proferir a palavra Israel na presença dele.

— Enraivece-o?

— Pode-se dizer que sim.

— E, no entanto, faz negócios com um homem assim.

— As laranjas dele — disse Martel — são de muito boa qualidade.

— E, quando acabam de falar do estado do mundo, de que é que falam?

— De preços, horário de produção, datas de entrega, esse tipo de coisas.

— Os preços flutuam?

— Oferta e procura — explicou Martel.

— Há alguns anos — continuou Rousseau — reparámos numa mudança evidente na forma como as laranjas estavam a sair do Norte de África. Em vez de virem através do Mediterrâneo, uma ou duas de cada vez, a bordo de pequenas embarcações, começaram a chegar toneladas de laranjas em grandes navios de carga, todos provenientes de portos da Líbia. Houve um súbito excedente no mercado? Ou há alguma outra razão para explicar a mudança na estratégia?

— A segunda opção — disse Martel.

— E qual foi essa razão?

— O Mohammad decidiu unir-se a um parceiro.

— Uma pessoa física?

— Sim.

— Suponho que teria de ser um homem, porque alguém como o Mohammad Bakkar nunca lidaria com uma mulher.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Esse parceiro queria assumir uma postura mais agressiva no mercado?

— Muito mais agressiva.

— Porquê?

— Porque queria maximizar os lucros rapidamente.

— Encontrou-se com ele?

— Duas vezes.

— O nome dele?

— Khalil.

— Khalil quê?

— Só isso, simplesmente Khalil.

— Era marroquino?

— Não, definitivamente não era marroquino,

— De onde era?

— Nunca disse.

— E se tivesse de arriscar um palpite?

Jean-Luc Martel encolheu os ombros.

— Diria que era iraquiano.


40

 

CÔTE D’AZUR, FRANÇA

 

 


Foi evidente para toda a gente na sala (e, uma vez mais, as câmaras ocultas assim o confirmaram) que Jean-Luc Martel não percebeu o significado das palavras que acabara de proferir. Diria que era iraquiano... Um iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido, sem patronímico nem um gentílico ancestral, apenas Khalil. O mesmo Khalil que encontrara um parceiro em Mohammad Bakkar, um produtor de haxixe de profunda fé islâmica que odiava a América e o Ocidente e se enfurecia perante a simples menção de Israel. O Khalil que queria maximizar lucros forçando a entrada de mais produto no mercado europeu. Gabriel, o observador silencioso do drama que concebera e produzira, advertiu a si próprio para não se precipitar para uma conclusão prematura. Era possível que o homem que se autodenominava Khalil não fosse o homem de que andavam à procura, que fosse um mero criminoso banal sem outros interesses a não ser fazer dinheiro; que fosse um gambozino que lhes faria desperdiçar tempo e recursos preciosos. Ainda assim, até mesmo Gabriel teve dificuldade em controlar o bater desenfreado do seu coração. Ele puxara a ponta solta, unira os pontos e o rasto tinha-o conduzido até ali, à antiga casa de um inimigo derrotado. Contudo, os outros membros da sua equipa pareciam totalmente indiferentes à revelação de Martel. Natalie, Mikhail e Christopher Keller estavam, cada um deles, absortos nos seus pensamentos e Paul Rousseau aproveitara aquele momento para carregar o seu primeiro cachimbo. Passado um momento, o seu isqueiro acendeu-se e uma nuvem de fumo rolou sobre as duas cenas venezianas de Guardi. Gabriel, o restaurador, estremeceu involuntariamente.

Se Rousseau ficou minimamente intrigado pelo iraquiano que se autodenominava Khalil, não revelou qualquer sinal exterior disso. Khalil era um pensamento secundário. Khalil não tinha qualquer importância. Rousseau estava mais interessado, ou assim parecia, nos aspetos práticos da relação de Martel com Mohammad Bakkar. Quem dirigia as operações? Era isso que ele queria saber. Quem ocupava a posição superior? Era Martel, o distribuidor, ou Bakkar, o produtor marroquino?

— Não percebe muito de negócios, pois não?

— Sou um académico — desculpou-se Rousseau.

— É uma negociação — explicou Martel. — Mas, em última análise, o produtor ocupa a posição superior.

— Porque pode excluir o distribuidor a qualquer momento?

— Correto.

— O Jean-Luc não conseguiria encontrar outra fonte de droga?

— Laranjas — disse Martel.

— Ah, sim, laranjas — concordou Rousseau.

— Não é assim tão fácil.

— Pela qualidade das laranjas do Mohammad Bakkar?

— Pelo facto de o Mohammad Bakkar ser um homem com poder e influência consideráveis.

— Desencorajaria outros produtores a venderem-lhe o seu produto?

— Intensamente.

— E quando o Mohammad Bakkar lhe disse que queria aumentar drasticamente a quantidade de laranjas que estava a enviar para a Europa?

— Aconselhei-o a não o fazer.

— Porquê?

— Por inúmeras razões.

— Tais como?

— Grandes carregamentos são perigosos por natureza.

— Porque é mais fácil para as autoridades encontrarem-nos?

— Obviamente.

— Que mais?

— Estava preocupado com a possibilidade de saturarmos o mercado.

— E, por conseguinte, fazer cair o preço das laranjas na Europa Ocidental.

— Oferta e procura — disse Martel novamente, com um encolher de ombros.

— E quando mencionou essas preocupações?

— Deu-me uma escolha muito simples.

— Pegar ou largar?

— Com todas as letras.

— E o Jean-Luc pegou — disse Rousseau.

Martel ficou em silêncio. Rousseau mudou de ângulo abruptamente.

— O envio — disse ele. — Quem é o responsável pelo envio?

— O Mohammad. Ele põe a embalagem no correio e nós vamos buscá-la do outro lado.

— Presumo que ele lhe diz quando esperar a encomenda.

— Claro.

— Quais são os métodos preferidos dele?

— Antigamente, usava barcos pequenos para trazer a mercadoria diretamente através do Mediterrâneo, de Marrocos para Espanha. Depois, os espanhóis apertaram o controlo na costa, portanto ele começou a movê-la através do Norte de África para os Balcãs. Era uma viagem longa e onerosa. Muitas laranjas desapareciam pelo caminho. Principalmente quando chegavam ao Líbano e aos Balcãs.

— Eram roubadas por gangues criminosos locais?

— As máfias sérvia e búlgara gostam bastante de citrinos — disse Martel. — O Mohammad passou anos a tentar arranjar uma forma de fazer as laranjas chegarem à Europa sem terem de atravessar esse território. E, depois, caiu-lhe uma solução no colo.

— A solução — disse Rousseau — foi a Líbia.

Martel assentiu lentamente com a cabeça.

— Foi um sonho tornado realidade, possibilitado pelo presidente francês e pelos amigos de Washington e Londres que declararam que o Kadhafi tinha de cair. Assim que o regime se desmoronou, a Líbia abriu as portas da loja. Era o Oeste Selvagem. Sem governo central, sem polícia, sem qualquer tipo de autoridade exceto as milícias e os psicopatas islâmicos. Mas havia um problema.

— Qual era?

— As milícias e os psicopatas islâmicos — disse Martel.

— Não aprovavam as laranjas?

— Não era isso. Queriam uma parte. Caso contrário, não deixariam as laranjas chegarem aos portos líbios. O Mohammad precisava de um parceiro local, alguém que pudesse manter as milícias e guerreiros sagrados na linha. Alguém que conseguisse garantir que as laranjas encontravam o caminho até ao interior dos navios de carga.

— Alguém como o Khalil? — perguntou Rousseau.

Martel não deu qualquer resposta.

— Lembra-se de um navio chamado Apollo? — perguntou Rousseau. — Os italianos apreenderam-no ao largo da Sicília com dezassete toneladas de laranjas nos porões.

— O nome — disse Martel dissimuladamente — é-me familiar.

— Suponho que a carga era sua.

Martel, com o seu olhar inexpressivo, confirmou que era.

— Houve outros navios antes do Apollo que não tenham sido intercetados?

— Vários.

— E, recorde-me — disse Rousseau, fingindo confusão —, quem é que suporta o custo de uma apreensão? O produtor ou o distribuidor?

— Não posso vender laranjas se não as receber.

— Então, o que me está a dizer, e por favor desculpe-me, Monsieur Martel, não pretendo insistir excessivamente na questão, é que o Mohammad Bakkar perdeu, pessoalmente, milhões de euros quando o Apollo foi apreendido?

— Correto.

— Deve ter ficado furioso.

— Bem mais do que isso — disse Martel. — Convocou-me para ir a Marrocos e acusou-me de filtrar a informação aos italianos.

— Porque é que faria uma coisa dessas?

— Porque estava contra os grandes carregamentos desde o início. E a melhor forma de os fazer parar seria perder um ou dois navios.

— Foi o Jean-Luc o responsável pela fuga de informação que conduziu os italianos até ao Apollo?

— Claro que não. Disse ao Mohammad de forma absolutamente categórica que o problema estava do lado dele.

— Com isso — disse Rousseau — referia-se ao Norte de África.

— À Líbia — disse Martel.

— E quando as apreensões continuaram?

— O Khalil conteve as fugas. E as laranjas começaram a chegar novamente em segurança.

 

Ei-lo novamente. O nome do novo parceiro agressivo de Mohammad Bakkar. O homem que Paul Rousseau andara a evitar. Depois de uma pausa prolongada para carregar e acender outro cachimbo, indagou quando é que Jean-Luc se encontrara pela primeira vez com esse iraquiano que se autodenominava Khalil. Sem apelido. Sem patronímico nem gentílico ancestral. Só Khalil. Martel disse que fora em 2012. Na primavera, pensava. No final de março, talvez, mas não sabia precisar com certeza. Contudo, Rousseau, não acreditou. Martel era dono e senhor de uma vasta organização criminosa, cujo funcionamento conhecia de cor e salteado. Certamente, insistiu Rousseau, conseguia recordar-se da data de tão memorável encontro.

— Foi no dia vinte e nove de março.

— E as circunstâncias? O Jean-Luc foi convocado ou era um encontro agendado previamente?

Martel indicou que a sua presença fora solicitada.

— E, geralmente, como é que isso se faz? É uma questão menor, sabe, mas estou curioso.

— Deixam-me uma mensagem no meu hotel em Marraquexe.

— Uma mensagem de voz?

— Sim.

— E a primeira reunião em que o Khalil esteve presente?

— Foi em Casa. Voei para lá no meu avião e instalei-me no hotel. Algumas horas depois, disseram-me onde ir.

— O Mohammad telefonou-lhe pessoalmente?

— Um dos homens dele. O Mohammad não gosta de usar o telefone para tratar de negócios.

— E o hotel? Qual foi, por favor?

— O Sofitel.

— E foi sozinho?

— A Olivia foi comigo.

Rousseau franziu o sobrolho pensativamente.

— Leva-a sempre consigo?

— Sempre que possível.

— Porquê?

— As aparências são importantes.

— Ela foi à reunião?

— Não. Ficou no hotel enquanto eu fui a Anfa.

— Anfa?

Era um enclave abastado numa colina a oeste do centro, explicou Martel, uma zona de avenidas ladeadas de palmeiras e villas amuralhadas onde o preço por metro quadrado rivalizava com Londres e Paris. Mohammad Bakkar era dono de uma propriedade aí. Como de costume, Martel teve de se submeter a uma revista antes de ser autorizado a entrar. Foi, recordava agora, mais invasiva do que o normal. No interior, esperava encontrar Bakkar sozinho, como era habitual nas reuniões. Em vez disso, havia outro homem presente.

— Descreva-o, por favor.

— Alto, ombros largos, rosto e mãos grandes.

— A pele?

— Escura, mas não muito.

— Como é que estava vestido?

— À ocidental. Fato escuro, camisa branca, sem gravata.

— Cicatrizes ou características distintivas?

— Não.

— Tatuagens?

— Só consegui ver-lhe as mãos.

— E?

Martel abanou a cabeça.

— Foram apresentados?

— Sucintamente.

— Ele falou?

— Comigo não. Só com o Mohammad.

— Em árabe, presumo.

— Sim.

— O Mohammad Bakkar fala árabe magrebino.

— Darija — disse Martel.

— E o outro homem? Também falava darija?

Martel abanou a cabeça.

— Consegue perceber a diferença?

— Aprendi a falar um pouco de árabe quando era criança. Com a minha mãe — acrescentou. — Portanto, sim, consigo perceber a diferença. Falava como alguém do Iraque.

— E não se interrogou sobre a origem desse homem, dado que o ISIS tinha conquistado grande parte do Iraque e da Síria e estabelecido uma base de operações na Líbia? Ou talvez não quisesse saber — acrescentou Rousseau desdenhosamente. — Talvez seja melhor não fazer demasiadas perguntas numa situação dessas.

— Regra geral — disse Martel —, podem ser más para o negócio.

— Principalmente quando o ISIS e semelhantes estão envolvidos. — Rousseau controlou a raiva. — E a segunda reunião? Quando foi?

— Em dezembro passado.

— Depois dos atentados de Washington?

— Sem dúvida.

— A data exata, por favor.

— Creio que foi no dia dezanove.

— E as circunstâncias?

— Foi na nossa reunião anual de inverno.

— Onde é que teve lugar?

— O Mohammad estava sempre a mudar a localização. Acabámos por nos encontrar numa pequena povoação no topo do Rife.

— Qual era a ordem de trabalhos?

— Previsões de preços e datas de entrega para o novo ano. O Mohammad e o iraquiano queriam introduzir ainda mais produto no mercado. Muito produto. E rapidamente.

— Como é que ele estava vestido dessa vez?

— Como um marroquino.

— O que é que isso significa?

— Tinha uma jilaba.

— Uma túnica tradicional muçulmana com capuz.

Martel fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— E o rosto dele estava mais magro e anguloso.

— Tinha perdido peso?

— Cirurgia plástica.

— Havia mais alguma coisa diferente nele?

— Sim — disse Martel. — Ao caminhar, coxeava.

 

 

 


CONTINUA