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CÔTE D’AZUR, FRANÇA
Havia uma parte de Paul Rousseau que não tinha estômago para o acordo que tinha de ser feito. Jean-Luc Martel, diria ele mais tarde, era a prova cabal de que a França errara ao acabar com a guilhotina. Mas Khalil, o iraquiano (Khalil cujo rosto fora alterado, Khalil que ao caminhar coxeava) valia bem o preço. A coerção, só por si, não seria suficiente para arrastar Martel até à linha de meta. Teria de ser transformado num colaborador pleno do Grupo Alpha («um agente dos serviços secretos franceses, deus me livre», lamentou-se Rousseau) e apenas uma promessa de imunidade total para uma possível acusação seria suficiente para assegurar a sua cooperação inabalável. Rousseau não tinha poder para fazer tal promessa; só um ministro a poderia fazer. O que colocava Rousseau perante um dilema adicional, pois o seu ministro continuava a não saber nada da operação. Era sobejamente sabido que o ministro era um homem que não gostava de surpresas. Talvez nesse caso conseguisse abrir uma exceção.
De momento, Rousseau fez das tripas coração e testou as capacidades de Martel. Falaram novamente sobre tudo, lenta e meticulosamente, para a frente, para trás, de lado, e de todas as outras formas que Rousseau, que andava à procura de alguma incongruência, de algum motivo para questionar a autenticidade da sua fonte, conseguiu imaginar. Foi dada particular atenção à ordem de trabalhos da reunião de inverno em que Khalil, o iraquiano, estivera presente, principalmente à calendarização das entregas seguintes. Estavam previstos três grandes carregamentos nos dez dias seguintes. Todos estariam escondidos no interior de navios de carga que partiriam da Líbia. Dois chegariam a portos franceses (a Marselha e à vizinha Toulon), mas o terceiro atracaria no porto italiano de Génova.
— Se essa droga desaparecer — disse Martel —, vai ser o bom e o bonito.
— Laranjas — disse Rousseau. — Laranjas.
Foi nesse momento que Gabriel se intrometeu nos procedimentos pela primeira vez. Fê-lo apenas com uma apresentação mínima e trazendo consigo várias folhas de papel em branco, um lápis e um afia. Durante a maior parte da hora seguinte, sentou-se ao lado do homem cuja vida virara do avesso e, com a sua ajuda, produziu retratos-robô das duas versões de Khalil, o iraquiano: a versão de 2012 que envergava roupas ocidentais e a versão que aparecera em Marrocos depois dos atentados de Washington envergando uma jilaba tradicional e coxeando notoriamente. Martel tinha um célebre olho para o detalhe (ele próprio o dissera muitas vezes em entrevistas à imprensa) e alegava nunca esquecer um rosto. Era também exigente, um traço que revelou plenamente quando Gabriel não conseguiu conceber um queixo adequado para a versão cirurgicamente retocada de Khalil. Passaram por três esboços antes de Martel, com inesperado entusiasmo, dar a sua aprovação.
— É ele. É o homem que vi em dezembro passado.
— Tem a certeza? — pressionou Gabriel. — Não tenha pressa. Podemos fazer outro esboço, se quiser.
— Não é necessário. Era exatamente assim.
— E o coxear? — perguntou Gabriel — Não referiu qual era a perna que estava lesionada.
— Era a direita.
— Tem a certeza disso?
— Sem qualquer dúvida.
— Ele deu alguma explicação?
— Disse que tinha sido num acidente de carro. Não disse onde.
Gabriel estudou os desenhos finais durante um longo momento antes de os levantar para que Natalie os visse. Os olhos dela arregalaram-se involuntariamente. Depois, retomando a compostura, desviou o olhar e assentiu lentamente com a cabeça. Gabriel colocou o primeiro esboço de lado e contemplou o segundo demoradamente. Era o novo rosto do terrorismo. Era o rosto de Saladino.
Arrastaram-no para o andar de cima, para o quarto da Madame Sophie, esfregaram-lhe o flanco do pescoço com batom vermelho-sangue e regaram-no com uma quantidade suficiente de perfume da Madame Sophie para que deixasse um rasto de vapor enquanto conduzia através da luz da aurora, derrotado e exausto, em direção à sua villa do outro lado da Baie de Cavalaire. Não foi sozinho. Nicolas Carnot, também conhecido como Christopher Keller, estava sentado no lugar do passageiro, com o telemóvel de Martel numa mão, uma arma na outra. Atrás deles, num segundo veículo, havia quatro agentes do Grupo Alpha. Previamente, tinham sido empregados de Dmitri Antonov na Villa Soleil. Agora, tal como Nicolas Carnot, estavam a trabalhar para Martel. As circunstâncias exatas que rodeavam a decisão de abandonar um chefe por outro eram nebulosas, mas coisas assim podiam acontecer em Saint-Tropez durante o verão.
Passavam exatamente doze minutos das cinco da manhã quando os dois veículos viraram para o caminho de acesso à villa. Olivia Watson sabia-o porque passara toda a noite deitada na cama acordada e correra para a janela do quarto ao ouvir o som das portas do carro a abrirem e fecharem no pátio. Agora, fingia dormir enquanto a cama ondulava sob o peso do seu amante errante. Ela rebolou para o outro lado e os seus olhos encontraram-se com os dele na penumbra.
— Onde é que estiveste, Jean-Luc?
— Negócios — murmurou ele. — Dorme.
— Há algum problema?
— Agora já não.
— Tentei telefonar-te, mas o meu telefone não está a funcionar. Também não há Internet e a nossa linha fixa está inativa.
— Deve ter havido alguma falha. — Os seus olhos fecharam-se.
— Porque é que o Nicolas está lá em baixo? E quem são aqueles outros homens?
— Eu explico tudo de manhã.
— Já é de manhã, Jean-Luc.
Ele ficou em silêncio. Olivia aproximou-se.
— Cheiras a outra mulher.
— Olivia, por favor.
— Quem é ela, Jean-Luc? Onde é que estiveste?
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PARIS
O ajuste de contas que Paul Rousseau tinha estado a temer ocorreu no início dessa tarde no Ministério do Interior em Paris. Tal como Jean-Luc Martel, não enfrentou o seu destino sozinho; Gabriel foi com ele. Atravessaram o pátio lado a lado e marcharam pela grandiosa escadaria acima até ao imponente escritório do ministro, onde Rousseau, que nunca tivera tendência para conversa delicada de circunstância, confessou imediatamente os seus pecados operacionais. Os serviços secretos britânicos, disse, tinham identificado a origem das espingardas de assalto utilizadas no atentado de Londres como sendo de um franco-marroquino chamado Nouredine Zakaria, um criminoso profissional com ligações a uma das maiores redes francesas de tráfico de droga. Sem a autorização do seu chefe nem do Ministério do Interior, Rousseau e o Grupo Alpha tinham trabalhado com dois serviços aliados (os britânicos e, de forma bastante evidente, os israelitas) para se infiltrarem na supracitada rede e transformarem o seu líder num confidente. A operação, continuou ele, fora um êxito. Com base na informação fornecida pela fonte, o Grupo Alpha e os seus parceiros poderiam dizer com moderada confiança que o ISIS assumira o controlo de uma porção significativa do comércio ilícito de haxixe no Norte de África e que Saladino, o misterioso cérebro operacional iraquiano da divisão de operações externas no grupo, estava, provavelmente, escondido em Marrocos, um antigo protetorado francês.
O ministro reagiu basicamente tão bem quanto seria de esperar, que não foi nada bem. Seguiu-se um sermão, em grande medida profano. Rousseau ofereceu a sua demissão (redigira uma carta manuscrita durante a viagem da Provença para norte) e, durante um longo momento, o ministro pareceu preparado para aceitá-la. Passado muito tempo, deixou cair a carta no seu triturador de papel. A derradeira responsabilidade de proteger o solo francês de atentados terroristas, islâmicos ou outros, repousava nos ombros estreitos do ministro. Não estava disposto a perder um homem como Paul Rousseau.
— Onde é que está o Nouredine Zakaria agora?
— Desaparecido — disse Rousseau.
— Foi para o califado?
Rousseau hesitou antes de responder. Estava preparado para ofuscar os factos, mas, de forma alguma, diria uma mentira completa. Nouredine Zakaria, disse calmamente, estava morto.
— Morto como? — perguntou o ministro.
— Creio que ocorreu durante uma transação de negócios.
O ministro olhou para Gabriel.
— Suponho que o senhor teve alguma coisa a ver com isso.
— O falecimento do Zakaria precedeu o nosso envolvimento neste caso — respondeu Gabriel com uma precisão de advogado.
O ministro não se tranquilizou.
— E o líder da rede? O vosso novo confidente?
— O nome dele — disse Rousseau — é Jean-Luc Martel.
O ministro baixou o olhar e reorganizou os papéis sobre a sua secretária.
— Isso explicaria o vosso interesse no processo do Martel no dia em que o vosso quartel-general explodiu.
— Explicaria — disse Rousseau, mantendo-se firme.
— O Jean-Luc foi alvo de numerosas investigações. Todas chegaram à mesma conclusão: que não está envolvido no mundo da droga.
— Essa conclusão — disse Rousseau cuidadosamente — está errada.
— Tem a certeza disso?
— Obtive a confirmação por parte da mais alta autoridade no assunto.
— Quem?
— O próprio Jean-Luc Martel.
O ministro troçou:
— Porque é que ele lhe diria tal coisa?
— Não teve grandes hipóteses.
— Porquê?
— René Devereaux.
— O nome é-me familiar.
— Deveria ser — disse Rousseau.
— Onde é que está o Devereaux agora?
— No mesmo lugar que o Nouredine Zakaria.
— Merde — disse o ministro suavemente.
Houve um silêncio. Os fragmentos de pó flutuavam nos raios de sol que atravessavam a janela como peixes num aquário. Rousseau pigarreou delicadamente, um sinal de que estava prestes a aventurar-se a entrar em terreno traiçoeiro.
— Sei que o senhor ministro e o Martel são amigos — disse ele finalmente.
— Somos conhecidos — contestou rapidamente o ministro —, mas não somos amigos.
— O Martel ficaria surpreendido por ouvir isso. Na verdade, invocou o seu nome várias vezes, antes de finalmente aceitar cooperar.
O ministro não conseguiu ocultar a raiva contra Rousseau por lavar roupa suja francesa diante de um estrangeiro, e, para além do mais, um israelita.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou.
— Pretendo dizer — disse Rousseau — que vou precisar da cooperação permanente do Martel, o que exigirá que lhe seja concedida imunidade. Fazê-lo poderá ser um assunto sensível, dada a vossa relação, mas é necessário para que a operação possa avançar.
— Qual é o vosso objetivo?
— Eliminar o Saladino, claro.
— E pretendem utilizar o Martel nalgum tipo de função operacional?
— É a nossa única opção.
O ministro mostrou-se pensativo.
— Tem razão, conceder-lhe imunidade seria difícil. Mas se fosse o Rousseau a solicitá-la...
— Terá a documentação ao final do dia — interrompeu Rousseau. — Com franqueza, provavelmente é melhor assim. O senhor ministro não é a única pessoa do atual governo que é conhecido do Martel.
O ministro estava novamente a remexer nos papéis.
— Demos-lhe uma vasta margem de manobra quando criámos o Grupo Alpha, mas escusado será dizer que o Rousseau ultrapassou os limites da sua autoridade.
Rousseau aceitou a reprimenda com um silêncio compungido.
— Não me irão manter novamente na ignorância. Estamos entendidos?
— Sim, senhor ministro.
— Como pretende prosseguir?
— Nos próximos dez dias, o fornecedor marroquino do Martel, um homem chamado Mohammad Bakkar, vai enviar vários grandes carregamentos de haxixe a partir de portos da Líbia. É vital que os intercetemos.
— Sabe o nome das embarcações?
Rousseau assentiu com a cabeça.
— O Bakkar e o Saladino vão suspeitar de que há um informador.
— Correto.
— Vão ficar zangados.
Rousseau sorriu.
— Essa é a nossa esperança, senhor ministro.
O primeiro navio, um contentor flutuante com registo maltês chamado Mediterranean Dream, só deveria deixar a Líbia quatro dias depois. O seu ponto de partida era Khoms, um pequeno porto marítimo comercial a leste de Trípoli; após uma breve paragem na Tunísia, onde estava planeado que receberia uma carga de produto, dirigir-se-ia diretamente para Génova. Estava previsto que as outras duas embarcações, uma hasteando uma bandeira baamiana, a outra panamenha, partiriam de Sirte dali a uma semana, colocando, por conseguinte, Gabriel e Rousseau perante um pequeno dilema. Concordaram que apreender o Mediterranean Dream enquanto as outras duas embarcações ainda estavam no porto da Líbia seria um erro de cálculo, pois concederia a Mohammad Bakkar e a Saladino uma oportunidade para alterarem a rota da mercadoria. Em vez disso, aguardariam que os três navios estivessem em águas internacionais antes de dar o primeiro passo.
A demora pesou a ambos intensamente, principalmente a Gabriel, que observara o rosto retocado de Saladino emergir dos esforços da sua própria mão. Transportava sempre consigo o esboço, mesmo quando ia para a cama em Jerusalém, onde passou quatro noites agitadas ao lado da esposa. Na Avenida Rei Saul, sentou-se a ouvir relatórios intermináveis sobre assuntos que deixara nas mãos capazes de Uzi Navot, mas toda a gente conseguiu perceber que a sua cabeça não estava ali. Durante uma reunião de Conselho, a sua mente divagou enquanto os ministros discutiam incessantemente. No seu caderno desenhou um rosto. Um rosto parcialmente oculto pelo capuz de uma jilaba.
Rousseau acordou Gabriel cedo, na manhã seguinte, com notícias de que o Mediterranean Dream deixara a Tunísia durante a noite e estava agora em águas internacionais. Mas conteria efetivamente um carregamento escondido de haxixe de Marrocos? Apenas uma fonte dizia que sim, o homem que vivia à frente de Dmitri e Sophie Antonov, do outro lado da Baie de Cavalaire. O homem cujos inúmeros pecados tinham sido oficialmente perdoados e que estava agora sob controlo total e absoluto de um consórcio de três serviços secretos.
Contudo, aos olhos de um leigo, parecia não ter havido qualquer mudança exterior no seu comportamento, salvo a constante presença de Christopher Keller ao seu lado. De facto, para onde quer que Martel fosse, era certo que Keller o seguiria. Ao Mónaco e a Madrid, para duas reuniões de negócios previamente agendadas. A Genebra para uma sessão de esclarecimento com um banqueiro suíço de ética questionável. E, finalmente, a Marselha, de onde o chefe da divisão de estupefacientes ilícitos de Martel desaparecera sem deixar rasto, deixando para trás dois guarda-costas mortos na sua loja de produtos eletrónicos com vista para a Place Jean Jaurès. A polícia de Marselha acreditava que René Devereaux fora assassinado por um rival do submundo. Os parceiros de Devereaux, incluindo um tal Henri Villard, eram da mesma opinião. Durante uma reunião com Martel e Keller, num apartamento seguro próximo da Gare Saint-Charles, Villard mostrou-se nervoso quanto aos próximos carregamentos. Temia, com razão, que tivesse havido uma fuga de informação. Martel acalmou os seus medos e deu-lhe instruções para que recolhesse a carga da forma habitual. Um escrutínio minucioso da gravação captada pelo telefone do bolso de Keller (e dos movimentos e comunicações de Villard depois da reunião) sugeriu que Martel não tentara enviar um aviso clandestino à sua antiga rede. O haxixe estava a caminho, o pagamento estava programado para sair. Tanto para os traficantes como para os mestres de espionagem, tudo parecia correr sobre rodas.
A mensagem que motivaria a ação seguinte foi entregue através do canal habitual, de ministro do Interior para ministro do Interior, sem qualquer sensação indevida de urgência. Um informador que pertencia a um dos mais proeminentes gangues de droga franceses alegava que um grande carregamento de haxixe do Norte de África chegaria a Génova no dia seguinte, a bordo do Mediterranean Dream, registado como maltês. Talvez os italianos, se não tivessem nada melhor para fazer, quisessem examiná-lo. E fizeram-no, efetivamente. Na verdade, unidades da Guardia di Finanza, a agência policial italiana responsável pelo combate ao tráfico de droga, embarcaram no navio minutos após a sua chegada e começaram a forçar a abertura dos contentores. A sua busca renderia, eventualmente, quatro toneladas de haxixe marroquino, de forma nenhuma um recorde, mas uma apreensão respeitável. Depois disso, o ministro italiano telefonou ao homólogo francês e agradeceu-lhe pela informação. O ministro francês disse que ficava satisfeito por ter podido ajudar.
Embora tivesse sido uma grande notícia em Itália, a apreensão atraiu pouca atenção em França, menos ainda na antiga povoação de pescadores de Saint-Tropez. Mas, quando a polícia alfandegária francesa fez uma rusga a dois navios no dia seguinte (o Africa Star, com destino a Toulon, e o Caribbean Endeavor, com destino a Marselha), até mesmo a sonolenta Saint-Tropez ficou impressionada. O Africa Star renderia três toneladas de haxixe, o Caribbean Endeavor apenas duas. Mas também continha algo que apanhou Gabriel e Paul Rousseau de surpresa: um cilindro de chumbo, de quarenta centímetros de altura e vinte de diâmetro, escondido dentro de um rolo de cabo elétrico produzido por uma fábrica de um bairro industrial de Trípoli.
O cilindro não exibia marcas de qualquer tipo. Ainda assim, a polícia alfandegária francesa, que estava treinada para lidar com material potencialmente perigoso, sabia perfeitamente que não devia abri-lo. Efetuaram-se telefonemas, soaram alarmes e, ao início da noite, o contentor fora transportado de forma segura para um laboratório governamental francês nos arredores de Paris, onde os técnicos analisaram o pó semelhante a pó de talco que encontraram no interior. Em pouco tempo, determinaram que se tratava da substância altamente radioativa césio-137 ou cloreto de césio. Paul Rousseau e o ministro do Interior foram informados da descoberta às oito horas dessa noite e, vinte minutos depois, com Gabriel a segui-los um passo atrás, estavam a atravessar apressadamente as portas do Palácio do Eliseu para transmitir as notícias ao Presidente da República. Saladino estava a planear atacá-los novamente, desta vez com uma bomba suja.
TERCEIRA PARTE
O CANTO MAIS ESCURO
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SURREY, INGLATERRA
Nunca se determinaria exatamente, de uma forma que satisfizesse plenamente ninguém, muito menos os franceses, como é que os americanos tinham sabido do carregamento escondido de césio. Era um daqueles mistérios que perduraria até muito depois de a poeira operacional assentar. No entanto, ouviram efetivamente falar disso (nessa mesma noite, na verdade) e, antes de o sol se erguer, exigiram que todas as partes relevantes se dirigissem para Washington para uma reunião de emergência. Graham Seymour e Amanda Wallace, os irmãos de sangue, declinaram educadamente. Perante a perspetiva de um dispositivo de dispersão radiológica nas mãos da rede de Saladino, não podiam dar-se ao luxo de serem vistos a correr até às antigas colónias para pedir ajuda. Eram totalmente a favor da cooperação transatlântica (na verdade, estavam perigosamente dependentes dela), mas, para eles, era uma simples questão de orgulho nacional. E, quando Gabriel e Paul Rousseau acrescentaram as suas objeções, os americanos rapidamente capitularam. Gabriel estava confiante nesse desfecho; tinha uma ideia bastante acertada do que os americanos queriam, em última instância. Queriam a cabeça de Saladino espetada num pau, e a única forma de a conseguirem era assumindo o controlo da operação de Gabriel. Seria melhor negar-lhes a vantagem de jogar em casa. As cinco horas de diferença horária, só por si, seriam suficientes para os manter em desequilíbrio.
Esperar uma delegação pequena seria esperar demasiado. Chegaram num avião Boeing estampado com o selo oficial dos Estados Unidos e viajaram para o local da conferência (um centro de treinos desativado do MI6, localizado numa casa senhorial vitoriana em Surrey) numa caravana comprida e ruidosa que cortou caminho através da paisagem rural como se estivesse a desviar-se de artefactos explosivos improvisados no Triângulo Sunita do Iraque ocupado. De um dos veículos saiu Morris Payne, o novo diretor da Agência. Payne era da Academia Militar dos Estados Unidos, estudara Direito numa das universidades mais conceituadas do país, trabalhara no setor privado e era um antigo membro profundamente conservador do Congresso, oriundo de uma das Dakotas. Era grande e abrupto, com um rosto que se assemelhava a uma estátua da Ilha da Páscoa e uma voz de barítono que fez estremecer as vigas do hall de entrada abobadado da casa antiga. Começou por cumprimentar Graham Seymour e Amanda Wallace (eram eles os anfitriões, afinal de contas, para não dizer família distante) antes de virar a potência máxima da sua personalidade de canhão de água para Gabriel.
— Gabriel Allon! Que bom conhecer-te finalmente. Um dos grandes. Uma lenda, verdadeiramente. Devíamos ter feito isto há muito tempo. O Adrian disse-me que estiveste na cidade e não vieste ver-me. Não vou levar a mal. Sei que tu e o Adrian têm uma longa história de colaboração. Fizeram um bom trabalho juntos. Espero que continuemos essa tradição.
Gabriel recuperou a sua mão e olhou para os homens que rodeavam o novo diretor dos serviços secretos mais importantes do mundo. Eram jovens, enxutos e duros, ex-militares como o seu patrão, todos bem treinados nos rudes golpes do combate burocrático de Washington. A mudança em relação à administração anterior era impactante. Se havia um lado positivo era que todos eles gostavam razoavelmente de Israel. Talvez gostassem demasiado, pensou Gabriel. Eram a prova viva de que era necessário ter cuidado com o que se desejava.
O facto de Adrian Carter não se encontrar entre os que estavam na órbita próxima do diretor era revelador. Estava, naquele momento, a sair de um jipe, juntamente com os restantes operacionais seniores. A maioria era desconhecida para Gabriel. Contudo, ele reconheceu um. Era Kyle Taylor, o chefe do Centro de Antiterrorismo da Agência. A presença de Taylor era um indicador perturbador das intenções de Langley; dizia-se que Taylor aniquilaria a própria mãe com um drone, se achasse que isso o faria conquistar o cargo de Carter e o seu escritório no sétimo andar. Envergava a sua ambição implacável como uma gravata cuidadosamente apertada. Contudo, Carter parecia ter acabado de ser acordado de uma sesta. Passou por Gabriel fazendo unicamente um aceno mínimo com a cabeça.
— Não te aproximes muito — sussurrou. — Posso contagiar-te.
— O que é que tens?
— Lepra.
Morris Payne estava agora a puxar repetidamente a mão de Paul Rousseau como se estivesse a tentar ganhar o seu voto. Seguindo a indicação de Graham Seymour, entrou para a sala de jantar formal do solar, que fora convertido há muito numa instalação insonorizada. Havia um cesto à entrada para telemóveis e, sobre o aparador vitoriano, uma variedade de aperitivos nos quais ninguém tocou. Morris Payne sentou-se na longa mesa retangular, flanqueado, de um lado, pelos seus assistentes jovens e duros e, do outro, por Kyle Taylor, o mestre dos drones. Adrian Carter foi relegado para a extremidade mais afastada: o local, pensou Gabriel, onde poderia fazer rabiscos a seu bel-prazer e sonhar com um emprego no setor privado.
Gabriel sentou-se no lugar que lhe fora atribuído e, imediatamente, virou ao contrário a pequena placa com o nome que algum funcionário zeloso do MI6 aí colocara. À sua esquerda, e exatamente à frente de Morris Payne, estava Graham Seymour. E à esquerda de Seymour estava Amanda Wallace, que parecia estar com medo de ser salpicada de sangue. A reputação de Morris Payne precedia-o. Durante o seu curto mandato, completara em grande medida a tarefa de transformar a CIA de serviço secreto em organização paramilitar. A linguagem de espionagem aborrecia-o. Era um homem de ação.
— Sabem que estamos todos em modo crise — começou Payne —, portanto não vou desperdiçar o tempo de ninguém. Todos vocês devem ser louvados. Preveniram uma calamidade. Ou, pelo menos, adiaram-na — acrescentou. — Mas a Casa Branca está a insistir, e, francamente, nós estamos de acordo, que Langley assuma a liderança disto e leve a operação para casa. Com todo o respeito, faz mais sentido. Temos o alcance e a capacidade, e temos a tecnologia.
— Mas nós temos a fonte — replicou Gabriel. — E nem todo o alcance e tecnologia do mundo a poderão substituir. Encontrámo-lo, queimámo-lo e recrutámo-lo. É nosso.
— E agora — disse Payne — vão entregar-no-lo.
— Desculpa, Morris, mas receio que isso não vá acontecer.
Gabriel olhou de soslaio para a ponta da mesa e viu Adrian Carter a tentar conter um sorriso. Dificilmente poderia ser considerado um começo auspicioso. Infelizmente, tudo declinou rapidamente a partir daí.
Ergueram-se vozes, esmurrou-se a mesa, proferiram-se ameaças. Ameaças de retaliação. Ameaças de suspensão de cooperação e retenção de ajudas fundamentais. Há não muito tempo, Gabriel poderia ter-se dado ao luxo de expor o bluff do diretor. Agora, tinha de proceder com cautela. Os britânicos não eram os únicos que estavam dependentes do poderio tecnológico de Langley. Israel precisava dos americanos ainda mais, e, sob nenhumas circunstâncias, Gabriel poderia dar-se ao luxo de alienar o seu mais valioso parceiro estratégico e operacional. Para além disso, apesar de toda a sua arrogância e fanfarronice, Morris Payne era um amigo que, globalmente, via o mundo da mesma forma que Gabriel. O seu predecessor, um falante fluente de árabe, fizera questão de se referir a Jerusalém como Al-Quds. Definitivamente, as coisas poderiam ser piores.
Perante a sugestão de Graham Seymour, fizeram uma interrupção para comer e beber. Depois disso, o ambiente tornou-se consideravelmente mais leve. Morris Payne admitiu que, durante o voo que atravessara o Atlântico, tivera tempo de examinar o processo da CIA sobre Gabriel.
— Tenho de o dizer, foi uma leitura impressionante.
— Surpreende-me que tenham conseguido fazer o processo caber dentro do vosso avião.
O sorriso de Payne foi genuíno.
— Ambos crescemos em quintas — disse ele. — A nossa ficava num recanto remoto da Dakota do Sul e a vossa no Vale de Jezreel.
— Junto de uma povoação árabe.
— Nós não tínhamos árabes. Só ursos e lobos.
Desta vez, foi Gabriel que sorriu. Payne mordiscou a ponta de uma sandes em miniatura ressequida.
— Já operaste no Norte de África anteriormente. Pessoalmente, quero dizer. Estiveste envolvido na operação Abu Jihad, na Tunísia, em 88. Tu e a tua equipa aterraram na praia e rebentaram caminho até ao interior da villa dele. Mataste-o no escritório, à frente dos filhos. Estava a ver vídeos da Intifada nesse preciso momento.
— Isso não é verdade — disse Gabriel passado um momento.
— Que parte?
— Não matei o Abu Jihad à frente da família. A filha dele entrou no escritório depois de ele já estar morto.
— O que é que fizeste?
— Disse-lhe para ir tomar conta da mãe. E, depois, fui-me embora.
Um silêncio abateu-se sobre a divisão. Foi Morris Payne quem o quebrou.
— Achas que consegues fazer isso outra vez? Em Marrocos?
— Estás a perguntar-me se temos essa capacidade?
— Faz-me a vontade — disse Payne.
Marrocos, respondeu Gabriel, estava perfeitamente dentro do alcance operacional do Departamento.
— Vocês têm relações razoáveis com o rei — assinalou Payne. — Relações que poderiam ser ameaçadas se algo corresse mal.
— Vocês também — respondeu Gabriel.
— Têm intenção de trabalhar com os serviços marroquinos?
— Vocês trabalharam com os paquistaneses quando foram atrás do Bin Laden?
— Vou considerar isso um «não».
— Muito provavelmente — disse Gabriel —, o Saladino está escondido em circunstâncias semelhantes àquelas em que o Bin Laden vivia em Abbottabad. Mais ainda, goza da proteção de um senhor da droga, um homem que, indubitavelmente, tem amigos em posições importantes. Contar aos marroquinos sobre a operação seria como contar ao próprio Saladino.
— Tens mesmo a certeza de que ele está realmente lá?
Gabriel colocou os dois retratos-robô sobre a mesa. Bateu suavemente sobre o primeiro, Saladino como aparecera na primavera de 2012, pouco depois de o ISIS se ter instalado na Líbia.
— Parece-se muitíssimo com o homem que eu vi no átrio do Four Seasons, em Georgetown, antes do atentado. Vê as gravações de videovigilância do hotel. Tenho a certeza de que vais chegar à mesma conclusão. — Gabriel bateu suavemente no segundo retrato. — E esta é a aparência dele agora.
— Segundo um traficante de droga chamado Jean-Luc Martel.
— Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, Morris. Às vezes são eles que nos escolhem a nós.
— Confias nele?
— Nada.
— Estás preparado para ir para a guerra com ele?
— Tens uma ideia melhor?
Era óbvio que não tinha.
— E se o Saladino não morder o isco?
— Acabou de perder cem milhões de euros em haxixe. E o césio.
O americano olhou para Paul Rousseau.
— O vosso pessoal conseguiu identificar a origem?
— A explicação mais provável — disse Rousseau — é que tenha vindo da Rússia ou de uma das antigas repúblicas soviéticas ou satélites. Os soviéticos usaram o césio de forma bastante indiscriminada e deixaram recipientes da substância espalhados um pouco por todo o lado, nas regiões rurais. Também é possível que tenha vindo da Líbia. Os rebeldes e as milícias invadiram as instalações nucleares líbias quando o regime colapsou. A AIEA estava particularmente preocupada com as instalações de pesquisa de Tajura. Talvez tenhas ouvido falar delas.
Payne indicou que sim.
— Quando é que o vosso governo está a planear fazer o anúncio?
— Sobre o quê?
— O césio! — explodiu Payne.
— Não estamos.
Payne pareceu incrédulo. Foi Gabriel que explicou.
— Um anúncio alarmaria desnecessariamente o público. E, mais importante do que isso, alertaria o Saladino e a sua rede para o facto de o material radiológico ter sido descoberto.
— Então, e se houve outro carregamento de césio que conseguiu passar? O que é que vai acontecer se uma bomba suja explodir no meio de Paris? Ou de Londres? Ou de Manhattan, já agora?
— Tornar a questão pública não fará com que isso seja nem mais nem menos provável. Contudo, manter o silêncio tem as suas vantagens. — Gabriel colocou uma mão no ombro de Graham Seymour. — Tiveste a oportunidade de ler o processo dele, diretor Payne? O pai do Graham trabalhou para os serviços secretos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Para o Comité da Dupla Cruz. Não disseram aos alemães quando detiveram os espiões deles na Grã-Bretanha. Mantiveram os espiões capturados vivos nas mentes dos seus superiores alemães e usaram-nos para fornecer informação enganosa ao Hitler e aos seus generais. E os alemães nunca tentaram substituir esses espiões capturados porque acreditavam que eles continuavam em funções.
— Portanto, se o Saladino pensar que o material conseguiu passar, não vai tentar enviar mais, é isso que estás a dizer?
Gabriel ficou em silêncio.
— Nada mau — disse o americano, sorrindo.
— Este não é o nosso primeiro rodeo.
— Tinham rodeos no Vale de Jezreel?
— Não — disse Gabriel. — Não tínhamos.
Depois disso, havia apenas um assunto final para tratar. Não era algo que pudesse ser abordado diante de uma sala cheia de espiões. Era uma questão bilateral, que precisava de ser gerida ao mais alto nível, chefe com chefe. Uma sala lateral sossegada não seria suficiente. Apenas o jardim amuralhado, com as suas fontes em ruínas e caminhos cobertos de erva, proporcionava o nível necessário de privacidade.
Apesar de ser pleno verão, o tempo estava fresco e cinzento e as sebes excessivamente grandes pingavam devido a um aguaceiro recente. Gabriel e Morris Payne caminharam lado a lado, lenta e pensativamente, separados no máximo por três centímetros. Vistos das janelas com estrutura de chumbo da antiga casa senhorial, faziam um par improvável: o americano grande, corpulento, das Dakotas; o diminuto israelita do antigo Vale de Jezreel. Morris Payne, sem casaco, gesticulava amplamente enquanto explicava os seus argumentos. Gabriel, a ouvir, esfregava o fundo das costas e, quando apropriado, assentia em concordância.
Cinco minutos depois de terem começado a conversa, pararam e viraram-se de frente um para outro, como se estivessem a confrontar-se. Morris Payne espetou um dedo indicador grosso no peito de Gabriel, dificilmente um sinal encorajador, mas Gabriel limitou-se a sorrir e a retribuir o favor. Depois, ergueu a mão esquerda sobre a cabeça e moveu-a de forma circular enquanto a direita pairava com a palma para baixo à altura da sua anca. Desta vez, foi Morris Payne que assentiu com a cabeça em aprovação. Aqueles que observavam a partir do interior perceberam o significado do momento. Fora alcançado um acordo operacional. Os americanos lidariam com os céus e a parte cibernética, os israelitas comandariam as operações no terreno e, caso surgisse a oportunidade, limpariam discretamente o sebo a Saladino.
Com isso, viraram-se para trás e começaram a dirigir-se novamente para a casa. Foi evidente para os que observavam do interior que Gabriel estava a dizer algo que desagradou intensamente a Morris Payne. Houve outra pausa e mais dedos apontados na direção dos peitos. Então, Payne virou o seu grande rosto de Ilha da Páscoa na direção do céu cinzento e exalou um suspiro de capitulação. Ao passar pela sala de reuniões, agarrou no casaco que repousava nas costas da cadeira e dirigiu-se para o exterior, seguido pela sua equipa executiva carrancuda e, alguns passos atrás, por Adrian Carter e Kyle Taylor. Gabriel e Graham Seymour acenaram-lhes a partir do pórtico como se estivessem a despedir-se de companhia indesejada.
— Conseguiste tudo o que querias? — perguntou Seymour através de um sorriso gelado.
— É o que vamos ver daqui a um minuto.
A formação de americanos estava agora a começar a dividir-se em células menores, com cada célula a dirigir-se para o jipe que a aguardava. Morris Payne deteve-se subitamente e chamou Carter para que se juntasse a ele. Carter separou-se dos restantes operacionais e, observado invejosamente por Kyle Taylor, entrou no jipe do diretor.
— Como é que conseguiste isso? — perguntou Seymour enquanto a caravana ribombante voltava à vida.
— Pedi com jeitinho.
— Quanto tempo é que achas que ele vai sobreviver?
— Isso — disse Gabriel — depende inteiramente do Saladino.
44
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Na manhã seguinte, toda a Avenida Rei Saul se preparou para a batalha. Até mesmo Uzi Navot, que se ocupara de outras operações durante as ausências prolongadas de Gabriel, se viu arrastado pelos intensos preparativos. Tiveram de dar o corpo ao manifesto, como se costuma dizer. O Departamento tinha lutado para assumir o controlo da operação e tinha saído airoso dessa luta. Porém, o triunfo implicava a enorme responsabilidade de fazer as coisas bem-feitas. Não havia notícia de uma operação de assassinato seletivo de semelhante calibre desde o ataque americano ao complexo de Osama Bin Laden em Abbottabad. Saladino controlava os meandros de uma rede terrorista internacional que provara ser capaz de atacar praticamente onde quisesse, uma rede que se apropriara de material radioativo para fabricar uma bomba suja mesmo às portas da Europa Ocidental. A aposta não podia ser mais alta, tinham-no bem presente a cada passo. A segurança do mundo civilizado estava literalmente em jogo. Tal como a carreira de Gabriel. O sucesso pouco acresceria à sua reputação. Já o fracasso, pelo contrário, invalidaria toda a trajetória anterior e incluiria o seu nome na lista de diretores caídos em desgraça, que ambicionaram muito e por isso mesmo pereceram.
Se estava preocupado com os possíveis danos infligidos ao seu legado pessoal como consequência de um fracasso, não o demonstrava, nem sequer na presença de Uzi Navot, que tinha aberto um sulco na alcatifa que ligava a sua porta e o gabinete que pouco antes fora seu, à custa de um ir e vir constante. Corria o boato de que Navot tinha tentado dissuadir Gabriel, que tinha aconselhado o antigo rival a deixar Jean-Luc Martel e Saladino nas mãos dos americanos e a centrar-se em assuntos mais próximos das suas fronteiras, como os iranianos. Para Navot, os riscos da operação eram demasiado altos e a recompensa demasiado baixa. Pelo menos era essa a versão que circulava pelos corredores e salas de acesso restrito da Avenida Rei Saul. Contudo, segundo reza a história, Gabriel recusara-se a ceder o controlo da operação. «E porque é que haveria de o fazer?», perguntou sagazmente um membro da divisão de Viagens. Saladino tinha levado a melhor a Gabriel naquela noite horrível, em Washington. E ainda havia Hannah Weinberg, claro está, a amiga e antiga cúmplice de Gabriel assassinada por Saladino em Paris. Não, concluiu o sagaz comentador, Gabriel não ia deixar Saladino nas mãos dos seus amigos de Washington. Ia enterrá-lo a sete palmos abaixo da terra. De facto, se tivesse oportunidade, possivelmente matá-lo-ia com as próprias mãos. Para ele já não se tratava de um assunto profissional, mas estritamente pessoal.
Mas um envolvimento pessoal numa operação era muitas vezes perigoso. Ninguém o sabia melhor do que o próprio Gabriel; a sua carreira falava por si. Assim, deixou Uzi Navot e os outros membros da sua equipa pessoal ultimarem todos os detalhes. Organizativamente, foi Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais quem se ocupou de planificar e levar a cabo a missão. Supervisionado por Gabriel, colocou rapidamente cada peça no devido lugar. Marrocos não era o Líbano nem a Síria, mas nem por isso deixava de ser um território hostil. Vinte vezes maior do que Israel, era um país vasto e de geografia variada, com planícies agrícolas, montanhas abruptas, desertos de areia do Saara e grandes cidades como Casablanca, Rabat, Tânger, Fez e Marraquexe. Encontrar Saladino, mesmo contando com a ajuda de Jean-Luc Martel, seria uma missão árdua. Matá-lo sem causar baixas colaterais e sair do país com certas garantias de segurança seria uma das provas mais difíceis que o Departamento tinha enfrentado ao longo da sua história.
A faixa costeira favorecia-os, tal como na Tunísia em abril de 1988. Naquela noite, Gabriel e uma equipa de vinte e seis membros da unidade de elite Sayeret Matkal tinham desembarcado de lanchas pneumáticas a curta distância da casa de Abu Jihad e, cumprida a missão, tinham partido da mesma maneira. Durante as semanas anteriores à intervenção, ensaiaram incalculáveis vezes o desembarque numa praia de Israel. Até construíram em pleno Negev um cenário semelhante à casa de Abu Jihad para que Gabriel ensaiasse a forma de chegar da porta de entrada até ao escritório do primeiro andar onde o número dois da OLP costumava passar as tardes. Porém, tais preparativos eram impossíveis no caso de Saladino já que ignoravam em que lugar de Marrocos se escondia. A bem da verdade, nem sequer tinham a certeza de que se encontrasse no país. A única coisa que sabiam era que um homem cuja descrição correspondia à sua tinha sido visto em Marrocos uns meses antes, depois dos atentados de Washington. Dispunham, pois, de muito menos informação do que os americanos antes da intervenção em Abbottabad. E tinham bem mais que perder.
Daí que tivessem de estar preparados para qualquer eventualidade ou, pelo menos, para tantas como pudessem razoavelmente prever. Faria falta uma equipa muito numerosa, maior do que em operações passadas, e todos os seus membros precisariam de um passaporte. A divisão de Identidade, a secção do Departamento que se encarregava de fornecer documentação aos agentes, esgotou rapidamente os seus recursos e Gabriel teve de pedir aos seus parceiros (franceses, britânicos e norte-americanos) que suprissem essa carência. Inicialmente, o pedido foi acolhido com reticências, mas graças à insistência de Gabriel todos acabaram por ceder. Os americanos até acabaram por concordar em reativar um velho passaporte em nome de Jonathan Albright com uma fotografia que recordava vagamente Gabriel.
— Diz-me que não estás a pensar em ir — disse Adrian Carter durante uma videoconferência segura.
— No verão? Ah, não — respondeu Gabriel. — Nem pensar. Nessa época do ano está demasiado calor em Marrocos.
Tinham de alugar carros e motas, reservar bilhetes de avião sem data de regresso e procurar alojamento. A maioria da equipa ficaria em hotéis nos quais estaria exposta à vigilância do serviço de segurança interna de Marrocos, a Direction de la Surveillance du Territoire ou DST. Mas, para instalar o posto de comando, Gabriel precisava de uma casa segura em condições. Foi Ari Shamron, da sua casa-fortaleza em Tiberíades, que deu com a solução. Tinha um amigo (um abastado empresário judeu marroquino que tinha fugido do país em 1967 depois do cataclismo da Guerra dos Seis Dias) que ainda possuía uma moradia no antigo bairro colonial de Casablanca. A casa estava vazia nesse momento, à exceção dos caseiros, um casal que vivia numa casa de hóspedes no seio da propriedade. Shamron recomendou que comprassem o imóvel em vez de o alugarem por um período breve e Gabriel concordou. Por sorte, o dinheiro não era um impedimento: Dmitri Antonov, apesar dos seus dispêndios mais recentes, continuava a nadar nele. Passou um cheque pelo valor total da compra e enviou um advogado francês (que na realidade era um agente do Grupo Alfa) a Casablanca para levantar a escritura. Ao acabar o dia, o Departamento estava na posse de uma base operativa bem no centro da cidade. Já só faltava Saladino.
A sua rede não deu mostras de atividade durante aqueles longos dias de planificação. Não houve atentados, nem dirigidos a alvos específicos, nem de lobos solitários, mas os diversos canais do ISIS nas redes sociais fervilhavam de rumores. Estava a tramar-se algo muito grande, diziam, algo que eclipsaria os atentados de Washington e Londres, o que contribuiu para aumentar a tensão dentro de Avenida Rei Saul, em Langley e em Vauxhall Cross. Tinham de retirar Saladino da circulação o mais depressa possível.
Mas será que a sua morte poria fim ao massacre? A sua rede morreria com ele?
— É improvável — assegurava Dina Sarid.
De facto, o seu maior temor era que Saladino tivesse criado dentro da rede terrorista uma espécie de interruptor de emergência: um mecanismo que desencadearia automaticamente uma série de ataques homicidas caso ele morresse. Por outro lado, o ISIS já tinha demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Se o califado no Iraque e na Síria se perdesse fisicamente, afirmava Dina, erguer-se-ia em seu lugar um califado virtual. Um «cibercalifado», como ela o chamava, no qual as velhas normas não teriam aplicação. Os futuros mártires radicalizar-se-iam em meandros recônditos da dark net e seriam conduzidos para os seus alvos por cérebros criminosos que não conheciam pessoalmente. Assim era o admirável mundo novo gerado pela Internet, pelas redes sociais e pelas mensagens encriptadas.
Não obstante, tinha uma preocupação mais imediata: os trezentos gramas de cloreto de césio depositados num laboratório estatal, nos arredores de Paris. O cloreto de césio que, no entender de Saladino, permanecia a bordo de um cargueiro apreendido no porto de Toulon. Mas teria enviado o arsenal completo num só barco ou parte dele encontrar-se-ia já em poder de uma célula terrorista disposta a atentar? A próxima bomba que rebentasse numa cidade europeia conteria um núcleo radioativo? À medida que passavam os dias sem terem notícias do fornecedor marroquino de Jean-Luc Martel, Paul Rousseau e o ministro francês começaram a perguntar-se se não estaria na hora de advertir os seus homólogos europeus da grave ameaça. Mas Gabriel, com a ajuda de Graham Seymour e dos americanos, convenceu-os a permanecerem em silêncio. Uma advertência, mesmo que formulada em linguagem rotineira, implicava o risco de pôr a descoberto a operação. Haveria fugas de informação; era inevitável. E se a notícia se espalhasse, Saladino chegaria à conclusão de que existia um vínculo entre a apreensão dos seus carregamentos de haxixe e a apreensão do pó radioativo oculto dentro de uma bobina de cabo elétrico.
— Se calhar ele já chegou a essa conclusão — comentou Rousseau, pesaroso. — Talvez nos tenha voltado a bater aos pontos.
Intimamente, Gabriel também o temia. E o mesmo podia dizer dos americanos, que, durante uma acalorada videoconferência celebrada na segunda sexta-feira de agosto, lhe exigiram de novo que deixasse Jean-Luc Martel nas suas mãos e cedesse o controlo da operação a Langley. Gabriel opôs-se e, quando os americanos insistiram, fez a única coisa que podia fazer: desejou-lhes um bom fim de semana e a seguir ligou a Chiara para a informar de que nesse Shabbath iriam jantar a Tiberíades.
45
TIBERÍADES, ISRAEL
Tiberíades, uma das quatro cidades santas do judaísmo, está situada na margem ocidental dessa massa de água à qual os israelitas chamam lago Kinneret e o resto do mundo conhece como Mar da Galileia. Para lá dos seus arrabaldes encontra-se a pequena moshav de Kfar Hittim, que se erige no lugar em que, numa abrasadora tarde de verão de 1187, o verdadeiro Saladino derrotou os exércitos cruzados enlouquecidos pela sede numa batalha decisiva que devolveu o controlo de Jerusalém aos muçulmanos. Saladino não mostrou piedade alguma pelos seus inimigos apesar de os ter derrotado. Decepou pessoalmente o braço a Renaud de Châtillon na sua tenda quando o francês se recusou a converter-se ao islamismo. Condenou o resto dos cruzados sobreviventes à morte por decapitação, o castigo habitual no caso dos infiéis.
Mais ou menos a um quilómetro a norte de Kfar Hittim havia um promontório rochoso do qual se avistava o lago e a abrasadora planície onde se travara a antiga batalha. Fora precisamente esse o sítio escolhido por Ari Shamron para instalar o seu lar. Afirmava que, quando o vento soprava na direção adequada, podia ouvir o chocar das espadas e os lamentos dos moribundos. Dizia que lhe recordavam a transitoriedade do poder político e militar naquele turbulento recanto do Mediterrâneo oriental. Cananeus, hititas, amalequitas, moabitas, gregos, romanos, persas, árabes, turcos, britânicos... Todos eles tinham chegado àquelas terras e tinham partido. Os judeus, apesar de todas as hipóteses desfavoráveis, tinham conseguido representar o que sem dúvida era o segundo ato mais impressionante da História: dois milénios após a queda do Segundo Templo, tinham regressado à cena. Mas, dando ouvidos à própria História, os seus dias naquela região estavam contados.
Há poucas pessoas que possam afirmar que ajudaram a erguer um país. E menos ainda um serviço secreto. Ari Shamron, no entanto, tinha conseguido fazer ambas as coisas. Nascido no Leste da Polónia, emigrou para o protetorado britânico da Palestina em 1937, quando a calamidade se abatia sobre os judeus de toda a Europa, e combateu na guerra que se desencadeou depois da fundação do Estado de Israel em 1948. No rescaldo do conflito, enquanto o mundo árabe maquinava para estrangular o novo Estado judeu ainda no berço, Shamron integrou-se num pequeno organismo ao qual os seus membros simplesmente chamavam «o Departamento». Entre as suas primeiras missões constou a identificação e assassinato de vários cientistas nazis que estavam a ajudar o mandatário egípcio Gamal Abdel Nasser a construir uma bomba atómica. Mas a façanha que coroou a sua carreira como agente no ativo não teve como cenário o Médio Oriente, mas sim uma esquina de uma rua do bairro industrial de San Fernando, em Buenos Aires. Ali, numa noite chuvosa de maio de 1960, Shamron introduziu Adolf Eichmann, o artífice da Solução Final, à força na parte de trás de um carro, naquela que foi a primeira escala de uma viagem que, para Eichmann, concluiria numa forca israelita.
Já para Shamron, aquilo foi só o princípio. Poucos anos depois, atribuíram-lhe a direção dos serviços secretos a cuja criação tinha assistido, logo, a defesa da nação. Da sua guarida na Avenida Rei Saul, com os seus arquivos de metal cinzento e um permanente fedor a tabaco turco, Shamron infiltrou os seus agentes nas cortes de monarcas, roubou segredos a tiranos e eliminou incontáveis inimigos. Manteve-se no cargo bem mais tempo do que os seus predecessores e, no final dos anos noventa, depois de uma série de falhanços operacionais, abandonou felizmente a sua reforma para endireitar o rumo da nave e devolver o antigo esplendor ao Departamento. Encontrou um cúmplice num agente de campo que se tinha encerrado para chorar as suas mágoas numa casinha de campo nas margens de Helford Passage, na Cornualha. Agora, por fim, o destino do Departamento estava entregue a esse agente. E o fardo de preservar as duas criações de Shamron (o seu país e os serviços secretos nacionais) recaía sobre os seus ombros.
Shamron fora escolhido para capturar Eichmann devido às suas mãos, anormalmente grandes e fortes para um homem de tão baixa estatura. Quando Gabriel entrou na casa carregando um filho em cada braço, essas mãos estavam pousadas sobre o cabo de uma bengala de oliveira. Gabriel deixou as crianças ao cuidado de Shamron e regressou ao seu jipe blindado para ir buscar as três travessas de comida que Chiara tinha preparado nessa mesma tarde. Gilah, a sofrida esposa de Shamron, acendeu as velas do Shabbath ao pôr-do-sol enquanto o marido recitava as bênçãos do pão e do vinho com o sotaque yiddish da sua infância passada na Polónia. Por um instante, Gabriel teve a impressão de que não existiam nem a operação nem Saladino, mas só a sua família e a sua fé.
Mas foi uma sensação efémera. Efetivamente, durante o jantar, enquanto os restantes conversavam sobre política e lamentavam o matsav, a situação, Gabriel distraía-se e de vez em quando olhava para o telemóvel. Shamron, que o vigiava da cabeceira da mesa, sorriu. Não lhe ofereceu palavras tranquilizadoras para aliviar o seu evidente mal-estar. Para Shamron, as operações de espionagem eram como o oxigénio: até uma má operação era melhor do que nenhuma.
Quando acabaram de jantar, Gabriel seguiu-o até à divisão do rés-do-chão que lhe servia de escritório e oficina. As peças de um rádio antigo estavam espalhadas pela bancada de trabalho como os escombros de um bombardeio. Shamron sentou-se e, com um estalo do seu velho isqueiro Zippo, acendeu um dos seus famigerados cigarros turcos. Gabriel desviou o fumo e contemplou as lembranças pulcramente dispostas nas estantes. Reparou logo numa fotografia emoldurada de Shamron e Golda Meir tirada no dia em que ela lhe ordenou «mandar os rapazes» vingar a morte dos onze treinadores e atletas israelitas assassinados nos Jogos Olímpicos de Munique. Perto da fotografia havia um estojo de vidro do tamanho aproximado de uma caixa de charutos. Lá dentro, dispostos sobre um pano escuro, descansavam onze cartuchos de calibre 22.
— Estão aqui guardados para ti — comentou Shamron.
— Não os quero.
— E porquê?
— São macabros.
— Foste tu que descobriste como enfiar onze balas num carregador de dez, não fui eu.
— Talvez me dê medo que um dia alguém tenha uma caixa como essa numa estante, com o meu nome escrito.
— Podes contar com isso, meu filho. — Shamron acendeu a luz de trabalho apetrechada com uma lupa.
— Vejo-te muito comedido.
— O que é que isso quer dizer?
— Não me perguntaste nem uma só vez pela operação.
— Porque é que haveria de o fazer?
— Porque és patologicamente incapaz de não te meter nos assuntos alheios.
— Razão pela qual sou espião. — Shamron ajustou a lupa para examinar um troço de circuito muito desgastado.
— Que tipo de rádio é que é?
— Um RCA Catalin, um modelo art déco com carcaça de polímero marmoreado. Onda curta e normal. Foi fabricado em 1946. Imagina — acrescentou Shamron assinalando o autocolante de papel original colado na base do rádio — que algures na América, em 1946, alguém estava a montar este rádio enquanto pessoas como os teus pais tentavam recompor as suas vidas.
— É um rádio, Ari. Não tem nada que ver com a Shoah.
— Era só um comentário. — Shamron sorriu. — Pareces tenso. Tens alguma preocupação?
— Não, nenhuma.
Permaneceram em silêncio enquanto Shamron continuava a manusear as suas ferramentas. Reparar rádios antigos era o seu único passatempo, para além de se intrometer na vida de Gabriel.
— O Uzi disse-me que estás a pensar em ir a Marrocos — disse por fim.
— Porque é que te disse isso?
— Porque não conseguiu dissuadir-te e pensou que eu talvez fosse capaz.
— Ainda não tomei uma decisão.
— Mas pediste aos americanos para te renovarem o passaporte.
— Para o reativarem — esclareceu Gabriel.
— Renovar, reativar... o que é que interessa? Para começar, nunca o devias ter aceitado. Estava melhor num pequeno caixão de vidro, tal como aqueles cartuchos.
— Foi uma ajuda preciosa em inúmeras ocasiões.
— Azul e branco — afirmou Shamron. — Fazemos as nossas coisas e não ajudamos os outros a resolver problemas que eles próprios criaram.
— Talvez antes fosse assim — respondeu Gabriel —, mas já não, não podemos continuar a operar desse modo. Precisamos de aliados.
— Os aliados arranjam sempre maneira de te dececionar. E esse passaporte não te vai servir de nada se alguma coisa correr mal em Marrocos.
Gabriel apanhou o estojo com os vinte e dois cartuchos de bala usados.
— Se não me falha a memória, e de certeza que não, tu estavas no banco de trás de um carro estacionado na Piazza Annibaliano enquanto eu me ocupava do Zwaiter naquele bloco de apartamentos.
— Naquele tempo era o chefe das Operações Especiais. Tinha de estar em campo, era a minha obrigação. Um exemplo mais adequado — continuou Shamron — seria o de Abu Jihad. Então já era diretor e fiquei a bordo do barco enquanto tu e o resto da equipa iam para terra.
— Com o ministro da Defesa, se não me falha a memória.
— Foi uma operação importante; quase tão importante — disse Shamron baixinho — como a que estás prestes a levar a cabo. Está na hora de o Saladino sair de cena, sem cumprimentar o público nem fazer encores. Mas tenta garantir que não consegue aquilo de que anda desesperadamente à procura.
— O quê?
— Tu.
Gabriel devolveu o estojo à estante.
— Permites-me que te faça uma ou duas perguntas? — disse Shamron.
— Se isso te faz feliz...
— Vias de escape?
Gabriel explicou-lhe que teria duas: uma corveta israelita e um cargueiro de bandeira liberiana, o Neptune, que era na realidade uma estação de radar e escuta operada pelo AMAM, o serviço de espionagem do exército israelita. O Neptune estaria ancorado em frente a Agadir, na costa atlântica de Marrocos.
— E a corveta? — perguntou Shamron.
— Num pequeno porto do Mediterrâneo chamado El Jebha.
— Imagino que é aí que desembarcará a equipa da Sayeret.
— Só se o considerar necessário. Afinal de contas — explicou Gabriel —, disponho de um ex-agente da Sayeret e de um veterano do Serviço Aéreo Especial britânico.
— Para quem será uma missão mais do que suficiente manter sob controlo esse tal Jean-Luc Martel. — Shamron abanou a cabeça lentamente. — Às vezes, o pior ao recrutar um colaborador é que depois não te podes livrar dele. Faças o que fizeres, não te fies dele.
— Nem me passa pela cabeça.
O cigarro de Shamron tinha-se apagado. Acendeu outro e continuou a trabalhar no rádio enquanto Gabriel contemplava a fotografia da estante tentando associar a imagem a preto e branco de um espião na flor da idade com o idoso que tinha à frente dos olhos. Tinha sucedido tão depressa... Em breve, pensou, acontecer-lhe-ia o mesmo a ele. Nem sequer Raphael e Irene podiam impedir o inevitável.
— Não vais atender? — perguntou Shamron de repente.
— Atender o quê?
— O telefone. Está a distrair-me.
Gabriel olhou para baixo. Estava tão ensimesmado que não tinha ouvido a mensagem enviada do andar seguro de Ramatuelle.
— E então? — perguntou Shamron.
— Parece que o Mohammad Bakkar quer falar com o Jean-Luc Martel sobre essa droga que se extraviou. Pergunta se pode ir a Marrocos no princípio da semana que vem.
— Estará disponível?
— O Martel? Acho que podemos encontrar um buraco na sua agenda.
Sorridente, Shamron ligou o rádio à tomada da bancada e acendeu-o. Pouco depois, após uma tentativa de sintonização, ouviu-se uma melodia.
— Não a reconheço — disse Gabriel.
— Claro, és demasiado jovem. É Artie Shaw. A primeira vez que ouvi esta música... — Shamron deixou a frase em suspenso.
— Como é que se chama? — perguntou Gabriel.
— You’re a lucky guy: és um tipo sortudo. — Nesse momento apagou-se o rádio e a música parou. Shamron franziu a testa. — Ou talvez não.
46
CASABLANCA, MARROCOS
A estrada que ligava o Aeroporto Internacional Mohammed V de Casablanca ao centro da maior cidade e principal centro financeiro de Marrocos era formada por quatro faixas de rijo alcatrão negro como o breu pelo qual Dina, uma condutora temerária por natureza e nacionalidade, conduzia com extraordinário cuidado.
— O que é que te preocupa tanto? — perguntou Gabriel.
— Tu — respondeu Dina.
— O que é que eu fiz desta vez?
— Nada. Mas é a primeira vez que faço de motorista do chefe.
— Bom — afirmou ele a olhar pela janela —, há uma primeira vez para tudo.
O saco de viagem de Gabriel descansava sobre o banco de trás. Já a pasta ia apoiada sobre os joelhos. Lá dentro estava o passaporte americano que lhe tinha permitido passar sem contratempos pelo controlo fronteiriço e pela alfândega marroquina. As coisas em Washington podiam ter mudado, mas ser americano continuava a ser uma vantagem em grande parte do mundo.
O trânsito estancou de repente.
— Uma operação stop — explicou Dina. — Estão por todo o lado.
— Achas que andam à procura de quê?
— Se calhar do chefe dos serviços secretos israelitas.
Uma fileira de cones cor de laranja desviava o trânsito para a berma, onde dois gendarmes inspecionavam os veículos e respetivos ocupantes, vigiados por um agente da DST vestido à paisana e com óculos de sol. Enquanto abria a janela, Dina dirigiu umas palavras a Gabriel em alemão, a língua correspondente à sua identidade fictícia e ao seu passaporte falso. Os aborrecidos gendarmes fizeram-lhe sinais para avançar como se espantassem moscas. O homem da DST parecia distraído.
Dina voltou a fechar rapidamente a janela para impedir que o denso e implacável calor exterior entrasse e pôs o ar condicionado no máximo. Passaram por umas grandes dependências militares. Depois apareceram de novo as terras agrícolas, pequenas parcelas de terra fértil e escura, cultivadas principalmente pelos habitantes das povoações próximas. A Gabriel, a mata de eucalipto lembrou-lhe de casa.
Por fim chegaram à periferia desigual de Casablanca, a segunda cidade mais populosa do Norte de África, só ultrapassada pela megalópole do Cairo. Os terrenos cultivados não desapareceram por completo: ainda se viam alguns entre os elegantes blocos de apartamentos recém-construídos e os bairros de lata que albergavam centenas de milhares das pessoas mais miseráveis em barracas feitas de chapas metálicas e blocos de cimento.
— Chamam-nos bidonvilles — comentou Dina apontando para um dos bairros de lata. — Calculo que soe melhor do que «subúrbios». Quem lá vive não tem nada. Nem água corrente, nem praticamente nada que levar à boca. De vez em quando, as autoridades tentam demoli-las, mas as pessoas voltam a construir as suas barracas. Que remédio é que têm? Não têm outro lugar para onde ir.
Passaram por um terreno de erva acastanhada e rala onde dois meninos descalços vigiavam um rebanho de cabras esqueléticas.
— Uma coisa que abunda nos bidonvilles é o Islão — prosseguiu Dina. — Cada vez mais radical, graças aos pregadores wahhabi e salafistas. Lembras-te dos atentados de 2003? Todos os rapazes que se imolaram provinham dos bidonvilles de Sidi Moumen.
Naturalmente que Gabriel se lembrava dos atentados, embora em grande parte do Ocidente tivessem caído no esquecimento: catorze bombas contra objetivos ocidentais e judeus, quarenta e cinco mortos, mais de uma centena de feridos. Foram obra de uma filial da Al-Qaeda conhecida como Salafia Jihadia que por sua vez estava vinculada ao Grupo Islâmico Combatente Marroquino. Apesar de toda a beleza natural e do turismo ocidental que visitava o país, Marrocos ainda era um viveiro de islamitas radicais no qual o ISIS estava profundamente enraizado, facto atestado pelas suas inúmeras células. Mais de mil e trezentos marroquinos tinham ido para o califado a fim de lutarem nas fileiras do ISIS (juntamente com várias centenas de cidadãos franceses, belgas e holandeses de origem marroquina), e os marroquinos tinham desempenhado um papel crucial na recente campanha terrorista do ISIS na Europa ocidental. E depois havia Mohammed Bouyeri, o marroquino holandês que tinha atingido a tiro e apunhalado o cineasta e escritor Theo van Gogh numa rua de Amesterdão. O crime não foi produto do ato espontâneo de um perturbado: Bouyeri fazia parte de uma célula de muçulmanos radicais oriundos do Norte de África e radicados em Haia conhecida como «Rede Hofstad». Os serviços de segurança marroquinos tinham conseguido desarticular as atividades dos seus extremistas no estrangeiro, mas dentro de portas continuavam a abundar as conspirações terroristas. O ministro do Interior tinha-se gabado há pouco tempo de que tinham desarticulado mais de trezentas, entre elas uma que incluía o uso de gás-mostarda. Na opinião de Gabriel, mais valia manter o silêncio sobre certas coisas.
Subiram uma lomba e o Atlântico azul pálido espraiou-se perante eles. O Morocco Mall, com os seus cinemas futuristas e lojas ocidentais, ocupava uma faixa de terra recém-urbanizada ao longo da costa. Dina seguiu a Corniche rumo ao centro urbano passando em frente de cafés, restaurantes e mansões de uma brancura resplandecente. Uma delas tinha o tamanho de um bloco de escritórios.
— Pertence a um príncipe saudita. E ali — disse Dina — fica o Four Seasons.
Abrandou para Gabriel poder dar uma espreitadela. No gradeamento que dava acesso aos jardins do hotel, dois guardas vestidos de escuro inspecionavam a parte de baixo de um carro que acabava de chegar, à procura de explosivos. Só quem passava a inspeção tinha autorização para aceder à avenida que conduzia ao estacionamento coberto do hotel.
— Há um magnetómetro do outro lado da porta — informou Dina. — Inspeciona a bagagem de todos os hóspedes sem exceção. Vamos ter de trazer as armas pela praia. Não constitui um problema.
— Achas que os rapazes da Salafia Jihadia também sabem disso?
— Espero que não — respondeu Dina com um dos seus raros sorrisos.
Continuaram a avançar pela Corniche deixando a imponente mesquita Hassan II, as muralhas exteriores da antiga medina e o imenso porto para trás. Entraram finalmente no antigo bairro colonial francês, com as suas largas e sinuosas alamedas e uma mistura única de arquitetura mourisca, art nouveau e art déco. Outrora, os vizinhos mais cosmopolitas de Casablanca passeavam-se por entre as elegantes colunas engalanados à última moda parisiense e jantavam nalguns dos melhores restaurantes do mundo. Agora, o bairro era um monumento à decadência e à insegurança cidadã. As flores de estuque das fachadas estavam cobertas de fuligem e o óxido apodrecia as balaustradas de ferro forjado. A classe abastada tentava não se aventurar para além dos modernos quartiers de Gauthier e Maarif, e o centro histórico tinha-se convertido no domínio daqueles que usavam véu ou jilaba e de vendedores de rua que apregoavam fruta estragada e cassetes económicas com sermões e versículos do Corão.
O único sinal de progresso era o flamejante elétrico que serpenteava pelo Boulevard Mohammed V, em frente de lojas encerradas e arcadas nas quais dormitavam indigentes sobre leitos de papelão. Dina seguiu um elétrico ao longo de vários quarteirões, depois virou para uma estreita rua secundária e encostou. De um lado havia um prédio de habitação de oito andares que parecia prestes ruir sob o peso das antenas parabólicas que brotavam como cogumelos das suas varandas. Do outro, erguia-se uma parede desconchavada e coberta de plantas trepadeiras, com uma porta de cedro que outrora teria estado ornamentada. Um cão ofegante e de aspeto feroz montava guarda diante dela.
— Porque é que parámos? — perguntou Gabriel.
— Porque já chegámos.
— Onde?
— Ao posto de comando.
— Deves estar a brincar.
— Não.
Gabriel olhou para o cão com desconfiança.
— E ele?
— É inofensivo. O preocupante são as ratazanas.
Nesse momento, uma ratazana escapuliu-se pelo passeio. Tinha o tamanho de um guaxinim. O cão encolheu-se, assustado. E o mesmo fez Gabriel.
— Se calhar devíamos voltar para o Four Seasons.
— Não é seguro.
— Este lugar também não é.
— Não é tão mau quando te acostumas.
— Como é por dentro?
Dina desligou o motor.
— Há fantasmas. Mas de resto é bastante agradável.
Passaram junto ao cão ofegante e, ao atravessar a porta de cedro, penetraram num paraíso escondido. Havia uma piscina de um azul-escuro, uma pista de ténis de terra batida e um jardim aparentemente infinito pejado de buganvílias, hibiscos, palmeiras e bananeiras. A casa, imensa, era de estilo tradicional marroquino, com pátios interiores de azulejos nos quais o murmúrio incessante de Casablanca se dissolvia no silêncio. As divisões labirínticas pareciam congeladas no tempo. Poderia ser 1967, o ano em que o proprietário enfiou alguns bens pessoais numa mala de viagem e fugiu para Israel. Ou quiçá, pensou Gabriel, uma época mais simpática. Um período em que naquele bairro todos falavam francês e se perguntavam quanto tempo é que os alemães demorariam a desfilar pelos Campos Elísios.
Os caseiros chamavam-se Tarek e Hamid. Tinham comprado o cargo aos seus predecessores, demasiado idosos para continuarem a tratar da propriedade. Evitavam o interior da casa e limitavam as suas atividades ao jardim e à casinha de hóspedes. Os respetivos filhos, netos e esposas viviam num bidonville próximo.
— Somos os novos donos — disse Gabriel. — Porque é que não podemos simplesmente despedi-los?
— Não é boa ideia — respondeu Yaakov Rossman.
Antes de ser transferido para o Departamento, Rossman tinha trabalhado para o Shabak, o serviço de segurança interior de Israel, a dirigir agentes que operavam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Falava árabe com fluência e era um perito em cultura árabe e islâmica.
— Se tentarmos livrarmo-nos deles, vai haver confusão. E isso podia afetar o nosso disfarce.
— Então damos-lhes uma indemnização generosa.
— Ainda era pior, porque viriam parentes de todos os cantos do país bater-nos à porta a pedir dinheiro. — Yaakov abanou a cabeça com um ar de reprovação. — Não sabes muito sobre esta gente, pois não?
— Então, ficamos com os caseiros — disse Gabriel. — Mas que parvoíce é essa de haver fantasmas na casa?
Estavam rodeados pelo fresco silêncio do pátio principal da casa. Yaakov olhou para Dina com nervosismo, ela por sua vez olhou para Eli Lavon. Foi Lavon, o amigo mais antigo de Gabriel, que por fim respondeu:
— Chama-se Aisha.
— A mulher de Maomé?
— Não, essa não. Outra Aisha.
— Outra como?
— É um jinn.
— Um quê?
— Uma espécie de demónio.
Gabriel olhou para Yaakov à procura de uma explicação.
— Os muçulmanos acham que Alá fez o homem a partir do barro. Pelo contrário, acham que os jinns são feitos de fogo.
— E isso é mau?
— Muito. De dia, os jinns vivem entre nós dentro de objetos inanimados e têm uma vida muito parecida à nossa. Mas à noite adotam a forma que lhes apetecer.
— Então são mutantes — disse Gabriel, cético.
— E malvados — acrescentou Yaakov com um assentimento grave. — O que mais gostam é de fazer mal aos humanos. A crença nos jinns está especialmente enraizada aqui, em Marrocos. Certamente é um vestígio das crenças berberes anteriores à chegada do Islão.
— Mas o facto de os marroquinos acreditarem neles não significa que sejam reais.
— Está no Corão — afirmou Yaakov na defensiva.
— Isso também não os torna reais.
Houve outra troca de olhares nervosos entre os três agentes veteranos do Departamento. Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas vocês não acreditam nessas baboseiras, pois não?
— Ontem à noite ouvimos imensos barulhos esquisitos dentro da casa — disse Dina.
— De certeza que está infestada de ratazanas.
— Ou de jinns — disse Yaakov. — Às vezes aparecem em forma de ratazanas.
— Achava que só havia um.
— A Aisha é a líder. Pelos vistos, há muitos mais.
— Quem é que o diz?
— O Hamid. É um especialista.
— Não me digas. E o que é que o Hamid sugere que façamos a esse respeito?
— Um exorcismo. A cerimónia dura dois dias e inclui o sacrifício de uma cabra.
— Podia obstaculizar a operação — concluiu Gabriel depois de ponderar devidamente a ideia.
— Sim, pois podia — concordou Yaakov.
— Não há outras medidas que possamos adotar, para além de um exorcismo em grande escala?
— A única coisa que podemos fazer é tentar que não se zangue.
— Quem? A Aisha?
— Quem é que havia de ser?
— E que coisas é que a irritam?
— Não podemos abrir as janelas, nem cantar, nem rir. E também não é permitido levantar a voz.
— Só isso?
— O Hamid aspergiu com sal, sangue e leite todos os cantos dos quartos.
— Que alívio.
— Também nos disse para não tomarmos duche à noite, nem usarmos a sanita.
— Porque não?
— Porque os jinns vivem debaixo de água. Se os incomodarmos...
— Sim?
— O Hamid diz que uma grande tragédia se abaterá sobre nós.
— Isso parece terrível. — Gabriel percorreu o belo pátio com o olhar. — Este lugar tem nome?
— Não, e se tem ninguém se lembra dele — respondeu Dina.
— Então, que nome é que vamos usar?
— Dar al-Jinns — propôs Lavon com um ar sombrio.
— Talvez a Aisha se zangue — disse Gabriel. — Proponham outro.
— Que tal Dar al-Jawasis? — perguntou Yaakov.
Sim, era melhor, pensou Gabriel. Dar al-Jawasis. A Casa dos Espiões.
Combinaram que as esposas e as filhas mais velhas de Tarek e Hamid lhes fariam uma refeição tradicional marroquina. Chegaram pouco depois: duas mulheres rechonchudas, tapadas pelo véu, e quatro raparigas bonitas, carregadas com cestos de verga que transbordavam de carne e verduras compradas nos bazares da medina velha. Passaram toda a tarde a cozinhar na enorme cozinha enquanto conversavam baixinho em darija, para não incomodarem os jinns. Pouco depois, a casa inteira cheirava a cominhos, gengibre, coentros e malagueta.
Gabriel espreitou para a cozinha por volta das sete da tarde e viu inúmeras travessas de saladas e aperitivos e enormes caçarolas de barro cheias de cuscuz e tagine. Havia comida suficiente para alimentar uma aldeia e, incentivadas por Gabriel, as mulheres convidaram o resto dos seus familiares do bairro onde viviam para partilharem do banquete. Comeram todos juntos no pátio grande (os marroquinos pobres e os quatro forasteiros que, segundo pensavam eles, eram europeus), sob um dossel de estrelas brancas como diamantes. Para ocultar que dominavam o árabe, Gabriel e os outros falaram unicamente em francês. Conversaram sobre os jinns, sobre as promessas frustradas da Primavera Árabe e sobre essa banda de assassinos que se fazia chamar Estado Islâmico. Tarek afirmou que vários jovens do seu bidonville, entre eles o filho de um primo afastado, tinham estado no califado. De vez em quando, a DST fazia uma rusga no bairro e levava os salafistas para a prisão de Temara para os interrogar através da tortura.
— Têm impedido muitos atentados — disse —, mas não tarda muito vai haver outro dos grandes, como o de 2003. É só uma questão de tempo.
O jantar terminou com esse mau augúrio. As mulheres e respetivos familiares regressaram ao bairro de barracas, levando os restos de comida, e Tarek e Hamid foram para o jardim vigiar os jinns. Gabriel, Yaakov, Dina e Eli Lavon desejaram boa noite e retiraram-se para os quartos. O de Gabriel tinha vista para o mar. Um dos caseiros tinha traçado um círculo a carvão à volta da cama para o proteger dos demónios, e nos quatro cantos havia gotas de sangue misturado com leite e sal. Exausto, Gabriel caiu de imediato num sono profundo, do qual acordou pouco antes do amanhecer com a necessidade imperiosa de aliviar a bexiga. Passou um bom bocado deitado na cama a pensar no que devia fazer, até que por fim viu as horas no telemóvel. Passavam poucos minutos das cinco da madrugada. Amanhecia às 6h49. Fechou os olhos. Não convinha tentar a sorte, pensou. Era melhor não incomodar a Aisha nem os seus amigos.
47
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela manhã, Jean-Luc Martel, hoteleiro, restaurador, fabricante de roupa, joalheiro, narcotraficante internacional e colaborador da espionagem francesa e israelita, subiu a bordo do seu avião privado Gulfstream, o JLM Deux, no Aeroporto Côte d’Azur de Nice com destino a Casablanca, acompanhado pela namorada e pelos supostos amigos, os que viviam na colossal villa no lado oposto da baía, bem como por um espião britânico que até há pouco tempo ganhava a vida como assassino profissional. Nos anais da guerra global contra o terrorismo, nenhuma operação tinha tido tal começo. Era, todos concordavam, a primeira vez. E contra toda a lógica e sem qualquer justificação, confiavam que fosse também a última.
Martel enviara duas limusinas Mercedes para levar a comitiva do aeroporto para o Four Seasons. Passaram a rugir à frente dos brilhantes blocos de apartamentos e dos sujos bidonvilles e seguiram pela Corniche, à velocidade de comitiva oficial até à entrada fortificada do hotel. A sua chegada tinha sido previamente anunciada, de maneira que, depois de uma inspeção superficial aos veículos, puderam aceder ao parque de estacionamento, onde um pequeno batalhão de empregados aguardava para os receber. Abriram-se as portas e os empregados carregaram uma montanha de malas nos seus carrinhos. De seguida, a bagagem e os seus proprietários atravessaram o arco do magnetómetro. Foram todos admitidos de imediato, exceto Christopher Keller, que fez soar o alarme duas vezes. O chefe de segurança do hotel, ao não encontrar qualquer objeto suspeito na posse de Keller, comentou em jeito de brincadeira que devia ser feito de metal. O sorriso tenso e hostil do britânico não contribuiu para dissipar as suas suspeitas.
Um silêncio monástico pendia sobre o ar fresco do hall climatizado. Era pleno verão em Marrocos, logo, temporada baixa para os hotéis da praia. Seguidos pela caravana de malas, JLM e os seus acompanhantes encaminharam-se para a receção: Martel e Olivia Watson vestidos de branco brilhante; Mikhail e Natalie fingindo-se aborrecidos; e Keller incomodado ainda pelo tratamento que lhe tinham dado à porta. O diretor do hotel entregou-lhes as chaves dos seus quartos (Monsieur Martel gozava, como de costume, da mordomia de fazer o check-in antecipadamente) e dedicou-lhes umas sumptuosas palavras de boas-vindas.
— Jantam esta noite no hotel? — perguntou.
— Sim — respondeu Keller de imediato. — Mesa para cinco, por favor.
Era um hotel disposto ao contrário: o hall ocupava o último andar, por cima dos pisos onde os hóspedes estavam alojados. Os quartos de JLM e da sua comitiva ficavam no quarto piso. Martel e Olivia ocupavam uma só suíte, ladeada pela de Mikhail e de Natalie, de um lado, e a de Keller de outro. Quando lhes levaram a bagagem e despacharam os empregados com uma gorjeta, Mikhail e Keller abriram as portas que davam para os três quartos tornando-os num só.
— Muito melhor assim — disse Keller. — Quem é que quer comer?
A mensagem chegou à Casa dos Espiões pouco depois do meio-dia, quando Hamid e Tarek estavam empoleirados na sanita da casa de banho de Gabriel a recitar versos do Corão para afugentar os jinns. Informava de que JLM e os seus acompanhantes tinham chegado sem novidades ao Four Seasons, que não tinham recebido comunicação alguma de Mohammad Bakkar ou dos seus seguidores e que naquele momento estavam a almoçar no terraço do restaurante do hotel. Gabriel enviou a mensagem por via segura para o Centro de Operações da Avenida Rei Saul, que por sua vez a remeteu para Langley, Vauxhall Cross e para a sede da DGSI em Levallois-Perret, onde foi recebida com uma expectativa que superava muito a sua importância operativa.
As preces da sanita terminaram poucos minutos depois da uma e a comida foi servida à uma e meia. Dina e Yaakov Rossman saíram da Casa dos Espiões minutos mais tarde, num dos carros alugados. Dina vestia umas calças de algodão largas e uma blusa branca e levava pendurado ao ombro um saco com o nome de um exclusivo estilista francês. Yaakov, por sua vez, estava vestido como se fosse fazer uma incursão noturna em Gaza. Às duas da tarde, encontravam-se reclinados numa espreguiçadeira com dossel do Tahiti Beach Club da Corniche. Gabriel mandou-os ficar ali até novo aviso. Depois, subiu o volume dos microfones instalados nos três quartos contíguos do Four Seasons.
— Alguém tem de levar o saco ao hotel — comentou Eli Lavon.
— Obrigado, Eli — afirmou Gabriel. — Nunca me teria lembrado disso.
— Só estava a tentar ajudar.
— Desculpa, são os jinns, que falam por mim.
Lavon sorriu.
— Em quem é que tinhas pensado?
— O Mikhail é o candidato mais óbvio.
— Até eu suspeitaria dele.
— Então talvez convenha que seja uma mulher a tratar disso.
— Ou duas — sugeriu Lavon. — Para além disso, já está na hora de fazerem as pazes, não achas?
— Começaram mal, mais nada.
Lavon encolheu os ombros.
— Podia acontecer a qualquer um.
Estava um segurança na porta que comunicava a parte de trás do recinto murado do hotel com a plage Lalla Meriem, a principal praia pública de Casablanca. Vestido com um fato escuro apesar do calor do meio da tarde, observou como as mulheres (a inglesa alta que tinha visto várias vezes anteriormente e uma francesa de semblante antipático) atravessavam a areia escura e lisa até à beira-mar. A inglesa vestia um vaporoso páreo de flores preso à cintura estreita e uma t-shirt translúcida. A francesa, pelo contrário, usava um vestido de algodão ligeiramente mais recatado. Os rapazes da praia aproximaram-se delas de imediato. Colocaram duas espreguiçadeiras na linha do mar e abriram dois guarda-sóis para protegê-las do sol que era forte. A inglesa pediu alguma coisa para beber e, quando lhes levaram os copos, deu uma gorjeta excessiva aos empregados. Apesar das suas visitas frequentes a Marrocos, ignorava o valor do dinheiro marroquino. Por esse motivo, e por outros, os rapazes rivalizavam pela mordomia de a servir.
O segurança retomou o jogo que estava a jogar no seu telemóvel; os rapazes da praia regressaram à sombra da sua barraca. Natalie tirou o vestido e colocou-o sobre o seu saco de praia Vuitton. Olivia despiu o páreo e tirou a t-shirt. Depois estendeu o seu longo corpo na espreguiçadeira e virou a sua cara perfeita para o sol.
— Não gostas muito de mim, pois não?
— Estava só a representar um papel.
— Pois fizeste-o muito bem.
Natalie adotou a mesma postura que Olivia e fechou os olhos ao sol.
— A verdade é — disse passado um momento — que não mereces que te trate assim. Eras simplesmente um meio para atingir um fim.
— E o Jean-Luc?
— Ele também é um meio para atingir um fim. E, para o caso de quereres saber, não vou com a cara dele.
— Então, gostas de mim? — perguntou Olivia num tom divertido.
— Um bocadinho — reconheceu Natalie.
Dois marroquinos musculados de vinte e poucos anos passaram à frente delas, com a água pelos tornozelos, a conversar em darija. Ao ouvi-los, Natalie sorriu.
— Estão a falar de ti — disse.
— Como é que sabes?
Natalie abriu os olhos e olhou-a inexpressivamente.
— Falas marroquino?
— O marroquino não é um idioma, Olivia. De facto, aqui falam três línguas diferentes. Francês, berbere e...
— Talvez isto tenha sido um erro — atalhou Olivia.
Natalie sorriu.
— Porque é que falas árabe?
— Os meus pais são argelinos.
— Então, és árabe?
— Não — respondeu Natalie. — Não sou.
— Afinal, o Jean-Luc tinha razão. Quando saímos da vossa villa naquela tarde disse que...
— Que parecia uma judia de Marselha.
— Como é que sabes?
— O que é que achas?
— Estavam a ouvir?
— Estamos sempre a ouvir.
Olivia besuntou óleo nos ombros.
— O que é que aqueles marroquinos estavam a dizer sobre mim?
— É difícil de traduzir.
— Imagino.
— Calculo que estejas acostumada.
— Tal como tu. És muito bonita.
— Para uma judia de Marselha.
— És?
— Era há muito tempo — afirmou Natalie. — Já não.
— Era assim tão mau?
— Ser judeu em França? Sim, era muito mau.
— Foi por isso que te tornaste espia?
— Eu não sou espia. Sou a Sophie Antonov, a tua amiga do outro lado da baía. O meu marido tem negócios com o teu namorado. Têm entre mãos algum assunto aqui, em Casablanca, do qual preferem não falar.
— O meu namorado — disse Olivia. — O Jean-Luc não gosta que digam que é o meu namorado.
— Porquê? Há algum problema?
— Entre mim e o Jean-Luc?
Natalie fez um gesto afirmativo.
— Achava que estavam sempre a ouvir.
— E assim é. Mas tu conhece-lo melhor do que ninguém.
— Não estou muito certa disso. Mas não — respondeu Olivia —, não parece suspeitar que fui eu quem o traiu.
— Não o traíste...
— Como é que o descreverias então?
— Fizeste o correto.
— Para variar — concluiu Olivia.
Os dois marroquinos musculados estavam de volta. Um deles olhou para Olivia com descaramento.
— Pensas dizer-me o que é que estamos aqui a fazer? — perguntou ela.
— Quanto menos souberes — respondeu Natalie —, melhor.
— É assim que funcionam as coisas no teu ofício?
— Sim.
— Estou em perigo?
— Isso depende de tirares mais roupa ou não.
— Tenho o direito de saber.
Natalie não respondeu.
— Imagino que tem alguma coisa a ver com aqueles carregamentos de haxixe que a polícia confiscou.
— Que haxixe?
— Não importa.
— Exato — afirmou Natalie. — Qualquer coisa que te diga, fará com que seja mais difícil cumprires o teu papel.
— E qual é o meu papel?
— O de par amoroso do Jean-Luc Martel que ignora de onde procede o seu dinheiro.
— Procede dos seus hotéis e restaurantes.
— E da sua galeria de arte — assinalou Natalie.
— A galeria é minha. Aí vem um dos teus amigos — disse Olivia num tom sonolento.
Natalie levantou o olhar e viu que Dina caminhava parcimoniosamente para elas pela beira-mar.
— Parece triste — comentou Olivia.
— Tem motivos para isso.
— O que é que lhe aconteceu à perna?
— Isso não importa.
— Queres dizer que não é nada comigo?
— Tentava ser simpática.
— Que novidade. — Olivia levou uma mão à testa para se proteger do sol. — Tem graça: parece que traz um saco igual ao teu.
— A sério? — Natalie sorriu. — Que coincidência, não achas?
O segurança encarregava-se de vigiar qualquer transeunte que passasse pela praia, não se fosse repetir o trágico incidente que aconteceu na Tunísia em 2015, quando um terrorista salafista tirou um fuzil de assalto do seu guarda-sol e matou trinta e oito hóspedes de um hotel de cinco estrelas, na sua maioria súbditos britânicos. Não obstante, pouco podia fazer o guarda no caso de se repetirem as mesmas circunstâncias. Não estava armado; tinha apenas um rádio. Em caso de atentado, devia fazer soar o alarme e fazer «tudo o que estivesse ao seu alcance» para neutralizar o atacante ou os atacantes. Ou seja, com toda a probabilidade perderia a vida a tentar proteger um grupo de ocidentais ricos seminus. Não era bem assim que queria morrer. Mas em Casablanca não havia muito trabalho, sobretudo para os filhos dos bidonvilles. E era preferível montar guarda na praia do que vender fruta com um carrinho na medina. Sabia-o por experiência própria.
A tarde tinha sido pacata, inclusivamente para agosto, e o guarda concentrou toda a sua atenção na mulher que se aproximava a oeste, onde ficavam o Tahiti e os outros clubes da praia. Era baixinha e de cabelo escuro e, ao contrário da maioria das ocidentais que visitava a praia, ia discretamente vestida. Tinha um verdadeiro ar de melancolia, como tivesse enviuvado há pouco. Trazia um saco de praia pendurado no ombro direito. Louis Vuitton, um modelo muito na moda naquele verão. O guarda perguntou-se se tinha consciência de que aquele saco custava mais dinheiro do que muitos marroquinos veriam em toda a sua vida.
Precisamente nesse momento, uma das mulheres deitadas perto da margem, a francesa antipática, cumprimentou-a levantando o braço. A mulher de aspeto melancólico aproximou-se e sentou-se na beira da sua espreguiçadeira. Os rapazes da praia ofereceram-se para lhe levar outra espreguiçadeira, mas ela disse que não. Evidentemente, não pensava ficar muito tempo. A inglesa alta e bonita parecia incomodada com a interrupção. Aborrecida, olhava desastrosamente para o mar enquanto a francesa e a recém-chegada falavam com ar de confiança e fumavam uns cigarros que a francesa tinha tirado do seu saco, também um Louis Vuitton; o mesmo modelo, de facto.
Passado um momento, a mulher de aspeto triste levantou-se para se ir embora. A francesa, que tinha voltado a pôr o vestido, acompanhou-a uns cem metros pela beira-mar. Depois abraçaram-se e cada uma seguiu o seu caminho: a mulher melancólica regressou para os clubes da praia e a francesa regressou para a sua espreguiçadeira. Trocou umas palavras com a inglesa alta e bela. Depois, a inglesa levantou-se e prendeu o páreo à cintura. Para deleite do guarda, não se incomodou a vestir a t-shirt translúcida. A visão do seu corpo perfeito distraiu-o a tal ponto que só deu uma olhadela aos sacos de praia quando, um momento depois, passaram pela porta e regressaram ao recinto do hotel.
Juntas entraram no elevador e subiram para o quarto piso, onde lhes franquearam a entrada para os três quartos convertidos num só. A alta e bela inglesa entrou na suíte que partilhava com Monsieur Martel. De imediato, ele atraiu-a para si e sussurrou-lhe algo ao ouvido que a francesa não conseguiu ouvir. Mas pouco importava: na Casa dos Espiões estariam a ouvir. Estavam sempre a ouvir.
48
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela noite, não recebeu qualquer mensagem de Mohammad Bakkar ou dos seus subordinados, e na manhã seguinte também não. Na Avenida Rei Saul e em Langley, e em todos os pontos intermédios, os ânimos exaltaram-se. Até Paul Rousseau, no seu refúgio na parte mais profunda da sede da DGSI em Levallois-Perret, começou a ter as suas dúvidas. Temia que tivesse havido alguma fuga de informação e que a operação estivesse a meter água. O culpado era, sem dúvida, o seu estranho colaborador: o agente que tinha chantageado e recrutado sem permissão do seu chefe, nem do ministro. O agente a quem tinha dado total imunidade. Os jovens e hostis colaboradores de Morris Payne, o diretor da CIA, partilhavam o pessimismo de Rousseau. Mas, ao contrário do francês, não estavam dispostos a esperar indefinidamente que o telefone tocasse. Eram militares de carreira, mais do que espiões, e preferiam abrir fogo diretamente contra o inimigo. Payne, ao que parece, era da mesma opinião. Convocou Adrian Carter para uma reunião no seu escritório e expôs-lhe claramente o seu ponto de vista. Carter encarregou-se de transmitir a mensagem a Gabriel através de uma videoconferência segura do Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA. Gabriel, por sua vez, estava no centro de operações montado na Casa dos Espiões.
— Nada de alaridos — disse.
— O que é que queres dizer?
— O Mohammad Bakkar é a estrela da companhia. E a estrela da companhia é quem marca a hora e o lugar do encontro.
— Até uma estrela precisa de um bom conselho, de vez em quando.
— Isso não corresponde à forma como a relação tem funcionado até agora. Se mandar o Martel tomar a iniciativa, o Bakkar vai perceber que se passa algo de estranho.
— Pode ser que já saiba.
— Ligar-lhe não vai mudar isso.
— Os chefes acham que poderia resolver a situação num sentido ou noutro.
— Ah, sim?
— E a Casa Branca...
— Desde quando é que a Casa Branca está metida nisto?
— Desde o princípio. Segundo parece, o presidente está muito atento ao assunto.
— Que reconfortante. E exatamente quantas pessoas é que sabem disto em Washington, Adrian?
— É difícil saber. — Carter franziu a testa. — O que é este barulho?
— Não é nada.
— Parece alguém a rezar.
— E é, efetivamente.
— Quem?
— O Tarek e o Hamid. Tentam afugentar os jinns.
— O quê?
— Os jinns — repetiu Gabriel.
— Eu prefiro o gim com lima e um pouco de tónica.
Gabriel perguntou-lhe pelos dois drones que Morris Payne tinha atribuído à operação. Um era um drone de vigilância Sentinel. O outro, um Predator. Carter explicou-lhe que o Sentinel já estava na zona e podia sobrevoar Marrocos assim que Gabriel tivesse um alvo claro. O Predator, armado com dois mortíferos mísseis Hellfire, estava numa base próxima, pronto para entrar em ação. A CIA não tinha autoridade para lançar um ataque em Marrocos. Só o presidente podia dar essa ordem, e até nesse caso — afirmou Carter — seria o último recurso.
— Os marroquinos vão ficar furiosos — disse.
— Quanto tempo demorará o Predator a estar em situação de disparar?
— Depende da localização do alvo. Duas horas, no mínimo.
— Duas horas é muito.
— Não são os felinos mais velozes da selva. Mas nada disto faz sentido — disse Carter — enquanto o Mohammad Bakkar não convocar o teu rapaz para uma reunião.
— Vai ligar — afirmou Gabriel, e cortou a ligação.
No entanto, no fundo não tinha tanta certeza. E quando passou o meio-dia sem que tivesse notícias, sucumbiu momentaneamente ao pessimismo que se tinha apoderado dos seus colegas de Paris e de Washington. Distraiu-se a conduzir as suas personagens: os Antonov e os seus amigos, o Jean-Luc Martel e a Olivia Watson. Mandou Martel e Mikhail às redondezas de Casablanca à procura de possíveis localizações para um novo hotel que a JLM Enterprises não tinha intenção de construir e despachou Natalie e Olivia para o gigantesco Morocco Mall, onde, munidas dos cartões de crédito de Martel, invadiram várias lojas exclusivas. Almoçaram depois com Christopher Keller no quartier Gauthier. O britânico não viu indícios de vigilância, nem da DST marroquina, nem de qualquer outro tipo. Eli Lavon, que seguiu Martel e Mikhail durante a sua saída à procura de supostos terrenos para construir, informou que também não tinha detetado qualquer sinal de que os estivessem a vigiar.
A meio da tarde, enquanto o pessimismo de Gabriel se agudizava, houve outra crise relativa aos jinns. Hamid tinha encontrado aberta a janela de um quarto (o de Dina, mais especificamente) e temia que vários demónios novos se tivessem esgueirado para o interior da casa. Apoiado por Yaakov, propôs de novo a possibilidade de um exorcismo. Conhecia um homem do seu bidonville que trataria disso por um preço módico, com o sacrifício de cabra incluído. Gabriel negou-se: continuaram a encomendar sal, sangue e leite com a esperança de que tudo se resolvesse. Hamid, evidentemente, duvidava disso.
— Como queira — disse, muito sério. — Mas temo que isto vá acabar mal. Para todos.
Às cinco da tarde, até Gabriel estava convencido de que a Casa dos Espiões estava assombrada e de que Aisha e os seus ferozes amigos conspiravam contra ele. Mandou Natalie e Olivia à praia para apanharem sol e saiu para dar um passeio sozinho (sem escoltas, nem armas) pelas arcadas sujas da cidade velha. Vagueou sem rumo, atravessando praças cheias de gente e avenidas congestionadas pelo tráfego vespertino, até que encontrou um café cujos clientes vestiam na sua maioria roupa ocidental. Sentados a uma mesa no recanto mais escuro do local havia três americanos: dois rapazes e uma rapariga.
Pediu em francês um café noir. Então percebeu que não tinha dinheiro marroquino. Mas não importava: o empregado aceitou, encantado, os seus euros. Lá fora, o estrépito da rua era opressivo. Abafava o som da televisão que havia por cima do balcão e a tranquila conversa dos três americanos. Então, às seis horas e doze minutos, sufocou a vibração do telemóvel de Gabriel. Leu a mensagem, um momento depois, e sorriu. Ao que parece, Mohammad Bakkar queria falar com Jean-Luc Martel em Fez na tarde do dia seguinte.
Antes de voltar a guardar o telemóvel no bolso, enviou uma breve mensagem a Adrian Carter para Langley. Pediu depois outro café e bebeu-o como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
49
FEZ, MARROCOS
No dia seguinte, minutos antes do meio-dia, Christopher Keller estava à entrada do hotel, a ver como os porteiros carregavam a bagagem para os carros. Martel saiu pouco tempo depois, seguido por Mikhail, Natalie e Olivia. Tinha na mão a fatura do hotel, que entregou a Keller.
— Dê-a aos seus chefes. E diga-lhes que espero que me reembolsem até ao último cêntimo.
— Vou já tratar disso.
Keller atirou a fatura para o lixo e entrou para a parte de trás do primeiro Mercedes. Martel juntou-se a ele, enquanto os outros entravam para o outro carro. Seguiram pela costa e, ao chegarem a Rabat, viraram para o interior atravessando plantações de sobreiros até chegarem aos sopés do Médio Atlas. Na primavera, os montes estariam abençoados pelas chuvas e pelo gelo derretido, mas em pleno verão eram castanhos e secos. As ladeiras estavam cheias de oliveiras, e pelas planícies estendiam-se campos de regadio. Martel olhava distraidamente pela janela, enquanto Keller controlava o fluxo de e-mails, mensagens de texto e telefonemas do telemóvel do francês. Com a ajuda de Martel, despachou os assuntos que requeriam atenção urgente. Ignorou os outros. Até Jean-Luc Martel, disse a si próprio, precisava de um dia livre de vez em quando.
Seguindo as instruções de Gabriel, pararam para comer em Mequinez, a mais pequena das quatro antigas cidades imperiais de Marrocos. Aí, Eli Lavon chegou à conclusão de que um indivíduo de trinta e poucos anos, com ar de marroquino, com óculos de sol e boné americano os estava a vigiar. Depois de almoçarem, o mesmo indivíduo seguiu-os até às ruínas romanas de Volubilis, que percorreram debaixo do sol abrasador da tarde. Lavon tirou uma fotografia ao homem, enquanto fingia admirar o arco triunfal e enviou-a para o esconderijo de Gabriel, em Casablanca. Gabriel, por sua vez, reenviou-a para Christopher Keller, que a mostrou a Martel quando voltaram para o carro.
— Reconhece-o?
— Talvez.
— O que é que quer dizer com isso?
— Quero dizer que talvez o tenha visto antes.
— Onde?
— No encontro de Rife, em dezembro do ano passado. Após os atentados de Washington.
— Com quem é que estava? Com o Bakkar?
— Não. Estava com o Khalil.
Perto das seis chegaram à Ville Nouvelle de Fez, a parte moderna da cidade, onde a maioria dos seus habitantes preferia viver. O hotel deles, o Palais Faraj, ficava perto da antiga medina. Era um labirinto de azulejos coloridos e frescos e passagens sombrias. O proprietário cedeu automaticamente a suíte real a Martel e Olivia. Keller ficaria num quarto contíguo de dimensões mais modestas, e Mikhail e Natalie um pouco mais à frente, no mesmo corredor. Levaram Olivia a dar um passeio pelos souks da medina, enquanto Martel e Keller esperavam que o telefone tocasse sentados no terraço privado da suíte real. O ar estava quente e parado. Dos curtumes próximos chegava-lhes um leve cheiro de ferrugem e fumo de lenha.
— Quanto tempo é que nos vai fazer esperar? — perguntou Keller.
— Depende.
— De quê?
— Do seu humor, imagino. Às vezes, liga logo. E às vezes...
— O quê?
— Muda de ideias.
— Sabe que estamos aqui?
— O Mohammad Bakkar — afirmou Martel — sabe tudo.
Passados vinte minutos sem que recebessem um telefonema ou uma mensagem, o francês levantou-se bruscamente.
— Preciso de um copo.
— Peça algo ao serviço de quartos.
— Há um bar lá em cima — disse Martel e, antes que Keller se opusesse, dirigiu-se à porta.
Lá fora, no hall, carregou no botão do elevador e, como não apareceu de imediato, subiu pelas escadas. O bar, pequeno e escuro, ficava no último piso e de lá dominavam-se as cúpulas da medina. Martel pediu a garrafa de Chablis mais cara da carta de vinhos. Keller, só um café.
— De certeza que não quer um pouco? — perguntou Martel, enquanto admirava um copo de vinho à luz do sol.
Keller respondeu que preferia um café.
— Não bebe quando está de serviço?
— Algo do género.
— Não sei como é que consegue. Está há dias sem dormir. Imagino que uma pessoa acaba por se acostumar quando se dedica ao seu ofício — acrescentou o francês pensativamente. — À espionagem, quero dizer.
Keller lançou uma olhadela ao barman. Não havia mais ninguém no local.
— Foi sempre um espião? — insistiu Martel.
— E você? Foi sempre um narcotraficante?
— Eu nunca fui narcotraficante.
— Ah, sim — disse Keller. — Laranjas.
Martel observou-o atentamente por cima da borda do copo de vinho.
— Tenho a impressão de que passou uma boa temporada no exército.
— Não tenho jeito para militar. Nunca gostei de ordens. E não gosto de trabalhar em equipa.
— Então pode ser que seja um militar especial. Do SAS, por exemplo. Ou deveria dizer do Regimento? Não é assim que os seus camaradas lhe chamam?
— Ignoro.
— Que estupidez — replicou Martel bruscamente.
A sorrir para o barman marroquino, Keller olhou pela janela. A escuridão começava a acomodar-se sobre a medina, mas nos cumes mais altos das montanhas ainda restava um laivo de luz rosada.
— Deveria ter mais cuidado, Jean-Luc. O rapaz do balcão poderia ofender-se.
— Conheço os marroquinos melhor do que você. E reconheço um ex-membro do SAS quando o vejo. Todas as noites, algum inglês rico chega a um dos meus hotéis ou restaurantes, acompanhado pela sua escolta privada. E são sempre veteranos do SAS. Suponho que é melhor dedicar-se à espionagem do que ser lacaio de algum executivo britânico com vontade de ser arrogante.
Naquele momento, Yossi Gavish e Rimona Stern entraram no bar e sentaram-se a uma mesa, do outro lado do local.
— Os seus amigos de Saint-Tropez — comentou Martel. — Convidamo-los a juntarem-se a nós?
— Voltemos para baixo com a garrafa.
— Ainda não — respondeu Martel. — Sempre gostei desta vista ao entardecer. Este lugar é Património da Humanidade, sabia? E, no entanto, grande parte das pessoas que vivem aqui em baixo venderia de boa vontade o seu ruinoso riad ou a sua dar a algum ocidental para comprar um bonito e limpo apartamentozinho na Ville Nouvelle. É uma pena, na verdade. Não sabem o que têm. Às vezes, o velho é muito melhor do que o novo.
— Poupe-se a filosofia barata — afirmou Keller com um ar aborrecido.
Rimona estava a rir-se de algo que Yossi tinha dito. Keller deu uma vista de olhos às últimas mensagens e aos e-mails que Martel tinha recebido, enquanto este continuava a contemplar o pôr-do-sol na medina.
— Fala muito bem francês — comentou Martel, ao fim de um momento.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Houve um silêncio. Foi Martel quem o quebrou.
— Há muitos anos, quando ainda vivia em Marselha, corria o rumor de que havia um inglês que trabalhava como assassino para o clã dos Orsati. Tinha pertencido ao SAS, ou era o que se dizia. Pelos vistos, era um desertor. — Martel fez uma pausa e depois acrescentou: — Um cobarde.
— Parece o argumento de uma história de espiões.
— Às vezes, a realidade supera a ficção. — Martel olhou-o fixamente. — Como sabiam sobre o René Devereaux?
— O Devereaux conhece toda a gente.
— A voz dessa gravação era a sua.
— Ah, sim?
— Não consigo sequer imaginar as coisas que teve de lhe fazer para conseguir que falasse. Mas devem ter também outra fonte — acrescentou o francês. — Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
— A Olivia não tem nada a ver com isto.
O ceticismo de Martel era evidente.
— Pode ficar com eles?
— A que é que se refere?
— Aos cinquenta milhões que lhe deram por aqueles quadros. Aos cinquenta milhões que lhe pagaram para que me traísse.
— Beba o seu vinho, Jean-Luc. Desfrute da paisagem.
— Cinquenta milhões é muito dinheiro — prosseguiu Martel. — O tal iraquiano chamado Khalil deve ser muito importante.
— É.
— E se mostrar a cara? O que acontecerá então?
— O mesmo que acontecerá consigo se tocar num cabelo da Olivia — replicou Keller com a voz calma.
A ameaça não pareceu afetar o francês.
— Talvez alguém deva atender — disse.
Keller olhou para o telefone, que vibrava sobre a mesa baixa, entre eles os dois. Deitou uma vista de olhos ao número e passou o telemóvel a Martel. A conversa muito breve decorreu numa mistura de francês e árabe marroquino. Depois, Martel desligou a chamada e entregou o telemóvel.
— E então? — perguntou Keller.
— O Mohammad mudou de planos.
— Quando é que se vão ver?
— Amanhã à noite. E não me quer ver só a mim — disse Martel. — Estamos todos convidados.
50
CASABLANCA, MARROCOS
Christopher Keller não era o único que vigiava o telefone de Jean-Luc Martel. No esconderijo em Casablanca, Gabriel também não o perdia de vista. Ouviu o fluxo constante de chamadas a chegar ao longo dessa tarde e leu as numerosas mensagens e e-mails que o francês recebeu. E às sete e um quarto ouviu as poucas palavras da conversa entre Martel e um homem que não se incomodou a apresentar-se. Ouviu a gravação mais três vezes de princípio ao fim e, de seguida, procurou o minuto 19:16:13 e carregou no ícone de play.
— O Mohammad e o seu sócio gostariam de conhecer os seus amigos. Mais especificamente um deles.
— Qual?
— O alto. O que é casado com aquela francesa tão bonita e que tem dinheiro aos pontapés. É russo, não é? Traficante de armas?
— De onde é que tirou essa informação?
— Isso não importa.
— Porque é que querem conhecê-lo?
— Para lhe propor um negócio. Acha que o seu amigo pode estar interessado? Diga-lhe que vale a pena.
Gabriel carregou na pausa e olhou para Yaakov Rossman.
— Como é que achas que o Mohammad Bakkar e o sócio dele souberam o que faz na realidade o Dmitri Antonov?
— Pode ser que tenham ouvido os mesmos rumores que o Jean-Luc Martel ouviu. Os que espalhámos como migalhas de pão entre Londres e Nova Iorque, passando pelo sul de França.
— E esse negócio que lhe querem propor?
— Duvido que esteja relacionado com o haxixe.
— Ou com as laranjas — acrescentou Gabriel. Depois disse: — Tenho a sensação de que quem quer mesmo conhecer o Dmitri Antonov é o sócio do Mohammad. Mas para quê?
— Podemos assumir que o hipotético sócio de Mohammad é o Saladino?
— De acordo.
— Pode ser que queira comprar armas. Ou se calhar quer material radiológico de origem russa para substituir o stock que perdeu quando capturaram o barco.
— Ou pode ser que queira matá-lo. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou: — A ele e à sua esposa, aquela francesa tão bonita.
Carregou no play.
— Onde?
— Vão de carro para o sul, até Erfoud e...
— Erfoud? Isso fica...
— A sete horas nesta época do ano, talvez menos. O Mohammad preparou-vos dois jipes. Aqueles Mercedes deles não vos servirão de nada para onde vão.
— E onde é que isso fica?
— É um acampamento no Saara. Bastante luxuoso. Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido.
Gabriel parou a gravação.
— Um acampamento à beira do Saara. Muito tradicional, muito agradável.
— E muito isolado — comentou Yaakov.
— Pode ser que isso seja o que o Saladino quer.
— Achas que nos traíram?
— A mim pagam-me para me preocupar, Yaakov.
— Algum suspeito?
— Só um.
Gabriel abriu outro arquivo de áudio no seu computador e depois de ajustar o tempo carregou no play.
— Fala muito bem francês.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Gabriel carregou na pausa.
— Em algum momento, tinha de perceber — disse Yaakov. — Procedem do mesmo modo. São duas caras da mesma moeda.
— O Keller nunca esteve metido no narcotráfico.
— Não — anuiu Yaakov com sarcasmo. — Só ganhava a vida a matar pessoas.
— Eu acredito na redenção.
— Não me surpreende.
Gabriel franziu a testa e carregou de novo no play.
— Mas devem ter também outra fonte. Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
Gabriel parou a gravação.
— Também era lógico que se apercebesse disto em algum momento — comentou Yaakov.
Na Casa dos Espiões fez-se silêncio. Os ocupantes da suíte real do Palais Faraj, pelo contrário, discutiam sobre se deviam jantar no hotel ou num restaurante da medina. Falavam disso ao estilo dos milionários aborrecidos. A atuação deles era tão convincente, que até Gabriel, que tinha criado as personagens, não soube se se tratava de uma discussão autêntica ou a fingir para despistar a DST marroquina, que, sem dúvida, também os estava a ouvir.
— Pode ser que tenhamos perdido o Martel — disse Gabriel, por fim. — Quem sabe? É possível que nunca o tenhamos tido em nosso poder.
— São outra vez os jinns que falam pela tua boca?
Gabriel não disse nada.
— Tem estado debaixo do nosso controlo desde que lhe estendemos a armadilha. Vigilância absoluta. Física, eletrónica e virtual. O Keller praticamente dormiu no seu quarto. É nosso de corpo e alma.
— Pode ser que nos tenha escapado alguma coisa.
— Como por exemplo?
— Uma sequência concreta de zumbidos do telefone ou algum código impessoal ao qual não demos importância.
— Com jornal ou sem ele? Com guarda-chuva ou sem?
— Exato.
— Já ninguém lê jornais, e em Marrocos não chove nesta época do ano. Para além disso — acrescentou Yaakov —, se o Mohammad Bakkar achasse que o Martel passou para o outro lado, não teria pedido para vê-lo.
Em Fez, a discussão a respeito do jantar tinha adquirido contornos verdadeiramente azedos. Exasperado, Gabriel arrumou a questão enviando uma mensagem de texto a Mikhail. JLM e os seus acompanhantes jantaram no hotel nessa noite.
— Boa ideia — comentou Yaakov. — Convém que esta noite vão cedo para a cama. Amanhã será um dia muito longo.
Gabriel ficou calado.
— Não estarás a pensar em abortar a operação, pois não?
— Claro que sim.
— Chegámos muito longe — reclamou Yaakov. — Manda-os ao acampamento, que se reúnam com eles. Identifica o Saladino, dá o aviso. E, quando se for embora, deixa que os americanos lancem um míssil e os convertam numa nuvenzinha de fumo.
— Dito assim parece muito simples.
— É. Os americanos fazem-no diariamente.
Gabriel ficou em silêncio, de novo.
— O que é que vais fazer? — perguntou Yaakov.
Gabriel carregou no play.
Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido...
51
FEZ, MARROCOS
Natalie acordou com as almofadas empapadas em suor, cega pelo sol. A pestanejar, contemplou o pedaço de céu que se via da sua janela e, por um instante, não soube onde estava. Encontrava-se em Fez, em Casablanca ou em Saint-Tropez? Ou estava de novo naquele casarão repleto de pátios e quartos, perto de Mossul? Tu és o meu Maimónides... Virou-se e esticou a mão para a fita da persiana, mas não a alcançou. A metade da cama que Mikhail ocupava ainda estava na penumbra. Ele dormia tranquilamente, com o tronco descoberto.
Natalie fechou os olhos com força para fugir à luz do sol e tentou reunir os fragmentos do seu último sonho daquela manhã. Ia a caminhar por um jardim povoado de ruínas: ruínas romanas, tinha a certeza disso. Não eram as ruínas de Volubilis que tinham visitado na véspera, mas as de Palmira, na Síria. Também tinha a certeza disso. Era uma das poucas ocidentais que tinham visitado Palmira após a sua captura por parte do Estado Islâmico, e tinha visto com os seus próprios olhos os destroços que os combatentes sagrados do ISIS tinham causado nas ruínas. Tinha-as percorrido ao luar, acompanhada por um jihadista egípcio chamado Ismail que estava a receber treino no mesmo campo do que ela. Mas, no sonho, era outro homem que ia a seu lado. Um homem alto e corpulento que coxeava levemente. Um objeto indefinido, grotesco e grande, ia pendurado na sua mão direita. Só agora, no meio da neblina quente da manhã, Natalie compreendeu que aquela coisa era a sua cabeça.
Sentou-se devagar na cama para não acordar Mikhail e apoiou os pés no chão despido. O piso parecia que tinha saído do forno. Por um instante, sentiu náuseas. Deduziu que o sonho a tinha posto doente. Ou talvez fosse alguma coisa que tivesse comido, alguma iguaria marroquina que não lhe tinha caído bem.
Fosse como fosse, correu para a casa de banho para vomitar. Depois, começou a sentir os primeiros assaltos de uma forte enxaqueca. Logo hoje, disse a si própria. Tomou dois analgésicos com um gole de água da torneira e passou uns minutos debaixo da água fresca do duche. Depois, embrulhada num roupão fino, entrou na salinha de estar e preparou uma chávena de café bem forte na máquina Nespresso. O tabaco da Madame Sophie parecia chamá-la da mesa. Fumou um cigarro só para manter a fachada, ou pelo menos foi o que disse a si própria. Não conseguiu aliviar a dor de cabeça.
És muito corajosa, Maimónides. Demasiado corajosa do que te convém...
Oxalá fosse verdade, pensou. Quantas pessoas estariam vivas se tivesse tido a coragem de deixá-lo morrer? Washington, Londres, Paris, Amesterdão, Antuérpia, e todas as outras cidades. Sim, os americanos queriam apanhá-lo. Mas ela também.
Entrou no quarto de vestir. A roupa que ia usar naquele dia estava dobrada num armário. Para além disso, as suas malas estavam feitas. Tal como as de Mikhail. As etiquetas revelavam um fabrico luxuoso, mas as malas, tal como o próprio Dmitri Antonov, eram falsas. A mala mais pequena tinha um fundo falso. Dentro do compartimento escondido havia uma Beretta 92FS, dois carregadores cheios de projéteis de nove milímetros e um silenciador.
Depois de aceitar trabalhar para a Departamento, Mikhail mostrara-lhe como carregar e descarregar uma arma. Agora, agachada no chão do quarto de vestir, colocou rapidamente o silenciador no extremo do canhão, introduziu um dos carregadores na coronha e carregou a primeira bala. Levantou depois a arma segurando-a com as duas mãos como Mikhail lhe ensinara e apontou para o homem que segurava a sua cabeça na mão.
Vá lá, Maimónides, faz de mim um mentiroso...
— O que é que estás a fazer? — perguntou uma voz atrás dela.
Natalie virou-se sobressaltada e apontou para o peito de Mikhail. Tinha a respiração agitada e a coronha da Beretta húmida entre as mãos trémulas. Mikhail aproximou-se lenta e suavemente, baixou o canhão da pistola para o chão. Natalie largou as mãos e observou como devolvia a pistola ao seu estado original e a depositava no compartimento secreto da mala.
Levantando-se, Mikhail pôs-lhe um dedo sobre os lábios e apontou para o teto para lhe indicar que podia haver microfones da DST. Depois conduziu-a para fora, para o terraço, e abraçou-a.
— Quem és? — sussurrou-lhe ao ouvido em inglês com uma pronúncia russa.
— Sou a Sophie Antonov — respondeu ela mansamente.
— O que é que estás a fazer em Marrocos?
— O meu marido está a tratar de negócios com o Jean-Luc Martel.
— O que é que o teu marido faz?
— Antes, os minerais. Agora, os investimentos.
— E o Jean-Luc Martel?
Natalie não respondeu. De repente, tinha frio.
— Queres explicar-me o que se passou?
— Pesadelos.
— Que tipo de pesadelos?
Natalie contou-lhe.
— Era só um sonho.
— Esteve prestes a acontecer, uma vez.
— Não voltará a acontecer.
— Não sabes isso — disse ela. — Não sabes como ele é inteligente.
— Nós somos mais.
— A sério?
Fez-se um silêncio.
— Manda uma mensagem ao posto de comando — sussurrou-lhe Natalie, por fim. — Diz-lhes que não posso ir. Que não me posso aproximar dele. Tenho medo de deitar toda a operação por terra.
— Não — respondeu Mikhail. — Não vou mandar nenhuma mensagem.
— Porquê?
— Porque tu és a única que o consegue identificar.
— Tu também o viste. No restaurante de Georgetown.
— A verdade — afirmou Mikhail — é que tentei não olhar para ele. Mal me lembro da cara dele.
— E a gravação das câmaras de segurança do Four Seasons?
— Não é muito boa.
— Não consigo estar na presença dele — disse Natalie passado um bocado. — Vai-me reconhecer. Porque é que não me havia de reconhecer? Fui eu quem salvou a vida daquele miserável.
— Sim — disse Mikhail. — E agora vais ajudar-nos a matá-lo.
Voltou a levá-la para a cama e fez os possíveis para ajudá-la a esquecer o pesadelo. Depois, tomaram um duche juntos e vestiram-se. Natalie passou um longo momento a pentear-se ao espelho.
— O que é que pareço? — perguntou.
— Uma judia de Marselha — respondeu Mikhail com um sorriso.
Lá em cima, o pessoal do hotel estava a levantar o buffet do pequeno-almoço. Enquanto tomavam café e pão, Mikhail leu os jornais da manhã no seu tablet, enquanto Natalie, fingindo um aborrecimento que não sentia, contemplava o decrépito caos da medina. Por fim, pouco antes das onze, desceram para o hall, onde Martel e Christopher Keller estavam a pagar a conta. Olivia estava lá fora, vendo como os porteiros metiam a bagagem nos carros.
— Dormiste bem? — perguntou.
— Melhor do que nunca — respondeu Natalie.
Entrou na parte de trás do segundo carro e ocupou o seu lugar junto da janela. Uma cara que não reconhecia devolvia-lhe o olhar através do vidro.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
52
LANGLEY, VIRGÍNIA
O Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA (NCTC) tinha estado em tempos localizado numa só sala do corredor F do quinto piso do quartel-general da Agência. Com os seus ecrãs de televisão, os seus telefones barulhentos e os seus dossiês amontoados, assemelhava-se à redação de um jornal de segunda linha. Os seus membros trabalhavam em pequenos grupos dedicados a objetivos específicos: a Fação do Exército Vermelho, o Exército Republicano Irlandês, a Organização para a Libertação da Palestina, Abu Nidal, Hezbollah... Tinha, para além disso, uma unidade, formada em 1996, que centrava os seus esforços num extremista saudita pouco conhecido, chamado Osama Bin Laden, e a sua pujante rede de terrorismo islamista.
Como era de esperar, o NCTC tinha aumentado consideravelmente de tamanho desde os atentados do 11 de Setembro e agora ocupava uns dois mil metros quadrados do andar térreo da nova sede da CIA, com o seu próprio átrio e torniquetes de acesso. Por motivos de segurança, o verdadeiro nome do chefe do NCTC tinha deixado de ser de domínio público. Para o mundo exterior (e para o resto de Langley) era simplesmente «Roger». Kyle Taylor gostava daquela alcunha. Um tipo chamado Kyle não metia medo a ninguém. Roger, pelo contrário, era um nome que impunha respeito, sobretudo se comandava uma frota de drones armados e tinha o poder de pulverizar um indivíduo pelo simples facto de estar num lugar concreto no momento errado.
Uzi Navot tinha esbarrado com ele pela primeira vez há já uma década, quando Taylor trabalhava na delegação da CIA em Londres. Tinham sentido então uma antipatia instantânea um pelo outro. Navot via Taylor (que não falava mais nenhuma língua do que o inglês e era, portanto, inútil para o trabalho de campo) como pouco mais do que um espião de bancada ou um soldado de sala de reuniões. E Taylor, que acalentava o conhecido ressentimento da CIA contra o Departamento e Israel (agudizado, possivelmente, no seu caso particular) considerava Navot um tipo calculista e traiçoeiro. De resto, davam-se às mil maravilhas.
— É a primeira vez que visitas o Centro? — perguntou Taylor depois de poupar a Navot a incómoda passagem pelo controlo de segurança.
— Não, mas há muito tempo que não vinha aqui.
— Decididamente crescemos desde a última vez que vieste. Não tivemos outro remédio. Todos os dias levamos a cabo operações no Afeganistão, Paquistão, Iémen, Síria, Somália e Líbia.
Parecia um agente de vendas a vangloriar-se da expansão sem precedentes da sua empresa.
— E agora também em Marrocos — acrescentou Navot baixinho, convidando-o a continuar a falar.
— A verdade é que, tendo em conta quão delicado é o assunto do ponto de vista político, muito poucas pessoas estão a par dele, até aqui, no Centro — acrescentou Taylor. — O acesso é muito restrito. Estamos a usar uma das nossas salas de operações mais pequenas. Completamente opaca.
Conduziu Navot por um corredor ladeado de portas numeradas atrás das quais analistas e operadores sem rosto nem nome rastreavam terroristas e conspiradores por todo o globo terrestre. Ao fundo do corredor havia um curto lanço de escadas metálicas e outro posto de controlo pelo qual Taylor e Navot passaram sem parar. Acima havia um hall mal iluminado e uma porta que só se abria através de um código de segurança. Taylor marcou rapidamente o código no painel e fixou o olhar na lente do leitor biométrico. Segundos depois, a porta abriu-se com um estalido.
— Bem-vindo ao Buraco Negro — comentou ao fazer Navot entrar. — Os outros já cá estão.
Taylor apresentou-lhe Graham Seymour, esquecendo quiçá (ou quiçá não) que se conheciam há muito tempo e, de seguida, Paul Rousseau.
— Sei que já conheces o Adrian.
— E muito bem, aliás — afiançou Navot, aceitando a mão que Carter lhe estendia. — Eu e o Adrian superámos, juntos, várias guerras, e temos cicatrizes que o atestam.
Os seus olhos demoraram uns instantes a acostumar-se por completo à penumbra. No exterior despontava o que prometia vir a ser um opressivo dia de verão, mas ali, naquela sala de operações de acesso restrito, no mais profundo de Langley, reinava uma noite eterna. Sentados diante de várias mesas, em redor da sala, havia alguns técnicos cujos rostos juvenis eram iluminados pelo resplendor dos ecrãs de computador. Dois deles vestiam um macacão de aviador: eram os responsáveis por pilotar os dois drones que, naquele momento, sobrevoavam a parte oriental de Marrocos sem conhecimento do governo marroquino. As imagens enviadas pelas câmaras de alta resolução dos dois aparelhos tremeluziam nos ecrãs, na parte da frente da sala. O Predator, com os seus dois mísseis Hellfire, estava já sobre Erfoud. Pelo contrário, o Sentinel permanecia a sudeste de Fez, de onde a sua câmara focava claramente o Hotel Palais Faraj. Navot viu Christopher Keller e Jean-Luc Martel surgirem no pátio da frente do hotel. Uns segundos depois, dois Mercedes passaram debaixo de uma arcada e rumaram para sul, para as montanhas.
Navot sentou-se junto de Graham Seymour. Kyle Taylor levara Adrian Carter para um recanto da sala para o consultar sobre algum assunto privado. A tensão que havia entre eles saltava à vista.
— Alguma ideia sobre quem comanda as tropas? — perguntou Navot.
— Por enquanto — respondeu Graham Seymour —, eu diria que é o Gabriel que tem a faca e o queijo na mão.
— Até quando?
— Até o Saladino aparecer. Se isso acontecer — acrescentou Seymour —, vale tudo.
O trânsito na Ville Nouvelle era um pesadelo. Nem sequer na parte velha de Fez parecia haver forma de evitá-lo. Passado um tempo, os edifícios comerciais foram ficando para trás e começaram a aparecer pequenos terrenos cultivados e prédios de habitação de construção recente. Eram blocos de três andares, envelhecidos antes de tempo, com garagens no piso térreo. A maioria das garagens tinha sido convertida em minúsculas lojas ou restaurantes, ou serviam como chiqueiros para guardar animais. As ovelhas e as cabras pastavam entre as oliveiras acabadas de plantar, e as famílias faziam refeições campestres debaixo de qualquer sombra que encontrassem.
Pouco a pouco, o terreno foi-se inclinando para os longínquos cumes do Médio Atlas e os olivais deram lugar aos densos arvoredos de alfarrobeiras, argânias e pinheiros de Alepo. As águias voavam em círculos, à procura de chacais. E, por cima das águias, pensou Christopher Keller, os drones procuravam Saladino.
A primeira vila de alguma importância era Imouzzer. Construída pelos franceses, estava povoada por uns treze mil membros da tribo berbere de Aït Seghrouchen, que falavam um dialeto da antiga língua berbere. Ali, a temperatura descia vários graus (estavam já a uns mil e duzentos metros de altitude) e os souks e cafés exclusivos para homens da rua principal estavam a abarrotar de gente. Keller estudou as caras de jovens e velhos por igual. Eram muito diferentes das caras que vira em Casablanca e em Fez. Traços europeus, cabelo e olhos mais claros. Era como se tivessem atravessado uma fronteira invisível.
Precisamente nesse momento o seu telemóvel vibrou: acabava de receber uma mensagem. Leu-a e olhou para Martel.
— Os nossos amigos têm a impressão de que nos estão outra vez a seguir. Acham que podia ser o mesmo homem que nos seguiu ontem em Mequinez e Volubilis. Gostavam de ter um retrato mais claro dele.
— O que é que pretendem?
Keller mandou o condutor parar num quiosque, nos arredores da povoação. O carro em que iam Mikhail, Natalie e Olivia parou atrás e, a seguir, parou um Renault empoeirado. Keller conseguiu ver o passageiro pelo retrovisor lateral: cabelo escuro e muito curto, bochechas largas, óculos de sol, boné de basebol americano. O condutor, pelo contrário, não se conseguia avistar.
— Traga-nos duas garrafas de água — ordenou a Martel.
— Esta terra não é muito hospitaleira por assim dizer.
— Aposto que saberá defender-se.
Martel saiu e aproximou-se do quiosque. Keller voltou a olhar pelo retrovisor e viu que o passageiro saía do Renault. Quando passou junto do Mercedes, tirou-lhe uma fotografia através da janela fumada da parte de trás. Saiu tão desfocada que era inútil. Mas, pouco depois, quando o homem regressou ao Renault, Keller conseguiu fotografar claramente a sua cara. Mostrou a fotografia a Martel quando o francês regressou ao lugar de trás do carro com duas pegajosas garrafas de água mineral Sidi Ali.
— É ele, não há dúvida — disse Martel. — É o que vi no Rife no inverno passado, com o Khalil.
Enquanto o carro se afastava da berma, Keller mandou a fotografia para o posto de comando de Casablanca. Depois voltou a olhar pelo retrovisor lateral. O outro Mercedes estava mesmo atrás deles. E atrás do Mercedes circulava um Renault coberto de pó com dois homens lá dentro.
Os muitos anos de cooperação, com frequência polémica, entre a CIA e a DST marroquina tinham granjeado a Langley o acesso à longa lista de jihadistas marroquinos e seus acólitos. Como resultado, os analistas do Centro Nacional de Antiterrorismo demoraram só uns minutos a identificar o sujeito da fotografia. Era Nazir Bensaïd, um ex-integrante da Salafia Jihadia marroquina preso depois dos atentados suicidas de 2003 em Casablanca. Posto em liberdade em 2012, Bensaïd fora para a Turquia e finalmente tinha acabado no califado do ISIS. O governo marroquino achava que continuava lá. Mas, evidentemente, estava enganado.
Uma fotografia de Bensaïd tirada na época em que foi preso apareceu naquele instante nos ecrãs do Buraco Negro do NCTC, juntamente com outra fotografia tirada em 2012, à sua chegada ao Aeroporto Ataturk de Istambul. Ambas as fotografias foram remetidas para Gabriel, que por sua vez as enviou para Keller, que confirmou que Nazir Bensaïd era o indivíduo que acabava de ver.
Mas o que é que Nazir Bensaïd estava a fazer numa vila habitada por treze mil berberes, nas montanhas do Médio Atlas? E porque é que os estava a seguir até Erfoud? Havia a possibilidade de que tivesse regressado a Marrocos clandestinamente e tivesse integrado o cartel de Mohammad Bakkar. Mas a explicação mais provável era que estivesse a velar pelos interesses do sócio de Bakkar, aquele iraquiano alto que se fazia chamar Khalil e coxeava ao andar.
Dentro do Buraco Negro, os técnicos marcaram digitalmente o Renault sedan e os seus dois ocupantes, enquanto em Fort Meade, Maryland, a NSA captava o sinal emitido pelos seus telemóveis. Adrian Carter ligou para o sexto andar para dar a notícia ao diretor da CIA, Morris Payne, que rapidamente a transmitiu à Casa Branca. Às sete e meia, hora de Washington, o presidente reuniu-se com o seu conselho de segurança na Sala de Crise, a cujos ecrãs chegavam as imagens emitidas pelos dois drones.
Na Casa dos Espiões de Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman também observavam os ecrãs, enquanto do outro lado do corredor os dois guardas da propriedade rezavam para afugentar os demónios surgidos do fogo. Através dos altifalantes do seu computador portátil, Gabriel ouvia a conversa excitada que reinava no NCTC de Langley. Desejava poder partilhar o seu otimismo, mas era-lhe impossível. A operação na sua totalidade estava agora nas mãos de um homem que tinha enganado e chantageado para que obedecesse às suas ordens. Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, relembrou. Às vezes, são eles que nos escolhem a nós.
53
ERFOUD, MARROCOS
Os jipes esperavam numa praça soalheira e poeirenta, em frente do Café Dakkar de Erfoud. Eram Toyotas Land Cruiser de um branco impoluto, acabados de lavar. Os condutores vestiam calças de algodão e coletes caqui, e exibiam a eficácia sorridente dos guias turísticos profissionais. Mas não o eram. Eram homens de Mohammad Bakkar.
A sul de Erfoud estendia-se o grande oásis de Tafilalet, com os seus palmeirais infinitos: oitocentas mil palmeiras ao todo, segundo o guia em francês que Natalie segurava com força entre as mãos. Enquanto olhava pela janela, pensou de novo naquela noite em Palmira e no seu sonho dessa manhã. Saladino a andar ao seu lado sob um luar violento, com a sua cabeça na mão... Desviou o olhar e viu que Olivia a observava com curiosidade do outro lado no banco de trás do Toyota.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
Em silêncio, Natalie olhou fixamente em frente. Mikhail ia no lugar do copiloto, junto ao condutor. O segundo Toyota, que levava Keller e Jean-Luc Martel, circulava uns cem metros à frente. Atrás, a estrada estava deserta. Nem sequer se via o Renault que os tinha seguido desde Fez.
As palmeiras diminuíram e a paisagem tornou-se íngreme e rochosa. A estrada de asfalto terminava em Rissani, e pouco depois apareceu o grande mar de areia de Erg Chebbi. A aldeia de Khamlia, um conjunto de casas baixas, da cor do barro, estendia-se ao sul das dunas. Ali, abandonaram a estrada principal e seguiram por um caminho cheio de buracos. Natalie vigiava o avanço através do telemóvel: eram um ponto azul que atravessava as terras despovoadas, a caminho da fronteira argelina. Depois, de repente, o ponto azul parou: tinham abandonado a zona com rede. Mikhail tinha levado um telemóvel por satélite para o caso de isso acontecer. Estava atrás de Natalie, na mesma mala do que a Beretta.
Continuaram a avançar durante meia hora, enquanto à sua volta o sol poente tingia de vermelho tijolo as grandes dunas esculpidas pelo vento. Passaram junto a um pequeno acampamento de nómadas berberes que estavam a ferver água para o chá à entrada de uma tenda de pelo de camelo preto. Para além disso, não se via vivalma, só as dunas altas como montanhas e o vasto céu protetor. Aquele vazio era insuportável. Natalie, apesar de estar junto de Olivia e de Mikhail, sentia-se dolorosamente só. Pôs-se a olhar para as fotografias do seu telemóvel, mas eram lembranças da Madame Sophie, não suas. Mal se conseguia lembrar da quinta de Nahalal. O Centro Médico Hadassah, o seu antigo trabalho, tinha-se esbatido quase por completo na sua memória.
Por fim, surgiu o acampamento, um conjunto de tendas coloridas dispostas ao abrigo de uma duna. Outro Land Cruiser branco tinha chegado antes deles. Natalie calculou que fosse a equipa. Deixou que um dos empregados vestidos com um turbante tratasse das suas malas. Mikhail, pelo contrário, adotando o ar arrogante de Dmitri Antonov, levou ele próprio a sua bagagem. Havia três tendas montadas à volta de um pátio central e uma quarta, com casa de banho e chuveiro, erguia-se um pouco mais longe. O pátio estava coberto por tapetes e enfeitado com grandes almofadas, e dois sofás rodeavam uma mesa baixa e comprida. As tendas também estavam atapetadas e mobiladas com autênticas camas e secretárias. Não havia qualquer indício de eletricidade, só velas e uma grande fogueira no pátio que projetava sombras sobre o sopé da duna. Natalie contou seis homens ao todo. Dois carregavam à vista as respetivas armas automáticas. Deduziu que os restantes também estivessem armados.
Com o pôr-do-sol, o ar começou a arrefecer. Na sua tenda, Natalie vestiu uma camisola polar e depois foi tomar banho para o jantar. Olivia juntou-se a ela um instante depois.
— O que é que estamos aqui a fazer? — perguntou baixinho.
— Convidaram-nos para um encantador jantar no deserto — respondeu Natalie.
Os seus olhos encontraram-se com os de Olivia no espelho.
— Por favor, diz-me que nos estão a vigiar.
— Claro que sim. E também nos estão a ouvir.
Saiu sem dizer mais nada e encontrou a mesa posta para um banquete marroquino. Os empregados mantiveram-se afastados, embora aparecessem de vez em quando para lhes encherem os copos com um chá adocicado de hortelã-pimenta. Apesar de tudo, Natalie, Mikhail e Christopher Keller cingiram-se aos seus papéis. Eram Sophie e Dmitri Antonov e o seu amigo e sócio, Nicolas Carnot. Tinham-se instalado em Saint-Tropez naquele verão e, depois de diversas vicissitudes, tinham conhecido Jean-Luc Martel e a sua glamorosa esposa, Olivia Watson. E agora, pensou Natalie, estavam os cinco nos confins da Terra, à espera de que um monstro surgisse da noite.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
Pouco depois das nove, os empregados recolheram as travessas de comida. Natalie mal tinha comido. Sozinha, aproximou-se do acampamento para fumar um dos Gitanes da Madame Sophie. Parou no lugar em que acabava a luz do fogo e começava a escuridão. Estava, pensou, na ponta do mundo. A uns quarenta ou cinquenta metros dali, um dos homens armados montava guarda no deserto. Vestia a túnica branca e o turbante de um berbere do sul. Fingindo que não o via, Natalie atirou a beata para o chão e começou a andar pela areia. O guarda, sobressaltado, atravessou-se à sua frente e indicou-lhe que regressasse ao acampamento.
— Mas quero ver as dunas — disse ela em francês.
— Não é permitido. Pode vê-las de manhã.
— Prefiro vê-las agora — respondeu. — De noite.
— É perigoso.
— Pois acompanhe-me. Assim não será perigoso.
Sem mais, começou a andar de novo pelo deserto, seguida pelo guarda berbere. As suas vestimentas resplandeciam e a sua pele, negra como o breu, não se distinguia da escuridão da noite. Natalie perguntou-lhe o nome. Disse-lhe que se chama Azûlay. Significava «o homem dos olhos bonitos».
— É verdade — comentou ela.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe — disse Natalie.
Continuaram a andar. Lá em cima, a Via Láctea cintilava qual pó de fósforo e a lua crescente brilhava com um resplendor incandescente. Em frente deles erguiam-se três dunas, ascendendo em escala de norte para sul. Natalie tirou os sapatos e, seguida por Azûlay, o Berbere, trepou à mais alta. Demorou vários minutos a chegar ao cume. Exausta, deixou-se cair de joelhos sobre a areia morna e fofa para recuperar o fôlego.
Perscrutou a paisagem com o olhar. Para poente, uma fina fileira de luzes estendia-se intermitentemente desde Erfoud, atravessando os palmeirais do oásis de Tafilalet até Rissani e Khamlia. A leste e a sul só havia deserto, mas a norte, Natalie viu uns faróis que oscilavam ao avançar para ela entre as dunas. Passado um momento, as luzes deixaram de se ver. Talvez, disse a si própria, tenha sido uma miragem, outro sonho. Depois, as luzes voltaram a aparecer.
Natalie deu meia-volta e escorregou pela ladeira da duna, até ao lugar onde tinha deixado os sapatos. Tu és a única que o consegue identificar... Mas Saladino também se lembraria dela. Porque é que não se haveria de lembrar? Afinal de contas, pensou, tinha salvado a vida daquele miserável.
54
LANGLEY, VIRGÍNIA
Os drones avistaram o veículo muito antes de Natalie, às nove e cinco, hora de Marrocos, quando virou na curva sudeste do mar de areia de Erg Chebbi. Um Toyota Land Cruiser branco com sete ocupantes. Parou no limite do acampamento e dele se apearam seis indivíduos entre os quais não se encontrava o condutor. Visto de cima através das câmaras termográficas, dava a impressão de que nenhum daqueles sujeitos coxeava. Cinco deles, visivelmente armados, permaneceram no perímetro do acampamento, enquanto o sexto entrava no pátio central, entre as tendas. Aí cumprimentou Jean-Luc Martel e, uns segundos depois, Mikhail. Como era de esperar, não havia forma de ouvir o que diziam: a falta de cobertura tinha emudecido os telemóveis. Do fundo da sala, Kyle Taylor improvisou uma possível banda sonora para o encontro.
— Mohammad Bakkar, quero apresentar-te um amigo meu, Dmitri Antonov. Dmitri, este é o Mohammad Bakkar.
— Talvez — disse Adrian Carter. — Ou talvez o Saladino tenha ajeitado um pouco a perna, tal como fez com a cara.
— Em Washington não conseguiu esconder que coxeava — assinalou Uzi Navot. — E também não o conseguiu no princípio do ano, quando o Jean-Luc Martel o viu. Para além disso, achas o Mikhail com cara de quem está a falar com o pior terrorista do mundo desde Bin Laden?
— O Mikhail sempre me pareceu um tipo bastante frio — comentou Carter.
— Não é assim tão frio.
Contemplavam a cena através da câmara do Sentinel. Mikhail, esverdeado e envolvido numa refulgente auréola de calor corporal, estava de pé a uns passos da fogueira. Com os braços cruzados, falava com uma calma visível com o recém-chegado. Keller e Olivia já tinham saído do pátio central e tinham entrado numa das tendas. Natalie, depois de regressar do seu passeio pelas dunas, tinha-se juntado a eles. Entretanto, o Predator examinava o deserto que os rodeava. Não havia sinal de outras fontes de calor.
Navot virou-se para Kyle Taylor.
— A NSA identificou outro telemóvel dentro do acampamento?
— Estão a tratar disso.
— É estranho, não achas?
— O quê?
— Não são assim tão difíceis de localizar. Para nós é fácil, mas para vocês é ainda mais fácil.
— A não ser que o telemóvel esteja desligado e lhe tenham extraído o cartão SIM.
— E os telemóveis via satélite?
— Esses são fáceis de localizar.
— E porque é que o Mohammad Bakkar não tem sempre um? É bastante perigoso andar pelo deserto sem telemóvel, não achas?
— O Saladino sabe que um telemóvel equivale a uma sentença de morte.
— É verdade — concordou Navot. — Mas como é que o Bakkar pensa avisá-lo de que pode ir para o acampamento? Através de um pombo-correio? Ou de sinais de fumo?
— Onde é que queres chegar, Uzi?
— O que quero dizer é que o Mohammad Bakkar não anda com um telemóvel via satélite porque não precisa dele para avisar o Saladino.
— Porquê?
— Porque já lá está. — Navot apontou para o ecrã. — Está sentado ao volante do Toyota.
55
SAARA, MARROCOS
A descrição física que Jean-Luc Martel fizera de Mohammad Bakkar demonstrou estar certa, pelo menos num sentido: o marroquino das montanhas do Rife era baixo (media à volta de um metro e sessenta) e de constituição forte. O seu fanatismo religioso não era evidente à primeira vista. Não usava kufi, nem barba desgrenhada, e fumava um cigarro, transgredindo as leis do Estado Islâmico, que tinha proibido o tabaco. Vestia roupa europeia e cara: um casaco de caxemira com o fecho subido, umas calças de sarja engomadas com esmero e uns mocassins de camurça completamente inadequados para o deserto. O seu relógio de pulso, cuja esfera cintilava ao refletir a luz do fogo, era grande, suíço e de ouro. O seu francês era excelente, tal como o seu inglês, idioma do qual se servia para se dirigir a Mikhail.
— Monsieur Antonov, quanto me apraz que, por fim, nos tenhamos conhecido. Tenho ouvido falar muito de si.
— O Jean-Luc?
— O Jean-Luc não é o meu único amigo em França — respondeu o marroquino com um ar cúmplice. — Causou sensação na Provença este verão.
— Não era essa a minha intenção.
— Não? — Bakkar sorriu afavelmente. — As suas festas causavam furor. Os episódios que se contavam chegaram até Marraquexe. Que escândalo!
— Há que viver a vida.
— Claro que sim. Mas tem de haver certos limites, não lhe parece?
— Nunca tinha pensado nisso.
Mohammad Bakkar sorriu.
— Espero que tenham gostado do jantar.
— Foi magnífico.
— Gosta da cozinha marroquina?
— Muito.
— Já tinha visitado Marrocos anteriormente?
— Não, nunca.
— Como é possível? O meu país é muito querido entre os europeus cosmopolitas.
— Entre os russos, não.
— Tem razão. Os russos preferem a Turquia, não sei porquê. Mas, na realidade, o senhor não é russo, pois não, Monsieur Antonov? Já não.
Mikhail sentiu que o seu coração batia com violência nas costelas.
— Continuo a ter passaporte russo — respondeu.
— Mas a sua casa é em França.
— Por agora.
Mohammad Bakkar pareceu considerar a sua resposta mais tempo do que requeria.
— E o acampamento? — perguntou a olhar à sua volta. — É do seu agrado?
— Muito, sim.
— Tentei que fosse o mais tradicional possível. Espero que não o incomode que não tenha eletricidade. Os turistas vêm ao Saara à espera de encontrar todas as comodidades da vida ocidental. Luz elétrica, telemóveis, Internet...
— Aqui não há Internet. — Mikhail levantou o telemóvel. — E isto não serve para nada.
— Sim, eu sei disso. Por isso, escolhi este lugar.
Mikhail levantou-se e fez um movimento para sair.
— Onde é que vai? — perguntou Bakkar.
— O senhor e o Jean-Luc têm de falar de negócios.
— Mas esses negócios dizem-lhe respeito a si. Pelo menos, em parte. — Indicou-lhe os sofás. — Sente-se, por favor, Monsieur Antonov. — Sorriu de novo. — Insisto.
Do posto de comando em Casablanca, Gabriel viu Mikhail sentar-se num dos sofás. Apareceu então um membro do serviço e serviu o chá. No lado direito da imagem, dentro de uma das tendas, apreciavam-se as silhuetas termográficas de três pessoas. Duas delas correspondiam, visivelmente, a mulheres. A outra era a de Christopher Keller. Um momento antes, Gabriel tinha enviado uma mensagem criptográfica para o telemóvel via satélite de Keller, fazendo referência à possível identidade do homem sentado ao volante do Toyota Land Cruiser que acabava de chegar. Keller mexia agora as mãos, manipulando algo que Gabriel não conseguia ver: o frio metal não era visível através das câmaras de infravermelhos.
Keller guardou o objeto nas costas, à altura dos rins, e aproximou-se com prontidão da entrada da tenda, onde permaneceu uns segundos, provavelmente a observar o panorama operacional. Depois pegou no telemóvel via satélite e tocou no ecrã. Segundos depois, chegou uma mensagem ao computador de Gabriel.
QUANDO VOCÊS ESTIVEREM PRONTOS, TAMBÉM ESTOU.
Com a ajuda dos drones, Gabriel estudou por sua vez o local. Quatro homens montavam guarda no deserto, à volta do acampamento: norte, sul, este e oeste, como pontos de uma bússola. Estavam todos armados. Os homens que tinham chegado com Mohammad Bakkar também traziam armas. Havia a possibilidade de o próprio Bakkar estar armado. Mikhail, temendo que as escoltas do marroquino o revistassem, não tinha nenhuma arma. Ou seja, eram dez contra um, no mínimo. Era muito provável que Keller e o resto da equipa não sobrevivessem a um tiroteio a tão curta distância, nem sequer estando presente o agente que tinha conseguido a nota mais alta na história da célebre Killing House do SAS. Para além disso, era possível que Uzi Navot e Langley estivessem enganados em relação à identidade do ocupante do Toyota. Convinha deixar que as coisas seguissem o seu curso. Que Saladino se deixasse ver e que fosse abatido em algum lugar onde não houvesse risco de danos colaterais. Por enquanto, aquele lugar remoto do canto mais escuro do sudeste de Marrocos jogava contra ele. Mas não por muito tempo. Em breve, disse Gabriel a si próprio, o deserto passaria a ser seu aliado.
Mandou Keller continuar à espera e pediu a Langley que focasse as câmaras do drone no Land Cruiser estacionado no limite do acampamento. A imagem apareceu no seu monitor um momento depois, por cortesia do Predator. O homem vestia uma jilaba com capuz e tinha ambas as mãos apoiadas no volante. Não estava a fumar. Gabriel calculou que, em algum momento, se iria reunir com os outros. Para fazê-lo, teria de sair do veículo e percorrer a pé uma curta distância. E então ele, Gabriel, saberia se era mesmo Saladino. Havia muitas formas de alterar a aparência física de um homem, disse a si próprio. O cabelo podia ser cortado ou pintado, e as feições podiam ser transformadas através de uma cirurgia plástica. Mas uma perna manca a coxear como a de Saladino era para sempre.
56
SAARA, MARROCOS
Ao princípio, Mohammad Bakkar falou unicamente em darija, e só com Jean-Luc Martel. Era evidente pela sua atitude e pelo seu tom que estava zangado. Enquanto trabalhava na Sayeret Matkal, Mikhail tinha aprendido um pouco de árabe palestiniano, o suficiente para se safar durante os ataques noturnos a Gaza, à Cisjordânia e ao sul do Líbano. Não falava árabe com fluência, longe disso; nem sequer dava para conversar minimamente. Ainda assim, conseguiu entender em linhas gerais o que dizia o marroquino das montanhas do Rife. Ao que parece, vários carregamentos importantes de um produto misterioso tinham desaparecido recentemente em circunstâncias inexplicáveis. As perdas, que a organização de Bakkar sofrera, eram substanciais: ascendiam, de facto, a centenas de milhões. Em algum lugar, afirmou, houvera uma fuga. E não fora no seu território. Evidentemente, dominava a sua organização com mão de ferro. Portanto, o erro tinha de ser de Martel. Bakkar deu a entender que tinha sido intencional. Afinal de contas, o francês nunca vira com bons olhos a rápida expansão do negócio que partilhavam. Teria de o compensar de alguma forma. Caso contrário, Bakkar procuraria outro distribuidor para a sua mercadoria e deixaria Martel de fora.
Seguiu-se uma violenta discussão. Martel, a falar velozmente em árabe marroquino, insinuou que o culpado das apreensões era o próprio Mohammad Bakkar. Recordou-lhe que, por aquele mesmo motivo, se tinha oposto a que se aumentasse drasticamente a quantidade de mercadoria que entrava na Europa. Segundo os seus cálculos, tinham perdido mais de um quarto da produção devido às apreensões, em vez dos habituais dez por cento, uma taxa sustentável a longo prazo. A única solução era aplicar a prudência. Enviar carregamentos com quantidades inferiores e prescindir de navios mercantes. Foi, pensou Mikhail, uma atuação impressionante por parte de Martel. Um espião veterano não o teria feito melhor. Quando a intervenção do francês findou, Mohammad Bakkar parecia convencido de que tanto ele como a sua organização eram os responsáveis, até certo ponto, pelas fugas. Resolveu ir ao fundo da questão. Entretanto, tinha vinte toneladas de género acumuladas nas fábricas clandestinas do Rife, a aguardarem remessa. Estava ansioso por expedi-las. Evidentemente, precisava de novos fundos.
— Não quero assumir sozinho todo o custo da última catástrofe. Não é justo.
— Estou de acordo — conveio Martel. — O que é que tinhas pensado?
— Um aumento de preço de cinquenta por cento. Só desta vez.
— Cinquenta por cento! — Martel fez um gesto desdenhoso com a mão. — Que loucura.
— É a minha última oferta. Se queres continuar a ser meu distribuidor, aconselho-te a aceitares.
Não era a última oferta de Mohammad Bakkar, longe disso. Martel sabia-o, tal como o sabia o próprio Bakkar. Afinal de contas, estavam em Marrocos. Havia que regatear até para que te passassem o pão ao jantar.
Continuaram a discutir durante uns minutos, durante os quais os cinquenta por cento passaram a ser quarenta e cinco, depois quarenta e, por último e depois de um olhar de exasperação lançado para o céu, trinta. Enquanto isso, Mikhail não parou de vigiar o homem que, por sua vez, o vigiava a ele. O homem sentado ao volante do Toyota, de onde via sem obstáculos o pátio central do acampamento. Vestia uma jilaba com um capuz pontiagudo e a sua cara estava envolvida em sombras profundas. Ainda assim, Mikhail sentia o peso como chumbo do seu olhar. E sentia também a ausência de uma arma à altura dos seus rins.
— Khalas — disse Bakkar, por fim, esfregando as mãos. — Que seja vinte e cinco, a pagar no momento de entrega da mercadoria. É pouquíssimo, mas que remédio tenho eu? Queres que também te dê a minha camisa, Jean-Luc? Posso sempre arranjar outra.
Martel sorria. Mohammad Bakkar selou o acordo com um aperto de mãos e, de seguida, virou-se para Mikhail.
— Desculpe, mas eu e o Jean-Luc tínhamos de debater um assunto muito sério.
— Era o que parecia.
— Não fala árabe, Monsieur Antonov?
— Não.
— Nem um pouco?
— Até pedir um café me custa.
Mohammad Bakkar assentiu, compreensivo.
— Cada país tem a sua forma de pronunciar. Um egípcio vê o mundo de maneira diferente de um marroquino, um jordano ou, por exemplo, um palestiniano.
— Ou um russo — riu Mikhail.
— Que vive em França.
— O meu francês é quase tão mau como o meu árabe.
— Então, falemos inglês.
Fez-se um silêncio.
— O que é que o Jean-Luc lhe contou sobre os nossos negócios? — perguntou Bakkar, por fim.
— Muito pouco.
— Mas deve ter alguma ideia, sem dúvida.
— Laranjas — respondeu Mikhail. — O senhor é o fornecedor das laranjas que abastecem os restaurantes e os hotéis do Jean-Luc.
— Laranjas e romãs — disse Bakkar num tom cordial. — Em Marrocos existem umas romãs ótimas. As melhores do mundo, na minha opinião. Mas as autoridades europeias não querem as nossas laranjas nem as nossas romãs. Ultimamente, temos perdido vários carregamentos. Eu e o Jean-Luc estávamos a discutir o que aconteceu e as medidas a tomar a esse respeito.
Mikhail ouvia-o com um semblante inexpressivo.
— Infelizmente, não perdemos só fruta nessas apreensões. Também perdemos algo insubstituível. — Bakkar olhou-o com um ar calculista. — Ou talvez não.
Pediu mais chá. Mikhail dirigiu um olhar ao ocupante do Toyota, enquanto enchiam os copos.
— A que tipo de negócios é que se dedica exatamente, Monsieur Antonov?
— Perdão?
— Os seus negócios — repetiu Bakkar. — A que é que se dedica exatamente?
— Às laranjas — respondeu Mikhail. — E às romãs.
Bakkar sorriu.
— Eu tinha entendido — disse — que traficava armas.
Mikhail não disse nada.
— É um homem prevenido, Monsieur Antonov. É um traço admirável.
— Para além de ser bom para o negócio. Assim perdem-se menos carregamentos.
— Portanto, é verdade!
— Dedico-me aos investimentos, Monsieur Bakkar. E, às vezes, faço negócios que implicam a transferência de bens da Europa de Leste e das repúblicas da antiga União Soviética para lugares problemáticos em diversas partes do mundo.
— Que tipo de bens?
— Use a sua imaginação.
— Armas?
— Armamento — respondeu Mikhail. — As armas representam uma parte mínima do negócio.
— De que tipo de mercadoria estamos a falar?
— De tudo, desde Kalashnikovs a helicópteros ou a aviões de combate.
— Aviões? — perguntou Bakkar, incrédulo.
— Gostava de ter um? Ou talvez prefira um tanque ou um Scud. Este mês temos uma oferta especial. Eu, se fosse a si, faria o pedido hoje mesmo. Não vão durar muito.
— Não seriam para mim — afirmou Bakkar levantando as mãos. — Mas um dos meus sócios poderia estar interessado.
— Nos Scuds?
— As necessidades dele são muito específicas. Mas prefiro que ele próprio lhe explique isso.
— Para já não — disse Mikhail. — Primeiro, conte-me um pouco mais sobre esse seu sócio. Depois decidirei se me quero reunir com ele.
— É um revolucionário — afirmou Bakkar. — Com uma causa justa, garanto-lhe.
— Como de costume — replicou Mikhail com ceticismo. — De onde é que é?
— Não tem país, no sentido ocidental da palavra. As fronteiras não significam nada para ele.
— Que interessante. Mas onde é que teria de lhe levar as armas?
Bakkar ficou sério, de repente.
— Sem dúvida que tem consciência de que o caos político que aflige há um tempo a nossa região tem apagado muitas das antigas fronteiras traçadas pelos diplomatas em Paris e Londres. O meu sócio procede de um desses lugares. Um lugar muito conflituoso.
— Os conflitos são o que me mantém à tona.
— Era o que me parecia — afirmou Bakkar.
— Como é que se chama o seu sócio?
— Pode chamar-lhe Khalil.
— E antes do caos? — perguntou Mikhail de imediato, como se esse nome não lhe dissesse nada. — De onde era?
— Em criança vivia à beira de um dos rios que emanavam do Jardim do Éden.
— Eram quatro — afirmou Mikhail.
— Efetivamente. O Pison, o Ghion, o Eufrates e o Tigre. O meu sócio vivia à beira do Tigre.
— De maneira que é iraquiano.
— Foi-o em tempos. Já não. Agora é súbdito do califado islâmico.
— Imagino que não se encontra no califado neste momento.
— Não. Está ali. — Bakkar inclinou a cabeça para o Toyota. Depois olhou para Mikhail e perguntou: — Está armado, Monsieur Antonov?
— Claro que não.
— Importa-se que um dos meus homens o reviste? — Bakkar sorriu cordialmente. — Afinal de contas, é um traficante de armas.
Reuniram-se junto à porta do condutor do Toyota: cinco homens ao todo — contou Gabriel —, todos eles armados. Por fim, a porta abriu-se e o ocupante do carro saiu com uma certa dificuldade. Permaneceu mais um pouco perto do veículo, rodeado de guardas, enquanto Mikhail era revistado minuciosamente. Só quando o acabaram de revistar, avançou para o centro do acampamento. Os guardas armados formavam um círculo apertado à sua volta. Ainda assim, Gabriel conseguiu ver que carregava o peso do corpo na perna direita. O primeiro passo do processo de identificação tinha-se verificado com sucesso. O segundo, pelo contrário, não se podia fazer tão de cima, servindo-se do drone americano. Só serviria um encontro cara a cara.
Gabriel enviou uma mensagem a Christopher Keller informando-o de que o sujeito acabava de entrar no acampamento e coxeava visivelmente ao caminhar. Viu então que estendia a mão ao agente dos serviços secretos israelitas.
— Dmitri Antonov — disse Gabriel baixinho —, permita-me apresentar-lhe o meu amigo Saladino. Saladino, este é o Dmitri Antonov.
Havia, naquele remoto acampamento do deserto, dois agentes israelitas que podiam efetuar a verificação necessária para lançar uma operação de assassinato seletivo em território de um aliado intermitente na guerra contra o terror. O primeiro estava sentado à frente do sujeito em questão, desarmado e sem dispositivo algum de comunicação. O segundo estava a escassos metros dali, numa tenda confortavelmente mobilada. O agente do exterior, sozinho, só vira o alvo pessoalmente de forma fugaz num afamado restaurante de Georgetown. A agente refugiada na tenda tinha passado, pelo contrário, vários dias com o sujeito numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, e tinha falado com ele durante muito tempo. E numa cabana no sopé das montanhas Shenandoah, na Virgínia, tinha-o ouvido pronunciar a sua sentença de morte. Nunca esqueceria aquele som. Nem sequer precisou de lhe ver a cara para saber que era ele: disse-lho a sua voz.
Havia um terceiro agente que também tinha visto o sujeito pessoalmente: era aquele que esperava ansiosamente numa casa assombrada num antigo bairro colonial em Casablanca. Quando a confirmação de que, efetivamente, era ele chegou ao seu computador, Gabriel remeteu-a de imediato para o Buraco Negro de Langley.
— Apanhámo-lo! — gritou Kyle Taylor.
— Ainda não — advertiu-o Uzi Navot com o olhar fixo no ecrã. — Nada disso. Nem pouco mais ou menos.
CONTINUA
41
CÔTE D’AZUR, FRANÇA
Havia uma parte de Paul Rousseau que não tinha estômago para o acordo que tinha de ser feito. Jean-Luc Martel, diria ele mais tarde, era a prova cabal de que a França errara ao acabar com a guilhotina. Mas Khalil, o iraquiano (Khalil cujo rosto fora alterado, Khalil que ao caminhar coxeava) valia bem o preço. A coerção, só por si, não seria suficiente para arrastar Martel até à linha de meta. Teria de ser transformado num colaborador pleno do Grupo Alpha («um agente dos serviços secretos franceses, deus me livre», lamentou-se Rousseau) e apenas uma promessa de imunidade total para uma possível acusação seria suficiente para assegurar a sua cooperação inabalável. Rousseau não tinha poder para fazer tal promessa; só um ministro a poderia fazer. O que colocava Rousseau perante um dilema adicional, pois o seu ministro continuava a não saber nada da operação. Era sobejamente sabido que o ministro era um homem que não gostava de surpresas. Talvez nesse caso conseguisse abrir uma exceção.
De momento, Rousseau fez das tripas coração e testou as capacidades de Martel. Falaram novamente sobre tudo, lenta e meticulosamente, para a frente, para trás, de lado, e de todas as outras formas que Rousseau, que andava à procura de alguma incongruência, de algum motivo para questionar a autenticidade da sua fonte, conseguiu imaginar. Foi dada particular atenção à ordem de trabalhos da reunião de inverno em que Khalil, o iraquiano, estivera presente, principalmente à calendarização das entregas seguintes. Estavam previstos três grandes carregamentos nos dez dias seguintes. Todos estariam escondidos no interior de navios de carga que partiriam da Líbia. Dois chegariam a portos franceses (a Marselha e à vizinha Toulon), mas o terceiro atracaria no porto italiano de Génova.
— Se essa droga desaparecer — disse Martel —, vai ser o bom e o bonito.
— Laranjas — disse Rousseau. — Laranjas.
Foi nesse momento que Gabriel se intrometeu nos procedimentos pela primeira vez. Fê-lo apenas com uma apresentação mínima e trazendo consigo várias folhas de papel em branco, um lápis e um afia. Durante a maior parte da hora seguinte, sentou-se ao lado do homem cuja vida virara do avesso e, com a sua ajuda, produziu retratos-robô das duas versões de Khalil, o iraquiano: a versão de 2012 que envergava roupas ocidentais e a versão que aparecera em Marrocos depois dos atentados de Washington envergando uma jilaba tradicional e coxeando notoriamente. Martel tinha um célebre olho para o detalhe (ele próprio o dissera muitas vezes em entrevistas à imprensa) e alegava nunca esquecer um rosto. Era também exigente, um traço que revelou plenamente quando Gabriel não conseguiu conceber um queixo adequado para a versão cirurgicamente retocada de Khalil. Passaram por três esboços antes de Martel, com inesperado entusiasmo, dar a sua aprovação.
— É ele. É o homem que vi em dezembro passado.
— Tem a certeza? — pressionou Gabriel. — Não tenha pressa. Podemos fazer outro esboço, se quiser.
— Não é necessário. Era exatamente assim.
— E o coxear? — perguntou Gabriel — Não referiu qual era a perna que estava lesionada.
— Era a direita.
— Tem a certeza disso?
— Sem qualquer dúvida.
— Ele deu alguma explicação?
— Disse que tinha sido num acidente de carro. Não disse onde.
Gabriel estudou os desenhos finais durante um longo momento antes de os levantar para que Natalie os visse. Os olhos dela arregalaram-se involuntariamente. Depois, retomando a compostura, desviou o olhar e assentiu lentamente com a cabeça. Gabriel colocou o primeiro esboço de lado e contemplou o segundo demoradamente. Era o novo rosto do terrorismo. Era o rosto de Saladino.
Arrastaram-no para o andar de cima, para o quarto da Madame Sophie, esfregaram-lhe o flanco do pescoço com batom vermelho-sangue e regaram-no com uma quantidade suficiente de perfume da Madame Sophie para que deixasse um rasto de vapor enquanto conduzia através da luz da aurora, derrotado e exausto, em direção à sua villa do outro lado da Baie de Cavalaire. Não foi sozinho. Nicolas Carnot, também conhecido como Christopher Keller, estava sentado no lugar do passageiro, com o telemóvel de Martel numa mão, uma arma na outra. Atrás deles, num segundo veículo, havia quatro agentes do Grupo Alpha. Previamente, tinham sido empregados de Dmitri Antonov na Villa Soleil. Agora, tal como Nicolas Carnot, estavam a trabalhar para Martel. As circunstâncias exatas que rodeavam a decisão de abandonar um chefe por outro eram nebulosas, mas coisas assim podiam acontecer em Saint-Tropez durante o verão.
Passavam exatamente doze minutos das cinco da manhã quando os dois veículos viraram para o caminho de acesso à villa. Olivia Watson sabia-o porque passara toda a noite deitada na cama acordada e correra para a janela do quarto ao ouvir o som das portas do carro a abrirem e fecharem no pátio. Agora, fingia dormir enquanto a cama ondulava sob o peso do seu amante errante. Ela rebolou para o outro lado e os seus olhos encontraram-se com os dele na penumbra.
— Onde é que estiveste, Jean-Luc?
— Negócios — murmurou ele. — Dorme.
— Há algum problema?
— Agora já não.
— Tentei telefonar-te, mas o meu telefone não está a funcionar. Também não há Internet e a nossa linha fixa está inativa.
— Deve ter havido alguma falha. — Os seus olhos fecharam-se.
— Porque é que o Nicolas está lá em baixo? E quem são aqueles outros homens?
— Eu explico tudo de manhã.
— Já é de manhã, Jean-Luc.
Ele ficou em silêncio. Olivia aproximou-se.
— Cheiras a outra mulher.
— Olivia, por favor.
— Quem é ela, Jean-Luc? Onde é que estiveste?
42
PARIS
O ajuste de contas que Paul Rousseau tinha estado a temer ocorreu no início dessa tarde no Ministério do Interior em Paris. Tal como Jean-Luc Martel, não enfrentou o seu destino sozinho; Gabriel foi com ele. Atravessaram o pátio lado a lado e marcharam pela grandiosa escadaria acima até ao imponente escritório do ministro, onde Rousseau, que nunca tivera tendência para conversa delicada de circunstância, confessou imediatamente os seus pecados operacionais. Os serviços secretos britânicos, disse, tinham identificado a origem das espingardas de assalto utilizadas no atentado de Londres como sendo de um franco-marroquino chamado Nouredine Zakaria, um criminoso profissional com ligações a uma das maiores redes francesas de tráfico de droga. Sem a autorização do seu chefe nem do Ministério do Interior, Rousseau e o Grupo Alpha tinham trabalhado com dois serviços aliados (os britânicos e, de forma bastante evidente, os israelitas) para se infiltrarem na supracitada rede e transformarem o seu líder num confidente. A operação, continuou ele, fora um êxito. Com base na informação fornecida pela fonte, o Grupo Alpha e os seus parceiros poderiam dizer com moderada confiança que o ISIS assumira o controlo de uma porção significativa do comércio ilícito de haxixe no Norte de África e que Saladino, o misterioso cérebro operacional iraquiano da divisão de operações externas no grupo, estava, provavelmente, escondido em Marrocos, um antigo protetorado francês.
O ministro reagiu basicamente tão bem quanto seria de esperar, que não foi nada bem. Seguiu-se um sermão, em grande medida profano. Rousseau ofereceu a sua demissão (redigira uma carta manuscrita durante a viagem da Provença para norte) e, durante um longo momento, o ministro pareceu preparado para aceitá-la. Passado muito tempo, deixou cair a carta no seu triturador de papel. A derradeira responsabilidade de proteger o solo francês de atentados terroristas, islâmicos ou outros, repousava nos ombros estreitos do ministro. Não estava disposto a perder um homem como Paul Rousseau.
— Onde é que está o Nouredine Zakaria agora?
— Desaparecido — disse Rousseau.
— Foi para o califado?
Rousseau hesitou antes de responder. Estava preparado para ofuscar os factos, mas, de forma alguma, diria uma mentira completa. Nouredine Zakaria, disse calmamente, estava morto.
— Morto como? — perguntou o ministro.
— Creio que ocorreu durante uma transação de negócios.
O ministro olhou para Gabriel.
— Suponho que o senhor teve alguma coisa a ver com isso.
— O falecimento do Zakaria precedeu o nosso envolvimento neste caso — respondeu Gabriel com uma precisão de advogado.
O ministro não se tranquilizou.
— E o líder da rede? O vosso novo confidente?
— O nome dele — disse Rousseau — é Jean-Luc Martel.
O ministro baixou o olhar e reorganizou os papéis sobre a sua secretária.
— Isso explicaria o vosso interesse no processo do Martel no dia em que o vosso quartel-general explodiu.
— Explicaria — disse Rousseau, mantendo-se firme.
— O Jean-Luc foi alvo de numerosas investigações. Todas chegaram à mesma conclusão: que não está envolvido no mundo da droga.
— Essa conclusão — disse Rousseau cuidadosamente — está errada.
— Tem a certeza disso?
— Obtive a confirmação por parte da mais alta autoridade no assunto.
— Quem?
— O próprio Jean-Luc Martel.
O ministro troçou:
— Porque é que ele lhe diria tal coisa?
— Não teve grandes hipóteses.
— Porquê?
— René Devereaux.
— O nome é-me familiar.
— Deveria ser — disse Rousseau.
— Onde é que está o Devereaux agora?
— No mesmo lugar que o Nouredine Zakaria.
— Merde — disse o ministro suavemente.
Houve um silêncio. Os fragmentos de pó flutuavam nos raios de sol que atravessavam a janela como peixes num aquário. Rousseau pigarreou delicadamente, um sinal de que estava prestes a aventurar-se a entrar em terreno traiçoeiro.
— Sei que o senhor ministro e o Martel são amigos — disse ele finalmente.
— Somos conhecidos — contestou rapidamente o ministro —, mas não somos amigos.
— O Martel ficaria surpreendido por ouvir isso. Na verdade, invocou o seu nome várias vezes, antes de finalmente aceitar cooperar.
O ministro não conseguiu ocultar a raiva contra Rousseau por lavar roupa suja francesa diante de um estrangeiro, e, para além do mais, um israelita.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou.
— Pretendo dizer — disse Rousseau — que vou precisar da cooperação permanente do Martel, o que exigirá que lhe seja concedida imunidade. Fazê-lo poderá ser um assunto sensível, dada a vossa relação, mas é necessário para que a operação possa avançar.
— Qual é o vosso objetivo?
— Eliminar o Saladino, claro.
— E pretendem utilizar o Martel nalgum tipo de função operacional?
— É a nossa única opção.
O ministro mostrou-se pensativo.
— Tem razão, conceder-lhe imunidade seria difícil. Mas se fosse o Rousseau a solicitá-la...
— Terá a documentação ao final do dia — interrompeu Rousseau. — Com franqueza, provavelmente é melhor assim. O senhor ministro não é a única pessoa do atual governo que é conhecido do Martel.
O ministro estava novamente a remexer nos papéis.
— Demos-lhe uma vasta margem de manobra quando criámos o Grupo Alpha, mas escusado será dizer que o Rousseau ultrapassou os limites da sua autoridade.
Rousseau aceitou a reprimenda com um silêncio compungido.
— Não me irão manter novamente na ignorância. Estamos entendidos?
— Sim, senhor ministro.
— Como pretende prosseguir?
— Nos próximos dez dias, o fornecedor marroquino do Martel, um homem chamado Mohammad Bakkar, vai enviar vários grandes carregamentos de haxixe a partir de portos da Líbia. É vital que os intercetemos.
— Sabe o nome das embarcações?
Rousseau assentiu com a cabeça.
— O Bakkar e o Saladino vão suspeitar de que há um informador.
— Correto.
— Vão ficar zangados.
Rousseau sorriu.
— Essa é a nossa esperança, senhor ministro.
O primeiro navio, um contentor flutuante com registo maltês chamado Mediterranean Dream, só deveria deixar a Líbia quatro dias depois. O seu ponto de partida era Khoms, um pequeno porto marítimo comercial a leste de Trípoli; após uma breve paragem na Tunísia, onde estava planeado que receberia uma carga de produto, dirigir-se-ia diretamente para Génova. Estava previsto que as outras duas embarcações, uma hasteando uma bandeira baamiana, a outra panamenha, partiriam de Sirte dali a uma semana, colocando, por conseguinte, Gabriel e Rousseau perante um pequeno dilema. Concordaram que apreender o Mediterranean Dream enquanto as outras duas embarcações ainda estavam no porto da Líbia seria um erro de cálculo, pois concederia a Mohammad Bakkar e a Saladino uma oportunidade para alterarem a rota da mercadoria. Em vez disso, aguardariam que os três navios estivessem em águas internacionais antes de dar o primeiro passo.
A demora pesou a ambos intensamente, principalmente a Gabriel, que observara o rosto retocado de Saladino emergir dos esforços da sua própria mão. Transportava sempre consigo o esboço, mesmo quando ia para a cama em Jerusalém, onde passou quatro noites agitadas ao lado da esposa. Na Avenida Rei Saul, sentou-se a ouvir relatórios intermináveis sobre assuntos que deixara nas mãos capazes de Uzi Navot, mas toda a gente conseguiu perceber que a sua cabeça não estava ali. Durante uma reunião de Conselho, a sua mente divagou enquanto os ministros discutiam incessantemente. No seu caderno desenhou um rosto. Um rosto parcialmente oculto pelo capuz de uma jilaba.
Rousseau acordou Gabriel cedo, na manhã seguinte, com notícias de que o Mediterranean Dream deixara a Tunísia durante a noite e estava agora em águas internacionais. Mas conteria efetivamente um carregamento escondido de haxixe de Marrocos? Apenas uma fonte dizia que sim, o homem que vivia à frente de Dmitri e Sophie Antonov, do outro lado da Baie de Cavalaire. O homem cujos inúmeros pecados tinham sido oficialmente perdoados e que estava agora sob controlo total e absoluto de um consórcio de três serviços secretos.
Contudo, aos olhos de um leigo, parecia não ter havido qualquer mudança exterior no seu comportamento, salvo a constante presença de Christopher Keller ao seu lado. De facto, para onde quer que Martel fosse, era certo que Keller o seguiria. Ao Mónaco e a Madrid, para duas reuniões de negócios previamente agendadas. A Genebra para uma sessão de esclarecimento com um banqueiro suíço de ética questionável. E, finalmente, a Marselha, de onde o chefe da divisão de estupefacientes ilícitos de Martel desaparecera sem deixar rasto, deixando para trás dois guarda-costas mortos na sua loja de produtos eletrónicos com vista para a Place Jean Jaurès. A polícia de Marselha acreditava que René Devereaux fora assassinado por um rival do submundo. Os parceiros de Devereaux, incluindo um tal Henri Villard, eram da mesma opinião. Durante uma reunião com Martel e Keller, num apartamento seguro próximo da Gare Saint-Charles, Villard mostrou-se nervoso quanto aos próximos carregamentos. Temia, com razão, que tivesse havido uma fuga de informação. Martel acalmou os seus medos e deu-lhe instruções para que recolhesse a carga da forma habitual. Um escrutínio minucioso da gravação captada pelo telefone do bolso de Keller (e dos movimentos e comunicações de Villard depois da reunião) sugeriu que Martel não tentara enviar um aviso clandestino à sua antiga rede. O haxixe estava a caminho, o pagamento estava programado para sair. Tanto para os traficantes como para os mestres de espionagem, tudo parecia correr sobre rodas.
A mensagem que motivaria a ação seguinte foi entregue através do canal habitual, de ministro do Interior para ministro do Interior, sem qualquer sensação indevida de urgência. Um informador que pertencia a um dos mais proeminentes gangues de droga franceses alegava que um grande carregamento de haxixe do Norte de África chegaria a Génova no dia seguinte, a bordo do Mediterranean Dream, registado como maltês. Talvez os italianos, se não tivessem nada melhor para fazer, quisessem examiná-lo. E fizeram-no, efetivamente. Na verdade, unidades da Guardia di Finanza, a agência policial italiana responsável pelo combate ao tráfico de droga, embarcaram no navio minutos após a sua chegada e começaram a forçar a abertura dos contentores. A sua busca renderia, eventualmente, quatro toneladas de haxixe marroquino, de forma nenhuma um recorde, mas uma apreensão respeitável. Depois disso, o ministro italiano telefonou ao homólogo francês e agradeceu-lhe pela informação. O ministro francês disse que ficava satisfeito por ter podido ajudar.
Embora tivesse sido uma grande notícia em Itália, a apreensão atraiu pouca atenção em França, menos ainda na antiga povoação de pescadores de Saint-Tropez. Mas, quando a polícia alfandegária francesa fez uma rusga a dois navios no dia seguinte (o Africa Star, com destino a Toulon, e o Caribbean Endeavor, com destino a Marselha), até mesmo a sonolenta Saint-Tropez ficou impressionada. O Africa Star renderia três toneladas de haxixe, o Caribbean Endeavor apenas duas. Mas também continha algo que apanhou Gabriel e Paul Rousseau de surpresa: um cilindro de chumbo, de quarenta centímetros de altura e vinte de diâmetro, escondido dentro de um rolo de cabo elétrico produzido por uma fábrica de um bairro industrial de Trípoli.
O cilindro não exibia marcas de qualquer tipo. Ainda assim, a polícia alfandegária francesa, que estava treinada para lidar com material potencialmente perigoso, sabia perfeitamente que não devia abri-lo. Efetuaram-se telefonemas, soaram alarmes e, ao início da noite, o contentor fora transportado de forma segura para um laboratório governamental francês nos arredores de Paris, onde os técnicos analisaram o pó semelhante a pó de talco que encontraram no interior. Em pouco tempo, determinaram que se tratava da substância altamente radioativa césio-137 ou cloreto de césio. Paul Rousseau e o ministro do Interior foram informados da descoberta às oito horas dessa noite e, vinte minutos depois, com Gabriel a segui-los um passo atrás, estavam a atravessar apressadamente as portas do Palácio do Eliseu para transmitir as notícias ao Presidente da República. Saladino estava a planear atacá-los novamente, desta vez com uma bomba suja.
TERCEIRA PARTE
O CANTO MAIS ESCURO
43
SURREY, INGLATERRA
Nunca se determinaria exatamente, de uma forma que satisfizesse plenamente ninguém, muito menos os franceses, como é que os americanos tinham sabido do carregamento escondido de césio. Era um daqueles mistérios que perduraria até muito depois de a poeira operacional assentar. No entanto, ouviram efetivamente falar disso (nessa mesma noite, na verdade) e, antes de o sol se erguer, exigiram que todas as partes relevantes se dirigissem para Washington para uma reunião de emergência. Graham Seymour e Amanda Wallace, os irmãos de sangue, declinaram educadamente. Perante a perspetiva de um dispositivo de dispersão radiológica nas mãos da rede de Saladino, não podiam dar-se ao luxo de serem vistos a correr até às antigas colónias para pedir ajuda. Eram totalmente a favor da cooperação transatlântica (na verdade, estavam perigosamente dependentes dela), mas, para eles, era uma simples questão de orgulho nacional. E, quando Gabriel e Paul Rousseau acrescentaram as suas objeções, os americanos rapidamente capitularam. Gabriel estava confiante nesse desfecho; tinha uma ideia bastante acertada do que os americanos queriam, em última instância. Queriam a cabeça de Saladino espetada num pau, e a única forma de a conseguirem era assumindo o controlo da operação de Gabriel. Seria melhor negar-lhes a vantagem de jogar em casa. As cinco horas de diferença horária, só por si, seriam suficientes para os manter em desequilíbrio.
Esperar uma delegação pequena seria esperar demasiado. Chegaram num avião Boeing estampado com o selo oficial dos Estados Unidos e viajaram para o local da conferência (um centro de treinos desativado do MI6, localizado numa casa senhorial vitoriana em Surrey) numa caravana comprida e ruidosa que cortou caminho através da paisagem rural como se estivesse a desviar-se de artefactos explosivos improvisados no Triângulo Sunita do Iraque ocupado. De um dos veículos saiu Morris Payne, o novo diretor da Agência. Payne era da Academia Militar dos Estados Unidos, estudara Direito numa das universidades mais conceituadas do país, trabalhara no setor privado e era um antigo membro profundamente conservador do Congresso, oriundo de uma das Dakotas. Era grande e abrupto, com um rosto que se assemelhava a uma estátua da Ilha da Páscoa e uma voz de barítono que fez estremecer as vigas do hall de entrada abobadado da casa antiga. Começou por cumprimentar Graham Seymour e Amanda Wallace (eram eles os anfitriões, afinal de contas, para não dizer família distante) antes de virar a potência máxima da sua personalidade de canhão de água para Gabriel.
— Gabriel Allon! Que bom conhecer-te finalmente. Um dos grandes. Uma lenda, verdadeiramente. Devíamos ter feito isto há muito tempo. O Adrian disse-me que estiveste na cidade e não vieste ver-me. Não vou levar a mal. Sei que tu e o Adrian têm uma longa história de colaboração. Fizeram um bom trabalho juntos. Espero que continuemos essa tradição.
Gabriel recuperou a sua mão e olhou para os homens que rodeavam o novo diretor dos serviços secretos mais importantes do mundo. Eram jovens, enxutos e duros, ex-militares como o seu patrão, todos bem treinados nos rudes golpes do combate burocrático de Washington. A mudança em relação à administração anterior era impactante. Se havia um lado positivo era que todos eles gostavam razoavelmente de Israel. Talvez gostassem demasiado, pensou Gabriel. Eram a prova viva de que era necessário ter cuidado com o que se desejava.
O facto de Adrian Carter não se encontrar entre os que estavam na órbita próxima do diretor era revelador. Estava, naquele momento, a sair de um jipe, juntamente com os restantes operacionais seniores. A maioria era desconhecida para Gabriel. Contudo, ele reconheceu um. Era Kyle Taylor, o chefe do Centro de Antiterrorismo da Agência. A presença de Taylor era um indicador perturbador das intenções de Langley; dizia-se que Taylor aniquilaria a própria mãe com um drone, se achasse que isso o faria conquistar o cargo de Carter e o seu escritório no sétimo andar. Envergava a sua ambição implacável como uma gravata cuidadosamente apertada. Contudo, Carter parecia ter acabado de ser acordado de uma sesta. Passou por Gabriel fazendo unicamente um aceno mínimo com a cabeça.
— Não te aproximes muito — sussurrou. — Posso contagiar-te.
— O que é que tens?
— Lepra.
Morris Payne estava agora a puxar repetidamente a mão de Paul Rousseau como se estivesse a tentar ganhar o seu voto. Seguindo a indicação de Graham Seymour, entrou para a sala de jantar formal do solar, que fora convertido há muito numa instalação insonorizada. Havia um cesto à entrada para telemóveis e, sobre o aparador vitoriano, uma variedade de aperitivos nos quais ninguém tocou. Morris Payne sentou-se na longa mesa retangular, flanqueado, de um lado, pelos seus assistentes jovens e duros e, do outro, por Kyle Taylor, o mestre dos drones. Adrian Carter foi relegado para a extremidade mais afastada: o local, pensou Gabriel, onde poderia fazer rabiscos a seu bel-prazer e sonhar com um emprego no setor privado.
Gabriel sentou-se no lugar que lhe fora atribuído e, imediatamente, virou ao contrário a pequena placa com o nome que algum funcionário zeloso do MI6 aí colocara. À sua esquerda, e exatamente à frente de Morris Payne, estava Graham Seymour. E à esquerda de Seymour estava Amanda Wallace, que parecia estar com medo de ser salpicada de sangue. A reputação de Morris Payne precedia-o. Durante o seu curto mandato, completara em grande medida a tarefa de transformar a CIA de serviço secreto em organização paramilitar. A linguagem de espionagem aborrecia-o. Era um homem de ação.
— Sabem que estamos todos em modo crise — começou Payne —, portanto não vou desperdiçar o tempo de ninguém. Todos vocês devem ser louvados. Preveniram uma calamidade. Ou, pelo menos, adiaram-na — acrescentou. — Mas a Casa Branca está a insistir, e, francamente, nós estamos de acordo, que Langley assuma a liderança disto e leve a operação para casa. Com todo o respeito, faz mais sentido. Temos o alcance e a capacidade, e temos a tecnologia.
— Mas nós temos a fonte — replicou Gabriel. — E nem todo o alcance e tecnologia do mundo a poderão substituir. Encontrámo-lo, queimámo-lo e recrutámo-lo. É nosso.
— E agora — disse Payne — vão entregar-no-lo.
— Desculpa, Morris, mas receio que isso não vá acontecer.
Gabriel olhou de soslaio para a ponta da mesa e viu Adrian Carter a tentar conter um sorriso. Dificilmente poderia ser considerado um começo auspicioso. Infelizmente, tudo declinou rapidamente a partir daí.
Ergueram-se vozes, esmurrou-se a mesa, proferiram-se ameaças. Ameaças de retaliação. Ameaças de suspensão de cooperação e retenção de ajudas fundamentais. Há não muito tempo, Gabriel poderia ter-se dado ao luxo de expor o bluff do diretor. Agora, tinha de proceder com cautela. Os britânicos não eram os únicos que estavam dependentes do poderio tecnológico de Langley. Israel precisava dos americanos ainda mais, e, sob nenhumas circunstâncias, Gabriel poderia dar-se ao luxo de alienar o seu mais valioso parceiro estratégico e operacional. Para além disso, apesar de toda a sua arrogância e fanfarronice, Morris Payne era um amigo que, globalmente, via o mundo da mesma forma que Gabriel. O seu predecessor, um falante fluente de árabe, fizera questão de se referir a Jerusalém como Al-Quds. Definitivamente, as coisas poderiam ser piores.
Perante a sugestão de Graham Seymour, fizeram uma interrupção para comer e beber. Depois disso, o ambiente tornou-se consideravelmente mais leve. Morris Payne admitiu que, durante o voo que atravessara o Atlântico, tivera tempo de examinar o processo da CIA sobre Gabriel.
— Tenho de o dizer, foi uma leitura impressionante.
— Surpreende-me que tenham conseguido fazer o processo caber dentro do vosso avião.
O sorriso de Payne foi genuíno.
— Ambos crescemos em quintas — disse ele. — A nossa ficava num recanto remoto da Dakota do Sul e a vossa no Vale de Jezreel.
— Junto de uma povoação árabe.
— Nós não tínhamos árabes. Só ursos e lobos.
Desta vez, foi Gabriel que sorriu. Payne mordiscou a ponta de uma sandes em miniatura ressequida.
— Já operaste no Norte de África anteriormente. Pessoalmente, quero dizer. Estiveste envolvido na operação Abu Jihad, na Tunísia, em 88. Tu e a tua equipa aterraram na praia e rebentaram caminho até ao interior da villa dele. Mataste-o no escritório, à frente dos filhos. Estava a ver vídeos da Intifada nesse preciso momento.
— Isso não é verdade — disse Gabriel passado um momento.
— Que parte?
— Não matei o Abu Jihad à frente da família. A filha dele entrou no escritório depois de ele já estar morto.
— O que é que fizeste?
— Disse-lhe para ir tomar conta da mãe. E, depois, fui-me embora.
Um silêncio abateu-se sobre a divisão. Foi Morris Payne quem o quebrou.
— Achas que consegues fazer isso outra vez? Em Marrocos?
— Estás a perguntar-me se temos essa capacidade?
— Faz-me a vontade — disse Payne.
Marrocos, respondeu Gabriel, estava perfeitamente dentro do alcance operacional do Departamento.
— Vocês têm relações razoáveis com o rei — assinalou Payne. — Relações que poderiam ser ameaçadas se algo corresse mal.
— Vocês também — respondeu Gabriel.
— Têm intenção de trabalhar com os serviços marroquinos?
— Vocês trabalharam com os paquistaneses quando foram atrás do Bin Laden?
— Vou considerar isso um «não».
— Muito provavelmente — disse Gabriel —, o Saladino está escondido em circunstâncias semelhantes àquelas em que o Bin Laden vivia em Abbottabad. Mais ainda, goza da proteção de um senhor da droga, um homem que, indubitavelmente, tem amigos em posições importantes. Contar aos marroquinos sobre a operação seria como contar ao próprio Saladino.
— Tens mesmo a certeza de que ele está realmente lá?
Gabriel colocou os dois retratos-robô sobre a mesa. Bateu suavemente sobre o primeiro, Saladino como aparecera na primavera de 2012, pouco depois de o ISIS se ter instalado na Líbia.
— Parece-se muitíssimo com o homem que eu vi no átrio do Four Seasons, em Georgetown, antes do atentado. Vê as gravações de videovigilância do hotel. Tenho a certeza de que vais chegar à mesma conclusão. — Gabriel bateu suavemente no segundo retrato. — E esta é a aparência dele agora.
— Segundo um traficante de droga chamado Jean-Luc Martel.
— Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, Morris. Às vezes são eles que nos escolhem a nós.
— Confias nele?
— Nada.
— Estás preparado para ir para a guerra com ele?
— Tens uma ideia melhor?
Era óbvio que não tinha.
— E se o Saladino não morder o isco?
— Acabou de perder cem milhões de euros em haxixe. E o césio.
O americano olhou para Paul Rousseau.
— O vosso pessoal conseguiu identificar a origem?
— A explicação mais provável — disse Rousseau — é que tenha vindo da Rússia ou de uma das antigas repúblicas soviéticas ou satélites. Os soviéticos usaram o césio de forma bastante indiscriminada e deixaram recipientes da substância espalhados um pouco por todo o lado, nas regiões rurais. Também é possível que tenha vindo da Líbia. Os rebeldes e as milícias invadiram as instalações nucleares líbias quando o regime colapsou. A AIEA estava particularmente preocupada com as instalações de pesquisa de Tajura. Talvez tenhas ouvido falar delas.
Payne indicou que sim.
— Quando é que o vosso governo está a planear fazer o anúncio?
— Sobre o quê?
— O césio! — explodiu Payne.
— Não estamos.
Payne pareceu incrédulo. Foi Gabriel que explicou.
— Um anúncio alarmaria desnecessariamente o público. E, mais importante do que isso, alertaria o Saladino e a sua rede para o facto de o material radiológico ter sido descoberto.
— Então, e se houve outro carregamento de césio que conseguiu passar? O que é que vai acontecer se uma bomba suja explodir no meio de Paris? Ou de Londres? Ou de Manhattan, já agora?
— Tornar a questão pública não fará com que isso seja nem mais nem menos provável. Contudo, manter o silêncio tem as suas vantagens. — Gabriel colocou uma mão no ombro de Graham Seymour. — Tiveste a oportunidade de ler o processo dele, diretor Payne? O pai do Graham trabalhou para os serviços secretos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Para o Comité da Dupla Cruz. Não disseram aos alemães quando detiveram os espiões deles na Grã-Bretanha. Mantiveram os espiões capturados vivos nas mentes dos seus superiores alemães e usaram-nos para fornecer informação enganosa ao Hitler e aos seus generais. E os alemães nunca tentaram substituir esses espiões capturados porque acreditavam que eles continuavam em funções.
— Portanto, se o Saladino pensar que o material conseguiu passar, não vai tentar enviar mais, é isso que estás a dizer?
Gabriel ficou em silêncio.
— Nada mau — disse o americano, sorrindo.
— Este não é o nosso primeiro rodeo.
— Tinham rodeos no Vale de Jezreel?
— Não — disse Gabriel. — Não tínhamos.
Depois disso, havia apenas um assunto final para tratar. Não era algo que pudesse ser abordado diante de uma sala cheia de espiões. Era uma questão bilateral, que precisava de ser gerida ao mais alto nível, chefe com chefe. Uma sala lateral sossegada não seria suficiente. Apenas o jardim amuralhado, com as suas fontes em ruínas e caminhos cobertos de erva, proporcionava o nível necessário de privacidade.
Apesar de ser pleno verão, o tempo estava fresco e cinzento e as sebes excessivamente grandes pingavam devido a um aguaceiro recente. Gabriel e Morris Payne caminharam lado a lado, lenta e pensativamente, separados no máximo por três centímetros. Vistos das janelas com estrutura de chumbo da antiga casa senhorial, faziam um par improvável: o americano grande, corpulento, das Dakotas; o diminuto israelita do antigo Vale de Jezreel. Morris Payne, sem casaco, gesticulava amplamente enquanto explicava os seus argumentos. Gabriel, a ouvir, esfregava o fundo das costas e, quando apropriado, assentia em concordância.
Cinco minutos depois de terem começado a conversa, pararam e viraram-se de frente um para outro, como se estivessem a confrontar-se. Morris Payne espetou um dedo indicador grosso no peito de Gabriel, dificilmente um sinal encorajador, mas Gabriel limitou-se a sorrir e a retribuir o favor. Depois, ergueu a mão esquerda sobre a cabeça e moveu-a de forma circular enquanto a direita pairava com a palma para baixo à altura da sua anca. Desta vez, foi Morris Payne que assentiu com a cabeça em aprovação. Aqueles que observavam a partir do interior perceberam o significado do momento. Fora alcançado um acordo operacional. Os americanos lidariam com os céus e a parte cibernética, os israelitas comandariam as operações no terreno e, caso surgisse a oportunidade, limpariam discretamente o sebo a Saladino.
Com isso, viraram-se para trás e começaram a dirigir-se novamente para a casa. Foi evidente para os que observavam do interior que Gabriel estava a dizer algo que desagradou intensamente a Morris Payne. Houve outra pausa e mais dedos apontados na direção dos peitos. Então, Payne virou o seu grande rosto de Ilha da Páscoa na direção do céu cinzento e exalou um suspiro de capitulação. Ao passar pela sala de reuniões, agarrou no casaco que repousava nas costas da cadeira e dirigiu-se para o exterior, seguido pela sua equipa executiva carrancuda e, alguns passos atrás, por Adrian Carter e Kyle Taylor. Gabriel e Graham Seymour acenaram-lhes a partir do pórtico como se estivessem a despedir-se de companhia indesejada.
— Conseguiste tudo o que querias? — perguntou Seymour através de um sorriso gelado.
— É o que vamos ver daqui a um minuto.
A formação de americanos estava agora a começar a dividir-se em células menores, com cada célula a dirigir-se para o jipe que a aguardava. Morris Payne deteve-se subitamente e chamou Carter para que se juntasse a ele. Carter separou-se dos restantes operacionais e, observado invejosamente por Kyle Taylor, entrou no jipe do diretor.
— Como é que conseguiste isso? — perguntou Seymour enquanto a caravana ribombante voltava à vida.
— Pedi com jeitinho.
— Quanto tempo é que achas que ele vai sobreviver?
— Isso — disse Gabriel — depende inteiramente do Saladino.
44
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Na manhã seguinte, toda a Avenida Rei Saul se preparou para a batalha. Até mesmo Uzi Navot, que se ocupara de outras operações durante as ausências prolongadas de Gabriel, se viu arrastado pelos intensos preparativos. Tiveram de dar o corpo ao manifesto, como se costuma dizer. O Departamento tinha lutado para assumir o controlo da operação e tinha saído airoso dessa luta. Porém, o triunfo implicava a enorme responsabilidade de fazer as coisas bem-feitas. Não havia notícia de uma operação de assassinato seletivo de semelhante calibre desde o ataque americano ao complexo de Osama Bin Laden em Abbottabad. Saladino controlava os meandros de uma rede terrorista internacional que provara ser capaz de atacar praticamente onde quisesse, uma rede que se apropriara de material radioativo para fabricar uma bomba suja mesmo às portas da Europa Ocidental. A aposta não podia ser mais alta, tinham-no bem presente a cada passo. A segurança do mundo civilizado estava literalmente em jogo. Tal como a carreira de Gabriel. O sucesso pouco acresceria à sua reputação. Já o fracasso, pelo contrário, invalidaria toda a trajetória anterior e incluiria o seu nome na lista de diretores caídos em desgraça, que ambicionaram muito e por isso mesmo pereceram.
Se estava preocupado com os possíveis danos infligidos ao seu legado pessoal como consequência de um fracasso, não o demonstrava, nem sequer na presença de Uzi Navot, que tinha aberto um sulco na alcatifa que ligava a sua porta e o gabinete que pouco antes fora seu, à custa de um ir e vir constante. Corria o boato de que Navot tinha tentado dissuadir Gabriel, que tinha aconselhado o antigo rival a deixar Jean-Luc Martel e Saladino nas mãos dos americanos e a centrar-se em assuntos mais próximos das suas fronteiras, como os iranianos. Para Navot, os riscos da operação eram demasiado altos e a recompensa demasiado baixa. Pelo menos era essa a versão que circulava pelos corredores e salas de acesso restrito da Avenida Rei Saul. Contudo, segundo reza a história, Gabriel recusara-se a ceder o controlo da operação. «E porque é que haveria de o fazer?», perguntou sagazmente um membro da divisão de Viagens. Saladino tinha levado a melhor a Gabriel naquela noite horrível, em Washington. E ainda havia Hannah Weinberg, claro está, a amiga e antiga cúmplice de Gabriel assassinada por Saladino em Paris. Não, concluiu o sagaz comentador, Gabriel não ia deixar Saladino nas mãos dos seus amigos de Washington. Ia enterrá-lo a sete palmos abaixo da terra. De facto, se tivesse oportunidade, possivelmente matá-lo-ia com as próprias mãos. Para ele já não se tratava de um assunto profissional, mas estritamente pessoal.
Mas um envolvimento pessoal numa operação era muitas vezes perigoso. Ninguém o sabia melhor do que o próprio Gabriel; a sua carreira falava por si. Assim, deixou Uzi Navot e os outros membros da sua equipa pessoal ultimarem todos os detalhes. Organizativamente, foi Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais quem se ocupou de planificar e levar a cabo a missão. Supervisionado por Gabriel, colocou rapidamente cada peça no devido lugar. Marrocos não era o Líbano nem a Síria, mas nem por isso deixava de ser um território hostil. Vinte vezes maior do que Israel, era um país vasto e de geografia variada, com planícies agrícolas, montanhas abruptas, desertos de areia do Saara e grandes cidades como Casablanca, Rabat, Tânger, Fez e Marraquexe. Encontrar Saladino, mesmo contando com a ajuda de Jean-Luc Martel, seria uma missão árdua. Matá-lo sem causar baixas colaterais e sair do país com certas garantias de segurança seria uma das provas mais difíceis que o Departamento tinha enfrentado ao longo da sua história.
A faixa costeira favorecia-os, tal como na Tunísia em abril de 1988. Naquela noite, Gabriel e uma equipa de vinte e seis membros da unidade de elite Sayeret Matkal tinham desembarcado de lanchas pneumáticas a curta distância da casa de Abu Jihad e, cumprida a missão, tinham partido da mesma maneira. Durante as semanas anteriores à intervenção, ensaiaram incalculáveis vezes o desembarque numa praia de Israel. Até construíram em pleno Negev um cenário semelhante à casa de Abu Jihad para que Gabriel ensaiasse a forma de chegar da porta de entrada até ao escritório do primeiro andar onde o número dois da OLP costumava passar as tardes. Porém, tais preparativos eram impossíveis no caso de Saladino já que ignoravam em que lugar de Marrocos se escondia. A bem da verdade, nem sequer tinham a certeza de que se encontrasse no país. A única coisa que sabiam era que um homem cuja descrição correspondia à sua tinha sido visto em Marrocos uns meses antes, depois dos atentados de Washington. Dispunham, pois, de muito menos informação do que os americanos antes da intervenção em Abbottabad. E tinham bem mais que perder.
Daí que tivessem de estar preparados para qualquer eventualidade ou, pelo menos, para tantas como pudessem razoavelmente prever. Faria falta uma equipa muito numerosa, maior do que em operações passadas, e todos os seus membros precisariam de um passaporte. A divisão de Identidade, a secção do Departamento que se encarregava de fornecer documentação aos agentes, esgotou rapidamente os seus recursos e Gabriel teve de pedir aos seus parceiros (franceses, britânicos e norte-americanos) que suprissem essa carência. Inicialmente, o pedido foi acolhido com reticências, mas graças à insistência de Gabriel todos acabaram por ceder. Os americanos até acabaram por concordar em reativar um velho passaporte em nome de Jonathan Albright com uma fotografia que recordava vagamente Gabriel.
— Diz-me que não estás a pensar em ir — disse Adrian Carter durante uma videoconferência segura.
— No verão? Ah, não — respondeu Gabriel. — Nem pensar. Nessa época do ano está demasiado calor em Marrocos.
Tinham de alugar carros e motas, reservar bilhetes de avião sem data de regresso e procurar alojamento. A maioria da equipa ficaria em hotéis nos quais estaria exposta à vigilância do serviço de segurança interna de Marrocos, a Direction de la Surveillance du Territoire ou DST. Mas, para instalar o posto de comando, Gabriel precisava de uma casa segura em condições. Foi Ari Shamron, da sua casa-fortaleza em Tiberíades, que deu com a solução. Tinha um amigo (um abastado empresário judeu marroquino que tinha fugido do país em 1967 depois do cataclismo da Guerra dos Seis Dias) que ainda possuía uma moradia no antigo bairro colonial de Casablanca. A casa estava vazia nesse momento, à exceção dos caseiros, um casal que vivia numa casa de hóspedes no seio da propriedade. Shamron recomendou que comprassem o imóvel em vez de o alugarem por um período breve e Gabriel concordou. Por sorte, o dinheiro não era um impedimento: Dmitri Antonov, apesar dos seus dispêndios mais recentes, continuava a nadar nele. Passou um cheque pelo valor total da compra e enviou um advogado francês (que na realidade era um agente do Grupo Alfa) a Casablanca para levantar a escritura. Ao acabar o dia, o Departamento estava na posse de uma base operativa bem no centro da cidade. Já só faltava Saladino.
A sua rede não deu mostras de atividade durante aqueles longos dias de planificação. Não houve atentados, nem dirigidos a alvos específicos, nem de lobos solitários, mas os diversos canais do ISIS nas redes sociais fervilhavam de rumores. Estava a tramar-se algo muito grande, diziam, algo que eclipsaria os atentados de Washington e Londres, o que contribuiu para aumentar a tensão dentro de Avenida Rei Saul, em Langley e em Vauxhall Cross. Tinham de retirar Saladino da circulação o mais depressa possível.
Mas será que a sua morte poria fim ao massacre? A sua rede morreria com ele?
— É improvável — assegurava Dina Sarid.
De facto, o seu maior temor era que Saladino tivesse criado dentro da rede terrorista uma espécie de interruptor de emergência: um mecanismo que desencadearia automaticamente uma série de ataques homicidas caso ele morresse. Por outro lado, o ISIS já tinha demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Se o califado no Iraque e na Síria se perdesse fisicamente, afirmava Dina, erguer-se-ia em seu lugar um califado virtual. Um «cibercalifado», como ela o chamava, no qual as velhas normas não teriam aplicação. Os futuros mártires radicalizar-se-iam em meandros recônditos da dark net e seriam conduzidos para os seus alvos por cérebros criminosos que não conheciam pessoalmente. Assim era o admirável mundo novo gerado pela Internet, pelas redes sociais e pelas mensagens encriptadas.
Não obstante, tinha uma preocupação mais imediata: os trezentos gramas de cloreto de césio depositados num laboratório estatal, nos arredores de Paris. O cloreto de césio que, no entender de Saladino, permanecia a bordo de um cargueiro apreendido no porto de Toulon. Mas teria enviado o arsenal completo num só barco ou parte dele encontrar-se-ia já em poder de uma célula terrorista disposta a atentar? A próxima bomba que rebentasse numa cidade europeia conteria um núcleo radioativo? À medida que passavam os dias sem terem notícias do fornecedor marroquino de Jean-Luc Martel, Paul Rousseau e o ministro francês começaram a perguntar-se se não estaria na hora de advertir os seus homólogos europeus da grave ameaça. Mas Gabriel, com a ajuda de Graham Seymour e dos americanos, convenceu-os a permanecerem em silêncio. Uma advertência, mesmo que formulada em linguagem rotineira, implicava o risco de pôr a descoberto a operação. Haveria fugas de informação; era inevitável. E se a notícia se espalhasse, Saladino chegaria à conclusão de que existia um vínculo entre a apreensão dos seus carregamentos de haxixe e a apreensão do pó radioativo oculto dentro de uma bobina de cabo elétrico.
— Se calhar ele já chegou a essa conclusão — comentou Rousseau, pesaroso. — Talvez nos tenha voltado a bater aos pontos.
Intimamente, Gabriel também o temia. E o mesmo podia dizer dos americanos, que, durante uma acalorada videoconferência celebrada na segunda sexta-feira de agosto, lhe exigiram de novo que deixasse Jean-Luc Martel nas suas mãos e cedesse o controlo da operação a Langley. Gabriel opôs-se e, quando os americanos insistiram, fez a única coisa que podia fazer: desejou-lhes um bom fim de semana e a seguir ligou a Chiara para a informar de que nesse Shabbath iriam jantar a Tiberíades.
45
TIBERÍADES, ISRAEL
Tiberíades, uma das quatro cidades santas do judaísmo, está situada na margem ocidental dessa massa de água à qual os israelitas chamam lago Kinneret e o resto do mundo conhece como Mar da Galileia. Para lá dos seus arrabaldes encontra-se a pequena moshav de Kfar Hittim, que se erige no lugar em que, numa abrasadora tarde de verão de 1187, o verdadeiro Saladino derrotou os exércitos cruzados enlouquecidos pela sede numa batalha decisiva que devolveu o controlo de Jerusalém aos muçulmanos. Saladino não mostrou piedade alguma pelos seus inimigos apesar de os ter derrotado. Decepou pessoalmente o braço a Renaud de Châtillon na sua tenda quando o francês se recusou a converter-se ao islamismo. Condenou o resto dos cruzados sobreviventes à morte por decapitação, o castigo habitual no caso dos infiéis.
Mais ou menos a um quilómetro a norte de Kfar Hittim havia um promontório rochoso do qual se avistava o lago e a abrasadora planície onde se travara a antiga batalha. Fora precisamente esse o sítio escolhido por Ari Shamron para instalar o seu lar. Afirmava que, quando o vento soprava na direção adequada, podia ouvir o chocar das espadas e os lamentos dos moribundos. Dizia que lhe recordavam a transitoriedade do poder político e militar naquele turbulento recanto do Mediterrâneo oriental. Cananeus, hititas, amalequitas, moabitas, gregos, romanos, persas, árabes, turcos, britânicos... Todos eles tinham chegado àquelas terras e tinham partido. Os judeus, apesar de todas as hipóteses desfavoráveis, tinham conseguido representar o que sem dúvida era o segundo ato mais impressionante da História: dois milénios após a queda do Segundo Templo, tinham regressado à cena. Mas, dando ouvidos à própria História, os seus dias naquela região estavam contados.
Há poucas pessoas que possam afirmar que ajudaram a erguer um país. E menos ainda um serviço secreto. Ari Shamron, no entanto, tinha conseguido fazer ambas as coisas. Nascido no Leste da Polónia, emigrou para o protetorado britânico da Palestina em 1937, quando a calamidade se abatia sobre os judeus de toda a Europa, e combateu na guerra que se desencadeou depois da fundação do Estado de Israel em 1948. No rescaldo do conflito, enquanto o mundo árabe maquinava para estrangular o novo Estado judeu ainda no berço, Shamron integrou-se num pequeno organismo ao qual os seus membros simplesmente chamavam «o Departamento». Entre as suas primeiras missões constou a identificação e assassinato de vários cientistas nazis que estavam a ajudar o mandatário egípcio Gamal Abdel Nasser a construir uma bomba atómica. Mas a façanha que coroou a sua carreira como agente no ativo não teve como cenário o Médio Oriente, mas sim uma esquina de uma rua do bairro industrial de San Fernando, em Buenos Aires. Ali, numa noite chuvosa de maio de 1960, Shamron introduziu Adolf Eichmann, o artífice da Solução Final, à força na parte de trás de um carro, naquela que foi a primeira escala de uma viagem que, para Eichmann, concluiria numa forca israelita.
Já para Shamron, aquilo foi só o princípio. Poucos anos depois, atribuíram-lhe a direção dos serviços secretos a cuja criação tinha assistido, logo, a defesa da nação. Da sua guarida na Avenida Rei Saul, com os seus arquivos de metal cinzento e um permanente fedor a tabaco turco, Shamron infiltrou os seus agentes nas cortes de monarcas, roubou segredos a tiranos e eliminou incontáveis inimigos. Manteve-se no cargo bem mais tempo do que os seus predecessores e, no final dos anos noventa, depois de uma série de falhanços operacionais, abandonou felizmente a sua reforma para endireitar o rumo da nave e devolver o antigo esplendor ao Departamento. Encontrou um cúmplice num agente de campo que se tinha encerrado para chorar as suas mágoas numa casinha de campo nas margens de Helford Passage, na Cornualha. Agora, por fim, o destino do Departamento estava entregue a esse agente. E o fardo de preservar as duas criações de Shamron (o seu país e os serviços secretos nacionais) recaía sobre os seus ombros.
Shamron fora escolhido para capturar Eichmann devido às suas mãos, anormalmente grandes e fortes para um homem de tão baixa estatura. Quando Gabriel entrou na casa carregando um filho em cada braço, essas mãos estavam pousadas sobre o cabo de uma bengala de oliveira. Gabriel deixou as crianças ao cuidado de Shamron e regressou ao seu jipe blindado para ir buscar as três travessas de comida que Chiara tinha preparado nessa mesma tarde. Gilah, a sofrida esposa de Shamron, acendeu as velas do Shabbath ao pôr-do-sol enquanto o marido recitava as bênçãos do pão e do vinho com o sotaque yiddish da sua infância passada na Polónia. Por um instante, Gabriel teve a impressão de que não existiam nem a operação nem Saladino, mas só a sua família e a sua fé.
Mas foi uma sensação efémera. Efetivamente, durante o jantar, enquanto os restantes conversavam sobre política e lamentavam o matsav, a situação, Gabriel distraía-se e de vez em quando olhava para o telemóvel. Shamron, que o vigiava da cabeceira da mesa, sorriu. Não lhe ofereceu palavras tranquilizadoras para aliviar o seu evidente mal-estar. Para Shamron, as operações de espionagem eram como o oxigénio: até uma má operação era melhor do que nenhuma.
Quando acabaram de jantar, Gabriel seguiu-o até à divisão do rés-do-chão que lhe servia de escritório e oficina. As peças de um rádio antigo estavam espalhadas pela bancada de trabalho como os escombros de um bombardeio. Shamron sentou-se e, com um estalo do seu velho isqueiro Zippo, acendeu um dos seus famigerados cigarros turcos. Gabriel desviou o fumo e contemplou as lembranças pulcramente dispostas nas estantes. Reparou logo numa fotografia emoldurada de Shamron e Golda Meir tirada no dia em que ela lhe ordenou «mandar os rapazes» vingar a morte dos onze treinadores e atletas israelitas assassinados nos Jogos Olímpicos de Munique. Perto da fotografia havia um estojo de vidro do tamanho aproximado de uma caixa de charutos. Lá dentro, dispostos sobre um pano escuro, descansavam onze cartuchos de calibre 22.
— Estão aqui guardados para ti — comentou Shamron.
— Não os quero.
— E porquê?
— São macabros.
— Foste tu que descobriste como enfiar onze balas num carregador de dez, não fui eu.
— Talvez me dê medo que um dia alguém tenha uma caixa como essa numa estante, com o meu nome escrito.
— Podes contar com isso, meu filho. — Shamron acendeu a luz de trabalho apetrechada com uma lupa.
— Vejo-te muito comedido.
— O que é que isso quer dizer?
— Não me perguntaste nem uma só vez pela operação.
— Porque é que haveria de o fazer?
— Porque és patologicamente incapaz de não te meter nos assuntos alheios.
— Razão pela qual sou espião. — Shamron ajustou a lupa para examinar um troço de circuito muito desgastado.
— Que tipo de rádio é que é?
— Um RCA Catalin, um modelo art déco com carcaça de polímero marmoreado. Onda curta e normal. Foi fabricado em 1946. Imagina — acrescentou Shamron assinalando o autocolante de papel original colado na base do rádio — que algures na América, em 1946, alguém estava a montar este rádio enquanto pessoas como os teus pais tentavam recompor as suas vidas.
— É um rádio, Ari. Não tem nada que ver com a Shoah.
— Era só um comentário. — Shamron sorriu. — Pareces tenso. Tens alguma preocupação?
— Não, nenhuma.
Permaneceram em silêncio enquanto Shamron continuava a manusear as suas ferramentas. Reparar rádios antigos era o seu único passatempo, para além de se intrometer na vida de Gabriel.
— O Uzi disse-me que estás a pensar em ir a Marrocos — disse por fim.
— Porque é que te disse isso?
— Porque não conseguiu dissuadir-te e pensou que eu talvez fosse capaz.
— Ainda não tomei uma decisão.
— Mas pediste aos americanos para te renovarem o passaporte.
— Para o reativarem — esclareceu Gabriel.
— Renovar, reativar... o que é que interessa? Para começar, nunca o devias ter aceitado. Estava melhor num pequeno caixão de vidro, tal como aqueles cartuchos.
— Foi uma ajuda preciosa em inúmeras ocasiões.
— Azul e branco — afirmou Shamron. — Fazemos as nossas coisas e não ajudamos os outros a resolver problemas que eles próprios criaram.
— Talvez antes fosse assim — respondeu Gabriel —, mas já não, não podemos continuar a operar desse modo. Precisamos de aliados.
— Os aliados arranjam sempre maneira de te dececionar. E esse passaporte não te vai servir de nada se alguma coisa correr mal em Marrocos.
Gabriel apanhou o estojo com os vinte e dois cartuchos de bala usados.
— Se não me falha a memória, e de certeza que não, tu estavas no banco de trás de um carro estacionado na Piazza Annibaliano enquanto eu me ocupava do Zwaiter naquele bloco de apartamentos.
— Naquele tempo era o chefe das Operações Especiais. Tinha de estar em campo, era a minha obrigação. Um exemplo mais adequado — continuou Shamron — seria o de Abu Jihad. Então já era diretor e fiquei a bordo do barco enquanto tu e o resto da equipa iam para terra.
— Com o ministro da Defesa, se não me falha a memória.
— Foi uma operação importante; quase tão importante — disse Shamron baixinho — como a que estás prestes a levar a cabo. Está na hora de o Saladino sair de cena, sem cumprimentar o público nem fazer encores. Mas tenta garantir que não consegue aquilo de que anda desesperadamente à procura.
— O quê?
— Tu.
Gabriel devolveu o estojo à estante.
— Permites-me que te faça uma ou duas perguntas? — disse Shamron.
— Se isso te faz feliz...
— Vias de escape?
Gabriel explicou-lhe que teria duas: uma corveta israelita e um cargueiro de bandeira liberiana, o Neptune, que era na realidade uma estação de radar e escuta operada pelo AMAM, o serviço de espionagem do exército israelita. O Neptune estaria ancorado em frente a Agadir, na costa atlântica de Marrocos.
— E a corveta? — perguntou Shamron.
— Num pequeno porto do Mediterrâneo chamado El Jebha.
— Imagino que é aí que desembarcará a equipa da Sayeret.
— Só se o considerar necessário. Afinal de contas — explicou Gabriel —, disponho de um ex-agente da Sayeret e de um veterano do Serviço Aéreo Especial britânico.
— Para quem será uma missão mais do que suficiente manter sob controlo esse tal Jean-Luc Martel. — Shamron abanou a cabeça lentamente. — Às vezes, o pior ao recrutar um colaborador é que depois não te podes livrar dele. Faças o que fizeres, não te fies dele.
— Nem me passa pela cabeça.
O cigarro de Shamron tinha-se apagado. Acendeu outro e continuou a trabalhar no rádio enquanto Gabriel contemplava a fotografia da estante tentando associar a imagem a preto e branco de um espião na flor da idade com o idoso que tinha à frente dos olhos. Tinha sucedido tão depressa... Em breve, pensou, acontecer-lhe-ia o mesmo a ele. Nem sequer Raphael e Irene podiam impedir o inevitável.
— Não vais atender? — perguntou Shamron de repente.
— Atender o quê?
— O telefone. Está a distrair-me.
Gabriel olhou para baixo. Estava tão ensimesmado que não tinha ouvido a mensagem enviada do andar seguro de Ramatuelle.
— E então? — perguntou Shamron.
— Parece que o Mohammad Bakkar quer falar com o Jean-Luc Martel sobre essa droga que se extraviou. Pergunta se pode ir a Marrocos no princípio da semana que vem.
— Estará disponível?
— O Martel? Acho que podemos encontrar um buraco na sua agenda.
Sorridente, Shamron ligou o rádio à tomada da bancada e acendeu-o. Pouco depois, após uma tentativa de sintonização, ouviu-se uma melodia.
— Não a reconheço — disse Gabriel.
— Claro, és demasiado jovem. É Artie Shaw. A primeira vez que ouvi esta música... — Shamron deixou a frase em suspenso.
— Como é que se chama? — perguntou Gabriel.
— You’re a lucky guy: és um tipo sortudo. — Nesse momento apagou-se o rádio e a música parou. Shamron franziu a testa. — Ou talvez não.
46
CASABLANCA, MARROCOS
A estrada que ligava o Aeroporto Internacional Mohammed V de Casablanca ao centro da maior cidade e principal centro financeiro de Marrocos era formada por quatro faixas de rijo alcatrão negro como o breu pelo qual Dina, uma condutora temerária por natureza e nacionalidade, conduzia com extraordinário cuidado.
— O que é que te preocupa tanto? — perguntou Gabriel.
— Tu — respondeu Dina.
— O que é que eu fiz desta vez?
— Nada. Mas é a primeira vez que faço de motorista do chefe.
— Bom — afirmou ele a olhar pela janela —, há uma primeira vez para tudo.
O saco de viagem de Gabriel descansava sobre o banco de trás. Já a pasta ia apoiada sobre os joelhos. Lá dentro estava o passaporte americano que lhe tinha permitido passar sem contratempos pelo controlo fronteiriço e pela alfândega marroquina. As coisas em Washington podiam ter mudado, mas ser americano continuava a ser uma vantagem em grande parte do mundo.
O trânsito estancou de repente.
— Uma operação stop — explicou Dina. — Estão por todo o lado.
— Achas que andam à procura de quê?
— Se calhar do chefe dos serviços secretos israelitas.
Uma fileira de cones cor de laranja desviava o trânsito para a berma, onde dois gendarmes inspecionavam os veículos e respetivos ocupantes, vigiados por um agente da DST vestido à paisana e com óculos de sol. Enquanto abria a janela, Dina dirigiu umas palavras a Gabriel em alemão, a língua correspondente à sua identidade fictícia e ao seu passaporte falso. Os aborrecidos gendarmes fizeram-lhe sinais para avançar como se espantassem moscas. O homem da DST parecia distraído.
Dina voltou a fechar rapidamente a janela para impedir que o denso e implacável calor exterior entrasse e pôs o ar condicionado no máximo. Passaram por umas grandes dependências militares. Depois apareceram de novo as terras agrícolas, pequenas parcelas de terra fértil e escura, cultivadas principalmente pelos habitantes das povoações próximas. A Gabriel, a mata de eucalipto lembrou-lhe de casa.
Por fim chegaram à periferia desigual de Casablanca, a segunda cidade mais populosa do Norte de África, só ultrapassada pela megalópole do Cairo. Os terrenos cultivados não desapareceram por completo: ainda se viam alguns entre os elegantes blocos de apartamentos recém-construídos e os bairros de lata que albergavam centenas de milhares das pessoas mais miseráveis em barracas feitas de chapas metálicas e blocos de cimento.
— Chamam-nos bidonvilles — comentou Dina apontando para um dos bairros de lata. — Calculo que soe melhor do que «subúrbios». Quem lá vive não tem nada. Nem água corrente, nem praticamente nada que levar à boca. De vez em quando, as autoridades tentam demoli-las, mas as pessoas voltam a construir as suas barracas. Que remédio é que têm? Não têm outro lugar para onde ir.
Passaram por um terreno de erva acastanhada e rala onde dois meninos descalços vigiavam um rebanho de cabras esqueléticas.
— Uma coisa que abunda nos bidonvilles é o Islão — prosseguiu Dina. — Cada vez mais radical, graças aos pregadores wahhabi e salafistas. Lembras-te dos atentados de 2003? Todos os rapazes que se imolaram provinham dos bidonvilles de Sidi Moumen.
Naturalmente que Gabriel se lembrava dos atentados, embora em grande parte do Ocidente tivessem caído no esquecimento: catorze bombas contra objetivos ocidentais e judeus, quarenta e cinco mortos, mais de uma centena de feridos. Foram obra de uma filial da Al-Qaeda conhecida como Salafia Jihadia que por sua vez estava vinculada ao Grupo Islâmico Combatente Marroquino. Apesar de toda a beleza natural e do turismo ocidental que visitava o país, Marrocos ainda era um viveiro de islamitas radicais no qual o ISIS estava profundamente enraizado, facto atestado pelas suas inúmeras células. Mais de mil e trezentos marroquinos tinham ido para o califado a fim de lutarem nas fileiras do ISIS (juntamente com várias centenas de cidadãos franceses, belgas e holandeses de origem marroquina), e os marroquinos tinham desempenhado um papel crucial na recente campanha terrorista do ISIS na Europa ocidental. E depois havia Mohammed Bouyeri, o marroquino holandês que tinha atingido a tiro e apunhalado o cineasta e escritor Theo van Gogh numa rua de Amesterdão. O crime não foi produto do ato espontâneo de um perturbado: Bouyeri fazia parte de uma célula de muçulmanos radicais oriundos do Norte de África e radicados em Haia conhecida como «Rede Hofstad». Os serviços de segurança marroquinos tinham conseguido desarticular as atividades dos seus extremistas no estrangeiro, mas dentro de portas continuavam a abundar as conspirações terroristas. O ministro do Interior tinha-se gabado há pouco tempo de que tinham desarticulado mais de trezentas, entre elas uma que incluía o uso de gás-mostarda. Na opinião de Gabriel, mais valia manter o silêncio sobre certas coisas.
Subiram uma lomba e o Atlântico azul pálido espraiou-se perante eles. O Morocco Mall, com os seus cinemas futuristas e lojas ocidentais, ocupava uma faixa de terra recém-urbanizada ao longo da costa. Dina seguiu a Corniche rumo ao centro urbano passando em frente de cafés, restaurantes e mansões de uma brancura resplandecente. Uma delas tinha o tamanho de um bloco de escritórios.
— Pertence a um príncipe saudita. E ali — disse Dina — fica o Four Seasons.
Abrandou para Gabriel poder dar uma espreitadela. No gradeamento que dava acesso aos jardins do hotel, dois guardas vestidos de escuro inspecionavam a parte de baixo de um carro que acabava de chegar, à procura de explosivos. Só quem passava a inspeção tinha autorização para aceder à avenida que conduzia ao estacionamento coberto do hotel.
— Há um magnetómetro do outro lado da porta — informou Dina. — Inspeciona a bagagem de todos os hóspedes sem exceção. Vamos ter de trazer as armas pela praia. Não constitui um problema.
— Achas que os rapazes da Salafia Jihadia também sabem disso?
— Espero que não — respondeu Dina com um dos seus raros sorrisos.
Continuaram a avançar pela Corniche deixando a imponente mesquita Hassan II, as muralhas exteriores da antiga medina e o imenso porto para trás. Entraram finalmente no antigo bairro colonial francês, com as suas largas e sinuosas alamedas e uma mistura única de arquitetura mourisca, art nouveau e art déco. Outrora, os vizinhos mais cosmopolitas de Casablanca passeavam-se por entre as elegantes colunas engalanados à última moda parisiense e jantavam nalguns dos melhores restaurantes do mundo. Agora, o bairro era um monumento à decadência e à insegurança cidadã. As flores de estuque das fachadas estavam cobertas de fuligem e o óxido apodrecia as balaustradas de ferro forjado. A classe abastada tentava não se aventurar para além dos modernos quartiers de Gauthier e Maarif, e o centro histórico tinha-se convertido no domínio daqueles que usavam véu ou jilaba e de vendedores de rua que apregoavam fruta estragada e cassetes económicas com sermões e versículos do Corão.
O único sinal de progresso era o flamejante elétrico que serpenteava pelo Boulevard Mohammed V, em frente de lojas encerradas e arcadas nas quais dormitavam indigentes sobre leitos de papelão. Dina seguiu um elétrico ao longo de vários quarteirões, depois virou para uma estreita rua secundária e encostou. De um lado havia um prédio de habitação de oito andares que parecia prestes ruir sob o peso das antenas parabólicas que brotavam como cogumelos das suas varandas. Do outro, erguia-se uma parede desconchavada e coberta de plantas trepadeiras, com uma porta de cedro que outrora teria estado ornamentada. Um cão ofegante e de aspeto feroz montava guarda diante dela.
— Porque é que parámos? — perguntou Gabriel.
— Porque já chegámos.
— Onde?
— Ao posto de comando.
— Deves estar a brincar.
— Não.
Gabriel olhou para o cão com desconfiança.
— E ele?
— É inofensivo. O preocupante são as ratazanas.
Nesse momento, uma ratazana escapuliu-se pelo passeio. Tinha o tamanho de um guaxinim. O cão encolheu-se, assustado. E o mesmo fez Gabriel.
— Se calhar devíamos voltar para o Four Seasons.
— Não é seguro.
— Este lugar também não é.
— Não é tão mau quando te acostumas.
— Como é por dentro?
Dina desligou o motor.
— Há fantasmas. Mas de resto é bastante agradável.
Passaram junto ao cão ofegante e, ao atravessar a porta de cedro, penetraram num paraíso escondido. Havia uma piscina de um azul-escuro, uma pista de ténis de terra batida e um jardim aparentemente infinito pejado de buganvílias, hibiscos, palmeiras e bananeiras. A casa, imensa, era de estilo tradicional marroquino, com pátios interiores de azulejos nos quais o murmúrio incessante de Casablanca se dissolvia no silêncio. As divisões labirínticas pareciam congeladas no tempo. Poderia ser 1967, o ano em que o proprietário enfiou alguns bens pessoais numa mala de viagem e fugiu para Israel. Ou quiçá, pensou Gabriel, uma época mais simpática. Um período em que naquele bairro todos falavam francês e se perguntavam quanto tempo é que os alemães demorariam a desfilar pelos Campos Elísios.
Os caseiros chamavam-se Tarek e Hamid. Tinham comprado o cargo aos seus predecessores, demasiado idosos para continuarem a tratar da propriedade. Evitavam o interior da casa e limitavam as suas atividades ao jardim e à casinha de hóspedes. Os respetivos filhos, netos e esposas viviam num bidonville próximo.
— Somos os novos donos — disse Gabriel. — Porque é que não podemos simplesmente despedi-los?
— Não é boa ideia — respondeu Yaakov Rossman.
Antes de ser transferido para o Departamento, Rossman tinha trabalhado para o Shabak, o serviço de segurança interior de Israel, a dirigir agentes que operavam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Falava árabe com fluência e era um perito em cultura árabe e islâmica.
— Se tentarmos livrarmo-nos deles, vai haver confusão. E isso podia afetar o nosso disfarce.
— Então damos-lhes uma indemnização generosa.
— Ainda era pior, porque viriam parentes de todos os cantos do país bater-nos à porta a pedir dinheiro. — Yaakov abanou a cabeça com um ar de reprovação. — Não sabes muito sobre esta gente, pois não?
— Então, ficamos com os caseiros — disse Gabriel. — Mas que parvoíce é essa de haver fantasmas na casa?
Estavam rodeados pelo fresco silêncio do pátio principal da casa. Yaakov olhou para Dina com nervosismo, ela por sua vez olhou para Eli Lavon. Foi Lavon, o amigo mais antigo de Gabriel, que por fim respondeu:
— Chama-se Aisha.
— A mulher de Maomé?
— Não, essa não. Outra Aisha.
— Outra como?
— É um jinn.
— Um quê?
— Uma espécie de demónio.
Gabriel olhou para Yaakov à procura de uma explicação.
— Os muçulmanos acham que Alá fez o homem a partir do barro. Pelo contrário, acham que os jinns são feitos de fogo.
— E isso é mau?
— Muito. De dia, os jinns vivem entre nós dentro de objetos inanimados e têm uma vida muito parecida à nossa. Mas à noite adotam a forma que lhes apetecer.
— Então são mutantes — disse Gabriel, cético.
— E malvados — acrescentou Yaakov com um assentimento grave. — O que mais gostam é de fazer mal aos humanos. A crença nos jinns está especialmente enraizada aqui, em Marrocos. Certamente é um vestígio das crenças berberes anteriores à chegada do Islão.
— Mas o facto de os marroquinos acreditarem neles não significa que sejam reais.
— Está no Corão — afirmou Yaakov na defensiva.
— Isso também não os torna reais.
Houve outra troca de olhares nervosos entre os três agentes veteranos do Departamento. Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas vocês não acreditam nessas baboseiras, pois não?
— Ontem à noite ouvimos imensos barulhos esquisitos dentro da casa — disse Dina.
— De certeza que está infestada de ratazanas.
— Ou de jinns — disse Yaakov. — Às vezes aparecem em forma de ratazanas.
— Achava que só havia um.
— A Aisha é a líder. Pelos vistos, há muitos mais.
— Quem é que o diz?
— O Hamid. É um especialista.
— Não me digas. E o que é que o Hamid sugere que façamos a esse respeito?
— Um exorcismo. A cerimónia dura dois dias e inclui o sacrifício de uma cabra.
— Podia obstaculizar a operação — concluiu Gabriel depois de ponderar devidamente a ideia.
— Sim, pois podia — concordou Yaakov.
— Não há outras medidas que possamos adotar, para além de um exorcismo em grande escala?
— A única coisa que podemos fazer é tentar que não se zangue.
— Quem? A Aisha?
— Quem é que havia de ser?
— E que coisas é que a irritam?
— Não podemos abrir as janelas, nem cantar, nem rir. E também não é permitido levantar a voz.
— Só isso?
— O Hamid aspergiu com sal, sangue e leite todos os cantos dos quartos.
— Que alívio.
— Também nos disse para não tomarmos duche à noite, nem usarmos a sanita.
— Porque não?
— Porque os jinns vivem debaixo de água. Se os incomodarmos...
— Sim?
— O Hamid diz que uma grande tragédia se abaterá sobre nós.
— Isso parece terrível. — Gabriel percorreu o belo pátio com o olhar. — Este lugar tem nome?
— Não, e se tem ninguém se lembra dele — respondeu Dina.
— Então, que nome é que vamos usar?
— Dar al-Jinns — propôs Lavon com um ar sombrio.
— Talvez a Aisha se zangue — disse Gabriel. — Proponham outro.
— Que tal Dar al-Jawasis? — perguntou Yaakov.
Sim, era melhor, pensou Gabriel. Dar al-Jawasis. A Casa dos Espiões.
Combinaram que as esposas e as filhas mais velhas de Tarek e Hamid lhes fariam uma refeição tradicional marroquina. Chegaram pouco depois: duas mulheres rechonchudas, tapadas pelo véu, e quatro raparigas bonitas, carregadas com cestos de verga que transbordavam de carne e verduras compradas nos bazares da medina velha. Passaram toda a tarde a cozinhar na enorme cozinha enquanto conversavam baixinho em darija, para não incomodarem os jinns. Pouco depois, a casa inteira cheirava a cominhos, gengibre, coentros e malagueta.
Gabriel espreitou para a cozinha por volta das sete da tarde e viu inúmeras travessas de saladas e aperitivos e enormes caçarolas de barro cheias de cuscuz e tagine. Havia comida suficiente para alimentar uma aldeia e, incentivadas por Gabriel, as mulheres convidaram o resto dos seus familiares do bairro onde viviam para partilharem do banquete. Comeram todos juntos no pátio grande (os marroquinos pobres e os quatro forasteiros que, segundo pensavam eles, eram europeus), sob um dossel de estrelas brancas como diamantes. Para ocultar que dominavam o árabe, Gabriel e os outros falaram unicamente em francês. Conversaram sobre os jinns, sobre as promessas frustradas da Primavera Árabe e sobre essa banda de assassinos que se fazia chamar Estado Islâmico. Tarek afirmou que vários jovens do seu bidonville, entre eles o filho de um primo afastado, tinham estado no califado. De vez em quando, a DST fazia uma rusga no bairro e levava os salafistas para a prisão de Temara para os interrogar através da tortura.
— Têm impedido muitos atentados — disse —, mas não tarda muito vai haver outro dos grandes, como o de 2003. É só uma questão de tempo.
O jantar terminou com esse mau augúrio. As mulheres e respetivos familiares regressaram ao bairro de barracas, levando os restos de comida, e Tarek e Hamid foram para o jardim vigiar os jinns. Gabriel, Yaakov, Dina e Eli Lavon desejaram boa noite e retiraram-se para os quartos. O de Gabriel tinha vista para o mar. Um dos caseiros tinha traçado um círculo a carvão à volta da cama para o proteger dos demónios, e nos quatro cantos havia gotas de sangue misturado com leite e sal. Exausto, Gabriel caiu de imediato num sono profundo, do qual acordou pouco antes do amanhecer com a necessidade imperiosa de aliviar a bexiga. Passou um bom bocado deitado na cama a pensar no que devia fazer, até que por fim viu as horas no telemóvel. Passavam poucos minutos das cinco da madrugada. Amanhecia às 6h49. Fechou os olhos. Não convinha tentar a sorte, pensou. Era melhor não incomodar a Aisha nem os seus amigos.
47
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela manhã, Jean-Luc Martel, hoteleiro, restaurador, fabricante de roupa, joalheiro, narcotraficante internacional e colaborador da espionagem francesa e israelita, subiu a bordo do seu avião privado Gulfstream, o JLM Deux, no Aeroporto Côte d’Azur de Nice com destino a Casablanca, acompanhado pela namorada e pelos supostos amigos, os que viviam na colossal villa no lado oposto da baía, bem como por um espião britânico que até há pouco tempo ganhava a vida como assassino profissional. Nos anais da guerra global contra o terrorismo, nenhuma operação tinha tido tal começo. Era, todos concordavam, a primeira vez. E contra toda a lógica e sem qualquer justificação, confiavam que fosse também a última.
Martel enviara duas limusinas Mercedes para levar a comitiva do aeroporto para o Four Seasons. Passaram a rugir à frente dos brilhantes blocos de apartamentos e dos sujos bidonvilles e seguiram pela Corniche, à velocidade de comitiva oficial até à entrada fortificada do hotel. A sua chegada tinha sido previamente anunciada, de maneira que, depois de uma inspeção superficial aos veículos, puderam aceder ao parque de estacionamento, onde um pequeno batalhão de empregados aguardava para os receber. Abriram-se as portas e os empregados carregaram uma montanha de malas nos seus carrinhos. De seguida, a bagagem e os seus proprietários atravessaram o arco do magnetómetro. Foram todos admitidos de imediato, exceto Christopher Keller, que fez soar o alarme duas vezes. O chefe de segurança do hotel, ao não encontrar qualquer objeto suspeito na posse de Keller, comentou em jeito de brincadeira que devia ser feito de metal. O sorriso tenso e hostil do britânico não contribuiu para dissipar as suas suspeitas.
Um silêncio monástico pendia sobre o ar fresco do hall climatizado. Era pleno verão em Marrocos, logo, temporada baixa para os hotéis da praia. Seguidos pela caravana de malas, JLM e os seus acompanhantes encaminharam-se para a receção: Martel e Olivia Watson vestidos de branco brilhante; Mikhail e Natalie fingindo-se aborrecidos; e Keller incomodado ainda pelo tratamento que lhe tinham dado à porta. O diretor do hotel entregou-lhes as chaves dos seus quartos (Monsieur Martel gozava, como de costume, da mordomia de fazer o check-in antecipadamente) e dedicou-lhes umas sumptuosas palavras de boas-vindas.
— Jantam esta noite no hotel? — perguntou.
— Sim — respondeu Keller de imediato. — Mesa para cinco, por favor.
Era um hotel disposto ao contrário: o hall ocupava o último andar, por cima dos pisos onde os hóspedes estavam alojados. Os quartos de JLM e da sua comitiva ficavam no quarto piso. Martel e Olivia ocupavam uma só suíte, ladeada pela de Mikhail e de Natalie, de um lado, e a de Keller de outro. Quando lhes levaram a bagagem e despacharam os empregados com uma gorjeta, Mikhail e Keller abriram as portas que davam para os três quartos tornando-os num só.
— Muito melhor assim — disse Keller. — Quem é que quer comer?
A mensagem chegou à Casa dos Espiões pouco depois do meio-dia, quando Hamid e Tarek estavam empoleirados na sanita da casa de banho de Gabriel a recitar versos do Corão para afugentar os jinns. Informava de que JLM e os seus acompanhantes tinham chegado sem novidades ao Four Seasons, que não tinham recebido comunicação alguma de Mohammad Bakkar ou dos seus seguidores e que naquele momento estavam a almoçar no terraço do restaurante do hotel. Gabriel enviou a mensagem por via segura para o Centro de Operações da Avenida Rei Saul, que por sua vez a remeteu para Langley, Vauxhall Cross e para a sede da DGSI em Levallois-Perret, onde foi recebida com uma expectativa que superava muito a sua importância operativa.
As preces da sanita terminaram poucos minutos depois da uma e a comida foi servida à uma e meia. Dina e Yaakov Rossman saíram da Casa dos Espiões minutos mais tarde, num dos carros alugados. Dina vestia umas calças de algodão largas e uma blusa branca e levava pendurado ao ombro um saco com o nome de um exclusivo estilista francês. Yaakov, por sua vez, estava vestido como se fosse fazer uma incursão noturna em Gaza. Às duas da tarde, encontravam-se reclinados numa espreguiçadeira com dossel do Tahiti Beach Club da Corniche. Gabriel mandou-os ficar ali até novo aviso. Depois, subiu o volume dos microfones instalados nos três quartos contíguos do Four Seasons.
— Alguém tem de levar o saco ao hotel — comentou Eli Lavon.
— Obrigado, Eli — afirmou Gabriel. — Nunca me teria lembrado disso.
— Só estava a tentar ajudar.
— Desculpa, são os jinns, que falam por mim.
Lavon sorriu.
— Em quem é que tinhas pensado?
— O Mikhail é o candidato mais óbvio.
— Até eu suspeitaria dele.
— Então talvez convenha que seja uma mulher a tratar disso.
— Ou duas — sugeriu Lavon. — Para além disso, já está na hora de fazerem as pazes, não achas?
— Começaram mal, mais nada.
Lavon encolheu os ombros.
— Podia acontecer a qualquer um.
Estava um segurança na porta que comunicava a parte de trás do recinto murado do hotel com a plage Lalla Meriem, a principal praia pública de Casablanca. Vestido com um fato escuro apesar do calor do meio da tarde, observou como as mulheres (a inglesa alta que tinha visto várias vezes anteriormente e uma francesa de semblante antipático) atravessavam a areia escura e lisa até à beira-mar. A inglesa vestia um vaporoso páreo de flores preso à cintura estreita e uma t-shirt translúcida. A francesa, pelo contrário, usava um vestido de algodão ligeiramente mais recatado. Os rapazes da praia aproximaram-se delas de imediato. Colocaram duas espreguiçadeiras na linha do mar e abriram dois guarda-sóis para protegê-las do sol que era forte. A inglesa pediu alguma coisa para beber e, quando lhes levaram os copos, deu uma gorjeta excessiva aos empregados. Apesar das suas visitas frequentes a Marrocos, ignorava o valor do dinheiro marroquino. Por esse motivo, e por outros, os rapazes rivalizavam pela mordomia de a servir.
O segurança retomou o jogo que estava a jogar no seu telemóvel; os rapazes da praia regressaram à sombra da sua barraca. Natalie tirou o vestido e colocou-o sobre o seu saco de praia Vuitton. Olivia despiu o páreo e tirou a t-shirt. Depois estendeu o seu longo corpo na espreguiçadeira e virou a sua cara perfeita para o sol.
— Não gostas muito de mim, pois não?
— Estava só a representar um papel.
— Pois fizeste-o muito bem.
Natalie adotou a mesma postura que Olivia e fechou os olhos ao sol.
— A verdade é — disse passado um momento — que não mereces que te trate assim. Eras simplesmente um meio para atingir um fim.
— E o Jean-Luc?
— Ele também é um meio para atingir um fim. E, para o caso de quereres saber, não vou com a cara dele.
— Então, gostas de mim? — perguntou Olivia num tom divertido.
— Um bocadinho — reconheceu Natalie.
Dois marroquinos musculados de vinte e poucos anos passaram à frente delas, com a água pelos tornozelos, a conversar em darija. Ao ouvi-los, Natalie sorriu.
— Estão a falar de ti — disse.
— Como é que sabes?
Natalie abriu os olhos e olhou-a inexpressivamente.
— Falas marroquino?
— O marroquino não é um idioma, Olivia. De facto, aqui falam três línguas diferentes. Francês, berbere e...
— Talvez isto tenha sido um erro — atalhou Olivia.
Natalie sorriu.
— Porque é que falas árabe?
— Os meus pais são argelinos.
— Então, és árabe?
— Não — respondeu Natalie. — Não sou.
— Afinal, o Jean-Luc tinha razão. Quando saímos da vossa villa naquela tarde disse que...
— Que parecia uma judia de Marselha.
— Como é que sabes?
— O que é que achas?
— Estavam a ouvir?
— Estamos sempre a ouvir.
Olivia besuntou óleo nos ombros.
— O que é que aqueles marroquinos estavam a dizer sobre mim?
— É difícil de traduzir.
— Imagino.
— Calculo que estejas acostumada.
— Tal como tu. És muito bonita.
— Para uma judia de Marselha.
— És?
— Era há muito tempo — afirmou Natalie. — Já não.
— Era assim tão mau?
— Ser judeu em França? Sim, era muito mau.
— Foi por isso que te tornaste espia?
— Eu não sou espia. Sou a Sophie Antonov, a tua amiga do outro lado da baía. O meu marido tem negócios com o teu namorado. Têm entre mãos algum assunto aqui, em Casablanca, do qual preferem não falar.
— O meu namorado — disse Olivia. — O Jean-Luc não gosta que digam que é o meu namorado.
— Porquê? Há algum problema?
— Entre mim e o Jean-Luc?
Natalie fez um gesto afirmativo.
— Achava que estavam sempre a ouvir.
— E assim é. Mas tu conhece-lo melhor do que ninguém.
— Não estou muito certa disso. Mas não — respondeu Olivia —, não parece suspeitar que fui eu quem o traiu.
— Não o traíste...
— Como é que o descreverias então?
— Fizeste o correto.
— Para variar — concluiu Olivia.
Os dois marroquinos musculados estavam de volta. Um deles olhou para Olivia com descaramento.
— Pensas dizer-me o que é que estamos aqui a fazer? — perguntou ela.
— Quanto menos souberes — respondeu Natalie —, melhor.
— É assim que funcionam as coisas no teu ofício?
— Sim.
— Estou em perigo?
— Isso depende de tirares mais roupa ou não.
— Tenho o direito de saber.
Natalie não respondeu.
— Imagino que tem alguma coisa a ver com aqueles carregamentos de haxixe que a polícia confiscou.
— Que haxixe?
— Não importa.
— Exato — afirmou Natalie. — Qualquer coisa que te diga, fará com que seja mais difícil cumprires o teu papel.
— E qual é o meu papel?
— O de par amoroso do Jean-Luc Martel que ignora de onde procede o seu dinheiro.
— Procede dos seus hotéis e restaurantes.
— E da sua galeria de arte — assinalou Natalie.
— A galeria é minha. Aí vem um dos teus amigos — disse Olivia num tom sonolento.
Natalie levantou o olhar e viu que Dina caminhava parcimoniosamente para elas pela beira-mar.
— Parece triste — comentou Olivia.
— Tem motivos para isso.
— O que é que lhe aconteceu à perna?
— Isso não importa.
— Queres dizer que não é nada comigo?
— Tentava ser simpática.
— Que novidade. — Olivia levou uma mão à testa para se proteger do sol. — Tem graça: parece que traz um saco igual ao teu.
— A sério? — Natalie sorriu. — Que coincidência, não achas?
O segurança encarregava-se de vigiar qualquer transeunte que passasse pela praia, não se fosse repetir o trágico incidente que aconteceu na Tunísia em 2015, quando um terrorista salafista tirou um fuzil de assalto do seu guarda-sol e matou trinta e oito hóspedes de um hotel de cinco estrelas, na sua maioria súbditos britânicos. Não obstante, pouco podia fazer o guarda no caso de se repetirem as mesmas circunstâncias. Não estava armado; tinha apenas um rádio. Em caso de atentado, devia fazer soar o alarme e fazer «tudo o que estivesse ao seu alcance» para neutralizar o atacante ou os atacantes. Ou seja, com toda a probabilidade perderia a vida a tentar proteger um grupo de ocidentais ricos seminus. Não era bem assim que queria morrer. Mas em Casablanca não havia muito trabalho, sobretudo para os filhos dos bidonvilles. E era preferível montar guarda na praia do que vender fruta com um carrinho na medina. Sabia-o por experiência própria.
A tarde tinha sido pacata, inclusivamente para agosto, e o guarda concentrou toda a sua atenção na mulher que se aproximava a oeste, onde ficavam o Tahiti e os outros clubes da praia. Era baixinha e de cabelo escuro e, ao contrário da maioria das ocidentais que visitava a praia, ia discretamente vestida. Tinha um verdadeiro ar de melancolia, como tivesse enviuvado há pouco. Trazia um saco de praia pendurado no ombro direito. Louis Vuitton, um modelo muito na moda naquele verão. O guarda perguntou-se se tinha consciência de que aquele saco custava mais dinheiro do que muitos marroquinos veriam em toda a sua vida.
Precisamente nesse momento, uma das mulheres deitadas perto da margem, a francesa antipática, cumprimentou-a levantando o braço. A mulher de aspeto melancólico aproximou-se e sentou-se na beira da sua espreguiçadeira. Os rapazes da praia ofereceram-se para lhe levar outra espreguiçadeira, mas ela disse que não. Evidentemente, não pensava ficar muito tempo. A inglesa alta e bonita parecia incomodada com a interrupção. Aborrecida, olhava desastrosamente para o mar enquanto a francesa e a recém-chegada falavam com ar de confiança e fumavam uns cigarros que a francesa tinha tirado do seu saco, também um Louis Vuitton; o mesmo modelo, de facto.
Passado um momento, a mulher de aspeto triste levantou-se para se ir embora. A francesa, que tinha voltado a pôr o vestido, acompanhou-a uns cem metros pela beira-mar. Depois abraçaram-se e cada uma seguiu o seu caminho: a mulher melancólica regressou para os clubes da praia e a francesa regressou para a sua espreguiçadeira. Trocou umas palavras com a inglesa alta e bela. Depois, a inglesa levantou-se e prendeu o páreo à cintura. Para deleite do guarda, não se incomodou a vestir a t-shirt translúcida. A visão do seu corpo perfeito distraiu-o a tal ponto que só deu uma olhadela aos sacos de praia quando, um momento depois, passaram pela porta e regressaram ao recinto do hotel.
Juntas entraram no elevador e subiram para o quarto piso, onde lhes franquearam a entrada para os três quartos convertidos num só. A alta e bela inglesa entrou na suíte que partilhava com Monsieur Martel. De imediato, ele atraiu-a para si e sussurrou-lhe algo ao ouvido que a francesa não conseguiu ouvir. Mas pouco importava: na Casa dos Espiões estariam a ouvir. Estavam sempre a ouvir.
48
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela noite, não recebeu qualquer mensagem de Mohammad Bakkar ou dos seus subordinados, e na manhã seguinte também não. Na Avenida Rei Saul e em Langley, e em todos os pontos intermédios, os ânimos exaltaram-se. Até Paul Rousseau, no seu refúgio na parte mais profunda da sede da DGSI em Levallois-Perret, começou a ter as suas dúvidas. Temia que tivesse havido alguma fuga de informação e que a operação estivesse a meter água. O culpado era, sem dúvida, o seu estranho colaborador: o agente que tinha chantageado e recrutado sem permissão do seu chefe, nem do ministro. O agente a quem tinha dado total imunidade. Os jovens e hostis colaboradores de Morris Payne, o diretor da CIA, partilhavam o pessimismo de Rousseau. Mas, ao contrário do francês, não estavam dispostos a esperar indefinidamente que o telefone tocasse. Eram militares de carreira, mais do que espiões, e preferiam abrir fogo diretamente contra o inimigo. Payne, ao que parece, era da mesma opinião. Convocou Adrian Carter para uma reunião no seu escritório e expôs-lhe claramente o seu ponto de vista. Carter encarregou-se de transmitir a mensagem a Gabriel através de uma videoconferência segura do Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA. Gabriel, por sua vez, estava no centro de operações montado na Casa dos Espiões.
— Nada de alaridos — disse.
— O que é que queres dizer?
— O Mohammad Bakkar é a estrela da companhia. E a estrela da companhia é quem marca a hora e o lugar do encontro.
— Até uma estrela precisa de um bom conselho, de vez em quando.
— Isso não corresponde à forma como a relação tem funcionado até agora. Se mandar o Martel tomar a iniciativa, o Bakkar vai perceber que se passa algo de estranho.
— Pode ser que já saiba.
— Ligar-lhe não vai mudar isso.
— Os chefes acham que poderia resolver a situação num sentido ou noutro.
— Ah, sim?
— E a Casa Branca...
— Desde quando é que a Casa Branca está metida nisto?
— Desde o princípio. Segundo parece, o presidente está muito atento ao assunto.
— Que reconfortante. E exatamente quantas pessoas é que sabem disto em Washington, Adrian?
— É difícil saber. — Carter franziu a testa. — O que é este barulho?
— Não é nada.
— Parece alguém a rezar.
— E é, efetivamente.
— Quem?
— O Tarek e o Hamid. Tentam afugentar os jinns.
— O quê?
— Os jinns — repetiu Gabriel.
— Eu prefiro o gim com lima e um pouco de tónica.
Gabriel perguntou-lhe pelos dois drones que Morris Payne tinha atribuído à operação. Um era um drone de vigilância Sentinel. O outro, um Predator. Carter explicou-lhe que o Sentinel já estava na zona e podia sobrevoar Marrocos assim que Gabriel tivesse um alvo claro. O Predator, armado com dois mortíferos mísseis Hellfire, estava numa base próxima, pronto para entrar em ação. A CIA não tinha autoridade para lançar um ataque em Marrocos. Só o presidente podia dar essa ordem, e até nesse caso — afirmou Carter — seria o último recurso.
— Os marroquinos vão ficar furiosos — disse.
— Quanto tempo demorará o Predator a estar em situação de disparar?
— Depende da localização do alvo. Duas horas, no mínimo.
— Duas horas é muito.
— Não são os felinos mais velozes da selva. Mas nada disto faz sentido — disse Carter — enquanto o Mohammad Bakkar não convocar o teu rapaz para uma reunião.
— Vai ligar — afirmou Gabriel, e cortou a ligação.
No entanto, no fundo não tinha tanta certeza. E quando passou o meio-dia sem que tivesse notícias, sucumbiu momentaneamente ao pessimismo que se tinha apoderado dos seus colegas de Paris e de Washington. Distraiu-se a conduzir as suas personagens: os Antonov e os seus amigos, o Jean-Luc Martel e a Olivia Watson. Mandou Martel e Mikhail às redondezas de Casablanca à procura de possíveis localizações para um novo hotel que a JLM Enterprises não tinha intenção de construir e despachou Natalie e Olivia para o gigantesco Morocco Mall, onde, munidas dos cartões de crédito de Martel, invadiram várias lojas exclusivas. Almoçaram depois com Christopher Keller no quartier Gauthier. O britânico não viu indícios de vigilância, nem da DST marroquina, nem de qualquer outro tipo. Eli Lavon, que seguiu Martel e Mikhail durante a sua saída à procura de supostos terrenos para construir, informou que também não tinha detetado qualquer sinal de que os estivessem a vigiar.
A meio da tarde, enquanto o pessimismo de Gabriel se agudizava, houve outra crise relativa aos jinns. Hamid tinha encontrado aberta a janela de um quarto (o de Dina, mais especificamente) e temia que vários demónios novos se tivessem esgueirado para o interior da casa. Apoiado por Yaakov, propôs de novo a possibilidade de um exorcismo. Conhecia um homem do seu bidonville que trataria disso por um preço módico, com o sacrifício de cabra incluído. Gabriel negou-se: continuaram a encomendar sal, sangue e leite com a esperança de que tudo se resolvesse. Hamid, evidentemente, duvidava disso.
— Como queira — disse, muito sério. — Mas temo que isto vá acabar mal. Para todos.
Às cinco da tarde, até Gabriel estava convencido de que a Casa dos Espiões estava assombrada e de que Aisha e os seus ferozes amigos conspiravam contra ele. Mandou Natalie e Olivia à praia para apanharem sol e saiu para dar um passeio sozinho (sem escoltas, nem armas) pelas arcadas sujas da cidade velha. Vagueou sem rumo, atravessando praças cheias de gente e avenidas congestionadas pelo tráfego vespertino, até que encontrou um café cujos clientes vestiam na sua maioria roupa ocidental. Sentados a uma mesa no recanto mais escuro do local havia três americanos: dois rapazes e uma rapariga.
Pediu em francês um café noir. Então percebeu que não tinha dinheiro marroquino. Mas não importava: o empregado aceitou, encantado, os seus euros. Lá fora, o estrépito da rua era opressivo. Abafava o som da televisão que havia por cima do balcão e a tranquila conversa dos três americanos. Então, às seis horas e doze minutos, sufocou a vibração do telemóvel de Gabriel. Leu a mensagem, um momento depois, e sorriu. Ao que parece, Mohammad Bakkar queria falar com Jean-Luc Martel em Fez na tarde do dia seguinte.
Antes de voltar a guardar o telemóvel no bolso, enviou uma breve mensagem a Adrian Carter para Langley. Pediu depois outro café e bebeu-o como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
49
FEZ, MARROCOS
No dia seguinte, minutos antes do meio-dia, Christopher Keller estava à entrada do hotel, a ver como os porteiros carregavam a bagagem para os carros. Martel saiu pouco tempo depois, seguido por Mikhail, Natalie e Olivia. Tinha na mão a fatura do hotel, que entregou a Keller.
— Dê-a aos seus chefes. E diga-lhes que espero que me reembolsem até ao último cêntimo.
— Vou já tratar disso.
Keller atirou a fatura para o lixo e entrou para a parte de trás do primeiro Mercedes. Martel juntou-se a ele, enquanto os outros entravam para o outro carro. Seguiram pela costa e, ao chegarem a Rabat, viraram para o interior atravessando plantações de sobreiros até chegarem aos sopés do Médio Atlas. Na primavera, os montes estariam abençoados pelas chuvas e pelo gelo derretido, mas em pleno verão eram castanhos e secos. As ladeiras estavam cheias de oliveiras, e pelas planícies estendiam-se campos de regadio. Martel olhava distraidamente pela janela, enquanto Keller controlava o fluxo de e-mails, mensagens de texto e telefonemas do telemóvel do francês. Com a ajuda de Martel, despachou os assuntos que requeriam atenção urgente. Ignorou os outros. Até Jean-Luc Martel, disse a si próprio, precisava de um dia livre de vez em quando.
Seguindo as instruções de Gabriel, pararam para comer em Mequinez, a mais pequena das quatro antigas cidades imperiais de Marrocos. Aí, Eli Lavon chegou à conclusão de que um indivíduo de trinta e poucos anos, com ar de marroquino, com óculos de sol e boné americano os estava a vigiar. Depois de almoçarem, o mesmo indivíduo seguiu-os até às ruínas romanas de Volubilis, que percorreram debaixo do sol abrasador da tarde. Lavon tirou uma fotografia ao homem, enquanto fingia admirar o arco triunfal e enviou-a para o esconderijo de Gabriel, em Casablanca. Gabriel, por sua vez, reenviou-a para Christopher Keller, que a mostrou a Martel quando voltaram para o carro.
— Reconhece-o?
— Talvez.
— O que é que quer dizer com isso?
— Quero dizer que talvez o tenha visto antes.
— Onde?
— No encontro de Rife, em dezembro do ano passado. Após os atentados de Washington.
— Com quem é que estava? Com o Bakkar?
— Não. Estava com o Khalil.
Perto das seis chegaram à Ville Nouvelle de Fez, a parte moderna da cidade, onde a maioria dos seus habitantes preferia viver. O hotel deles, o Palais Faraj, ficava perto da antiga medina. Era um labirinto de azulejos coloridos e frescos e passagens sombrias. O proprietário cedeu automaticamente a suíte real a Martel e Olivia. Keller ficaria num quarto contíguo de dimensões mais modestas, e Mikhail e Natalie um pouco mais à frente, no mesmo corredor. Levaram Olivia a dar um passeio pelos souks da medina, enquanto Martel e Keller esperavam que o telefone tocasse sentados no terraço privado da suíte real. O ar estava quente e parado. Dos curtumes próximos chegava-lhes um leve cheiro de ferrugem e fumo de lenha.
— Quanto tempo é que nos vai fazer esperar? — perguntou Keller.
— Depende.
— De quê?
— Do seu humor, imagino. Às vezes, liga logo. E às vezes...
— O quê?
— Muda de ideias.
— Sabe que estamos aqui?
— O Mohammad Bakkar — afirmou Martel — sabe tudo.
Passados vinte minutos sem que recebessem um telefonema ou uma mensagem, o francês levantou-se bruscamente.
— Preciso de um copo.
— Peça algo ao serviço de quartos.
— Há um bar lá em cima — disse Martel e, antes que Keller se opusesse, dirigiu-se à porta.
Lá fora, no hall, carregou no botão do elevador e, como não apareceu de imediato, subiu pelas escadas. O bar, pequeno e escuro, ficava no último piso e de lá dominavam-se as cúpulas da medina. Martel pediu a garrafa de Chablis mais cara da carta de vinhos. Keller, só um café.
— De certeza que não quer um pouco? — perguntou Martel, enquanto admirava um copo de vinho à luz do sol.
Keller respondeu que preferia um café.
— Não bebe quando está de serviço?
— Algo do género.
— Não sei como é que consegue. Está há dias sem dormir. Imagino que uma pessoa acaba por se acostumar quando se dedica ao seu ofício — acrescentou o francês pensativamente. — À espionagem, quero dizer.
Keller lançou uma olhadela ao barman. Não havia mais ninguém no local.
— Foi sempre um espião? — insistiu Martel.
— E você? Foi sempre um narcotraficante?
— Eu nunca fui narcotraficante.
— Ah, sim — disse Keller. — Laranjas.
Martel observou-o atentamente por cima da borda do copo de vinho.
— Tenho a impressão de que passou uma boa temporada no exército.
— Não tenho jeito para militar. Nunca gostei de ordens. E não gosto de trabalhar em equipa.
— Então pode ser que seja um militar especial. Do SAS, por exemplo. Ou deveria dizer do Regimento? Não é assim que os seus camaradas lhe chamam?
— Ignoro.
— Que estupidez — replicou Martel bruscamente.
A sorrir para o barman marroquino, Keller olhou pela janela. A escuridão começava a acomodar-se sobre a medina, mas nos cumes mais altos das montanhas ainda restava um laivo de luz rosada.
— Deveria ter mais cuidado, Jean-Luc. O rapaz do balcão poderia ofender-se.
— Conheço os marroquinos melhor do que você. E reconheço um ex-membro do SAS quando o vejo. Todas as noites, algum inglês rico chega a um dos meus hotéis ou restaurantes, acompanhado pela sua escolta privada. E são sempre veteranos do SAS. Suponho que é melhor dedicar-se à espionagem do que ser lacaio de algum executivo britânico com vontade de ser arrogante.
Naquele momento, Yossi Gavish e Rimona Stern entraram no bar e sentaram-se a uma mesa, do outro lado do local.
— Os seus amigos de Saint-Tropez — comentou Martel. — Convidamo-los a juntarem-se a nós?
— Voltemos para baixo com a garrafa.
— Ainda não — respondeu Martel. — Sempre gostei desta vista ao entardecer. Este lugar é Património da Humanidade, sabia? E, no entanto, grande parte das pessoas que vivem aqui em baixo venderia de boa vontade o seu ruinoso riad ou a sua dar a algum ocidental para comprar um bonito e limpo apartamentozinho na Ville Nouvelle. É uma pena, na verdade. Não sabem o que têm. Às vezes, o velho é muito melhor do que o novo.
— Poupe-se a filosofia barata — afirmou Keller com um ar aborrecido.
Rimona estava a rir-se de algo que Yossi tinha dito. Keller deu uma vista de olhos às últimas mensagens e aos e-mails que Martel tinha recebido, enquanto este continuava a contemplar o pôr-do-sol na medina.
— Fala muito bem francês — comentou Martel, ao fim de um momento.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Houve um silêncio. Foi Martel quem o quebrou.
— Há muitos anos, quando ainda vivia em Marselha, corria o rumor de que havia um inglês que trabalhava como assassino para o clã dos Orsati. Tinha pertencido ao SAS, ou era o que se dizia. Pelos vistos, era um desertor. — Martel fez uma pausa e depois acrescentou: — Um cobarde.
— Parece o argumento de uma história de espiões.
— Às vezes, a realidade supera a ficção. — Martel olhou-o fixamente. — Como sabiam sobre o René Devereaux?
— O Devereaux conhece toda a gente.
— A voz dessa gravação era a sua.
— Ah, sim?
— Não consigo sequer imaginar as coisas que teve de lhe fazer para conseguir que falasse. Mas devem ter também outra fonte — acrescentou o francês. — Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
— A Olivia não tem nada a ver com isto.
O ceticismo de Martel era evidente.
— Pode ficar com eles?
— A que é que se refere?
— Aos cinquenta milhões que lhe deram por aqueles quadros. Aos cinquenta milhões que lhe pagaram para que me traísse.
— Beba o seu vinho, Jean-Luc. Desfrute da paisagem.
— Cinquenta milhões é muito dinheiro — prosseguiu Martel. — O tal iraquiano chamado Khalil deve ser muito importante.
— É.
— E se mostrar a cara? O que acontecerá então?
— O mesmo que acontecerá consigo se tocar num cabelo da Olivia — replicou Keller com a voz calma.
A ameaça não pareceu afetar o francês.
— Talvez alguém deva atender — disse.
Keller olhou para o telefone, que vibrava sobre a mesa baixa, entre eles os dois. Deitou uma vista de olhos ao número e passou o telemóvel a Martel. A conversa muito breve decorreu numa mistura de francês e árabe marroquino. Depois, Martel desligou a chamada e entregou o telemóvel.
— E então? — perguntou Keller.
— O Mohammad mudou de planos.
— Quando é que se vão ver?
— Amanhã à noite. E não me quer ver só a mim — disse Martel. — Estamos todos convidados.
50
CASABLANCA, MARROCOS
Christopher Keller não era o único que vigiava o telefone de Jean-Luc Martel. No esconderijo em Casablanca, Gabriel também não o perdia de vista. Ouviu o fluxo constante de chamadas a chegar ao longo dessa tarde e leu as numerosas mensagens e e-mails que o francês recebeu. E às sete e um quarto ouviu as poucas palavras da conversa entre Martel e um homem que não se incomodou a apresentar-se. Ouviu a gravação mais três vezes de princípio ao fim e, de seguida, procurou o minuto 19:16:13 e carregou no ícone de play.
— O Mohammad e o seu sócio gostariam de conhecer os seus amigos. Mais especificamente um deles.
— Qual?
— O alto. O que é casado com aquela francesa tão bonita e que tem dinheiro aos pontapés. É russo, não é? Traficante de armas?
— De onde é que tirou essa informação?
— Isso não importa.
— Porque é que querem conhecê-lo?
— Para lhe propor um negócio. Acha que o seu amigo pode estar interessado? Diga-lhe que vale a pena.
Gabriel carregou na pausa e olhou para Yaakov Rossman.
— Como é que achas que o Mohammad Bakkar e o sócio dele souberam o que faz na realidade o Dmitri Antonov?
— Pode ser que tenham ouvido os mesmos rumores que o Jean-Luc Martel ouviu. Os que espalhámos como migalhas de pão entre Londres e Nova Iorque, passando pelo sul de França.
— E esse negócio que lhe querem propor?
— Duvido que esteja relacionado com o haxixe.
— Ou com as laranjas — acrescentou Gabriel. Depois disse: — Tenho a sensação de que quem quer mesmo conhecer o Dmitri Antonov é o sócio do Mohammad. Mas para quê?
— Podemos assumir que o hipotético sócio de Mohammad é o Saladino?
— De acordo.
— Pode ser que queira comprar armas. Ou se calhar quer material radiológico de origem russa para substituir o stock que perdeu quando capturaram o barco.
— Ou pode ser que queira matá-lo. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou: — A ele e à sua esposa, aquela francesa tão bonita.
Carregou no play.
— Onde?
— Vão de carro para o sul, até Erfoud e...
— Erfoud? Isso fica...
— A sete horas nesta época do ano, talvez menos. O Mohammad preparou-vos dois jipes. Aqueles Mercedes deles não vos servirão de nada para onde vão.
— E onde é que isso fica?
— É um acampamento no Saara. Bastante luxuoso. Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido.
Gabriel parou a gravação.
— Um acampamento à beira do Saara. Muito tradicional, muito agradável.
— E muito isolado — comentou Yaakov.
— Pode ser que isso seja o que o Saladino quer.
— Achas que nos traíram?
— A mim pagam-me para me preocupar, Yaakov.
— Algum suspeito?
— Só um.
Gabriel abriu outro arquivo de áudio no seu computador e depois de ajustar o tempo carregou no play.
— Fala muito bem francês.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Gabriel carregou na pausa.
— Em algum momento, tinha de perceber — disse Yaakov. — Procedem do mesmo modo. São duas caras da mesma moeda.
— O Keller nunca esteve metido no narcotráfico.
— Não — anuiu Yaakov com sarcasmo. — Só ganhava a vida a matar pessoas.
— Eu acredito na redenção.
— Não me surpreende.
Gabriel franziu a testa e carregou de novo no play.
— Mas devem ter também outra fonte. Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
Gabriel parou a gravação.
— Também era lógico que se apercebesse disto em algum momento — comentou Yaakov.
Na Casa dos Espiões fez-se silêncio. Os ocupantes da suíte real do Palais Faraj, pelo contrário, discutiam sobre se deviam jantar no hotel ou num restaurante da medina. Falavam disso ao estilo dos milionários aborrecidos. A atuação deles era tão convincente, que até Gabriel, que tinha criado as personagens, não soube se se tratava de uma discussão autêntica ou a fingir para despistar a DST marroquina, que, sem dúvida, também os estava a ouvir.
— Pode ser que tenhamos perdido o Martel — disse Gabriel, por fim. — Quem sabe? É possível que nunca o tenhamos tido em nosso poder.
— São outra vez os jinns que falam pela tua boca?
Gabriel não disse nada.
— Tem estado debaixo do nosso controlo desde que lhe estendemos a armadilha. Vigilância absoluta. Física, eletrónica e virtual. O Keller praticamente dormiu no seu quarto. É nosso de corpo e alma.
— Pode ser que nos tenha escapado alguma coisa.
— Como por exemplo?
— Uma sequência concreta de zumbidos do telefone ou algum código impessoal ao qual não demos importância.
— Com jornal ou sem ele? Com guarda-chuva ou sem?
— Exato.
— Já ninguém lê jornais, e em Marrocos não chove nesta época do ano. Para além disso — acrescentou Yaakov —, se o Mohammad Bakkar achasse que o Martel passou para o outro lado, não teria pedido para vê-lo.
Em Fez, a discussão a respeito do jantar tinha adquirido contornos verdadeiramente azedos. Exasperado, Gabriel arrumou a questão enviando uma mensagem de texto a Mikhail. JLM e os seus acompanhantes jantaram no hotel nessa noite.
— Boa ideia — comentou Yaakov. — Convém que esta noite vão cedo para a cama. Amanhã será um dia muito longo.
Gabriel ficou calado.
— Não estarás a pensar em abortar a operação, pois não?
— Claro que sim.
— Chegámos muito longe — reclamou Yaakov. — Manda-os ao acampamento, que se reúnam com eles. Identifica o Saladino, dá o aviso. E, quando se for embora, deixa que os americanos lancem um míssil e os convertam numa nuvenzinha de fumo.
— Dito assim parece muito simples.
— É. Os americanos fazem-no diariamente.
Gabriel ficou em silêncio, de novo.
— O que é que vais fazer? — perguntou Yaakov.
Gabriel carregou no play.
Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido...
51
FEZ, MARROCOS
Natalie acordou com as almofadas empapadas em suor, cega pelo sol. A pestanejar, contemplou o pedaço de céu que se via da sua janela e, por um instante, não soube onde estava. Encontrava-se em Fez, em Casablanca ou em Saint-Tropez? Ou estava de novo naquele casarão repleto de pátios e quartos, perto de Mossul? Tu és o meu Maimónides... Virou-se e esticou a mão para a fita da persiana, mas não a alcançou. A metade da cama que Mikhail ocupava ainda estava na penumbra. Ele dormia tranquilamente, com o tronco descoberto.
Natalie fechou os olhos com força para fugir à luz do sol e tentou reunir os fragmentos do seu último sonho daquela manhã. Ia a caminhar por um jardim povoado de ruínas: ruínas romanas, tinha a certeza disso. Não eram as ruínas de Volubilis que tinham visitado na véspera, mas as de Palmira, na Síria. Também tinha a certeza disso. Era uma das poucas ocidentais que tinham visitado Palmira após a sua captura por parte do Estado Islâmico, e tinha visto com os seus próprios olhos os destroços que os combatentes sagrados do ISIS tinham causado nas ruínas. Tinha-as percorrido ao luar, acompanhada por um jihadista egípcio chamado Ismail que estava a receber treino no mesmo campo do que ela. Mas, no sonho, era outro homem que ia a seu lado. Um homem alto e corpulento que coxeava levemente. Um objeto indefinido, grotesco e grande, ia pendurado na sua mão direita. Só agora, no meio da neblina quente da manhã, Natalie compreendeu que aquela coisa era a sua cabeça.
Sentou-se devagar na cama para não acordar Mikhail e apoiou os pés no chão despido. O piso parecia que tinha saído do forno. Por um instante, sentiu náuseas. Deduziu que o sonho a tinha posto doente. Ou talvez fosse alguma coisa que tivesse comido, alguma iguaria marroquina que não lhe tinha caído bem.
Fosse como fosse, correu para a casa de banho para vomitar. Depois, começou a sentir os primeiros assaltos de uma forte enxaqueca. Logo hoje, disse a si própria. Tomou dois analgésicos com um gole de água da torneira e passou uns minutos debaixo da água fresca do duche. Depois, embrulhada num roupão fino, entrou na salinha de estar e preparou uma chávena de café bem forte na máquina Nespresso. O tabaco da Madame Sophie parecia chamá-la da mesa. Fumou um cigarro só para manter a fachada, ou pelo menos foi o que disse a si própria. Não conseguiu aliviar a dor de cabeça.
És muito corajosa, Maimónides. Demasiado corajosa do que te convém...
Oxalá fosse verdade, pensou. Quantas pessoas estariam vivas se tivesse tido a coragem de deixá-lo morrer? Washington, Londres, Paris, Amesterdão, Antuérpia, e todas as outras cidades. Sim, os americanos queriam apanhá-lo. Mas ela também.
Entrou no quarto de vestir. A roupa que ia usar naquele dia estava dobrada num armário. Para além disso, as suas malas estavam feitas. Tal como as de Mikhail. As etiquetas revelavam um fabrico luxuoso, mas as malas, tal como o próprio Dmitri Antonov, eram falsas. A mala mais pequena tinha um fundo falso. Dentro do compartimento escondido havia uma Beretta 92FS, dois carregadores cheios de projéteis de nove milímetros e um silenciador.
Depois de aceitar trabalhar para a Departamento, Mikhail mostrara-lhe como carregar e descarregar uma arma. Agora, agachada no chão do quarto de vestir, colocou rapidamente o silenciador no extremo do canhão, introduziu um dos carregadores na coronha e carregou a primeira bala. Levantou depois a arma segurando-a com as duas mãos como Mikhail lhe ensinara e apontou para o homem que segurava a sua cabeça na mão.
Vá lá, Maimónides, faz de mim um mentiroso...
— O que é que estás a fazer? — perguntou uma voz atrás dela.
Natalie virou-se sobressaltada e apontou para o peito de Mikhail. Tinha a respiração agitada e a coronha da Beretta húmida entre as mãos trémulas. Mikhail aproximou-se lenta e suavemente, baixou o canhão da pistola para o chão. Natalie largou as mãos e observou como devolvia a pistola ao seu estado original e a depositava no compartimento secreto da mala.
Levantando-se, Mikhail pôs-lhe um dedo sobre os lábios e apontou para o teto para lhe indicar que podia haver microfones da DST. Depois conduziu-a para fora, para o terraço, e abraçou-a.
— Quem és? — sussurrou-lhe ao ouvido em inglês com uma pronúncia russa.
— Sou a Sophie Antonov — respondeu ela mansamente.
— O que é que estás a fazer em Marrocos?
— O meu marido está a tratar de negócios com o Jean-Luc Martel.
— O que é que o teu marido faz?
— Antes, os minerais. Agora, os investimentos.
— E o Jean-Luc Martel?
Natalie não respondeu. De repente, tinha frio.
— Queres explicar-me o que se passou?
— Pesadelos.
— Que tipo de pesadelos?
Natalie contou-lhe.
— Era só um sonho.
— Esteve prestes a acontecer, uma vez.
— Não voltará a acontecer.
— Não sabes isso — disse ela. — Não sabes como ele é inteligente.
— Nós somos mais.
— A sério?
Fez-se um silêncio.
— Manda uma mensagem ao posto de comando — sussurrou-lhe Natalie, por fim. — Diz-lhes que não posso ir. Que não me posso aproximar dele. Tenho medo de deitar toda a operação por terra.
— Não — respondeu Mikhail. — Não vou mandar nenhuma mensagem.
— Porquê?
— Porque tu és a única que o consegue identificar.
— Tu também o viste. No restaurante de Georgetown.
— A verdade — afirmou Mikhail — é que tentei não olhar para ele. Mal me lembro da cara dele.
— E a gravação das câmaras de segurança do Four Seasons?
— Não é muito boa.
— Não consigo estar na presença dele — disse Natalie passado um bocado. — Vai-me reconhecer. Porque é que não me havia de reconhecer? Fui eu quem salvou a vida daquele miserável.
— Sim — disse Mikhail. — E agora vais ajudar-nos a matá-lo.
Voltou a levá-la para a cama e fez os possíveis para ajudá-la a esquecer o pesadelo. Depois, tomaram um duche juntos e vestiram-se. Natalie passou um longo momento a pentear-se ao espelho.
— O que é que pareço? — perguntou.
— Uma judia de Marselha — respondeu Mikhail com um sorriso.
Lá em cima, o pessoal do hotel estava a levantar o buffet do pequeno-almoço. Enquanto tomavam café e pão, Mikhail leu os jornais da manhã no seu tablet, enquanto Natalie, fingindo um aborrecimento que não sentia, contemplava o decrépito caos da medina. Por fim, pouco antes das onze, desceram para o hall, onde Martel e Christopher Keller estavam a pagar a conta. Olivia estava lá fora, vendo como os porteiros metiam a bagagem nos carros.
— Dormiste bem? — perguntou.
— Melhor do que nunca — respondeu Natalie.
Entrou na parte de trás do segundo carro e ocupou o seu lugar junto da janela. Uma cara que não reconhecia devolvia-lhe o olhar através do vidro.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
52
LANGLEY, VIRGÍNIA
O Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA (NCTC) tinha estado em tempos localizado numa só sala do corredor F do quinto piso do quartel-general da Agência. Com os seus ecrãs de televisão, os seus telefones barulhentos e os seus dossiês amontoados, assemelhava-se à redação de um jornal de segunda linha. Os seus membros trabalhavam em pequenos grupos dedicados a objetivos específicos: a Fação do Exército Vermelho, o Exército Republicano Irlandês, a Organização para a Libertação da Palestina, Abu Nidal, Hezbollah... Tinha, para além disso, uma unidade, formada em 1996, que centrava os seus esforços num extremista saudita pouco conhecido, chamado Osama Bin Laden, e a sua pujante rede de terrorismo islamista.
Como era de esperar, o NCTC tinha aumentado consideravelmente de tamanho desde os atentados do 11 de Setembro e agora ocupava uns dois mil metros quadrados do andar térreo da nova sede da CIA, com o seu próprio átrio e torniquetes de acesso. Por motivos de segurança, o verdadeiro nome do chefe do NCTC tinha deixado de ser de domínio público. Para o mundo exterior (e para o resto de Langley) era simplesmente «Roger». Kyle Taylor gostava daquela alcunha. Um tipo chamado Kyle não metia medo a ninguém. Roger, pelo contrário, era um nome que impunha respeito, sobretudo se comandava uma frota de drones armados e tinha o poder de pulverizar um indivíduo pelo simples facto de estar num lugar concreto no momento errado.
Uzi Navot tinha esbarrado com ele pela primeira vez há já uma década, quando Taylor trabalhava na delegação da CIA em Londres. Tinham sentido então uma antipatia instantânea um pelo outro. Navot via Taylor (que não falava mais nenhuma língua do que o inglês e era, portanto, inútil para o trabalho de campo) como pouco mais do que um espião de bancada ou um soldado de sala de reuniões. E Taylor, que acalentava o conhecido ressentimento da CIA contra o Departamento e Israel (agudizado, possivelmente, no seu caso particular) considerava Navot um tipo calculista e traiçoeiro. De resto, davam-se às mil maravilhas.
— É a primeira vez que visitas o Centro? — perguntou Taylor depois de poupar a Navot a incómoda passagem pelo controlo de segurança.
— Não, mas há muito tempo que não vinha aqui.
— Decididamente crescemos desde a última vez que vieste. Não tivemos outro remédio. Todos os dias levamos a cabo operações no Afeganistão, Paquistão, Iémen, Síria, Somália e Líbia.
Parecia um agente de vendas a vangloriar-se da expansão sem precedentes da sua empresa.
— E agora também em Marrocos — acrescentou Navot baixinho, convidando-o a continuar a falar.
— A verdade é que, tendo em conta quão delicado é o assunto do ponto de vista político, muito poucas pessoas estão a par dele, até aqui, no Centro — acrescentou Taylor. — O acesso é muito restrito. Estamos a usar uma das nossas salas de operações mais pequenas. Completamente opaca.
Conduziu Navot por um corredor ladeado de portas numeradas atrás das quais analistas e operadores sem rosto nem nome rastreavam terroristas e conspiradores por todo o globo terrestre. Ao fundo do corredor havia um curto lanço de escadas metálicas e outro posto de controlo pelo qual Taylor e Navot passaram sem parar. Acima havia um hall mal iluminado e uma porta que só se abria através de um código de segurança. Taylor marcou rapidamente o código no painel e fixou o olhar na lente do leitor biométrico. Segundos depois, a porta abriu-se com um estalido.
— Bem-vindo ao Buraco Negro — comentou ao fazer Navot entrar. — Os outros já cá estão.
Taylor apresentou-lhe Graham Seymour, esquecendo quiçá (ou quiçá não) que se conheciam há muito tempo e, de seguida, Paul Rousseau.
— Sei que já conheces o Adrian.
— E muito bem, aliás — afiançou Navot, aceitando a mão que Carter lhe estendia. — Eu e o Adrian superámos, juntos, várias guerras, e temos cicatrizes que o atestam.
Os seus olhos demoraram uns instantes a acostumar-se por completo à penumbra. No exterior despontava o que prometia vir a ser um opressivo dia de verão, mas ali, naquela sala de operações de acesso restrito, no mais profundo de Langley, reinava uma noite eterna. Sentados diante de várias mesas, em redor da sala, havia alguns técnicos cujos rostos juvenis eram iluminados pelo resplendor dos ecrãs de computador. Dois deles vestiam um macacão de aviador: eram os responsáveis por pilotar os dois drones que, naquele momento, sobrevoavam a parte oriental de Marrocos sem conhecimento do governo marroquino. As imagens enviadas pelas câmaras de alta resolução dos dois aparelhos tremeluziam nos ecrãs, na parte da frente da sala. O Predator, com os seus dois mísseis Hellfire, estava já sobre Erfoud. Pelo contrário, o Sentinel permanecia a sudeste de Fez, de onde a sua câmara focava claramente o Hotel Palais Faraj. Navot viu Christopher Keller e Jean-Luc Martel surgirem no pátio da frente do hotel. Uns segundos depois, dois Mercedes passaram debaixo de uma arcada e rumaram para sul, para as montanhas.
Navot sentou-se junto de Graham Seymour. Kyle Taylor levara Adrian Carter para um recanto da sala para o consultar sobre algum assunto privado. A tensão que havia entre eles saltava à vista.
— Alguma ideia sobre quem comanda as tropas? — perguntou Navot.
— Por enquanto — respondeu Graham Seymour —, eu diria que é o Gabriel que tem a faca e o queijo na mão.
— Até quando?
— Até o Saladino aparecer. Se isso acontecer — acrescentou Seymour —, vale tudo.
O trânsito na Ville Nouvelle era um pesadelo. Nem sequer na parte velha de Fez parecia haver forma de evitá-lo. Passado um tempo, os edifícios comerciais foram ficando para trás e começaram a aparecer pequenos terrenos cultivados e prédios de habitação de construção recente. Eram blocos de três andares, envelhecidos antes de tempo, com garagens no piso térreo. A maioria das garagens tinha sido convertida em minúsculas lojas ou restaurantes, ou serviam como chiqueiros para guardar animais. As ovelhas e as cabras pastavam entre as oliveiras acabadas de plantar, e as famílias faziam refeições campestres debaixo de qualquer sombra que encontrassem.
Pouco a pouco, o terreno foi-se inclinando para os longínquos cumes do Médio Atlas e os olivais deram lugar aos densos arvoredos de alfarrobeiras, argânias e pinheiros de Alepo. As águias voavam em círculos, à procura de chacais. E, por cima das águias, pensou Christopher Keller, os drones procuravam Saladino.
A primeira vila de alguma importância era Imouzzer. Construída pelos franceses, estava povoada por uns treze mil membros da tribo berbere de Aït Seghrouchen, que falavam um dialeto da antiga língua berbere. Ali, a temperatura descia vários graus (estavam já a uns mil e duzentos metros de altitude) e os souks e cafés exclusivos para homens da rua principal estavam a abarrotar de gente. Keller estudou as caras de jovens e velhos por igual. Eram muito diferentes das caras que vira em Casablanca e em Fez. Traços europeus, cabelo e olhos mais claros. Era como se tivessem atravessado uma fronteira invisível.
Precisamente nesse momento o seu telemóvel vibrou: acabava de receber uma mensagem. Leu-a e olhou para Martel.
— Os nossos amigos têm a impressão de que nos estão outra vez a seguir. Acham que podia ser o mesmo homem que nos seguiu ontem em Mequinez e Volubilis. Gostavam de ter um retrato mais claro dele.
— O que é que pretendem?
Keller mandou o condutor parar num quiosque, nos arredores da povoação. O carro em que iam Mikhail, Natalie e Olivia parou atrás e, a seguir, parou um Renault empoeirado. Keller conseguiu ver o passageiro pelo retrovisor lateral: cabelo escuro e muito curto, bochechas largas, óculos de sol, boné de basebol americano. O condutor, pelo contrário, não se conseguia avistar.
— Traga-nos duas garrafas de água — ordenou a Martel.
— Esta terra não é muito hospitaleira por assim dizer.
— Aposto que saberá defender-se.
Martel saiu e aproximou-se do quiosque. Keller voltou a olhar pelo retrovisor e viu que o passageiro saía do Renault. Quando passou junto do Mercedes, tirou-lhe uma fotografia através da janela fumada da parte de trás. Saiu tão desfocada que era inútil. Mas, pouco depois, quando o homem regressou ao Renault, Keller conseguiu fotografar claramente a sua cara. Mostrou a fotografia a Martel quando o francês regressou ao lugar de trás do carro com duas pegajosas garrafas de água mineral Sidi Ali.
— É ele, não há dúvida — disse Martel. — É o que vi no Rife no inverno passado, com o Khalil.
Enquanto o carro se afastava da berma, Keller mandou a fotografia para o posto de comando de Casablanca. Depois voltou a olhar pelo retrovisor lateral. O outro Mercedes estava mesmo atrás deles. E atrás do Mercedes circulava um Renault coberto de pó com dois homens lá dentro.
Os muitos anos de cooperação, com frequência polémica, entre a CIA e a DST marroquina tinham granjeado a Langley o acesso à longa lista de jihadistas marroquinos e seus acólitos. Como resultado, os analistas do Centro Nacional de Antiterrorismo demoraram só uns minutos a identificar o sujeito da fotografia. Era Nazir Bensaïd, um ex-integrante da Salafia Jihadia marroquina preso depois dos atentados suicidas de 2003 em Casablanca. Posto em liberdade em 2012, Bensaïd fora para a Turquia e finalmente tinha acabado no califado do ISIS. O governo marroquino achava que continuava lá. Mas, evidentemente, estava enganado.
Uma fotografia de Bensaïd tirada na época em que foi preso apareceu naquele instante nos ecrãs do Buraco Negro do NCTC, juntamente com outra fotografia tirada em 2012, à sua chegada ao Aeroporto Ataturk de Istambul. Ambas as fotografias foram remetidas para Gabriel, que por sua vez as enviou para Keller, que confirmou que Nazir Bensaïd era o indivíduo que acabava de ver.
Mas o que é que Nazir Bensaïd estava a fazer numa vila habitada por treze mil berberes, nas montanhas do Médio Atlas? E porque é que os estava a seguir até Erfoud? Havia a possibilidade de que tivesse regressado a Marrocos clandestinamente e tivesse integrado o cartel de Mohammad Bakkar. Mas a explicação mais provável era que estivesse a velar pelos interesses do sócio de Bakkar, aquele iraquiano alto que se fazia chamar Khalil e coxeava ao andar.
Dentro do Buraco Negro, os técnicos marcaram digitalmente o Renault sedan e os seus dois ocupantes, enquanto em Fort Meade, Maryland, a NSA captava o sinal emitido pelos seus telemóveis. Adrian Carter ligou para o sexto andar para dar a notícia ao diretor da CIA, Morris Payne, que rapidamente a transmitiu à Casa Branca. Às sete e meia, hora de Washington, o presidente reuniu-se com o seu conselho de segurança na Sala de Crise, a cujos ecrãs chegavam as imagens emitidas pelos dois drones.
Na Casa dos Espiões de Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman também observavam os ecrãs, enquanto do outro lado do corredor os dois guardas da propriedade rezavam para afugentar os demónios surgidos do fogo. Através dos altifalantes do seu computador portátil, Gabriel ouvia a conversa excitada que reinava no NCTC de Langley. Desejava poder partilhar o seu otimismo, mas era-lhe impossível. A operação na sua totalidade estava agora nas mãos de um homem que tinha enganado e chantageado para que obedecesse às suas ordens. Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, relembrou. Às vezes, são eles que nos escolhem a nós.
53
ERFOUD, MARROCOS
Os jipes esperavam numa praça soalheira e poeirenta, em frente do Café Dakkar de Erfoud. Eram Toyotas Land Cruiser de um branco impoluto, acabados de lavar. Os condutores vestiam calças de algodão e coletes caqui, e exibiam a eficácia sorridente dos guias turísticos profissionais. Mas não o eram. Eram homens de Mohammad Bakkar.
A sul de Erfoud estendia-se o grande oásis de Tafilalet, com os seus palmeirais infinitos: oitocentas mil palmeiras ao todo, segundo o guia em francês que Natalie segurava com força entre as mãos. Enquanto olhava pela janela, pensou de novo naquela noite em Palmira e no seu sonho dessa manhã. Saladino a andar ao seu lado sob um luar violento, com a sua cabeça na mão... Desviou o olhar e viu que Olivia a observava com curiosidade do outro lado no banco de trás do Toyota.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
Em silêncio, Natalie olhou fixamente em frente. Mikhail ia no lugar do copiloto, junto ao condutor. O segundo Toyota, que levava Keller e Jean-Luc Martel, circulava uns cem metros à frente. Atrás, a estrada estava deserta. Nem sequer se via o Renault que os tinha seguido desde Fez.
As palmeiras diminuíram e a paisagem tornou-se íngreme e rochosa. A estrada de asfalto terminava em Rissani, e pouco depois apareceu o grande mar de areia de Erg Chebbi. A aldeia de Khamlia, um conjunto de casas baixas, da cor do barro, estendia-se ao sul das dunas. Ali, abandonaram a estrada principal e seguiram por um caminho cheio de buracos. Natalie vigiava o avanço através do telemóvel: eram um ponto azul que atravessava as terras despovoadas, a caminho da fronteira argelina. Depois, de repente, o ponto azul parou: tinham abandonado a zona com rede. Mikhail tinha levado um telemóvel por satélite para o caso de isso acontecer. Estava atrás de Natalie, na mesma mala do que a Beretta.
Continuaram a avançar durante meia hora, enquanto à sua volta o sol poente tingia de vermelho tijolo as grandes dunas esculpidas pelo vento. Passaram junto a um pequeno acampamento de nómadas berberes que estavam a ferver água para o chá à entrada de uma tenda de pelo de camelo preto. Para além disso, não se via vivalma, só as dunas altas como montanhas e o vasto céu protetor. Aquele vazio era insuportável. Natalie, apesar de estar junto de Olivia e de Mikhail, sentia-se dolorosamente só. Pôs-se a olhar para as fotografias do seu telemóvel, mas eram lembranças da Madame Sophie, não suas. Mal se conseguia lembrar da quinta de Nahalal. O Centro Médico Hadassah, o seu antigo trabalho, tinha-se esbatido quase por completo na sua memória.
Por fim, surgiu o acampamento, um conjunto de tendas coloridas dispostas ao abrigo de uma duna. Outro Land Cruiser branco tinha chegado antes deles. Natalie calculou que fosse a equipa. Deixou que um dos empregados vestidos com um turbante tratasse das suas malas. Mikhail, pelo contrário, adotando o ar arrogante de Dmitri Antonov, levou ele próprio a sua bagagem. Havia três tendas montadas à volta de um pátio central e uma quarta, com casa de banho e chuveiro, erguia-se um pouco mais longe. O pátio estava coberto por tapetes e enfeitado com grandes almofadas, e dois sofás rodeavam uma mesa baixa e comprida. As tendas também estavam atapetadas e mobiladas com autênticas camas e secretárias. Não havia qualquer indício de eletricidade, só velas e uma grande fogueira no pátio que projetava sombras sobre o sopé da duna. Natalie contou seis homens ao todo. Dois carregavam à vista as respetivas armas automáticas. Deduziu que os restantes também estivessem armados.
Com o pôr-do-sol, o ar começou a arrefecer. Na sua tenda, Natalie vestiu uma camisola polar e depois foi tomar banho para o jantar. Olivia juntou-se a ela um instante depois.
— O que é que estamos aqui a fazer? — perguntou baixinho.
— Convidaram-nos para um encantador jantar no deserto — respondeu Natalie.
Os seus olhos encontraram-se com os de Olivia no espelho.
— Por favor, diz-me que nos estão a vigiar.
— Claro que sim. E também nos estão a ouvir.
Saiu sem dizer mais nada e encontrou a mesa posta para um banquete marroquino. Os empregados mantiveram-se afastados, embora aparecessem de vez em quando para lhes encherem os copos com um chá adocicado de hortelã-pimenta. Apesar de tudo, Natalie, Mikhail e Christopher Keller cingiram-se aos seus papéis. Eram Sophie e Dmitri Antonov e o seu amigo e sócio, Nicolas Carnot. Tinham-se instalado em Saint-Tropez naquele verão e, depois de diversas vicissitudes, tinham conhecido Jean-Luc Martel e a sua glamorosa esposa, Olivia Watson. E agora, pensou Natalie, estavam os cinco nos confins da Terra, à espera de que um monstro surgisse da noite.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
Pouco depois das nove, os empregados recolheram as travessas de comida. Natalie mal tinha comido. Sozinha, aproximou-se do acampamento para fumar um dos Gitanes da Madame Sophie. Parou no lugar em que acabava a luz do fogo e começava a escuridão. Estava, pensou, na ponta do mundo. A uns quarenta ou cinquenta metros dali, um dos homens armados montava guarda no deserto. Vestia a túnica branca e o turbante de um berbere do sul. Fingindo que não o via, Natalie atirou a beata para o chão e começou a andar pela areia. O guarda, sobressaltado, atravessou-se à sua frente e indicou-lhe que regressasse ao acampamento.
— Mas quero ver as dunas — disse ela em francês.
— Não é permitido. Pode vê-las de manhã.
— Prefiro vê-las agora — respondeu. — De noite.
— É perigoso.
— Pois acompanhe-me. Assim não será perigoso.
Sem mais, começou a andar de novo pelo deserto, seguida pelo guarda berbere. As suas vestimentas resplandeciam e a sua pele, negra como o breu, não se distinguia da escuridão da noite. Natalie perguntou-lhe o nome. Disse-lhe que se chama Azûlay. Significava «o homem dos olhos bonitos».
— É verdade — comentou ela.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe — disse Natalie.
Continuaram a andar. Lá em cima, a Via Láctea cintilava qual pó de fósforo e a lua crescente brilhava com um resplendor incandescente. Em frente deles erguiam-se três dunas, ascendendo em escala de norte para sul. Natalie tirou os sapatos e, seguida por Azûlay, o Berbere, trepou à mais alta. Demorou vários minutos a chegar ao cume. Exausta, deixou-se cair de joelhos sobre a areia morna e fofa para recuperar o fôlego.
Perscrutou a paisagem com o olhar. Para poente, uma fina fileira de luzes estendia-se intermitentemente desde Erfoud, atravessando os palmeirais do oásis de Tafilalet até Rissani e Khamlia. A leste e a sul só havia deserto, mas a norte, Natalie viu uns faróis que oscilavam ao avançar para ela entre as dunas. Passado um momento, as luzes deixaram de se ver. Talvez, disse a si própria, tenha sido uma miragem, outro sonho. Depois, as luzes voltaram a aparecer.
Natalie deu meia-volta e escorregou pela ladeira da duna, até ao lugar onde tinha deixado os sapatos. Tu és a única que o consegue identificar... Mas Saladino também se lembraria dela. Porque é que não se haveria de lembrar? Afinal de contas, pensou, tinha salvado a vida daquele miserável.
54
LANGLEY, VIRGÍNIA
Os drones avistaram o veículo muito antes de Natalie, às nove e cinco, hora de Marrocos, quando virou na curva sudeste do mar de areia de Erg Chebbi. Um Toyota Land Cruiser branco com sete ocupantes. Parou no limite do acampamento e dele se apearam seis indivíduos entre os quais não se encontrava o condutor. Visto de cima através das câmaras termográficas, dava a impressão de que nenhum daqueles sujeitos coxeava. Cinco deles, visivelmente armados, permaneceram no perímetro do acampamento, enquanto o sexto entrava no pátio central, entre as tendas. Aí cumprimentou Jean-Luc Martel e, uns segundos depois, Mikhail. Como era de esperar, não havia forma de ouvir o que diziam: a falta de cobertura tinha emudecido os telemóveis. Do fundo da sala, Kyle Taylor improvisou uma possível banda sonora para o encontro.
— Mohammad Bakkar, quero apresentar-te um amigo meu, Dmitri Antonov. Dmitri, este é o Mohammad Bakkar.
— Talvez — disse Adrian Carter. — Ou talvez o Saladino tenha ajeitado um pouco a perna, tal como fez com a cara.
— Em Washington não conseguiu esconder que coxeava — assinalou Uzi Navot. — E também não o conseguiu no princípio do ano, quando o Jean-Luc Martel o viu. Para além disso, achas o Mikhail com cara de quem está a falar com o pior terrorista do mundo desde Bin Laden?
— O Mikhail sempre me pareceu um tipo bastante frio — comentou Carter.
— Não é assim tão frio.
Contemplavam a cena através da câmara do Sentinel. Mikhail, esverdeado e envolvido numa refulgente auréola de calor corporal, estava de pé a uns passos da fogueira. Com os braços cruzados, falava com uma calma visível com o recém-chegado. Keller e Olivia já tinham saído do pátio central e tinham entrado numa das tendas. Natalie, depois de regressar do seu passeio pelas dunas, tinha-se juntado a eles. Entretanto, o Predator examinava o deserto que os rodeava. Não havia sinal de outras fontes de calor.
Navot virou-se para Kyle Taylor.
— A NSA identificou outro telemóvel dentro do acampamento?
— Estão a tratar disso.
— É estranho, não achas?
— O quê?
— Não são assim tão difíceis de localizar. Para nós é fácil, mas para vocês é ainda mais fácil.
— A não ser que o telemóvel esteja desligado e lhe tenham extraído o cartão SIM.
— E os telemóveis via satélite?
— Esses são fáceis de localizar.
— E porque é que o Mohammad Bakkar não tem sempre um? É bastante perigoso andar pelo deserto sem telemóvel, não achas?
— O Saladino sabe que um telemóvel equivale a uma sentença de morte.
— É verdade — concordou Navot. — Mas como é que o Bakkar pensa avisá-lo de que pode ir para o acampamento? Através de um pombo-correio? Ou de sinais de fumo?
— Onde é que queres chegar, Uzi?
— O que quero dizer é que o Mohammad Bakkar não anda com um telemóvel via satélite porque não precisa dele para avisar o Saladino.
— Porquê?
— Porque já lá está. — Navot apontou para o ecrã. — Está sentado ao volante do Toyota.
55
SAARA, MARROCOS
A descrição física que Jean-Luc Martel fizera de Mohammad Bakkar demonstrou estar certa, pelo menos num sentido: o marroquino das montanhas do Rife era baixo (media à volta de um metro e sessenta) e de constituição forte. O seu fanatismo religioso não era evidente à primeira vista. Não usava kufi, nem barba desgrenhada, e fumava um cigarro, transgredindo as leis do Estado Islâmico, que tinha proibido o tabaco. Vestia roupa europeia e cara: um casaco de caxemira com o fecho subido, umas calças de sarja engomadas com esmero e uns mocassins de camurça completamente inadequados para o deserto. O seu relógio de pulso, cuja esfera cintilava ao refletir a luz do fogo, era grande, suíço e de ouro. O seu francês era excelente, tal como o seu inglês, idioma do qual se servia para se dirigir a Mikhail.
— Monsieur Antonov, quanto me apraz que, por fim, nos tenhamos conhecido. Tenho ouvido falar muito de si.
— O Jean-Luc?
— O Jean-Luc não é o meu único amigo em França — respondeu o marroquino com um ar cúmplice. — Causou sensação na Provença este verão.
— Não era essa a minha intenção.
— Não? — Bakkar sorriu afavelmente. — As suas festas causavam furor. Os episódios que se contavam chegaram até Marraquexe. Que escândalo!
— Há que viver a vida.
— Claro que sim. Mas tem de haver certos limites, não lhe parece?
— Nunca tinha pensado nisso.
Mohammad Bakkar sorriu.
— Espero que tenham gostado do jantar.
— Foi magnífico.
— Gosta da cozinha marroquina?
— Muito.
— Já tinha visitado Marrocos anteriormente?
— Não, nunca.
— Como é possível? O meu país é muito querido entre os europeus cosmopolitas.
— Entre os russos, não.
— Tem razão. Os russos preferem a Turquia, não sei porquê. Mas, na realidade, o senhor não é russo, pois não, Monsieur Antonov? Já não.
Mikhail sentiu que o seu coração batia com violência nas costelas.
— Continuo a ter passaporte russo — respondeu.
— Mas a sua casa é em França.
— Por agora.
Mohammad Bakkar pareceu considerar a sua resposta mais tempo do que requeria.
— E o acampamento? — perguntou a olhar à sua volta. — É do seu agrado?
— Muito, sim.
— Tentei que fosse o mais tradicional possível. Espero que não o incomode que não tenha eletricidade. Os turistas vêm ao Saara à espera de encontrar todas as comodidades da vida ocidental. Luz elétrica, telemóveis, Internet...
— Aqui não há Internet. — Mikhail levantou o telemóvel. — E isto não serve para nada.
— Sim, eu sei disso. Por isso, escolhi este lugar.
Mikhail levantou-se e fez um movimento para sair.
— Onde é que vai? — perguntou Bakkar.
— O senhor e o Jean-Luc têm de falar de negócios.
— Mas esses negócios dizem-lhe respeito a si. Pelo menos, em parte. — Indicou-lhe os sofás. — Sente-se, por favor, Monsieur Antonov. — Sorriu de novo. — Insisto.
Do posto de comando em Casablanca, Gabriel viu Mikhail sentar-se num dos sofás. Apareceu então um membro do serviço e serviu o chá. No lado direito da imagem, dentro de uma das tendas, apreciavam-se as silhuetas termográficas de três pessoas. Duas delas correspondiam, visivelmente, a mulheres. A outra era a de Christopher Keller. Um momento antes, Gabriel tinha enviado uma mensagem criptográfica para o telemóvel via satélite de Keller, fazendo referência à possível identidade do homem sentado ao volante do Toyota Land Cruiser que acabava de chegar. Keller mexia agora as mãos, manipulando algo que Gabriel não conseguia ver: o frio metal não era visível através das câmaras de infravermelhos.
Keller guardou o objeto nas costas, à altura dos rins, e aproximou-se com prontidão da entrada da tenda, onde permaneceu uns segundos, provavelmente a observar o panorama operacional. Depois pegou no telemóvel via satélite e tocou no ecrã. Segundos depois, chegou uma mensagem ao computador de Gabriel.
QUANDO VOCÊS ESTIVEREM PRONTOS, TAMBÉM ESTOU.
Com a ajuda dos drones, Gabriel estudou por sua vez o local. Quatro homens montavam guarda no deserto, à volta do acampamento: norte, sul, este e oeste, como pontos de uma bússola. Estavam todos armados. Os homens que tinham chegado com Mohammad Bakkar também traziam armas. Havia a possibilidade de o próprio Bakkar estar armado. Mikhail, temendo que as escoltas do marroquino o revistassem, não tinha nenhuma arma. Ou seja, eram dez contra um, no mínimo. Era muito provável que Keller e o resto da equipa não sobrevivessem a um tiroteio a tão curta distância, nem sequer estando presente o agente que tinha conseguido a nota mais alta na história da célebre Killing House do SAS. Para além disso, era possível que Uzi Navot e Langley estivessem enganados em relação à identidade do ocupante do Toyota. Convinha deixar que as coisas seguissem o seu curso. Que Saladino se deixasse ver e que fosse abatido em algum lugar onde não houvesse risco de danos colaterais. Por enquanto, aquele lugar remoto do canto mais escuro do sudeste de Marrocos jogava contra ele. Mas não por muito tempo. Em breve, disse Gabriel a si próprio, o deserto passaria a ser seu aliado.
Mandou Keller continuar à espera e pediu a Langley que focasse as câmaras do drone no Land Cruiser estacionado no limite do acampamento. A imagem apareceu no seu monitor um momento depois, por cortesia do Predator. O homem vestia uma jilaba com capuz e tinha ambas as mãos apoiadas no volante. Não estava a fumar. Gabriel calculou que, em algum momento, se iria reunir com os outros. Para fazê-lo, teria de sair do veículo e percorrer a pé uma curta distância. E então ele, Gabriel, saberia se era mesmo Saladino. Havia muitas formas de alterar a aparência física de um homem, disse a si próprio. O cabelo podia ser cortado ou pintado, e as feições podiam ser transformadas através de uma cirurgia plástica. Mas uma perna manca a coxear como a de Saladino era para sempre.
56
SAARA, MARROCOS
Ao princípio, Mohammad Bakkar falou unicamente em darija, e só com Jean-Luc Martel. Era evidente pela sua atitude e pelo seu tom que estava zangado. Enquanto trabalhava na Sayeret Matkal, Mikhail tinha aprendido um pouco de árabe palestiniano, o suficiente para se safar durante os ataques noturnos a Gaza, à Cisjordânia e ao sul do Líbano. Não falava árabe com fluência, longe disso; nem sequer dava para conversar minimamente. Ainda assim, conseguiu entender em linhas gerais o que dizia o marroquino das montanhas do Rife. Ao que parece, vários carregamentos importantes de um produto misterioso tinham desaparecido recentemente em circunstâncias inexplicáveis. As perdas, que a organização de Bakkar sofrera, eram substanciais: ascendiam, de facto, a centenas de milhões. Em algum lugar, afirmou, houvera uma fuga. E não fora no seu território. Evidentemente, dominava a sua organização com mão de ferro. Portanto, o erro tinha de ser de Martel. Bakkar deu a entender que tinha sido intencional. Afinal de contas, o francês nunca vira com bons olhos a rápida expansão do negócio que partilhavam. Teria de o compensar de alguma forma. Caso contrário, Bakkar procuraria outro distribuidor para a sua mercadoria e deixaria Martel de fora.
Seguiu-se uma violenta discussão. Martel, a falar velozmente em árabe marroquino, insinuou que o culpado das apreensões era o próprio Mohammad Bakkar. Recordou-lhe que, por aquele mesmo motivo, se tinha oposto a que se aumentasse drasticamente a quantidade de mercadoria que entrava na Europa. Segundo os seus cálculos, tinham perdido mais de um quarto da produção devido às apreensões, em vez dos habituais dez por cento, uma taxa sustentável a longo prazo. A única solução era aplicar a prudência. Enviar carregamentos com quantidades inferiores e prescindir de navios mercantes. Foi, pensou Mikhail, uma atuação impressionante por parte de Martel. Um espião veterano não o teria feito melhor. Quando a intervenção do francês findou, Mohammad Bakkar parecia convencido de que tanto ele como a sua organização eram os responsáveis, até certo ponto, pelas fugas. Resolveu ir ao fundo da questão. Entretanto, tinha vinte toneladas de género acumuladas nas fábricas clandestinas do Rife, a aguardarem remessa. Estava ansioso por expedi-las. Evidentemente, precisava de novos fundos.
— Não quero assumir sozinho todo o custo da última catástrofe. Não é justo.
— Estou de acordo — conveio Martel. — O que é que tinhas pensado?
— Um aumento de preço de cinquenta por cento. Só desta vez.
— Cinquenta por cento! — Martel fez um gesto desdenhoso com a mão. — Que loucura.
— É a minha última oferta. Se queres continuar a ser meu distribuidor, aconselho-te a aceitares.
Não era a última oferta de Mohammad Bakkar, longe disso. Martel sabia-o, tal como o sabia o próprio Bakkar. Afinal de contas, estavam em Marrocos. Havia que regatear até para que te passassem o pão ao jantar.
Continuaram a discutir durante uns minutos, durante os quais os cinquenta por cento passaram a ser quarenta e cinco, depois quarenta e, por último e depois de um olhar de exasperação lançado para o céu, trinta. Enquanto isso, Mikhail não parou de vigiar o homem que, por sua vez, o vigiava a ele. O homem sentado ao volante do Toyota, de onde via sem obstáculos o pátio central do acampamento. Vestia uma jilaba com um capuz pontiagudo e a sua cara estava envolvida em sombras profundas. Ainda assim, Mikhail sentia o peso como chumbo do seu olhar. E sentia também a ausência de uma arma à altura dos seus rins.
— Khalas — disse Bakkar, por fim, esfregando as mãos. — Que seja vinte e cinco, a pagar no momento de entrega da mercadoria. É pouquíssimo, mas que remédio tenho eu? Queres que também te dê a minha camisa, Jean-Luc? Posso sempre arranjar outra.
Martel sorria. Mohammad Bakkar selou o acordo com um aperto de mãos e, de seguida, virou-se para Mikhail.
— Desculpe, mas eu e o Jean-Luc tínhamos de debater um assunto muito sério.
— Era o que parecia.
— Não fala árabe, Monsieur Antonov?
— Não.
— Nem um pouco?
— Até pedir um café me custa.
Mohammad Bakkar assentiu, compreensivo.
— Cada país tem a sua forma de pronunciar. Um egípcio vê o mundo de maneira diferente de um marroquino, um jordano ou, por exemplo, um palestiniano.
— Ou um russo — riu Mikhail.
— Que vive em França.
— O meu francês é quase tão mau como o meu árabe.
— Então, falemos inglês.
Fez-se um silêncio.
— O que é que o Jean-Luc lhe contou sobre os nossos negócios? — perguntou Bakkar, por fim.
— Muito pouco.
— Mas deve ter alguma ideia, sem dúvida.
— Laranjas — respondeu Mikhail. — O senhor é o fornecedor das laranjas que abastecem os restaurantes e os hotéis do Jean-Luc.
— Laranjas e romãs — disse Bakkar num tom cordial. — Em Marrocos existem umas romãs ótimas. As melhores do mundo, na minha opinião. Mas as autoridades europeias não querem as nossas laranjas nem as nossas romãs. Ultimamente, temos perdido vários carregamentos. Eu e o Jean-Luc estávamos a discutir o que aconteceu e as medidas a tomar a esse respeito.
Mikhail ouvia-o com um semblante inexpressivo.
— Infelizmente, não perdemos só fruta nessas apreensões. Também perdemos algo insubstituível. — Bakkar olhou-o com um ar calculista. — Ou talvez não.
Pediu mais chá. Mikhail dirigiu um olhar ao ocupante do Toyota, enquanto enchiam os copos.
— A que tipo de negócios é que se dedica exatamente, Monsieur Antonov?
— Perdão?
— Os seus negócios — repetiu Bakkar. — A que é que se dedica exatamente?
— Às laranjas — respondeu Mikhail. — E às romãs.
Bakkar sorriu.
— Eu tinha entendido — disse — que traficava armas.
Mikhail não disse nada.
— É um homem prevenido, Monsieur Antonov. É um traço admirável.
— Para além de ser bom para o negócio. Assim perdem-se menos carregamentos.
— Portanto, é verdade!
— Dedico-me aos investimentos, Monsieur Bakkar. E, às vezes, faço negócios que implicam a transferência de bens da Europa de Leste e das repúblicas da antiga União Soviética para lugares problemáticos em diversas partes do mundo.
— Que tipo de bens?
— Use a sua imaginação.
— Armas?
— Armamento — respondeu Mikhail. — As armas representam uma parte mínima do negócio.
— De que tipo de mercadoria estamos a falar?
— De tudo, desde Kalashnikovs a helicópteros ou a aviões de combate.
— Aviões? — perguntou Bakkar, incrédulo.
— Gostava de ter um? Ou talvez prefira um tanque ou um Scud. Este mês temos uma oferta especial. Eu, se fosse a si, faria o pedido hoje mesmo. Não vão durar muito.
— Não seriam para mim — afirmou Bakkar levantando as mãos. — Mas um dos meus sócios poderia estar interessado.
— Nos Scuds?
— As necessidades dele são muito específicas. Mas prefiro que ele próprio lhe explique isso.
— Para já não — disse Mikhail. — Primeiro, conte-me um pouco mais sobre esse seu sócio. Depois decidirei se me quero reunir com ele.
— É um revolucionário — afirmou Bakkar. — Com uma causa justa, garanto-lhe.
— Como de costume — replicou Mikhail com ceticismo. — De onde é que é?
— Não tem país, no sentido ocidental da palavra. As fronteiras não significam nada para ele.
— Que interessante. Mas onde é que teria de lhe levar as armas?
Bakkar ficou sério, de repente.
— Sem dúvida que tem consciência de que o caos político que aflige há um tempo a nossa região tem apagado muitas das antigas fronteiras traçadas pelos diplomatas em Paris e Londres. O meu sócio procede de um desses lugares. Um lugar muito conflituoso.
— Os conflitos são o que me mantém à tona.
— Era o que me parecia — afirmou Bakkar.
— Como é que se chama o seu sócio?
— Pode chamar-lhe Khalil.
— E antes do caos? — perguntou Mikhail de imediato, como se esse nome não lhe dissesse nada. — De onde era?
— Em criança vivia à beira de um dos rios que emanavam do Jardim do Éden.
— Eram quatro — afirmou Mikhail.
— Efetivamente. O Pison, o Ghion, o Eufrates e o Tigre. O meu sócio vivia à beira do Tigre.
— De maneira que é iraquiano.
— Foi-o em tempos. Já não. Agora é súbdito do califado islâmico.
— Imagino que não se encontra no califado neste momento.
— Não. Está ali. — Bakkar inclinou a cabeça para o Toyota. Depois olhou para Mikhail e perguntou: — Está armado, Monsieur Antonov?
— Claro que não.
— Importa-se que um dos meus homens o reviste? — Bakkar sorriu cordialmente. — Afinal de contas, é um traficante de armas.
Reuniram-se junto à porta do condutor do Toyota: cinco homens ao todo — contou Gabriel —, todos eles armados. Por fim, a porta abriu-se e o ocupante do carro saiu com uma certa dificuldade. Permaneceu mais um pouco perto do veículo, rodeado de guardas, enquanto Mikhail era revistado minuciosamente. Só quando o acabaram de revistar, avançou para o centro do acampamento. Os guardas armados formavam um círculo apertado à sua volta. Ainda assim, Gabriel conseguiu ver que carregava o peso do corpo na perna direita. O primeiro passo do processo de identificação tinha-se verificado com sucesso. O segundo, pelo contrário, não se podia fazer tão de cima, servindo-se do drone americano. Só serviria um encontro cara a cara.
Gabriel enviou uma mensagem a Christopher Keller informando-o de que o sujeito acabava de entrar no acampamento e coxeava visivelmente ao caminhar. Viu então que estendia a mão ao agente dos serviços secretos israelitas.
— Dmitri Antonov — disse Gabriel baixinho —, permita-me apresentar-lhe o meu amigo Saladino. Saladino, este é o Dmitri Antonov.
Havia, naquele remoto acampamento do deserto, dois agentes israelitas que podiam efetuar a verificação necessária para lançar uma operação de assassinato seletivo em território de um aliado intermitente na guerra contra o terror. O primeiro estava sentado à frente do sujeito em questão, desarmado e sem dispositivo algum de comunicação. O segundo estava a escassos metros dali, numa tenda confortavelmente mobilada. O agente do exterior, sozinho, só vira o alvo pessoalmente de forma fugaz num afamado restaurante de Georgetown. A agente refugiada na tenda tinha passado, pelo contrário, vários dias com o sujeito numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, e tinha falado com ele durante muito tempo. E numa cabana no sopé das montanhas Shenandoah, na Virgínia, tinha-o ouvido pronunciar a sua sentença de morte. Nunca esqueceria aquele som. Nem sequer precisou de lhe ver a cara para saber que era ele: disse-lho a sua voz.
Havia um terceiro agente que também tinha visto o sujeito pessoalmente: era aquele que esperava ansiosamente numa casa assombrada num antigo bairro colonial em Casablanca. Quando a confirmação de que, efetivamente, era ele chegou ao seu computador, Gabriel remeteu-a de imediato para o Buraco Negro de Langley.
— Apanhámo-lo! — gritou Kyle Taylor.
— Ainda não — advertiu-o Uzi Navot com o olhar fixo no ecrã. — Nada disso. Nem pouco mais ou menos.
CONTINUA
41
CÔTE D’AZUR, FRANÇA
Havia uma parte de Paul Rousseau que não tinha estômago para o acordo que tinha de ser feito. Jean-Luc Martel, diria ele mais tarde, era a prova cabal de que a França errara ao acabar com a guilhotina. Mas Khalil, o iraquiano (Khalil cujo rosto fora alterado, Khalil que ao caminhar coxeava) valia bem o preço. A coerção, só por si, não seria suficiente para arrastar Martel até à linha de meta. Teria de ser transformado num colaborador pleno do Grupo Alpha («um agente dos serviços secretos franceses, deus me livre», lamentou-se Rousseau) e apenas uma promessa de imunidade total para uma possível acusação seria suficiente para assegurar a sua cooperação inabalável. Rousseau não tinha poder para fazer tal promessa; só um ministro a poderia fazer. O que colocava Rousseau perante um dilema adicional, pois o seu ministro continuava a não saber nada da operação. Era sobejamente sabido que o ministro era um homem que não gostava de surpresas. Talvez nesse caso conseguisse abrir uma exceção.
De momento, Rousseau fez das tripas coração e testou as capacidades de Martel. Falaram novamente sobre tudo, lenta e meticulosamente, para a frente, para trás, de lado, e de todas as outras formas que Rousseau, que andava à procura de alguma incongruência, de algum motivo para questionar a autenticidade da sua fonte, conseguiu imaginar. Foi dada particular atenção à ordem de trabalhos da reunião de inverno em que Khalil, o iraquiano, estivera presente, principalmente à calendarização das entregas seguintes. Estavam previstos três grandes carregamentos nos dez dias seguintes. Todos estariam escondidos no interior de navios de carga que partiriam da Líbia. Dois chegariam a portos franceses (a Marselha e à vizinha Toulon), mas o terceiro atracaria no porto italiano de Génova.
— Se essa droga desaparecer — disse Martel —, vai ser o bom e o bonito.
— Laranjas — disse Rousseau. — Laranjas.
Foi nesse momento que Gabriel se intrometeu nos procedimentos pela primeira vez. Fê-lo apenas com uma apresentação mínima e trazendo consigo várias folhas de papel em branco, um lápis e um afia. Durante a maior parte da hora seguinte, sentou-se ao lado do homem cuja vida virara do avesso e, com a sua ajuda, produziu retratos-robô das duas versões de Khalil, o iraquiano: a versão de 2012 que envergava roupas ocidentais e a versão que aparecera em Marrocos depois dos atentados de Washington envergando uma jilaba tradicional e coxeando notoriamente. Martel tinha um célebre olho para o detalhe (ele próprio o dissera muitas vezes em entrevistas à imprensa) e alegava nunca esquecer um rosto. Era também exigente, um traço que revelou plenamente quando Gabriel não conseguiu conceber um queixo adequado para a versão cirurgicamente retocada de Khalil. Passaram por três esboços antes de Martel, com inesperado entusiasmo, dar a sua aprovação.
— É ele. É o homem que vi em dezembro passado.
— Tem a certeza? — pressionou Gabriel. — Não tenha pressa. Podemos fazer outro esboço, se quiser.
— Não é necessário. Era exatamente assim.
— E o coxear? — perguntou Gabriel — Não referiu qual era a perna que estava lesionada.
— Era a direita.
— Tem a certeza disso?
— Sem qualquer dúvida.
— Ele deu alguma explicação?
— Disse que tinha sido num acidente de carro. Não disse onde.
Gabriel estudou os desenhos finais durante um longo momento antes de os levantar para que Natalie os visse. Os olhos dela arregalaram-se involuntariamente. Depois, retomando a compostura, desviou o olhar e assentiu lentamente com a cabeça. Gabriel colocou o primeiro esboço de lado e contemplou o segundo demoradamente. Era o novo rosto do terrorismo. Era o rosto de Saladino.
Arrastaram-no para o andar de cima, para o quarto da Madame Sophie, esfregaram-lhe o flanco do pescoço com batom vermelho-sangue e regaram-no com uma quantidade suficiente de perfume da Madame Sophie para que deixasse um rasto de vapor enquanto conduzia através da luz da aurora, derrotado e exausto, em direção à sua villa do outro lado da Baie de Cavalaire. Não foi sozinho. Nicolas Carnot, também conhecido como Christopher Keller, estava sentado no lugar do passageiro, com o telemóvel de Martel numa mão, uma arma na outra. Atrás deles, num segundo veículo, havia quatro agentes do Grupo Alpha. Previamente, tinham sido empregados de Dmitri Antonov na Villa Soleil. Agora, tal como Nicolas Carnot, estavam a trabalhar para Martel. As circunstâncias exatas que rodeavam a decisão de abandonar um chefe por outro eram nebulosas, mas coisas assim podiam acontecer em Saint-Tropez durante o verão.
Passavam exatamente doze minutos das cinco da manhã quando os dois veículos viraram para o caminho de acesso à villa. Olivia Watson sabia-o porque passara toda a noite deitada na cama acordada e correra para a janela do quarto ao ouvir o som das portas do carro a abrirem e fecharem no pátio. Agora, fingia dormir enquanto a cama ondulava sob o peso do seu amante errante. Ela rebolou para o outro lado e os seus olhos encontraram-se com os dele na penumbra.
— Onde é que estiveste, Jean-Luc?
— Negócios — murmurou ele. — Dorme.
— Há algum problema?
— Agora já não.
— Tentei telefonar-te, mas o meu telefone não está a funcionar. Também não há Internet e a nossa linha fixa está inativa.
— Deve ter havido alguma falha. — Os seus olhos fecharam-se.
— Porque é que o Nicolas está lá em baixo? E quem são aqueles outros homens?
— Eu explico tudo de manhã.
— Já é de manhã, Jean-Luc.
Ele ficou em silêncio. Olivia aproximou-se.
— Cheiras a outra mulher.
— Olivia, por favor.
— Quem é ela, Jean-Luc? Onde é que estiveste?
42
PARIS
O ajuste de contas que Paul Rousseau tinha estado a temer ocorreu no início dessa tarde no Ministério do Interior em Paris. Tal como Jean-Luc Martel, não enfrentou o seu destino sozinho; Gabriel foi com ele. Atravessaram o pátio lado a lado e marcharam pela grandiosa escadaria acima até ao imponente escritório do ministro, onde Rousseau, que nunca tivera tendência para conversa delicada de circunstância, confessou imediatamente os seus pecados operacionais. Os serviços secretos britânicos, disse, tinham identificado a origem das espingardas de assalto utilizadas no atentado de Londres como sendo de um franco-marroquino chamado Nouredine Zakaria, um criminoso profissional com ligações a uma das maiores redes francesas de tráfico de droga. Sem a autorização do seu chefe nem do Ministério do Interior, Rousseau e o Grupo Alpha tinham trabalhado com dois serviços aliados (os britânicos e, de forma bastante evidente, os israelitas) para se infiltrarem na supracitada rede e transformarem o seu líder num confidente. A operação, continuou ele, fora um êxito. Com base na informação fornecida pela fonte, o Grupo Alpha e os seus parceiros poderiam dizer com moderada confiança que o ISIS assumira o controlo de uma porção significativa do comércio ilícito de haxixe no Norte de África e que Saladino, o misterioso cérebro operacional iraquiano da divisão de operações externas no grupo, estava, provavelmente, escondido em Marrocos, um antigo protetorado francês.
O ministro reagiu basicamente tão bem quanto seria de esperar, que não foi nada bem. Seguiu-se um sermão, em grande medida profano. Rousseau ofereceu a sua demissão (redigira uma carta manuscrita durante a viagem da Provença para norte) e, durante um longo momento, o ministro pareceu preparado para aceitá-la. Passado muito tempo, deixou cair a carta no seu triturador de papel. A derradeira responsabilidade de proteger o solo francês de atentados terroristas, islâmicos ou outros, repousava nos ombros estreitos do ministro. Não estava disposto a perder um homem como Paul Rousseau.
— Onde é que está o Nouredine Zakaria agora?
— Desaparecido — disse Rousseau.
— Foi para o califado?
Rousseau hesitou antes de responder. Estava preparado para ofuscar os factos, mas, de forma alguma, diria uma mentira completa. Nouredine Zakaria, disse calmamente, estava morto.
— Morto como? — perguntou o ministro.
— Creio que ocorreu durante uma transação de negócios.
O ministro olhou para Gabriel.
— Suponho que o senhor teve alguma coisa a ver com isso.
— O falecimento do Zakaria precedeu o nosso envolvimento neste caso — respondeu Gabriel com uma precisão de advogado.
O ministro não se tranquilizou.
— E o líder da rede? O vosso novo confidente?
— O nome dele — disse Rousseau — é Jean-Luc Martel.
O ministro baixou o olhar e reorganizou os papéis sobre a sua secretária.
— Isso explicaria o vosso interesse no processo do Martel no dia em que o vosso quartel-general explodiu.
— Explicaria — disse Rousseau, mantendo-se firme.
— O Jean-Luc foi alvo de numerosas investigações. Todas chegaram à mesma conclusão: que não está envolvido no mundo da droga.
— Essa conclusão — disse Rousseau cuidadosamente — está errada.
— Tem a certeza disso?
— Obtive a confirmação por parte da mais alta autoridade no assunto.
— Quem?
— O próprio Jean-Luc Martel.
O ministro troçou:
— Porque é que ele lhe diria tal coisa?
— Não teve grandes hipóteses.
— Porquê?
— René Devereaux.
— O nome é-me familiar.
— Deveria ser — disse Rousseau.
— Onde é que está o Devereaux agora?
— No mesmo lugar que o Nouredine Zakaria.
— Merde — disse o ministro suavemente.
Houve um silêncio. Os fragmentos de pó flutuavam nos raios de sol que atravessavam a janela como peixes num aquário. Rousseau pigarreou delicadamente, um sinal de que estava prestes a aventurar-se a entrar em terreno traiçoeiro.
— Sei que o senhor ministro e o Martel são amigos — disse ele finalmente.
— Somos conhecidos — contestou rapidamente o ministro —, mas não somos amigos.
— O Martel ficaria surpreendido por ouvir isso. Na verdade, invocou o seu nome várias vezes, antes de finalmente aceitar cooperar.
O ministro não conseguiu ocultar a raiva contra Rousseau por lavar roupa suja francesa diante de um estrangeiro, e, para além do mais, um israelita.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou.
— Pretendo dizer — disse Rousseau — que vou precisar da cooperação permanente do Martel, o que exigirá que lhe seja concedida imunidade. Fazê-lo poderá ser um assunto sensível, dada a vossa relação, mas é necessário para que a operação possa avançar.
— Qual é o vosso objetivo?
— Eliminar o Saladino, claro.
— E pretendem utilizar o Martel nalgum tipo de função operacional?
— É a nossa única opção.
O ministro mostrou-se pensativo.
— Tem razão, conceder-lhe imunidade seria difícil. Mas se fosse o Rousseau a solicitá-la...
— Terá a documentação ao final do dia — interrompeu Rousseau. — Com franqueza, provavelmente é melhor assim. O senhor ministro não é a única pessoa do atual governo que é conhecido do Martel.
O ministro estava novamente a remexer nos papéis.
— Demos-lhe uma vasta margem de manobra quando criámos o Grupo Alpha, mas escusado será dizer que o Rousseau ultrapassou os limites da sua autoridade.
Rousseau aceitou a reprimenda com um silêncio compungido.
— Não me irão manter novamente na ignorância. Estamos entendidos?
— Sim, senhor ministro.
— Como pretende prosseguir?
— Nos próximos dez dias, o fornecedor marroquino do Martel, um homem chamado Mohammad Bakkar, vai enviar vários grandes carregamentos de haxixe a partir de portos da Líbia. É vital que os intercetemos.
— Sabe o nome das embarcações?
Rousseau assentiu com a cabeça.
— O Bakkar e o Saladino vão suspeitar de que há um informador.
— Correto.
— Vão ficar zangados.
Rousseau sorriu.
— Essa é a nossa esperança, senhor ministro.
O primeiro navio, um contentor flutuante com registo maltês chamado Mediterranean Dream, só deveria deixar a Líbia quatro dias depois. O seu ponto de partida era Khoms, um pequeno porto marítimo comercial a leste de Trípoli; após uma breve paragem na Tunísia, onde estava planeado que receberia uma carga de produto, dirigir-se-ia diretamente para Génova. Estava previsto que as outras duas embarcações, uma hasteando uma bandeira baamiana, a outra panamenha, partiriam de Sirte dali a uma semana, colocando, por conseguinte, Gabriel e Rousseau perante um pequeno dilema. Concordaram que apreender o Mediterranean Dream enquanto as outras duas embarcações ainda estavam no porto da Líbia seria um erro de cálculo, pois concederia a Mohammad Bakkar e a Saladino uma oportunidade para alterarem a rota da mercadoria. Em vez disso, aguardariam que os três navios estivessem em águas internacionais antes de dar o primeiro passo.
A demora pesou a ambos intensamente, principalmente a Gabriel, que observara o rosto retocado de Saladino emergir dos esforços da sua própria mão. Transportava sempre consigo o esboço, mesmo quando ia para a cama em Jerusalém, onde passou quatro noites agitadas ao lado da esposa. Na Avenida Rei Saul, sentou-se a ouvir relatórios intermináveis sobre assuntos que deixara nas mãos capazes de Uzi Navot, mas toda a gente conseguiu perceber que a sua cabeça não estava ali. Durante uma reunião de Conselho, a sua mente divagou enquanto os ministros discutiam incessantemente. No seu caderno desenhou um rosto. Um rosto parcialmente oculto pelo capuz de uma jilaba.
Rousseau acordou Gabriel cedo, na manhã seguinte, com notícias de que o Mediterranean Dream deixara a Tunísia durante a noite e estava agora em águas internacionais. Mas conteria efetivamente um carregamento escondido de haxixe de Marrocos? Apenas uma fonte dizia que sim, o homem que vivia à frente de Dmitri e Sophie Antonov, do outro lado da Baie de Cavalaire. O homem cujos inúmeros pecados tinham sido oficialmente perdoados e que estava agora sob controlo total e absoluto de um consórcio de três serviços secretos.
Contudo, aos olhos de um leigo, parecia não ter havido qualquer mudança exterior no seu comportamento, salvo a constante presença de Christopher Keller ao seu lado. De facto, para onde quer que Martel fosse, era certo que Keller o seguiria. Ao Mónaco e a Madrid, para duas reuniões de negócios previamente agendadas. A Genebra para uma sessão de esclarecimento com um banqueiro suíço de ética questionável. E, finalmente, a Marselha, de onde o chefe da divisão de estupefacientes ilícitos de Martel desaparecera sem deixar rasto, deixando para trás dois guarda-costas mortos na sua loja de produtos eletrónicos com vista para a Place Jean Jaurès. A polícia de Marselha acreditava que René Devereaux fora assassinado por um rival do submundo. Os parceiros de Devereaux, incluindo um tal Henri Villard, eram da mesma opinião. Durante uma reunião com Martel e Keller, num apartamento seguro próximo da Gare Saint-Charles, Villard mostrou-se nervoso quanto aos próximos carregamentos. Temia, com razão, que tivesse havido uma fuga de informação. Martel acalmou os seus medos e deu-lhe instruções para que recolhesse a carga da forma habitual. Um escrutínio minucioso da gravação captada pelo telefone do bolso de Keller (e dos movimentos e comunicações de Villard depois da reunião) sugeriu que Martel não tentara enviar um aviso clandestino à sua antiga rede. O haxixe estava a caminho, o pagamento estava programado para sair. Tanto para os traficantes como para os mestres de espionagem, tudo parecia correr sobre rodas.
A mensagem que motivaria a ação seguinte foi entregue através do canal habitual, de ministro do Interior para ministro do Interior, sem qualquer sensação indevida de urgência. Um informador que pertencia a um dos mais proeminentes gangues de droga franceses alegava que um grande carregamento de haxixe do Norte de África chegaria a Génova no dia seguinte, a bordo do Mediterranean Dream, registado como maltês. Talvez os italianos, se não tivessem nada melhor para fazer, quisessem examiná-lo. E fizeram-no, efetivamente. Na verdade, unidades da Guardia di Finanza, a agência policial italiana responsável pelo combate ao tráfico de droga, embarcaram no navio minutos após a sua chegada e começaram a forçar a abertura dos contentores. A sua busca renderia, eventualmente, quatro toneladas de haxixe marroquino, de forma nenhuma um recorde, mas uma apreensão respeitável. Depois disso, o ministro italiano telefonou ao homólogo francês e agradeceu-lhe pela informação. O ministro francês disse que ficava satisfeito por ter podido ajudar.
Embora tivesse sido uma grande notícia em Itália, a apreensão atraiu pouca atenção em França, menos ainda na antiga povoação de pescadores de Saint-Tropez. Mas, quando a polícia alfandegária francesa fez uma rusga a dois navios no dia seguinte (o Africa Star, com destino a Toulon, e o Caribbean Endeavor, com destino a Marselha), até mesmo a sonolenta Saint-Tropez ficou impressionada. O Africa Star renderia três toneladas de haxixe, o Caribbean Endeavor apenas duas. Mas também continha algo que apanhou Gabriel e Paul Rousseau de surpresa: um cilindro de chumbo, de quarenta centímetros de altura e vinte de diâmetro, escondido dentro de um rolo de cabo elétrico produzido por uma fábrica de um bairro industrial de Trípoli.
O cilindro não exibia marcas de qualquer tipo. Ainda assim, a polícia alfandegária francesa, que estava treinada para lidar com material potencialmente perigoso, sabia perfeitamente que não devia abri-lo. Efetuaram-se telefonemas, soaram alarmes e, ao início da noite, o contentor fora transportado de forma segura para um laboratório governamental francês nos arredores de Paris, onde os técnicos analisaram o pó semelhante a pó de talco que encontraram no interior. Em pouco tempo, determinaram que se tratava da substância altamente radioativa césio-137 ou cloreto de césio. Paul Rousseau e o ministro do Interior foram informados da descoberta às oito horas dessa noite e, vinte minutos depois, com Gabriel a segui-los um passo atrás, estavam a atravessar apressadamente as portas do Palácio do Eliseu para transmitir as notícias ao Presidente da República. Saladino estava a planear atacá-los novamente, desta vez com uma bomba suja.
TERCEIRA PARTE
O CANTO MAIS ESCURO
43
SURREY, INGLATERRA
Nunca se determinaria exatamente, de uma forma que satisfizesse plenamente ninguém, muito menos os franceses, como é que os americanos tinham sabido do carregamento escondido de césio. Era um daqueles mistérios que perduraria até muito depois de a poeira operacional assentar. No entanto, ouviram efetivamente falar disso (nessa mesma noite, na verdade) e, antes de o sol se erguer, exigiram que todas as partes relevantes se dirigissem para Washington para uma reunião de emergência. Graham Seymour e Amanda Wallace, os irmãos de sangue, declinaram educadamente. Perante a perspetiva de um dispositivo de dispersão radiológica nas mãos da rede de Saladino, não podiam dar-se ao luxo de serem vistos a correr até às antigas colónias para pedir ajuda. Eram totalmente a favor da cooperação transatlântica (na verdade, estavam perigosamente dependentes dela), mas, para eles, era uma simples questão de orgulho nacional. E, quando Gabriel e Paul Rousseau acrescentaram as suas objeções, os americanos rapidamente capitularam. Gabriel estava confiante nesse desfecho; tinha uma ideia bastante acertada do que os americanos queriam, em última instância. Queriam a cabeça de Saladino espetada num pau, e a única forma de a conseguirem era assumindo o controlo da operação de Gabriel. Seria melhor negar-lhes a vantagem de jogar em casa. As cinco horas de diferença horária, só por si, seriam suficientes para os manter em desequilíbrio.
Esperar uma delegação pequena seria esperar demasiado. Chegaram num avião Boeing estampado com o selo oficial dos Estados Unidos e viajaram para o local da conferência (um centro de treinos desativado do MI6, localizado numa casa senhorial vitoriana em Surrey) numa caravana comprida e ruidosa que cortou caminho através da paisagem rural como se estivesse a desviar-se de artefactos explosivos improvisados no Triângulo Sunita do Iraque ocupado. De um dos veículos saiu Morris Payne, o novo diretor da Agência. Payne era da Academia Militar dos Estados Unidos, estudara Direito numa das universidades mais conceituadas do país, trabalhara no setor privado e era um antigo membro profundamente conservador do Congresso, oriundo de uma das Dakotas. Era grande e abrupto, com um rosto que se assemelhava a uma estátua da Ilha da Páscoa e uma voz de barítono que fez estremecer as vigas do hall de entrada abobadado da casa antiga. Começou por cumprimentar Graham Seymour e Amanda Wallace (eram eles os anfitriões, afinal de contas, para não dizer família distante) antes de virar a potência máxima da sua personalidade de canhão de água para Gabriel.
— Gabriel Allon! Que bom conhecer-te finalmente. Um dos grandes. Uma lenda, verdadeiramente. Devíamos ter feito isto há muito tempo. O Adrian disse-me que estiveste na cidade e não vieste ver-me. Não vou levar a mal. Sei que tu e o Adrian têm uma longa história de colaboração. Fizeram um bom trabalho juntos. Espero que continuemos essa tradição.
Gabriel recuperou a sua mão e olhou para os homens que rodeavam o novo diretor dos serviços secretos mais importantes do mundo. Eram jovens, enxutos e duros, ex-militares como o seu patrão, todos bem treinados nos rudes golpes do combate burocrático de Washington. A mudança em relação à administração anterior era impactante. Se havia um lado positivo era que todos eles gostavam razoavelmente de Israel. Talvez gostassem demasiado, pensou Gabriel. Eram a prova viva de que era necessário ter cuidado com o que se desejava.
O facto de Adrian Carter não se encontrar entre os que estavam na órbita próxima do diretor era revelador. Estava, naquele momento, a sair de um jipe, juntamente com os restantes operacionais seniores. A maioria era desconhecida para Gabriel. Contudo, ele reconheceu um. Era Kyle Taylor, o chefe do Centro de Antiterrorismo da Agência. A presença de Taylor era um indicador perturbador das intenções de Langley; dizia-se que Taylor aniquilaria a própria mãe com um drone, se achasse que isso o faria conquistar o cargo de Carter e o seu escritório no sétimo andar. Envergava a sua ambição implacável como uma gravata cuidadosamente apertada. Contudo, Carter parecia ter acabado de ser acordado de uma sesta. Passou por Gabriel fazendo unicamente um aceno mínimo com a cabeça.
— Não te aproximes muito — sussurrou. — Posso contagiar-te.
— O que é que tens?
— Lepra.
Morris Payne estava agora a puxar repetidamente a mão de Paul Rousseau como se estivesse a tentar ganhar o seu voto. Seguindo a indicação de Graham Seymour, entrou para a sala de jantar formal do solar, que fora convertido há muito numa instalação insonorizada. Havia um cesto à entrada para telemóveis e, sobre o aparador vitoriano, uma variedade de aperitivos nos quais ninguém tocou. Morris Payne sentou-se na longa mesa retangular, flanqueado, de um lado, pelos seus assistentes jovens e duros e, do outro, por Kyle Taylor, o mestre dos drones. Adrian Carter foi relegado para a extremidade mais afastada: o local, pensou Gabriel, onde poderia fazer rabiscos a seu bel-prazer e sonhar com um emprego no setor privado.
Gabriel sentou-se no lugar que lhe fora atribuído e, imediatamente, virou ao contrário a pequena placa com o nome que algum funcionário zeloso do MI6 aí colocara. À sua esquerda, e exatamente à frente de Morris Payne, estava Graham Seymour. E à esquerda de Seymour estava Amanda Wallace, que parecia estar com medo de ser salpicada de sangue. A reputação de Morris Payne precedia-o. Durante o seu curto mandato, completara em grande medida a tarefa de transformar a CIA de serviço secreto em organização paramilitar. A linguagem de espionagem aborrecia-o. Era um homem de ação.
— Sabem que estamos todos em modo crise — começou Payne —, portanto não vou desperdiçar o tempo de ninguém. Todos vocês devem ser louvados. Preveniram uma calamidade. Ou, pelo menos, adiaram-na — acrescentou. — Mas a Casa Branca está a insistir, e, francamente, nós estamos de acordo, que Langley assuma a liderança disto e leve a operação para casa. Com todo o respeito, faz mais sentido. Temos o alcance e a capacidade, e temos a tecnologia.
— Mas nós temos a fonte — replicou Gabriel. — E nem todo o alcance e tecnologia do mundo a poderão substituir. Encontrámo-lo, queimámo-lo e recrutámo-lo. É nosso.
— E agora — disse Payne — vão entregar-no-lo.
— Desculpa, Morris, mas receio que isso não vá acontecer.
Gabriel olhou de soslaio para a ponta da mesa e viu Adrian Carter a tentar conter um sorriso. Dificilmente poderia ser considerado um começo auspicioso. Infelizmente, tudo declinou rapidamente a partir daí.
Ergueram-se vozes, esmurrou-se a mesa, proferiram-se ameaças. Ameaças de retaliação. Ameaças de suspensão de cooperação e retenção de ajudas fundamentais. Há não muito tempo, Gabriel poderia ter-se dado ao luxo de expor o bluff do diretor. Agora, tinha de proceder com cautela. Os britânicos não eram os únicos que estavam dependentes do poderio tecnológico de Langley. Israel precisava dos americanos ainda mais, e, sob nenhumas circunstâncias, Gabriel poderia dar-se ao luxo de alienar o seu mais valioso parceiro estratégico e operacional. Para além disso, apesar de toda a sua arrogância e fanfarronice, Morris Payne era um amigo que, globalmente, via o mundo da mesma forma que Gabriel. O seu predecessor, um falante fluente de árabe, fizera questão de se referir a Jerusalém como Al-Quds. Definitivamente, as coisas poderiam ser piores.
Perante a sugestão de Graham Seymour, fizeram uma interrupção para comer e beber. Depois disso, o ambiente tornou-se consideravelmente mais leve. Morris Payne admitiu que, durante o voo que atravessara o Atlântico, tivera tempo de examinar o processo da CIA sobre Gabriel.
— Tenho de o dizer, foi uma leitura impressionante.
— Surpreende-me que tenham conseguido fazer o processo caber dentro do vosso avião.
O sorriso de Payne foi genuíno.
— Ambos crescemos em quintas — disse ele. — A nossa ficava num recanto remoto da Dakota do Sul e a vossa no Vale de Jezreel.
— Junto de uma povoação árabe.
— Nós não tínhamos árabes. Só ursos e lobos.
Desta vez, foi Gabriel que sorriu. Payne mordiscou a ponta de uma sandes em miniatura ressequida.
— Já operaste no Norte de África anteriormente. Pessoalmente, quero dizer. Estiveste envolvido na operação Abu Jihad, na Tunísia, em 88. Tu e a tua equipa aterraram na praia e rebentaram caminho até ao interior da villa dele. Mataste-o no escritório, à frente dos filhos. Estava a ver vídeos da Intifada nesse preciso momento.
— Isso não é verdade — disse Gabriel passado um momento.
— Que parte?
— Não matei o Abu Jihad à frente da família. A filha dele entrou no escritório depois de ele já estar morto.
— O que é que fizeste?
— Disse-lhe para ir tomar conta da mãe. E, depois, fui-me embora.
Um silêncio abateu-se sobre a divisão. Foi Morris Payne quem o quebrou.
— Achas que consegues fazer isso outra vez? Em Marrocos?
— Estás a perguntar-me se temos essa capacidade?
— Faz-me a vontade — disse Payne.
Marrocos, respondeu Gabriel, estava perfeitamente dentro do alcance operacional do Departamento.
— Vocês têm relações razoáveis com o rei — assinalou Payne. — Relações que poderiam ser ameaçadas se algo corresse mal.
— Vocês também — respondeu Gabriel.
— Têm intenção de trabalhar com os serviços marroquinos?
— Vocês trabalharam com os paquistaneses quando foram atrás do Bin Laden?
— Vou considerar isso um «não».
— Muito provavelmente — disse Gabriel —, o Saladino está escondido em circunstâncias semelhantes àquelas em que o Bin Laden vivia em Abbottabad. Mais ainda, goza da proteção de um senhor da droga, um homem que, indubitavelmente, tem amigos em posições importantes. Contar aos marroquinos sobre a operação seria como contar ao próprio Saladino.
— Tens mesmo a certeza de que ele está realmente lá?
Gabriel colocou os dois retratos-robô sobre a mesa. Bateu suavemente sobre o primeiro, Saladino como aparecera na primavera de 2012, pouco depois de o ISIS se ter instalado na Líbia.
— Parece-se muitíssimo com o homem que eu vi no átrio do Four Seasons, em Georgetown, antes do atentado. Vê as gravações de videovigilância do hotel. Tenho a certeza de que vais chegar à mesma conclusão. — Gabriel bateu suavemente no segundo retrato. — E esta é a aparência dele agora.
— Segundo um traficante de droga chamado Jean-Luc Martel.
— Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, Morris. Às vezes são eles que nos escolhem a nós.
— Confias nele?
— Nada.
— Estás preparado para ir para a guerra com ele?
— Tens uma ideia melhor?
Era óbvio que não tinha.
— E se o Saladino não morder o isco?
— Acabou de perder cem milhões de euros em haxixe. E o césio.
O americano olhou para Paul Rousseau.
— O vosso pessoal conseguiu identificar a origem?
— A explicação mais provável — disse Rousseau — é que tenha vindo da Rússia ou de uma das antigas repúblicas soviéticas ou satélites. Os soviéticos usaram o césio de forma bastante indiscriminada e deixaram recipientes da substância espalhados um pouco por todo o lado, nas regiões rurais. Também é possível que tenha vindo da Líbia. Os rebeldes e as milícias invadiram as instalações nucleares líbias quando o regime colapsou. A AIEA estava particularmente preocupada com as instalações de pesquisa de Tajura. Talvez tenhas ouvido falar delas.
Payne indicou que sim.
— Quando é que o vosso governo está a planear fazer o anúncio?
— Sobre o quê?
— O césio! — explodiu Payne.
— Não estamos.
Payne pareceu incrédulo. Foi Gabriel que explicou.
— Um anúncio alarmaria desnecessariamente o público. E, mais importante do que isso, alertaria o Saladino e a sua rede para o facto de o material radiológico ter sido descoberto.
— Então, e se houve outro carregamento de césio que conseguiu passar? O que é que vai acontecer se uma bomba suja explodir no meio de Paris? Ou de Londres? Ou de Manhattan, já agora?
— Tornar a questão pública não fará com que isso seja nem mais nem menos provável. Contudo, manter o silêncio tem as suas vantagens. — Gabriel colocou uma mão no ombro de Graham Seymour. — Tiveste a oportunidade de ler o processo dele, diretor Payne? O pai do Graham trabalhou para os serviços secretos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Para o Comité da Dupla Cruz. Não disseram aos alemães quando detiveram os espiões deles na Grã-Bretanha. Mantiveram os espiões capturados vivos nas mentes dos seus superiores alemães e usaram-nos para fornecer informação enganosa ao Hitler e aos seus generais. E os alemães nunca tentaram substituir esses espiões capturados porque acreditavam que eles continuavam em funções.
— Portanto, se o Saladino pensar que o material conseguiu passar, não vai tentar enviar mais, é isso que estás a dizer?
Gabriel ficou em silêncio.
— Nada mau — disse o americano, sorrindo.
— Este não é o nosso primeiro rodeo.
— Tinham rodeos no Vale de Jezreel?
— Não — disse Gabriel. — Não tínhamos.
Depois disso, havia apenas um assunto final para tratar. Não era algo que pudesse ser abordado diante de uma sala cheia de espiões. Era uma questão bilateral, que precisava de ser gerida ao mais alto nível, chefe com chefe. Uma sala lateral sossegada não seria suficiente. Apenas o jardim amuralhado, com as suas fontes em ruínas e caminhos cobertos de erva, proporcionava o nível necessário de privacidade.
Apesar de ser pleno verão, o tempo estava fresco e cinzento e as sebes excessivamente grandes pingavam devido a um aguaceiro recente. Gabriel e Morris Payne caminharam lado a lado, lenta e pensativamente, separados no máximo por três centímetros. Vistos das janelas com estrutura de chumbo da antiga casa senhorial, faziam um par improvável: o americano grande, corpulento, das Dakotas; o diminuto israelita do antigo Vale de Jezreel. Morris Payne, sem casaco, gesticulava amplamente enquanto explicava os seus argumentos. Gabriel, a ouvir, esfregava o fundo das costas e, quando apropriado, assentia em concordância.
Cinco minutos depois de terem começado a conversa, pararam e viraram-se de frente um para outro, como se estivessem a confrontar-se. Morris Payne espetou um dedo indicador grosso no peito de Gabriel, dificilmente um sinal encorajador, mas Gabriel limitou-se a sorrir e a retribuir o favor. Depois, ergueu a mão esquerda sobre a cabeça e moveu-a de forma circular enquanto a direita pairava com a palma para baixo à altura da sua anca. Desta vez, foi Morris Payne que assentiu com a cabeça em aprovação. Aqueles que observavam a partir do interior perceberam o significado do momento. Fora alcançado um acordo operacional. Os americanos lidariam com os céus e a parte cibernética, os israelitas comandariam as operações no terreno e, caso surgisse a oportunidade, limpariam discretamente o sebo a Saladino.
Com isso, viraram-se para trás e começaram a dirigir-se novamente para a casa. Foi evidente para os que observavam do interior que Gabriel estava a dizer algo que desagradou intensamente a Morris Payne. Houve outra pausa e mais dedos apontados na direção dos peitos. Então, Payne virou o seu grande rosto de Ilha da Páscoa na direção do céu cinzento e exalou um suspiro de capitulação. Ao passar pela sala de reuniões, agarrou no casaco que repousava nas costas da cadeira e dirigiu-se para o exterior, seguido pela sua equipa executiva carrancuda e, alguns passos atrás, por Adrian Carter e Kyle Taylor. Gabriel e Graham Seymour acenaram-lhes a partir do pórtico como se estivessem a despedir-se de companhia indesejada.
— Conseguiste tudo o que querias? — perguntou Seymour através de um sorriso gelado.
— É o que vamos ver daqui a um minuto.
A formação de americanos estava agora a começar a dividir-se em células menores, com cada célula a dirigir-se para o jipe que a aguardava. Morris Payne deteve-se subitamente e chamou Carter para que se juntasse a ele. Carter separou-se dos restantes operacionais e, observado invejosamente por Kyle Taylor, entrou no jipe do diretor.
— Como é que conseguiste isso? — perguntou Seymour enquanto a caravana ribombante voltava à vida.
— Pedi com jeitinho.
— Quanto tempo é que achas que ele vai sobreviver?
— Isso — disse Gabriel — depende inteiramente do Saladino.
44
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Na manhã seguinte, toda a Avenida Rei Saul se preparou para a batalha. Até mesmo Uzi Navot, que se ocupara de outras operações durante as ausências prolongadas de Gabriel, se viu arrastado pelos intensos preparativos. Tiveram de dar o corpo ao manifesto, como se costuma dizer. O Departamento tinha lutado para assumir o controlo da operação e tinha saído airoso dessa luta. Porém, o triunfo implicava a enorme responsabilidade de fazer as coisas bem-feitas. Não havia notícia de uma operação de assassinato seletivo de semelhante calibre desde o ataque americano ao complexo de Osama Bin Laden em Abbottabad. Saladino controlava os meandros de uma rede terrorista internacional que provara ser capaz de atacar praticamente onde quisesse, uma rede que se apropriara de material radioativo para fabricar uma bomba suja mesmo às portas da Europa Ocidental. A aposta não podia ser mais alta, tinham-no bem presente a cada passo. A segurança do mundo civilizado estava literalmente em jogo. Tal como a carreira de Gabriel. O sucesso pouco acresceria à sua reputação. Já o fracasso, pelo contrário, invalidaria toda a trajetória anterior e incluiria o seu nome na lista de diretores caídos em desgraça, que ambicionaram muito e por isso mesmo pereceram.
Se estava preocupado com os possíveis danos infligidos ao seu legado pessoal como consequência de um fracasso, não o demonstrava, nem sequer na presença de Uzi Navot, que tinha aberto um sulco na alcatifa que ligava a sua porta e o gabinete que pouco antes fora seu, à custa de um ir e vir constante. Corria o boato de que Navot tinha tentado dissuadir Gabriel, que tinha aconselhado o antigo rival a deixar Jean-Luc Martel e Saladino nas mãos dos americanos e a centrar-se em assuntos mais próximos das suas fronteiras, como os iranianos. Para Navot, os riscos da operação eram demasiado altos e a recompensa demasiado baixa. Pelo menos era essa a versão que circulava pelos corredores e salas de acesso restrito da Avenida Rei Saul. Contudo, segundo reza a história, Gabriel recusara-se a ceder o controlo da operação. «E porque é que haveria de o fazer?», perguntou sagazmente um membro da divisão de Viagens. Saladino tinha levado a melhor a Gabriel naquela noite horrível, em Washington. E ainda havia Hannah Weinberg, claro está, a amiga e antiga cúmplice de Gabriel assassinada por Saladino em Paris. Não, concluiu o sagaz comentador, Gabriel não ia deixar Saladino nas mãos dos seus amigos de Washington. Ia enterrá-lo a sete palmos abaixo da terra. De facto, se tivesse oportunidade, possivelmente matá-lo-ia com as próprias mãos. Para ele já não se tratava de um assunto profissional, mas estritamente pessoal.
Mas um envolvimento pessoal numa operação era muitas vezes perigoso. Ninguém o sabia melhor do que o próprio Gabriel; a sua carreira falava por si. Assim, deixou Uzi Navot e os outros membros da sua equipa pessoal ultimarem todos os detalhes. Organizativamente, foi Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais quem se ocupou de planificar e levar a cabo a missão. Supervisionado por Gabriel, colocou rapidamente cada peça no devido lugar. Marrocos não era o Líbano nem a Síria, mas nem por isso deixava de ser um território hostil. Vinte vezes maior do que Israel, era um país vasto e de geografia variada, com planícies agrícolas, montanhas abruptas, desertos de areia do Saara e grandes cidades como Casablanca, Rabat, Tânger, Fez e Marraquexe. Encontrar Saladino, mesmo contando com a ajuda de Jean-Luc Martel, seria uma missão árdua. Matá-lo sem causar baixas colaterais e sair do país com certas garantias de segurança seria uma das provas mais difíceis que o Departamento tinha enfrentado ao longo da sua história.
A faixa costeira favorecia-os, tal como na Tunísia em abril de 1988. Naquela noite, Gabriel e uma equipa de vinte e seis membros da unidade de elite Sayeret Matkal tinham desembarcado de lanchas pneumáticas a curta distância da casa de Abu Jihad e, cumprida a missão, tinham partido da mesma maneira. Durante as semanas anteriores à intervenção, ensaiaram incalculáveis vezes o desembarque numa praia de Israel. Até construíram em pleno Negev um cenário semelhante à casa de Abu Jihad para que Gabriel ensaiasse a forma de chegar da porta de entrada até ao escritório do primeiro andar onde o número dois da OLP costumava passar as tardes. Porém, tais preparativos eram impossíveis no caso de Saladino já que ignoravam em que lugar de Marrocos se escondia. A bem da verdade, nem sequer tinham a certeza de que se encontrasse no país. A única coisa que sabiam era que um homem cuja descrição correspondia à sua tinha sido visto em Marrocos uns meses antes, depois dos atentados de Washington. Dispunham, pois, de muito menos informação do que os americanos antes da intervenção em Abbottabad. E tinham bem mais que perder.
Daí que tivessem de estar preparados para qualquer eventualidade ou, pelo menos, para tantas como pudessem razoavelmente prever. Faria falta uma equipa muito numerosa, maior do que em operações passadas, e todos os seus membros precisariam de um passaporte. A divisão de Identidade, a secção do Departamento que se encarregava de fornecer documentação aos agentes, esgotou rapidamente os seus recursos e Gabriel teve de pedir aos seus parceiros (franceses, britânicos e norte-americanos) que suprissem essa carência. Inicialmente, o pedido foi acolhido com reticências, mas graças à insistência de Gabriel todos acabaram por ceder. Os americanos até acabaram por concordar em reativar um velho passaporte em nome de Jonathan Albright com uma fotografia que recordava vagamente Gabriel.
— Diz-me que não estás a pensar em ir — disse Adrian Carter durante uma videoconferência segura.
— No verão? Ah, não — respondeu Gabriel. — Nem pensar. Nessa época do ano está demasiado calor em Marrocos.
Tinham de alugar carros e motas, reservar bilhetes de avião sem data de regresso e procurar alojamento. A maioria da equipa ficaria em hotéis nos quais estaria exposta à vigilância do serviço de segurança interna de Marrocos, a Direction de la Surveillance du Territoire ou DST. Mas, para instalar o posto de comando, Gabriel precisava de uma casa segura em condições. Foi Ari Shamron, da sua casa-fortaleza em Tiberíades, que deu com a solução. Tinha um amigo (um abastado empresário judeu marroquino que tinha fugido do país em 1967 depois do cataclismo da Guerra dos Seis Dias) que ainda possuía uma moradia no antigo bairro colonial de Casablanca. A casa estava vazia nesse momento, à exceção dos caseiros, um casal que vivia numa casa de hóspedes no seio da propriedade. Shamron recomendou que comprassem o imóvel em vez de o alugarem por um período breve e Gabriel concordou. Por sorte, o dinheiro não era um impedimento: Dmitri Antonov, apesar dos seus dispêndios mais recentes, continuava a nadar nele. Passou um cheque pelo valor total da compra e enviou um advogado francês (que na realidade era um agente do Grupo Alfa) a Casablanca para levantar a escritura. Ao acabar o dia, o Departamento estava na posse de uma base operativa bem no centro da cidade. Já só faltava Saladino.
A sua rede não deu mostras de atividade durante aqueles longos dias de planificação. Não houve atentados, nem dirigidos a alvos específicos, nem de lobos solitários, mas os diversos canais do ISIS nas redes sociais fervilhavam de rumores. Estava a tramar-se algo muito grande, diziam, algo que eclipsaria os atentados de Washington e Londres, o que contribuiu para aumentar a tensão dentro de Avenida Rei Saul, em Langley e em Vauxhall Cross. Tinham de retirar Saladino da circulação o mais depressa possível.
Mas será que a sua morte poria fim ao massacre? A sua rede morreria com ele?
— É improvável — assegurava Dina Sarid.
De facto, o seu maior temor era que Saladino tivesse criado dentro da rede terrorista uma espécie de interruptor de emergência: um mecanismo que desencadearia automaticamente uma série de ataques homicidas caso ele morresse. Por outro lado, o ISIS já tinha demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Se o califado no Iraque e na Síria se perdesse fisicamente, afirmava Dina, erguer-se-ia em seu lugar um califado virtual. Um «cibercalifado», como ela o chamava, no qual as velhas normas não teriam aplicação. Os futuros mártires radicalizar-se-iam em meandros recônditos da dark net e seriam conduzidos para os seus alvos por cérebros criminosos que não conheciam pessoalmente. Assim era o admirável mundo novo gerado pela Internet, pelas redes sociais e pelas mensagens encriptadas.
Não obstante, tinha uma preocupação mais imediata: os trezentos gramas de cloreto de césio depositados num laboratório estatal, nos arredores de Paris. O cloreto de césio que, no entender de Saladino, permanecia a bordo de um cargueiro apreendido no porto de Toulon. Mas teria enviado o arsenal completo num só barco ou parte dele encontrar-se-ia já em poder de uma célula terrorista disposta a atentar? A próxima bomba que rebentasse numa cidade europeia conteria um núcleo radioativo? À medida que passavam os dias sem terem notícias do fornecedor marroquino de Jean-Luc Martel, Paul Rousseau e o ministro francês começaram a perguntar-se se não estaria na hora de advertir os seus homólogos europeus da grave ameaça. Mas Gabriel, com a ajuda de Graham Seymour e dos americanos, convenceu-os a permanecerem em silêncio. Uma advertência, mesmo que formulada em linguagem rotineira, implicava o risco de pôr a descoberto a operação. Haveria fugas de informação; era inevitável. E se a notícia se espalhasse, Saladino chegaria à conclusão de que existia um vínculo entre a apreensão dos seus carregamentos de haxixe e a apreensão do pó radioativo oculto dentro de uma bobina de cabo elétrico.
— Se calhar ele já chegou a essa conclusão — comentou Rousseau, pesaroso. — Talvez nos tenha voltado a bater aos pontos.
Intimamente, Gabriel também o temia. E o mesmo podia dizer dos americanos, que, durante uma acalorada videoconferência celebrada na segunda sexta-feira de agosto, lhe exigiram de novo que deixasse Jean-Luc Martel nas suas mãos e cedesse o controlo da operação a Langley. Gabriel opôs-se e, quando os americanos insistiram, fez a única coisa que podia fazer: desejou-lhes um bom fim de semana e a seguir ligou a Chiara para a informar de que nesse Shabbath iriam jantar a Tiberíades.
45
TIBERÍADES, ISRAEL
Tiberíades, uma das quatro cidades santas do judaísmo, está situada na margem ocidental dessa massa de água à qual os israelitas chamam lago Kinneret e o resto do mundo conhece como Mar da Galileia. Para lá dos seus arrabaldes encontra-se a pequena moshav de Kfar Hittim, que se erige no lugar em que, numa abrasadora tarde de verão de 1187, o verdadeiro Saladino derrotou os exércitos cruzados enlouquecidos pela sede numa batalha decisiva que devolveu o controlo de Jerusalém aos muçulmanos. Saladino não mostrou piedade alguma pelos seus inimigos apesar de os ter derrotado. Decepou pessoalmente o braço a Renaud de Châtillon na sua tenda quando o francês se recusou a converter-se ao islamismo. Condenou o resto dos cruzados sobreviventes à morte por decapitação, o castigo habitual no caso dos infiéis.
Mais ou menos a um quilómetro a norte de Kfar Hittim havia um promontório rochoso do qual se avistava o lago e a abrasadora planície onde se travara a antiga batalha. Fora precisamente esse o sítio escolhido por Ari Shamron para instalar o seu lar. Afirmava que, quando o vento soprava na direção adequada, podia ouvir o chocar das espadas e os lamentos dos moribundos. Dizia que lhe recordavam a transitoriedade do poder político e militar naquele turbulento recanto do Mediterrâneo oriental. Cananeus, hititas, amalequitas, moabitas, gregos, romanos, persas, árabes, turcos, britânicos... Todos eles tinham chegado àquelas terras e tinham partido. Os judeus, apesar de todas as hipóteses desfavoráveis, tinham conseguido representar o que sem dúvida era o segundo ato mais impressionante da História: dois milénios após a queda do Segundo Templo, tinham regressado à cena. Mas, dando ouvidos à própria História, os seus dias naquela região estavam contados.
Há poucas pessoas que possam afirmar que ajudaram a erguer um país. E menos ainda um serviço secreto. Ari Shamron, no entanto, tinha conseguido fazer ambas as coisas. Nascido no Leste da Polónia, emigrou para o protetorado britânico da Palestina em 1937, quando a calamidade se abatia sobre os judeus de toda a Europa, e combateu na guerra que se desencadeou depois da fundação do Estado de Israel em 1948. No rescaldo do conflito, enquanto o mundo árabe maquinava para estrangular o novo Estado judeu ainda no berço, Shamron integrou-se num pequeno organismo ao qual os seus membros simplesmente chamavam «o Departamento». Entre as suas primeiras missões constou a identificação e assassinato de vários cientistas nazis que estavam a ajudar o mandatário egípcio Gamal Abdel Nasser a construir uma bomba atómica. Mas a façanha que coroou a sua carreira como agente no ativo não teve como cenário o Médio Oriente, mas sim uma esquina de uma rua do bairro industrial de San Fernando, em Buenos Aires. Ali, numa noite chuvosa de maio de 1960, Shamron introduziu Adolf Eichmann, o artífice da Solução Final, à força na parte de trás de um carro, naquela que foi a primeira escala de uma viagem que, para Eichmann, concluiria numa forca israelita.
Já para Shamron, aquilo foi só o princípio. Poucos anos depois, atribuíram-lhe a direção dos serviços secretos a cuja criação tinha assistido, logo, a defesa da nação. Da sua guarida na Avenida Rei Saul, com os seus arquivos de metal cinzento e um permanente fedor a tabaco turco, Shamron infiltrou os seus agentes nas cortes de monarcas, roubou segredos a tiranos e eliminou incontáveis inimigos. Manteve-se no cargo bem mais tempo do que os seus predecessores e, no final dos anos noventa, depois de uma série de falhanços operacionais, abandonou felizmente a sua reforma para endireitar o rumo da nave e devolver o antigo esplendor ao Departamento. Encontrou um cúmplice num agente de campo que se tinha encerrado para chorar as suas mágoas numa casinha de campo nas margens de Helford Passage, na Cornualha. Agora, por fim, o destino do Departamento estava entregue a esse agente. E o fardo de preservar as duas criações de Shamron (o seu país e os serviços secretos nacionais) recaía sobre os seus ombros.
Shamron fora escolhido para capturar Eichmann devido às suas mãos, anormalmente grandes e fortes para um homem de tão baixa estatura. Quando Gabriel entrou na casa carregando um filho em cada braço, essas mãos estavam pousadas sobre o cabo de uma bengala de oliveira. Gabriel deixou as crianças ao cuidado de Shamron e regressou ao seu jipe blindado para ir buscar as três travessas de comida que Chiara tinha preparado nessa mesma tarde. Gilah, a sofrida esposa de Shamron, acendeu as velas do Shabbath ao pôr-do-sol enquanto o marido recitava as bênçãos do pão e do vinho com o sotaque yiddish da sua infância passada na Polónia. Por um instante, Gabriel teve a impressão de que não existiam nem a operação nem Saladino, mas só a sua família e a sua fé.
Mas foi uma sensação efémera. Efetivamente, durante o jantar, enquanto os restantes conversavam sobre política e lamentavam o matsav, a situação, Gabriel distraía-se e de vez em quando olhava para o telemóvel. Shamron, que o vigiava da cabeceira da mesa, sorriu. Não lhe ofereceu palavras tranquilizadoras para aliviar o seu evidente mal-estar. Para Shamron, as operações de espionagem eram como o oxigénio: até uma má operação era melhor do que nenhuma.
Quando acabaram de jantar, Gabriel seguiu-o até à divisão do rés-do-chão que lhe servia de escritório e oficina. As peças de um rádio antigo estavam espalhadas pela bancada de trabalho como os escombros de um bombardeio. Shamron sentou-se e, com um estalo do seu velho isqueiro Zippo, acendeu um dos seus famigerados cigarros turcos. Gabriel desviou o fumo e contemplou as lembranças pulcramente dispostas nas estantes. Reparou logo numa fotografia emoldurada de Shamron e Golda Meir tirada no dia em que ela lhe ordenou «mandar os rapazes» vingar a morte dos onze treinadores e atletas israelitas assassinados nos Jogos Olímpicos de Munique. Perto da fotografia havia um estojo de vidro do tamanho aproximado de uma caixa de charutos. Lá dentro, dispostos sobre um pano escuro, descansavam onze cartuchos de calibre 22.
— Estão aqui guardados para ti — comentou Shamron.
— Não os quero.
— E porquê?
— São macabros.
— Foste tu que descobriste como enfiar onze balas num carregador de dez, não fui eu.
— Talvez me dê medo que um dia alguém tenha uma caixa como essa numa estante, com o meu nome escrito.
— Podes contar com isso, meu filho. — Shamron acendeu a luz de trabalho apetrechada com uma lupa.
— Vejo-te muito comedido.
— O que é que isso quer dizer?
— Não me perguntaste nem uma só vez pela operação.
— Porque é que haveria de o fazer?
— Porque és patologicamente incapaz de não te meter nos assuntos alheios.
— Razão pela qual sou espião. — Shamron ajustou a lupa para examinar um troço de circuito muito desgastado.
— Que tipo de rádio é que é?
— Um RCA Catalin, um modelo art déco com carcaça de polímero marmoreado. Onda curta e normal. Foi fabricado em 1946. Imagina — acrescentou Shamron assinalando o autocolante de papel original colado na base do rádio — que algures na América, em 1946, alguém estava a montar este rádio enquanto pessoas como os teus pais tentavam recompor as suas vidas.
— É um rádio, Ari. Não tem nada que ver com a Shoah.
— Era só um comentário. — Shamron sorriu. — Pareces tenso. Tens alguma preocupação?
— Não, nenhuma.
Permaneceram em silêncio enquanto Shamron continuava a manusear as suas ferramentas. Reparar rádios antigos era o seu único passatempo, para além de se intrometer na vida de Gabriel.
— O Uzi disse-me que estás a pensar em ir a Marrocos — disse por fim.
— Porque é que te disse isso?
— Porque não conseguiu dissuadir-te e pensou que eu talvez fosse capaz.
— Ainda não tomei uma decisão.
— Mas pediste aos americanos para te renovarem o passaporte.
— Para o reativarem — esclareceu Gabriel.
— Renovar, reativar... o que é que interessa? Para começar, nunca o devias ter aceitado. Estava melhor num pequeno caixão de vidro, tal como aqueles cartuchos.
— Foi uma ajuda preciosa em inúmeras ocasiões.
— Azul e branco — afirmou Shamron. — Fazemos as nossas coisas e não ajudamos os outros a resolver problemas que eles próprios criaram.
— Talvez antes fosse assim — respondeu Gabriel —, mas já não, não podemos continuar a operar desse modo. Precisamos de aliados.
— Os aliados arranjam sempre maneira de te dececionar. E esse passaporte não te vai servir de nada se alguma coisa correr mal em Marrocos.
Gabriel apanhou o estojo com os vinte e dois cartuchos de bala usados.
— Se não me falha a memória, e de certeza que não, tu estavas no banco de trás de um carro estacionado na Piazza Annibaliano enquanto eu me ocupava do Zwaiter naquele bloco de apartamentos.
— Naquele tempo era o chefe das Operações Especiais. Tinha de estar em campo, era a minha obrigação. Um exemplo mais adequado — continuou Shamron — seria o de Abu Jihad. Então já era diretor e fiquei a bordo do barco enquanto tu e o resto da equipa iam para terra.
— Com o ministro da Defesa, se não me falha a memória.
— Foi uma operação importante; quase tão importante — disse Shamron baixinho — como a que estás prestes a levar a cabo. Está na hora de o Saladino sair de cena, sem cumprimentar o público nem fazer encores. Mas tenta garantir que não consegue aquilo de que anda desesperadamente à procura.
— O quê?
— Tu.
Gabriel devolveu o estojo à estante.
— Permites-me que te faça uma ou duas perguntas? — disse Shamron.
— Se isso te faz feliz...
— Vias de escape?
Gabriel explicou-lhe que teria duas: uma corveta israelita e um cargueiro de bandeira liberiana, o Neptune, que era na realidade uma estação de radar e escuta operada pelo AMAM, o serviço de espionagem do exército israelita. O Neptune estaria ancorado em frente a Agadir, na costa atlântica de Marrocos.
— E a corveta? — perguntou Shamron.
— Num pequeno porto do Mediterrâneo chamado El Jebha.
— Imagino que é aí que desembarcará a equipa da Sayeret.
— Só se o considerar necessário. Afinal de contas — explicou Gabriel —, disponho de um ex-agente da Sayeret e de um veterano do Serviço Aéreo Especial britânico.
— Para quem será uma missão mais do que suficiente manter sob controlo esse tal Jean-Luc Martel. — Shamron abanou a cabeça lentamente. — Às vezes, o pior ao recrutar um colaborador é que depois não te podes livrar dele. Faças o que fizeres, não te fies dele.
— Nem me passa pela cabeça.
O cigarro de Shamron tinha-se apagado. Acendeu outro e continuou a trabalhar no rádio enquanto Gabriel contemplava a fotografia da estante tentando associar a imagem a preto e branco de um espião na flor da idade com o idoso que tinha à frente dos olhos. Tinha sucedido tão depressa... Em breve, pensou, acontecer-lhe-ia o mesmo a ele. Nem sequer Raphael e Irene podiam impedir o inevitável.
— Não vais atender? — perguntou Shamron de repente.
— Atender o quê?
— O telefone. Está a distrair-me.
Gabriel olhou para baixo. Estava tão ensimesmado que não tinha ouvido a mensagem enviada do andar seguro de Ramatuelle.
— E então? — perguntou Shamron.
— Parece que o Mohammad Bakkar quer falar com o Jean-Luc Martel sobre essa droga que se extraviou. Pergunta se pode ir a Marrocos no princípio da semana que vem.
— Estará disponível?
— O Martel? Acho que podemos encontrar um buraco na sua agenda.
Sorridente, Shamron ligou o rádio à tomada da bancada e acendeu-o. Pouco depois, após uma tentativa de sintonização, ouviu-se uma melodia.
— Não a reconheço — disse Gabriel.
— Claro, és demasiado jovem. É Artie Shaw. A primeira vez que ouvi esta música... — Shamron deixou a frase em suspenso.
— Como é que se chama? — perguntou Gabriel.
— You’re a lucky guy: és um tipo sortudo. — Nesse momento apagou-se o rádio e a música parou. Shamron franziu a testa. — Ou talvez não.
46
CASABLANCA, MARROCOS
A estrada que ligava o Aeroporto Internacional Mohammed V de Casablanca ao centro da maior cidade e principal centro financeiro de Marrocos era formada por quatro faixas de rijo alcatrão negro como o breu pelo qual Dina, uma condutora temerária por natureza e nacionalidade, conduzia com extraordinário cuidado.
— O que é que te preocupa tanto? — perguntou Gabriel.
— Tu — respondeu Dina.
— O que é que eu fiz desta vez?
— Nada. Mas é a primeira vez que faço de motorista do chefe.
— Bom — afirmou ele a olhar pela janela —, há uma primeira vez para tudo.
O saco de viagem de Gabriel descansava sobre o banco de trás. Já a pasta ia apoiada sobre os joelhos. Lá dentro estava o passaporte americano que lhe tinha permitido passar sem contratempos pelo controlo fronteiriço e pela alfândega marroquina. As coisas em Washington podiam ter mudado, mas ser americano continuava a ser uma vantagem em grande parte do mundo.
O trânsito estancou de repente.
— Uma operação stop — explicou Dina. — Estão por todo o lado.
— Achas que andam à procura de quê?
— Se calhar do chefe dos serviços secretos israelitas.
Uma fileira de cones cor de laranja desviava o trânsito para a berma, onde dois gendarmes inspecionavam os veículos e respetivos ocupantes, vigiados por um agente da DST vestido à paisana e com óculos de sol. Enquanto abria a janela, Dina dirigiu umas palavras a Gabriel em alemão, a língua correspondente à sua identidade fictícia e ao seu passaporte falso. Os aborrecidos gendarmes fizeram-lhe sinais para avançar como se espantassem moscas. O homem da DST parecia distraído.
Dina voltou a fechar rapidamente a janela para impedir que o denso e implacável calor exterior entrasse e pôs o ar condicionado no máximo. Passaram por umas grandes dependências militares. Depois apareceram de novo as terras agrícolas, pequenas parcelas de terra fértil e escura, cultivadas principalmente pelos habitantes das povoações próximas. A Gabriel, a mata de eucalipto lembrou-lhe de casa.
Por fim chegaram à periferia desigual de Casablanca, a segunda cidade mais populosa do Norte de África, só ultrapassada pela megalópole do Cairo. Os terrenos cultivados não desapareceram por completo: ainda se viam alguns entre os elegantes blocos de apartamentos recém-construídos e os bairros de lata que albergavam centenas de milhares das pessoas mais miseráveis em barracas feitas de chapas metálicas e blocos de cimento.
— Chamam-nos bidonvilles — comentou Dina apontando para um dos bairros de lata. — Calculo que soe melhor do que «subúrbios». Quem lá vive não tem nada. Nem água corrente, nem praticamente nada que levar à boca. De vez em quando, as autoridades tentam demoli-las, mas as pessoas voltam a construir as suas barracas. Que remédio é que têm? Não têm outro lugar para onde ir.
Passaram por um terreno de erva acastanhada e rala onde dois meninos descalços vigiavam um rebanho de cabras esqueléticas.
— Uma coisa que abunda nos bidonvilles é o Islão — prosseguiu Dina. — Cada vez mais radical, graças aos pregadores wahhabi e salafistas. Lembras-te dos atentados de 2003? Todos os rapazes que se imolaram provinham dos bidonvilles de Sidi Moumen.
Naturalmente que Gabriel se lembrava dos atentados, embora em grande parte do Ocidente tivessem caído no esquecimento: catorze bombas contra objetivos ocidentais e judeus, quarenta e cinco mortos, mais de uma centena de feridos. Foram obra de uma filial da Al-Qaeda conhecida como Salafia Jihadia que por sua vez estava vinculada ao Grupo Islâmico Combatente Marroquino. Apesar de toda a beleza natural e do turismo ocidental que visitava o país, Marrocos ainda era um viveiro de islamitas radicais no qual o ISIS estava profundamente enraizado, facto atestado pelas suas inúmeras células. Mais de mil e trezentos marroquinos tinham ido para o califado a fim de lutarem nas fileiras do ISIS (juntamente com várias centenas de cidadãos franceses, belgas e holandeses de origem marroquina), e os marroquinos tinham desempenhado um papel crucial na recente campanha terrorista do ISIS na Europa ocidental. E depois havia Mohammed Bouyeri, o marroquino holandês que tinha atingido a tiro e apunhalado o cineasta e escritor Theo van Gogh numa rua de Amesterdão. O crime não foi produto do ato espontâneo de um perturbado: Bouyeri fazia parte de uma célula de muçulmanos radicais oriundos do Norte de África e radicados em Haia conhecida como «Rede Hofstad». Os serviços de segurança marroquinos tinham conseguido desarticular as atividades dos seus extremistas no estrangeiro, mas dentro de portas continuavam a abundar as conspirações terroristas. O ministro do Interior tinha-se gabado há pouco tempo de que tinham desarticulado mais de trezentas, entre elas uma que incluía o uso de gás-mostarda. Na opinião de Gabriel, mais valia manter o silêncio sobre certas coisas.
Subiram uma lomba e o Atlântico azul pálido espraiou-se perante eles. O Morocco Mall, com os seus cinemas futuristas e lojas ocidentais, ocupava uma faixa de terra recém-urbanizada ao longo da costa. Dina seguiu a Corniche rumo ao centro urbano passando em frente de cafés, restaurantes e mansões de uma brancura resplandecente. Uma delas tinha o tamanho de um bloco de escritórios.
— Pertence a um príncipe saudita. E ali — disse Dina — fica o Four Seasons.
Abrandou para Gabriel poder dar uma espreitadela. No gradeamento que dava acesso aos jardins do hotel, dois guardas vestidos de escuro inspecionavam a parte de baixo de um carro que acabava de chegar, à procura de explosivos. Só quem passava a inspeção tinha autorização para aceder à avenida que conduzia ao estacionamento coberto do hotel.
— Há um magnetómetro do outro lado da porta — informou Dina. — Inspeciona a bagagem de todos os hóspedes sem exceção. Vamos ter de trazer as armas pela praia. Não constitui um problema.
— Achas que os rapazes da Salafia Jihadia também sabem disso?
— Espero que não — respondeu Dina com um dos seus raros sorrisos.
Continuaram a avançar pela Corniche deixando a imponente mesquita Hassan II, as muralhas exteriores da antiga medina e o imenso porto para trás. Entraram finalmente no antigo bairro colonial francês, com as suas largas e sinuosas alamedas e uma mistura única de arquitetura mourisca, art nouveau e art déco. Outrora, os vizinhos mais cosmopolitas de Casablanca passeavam-se por entre as elegantes colunas engalanados à última moda parisiense e jantavam nalguns dos melhores restaurantes do mundo. Agora, o bairro era um monumento à decadência e à insegurança cidadã. As flores de estuque das fachadas estavam cobertas de fuligem e o óxido apodrecia as balaustradas de ferro forjado. A classe abastada tentava não se aventurar para além dos modernos quartiers de Gauthier e Maarif, e o centro histórico tinha-se convertido no domínio daqueles que usavam véu ou jilaba e de vendedores de rua que apregoavam fruta estragada e cassetes económicas com sermões e versículos do Corão.
O único sinal de progresso era o flamejante elétrico que serpenteava pelo Boulevard Mohammed V, em frente de lojas encerradas e arcadas nas quais dormitavam indigentes sobre leitos de papelão. Dina seguiu um elétrico ao longo de vários quarteirões, depois virou para uma estreita rua secundária e encostou. De um lado havia um prédio de habitação de oito andares que parecia prestes ruir sob o peso das antenas parabólicas que brotavam como cogumelos das suas varandas. Do outro, erguia-se uma parede desconchavada e coberta de plantas trepadeiras, com uma porta de cedro que outrora teria estado ornamentada. Um cão ofegante e de aspeto feroz montava guarda diante dela.
— Porque é que parámos? — perguntou Gabriel.
— Porque já chegámos.
— Onde?
— Ao posto de comando.
— Deves estar a brincar.
— Não.
Gabriel olhou para o cão com desconfiança.
— E ele?
— É inofensivo. O preocupante são as ratazanas.
Nesse momento, uma ratazana escapuliu-se pelo passeio. Tinha o tamanho de um guaxinim. O cão encolheu-se, assustado. E o mesmo fez Gabriel.
— Se calhar devíamos voltar para o Four Seasons.
— Não é seguro.
— Este lugar também não é.
— Não é tão mau quando te acostumas.
— Como é por dentro?
Dina desligou o motor.
— Há fantasmas. Mas de resto é bastante agradável.
Passaram junto ao cão ofegante e, ao atravessar a porta de cedro, penetraram num paraíso escondido. Havia uma piscina de um azul-escuro, uma pista de ténis de terra batida e um jardim aparentemente infinito pejado de buganvílias, hibiscos, palmeiras e bananeiras. A casa, imensa, era de estilo tradicional marroquino, com pátios interiores de azulejos nos quais o murmúrio incessante de Casablanca se dissolvia no silêncio. As divisões labirínticas pareciam congeladas no tempo. Poderia ser 1967, o ano em que o proprietário enfiou alguns bens pessoais numa mala de viagem e fugiu para Israel. Ou quiçá, pensou Gabriel, uma época mais simpática. Um período em que naquele bairro todos falavam francês e se perguntavam quanto tempo é que os alemães demorariam a desfilar pelos Campos Elísios.
Os caseiros chamavam-se Tarek e Hamid. Tinham comprado o cargo aos seus predecessores, demasiado idosos para continuarem a tratar da propriedade. Evitavam o interior da casa e limitavam as suas atividades ao jardim e à casinha de hóspedes. Os respetivos filhos, netos e esposas viviam num bidonville próximo.
— Somos os novos donos — disse Gabriel. — Porque é que não podemos simplesmente despedi-los?
— Não é boa ideia — respondeu Yaakov Rossman.
Antes de ser transferido para o Departamento, Rossman tinha trabalhado para o Shabak, o serviço de segurança interior de Israel, a dirigir agentes que operavam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Falava árabe com fluência e era um perito em cultura árabe e islâmica.
— Se tentarmos livrarmo-nos deles, vai haver confusão. E isso podia afetar o nosso disfarce.
— Então damos-lhes uma indemnização generosa.
— Ainda era pior, porque viriam parentes de todos os cantos do país bater-nos à porta a pedir dinheiro. — Yaakov abanou a cabeça com um ar de reprovação. — Não sabes muito sobre esta gente, pois não?
— Então, ficamos com os caseiros — disse Gabriel. — Mas que parvoíce é essa de haver fantasmas na casa?
Estavam rodeados pelo fresco silêncio do pátio principal da casa. Yaakov olhou para Dina com nervosismo, ela por sua vez olhou para Eli Lavon. Foi Lavon, o amigo mais antigo de Gabriel, que por fim respondeu:
— Chama-se Aisha.
— A mulher de Maomé?
— Não, essa não. Outra Aisha.
— Outra como?
— É um jinn.
— Um quê?
— Uma espécie de demónio.
Gabriel olhou para Yaakov à procura de uma explicação.
— Os muçulmanos acham que Alá fez o homem a partir do barro. Pelo contrário, acham que os jinns são feitos de fogo.
— E isso é mau?
— Muito. De dia, os jinns vivem entre nós dentro de objetos inanimados e têm uma vida muito parecida à nossa. Mas à noite adotam a forma que lhes apetecer.
— Então são mutantes — disse Gabriel, cético.
— E malvados — acrescentou Yaakov com um assentimento grave. — O que mais gostam é de fazer mal aos humanos. A crença nos jinns está especialmente enraizada aqui, em Marrocos. Certamente é um vestígio das crenças berberes anteriores à chegada do Islão.
— Mas o facto de os marroquinos acreditarem neles não significa que sejam reais.
— Está no Corão — afirmou Yaakov na defensiva.
— Isso também não os torna reais.
Houve outra troca de olhares nervosos entre os três agentes veteranos do Departamento. Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas vocês não acreditam nessas baboseiras, pois não?
— Ontem à noite ouvimos imensos barulhos esquisitos dentro da casa — disse Dina.
— De certeza que está infestada de ratazanas.
— Ou de jinns — disse Yaakov. — Às vezes aparecem em forma de ratazanas.
— Achava que só havia um.
— A Aisha é a líder. Pelos vistos, há muitos mais.
— Quem é que o diz?
— O Hamid. É um especialista.
— Não me digas. E o que é que o Hamid sugere que façamos a esse respeito?
— Um exorcismo. A cerimónia dura dois dias e inclui o sacrifício de uma cabra.
— Podia obstaculizar a operação — concluiu Gabriel depois de ponderar devidamente a ideia.
— Sim, pois podia — concordou Yaakov.
— Não há outras medidas que possamos adotar, para além de um exorcismo em grande escala?
— A única coisa que podemos fazer é tentar que não se zangue.
— Quem? A Aisha?
— Quem é que havia de ser?
— E que coisas é que a irritam?
— Não podemos abrir as janelas, nem cantar, nem rir. E também não é permitido levantar a voz.
— Só isso?
— O Hamid aspergiu com sal, sangue e leite todos os cantos dos quartos.
— Que alívio.
— Também nos disse para não tomarmos duche à noite, nem usarmos a sanita.
— Porque não?
— Porque os jinns vivem debaixo de água. Se os incomodarmos...
— Sim?
— O Hamid diz que uma grande tragédia se abaterá sobre nós.
— Isso parece terrível. — Gabriel percorreu o belo pátio com o olhar. — Este lugar tem nome?
— Não, e se tem ninguém se lembra dele — respondeu Dina.
— Então, que nome é que vamos usar?
— Dar al-Jinns — propôs Lavon com um ar sombrio.
— Talvez a Aisha se zangue — disse Gabriel. — Proponham outro.
— Que tal Dar al-Jawasis? — perguntou Yaakov.
Sim, era melhor, pensou Gabriel. Dar al-Jawasis. A Casa dos Espiões.
Combinaram que as esposas e as filhas mais velhas de Tarek e Hamid lhes fariam uma refeição tradicional marroquina. Chegaram pouco depois: duas mulheres rechonchudas, tapadas pelo véu, e quatro raparigas bonitas, carregadas com cestos de verga que transbordavam de carne e verduras compradas nos bazares da medina velha. Passaram toda a tarde a cozinhar na enorme cozinha enquanto conversavam baixinho em darija, para não incomodarem os jinns. Pouco depois, a casa inteira cheirava a cominhos, gengibre, coentros e malagueta.
Gabriel espreitou para a cozinha por volta das sete da tarde e viu inúmeras travessas de saladas e aperitivos e enormes caçarolas de barro cheias de cuscuz e tagine. Havia comida suficiente para alimentar uma aldeia e, incentivadas por Gabriel, as mulheres convidaram o resto dos seus familiares do bairro onde viviam para partilharem do banquete. Comeram todos juntos no pátio grande (os marroquinos pobres e os quatro forasteiros que, segundo pensavam eles, eram europeus), sob um dossel de estrelas brancas como diamantes. Para ocultar que dominavam o árabe, Gabriel e os outros falaram unicamente em francês. Conversaram sobre os jinns, sobre as promessas frustradas da Primavera Árabe e sobre essa banda de assassinos que se fazia chamar Estado Islâmico. Tarek afirmou que vários jovens do seu bidonville, entre eles o filho de um primo afastado, tinham estado no califado. De vez em quando, a DST fazia uma rusga no bairro e levava os salafistas para a prisão de Temara para os interrogar através da tortura.
— Têm impedido muitos atentados — disse —, mas não tarda muito vai haver outro dos grandes, como o de 2003. É só uma questão de tempo.
O jantar terminou com esse mau augúrio. As mulheres e respetivos familiares regressaram ao bairro de barracas, levando os restos de comida, e Tarek e Hamid foram para o jardim vigiar os jinns. Gabriel, Yaakov, Dina e Eli Lavon desejaram boa noite e retiraram-se para os quartos. O de Gabriel tinha vista para o mar. Um dos caseiros tinha traçado um círculo a carvão à volta da cama para o proteger dos demónios, e nos quatro cantos havia gotas de sangue misturado com leite e sal. Exausto, Gabriel caiu de imediato num sono profundo, do qual acordou pouco antes do amanhecer com a necessidade imperiosa de aliviar a bexiga. Passou um bom bocado deitado na cama a pensar no que devia fazer, até que por fim viu as horas no telemóvel. Passavam poucos minutos das cinco da madrugada. Amanhecia às 6h49. Fechou os olhos. Não convinha tentar a sorte, pensou. Era melhor não incomodar a Aisha nem os seus amigos.
47
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela manhã, Jean-Luc Martel, hoteleiro, restaurador, fabricante de roupa, joalheiro, narcotraficante internacional e colaborador da espionagem francesa e israelita, subiu a bordo do seu avião privado Gulfstream, o JLM Deux, no Aeroporto Côte d’Azur de Nice com destino a Casablanca, acompanhado pela namorada e pelos supostos amigos, os que viviam na colossal villa no lado oposto da baía, bem como por um espião britânico que até há pouco tempo ganhava a vida como assassino profissional. Nos anais da guerra global contra o terrorismo, nenhuma operação tinha tido tal começo. Era, todos concordavam, a primeira vez. E contra toda a lógica e sem qualquer justificação, confiavam que fosse também a última.
Martel enviara duas limusinas Mercedes para levar a comitiva do aeroporto para o Four Seasons. Passaram a rugir à frente dos brilhantes blocos de apartamentos e dos sujos bidonvilles e seguiram pela Corniche, à velocidade de comitiva oficial até à entrada fortificada do hotel. A sua chegada tinha sido previamente anunciada, de maneira que, depois de uma inspeção superficial aos veículos, puderam aceder ao parque de estacionamento, onde um pequeno batalhão de empregados aguardava para os receber. Abriram-se as portas e os empregados carregaram uma montanha de malas nos seus carrinhos. De seguida, a bagagem e os seus proprietários atravessaram o arco do magnetómetro. Foram todos admitidos de imediato, exceto Christopher Keller, que fez soar o alarme duas vezes. O chefe de segurança do hotel, ao não encontrar qualquer objeto suspeito na posse de Keller, comentou em jeito de brincadeira que devia ser feito de metal. O sorriso tenso e hostil do britânico não contribuiu para dissipar as suas suspeitas.
Um silêncio monástico pendia sobre o ar fresco do hall climatizado. Era pleno verão em Marrocos, logo, temporada baixa para os hotéis da praia. Seguidos pela caravana de malas, JLM e os seus acompanhantes encaminharam-se para a receção: Martel e Olivia Watson vestidos de branco brilhante; Mikhail e Natalie fingindo-se aborrecidos; e Keller incomodado ainda pelo tratamento que lhe tinham dado à porta. O diretor do hotel entregou-lhes as chaves dos seus quartos (Monsieur Martel gozava, como de costume, da mordomia de fazer o check-in antecipadamente) e dedicou-lhes umas sumptuosas palavras de boas-vindas.
— Jantam esta noite no hotel? — perguntou.
— Sim — respondeu Keller de imediato. — Mesa para cinco, por favor.
Era um hotel disposto ao contrário: o hall ocupava o último andar, por cima dos pisos onde os hóspedes estavam alojados. Os quartos de JLM e da sua comitiva ficavam no quarto piso. Martel e Olivia ocupavam uma só suíte, ladeada pela de Mikhail e de Natalie, de um lado, e a de Keller de outro. Quando lhes levaram a bagagem e despacharam os empregados com uma gorjeta, Mikhail e Keller abriram as portas que davam para os três quartos tornando-os num só.
— Muito melhor assim — disse Keller. — Quem é que quer comer?
A mensagem chegou à Casa dos Espiões pouco depois do meio-dia, quando Hamid e Tarek estavam empoleirados na sanita da casa de banho de Gabriel a recitar versos do Corão para afugentar os jinns. Informava de que JLM e os seus acompanhantes tinham chegado sem novidades ao Four Seasons, que não tinham recebido comunicação alguma de Mohammad Bakkar ou dos seus seguidores e que naquele momento estavam a almoçar no terraço do restaurante do hotel. Gabriel enviou a mensagem por via segura para o Centro de Operações da Avenida Rei Saul, que por sua vez a remeteu para Langley, Vauxhall Cross e para a sede da DGSI em Levallois-Perret, onde foi recebida com uma expectativa que superava muito a sua importância operativa.
As preces da sanita terminaram poucos minutos depois da uma e a comida foi servida à uma e meia. Dina e Yaakov Rossman saíram da Casa dos Espiões minutos mais tarde, num dos carros alugados. Dina vestia umas calças de algodão largas e uma blusa branca e levava pendurado ao ombro um saco com o nome de um exclusivo estilista francês. Yaakov, por sua vez, estava vestido como se fosse fazer uma incursão noturna em Gaza. Às duas da tarde, encontravam-se reclinados numa espreguiçadeira com dossel do Tahiti Beach Club da Corniche. Gabriel mandou-os ficar ali até novo aviso. Depois, subiu o volume dos microfones instalados nos três quartos contíguos do Four Seasons.
— Alguém tem de levar o saco ao hotel — comentou Eli Lavon.
— Obrigado, Eli — afirmou Gabriel. — Nunca me teria lembrado disso.
— Só estava a tentar ajudar.
— Desculpa, são os jinns, que falam por mim.
Lavon sorriu.
— Em quem é que tinhas pensado?
— O Mikhail é o candidato mais óbvio.
— Até eu suspeitaria dele.
— Então talvez convenha que seja uma mulher a tratar disso.
— Ou duas — sugeriu Lavon. — Para além disso, já está na hora de fazerem as pazes, não achas?
— Começaram mal, mais nada.
Lavon encolheu os ombros.
— Podia acontecer a qualquer um.
Estava um segurança na porta que comunicava a parte de trás do recinto murado do hotel com a plage Lalla Meriem, a principal praia pública de Casablanca. Vestido com um fato escuro apesar do calor do meio da tarde, observou como as mulheres (a inglesa alta que tinha visto várias vezes anteriormente e uma francesa de semblante antipático) atravessavam a areia escura e lisa até à beira-mar. A inglesa vestia um vaporoso páreo de flores preso à cintura estreita e uma t-shirt translúcida. A francesa, pelo contrário, usava um vestido de algodão ligeiramente mais recatado. Os rapazes da praia aproximaram-se delas de imediato. Colocaram duas espreguiçadeiras na linha do mar e abriram dois guarda-sóis para protegê-las do sol que era forte. A inglesa pediu alguma coisa para beber e, quando lhes levaram os copos, deu uma gorjeta excessiva aos empregados. Apesar das suas visitas frequentes a Marrocos, ignorava o valor do dinheiro marroquino. Por esse motivo, e por outros, os rapazes rivalizavam pela mordomia de a servir.
O segurança retomou o jogo que estava a jogar no seu telemóvel; os rapazes da praia regressaram à sombra da sua barraca. Natalie tirou o vestido e colocou-o sobre o seu saco de praia Vuitton. Olivia despiu o páreo e tirou a t-shirt. Depois estendeu o seu longo corpo na espreguiçadeira e virou a sua cara perfeita para o sol.
— Não gostas muito de mim, pois não?
— Estava só a representar um papel.
— Pois fizeste-o muito bem.
Natalie adotou a mesma postura que Olivia e fechou os olhos ao sol.
— A verdade é — disse passado um momento — que não mereces que te trate assim. Eras simplesmente um meio para atingir um fim.
— E o Jean-Luc?
— Ele também é um meio para atingir um fim. E, para o caso de quereres saber, não vou com a cara dele.
— Então, gostas de mim? — perguntou Olivia num tom divertido.
— Um bocadinho — reconheceu Natalie.
Dois marroquinos musculados de vinte e poucos anos passaram à frente delas, com a água pelos tornozelos, a conversar em darija. Ao ouvi-los, Natalie sorriu.
— Estão a falar de ti — disse.
— Como é que sabes?
Natalie abriu os olhos e olhou-a inexpressivamente.
— Falas marroquino?
— O marroquino não é um idioma, Olivia. De facto, aqui falam três línguas diferentes. Francês, berbere e...
— Talvez isto tenha sido um erro — atalhou Olivia.
Natalie sorriu.
— Porque é que falas árabe?
— Os meus pais são argelinos.
— Então, és árabe?
— Não — respondeu Natalie. — Não sou.
— Afinal, o Jean-Luc tinha razão. Quando saímos da vossa villa naquela tarde disse que...
— Que parecia uma judia de Marselha.
— Como é que sabes?
— O que é que achas?
— Estavam a ouvir?
— Estamos sempre a ouvir.
Olivia besuntou óleo nos ombros.
— O que é que aqueles marroquinos estavam a dizer sobre mim?
— É difícil de traduzir.
— Imagino.
— Calculo que estejas acostumada.
— Tal como tu. És muito bonita.
— Para uma judia de Marselha.
— És?
— Era há muito tempo — afirmou Natalie. — Já não.
— Era assim tão mau?
— Ser judeu em França? Sim, era muito mau.
— Foi por isso que te tornaste espia?
— Eu não sou espia. Sou a Sophie Antonov, a tua amiga do outro lado da baía. O meu marido tem negócios com o teu namorado. Têm entre mãos algum assunto aqui, em Casablanca, do qual preferem não falar.
— O meu namorado — disse Olivia. — O Jean-Luc não gosta que digam que é o meu namorado.
— Porquê? Há algum problema?
— Entre mim e o Jean-Luc?
Natalie fez um gesto afirmativo.
— Achava que estavam sempre a ouvir.
— E assim é. Mas tu conhece-lo melhor do que ninguém.
— Não estou muito certa disso. Mas não — respondeu Olivia —, não parece suspeitar que fui eu quem o traiu.
— Não o traíste...
— Como é que o descreverias então?
— Fizeste o correto.
— Para variar — concluiu Olivia.
Os dois marroquinos musculados estavam de volta. Um deles olhou para Olivia com descaramento.
— Pensas dizer-me o que é que estamos aqui a fazer? — perguntou ela.
— Quanto menos souberes — respondeu Natalie —, melhor.
— É assim que funcionam as coisas no teu ofício?
— Sim.
— Estou em perigo?
— Isso depende de tirares mais roupa ou não.
— Tenho o direito de saber.
Natalie não respondeu.
— Imagino que tem alguma coisa a ver com aqueles carregamentos de haxixe que a polícia confiscou.
— Que haxixe?
— Não importa.
— Exato — afirmou Natalie. — Qualquer coisa que te diga, fará com que seja mais difícil cumprires o teu papel.
— E qual é o meu papel?
— O de par amoroso do Jean-Luc Martel que ignora de onde procede o seu dinheiro.
— Procede dos seus hotéis e restaurantes.
— E da sua galeria de arte — assinalou Natalie.
— A galeria é minha. Aí vem um dos teus amigos — disse Olivia num tom sonolento.
Natalie levantou o olhar e viu que Dina caminhava parcimoniosamente para elas pela beira-mar.
— Parece triste — comentou Olivia.
— Tem motivos para isso.
— O que é que lhe aconteceu à perna?
— Isso não importa.
— Queres dizer que não é nada comigo?
— Tentava ser simpática.
— Que novidade. — Olivia levou uma mão à testa para se proteger do sol. — Tem graça: parece que traz um saco igual ao teu.
— A sério? — Natalie sorriu. — Que coincidência, não achas?
O segurança encarregava-se de vigiar qualquer transeunte que passasse pela praia, não se fosse repetir o trágico incidente que aconteceu na Tunísia em 2015, quando um terrorista salafista tirou um fuzil de assalto do seu guarda-sol e matou trinta e oito hóspedes de um hotel de cinco estrelas, na sua maioria súbditos britânicos. Não obstante, pouco podia fazer o guarda no caso de se repetirem as mesmas circunstâncias. Não estava armado; tinha apenas um rádio. Em caso de atentado, devia fazer soar o alarme e fazer «tudo o que estivesse ao seu alcance» para neutralizar o atacante ou os atacantes. Ou seja, com toda a probabilidade perderia a vida a tentar proteger um grupo de ocidentais ricos seminus. Não era bem assim que queria morrer. Mas em Casablanca não havia muito trabalho, sobretudo para os filhos dos bidonvilles. E era preferível montar guarda na praia do que vender fruta com um carrinho na medina. Sabia-o por experiência própria.
A tarde tinha sido pacata, inclusivamente para agosto, e o guarda concentrou toda a sua atenção na mulher que se aproximava a oeste, onde ficavam o Tahiti e os outros clubes da praia. Era baixinha e de cabelo escuro e, ao contrário da maioria das ocidentais que visitava a praia, ia discretamente vestida. Tinha um verdadeiro ar de melancolia, como tivesse enviuvado há pouco. Trazia um saco de praia pendurado no ombro direito. Louis Vuitton, um modelo muito na moda naquele verão. O guarda perguntou-se se tinha consciência de que aquele saco custava mais dinheiro do que muitos marroquinos veriam em toda a sua vida.
Precisamente nesse momento, uma das mulheres deitadas perto da margem, a francesa antipática, cumprimentou-a levantando o braço. A mulher de aspeto melancólico aproximou-se e sentou-se na beira da sua espreguiçadeira. Os rapazes da praia ofereceram-se para lhe levar outra espreguiçadeira, mas ela disse que não. Evidentemente, não pensava ficar muito tempo. A inglesa alta e bonita parecia incomodada com a interrupção. Aborrecida, olhava desastrosamente para o mar enquanto a francesa e a recém-chegada falavam com ar de confiança e fumavam uns cigarros que a francesa tinha tirado do seu saco, também um Louis Vuitton; o mesmo modelo, de facto.
Passado um momento, a mulher de aspeto triste levantou-se para se ir embora. A francesa, que tinha voltado a pôr o vestido, acompanhou-a uns cem metros pela beira-mar. Depois abraçaram-se e cada uma seguiu o seu caminho: a mulher melancólica regressou para os clubes da praia e a francesa regressou para a sua espreguiçadeira. Trocou umas palavras com a inglesa alta e bela. Depois, a inglesa levantou-se e prendeu o páreo à cintura. Para deleite do guarda, não se incomodou a vestir a t-shirt translúcida. A visão do seu corpo perfeito distraiu-o a tal ponto que só deu uma olhadela aos sacos de praia quando, um momento depois, passaram pela porta e regressaram ao recinto do hotel.
Juntas entraram no elevador e subiram para o quarto piso, onde lhes franquearam a entrada para os três quartos convertidos num só. A alta e bela inglesa entrou na suíte que partilhava com Monsieur Martel. De imediato, ele atraiu-a para si e sussurrou-lhe algo ao ouvido que a francesa não conseguiu ouvir. Mas pouco importava: na Casa dos Espiões estariam a ouvir. Estavam sempre a ouvir.
48
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela noite, não recebeu qualquer mensagem de Mohammad Bakkar ou dos seus subordinados, e na manhã seguinte também não. Na Avenida Rei Saul e em Langley, e em todos os pontos intermédios, os ânimos exaltaram-se. Até Paul Rousseau, no seu refúgio na parte mais profunda da sede da DGSI em Levallois-Perret, começou a ter as suas dúvidas. Temia que tivesse havido alguma fuga de informação e que a operação estivesse a meter água. O culpado era, sem dúvida, o seu estranho colaborador: o agente que tinha chantageado e recrutado sem permissão do seu chefe, nem do ministro. O agente a quem tinha dado total imunidade. Os jovens e hostis colaboradores de Morris Payne, o diretor da CIA, partilhavam o pessimismo de Rousseau. Mas, ao contrário do francês, não estavam dispostos a esperar indefinidamente que o telefone tocasse. Eram militares de carreira, mais do que espiões, e preferiam abrir fogo diretamente contra o inimigo. Payne, ao que parece, era da mesma opinião. Convocou Adrian Carter para uma reunião no seu escritório e expôs-lhe claramente o seu ponto de vista. Carter encarregou-se de transmitir a mensagem a Gabriel através de uma videoconferência segura do Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA. Gabriel, por sua vez, estava no centro de operações montado na Casa dos Espiões.
— Nada de alaridos — disse.
— O que é que queres dizer?
— O Mohammad Bakkar é a estrela da companhia. E a estrela da companhia é quem marca a hora e o lugar do encontro.
— Até uma estrela precisa de um bom conselho, de vez em quando.
— Isso não corresponde à forma como a relação tem funcionado até agora. Se mandar o Martel tomar a iniciativa, o Bakkar vai perceber que se passa algo de estranho.
— Pode ser que já saiba.
— Ligar-lhe não vai mudar isso.
— Os chefes acham que poderia resolver a situação num sentido ou noutro.
— Ah, sim?
— E a Casa Branca...
— Desde quando é que a Casa Branca está metida nisto?
— Desde o princípio. Segundo parece, o presidente está muito atento ao assunto.
— Que reconfortante. E exatamente quantas pessoas é que sabem disto em Washington, Adrian?
— É difícil saber. — Carter franziu a testa. — O que é este barulho?
— Não é nada.
— Parece alguém a rezar.
— E é, efetivamente.
— Quem?
— O Tarek e o Hamid. Tentam afugentar os jinns.
— O quê?
— Os jinns — repetiu Gabriel.
— Eu prefiro o gim com lima e um pouco de tónica.
Gabriel perguntou-lhe pelos dois drones que Morris Payne tinha atribuído à operação. Um era um drone de vigilância Sentinel. O outro, um Predator. Carter explicou-lhe que o Sentinel já estava na zona e podia sobrevoar Marrocos assim que Gabriel tivesse um alvo claro. O Predator, armado com dois mortíferos mísseis Hellfire, estava numa base próxima, pronto para entrar em ação. A CIA não tinha autoridade para lançar um ataque em Marrocos. Só o presidente podia dar essa ordem, e até nesse caso — afirmou Carter — seria o último recurso.
— Os marroquinos vão ficar furiosos — disse.
— Quanto tempo demorará o Predator a estar em situação de disparar?
— Depende da localização do alvo. Duas horas, no mínimo.
— Duas horas é muito.
— Não são os felinos mais velozes da selva. Mas nada disto faz sentido — disse Carter — enquanto o Mohammad Bakkar não convocar o teu rapaz para uma reunião.
— Vai ligar — afirmou Gabriel, e cortou a ligação.
No entanto, no fundo não tinha tanta certeza. E quando passou o meio-dia sem que tivesse notícias, sucumbiu momentaneamente ao pessimismo que se tinha apoderado dos seus colegas de Paris e de Washington. Distraiu-se a conduzir as suas personagens: os Antonov e os seus amigos, o Jean-Luc Martel e a Olivia Watson. Mandou Martel e Mikhail às redondezas de Casablanca à procura de possíveis localizações para um novo hotel que a JLM Enterprises não tinha intenção de construir e despachou Natalie e Olivia para o gigantesco Morocco Mall, onde, munidas dos cartões de crédito de Martel, invadiram várias lojas exclusivas. Almoçaram depois com Christopher Keller no quartier Gauthier. O britânico não viu indícios de vigilância, nem da DST marroquina, nem de qualquer outro tipo. Eli Lavon, que seguiu Martel e Mikhail durante a sua saída à procura de supostos terrenos para construir, informou que também não tinha detetado qualquer sinal de que os estivessem a vigiar.
A meio da tarde, enquanto o pessimismo de Gabriel se agudizava, houve outra crise relativa aos jinns. Hamid tinha encontrado aberta a janela de um quarto (o de Dina, mais especificamente) e temia que vários demónios novos se tivessem esgueirado para o interior da casa. Apoiado por Yaakov, propôs de novo a possibilidade de um exorcismo. Conhecia um homem do seu bidonville que trataria disso por um preço módico, com o sacrifício de cabra incluído. Gabriel negou-se: continuaram a encomendar sal, sangue e leite com a esperança de que tudo se resolvesse. Hamid, evidentemente, duvidava disso.
— Como queira — disse, muito sério. — Mas temo que isto vá acabar mal. Para todos.
Às cinco da tarde, até Gabriel estava convencido de que a Casa dos Espiões estava assombrada e de que Aisha e os seus ferozes amigos conspiravam contra ele. Mandou Natalie e Olivia à praia para apanharem sol e saiu para dar um passeio sozinho (sem escoltas, nem armas) pelas arcadas sujas da cidade velha. Vagueou sem rumo, atravessando praças cheias de gente e avenidas congestionadas pelo tráfego vespertino, até que encontrou um café cujos clientes vestiam na sua maioria roupa ocidental. Sentados a uma mesa no recanto mais escuro do local havia três americanos: dois rapazes e uma rapariga.
Pediu em francês um café noir. Então percebeu que não tinha dinheiro marroquino. Mas não importava: o empregado aceitou, encantado, os seus euros. Lá fora, o estrépito da rua era opressivo. Abafava o som da televisão que havia por cima do balcão e a tranquila conversa dos três americanos. Então, às seis horas e doze minutos, sufocou a vibração do telemóvel de Gabriel. Leu a mensagem, um momento depois, e sorriu. Ao que parece, Mohammad Bakkar queria falar com Jean-Luc Martel em Fez na tarde do dia seguinte.
Antes de voltar a guardar o telemóvel no bolso, enviou uma breve mensagem a Adrian Carter para Langley. Pediu depois outro café e bebeu-o como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
49
FEZ, MARROCOS
No dia seguinte, minutos antes do meio-dia, Christopher Keller estava à entrada do hotel, a ver como os porteiros carregavam a bagagem para os carros. Martel saiu pouco tempo depois, seguido por Mikhail, Natalie e Olivia. Tinha na mão a fatura do hotel, que entregou a Keller.
— Dê-a aos seus chefes. E diga-lhes que espero que me reembolsem até ao último cêntimo.
— Vou já tratar disso.
Keller atirou a fatura para o lixo e entrou para a parte de trás do primeiro Mercedes. Martel juntou-se a ele, enquanto os outros entravam para o outro carro. Seguiram pela costa e, ao chegarem a Rabat, viraram para o interior atravessando plantações de sobreiros até chegarem aos sopés do Médio Atlas. Na primavera, os montes estariam abençoados pelas chuvas e pelo gelo derretido, mas em pleno verão eram castanhos e secos. As ladeiras estavam cheias de oliveiras, e pelas planícies estendiam-se campos de regadio. Martel olhava distraidamente pela janela, enquanto Keller controlava o fluxo de e-mails, mensagens de texto e telefonemas do telemóvel do francês. Com a ajuda de Martel, despachou os assuntos que requeriam atenção urgente. Ignorou os outros. Até Jean-Luc Martel, disse a si próprio, precisava de um dia livre de vez em quando.
Seguindo as instruções de Gabriel, pararam para comer em Mequinez, a mais pequena das quatro antigas cidades imperiais de Marrocos. Aí, Eli Lavon chegou à conclusão de que um indivíduo de trinta e poucos anos, com ar de marroquino, com óculos de sol e boné americano os estava a vigiar. Depois de almoçarem, o mesmo indivíduo seguiu-os até às ruínas romanas de Volubilis, que percorreram debaixo do sol abrasador da tarde. Lavon tirou uma fotografia ao homem, enquanto fingia admirar o arco triunfal e enviou-a para o esconderijo de Gabriel, em Casablanca. Gabriel, por sua vez, reenviou-a para Christopher Keller, que a mostrou a Martel quando voltaram para o carro.
— Reconhece-o?
— Talvez.
— O que é que quer dizer com isso?
— Quero dizer que talvez o tenha visto antes.
— Onde?
— No encontro de Rife, em dezembro do ano passado. Após os atentados de Washington.
— Com quem é que estava? Com o Bakkar?
— Não. Estava com o Khalil.
Perto das seis chegaram à Ville Nouvelle de Fez, a parte moderna da cidade, onde a maioria dos seus habitantes preferia viver. O hotel deles, o Palais Faraj, ficava perto da antiga medina. Era um labirinto de azulejos coloridos e frescos e passagens sombrias. O proprietário cedeu automaticamente a suíte real a Martel e Olivia. Keller ficaria num quarto contíguo de dimensões mais modestas, e Mikhail e Natalie um pouco mais à frente, no mesmo corredor. Levaram Olivia a dar um passeio pelos souks da medina, enquanto Martel e Keller esperavam que o telefone tocasse sentados no terraço privado da suíte real. O ar estava quente e parado. Dos curtumes próximos chegava-lhes um leve cheiro de ferrugem e fumo de lenha.
— Quanto tempo é que nos vai fazer esperar? — perguntou Keller.
— Depende.
— De quê?
— Do seu humor, imagino. Às vezes, liga logo. E às vezes...
— O quê?
— Muda de ideias.
— Sabe que estamos aqui?
— O Mohammad Bakkar — afirmou Martel — sabe tudo.
Passados vinte minutos sem que recebessem um telefonema ou uma mensagem, o francês levantou-se bruscamente.
— Preciso de um copo.
— Peça algo ao serviço de quartos.
— Há um bar lá em cima — disse Martel e, antes que Keller se opusesse, dirigiu-se à porta.
Lá fora, no hall, carregou no botão do elevador e, como não apareceu de imediato, subiu pelas escadas. O bar, pequeno e escuro, ficava no último piso e de lá dominavam-se as cúpulas da medina. Martel pediu a garrafa de Chablis mais cara da carta de vinhos. Keller, só um café.
— De certeza que não quer um pouco? — perguntou Martel, enquanto admirava um copo de vinho à luz do sol.
Keller respondeu que preferia um café.
— Não bebe quando está de serviço?
— Algo do género.
— Não sei como é que consegue. Está há dias sem dormir. Imagino que uma pessoa acaba por se acostumar quando se dedica ao seu ofício — acrescentou o francês pensativamente. — À espionagem, quero dizer.
Keller lançou uma olhadela ao barman. Não havia mais ninguém no local.
— Foi sempre um espião? — insistiu Martel.
— E você? Foi sempre um narcotraficante?
— Eu nunca fui narcotraficante.
— Ah, sim — disse Keller. — Laranjas.
Martel observou-o atentamente por cima da borda do copo de vinho.
— Tenho a impressão de que passou uma boa temporada no exército.
— Não tenho jeito para militar. Nunca gostei de ordens. E não gosto de trabalhar em equipa.
— Então pode ser que seja um militar especial. Do SAS, por exemplo. Ou deveria dizer do Regimento? Não é assim que os seus camaradas lhe chamam?
— Ignoro.
— Que estupidez — replicou Martel bruscamente.
A sorrir para o barman marroquino, Keller olhou pela janela. A escuridão começava a acomodar-se sobre a medina, mas nos cumes mais altos das montanhas ainda restava um laivo de luz rosada.
— Deveria ter mais cuidado, Jean-Luc. O rapaz do balcão poderia ofender-se.
— Conheço os marroquinos melhor do que você. E reconheço um ex-membro do SAS quando o vejo. Todas as noites, algum inglês rico chega a um dos meus hotéis ou restaurantes, acompanhado pela sua escolta privada. E são sempre veteranos do SAS. Suponho que é melhor dedicar-se à espionagem do que ser lacaio de algum executivo britânico com vontade de ser arrogante.
Naquele momento, Yossi Gavish e Rimona Stern entraram no bar e sentaram-se a uma mesa, do outro lado do local.
— Os seus amigos de Saint-Tropez — comentou Martel. — Convidamo-los a juntarem-se a nós?
— Voltemos para baixo com a garrafa.
— Ainda não — respondeu Martel. — Sempre gostei desta vista ao entardecer. Este lugar é Património da Humanidade, sabia? E, no entanto, grande parte das pessoas que vivem aqui em baixo venderia de boa vontade o seu ruinoso riad ou a sua dar a algum ocidental para comprar um bonito e limpo apartamentozinho na Ville Nouvelle. É uma pena, na verdade. Não sabem o que têm. Às vezes, o velho é muito melhor do que o novo.
— Poupe-se a filosofia barata — afirmou Keller com um ar aborrecido.
Rimona estava a rir-se de algo que Yossi tinha dito. Keller deu uma vista de olhos às últimas mensagens e aos e-mails que Martel tinha recebido, enquanto este continuava a contemplar o pôr-do-sol na medina.
— Fala muito bem francês — comentou Martel, ao fim de um momento.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Houve um silêncio. Foi Martel quem o quebrou.
— Há muitos anos, quando ainda vivia em Marselha, corria o rumor de que havia um inglês que trabalhava como assassino para o clã dos Orsati. Tinha pertencido ao SAS, ou era o que se dizia. Pelos vistos, era um desertor. — Martel fez uma pausa e depois acrescentou: — Um cobarde.
— Parece o argumento de uma história de espiões.
— Às vezes, a realidade supera a ficção. — Martel olhou-o fixamente. — Como sabiam sobre o René Devereaux?
— O Devereaux conhece toda a gente.
— A voz dessa gravação era a sua.
— Ah, sim?
— Não consigo sequer imaginar as coisas que teve de lhe fazer para conseguir que falasse. Mas devem ter também outra fonte — acrescentou o francês. — Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
— A Olivia não tem nada a ver com isto.
O ceticismo de Martel era evidente.
— Pode ficar com eles?
— A que é que se refere?
— Aos cinquenta milhões que lhe deram por aqueles quadros. Aos cinquenta milhões que lhe pagaram para que me traísse.
— Beba o seu vinho, Jean-Luc. Desfrute da paisagem.
— Cinquenta milhões é muito dinheiro — prosseguiu Martel. — O tal iraquiano chamado Khalil deve ser muito importante.
— É.
— E se mostrar a cara? O que acontecerá então?
— O mesmo que acontecerá consigo se tocar num cabelo da Olivia — replicou Keller com a voz calma.
A ameaça não pareceu afetar o francês.
— Talvez alguém deva atender — disse.
Keller olhou para o telefone, que vibrava sobre a mesa baixa, entre eles os dois. Deitou uma vista de olhos ao número e passou o telemóvel a Martel. A conversa muito breve decorreu numa mistura de francês e árabe marroquino. Depois, Martel desligou a chamada e entregou o telemóvel.
— E então? — perguntou Keller.
— O Mohammad mudou de planos.
— Quando é que se vão ver?
— Amanhã à noite. E não me quer ver só a mim — disse Martel. — Estamos todos convidados.
50
CASABLANCA, MARROCOS
Christopher Keller não era o único que vigiava o telefone de Jean-Luc Martel. No esconderijo em Casablanca, Gabriel também não o perdia de vista. Ouviu o fluxo constante de chamadas a chegar ao longo dessa tarde e leu as numerosas mensagens e e-mails que o francês recebeu. E às sete e um quarto ouviu as poucas palavras da conversa entre Martel e um homem que não se incomodou a apresentar-se. Ouviu a gravação mais três vezes de princípio ao fim e, de seguida, procurou o minuto 19:16:13 e carregou no ícone de play.
— O Mohammad e o seu sócio gostariam de conhecer os seus amigos. Mais especificamente um deles.
— Qual?
— O alto. O que é casado com aquela francesa tão bonita e que tem dinheiro aos pontapés. É russo, não é? Traficante de armas?
— De onde é que tirou essa informação?
— Isso não importa.
— Porque é que querem conhecê-lo?
— Para lhe propor um negócio. Acha que o seu amigo pode estar interessado? Diga-lhe que vale a pena.
Gabriel carregou na pausa e olhou para Yaakov Rossman.
— Como é que achas que o Mohammad Bakkar e o sócio dele souberam o que faz na realidade o Dmitri Antonov?
— Pode ser que tenham ouvido os mesmos rumores que o Jean-Luc Martel ouviu. Os que espalhámos como migalhas de pão entre Londres e Nova Iorque, passando pelo sul de França.
— E esse negócio que lhe querem propor?
— Duvido que esteja relacionado com o haxixe.
— Ou com as laranjas — acrescentou Gabriel. Depois disse: — Tenho a sensação de que quem quer mesmo conhecer o Dmitri Antonov é o sócio do Mohammad. Mas para quê?
— Podemos assumir que o hipotético sócio de Mohammad é o Saladino?
— De acordo.
— Pode ser que queira comprar armas. Ou se calhar quer material radiológico de origem russa para substituir o stock que perdeu quando capturaram o barco.
— Ou pode ser que queira matá-lo. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou: — A ele e à sua esposa, aquela francesa tão bonita.
Carregou no play.
— Onde?
— Vão de carro para o sul, até Erfoud e...
— Erfoud? Isso fica...
— A sete horas nesta época do ano, talvez menos. O Mohammad preparou-vos dois jipes. Aqueles Mercedes deles não vos servirão de nada para onde vão.
— E onde é que isso fica?
— É um acampamento no Saara. Bastante luxuoso. Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido.
Gabriel parou a gravação.
— Um acampamento à beira do Saara. Muito tradicional, muito agradável.
— E muito isolado — comentou Yaakov.
— Pode ser que isso seja o que o Saladino quer.
— Achas que nos traíram?
— A mim pagam-me para me preocupar, Yaakov.
— Algum suspeito?
— Só um.
Gabriel abriu outro arquivo de áudio no seu computador e depois de ajustar o tempo carregou no play.
— Fala muito bem francês.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Gabriel carregou na pausa.
— Em algum momento, tinha de perceber — disse Yaakov. — Procedem do mesmo modo. São duas caras da mesma moeda.
— O Keller nunca esteve metido no narcotráfico.
— Não — anuiu Yaakov com sarcasmo. — Só ganhava a vida a matar pessoas.
— Eu acredito na redenção.
— Não me surpreende.
Gabriel franziu a testa e carregou de novo no play.
— Mas devem ter também outra fonte. Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
Gabriel parou a gravação.
— Também era lógico que se apercebesse disto em algum momento — comentou Yaakov.
Na Casa dos Espiões fez-se silêncio. Os ocupantes da suíte real do Palais Faraj, pelo contrário, discutiam sobre se deviam jantar no hotel ou num restaurante da medina. Falavam disso ao estilo dos milionários aborrecidos. A atuação deles era tão convincente, que até Gabriel, que tinha criado as personagens, não soube se se tratava de uma discussão autêntica ou a fingir para despistar a DST marroquina, que, sem dúvida, também os estava a ouvir.
— Pode ser que tenhamos perdido o Martel — disse Gabriel, por fim. — Quem sabe? É possível que nunca o tenhamos tido em nosso poder.
— São outra vez os jinns que falam pela tua boca?
Gabriel não disse nada.
— Tem estado debaixo do nosso controlo desde que lhe estendemos a armadilha. Vigilância absoluta. Física, eletrónica e virtual. O Keller praticamente dormiu no seu quarto. É nosso de corpo e alma.
— Pode ser que nos tenha escapado alguma coisa.
— Como por exemplo?
— Uma sequência concreta de zumbidos do telefone ou algum código impessoal ao qual não demos importância.
— Com jornal ou sem ele? Com guarda-chuva ou sem?
— Exato.
— Já ninguém lê jornais, e em Marrocos não chove nesta época do ano. Para além disso — acrescentou Yaakov —, se o Mohammad Bakkar achasse que o Martel passou para o outro lado, não teria pedido para vê-lo.
Em Fez, a discussão a respeito do jantar tinha adquirido contornos verdadeiramente azedos. Exasperado, Gabriel arrumou a questão enviando uma mensagem de texto a Mikhail. JLM e os seus acompanhantes jantaram no hotel nessa noite.
— Boa ideia — comentou Yaakov. — Convém que esta noite vão cedo para a cama. Amanhã será um dia muito longo.
Gabriel ficou calado.
— Não estarás a pensar em abortar a operação, pois não?
— Claro que sim.
— Chegámos muito longe — reclamou Yaakov. — Manda-os ao acampamento, que se reúnam com eles. Identifica o Saladino, dá o aviso. E, quando se for embora, deixa que os americanos lancem um míssil e os convertam numa nuvenzinha de fumo.
— Dito assim parece muito simples.
— É. Os americanos fazem-no diariamente.
Gabriel ficou em silêncio, de novo.
— O que é que vais fazer? — perguntou Yaakov.
Gabriel carregou no play.
Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido...
51
FEZ, MARROCOS
Natalie acordou com as almofadas empapadas em suor, cega pelo sol. A pestanejar, contemplou o pedaço de céu que se via da sua janela e, por um instante, não soube onde estava. Encontrava-se em Fez, em Casablanca ou em Saint-Tropez? Ou estava de novo naquele casarão repleto de pátios e quartos, perto de Mossul? Tu és o meu Maimónides... Virou-se e esticou a mão para a fita da persiana, mas não a alcançou. A metade da cama que Mikhail ocupava ainda estava na penumbra. Ele dormia tranquilamente, com o tronco descoberto.
Natalie fechou os olhos com força para fugir à luz do sol e tentou reunir os fragmentos do seu último sonho daquela manhã. Ia a caminhar por um jardim povoado de ruínas: ruínas romanas, tinha a certeza disso. Não eram as ruínas de Volubilis que tinham visitado na véspera, mas as de Palmira, na Síria. Também tinha a certeza disso. Era uma das poucas ocidentais que tinham visitado Palmira após a sua captura por parte do Estado Islâmico, e tinha visto com os seus próprios olhos os destroços que os combatentes sagrados do ISIS tinham causado nas ruínas. Tinha-as percorrido ao luar, acompanhada por um jihadista egípcio chamado Ismail que estava a receber treino no mesmo campo do que ela. Mas, no sonho, era outro homem que ia a seu lado. Um homem alto e corpulento que coxeava levemente. Um objeto indefinido, grotesco e grande, ia pendurado na sua mão direita. Só agora, no meio da neblina quente da manhã, Natalie compreendeu que aquela coisa era a sua cabeça.
Sentou-se devagar na cama para não acordar Mikhail e apoiou os pés no chão despido. O piso parecia que tinha saído do forno. Por um instante, sentiu náuseas. Deduziu que o sonho a tinha posto doente. Ou talvez fosse alguma coisa que tivesse comido, alguma iguaria marroquina que não lhe tinha caído bem.
Fosse como fosse, correu para a casa de banho para vomitar. Depois, começou a sentir os primeiros assaltos de uma forte enxaqueca. Logo hoje, disse a si própria. Tomou dois analgésicos com um gole de água da torneira e passou uns minutos debaixo da água fresca do duche. Depois, embrulhada num roupão fino, entrou na salinha de estar e preparou uma chávena de café bem forte na máquina Nespresso. O tabaco da Madame Sophie parecia chamá-la da mesa. Fumou um cigarro só para manter a fachada, ou pelo menos foi o que disse a si própria. Não conseguiu aliviar a dor de cabeça.
És muito corajosa, Maimónides. Demasiado corajosa do que te convém...
Oxalá fosse verdade, pensou. Quantas pessoas estariam vivas se tivesse tido a coragem de deixá-lo morrer? Washington, Londres, Paris, Amesterdão, Antuérpia, e todas as outras cidades. Sim, os americanos queriam apanhá-lo. Mas ela também.
Entrou no quarto de vestir. A roupa que ia usar naquele dia estava dobrada num armário. Para além disso, as suas malas estavam feitas. Tal como as de Mikhail. As etiquetas revelavam um fabrico luxuoso, mas as malas, tal como o próprio Dmitri Antonov, eram falsas. A mala mais pequena tinha um fundo falso. Dentro do compartimento escondido havia uma Beretta 92FS, dois carregadores cheios de projéteis de nove milímetros e um silenciador.
Depois de aceitar trabalhar para a Departamento, Mikhail mostrara-lhe como carregar e descarregar uma arma. Agora, agachada no chão do quarto de vestir, colocou rapidamente o silenciador no extremo do canhão, introduziu um dos carregadores na coronha e carregou a primeira bala. Levantou depois a arma segurando-a com as duas mãos como Mikhail lhe ensinara e apontou para o homem que segurava a sua cabeça na mão.
Vá lá, Maimónides, faz de mim um mentiroso...
— O que é que estás a fazer? — perguntou uma voz atrás dela.
Natalie virou-se sobressaltada e apontou para o peito de Mikhail. Tinha a respiração agitada e a coronha da Beretta húmida entre as mãos trémulas. Mikhail aproximou-se lenta e suavemente, baixou o canhão da pistola para o chão. Natalie largou as mãos e observou como devolvia a pistola ao seu estado original e a depositava no compartimento secreto da mala.
Levantando-se, Mikhail pôs-lhe um dedo sobre os lábios e apontou para o teto para lhe indicar que podia haver microfones da DST. Depois conduziu-a para fora, para o terraço, e abraçou-a.
— Quem és? — sussurrou-lhe ao ouvido em inglês com uma pronúncia russa.
— Sou a Sophie Antonov — respondeu ela mansamente.
— O que é que estás a fazer em Marrocos?
— O meu marido está a tratar de negócios com o Jean-Luc Martel.
— O que é que o teu marido faz?
— Antes, os minerais. Agora, os investimentos.
— E o Jean-Luc Martel?
Natalie não respondeu. De repente, tinha frio.
— Queres explicar-me o que se passou?
— Pesadelos.
— Que tipo de pesadelos?
Natalie contou-lhe.
— Era só um sonho.
— Esteve prestes a acontecer, uma vez.
— Não voltará a acontecer.
— Não sabes isso — disse ela. — Não sabes como ele é inteligente.
— Nós somos mais.
— A sério?
Fez-se um silêncio.
— Manda uma mensagem ao posto de comando — sussurrou-lhe Natalie, por fim. — Diz-lhes que não posso ir. Que não me posso aproximar dele. Tenho medo de deitar toda a operação por terra.
— Não — respondeu Mikhail. — Não vou mandar nenhuma mensagem.
— Porquê?
— Porque tu és a única que o consegue identificar.
— Tu também o viste. No restaurante de Georgetown.
— A verdade — afirmou Mikhail — é que tentei não olhar para ele. Mal me lembro da cara dele.
— E a gravação das câmaras de segurança do Four Seasons?
— Não é muito boa.
— Não consigo estar na presença dele — disse Natalie passado um bocado. — Vai-me reconhecer. Porque é que não me havia de reconhecer? Fui eu quem salvou a vida daquele miserável.
— Sim — disse Mikhail. — E agora vais ajudar-nos a matá-lo.
Voltou a levá-la para a cama e fez os possíveis para ajudá-la a esquecer o pesadelo. Depois, tomaram um duche juntos e vestiram-se. Natalie passou um longo momento a pentear-se ao espelho.
— O que é que pareço? — perguntou.
— Uma judia de Marselha — respondeu Mikhail com um sorriso.
Lá em cima, o pessoal do hotel estava a levantar o buffet do pequeno-almoço. Enquanto tomavam café e pão, Mikhail leu os jornais da manhã no seu tablet, enquanto Natalie, fingindo um aborrecimento que não sentia, contemplava o decrépito caos da medina. Por fim, pouco antes das onze, desceram para o hall, onde Martel e Christopher Keller estavam a pagar a conta. Olivia estava lá fora, vendo como os porteiros metiam a bagagem nos carros.
— Dormiste bem? — perguntou.
— Melhor do que nunca — respondeu Natalie.
Entrou na parte de trás do segundo carro e ocupou o seu lugar junto da janela. Uma cara que não reconhecia devolvia-lhe o olhar através do vidro.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
52
LANGLEY, VIRGÍNIA
O Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA (NCTC) tinha estado em tempos localizado numa só sala do corredor F do quinto piso do quartel-general da Agência. Com os seus ecrãs de televisão, os seus telefones barulhentos e os seus dossiês amontoados, assemelhava-se à redação de um jornal de segunda linha. Os seus membros trabalhavam em pequenos grupos dedicados a objetivos específicos: a Fação do Exército Vermelho, o Exército Republicano Irlandês, a Organização para a Libertação da Palestina, Abu Nidal, Hezbollah... Tinha, para além disso, uma unidade, formada em 1996, que centrava os seus esforços num extremista saudita pouco conhecido, chamado Osama Bin Laden, e a sua pujante rede de terrorismo islamista.
Como era de esperar, o NCTC tinha aumentado consideravelmente de tamanho desde os atentados do 11 de Setembro e agora ocupava uns dois mil metros quadrados do andar térreo da nova sede da CIA, com o seu próprio átrio e torniquetes de acesso. Por motivos de segurança, o verdadeiro nome do chefe do NCTC tinha deixado de ser de domínio público. Para o mundo exterior (e para o resto de Langley) era simplesmente «Roger». Kyle Taylor gostava daquela alcunha. Um tipo chamado Kyle não metia medo a ninguém. Roger, pelo contrário, era um nome que impunha respeito, sobretudo se comandava uma frota de drones armados e tinha o poder de pulverizar um indivíduo pelo simples facto de estar num lugar concreto no momento errado.
Uzi Navot tinha esbarrado com ele pela primeira vez há já uma década, quando Taylor trabalhava na delegação da CIA em Londres. Tinham sentido então uma antipatia instantânea um pelo outro. Navot via Taylor (que não falava mais nenhuma língua do que o inglês e era, portanto, inútil para o trabalho de campo) como pouco mais do que um espião de bancada ou um soldado de sala de reuniões. E Taylor, que acalentava o conhecido ressentimento da CIA contra o Departamento e Israel (agudizado, possivelmente, no seu caso particular) considerava Navot um tipo calculista e traiçoeiro. De resto, davam-se às mil maravilhas.
— É a primeira vez que visitas o Centro? — perguntou Taylor depois de poupar a Navot a incómoda passagem pelo controlo de segurança.
— Não, mas há muito tempo que não vinha aqui.
— Decididamente crescemos desde a última vez que vieste. Não tivemos outro remédio. Todos os dias levamos a cabo operações no Afeganistão, Paquistão, Iémen, Síria, Somália e Líbia.
Parecia um agente de vendas a vangloriar-se da expansão sem precedentes da sua empresa.
— E agora também em Marrocos — acrescentou Navot baixinho, convidando-o a continuar a falar.
— A verdade é que, tendo em conta quão delicado é o assunto do ponto de vista político, muito poucas pessoas estão a par dele, até aqui, no Centro — acrescentou Taylor. — O acesso é muito restrito. Estamos a usar uma das nossas salas de operações mais pequenas. Completamente opaca.
Conduziu Navot por um corredor ladeado de portas numeradas atrás das quais analistas e operadores sem rosto nem nome rastreavam terroristas e conspiradores por todo o globo terrestre. Ao fundo do corredor havia um curto lanço de escadas metálicas e outro posto de controlo pelo qual Taylor e Navot passaram sem parar. Acima havia um hall mal iluminado e uma porta que só se abria através de um código de segurança. Taylor marcou rapidamente o código no painel e fixou o olhar na lente do leitor biométrico. Segundos depois, a porta abriu-se com um estalido.
— Bem-vindo ao Buraco Negro — comentou ao fazer Navot entrar. — Os outros já cá estão.
Taylor apresentou-lhe Graham Seymour, esquecendo quiçá (ou quiçá não) que se conheciam há muito tempo e, de seguida, Paul Rousseau.
— Sei que já conheces o Adrian.
— E muito bem, aliás — afiançou Navot, aceitando a mão que Carter lhe estendia. — Eu e o Adrian superámos, juntos, várias guerras, e temos cicatrizes que o atestam.
Os seus olhos demoraram uns instantes a acostumar-se por completo à penumbra. No exterior despontava o que prometia vir a ser um opressivo dia de verão, mas ali, naquela sala de operações de acesso restrito, no mais profundo de Langley, reinava uma noite eterna. Sentados diante de várias mesas, em redor da sala, havia alguns técnicos cujos rostos juvenis eram iluminados pelo resplendor dos ecrãs de computador. Dois deles vestiam um macacão de aviador: eram os responsáveis por pilotar os dois drones que, naquele momento, sobrevoavam a parte oriental de Marrocos sem conhecimento do governo marroquino. As imagens enviadas pelas câmaras de alta resolução dos dois aparelhos tremeluziam nos ecrãs, na parte da frente da sala. O Predator, com os seus dois mísseis Hellfire, estava já sobre Erfoud. Pelo contrário, o Sentinel permanecia a sudeste de Fez, de onde a sua câmara focava claramente o Hotel Palais Faraj. Navot viu Christopher Keller e Jean-Luc Martel surgirem no pátio da frente do hotel. Uns segundos depois, dois Mercedes passaram debaixo de uma arcada e rumaram para sul, para as montanhas.
Navot sentou-se junto de Graham Seymour. Kyle Taylor levara Adrian Carter para um recanto da sala para o consultar sobre algum assunto privado. A tensão que havia entre eles saltava à vista.
— Alguma ideia sobre quem comanda as tropas? — perguntou Navot.
— Por enquanto — respondeu Graham Seymour —, eu diria que é o Gabriel que tem a faca e o queijo na mão.
— Até quando?
— Até o Saladino aparecer. Se isso acontecer — acrescentou Seymour —, vale tudo.
O trânsito na Ville Nouvelle era um pesadelo. Nem sequer na parte velha de Fez parecia haver forma de evitá-lo. Passado um tempo, os edifícios comerciais foram ficando para trás e começaram a aparecer pequenos terrenos cultivados e prédios de habitação de construção recente. Eram blocos de três andares, envelhecidos antes de tempo, com garagens no piso térreo. A maioria das garagens tinha sido convertida em minúsculas lojas ou restaurantes, ou serviam como chiqueiros para guardar animais. As ovelhas e as cabras pastavam entre as oliveiras acabadas de plantar, e as famílias faziam refeições campestres debaixo de qualquer sombra que encontrassem.
Pouco a pouco, o terreno foi-se inclinando para os longínquos cumes do Médio Atlas e os olivais deram lugar aos densos arvoredos de alfarrobeiras, argânias e pinheiros de Alepo. As águias voavam em círculos, à procura de chacais. E, por cima das águias, pensou Christopher Keller, os drones procuravam Saladino.
A primeira vila de alguma importância era Imouzzer. Construída pelos franceses, estava povoada por uns treze mil membros da tribo berbere de Aït Seghrouchen, que falavam um dialeto da antiga língua berbere. Ali, a temperatura descia vários graus (estavam já a uns mil e duzentos metros de altitude) e os souks e cafés exclusivos para homens da rua principal estavam a abarrotar de gente. Keller estudou as caras de jovens e velhos por igual. Eram muito diferentes das caras que vira em Casablanca e em Fez. Traços europeus, cabelo e olhos mais claros. Era como se tivessem atravessado uma fronteira invisível.
Precisamente nesse momento o seu telemóvel vibrou: acabava de receber uma mensagem. Leu-a e olhou para Martel.
— Os nossos amigos têm a impressão de que nos estão outra vez a seguir. Acham que podia ser o mesmo homem que nos seguiu ontem em Mequinez e Volubilis. Gostavam de ter um retrato mais claro dele.
— O que é que pretendem?
Keller mandou o condutor parar num quiosque, nos arredores da povoação. O carro em que iam Mikhail, Natalie e Olivia parou atrás e, a seguir, parou um Renault empoeirado. Keller conseguiu ver o passageiro pelo retrovisor lateral: cabelo escuro e muito curto, bochechas largas, óculos de sol, boné de basebol americano. O condutor, pelo contrário, não se conseguia avistar.
— Traga-nos duas garrafas de água — ordenou a Martel.
— Esta terra não é muito hospitaleira por assim dizer.
— Aposto que saberá defender-se.
Martel saiu e aproximou-se do quiosque. Keller voltou a olhar pelo retrovisor e viu que o passageiro saía do Renault. Quando passou junto do Mercedes, tirou-lhe uma fotografia através da janela fumada da parte de trás. Saiu tão desfocada que era inútil. Mas, pouco depois, quando o homem regressou ao Renault, Keller conseguiu fotografar claramente a sua cara. Mostrou a fotografia a Martel quando o francês regressou ao lugar de trás do carro com duas pegajosas garrafas de água mineral Sidi Ali.
— É ele, não há dúvida — disse Martel. — É o que vi no Rife no inverno passado, com o Khalil.
Enquanto o carro se afastava da berma, Keller mandou a fotografia para o posto de comando de Casablanca. Depois voltou a olhar pelo retrovisor lateral. O outro Mercedes estava mesmo atrás deles. E atrás do Mercedes circulava um Renault coberto de pó com dois homens lá dentro.
Os muitos anos de cooperação, com frequência polémica, entre a CIA e a DST marroquina tinham granjeado a Langley o acesso à longa lista de jihadistas marroquinos e seus acólitos. Como resultado, os analistas do Centro Nacional de Antiterrorismo demoraram só uns minutos a identificar o sujeito da fotografia. Era Nazir Bensaïd, um ex-integrante da Salafia Jihadia marroquina preso depois dos atentados suicidas de 2003 em Casablanca. Posto em liberdade em 2012, Bensaïd fora para a Turquia e finalmente tinha acabado no califado do ISIS. O governo marroquino achava que continuava lá. Mas, evidentemente, estava enganado.
Uma fotografia de Bensaïd tirada na época em que foi preso apareceu naquele instante nos ecrãs do Buraco Negro do NCTC, juntamente com outra fotografia tirada em 2012, à sua chegada ao Aeroporto Ataturk de Istambul. Ambas as fotografias foram remetidas para Gabriel, que por sua vez as enviou para Keller, que confirmou que Nazir Bensaïd era o indivíduo que acabava de ver.
Mas o que é que Nazir Bensaïd estava a fazer numa vila habitada por treze mil berberes, nas montanhas do Médio Atlas? E porque é que os estava a seguir até Erfoud? Havia a possibilidade de que tivesse regressado a Marrocos clandestinamente e tivesse integrado o cartel de Mohammad Bakkar. Mas a explicação mais provável era que estivesse a velar pelos interesses do sócio de Bakkar, aquele iraquiano alto que se fazia chamar Khalil e coxeava ao andar.
Dentro do Buraco Negro, os técnicos marcaram digitalmente o Renault sedan e os seus dois ocupantes, enquanto em Fort Meade, Maryland, a NSA captava o sinal emitido pelos seus telemóveis. Adrian Carter ligou para o sexto andar para dar a notícia ao diretor da CIA, Morris Payne, que rapidamente a transmitiu à Casa Branca. Às sete e meia, hora de Washington, o presidente reuniu-se com o seu conselho de segurança na Sala de Crise, a cujos ecrãs chegavam as imagens emitidas pelos dois drones.
Na Casa dos Espiões de Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman também observavam os ecrãs, enquanto do outro lado do corredor os dois guardas da propriedade rezavam para afugentar os demónios surgidos do fogo. Através dos altifalantes do seu computador portátil, Gabriel ouvia a conversa excitada que reinava no NCTC de Langley. Desejava poder partilhar o seu otimismo, mas era-lhe impossível. A operação na sua totalidade estava agora nas mãos de um homem que tinha enganado e chantageado para que obedecesse às suas ordens. Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, relembrou. Às vezes, são eles que nos escolhem a nós.
53
ERFOUD, MARROCOS
Os jipes esperavam numa praça soalheira e poeirenta, em frente do Café Dakkar de Erfoud. Eram Toyotas Land Cruiser de um branco impoluto, acabados de lavar. Os condutores vestiam calças de algodão e coletes caqui, e exibiam a eficácia sorridente dos guias turísticos profissionais. Mas não o eram. Eram homens de Mohammad Bakkar.
A sul de Erfoud estendia-se o grande oásis de Tafilalet, com os seus palmeirais infinitos: oitocentas mil palmeiras ao todo, segundo o guia em francês que Natalie segurava com força entre as mãos. Enquanto olhava pela janela, pensou de novo naquela noite em Palmira e no seu sonho dessa manhã. Saladino a andar ao seu lado sob um luar violento, com a sua cabeça na mão... Desviou o olhar e viu que Olivia a observava com curiosidade do outro lado no banco de trás do Toyota.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
Em silêncio, Natalie olhou fixamente em frente. Mikhail ia no lugar do copiloto, junto ao condutor. O segundo Toyota, que levava Keller e Jean-Luc Martel, circulava uns cem metros à frente. Atrás, a estrada estava deserta. Nem sequer se via o Renault que os tinha seguido desde Fez.
As palmeiras diminuíram e a paisagem tornou-se íngreme e rochosa. A estrada de asfalto terminava em Rissani, e pouco depois apareceu o grande mar de areia de Erg Chebbi. A aldeia de Khamlia, um conjunto de casas baixas, da cor do barro, estendia-se ao sul das dunas. Ali, abandonaram a estrada principal e seguiram por um caminho cheio de buracos. Natalie vigiava o avanço através do telemóvel: eram um ponto azul que atravessava as terras despovoadas, a caminho da fronteira argelina. Depois, de repente, o ponto azul parou: tinham abandonado a zona com rede. Mikhail tinha levado um telemóvel por satélite para o caso de isso acontecer. Estava atrás de Natalie, na mesma mala do que a Beretta.
Continuaram a avançar durante meia hora, enquanto à sua volta o sol poente tingia de vermelho tijolo as grandes dunas esculpidas pelo vento. Passaram junto a um pequeno acampamento de nómadas berberes que estavam a ferver água para o chá à entrada de uma tenda de pelo de camelo preto. Para além disso, não se via vivalma, só as dunas altas como montanhas e o vasto céu protetor. Aquele vazio era insuportável. Natalie, apesar de estar junto de Olivia e de Mikhail, sentia-se dolorosamente só. Pôs-se a olhar para as fotografias do seu telemóvel, mas eram lembranças da Madame Sophie, não suas. Mal se conseguia lembrar da quinta de Nahalal. O Centro Médico Hadassah, o seu antigo trabalho, tinha-se esbatido quase por completo na sua memória.
Por fim, surgiu o acampamento, um conjunto de tendas coloridas dispostas ao abrigo de uma duna. Outro Land Cruiser branco tinha chegado antes deles. Natalie calculou que fosse a equipa. Deixou que um dos empregados vestidos com um turbante tratasse das suas malas. Mikhail, pelo contrário, adotando o ar arrogante de Dmitri Antonov, levou ele próprio a sua bagagem. Havia três tendas montadas à volta de um pátio central e uma quarta, com casa de banho e chuveiro, erguia-se um pouco mais longe. O pátio estava coberto por tapetes e enfeitado com grandes almofadas, e dois sofás rodeavam uma mesa baixa e comprida. As tendas também estavam atapetadas e mobiladas com autênticas camas e secretárias. Não havia qualquer indício de eletricidade, só velas e uma grande fogueira no pátio que projetava sombras sobre o sopé da duna. Natalie contou seis homens ao todo. Dois carregavam à vista as respetivas armas automáticas. Deduziu que os restantes também estivessem armados.
Com o pôr-do-sol, o ar começou a arrefecer. Na sua tenda, Natalie vestiu uma camisola polar e depois foi tomar banho para o jantar. Olivia juntou-se a ela um instante depois.
— O que é que estamos aqui a fazer? — perguntou baixinho.
— Convidaram-nos para um encantador jantar no deserto — respondeu Natalie.
Os seus olhos encontraram-se com os de Olivia no espelho.
— Por favor, diz-me que nos estão a vigiar.
— Claro que sim. E também nos estão a ouvir.
Saiu sem dizer mais nada e encontrou a mesa posta para um banquete marroquino. Os empregados mantiveram-se afastados, embora aparecessem de vez em quando para lhes encherem os copos com um chá adocicado de hortelã-pimenta. Apesar de tudo, Natalie, Mikhail e Christopher Keller cingiram-se aos seus papéis. Eram Sophie e Dmitri Antonov e o seu amigo e sócio, Nicolas Carnot. Tinham-se instalado em Saint-Tropez naquele verão e, depois de diversas vicissitudes, tinham conhecido Jean-Luc Martel e a sua glamorosa esposa, Olivia Watson. E agora, pensou Natalie, estavam os cinco nos confins da Terra, à espera de que um monstro surgisse da noite.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
Pouco depois das nove, os empregados recolheram as travessas de comida. Natalie mal tinha comido. Sozinha, aproximou-se do acampamento para fumar um dos Gitanes da Madame Sophie. Parou no lugar em que acabava a luz do fogo e começava a escuridão. Estava, pensou, na ponta do mundo. A uns quarenta ou cinquenta metros dali, um dos homens armados montava guarda no deserto. Vestia a túnica branca e o turbante de um berbere do sul. Fingindo que não o via, Natalie atirou a beata para o chão e começou a andar pela areia. O guarda, sobressaltado, atravessou-se à sua frente e indicou-lhe que regressasse ao acampamento.
— Mas quero ver as dunas — disse ela em francês.
— Não é permitido. Pode vê-las de manhã.
— Prefiro vê-las agora — respondeu. — De noite.
— É perigoso.
— Pois acompanhe-me. Assim não será perigoso.
Sem mais, começou a andar de novo pelo deserto, seguida pelo guarda berbere. As suas vestimentas resplandeciam e a sua pele, negra como o breu, não se distinguia da escuridão da noite. Natalie perguntou-lhe o nome. Disse-lhe que se chama Azûlay. Significava «o homem dos olhos bonitos».
— É verdade — comentou ela.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe — disse Natalie.
Continuaram a andar. Lá em cima, a Via Láctea cintilava qual pó de fósforo e a lua crescente brilhava com um resplendor incandescente. Em frente deles erguiam-se três dunas, ascendendo em escala de norte para sul. Natalie tirou os sapatos e, seguida por Azûlay, o Berbere, trepou à mais alta. Demorou vários minutos a chegar ao cume. Exausta, deixou-se cair de joelhos sobre a areia morna e fofa para recuperar o fôlego.
Perscrutou a paisagem com o olhar. Para poente, uma fina fileira de luzes estendia-se intermitentemente desde Erfoud, atravessando os palmeirais do oásis de Tafilalet até Rissani e Khamlia. A leste e a sul só havia deserto, mas a norte, Natalie viu uns faróis que oscilavam ao avançar para ela entre as dunas. Passado um momento, as luzes deixaram de se ver. Talvez, disse a si própria, tenha sido uma miragem, outro sonho. Depois, as luzes voltaram a aparecer.
Natalie deu meia-volta e escorregou pela ladeira da duna, até ao lugar onde tinha deixado os sapatos. Tu és a única que o consegue identificar... Mas Saladino também se lembraria dela. Porque é que não se haveria de lembrar? Afinal de contas, pensou, tinha salvado a vida daquele miserável.
54
LANGLEY, VIRGÍNIA
Os drones avistaram o veículo muito antes de Natalie, às nove e cinco, hora de Marrocos, quando virou na curva sudeste do mar de areia de Erg Chebbi. Um Toyota Land Cruiser branco com sete ocupantes. Parou no limite do acampamento e dele se apearam seis indivíduos entre os quais não se encontrava o condutor. Visto de cima através das câmaras termográficas, dava a impressão de que nenhum daqueles sujeitos coxeava. Cinco deles, visivelmente armados, permaneceram no perímetro do acampamento, enquanto o sexto entrava no pátio central, entre as tendas. Aí cumprimentou Jean-Luc Martel e, uns segundos depois, Mikhail. Como era de esperar, não havia forma de ouvir o que diziam: a falta de cobertura tinha emudecido os telemóveis. Do fundo da sala, Kyle Taylor improvisou uma possível banda sonora para o encontro.
— Mohammad Bakkar, quero apresentar-te um amigo meu, Dmitri Antonov. Dmitri, este é o Mohammad Bakkar.
— Talvez — disse Adrian Carter. — Ou talvez o Saladino tenha ajeitado um pouco a perna, tal como fez com a cara.
— Em Washington não conseguiu esconder que coxeava — assinalou Uzi Navot. — E também não o conseguiu no princípio do ano, quando o Jean-Luc Martel o viu. Para além disso, achas o Mikhail com cara de quem está a falar com o pior terrorista do mundo desde Bin Laden?
— O Mikhail sempre me pareceu um tipo bastante frio — comentou Carter.
— Não é assim tão frio.
Contemplavam a cena através da câmara do Sentinel. Mikhail, esverdeado e envolvido numa refulgente auréola de calor corporal, estava de pé a uns passos da fogueira. Com os braços cruzados, falava com uma calma visível com o recém-chegado. Keller e Olivia já tinham saído do pátio central e tinham entrado numa das tendas. Natalie, depois de regressar do seu passeio pelas dunas, tinha-se juntado a eles. Entretanto, o Predator examinava o deserto que os rodeava. Não havia sinal de outras fontes de calor.
Navot virou-se para Kyle Taylor.
— A NSA identificou outro telemóvel dentro do acampamento?
— Estão a tratar disso.
— É estranho, não achas?
— O quê?
— Não são assim tão difíceis de localizar. Para nós é fácil, mas para vocês é ainda mais fácil.
— A não ser que o telemóvel esteja desligado e lhe tenham extraído o cartão SIM.
— E os telemóveis via satélite?
— Esses são fáceis de localizar.
— E porque é que o Mohammad Bakkar não tem sempre um? É bastante perigoso andar pelo deserto sem telemóvel, não achas?
— O Saladino sabe que um telemóvel equivale a uma sentença de morte.
— É verdade — concordou Navot. — Mas como é que o Bakkar pensa avisá-lo de que pode ir para o acampamento? Através de um pombo-correio? Ou de sinais de fumo?
— Onde é que queres chegar, Uzi?
— O que quero dizer é que o Mohammad Bakkar não anda com um telemóvel via satélite porque não precisa dele para avisar o Saladino.
— Porquê?
— Porque já lá está. — Navot apontou para o ecrã. — Está sentado ao volante do Toyota.
55
SAARA, MARROCOS
A descrição física que Jean-Luc Martel fizera de Mohammad Bakkar demonstrou estar certa, pelo menos num sentido: o marroquino das montanhas do Rife era baixo (media à volta de um metro e sessenta) e de constituição forte. O seu fanatismo religioso não era evidente à primeira vista. Não usava kufi, nem barba desgrenhada, e fumava um cigarro, transgredindo as leis do Estado Islâmico, que tinha proibido o tabaco. Vestia roupa europeia e cara: um casaco de caxemira com o fecho subido, umas calças de sarja engomadas com esmero e uns mocassins de camurça completamente inadequados para o deserto. O seu relógio de pulso, cuja esfera cintilava ao refletir a luz do fogo, era grande, suíço e de ouro. O seu francês era excelente, tal como o seu inglês, idioma do qual se servia para se dirigir a Mikhail.
— Monsieur Antonov, quanto me apraz que, por fim, nos tenhamos conhecido. Tenho ouvido falar muito de si.
— O Jean-Luc?
— O Jean-Luc não é o meu único amigo em França — respondeu o marroquino com um ar cúmplice. — Causou sensação na Provença este verão.
— Não era essa a minha intenção.
— Não? — Bakkar sorriu afavelmente. — As suas festas causavam furor. Os episódios que se contavam chegaram até Marraquexe. Que escândalo!
— Há que viver a vida.
— Claro que sim. Mas tem de haver certos limites, não lhe parece?
— Nunca tinha pensado nisso.
Mohammad Bakkar sorriu.
— Espero que tenham gostado do jantar.
— Foi magnífico.
— Gosta da cozinha marroquina?
— Muito.
— Já tinha visitado Marrocos anteriormente?
— Não, nunca.
— Como é possível? O meu país é muito querido entre os europeus cosmopolitas.
— Entre os russos, não.
— Tem razão. Os russos preferem a Turquia, não sei porquê. Mas, na realidade, o senhor não é russo, pois não, Monsieur Antonov? Já não.
Mikhail sentiu que o seu coração batia com violência nas costelas.
— Continuo a ter passaporte russo — respondeu.
— Mas a sua casa é em França.
— Por agora.
Mohammad Bakkar pareceu considerar a sua resposta mais tempo do que requeria.
— E o acampamento? — perguntou a olhar à sua volta. — É do seu agrado?
— Muito, sim.
— Tentei que fosse o mais tradicional possível. Espero que não o incomode que não tenha eletricidade. Os turistas vêm ao Saara à espera de encontrar todas as comodidades da vida ocidental. Luz elétrica, telemóveis, Internet...
— Aqui não há Internet. — Mikhail levantou o telemóvel. — E isto não serve para nada.
— Sim, eu sei disso. Por isso, escolhi este lugar.
Mikhail levantou-se e fez um movimento para sair.
— Onde é que vai? — perguntou Bakkar.
— O senhor e o Jean-Luc têm de falar de negócios.
— Mas esses negócios dizem-lhe respeito a si. Pelo menos, em parte. — Indicou-lhe os sofás. — Sente-se, por favor, Monsieur Antonov. — Sorriu de novo. — Insisto.
Do posto de comando em Casablanca, Gabriel viu Mikhail sentar-se num dos sofás. Apareceu então um membro do serviço e serviu o chá. No lado direito da imagem, dentro de uma das tendas, apreciavam-se as silhuetas termográficas de três pessoas. Duas delas correspondiam, visivelmente, a mulheres. A outra era a de Christopher Keller. Um momento antes, Gabriel tinha enviado uma mensagem criptográfica para o telemóvel via satélite de Keller, fazendo referência à possível identidade do homem sentado ao volante do Toyota Land Cruiser que acabava de chegar. Keller mexia agora as mãos, manipulando algo que Gabriel não conseguia ver: o frio metal não era visível através das câmaras de infravermelhos.
Keller guardou o objeto nas costas, à altura dos rins, e aproximou-se com prontidão da entrada da tenda, onde permaneceu uns segundos, provavelmente a observar o panorama operacional. Depois pegou no telemóvel via satélite e tocou no ecrã. Segundos depois, chegou uma mensagem ao computador de Gabriel.
QUANDO VOCÊS ESTIVEREM PRONTOS, TAMBÉM ESTOU.
Com a ajuda dos drones, Gabriel estudou por sua vez o local. Quatro homens montavam guarda no deserto, à volta do acampamento: norte, sul, este e oeste, como pontos de uma bússola. Estavam todos armados. Os homens que tinham chegado com Mohammad Bakkar também traziam armas. Havia a possibilidade de o próprio Bakkar estar armado. Mikhail, temendo que as escoltas do marroquino o revistassem, não tinha nenhuma arma. Ou seja, eram dez contra um, no mínimo. Era muito provável que Keller e o resto da equipa não sobrevivessem a um tiroteio a tão curta distância, nem sequer estando presente o agente que tinha conseguido a nota mais alta na história da célebre Killing House do SAS. Para além disso, era possível que Uzi Navot e Langley estivessem enganados em relação à identidade do ocupante do Toyota. Convinha deixar que as coisas seguissem o seu curso. Que Saladino se deixasse ver e que fosse abatido em algum lugar onde não houvesse risco de danos colaterais. Por enquanto, aquele lugar remoto do canto mais escuro do sudeste de Marrocos jogava contra ele. Mas não por muito tempo. Em breve, disse Gabriel a si próprio, o deserto passaria a ser seu aliado.
Mandou Keller continuar à espera e pediu a Langley que focasse as câmaras do drone no Land Cruiser estacionado no limite do acampamento. A imagem apareceu no seu monitor um momento depois, por cortesia do Predator. O homem vestia uma jilaba com capuz e tinha ambas as mãos apoiadas no volante. Não estava a fumar. Gabriel calculou que, em algum momento, se iria reunir com os outros. Para fazê-lo, teria de sair do veículo e percorrer a pé uma curta distância. E então ele, Gabriel, saberia se era mesmo Saladino. Havia muitas formas de alterar a aparência física de um homem, disse a si próprio. O cabelo podia ser cortado ou pintado, e as feições podiam ser transformadas através de uma cirurgia plástica. Mas uma perna manca a coxear como a de Saladino era para sempre.
56
SAARA, MARROCOS
Ao princípio, Mohammad Bakkar falou unicamente em darija, e só com Jean-Luc Martel. Era evidente pela sua atitude e pelo seu tom que estava zangado. Enquanto trabalhava na Sayeret Matkal, Mikhail tinha aprendido um pouco de árabe palestiniano, o suficiente para se safar durante os ataques noturnos a Gaza, à Cisjordânia e ao sul do Líbano. Não falava árabe com fluência, longe disso; nem sequer dava para conversar minimamente. Ainda assim, conseguiu entender em linhas gerais o que dizia o marroquino das montanhas do Rife. Ao que parece, vários carregamentos importantes de um produto misterioso tinham desaparecido recentemente em circunstâncias inexplicáveis. As perdas, que a organização de Bakkar sofrera, eram substanciais: ascendiam, de facto, a centenas de milhões. Em algum lugar, afirmou, houvera uma fuga. E não fora no seu território. Evidentemente, dominava a sua organização com mão de ferro. Portanto, o erro tinha de ser de Martel. Bakkar deu a entender que tinha sido intencional. Afinal de contas, o francês nunca vira com bons olhos a rápida expansão do negócio que partilhavam. Teria de o compensar de alguma forma. Caso contrário, Bakkar procuraria outro distribuidor para a sua mercadoria e deixaria Martel de fora.
Seguiu-se uma violenta discussão. Martel, a falar velozmente em árabe marroquino, insinuou que o culpado das apreensões era o próprio Mohammad Bakkar. Recordou-lhe que, por aquele mesmo motivo, se tinha oposto a que se aumentasse drasticamente a quantidade de mercadoria que entrava na Europa. Segundo os seus cálculos, tinham perdido mais de um quarto da produção devido às apreensões, em vez dos habituais dez por cento, uma taxa sustentável a longo prazo. A única solução era aplicar a prudência. Enviar carregamentos com quantidades inferiores e prescindir de navios mercantes. Foi, pensou Mikhail, uma atuação impressionante por parte de Martel. Um espião veterano não o teria feito melhor. Quando a intervenção do francês findou, Mohammad Bakkar parecia convencido de que tanto ele como a sua organização eram os responsáveis, até certo ponto, pelas fugas. Resolveu ir ao fundo da questão. Entretanto, tinha vinte toneladas de género acumuladas nas fábricas clandestinas do Rife, a aguardarem remessa. Estava ansioso por expedi-las. Evidentemente, precisava de novos fundos.
— Não quero assumir sozinho todo o custo da última catástrofe. Não é justo.
— Estou de acordo — conveio Martel. — O que é que tinhas pensado?
— Um aumento de preço de cinquenta por cento. Só desta vez.
— Cinquenta por cento! — Martel fez um gesto desdenhoso com a mão. — Que loucura.
— É a minha última oferta. Se queres continuar a ser meu distribuidor, aconselho-te a aceitares.
Não era a última oferta de Mohammad Bakkar, longe disso. Martel sabia-o, tal como o sabia o próprio Bakkar. Afinal de contas, estavam em Marrocos. Havia que regatear até para que te passassem o pão ao jantar.
Continuaram a discutir durante uns minutos, durante os quais os cinquenta por cento passaram a ser quarenta e cinco, depois quarenta e, por último e depois de um olhar de exasperação lançado para o céu, trinta. Enquanto isso, Mikhail não parou de vigiar o homem que, por sua vez, o vigiava a ele. O homem sentado ao volante do Toyota, de onde via sem obstáculos o pátio central do acampamento. Vestia uma jilaba com um capuz pontiagudo e a sua cara estava envolvida em sombras profundas. Ainda assim, Mikhail sentia o peso como chumbo do seu olhar. E sentia também a ausência de uma arma à altura dos seus rins.
— Khalas — disse Bakkar, por fim, esfregando as mãos. — Que seja vinte e cinco, a pagar no momento de entrega da mercadoria. É pouquíssimo, mas que remédio tenho eu? Queres que também te dê a minha camisa, Jean-Luc? Posso sempre arranjar outra.
Martel sorria. Mohammad Bakkar selou o acordo com um aperto de mãos e, de seguida, virou-se para Mikhail.
— Desculpe, mas eu e o Jean-Luc tínhamos de debater um assunto muito sério.
— Era o que parecia.
— Não fala árabe, Monsieur Antonov?
— Não.
— Nem um pouco?
— Até pedir um café me custa.
Mohammad Bakkar assentiu, compreensivo.
— Cada país tem a sua forma de pronunciar. Um egípcio vê o mundo de maneira diferente de um marroquino, um jordano ou, por exemplo, um palestiniano.
— Ou um russo — riu Mikhail.
— Que vive em França.
— O meu francês é quase tão mau como o meu árabe.
— Então, falemos inglês.
Fez-se um silêncio.
— O que é que o Jean-Luc lhe contou sobre os nossos negócios? — perguntou Bakkar, por fim.
— Muito pouco.
— Mas deve ter alguma ideia, sem dúvida.
— Laranjas — respondeu Mikhail. — O senhor é o fornecedor das laranjas que abastecem os restaurantes e os hotéis do Jean-Luc.
— Laranjas e romãs — disse Bakkar num tom cordial. — Em Marrocos existem umas romãs ótimas. As melhores do mundo, na minha opinião. Mas as autoridades europeias não querem as nossas laranjas nem as nossas romãs. Ultimamente, temos perdido vários carregamentos. Eu e o Jean-Luc estávamos a discutir o que aconteceu e as medidas a tomar a esse respeito.
Mikhail ouvia-o com um semblante inexpressivo.
— Infelizmente, não perdemos só fruta nessas apreensões. Também perdemos algo insubstituível. — Bakkar olhou-o com um ar calculista. — Ou talvez não.
Pediu mais chá. Mikhail dirigiu um olhar ao ocupante do Toyota, enquanto enchiam os copos.
— A que tipo de negócios é que se dedica exatamente, Monsieur Antonov?
— Perdão?
— Os seus negócios — repetiu Bakkar. — A que é que se dedica exatamente?
— Às laranjas — respondeu Mikhail. — E às romãs.
Bakkar sorriu.
— Eu tinha entendido — disse — que traficava armas.
Mikhail não disse nada.
— É um homem prevenido, Monsieur Antonov. É um traço admirável.
— Para além de ser bom para o negócio. Assim perdem-se menos carregamentos.
— Portanto, é verdade!
— Dedico-me aos investimentos, Monsieur Bakkar. E, às vezes, faço negócios que implicam a transferência de bens da Europa de Leste e das repúblicas da antiga União Soviética para lugares problemáticos em diversas partes do mundo.
— Que tipo de bens?
— Use a sua imaginação.
— Armas?
— Armamento — respondeu Mikhail. — As armas representam uma parte mínima do negócio.
— De que tipo de mercadoria estamos a falar?
— De tudo, desde Kalashnikovs a helicópteros ou a aviões de combate.
— Aviões? — perguntou Bakkar, incrédulo.
— Gostava de ter um? Ou talvez prefira um tanque ou um Scud. Este mês temos uma oferta especial. Eu, se fosse a si, faria o pedido hoje mesmo. Não vão durar muito.
— Não seriam para mim — afirmou Bakkar levantando as mãos. — Mas um dos meus sócios poderia estar interessado.
— Nos Scuds?
— As necessidades dele são muito específicas. Mas prefiro que ele próprio lhe explique isso.
— Para já não — disse Mikhail. — Primeiro, conte-me um pouco mais sobre esse seu sócio. Depois decidirei se me quero reunir com ele.
— É um revolucionário — afirmou Bakkar. — Com uma causa justa, garanto-lhe.
— Como de costume — replicou Mikhail com ceticismo. — De onde é que é?
— Não tem país, no sentido ocidental da palavra. As fronteiras não significam nada para ele.
— Que interessante. Mas onde é que teria de lhe levar as armas?
Bakkar ficou sério, de repente.
— Sem dúvida que tem consciência de que o caos político que aflige há um tempo a nossa região tem apagado muitas das antigas fronteiras traçadas pelos diplomatas em Paris e Londres. O meu sócio procede de um desses lugares. Um lugar muito conflituoso.
— Os conflitos são o que me mantém à tona.
— Era o que me parecia — afirmou Bakkar.
— Como é que se chama o seu sócio?
— Pode chamar-lhe Khalil.
— E antes do caos? — perguntou Mikhail de imediato, como se esse nome não lhe dissesse nada. — De onde era?
— Em criança vivia à beira de um dos rios que emanavam do Jardim do Éden.
— Eram quatro — afirmou Mikhail.
— Efetivamente. O Pison, o Ghion, o Eufrates e o Tigre. O meu sócio vivia à beira do Tigre.
— De maneira que é iraquiano.
— Foi-o em tempos. Já não. Agora é súbdito do califado islâmico.
— Imagino que não se encontra no califado neste momento.
— Não. Está ali. — Bakkar inclinou a cabeça para o Toyota. Depois olhou para Mikhail e perguntou: — Está armado, Monsieur Antonov?
— Claro que não.
— Importa-se que um dos meus homens o reviste? — Bakkar sorriu cordialmente. — Afinal de contas, é um traficante de armas.
Reuniram-se junto à porta do condutor do Toyota: cinco homens ao todo — contou Gabriel —, todos eles armados. Por fim, a porta abriu-se e o ocupante do carro saiu com uma certa dificuldade. Permaneceu mais um pouco perto do veículo, rodeado de guardas, enquanto Mikhail era revistado minuciosamente. Só quando o acabaram de revistar, avançou para o centro do acampamento. Os guardas armados formavam um círculo apertado à sua volta. Ainda assim, Gabriel conseguiu ver que carregava o peso do corpo na perna direita. O primeiro passo do processo de identificação tinha-se verificado com sucesso. O segundo, pelo contrário, não se podia fazer tão de cima, servindo-se do drone americano. Só serviria um encontro cara a cara.
Gabriel enviou uma mensagem a Christopher Keller informando-o de que o sujeito acabava de entrar no acampamento e coxeava visivelmente ao caminhar. Viu então que estendia a mão ao agente dos serviços secretos israelitas.
— Dmitri Antonov — disse Gabriel baixinho —, permita-me apresentar-lhe o meu amigo Saladino. Saladino, este é o Dmitri Antonov.
Havia, naquele remoto acampamento do deserto, dois agentes israelitas que podiam efetuar a verificação necessária para lançar uma operação de assassinato seletivo em território de um aliado intermitente na guerra contra o terror. O primeiro estava sentado à frente do sujeito em questão, desarmado e sem dispositivo algum de comunicação. O segundo estava a escassos metros dali, numa tenda confortavelmente mobilada. O agente do exterior, sozinho, só vira o alvo pessoalmente de forma fugaz num afamado restaurante de Georgetown. A agente refugiada na tenda tinha passado, pelo contrário, vários dias com o sujeito numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, e tinha falado com ele durante muito tempo. E numa cabana no sopé das montanhas Shenandoah, na Virgínia, tinha-o ouvido pronunciar a sua sentença de morte. Nunca esqueceria aquele som. Nem sequer precisou de lhe ver a cara para saber que era ele: disse-lho a sua voz.
Havia um terceiro agente que também tinha visto o sujeito pessoalmente: era aquele que esperava ansiosamente numa casa assombrada num antigo bairro colonial em Casablanca. Quando a confirmação de que, efetivamente, era ele chegou ao seu computador, Gabriel remeteu-a de imediato para o Buraco Negro de Langley.
— Apanhámo-lo! — gritou Kyle Taylor.
— Ainda não — advertiu-o Uzi Navot com o olhar fixo no ecrã. — Nada disso. Nem pouco mais ou menos.
CONTINUA
41
CÔTE D’AZUR, FRANÇA
Havia uma parte de Paul Rousseau que não tinha estômago para o acordo que tinha de ser feito. Jean-Luc Martel, diria ele mais tarde, era a prova cabal de que a França errara ao acabar com a guilhotina. Mas Khalil, o iraquiano (Khalil cujo rosto fora alterado, Khalil que ao caminhar coxeava) valia bem o preço. A coerção, só por si, não seria suficiente para arrastar Martel até à linha de meta. Teria de ser transformado num colaborador pleno do Grupo Alpha («um agente dos serviços secretos franceses, deus me livre», lamentou-se Rousseau) e apenas uma promessa de imunidade total para uma possível acusação seria suficiente para assegurar a sua cooperação inabalável. Rousseau não tinha poder para fazer tal promessa; só um ministro a poderia fazer. O que colocava Rousseau perante um dilema adicional, pois o seu ministro continuava a não saber nada da operação. Era sobejamente sabido que o ministro era um homem que não gostava de surpresas. Talvez nesse caso conseguisse abrir uma exceção.
De momento, Rousseau fez das tripas coração e testou as capacidades de Martel. Falaram novamente sobre tudo, lenta e meticulosamente, para a frente, para trás, de lado, e de todas as outras formas que Rousseau, que andava à procura de alguma incongruência, de algum motivo para questionar a autenticidade da sua fonte, conseguiu imaginar. Foi dada particular atenção à ordem de trabalhos da reunião de inverno em que Khalil, o iraquiano, estivera presente, principalmente à calendarização das entregas seguintes. Estavam previstos três grandes carregamentos nos dez dias seguintes. Todos estariam escondidos no interior de navios de carga que partiriam da Líbia. Dois chegariam a portos franceses (a Marselha e à vizinha Toulon), mas o terceiro atracaria no porto italiano de Génova.
— Se essa droga desaparecer — disse Martel —, vai ser o bom e o bonito.
— Laranjas — disse Rousseau. — Laranjas.
Foi nesse momento que Gabriel se intrometeu nos procedimentos pela primeira vez. Fê-lo apenas com uma apresentação mínima e trazendo consigo várias folhas de papel em branco, um lápis e um afia. Durante a maior parte da hora seguinte, sentou-se ao lado do homem cuja vida virara do avesso e, com a sua ajuda, produziu retratos-robô das duas versões de Khalil, o iraquiano: a versão de 2012 que envergava roupas ocidentais e a versão que aparecera em Marrocos depois dos atentados de Washington envergando uma jilaba tradicional e coxeando notoriamente. Martel tinha um célebre olho para o detalhe (ele próprio o dissera muitas vezes em entrevistas à imprensa) e alegava nunca esquecer um rosto. Era também exigente, um traço que revelou plenamente quando Gabriel não conseguiu conceber um queixo adequado para a versão cirurgicamente retocada de Khalil. Passaram por três esboços antes de Martel, com inesperado entusiasmo, dar a sua aprovação.
— É ele. É o homem que vi em dezembro passado.
— Tem a certeza? — pressionou Gabriel. — Não tenha pressa. Podemos fazer outro esboço, se quiser.
— Não é necessário. Era exatamente assim.
— E o coxear? — perguntou Gabriel — Não referiu qual era a perna que estava lesionada.
— Era a direita.
— Tem a certeza disso?
— Sem qualquer dúvida.
— Ele deu alguma explicação?
— Disse que tinha sido num acidente de carro. Não disse onde.
Gabriel estudou os desenhos finais durante um longo momento antes de os levantar para que Natalie os visse. Os olhos dela arregalaram-se involuntariamente. Depois, retomando a compostura, desviou o olhar e assentiu lentamente com a cabeça. Gabriel colocou o primeiro esboço de lado e contemplou o segundo demoradamente. Era o novo rosto do terrorismo. Era o rosto de Saladino.
Arrastaram-no para o andar de cima, para o quarto da Madame Sophie, esfregaram-lhe o flanco do pescoço com batom vermelho-sangue e regaram-no com uma quantidade suficiente de perfume da Madame Sophie para que deixasse um rasto de vapor enquanto conduzia através da luz da aurora, derrotado e exausto, em direção à sua villa do outro lado da Baie de Cavalaire. Não foi sozinho. Nicolas Carnot, também conhecido como Christopher Keller, estava sentado no lugar do passageiro, com o telemóvel de Martel numa mão, uma arma na outra. Atrás deles, num segundo veículo, havia quatro agentes do Grupo Alpha. Previamente, tinham sido empregados de Dmitri Antonov na Villa Soleil. Agora, tal como Nicolas Carnot, estavam a trabalhar para Martel. As circunstâncias exatas que rodeavam a decisão de abandonar um chefe por outro eram nebulosas, mas coisas assim podiam acontecer em Saint-Tropez durante o verão.
Passavam exatamente doze minutos das cinco da manhã quando os dois veículos viraram para o caminho de acesso à villa. Olivia Watson sabia-o porque passara toda a noite deitada na cama acordada e correra para a janela do quarto ao ouvir o som das portas do carro a abrirem e fecharem no pátio. Agora, fingia dormir enquanto a cama ondulava sob o peso do seu amante errante. Ela rebolou para o outro lado e os seus olhos encontraram-se com os dele na penumbra.
— Onde é que estiveste, Jean-Luc?
— Negócios — murmurou ele. — Dorme.
— Há algum problema?
— Agora já não.
— Tentei telefonar-te, mas o meu telefone não está a funcionar. Também não há Internet e a nossa linha fixa está inativa.
— Deve ter havido alguma falha. — Os seus olhos fecharam-se.
— Porque é que o Nicolas está lá em baixo? E quem são aqueles outros homens?
— Eu explico tudo de manhã.
— Já é de manhã, Jean-Luc.
Ele ficou em silêncio. Olivia aproximou-se.
— Cheiras a outra mulher.
— Olivia, por favor.
— Quem é ela, Jean-Luc? Onde é que estiveste?
42
PARIS
O ajuste de contas que Paul Rousseau tinha estado a temer ocorreu no início dessa tarde no Ministério do Interior em Paris. Tal como Jean-Luc Martel, não enfrentou o seu destino sozinho; Gabriel foi com ele. Atravessaram o pátio lado a lado e marcharam pela grandiosa escadaria acima até ao imponente escritório do ministro, onde Rousseau, que nunca tivera tendência para conversa delicada de circunstância, confessou imediatamente os seus pecados operacionais. Os serviços secretos britânicos, disse, tinham identificado a origem das espingardas de assalto utilizadas no atentado de Londres como sendo de um franco-marroquino chamado Nouredine Zakaria, um criminoso profissional com ligações a uma das maiores redes francesas de tráfico de droga. Sem a autorização do seu chefe nem do Ministério do Interior, Rousseau e o Grupo Alpha tinham trabalhado com dois serviços aliados (os britânicos e, de forma bastante evidente, os israelitas) para se infiltrarem na supracitada rede e transformarem o seu líder num confidente. A operação, continuou ele, fora um êxito. Com base na informação fornecida pela fonte, o Grupo Alpha e os seus parceiros poderiam dizer com moderada confiança que o ISIS assumira o controlo de uma porção significativa do comércio ilícito de haxixe no Norte de África e que Saladino, o misterioso cérebro operacional iraquiano da divisão de operações externas no grupo, estava, provavelmente, escondido em Marrocos, um antigo protetorado francês.
O ministro reagiu basicamente tão bem quanto seria de esperar, que não foi nada bem. Seguiu-se um sermão, em grande medida profano. Rousseau ofereceu a sua demissão (redigira uma carta manuscrita durante a viagem da Provença para norte) e, durante um longo momento, o ministro pareceu preparado para aceitá-la. Passado muito tempo, deixou cair a carta no seu triturador de papel. A derradeira responsabilidade de proteger o solo francês de atentados terroristas, islâmicos ou outros, repousava nos ombros estreitos do ministro. Não estava disposto a perder um homem como Paul Rousseau.
— Onde é que está o Nouredine Zakaria agora?
— Desaparecido — disse Rousseau.
— Foi para o califado?
Rousseau hesitou antes de responder. Estava preparado para ofuscar os factos, mas, de forma alguma, diria uma mentira completa. Nouredine Zakaria, disse calmamente, estava morto.
— Morto como? — perguntou o ministro.
— Creio que ocorreu durante uma transação de negócios.
O ministro olhou para Gabriel.
— Suponho que o senhor teve alguma coisa a ver com isso.
— O falecimento do Zakaria precedeu o nosso envolvimento neste caso — respondeu Gabriel com uma precisão de advogado.
O ministro não se tranquilizou.
— E o líder da rede? O vosso novo confidente?
— O nome dele — disse Rousseau — é Jean-Luc Martel.
O ministro baixou o olhar e reorganizou os papéis sobre a sua secretária.
— Isso explicaria o vosso interesse no processo do Martel no dia em que o vosso quartel-general explodiu.
— Explicaria — disse Rousseau, mantendo-se firme.
— O Jean-Luc foi alvo de numerosas investigações. Todas chegaram à mesma conclusão: que não está envolvido no mundo da droga.
— Essa conclusão — disse Rousseau cuidadosamente — está errada.
— Tem a certeza disso?
— Obtive a confirmação por parte da mais alta autoridade no assunto.
— Quem?
— O próprio Jean-Luc Martel.
O ministro troçou:
— Porque é que ele lhe diria tal coisa?
— Não teve grandes hipóteses.
— Porquê?
— René Devereaux.
— O nome é-me familiar.
— Deveria ser — disse Rousseau.
— Onde é que está o Devereaux agora?
— No mesmo lugar que o Nouredine Zakaria.
— Merde — disse o ministro suavemente.
Houve um silêncio. Os fragmentos de pó flutuavam nos raios de sol que atravessavam a janela como peixes num aquário. Rousseau pigarreou delicadamente, um sinal de que estava prestes a aventurar-se a entrar em terreno traiçoeiro.
— Sei que o senhor ministro e o Martel são amigos — disse ele finalmente.
— Somos conhecidos — contestou rapidamente o ministro —, mas não somos amigos.
— O Martel ficaria surpreendido por ouvir isso. Na verdade, invocou o seu nome várias vezes, antes de finalmente aceitar cooperar.
O ministro não conseguiu ocultar a raiva contra Rousseau por lavar roupa suja francesa diante de um estrangeiro, e, para além do mais, um israelita.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou.
— Pretendo dizer — disse Rousseau — que vou precisar da cooperação permanente do Martel, o que exigirá que lhe seja concedida imunidade. Fazê-lo poderá ser um assunto sensível, dada a vossa relação, mas é necessário para que a operação possa avançar.
— Qual é o vosso objetivo?
— Eliminar o Saladino, claro.
— E pretendem utilizar o Martel nalgum tipo de função operacional?
— É a nossa única opção.
O ministro mostrou-se pensativo.
— Tem razão, conceder-lhe imunidade seria difícil. Mas se fosse o Rousseau a solicitá-la...
— Terá a documentação ao final do dia — interrompeu Rousseau. — Com franqueza, provavelmente é melhor assim. O senhor ministro não é a única pessoa do atual governo que é conhecido do Martel.
O ministro estava novamente a remexer nos papéis.
— Demos-lhe uma vasta margem de manobra quando criámos o Grupo Alpha, mas escusado será dizer que o Rousseau ultrapassou os limites da sua autoridade.
Rousseau aceitou a reprimenda com um silêncio compungido.
— Não me irão manter novamente na ignorância. Estamos entendidos?
— Sim, senhor ministro.
— Como pretende prosseguir?
— Nos próximos dez dias, o fornecedor marroquino do Martel, um homem chamado Mohammad Bakkar, vai enviar vários grandes carregamentos de haxixe a partir de portos da Líbia. É vital que os intercetemos.
— Sabe o nome das embarcações?
Rousseau assentiu com a cabeça.
— O Bakkar e o Saladino vão suspeitar de que há um informador.
— Correto.
— Vão ficar zangados.
Rousseau sorriu.
— Essa é a nossa esperança, senhor ministro.
O primeiro navio, um contentor flutuante com registo maltês chamado Mediterranean Dream, só deveria deixar a Líbia quatro dias depois. O seu ponto de partida era Khoms, um pequeno porto marítimo comercial a leste de Trípoli; após uma breve paragem na Tunísia, onde estava planeado que receberia uma carga de produto, dirigir-se-ia diretamente para Génova. Estava previsto que as outras duas embarcações, uma hasteando uma bandeira baamiana, a outra panamenha, partiriam de Sirte dali a uma semana, colocando, por conseguinte, Gabriel e Rousseau perante um pequeno dilema. Concordaram que apreender o Mediterranean Dream enquanto as outras duas embarcações ainda estavam no porto da Líbia seria um erro de cálculo, pois concederia a Mohammad Bakkar e a Saladino uma oportunidade para alterarem a rota da mercadoria. Em vez disso, aguardariam que os três navios estivessem em águas internacionais antes de dar o primeiro passo.
A demora pesou a ambos intensamente, principalmente a Gabriel, que observara o rosto retocado de Saladino emergir dos esforços da sua própria mão. Transportava sempre consigo o esboço, mesmo quando ia para a cama em Jerusalém, onde passou quatro noites agitadas ao lado da esposa. Na Avenida Rei Saul, sentou-se a ouvir relatórios intermináveis sobre assuntos que deixara nas mãos capazes de Uzi Navot, mas toda a gente conseguiu perceber que a sua cabeça não estava ali. Durante uma reunião de Conselho, a sua mente divagou enquanto os ministros discutiam incessantemente. No seu caderno desenhou um rosto. Um rosto parcialmente oculto pelo capuz de uma jilaba.
Rousseau acordou Gabriel cedo, na manhã seguinte, com notícias de que o Mediterranean Dream deixara a Tunísia durante a noite e estava agora em águas internacionais. Mas conteria efetivamente um carregamento escondido de haxixe de Marrocos? Apenas uma fonte dizia que sim, o homem que vivia à frente de Dmitri e Sophie Antonov, do outro lado da Baie de Cavalaire. O homem cujos inúmeros pecados tinham sido oficialmente perdoados e que estava agora sob controlo total e absoluto de um consórcio de três serviços secretos.
Contudo, aos olhos de um leigo, parecia não ter havido qualquer mudança exterior no seu comportamento, salvo a constante presença de Christopher Keller ao seu lado. De facto, para onde quer que Martel fosse, era certo que Keller o seguiria. Ao Mónaco e a Madrid, para duas reuniões de negócios previamente agendadas. A Genebra para uma sessão de esclarecimento com um banqueiro suíço de ética questionável. E, finalmente, a Marselha, de onde o chefe da divisão de estupefacientes ilícitos de Martel desaparecera sem deixar rasto, deixando para trás dois guarda-costas mortos na sua loja de produtos eletrónicos com vista para a Place Jean Jaurès. A polícia de Marselha acreditava que René Devereaux fora assassinado por um rival do submundo. Os parceiros de Devereaux, incluindo um tal Henri Villard, eram da mesma opinião. Durante uma reunião com Martel e Keller, num apartamento seguro próximo da Gare Saint-Charles, Villard mostrou-se nervoso quanto aos próximos carregamentos. Temia, com razão, que tivesse havido uma fuga de informação. Martel acalmou os seus medos e deu-lhe instruções para que recolhesse a carga da forma habitual. Um escrutínio minucioso da gravação captada pelo telefone do bolso de Keller (e dos movimentos e comunicações de Villard depois da reunião) sugeriu que Martel não tentara enviar um aviso clandestino à sua antiga rede. O haxixe estava a caminho, o pagamento estava programado para sair. Tanto para os traficantes como para os mestres de espionagem, tudo parecia correr sobre rodas.
A mensagem que motivaria a ação seguinte foi entregue através do canal habitual, de ministro do Interior para ministro do Interior, sem qualquer sensação indevida de urgência. Um informador que pertencia a um dos mais proeminentes gangues de droga franceses alegava que um grande carregamento de haxixe do Norte de África chegaria a Génova no dia seguinte, a bordo do Mediterranean Dream, registado como maltês. Talvez os italianos, se não tivessem nada melhor para fazer, quisessem examiná-lo. E fizeram-no, efetivamente. Na verdade, unidades da Guardia di Finanza, a agência policial italiana responsável pelo combate ao tráfico de droga, embarcaram no navio minutos após a sua chegada e começaram a forçar a abertura dos contentores. A sua busca renderia, eventualmente, quatro toneladas de haxixe marroquino, de forma nenhuma um recorde, mas uma apreensão respeitável. Depois disso, o ministro italiano telefonou ao homólogo francês e agradeceu-lhe pela informação. O ministro francês disse que ficava satisfeito por ter podido ajudar.
Embora tivesse sido uma grande notícia em Itália, a apreensão atraiu pouca atenção em França, menos ainda na antiga povoação de pescadores de Saint-Tropez. Mas, quando a polícia alfandegária francesa fez uma rusga a dois navios no dia seguinte (o Africa Star, com destino a Toulon, e o Caribbean Endeavor, com destino a Marselha), até mesmo a sonolenta Saint-Tropez ficou impressionada. O Africa Star renderia três toneladas de haxixe, o Caribbean Endeavor apenas duas. Mas também continha algo que apanhou Gabriel e Paul Rousseau de surpresa: um cilindro de chumbo, de quarenta centímetros de altura e vinte de diâmetro, escondido dentro de um rolo de cabo elétrico produzido por uma fábrica de um bairro industrial de Trípoli.
O cilindro não exibia marcas de qualquer tipo. Ainda assim, a polícia alfandegária francesa, que estava treinada para lidar com material potencialmente perigoso, sabia perfeitamente que não devia abri-lo. Efetuaram-se telefonemas, soaram alarmes e, ao início da noite, o contentor fora transportado de forma segura para um laboratório governamental francês nos arredores de Paris, onde os técnicos analisaram o pó semelhante a pó de talco que encontraram no interior. Em pouco tempo, determinaram que se tratava da substância altamente radioativa césio-137 ou cloreto de césio. Paul Rousseau e o ministro do Interior foram informados da descoberta às oito horas dessa noite e, vinte minutos depois, com Gabriel a segui-los um passo atrás, estavam a atravessar apressadamente as portas do Palácio do Eliseu para transmitir as notícias ao Presidente da República. Saladino estava a planear atacá-los novamente, desta vez com uma bomba suja.
TERCEIRA PARTE
O CANTO MAIS ESCURO
43
SURREY, INGLATERRA
Nunca se determinaria exatamente, de uma forma que satisfizesse plenamente ninguém, muito menos os franceses, como é que os americanos tinham sabido do carregamento escondido de césio. Era um daqueles mistérios que perduraria até muito depois de a poeira operacional assentar. No entanto, ouviram efetivamente falar disso (nessa mesma noite, na verdade) e, antes de o sol se erguer, exigiram que todas as partes relevantes se dirigissem para Washington para uma reunião de emergência. Graham Seymour e Amanda Wallace, os irmãos de sangue, declinaram educadamente. Perante a perspetiva de um dispositivo de dispersão radiológica nas mãos da rede de Saladino, não podiam dar-se ao luxo de serem vistos a correr até às antigas colónias para pedir ajuda. Eram totalmente a favor da cooperação transatlântica (na verdade, estavam perigosamente dependentes dela), mas, para eles, era uma simples questão de orgulho nacional. E, quando Gabriel e Paul Rousseau acrescentaram as suas objeções, os americanos rapidamente capitularam. Gabriel estava confiante nesse desfecho; tinha uma ideia bastante acertada do que os americanos queriam, em última instância. Queriam a cabeça de Saladino espetada num pau, e a única forma de a conseguirem era assumindo o controlo da operação de Gabriel. Seria melhor negar-lhes a vantagem de jogar em casa. As cinco horas de diferença horária, só por si, seriam suficientes para os manter em desequilíbrio.
Esperar uma delegação pequena seria esperar demasiado. Chegaram num avião Boeing estampado com o selo oficial dos Estados Unidos e viajaram para o local da conferência (um centro de treinos desativado do MI6, localizado numa casa senhorial vitoriana em Surrey) numa caravana comprida e ruidosa que cortou caminho através da paisagem rural como se estivesse a desviar-se de artefactos explosivos improvisados no Triângulo Sunita do Iraque ocupado. De um dos veículos saiu Morris Payne, o novo diretor da Agência. Payne era da Academia Militar dos Estados Unidos, estudara Direito numa das universidades mais conceituadas do país, trabalhara no setor privado e era um antigo membro profundamente conservador do Congresso, oriundo de uma das Dakotas. Era grande e abrupto, com um rosto que se assemelhava a uma estátua da Ilha da Páscoa e uma voz de barítono que fez estremecer as vigas do hall de entrada abobadado da casa antiga. Começou por cumprimentar Graham Seymour e Amanda Wallace (eram eles os anfitriões, afinal de contas, para não dizer família distante) antes de virar a potência máxima da sua personalidade de canhão de água para Gabriel.
— Gabriel Allon! Que bom conhecer-te finalmente. Um dos grandes. Uma lenda, verdadeiramente. Devíamos ter feito isto há muito tempo. O Adrian disse-me que estiveste na cidade e não vieste ver-me. Não vou levar a mal. Sei que tu e o Adrian têm uma longa história de colaboração. Fizeram um bom trabalho juntos. Espero que continuemos essa tradição.
Gabriel recuperou a sua mão e olhou para os homens que rodeavam o novo diretor dos serviços secretos mais importantes do mundo. Eram jovens, enxutos e duros, ex-militares como o seu patrão, todos bem treinados nos rudes golpes do combate burocrático de Washington. A mudança em relação à administração anterior era impactante. Se havia um lado positivo era que todos eles gostavam razoavelmente de Israel. Talvez gostassem demasiado, pensou Gabriel. Eram a prova viva de que era necessário ter cuidado com o que se desejava.
O facto de Adrian Carter não se encontrar entre os que estavam na órbita próxima do diretor era revelador. Estava, naquele momento, a sair de um jipe, juntamente com os restantes operacionais seniores. A maioria era desconhecida para Gabriel. Contudo, ele reconheceu um. Era Kyle Taylor, o chefe do Centro de Antiterrorismo da Agência. A presença de Taylor era um indicador perturbador das intenções de Langley; dizia-se que Taylor aniquilaria a própria mãe com um drone, se achasse que isso o faria conquistar o cargo de Carter e o seu escritório no sétimo andar. Envergava a sua ambição implacável como uma gravata cuidadosamente apertada. Contudo, Carter parecia ter acabado de ser acordado de uma sesta. Passou por Gabriel fazendo unicamente um aceno mínimo com a cabeça.
— Não te aproximes muito — sussurrou. — Posso contagiar-te.
— O que é que tens?
— Lepra.
Morris Payne estava agora a puxar repetidamente a mão de Paul Rousseau como se estivesse a tentar ganhar o seu voto. Seguindo a indicação de Graham Seymour, entrou para a sala de jantar formal do solar, que fora convertido há muito numa instalação insonorizada. Havia um cesto à entrada para telemóveis e, sobre o aparador vitoriano, uma variedade de aperitivos nos quais ninguém tocou. Morris Payne sentou-se na longa mesa retangular, flanqueado, de um lado, pelos seus assistentes jovens e duros e, do outro, por Kyle Taylor, o mestre dos drones. Adrian Carter foi relegado para a extremidade mais afastada: o local, pensou Gabriel, onde poderia fazer rabiscos a seu bel-prazer e sonhar com um emprego no setor privado.
Gabriel sentou-se no lugar que lhe fora atribuído e, imediatamente, virou ao contrário a pequena placa com o nome que algum funcionário zeloso do MI6 aí colocara. À sua esquerda, e exatamente à frente de Morris Payne, estava Graham Seymour. E à esquerda de Seymour estava Amanda Wallace, que parecia estar com medo de ser salpicada de sangue. A reputação de Morris Payne precedia-o. Durante o seu curto mandato, completara em grande medida a tarefa de transformar a CIA de serviço secreto em organização paramilitar. A linguagem de espionagem aborrecia-o. Era um homem de ação.
— Sabem que estamos todos em modo crise — começou Payne —, portanto não vou desperdiçar o tempo de ninguém. Todos vocês devem ser louvados. Preveniram uma calamidade. Ou, pelo menos, adiaram-na — acrescentou. — Mas a Casa Branca está a insistir, e, francamente, nós estamos de acordo, que Langley assuma a liderança disto e leve a operação para casa. Com todo o respeito, faz mais sentido. Temos o alcance e a capacidade, e temos a tecnologia.
— Mas nós temos a fonte — replicou Gabriel. — E nem todo o alcance e tecnologia do mundo a poderão substituir. Encontrámo-lo, queimámo-lo e recrutámo-lo. É nosso.
— E agora — disse Payne — vão entregar-no-lo.
— Desculpa, Morris, mas receio que isso não vá acontecer.
Gabriel olhou de soslaio para a ponta da mesa e viu Adrian Carter a tentar conter um sorriso. Dificilmente poderia ser considerado um começo auspicioso. Infelizmente, tudo declinou rapidamente a partir daí.
Ergueram-se vozes, esmurrou-se a mesa, proferiram-se ameaças. Ameaças de retaliação. Ameaças de suspensão de cooperação e retenção de ajudas fundamentais. Há não muito tempo, Gabriel poderia ter-se dado ao luxo de expor o bluff do diretor. Agora, tinha de proceder com cautela. Os britânicos não eram os únicos que estavam dependentes do poderio tecnológico de Langley. Israel precisava dos americanos ainda mais, e, sob nenhumas circunstâncias, Gabriel poderia dar-se ao luxo de alienar o seu mais valioso parceiro estratégico e operacional. Para além disso, apesar de toda a sua arrogância e fanfarronice, Morris Payne era um amigo que, globalmente, via o mundo da mesma forma que Gabriel. O seu predecessor, um falante fluente de árabe, fizera questão de se referir a Jerusalém como Al-Quds. Definitivamente, as coisas poderiam ser piores.
Perante a sugestão de Graham Seymour, fizeram uma interrupção para comer e beber. Depois disso, o ambiente tornou-se consideravelmente mais leve. Morris Payne admitiu que, durante o voo que atravessara o Atlântico, tivera tempo de examinar o processo da CIA sobre Gabriel.
— Tenho de o dizer, foi uma leitura impressionante.
— Surpreende-me que tenham conseguido fazer o processo caber dentro do vosso avião.
O sorriso de Payne foi genuíno.
— Ambos crescemos em quintas — disse ele. — A nossa ficava num recanto remoto da Dakota do Sul e a vossa no Vale de Jezreel.
— Junto de uma povoação árabe.
— Nós não tínhamos árabes. Só ursos e lobos.
Desta vez, foi Gabriel que sorriu. Payne mordiscou a ponta de uma sandes em miniatura ressequida.
— Já operaste no Norte de África anteriormente. Pessoalmente, quero dizer. Estiveste envolvido na operação Abu Jihad, na Tunísia, em 88. Tu e a tua equipa aterraram na praia e rebentaram caminho até ao interior da villa dele. Mataste-o no escritório, à frente dos filhos. Estava a ver vídeos da Intifada nesse preciso momento.
— Isso não é verdade — disse Gabriel passado um momento.
— Que parte?
— Não matei o Abu Jihad à frente da família. A filha dele entrou no escritório depois de ele já estar morto.
— O que é que fizeste?
— Disse-lhe para ir tomar conta da mãe. E, depois, fui-me embora.
Um silêncio abateu-se sobre a divisão. Foi Morris Payne quem o quebrou.
— Achas que consegues fazer isso outra vez? Em Marrocos?
— Estás a perguntar-me se temos essa capacidade?
— Faz-me a vontade — disse Payne.
Marrocos, respondeu Gabriel, estava perfeitamente dentro do alcance operacional do Departamento.
— Vocês têm relações razoáveis com o rei — assinalou Payne. — Relações que poderiam ser ameaçadas se algo corresse mal.
— Vocês também — respondeu Gabriel.
— Têm intenção de trabalhar com os serviços marroquinos?
— Vocês trabalharam com os paquistaneses quando foram atrás do Bin Laden?
— Vou considerar isso um «não».
— Muito provavelmente — disse Gabriel —, o Saladino está escondido em circunstâncias semelhantes àquelas em que o Bin Laden vivia em Abbottabad. Mais ainda, goza da proteção de um senhor da droga, um homem que, indubitavelmente, tem amigos em posições importantes. Contar aos marroquinos sobre a operação seria como contar ao próprio Saladino.
— Tens mesmo a certeza de que ele está realmente lá?
Gabriel colocou os dois retratos-robô sobre a mesa. Bateu suavemente sobre o primeiro, Saladino como aparecera na primavera de 2012, pouco depois de o ISIS se ter instalado na Líbia.
— Parece-se muitíssimo com o homem que eu vi no átrio do Four Seasons, em Georgetown, antes do atentado. Vê as gravações de videovigilância do hotel. Tenho a certeza de que vais chegar à mesma conclusão. — Gabriel bateu suavemente no segundo retrato. — E esta é a aparência dele agora.
— Segundo um traficante de droga chamado Jean-Luc Martel.
— Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, Morris. Às vezes são eles que nos escolhem a nós.
— Confias nele?
— Nada.
— Estás preparado para ir para a guerra com ele?
— Tens uma ideia melhor?
Era óbvio que não tinha.
— E se o Saladino não morder o isco?
— Acabou de perder cem milhões de euros em haxixe. E o césio.
O americano olhou para Paul Rousseau.
— O vosso pessoal conseguiu identificar a origem?
— A explicação mais provável — disse Rousseau — é que tenha vindo da Rússia ou de uma das antigas repúblicas soviéticas ou satélites. Os soviéticos usaram o césio de forma bastante indiscriminada e deixaram recipientes da substância espalhados um pouco por todo o lado, nas regiões rurais. Também é possível que tenha vindo da Líbia. Os rebeldes e as milícias invadiram as instalações nucleares líbias quando o regime colapsou. A AIEA estava particularmente preocupada com as instalações de pesquisa de Tajura. Talvez tenhas ouvido falar delas.
Payne indicou que sim.
— Quando é que o vosso governo está a planear fazer o anúncio?
— Sobre o quê?
— O césio! — explodiu Payne.
— Não estamos.
Payne pareceu incrédulo. Foi Gabriel que explicou.
— Um anúncio alarmaria desnecessariamente o público. E, mais importante do que isso, alertaria o Saladino e a sua rede para o facto de o material radiológico ter sido descoberto.
— Então, e se houve outro carregamento de césio que conseguiu passar? O que é que vai acontecer se uma bomba suja explodir no meio de Paris? Ou de Londres? Ou de Manhattan, já agora?
— Tornar a questão pública não fará com que isso seja nem mais nem menos provável. Contudo, manter o silêncio tem as suas vantagens. — Gabriel colocou uma mão no ombro de Graham Seymour. — Tiveste a oportunidade de ler o processo dele, diretor Payne? O pai do Graham trabalhou para os serviços secretos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Para o Comité da Dupla Cruz. Não disseram aos alemães quando detiveram os espiões deles na Grã-Bretanha. Mantiveram os espiões capturados vivos nas mentes dos seus superiores alemães e usaram-nos para fornecer informação enganosa ao Hitler e aos seus generais. E os alemães nunca tentaram substituir esses espiões capturados porque acreditavam que eles continuavam em funções.
— Portanto, se o Saladino pensar que o material conseguiu passar, não vai tentar enviar mais, é isso que estás a dizer?
Gabriel ficou em silêncio.
— Nada mau — disse o americano, sorrindo.
— Este não é o nosso primeiro rodeo.
— Tinham rodeos no Vale de Jezreel?
— Não — disse Gabriel. — Não tínhamos.
Depois disso, havia apenas um assunto final para tratar. Não era algo que pudesse ser abordado diante de uma sala cheia de espiões. Era uma questão bilateral, que precisava de ser gerida ao mais alto nível, chefe com chefe. Uma sala lateral sossegada não seria suficiente. Apenas o jardim amuralhado, com as suas fontes em ruínas e caminhos cobertos de erva, proporcionava o nível necessário de privacidade.
Apesar de ser pleno verão, o tempo estava fresco e cinzento e as sebes excessivamente grandes pingavam devido a um aguaceiro recente. Gabriel e Morris Payne caminharam lado a lado, lenta e pensativamente, separados no máximo por três centímetros. Vistos das janelas com estrutura de chumbo da antiga casa senhorial, faziam um par improvável: o americano grande, corpulento, das Dakotas; o diminuto israelita do antigo Vale de Jezreel. Morris Payne, sem casaco, gesticulava amplamente enquanto explicava os seus argumentos. Gabriel, a ouvir, esfregava o fundo das costas e, quando apropriado, assentia em concordância.
Cinco minutos depois de terem começado a conversa, pararam e viraram-se de frente um para outro, como se estivessem a confrontar-se. Morris Payne espetou um dedo indicador grosso no peito de Gabriel, dificilmente um sinal encorajador, mas Gabriel limitou-se a sorrir e a retribuir o favor. Depois, ergueu a mão esquerda sobre a cabeça e moveu-a de forma circular enquanto a direita pairava com a palma para baixo à altura da sua anca. Desta vez, foi Morris Payne que assentiu com a cabeça em aprovação. Aqueles que observavam a partir do interior perceberam o significado do momento. Fora alcançado um acordo operacional. Os americanos lidariam com os céus e a parte cibernética, os israelitas comandariam as operações no terreno e, caso surgisse a oportunidade, limpariam discretamente o sebo a Saladino.
Com isso, viraram-se para trás e começaram a dirigir-se novamente para a casa. Foi evidente para os que observavam do interior que Gabriel estava a dizer algo que desagradou intensamente a Morris Payne. Houve outra pausa e mais dedos apontados na direção dos peitos. Então, Payne virou o seu grande rosto de Ilha da Páscoa na direção do céu cinzento e exalou um suspiro de capitulação. Ao passar pela sala de reuniões, agarrou no casaco que repousava nas costas da cadeira e dirigiu-se para o exterior, seguido pela sua equipa executiva carrancuda e, alguns passos atrás, por Adrian Carter e Kyle Taylor. Gabriel e Graham Seymour acenaram-lhes a partir do pórtico como se estivessem a despedir-se de companhia indesejada.
— Conseguiste tudo o que querias? — perguntou Seymour através de um sorriso gelado.
— É o que vamos ver daqui a um minuto.
A formação de americanos estava agora a começar a dividir-se em células menores, com cada célula a dirigir-se para o jipe que a aguardava. Morris Payne deteve-se subitamente e chamou Carter para que se juntasse a ele. Carter separou-se dos restantes operacionais e, observado invejosamente por Kyle Taylor, entrou no jipe do diretor.
— Como é que conseguiste isso? — perguntou Seymour enquanto a caravana ribombante voltava à vida.
— Pedi com jeitinho.
— Quanto tempo é que achas que ele vai sobreviver?
— Isso — disse Gabriel — depende inteiramente do Saladino.
44
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Na manhã seguinte, toda a Avenida Rei Saul se preparou para a batalha. Até mesmo Uzi Navot, que se ocupara de outras operações durante as ausências prolongadas de Gabriel, se viu arrastado pelos intensos preparativos. Tiveram de dar o corpo ao manifesto, como se costuma dizer. O Departamento tinha lutado para assumir o controlo da operação e tinha saído airoso dessa luta. Porém, o triunfo implicava a enorme responsabilidade de fazer as coisas bem-feitas. Não havia notícia de uma operação de assassinato seletivo de semelhante calibre desde o ataque americano ao complexo de Osama Bin Laden em Abbottabad. Saladino controlava os meandros de uma rede terrorista internacional que provara ser capaz de atacar praticamente onde quisesse, uma rede que se apropriara de material radioativo para fabricar uma bomba suja mesmo às portas da Europa Ocidental. A aposta não podia ser mais alta, tinham-no bem presente a cada passo. A segurança do mundo civilizado estava literalmente em jogo. Tal como a carreira de Gabriel. O sucesso pouco acresceria à sua reputação. Já o fracasso, pelo contrário, invalidaria toda a trajetória anterior e incluiria o seu nome na lista de diretores caídos em desgraça, que ambicionaram muito e por isso mesmo pereceram.
Se estava preocupado com os possíveis danos infligidos ao seu legado pessoal como consequência de um fracasso, não o demonstrava, nem sequer na presença de Uzi Navot, que tinha aberto um sulco na alcatifa que ligava a sua porta e o gabinete que pouco antes fora seu, à custa de um ir e vir constante. Corria o boato de que Navot tinha tentado dissuadir Gabriel, que tinha aconselhado o antigo rival a deixar Jean-Luc Martel e Saladino nas mãos dos americanos e a centrar-se em assuntos mais próximos das suas fronteiras, como os iranianos. Para Navot, os riscos da operação eram demasiado altos e a recompensa demasiado baixa. Pelo menos era essa a versão que circulava pelos corredores e salas de acesso restrito da Avenida Rei Saul. Contudo, segundo reza a história, Gabriel recusara-se a ceder o controlo da operação. «E porque é que haveria de o fazer?», perguntou sagazmente um membro da divisão de Viagens. Saladino tinha levado a melhor a Gabriel naquela noite horrível, em Washington. E ainda havia Hannah Weinberg, claro está, a amiga e antiga cúmplice de Gabriel assassinada por Saladino em Paris. Não, concluiu o sagaz comentador, Gabriel não ia deixar Saladino nas mãos dos seus amigos de Washington. Ia enterrá-lo a sete palmos abaixo da terra. De facto, se tivesse oportunidade, possivelmente matá-lo-ia com as próprias mãos. Para ele já não se tratava de um assunto profissional, mas estritamente pessoal.
Mas um envolvimento pessoal numa operação era muitas vezes perigoso. Ninguém o sabia melhor do que o próprio Gabriel; a sua carreira falava por si. Assim, deixou Uzi Navot e os outros membros da sua equipa pessoal ultimarem todos os detalhes. Organizativamente, foi Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais quem se ocupou de planificar e levar a cabo a missão. Supervisionado por Gabriel, colocou rapidamente cada peça no devido lugar. Marrocos não era o Líbano nem a Síria, mas nem por isso deixava de ser um território hostil. Vinte vezes maior do que Israel, era um país vasto e de geografia variada, com planícies agrícolas, montanhas abruptas, desertos de areia do Saara e grandes cidades como Casablanca, Rabat, Tânger, Fez e Marraquexe. Encontrar Saladino, mesmo contando com a ajuda de Jean-Luc Martel, seria uma missão árdua. Matá-lo sem causar baixas colaterais e sair do país com certas garantias de segurança seria uma das provas mais difíceis que o Departamento tinha enfrentado ao longo da sua história.
A faixa costeira favorecia-os, tal como na Tunísia em abril de 1988. Naquela noite, Gabriel e uma equipa de vinte e seis membros da unidade de elite Sayeret Matkal tinham desembarcado de lanchas pneumáticas a curta distância da casa de Abu Jihad e, cumprida a missão, tinham partido da mesma maneira. Durante as semanas anteriores à intervenção, ensaiaram incalculáveis vezes o desembarque numa praia de Israel. Até construíram em pleno Negev um cenário semelhante à casa de Abu Jihad para que Gabriel ensaiasse a forma de chegar da porta de entrada até ao escritório do primeiro andar onde o número dois da OLP costumava passar as tardes. Porém, tais preparativos eram impossíveis no caso de Saladino já que ignoravam em que lugar de Marrocos se escondia. A bem da verdade, nem sequer tinham a certeza de que se encontrasse no país. A única coisa que sabiam era que um homem cuja descrição correspondia à sua tinha sido visto em Marrocos uns meses antes, depois dos atentados de Washington. Dispunham, pois, de muito menos informação do que os americanos antes da intervenção em Abbottabad. E tinham bem mais que perder.
Daí que tivessem de estar preparados para qualquer eventualidade ou, pelo menos, para tantas como pudessem razoavelmente prever. Faria falta uma equipa muito numerosa, maior do que em operações passadas, e todos os seus membros precisariam de um passaporte. A divisão de Identidade, a secção do Departamento que se encarregava de fornecer documentação aos agentes, esgotou rapidamente os seus recursos e Gabriel teve de pedir aos seus parceiros (franceses, britânicos e norte-americanos) que suprissem essa carência. Inicialmente, o pedido foi acolhido com reticências, mas graças à insistência de Gabriel todos acabaram por ceder. Os americanos até acabaram por concordar em reativar um velho passaporte em nome de Jonathan Albright com uma fotografia que recordava vagamente Gabriel.
— Diz-me que não estás a pensar em ir — disse Adrian Carter durante uma videoconferência segura.
— No verão? Ah, não — respondeu Gabriel. — Nem pensar. Nessa época do ano está demasiado calor em Marrocos.
Tinham de alugar carros e motas, reservar bilhetes de avião sem data de regresso e procurar alojamento. A maioria da equipa ficaria em hotéis nos quais estaria exposta à vigilância do serviço de segurança interna de Marrocos, a Direction de la Surveillance du Territoire ou DST. Mas, para instalar o posto de comando, Gabriel precisava de uma casa segura em condições. Foi Ari Shamron, da sua casa-fortaleza em Tiberíades, que deu com a solução. Tinha um amigo (um abastado empresário judeu marroquino que tinha fugido do país em 1967 depois do cataclismo da Guerra dos Seis Dias) que ainda possuía uma moradia no antigo bairro colonial de Casablanca. A casa estava vazia nesse momento, à exceção dos caseiros, um casal que vivia numa casa de hóspedes no seio da propriedade. Shamron recomendou que comprassem o imóvel em vez de o alugarem por um período breve e Gabriel concordou. Por sorte, o dinheiro não era um impedimento: Dmitri Antonov, apesar dos seus dispêndios mais recentes, continuava a nadar nele. Passou um cheque pelo valor total da compra e enviou um advogado francês (que na realidade era um agente do Grupo Alfa) a Casablanca para levantar a escritura. Ao acabar o dia, o Departamento estava na posse de uma base operativa bem no centro da cidade. Já só faltava Saladino.
A sua rede não deu mostras de atividade durante aqueles longos dias de planificação. Não houve atentados, nem dirigidos a alvos específicos, nem de lobos solitários, mas os diversos canais do ISIS nas redes sociais fervilhavam de rumores. Estava a tramar-se algo muito grande, diziam, algo que eclipsaria os atentados de Washington e Londres, o que contribuiu para aumentar a tensão dentro de Avenida Rei Saul, em Langley e em Vauxhall Cross. Tinham de retirar Saladino da circulação o mais depressa possível.
Mas será que a sua morte poria fim ao massacre? A sua rede morreria com ele?
— É improvável — assegurava Dina Sarid.
De facto, o seu maior temor era que Saladino tivesse criado dentro da rede terrorista uma espécie de interruptor de emergência: um mecanismo que desencadearia automaticamente uma série de ataques homicidas caso ele morresse. Por outro lado, o ISIS já tinha demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Se o califado no Iraque e na Síria se perdesse fisicamente, afirmava Dina, erguer-se-ia em seu lugar um califado virtual. Um «cibercalifado», como ela o chamava, no qual as velhas normas não teriam aplicação. Os futuros mártires radicalizar-se-iam em meandros recônditos da dark net e seriam conduzidos para os seus alvos por cérebros criminosos que não conheciam pessoalmente. Assim era o admirável mundo novo gerado pela Internet, pelas redes sociais e pelas mensagens encriptadas.
Não obstante, tinha uma preocupação mais imediata: os trezentos gramas de cloreto de césio depositados num laboratório estatal, nos arredores de Paris. O cloreto de césio que, no entender de Saladino, permanecia a bordo de um cargueiro apreendido no porto de Toulon. Mas teria enviado o arsenal completo num só barco ou parte dele encontrar-se-ia já em poder de uma célula terrorista disposta a atentar? A próxima bomba que rebentasse numa cidade europeia conteria um núcleo radioativo? À medida que passavam os dias sem terem notícias do fornecedor marroquino de Jean-Luc Martel, Paul Rousseau e o ministro francês começaram a perguntar-se se não estaria na hora de advertir os seus homólogos europeus da grave ameaça. Mas Gabriel, com a ajuda de Graham Seymour e dos americanos, convenceu-os a permanecerem em silêncio. Uma advertência, mesmo que formulada em linguagem rotineira, implicava o risco de pôr a descoberto a operação. Haveria fugas de informação; era inevitável. E se a notícia se espalhasse, Saladino chegaria à conclusão de que existia um vínculo entre a apreensão dos seus carregamentos de haxixe e a apreensão do pó radioativo oculto dentro de uma bobina de cabo elétrico.
— Se calhar ele já chegou a essa conclusão — comentou Rousseau, pesaroso. — Talvez nos tenha voltado a bater aos pontos.
Intimamente, Gabriel também o temia. E o mesmo podia dizer dos americanos, que, durante uma acalorada videoconferência celebrada na segunda sexta-feira de agosto, lhe exigiram de novo que deixasse Jean-Luc Martel nas suas mãos e cedesse o controlo da operação a Langley. Gabriel opôs-se e, quando os americanos insistiram, fez a única coisa que podia fazer: desejou-lhes um bom fim de semana e a seguir ligou a Chiara para a informar de que nesse Shabbath iriam jantar a Tiberíades.
45
TIBERÍADES, ISRAEL
Tiberíades, uma das quatro cidades santas do judaísmo, está situada na margem ocidental dessa massa de água à qual os israelitas chamam lago Kinneret e o resto do mundo conhece como Mar da Galileia. Para lá dos seus arrabaldes encontra-se a pequena moshav de Kfar Hittim, que se erige no lugar em que, numa abrasadora tarde de verão de 1187, o verdadeiro Saladino derrotou os exércitos cruzados enlouquecidos pela sede numa batalha decisiva que devolveu o controlo de Jerusalém aos muçulmanos. Saladino não mostrou piedade alguma pelos seus inimigos apesar de os ter derrotado. Decepou pessoalmente o braço a Renaud de Châtillon na sua tenda quando o francês se recusou a converter-se ao islamismo. Condenou o resto dos cruzados sobreviventes à morte por decapitação, o castigo habitual no caso dos infiéis.
Mais ou menos a um quilómetro a norte de Kfar Hittim havia um promontório rochoso do qual se avistava o lago e a abrasadora planície onde se travara a antiga batalha. Fora precisamente esse o sítio escolhido por Ari Shamron para instalar o seu lar. Afirmava que, quando o vento soprava na direção adequada, podia ouvir o chocar das espadas e os lamentos dos moribundos. Dizia que lhe recordavam a transitoriedade do poder político e militar naquele turbulento recanto do Mediterrâneo oriental. Cananeus, hititas, amalequitas, moabitas, gregos, romanos, persas, árabes, turcos, britânicos... Todos eles tinham chegado àquelas terras e tinham partido. Os judeus, apesar de todas as hipóteses desfavoráveis, tinham conseguido representar o que sem dúvida era o segundo ato mais impressionante da História: dois milénios após a queda do Segundo Templo, tinham regressado à cena. Mas, dando ouvidos à própria História, os seus dias naquela região estavam contados.
Há poucas pessoas que possam afirmar que ajudaram a erguer um país. E menos ainda um serviço secreto. Ari Shamron, no entanto, tinha conseguido fazer ambas as coisas. Nascido no Leste da Polónia, emigrou para o protetorado britânico da Palestina em 1937, quando a calamidade se abatia sobre os judeus de toda a Europa, e combateu na guerra que se desencadeou depois da fundação do Estado de Israel em 1948. No rescaldo do conflito, enquanto o mundo árabe maquinava para estrangular o novo Estado judeu ainda no berço, Shamron integrou-se num pequeno organismo ao qual os seus membros simplesmente chamavam «o Departamento». Entre as suas primeiras missões constou a identificação e assassinato de vários cientistas nazis que estavam a ajudar o mandatário egípcio Gamal Abdel Nasser a construir uma bomba atómica. Mas a façanha que coroou a sua carreira como agente no ativo não teve como cenário o Médio Oriente, mas sim uma esquina de uma rua do bairro industrial de San Fernando, em Buenos Aires. Ali, numa noite chuvosa de maio de 1960, Shamron introduziu Adolf Eichmann, o artífice da Solução Final, à força na parte de trás de um carro, naquela que foi a primeira escala de uma viagem que, para Eichmann, concluiria numa forca israelita.
Já para Shamron, aquilo foi só o princípio. Poucos anos depois, atribuíram-lhe a direção dos serviços secretos a cuja criação tinha assistido, logo, a defesa da nação. Da sua guarida na Avenida Rei Saul, com os seus arquivos de metal cinzento e um permanente fedor a tabaco turco, Shamron infiltrou os seus agentes nas cortes de monarcas, roubou segredos a tiranos e eliminou incontáveis inimigos. Manteve-se no cargo bem mais tempo do que os seus predecessores e, no final dos anos noventa, depois de uma série de falhanços operacionais, abandonou felizmente a sua reforma para endireitar o rumo da nave e devolver o antigo esplendor ao Departamento. Encontrou um cúmplice num agente de campo que se tinha encerrado para chorar as suas mágoas numa casinha de campo nas margens de Helford Passage, na Cornualha. Agora, por fim, o destino do Departamento estava entregue a esse agente. E o fardo de preservar as duas criações de Shamron (o seu país e os serviços secretos nacionais) recaía sobre os seus ombros.
Shamron fora escolhido para capturar Eichmann devido às suas mãos, anormalmente grandes e fortes para um homem de tão baixa estatura. Quando Gabriel entrou na casa carregando um filho em cada braço, essas mãos estavam pousadas sobre o cabo de uma bengala de oliveira. Gabriel deixou as crianças ao cuidado de Shamron e regressou ao seu jipe blindado para ir buscar as três travessas de comida que Chiara tinha preparado nessa mesma tarde. Gilah, a sofrida esposa de Shamron, acendeu as velas do Shabbath ao pôr-do-sol enquanto o marido recitava as bênçãos do pão e do vinho com o sotaque yiddish da sua infância passada na Polónia. Por um instante, Gabriel teve a impressão de que não existiam nem a operação nem Saladino, mas só a sua família e a sua fé.
Mas foi uma sensação efémera. Efetivamente, durante o jantar, enquanto os restantes conversavam sobre política e lamentavam o matsav, a situação, Gabriel distraía-se e de vez em quando olhava para o telemóvel. Shamron, que o vigiava da cabeceira da mesa, sorriu. Não lhe ofereceu palavras tranquilizadoras para aliviar o seu evidente mal-estar. Para Shamron, as operações de espionagem eram como o oxigénio: até uma má operação era melhor do que nenhuma.
Quando acabaram de jantar, Gabriel seguiu-o até à divisão do rés-do-chão que lhe servia de escritório e oficina. As peças de um rádio antigo estavam espalhadas pela bancada de trabalho como os escombros de um bombardeio. Shamron sentou-se e, com um estalo do seu velho isqueiro Zippo, acendeu um dos seus famigerados cigarros turcos. Gabriel desviou o fumo e contemplou as lembranças pulcramente dispostas nas estantes. Reparou logo numa fotografia emoldurada de Shamron e Golda Meir tirada no dia em que ela lhe ordenou «mandar os rapazes» vingar a morte dos onze treinadores e atletas israelitas assassinados nos Jogos Olímpicos de Munique. Perto da fotografia havia um estojo de vidro do tamanho aproximado de uma caixa de charutos. Lá dentro, dispostos sobre um pano escuro, descansavam onze cartuchos de calibre 22.
— Estão aqui guardados para ti — comentou Shamron.
— Não os quero.
— E porquê?
— São macabros.
— Foste tu que descobriste como enfiar onze balas num carregador de dez, não fui eu.
— Talvez me dê medo que um dia alguém tenha uma caixa como essa numa estante, com o meu nome escrito.
— Podes contar com isso, meu filho. — Shamron acendeu a luz de trabalho apetrechada com uma lupa.
— Vejo-te muito comedido.
— O que é que isso quer dizer?
— Não me perguntaste nem uma só vez pela operação.
— Porque é que haveria de o fazer?
— Porque és patologicamente incapaz de não te meter nos assuntos alheios.
— Razão pela qual sou espião. — Shamron ajustou a lupa para examinar um troço de circuito muito desgastado.
— Que tipo de rádio é que é?
— Um RCA Catalin, um modelo art déco com carcaça de polímero marmoreado. Onda curta e normal. Foi fabricado em 1946. Imagina — acrescentou Shamron assinalando o autocolante de papel original colado na base do rádio — que algures na América, em 1946, alguém estava a montar este rádio enquanto pessoas como os teus pais tentavam recompor as suas vidas.
— É um rádio, Ari. Não tem nada que ver com a Shoah.
— Era só um comentário. — Shamron sorriu. — Pareces tenso. Tens alguma preocupação?
— Não, nenhuma.
Permaneceram em silêncio enquanto Shamron continuava a manusear as suas ferramentas. Reparar rádios antigos era o seu único passatempo, para além de se intrometer na vida de Gabriel.
— O Uzi disse-me que estás a pensar em ir a Marrocos — disse por fim.
— Porque é que te disse isso?
— Porque não conseguiu dissuadir-te e pensou que eu talvez fosse capaz.
— Ainda não tomei uma decisão.
— Mas pediste aos americanos para te renovarem o passaporte.
— Para o reativarem — esclareceu Gabriel.
— Renovar, reativar... o que é que interessa? Para começar, nunca o devias ter aceitado. Estava melhor num pequeno caixão de vidro, tal como aqueles cartuchos.
— Foi uma ajuda preciosa em inúmeras ocasiões.
— Azul e branco — afirmou Shamron. — Fazemos as nossas coisas e não ajudamos os outros a resolver problemas que eles próprios criaram.
— Talvez antes fosse assim — respondeu Gabriel —, mas já não, não podemos continuar a operar desse modo. Precisamos de aliados.
— Os aliados arranjam sempre maneira de te dececionar. E esse passaporte não te vai servir de nada se alguma coisa correr mal em Marrocos.
Gabriel apanhou o estojo com os vinte e dois cartuchos de bala usados.
— Se não me falha a memória, e de certeza que não, tu estavas no banco de trás de um carro estacionado na Piazza Annibaliano enquanto eu me ocupava do Zwaiter naquele bloco de apartamentos.
— Naquele tempo era o chefe das Operações Especiais. Tinha de estar em campo, era a minha obrigação. Um exemplo mais adequado — continuou Shamron — seria o de Abu Jihad. Então já era diretor e fiquei a bordo do barco enquanto tu e o resto da equipa iam para terra.
— Com o ministro da Defesa, se não me falha a memória.
— Foi uma operação importante; quase tão importante — disse Shamron baixinho — como a que estás prestes a levar a cabo. Está na hora de o Saladino sair de cena, sem cumprimentar o público nem fazer encores. Mas tenta garantir que não consegue aquilo de que anda desesperadamente à procura.
— O quê?
— Tu.
Gabriel devolveu o estojo à estante.
— Permites-me que te faça uma ou duas perguntas? — disse Shamron.
— Se isso te faz feliz...
— Vias de escape?
Gabriel explicou-lhe que teria duas: uma corveta israelita e um cargueiro de bandeira liberiana, o Neptune, que era na realidade uma estação de radar e escuta operada pelo AMAM, o serviço de espionagem do exército israelita. O Neptune estaria ancorado em frente a Agadir, na costa atlântica de Marrocos.
— E a corveta? — perguntou Shamron.
— Num pequeno porto do Mediterrâneo chamado El Jebha.
— Imagino que é aí que desembarcará a equipa da Sayeret.
— Só se o considerar necessário. Afinal de contas — explicou Gabriel —, disponho de um ex-agente da Sayeret e de um veterano do Serviço Aéreo Especial britânico.
— Para quem será uma missão mais do que suficiente manter sob controlo esse tal Jean-Luc Martel. — Shamron abanou a cabeça lentamente. — Às vezes, o pior ao recrutar um colaborador é que depois não te podes livrar dele. Faças o que fizeres, não te fies dele.
— Nem me passa pela cabeça.
O cigarro de Shamron tinha-se apagado. Acendeu outro e continuou a trabalhar no rádio enquanto Gabriel contemplava a fotografia da estante tentando associar a imagem a preto e branco de um espião na flor da idade com o idoso que tinha à frente dos olhos. Tinha sucedido tão depressa... Em breve, pensou, acontecer-lhe-ia o mesmo a ele. Nem sequer Raphael e Irene podiam impedir o inevitável.
— Não vais atender? — perguntou Shamron de repente.
— Atender o quê?
— O telefone. Está a distrair-me.
Gabriel olhou para baixo. Estava tão ensimesmado que não tinha ouvido a mensagem enviada do andar seguro de Ramatuelle.
— E então? — perguntou Shamron.
— Parece que o Mohammad Bakkar quer falar com o Jean-Luc Martel sobre essa droga que se extraviou. Pergunta se pode ir a Marrocos no princípio da semana que vem.
— Estará disponível?
— O Martel? Acho que podemos encontrar um buraco na sua agenda.
Sorridente, Shamron ligou o rádio à tomada da bancada e acendeu-o. Pouco depois, após uma tentativa de sintonização, ouviu-se uma melodia.
— Não a reconheço — disse Gabriel.
— Claro, és demasiado jovem. É Artie Shaw. A primeira vez que ouvi esta música... — Shamron deixou a frase em suspenso.
— Como é que se chama? — perguntou Gabriel.
— You’re a lucky guy: és um tipo sortudo. — Nesse momento apagou-se o rádio e a música parou. Shamron franziu a testa. — Ou talvez não.
46
CASABLANCA, MARROCOS
A estrada que ligava o Aeroporto Internacional Mohammed V de Casablanca ao centro da maior cidade e principal centro financeiro de Marrocos era formada por quatro faixas de rijo alcatrão negro como o breu pelo qual Dina, uma condutora temerária por natureza e nacionalidade, conduzia com extraordinário cuidado.
— O que é que te preocupa tanto? — perguntou Gabriel.
— Tu — respondeu Dina.
— O que é que eu fiz desta vez?
— Nada. Mas é a primeira vez que faço de motorista do chefe.
— Bom — afirmou ele a olhar pela janela —, há uma primeira vez para tudo.
O saco de viagem de Gabriel descansava sobre o banco de trás. Já a pasta ia apoiada sobre os joelhos. Lá dentro estava o passaporte americano que lhe tinha permitido passar sem contratempos pelo controlo fronteiriço e pela alfândega marroquina. As coisas em Washington podiam ter mudado, mas ser americano continuava a ser uma vantagem em grande parte do mundo.
O trânsito estancou de repente.
— Uma operação stop — explicou Dina. — Estão por todo o lado.
— Achas que andam à procura de quê?
— Se calhar do chefe dos serviços secretos israelitas.
Uma fileira de cones cor de laranja desviava o trânsito para a berma, onde dois gendarmes inspecionavam os veículos e respetivos ocupantes, vigiados por um agente da DST vestido à paisana e com óculos de sol. Enquanto abria a janela, Dina dirigiu umas palavras a Gabriel em alemão, a língua correspondente à sua identidade fictícia e ao seu passaporte falso. Os aborrecidos gendarmes fizeram-lhe sinais para avançar como se espantassem moscas. O homem da DST parecia distraído.
Dina voltou a fechar rapidamente a janela para impedir que o denso e implacável calor exterior entrasse e pôs o ar condicionado no máximo. Passaram por umas grandes dependências militares. Depois apareceram de novo as terras agrícolas, pequenas parcelas de terra fértil e escura, cultivadas principalmente pelos habitantes das povoações próximas. A Gabriel, a mata de eucalipto lembrou-lhe de casa.
Por fim chegaram à periferia desigual de Casablanca, a segunda cidade mais populosa do Norte de África, só ultrapassada pela megalópole do Cairo. Os terrenos cultivados não desapareceram por completo: ainda se viam alguns entre os elegantes blocos de apartamentos recém-construídos e os bairros de lata que albergavam centenas de milhares das pessoas mais miseráveis em barracas feitas de chapas metálicas e blocos de cimento.
— Chamam-nos bidonvilles — comentou Dina apontando para um dos bairros de lata. — Calculo que soe melhor do que «subúrbios». Quem lá vive não tem nada. Nem água corrente, nem praticamente nada que levar à boca. De vez em quando, as autoridades tentam demoli-las, mas as pessoas voltam a construir as suas barracas. Que remédio é que têm? Não têm outro lugar para onde ir.
Passaram por um terreno de erva acastanhada e rala onde dois meninos descalços vigiavam um rebanho de cabras esqueléticas.
— Uma coisa que abunda nos bidonvilles é o Islão — prosseguiu Dina. — Cada vez mais radical, graças aos pregadores wahhabi e salafistas. Lembras-te dos atentados de 2003? Todos os rapazes que se imolaram provinham dos bidonvilles de Sidi Moumen.
Naturalmente que Gabriel se lembrava dos atentados, embora em grande parte do Ocidente tivessem caído no esquecimento: catorze bombas contra objetivos ocidentais e judeus, quarenta e cinco mortos, mais de uma centena de feridos. Foram obra de uma filial da Al-Qaeda conhecida como Salafia Jihadia que por sua vez estava vinculada ao Grupo Islâmico Combatente Marroquino. Apesar de toda a beleza natural e do turismo ocidental que visitava o país, Marrocos ainda era um viveiro de islamitas radicais no qual o ISIS estava profundamente enraizado, facto atestado pelas suas inúmeras células. Mais de mil e trezentos marroquinos tinham ido para o califado a fim de lutarem nas fileiras do ISIS (juntamente com várias centenas de cidadãos franceses, belgas e holandeses de origem marroquina), e os marroquinos tinham desempenhado um papel crucial na recente campanha terrorista do ISIS na Europa ocidental. E depois havia Mohammed Bouyeri, o marroquino holandês que tinha atingido a tiro e apunhalado o cineasta e escritor Theo van Gogh numa rua de Amesterdão. O crime não foi produto do ato espontâneo de um perturbado: Bouyeri fazia parte de uma célula de muçulmanos radicais oriundos do Norte de África e radicados em Haia conhecida como «Rede Hofstad». Os serviços de segurança marroquinos tinham conseguido desarticular as atividades dos seus extremistas no estrangeiro, mas dentro de portas continuavam a abundar as conspirações terroristas. O ministro do Interior tinha-se gabado há pouco tempo de que tinham desarticulado mais de trezentas, entre elas uma que incluía o uso de gás-mostarda. Na opinião de Gabriel, mais valia manter o silêncio sobre certas coisas.
Subiram uma lomba e o Atlântico azul pálido espraiou-se perante eles. O Morocco Mall, com os seus cinemas futuristas e lojas ocidentais, ocupava uma faixa de terra recém-urbanizada ao longo da costa. Dina seguiu a Corniche rumo ao centro urbano passando em frente de cafés, restaurantes e mansões de uma brancura resplandecente. Uma delas tinha o tamanho de um bloco de escritórios.
— Pertence a um príncipe saudita. E ali — disse Dina — fica o Four Seasons.
Abrandou para Gabriel poder dar uma espreitadela. No gradeamento que dava acesso aos jardins do hotel, dois guardas vestidos de escuro inspecionavam a parte de baixo de um carro que acabava de chegar, à procura de explosivos. Só quem passava a inspeção tinha autorização para aceder à avenida que conduzia ao estacionamento coberto do hotel.
— Há um magnetómetro do outro lado da porta — informou Dina. — Inspeciona a bagagem de todos os hóspedes sem exceção. Vamos ter de trazer as armas pela praia. Não constitui um problema.
— Achas que os rapazes da Salafia Jihadia também sabem disso?
— Espero que não — respondeu Dina com um dos seus raros sorrisos.
Continuaram a avançar pela Corniche deixando a imponente mesquita Hassan II, as muralhas exteriores da antiga medina e o imenso porto para trás. Entraram finalmente no antigo bairro colonial francês, com as suas largas e sinuosas alamedas e uma mistura única de arquitetura mourisca, art nouveau e art déco. Outrora, os vizinhos mais cosmopolitas de Casablanca passeavam-se por entre as elegantes colunas engalanados à última moda parisiense e jantavam nalguns dos melhores restaurantes do mundo. Agora, o bairro era um monumento à decadência e à insegurança cidadã. As flores de estuque das fachadas estavam cobertas de fuligem e o óxido apodrecia as balaustradas de ferro forjado. A classe abastada tentava não se aventurar para além dos modernos quartiers de Gauthier e Maarif, e o centro histórico tinha-se convertido no domínio daqueles que usavam véu ou jilaba e de vendedores de rua que apregoavam fruta estragada e cassetes económicas com sermões e versículos do Corão.
O único sinal de progresso era o flamejante elétrico que serpenteava pelo Boulevard Mohammed V, em frente de lojas encerradas e arcadas nas quais dormitavam indigentes sobre leitos de papelão. Dina seguiu um elétrico ao longo de vários quarteirões, depois virou para uma estreita rua secundária e encostou. De um lado havia um prédio de habitação de oito andares que parecia prestes ruir sob o peso das antenas parabólicas que brotavam como cogumelos das suas varandas. Do outro, erguia-se uma parede desconchavada e coberta de plantas trepadeiras, com uma porta de cedro que outrora teria estado ornamentada. Um cão ofegante e de aspeto feroz montava guarda diante dela.
— Porque é que parámos? — perguntou Gabriel.
— Porque já chegámos.
— Onde?
— Ao posto de comando.
— Deves estar a brincar.
— Não.
Gabriel olhou para o cão com desconfiança.
— E ele?
— É inofensivo. O preocupante são as ratazanas.
Nesse momento, uma ratazana escapuliu-se pelo passeio. Tinha o tamanho de um guaxinim. O cão encolheu-se, assustado. E o mesmo fez Gabriel.
— Se calhar devíamos voltar para o Four Seasons.
— Não é seguro.
— Este lugar também não é.
— Não é tão mau quando te acostumas.
— Como é por dentro?
Dina desligou o motor.
— Há fantasmas. Mas de resto é bastante agradável.
Passaram junto ao cão ofegante e, ao atravessar a porta de cedro, penetraram num paraíso escondido. Havia uma piscina de um azul-escuro, uma pista de ténis de terra batida e um jardim aparentemente infinito pejado de buganvílias, hibiscos, palmeiras e bananeiras. A casa, imensa, era de estilo tradicional marroquino, com pátios interiores de azulejos nos quais o murmúrio incessante de Casablanca se dissolvia no silêncio. As divisões labirínticas pareciam congeladas no tempo. Poderia ser 1967, o ano em que o proprietário enfiou alguns bens pessoais numa mala de viagem e fugiu para Israel. Ou quiçá, pensou Gabriel, uma época mais simpática. Um período em que naquele bairro todos falavam francês e se perguntavam quanto tempo é que os alemães demorariam a desfilar pelos Campos Elísios.
Os caseiros chamavam-se Tarek e Hamid. Tinham comprado o cargo aos seus predecessores, demasiado idosos para continuarem a tratar da propriedade. Evitavam o interior da casa e limitavam as suas atividades ao jardim e à casinha de hóspedes. Os respetivos filhos, netos e esposas viviam num bidonville próximo.
— Somos os novos donos — disse Gabriel. — Porque é que não podemos simplesmente despedi-los?
— Não é boa ideia — respondeu Yaakov Rossman.
Antes de ser transferido para o Departamento, Rossman tinha trabalhado para o Shabak, o serviço de segurança interior de Israel, a dirigir agentes que operavam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Falava árabe com fluência e era um perito em cultura árabe e islâmica.
— Se tentarmos livrarmo-nos deles, vai haver confusão. E isso podia afetar o nosso disfarce.
— Então damos-lhes uma indemnização generosa.
— Ainda era pior, porque viriam parentes de todos os cantos do país bater-nos à porta a pedir dinheiro. — Yaakov abanou a cabeça com um ar de reprovação. — Não sabes muito sobre esta gente, pois não?
— Então, ficamos com os caseiros — disse Gabriel. — Mas que parvoíce é essa de haver fantasmas na casa?
Estavam rodeados pelo fresco silêncio do pátio principal da casa. Yaakov olhou para Dina com nervosismo, ela por sua vez olhou para Eli Lavon. Foi Lavon, o amigo mais antigo de Gabriel, que por fim respondeu:
— Chama-se Aisha.
— A mulher de Maomé?
— Não, essa não. Outra Aisha.
— Outra como?
— É um jinn.
— Um quê?
— Uma espécie de demónio.
Gabriel olhou para Yaakov à procura de uma explicação.
— Os muçulmanos acham que Alá fez o homem a partir do barro. Pelo contrário, acham que os jinns são feitos de fogo.
— E isso é mau?
— Muito. De dia, os jinns vivem entre nós dentro de objetos inanimados e têm uma vida muito parecida à nossa. Mas à noite adotam a forma que lhes apetecer.
— Então são mutantes — disse Gabriel, cético.
— E malvados — acrescentou Yaakov com um assentimento grave. — O que mais gostam é de fazer mal aos humanos. A crença nos jinns está especialmente enraizada aqui, em Marrocos. Certamente é um vestígio das crenças berberes anteriores à chegada do Islão.
— Mas o facto de os marroquinos acreditarem neles não significa que sejam reais.
— Está no Corão — afirmou Yaakov na defensiva.
— Isso também não os torna reais.
Houve outra troca de olhares nervosos entre os três agentes veteranos do Departamento. Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas vocês não acreditam nessas baboseiras, pois não?
— Ontem à noite ouvimos imensos barulhos esquisitos dentro da casa — disse Dina.
— De certeza que está infestada de ratazanas.
— Ou de jinns — disse Yaakov. — Às vezes aparecem em forma de ratazanas.
— Achava que só havia um.
— A Aisha é a líder. Pelos vistos, há muitos mais.
— Quem é que o diz?
— O Hamid. É um especialista.
— Não me digas. E o que é que o Hamid sugere que façamos a esse respeito?
— Um exorcismo. A cerimónia dura dois dias e inclui o sacrifício de uma cabra.
— Podia obstaculizar a operação — concluiu Gabriel depois de ponderar devidamente a ideia.
— Sim, pois podia — concordou Yaakov.
— Não há outras medidas que possamos adotar, para além de um exorcismo em grande escala?
— A única coisa que podemos fazer é tentar que não se zangue.
— Quem? A Aisha?
— Quem é que havia de ser?
— E que coisas é que a irritam?
— Não podemos abrir as janelas, nem cantar, nem rir. E também não é permitido levantar a voz.
— Só isso?
— O Hamid aspergiu com sal, sangue e leite todos os cantos dos quartos.
— Que alívio.
— Também nos disse para não tomarmos duche à noite, nem usarmos a sanita.
— Porque não?
— Porque os jinns vivem debaixo de água. Se os incomodarmos...
— Sim?
— O Hamid diz que uma grande tragédia se abaterá sobre nós.
— Isso parece terrível. — Gabriel percorreu o belo pátio com o olhar. — Este lugar tem nome?
— Não, e se tem ninguém se lembra dele — respondeu Dina.
— Então, que nome é que vamos usar?
— Dar al-Jinns — propôs Lavon com um ar sombrio.
— Talvez a Aisha se zangue — disse Gabriel. — Proponham outro.
— Que tal Dar al-Jawasis? — perguntou Yaakov.
Sim, era melhor, pensou Gabriel. Dar al-Jawasis. A Casa dos Espiões.
Combinaram que as esposas e as filhas mais velhas de Tarek e Hamid lhes fariam uma refeição tradicional marroquina. Chegaram pouco depois: duas mulheres rechonchudas, tapadas pelo véu, e quatro raparigas bonitas, carregadas com cestos de verga que transbordavam de carne e verduras compradas nos bazares da medina velha. Passaram toda a tarde a cozinhar na enorme cozinha enquanto conversavam baixinho em darija, para não incomodarem os jinns. Pouco depois, a casa inteira cheirava a cominhos, gengibre, coentros e malagueta.
Gabriel espreitou para a cozinha por volta das sete da tarde e viu inúmeras travessas de saladas e aperitivos e enormes caçarolas de barro cheias de cuscuz e tagine. Havia comida suficiente para alimentar uma aldeia e, incentivadas por Gabriel, as mulheres convidaram o resto dos seus familiares do bairro onde viviam para partilharem do banquete. Comeram todos juntos no pátio grande (os marroquinos pobres e os quatro forasteiros que, segundo pensavam eles, eram europeus), sob um dossel de estrelas brancas como diamantes. Para ocultar que dominavam o árabe, Gabriel e os outros falaram unicamente em francês. Conversaram sobre os jinns, sobre as promessas frustradas da Primavera Árabe e sobre essa banda de assassinos que se fazia chamar Estado Islâmico. Tarek afirmou que vários jovens do seu bidonville, entre eles o filho de um primo afastado, tinham estado no califado. De vez em quando, a DST fazia uma rusga no bairro e levava os salafistas para a prisão de Temara para os interrogar através da tortura.
— Têm impedido muitos atentados — disse —, mas não tarda muito vai haver outro dos grandes, como o de 2003. É só uma questão de tempo.
O jantar terminou com esse mau augúrio. As mulheres e respetivos familiares regressaram ao bairro de barracas, levando os restos de comida, e Tarek e Hamid foram para o jardim vigiar os jinns. Gabriel, Yaakov, Dina e Eli Lavon desejaram boa noite e retiraram-se para os quartos. O de Gabriel tinha vista para o mar. Um dos caseiros tinha traçado um círculo a carvão à volta da cama para o proteger dos demónios, e nos quatro cantos havia gotas de sangue misturado com leite e sal. Exausto, Gabriel caiu de imediato num sono profundo, do qual acordou pouco antes do amanhecer com a necessidade imperiosa de aliviar a bexiga. Passou um bom bocado deitado na cama a pensar no que devia fazer, até que por fim viu as horas no telemóvel. Passavam poucos minutos das cinco da madrugada. Amanhecia às 6h49. Fechou os olhos. Não convinha tentar a sorte, pensou. Era melhor não incomodar a Aisha nem os seus amigos.
47
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela manhã, Jean-Luc Martel, hoteleiro, restaurador, fabricante de roupa, joalheiro, narcotraficante internacional e colaborador da espionagem francesa e israelita, subiu a bordo do seu avião privado Gulfstream, o JLM Deux, no Aeroporto Côte d’Azur de Nice com destino a Casablanca, acompanhado pela namorada e pelos supostos amigos, os que viviam na colossal villa no lado oposto da baía, bem como por um espião britânico que até há pouco tempo ganhava a vida como assassino profissional. Nos anais da guerra global contra o terrorismo, nenhuma operação tinha tido tal começo. Era, todos concordavam, a primeira vez. E contra toda a lógica e sem qualquer justificação, confiavam que fosse também a última.
Martel enviara duas limusinas Mercedes para levar a comitiva do aeroporto para o Four Seasons. Passaram a rugir à frente dos brilhantes blocos de apartamentos e dos sujos bidonvilles e seguiram pela Corniche, à velocidade de comitiva oficial até à entrada fortificada do hotel. A sua chegada tinha sido previamente anunciada, de maneira que, depois de uma inspeção superficial aos veículos, puderam aceder ao parque de estacionamento, onde um pequeno batalhão de empregados aguardava para os receber. Abriram-se as portas e os empregados carregaram uma montanha de malas nos seus carrinhos. De seguida, a bagagem e os seus proprietários atravessaram o arco do magnetómetro. Foram todos admitidos de imediato, exceto Christopher Keller, que fez soar o alarme duas vezes. O chefe de segurança do hotel, ao não encontrar qualquer objeto suspeito na posse de Keller, comentou em jeito de brincadeira que devia ser feito de metal. O sorriso tenso e hostil do britânico não contribuiu para dissipar as suas suspeitas.
Um silêncio monástico pendia sobre o ar fresco do hall climatizado. Era pleno verão em Marrocos, logo, temporada baixa para os hotéis da praia. Seguidos pela caravana de malas, JLM e os seus acompanhantes encaminharam-se para a receção: Martel e Olivia Watson vestidos de branco brilhante; Mikhail e Natalie fingindo-se aborrecidos; e Keller incomodado ainda pelo tratamento que lhe tinham dado à porta. O diretor do hotel entregou-lhes as chaves dos seus quartos (Monsieur Martel gozava, como de costume, da mordomia de fazer o check-in antecipadamente) e dedicou-lhes umas sumptuosas palavras de boas-vindas.
— Jantam esta noite no hotel? — perguntou.
— Sim — respondeu Keller de imediato. — Mesa para cinco, por favor.
Era um hotel disposto ao contrário: o hall ocupava o último andar, por cima dos pisos onde os hóspedes estavam alojados. Os quartos de JLM e da sua comitiva ficavam no quarto piso. Martel e Olivia ocupavam uma só suíte, ladeada pela de Mikhail e de Natalie, de um lado, e a de Keller de outro. Quando lhes levaram a bagagem e despacharam os empregados com uma gorjeta, Mikhail e Keller abriram as portas que davam para os três quartos tornando-os num só.
— Muito melhor assim — disse Keller. — Quem é que quer comer?
A mensagem chegou à Casa dos Espiões pouco depois do meio-dia, quando Hamid e Tarek estavam empoleirados na sanita da casa de banho de Gabriel a recitar versos do Corão para afugentar os jinns. Informava de que JLM e os seus acompanhantes tinham chegado sem novidades ao Four Seasons, que não tinham recebido comunicação alguma de Mohammad Bakkar ou dos seus seguidores e que naquele momento estavam a almoçar no terraço do restaurante do hotel. Gabriel enviou a mensagem por via segura para o Centro de Operações da Avenida Rei Saul, que por sua vez a remeteu para Langley, Vauxhall Cross e para a sede da DGSI em Levallois-Perret, onde foi recebida com uma expectativa que superava muito a sua importância operativa.
As preces da sanita terminaram poucos minutos depois da uma e a comida foi servida à uma e meia. Dina e Yaakov Rossman saíram da Casa dos Espiões minutos mais tarde, num dos carros alugados. Dina vestia umas calças de algodão largas e uma blusa branca e levava pendurado ao ombro um saco com o nome de um exclusivo estilista francês. Yaakov, por sua vez, estava vestido como se fosse fazer uma incursão noturna em Gaza. Às duas da tarde, encontravam-se reclinados numa espreguiçadeira com dossel do Tahiti Beach Club da Corniche. Gabriel mandou-os ficar ali até novo aviso. Depois, subiu o volume dos microfones instalados nos três quartos contíguos do Four Seasons.
— Alguém tem de levar o saco ao hotel — comentou Eli Lavon.
— Obrigado, Eli — afirmou Gabriel. — Nunca me teria lembrado disso.
— Só estava a tentar ajudar.
— Desculpa, são os jinns, que falam por mim.
Lavon sorriu.
— Em quem é que tinhas pensado?
— O Mikhail é o candidato mais óbvio.
— Até eu suspeitaria dele.
— Então talvez convenha que seja uma mulher a tratar disso.
— Ou duas — sugeriu Lavon. — Para além disso, já está na hora de fazerem as pazes, não achas?
— Começaram mal, mais nada.
Lavon encolheu os ombros.
— Podia acontecer a qualquer um.
Estava um segurança na porta que comunicava a parte de trás do recinto murado do hotel com a plage Lalla Meriem, a principal praia pública de Casablanca. Vestido com um fato escuro apesar do calor do meio da tarde, observou como as mulheres (a inglesa alta que tinha visto várias vezes anteriormente e uma francesa de semblante antipático) atravessavam a areia escura e lisa até à beira-mar. A inglesa vestia um vaporoso páreo de flores preso à cintura estreita e uma t-shirt translúcida. A francesa, pelo contrário, usava um vestido de algodão ligeiramente mais recatado. Os rapazes da praia aproximaram-se delas de imediato. Colocaram duas espreguiçadeiras na linha do mar e abriram dois guarda-sóis para protegê-las do sol que era forte. A inglesa pediu alguma coisa para beber e, quando lhes levaram os copos, deu uma gorjeta excessiva aos empregados. Apesar das suas visitas frequentes a Marrocos, ignorava o valor do dinheiro marroquino. Por esse motivo, e por outros, os rapazes rivalizavam pela mordomia de a servir.
O segurança retomou o jogo que estava a jogar no seu telemóvel; os rapazes da praia regressaram à sombra da sua barraca. Natalie tirou o vestido e colocou-o sobre o seu saco de praia Vuitton. Olivia despiu o páreo e tirou a t-shirt. Depois estendeu o seu longo corpo na espreguiçadeira e virou a sua cara perfeita para o sol.
— Não gostas muito de mim, pois não?
— Estava só a representar um papel.
— Pois fizeste-o muito bem.
Natalie adotou a mesma postura que Olivia e fechou os olhos ao sol.
— A verdade é — disse passado um momento — que não mereces que te trate assim. Eras simplesmente um meio para atingir um fim.
— E o Jean-Luc?
— Ele também é um meio para atingir um fim. E, para o caso de quereres saber, não vou com a cara dele.
— Então, gostas de mim? — perguntou Olivia num tom divertido.
— Um bocadinho — reconheceu Natalie.
Dois marroquinos musculados de vinte e poucos anos passaram à frente delas, com a água pelos tornozelos, a conversar em darija. Ao ouvi-los, Natalie sorriu.
— Estão a falar de ti — disse.
— Como é que sabes?
Natalie abriu os olhos e olhou-a inexpressivamente.
— Falas marroquino?
— O marroquino não é um idioma, Olivia. De facto, aqui falam três línguas diferentes. Francês, berbere e...
— Talvez isto tenha sido um erro — atalhou Olivia.
Natalie sorriu.
— Porque é que falas árabe?
— Os meus pais são argelinos.
— Então, és árabe?
— Não — respondeu Natalie. — Não sou.
— Afinal, o Jean-Luc tinha razão. Quando saímos da vossa villa naquela tarde disse que...
— Que parecia uma judia de Marselha.
— Como é que sabes?
— O que é que achas?
— Estavam a ouvir?
— Estamos sempre a ouvir.
Olivia besuntou óleo nos ombros.
— O que é que aqueles marroquinos estavam a dizer sobre mim?
— É difícil de traduzir.
— Imagino.
— Calculo que estejas acostumada.
— Tal como tu. És muito bonita.
— Para uma judia de Marselha.
— És?
— Era há muito tempo — afirmou Natalie. — Já não.
— Era assim tão mau?
— Ser judeu em França? Sim, era muito mau.
— Foi por isso que te tornaste espia?
— Eu não sou espia. Sou a Sophie Antonov, a tua amiga do outro lado da baía. O meu marido tem negócios com o teu namorado. Têm entre mãos algum assunto aqui, em Casablanca, do qual preferem não falar.
— O meu namorado — disse Olivia. — O Jean-Luc não gosta que digam que é o meu namorado.
— Porquê? Há algum problema?
— Entre mim e o Jean-Luc?
Natalie fez um gesto afirmativo.
— Achava que estavam sempre a ouvir.
— E assim é. Mas tu conhece-lo melhor do que ninguém.
— Não estou muito certa disso. Mas não — respondeu Olivia —, não parece suspeitar que fui eu quem o traiu.
— Não o traíste...
— Como é que o descreverias então?
— Fizeste o correto.
— Para variar — concluiu Olivia.
Os dois marroquinos musculados estavam de volta. Um deles olhou para Olivia com descaramento.
— Pensas dizer-me o que é que estamos aqui a fazer? — perguntou ela.
— Quanto menos souberes — respondeu Natalie —, melhor.
— É assim que funcionam as coisas no teu ofício?
— Sim.
— Estou em perigo?
— Isso depende de tirares mais roupa ou não.
— Tenho o direito de saber.
Natalie não respondeu.
— Imagino que tem alguma coisa a ver com aqueles carregamentos de haxixe que a polícia confiscou.
— Que haxixe?
— Não importa.
— Exato — afirmou Natalie. — Qualquer coisa que te diga, fará com que seja mais difícil cumprires o teu papel.
— E qual é o meu papel?
— O de par amoroso do Jean-Luc Martel que ignora de onde procede o seu dinheiro.
— Procede dos seus hotéis e restaurantes.
— E da sua galeria de arte — assinalou Natalie.
— A galeria é minha. Aí vem um dos teus amigos — disse Olivia num tom sonolento.
Natalie levantou o olhar e viu que Dina caminhava parcimoniosamente para elas pela beira-mar.
— Parece triste — comentou Olivia.
— Tem motivos para isso.
— O que é que lhe aconteceu à perna?
— Isso não importa.
— Queres dizer que não é nada comigo?
— Tentava ser simpática.
— Que novidade. — Olivia levou uma mão à testa para se proteger do sol. — Tem graça: parece que traz um saco igual ao teu.
— A sério? — Natalie sorriu. — Que coincidência, não achas?
O segurança encarregava-se de vigiar qualquer transeunte que passasse pela praia, não se fosse repetir o trágico incidente que aconteceu na Tunísia em 2015, quando um terrorista salafista tirou um fuzil de assalto do seu guarda-sol e matou trinta e oito hóspedes de um hotel de cinco estrelas, na sua maioria súbditos britânicos. Não obstante, pouco podia fazer o guarda no caso de se repetirem as mesmas circunstâncias. Não estava armado; tinha apenas um rádio. Em caso de atentado, devia fazer soar o alarme e fazer «tudo o que estivesse ao seu alcance» para neutralizar o atacante ou os atacantes. Ou seja, com toda a probabilidade perderia a vida a tentar proteger um grupo de ocidentais ricos seminus. Não era bem assim que queria morrer. Mas em Casablanca não havia muito trabalho, sobretudo para os filhos dos bidonvilles. E era preferível montar guarda na praia do que vender fruta com um carrinho na medina. Sabia-o por experiência própria.
A tarde tinha sido pacata, inclusivamente para agosto, e o guarda concentrou toda a sua atenção na mulher que se aproximava a oeste, onde ficavam o Tahiti e os outros clubes da praia. Era baixinha e de cabelo escuro e, ao contrário da maioria das ocidentais que visitava a praia, ia discretamente vestida. Tinha um verdadeiro ar de melancolia, como tivesse enviuvado há pouco. Trazia um saco de praia pendurado no ombro direito. Louis Vuitton, um modelo muito na moda naquele verão. O guarda perguntou-se se tinha consciência de que aquele saco custava mais dinheiro do que muitos marroquinos veriam em toda a sua vida.
Precisamente nesse momento, uma das mulheres deitadas perto da margem, a francesa antipática, cumprimentou-a levantando o braço. A mulher de aspeto melancólico aproximou-se e sentou-se na beira da sua espreguiçadeira. Os rapazes da praia ofereceram-se para lhe levar outra espreguiçadeira, mas ela disse que não. Evidentemente, não pensava ficar muito tempo. A inglesa alta e bonita parecia incomodada com a interrupção. Aborrecida, olhava desastrosamente para o mar enquanto a francesa e a recém-chegada falavam com ar de confiança e fumavam uns cigarros que a francesa tinha tirado do seu saco, também um Louis Vuitton; o mesmo modelo, de facto.
Passado um momento, a mulher de aspeto triste levantou-se para se ir embora. A francesa, que tinha voltado a pôr o vestido, acompanhou-a uns cem metros pela beira-mar. Depois abraçaram-se e cada uma seguiu o seu caminho: a mulher melancólica regressou para os clubes da praia e a francesa regressou para a sua espreguiçadeira. Trocou umas palavras com a inglesa alta e bela. Depois, a inglesa levantou-se e prendeu o páreo à cintura. Para deleite do guarda, não se incomodou a vestir a t-shirt translúcida. A visão do seu corpo perfeito distraiu-o a tal ponto que só deu uma olhadela aos sacos de praia quando, um momento depois, passaram pela porta e regressaram ao recinto do hotel.
Juntas entraram no elevador e subiram para o quarto piso, onde lhes franquearam a entrada para os três quartos convertidos num só. A alta e bela inglesa entrou na suíte que partilhava com Monsieur Martel. De imediato, ele atraiu-a para si e sussurrou-lhe algo ao ouvido que a francesa não conseguiu ouvir. Mas pouco importava: na Casa dos Espiões estariam a ouvir. Estavam sempre a ouvir.
48
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela noite, não recebeu qualquer mensagem de Mohammad Bakkar ou dos seus subordinados, e na manhã seguinte também não. Na Avenida Rei Saul e em Langley, e em todos os pontos intermédios, os ânimos exaltaram-se. Até Paul Rousseau, no seu refúgio na parte mais profunda da sede da DGSI em Levallois-Perret, começou a ter as suas dúvidas. Temia que tivesse havido alguma fuga de informação e que a operação estivesse a meter água. O culpado era, sem dúvida, o seu estranho colaborador: o agente que tinha chantageado e recrutado sem permissão do seu chefe, nem do ministro. O agente a quem tinha dado total imunidade. Os jovens e hostis colaboradores de Morris Payne, o diretor da CIA, partilhavam o pessimismo de Rousseau. Mas, ao contrário do francês, não estavam dispostos a esperar indefinidamente que o telefone tocasse. Eram militares de carreira, mais do que espiões, e preferiam abrir fogo diretamente contra o inimigo. Payne, ao que parece, era da mesma opinião. Convocou Adrian Carter para uma reunião no seu escritório e expôs-lhe claramente o seu ponto de vista. Carter encarregou-se de transmitir a mensagem a Gabriel através de uma videoconferência segura do Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA. Gabriel, por sua vez, estava no centro de operações montado na Casa dos Espiões.
— Nada de alaridos — disse.
— O que é que queres dizer?
— O Mohammad Bakkar é a estrela da companhia. E a estrela da companhia é quem marca a hora e o lugar do encontro.
— Até uma estrela precisa de um bom conselho, de vez em quando.
— Isso não corresponde à forma como a relação tem funcionado até agora. Se mandar o Martel tomar a iniciativa, o Bakkar vai perceber que se passa algo de estranho.
— Pode ser que já saiba.
— Ligar-lhe não vai mudar isso.
— Os chefes acham que poderia resolver a situação num sentido ou noutro.
— Ah, sim?
— E a Casa Branca...
— Desde quando é que a Casa Branca está metida nisto?
— Desde o princípio. Segundo parece, o presidente está muito atento ao assunto.
— Que reconfortante. E exatamente quantas pessoas é que sabem disto em Washington, Adrian?
— É difícil saber. — Carter franziu a testa. — O que é este barulho?
— Não é nada.
— Parece alguém a rezar.
— E é, efetivamente.
— Quem?
— O Tarek e o Hamid. Tentam afugentar os jinns.
— O quê?
— Os jinns — repetiu Gabriel.
— Eu prefiro o gim com lima e um pouco de tónica.
Gabriel perguntou-lhe pelos dois drones que Morris Payne tinha atribuído à operação. Um era um drone de vigilância Sentinel. O outro, um Predator. Carter explicou-lhe que o Sentinel já estava na zona e podia sobrevoar Marrocos assim que Gabriel tivesse um alvo claro. O Predator, armado com dois mortíferos mísseis Hellfire, estava numa base próxima, pronto para entrar em ação. A CIA não tinha autoridade para lançar um ataque em Marrocos. Só o presidente podia dar essa ordem, e até nesse caso — afirmou Carter — seria o último recurso.
— Os marroquinos vão ficar furiosos — disse.
— Quanto tempo demorará o Predator a estar em situação de disparar?
— Depende da localização do alvo. Duas horas, no mínimo.
— Duas horas é muito.
— Não são os felinos mais velozes da selva. Mas nada disto faz sentido — disse Carter — enquanto o Mohammad Bakkar não convocar o teu rapaz para uma reunião.
— Vai ligar — afirmou Gabriel, e cortou a ligação.
No entanto, no fundo não tinha tanta certeza. E quando passou o meio-dia sem que tivesse notícias, sucumbiu momentaneamente ao pessimismo que se tinha apoderado dos seus colegas de Paris e de Washington. Distraiu-se a conduzir as suas personagens: os Antonov e os seus amigos, o Jean-Luc Martel e a Olivia Watson. Mandou Martel e Mikhail às redondezas de Casablanca à procura de possíveis localizações para um novo hotel que a JLM Enterprises não tinha intenção de construir e despachou Natalie e Olivia para o gigantesco Morocco Mall, onde, munidas dos cartões de crédito de Martel, invadiram várias lojas exclusivas. Almoçaram depois com Christopher Keller no quartier Gauthier. O britânico não viu indícios de vigilância, nem da DST marroquina, nem de qualquer outro tipo. Eli Lavon, que seguiu Martel e Mikhail durante a sua saída à procura de supostos terrenos para construir, informou que também não tinha detetado qualquer sinal de que os estivessem a vigiar.
A meio da tarde, enquanto o pessimismo de Gabriel se agudizava, houve outra crise relativa aos jinns. Hamid tinha encontrado aberta a janela de um quarto (o de Dina, mais especificamente) e temia que vários demónios novos se tivessem esgueirado para o interior da casa. Apoiado por Yaakov, propôs de novo a possibilidade de um exorcismo. Conhecia um homem do seu bidonville que trataria disso por um preço módico, com o sacrifício de cabra incluído. Gabriel negou-se: continuaram a encomendar sal, sangue e leite com a esperança de que tudo se resolvesse. Hamid, evidentemente, duvidava disso.
— Como queira — disse, muito sério. — Mas temo que isto vá acabar mal. Para todos.
Às cinco da tarde, até Gabriel estava convencido de que a Casa dos Espiões estava assombrada e de que Aisha e os seus ferozes amigos conspiravam contra ele. Mandou Natalie e Olivia à praia para apanharem sol e saiu para dar um passeio sozinho (sem escoltas, nem armas) pelas arcadas sujas da cidade velha. Vagueou sem rumo, atravessando praças cheias de gente e avenidas congestionadas pelo tráfego vespertino, até que encontrou um café cujos clientes vestiam na sua maioria roupa ocidental. Sentados a uma mesa no recanto mais escuro do local havia três americanos: dois rapazes e uma rapariga.
Pediu em francês um café noir. Então percebeu que não tinha dinheiro marroquino. Mas não importava: o empregado aceitou, encantado, os seus euros. Lá fora, o estrépito da rua era opressivo. Abafava o som da televisão que havia por cima do balcão e a tranquila conversa dos três americanos. Então, às seis horas e doze minutos, sufocou a vibração do telemóvel de Gabriel. Leu a mensagem, um momento depois, e sorriu. Ao que parece, Mohammad Bakkar queria falar com Jean-Luc Martel em Fez na tarde do dia seguinte.
Antes de voltar a guardar o telemóvel no bolso, enviou uma breve mensagem a Adrian Carter para Langley. Pediu depois outro café e bebeu-o como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
49
FEZ, MARROCOS
No dia seguinte, minutos antes do meio-dia, Christopher Keller estava à entrada do hotel, a ver como os porteiros carregavam a bagagem para os carros. Martel saiu pouco tempo depois, seguido por Mikhail, Natalie e Olivia. Tinha na mão a fatura do hotel, que entregou a Keller.
— Dê-a aos seus chefes. E diga-lhes que espero que me reembolsem até ao último cêntimo.
— Vou já tratar disso.
Keller atirou a fatura para o lixo e entrou para a parte de trás do primeiro Mercedes. Martel juntou-se a ele, enquanto os outros entravam para o outro carro. Seguiram pela costa e, ao chegarem a Rabat, viraram para o interior atravessando plantações de sobreiros até chegarem aos sopés do Médio Atlas. Na primavera, os montes estariam abençoados pelas chuvas e pelo gelo derretido, mas em pleno verão eram castanhos e secos. As ladeiras estavam cheias de oliveiras, e pelas planícies estendiam-se campos de regadio. Martel olhava distraidamente pela janela, enquanto Keller controlava o fluxo de e-mails, mensagens de texto e telefonemas do telemóvel do francês. Com a ajuda de Martel, despachou os assuntos que requeriam atenção urgente. Ignorou os outros. Até Jean-Luc Martel, disse a si próprio, precisava de um dia livre de vez em quando.
Seguindo as instruções de Gabriel, pararam para comer em Mequinez, a mais pequena das quatro antigas cidades imperiais de Marrocos. Aí, Eli Lavon chegou à conclusão de que um indivíduo de trinta e poucos anos, com ar de marroquino, com óculos de sol e boné americano os estava a vigiar. Depois de almoçarem, o mesmo indivíduo seguiu-os até às ruínas romanas de Volubilis, que percorreram debaixo do sol abrasador da tarde. Lavon tirou uma fotografia ao homem, enquanto fingia admirar o arco triunfal e enviou-a para o esconderijo de Gabriel, em Casablanca. Gabriel, por sua vez, reenviou-a para Christopher Keller, que a mostrou a Martel quando voltaram para o carro.
— Reconhece-o?
— Talvez.
— O que é que quer dizer com isso?
— Quero dizer que talvez o tenha visto antes.
— Onde?
— No encontro de Rife, em dezembro do ano passado. Após os atentados de Washington.
— Com quem é que estava? Com o Bakkar?
— Não. Estava com o Khalil.
Perto das seis chegaram à Ville Nouvelle de Fez, a parte moderna da cidade, onde a maioria dos seus habitantes preferia viver. O hotel deles, o Palais Faraj, ficava perto da antiga medina. Era um labirinto de azulejos coloridos e frescos e passagens sombrias. O proprietário cedeu automaticamente a suíte real a Martel e Olivia. Keller ficaria num quarto contíguo de dimensões mais modestas, e Mikhail e Natalie um pouco mais à frente, no mesmo corredor. Levaram Olivia a dar um passeio pelos souks da medina, enquanto Martel e Keller esperavam que o telefone tocasse sentados no terraço privado da suíte real. O ar estava quente e parado. Dos curtumes próximos chegava-lhes um leve cheiro de ferrugem e fumo de lenha.
— Quanto tempo é que nos vai fazer esperar? — perguntou Keller.
— Depende.
— De quê?
— Do seu humor, imagino. Às vezes, liga logo. E às vezes...
— O quê?
— Muda de ideias.
— Sabe que estamos aqui?
— O Mohammad Bakkar — afirmou Martel — sabe tudo.
Passados vinte minutos sem que recebessem um telefonema ou uma mensagem, o francês levantou-se bruscamente.
— Preciso de um copo.
— Peça algo ao serviço de quartos.
— Há um bar lá em cima — disse Martel e, antes que Keller se opusesse, dirigiu-se à porta.
Lá fora, no hall, carregou no botão do elevador e, como não apareceu de imediato, subiu pelas escadas. O bar, pequeno e escuro, ficava no último piso e de lá dominavam-se as cúpulas da medina. Martel pediu a garrafa de Chablis mais cara da carta de vinhos. Keller, só um café.
— De certeza que não quer um pouco? — perguntou Martel, enquanto admirava um copo de vinho à luz do sol.
Keller respondeu que preferia um café.
— Não bebe quando está de serviço?
— Algo do género.
— Não sei como é que consegue. Está há dias sem dormir. Imagino que uma pessoa acaba por se acostumar quando se dedica ao seu ofício — acrescentou o francês pensativamente. — À espionagem, quero dizer.
Keller lançou uma olhadela ao barman. Não havia mais ninguém no local.
— Foi sempre um espião? — insistiu Martel.
— E você? Foi sempre um narcotraficante?
— Eu nunca fui narcotraficante.
— Ah, sim — disse Keller. — Laranjas.
Martel observou-o atentamente por cima da borda do copo de vinho.
— Tenho a impressão de que passou uma boa temporada no exército.
— Não tenho jeito para militar. Nunca gostei de ordens. E não gosto de trabalhar em equipa.
— Então pode ser que seja um militar especial. Do SAS, por exemplo. Ou deveria dizer do Regimento? Não é assim que os seus camaradas lhe chamam?
— Ignoro.
— Que estupidez — replicou Martel bruscamente.
A sorrir para o barman marroquino, Keller olhou pela janela. A escuridão começava a acomodar-se sobre a medina, mas nos cumes mais altos das montanhas ainda restava um laivo de luz rosada.
— Deveria ter mais cuidado, Jean-Luc. O rapaz do balcão poderia ofender-se.
— Conheço os marroquinos melhor do que você. E reconheço um ex-membro do SAS quando o vejo. Todas as noites, algum inglês rico chega a um dos meus hotéis ou restaurantes, acompanhado pela sua escolta privada. E são sempre veteranos do SAS. Suponho que é melhor dedicar-se à espionagem do que ser lacaio de algum executivo britânico com vontade de ser arrogante.
Naquele momento, Yossi Gavish e Rimona Stern entraram no bar e sentaram-se a uma mesa, do outro lado do local.
— Os seus amigos de Saint-Tropez — comentou Martel. — Convidamo-los a juntarem-se a nós?
— Voltemos para baixo com a garrafa.
— Ainda não — respondeu Martel. — Sempre gostei desta vista ao entardecer. Este lugar é Património da Humanidade, sabia? E, no entanto, grande parte das pessoas que vivem aqui em baixo venderia de boa vontade o seu ruinoso riad ou a sua dar a algum ocidental para comprar um bonito e limpo apartamentozinho na Ville Nouvelle. É uma pena, na verdade. Não sabem o que têm. Às vezes, o velho é muito melhor do que o novo.
— Poupe-se a filosofia barata — afirmou Keller com um ar aborrecido.
Rimona estava a rir-se de algo que Yossi tinha dito. Keller deu uma vista de olhos às últimas mensagens e aos e-mails que Martel tinha recebido, enquanto este continuava a contemplar o pôr-do-sol na medina.
— Fala muito bem francês — comentou Martel, ao fim de um momento.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Houve um silêncio. Foi Martel quem o quebrou.
— Há muitos anos, quando ainda vivia em Marselha, corria o rumor de que havia um inglês que trabalhava como assassino para o clã dos Orsati. Tinha pertencido ao SAS, ou era o que se dizia. Pelos vistos, era um desertor. — Martel fez uma pausa e depois acrescentou: — Um cobarde.
— Parece o argumento de uma história de espiões.
— Às vezes, a realidade supera a ficção. — Martel olhou-o fixamente. — Como sabiam sobre o René Devereaux?
— O Devereaux conhece toda a gente.
— A voz dessa gravação era a sua.
— Ah, sim?
— Não consigo sequer imaginar as coisas que teve de lhe fazer para conseguir que falasse. Mas devem ter também outra fonte — acrescentou o francês. — Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
— A Olivia não tem nada a ver com isto.
O ceticismo de Martel era evidente.
— Pode ficar com eles?
— A que é que se refere?
— Aos cinquenta milhões que lhe deram por aqueles quadros. Aos cinquenta milhões que lhe pagaram para que me traísse.
— Beba o seu vinho, Jean-Luc. Desfrute da paisagem.
— Cinquenta milhões é muito dinheiro — prosseguiu Martel. — O tal iraquiano chamado Khalil deve ser muito importante.
— É.
— E se mostrar a cara? O que acontecerá então?
— O mesmo que acontecerá consigo se tocar num cabelo da Olivia — replicou Keller com a voz calma.
A ameaça não pareceu afetar o francês.
— Talvez alguém deva atender — disse.
Keller olhou para o telefone, que vibrava sobre a mesa baixa, entre eles os dois. Deitou uma vista de olhos ao número e passou o telemóvel a Martel. A conversa muito breve decorreu numa mistura de francês e árabe marroquino. Depois, Martel desligou a chamada e entregou o telemóvel.
— E então? — perguntou Keller.
— O Mohammad mudou de planos.
— Quando é que se vão ver?
— Amanhã à noite. E não me quer ver só a mim — disse Martel. — Estamos todos convidados.
50
CASABLANCA, MARROCOS
Christopher Keller não era o único que vigiava o telefone de Jean-Luc Martel. No esconderijo em Casablanca, Gabriel também não o perdia de vista. Ouviu o fluxo constante de chamadas a chegar ao longo dessa tarde e leu as numerosas mensagens e e-mails que o francês recebeu. E às sete e um quarto ouviu as poucas palavras da conversa entre Martel e um homem que não se incomodou a apresentar-se. Ouviu a gravação mais três vezes de princípio ao fim e, de seguida, procurou o minuto 19:16:13 e carregou no ícone de play.
— O Mohammad e o seu sócio gostariam de conhecer os seus amigos. Mais especificamente um deles.
— Qual?
— O alto. O que é casado com aquela francesa tão bonita e que tem dinheiro aos pontapés. É russo, não é? Traficante de armas?
— De onde é que tirou essa informação?
— Isso não importa.
— Porque é que querem conhecê-lo?
— Para lhe propor um negócio. Acha que o seu amigo pode estar interessado? Diga-lhe que vale a pena.
Gabriel carregou na pausa e olhou para Yaakov Rossman.
— Como é que achas que o Mohammad Bakkar e o sócio dele souberam o que faz na realidade o Dmitri Antonov?
— Pode ser que tenham ouvido os mesmos rumores que o Jean-Luc Martel ouviu. Os que espalhámos como migalhas de pão entre Londres e Nova Iorque, passando pelo sul de França.
— E esse negócio que lhe querem propor?
— Duvido que esteja relacionado com o haxixe.
— Ou com as laranjas — acrescentou Gabriel. Depois disse: — Tenho a sensação de que quem quer mesmo conhecer o Dmitri Antonov é o sócio do Mohammad. Mas para quê?
— Podemos assumir que o hipotético sócio de Mohammad é o Saladino?
— De acordo.
— Pode ser que queira comprar armas. Ou se calhar quer material radiológico de origem russa para substituir o stock que perdeu quando capturaram o barco.
— Ou pode ser que queira matá-lo. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou: — A ele e à sua esposa, aquela francesa tão bonita.
Carregou no play.
— Onde?
— Vão de carro para o sul, até Erfoud e...
— Erfoud? Isso fica...
— A sete horas nesta época do ano, talvez menos. O Mohammad preparou-vos dois jipes. Aqueles Mercedes deles não vos servirão de nada para onde vão.
— E onde é que isso fica?
— É um acampamento no Saara. Bastante luxuoso. Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido.
Gabriel parou a gravação.
— Um acampamento à beira do Saara. Muito tradicional, muito agradável.
— E muito isolado — comentou Yaakov.
— Pode ser que isso seja o que o Saladino quer.
— Achas que nos traíram?
— A mim pagam-me para me preocupar, Yaakov.
— Algum suspeito?
— Só um.
Gabriel abriu outro arquivo de áudio no seu computador e depois de ajustar o tempo carregou no play.
— Fala muito bem francês.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Gabriel carregou na pausa.
— Em algum momento, tinha de perceber — disse Yaakov. — Procedem do mesmo modo. São duas caras da mesma moeda.
— O Keller nunca esteve metido no narcotráfico.
— Não — anuiu Yaakov com sarcasmo. — Só ganhava a vida a matar pessoas.
— Eu acredito na redenção.
— Não me surpreende.
Gabriel franziu a testa e carregou de novo no play.
— Mas devem ter também outra fonte. Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
Gabriel parou a gravação.
— Também era lógico que se apercebesse disto em algum momento — comentou Yaakov.
Na Casa dos Espiões fez-se silêncio. Os ocupantes da suíte real do Palais Faraj, pelo contrário, discutiam sobre se deviam jantar no hotel ou num restaurante da medina. Falavam disso ao estilo dos milionários aborrecidos. A atuação deles era tão convincente, que até Gabriel, que tinha criado as personagens, não soube se se tratava de uma discussão autêntica ou a fingir para despistar a DST marroquina, que, sem dúvida, também os estava a ouvir.
— Pode ser que tenhamos perdido o Martel — disse Gabriel, por fim. — Quem sabe? É possível que nunca o tenhamos tido em nosso poder.
— São outra vez os jinns que falam pela tua boca?
Gabriel não disse nada.
— Tem estado debaixo do nosso controlo desde que lhe estendemos a armadilha. Vigilância absoluta. Física, eletrónica e virtual. O Keller praticamente dormiu no seu quarto. É nosso de corpo e alma.
— Pode ser que nos tenha escapado alguma coisa.
— Como por exemplo?
— Uma sequência concreta de zumbidos do telefone ou algum código impessoal ao qual não demos importância.
— Com jornal ou sem ele? Com guarda-chuva ou sem?
— Exato.
— Já ninguém lê jornais, e em Marrocos não chove nesta época do ano. Para além disso — acrescentou Yaakov —, se o Mohammad Bakkar achasse que o Martel passou para o outro lado, não teria pedido para vê-lo.
Em Fez, a discussão a respeito do jantar tinha adquirido contornos verdadeiramente azedos. Exasperado, Gabriel arrumou a questão enviando uma mensagem de texto a Mikhail. JLM e os seus acompanhantes jantaram no hotel nessa noite.
— Boa ideia — comentou Yaakov. — Convém que esta noite vão cedo para a cama. Amanhã será um dia muito longo.
Gabriel ficou calado.
— Não estarás a pensar em abortar a operação, pois não?
— Claro que sim.
— Chegámos muito longe — reclamou Yaakov. — Manda-os ao acampamento, que se reúnam com eles. Identifica o Saladino, dá o aviso. E, quando se for embora, deixa que os americanos lancem um míssil e os convertam numa nuvenzinha de fumo.
— Dito assim parece muito simples.
— É. Os americanos fazem-no diariamente.
Gabriel ficou em silêncio, de novo.
— O que é que vais fazer? — perguntou Yaakov.
Gabriel carregou no play.
Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido...
51
FEZ, MARROCOS
Natalie acordou com as almofadas empapadas em suor, cega pelo sol. A pestanejar, contemplou o pedaço de céu que se via da sua janela e, por um instante, não soube onde estava. Encontrava-se em Fez, em Casablanca ou em Saint-Tropez? Ou estava de novo naquele casarão repleto de pátios e quartos, perto de Mossul? Tu és o meu Maimónides... Virou-se e esticou a mão para a fita da persiana, mas não a alcançou. A metade da cama que Mikhail ocupava ainda estava na penumbra. Ele dormia tranquilamente, com o tronco descoberto.
Natalie fechou os olhos com força para fugir à luz do sol e tentou reunir os fragmentos do seu último sonho daquela manhã. Ia a caminhar por um jardim povoado de ruínas: ruínas romanas, tinha a certeza disso. Não eram as ruínas de Volubilis que tinham visitado na véspera, mas as de Palmira, na Síria. Também tinha a certeza disso. Era uma das poucas ocidentais que tinham visitado Palmira após a sua captura por parte do Estado Islâmico, e tinha visto com os seus próprios olhos os destroços que os combatentes sagrados do ISIS tinham causado nas ruínas. Tinha-as percorrido ao luar, acompanhada por um jihadista egípcio chamado Ismail que estava a receber treino no mesmo campo do que ela. Mas, no sonho, era outro homem que ia a seu lado. Um homem alto e corpulento que coxeava levemente. Um objeto indefinido, grotesco e grande, ia pendurado na sua mão direita. Só agora, no meio da neblina quente da manhã, Natalie compreendeu que aquela coisa era a sua cabeça.
Sentou-se devagar na cama para não acordar Mikhail e apoiou os pés no chão despido. O piso parecia que tinha saído do forno. Por um instante, sentiu náuseas. Deduziu que o sonho a tinha posto doente. Ou talvez fosse alguma coisa que tivesse comido, alguma iguaria marroquina que não lhe tinha caído bem.
Fosse como fosse, correu para a casa de banho para vomitar. Depois, começou a sentir os primeiros assaltos de uma forte enxaqueca. Logo hoje, disse a si própria. Tomou dois analgésicos com um gole de água da torneira e passou uns minutos debaixo da água fresca do duche. Depois, embrulhada num roupão fino, entrou na salinha de estar e preparou uma chávena de café bem forte na máquina Nespresso. O tabaco da Madame Sophie parecia chamá-la da mesa. Fumou um cigarro só para manter a fachada, ou pelo menos foi o que disse a si própria. Não conseguiu aliviar a dor de cabeça.
És muito corajosa, Maimónides. Demasiado corajosa do que te convém...
Oxalá fosse verdade, pensou. Quantas pessoas estariam vivas se tivesse tido a coragem de deixá-lo morrer? Washington, Londres, Paris, Amesterdão, Antuérpia, e todas as outras cidades. Sim, os americanos queriam apanhá-lo. Mas ela também.
Entrou no quarto de vestir. A roupa que ia usar naquele dia estava dobrada num armário. Para além disso, as suas malas estavam feitas. Tal como as de Mikhail. As etiquetas revelavam um fabrico luxuoso, mas as malas, tal como o próprio Dmitri Antonov, eram falsas. A mala mais pequena tinha um fundo falso. Dentro do compartimento escondido havia uma Beretta 92FS, dois carregadores cheios de projéteis de nove milímetros e um silenciador.
Depois de aceitar trabalhar para a Departamento, Mikhail mostrara-lhe como carregar e descarregar uma arma. Agora, agachada no chão do quarto de vestir, colocou rapidamente o silenciador no extremo do canhão, introduziu um dos carregadores na coronha e carregou a primeira bala. Levantou depois a arma segurando-a com as duas mãos como Mikhail lhe ensinara e apontou para o homem que segurava a sua cabeça na mão.
Vá lá, Maimónides, faz de mim um mentiroso...
— O que é que estás a fazer? — perguntou uma voz atrás dela.
Natalie virou-se sobressaltada e apontou para o peito de Mikhail. Tinha a respiração agitada e a coronha da Beretta húmida entre as mãos trémulas. Mikhail aproximou-se lenta e suavemente, baixou o canhão da pistola para o chão. Natalie largou as mãos e observou como devolvia a pistola ao seu estado original e a depositava no compartimento secreto da mala.
Levantando-se, Mikhail pôs-lhe um dedo sobre os lábios e apontou para o teto para lhe indicar que podia haver microfones da DST. Depois conduziu-a para fora, para o terraço, e abraçou-a.
— Quem és? — sussurrou-lhe ao ouvido em inglês com uma pronúncia russa.
— Sou a Sophie Antonov — respondeu ela mansamente.
— O que é que estás a fazer em Marrocos?
— O meu marido está a tratar de negócios com o Jean-Luc Martel.
— O que é que o teu marido faz?
— Antes, os minerais. Agora, os investimentos.
— E o Jean-Luc Martel?
Natalie não respondeu. De repente, tinha frio.
— Queres explicar-me o que se passou?
— Pesadelos.
— Que tipo de pesadelos?
Natalie contou-lhe.
— Era só um sonho.
— Esteve prestes a acontecer, uma vez.
— Não voltará a acontecer.
— Não sabes isso — disse ela. — Não sabes como ele é inteligente.
— Nós somos mais.
— A sério?
Fez-se um silêncio.
— Manda uma mensagem ao posto de comando — sussurrou-lhe Natalie, por fim. — Diz-lhes que não posso ir. Que não me posso aproximar dele. Tenho medo de deitar toda a operação por terra.
— Não — respondeu Mikhail. — Não vou mandar nenhuma mensagem.
— Porquê?
— Porque tu és a única que o consegue identificar.
— Tu também o viste. No restaurante de Georgetown.
— A verdade — afirmou Mikhail — é que tentei não olhar para ele. Mal me lembro da cara dele.
— E a gravação das câmaras de segurança do Four Seasons?
— Não é muito boa.
— Não consigo estar na presença dele — disse Natalie passado um bocado. — Vai-me reconhecer. Porque é que não me havia de reconhecer? Fui eu quem salvou a vida daquele miserável.
— Sim — disse Mikhail. — E agora vais ajudar-nos a matá-lo.
Voltou a levá-la para a cama e fez os possíveis para ajudá-la a esquecer o pesadelo. Depois, tomaram um duche juntos e vestiram-se. Natalie passou um longo momento a pentear-se ao espelho.
— O que é que pareço? — perguntou.
— Uma judia de Marselha — respondeu Mikhail com um sorriso.
Lá em cima, o pessoal do hotel estava a levantar o buffet do pequeno-almoço. Enquanto tomavam café e pão, Mikhail leu os jornais da manhã no seu tablet, enquanto Natalie, fingindo um aborrecimento que não sentia, contemplava o decrépito caos da medina. Por fim, pouco antes das onze, desceram para o hall, onde Martel e Christopher Keller estavam a pagar a conta. Olivia estava lá fora, vendo como os porteiros metiam a bagagem nos carros.
— Dormiste bem? — perguntou.
— Melhor do que nunca — respondeu Natalie.
Entrou na parte de trás do segundo carro e ocupou o seu lugar junto da janela. Uma cara que não reconhecia devolvia-lhe o olhar através do vidro.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
52
LANGLEY, VIRGÍNIA
O Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA (NCTC) tinha estado em tempos localizado numa só sala do corredor F do quinto piso do quartel-general da Agência. Com os seus ecrãs de televisão, os seus telefones barulhentos e os seus dossiês amontoados, assemelhava-se à redação de um jornal de segunda linha. Os seus membros trabalhavam em pequenos grupos dedicados a objetivos específicos: a Fação do Exército Vermelho, o Exército Republicano Irlandês, a Organização para a Libertação da Palestina, Abu Nidal, Hezbollah... Tinha, para além disso, uma unidade, formada em 1996, que centrava os seus esforços num extremista saudita pouco conhecido, chamado Osama Bin Laden, e a sua pujante rede de terrorismo islamista.
Como era de esperar, o NCTC tinha aumentado consideravelmente de tamanho desde os atentados do 11 de Setembro e agora ocupava uns dois mil metros quadrados do andar térreo da nova sede da CIA, com o seu próprio átrio e torniquetes de acesso. Por motivos de segurança, o verdadeiro nome do chefe do NCTC tinha deixado de ser de domínio público. Para o mundo exterior (e para o resto de Langley) era simplesmente «Roger». Kyle Taylor gostava daquela alcunha. Um tipo chamado Kyle não metia medo a ninguém. Roger, pelo contrário, era um nome que impunha respeito, sobretudo se comandava uma frota de drones armados e tinha o poder de pulverizar um indivíduo pelo simples facto de estar num lugar concreto no momento errado.
Uzi Navot tinha esbarrado com ele pela primeira vez há já uma década, quando Taylor trabalhava na delegação da CIA em Londres. Tinham sentido então uma antipatia instantânea um pelo outro. Navot via Taylor (que não falava mais nenhuma língua do que o inglês e era, portanto, inútil para o trabalho de campo) como pouco mais do que um espião de bancada ou um soldado de sala de reuniões. E Taylor, que acalentava o conhecido ressentimento da CIA contra o Departamento e Israel (agudizado, possivelmente, no seu caso particular) considerava Navot um tipo calculista e traiçoeiro. De resto, davam-se às mil maravilhas.
— É a primeira vez que visitas o Centro? — perguntou Taylor depois de poupar a Navot a incómoda passagem pelo controlo de segurança.
— Não, mas há muito tempo que não vinha aqui.
— Decididamente crescemos desde a última vez que vieste. Não tivemos outro remédio. Todos os dias levamos a cabo operações no Afeganistão, Paquistão, Iémen, Síria, Somália e Líbia.
Parecia um agente de vendas a vangloriar-se da expansão sem precedentes da sua empresa.
— E agora também em Marrocos — acrescentou Navot baixinho, convidando-o a continuar a falar.
— A verdade é que, tendo em conta quão delicado é o assunto do ponto de vista político, muito poucas pessoas estão a par dele, até aqui, no Centro — acrescentou Taylor. — O acesso é muito restrito. Estamos a usar uma das nossas salas de operações mais pequenas. Completamente opaca.
Conduziu Navot por um corredor ladeado de portas numeradas atrás das quais analistas e operadores sem rosto nem nome rastreavam terroristas e conspiradores por todo o globo terrestre. Ao fundo do corredor havia um curto lanço de escadas metálicas e outro posto de controlo pelo qual Taylor e Navot passaram sem parar. Acima havia um hall mal iluminado e uma porta que só se abria através de um código de segurança. Taylor marcou rapidamente o código no painel e fixou o olhar na lente do leitor biométrico. Segundos depois, a porta abriu-se com um estalido.
— Bem-vindo ao Buraco Negro — comentou ao fazer Navot entrar. — Os outros já cá estão.
Taylor apresentou-lhe Graham Seymour, esquecendo quiçá (ou quiçá não) que se conheciam há muito tempo e, de seguida, Paul Rousseau.
— Sei que já conheces o Adrian.
— E muito bem, aliás — afiançou Navot, aceitando a mão que Carter lhe estendia. — Eu e o Adrian superámos, juntos, várias guerras, e temos cicatrizes que o atestam.
Os seus olhos demoraram uns instantes a acostumar-se por completo à penumbra. No exterior despontava o que prometia vir a ser um opressivo dia de verão, mas ali, naquela sala de operações de acesso restrito, no mais profundo de Langley, reinava uma noite eterna. Sentados diante de várias mesas, em redor da sala, havia alguns técnicos cujos rostos juvenis eram iluminados pelo resplendor dos ecrãs de computador. Dois deles vestiam um macacão de aviador: eram os responsáveis por pilotar os dois drones que, naquele momento, sobrevoavam a parte oriental de Marrocos sem conhecimento do governo marroquino. As imagens enviadas pelas câmaras de alta resolução dos dois aparelhos tremeluziam nos ecrãs, na parte da frente da sala. O Predator, com os seus dois mísseis Hellfire, estava já sobre Erfoud. Pelo contrário, o Sentinel permanecia a sudeste de Fez, de onde a sua câmara focava claramente o Hotel Palais Faraj. Navot viu Christopher Keller e Jean-Luc Martel surgirem no pátio da frente do hotel. Uns segundos depois, dois Mercedes passaram debaixo de uma arcada e rumaram para sul, para as montanhas.
Navot sentou-se junto de Graham Seymour. Kyle Taylor levara Adrian Carter para um recanto da sala para o consultar sobre algum assunto privado. A tensão que havia entre eles saltava à vista.
— Alguma ideia sobre quem comanda as tropas? — perguntou Navot.
— Por enquanto — respondeu Graham Seymour —, eu diria que é o Gabriel que tem a faca e o queijo na mão.
— Até quando?
— Até o Saladino aparecer. Se isso acontecer — acrescentou Seymour —, vale tudo.
O trânsito na Ville Nouvelle era um pesadelo. Nem sequer na parte velha de Fez parecia haver forma de evitá-lo. Passado um tempo, os edifícios comerciais foram ficando para trás e começaram a aparecer pequenos terrenos cultivados e prédios de habitação de construção recente. Eram blocos de três andares, envelhecidos antes de tempo, com garagens no piso térreo. A maioria das garagens tinha sido convertida em minúsculas lojas ou restaurantes, ou serviam como chiqueiros para guardar animais. As ovelhas e as cabras pastavam entre as oliveiras acabadas de plantar, e as famílias faziam refeições campestres debaixo de qualquer sombra que encontrassem.
Pouco a pouco, o terreno foi-se inclinando para os longínquos cumes do Médio Atlas e os olivais deram lugar aos densos arvoredos de alfarrobeiras, argânias e pinheiros de Alepo. As águias voavam em círculos, à procura de chacais. E, por cima das águias, pensou Christopher Keller, os drones procuravam Saladino.
A primeira vila de alguma importância era Imouzzer. Construída pelos franceses, estava povoada por uns treze mil membros da tribo berbere de Aït Seghrouchen, que falavam um dialeto da antiga língua berbere. Ali, a temperatura descia vários graus (estavam já a uns mil e duzentos metros de altitude) e os souks e cafés exclusivos para homens da rua principal estavam a abarrotar de gente. Keller estudou as caras de jovens e velhos por igual. Eram muito diferentes das caras que vira em Casablanca e em Fez. Traços europeus, cabelo e olhos mais claros. Era como se tivessem atravessado uma fronteira invisível.
Precisamente nesse momento o seu telemóvel vibrou: acabava de receber uma mensagem. Leu-a e olhou para Martel.
— Os nossos amigos têm a impressão de que nos estão outra vez a seguir. Acham que podia ser o mesmo homem que nos seguiu ontem em Mequinez e Volubilis. Gostavam de ter um retrato mais claro dele.
— O que é que pretendem?
Keller mandou o condutor parar num quiosque, nos arredores da povoação. O carro em que iam Mikhail, Natalie e Olivia parou atrás e, a seguir, parou um Renault empoeirado. Keller conseguiu ver o passageiro pelo retrovisor lateral: cabelo escuro e muito curto, bochechas largas, óculos de sol, boné de basebol americano. O condutor, pelo contrário, não se conseguia avistar.
— Traga-nos duas garrafas de água — ordenou a Martel.
— Esta terra não é muito hospitaleira por assim dizer.
— Aposto que saberá defender-se.
Martel saiu e aproximou-se do quiosque. Keller voltou a olhar pelo retrovisor e viu que o passageiro saía do Renault. Quando passou junto do Mercedes, tirou-lhe uma fotografia através da janela fumada da parte de trás. Saiu tão desfocada que era inútil. Mas, pouco depois, quando o homem regressou ao Renault, Keller conseguiu fotografar claramente a sua cara. Mostrou a fotografia a Martel quando o francês regressou ao lugar de trás do carro com duas pegajosas garrafas de água mineral Sidi Ali.
— É ele, não há dúvida — disse Martel. — É o que vi no Rife no inverno passado, com o Khalil.
Enquanto o carro se afastava da berma, Keller mandou a fotografia para o posto de comando de Casablanca. Depois voltou a olhar pelo retrovisor lateral. O outro Mercedes estava mesmo atrás deles. E atrás do Mercedes circulava um Renault coberto de pó com dois homens lá dentro.
Os muitos anos de cooperação, com frequência polémica, entre a CIA e a DST marroquina tinham granjeado a Langley o acesso à longa lista de jihadistas marroquinos e seus acólitos. Como resultado, os analistas do Centro Nacional de Antiterrorismo demoraram só uns minutos a identificar o sujeito da fotografia. Era Nazir Bensaïd, um ex-integrante da Salafia Jihadia marroquina preso depois dos atentados suicidas de 2003 em Casablanca. Posto em liberdade em 2012, Bensaïd fora para a Turquia e finalmente tinha acabado no califado do ISIS. O governo marroquino achava que continuava lá. Mas, evidentemente, estava enganado.
Uma fotografia de Bensaïd tirada na época em que foi preso apareceu naquele instante nos ecrãs do Buraco Negro do NCTC, juntamente com outra fotografia tirada em 2012, à sua chegada ao Aeroporto Ataturk de Istambul. Ambas as fotografias foram remetidas para Gabriel, que por sua vez as enviou para Keller, que confirmou que Nazir Bensaïd era o indivíduo que acabava de ver.
Mas o que é que Nazir Bensaïd estava a fazer numa vila habitada por treze mil berberes, nas montanhas do Médio Atlas? E porque é que os estava a seguir até Erfoud? Havia a possibilidade de que tivesse regressado a Marrocos clandestinamente e tivesse integrado o cartel de Mohammad Bakkar. Mas a explicação mais provável era que estivesse a velar pelos interesses do sócio de Bakkar, aquele iraquiano alto que se fazia chamar Khalil e coxeava ao andar.
Dentro do Buraco Negro, os técnicos marcaram digitalmente o Renault sedan e os seus dois ocupantes, enquanto em Fort Meade, Maryland, a NSA captava o sinal emitido pelos seus telemóveis. Adrian Carter ligou para o sexto andar para dar a notícia ao diretor da CIA, Morris Payne, que rapidamente a transmitiu à Casa Branca. Às sete e meia, hora de Washington, o presidente reuniu-se com o seu conselho de segurança na Sala de Crise, a cujos ecrãs chegavam as imagens emitidas pelos dois drones.
Na Casa dos Espiões de Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman também observavam os ecrãs, enquanto do outro lado do corredor os dois guardas da propriedade rezavam para afugentar os demónios surgidos do fogo. Através dos altifalantes do seu computador portátil, Gabriel ouvia a conversa excitada que reinava no NCTC de Langley. Desejava poder partilhar o seu otimismo, mas era-lhe impossível. A operação na sua totalidade estava agora nas mãos de um homem que tinha enganado e chantageado para que obedecesse às suas ordens. Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, relembrou. Às vezes, são eles que nos escolhem a nós.
53
ERFOUD, MARROCOS
Os jipes esperavam numa praça soalheira e poeirenta, em frente do Café Dakkar de Erfoud. Eram Toyotas Land Cruiser de um branco impoluto, acabados de lavar. Os condutores vestiam calças de algodão e coletes caqui, e exibiam a eficácia sorridente dos guias turísticos profissionais. Mas não o eram. Eram homens de Mohammad Bakkar.
A sul de Erfoud estendia-se o grande oásis de Tafilalet, com os seus palmeirais infinitos: oitocentas mil palmeiras ao todo, segundo o guia em francês que Natalie segurava com força entre as mãos. Enquanto olhava pela janela, pensou de novo naquela noite em Palmira e no seu sonho dessa manhã. Saladino a andar ao seu lado sob um luar violento, com a sua cabeça na mão... Desviou o olhar e viu que Olivia a observava com curiosidade do outro lado no banco de trás do Toyota.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
Em silêncio, Natalie olhou fixamente em frente. Mikhail ia no lugar do copiloto, junto ao condutor. O segundo Toyota, que levava Keller e Jean-Luc Martel, circulava uns cem metros à frente. Atrás, a estrada estava deserta. Nem sequer se via o Renault que os tinha seguido desde Fez.
As palmeiras diminuíram e a paisagem tornou-se íngreme e rochosa. A estrada de asfalto terminava em Rissani, e pouco depois apareceu o grande mar de areia de Erg Chebbi. A aldeia de Khamlia, um conjunto de casas baixas, da cor do barro, estendia-se ao sul das dunas. Ali, abandonaram a estrada principal e seguiram por um caminho cheio de buracos. Natalie vigiava o avanço através do telemóvel: eram um ponto azul que atravessava as terras despovoadas, a caminho da fronteira argelina. Depois, de repente, o ponto azul parou: tinham abandonado a zona com rede. Mikhail tinha levado um telemóvel por satélite para o caso de isso acontecer. Estava atrás de Natalie, na mesma mala do que a Beretta.
Continuaram a avançar durante meia hora, enquanto à sua volta o sol poente tingia de vermelho tijolo as grandes dunas esculpidas pelo vento. Passaram junto a um pequeno acampamento de nómadas berberes que estavam a ferver água para o chá à entrada de uma tenda de pelo de camelo preto. Para além disso, não se via vivalma, só as dunas altas como montanhas e o vasto céu protetor. Aquele vazio era insuportável. Natalie, apesar de estar junto de Olivia e de Mikhail, sentia-se dolorosamente só. Pôs-se a olhar para as fotografias do seu telemóvel, mas eram lembranças da Madame Sophie, não suas. Mal se conseguia lembrar da quinta de Nahalal. O Centro Médico Hadassah, o seu antigo trabalho, tinha-se esbatido quase por completo na sua memória.
Por fim, surgiu o acampamento, um conjunto de tendas coloridas dispostas ao abrigo de uma duna. Outro Land Cruiser branco tinha chegado antes deles. Natalie calculou que fosse a equipa. Deixou que um dos empregados vestidos com um turbante tratasse das suas malas. Mikhail, pelo contrário, adotando o ar arrogante de Dmitri Antonov, levou ele próprio a sua bagagem. Havia três tendas montadas à volta de um pátio central e uma quarta, com casa de banho e chuveiro, erguia-se um pouco mais longe. O pátio estava coberto por tapetes e enfeitado com grandes almofadas, e dois sofás rodeavam uma mesa baixa e comprida. As tendas também estavam atapetadas e mobiladas com autênticas camas e secretárias. Não havia qualquer indício de eletricidade, só velas e uma grande fogueira no pátio que projetava sombras sobre o sopé da duna. Natalie contou seis homens ao todo. Dois carregavam à vista as respetivas armas automáticas. Deduziu que os restantes também estivessem armados.
Com o pôr-do-sol, o ar começou a arrefecer. Na sua tenda, Natalie vestiu uma camisola polar e depois foi tomar banho para o jantar. Olivia juntou-se a ela um instante depois.
— O que é que estamos aqui a fazer? — perguntou baixinho.
— Convidaram-nos para um encantador jantar no deserto — respondeu Natalie.
Os seus olhos encontraram-se com os de Olivia no espelho.
— Por favor, diz-me que nos estão a vigiar.
— Claro que sim. E também nos estão a ouvir.
Saiu sem dizer mais nada e encontrou a mesa posta para um banquete marroquino. Os empregados mantiveram-se afastados, embora aparecessem de vez em quando para lhes encherem os copos com um chá adocicado de hortelã-pimenta. Apesar de tudo, Natalie, Mikhail e Christopher Keller cingiram-se aos seus papéis. Eram Sophie e Dmitri Antonov e o seu amigo e sócio, Nicolas Carnot. Tinham-se instalado em Saint-Tropez naquele verão e, depois de diversas vicissitudes, tinham conhecido Jean-Luc Martel e a sua glamorosa esposa, Olivia Watson. E agora, pensou Natalie, estavam os cinco nos confins da Terra, à espera de que um monstro surgisse da noite.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
Pouco depois das nove, os empregados recolheram as travessas de comida. Natalie mal tinha comido. Sozinha, aproximou-se do acampamento para fumar um dos Gitanes da Madame Sophie. Parou no lugar em que acabava a luz do fogo e começava a escuridão. Estava, pensou, na ponta do mundo. A uns quarenta ou cinquenta metros dali, um dos homens armados montava guarda no deserto. Vestia a túnica branca e o turbante de um berbere do sul. Fingindo que não o via, Natalie atirou a beata para o chão e começou a andar pela areia. O guarda, sobressaltado, atravessou-se à sua frente e indicou-lhe que regressasse ao acampamento.
— Mas quero ver as dunas — disse ela em francês.
— Não é permitido. Pode vê-las de manhã.
— Prefiro vê-las agora — respondeu. — De noite.
— É perigoso.
— Pois acompanhe-me. Assim não será perigoso.
Sem mais, começou a andar de novo pelo deserto, seguida pelo guarda berbere. As suas vestimentas resplandeciam e a sua pele, negra como o breu, não se distinguia da escuridão da noite. Natalie perguntou-lhe o nome. Disse-lhe que se chama Azûlay. Significava «o homem dos olhos bonitos».
— É verdade — comentou ela.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe — disse Natalie.
Continuaram a andar. Lá em cima, a Via Láctea cintilava qual pó de fósforo e a lua crescente brilhava com um resplendor incandescente. Em frente deles erguiam-se três dunas, ascendendo em escala de norte para sul. Natalie tirou os sapatos e, seguida por Azûlay, o Berbere, trepou à mais alta. Demorou vários minutos a chegar ao cume. Exausta, deixou-se cair de joelhos sobre a areia morna e fofa para recuperar o fôlego.
Perscrutou a paisagem com o olhar. Para poente, uma fina fileira de luzes estendia-se intermitentemente desde Erfoud, atravessando os palmeirais do oásis de Tafilalet até Rissani e Khamlia. A leste e a sul só havia deserto, mas a norte, Natalie viu uns faróis que oscilavam ao avançar para ela entre as dunas. Passado um momento, as luzes deixaram de se ver. Talvez, disse a si própria, tenha sido uma miragem, outro sonho. Depois, as luzes voltaram a aparecer.
Natalie deu meia-volta e escorregou pela ladeira da duna, até ao lugar onde tinha deixado os sapatos. Tu és a única que o consegue identificar... Mas Saladino também se lembraria dela. Porque é que não se haveria de lembrar? Afinal de contas, pensou, tinha salvado a vida daquele miserável.
54
LANGLEY, VIRGÍNIA
Os drones avistaram o veículo muito antes de Natalie, às nove e cinco, hora de Marrocos, quando virou na curva sudeste do mar de areia de Erg Chebbi. Um Toyota Land Cruiser branco com sete ocupantes. Parou no limite do acampamento e dele se apearam seis indivíduos entre os quais não se encontrava o condutor. Visto de cima através das câmaras termográficas, dava a impressão de que nenhum daqueles sujeitos coxeava. Cinco deles, visivelmente armados, permaneceram no perímetro do acampamento, enquanto o sexto entrava no pátio central, entre as tendas. Aí cumprimentou Jean-Luc Martel e, uns segundos depois, Mikhail. Como era de esperar, não havia forma de ouvir o que diziam: a falta de cobertura tinha emudecido os telemóveis. Do fundo da sala, Kyle Taylor improvisou uma possível banda sonora para o encontro.
— Mohammad Bakkar, quero apresentar-te um amigo meu, Dmitri Antonov. Dmitri, este é o Mohammad Bakkar.
— Talvez — disse Adrian Carter. — Ou talvez o Saladino tenha ajeitado um pouco a perna, tal como fez com a cara.
— Em Washington não conseguiu esconder que coxeava — assinalou Uzi Navot. — E também não o conseguiu no princípio do ano, quando o Jean-Luc Martel o viu. Para além disso, achas o Mikhail com cara de quem está a falar com o pior terrorista do mundo desde Bin Laden?
— O Mikhail sempre me pareceu um tipo bastante frio — comentou Carter.
— Não é assim tão frio.
Contemplavam a cena através da câmara do Sentinel. Mikhail, esverdeado e envolvido numa refulgente auréola de calor corporal, estava de pé a uns passos da fogueira. Com os braços cruzados, falava com uma calma visível com o recém-chegado. Keller e Olivia já tinham saído do pátio central e tinham entrado numa das tendas. Natalie, depois de regressar do seu passeio pelas dunas, tinha-se juntado a eles. Entretanto, o Predator examinava o deserto que os rodeava. Não havia sinal de outras fontes de calor.
Navot virou-se para Kyle Taylor.
— A NSA identificou outro telemóvel dentro do acampamento?
— Estão a tratar disso.
— É estranho, não achas?
— O quê?
— Não são assim tão difíceis de localizar. Para nós é fácil, mas para vocês é ainda mais fácil.
— A não ser que o telemóvel esteja desligado e lhe tenham extraído o cartão SIM.
— E os telemóveis via satélite?
— Esses são fáceis de localizar.
— E porque é que o Mohammad Bakkar não tem sempre um? É bastante perigoso andar pelo deserto sem telemóvel, não achas?
— O Saladino sabe que um telemóvel equivale a uma sentença de morte.
— É verdade — concordou Navot. — Mas como é que o Bakkar pensa avisá-lo de que pode ir para o acampamento? Através de um pombo-correio? Ou de sinais de fumo?
— Onde é que queres chegar, Uzi?
— O que quero dizer é que o Mohammad Bakkar não anda com um telemóvel via satélite porque não precisa dele para avisar o Saladino.
— Porquê?
— Porque já lá está. — Navot apontou para o ecrã. — Está sentado ao volante do Toyota.
55
SAARA, MARROCOS
A descrição física que Jean-Luc Martel fizera de Mohammad Bakkar demonstrou estar certa, pelo menos num sentido: o marroquino das montanhas do Rife era baixo (media à volta de um metro e sessenta) e de constituição forte. O seu fanatismo religioso não era evidente à primeira vista. Não usava kufi, nem barba desgrenhada, e fumava um cigarro, transgredindo as leis do Estado Islâmico, que tinha proibido o tabaco. Vestia roupa europeia e cara: um casaco de caxemira com o fecho subido, umas calças de sarja engomadas com esmero e uns mocassins de camurça completamente inadequados para o deserto. O seu relógio de pulso, cuja esfera cintilava ao refletir a luz do fogo, era grande, suíço e de ouro. O seu francês era excelente, tal como o seu inglês, idioma do qual se servia para se dirigir a Mikhail.
— Monsieur Antonov, quanto me apraz que, por fim, nos tenhamos conhecido. Tenho ouvido falar muito de si.
— O Jean-Luc?
— O Jean-Luc não é o meu único amigo em França — respondeu o marroquino com um ar cúmplice. — Causou sensação na Provença este verão.
— Não era essa a minha intenção.
— Não? — Bakkar sorriu afavelmente. — As suas festas causavam furor. Os episódios que se contavam chegaram até Marraquexe. Que escândalo!
— Há que viver a vida.
— Claro que sim. Mas tem de haver certos limites, não lhe parece?
— Nunca tinha pensado nisso.
Mohammad Bakkar sorriu.
— Espero que tenham gostado do jantar.
— Foi magnífico.
— Gosta da cozinha marroquina?
— Muito.
— Já tinha visitado Marrocos anteriormente?
— Não, nunca.
— Como é possível? O meu país é muito querido entre os europeus cosmopolitas.
— Entre os russos, não.
— Tem razão. Os russos preferem a Turquia, não sei porquê. Mas, na realidade, o senhor não é russo, pois não, Monsieur Antonov? Já não.
Mikhail sentiu que o seu coração batia com violência nas costelas.
— Continuo a ter passaporte russo — respondeu.
— Mas a sua casa é em França.
— Por agora.
Mohammad Bakkar pareceu considerar a sua resposta mais tempo do que requeria.
— E o acampamento? — perguntou a olhar à sua volta. — É do seu agrado?
— Muito, sim.
— Tentei que fosse o mais tradicional possível. Espero que não o incomode que não tenha eletricidade. Os turistas vêm ao Saara à espera de encontrar todas as comodidades da vida ocidental. Luz elétrica, telemóveis, Internet...
— Aqui não há Internet. — Mikhail levantou o telemóvel. — E isto não serve para nada.
— Sim, eu sei disso. Por isso, escolhi este lugar.
Mikhail levantou-se e fez um movimento para sair.
— Onde é que vai? — perguntou Bakkar.
— O senhor e o Jean-Luc têm de falar de negócios.
— Mas esses negócios dizem-lhe respeito a si. Pelo menos, em parte. — Indicou-lhe os sofás. — Sente-se, por favor, Monsieur Antonov. — Sorriu de novo. — Insisto.
Do posto de comando em Casablanca, Gabriel viu Mikhail sentar-se num dos sofás. Apareceu então um membro do serviço e serviu o chá. No lado direito da imagem, dentro de uma das tendas, apreciavam-se as silhuetas termográficas de três pessoas. Duas delas correspondiam, visivelmente, a mulheres. A outra era a de Christopher Keller. Um momento antes, Gabriel tinha enviado uma mensagem criptográfica para o telemóvel via satélite de Keller, fazendo referência à possível identidade do homem sentado ao volante do Toyota Land Cruiser que acabava de chegar. Keller mexia agora as mãos, manipulando algo que Gabriel não conseguia ver: o frio metal não era visível através das câmaras de infravermelhos.
Keller guardou o objeto nas costas, à altura dos rins, e aproximou-se com prontidão da entrada da tenda, onde permaneceu uns segundos, provavelmente a observar o panorama operacional. Depois pegou no telemóvel via satélite e tocou no ecrã. Segundos depois, chegou uma mensagem ao computador de Gabriel.
QUANDO VOCÊS ESTIVEREM PRONTOS, TAMBÉM ESTOU.
Com a ajuda dos drones, Gabriel estudou por sua vez o local. Quatro homens montavam guarda no deserto, à volta do acampamento: norte, sul, este e oeste, como pontos de uma bússola. Estavam todos armados. Os homens que tinham chegado com Mohammad Bakkar também traziam armas. Havia a possibilidade de o próprio Bakkar estar armado. Mikhail, temendo que as escoltas do marroquino o revistassem, não tinha nenhuma arma. Ou seja, eram dez contra um, no mínimo. Era muito provável que Keller e o resto da equipa não sobrevivessem a um tiroteio a tão curta distância, nem sequer estando presente o agente que tinha conseguido a nota mais alta na história da célebre Killing House do SAS. Para além disso, era possível que Uzi Navot e Langley estivessem enganados em relação à identidade do ocupante do Toyota. Convinha deixar que as coisas seguissem o seu curso. Que Saladino se deixasse ver e que fosse abatido em algum lugar onde não houvesse risco de danos colaterais. Por enquanto, aquele lugar remoto do canto mais escuro do sudeste de Marrocos jogava contra ele. Mas não por muito tempo. Em breve, disse Gabriel a si próprio, o deserto passaria a ser seu aliado.
Mandou Keller continuar à espera e pediu a Langley que focasse as câmaras do drone no Land Cruiser estacionado no limite do acampamento. A imagem apareceu no seu monitor um momento depois, por cortesia do Predator. O homem vestia uma jilaba com capuz e tinha ambas as mãos apoiadas no volante. Não estava a fumar. Gabriel calculou que, em algum momento, se iria reunir com os outros. Para fazê-lo, teria de sair do veículo e percorrer a pé uma curta distância. E então ele, Gabriel, saberia se era mesmo Saladino. Havia muitas formas de alterar a aparência física de um homem, disse a si próprio. O cabelo podia ser cortado ou pintado, e as feições podiam ser transformadas através de uma cirurgia plástica. Mas uma perna manca a coxear como a de Saladino era para sempre.
56
SAARA, MARROCOS
Ao princípio, Mohammad Bakkar falou unicamente em darija, e só com Jean-Luc Martel. Era evidente pela sua atitude e pelo seu tom que estava zangado. Enquanto trabalhava na Sayeret Matkal, Mikhail tinha aprendido um pouco de árabe palestiniano, o suficiente para se safar durante os ataques noturnos a Gaza, à Cisjordânia e ao sul do Líbano. Não falava árabe com fluência, longe disso; nem sequer dava para conversar minimamente. Ainda assim, conseguiu entender em linhas gerais o que dizia o marroquino das montanhas do Rife. Ao que parece, vários carregamentos importantes de um produto misterioso tinham desaparecido recentemente em circunstâncias inexplicáveis. As perdas, que a organização de Bakkar sofrera, eram substanciais: ascendiam, de facto, a centenas de milhões. Em algum lugar, afirmou, houvera uma fuga. E não fora no seu território. Evidentemente, dominava a sua organização com mão de ferro. Portanto, o erro tinha de ser de Martel. Bakkar deu a entender que tinha sido intencional. Afinal de contas, o francês nunca vira com bons olhos a rápida expansão do negócio que partilhavam. Teria de o compensar de alguma forma. Caso contrário, Bakkar procuraria outro distribuidor para a sua mercadoria e deixaria Martel de fora.
Seguiu-se uma violenta discussão. Martel, a falar velozmente em árabe marroquino, insinuou que o culpado das apreensões era o próprio Mohammad Bakkar. Recordou-lhe que, por aquele mesmo motivo, se tinha oposto a que se aumentasse drasticamente a quantidade de mercadoria que entrava na Europa. Segundo os seus cálculos, tinham perdido mais de um quarto da produção devido às apreensões, em vez dos habituais dez por cento, uma taxa sustentável a longo prazo. A única solução era aplicar a prudência. Enviar carregamentos com quantidades inferiores e prescindir de navios mercantes. Foi, pensou Mikhail, uma atuação impressionante por parte de Martel. Um espião veterano não o teria feito melhor. Quando a intervenção do francês findou, Mohammad Bakkar parecia convencido de que tanto ele como a sua organização eram os responsáveis, até certo ponto, pelas fugas. Resolveu ir ao fundo da questão. Entretanto, tinha vinte toneladas de género acumuladas nas fábricas clandestinas do Rife, a aguardarem remessa. Estava ansioso por expedi-las. Evidentemente, precisava de novos fundos.
— Não quero assumir sozinho todo o custo da última catástrofe. Não é justo.
— Estou de acordo — conveio Martel. — O que é que tinhas pensado?
— Um aumento de preço de cinquenta por cento. Só desta vez.
— Cinquenta por cento! — Martel fez um gesto desdenhoso com a mão. — Que loucura.
— É a minha última oferta. Se queres continuar a ser meu distribuidor, aconselho-te a aceitares.
Não era a última oferta de Mohammad Bakkar, longe disso. Martel sabia-o, tal como o sabia o próprio Bakkar. Afinal de contas, estavam em Marrocos. Havia que regatear até para que te passassem o pão ao jantar.
Continuaram a discutir durante uns minutos, durante os quais os cinquenta por cento passaram a ser quarenta e cinco, depois quarenta e, por último e depois de um olhar de exasperação lançado para o céu, trinta. Enquanto isso, Mikhail não parou de vigiar o homem que, por sua vez, o vigiava a ele. O homem sentado ao volante do Toyota, de onde via sem obstáculos o pátio central do acampamento. Vestia uma jilaba com um capuz pontiagudo e a sua cara estava envolvida em sombras profundas. Ainda assim, Mikhail sentia o peso como chumbo do seu olhar. E sentia também a ausência de uma arma à altura dos seus rins.
— Khalas — disse Bakkar, por fim, esfregando as mãos. — Que seja vinte e cinco, a pagar no momento de entrega da mercadoria. É pouquíssimo, mas que remédio tenho eu? Queres que também te dê a minha camisa, Jean-Luc? Posso sempre arranjar outra.
Martel sorria. Mohammad Bakkar selou o acordo com um aperto de mãos e, de seguida, virou-se para Mikhail.
— Desculpe, mas eu e o Jean-Luc tínhamos de debater um assunto muito sério.
— Era o que parecia.
— Não fala árabe, Monsieur Antonov?
— Não.
— Nem um pouco?
— Até pedir um café me custa.
Mohammad Bakkar assentiu, compreensivo.
— Cada país tem a sua forma de pronunciar. Um egípcio vê o mundo de maneira diferente de um marroquino, um jordano ou, por exemplo, um palestiniano.
— Ou um russo — riu Mikhail.
— Que vive em França.
— O meu francês é quase tão mau como o meu árabe.
— Então, falemos inglês.
Fez-se um silêncio.
— O que é que o Jean-Luc lhe contou sobre os nossos negócios? — perguntou Bakkar, por fim.
— Muito pouco.
— Mas deve ter alguma ideia, sem dúvida.
— Laranjas — respondeu Mikhail. — O senhor é o fornecedor das laranjas que abastecem os restaurantes e os hotéis do Jean-Luc.
— Laranjas e romãs — disse Bakkar num tom cordial. — Em Marrocos existem umas romãs ótimas. As melhores do mundo, na minha opinião. Mas as autoridades europeias não querem as nossas laranjas nem as nossas romãs. Ultimamente, temos perdido vários carregamentos. Eu e o Jean-Luc estávamos a discutir o que aconteceu e as medidas a tomar a esse respeito.
Mikhail ouvia-o com um semblante inexpressivo.
— Infelizmente, não perdemos só fruta nessas apreensões. Também perdemos algo insubstituível. — Bakkar olhou-o com um ar calculista. — Ou talvez não.
Pediu mais chá. Mikhail dirigiu um olhar ao ocupante do Toyota, enquanto enchiam os copos.
— A que tipo de negócios é que se dedica exatamente, Monsieur Antonov?
— Perdão?
— Os seus negócios — repetiu Bakkar. — A que é que se dedica exatamente?
— Às laranjas — respondeu Mikhail. — E às romãs.
Bakkar sorriu.
— Eu tinha entendido — disse — que traficava armas.
Mikhail não disse nada.
— É um homem prevenido, Monsieur Antonov. É um traço admirável.
— Para além de ser bom para o negócio. Assim perdem-se menos carregamentos.
— Portanto, é verdade!
— Dedico-me aos investimentos, Monsieur Bakkar. E, às vezes, faço negócios que implicam a transferência de bens da Europa de Leste e das repúblicas da antiga União Soviética para lugares problemáticos em diversas partes do mundo.
— Que tipo de bens?
— Use a sua imaginação.
— Armas?
— Armamento — respondeu Mikhail. — As armas representam uma parte mínima do negócio.
— De que tipo de mercadoria estamos a falar?
— De tudo, desde Kalashnikovs a helicópteros ou a aviões de combate.
— Aviões? — perguntou Bakkar, incrédulo.
— Gostava de ter um? Ou talvez prefira um tanque ou um Scud. Este mês temos uma oferta especial. Eu, se fosse a si, faria o pedido hoje mesmo. Não vão durar muito.
— Não seriam para mim — afirmou Bakkar levantando as mãos. — Mas um dos meus sócios poderia estar interessado.
— Nos Scuds?
— As necessidades dele são muito específicas. Mas prefiro que ele próprio lhe explique isso.
— Para já não — disse Mikhail. — Primeiro, conte-me um pouco mais sobre esse seu sócio. Depois decidirei se me quero reunir com ele.
— É um revolucionário — afirmou Bakkar. — Com uma causa justa, garanto-lhe.
— Como de costume — replicou Mikhail com ceticismo. — De onde é que é?
— Não tem país, no sentido ocidental da palavra. As fronteiras não significam nada para ele.
— Que interessante. Mas onde é que teria de lhe levar as armas?
Bakkar ficou sério, de repente.
— Sem dúvida que tem consciência de que o caos político que aflige há um tempo a nossa região tem apagado muitas das antigas fronteiras traçadas pelos diplomatas em Paris e Londres. O meu sócio procede de um desses lugares. Um lugar muito conflituoso.
— Os conflitos são o que me mantém à tona.
— Era o que me parecia — afirmou Bakkar.
— Como é que se chama o seu sócio?
— Pode chamar-lhe Khalil.
— E antes do caos? — perguntou Mikhail de imediato, como se esse nome não lhe dissesse nada. — De onde era?
— Em criança vivia à beira de um dos rios que emanavam do Jardim do Éden.
— Eram quatro — afirmou Mikhail.
— Efetivamente. O Pison, o Ghion, o Eufrates e o Tigre. O meu sócio vivia à beira do Tigre.
— De maneira que é iraquiano.
— Foi-o em tempos. Já não. Agora é súbdito do califado islâmico.
— Imagino que não se encontra no califado neste momento.
— Não. Está ali. — Bakkar inclinou a cabeça para o Toyota. Depois olhou para Mikhail e perguntou: — Está armado, Monsieur Antonov?
— Claro que não.
— Importa-se que um dos meus homens o reviste? — Bakkar sorriu cordialmente. — Afinal de contas, é um traficante de armas.
Reuniram-se junto à porta do condutor do Toyota: cinco homens ao todo — contou Gabriel —, todos eles armados. Por fim, a porta abriu-se e o ocupante do carro saiu com uma certa dificuldade. Permaneceu mais um pouco perto do veículo, rodeado de guardas, enquanto Mikhail era revistado minuciosamente. Só quando o acabaram de revistar, avançou para o centro do acampamento. Os guardas armados formavam um círculo apertado à sua volta. Ainda assim, Gabriel conseguiu ver que carregava o peso do corpo na perna direita. O primeiro passo do processo de identificação tinha-se verificado com sucesso. O segundo, pelo contrário, não se podia fazer tão de cima, servindo-se do drone americano. Só serviria um encontro cara a cara.
Gabriel enviou uma mensagem a Christopher Keller informando-o de que o sujeito acabava de entrar no acampamento e coxeava visivelmente ao caminhar. Viu então que estendia a mão ao agente dos serviços secretos israelitas.
— Dmitri Antonov — disse Gabriel baixinho —, permita-me apresentar-lhe o meu amigo Saladino. Saladino, este é o Dmitri Antonov.
Havia, naquele remoto acampamento do deserto, dois agentes israelitas que podiam efetuar a verificação necessária para lançar uma operação de assassinato seletivo em território de um aliado intermitente na guerra contra o terror. O primeiro estava sentado à frente do sujeito em questão, desarmado e sem dispositivo algum de comunicação. O segundo estava a escassos metros dali, numa tenda confortavelmente mobilada. O agente do exterior, sozinho, só vira o alvo pessoalmente de forma fugaz num afamado restaurante de Georgetown. A agente refugiada na tenda tinha passado, pelo contrário, vários dias com o sujeito numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, e tinha falado com ele durante muito tempo. E numa cabana no sopé das montanhas Shenandoah, na Virgínia, tinha-o ouvido pronunciar a sua sentença de morte. Nunca esqueceria aquele som. Nem sequer precisou de lhe ver a cara para saber que era ele: disse-lho a sua voz.
Havia um terceiro agente que também tinha visto o sujeito pessoalmente: era aquele que esperava ansiosamente numa casa assombrada num antigo bairro colonial em Casablanca. Quando a confirmação de que, efetivamente, era ele chegou ao seu computador, Gabriel remeteu-a de imediato para o Buraco Negro de Langley.
— Apanhámo-lo! — gritou Kyle Taylor.
— Ainda não — advertiu-o Uzi Navot com o olhar fixo no ecrã. — Nada disso. Nem pouco mais ou menos.
CONTINUA
41
CÔTE D’AZUR, FRANÇA
Havia uma parte de Paul Rousseau que não tinha estômago para o acordo que tinha de ser feito. Jean-Luc Martel, diria ele mais tarde, era a prova cabal de que a França errara ao acabar com a guilhotina. Mas Khalil, o iraquiano (Khalil cujo rosto fora alterado, Khalil que ao caminhar coxeava) valia bem o preço. A coerção, só por si, não seria suficiente para arrastar Martel até à linha de meta. Teria de ser transformado num colaborador pleno do Grupo Alpha («um agente dos serviços secretos franceses, deus me livre», lamentou-se Rousseau) e apenas uma promessa de imunidade total para uma possível acusação seria suficiente para assegurar a sua cooperação inabalável. Rousseau não tinha poder para fazer tal promessa; só um ministro a poderia fazer. O que colocava Rousseau perante um dilema adicional, pois o seu ministro continuava a não saber nada da operação. Era sobejamente sabido que o ministro era um homem que não gostava de surpresas. Talvez nesse caso conseguisse abrir uma exceção.
De momento, Rousseau fez das tripas coração e testou as capacidades de Martel. Falaram novamente sobre tudo, lenta e meticulosamente, para a frente, para trás, de lado, e de todas as outras formas que Rousseau, que andava à procura de alguma incongruência, de algum motivo para questionar a autenticidade da sua fonte, conseguiu imaginar. Foi dada particular atenção à ordem de trabalhos da reunião de inverno em que Khalil, o iraquiano, estivera presente, principalmente à calendarização das entregas seguintes. Estavam previstos três grandes carregamentos nos dez dias seguintes. Todos estariam escondidos no interior de navios de carga que partiriam da Líbia. Dois chegariam a portos franceses (a Marselha e à vizinha Toulon), mas o terceiro atracaria no porto italiano de Génova.
— Se essa droga desaparecer — disse Martel —, vai ser o bom e o bonito.
— Laranjas — disse Rousseau. — Laranjas.
Foi nesse momento que Gabriel se intrometeu nos procedimentos pela primeira vez. Fê-lo apenas com uma apresentação mínima e trazendo consigo várias folhas de papel em branco, um lápis e um afia. Durante a maior parte da hora seguinte, sentou-se ao lado do homem cuja vida virara do avesso e, com a sua ajuda, produziu retratos-robô das duas versões de Khalil, o iraquiano: a versão de 2012 que envergava roupas ocidentais e a versão que aparecera em Marrocos depois dos atentados de Washington envergando uma jilaba tradicional e coxeando notoriamente. Martel tinha um célebre olho para o detalhe (ele próprio o dissera muitas vezes em entrevistas à imprensa) e alegava nunca esquecer um rosto. Era também exigente, um traço que revelou plenamente quando Gabriel não conseguiu conceber um queixo adequado para a versão cirurgicamente retocada de Khalil. Passaram por três esboços antes de Martel, com inesperado entusiasmo, dar a sua aprovação.
— É ele. É o homem que vi em dezembro passado.
— Tem a certeza? — pressionou Gabriel. — Não tenha pressa. Podemos fazer outro esboço, se quiser.
— Não é necessário. Era exatamente assim.
— E o coxear? — perguntou Gabriel — Não referiu qual era a perna que estava lesionada.
— Era a direita.
— Tem a certeza disso?
— Sem qualquer dúvida.
— Ele deu alguma explicação?
— Disse que tinha sido num acidente de carro. Não disse onde.
Gabriel estudou os desenhos finais durante um longo momento antes de os levantar para que Natalie os visse. Os olhos dela arregalaram-se involuntariamente. Depois, retomando a compostura, desviou o olhar e assentiu lentamente com a cabeça. Gabriel colocou o primeiro esboço de lado e contemplou o segundo demoradamente. Era o novo rosto do terrorismo. Era o rosto de Saladino.
Arrastaram-no para o andar de cima, para o quarto da Madame Sophie, esfregaram-lhe o flanco do pescoço com batom vermelho-sangue e regaram-no com uma quantidade suficiente de perfume da Madame Sophie para que deixasse um rasto de vapor enquanto conduzia através da luz da aurora, derrotado e exausto, em direção à sua villa do outro lado da Baie de Cavalaire. Não foi sozinho. Nicolas Carnot, também conhecido como Christopher Keller, estava sentado no lugar do passageiro, com o telemóvel de Martel numa mão, uma arma na outra. Atrás deles, num segundo veículo, havia quatro agentes do Grupo Alpha. Previamente, tinham sido empregados de Dmitri Antonov na Villa Soleil. Agora, tal como Nicolas Carnot, estavam a trabalhar para Martel. As circunstâncias exatas que rodeavam a decisão de abandonar um chefe por outro eram nebulosas, mas coisas assim podiam acontecer em Saint-Tropez durante o verão.
Passavam exatamente doze minutos das cinco da manhã quando os dois veículos viraram para o caminho de acesso à villa. Olivia Watson sabia-o porque passara toda a noite deitada na cama acordada e correra para a janela do quarto ao ouvir o som das portas do carro a abrirem e fecharem no pátio. Agora, fingia dormir enquanto a cama ondulava sob o peso do seu amante errante. Ela rebolou para o outro lado e os seus olhos encontraram-se com os dele na penumbra.
— Onde é que estiveste, Jean-Luc?
— Negócios — murmurou ele. — Dorme.
— Há algum problema?
— Agora já não.
— Tentei telefonar-te, mas o meu telefone não está a funcionar. Também não há Internet e a nossa linha fixa está inativa.
— Deve ter havido alguma falha. — Os seus olhos fecharam-se.
— Porque é que o Nicolas está lá em baixo? E quem são aqueles outros homens?
— Eu explico tudo de manhã.
— Já é de manhã, Jean-Luc.
Ele ficou em silêncio. Olivia aproximou-se.
— Cheiras a outra mulher.
— Olivia, por favor.
— Quem é ela, Jean-Luc? Onde é que estiveste?
42
PARIS
O ajuste de contas que Paul Rousseau tinha estado a temer ocorreu no início dessa tarde no Ministério do Interior em Paris. Tal como Jean-Luc Martel, não enfrentou o seu destino sozinho; Gabriel foi com ele. Atravessaram o pátio lado a lado e marcharam pela grandiosa escadaria acima até ao imponente escritório do ministro, onde Rousseau, que nunca tivera tendência para conversa delicada de circunstância, confessou imediatamente os seus pecados operacionais. Os serviços secretos britânicos, disse, tinham identificado a origem das espingardas de assalto utilizadas no atentado de Londres como sendo de um franco-marroquino chamado Nouredine Zakaria, um criminoso profissional com ligações a uma das maiores redes francesas de tráfico de droga. Sem a autorização do seu chefe nem do Ministério do Interior, Rousseau e o Grupo Alpha tinham trabalhado com dois serviços aliados (os britânicos e, de forma bastante evidente, os israelitas) para se infiltrarem na supracitada rede e transformarem o seu líder num confidente. A operação, continuou ele, fora um êxito. Com base na informação fornecida pela fonte, o Grupo Alpha e os seus parceiros poderiam dizer com moderada confiança que o ISIS assumira o controlo de uma porção significativa do comércio ilícito de haxixe no Norte de África e que Saladino, o misterioso cérebro operacional iraquiano da divisão de operações externas no grupo, estava, provavelmente, escondido em Marrocos, um antigo protetorado francês.
O ministro reagiu basicamente tão bem quanto seria de esperar, que não foi nada bem. Seguiu-se um sermão, em grande medida profano. Rousseau ofereceu a sua demissão (redigira uma carta manuscrita durante a viagem da Provença para norte) e, durante um longo momento, o ministro pareceu preparado para aceitá-la. Passado muito tempo, deixou cair a carta no seu triturador de papel. A derradeira responsabilidade de proteger o solo francês de atentados terroristas, islâmicos ou outros, repousava nos ombros estreitos do ministro. Não estava disposto a perder um homem como Paul Rousseau.
— Onde é que está o Nouredine Zakaria agora?
— Desaparecido — disse Rousseau.
— Foi para o califado?
Rousseau hesitou antes de responder. Estava preparado para ofuscar os factos, mas, de forma alguma, diria uma mentira completa. Nouredine Zakaria, disse calmamente, estava morto.
— Morto como? — perguntou o ministro.
— Creio que ocorreu durante uma transação de negócios.
O ministro olhou para Gabriel.
— Suponho que o senhor teve alguma coisa a ver com isso.
— O falecimento do Zakaria precedeu o nosso envolvimento neste caso — respondeu Gabriel com uma precisão de advogado.
O ministro não se tranquilizou.
— E o líder da rede? O vosso novo confidente?
— O nome dele — disse Rousseau — é Jean-Luc Martel.
O ministro baixou o olhar e reorganizou os papéis sobre a sua secretária.
— Isso explicaria o vosso interesse no processo do Martel no dia em que o vosso quartel-general explodiu.
— Explicaria — disse Rousseau, mantendo-se firme.
— O Jean-Luc foi alvo de numerosas investigações. Todas chegaram à mesma conclusão: que não está envolvido no mundo da droga.
— Essa conclusão — disse Rousseau cuidadosamente — está errada.
— Tem a certeza disso?
— Obtive a confirmação por parte da mais alta autoridade no assunto.
— Quem?
— O próprio Jean-Luc Martel.
O ministro troçou:
— Porque é que ele lhe diria tal coisa?
— Não teve grandes hipóteses.
— Porquê?
— René Devereaux.
— O nome é-me familiar.
— Deveria ser — disse Rousseau.
— Onde é que está o Devereaux agora?
— No mesmo lugar que o Nouredine Zakaria.
— Merde — disse o ministro suavemente.
Houve um silêncio. Os fragmentos de pó flutuavam nos raios de sol que atravessavam a janela como peixes num aquário. Rousseau pigarreou delicadamente, um sinal de que estava prestes a aventurar-se a entrar em terreno traiçoeiro.
— Sei que o senhor ministro e o Martel são amigos — disse ele finalmente.
— Somos conhecidos — contestou rapidamente o ministro —, mas não somos amigos.
— O Martel ficaria surpreendido por ouvir isso. Na verdade, invocou o seu nome várias vezes, antes de finalmente aceitar cooperar.
O ministro não conseguiu ocultar a raiva contra Rousseau por lavar roupa suja francesa diante de um estrangeiro, e, para além do mais, um israelita.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou.
— Pretendo dizer — disse Rousseau — que vou precisar da cooperação permanente do Martel, o que exigirá que lhe seja concedida imunidade. Fazê-lo poderá ser um assunto sensível, dada a vossa relação, mas é necessário para que a operação possa avançar.
— Qual é o vosso objetivo?
— Eliminar o Saladino, claro.
— E pretendem utilizar o Martel nalgum tipo de função operacional?
— É a nossa única opção.
O ministro mostrou-se pensativo.
— Tem razão, conceder-lhe imunidade seria difícil. Mas se fosse o Rousseau a solicitá-la...
— Terá a documentação ao final do dia — interrompeu Rousseau. — Com franqueza, provavelmente é melhor assim. O senhor ministro não é a única pessoa do atual governo que é conhecido do Martel.
O ministro estava novamente a remexer nos papéis.
— Demos-lhe uma vasta margem de manobra quando criámos o Grupo Alpha, mas escusado será dizer que o Rousseau ultrapassou os limites da sua autoridade.
Rousseau aceitou a reprimenda com um silêncio compungido.
— Não me irão manter novamente na ignorância. Estamos entendidos?
— Sim, senhor ministro.
— Como pretende prosseguir?
— Nos próximos dez dias, o fornecedor marroquino do Martel, um homem chamado Mohammad Bakkar, vai enviar vários grandes carregamentos de haxixe a partir de portos da Líbia. É vital que os intercetemos.
— Sabe o nome das embarcações?
Rousseau assentiu com a cabeça.
— O Bakkar e o Saladino vão suspeitar de que há um informador.
— Correto.
— Vão ficar zangados.
Rousseau sorriu.
— Essa é a nossa esperança, senhor ministro.
O primeiro navio, um contentor flutuante com registo maltês chamado Mediterranean Dream, só deveria deixar a Líbia quatro dias depois. O seu ponto de partida era Khoms, um pequeno porto marítimo comercial a leste de Trípoli; após uma breve paragem na Tunísia, onde estava planeado que receberia uma carga de produto, dirigir-se-ia diretamente para Génova. Estava previsto que as outras duas embarcações, uma hasteando uma bandeira baamiana, a outra panamenha, partiriam de Sirte dali a uma semana, colocando, por conseguinte, Gabriel e Rousseau perante um pequeno dilema. Concordaram que apreender o Mediterranean Dream enquanto as outras duas embarcações ainda estavam no porto da Líbia seria um erro de cálculo, pois concederia a Mohammad Bakkar e a Saladino uma oportunidade para alterarem a rota da mercadoria. Em vez disso, aguardariam que os três navios estivessem em águas internacionais antes de dar o primeiro passo.
A demora pesou a ambos intensamente, principalmente a Gabriel, que observara o rosto retocado de Saladino emergir dos esforços da sua própria mão. Transportava sempre consigo o esboço, mesmo quando ia para a cama em Jerusalém, onde passou quatro noites agitadas ao lado da esposa. Na Avenida Rei Saul, sentou-se a ouvir relatórios intermináveis sobre assuntos que deixara nas mãos capazes de Uzi Navot, mas toda a gente conseguiu perceber que a sua cabeça não estava ali. Durante uma reunião de Conselho, a sua mente divagou enquanto os ministros discutiam incessantemente. No seu caderno desenhou um rosto. Um rosto parcialmente oculto pelo capuz de uma jilaba.
Rousseau acordou Gabriel cedo, na manhã seguinte, com notícias de que o Mediterranean Dream deixara a Tunísia durante a noite e estava agora em águas internacionais. Mas conteria efetivamente um carregamento escondido de haxixe de Marrocos? Apenas uma fonte dizia que sim, o homem que vivia à frente de Dmitri e Sophie Antonov, do outro lado da Baie de Cavalaire. O homem cujos inúmeros pecados tinham sido oficialmente perdoados e que estava agora sob controlo total e absoluto de um consórcio de três serviços secretos.
Contudo, aos olhos de um leigo, parecia não ter havido qualquer mudança exterior no seu comportamento, salvo a constante presença de Christopher Keller ao seu lado. De facto, para onde quer que Martel fosse, era certo que Keller o seguiria. Ao Mónaco e a Madrid, para duas reuniões de negócios previamente agendadas. A Genebra para uma sessão de esclarecimento com um banqueiro suíço de ética questionável. E, finalmente, a Marselha, de onde o chefe da divisão de estupefacientes ilícitos de Martel desaparecera sem deixar rasto, deixando para trás dois guarda-costas mortos na sua loja de produtos eletrónicos com vista para a Place Jean Jaurès. A polícia de Marselha acreditava que René Devereaux fora assassinado por um rival do submundo. Os parceiros de Devereaux, incluindo um tal Henri Villard, eram da mesma opinião. Durante uma reunião com Martel e Keller, num apartamento seguro próximo da Gare Saint-Charles, Villard mostrou-se nervoso quanto aos próximos carregamentos. Temia, com razão, que tivesse havido uma fuga de informação. Martel acalmou os seus medos e deu-lhe instruções para que recolhesse a carga da forma habitual. Um escrutínio minucioso da gravação captada pelo telefone do bolso de Keller (e dos movimentos e comunicações de Villard depois da reunião) sugeriu que Martel não tentara enviar um aviso clandestino à sua antiga rede. O haxixe estava a caminho, o pagamento estava programado para sair. Tanto para os traficantes como para os mestres de espionagem, tudo parecia correr sobre rodas.
A mensagem que motivaria a ação seguinte foi entregue através do canal habitual, de ministro do Interior para ministro do Interior, sem qualquer sensação indevida de urgência. Um informador que pertencia a um dos mais proeminentes gangues de droga franceses alegava que um grande carregamento de haxixe do Norte de África chegaria a Génova no dia seguinte, a bordo do Mediterranean Dream, registado como maltês. Talvez os italianos, se não tivessem nada melhor para fazer, quisessem examiná-lo. E fizeram-no, efetivamente. Na verdade, unidades da Guardia di Finanza, a agência policial italiana responsável pelo combate ao tráfico de droga, embarcaram no navio minutos após a sua chegada e começaram a forçar a abertura dos contentores. A sua busca renderia, eventualmente, quatro toneladas de haxixe marroquino, de forma nenhuma um recorde, mas uma apreensão respeitável. Depois disso, o ministro italiano telefonou ao homólogo francês e agradeceu-lhe pela informação. O ministro francês disse que ficava satisfeito por ter podido ajudar.
Embora tivesse sido uma grande notícia em Itália, a apreensão atraiu pouca atenção em França, menos ainda na antiga povoação de pescadores de Saint-Tropez. Mas, quando a polícia alfandegária francesa fez uma rusga a dois navios no dia seguinte (o Africa Star, com destino a Toulon, e o Caribbean Endeavor, com destino a Marselha), até mesmo a sonolenta Saint-Tropez ficou impressionada. O Africa Star renderia três toneladas de haxixe, o Caribbean Endeavor apenas duas. Mas também continha algo que apanhou Gabriel e Paul Rousseau de surpresa: um cilindro de chumbo, de quarenta centímetros de altura e vinte de diâmetro, escondido dentro de um rolo de cabo elétrico produzido por uma fábrica de um bairro industrial de Trípoli.
O cilindro não exibia marcas de qualquer tipo. Ainda assim, a polícia alfandegária francesa, que estava treinada para lidar com material potencialmente perigoso, sabia perfeitamente que não devia abri-lo. Efetuaram-se telefonemas, soaram alarmes e, ao início da noite, o contentor fora transportado de forma segura para um laboratório governamental francês nos arredores de Paris, onde os técnicos analisaram o pó semelhante a pó de talco que encontraram no interior. Em pouco tempo, determinaram que se tratava da substância altamente radioativa césio-137 ou cloreto de césio. Paul Rousseau e o ministro do Interior foram informados da descoberta às oito horas dessa noite e, vinte minutos depois, com Gabriel a segui-los um passo atrás, estavam a atravessar apressadamente as portas do Palácio do Eliseu para transmitir as notícias ao Presidente da República. Saladino estava a planear atacá-los novamente, desta vez com uma bomba suja.
TERCEIRA PARTE
O CANTO MAIS ESCURO
43
SURREY, INGLATERRA
Nunca se determinaria exatamente, de uma forma que satisfizesse plenamente ninguém, muito menos os franceses, como é que os americanos tinham sabido do carregamento escondido de césio. Era um daqueles mistérios que perduraria até muito depois de a poeira operacional assentar. No entanto, ouviram efetivamente falar disso (nessa mesma noite, na verdade) e, antes de o sol se erguer, exigiram que todas as partes relevantes se dirigissem para Washington para uma reunião de emergência. Graham Seymour e Amanda Wallace, os irmãos de sangue, declinaram educadamente. Perante a perspetiva de um dispositivo de dispersão radiológica nas mãos da rede de Saladino, não podiam dar-se ao luxo de serem vistos a correr até às antigas colónias para pedir ajuda. Eram totalmente a favor da cooperação transatlântica (na verdade, estavam perigosamente dependentes dela), mas, para eles, era uma simples questão de orgulho nacional. E, quando Gabriel e Paul Rousseau acrescentaram as suas objeções, os americanos rapidamente capitularam. Gabriel estava confiante nesse desfecho; tinha uma ideia bastante acertada do que os americanos queriam, em última instância. Queriam a cabeça de Saladino espetada num pau, e a única forma de a conseguirem era assumindo o controlo da operação de Gabriel. Seria melhor negar-lhes a vantagem de jogar em casa. As cinco horas de diferença horária, só por si, seriam suficientes para os manter em desequilíbrio.
Esperar uma delegação pequena seria esperar demasiado. Chegaram num avião Boeing estampado com o selo oficial dos Estados Unidos e viajaram para o local da conferência (um centro de treinos desativado do MI6, localizado numa casa senhorial vitoriana em Surrey) numa caravana comprida e ruidosa que cortou caminho através da paisagem rural como se estivesse a desviar-se de artefactos explosivos improvisados no Triângulo Sunita do Iraque ocupado. De um dos veículos saiu Morris Payne, o novo diretor da Agência. Payne era da Academia Militar dos Estados Unidos, estudara Direito numa das universidades mais conceituadas do país, trabalhara no setor privado e era um antigo membro profundamente conservador do Congresso, oriundo de uma das Dakotas. Era grande e abrupto, com um rosto que se assemelhava a uma estátua da Ilha da Páscoa e uma voz de barítono que fez estremecer as vigas do hall de entrada abobadado da casa antiga. Começou por cumprimentar Graham Seymour e Amanda Wallace (eram eles os anfitriões, afinal de contas, para não dizer família distante) antes de virar a potência máxima da sua personalidade de canhão de água para Gabriel.
— Gabriel Allon! Que bom conhecer-te finalmente. Um dos grandes. Uma lenda, verdadeiramente. Devíamos ter feito isto há muito tempo. O Adrian disse-me que estiveste na cidade e não vieste ver-me. Não vou levar a mal. Sei que tu e o Adrian têm uma longa história de colaboração. Fizeram um bom trabalho juntos. Espero que continuemos essa tradição.
Gabriel recuperou a sua mão e olhou para os homens que rodeavam o novo diretor dos serviços secretos mais importantes do mundo. Eram jovens, enxutos e duros, ex-militares como o seu patrão, todos bem treinados nos rudes golpes do combate burocrático de Washington. A mudança em relação à administração anterior era impactante. Se havia um lado positivo era que todos eles gostavam razoavelmente de Israel. Talvez gostassem demasiado, pensou Gabriel. Eram a prova viva de que era necessário ter cuidado com o que se desejava.
O facto de Adrian Carter não se encontrar entre os que estavam na órbita próxima do diretor era revelador. Estava, naquele momento, a sair de um jipe, juntamente com os restantes operacionais seniores. A maioria era desconhecida para Gabriel. Contudo, ele reconheceu um. Era Kyle Taylor, o chefe do Centro de Antiterrorismo da Agência. A presença de Taylor era um indicador perturbador das intenções de Langley; dizia-se que Taylor aniquilaria a própria mãe com um drone, se achasse que isso o faria conquistar o cargo de Carter e o seu escritório no sétimo andar. Envergava a sua ambição implacável como uma gravata cuidadosamente apertada. Contudo, Carter parecia ter acabado de ser acordado de uma sesta. Passou por Gabriel fazendo unicamente um aceno mínimo com a cabeça.
— Não te aproximes muito — sussurrou. — Posso contagiar-te.
— O que é que tens?
— Lepra.
Morris Payne estava agora a puxar repetidamente a mão de Paul Rousseau como se estivesse a tentar ganhar o seu voto. Seguindo a indicação de Graham Seymour, entrou para a sala de jantar formal do solar, que fora convertido há muito numa instalação insonorizada. Havia um cesto à entrada para telemóveis e, sobre o aparador vitoriano, uma variedade de aperitivos nos quais ninguém tocou. Morris Payne sentou-se na longa mesa retangular, flanqueado, de um lado, pelos seus assistentes jovens e duros e, do outro, por Kyle Taylor, o mestre dos drones. Adrian Carter foi relegado para a extremidade mais afastada: o local, pensou Gabriel, onde poderia fazer rabiscos a seu bel-prazer e sonhar com um emprego no setor privado.
Gabriel sentou-se no lugar que lhe fora atribuído e, imediatamente, virou ao contrário a pequena placa com o nome que algum funcionário zeloso do MI6 aí colocara. À sua esquerda, e exatamente à frente de Morris Payne, estava Graham Seymour. E à esquerda de Seymour estava Amanda Wallace, que parecia estar com medo de ser salpicada de sangue. A reputação de Morris Payne precedia-o. Durante o seu curto mandato, completara em grande medida a tarefa de transformar a CIA de serviço secreto em organização paramilitar. A linguagem de espionagem aborrecia-o. Era um homem de ação.
— Sabem que estamos todos em modo crise — começou Payne —, portanto não vou desperdiçar o tempo de ninguém. Todos vocês devem ser louvados. Preveniram uma calamidade. Ou, pelo menos, adiaram-na — acrescentou. — Mas a Casa Branca está a insistir, e, francamente, nós estamos de acordo, que Langley assuma a liderança disto e leve a operação para casa. Com todo o respeito, faz mais sentido. Temos o alcance e a capacidade, e temos a tecnologia.
— Mas nós temos a fonte — replicou Gabriel. — E nem todo o alcance e tecnologia do mundo a poderão substituir. Encontrámo-lo, queimámo-lo e recrutámo-lo. É nosso.
— E agora — disse Payne — vão entregar-no-lo.
— Desculpa, Morris, mas receio que isso não vá acontecer.
Gabriel olhou de soslaio para a ponta da mesa e viu Adrian Carter a tentar conter um sorriso. Dificilmente poderia ser considerado um começo auspicioso. Infelizmente, tudo declinou rapidamente a partir daí.
Ergueram-se vozes, esmurrou-se a mesa, proferiram-se ameaças. Ameaças de retaliação. Ameaças de suspensão de cooperação e retenção de ajudas fundamentais. Há não muito tempo, Gabriel poderia ter-se dado ao luxo de expor o bluff do diretor. Agora, tinha de proceder com cautela. Os britânicos não eram os únicos que estavam dependentes do poderio tecnológico de Langley. Israel precisava dos americanos ainda mais, e, sob nenhumas circunstâncias, Gabriel poderia dar-se ao luxo de alienar o seu mais valioso parceiro estratégico e operacional. Para além disso, apesar de toda a sua arrogância e fanfarronice, Morris Payne era um amigo que, globalmente, via o mundo da mesma forma que Gabriel. O seu predecessor, um falante fluente de árabe, fizera questão de se referir a Jerusalém como Al-Quds. Definitivamente, as coisas poderiam ser piores.
Perante a sugestão de Graham Seymour, fizeram uma interrupção para comer e beber. Depois disso, o ambiente tornou-se consideravelmente mais leve. Morris Payne admitiu que, durante o voo que atravessara o Atlântico, tivera tempo de examinar o processo da CIA sobre Gabriel.
— Tenho de o dizer, foi uma leitura impressionante.
— Surpreende-me que tenham conseguido fazer o processo caber dentro do vosso avião.
O sorriso de Payne foi genuíno.
— Ambos crescemos em quintas — disse ele. — A nossa ficava num recanto remoto da Dakota do Sul e a vossa no Vale de Jezreel.
— Junto de uma povoação árabe.
— Nós não tínhamos árabes. Só ursos e lobos.
Desta vez, foi Gabriel que sorriu. Payne mordiscou a ponta de uma sandes em miniatura ressequida.
— Já operaste no Norte de África anteriormente. Pessoalmente, quero dizer. Estiveste envolvido na operação Abu Jihad, na Tunísia, em 88. Tu e a tua equipa aterraram na praia e rebentaram caminho até ao interior da villa dele. Mataste-o no escritório, à frente dos filhos. Estava a ver vídeos da Intifada nesse preciso momento.
— Isso não é verdade — disse Gabriel passado um momento.
— Que parte?
— Não matei o Abu Jihad à frente da família. A filha dele entrou no escritório depois de ele já estar morto.
— O que é que fizeste?
— Disse-lhe para ir tomar conta da mãe. E, depois, fui-me embora.
Um silêncio abateu-se sobre a divisão. Foi Morris Payne quem o quebrou.
— Achas que consegues fazer isso outra vez? Em Marrocos?
— Estás a perguntar-me se temos essa capacidade?
— Faz-me a vontade — disse Payne.
Marrocos, respondeu Gabriel, estava perfeitamente dentro do alcance operacional do Departamento.
— Vocês têm relações razoáveis com o rei — assinalou Payne. — Relações que poderiam ser ameaçadas se algo corresse mal.
— Vocês também — respondeu Gabriel.
— Têm intenção de trabalhar com os serviços marroquinos?
— Vocês trabalharam com os paquistaneses quando foram atrás do Bin Laden?
— Vou considerar isso um «não».
— Muito provavelmente — disse Gabriel —, o Saladino está escondido em circunstâncias semelhantes àquelas em que o Bin Laden vivia em Abbottabad. Mais ainda, goza da proteção de um senhor da droga, um homem que, indubitavelmente, tem amigos em posições importantes. Contar aos marroquinos sobre a operação seria como contar ao próprio Saladino.
— Tens mesmo a certeza de que ele está realmente lá?
Gabriel colocou os dois retratos-robô sobre a mesa. Bateu suavemente sobre o primeiro, Saladino como aparecera na primavera de 2012, pouco depois de o ISIS se ter instalado na Líbia.
— Parece-se muitíssimo com o homem que eu vi no átrio do Four Seasons, em Georgetown, antes do atentado. Vê as gravações de videovigilância do hotel. Tenho a certeza de que vais chegar à mesma conclusão. — Gabriel bateu suavemente no segundo retrato. — E esta é a aparência dele agora.
— Segundo um traficante de droga chamado Jean-Luc Martel.
— Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, Morris. Às vezes são eles que nos escolhem a nós.
— Confias nele?
— Nada.
— Estás preparado para ir para a guerra com ele?
— Tens uma ideia melhor?
Era óbvio que não tinha.
— E se o Saladino não morder o isco?
— Acabou de perder cem milhões de euros em haxixe. E o césio.
O americano olhou para Paul Rousseau.
— O vosso pessoal conseguiu identificar a origem?
— A explicação mais provável — disse Rousseau — é que tenha vindo da Rússia ou de uma das antigas repúblicas soviéticas ou satélites. Os soviéticos usaram o césio de forma bastante indiscriminada e deixaram recipientes da substância espalhados um pouco por todo o lado, nas regiões rurais. Também é possível que tenha vindo da Líbia. Os rebeldes e as milícias invadiram as instalações nucleares líbias quando o regime colapsou. A AIEA estava particularmente preocupada com as instalações de pesquisa de Tajura. Talvez tenhas ouvido falar delas.
Payne indicou que sim.
— Quando é que o vosso governo está a planear fazer o anúncio?
— Sobre o quê?
— O césio! — explodiu Payne.
— Não estamos.
Payne pareceu incrédulo. Foi Gabriel que explicou.
— Um anúncio alarmaria desnecessariamente o público. E, mais importante do que isso, alertaria o Saladino e a sua rede para o facto de o material radiológico ter sido descoberto.
— Então, e se houve outro carregamento de césio que conseguiu passar? O que é que vai acontecer se uma bomba suja explodir no meio de Paris? Ou de Londres? Ou de Manhattan, já agora?
— Tornar a questão pública não fará com que isso seja nem mais nem menos provável. Contudo, manter o silêncio tem as suas vantagens. — Gabriel colocou uma mão no ombro de Graham Seymour. — Tiveste a oportunidade de ler o processo dele, diretor Payne? O pai do Graham trabalhou para os serviços secretos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Para o Comité da Dupla Cruz. Não disseram aos alemães quando detiveram os espiões deles na Grã-Bretanha. Mantiveram os espiões capturados vivos nas mentes dos seus superiores alemães e usaram-nos para fornecer informação enganosa ao Hitler e aos seus generais. E os alemães nunca tentaram substituir esses espiões capturados porque acreditavam que eles continuavam em funções.
— Portanto, se o Saladino pensar que o material conseguiu passar, não vai tentar enviar mais, é isso que estás a dizer?
Gabriel ficou em silêncio.
— Nada mau — disse o americano, sorrindo.
— Este não é o nosso primeiro rodeo.
— Tinham rodeos no Vale de Jezreel?
— Não — disse Gabriel. — Não tínhamos.
Depois disso, havia apenas um assunto final para tratar. Não era algo que pudesse ser abordado diante de uma sala cheia de espiões. Era uma questão bilateral, que precisava de ser gerida ao mais alto nível, chefe com chefe. Uma sala lateral sossegada não seria suficiente. Apenas o jardim amuralhado, com as suas fontes em ruínas e caminhos cobertos de erva, proporcionava o nível necessário de privacidade.
Apesar de ser pleno verão, o tempo estava fresco e cinzento e as sebes excessivamente grandes pingavam devido a um aguaceiro recente. Gabriel e Morris Payne caminharam lado a lado, lenta e pensativamente, separados no máximo por três centímetros. Vistos das janelas com estrutura de chumbo da antiga casa senhorial, faziam um par improvável: o americano grande, corpulento, das Dakotas; o diminuto israelita do antigo Vale de Jezreel. Morris Payne, sem casaco, gesticulava amplamente enquanto explicava os seus argumentos. Gabriel, a ouvir, esfregava o fundo das costas e, quando apropriado, assentia em concordância.
Cinco minutos depois de terem começado a conversa, pararam e viraram-se de frente um para outro, como se estivessem a confrontar-se. Morris Payne espetou um dedo indicador grosso no peito de Gabriel, dificilmente um sinal encorajador, mas Gabriel limitou-se a sorrir e a retribuir o favor. Depois, ergueu a mão esquerda sobre a cabeça e moveu-a de forma circular enquanto a direita pairava com a palma para baixo à altura da sua anca. Desta vez, foi Morris Payne que assentiu com a cabeça em aprovação. Aqueles que observavam a partir do interior perceberam o significado do momento. Fora alcançado um acordo operacional. Os americanos lidariam com os céus e a parte cibernética, os israelitas comandariam as operações no terreno e, caso surgisse a oportunidade, limpariam discretamente o sebo a Saladino.
Com isso, viraram-se para trás e começaram a dirigir-se novamente para a casa. Foi evidente para os que observavam do interior que Gabriel estava a dizer algo que desagradou intensamente a Morris Payne. Houve outra pausa e mais dedos apontados na direção dos peitos. Então, Payne virou o seu grande rosto de Ilha da Páscoa na direção do céu cinzento e exalou um suspiro de capitulação. Ao passar pela sala de reuniões, agarrou no casaco que repousava nas costas da cadeira e dirigiu-se para o exterior, seguido pela sua equipa executiva carrancuda e, alguns passos atrás, por Adrian Carter e Kyle Taylor. Gabriel e Graham Seymour acenaram-lhes a partir do pórtico como se estivessem a despedir-se de companhia indesejada.
— Conseguiste tudo o que querias? — perguntou Seymour através de um sorriso gelado.
— É o que vamos ver daqui a um minuto.
A formação de americanos estava agora a começar a dividir-se em células menores, com cada célula a dirigir-se para o jipe que a aguardava. Morris Payne deteve-se subitamente e chamou Carter para que se juntasse a ele. Carter separou-se dos restantes operacionais e, observado invejosamente por Kyle Taylor, entrou no jipe do diretor.
— Como é que conseguiste isso? — perguntou Seymour enquanto a caravana ribombante voltava à vida.
— Pedi com jeitinho.
— Quanto tempo é que achas que ele vai sobreviver?
— Isso — disse Gabriel — depende inteiramente do Saladino.
44
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Na manhã seguinte, toda a Avenida Rei Saul se preparou para a batalha. Até mesmo Uzi Navot, que se ocupara de outras operações durante as ausências prolongadas de Gabriel, se viu arrastado pelos intensos preparativos. Tiveram de dar o corpo ao manifesto, como se costuma dizer. O Departamento tinha lutado para assumir o controlo da operação e tinha saído airoso dessa luta. Porém, o triunfo implicava a enorme responsabilidade de fazer as coisas bem-feitas. Não havia notícia de uma operação de assassinato seletivo de semelhante calibre desde o ataque americano ao complexo de Osama Bin Laden em Abbottabad. Saladino controlava os meandros de uma rede terrorista internacional que provara ser capaz de atacar praticamente onde quisesse, uma rede que se apropriara de material radioativo para fabricar uma bomba suja mesmo às portas da Europa Ocidental. A aposta não podia ser mais alta, tinham-no bem presente a cada passo. A segurança do mundo civilizado estava literalmente em jogo. Tal como a carreira de Gabriel. O sucesso pouco acresceria à sua reputação. Já o fracasso, pelo contrário, invalidaria toda a trajetória anterior e incluiria o seu nome na lista de diretores caídos em desgraça, que ambicionaram muito e por isso mesmo pereceram.
Se estava preocupado com os possíveis danos infligidos ao seu legado pessoal como consequência de um fracasso, não o demonstrava, nem sequer na presença de Uzi Navot, que tinha aberto um sulco na alcatifa que ligava a sua porta e o gabinete que pouco antes fora seu, à custa de um ir e vir constante. Corria o boato de que Navot tinha tentado dissuadir Gabriel, que tinha aconselhado o antigo rival a deixar Jean-Luc Martel e Saladino nas mãos dos americanos e a centrar-se em assuntos mais próximos das suas fronteiras, como os iranianos. Para Navot, os riscos da operação eram demasiado altos e a recompensa demasiado baixa. Pelo menos era essa a versão que circulava pelos corredores e salas de acesso restrito da Avenida Rei Saul. Contudo, segundo reza a história, Gabriel recusara-se a ceder o controlo da operação. «E porque é que haveria de o fazer?», perguntou sagazmente um membro da divisão de Viagens. Saladino tinha levado a melhor a Gabriel naquela noite horrível, em Washington. E ainda havia Hannah Weinberg, claro está, a amiga e antiga cúmplice de Gabriel assassinada por Saladino em Paris. Não, concluiu o sagaz comentador, Gabriel não ia deixar Saladino nas mãos dos seus amigos de Washington. Ia enterrá-lo a sete palmos abaixo da terra. De facto, se tivesse oportunidade, possivelmente matá-lo-ia com as próprias mãos. Para ele já não se tratava de um assunto profissional, mas estritamente pessoal.
Mas um envolvimento pessoal numa operação era muitas vezes perigoso. Ninguém o sabia melhor do que o próprio Gabriel; a sua carreira falava por si. Assim, deixou Uzi Navot e os outros membros da sua equipa pessoal ultimarem todos os detalhes. Organizativamente, foi Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais quem se ocupou de planificar e levar a cabo a missão. Supervisionado por Gabriel, colocou rapidamente cada peça no devido lugar. Marrocos não era o Líbano nem a Síria, mas nem por isso deixava de ser um território hostil. Vinte vezes maior do que Israel, era um país vasto e de geografia variada, com planícies agrícolas, montanhas abruptas, desertos de areia do Saara e grandes cidades como Casablanca, Rabat, Tânger, Fez e Marraquexe. Encontrar Saladino, mesmo contando com a ajuda de Jean-Luc Martel, seria uma missão árdua. Matá-lo sem causar baixas colaterais e sair do país com certas garantias de segurança seria uma das provas mais difíceis que o Departamento tinha enfrentado ao longo da sua história.
A faixa costeira favorecia-os, tal como na Tunísia em abril de 1988. Naquela noite, Gabriel e uma equipa de vinte e seis membros da unidade de elite Sayeret Matkal tinham desembarcado de lanchas pneumáticas a curta distância da casa de Abu Jihad e, cumprida a missão, tinham partido da mesma maneira. Durante as semanas anteriores à intervenção, ensaiaram incalculáveis vezes o desembarque numa praia de Israel. Até construíram em pleno Negev um cenário semelhante à casa de Abu Jihad para que Gabriel ensaiasse a forma de chegar da porta de entrada até ao escritório do primeiro andar onde o número dois da OLP costumava passar as tardes. Porém, tais preparativos eram impossíveis no caso de Saladino já que ignoravam em que lugar de Marrocos se escondia. A bem da verdade, nem sequer tinham a certeza de que se encontrasse no país. A única coisa que sabiam era que um homem cuja descrição correspondia à sua tinha sido visto em Marrocos uns meses antes, depois dos atentados de Washington. Dispunham, pois, de muito menos informação do que os americanos antes da intervenção em Abbottabad. E tinham bem mais que perder.
Daí que tivessem de estar preparados para qualquer eventualidade ou, pelo menos, para tantas como pudessem razoavelmente prever. Faria falta uma equipa muito numerosa, maior do que em operações passadas, e todos os seus membros precisariam de um passaporte. A divisão de Identidade, a secção do Departamento que se encarregava de fornecer documentação aos agentes, esgotou rapidamente os seus recursos e Gabriel teve de pedir aos seus parceiros (franceses, britânicos e norte-americanos) que suprissem essa carência. Inicialmente, o pedido foi acolhido com reticências, mas graças à insistência de Gabriel todos acabaram por ceder. Os americanos até acabaram por concordar em reativar um velho passaporte em nome de Jonathan Albright com uma fotografia que recordava vagamente Gabriel.
— Diz-me que não estás a pensar em ir — disse Adrian Carter durante uma videoconferência segura.
— No verão? Ah, não — respondeu Gabriel. — Nem pensar. Nessa época do ano está demasiado calor em Marrocos.
Tinham de alugar carros e motas, reservar bilhetes de avião sem data de regresso e procurar alojamento. A maioria da equipa ficaria em hotéis nos quais estaria exposta à vigilância do serviço de segurança interna de Marrocos, a Direction de la Surveillance du Territoire ou DST. Mas, para instalar o posto de comando, Gabriel precisava de uma casa segura em condições. Foi Ari Shamron, da sua casa-fortaleza em Tiberíades, que deu com a solução. Tinha um amigo (um abastado empresário judeu marroquino que tinha fugido do país em 1967 depois do cataclismo da Guerra dos Seis Dias) que ainda possuía uma moradia no antigo bairro colonial de Casablanca. A casa estava vazia nesse momento, à exceção dos caseiros, um casal que vivia numa casa de hóspedes no seio da propriedade. Shamron recomendou que comprassem o imóvel em vez de o alugarem por um período breve e Gabriel concordou. Por sorte, o dinheiro não era um impedimento: Dmitri Antonov, apesar dos seus dispêndios mais recentes, continuava a nadar nele. Passou um cheque pelo valor total da compra e enviou um advogado francês (que na realidade era um agente do Grupo Alfa) a Casablanca para levantar a escritura. Ao acabar o dia, o Departamento estava na posse de uma base operativa bem no centro da cidade. Já só faltava Saladino.
A sua rede não deu mostras de atividade durante aqueles longos dias de planificação. Não houve atentados, nem dirigidos a alvos específicos, nem de lobos solitários, mas os diversos canais do ISIS nas redes sociais fervilhavam de rumores. Estava a tramar-se algo muito grande, diziam, algo que eclipsaria os atentados de Washington e Londres, o que contribuiu para aumentar a tensão dentro de Avenida Rei Saul, em Langley e em Vauxhall Cross. Tinham de retirar Saladino da circulação o mais depressa possível.
Mas será que a sua morte poria fim ao massacre? A sua rede morreria com ele?
— É improvável — assegurava Dina Sarid.
De facto, o seu maior temor era que Saladino tivesse criado dentro da rede terrorista uma espécie de interruptor de emergência: um mecanismo que desencadearia automaticamente uma série de ataques homicidas caso ele morresse. Por outro lado, o ISIS já tinha demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Se o califado no Iraque e na Síria se perdesse fisicamente, afirmava Dina, erguer-se-ia em seu lugar um califado virtual. Um «cibercalifado», como ela o chamava, no qual as velhas normas não teriam aplicação. Os futuros mártires radicalizar-se-iam em meandros recônditos da dark net e seriam conduzidos para os seus alvos por cérebros criminosos que não conheciam pessoalmente. Assim era o admirável mundo novo gerado pela Internet, pelas redes sociais e pelas mensagens encriptadas.
Não obstante, tinha uma preocupação mais imediata: os trezentos gramas de cloreto de césio depositados num laboratório estatal, nos arredores de Paris. O cloreto de césio que, no entender de Saladino, permanecia a bordo de um cargueiro apreendido no porto de Toulon. Mas teria enviado o arsenal completo num só barco ou parte dele encontrar-se-ia já em poder de uma célula terrorista disposta a atentar? A próxima bomba que rebentasse numa cidade europeia conteria um núcleo radioativo? À medida que passavam os dias sem terem notícias do fornecedor marroquino de Jean-Luc Martel, Paul Rousseau e o ministro francês começaram a perguntar-se se não estaria na hora de advertir os seus homólogos europeus da grave ameaça. Mas Gabriel, com a ajuda de Graham Seymour e dos americanos, convenceu-os a permanecerem em silêncio. Uma advertência, mesmo que formulada em linguagem rotineira, implicava o risco de pôr a descoberto a operação. Haveria fugas de informação; era inevitável. E se a notícia se espalhasse, Saladino chegaria à conclusão de que existia um vínculo entre a apreensão dos seus carregamentos de haxixe e a apreensão do pó radioativo oculto dentro de uma bobina de cabo elétrico.
— Se calhar ele já chegou a essa conclusão — comentou Rousseau, pesaroso. — Talvez nos tenha voltado a bater aos pontos.
Intimamente, Gabriel também o temia. E o mesmo podia dizer dos americanos, que, durante uma acalorada videoconferência celebrada na segunda sexta-feira de agosto, lhe exigiram de novo que deixasse Jean-Luc Martel nas suas mãos e cedesse o controlo da operação a Langley. Gabriel opôs-se e, quando os americanos insistiram, fez a única coisa que podia fazer: desejou-lhes um bom fim de semana e a seguir ligou a Chiara para a informar de que nesse Shabbath iriam jantar a Tiberíades.
45
TIBERÍADES, ISRAEL
Tiberíades, uma das quatro cidades santas do judaísmo, está situada na margem ocidental dessa massa de água à qual os israelitas chamam lago Kinneret e o resto do mundo conhece como Mar da Galileia. Para lá dos seus arrabaldes encontra-se a pequena moshav de Kfar Hittim, que se erige no lugar em que, numa abrasadora tarde de verão de 1187, o verdadeiro Saladino derrotou os exércitos cruzados enlouquecidos pela sede numa batalha decisiva que devolveu o controlo de Jerusalém aos muçulmanos. Saladino não mostrou piedade alguma pelos seus inimigos apesar de os ter derrotado. Decepou pessoalmente o braço a Renaud de Châtillon na sua tenda quando o francês se recusou a converter-se ao islamismo. Condenou o resto dos cruzados sobreviventes à morte por decapitação, o castigo habitual no caso dos infiéis.
Mais ou menos a um quilómetro a norte de Kfar Hittim havia um promontório rochoso do qual se avistava o lago e a abrasadora planície onde se travara a antiga batalha. Fora precisamente esse o sítio escolhido por Ari Shamron para instalar o seu lar. Afirmava que, quando o vento soprava na direção adequada, podia ouvir o chocar das espadas e os lamentos dos moribundos. Dizia que lhe recordavam a transitoriedade do poder político e militar naquele turbulento recanto do Mediterrâneo oriental. Cananeus, hititas, amalequitas, moabitas, gregos, romanos, persas, árabes, turcos, britânicos... Todos eles tinham chegado àquelas terras e tinham partido. Os judeus, apesar de todas as hipóteses desfavoráveis, tinham conseguido representar o que sem dúvida era o segundo ato mais impressionante da História: dois milénios após a queda do Segundo Templo, tinham regressado à cena. Mas, dando ouvidos à própria História, os seus dias naquela região estavam contados.
Há poucas pessoas que possam afirmar que ajudaram a erguer um país. E menos ainda um serviço secreto. Ari Shamron, no entanto, tinha conseguido fazer ambas as coisas. Nascido no Leste da Polónia, emigrou para o protetorado britânico da Palestina em 1937, quando a calamidade se abatia sobre os judeus de toda a Europa, e combateu na guerra que se desencadeou depois da fundação do Estado de Israel em 1948. No rescaldo do conflito, enquanto o mundo árabe maquinava para estrangular o novo Estado judeu ainda no berço, Shamron integrou-se num pequeno organismo ao qual os seus membros simplesmente chamavam «o Departamento». Entre as suas primeiras missões constou a identificação e assassinato de vários cientistas nazis que estavam a ajudar o mandatário egípcio Gamal Abdel Nasser a construir uma bomba atómica. Mas a façanha que coroou a sua carreira como agente no ativo não teve como cenário o Médio Oriente, mas sim uma esquina de uma rua do bairro industrial de San Fernando, em Buenos Aires. Ali, numa noite chuvosa de maio de 1960, Shamron introduziu Adolf Eichmann, o artífice da Solução Final, à força na parte de trás de um carro, naquela que foi a primeira escala de uma viagem que, para Eichmann, concluiria numa forca israelita.
Já para Shamron, aquilo foi só o princípio. Poucos anos depois, atribuíram-lhe a direção dos serviços secretos a cuja criação tinha assistido, logo, a defesa da nação. Da sua guarida na Avenida Rei Saul, com os seus arquivos de metal cinzento e um permanente fedor a tabaco turco, Shamron infiltrou os seus agentes nas cortes de monarcas, roubou segredos a tiranos e eliminou incontáveis inimigos. Manteve-se no cargo bem mais tempo do que os seus predecessores e, no final dos anos noventa, depois de uma série de falhanços operacionais, abandonou felizmente a sua reforma para endireitar o rumo da nave e devolver o antigo esplendor ao Departamento. Encontrou um cúmplice num agente de campo que se tinha encerrado para chorar as suas mágoas numa casinha de campo nas margens de Helford Passage, na Cornualha. Agora, por fim, o destino do Departamento estava entregue a esse agente. E o fardo de preservar as duas criações de Shamron (o seu país e os serviços secretos nacionais) recaía sobre os seus ombros.
Shamron fora escolhido para capturar Eichmann devido às suas mãos, anormalmente grandes e fortes para um homem de tão baixa estatura. Quando Gabriel entrou na casa carregando um filho em cada braço, essas mãos estavam pousadas sobre o cabo de uma bengala de oliveira. Gabriel deixou as crianças ao cuidado de Shamron e regressou ao seu jipe blindado para ir buscar as três travessas de comida que Chiara tinha preparado nessa mesma tarde. Gilah, a sofrida esposa de Shamron, acendeu as velas do Shabbath ao pôr-do-sol enquanto o marido recitava as bênçãos do pão e do vinho com o sotaque yiddish da sua infância passada na Polónia. Por um instante, Gabriel teve a impressão de que não existiam nem a operação nem Saladino, mas só a sua família e a sua fé.
Mas foi uma sensação efémera. Efetivamente, durante o jantar, enquanto os restantes conversavam sobre política e lamentavam o matsav, a situação, Gabriel distraía-se e de vez em quando olhava para o telemóvel. Shamron, que o vigiava da cabeceira da mesa, sorriu. Não lhe ofereceu palavras tranquilizadoras para aliviar o seu evidente mal-estar. Para Shamron, as operações de espionagem eram como o oxigénio: até uma má operação era melhor do que nenhuma.
Quando acabaram de jantar, Gabriel seguiu-o até à divisão do rés-do-chão que lhe servia de escritório e oficina. As peças de um rádio antigo estavam espalhadas pela bancada de trabalho como os escombros de um bombardeio. Shamron sentou-se e, com um estalo do seu velho isqueiro Zippo, acendeu um dos seus famigerados cigarros turcos. Gabriel desviou o fumo e contemplou as lembranças pulcramente dispostas nas estantes. Reparou logo numa fotografia emoldurada de Shamron e Golda Meir tirada no dia em que ela lhe ordenou «mandar os rapazes» vingar a morte dos onze treinadores e atletas israelitas assassinados nos Jogos Olímpicos de Munique. Perto da fotografia havia um estojo de vidro do tamanho aproximado de uma caixa de charutos. Lá dentro, dispostos sobre um pano escuro, descansavam onze cartuchos de calibre 22.
— Estão aqui guardados para ti — comentou Shamron.
— Não os quero.
— E porquê?
— São macabros.
— Foste tu que descobriste como enfiar onze balas num carregador de dez, não fui eu.
— Talvez me dê medo que um dia alguém tenha uma caixa como essa numa estante, com o meu nome escrito.
— Podes contar com isso, meu filho. — Shamron acendeu a luz de trabalho apetrechada com uma lupa.
— Vejo-te muito comedido.
— O que é que isso quer dizer?
— Não me perguntaste nem uma só vez pela operação.
— Porque é que haveria de o fazer?
— Porque és patologicamente incapaz de não te meter nos assuntos alheios.
— Razão pela qual sou espião. — Shamron ajustou a lupa para examinar um troço de circuito muito desgastado.
— Que tipo de rádio é que é?
— Um RCA Catalin, um modelo art déco com carcaça de polímero marmoreado. Onda curta e normal. Foi fabricado em 1946. Imagina — acrescentou Shamron assinalando o autocolante de papel original colado na base do rádio — que algures na América, em 1946, alguém estava a montar este rádio enquanto pessoas como os teus pais tentavam recompor as suas vidas.
— É um rádio, Ari. Não tem nada que ver com a Shoah.
— Era só um comentário. — Shamron sorriu. — Pareces tenso. Tens alguma preocupação?
— Não, nenhuma.
Permaneceram em silêncio enquanto Shamron continuava a manusear as suas ferramentas. Reparar rádios antigos era o seu único passatempo, para além de se intrometer na vida de Gabriel.
— O Uzi disse-me que estás a pensar em ir a Marrocos — disse por fim.
— Porque é que te disse isso?
— Porque não conseguiu dissuadir-te e pensou que eu talvez fosse capaz.
— Ainda não tomei uma decisão.
— Mas pediste aos americanos para te renovarem o passaporte.
— Para o reativarem — esclareceu Gabriel.
— Renovar, reativar... o que é que interessa? Para começar, nunca o devias ter aceitado. Estava melhor num pequeno caixão de vidro, tal como aqueles cartuchos.
— Foi uma ajuda preciosa em inúmeras ocasiões.
— Azul e branco — afirmou Shamron. — Fazemos as nossas coisas e não ajudamos os outros a resolver problemas que eles próprios criaram.
— Talvez antes fosse assim — respondeu Gabriel —, mas já não, não podemos continuar a operar desse modo. Precisamos de aliados.
— Os aliados arranjam sempre maneira de te dececionar. E esse passaporte não te vai servir de nada se alguma coisa correr mal em Marrocos.
Gabriel apanhou o estojo com os vinte e dois cartuchos de bala usados.
— Se não me falha a memória, e de certeza que não, tu estavas no banco de trás de um carro estacionado na Piazza Annibaliano enquanto eu me ocupava do Zwaiter naquele bloco de apartamentos.
— Naquele tempo era o chefe das Operações Especiais. Tinha de estar em campo, era a minha obrigação. Um exemplo mais adequado — continuou Shamron — seria o de Abu Jihad. Então já era diretor e fiquei a bordo do barco enquanto tu e o resto da equipa iam para terra.
— Com o ministro da Defesa, se não me falha a memória.
— Foi uma operação importante; quase tão importante — disse Shamron baixinho — como a que estás prestes a levar a cabo. Está na hora de o Saladino sair de cena, sem cumprimentar o público nem fazer encores. Mas tenta garantir que não consegue aquilo de que anda desesperadamente à procura.
— O quê?
— Tu.
Gabriel devolveu o estojo à estante.
— Permites-me que te faça uma ou duas perguntas? — disse Shamron.
— Se isso te faz feliz...
— Vias de escape?
Gabriel explicou-lhe que teria duas: uma corveta israelita e um cargueiro de bandeira liberiana, o Neptune, que era na realidade uma estação de radar e escuta operada pelo AMAM, o serviço de espionagem do exército israelita. O Neptune estaria ancorado em frente a Agadir, na costa atlântica de Marrocos.
— E a corveta? — perguntou Shamron.
— Num pequeno porto do Mediterrâneo chamado El Jebha.
— Imagino que é aí que desembarcará a equipa da Sayeret.
— Só se o considerar necessário. Afinal de contas — explicou Gabriel —, disponho de um ex-agente da Sayeret e de um veterano do Serviço Aéreo Especial britânico.
— Para quem será uma missão mais do que suficiente manter sob controlo esse tal Jean-Luc Martel. — Shamron abanou a cabeça lentamente. — Às vezes, o pior ao recrutar um colaborador é que depois não te podes livrar dele. Faças o que fizeres, não te fies dele.
— Nem me passa pela cabeça.
O cigarro de Shamron tinha-se apagado. Acendeu outro e continuou a trabalhar no rádio enquanto Gabriel contemplava a fotografia da estante tentando associar a imagem a preto e branco de um espião na flor da idade com o idoso que tinha à frente dos olhos. Tinha sucedido tão depressa... Em breve, pensou, acontecer-lhe-ia o mesmo a ele. Nem sequer Raphael e Irene podiam impedir o inevitável.
— Não vais atender? — perguntou Shamron de repente.
— Atender o quê?
— O telefone. Está a distrair-me.
Gabriel olhou para baixo. Estava tão ensimesmado que não tinha ouvido a mensagem enviada do andar seguro de Ramatuelle.
— E então? — perguntou Shamron.
— Parece que o Mohammad Bakkar quer falar com o Jean-Luc Martel sobre essa droga que se extraviou. Pergunta se pode ir a Marrocos no princípio da semana que vem.
— Estará disponível?
— O Martel? Acho que podemos encontrar um buraco na sua agenda.
Sorridente, Shamron ligou o rádio à tomada da bancada e acendeu-o. Pouco depois, após uma tentativa de sintonização, ouviu-se uma melodia.
— Não a reconheço — disse Gabriel.
— Claro, és demasiado jovem. É Artie Shaw. A primeira vez que ouvi esta música... — Shamron deixou a frase em suspenso.
— Como é que se chama? — perguntou Gabriel.
— You’re a lucky guy: és um tipo sortudo. — Nesse momento apagou-se o rádio e a música parou. Shamron franziu a testa. — Ou talvez não.
46
CASABLANCA, MARROCOS
A estrada que ligava o Aeroporto Internacional Mohammed V de Casablanca ao centro da maior cidade e principal centro financeiro de Marrocos era formada por quatro faixas de rijo alcatrão negro como o breu pelo qual Dina, uma condutora temerária por natureza e nacionalidade, conduzia com extraordinário cuidado.
— O que é que te preocupa tanto? — perguntou Gabriel.
— Tu — respondeu Dina.
— O que é que eu fiz desta vez?
— Nada. Mas é a primeira vez que faço de motorista do chefe.
— Bom — afirmou ele a olhar pela janela —, há uma primeira vez para tudo.
O saco de viagem de Gabriel descansava sobre o banco de trás. Já a pasta ia apoiada sobre os joelhos. Lá dentro estava o passaporte americano que lhe tinha permitido passar sem contratempos pelo controlo fronteiriço e pela alfândega marroquina. As coisas em Washington podiam ter mudado, mas ser americano continuava a ser uma vantagem em grande parte do mundo.
O trânsito estancou de repente.
— Uma operação stop — explicou Dina. — Estão por todo o lado.
— Achas que andam à procura de quê?
— Se calhar do chefe dos serviços secretos israelitas.
Uma fileira de cones cor de laranja desviava o trânsito para a berma, onde dois gendarmes inspecionavam os veículos e respetivos ocupantes, vigiados por um agente da DST vestido à paisana e com óculos de sol. Enquanto abria a janela, Dina dirigiu umas palavras a Gabriel em alemão, a língua correspondente à sua identidade fictícia e ao seu passaporte falso. Os aborrecidos gendarmes fizeram-lhe sinais para avançar como se espantassem moscas. O homem da DST parecia distraído.
Dina voltou a fechar rapidamente a janela para impedir que o denso e implacável calor exterior entrasse e pôs o ar condicionado no máximo. Passaram por umas grandes dependências militares. Depois apareceram de novo as terras agrícolas, pequenas parcelas de terra fértil e escura, cultivadas principalmente pelos habitantes das povoações próximas. A Gabriel, a mata de eucalipto lembrou-lhe de casa.
Por fim chegaram à periferia desigual de Casablanca, a segunda cidade mais populosa do Norte de África, só ultrapassada pela megalópole do Cairo. Os terrenos cultivados não desapareceram por completo: ainda se viam alguns entre os elegantes blocos de apartamentos recém-construídos e os bairros de lata que albergavam centenas de milhares das pessoas mais miseráveis em barracas feitas de chapas metálicas e blocos de cimento.
— Chamam-nos bidonvilles — comentou Dina apontando para um dos bairros de lata. — Calculo que soe melhor do que «subúrbios». Quem lá vive não tem nada. Nem água corrente, nem praticamente nada que levar à boca. De vez em quando, as autoridades tentam demoli-las, mas as pessoas voltam a construir as suas barracas. Que remédio é que têm? Não têm outro lugar para onde ir.
Passaram por um terreno de erva acastanhada e rala onde dois meninos descalços vigiavam um rebanho de cabras esqueléticas.
— Uma coisa que abunda nos bidonvilles é o Islão — prosseguiu Dina. — Cada vez mais radical, graças aos pregadores wahhabi e salafistas. Lembras-te dos atentados de 2003? Todos os rapazes que se imolaram provinham dos bidonvilles de Sidi Moumen.
Naturalmente que Gabriel se lembrava dos atentados, embora em grande parte do Ocidente tivessem caído no esquecimento: catorze bombas contra objetivos ocidentais e judeus, quarenta e cinco mortos, mais de uma centena de feridos. Foram obra de uma filial da Al-Qaeda conhecida como Salafia Jihadia que por sua vez estava vinculada ao Grupo Islâmico Combatente Marroquino. Apesar de toda a beleza natural e do turismo ocidental que visitava o país, Marrocos ainda era um viveiro de islamitas radicais no qual o ISIS estava profundamente enraizado, facto atestado pelas suas inúmeras células. Mais de mil e trezentos marroquinos tinham ido para o califado a fim de lutarem nas fileiras do ISIS (juntamente com várias centenas de cidadãos franceses, belgas e holandeses de origem marroquina), e os marroquinos tinham desempenhado um papel crucial na recente campanha terrorista do ISIS na Europa ocidental. E depois havia Mohammed Bouyeri, o marroquino holandês que tinha atingido a tiro e apunhalado o cineasta e escritor Theo van Gogh numa rua de Amesterdão. O crime não foi produto do ato espontâneo de um perturbado: Bouyeri fazia parte de uma célula de muçulmanos radicais oriundos do Norte de África e radicados em Haia conhecida como «Rede Hofstad». Os serviços de segurança marroquinos tinham conseguido desarticular as atividades dos seus extremistas no estrangeiro, mas dentro de portas continuavam a abundar as conspirações terroristas. O ministro do Interior tinha-se gabado há pouco tempo de que tinham desarticulado mais de trezentas, entre elas uma que incluía o uso de gás-mostarda. Na opinião de Gabriel, mais valia manter o silêncio sobre certas coisas.
Subiram uma lomba e o Atlântico azul pálido espraiou-se perante eles. O Morocco Mall, com os seus cinemas futuristas e lojas ocidentais, ocupava uma faixa de terra recém-urbanizada ao longo da costa. Dina seguiu a Corniche rumo ao centro urbano passando em frente de cafés, restaurantes e mansões de uma brancura resplandecente. Uma delas tinha o tamanho de um bloco de escritórios.
— Pertence a um príncipe saudita. E ali — disse Dina — fica o Four Seasons.
Abrandou para Gabriel poder dar uma espreitadela. No gradeamento que dava acesso aos jardins do hotel, dois guardas vestidos de escuro inspecionavam a parte de baixo de um carro que acabava de chegar, à procura de explosivos. Só quem passava a inspeção tinha autorização para aceder à avenida que conduzia ao estacionamento coberto do hotel.
— Há um magnetómetro do outro lado da porta — informou Dina. — Inspeciona a bagagem de todos os hóspedes sem exceção. Vamos ter de trazer as armas pela praia. Não constitui um problema.
— Achas que os rapazes da Salafia Jihadia também sabem disso?
— Espero que não — respondeu Dina com um dos seus raros sorrisos.
Continuaram a avançar pela Corniche deixando a imponente mesquita Hassan II, as muralhas exteriores da antiga medina e o imenso porto para trás. Entraram finalmente no antigo bairro colonial francês, com as suas largas e sinuosas alamedas e uma mistura única de arquitetura mourisca, art nouveau e art déco. Outrora, os vizinhos mais cosmopolitas de Casablanca passeavam-se por entre as elegantes colunas engalanados à última moda parisiense e jantavam nalguns dos melhores restaurantes do mundo. Agora, o bairro era um monumento à decadência e à insegurança cidadã. As flores de estuque das fachadas estavam cobertas de fuligem e o óxido apodrecia as balaustradas de ferro forjado. A classe abastada tentava não se aventurar para além dos modernos quartiers de Gauthier e Maarif, e o centro histórico tinha-se convertido no domínio daqueles que usavam véu ou jilaba e de vendedores de rua que apregoavam fruta estragada e cassetes económicas com sermões e versículos do Corão.
O único sinal de progresso era o flamejante elétrico que serpenteava pelo Boulevard Mohammed V, em frente de lojas encerradas e arcadas nas quais dormitavam indigentes sobre leitos de papelão. Dina seguiu um elétrico ao longo de vários quarteirões, depois virou para uma estreita rua secundária e encostou. De um lado havia um prédio de habitação de oito andares que parecia prestes ruir sob o peso das antenas parabólicas que brotavam como cogumelos das suas varandas. Do outro, erguia-se uma parede desconchavada e coberta de plantas trepadeiras, com uma porta de cedro que outrora teria estado ornamentada. Um cão ofegante e de aspeto feroz montava guarda diante dela.
— Porque é que parámos? — perguntou Gabriel.
— Porque já chegámos.
— Onde?
— Ao posto de comando.
— Deves estar a brincar.
— Não.
Gabriel olhou para o cão com desconfiança.
— E ele?
— É inofensivo. O preocupante são as ratazanas.
Nesse momento, uma ratazana escapuliu-se pelo passeio. Tinha o tamanho de um guaxinim. O cão encolheu-se, assustado. E o mesmo fez Gabriel.
— Se calhar devíamos voltar para o Four Seasons.
— Não é seguro.
— Este lugar também não é.
— Não é tão mau quando te acostumas.
— Como é por dentro?
Dina desligou o motor.
— Há fantasmas. Mas de resto é bastante agradável.
Passaram junto ao cão ofegante e, ao atravessar a porta de cedro, penetraram num paraíso escondido. Havia uma piscina de um azul-escuro, uma pista de ténis de terra batida e um jardim aparentemente infinito pejado de buganvílias, hibiscos, palmeiras e bananeiras. A casa, imensa, era de estilo tradicional marroquino, com pátios interiores de azulejos nos quais o murmúrio incessante de Casablanca se dissolvia no silêncio. As divisões labirínticas pareciam congeladas no tempo. Poderia ser 1967, o ano em que o proprietário enfiou alguns bens pessoais numa mala de viagem e fugiu para Israel. Ou quiçá, pensou Gabriel, uma época mais simpática. Um período em que naquele bairro todos falavam francês e se perguntavam quanto tempo é que os alemães demorariam a desfilar pelos Campos Elísios.
Os caseiros chamavam-se Tarek e Hamid. Tinham comprado o cargo aos seus predecessores, demasiado idosos para continuarem a tratar da propriedade. Evitavam o interior da casa e limitavam as suas atividades ao jardim e à casinha de hóspedes. Os respetivos filhos, netos e esposas viviam num bidonville próximo.
— Somos os novos donos — disse Gabriel. — Porque é que não podemos simplesmente despedi-los?
— Não é boa ideia — respondeu Yaakov Rossman.
Antes de ser transferido para o Departamento, Rossman tinha trabalhado para o Shabak, o serviço de segurança interior de Israel, a dirigir agentes que operavam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Falava árabe com fluência e era um perito em cultura árabe e islâmica.
— Se tentarmos livrarmo-nos deles, vai haver confusão. E isso podia afetar o nosso disfarce.
— Então damos-lhes uma indemnização generosa.
— Ainda era pior, porque viriam parentes de todos os cantos do país bater-nos à porta a pedir dinheiro. — Yaakov abanou a cabeça com um ar de reprovação. — Não sabes muito sobre esta gente, pois não?
— Então, ficamos com os caseiros — disse Gabriel. — Mas que parvoíce é essa de haver fantasmas na casa?
Estavam rodeados pelo fresco silêncio do pátio principal da casa. Yaakov olhou para Dina com nervosismo, ela por sua vez olhou para Eli Lavon. Foi Lavon, o amigo mais antigo de Gabriel, que por fim respondeu:
— Chama-se Aisha.
— A mulher de Maomé?
— Não, essa não. Outra Aisha.
— Outra como?
— É um jinn.
— Um quê?
— Uma espécie de demónio.
Gabriel olhou para Yaakov à procura de uma explicação.
— Os muçulmanos acham que Alá fez o homem a partir do barro. Pelo contrário, acham que os jinns são feitos de fogo.
— E isso é mau?
— Muito. De dia, os jinns vivem entre nós dentro de objetos inanimados e têm uma vida muito parecida à nossa. Mas à noite adotam a forma que lhes apetecer.
— Então são mutantes — disse Gabriel, cético.
— E malvados — acrescentou Yaakov com um assentimento grave. — O que mais gostam é de fazer mal aos humanos. A crença nos jinns está especialmente enraizada aqui, em Marrocos. Certamente é um vestígio das crenças berberes anteriores à chegada do Islão.
— Mas o facto de os marroquinos acreditarem neles não significa que sejam reais.
— Está no Corão — afirmou Yaakov na defensiva.
— Isso também não os torna reais.
Houve outra troca de olhares nervosos entre os três agentes veteranos do Departamento. Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas vocês não acreditam nessas baboseiras, pois não?
— Ontem à noite ouvimos imensos barulhos esquisitos dentro da casa — disse Dina.
— De certeza que está infestada de ratazanas.
— Ou de jinns — disse Yaakov. — Às vezes aparecem em forma de ratazanas.
— Achava que só havia um.
— A Aisha é a líder. Pelos vistos, há muitos mais.
— Quem é que o diz?
— O Hamid. É um especialista.
— Não me digas. E o que é que o Hamid sugere que façamos a esse respeito?
— Um exorcismo. A cerimónia dura dois dias e inclui o sacrifício de uma cabra.
— Podia obstaculizar a operação — concluiu Gabriel depois de ponderar devidamente a ideia.
— Sim, pois podia — concordou Yaakov.
— Não há outras medidas que possamos adotar, para além de um exorcismo em grande escala?
— A única coisa que podemos fazer é tentar que não se zangue.
— Quem? A Aisha?
— Quem é que havia de ser?
— E que coisas é que a irritam?
— Não podemos abrir as janelas, nem cantar, nem rir. E também não é permitido levantar a voz.
— Só isso?
— O Hamid aspergiu com sal, sangue e leite todos os cantos dos quartos.
— Que alívio.
— Também nos disse para não tomarmos duche à noite, nem usarmos a sanita.
— Porque não?
— Porque os jinns vivem debaixo de água. Se os incomodarmos...
— Sim?
— O Hamid diz que uma grande tragédia se abaterá sobre nós.
— Isso parece terrível. — Gabriel percorreu o belo pátio com o olhar. — Este lugar tem nome?
— Não, e se tem ninguém se lembra dele — respondeu Dina.
— Então, que nome é que vamos usar?
— Dar al-Jinns — propôs Lavon com um ar sombrio.
— Talvez a Aisha se zangue — disse Gabriel. — Proponham outro.
— Que tal Dar al-Jawasis? — perguntou Yaakov.
Sim, era melhor, pensou Gabriel. Dar al-Jawasis. A Casa dos Espiões.
Combinaram que as esposas e as filhas mais velhas de Tarek e Hamid lhes fariam uma refeição tradicional marroquina. Chegaram pouco depois: duas mulheres rechonchudas, tapadas pelo véu, e quatro raparigas bonitas, carregadas com cestos de verga que transbordavam de carne e verduras compradas nos bazares da medina velha. Passaram toda a tarde a cozinhar na enorme cozinha enquanto conversavam baixinho em darija, para não incomodarem os jinns. Pouco depois, a casa inteira cheirava a cominhos, gengibre, coentros e malagueta.
Gabriel espreitou para a cozinha por volta das sete da tarde e viu inúmeras travessas de saladas e aperitivos e enormes caçarolas de barro cheias de cuscuz e tagine. Havia comida suficiente para alimentar uma aldeia e, incentivadas por Gabriel, as mulheres convidaram o resto dos seus familiares do bairro onde viviam para partilharem do banquete. Comeram todos juntos no pátio grande (os marroquinos pobres e os quatro forasteiros que, segundo pensavam eles, eram europeus), sob um dossel de estrelas brancas como diamantes. Para ocultar que dominavam o árabe, Gabriel e os outros falaram unicamente em francês. Conversaram sobre os jinns, sobre as promessas frustradas da Primavera Árabe e sobre essa banda de assassinos que se fazia chamar Estado Islâmico. Tarek afirmou que vários jovens do seu bidonville, entre eles o filho de um primo afastado, tinham estado no califado. De vez em quando, a DST fazia uma rusga no bairro e levava os salafistas para a prisão de Temara para os interrogar através da tortura.
— Têm impedido muitos atentados — disse —, mas não tarda muito vai haver outro dos grandes, como o de 2003. É só uma questão de tempo.
O jantar terminou com esse mau augúrio. As mulheres e respetivos familiares regressaram ao bairro de barracas, levando os restos de comida, e Tarek e Hamid foram para o jardim vigiar os jinns. Gabriel, Yaakov, Dina e Eli Lavon desejaram boa noite e retiraram-se para os quartos. O de Gabriel tinha vista para o mar. Um dos caseiros tinha traçado um círculo a carvão à volta da cama para o proteger dos demónios, e nos quatro cantos havia gotas de sangue misturado com leite e sal. Exausto, Gabriel caiu de imediato num sono profundo, do qual acordou pouco antes do amanhecer com a necessidade imperiosa de aliviar a bexiga. Passou um bom bocado deitado na cama a pensar no que devia fazer, até que por fim viu as horas no telemóvel. Passavam poucos minutos das cinco da madrugada. Amanhecia às 6h49. Fechou os olhos. Não convinha tentar a sorte, pensou. Era melhor não incomodar a Aisha nem os seus amigos.
47
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela manhã, Jean-Luc Martel, hoteleiro, restaurador, fabricante de roupa, joalheiro, narcotraficante internacional e colaborador da espionagem francesa e israelita, subiu a bordo do seu avião privado Gulfstream, o JLM Deux, no Aeroporto Côte d’Azur de Nice com destino a Casablanca, acompanhado pela namorada e pelos supostos amigos, os que viviam na colossal villa no lado oposto da baía, bem como por um espião britânico que até há pouco tempo ganhava a vida como assassino profissional. Nos anais da guerra global contra o terrorismo, nenhuma operação tinha tido tal começo. Era, todos concordavam, a primeira vez. E contra toda a lógica e sem qualquer justificação, confiavam que fosse também a última.
Martel enviara duas limusinas Mercedes para levar a comitiva do aeroporto para o Four Seasons. Passaram a rugir à frente dos brilhantes blocos de apartamentos e dos sujos bidonvilles e seguiram pela Corniche, à velocidade de comitiva oficial até à entrada fortificada do hotel. A sua chegada tinha sido previamente anunciada, de maneira que, depois de uma inspeção superficial aos veículos, puderam aceder ao parque de estacionamento, onde um pequeno batalhão de empregados aguardava para os receber. Abriram-se as portas e os empregados carregaram uma montanha de malas nos seus carrinhos. De seguida, a bagagem e os seus proprietários atravessaram o arco do magnetómetro. Foram todos admitidos de imediato, exceto Christopher Keller, que fez soar o alarme duas vezes. O chefe de segurança do hotel, ao não encontrar qualquer objeto suspeito na posse de Keller, comentou em jeito de brincadeira que devia ser feito de metal. O sorriso tenso e hostil do britânico não contribuiu para dissipar as suas suspeitas.
Um silêncio monástico pendia sobre o ar fresco do hall climatizado. Era pleno verão em Marrocos, logo, temporada baixa para os hotéis da praia. Seguidos pela caravana de malas, JLM e os seus acompanhantes encaminharam-se para a receção: Martel e Olivia Watson vestidos de branco brilhante; Mikhail e Natalie fingindo-se aborrecidos; e Keller incomodado ainda pelo tratamento que lhe tinham dado à porta. O diretor do hotel entregou-lhes as chaves dos seus quartos (Monsieur Martel gozava, como de costume, da mordomia de fazer o check-in antecipadamente) e dedicou-lhes umas sumptuosas palavras de boas-vindas.
— Jantam esta noite no hotel? — perguntou.
— Sim — respondeu Keller de imediato. — Mesa para cinco, por favor.
Era um hotel disposto ao contrário: o hall ocupava o último andar, por cima dos pisos onde os hóspedes estavam alojados. Os quartos de JLM e da sua comitiva ficavam no quarto piso. Martel e Olivia ocupavam uma só suíte, ladeada pela de Mikhail e de Natalie, de um lado, e a de Keller de outro. Quando lhes levaram a bagagem e despacharam os empregados com uma gorjeta, Mikhail e Keller abriram as portas que davam para os três quartos tornando-os num só.
— Muito melhor assim — disse Keller. — Quem é que quer comer?
A mensagem chegou à Casa dos Espiões pouco depois do meio-dia, quando Hamid e Tarek estavam empoleirados na sanita da casa de banho de Gabriel a recitar versos do Corão para afugentar os jinns. Informava de que JLM e os seus acompanhantes tinham chegado sem novidades ao Four Seasons, que não tinham recebido comunicação alguma de Mohammad Bakkar ou dos seus seguidores e que naquele momento estavam a almoçar no terraço do restaurante do hotel. Gabriel enviou a mensagem por via segura para o Centro de Operações da Avenida Rei Saul, que por sua vez a remeteu para Langley, Vauxhall Cross e para a sede da DGSI em Levallois-Perret, onde foi recebida com uma expectativa que superava muito a sua importância operativa.
As preces da sanita terminaram poucos minutos depois da uma e a comida foi servida à uma e meia. Dina e Yaakov Rossman saíram da Casa dos Espiões minutos mais tarde, num dos carros alugados. Dina vestia umas calças de algodão largas e uma blusa branca e levava pendurado ao ombro um saco com o nome de um exclusivo estilista francês. Yaakov, por sua vez, estava vestido como se fosse fazer uma incursão noturna em Gaza. Às duas da tarde, encontravam-se reclinados numa espreguiçadeira com dossel do Tahiti Beach Club da Corniche. Gabriel mandou-os ficar ali até novo aviso. Depois, subiu o volume dos microfones instalados nos três quartos contíguos do Four Seasons.
— Alguém tem de levar o saco ao hotel — comentou Eli Lavon.
— Obrigado, Eli — afirmou Gabriel. — Nunca me teria lembrado disso.
— Só estava a tentar ajudar.
— Desculpa, são os jinns, que falam por mim.
Lavon sorriu.
— Em quem é que tinhas pensado?
— O Mikhail é o candidato mais óbvio.
— Até eu suspeitaria dele.
— Então talvez convenha que seja uma mulher a tratar disso.
— Ou duas — sugeriu Lavon. — Para além disso, já está na hora de fazerem as pazes, não achas?
— Começaram mal, mais nada.
Lavon encolheu os ombros.
— Podia acontecer a qualquer um.
Estava um segurança na porta que comunicava a parte de trás do recinto murado do hotel com a plage Lalla Meriem, a principal praia pública de Casablanca. Vestido com um fato escuro apesar do calor do meio da tarde, observou como as mulheres (a inglesa alta que tinha visto várias vezes anteriormente e uma francesa de semblante antipático) atravessavam a areia escura e lisa até à beira-mar. A inglesa vestia um vaporoso páreo de flores preso à cintura estreita e uma t-shirt translúcida. A francesa, pelo contrário, usava um vestido de algodão ligeiramente mais recatado. Os rapazes da praia aproximaram-se delas de imediato. Colocaram duas espreguiçadeiras na linha do mar e abriram dois guarda-sóis para protegê-las do sol que era forte. A inglesa pediu alguma coisa para beber e, quando lhes levaram os copos, deu uma gorjeta excessiva aos empregados. Apesar das suas visitas frequentes a Marrocos, ignorava o valor do dinheiro marroquino. Por esse motivo, e por outros, os rapazes rivalizavam pela mordomia de a servir.
O segurança retomou o jogo que estava a jogar no seu telemóvel; os rapazes da praia regressaram à sombra da sua barraca. Natalie tirou o vestido e colocou-o sobre o seu saco de praia Vuitton. Olivia despiu o páreo e tirou a t-shirt. Depois estendeu o seu longo corpo na espreguiçadeira e virou a sua cara perfeita para o sol.
— Não gostas muito de mim, pois não?
— Estava só a representar um papel.
— Pois fizeste-o muito bem.
Natalie adotou a mesma postura que Olivia e fechou os olhos ao sol.
— A verdade é — disse passado um momento — que não mereces que te trate assim. Eras simplesmente um meio para atingir um fim.
— E o Jean-Luc?
— Ele também é um meio para atingir um fim. E, para o caso de quereres saber, não vou com a cara dele.
— Então, gostas de mim? — perguntou Olivia num tom divertido.
— Um bocadinho — reconheceu Natalie.
Dois marroquinos musculados de vinte e poucos anos passaram à frente delas, com a água pelos tornozelos, a conversar em darija. Ao ouvi-los, Natalie sorriu.
— Estão a falar de ti — disse.
— Como é que sabes?
Natalie abriu os olhos e olhou-a inexpressivamente.
— Falas marroquino?
— O marroquino não é um idioma, Olivia. De facto, aqui falam três línguas diferentes. Francês, berbere e...
— Talvez isto tenha sido um erro — atalhou Olivia.
Natalie sorriu.
— Porque é que falas árabe?
— Os meus pais são argelinos.
— Então, és árabe?
— Não — respondeu Natalie. — Não sou.
— Afinal, o Jean-Luc tinha razão. Quando saímos da vossa villa naquela tarde disse que...
— Que parecia uma judia de Marselha.
— Como é que sabes?
— O que é que achas?
— Estavam a ouvir?
— Estamos sempre a ouvir.
Olivia besuntou óleo nos ombros.
— O que é que aqueles marroquinos estavam a dizer sobre mim?
— É difícil de traduzir.
— Imagino.
— Calculo que estejas acostumada.
— Tal como tu. És muito bonita.
— Para uma judia de Marselha.
— És?
— Era há muito tempo — afirmou Natalie. — Já não.
— Era assim tão mau?
— Ser judeu em França? Sim, era muito mau.
— Foi por isso que te tornaste espia?
— Eu não sou espia. Sou a Sophie Antonov, a tua amiga do outro lado da baía. O meu marido tem negócios com o teu namorado. Têm entre mãos algum assunto aqui, em Casablanca, do qual preferem não falar.
— O meu namorado — disse Olivia. — O Jean-Luc não gosta que digam que é o meu namorado.
— Porquê? Há algum problema?
— Entre mim e o Jean-Luc?
Natalie fez um gesto afirmativo.
— Achava que estavam sempre a ouvir.
— E assim é. Mas tu conhece-lo melhor do que ninguém.
— Não estou muito certa disso. Mas não — respondeu Olivia —, não parece suspeitar que fui eu quem o traiu.
— Não o traíste...
— Como é que o descreverias então?
— Fizeste o correto.
— Para variar — concluiu Olivia.
Os dois marroquinos musculados estavam de volta. Um deles olhou para Olivia com descaramento.
— Pensas dizer-me o que é que estamos aqui a fazer? — perguntou ela.
— Quanto menos souberes — respondeu Natalie —, melhor.
— É assim que funcionam as coisas no teu ofício?
— Sim.
— Estou em perigo?
— Isso depende de tirares mais roupa ou não.
— Tenho o direito de saber.
Natalie não respondeu.
— Imagino que tem alguma coisa a ver com aqueles carregamentos de haxixe que a polícia confiscou.
— Que haxixe?
— Não importa.
— Exato — afirmou Natalie. — Qualquer coisa que te diga, fará com que seja mais difícil cumprires o teu papel.
— E qual é o meu papel?
— O de par amoroso do Jean-Luc Martel que ignora de onde procede o seu dinheiro.
— Procede dos seus hotéis e restaurantes.
— E da sua galeria de arte — assinalou Natalie.
— A galeria é minha. Aí vem um dos teus amigos — disse Olivia num tom sonolento.
Natalie levantou o olhar e viu que Dina caminhava parcimoniosamente para elas pela beira-mar.
— Parece triste — comentou Olivia.
— Tem motivos para isso.
— O que é que lhe aconteceu à perna?
— Isso não importa.
— Queres dizer que não é nada comigo?
— Tentava ser simpática.
— Que novidade. — Olivia levou uma mão à testa para se proteger do sol. — Tem graça: parece que traz um saco igual ao teu.
— A sério? — Natalie sorriu. — Que coincidência, não achas?
O segurança encarregava-se de vigiar qualquer transeunte que passasse pela praia, não se fosse repetir o trágico incidente que aconteceu na Tunísia em 2015, quando um terrorista salafista tirou um fuzil de assalto do seu guarda-sol e matou trinta e oito hóspedes de um hotel de cinco estrelas, na sua maioria súbditos britânicos. Não obstante, pouco podia fazer o guarda no caso de se repetirem as mesmas circunstâncias. Não estava armado; tinha apenas um rádio. Em caso de atentado, devia fazer soar o alarme e fazer «tudo o que estivesse ao seu alcance» para neutralizar o atacante ou os atacantes. Ou seja, com toda a probabilidade perderia a vida a tentar proteger um grupo de ocidentais ricos seminus. Não era bem assim que queria morrer. Mas em Casablanca não havia muito trabalho, sobretudo para os filhos dos bidonvilles. E era preferível montar guarda na praia do que vender fruta com um carrinho na medina. Sabia-o por experiência própria.
A tarde tinha sido pacata, inclusivamente para agosto, e o guarda concentrou toda a sua atenção na mulher que se aproximava a oeste, onde ficavam o Tahiti e os outros clubes da praia. Era baixinha e de cabelo escuro e, ao contrário da maioria das ocidentais que visitava a praia, ia discretamente vestida. Tinha um verdadeiro ar de melancolia, como tivesse enviuvado há pouco. Trazia um saco de praia pendurado no ombro direito. Louis Vuitton, um modelo muito na moda naquele verão. O guarda perguntou-se se tinha consciência de que aquele saco custava mais dinheiro do que muitos marroquinos veriam em toda a sua vida.
Precisamente nesse momento, uma das mulheres deitadas perto da margem, a francesa antipática, cumprimentou-a levantando o braço. A mulher de aspeto melancólico aproximou-se e sentou-se na beira da sua espreguiçadeira. Os rapazes da praia ofereceram-se para lhe levar outra espreguiçadeira, mas ela disse que não. Evidentemente, não pensava ficar muito tempo. A inglesa alta e bonita parecia incomodada com a interrupção. Aborrecida, olhava desastrosamente para o mar enquanto a francesa e a recém-chegada falavam com ar de confiança e fumavam uns cigarros que a francesa tinha tirado do seu saco, também um Louis Vuitton; o mesmo modelo, de facto.
Passado um momento, a mulher de aspeto triste levantou-se para se ir embora. A francesa, que tinha voltado a pôr o vestido, acompanhou-a uns cem metros pela beira-mar. Depois abraçaram-se e cada uma seguiu o seu caminho: a mulher melancólica regressou para os clubes da praia e a francesa regressou para a sua espreguiçadeira. Trocou umas palavras com a inglesa alta e bela. Depois, a inglesa levantou-se e prendeu o páreo à cintura. Para deleite do guarda, não se incomodou a vestir a t-shirt translúcida. A visão do seu corpo perfeito distraiu-o a tal ponto que só deu uma olhadela aos sacos de praia quando, um momento depois, passaram pela porta e regressaram ao recinto do hotel.
Juntas entraram no elevador e subiram para o quarto piso, onde lhes franquearam a entrada para os três quartos convertidos num só. A alta e bela inglesa entrou na suíte que partilhava com Monsieur Martel. De imediato, ele atraiu-a para si e sussurrou-lhe algo ao ouvido que a francesa não conseguiu ouvir. Mas pouco importava: na Casa dos Espiões estariam a ouvir. Estavam sempre a ouvir.
48
CASABLANCA, MARROCOS
Naquela noite, não recebeu qualquer mensagem de Mohammad Bakkar ou dos seus subordinados, e na manhã seguinte também não. Na Avenida Rei Saul e em Langley, e em todos os pontos intermédios, os ânimos exaltaram-se. Até Paul Rousseau, no seu refúgio na parte mais profunda da sede da DGSI em Levallois-Perret, começou a ter as suas dúvidas. Temia que tivesse havido alguma fuga de informação e que a operação estivesse a meter água. O culpado era, sem dúvida, o seu estranho colaborador: o agente que tinha chantageado e recrutado sem permissão do seu chefe, nem do ministro. O agente a quem tinha dado total imunidade. Os jovens e hostis colaboradores de Morris Payne, o diretor da CIA, partilhavam o pessimismo de Rousseau. Mas, ao contrário do francês, não estavam dispostos a esperar indefinidamente que o telefone tocasse. Eram militares de carreira, mais do que espiões, e preferiam abrir fogo diretamente contra o inimigo. Payne, ao que parece, era da mesma opinião. Convocou Adrian Carter para uma reunião no seu escritório e expôs-lhe claramente o seu ponto de vista. Carter encarregou-se de transmitir a mensagem a Gabriel através de uma videoconferência segura do Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA. Gabriel, por sua vez, estava no centro de operações montado na Casa dos Espiões.
— Nada de alaridos — disse.
— O que é que queres dizer?
— O Mohammad Bakkar é a estrela da companhia. E a estrela da companhia é quem marca a hora e o lugar do encontro.
— Até uma estrela precisa de um bom conselho, de vez em quando.
— Isso não corresponde à forma como a relação tem funcionado até agora. Se mandar o Martel tomar a iniciativa, o Bakkar vai perceber que se passa algo de estranho.
— Pode ser que já saiba.
— Ligar-lhe não vai mudar isso.
— Os chefes acham que poderia resolver a situação num sentido ou noutro.
— Ah, sim?
— E a Casa Branca...
— Desde quando é que a Casa Branca está metida nisto?
— Desde o princípio. Segundo parece, o presidente está muito atento ao assunto.
— Que reconfortante. E exatamente quantas pessoas é que sabem disto em Washington, Adrian?
— É difícil saber. — Carter franziu a testa. — O que é este barulho?
— Não é nada.
— Parece alguém a rezar.
— E é, efetivamente.
— Quem?
— O Tarek e o Hamid. Tentam afugentar os jinns.
— O quê?
— Os jinns — repetiu Gabriel.
— Eu prefiro o gim com lima e um pouco de tónica.
Gabriel perguntou-lhe pelos dois drones que Morris Payne tinha atribuído à operação. Um era um drone de vigilância Sentinel. O outro, um Predator. Carter explicou-lhe que o Sentinel já estava na zona e podia sobrevoar Marrocos assim que Gabriel tivesse um alvo claro. O Predator, armado com dois mortíferos mísseis Hellfire, estava numa base próxima, pronto para entrar em ação. A CIA não tinha autoridade para lançar um ataque em Marrocos. Só o presidente podia dar essa ordem, e até nesse caso — afirmou Carter — seria o último recurso.
— Os marroquinos vão ficar furiosos — disse.
— Quanto tempo demorará o Predator a estar em situação de disparar?
— Depende da localização do alvo. Duas horas, no mínimo.
— Duas horas é muito.
— Não são os felinos mais velozes da selva. Mas nada disto faz sentido — disse Carter — enquanto o Mohammad Bakkar não convocar o teu rapaz para uma reunião.
— Vai ligar — afirmou Gabriel, e cortou a ligação.
No entanto, no fundo não tinha tanta certeza. E quando passou o meio-dia sem que tivesse notícias, sucumbiu momentaneamente ao pessimismo que se tinha apoderado dos seus colegas de Paris e de Washington. Distraiu-se a conduzir as suas personagens: os Antonov e os seus amigos, o Jean-Luc Martel e a Olivia Watson. Mandou Martel e Mikhail às redondezas de Casablanca à procura de possíveis localizações para um novo hotel que a JLM Enterprises não tinha intenção de construir e despachou Natalie e Olivia para o gigantesco Morocco Mall, onde, munidas dos cartões de crédito de Martel, invadiram várias lojas exclusivas. Almoçaram depois com Christopher Keller no quartier Gauthier. O britânico não viu indícios de vigilância, nem da DST marroquina, nem de qualquer outro tipo. Eli Lavon, que seguiu Martel e Mikhail durante a sua saída à procura de supostos terrenos para construir, informou que também não tinha detetado qualquer sinal de que os estivessem a vigiar.
A meio da tarde, enquanto o pessimismo de Gabriel se agudizava, houve outra crise relativa aos jinns. Hamid tinha encontrado aberta a janela de um quarto (o de Dina, mais especificamente) e temia que vários demónios novos se tivessem esgueirado para o interior da casa. Apoiado por Yaakov, propôs de novo a possibilidade de um exorcismo. Conhecia um homem do seu bidonville que trataria disso por um preço módico, com o sacrifício de cabra incluído. Gabriel negou-se: continuaram a encomendar sal, sangue e leite com a esperança de que tudo se resolvesse. Hamid, evidentemente, duvidava disso.
— Como queira — disse, muito sério. — Mas temo que isto vá acabar mal. Para todos.
Às cinco da tarde, até Gabriel estava convencido de que a Casa dos Espiões estava assombrada e de que Aisha e os seus ferozes amigos conspiravam contra ele. Mandou Natalie e Olivia à praia para apanharem sol e saiu para dar um passeio sozinho (sem escoltas, nem armas) pelas arcadas sujas da cidade velha. Vagueou sem rumo, atravessando praças cheias de gente e avenidas congestionadas pelo tráfego vespertino, até que encontrou um café cujos clientes vestiam na sua maioria roupa ocidental. Sentados a uma mesa no recanto mais escuro do local havia três americanos: dois rapazes e uma rapariga.
Pediu em francês um café noir. Então percebeu que não tinha dinheiro marroquino. Mas não importava: o empregado aceitou, encantado, os seus euros. Lá fora, o estrépito da rua era opressivo. Abafava o som da televisão que havia por cima do balcão e a tranquila conversa dos três americanos. Então, às seis horas e doze minutos, sufocou a vibração do telemóvel de Gabriel. Leu a mensagem, um momento depois, e sorriu. Ao que parece, Mohammad Bakkar queria falar com Jean-Luc Martel em Fez na tarde do dia seguinte.
Antes de voltar a guardar o telemóvel no bolso, enviou uma breve mensagem a Adrian Carter para Langley. Pediu depois outro café e bebeu-o como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
49
FEZ, MARROCOS
No dia seguinte, minutos antes do meio-dia, Christopher Keller estava à entrada do hotel, a ver como os porteiros carregavam a bagagem para os carros. Martel saiu pouco tempo depois, seguido por Mikhail, Natalie e Olivia. Tinha na mão a fatura do hotel, que entregou a Keller.
— Dê-a aos seus chefes. E diga-lhes que espero que me reembolsem até ao último cêntimo.
— Vou já tratar disso.
Keller atirou a fatura para o lixo e entrou para a parte de trás do primeiro Mercedes. Martel juntou-se a ele, enquanto os outros entravam para o outro carro. Seguiram pela costa e, ao chegarem a Rabat, viraram para o interior atravessando plantações de sobreiros até chegarem aos sopés do Médio Atlas. Na primavera, os montes estariam abençoados pelas chuvas e pelo gelo derretido, mas em pleno verão eram castanhos e secos. As ladeiras estavam cheias de oliveiras, e pelas planícies estendiam-se campos de regadio. Martel olhava distraidamente pela janela, enquanto Keller controlava o fluxo de e-mails, mensagens de texto e telefonemas do telemóvel do francês. Com a ajuda de Martel, despachou os assuntos que requeriam atenção urgente. Ignorou os outros. Até Jean-Luc Martel, disse a si próprio, precisava de um dia livre de vez em quando.
Seguindo as instruções de Gabriel, pararam para comer em Mequinez, a mais pequena das quatro antigas cidades imperiais de Marrocos. Aí, Eli Lavon chegou à conclusão de que um indivíduo de trinta e poucos anos, com ar de marroquino, com óculos de sol e boné americano os estava a vigiar. Depois de almoçarem, o mesmo indivíduo seguiu-os até às ruínas romanas de Volubilis, que percorreram debaixo do sol abrasador da tarde. Lavon tirou uma fotografia ao homem, enquanto fingia admirar o arco triunfal e enviou-a para o esconderijo de Gabriel, em Casablanca. Gabriel, por sua vez, reenviou-a para Christopher Keller, que a mostrou a Martel quando voltaram para o carro.
— Reconhece-o?
— Talvez.
— O que é que quer dizer com isso?
— Quero dizer que talvez o tenha visto antes.
— Onde?
— No encontro de Rife, em dezembro do ano passado. Após os atentados de Washington.
— Com quem é que estava? Com o Bakkar?
— Não. Estava com o Khalil.
Perto das seis chegaram à Ville Nouvelle de Fez, a parte moderna da cidade, onde a maioria dos seus habitantes preferia viver. O hotel deles, o Palais Faraj, ficava perto da antiga medina. Era um labirinto de azulejos coloridos e frescos e passagens sombrias. O proprietário cedeu automaticamente a suíte real a Martel e Olivia. Keller ficaria num quarto contíguo de dimensões mais modestas, e Mikhail e Natalie um pouco mais à frente, no mesmo corredor. Levaram Olivia a dar um passeio pelos souks da medina, enquanto Martel e Keller esperavam que o telefone tocasse sentados no terraço privado da suíte real. O ar estava quente e parado. Dos curtumes próximos chegava-lhes um leve cheiro de ferrugem e fumo de lenha.
— Quanto tempo é que nos vai fazer esperar? — perguntou Keller.
— Depende.
— De quê?
— Do seu humor, imagino. Às vezes, liga logo. E às vezes...
— O quê?
— Muda de ideias.
— Sabe que estamos aqui?
— O Mohammad Bakkar — afirmou Martel — sabe tudo.
Passados vinte minutos sem que recebessem um telefonema ou uma mensagem, o francês levantou-se bruscamente.
— Preciso de um copo.
— Peça algo ao serviço de quartos.
— Há um bar lá em cima — disse Martel e, antes que Keller se opusesse, dirigiu-se à porta.
Lá fora, no hall, carregou no botão do elevador e, como não apareceu de imediato, subiu pelas escadas. O bar, pequeno e escuro, ficava no último piso e de lá dominavam-se as cúpulas da medina. Martel pediu a garrafa de Chablis mais cara da carta de vinhos. Keller, só um café.
— De certeza que não quer um pouco? — perguntou Martel, enquanto admirava um copo de vinho à luz do sol.
Keller respondeu que preferia um café.
— Não bebe quando está de serviço?
— Algo do género.
— Não sei como é que consegue. Está há dias sem dormir. Imagino que uma pessoa acaba por se acostumar quando se dedica ao seu ofício — acrescentou o francês pensativamente. — À espionagem, quero dizer.
Keller lançou uma olhadela ao barman. Não havia mais ninguém no local.
— Foi sempre um espião? — insistiu Martel.
— E você? Foi sempre um narcotraficante?
— Eu nunca fui narcotraficante.
— Ah, sim — disse Keller. — Laranjas.
Martel observou-o atentamente por cima da borda do copo de vinho.
— Tenho a impressão de que passou uma boa temporada no exército.
— Não tenho jeito para militar. Nunca gostei de ordens. E não gosto de trabalhar em equipa.
— Então pode ser que seja um militar especial. Do SAS, por exemplo. Ou deveria dizer do Regimento? Não é assim que os seus camaradas lhe chamam?
— Ignoro.
— Que estupidez — replicou Martel bruscamente.
A sorrir para o barman marroquino, Keller olhou pela janela. A escuridão começava a acomodar-se sobre a medina, mas nos cumes mais altos das montanhas ainda restava um laivo de luz rosada.
— Deveria ter mais cuidado, Jean-Luc. O rapaz do balcão poderia ofender-se.
— Conheço os marroquinos melhor do que você. E reconheço um ex-membro do SAS quando o vejo. Todas as noites, algum inglês rico chega a um dos meus hotéis ou restaurantes, acompanhado pela sua escolta privada. E são sempre veteranos do SAS. Suponho que é melhor dedicar-se à espionagem do que ser lacaio de algum executivo britânico com vontade de ser arrogante.
Naquele momento, Yossi Gavish e Rimona Stern entraram no bar e sentaram-se a uma mesa, do outro lado do local.
— Os seus amigos de Saint-Tropez — comentou Martel. — Convidamo-los a juntarem-se a nós?
— Voltemos para baixo com a garrafa.
— Ainda não — respondeu Martel. — Sempre gostei desta vista ao entardecer. Este lugar é Património da Humanidade, sabia? E, no entanto, grande parte das pessoas que vivem aqui em baixo venderia de boa vontade o seu ruinoso riad ou a sua dar a algum ocidental para comprar um bonito e limpo apartamentozinho na Ville Nouvelle. É uma pena, na verdade. Não sabem o que têm. Às vezes, o velho é muito melhor do que o novo.
— Poupe-se a filosofia barata — afirmou Keller com um ar aborrecido.
Rimona estava a rir-se de algo que Yossi tinha dito. Keller deu uma vista de olhos às últimas mensagens e aos e-mails que Martel tinha recebido, enquanto este continuava a contemplar o pôr-do-sol na medina.
— Fala muito bem francês — comentou Martel, ao fim de um momento.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Houve um silêncio. Foi Martel quem o quebrou.
— Há muitos anos, quando ainda vivia em Marselha, corria o rumor de que havia um inglês que trabalhava como assassino para o clã dos Orsati. Tinha pertencido ao SAS, ou era o que se dizia. Pelos vistos, era um desertor. — Martel fez uma pausa e depois acrescentou: — Um cobarde.
— Parece o argumento de uma história de espiões.
— Às vezes, a realidade supera a ficção. — Martel olhou-o fixamente. — Como sabiam sobre o René Devereaux?
— O Devereaux conhece toda a gente.
— A voz dessa gravação era a sua.
— Ah, sim?
— Não consigo sequer imaginar as coisas que teve de lhe fazer para conseguir que falasse. Mas devem ter também outra fonte — acrescentou o francês. — Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
— A Olivia não tem nada a ver com isto.
O ceticismo de Martel era evidente.
— Pode ficar com eles?
— A que é que se refere?
— Aos cinquenta milhões que lhe deram por aqueles quadros. Aos cinquenta milhões que lhe pagaram para que me traísse.
— Beba o seu vinho, Jean-Luc. Desfrute da paisagem.
— Cinquenta milhões é muito dinheiro — prosseguiu Martel. — O tal iraquiano chamado Khalil deve ser muito importante.
— É.
— E se mostrar a cara? O que acontecerá então?
— O mesmo que acontecerá consigo se tocar num cabelo da Olivia — replicou Keller com a voz calma.
A ameaça não pareceu afetar o francês.
— Talvez alguém deva atender — disse.
Keller olhou para o telefone, que vibrava sobre a mesa baixa, entre eles os dois. Deitou uma vista de olhos ao número e passou o telemóvel a Martel. A conversa muito breve decorreu numa mistura de francês e árabe marroquino. Depois, Martel desligou a chamada e entregou o telemóvel.
— E então? — perguntou Keller.
— O Mohammad mudou de planos.
— Quando é que se vão ver?
— Amanhã à noite. E não me quer ver só a mim — disse Martel. — Estamos todos convidados.
50
CASABLANCA, MARROCOS
Christopher Keller não era o único que vigiava o telefone de Jean-Luc Martel. No esconderijo em Casablanca, Gabriel também não o perdia de vista. Ouviu o fluxo constante de chamadas a chegar ao longo dessa tarde e leu as numerosas mensagens e e-mails que o francês recebeu. E às sete e um quarto ouviu as poucas palavras da conversa entre Martel e um homem que não se incomodou a apresentar-se. Ouviu a gravação mais três vezes de princípio ao fim e, de seguida, procurou o minuto 19:16:13 e carregou no ícone de play.
— O Mohammad e o seu sócio gostariam de conhecer os seus amigos. Mais especificamente um deles.
— Qual?
— O alto. O que é casado com aquela francesa tão bonita e que tem dinheiro aos pontapés. É russo, não é? Traficante de armas?
— De onde é que tirou essa informação?
— Isso não importa.
— Porque é que querem conhecê-lo?
— Para lhe propor um negócio. Acha que o seu amigo pode estar interessado? Diga-lhe que vale a pena.
Gabriel carregou na pausa e olhou para Yaakov Rossman.
— Como é que achas que o Mohammad Bakkar e o sócio dele souberam o que faz na realidade o Dmitri Antonov?
— Pode ser que tenham ouvido os mesmos rumores que o Jean-Luc Martel ouviu. Os que espalhámos como migalhas de pão entre Londres e Nova Iorque, passando pelo sul de França.
— E esse negócio que lhe querem propor?
— Duvido que esteja relacionado com o haxixe.
— Ou com as laranjas — acrescentou Gabriel. Depois disse: — Tenho a sensação de que quem quer mesmo conhecer o Dmitri Antonov é o sócio do Mohammad. Mas para quê?
— Podemos assumir que o hipotético sócio de Mohammad é o Saladino?
— De acordo.
— Pode ser que queira comprar armas. Ou se calhar quer material radiológico de origem russa para substituir o stock que perdeu quando capturaram o barco.
— Ou pode ser que queira matá-lo. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou: — A ele e à sua esposa, aquela francesa tão bonita.
Carregou no play.
— Onde?
— Vão de carro para o sul, até Erfoud e...
— Erfoud? Isso fica...
— A sete horas nesta época do ano, talvez menos. O Mohammad preparou-vos dois jipes. Aqueles Mercedes deles não vos servirão de nada para onde vão.
— E onde é que isso fica?
— É um acampamento no Saara. Bastante luxuoso. Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido.
Gabriel parou a gravação.
— Um acampamento à beira do Saara. Muito tradicional, muito agradável.
— E muito isolado — comentou Yaakov.
— Pode ser que isso seja o que o Saladino quer.
— Achas que nos traíram?
— A mim pagam-me para me preocupar, Yaakov.
— Algum suspeito?
— Só um.
Gabriel abriu outro arquivo de áudio no seu computador e depois de ajustar o tempo carregou no play.
— Fala muito bem francês.
— Não sabe quanto isso significa para mim, Jean-Luc.
— Onde é que aprendeu?
— A minha mãe era francesa. Passei muito tempo em França em criança.
— Onde?
— Na Normandia, sobretudo, mas também em Paris e no sul.
— Em todo o lado, menos na Córsega.
Gabriel carregou na pausa.
— Em algum momento, tinha de perceber — disse Yaakov. — Procedem do mesmo modo. São duas caras da mesma moeda.
— O Keller nunca esteve metido no narcotráfico.
— Não — anuiu Yaakov com sarcasmo. — Só ganhava a vida a matar pessoas.
— Eu acredito na redenção.
— Não me surpreende.
Gabriel franziu a testa e carregou de novo no play.
— Mas devem ter também outra fonte. Alguém que conhecia a minha ligação ao René. Alguém muito próximo de mim.
— Não precisávamos de uma fonte. Ouvíamos os seus telefonemas e líamos os seus e-mails.
— Não houve qualquer telefonema ou e-mail. — Martel sorriu com frieza. — Imagino que só precisaram de um pouco de dinheiro. Também foi assim que eu a consegui. A Olivia adora dinheiro.
Gabriel parou a gravação.
— Também era lógico que se apercebesse disto em algum momento — comentou Yaakov.
Na Casa dos Espiões fez-se silêncio. Os ocupantes da suíte real do Palais Faraj, pelo contrário, discutiam sobre se deviam jantar no hotel ou num restaurante da medina. Falavam disso ao estilo dos milionários aborrecidos. A atuação deles era tão convincente, que até Gabriel, que tinha criado as personagens, não soube se se tratava de uma discussão autêntica ou a fingir para despistar a DST marroquina, que, sem dúvida, também os estava a ouvir.
— Pode ser que tenhamos perdido o Martel — disse Gabriel, por fim. — Quem sabe? É possível que nunca o tenhamos tido em nosso poder.
— São outra vez os jinns que falam pela tua boca?
Gabriel não disse nada.
— Tem estado debaixo do nosso controlo desde que lhe estendemos a armadilha. Vigilância absoluta. Física, eletrónica e virtual. O Keller praticamente dormiu no seu quarto. É nosso de corpo e alma.
— Pode ser que nos tenha escapado alguma coisa.
— Como por exemplo?
— Uma sequência concreta de zumbidos do telefone ou algum código impessoal ao qual não demos importância.
— Com jornal ou sem ele? Com guarda-chuva ou sem?
— Exato.
— Já ninguém lê jornais, e em Marrocos não chove nesta época do ano. Para além disso — acrescentou Yaakov —, se o Mohammad Bakkar achasse que o Martel passou para o outro lado, não teria pedido para vê-lo.
Em Fez, a discussão a respeito do jantar tinha adquirido contornos verdadeiramente azedos. Exasperado, Gabriel arrumou a questão enviando uma mensagem de texto a Mikhail. JLM e os seus acompanhantes jantaram no hotel nessa noite.
— Boa ideia — comentou Yaakov. — Convém que esta noite vão cedo para a cama. Amanhã será um dia muito longo.
Gabriel ficou calado.
— Não estarás a pensar em abortar a operação, pois não?
— Claro que sim.
— Chegámos muito longe — reclamou Yaakov. — Manda-os ao acampamento, que se reúnam com eles. Identifica o Saladino, dá o aviso. E, quando se for embora, deixa que os americanos lancem um míssil e os convertam numa nuvenzinha de fumo.
— Dito assim parece muito simples.
— É. Os americanos fazem-no diariamente.
Gabriel ficou em silêncio, de novo.
— O que é que vais fazer? — perguntou Yaakov.
Gabriel carregou no play.
Chegarão ao pôr-do-sol. O pessoal irá preparar-vos o jantar. É um lugar muito marroquino, muito tradicional. Muito agradável. O Mohammad chegará quando tiver anoitecido...
51
FEZ, MARROCOS
Natalie acordou com as almofadas empapadas em suor, cega pelo sol. A pestanejar, contemplou o pedaço de céu que se via da sua janela e, por um instante, não soube onde estava. Encontrava-se em Fez, em Casablanca ou em Saint-Tropez? Ou estava de novo naquele casarão repleto de pátios e quartos, perto de Mossul? Tu és o meu Maimónides... Virou-se e esticou a mão para a fita da persiana, mas não a alcançou. A metade da cama que Mikhail ocupava ainda estava na penumbra. Ele dormia tranquilamente, com o tronco descoberto.
Natalie fechou os olhos com força para fugir à luz do sol e tentou reunir os fragmentos do seu último sonho daquela manhã. Ia a caminhar por um jardim povoado de ruínas: ruínas romanas, tinha a certeza disso. Não eram as ruínas de Volubilis que tinham visitado na véspera, mas as de Palmira, na Síria. Também tinha a certeza disso. Era uma das poucas ocidentais que tinham visitado Palmira após a sua captura por parte do Estado Islâmico, e tinha visto com os seus próprios olhos os destroços que os combatentes sagrados do ISIS tinham causado nas ruínas. Tinha-as percorrido ao luar, acompanhada por um jihadista egípcio chamado Ismail que estava a receber treino no mesmo campo do que ela. Mas, no sonho, era outro homem que ia a seu lado. Um homem alto e corpulento que coxeava levemente. Um objeto indefinido, grotesco e grande, ia pendurado na sua mão direita. Só agora, no meio da neblina quente da manhã, Natalie compreendeu que aquela coisa era a sua cabeça.
Sentou-se devagar na cama para não acordar Mikhail e apoiou os pés no chão despido. O piso parecia que tinha saído do forno. Por um instante, sentiu náuseas. Deduziu que o sonho a tinha posto doente. Ou talvez fosse alguma coisa que tivesse comido, alguma iguaria marroquina que não lhe tinha caído bem.
Fosse como fosse, correu para a casa de banho para vomitar. Depois, começou a sentir os primeiros assaltos de uma forte enxaqueca. Logo hoje, disse a si própria. Tomou dois analgésicos com um gole de água da torneira e passou uns minutos debaixo da água fresca do duche. Depois, embrulhada num roupão fino, entrou na salinha de estar e preparou uma chávena de café bem forte na máquina Nespresso. O tabaco da Madame Sophie parecia chamá-la da mesa. Fumou um cigarro só para manter a fachada, ou pelo menos foi o que disse a si própria. Não conseguiu aliviar a dor de cabeça.
És muito corajosa, Maimónides. Demasiado corajosa do que te convém...
Oxalá fosse verdade, pensou. Quantas pessoas estariam vivas se tivesse tido a coragem de deixá-lo morrer? Washington, Londres, Paris, Amesterdão, Antuérpia, e todas as outras cidades. Sim, os americanos queriam apanhá-lo. Mas ela também.
Entrou no quarto de vestir. A roupa que ia usar naquele dia estava dobrada num armário. Para além disso, as suas malas estavam feitas. Tal como as de Mikhail. As etiquetas revelavam um fabrico luxuoso, mas as malas, tal como o próprio Dmitri Antonov, eram falsas. A mala mais pequena tinha um fundo falso. Dentro do compartimento escondido havia uma Beretta 92FS, dois carregadores cheios de projéteis de nove milímetros e um silenciador.
Depois de aceitar trabalhar para a Departamento, Mikhail mostrara-lhe como carregar e descarregar uma arma. Agora, agachada no chão do quarto de vestir, colocou rapidamente o silenciador no extremo do canhão, introduziu um dos carregadores na coronha e carregou a primeira bala. Levantou depois a arma segurando-a com as duas mãos como Mikhail lhe ensinara e apontou para o homem que segurava a sua cabeça na mão.
Vá lá, Maimónides, faz de mim um mentiroso...
— O que é que estás a fazer? — perguntou uma voz atrás dela.
Natalie virou-se sobressaltada e apontou para o peito de Mikhail. Tinha a respiração agitada e a coronha da Beretta húmida entre as mãos trémulas. Mikhail aproximou-se lenta e suavemente, baixou o canhão da pistola para o chão. Natalie largou as mãos e observou como devolvia a pistola ao seu estado original e a depositava no compartimento secreto da mala.
Levantando-se, Mikhail pôs-lhe um dedo sobre os lábios e apontou para o teto para lhe indicar que podia haver microfones da DST. Depois conduziu-a para fora, para o terraço, e abraçou-a.
— Quem és? — sussurrou-lhe ao ouvido em inglês com uma pronúncia russa.
— Sou a Sophie Antonov — respondeu ela mansamente.
— O que é que estás a fazer em Marrocos?
— O meu marido está a tratar de negócios com o Jean-Luc Martel.
— O que é que o teu marido faz?
— Antes, os minerais. Agora, os investimentos.
— E o Jean-Luc Martel?
Natalie não respondeu. De repente, tinha frio.
— Queres explicar-me o que se passou?
— Pesadelos.
— Que tipo de pesadelos?
Natalie contou-lhe.
— Era só um sonho.
— Esteve prestes a acontecer, uma vez.
— Não voltará a acontecer.
— Não sabes isso — disse ela. — Não sabes como ele é inteligente.
— Nós somos mais.
— A sério?
Fez-se um silêncio.
— Manda uma mensagem ao posto de comando — sussurrou-lhe Natalie, por fim. — Diz-lhes que não posso ir. Que não me posso aproximar dele. Tenho medo de deitar toda a operação por terra.
— Não — respondeu Mikhail. — Não vou mandar nenhuma mensagem.
— Porquê?
— Porque tu és a única que o consegue identificar.
— Tu também o viste. No restaurante de Georgetown.
— A verdade — afirmou Mikhail — é que tentei não olhar para ele. Mal me lembro da cara dele.
— E a gravação das câmaras de segurança do Four Seasons?
— Não é muito boa.
— Não consigo estar na presença dele — disse Natalie passado um bocado. — Vai-me reconhecer. Porque é que não me havia de reconhecer? Fui eu quem salvou a vida daquele miserável.
— Sim — disse Mikhail. — E agora vais ajudar-nos a matá-lo.
Voltou a levá-la para a cama e fez os possíveis para ajudá-la a esquecer o pesadelo. Depois, tomaram um duche juntos e vestiram-se. Natalie passou um longo momento a pentear-se ao espelho.
— O que é que pareço? — perguntou.
— Uma judia de Marselha — respondeu Mikhail com um sorriso.
Lá em cima, o pessoal do hotel estava a levantar o buffet do pequeno-almoço. Enquanto tomavam café e pão, Mikhail leu os jornais da manhã no seu tablet, enquanto Natalie, fingindo um aborrecimento que não sentia, contemplava o decrépito caos da medina. Por fim, pouco antes das onze, desceram para o hall, onde Martel e Christopher Keller estavam a pagar a conta. Olivia estava lá fora, vendo como os porteiros metiam a bagagem nos carros.
— Dormiste bem? — perguntou.
— Melhor do que nunca — respondeu Natalie.
Entrou na parte de trás do segundo carro e ocupou o seu lugar junto da janela. Uma cara que não reconhecia devolvia-lhe o olhar através do vidro.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
52
LANGLEY, VIRGÍNIA
O Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA (NCTC) tinha estado em tempos localizado numa só sala do corredor F do quinto piso do quartel-general da Agência. Com os seus ecrãs de televisão, os seus telefones barulhentos e os seus dossiês amontoados, assemelhava-se à redação de um jornal de segunda linha. Os seus membros trabalhavam em pequenos grupos dedicados a objetivos específicos: a Fação do Exército Vermelho, o Exército Republicano Irlandês, a Organização para a Libertação da Palestina, Abu Nidal, Hezbollah... Tinha, para além disso, uma unidade, formada em 1996, que centrava os seus esforços num extremista saudita pouco conhecido, chamado Osama Bin Laden, e a sua pujante rede de terrorismo islamista.
Como era de esperar, o NCTC tinha aumentado consideravelmente de tamanho desde os atentados do 11 de Setembro e agora ocupava uns dois mil metros quadrados do andar térreo da nova sede da CIA, com o seu próprio átrio e torniquetes de acesso. Por motivos de segurança, o verdadeiro nome do chefe do NCTC tinha deixado de ser de domínio público. Para o mundo exterior (e para o resto de Langley) era simplesmente «Roger». Kyle Taylor gostava daquela alcunha. Um tipo chamado Kyle não metia medo a ninguém. Roger, pelo contrário, era um nome que impunha respeito, sobretudo se comandava uma frota de drones armados e tinha o poder de pulverizar um indivíduo pelo simples facto de estar num lugar concreto no momento errado.
Uzi Navot tinha esbarrado com ele pela primeira vez há já uma década, quando Taylor trabalhava na delegação da CIA em Londres. Tinham sentido então uma antipatia instantânea um pelo outro. Navot via Taylor (que não falava mais nenhuma língua do que o inglês e era, portanto, inútil para o trabalho de campo) como pouco mais do que um espião de bancada ou um soldado de sala de reuniões. E Taylor, que acalentava o conhecido ressentimento da CIA contra o Departamento e Israel (agudizado, possivelmente, no seu caso particular) considerava Navot um tipo calculista e traiçoeiro. De resto, davam-se às mil maravilhas.
— É a primeira vez que visitas o Centro? — perguntou Taylor depois de poupar a Navot a incómoda passagem pelo controlo de segurança.
— Não, mas há muito tempo que não vinha aqui.
— Decididamente crescemos desde a última vez que vieste. Não tivemos outro remédio. Todos os dias levamos a cabo operações no Afeganistão, Paquistão, Iémen, Síria, Somália e Líbia.
Parecia um agente de vendas a vangloriar-se da expansão sem precedentes da sua empresa.
— E agora também em Marrocos — acrescentou Navot baixinho, convidando-o a continuar a falar.
— A verdade é que, tendo em conta quão delicado é o assunto do ponto de vista político, muito poucas pessoas estão a par dele, até aqui, no Centro — acrescentou Taylor. — O acesso é muito restrito. Estamos a usar uma das nossas salas de operações mais pequenas. Completamente opaca.
Conduziu Navot por um corredor ladeado de portas numeradas atrás das quais analistas e operadores sem rosto nem nome rastreavam terroristas e conspiradores por todo o globo terrestre. Ao fundo do corredor havia um curto lanço de escadas metálicas e outro posto de controlo pelo qual Taylor e Navot passaram sem parar. Acima havia um hall mal iluminado e uma porta que só se abria através de um código de segurança. Taylor marcou rapidamente o código no painel e fixou o olhar na lente do leitor biométrico. Segundos depois, a porta abriu-se com um estalido.
— Bem-vindo ao Buraco Negro — comentou ao fazer Navot entrar. — Os outros já cá estão.
Taylor apresentou-lhe Graham Seymour, esquecendo quiçá (ou quiçá não) que se conheciam há muito tempo e, de seguida, Paul Rousseau.
— Sei que já conheces o Adrian.
— E muito bem, aliás — afiançou Navot, aceitando a mão que Carter lhe estendia. — Eu e o Adrian superámos, juntos, várias guerras, e temos cicatrizes que o atestam.
Os seus olhos demoraram uns instantes a acostumar-se por completo à penumbra. No exterior despontava o que prometia vir a ser um opressivo dia de verão, mas ali, naquela sala de operações de acesso restrito, no mais profundo de Langley, reinava uma noite eterna. Sentados diante de várias mesas, em redor da sala, havia alguns técnicos cujos rostos juvenis eram iluminados pelo resplendor dos ecrãs de computador. Dois deles vestiam um macacão de aviador: eram os responsáveis por pilotar os dois drones que, naquele momento, sobrevoavam a parte oriental de Marrocos sem conhecimento do governo marroquino. As imagens enviadas pelas câmaras de alta resolução dos dois aparelhos tremeluziam nos ecrãs, na parte da frente da sala. O Predator, com os seus dois mísseis Hellfire, estava já sobre Erfoud. Pelo contrário, o Sentinel permanecia a sudeste de Fez, de onde a sua câmara focava claramente o Hotel Palais Faraj. Navot viu Christopher Keller e Jean-Luc Martel surgirem no pátio da frente do hotel. Uns segundos depois, dois Mercedes passaram debaixo de uma arcada e rumaram para sul, para as montanhas.
Navot sentou-se junto de Graham Seymour. Kyle Taylor levara Adrian Carter para um recanto da sala para o consultar sobre algum assunto privado. A tensão que havia entre eles saltava à vista.
— Alguma ideia sobre quem comanda as tropas? — perguntou Navot.
— Por enquanto — respondeu Graham Seymour —, eu diria que é o Gabriel que tem a faca e o queijo na mão.
— Até quando?
— Até o Saladino aparecer. Se isso acontecer — acrescentou Seymour —, vale tudo.
O trânsito na Ville Nouvelle era um pesadelo. Nem sequer na parte velha de Fez parecia haver forma de evitá-lo. Passado um tempo, os edifícios comerciais foram ficando para trás e começaram a aparecer pequenos terrenos cultivados e prédios de habitação de construção recente. Eram blocos de três andares, envelhecidos antes de tempo, com garagens no piso térreo. A maioria das garagens tinha sido convertida em minúsculas lojas ou restaurantes, ou serviam como chiqueiros para guardar animais. As ovelhas e as cabras pastavam entre as oliveiras acabadas de plantar, e as famílias faziam refeições campestres debaixo de qualquer sombra que encontrassem.
Pouco a pouco, o terreno foi-se inclinando para os longínquos cumes do Médio Atlas e os olivais deram lugar aos densos arvoredos de alfarrobeiras, argânias e pinheiros de Alepo. As águias voavam em círculos, à procura de chacais. E, por cima das águias, pensou Christopher Keller, os drones procuravam Saladino.
A primeira vila de alguma importância era Imouzzer. Construída pelos franceses, estava povoada por uns treze mil membros da tribo berbere de Aït Seghrouchen, que falavam um dialeto da antiga língua berbere. Ali, a temperatura descia vários graus (estavam já a uns mil e duzentos metros de altitude) e os souks e cafés exclusivos para homens da rua principal estavam a abarrotar de gente. Keller estudou as caras de jovens e velhos por igual. Eram muito diferentes das caras que vira em Casablanca e em Fez. Traços europeus, cabelo e olhos mais claros. Era como se tivessem atravessado uma fronteira invisível.
Precisamente nesse momento o seu telemóvel vibrou: acabava de receber uma mensagem. Leu-a e olhou para Martel.
— Os nossos amigos têm a impressão de que nos estão outra vez a seguir. Acham que podia ser o mesmo homem que nos seguiu ontem em Mequinez e Volubilis. Gostavam de ter um retrato mais claro dele.
— O que é que pretendem?
Keller mandou o condutor parar num quiosque, nos arredores da povoação. O carro em que iam Mikhail, Natalie e Olivia parou atrás e, a seguir, parou um Renault empoeirado. Keller conseguiu ver o passageiro pelo retrovisor lateral: cabelo escuro e muito curto, bochechas largas, óculos de sol, boné de basebol americano. O condutor, pelo contrário, não se conseguia avistar.
— Traga-nos duas garrafas de água — ordenou a Martel.
— Esta terra não é muito hospitaleira por assim dizer.
— Aposto que saberá defender-se.
Martel saiu e aproximou-se do quiosque. Keller voltou a olhar pelo retrovisor e viu que o passageiro saía do Renault. Quando passou junto do Mercedes, tirou-lhe uma fotografia através da janela fumada da parte de trás. Saiu tão desfocada que era inútil. Mas, pouco depois, quando o homem regressou ao Renault, Keller conseguiu fotografar claramente a sua cara. Mostrou a fotografia a Martel quando o francês regressou ao lugar de trás do carro com duas pegajosas garrafas de água mineral Sidi Ali.
— É ele, não há dúvida — disse Martel. — É o que vi no Rife no inverno passado, com o Khalil.
Enquanto o carro se afastava da berma, Keller mandou a fotografia para o posto de comando de Casablanca. Depois voltou a olhar pelo retrovisor lateral. O outro Mercedes estava mesmo atrás deles. E atrás do Mercedes circulava um Renault coberto de pó com dois homens lá dentro.
Os muitos anos de cooperação, com frequência polémica, entre a CIA e a DST marroquina tinham granjeado a Langley o acesso à longa lista de jihadistas marroquinos e seus acólitos. Como resultado, os analistas do Centro Nacional de Antiterrorismo demoraram só uns minutos a identificar o sujeito da fotografia. Era Nazir Bensaïd, um ex-integrante da Salafia Jihadia marroquina preso depois dos atentados suicidas de 2003 em Casablanca. Posto em liberdade em 2012, Bensaïd fora para a Turquia e finalmente tinha acabado no califado do ISIS. O governo marroquino achava que continuava lá. Mas, evidentemente, estava enganado.
Uma fotografia de Bensaïd tirada na época em que foi preso apareceu naquele instante nos ecrãs do Buraco Negro do NCTC, juntamente com outra fotografia tirada em 2012, à sua chegada ao Aeroporto Ataturk de Istambul. Ambas as fotografias foram remetidas para Gabriel, que por sua vez as enviou para Keller, que confirmou que Nazir Bensaïd era o indivíduo que acabava de ver.
Mas o que é que Nazir Bensaïd estava a fazer numa vila habitada por treze mil berberes, nas montanhas do Médio Atlas? E porque é que os estava a seguir até Erfoud? Havia a possibilidade de que tivesse regressado a Marrocos clandestinamente e tivesse integrado o cartel de Mohammad Bakkar. Mas a explicação mais provável era que estivesse a velar pelos interesses do sócio de Bakkar, aquele iraquiano alto que se fazia chamar Khalil e coxeava ao andar.
Dentro do Buraco Negro, os técnicos marcaram digitalmente o Renault sedan e os seus dois ocupantes, enquanto em Fort Meade, Maryland, a NSA captava o sinal emitido pelos seus telemóveis. Adrian Carter ligou para o sexto andar para dar a notícia ao diretor da CIA, Morris Payne, que rapidamente a transmitiu à Casa Branca. Às sete e meia, hora de Washington, o presidente reuniu-se com o seu conselho de segurança na Sala de Crise, a cujos ecrãs chegavam as imagens emitidas pelos dois drones.
Na Casa dos Espiões de Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman também observavam os ecrãs, enquanto do outro lado do corredor os dois guardas da propriedade rezavam para afugentar os demónios surgidos do fogo. Através dos altifalantes do seu computador portátil, Gabriel ouvia a conversa excitada que reinava no NCTC de Langley. Desejava poder partilhar o seu otimismo, mas era-lhe impossível. A operação na sua totalidade estava agora nas mãos de um homem que tinha enganado e chantageado para que obedecesse às suas ordens. Nem sempre conseguimos escolher os nossos colaboradores, relembrou. Às vezes, são eles que nos escolhem a nós.
53
ERFOUD, MARROCOS
Os jipes esperavam numa praça soalheira e poeirenta, em frente do Café Dakkar de Erfoud. Eram Toyotas Land Cruiser de um branco impoluto, acabados de lavar. Os condutores vestiam calças de algodão e coletes caqui, e exibiam a eficácia sorridente dos guias turísticos profissionais. Mas não o eram. Eram homens de Mohammad Bakkar.
A sul de Erfoud estendia-se o grande oásis de Tafilalet, com os seus palmeirais infinitos: oitocentas mil palmeiras ao todo, segundo o guia em francês que Natalie segurava com força entre as mãos. Enquanto olhava pela janela, pensou de novo naquela noite em Palmira e no seu sonho dessa manhã. Saladino a andar ao seu lado sob um luar violento, com a sua cabeça na mão... Desviou o olhar e viu que Olivia a observava com curiosidade do outro lado no banco de trás do Toyota.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
Em silêncio, Natalie olhou fixamente em frente. Mikhail ia no lugar do copiloto, junto ao condutor. O segundo Toyota, que levava Keller e Jean-Luc Martel, circulava uns cem metros à frente. Atrás, a estrada estava deserta. Nem sequer se via o Renault que os tinha seguido desde Fez.
As palmeiras diminuíram e a paisagem tornou-se íngreme e rochosa. A estrada de asfalto terminava em Rissani, e pouco depois apareceu o grande mar de areia de Erg Chebbi. A aldeia de Khamlia, um conjunto de casas baixas, da cor do barro, estendia-se ao sul das dunas. Ali, abandonaram a estrada principal e seguiram por um caminho cheio de buracos. Natalie vigiava o avanço através do telemóvel: eram um ponto azul que atravessava as terras despovoadas, a caminho da fronteira argelina. Depois, de repente, o ponto azul parou: tinham abandonado a zona com rede. Mikhail tinha levado um telemóvel por satélite para o caso de isso acontecer. Estava atrás de Natalie, na mesma mala do que a Beretta.
Continuaram a avançar durante meia hora, enquanto à sua volta o sol poente tingia de vermelho tijolo as grandes dunas esculpidas pelo vento. Passaram junto a um pequeno acampamento de nómadas berberes que estavam a ferver água para o chá à entrada de uma tenda de pelo de camelo preto. Para além disso, não se via vivalma, só as dunas altas como montanhas e o vasto céu protetor. Aquele vazio era insuportável. Natalie, apesar de estar junto de Olivia e de Mikhail, sentia-se dolorosamente só. Pôs-se a olhar para as fotografias do seu telemóvel, mas eram lembranças da Madame Sophie, não suas. Mal se conseguia lembrar da quinta de Nahalal. O Centro Médico Hadassah, o seu antigo trabalho, tinha-se esbatido quase por completo na sua memória.
Por fim, surgiu o acampamento, um conjunto de tendas coloridas dispostas ao abrigo de uma duna. Outro Land Cruiser branco tinha chegado antes deles. Natalie calculou que fosse a equipa. Deixou que um dos empregados vestidos com um turbante tratasse das suas malas. Mikhail, pelo contrário, adotando o ar arrogante de Dmitri Antonov, levou ele próprio a sua bagagem. Havia três tendas montadas à volta de um pátio central e uma quarta, com casa de banho e chuveiro, erguia-se um pouco mais longe. O pátio estava coberto por tapetes e enfeitado com grandes almofadas, e dois sofás rodeavam uma mesa baixa e comprida. As tendas também estavam atapetadas e mobiladas com autênticas camas e secretárias. Não havia qualquer indício de eletricidade, só velas e uma grande fogueira no pátio que projetava sombras sobre o sopé da duna. Natalie contou seis homens ao todo. Dois carregavam à vista as respetivas armas automáticas. Deduziu que os restantes também estivessem armados.
Com o pôr-do-sol, o ar começou a arrefecer. Na sua tenda, Natalie vestiu uma camisola polar e depois foi tomar banho para o jantar. Olivia juntou-se a ela um instante depois.
— O que é que estamos aqui a fazer? — perguntou baixinho.
— Convidaram-nos para um encantador jantar no deserto — respondeu Natalie.
Os seus olhos encontraram-se com os de Olivia no espelho.
— Por favor, diz-me que nos estão a vigiar.
— Claro que sim. E também nos estão a ouvir.
Saiu sem dizer mais nada e encontrou a mesa posta para um banquete marroquino. Os empregados mantiveram-se afastados, embora aparecessem de vez em quando para lhes encherem os copos com um chá adocicado de hortelã-pimenta. Apesar de tudo, Natalie, Mikhail e Christopher Keller cingiram-se aos seus papéis. Eram Sophie e Dmitri Antonov e o seu amigo e sócio, Nicolas Carnot. Tinham-se instalado em Saint-Tropez naquele verão e, depois de diversas vicissitudes, tinham conhecido Jean-Luc Martel e a sua glamorosa esposa, Olivia Watson. E agora, pensou Natalie, estavam os cinco nos confins da Terra, à espera de que um monstro surgisse da noite.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
Pouco depois das nove, os empregados recolheram as travessas de comida. Natalie mal tinha comido. Sozinha, aproximou-se do acampamento para fumar um dos Gitanes da Madame Sophie. Parou no lugar em que acabava a luz do fogo e começava a escuridão. Estava, pensou, na ponta do mundo. A uns quarenta ou cinquenta metros dali, um dos homens armados montava guarda no deserto. Vestia a túnica branca e o turbante de um berbere do sul. Fingindo que não o via, Natalie atirou a beata para o chão e começou a andar pela areia. O guarda, sobressaltado, atravessou-se à sua frente e indicou-lhe que regressasse ao acampamento.
— Mas quero ver as dunas — disse ela em francês.
— Não é permitido. Pode vê-las de manhã.
— Prefiro vê-las agora — respondeu. — De noite.
— É perigoso.
— Pois acompanhe-me. Assim não será perigoso.
Sem mais, começou a andar de novo pelo deserto, seguida pelo guarda berbere. As suas vestimentas resplandeciam e a sua pele, negra como o breu, não se distinguia da escuridão da noite. Natalie perguntou-lhe o nome. Disse-lhe que se chama Azûlay. Significava «o homem dos olhos bonitos».
— É verdade — comentou ela.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe — disse Natalie.
Continuaram a andar. Lá em cima, a Via Láctea cintilava qual pó de fósforo e a lua crescente brilhava com um resplendor incandescente. Em frente deles erguiam-se três dunas, ascendendo em escala de norte para sul. Natalie tirou os sapatos e, seguida por Azûlay, o Berbere, trepou à mais alta. Demorou vários minutos a chegar ao cume. Exausta, deixou-se cair de joelhos sobre a areia morna e fofa para recuperar o fôlego.
Perscrutou a paisagem com o olhar. Para poente, uma fina fileira de luzes estendia-se intermitentemente desde Erfoud, atravessando os palmeirais do oásis de Tafilalet até Rissani e Khamlia. A leste e a sul só havia deserto, mas a norte, Natalie viu uns faróis que oscilavam ao avançar para ela entre as dunas. Passado um momento, as luzes deixaram de se ver. Talvez, disse a si própria, tenha sido uma miragem, outro sonho. Depois, as luzes voltaram a aparecer.
Natalie deu meia-volta e escorregou pela ladeira da duna, até ao lugar onde tinha deixado os sapatos. Tu és a única que o consegue identificar... Mas Saladino também se lembraria dela. Porque é que não se haveria de lembrar? Afinal de contas, pensou, tinha salvado a vida daquele miserável.
54
LANGLEY, VIRGÍNIA
Os drones avistaram o veículo muito antes de Natalie, às nove e cinco, hora de Marrocos, quando virou na curva sudeste do mar de areia de Erg Chebbi. Um Toyota Land Cruiser branco com sete ocupantes. Parou no limite do acampamento e dele se apearam seis indivíduos entre os quais não se encontrava o condutor. Visto de cima através das câmaras termográficas, dava a impressão de que nenhum daqueles sujeitos coxeava. Cinco deles, visivelmente armados, permaneceram no perímetro do acampamento, enquanto o sexto entrava no pátio central, entre as tendas. Aí cumprimentou Jean-Luc Martel e, uns segundos depois, Mikhail. Como era de esperar, não havia forma de ouvir o que diziam: a falta de cobertura tinha emudecido os telemóveis. Do fundo da sala, Kyle Taylor improvisou uma possível banda sonora para o encontro.
— Mohammad Bakkar, quero apresentar-te um amigo meu, Dmitri Antonov. Dmitri, este é o Mohammad Bakkar.
— Talvez — disse Adrian Carter. — Ou talvez o Saladino tenha ajeitado um pouco a perna, tal como fez com a cara.
— Em Washington não conseguiu esconder que coxeava — assinalou Uzi Navot. — E também não o conseguiu no princípio do ano, quando o Jean-Luc Martel o viu. Para além disso, achas o Mikhail com cara de quem está a falar com o pior terrorista do mundo desde Bin Laden?
— O Mikhail sempre me pareceu um tipo bastante frio — comentou Carter.
— Não é assim tão frio.
Contemplavam a cena através da câmara do Sentinel. Mikhail, esverdeado e envolvido numa refulgente auréola de calor corporal, estava de pé a uns passos da fogueira. Com os braços cruzados, falava com uma calma visível com o recém-chegado. Keller e Olivia já tinham saído do pátio central e tinham entrado numa das tendas. Natalie, depois de regressar do seu passeio pelas dunas, tinha-se juntado a eles. Entretanto, o Predator examinava o deserto que os rodeava. Não havia sinal de outras fontes de calor.
Navot virou-se para Kyle Taylor.
— A NSA identificou outro telemóvel dentro do acampamento?
— Estão a tratar disso.
— É estranho, não achas?
— O quê?
— Não são assim tão difíceis de localizar. Para nós é fácil, mas para vocês é ainda mais fácil.
— A não ser que o telemóvel esteja desligado e lhe tenham extraído o cartão SIM.
— E os telemóveis via satélite?
— Esses são fáceis de localizar.
— E porque é que o Mohammad Bakkar não tem sempre um? É bastante perigoso andar pelo deserto sem telemóvel, não achas?
— O Saladino sabe que um telemóvel equivale a uma sentença de morte.
— É verdade — concordou Navot. — Mas como é que o Bakkar pensa avisá-lo de que pode ir para o acampamento? Através de um pombo-correio? Ou de sinais de fumo?
— Onde é que queres chegar, Uzi?
— O que quero dizer é que o Mohammad Bakkar não anda com um telemóvel via satélite porque não precisa dele para avisar o Saladino.
— Porquê?
— Porque já lá está. — Navot apontou para o ecrã. — Está sentado ao volante do Toyota.
55
SAARA, MARROCOS
A descrição física que Jean-Luc Martel fizera de Mohammad Bakkar demonstrou estar certa, pelo menos num sentido: o marroquino das montanhas do Rife era baixo (media à volta de um metro e sessenta) e de constituição forte. O seu fanatismo religioso não era evidente à primeira vista. Não usava kufi, nem barba desgrenhada, e fumava um cigarro, transgredindo as leis do Estado Islâmico, que tinha proibido o tabaco. Vestia roupa europeia e cara: um casaco de caxemira com o fecho subido, umas calças de sarja engomadas com esmero e uns mocassins de camurça completamente inadequados para o deserto. O seu relógio de pulso, cuja esfera cintilava ao refletir a luz do fogo, era grande, suíço e de ouro. O seu francês era excelente, tal como o seu inglês, idioma do qual se servia para se dirigir a Mikhail.
— Monsieur Antonov, quanto me apraz que, por fim, nos tenhamos conhecido. Tenho ouvido falar muito de si.
— O Jean-Luc?
— O Jean-Luc não é o meu único amigo em França — respondeu o marroquino com um ar cúmplice. — Causou sensação na Provença este verão.
— Não era essa a minha intenção.
— Não? — Bakkar sorriu afavelmente. — As suas festas causavam furor. Os episódios que se contavam chegaram até Marraquexe. Que escândalo!
— Há que viver a vida.
— Claro que sim. Mas tem de haver certos limites, não lhe parece?
— Nunca tinha pensado nisso.
Mohammad Bakkar sorriu.
— Espero que tenham gostado do jantar.
— Foi magnífico.
— Gosta da cozinha marroquina?
— Muito.
— Já tinha visitado Marrocos anteriormente?
— Não, nunca.
— Como é possível? O meu país é muito querido entre os europeus cosmopolitas.
— Entre os russos, não.
— Tem razão. Os russos preferem a Turquia, não sei porquê. Mas, na realidade, o senhor não é russo, pois não, Monsieur Antonov? Já não.
Mikhail sentiu que o seu coração batia com violência nas costelas.
— Continuo a ter passaporte russo — respondeu.
— Mas a sua casa é em França.
— Por agora.
Mohammad Bakkar pareceu considerar a sua resposta mais tempo do que requeria.
— E o acampamento? — perguntou a olhar à sua volta. — É do seu agrado?
— Muito, sim.
— Tentei que fosse o mais tradicional possível. Espero que não o incomode que não tenha eletricidade. Os turistas vêm ao Saara à espera de encontrar todas as comodidades da vida ocidental. Luz elétrica, telemóveis, Internet...
— Aqui não há Internet. — Mikhail levantou o telemóvel. — E isto não serve para nada.
— Sim, eu sei disso. Por isso, escolhi este lugar.
Mikhail levantou-se e fez um movimento para sair.
— Onde é que vai? — perguntou Bakkar.
— O senhor e o Jean-Luc têm de falar de negócios.
— Mas esses negócios dizem-lhe respeito a si. Pelo menos, em parte. — Indicou-lhe os sofás. — Sente-se, por favor, Monsieur Antonov. — Sorriu de novo. — Insisto.
Do posto de comando em Casablanca, Gabriel viu Mikhail sentar-se num dos sofás. Apareceu então um membro do serviço e serviu o chá. No lado direito da imagem, dentro de uma das tendas, apreciavam-se as silhuetas termográficas de três pessoas. Duas delas correspondiam, visivelmente, a mulheres. A outra era a de Christopher Keller. Um momento antes, Gabriel tinha enviado uma mensagem criptográfica para o telemóvel via satélite de Keller, fazendo referência à possível identidade do homem sentado ao volante do Toyota Land Cruiser que acabava de chegar. Keller mexia agora as mãos, manipulando algo que Gabriel não conseguia ver: o frio metal não era visível através das câmaras de infravermelhos.
Keller guardou o objeto nas costas, à altura dos rins, e aproximou-se com prontidão da entrada da tenda, onde permaneceu uns segundos, provavelmente a observar o panorama operacional. Depois pegou no telemóvel via satélite e tocou no ecrã. Segundos depois, chegou uma mensagem ao computador de Gabriel.
QUANDO VOCÊS ESTIVEREM PRONTOS, TAMBÉM ESTOU.
Com a ajuda dos drones, Gabriel estudou por sua vez o local. Quatro homens montavam guarda no deserto, à volta do acampamento: norte, sul, este e oeste, como pontos de uma bússola. Estavam todos armados. Os homens que tinham chegado com Mohammad Bakkar também traziam armas. Havia a possibilidade de o próprio Bakkar estar armado. Mikhail, temendo que as escoltas do marroquino o revistassem, não tinha nenhuma arma. Ou seja, eram dez contra um, no mínimo. Era muito provável que Keller e o resto da equipa não sobrevivessem a um tiroteio a tão curta distância, nem sequer estando presente o agente que tinha conseguido a nota mais alta na história da célebre Killing House do SAS. Para além disso, era possível que Uzi Navot e Langley estivessem enganados em relação à identidade do ocupante do Toyota. Convinha deixar que as coisas seguissem o seu curso. Que Saladino se deixasse ver e que fosse abatido em algum lugar onde não houvesse risco de danos colaterais. Por enquanto, aquele lugar remoto do canto mais escuro do sudeste de Marrocos jogava contra ele. Mas não por muito tempo. Em breve, disse Gabriel a si próprio, o deserto passaria a ser seu aliado.
Mandou Keller continuar à espera e pediu a Langley que focasse as câmaras do drone no Land Cruiser estacionado no limite do acampamento. A imagem apareceu no seu monitor um momento depois, por cortesia do Predator. O homem vestia uma jilaba com capuz e tinha ambas as mãos apoiadas no volante. Não estava a fumar. Gabriel calculou que, em algum momento, se iria reunir com os outros. Para fazê-lo, teria de sair do veículo e percorrer a pé uma curta distância. E então ele, Gabriel, saberia se era mesmo Saladino. Havia muitas formas de alterar a aparência física de um homem, disse a si próprio. O cabelo podia ser cortado ou pintado, e as feições podiam ser transformadas através de uma cirurgia plástica. Mas uma perna manca a coxear como a de Saladino era para sempre.
56
SAARA, MARROCOS
Ao princípio, Mohammad Bakkar falou unicamente em darija, e só com Jean-Luc Martel. Era evidente pela sua atitude e pelo seu tom que estava zangado. Enquanto trabalhava na Sayeret Matkal, Mikhail tinha aprendido um pouco de árabe palestiniano, o suficiente para se safar durante os ataques noturnos a Gaza, à Cisjordânia e ao sul do Líbano. Não falava árabe com fluência, longe disso; nem sequer dava para conversar minimamente. Ainda assim, conseguiu entender em linhas gerais o que dizia o marroquino das montanhas do Rife. Ao que parece, vários carregamentos importantes de um produto misterioso tinham desaparecido recentemente em circunstâncias inexplicáveis. As perdas, que a organização de Bakkar sofrera, eram substanciais: ascendiam, de facto, a centenas de milhões. Em algum lugar, afirmou, houvera uma fuga. E não fora no seu território. Evidentemente, dominava a sua organização com mão de ferro. Portanto, o erro tinha de ser de Martel. Bakkar deu a entender que tinha sido intencional. Afinal de contas, o francês nunca vira com bons olhos a rápida expansão do negócio que partilhavam. Teria de o compensar de alguma forma. Caso contrário, Bakkar procuraria outro distribuidor para a sua mercadoria e deixaria Martel de fora.
Seguiu-se uma violenta discussão. Martel, a falar velozmente em árabe marroquino, insinuou que o culpado das apreensões era o próprio Mohammad Bakkar. Recordou-lhe que, por aquele mesmo motivo, se tinha oposto a que se aumentasse drasticamente a quantidade de mercadoria que entrava na Europa. Segundo os seus cálculos, tinham perdido mais de um quarto da produção devido às apreensões, em vez dos habituais dez por cento, uma taxa sustentável a longo prazo. A única solução era aplicar a prudência. Enviar carregamentos com quantidades inferiores e prescindir de navios mercantes. Foi, pensou Mikhail, uma atuação impressionante por parte de Martel. Um espião veterano não o teria feito melhor. Quando a intervenção do francês findou, Mohammad Bakkar parecia convencido de que tanto ele como a sua organização eram os responsáveis, até certo ponto, pelas fugas. Resolveu ir ao fundo da questão. Entretanto, tinha vinte toneladas de género acumuladas nas fábricas clandestinas do Rife, a aguardarem remessa. Estava ansioso por expedi-las. Evidentemente, precisava de novos fundos.
— Não quero assumir sozinho todo o custo da última catástrofe. Não é justo.
— Estou de acordo — conveio Martel. — O que é que tinhas pensado?
— Um aumento de preço de cinquenta por cento. Só desta vez.
— Cinquenta por cento! — Martel fez um gesto desdenhoso com a mão. — Que loucura.
— É a minha última oferta. Se queres continuar a ser meu distribuidor, aconselho-te a aceitares.
Não era a última oferta de Mohammad Bakkar, longe disso. Martel sabia-o, tal como o sabia o próprio Bakkar. Afinal de contas, estavam em Marrocos. Havia que regatear até para que te passassem o pão ao jantar.
Continuaram a discutir durante uns minutos, durante os quais os cinquenta por cento passaram a ser quarenta e cinco, depois quarenta e, por último e depois de um olhar de exasperação lançado para o céu, trinta. Enquanto isso, Mikhail não parou de vigiar o homem que, por sua vez, o vigiava a ele. O homem sentado ao volante do Toyota, de onde via sem obstáculos o pátio central do acampamento. Vestia uma jilaba com um capuz pontiagudo e a sua cara estava envolvida em sombras profundas. Ainda assim, Mikhail sentia o peso como chumbo do seu olhar. E sentia também a ausência de uma arma à altura dos seus rins.
— Khalas — disse Bakkar, por fim, esfregando as mãos. — Que seja vinte e cinco, a pagar no momento de entrega da mercadoria. É pouquíssimo, mas que remédio tenho eu? Queres que também te dê a minha camisa, Jean-Luc? Posso sempre arranjar outra.
Martel sorria. Mohammad Bakkar selou o acordo com um aperto de mãos e, de seguida, virou-se para Mikhail.
— Desculpe, mas eu e o Jean-Luc tínhamos de debater um assunto muito sério.
— Era o que parecia.
— Não fala árabe, Monsieur Antonov?
— Não.
— Nem um pouco?
— Até pedir um café me custa.
Mohammad Bakkar assentiu, compreensivo.
— Cada país tem a sua forma de pronunciar. Um egípcio vê o mundo de maneira diferente de um marroquino, um jordano ou, por exemplo, um palestiniano.
— Ou um russo — riu Mikhail.
— Que vive em França.
— O meu francês é quase tão mau como o meu árabe.
— Então, falemos inglês.
Fez-se um silêncio.
— O que é que o Jean-Luc lhe contou sobre os nossos negócios? — perguntou Bakkar, por fim.
— Muito pouco.
— Mas deve ter alguma ideia, sem dúvida.
— Laranjas — respondeu Mikhail. — O senhor é o fornecedor das laranjas que abastecem os restaurantes e os hotéis do Jean-Luc.
— Laranjas e romãs — disse Bakkar num tom cordial. — Em Marrocos existem umas romãs ótimas. As melhores do mundo, na minha opinião. Mas as autoridades europeias não querem as nossas laranjas nem as nossas romãs. Ultimamente, temos perdido vários carregamentos. Eu e o Jean-Luc estávamos a discutir o que aconteceu e as medidas a tomar a esse respeito.
Mikhail ouvia-o com um semblante inexpressivo.
— Infelizmente, não perdemos só fruta nessas apreensões. Também perdemos algo insubstituível. — Bakkar olhou-o com um ar calculista. — Ou talvez não.
Pediu mais chá. Mikhail dirigiu um olhar ao ocupante do Toyota, enquanto enchiam os copos.
— A que tipo de negócios é que se dedica exatamente, Monsieur Antonov?
— Perdão?
— Os seus negócios — repetiu Bakkar. — A que é que se dedica exatamente?
— Às laranjas — respondeu Mikhail. — E às romãs.
Bakkar sorriu.
— Eu tinha entendido — disse — que traficava armas.
Mikhail não disse nada.
— É um homem prevenido, Monsieur Antonov. É um traço admirável.
— Para além de ser bom para o negócio. Assim perdem-se menos carregamentos.
— Portanto, é verdade!
— Dedico-me aos investimentos, Monsieur Bakkar. E, às vezes, faço negócios que implicam a transferência de bens da Europa de Leste e das repúblicas da antiga União Soviética para lugares problemáticos em diversas partes do mundo.
— Que tipo de bens?
— Use a sua imaginação.
— Armas?
— Armamento — respondeu Mikhail. — As armas representam uma parte mínima do negócio.
— De que tipo de mercadoria estamos a falar?
— De tudo, desde Kalashnikovs a helicópteros ou a aviões de combate.
— Aviões? — perguntou Bakkar, incrédulo.
— Gostava de ter um? Ou talvez prefira um tanque ou um Scud. Este mês temos uma oferta especial. Eu, se fosse a si, faria o pedido hoje mesmo. Não vão durar muito.
— Não seriam para mim — afirmou Bakkar levantando as mãos. — Mas um dos meus sócios poderia estar interessado.
— Nos Scuds?
— As necessidades dele são muito específicas. Mas prefiro que ele próprio lhe explique isso.
— Para já não — disse Mikhail. — Primeiro, conte-me um pouco mais sobre esse seu sócio. Depois decidirei se me quero reunir com ele.
— É um revolucionário — afirmou Bakkar. — Com uma causa justa, garanto-lhe.
— Como de costume — replicou Mikhail com ceticismo. — De onde é que é?
— Não tem país, no sentido ocidental da palavra. As fronteiras não significam nada para ele.
— Que interessante. Mas onde é que teria de lhe levar as armas?
Bakkar ficou sério, de repente.
— Sem dúvida que tem consciência de que o caos político que aflige há um tempo a nossa região tem apagado muitas das antigas fronteiras traçadas pelos diplomatas em Paris e Londres. O meu sócio procede de um desses lugares. Um lugar muito conflituoso.
— Os conflitos são o que me mantém à tona.
— Era o que me parecia — afirmou Bakkar.
— Como é que se chama o seu sócio?
— Pode chamar-lhe Khalil.
— E antes do caos? — perguntou Mikhail de imediato, como se esse nome não lhe dissesse nada. — De onde era?
— Em criança vivia à beira de um dos rios que emanavam do Jardim do Éden.
— Eram quatro — afirmou Mikhail.
— Efetivamente. O Pison, o Ghion, o Eufrates e o Tigre. O meu sócio vivia à beira do Tigre.
— De maneira que é iraquiano.
— Foi-o em tempos. Já não. Agora é súbdito do califado islâmico.
— Imagino que não se encontra no califado neste momento.
— Não. Está ali. — Bakkar inclinou a cabeça para o Toyota. Depois olhou para Mikhail e perguntou: — Está armado, Monsieur Antonov?
— Claro que não.
— Importa-se que um dos meus homens o reviste? — Bakkar sorriu cordialmente. — Afinal de contas, é um traficante de armas.
Reuniram-se junto à porta do condutor do Toyota: cinco homens ao todo — contou Gabriel —, todos eles armados. Por fim, a porta abriu-se e o ocupante do carro saiu com uma certa dificuldade. Permaneceu mais um pouco perto do veículo, rodeado de guardas, enquanto Mikhail era revistado minuciosamente. Só quando o acabaram de revistar, avançou para o centro do acampamento. Os guardas armados formavam um círculo apertado à sua volta. Ainda assim, Gabriel conseguiu ver que carregava o peso do corpo na perna direita. O primeiro passo do processo de identificação tinha-se verificado com sucesso. O segundo, pelo contrário, não se podia fazer tão de cima, servindo-se do drone americano. Só serviria um encontro cara a cara.
Gabriel enviou uma mensagem a Christopher Keller informando-o de que o sujeito acabava de entrar no acampamento e coxeava visivelmente ao caminhar. Viu então que estendia a mão ao agente dos serviços secretos israelitas.
— Dmitri Antonov — disse Gabriel baixinho —, permita-me apresentar-lhe o meu amigo Saladino. Saladino, este é o Dmitri Antonov.
Havia, naquele remoto acampamento do deserto, dois agentes israelitas que podiam efetuar a verificação necessária para lançar uma operação de assassinato seletivo em território de um aliado intermitente na guerra contra o terror. O primeiro estava sentado à frente do sujeito em questão, desarmado e sem dispositivo algum de comunicação. O segundo estava a escassos metros dali, numa tenda confortavelmente mobilada. O agente do exterior, sozinho, só vira o alvo pessoalmente de forma fugaz num afamado restaurante de Georgetown. A agente refugiada na tenda tinha passado, pelo contrário, vários dias com o sujeito numa casa com muitos quartos e pátios perto de Mossul, e tinha falado com ele durante muito tempo. E numa cabana no sopé das montanhas Shenandoah, na Virgínia, tinha-o ouvido pronunciar a sua sentença de morte. Nunca esqueceria aquele som. Nem sequer precisou de lhe ver a cara para saber que era ele: disse-lho a sua voz.
Havia um terceiro agente que também tinha visto o sujeito pessoalmente: era aquele que esperava ansiosamente numa casa assombrada num antigo bairro colonial em Casablanca. Quando a confirmação de que, efetivamente, era ele chegou ao seu computador, Gabriel remeteu-a de imediato para o Buraco Negro de Langley.
— Apanhámo-lo! — gritou Kyle Taylor.
— Ainda não — advertiu-o Uzi Navot com o olhar fixo no ecrã. — Nada disso. Nem pouco mais ou menos.