Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
CASA NOBRE
Volume I
Primeira Parte
Naturalmente isto é um romance. É povoado de pessoas e companhias imaginárias, e não se pretende fazer nenhuma referência a qualquer pessoa ou companhia que tenha sido, ou seja, parte de Hong Kong ou da Ásia.
Gostaria também de pedir desculpas de pronto a todos os yan de Hong Kong — todas as pessoas de Hong Kong — por modificar sua bela cidade, por isolar incidentes do contexto, por inventar pessoas e lugares, ruas, companhias e incidentes que, confiamos, podem parecer ter existido, mas nunca existiram, pois esta é, verdadeiramente, uma história...
Gostaria de oferecer esta obra como tributo a Sua Majestade britânica, Elizabeth II, ao povo da colônia de sua coroa de Hong Kong — e perdição a seus inimigos.
8 de junho de 1960
23h45m
O nome dele era Ian Dunross, e, guiando o seu velho MG esporte sob a chuva torrencial, dobrou com cuidado a esquina, entrando na Dirk's Street, que marginava o Edifício Struan, na orla marítima de Hong Kong. A noite era escura e lúgubre. Por toda a colônia — aqui na ilha de Hong Kong, do outro lado do porto, em Kowloon, e nos Novos Territórios que faziam parte do continente chinês — as ruas estavam quase totalmente desertas, tudo e todos enclausurados e protegidos, à espera do tufão Mary. O sinal de alerta de tempestade número 9 fora içado ao alvorecer, e rajadas de vento de cento e cinqüenta a cento e oitenta e cinco quilômetros por hora já saíam de dentro da tormenta, que se estendia a mil e seiscentos quilômetros para o sul, lançando a chuva horizontalmente contra os telhados e os morros, onde dezenas de milhares de favelados se encolhiam, indefesos, nos seus barracos improvisados.
Dunross diminuiu a velocidade, sem enxergar direito, pois os limpadores de pára-brisa não davam conta da quantidade de chuva, com o vento sacudindo a capota e as laterais de lona. E então o pára-brisa desanuviou-se momentaneamente. No final da Dirk's Street, bem em frente, ficava a Connaught Road e a praia, depois os molhes e a imensidão atarracada do Terminal da Balsa Dourada. Mais além, no porto vasto e bem-protegido, meio milhar de navios estavam firmemente amarrados.
Mais adiante, na praia, viu uma barraca comercial abandonada ser violentamente arrancada do chão por uma rajada, e arremessada contra um carro estacionado, destruindo-o. Depois, carro e barraca saíram rolando e sumiram. Seus pulsos eram muito fortes, e ele controlou o volante, lutando contra os redemoinhos que faziam o carro tremer violentamente. O veículo era antigo, mas bem-conservado, o motor estava "envenenado" e os freios, em perfeito estado. Esperou, o coração batendo gostosamente, curtindo a tempestade, depois subiu na calçada e estacionou o carro bem encostadinho ao prédio, e saltou.
Era um homem louro, de olhos azuis, de quarenta e poucos anos, esbelto e elegante, e usava uma capa impermeável e um boné velho. A chuva ensopou-o enquanto atravessava rapidamente a rua lateral e depois dobrava a esquina, dirigindo-se às pressas para a entrada principal do prédio de vinte e dois andares. Acima da imensa porta de entrada via-se o timbre Struan — o Leão Vermelho da Escócia entrelaçado com o Dragão Verde da China. Aprumando-se, subiu os largos degraus e entrou.
— Boa noite, Sr. Dunross — disse o zelador chinês.
— O tai-pan mandou me chamar?
— Sim, senhor.
O homem apertou o botão do elevador para ele. Quando o elevador parou, Dunross cruzou o pequeno corredor, bateu à porta e entrou na sala de estar da cobertura.
— Boa noite, tai-pan — disse, com fria formalidade. Alastair Struan apoiava-se contra a bela lareira. Era um escocês grandalhão, rosado, bem-conservado, com uma ligeira barriga e cabelos brancos, na casa dos sessenta, e há onze anos era quem mandava na Struan.
— Uma bebida?
Fez um gesto na direção do Dom Pérignon no balde de prata.
— Obrigado.
Dunross nunca estivera antes nos aposentos particulares do tai-pan. A sala era espaçosa e bem-mobiliada, com móveis laqueados chineses e belos tapetes, quadros antigos dos seus primeiros veleiros e vapores ornando as paredes. As imensas janelas que normalmente ofereciam uma vista de toda a Hong Kong, no porto, e de Kowloon, do outro lado do porto, agora estavam escuras e manchadas de chuva.
Dunross serviu-se.
— Saúde — falou, formalmente.
Alastair Struan meneou a cabeça e, com a mesma frieza, ergueu também o copo.
— Chegou cedo.
— Cinco minutos mais cedo é chegar na hora, tai-pan. Não foi isso o que o pai tanto me ensinou? Não é importante que nos encontremos à meia-noite?
— É. Faz parte do nosso costume. O costume de Dirk. — Dunross bebericava o seu champanha, esperando em silêncio. O relógio de navio antigo tiquetaqueava ruidosamente.
Sua excitação aumentava, pois não sabia o que esperar. Encimando a lareira havia o quadro de uma jovem noiva. Era Tess Struan, que se casara com Culum, segundo tai-pan e filho do fundador da Struan, Dirk Struan, quando ela estava com dezesseis anos.
Dunross fitava a tela. Uma rajada de vento e chuva fustigou os janelões.
— Que noite horrorosa — comentou.
O homem mais velho simplesmente olhou para ele, odiando-o. O silêncio aumentava. Então, o velho relógio soou as oito badaladas que marcavam a meia-noite.
Bateram à porta.
— Entre — falou Alastair Struan, aliviado, satisfeito porque agora podiam começar.
A porta foi aberta por Lim Chu, o servo pessoal do tai-pan. Afastou-se para o lado para deixar passar Phillip Chen, o representante nativo da Struan, depois fechou a porta atrás dele.
— Ah, Phillip, bem na hora, como sempre — falou Alastair Struan, tentando parecer jovial. — Champanha?
— Obrigado, tai-pan, aceito, obrigado. Boa noite, Ian Struan Dunross. — Phillip Chen cumprimentou o homem mais moço com formalidade incomum, no seu inglês típico da classe alta. Era eurasiano, tinha sessenta e muitos anos, magro, mais para chinês do que para europeu, um homem muito bonito, de cabelos grisalhos e maçãs do rosto altas, pele clara e olhos chineses muito escuros.
— Noite horrível, não?
— É mesmo, Tio Chen — replicou Dunross, usando a forma polida chinesa para dirigir-se a Phillip, de quem gostava e a quem respeitava tanto quanto desprezava o primo, Alastair.
— Dizem que este tufão vai ser um filho da mãe. — Alastair Struan servia o champanha em taças finas. Entregou uma taça primeiro a Phillip Chen, depois a Dunross. — Saúde!
Todos beberam. Uma rajada de chuva sacudiu as janelas.
— Que bom que não estou no mar hoje — comentou Alastair Struan, pensativo. — Com que então, Phillip, cá está você de novo.
— Sim, tai-pan. Sinto-me honrado. Sim, muito honrado.
Pressentiu a violência entre os dois homens, mas ignorou-a. "A violência é de praxe", pensou, "sempre que um tai-pan da Casa Nobre entrega o poder."
Alastair Struan tomou outro gole, saboreando o champanha. Finalmente, falou:
— Ian, é costume nosso que haja uma testemunha na troca do tai-pan. Ela é sempre, e unicamente, o representante nativo atual da firma. Phillip, com esta são quantas vezes?
— Fui testemunha quatro vezes, tai-pan.
— Phillip conheceu quase todos nós. Sabe demasiados segredos nossos. Hem, amigo velho? — Phillip Chen apenas sorriu. — Confie nele, Ian. Seus conselhos são sábios. Pode confiar nele.
"Até onde um tai-pan pode confiar em alguém?", pensou Dunross, sombriamente.
— Sim, senhor.
Alastair Struan deixou de lado a taça.
— Primeiro: Ian Struan Dunross, pergunto-lhe formalmente se quer ser tai-pan da Struan.
— Sim, senhor.
— Jura por Deus que todas estas atas serão mantidas em segredo por você, e divulgadas exclusivamente ao seu sucessor?
— Sim, senhor.
— Jure formalmente.
— Juro por Deus que estas atas serão secretas e nunca divulgadas a ninguém, exceto ao meu sucessor.
— Tome. — O tai-pan entregou-lhe um pergaminho, amarelecido pelo tempo. — Leia em voz alta.
Dunross segurou o papel. A letra era irregular, mas perfeitamente legível. Olhou para a data — 30 de agosto de 1841 — e ficou ainda mais excitado.
— Esta é a letra de Dirk Struan?
— É. Quase tudo foi escrito por ele, mas o filho, Culum Struan, acrescentou uma parte. Claro que temos fotocópias, para o caso de se danificar. Leia!
— "Meu legado comprometerá todo tai-pan que me suceder, e ele o lerá em voz alta e jurará por Deus, diante de testemunhas, da maneira estabelecida por mim, Dirk Struan, fundador da Struan e Companhia, aceitá-lo e mantê-lo para sempre em segredo, antes de assumir ele próprio o meu cargo. Faço esta exigência para assegurar continuidade e prevendo as dificuldades que, nos anos seguintes, envolverão meus sucessores, por causa do sangue que derramei devido às minhas dívidas de honra, e por causa das excentricidades dos caminhos da China, à qual estamos unidos, e que são, sem dúvida, únicos na terra. Este é o meu legado:
" 'Primeiro: Haverá apenas um tai-pan de cada vez, e ele terá autoridade total, absoluta sobre a companhia, poder para empregar ou despedir todos os outros, autoridade sobre todos os nossos comandantes e nossos navios e companhias, estejam onde estiverem. O tai-pan está sempre só, e esta é a alegria e a mágoa da posição. Sua privacidade deve ser preservada por todos, e suas costas protegidas por todos. O que ordenar deverá ser obedecido, e nenhum comitê, grupo ou círculo interno que possa diminuir esse poder absoluto jamais será formado ou permitido na companhia.
" 'Segundo: Quando o tai-pan estiver no tombadilho de qualquer dos nossos navios, terá precedência sobre o comandante do mesmo, e suas ordens de batalha ou de navegação serão lei. Todos os comandantes lhe jurarão obediência, diante de Deus, antes de serem admitidos aos nossos navios.
" 'Terceiro: O tai-pan escolherá sozinho o seu sucessor, que será selecionado entre os seis homens componentes de uma assembléia interna. Desses homens, um será o representante nativo da firma, que pertencerá, perpetuamente, à Casa de Chen. Os outros cinco serão homens dignos de ser o tai-pan, bons e fiéis, com um mínimo de cinco anos de serviços prestados à companhia como mercadores da China, e sadios de espírito. Deverão ser cristãos e pertencer ao clã Struan por nascimento ou casamento — a minha linhagem e a linhagem do meu irmão Robb não terão precedência, salvo por firmeza e pelas qualidades acima, além de todas as outras. Essa assembléia interna poderá servir de assessoria ao tai-pan, se ele assim o desejar, mas que fique bem claro novamente: o voto do tai-pan terá o peso de sete contra um, para cada membro.
" 'Quarto: Se o tai-pan perder-se no mar, morrer em batalha, ou ficar desaparecido durante seis meses lunares, antes de ter escolhido o seu sucessor, então a assembléia interna elegerá um dos seus membros para sucedê-lo, cada membro tendo direito a um voto, com exceção do voto do representante nativo, que valerá por quatro. O tai-pan então prestará o mesmo juramento que os antecessores, diante da assembléia — aqueles que tiverem votado contra a sua eleição em cédula aberta serão expulsos imediatamente, e para sempre, da companhia, sem remuneração.
" 'Quinto: A eleição para a assembléia interna, ou a demissão da referida assembléia, realizar-se-á exclusivamente ao bel-prazer do tai-pan, que, na época da sua aposentadoria, que ocorrerá quando bem lhe aprouver, não levará mais do que dez partes de cada cem de todos os valores para si mesmo, exceto que todos os nossos navios serão sempre excluídos de qualquer inventário... nossos navios, seus comandantes e tripulações são o nosso sangue vital e a nossa garantia para o futuro.
" 'Sexto: Cada tai-pan deverá aprovar a eleição do representante nativo da companhia. Este deverá declarar, por escrito, antes da sua eleição, que sabe que poderá ser demitido do cargo a qualquer momento, sem necessidade de explicações, e que se afastará se este for o desejo do tai-pan.
" 'Último: O tai-pan dará posse ao seu sucessor, que terá escolhido sozinho, na presença do representante nativo, usando as palavras escritas por minha mão na Bíblia da família, aqui em Hong Kong, neste trigésimo dia de agosto, do ano de Nosso Senhor de 1841.'"
Dunross soltou a respiração.
— Está assinado por Dirk Struan e testemunhado por... não consigo ler os caracteres chineses, senhor, são arcaicos.
Alastair lançou um olhar a Phillip Chen, que disse:
— A primeira testemunha é o pai adotivo de meu avô, Chen Sheng Arn, nosso primeiro representante nativo. A segunda é minha tia-avó, T'Chung Jin May-may.
— Então a lenda é verdadeira! — exclamou Dunross.
— Parte dela. É, parte dela. — Phillip Chen acrescentou: — Converse com minha tia Sarah. Agora que vai ser o tai-pan, ela lhe contará muitos segredos. Ela vai fazer oitenta e quatro anos este ano, e se lembra do meu avô, Sir Gordon Chen, muito bem, e de Duncan e Kate T'Chung, os filhos de May-may com Dirk Struan. É, lembra-se de muitas coisas...
Alastair Struan foi até a escrivaninha laqueada e tirou de lá, com muito cuidado, a pesada Bíblia puída. Colocou os óculos, e Dunross sentiu os pêlos da nuca ficarem em pé.
— Repita comigo: "Eu, Ian Struan Dunross, da família dos Struans, cristão, juro diante de Deus, na presença de Alastair McKenzie Duncan Struan, décimo primeiro tai-pan, e Phillip T'Chung Sheng Chen, quarto representante nativo da companhia, que obedecerei a todo o legado lido por mim na presença deles, aqui em Hong Kong, que ligarei ainda mais a companhia a Hong Kong e ao comércio chinês, que manterei a sede do meu negócio aqui em Hong Kong, enquanto for tai-pan, e que, diante de Deus, assumo as promessas, responsabilidades e a palavra de honra de cavalheiro de Dirk Struan ao seu eterno amigo Chen-tse Jin Arn, também conhecido como Jin-qua, ou aos seus sucessores; mais ainda, que..."
— Que promessas?
— Você tem que jurar por Deus, cegamente, como todos os tai-pans fizeram antes de você! Não vai demorar a saber o que herdou.
— E se não jurar?
— Sabe qual a resposta a isto!
A chuva fustigava as janelas, e sua violência parecia a Dunross igualar o bater forte do seu coração, enquanto sopesava a insanidade de assumir o compromisso de uma incógnita.
Mas sabia que não poderia ser tai-pan se não o fizesse, e assim disse as palavras e assumiu o compromisso perante Deus, e continuou a repetir as palavras lidas para ele.
— "... mais ainda, que usarei todos os poderes, e quaisquer meios, para manter a companhia firme como a Primeira Casa, a Casa Nobre da Ásia, que juro por Deus cometer qualquer feito necessário para subjugar, destruir e expulsar a companhia chamada Brock e Filhos, especialmente o meu inimigo, seu fundador, Tyler Brock, seu filho Morgan, seus herdeiros ou qualquer um da sua linhagem, excetuando apenas Tess Brock e sua filha, mulher de meu filho Culum, da face da Ásia..."
Dunross parou de novo.
— Depois de terminar, pode perguntar o que quiser — falou Alastair Struan. — Termine!
— Pois bem. "Por último: Juro perante Deus que meu sucessor como tai-pan também jurará obediência perante Deus a todo este legado, que Deus me ajude!"
Agora o silêncio era rompido apenas pela chuva fustigando as janelas. Dunross podia sentir o suor molhando-lhe as costas.
Alastair Struan largou a Bíblia e tirou os óculos.
— Pronto, acabou. — Tensamente, estendeu a mão. — Gostaria de ser o primeiro a cumprimentá-lo, tai-pan. Pode contar comigo para ajudá-lo no que precisar.
— Sinto-me honrado em ser o segundo, tai-pan — disse Phillip Chen com uma leve curvatura, também formalmente.
— Obrigado.
A tensão de Dunross era grande.
— Acho que todos precisamos de uma bebida — falou Alastair Struan. — Com sua permissão, servirei — acrescentou para Dunross, com formalismo incomum. — Phillip?
— Sim, tai-pan. Eu...
— Não. Ian é o tai-pan, agora.
Alastair Struan serviu o champanha e entregou a primeira taça a Dunross.
— Obrigado — disse Dunross, saboreando o gesto de cortesia, sabendo que nada mudara. — À Casa Nobre — falou, erguendo a taça.
Os três homens beberam, depois Alastair Struan pegou um envelope.
— Aqui está o meu pedido de demissão das sessenta e tantas presidências, gerências e diretorias que automaticamente fazem parte do cargo de tai-pan. Sua nomeação, em meu lugar, é igualmente automática. Conforme o hábito, passo a ser o presidente da nossa subsidiária de Londres... mas você pode cancelar a nomeação na hora em que quiser.
— Está cancelada — disse Dunross, imediatamente.
— Como queira — murmurou o velho, mas seu pescoço estava roxo.
— Acho que seria mais útil à Struan como vice-presidente da junta diretora do First Central Bank de Edimburgo.
Struan ergueu os olhos, vivamente.
— Como?
— É um dos nossos cargos, não é?
— É, sim — concordou Alastair Struan. — Mas por que isso?
— Vou precisar de ajuda. A Struan vai começar a vender ações ao público no ano que vem.
Os dois homens o fitaram, atônitos.
— O que?
— Vamos vender ações ao pú...
— Há cento e dezenove anos somos uma firma particular! — rugiu o velho. — Puta que o pariu, já lhe disse cem vezes que esta é a nossa força, sem nenhum acionista ou estranho amaldiçoado metendo o bedelho nos nossos assuntos privados! — O rosto dele estava afogueado, e lutava para controlar a raiva. — Você nunca presta atenção?
— Sempre. E cuidadosamente — disse Dunross, numa voz sem emoção. — O único meio de sobrevivermos é nos transformarmos em empresa de capital aberto... somente assim obteremos o capital de que precisamos.
— Fale com ele, Phillip... veja se lhe enfia algum juízo nessa cabeça!
Nervosamente, o representante nativo perguntou:
— Como isso afetará a Casa de Chen?
— O nosso sistema formal de representação nativa está terminado neste momento. — Viu o rosto de Phillip Chen perder a cor, mas continuou: — Tenho um plano para você... por escrito. Não muda nada... e muda tudo. Oficialmente, você ainda será o representante nativo da companhia; extra-oficialmente, operaremos de modo diferente. A principal mudança é que, ao invés de ganhar cerca de um milhão por ano, em dez anos sua participação lhe dará vinte milhões, e em quinze anos, cerca de trinta.
— Impossível! — exclamou Alastair Struan.
— O nosso patrimônio líqüido hoje é de cerca de vinte milhões de dólares americanos. Daqui a dez anos será de duzentos milhões, e daqui a quinze, com sorte, será de quatrocentos milhões, e nosso giro anual ficará perto de um bilhão.
— Você enlouqueceu — disse Struan.
— Não. A Casa Nobre vai se transformar numa companhia internacional, e os dias de companhia comercial de Hong Kong acabaram para sempre.
— Lembre-se do seu juramento, por Deus! Nossa sede fica em Hong Kong!
— Não me esquecerei. A seguir: qual a responsabilidade que herdei de Dirk Struan?
— Está tudo no cofre. Escrito num envelope lacrado onde se lê "O legado". Há também as "Instruções aos futuros tai-pans", da Bruxa.
— Onde fica o cofre?
— Atrás do quadro na Casa Grande. No escritório. — Alastair Struan apontou, com azedume, para um envelope ao lado do relógio sobre a lareira. — Ali está a chave especial, e a combinação atual do cofre. Naturalmente, você a mudará. Ponha os números numa das caixas de depósito particulares do tai-pan no banco, para o caso de um acidente. Dê a Phillip uma das duas chaves.
Phillip Chen falou:
— De acordo com nossos regulamentos, enquanto você for vivo o banco não pode me dar permissão para abri-la.
— A seguir: Tyler Brock e os filhos, aqueles sacanas, foram eliminados há quase cem anos.
— É, a linhagem masculina legítima foi eliminada. Mas Dirk Struan era vingativo, e sua vingança se estende além da sepultura. Há uma lista atualizada dos descendentes de Tyler Brock no cofre. É bem interessante lê-la, não é, Phillip?
— É, sim.
— Os Rothwells e os Tomms, Yadegar e sua prole, você conhecia. Mas Tusker está na lista, embora não o saiba, e Jason Plumm, e lorde Depford-Smyth, e, principalmente, Quillan Gornt.
— Impossível!
— Gornt não apenas é tai-pan da Rothwell-Gornt, nossa principal inimiga, como também é um descendente direto e secreto de Morgan Brock, direto, embora ilegítimo. É o último dos Brocks.
— Mas ele sempre alegou ser bisneto de Edward Gornt, o mercador da China americano.
— Ele descende mesmo de Edward Gornt. Mas Sir Morgan Brock era na verdade o pai de Edward, e Kristin Gornt, sua mãe. Ela era uma americana da Virgínia. Naturalmente, tudo ficou em segredo... a sociedade não perdoava mais facilmente então do que agora. Quando Sir Morgan se tornou o tai-pan da Brock, em 1859, mandou buscar esse filho ilegítimo da Virgínia, comprou-lhe uma sociedade na velha firma mercantil americana Rothwell e Companhia, em Xangai, e depois ele e Edward dedicaram-se a nos destruir. Quase o fizeram... sem dúvida causaram a morte de Culum Struan. Mas depois, Lochlin e a Bruxa Struan arrasaram Sir Morgan e destroçaram a Brock e Filhos. Edward Gornt nunca nos perdoou, e seus descendentes também jamais o farão. Aposto que têm, igualmente, um pacto com o seu fundador.
— Ele sabe que sabemos?
— Não sei. Mas é inimigo. A árvore genealógica dele está no cofre, junto com todas as outras. Foi meu avô quem a descobriu, por acaso, durante a Guerra dos Boxers, os fanáticos chineses, em 99. A lista é muito interessante, Ian. Uma pessoa em especial, para você, chefe da...
Uma súbita rajada violenta sacudiu o prédio. Um dos enfeites de marfim caiu de cima da mesa de mármore. Nervosamente, Phillip Chen botou-o em pé. Todos fitaram os janelões, vendo os seus reflexos se retorcerem de modo nauseante enquanto as rajadas distendíam as enormes vidraças.
— Tai-fun! — resmungou Phillip, com o suor aflorando à pele.
— É.
Esperaram com a respiração presa que o "Vento do Demônio" cessasse. Essas rajadas súbitas de vento e chuva apareciam de todos os pontos da bússola, a esmo, às vezes a uma velocidade de duzentos e oitenta quilômetros por hora. No seu rastro vinha sempre a devastação.
A violência passou. Dunross foi até o barômetro, examinou-o e deu-lhe uma leve batida: 980,3.
— Ainda está caindo — falou.
— Meu Deus!
Dunross apertou os olhos, fitando as janelas. Agora, as marcas de chuva eram quase horizontais.
— O Lasting Cloud devia aportar amanhã à noite.
— É, mas agora ficará rondando algum lugar perto das Filipinas. O comandante Moffatt é matreiro demais para ser apanhado — comentou Struan.
— Não concordo. Moffatt gosta de cumprir os horários. Este tufão não estava programado. Você... ele devia ter recebido ordens. — Dunross bebericou o seu champanha, pensativo. — É melhor que o Lasting Cloud não seja apanhado.
Phillip Chen percebeu a fúria latente.
— Por quê?
— Estamos com o nosso novo computador a bordo, e mais dois milhões de libras em motores a jato. Não segurados... pelo menos os motores não estão.
Dunross lançou um olhar para Alastair Struan.
Defensivamente, o homem mais velho falou:
— Foi inevitável para não perder o contrato. Os motores são destinados a Cantão. Sabe que não podemos segurá-los, Phillip, já que vão para a China Vermelha. — E acrescentou, irritado: — Eles têm... bem... donos sul-americanos, e não há restrições de exportação da América do Sul para a China. Mesmo assim, ninguém está disposto a segurá-los.
Depois de uma pausa, Phillip Chen falou:
— Pensei que o novo computador ia chegar em março.
— E ia, mas consegui antecipar a chegada — disse Alastair.
— Quem está transportando o título dos motores? — perguntou Phillip Chen.
— Nós.
— É um risco muito grande. — Phillip Chen estava muito inquieto. — Não acha, Ian?
Dunross ficou calado.
— Foi inevitável para não perder o contrato — repetiu Alastair Struan, ainda mais irritado. — Podemos dobrar nosso capital, Phillip. Precisamos do dinheiro. Porém, os chineses precisam ainda mais dos motores, deixaram isso mais do que claro quando estive em Cantão, no mês passado. E nós precisamos da China... também deixaram isso bem claro.
— É, mas doze milhões é... risco demais num só navio — insistiu Phillip Chen.
Dunross disse:
— Qualquer coisa que pudermos fazer para tirar negócios dos soviéticos conta ponto para nós. Além disso, já está feito. Você dizia, Alastair, que há alguém na lista que me interessa. O chefe da...
— Marlborough Motors.
— Ah! — exclamou Dunross com repentina e feroz alegria. — Há anos que detesto aqueles cretinos. Pai e filho.
— Eu sei.
— Com que então os Nikklins são descendentes de Tyler Brock! Bem, não vai demorar muito para os tirarmos da lista. Bom, muito bom. Eles sabem que estão na lista negra de Dirk Struan?
— Acho que não.
— Melhor ainda.
— Não concordo! Você odeia o jovem Nikklin porque ele o derrotou. — Raivosamente, Alastair avançou o dedo em riste para Dunross. — Está na hora de abandonar as corridas de automóvel. Deixe todas as subidas de morro e o Grand Prix de Macau para os semiprofissionais. Os Nikklins têm mais tempo para gastar com os carros, é a vida deles, e agora você tem outras corridas para disputar, mais importantes.
— A corrida de Macau é para amadores, e aqueles filhos da mãe trapacearam, no ano passado.
— Isso nunca foi provado... o seu motor explodiu. Muitos motores explodem, Ian. Foi azar seu!
— Mexeram no meu carro.
— Isso também nunca foi provado. Pelo amor de Deus, e você vem falar em rixas? Você é tão burro em algumas coisas quanto o Demônio Struan em pessoa!
— É?
— É, sim, e...
Phillip Chen interrompeu depressa, querendo acabar com a violência na sala.
— Se é tão importante, por favor, deixem-me tentar descobrir a verdade. Tenho fontes que nenhum de vocês dois tem. Meus amigos chineses saberão, deverão saber, se Tom ou o jovem Donald Nikklin estavam envolvidos. Naturalmente — acrescentou, delicadamente —, se o tai-pan quiser correr, isso é com ele. Não é mesmo, Alastair?
O homem mais idoso controlou sua raiva, embora seu pescoço ainda estivesse rubro.
— Claro, claro, tem razão. Apesar disso, Ian, aconselho-o a parar. Eles o perseguirão ainda mais, porque o detestam igualmente.
— Há outros na lista cujos nomes devo saber? Depois de uma pausa, Struan disse:
— Não, agora não. — Abriu a segunda garrafa e foi servindo enquanto falava. — Bem, agora é tudo seu... todo o divertimento e toda a canseira. Fico contente em entregar tudo a você. Depois que tiver lido o que há no cofre, saberá o melhor, e o pior. — Entregou uma taça a cada um deles, e tomou um gole da sua. — Por Deus, este champanha é dos melhores já produzidos na França.
— É — concordou Phillip Chen.
Dunross achava que o Dom Pérignon era caro demais e muito badalado, e sabia que o ano, 1954, não era especialmente bom. Mas ficou calado.
Struan foi até o barômetro. Marcava 979,2.
— Este tufão vai ser brabo. Bem, deixe para lá. Ian, Claudia Chen tem um arquivo para você sobre assuntos importantes, e uma lista completa dos nossos investimentos em ações... com os nomes dos representantes. Se tiver perguntas a me fazer, faça-as antes de depois de amanhã... tenho passagem marcada para Londres nesse dia. Você manterá Claudia, naturalmente.
— Naturalmente.
Depois de Phillip Chen, Claudia Chen era o segundo elo que passava de tai-pan para tai-pan. Era a secretária-executiva do tai-pan, uma prima distante de Phillip Chen.
— E quanto ao nosso banco, o Victoria Bank de Hong Kong e da China? — perguntou Dunross, curtindo a pergunta. __Não sei exatamente quais os nossos bens.
— Isso sempre foi do conhecimento exclusivo do tai-pan. Dunross virou-se para Phillip Chen:
— Qual a sua participação, abertamente ou através de representantes?
O eurasiano hesitou, chocado.
— No futuro vou unir suas ações num só bloco com as nossas, para efeito de votação. — Dunross manteve os olhos fitos nos do representante nativo. — Quero saber agora, e espero uma transferência formal de poder de voto perpétuo, por escrito, para mim e os futuros tai-pans, amanhã até o meio-dia, e a primeira opção de compra para as ações, caso algum dia resolva vendê-las.
O silêncio ficou mais pesado.
— Ian — começou Phillip Chen —, essas ações... — Mas sua firmeza vacilou diante da vontade possante de Dunross. — Seis por cento... um pouquinho mais de seis por cento. Eu... farei como você quer.
— Não se arrependerá. — Dunross fixou a atenção em Alastair Struan, e o coração do velho baqueou. — Quantas ações temos? Quantas em nome de representantes?
Alastair hesitou.
— Isto só o tai-pan pode saber.
— Naturalmente. Mas devemos confiar integralmente no nosso representante nativo — falou Dunross, prestigiando o velho eurasiano, sabendo o quanto doía ser dominado perante Alastair Struan. — Quantas?
Struan disse:
— Quinze por cento.
Dunross soltou uma exclamação abafada, assim como Phillip Chen, e teve vontade de gritar: "Puta que o pariu, temos quinze por cento, e Phillip tem mais seis por cento, e você não teve um pingo de inteligência para usar o que tem que ser uma participação majoritária para nos conseguir o capital necessário, quando estamos quase falidos?"
Mas, ao invés de gritar, estendeu a mão para a frente e serviu o resto da garrafa nas três taças. Isso lhe deu tempo para acalmar o coração descompassado.
— Ótimo — disse, com voz seca e inexpressiva. — Estava esperando que juntos nos saíssemos melhor do que nunca. — Tomou um gole do champanha. — Vou antecipar a reunião especial. Para a semana que vem.
Os dois homens ergueram os olhos, vivamente. Desde 1880, os tai-pans da Struan, da Rothwell-Gornt e do Victoria Bank, a despeito da sua rivalidade, tinham se reunido anualmente em segredo para debater assuntos que afetavam o futuro de Hong Kong e da Ásia.
— Eles podem não concordar em antecipar a reunião — disse Alastair.
— Liguei para todos, hoje de manhã. Ela está marcada para segunda que vem, às nove horas, aqui.
— Quem é que vem do banco?
— O subgerente-geral Havergill; o velho está no Japão, depois vai para a Inglaterra, de licença. — O rosto de Dunross endureceu. — Terei que me contentar com ele.
— Paul serve — falou Alastair. — Vai ser o próximo chefe.
— Não se eu puder evitar — disse Dunross.
— Você nunca apreciou Paul Havergill, não é, Ian? — perguntou Phillip Chen.
— Não, é insular demais, Hong Kong demais, fora de moda demais, pretensioso demais.
— E apoiou seu pai contra você.
— Foi. Mas não é este o motivo pelo qual deve pular fora, Phillip. Deve pular fora porque está no caminho da Casa Nobre. É conservador demais, generoso demais para com as Propriedades Asiáticas, e acho que é um aliado secreto da Rothwell-Gornt.
— Não concordo — disse Alastair.
— Eu sei. Mas precisamos de dinheiro para nos expandirmos, e pretendo conseguir o dinheiro. Portanto, pretendo usar os meus vinte e um por cento com toda a seriedade.
A tempestade lá fora se intensificara, mas eles não pareciam notar.
— Não o aconselho a agir contra o Victoria — disse Phillip Chen, gravemente.
— Concordo — disse Alastair Struan.
— Não agirei. Desde que o meu banco coopere. — Dunross ficou vendo as manchas de chuva na janela, por um momento. — A propósito, convidei também Jason Plumm para a reunião.
— Mas que diabo, para quê? — indagou Struan, ficando de novo de pescoço vermelho.
— Os nossos grupos e as Propriedades Asiáticas dele, juntos, temos...
— Plumm está na lista negra de Dirk Struan, como você a chama, e opõe-se integralmente a nós.
— Nós quatro juntos temos o poder de decisão majoritário em Hong Kong...
Dunross parou de falar quando o telefone tocou ruidosamente. Todos olharam para o aparelho. Alastair Struan falou, com azedume:
— O telefone agora é seu, não meu. Dunross atendeu.
— Dunross! — Escutou por um momento, depois disse: — Não, o Sr. Alastair Struan se aposentou, agora eu sou o tai-pan da Struan. Sim. Ian Dunross. O que diz o telex? — Escutou novamente. — Sim, obrigado.
Largou o telefone. Finalmente, rompeu o silêncio.
— Era do nosso escritório em Taipé. O Lasting Cloud soçobrou perto da costa norte de Formosa. Acham que afundou com toda a tripulação...
Domingo 18 de agosto de 1963
20h45m
O policial estava apoiado a um canto do balcão de informações, observando o eurasiano alto disfarçadamente. Usava um terno de tropical claro e a gravata da polícia sobre uma camisa branca; fazia calor dentro do terminal fortemente iluminado, o ar estava úmido e pesado de odores, e um montão de chineses barulhentos se movimentavam pelo prédio, como sempre. Uma abundância de cantonenses, alguns asiáticos, uns poucos europeus.
— Superintendente? — Uma das moças do setor de informações estendia-lhe um telefone. — É para o senhor — disse, e deu um sorriso bonito, dentes brancos, cabelos escuros, olhos negros, linda pele dourada.
— Obrigado — disse ele, notando que ela era cantonense e jovem, e não se importou com a realidade do vazio do seu sorriso, sem nada por trás dele senão uma obscenidade cantonense. — Pronto — falou, ao aparelho.
— Superintendente Armstrong? Aqui fala a torre: o Yankee 2 acaba de pousar, no horário.
— Ainda é o portão 16?
— É. Estará lá dentro de seis minutos.
— Obrigado. — Robert Armstrong era um homem grande, e inclinou-se sobre o balcão para repor o fone no gancho. Notou as pernas longas da moça e a curva de seu traseiro no cheong-sam uniformizado, lustroso e um tantinho justo demais, e imaginou por um breve momento como seria ela na cama. — Como se chama? — perguntou, sabendo que qualquer chinês detestava dar o nome a um policial, especialmente se fosse europeu.
— Mona Leung, senhor.
— Obrigado, Mona Leung.
Fez-lhe um gesto de cabeça, com os olhos azul-claros fitos nela, e notou o leve arrepio de apreensão que a percorreu.
Ficou satisfeito. "Vá tomar no rabo você também", pensou, depois voltou a focalizar a atenção na sua presa.
O eurasiano, John Chen, estava no lado de uma das saídas, sozinho, e isso o surpreendeu, assim como o fato de estar nervoso. Geralmente, John Chen era imperturbável, mas agora, a curtos intervalos, olhava para o relógio de pulso, depois para o quadro de chegada, depois de novo para o relógio.
"Mais um minuto e então começaremos", pensou Armstrong.
Começou a procurar um cigarro no bolso, depois lembrou-se de que deixara de fumar há duas semanas, como presente de aniversário para a mulher. Então praguejou rapidamente e enfiou as mãos mais fundo nos bolsos.
À volta do balcão de informações, passageiros e pessoas à espera de passageiros, aborrecidos, chegavam, empurravam, iam embora e voltavam de novo, perguntando em altas vozes onde, quando, como e por quê, e onde novamente, numa infinidade de dialetos. O cantonense ele compreendia bem, compreendia um pouco do mandarim e do dialeto de Xangai. Algumas expressões chu-chow e a maioria dos seus palavrões. Um pouco do dialeto de Formosa.
Deixou então o balcão, mais alto uma cabeça do que a maioria da multidão, um homem grande, de ombros largos, com um caminhar descontraído e atlético, há dezessete anos na força policial de Hong Kong, agora chefe do DIC, Departamento de Investigações Criminais, de Kowloon.
— Boa noite, John — cumprimentou. — Como vão as coisas?
— Oh, alô, Robert — disse John Chen, pondo-se em guarda instantaneamente, no seu inglês com sotaque americano. — Tudo bem, obrigado. E você?
— Muito bem. Seu contato no aeroporto mencionou à Imigração que você veio receber um vôo especial, um avião fretado... o Yankee 2.
— É, mas não é avião fretado. É particular. Pertence a Lincoln Bartlett... o milionário americano.
— Ele está a bordo? — perguntou Armstrong, sabendo que estava.
— Está.
— Com comitiva?
— Só o seu vice-presidente-executivo... o destruidor da reputação dos seus oponentes.
— O Sr. Bartlett é um amigo? — perguntou, sabendo que não era.
— Um convidado. Esperamos fazer negócios com ele.
— É? Bem, o avião dele acaba de pousar. Por que não vem comigo? Deixaremos de lado toda a burocracia para você. É o mínimo que podemos fazer pela Casa Nobre, não é?
— Obrigado por se dar ao trabalho.
— Não é trabalho algum.
Armstrong foi na frente, e cruzaram uma porta lateral na barreira da alfândega. Os policiais uniformizados ergueram os olhos, batendo continência imediatamente para Armstrong, e observando, pensativos, a figura de John Chen, a quem reconheceram de pronto.
— O nome de Lincoln Bartlett — continuou Armstrong, com fingida cordialidade — não me diz nada. Será que deveria?
— Só se você estivesse no ramo empresarial — disse John Chen. Depois continuou, nervosamente: — O apelido dele é "O Incursor", por causa de suas bem-sucedidas incursões e compras de controle de outras companhias, freqüentemente bem maiores que a dele. Um homem interessante. Conheci-o em Nova York, no ano passado. O conglomerado dele tem uma renda bruta de quase meio bilhão de dólares por ano. Dizem que começou em 45, com dois mil dólares emprestados. Agora está metido com derivados do petróleo, engenharia pesada, eletrônica, mísseis, faz um bocado de trabalho para o governo americano, espuma, produtos de espuma de poliuretano, fertilizantes... tem até mesmo uma companhia que faz e vende esquis e artigos esportivos. O grupo dele chama-se Indústrias Par-Con. Basta pensar numa coisa, e ele a tem.
— Pensei que sua companhia já possuísse tudo. John Chen sorriu cortesmente.
— Não nos Estados Unidos, e não é minha companhia. Sou apenas um acionista minoritário da Struan, um empregado.
— Mas é diretor, e o filho mais velho da Casa Nobre Chen; portanto, será o próximo representante nativo junto à firma.
Segundo o costume histórico, o representante nativo era sempre um empresário chinês ou eurasiano que agia como intermediário exclusivo entre a firma comercial européia e os chineses. Todas as transações passavam pelas suas mãos, e um pouquinho de tudo grudava-se a elas.
"Tanto dinheiro e tanto poder", pensou Armstrong, "e no entanto, com um pouquinho de sorte, podemos fazê-lo em pedaços, e a Struan junto com você. Meu Deus", pensou, nauseado com a doçura da expectativa, "se isso acontecer, o escândalo vai explodir Hong Kong."
— Será o representante deles, como seu pai, seu avô e seu bisavô o foram, antes de você. Seu bisavô foi o primeiro, não foi? Sir Gordon Chen, o representante nativo do grande Dirk Struan, que fundou a Casa Nobre, e praticamente fundou Hong Kong.
— Não. O representante de Dirk foi um homem chamado Chen Sheng. Sir Gordon Chen foi o representante do filho de Dirk, Culum Struan.
— Eram meios irmãos, não é?
— É o que diz a lenda.
— Ah, lendas... delas nos alimentamos. Culum Struan, outra lenda de Hong Kong. Mas Sir Gordon também é uma lenda... você tem sorte.
Sorte?, perguntou-se John Chen, com amargura. Descender do filho ilegítimo de um pirata escocês — um traficante de ópio, um gênio depravado e malvado, um assassino, se algumas das histórias fossem verdadeiras — e uma garota cantonense desenxabida tirada de um bordel nojento que ainda existe num beco nojento de Macau? Saber que quase todo mundo em Hong Kong conhecia a sua linhagem e ser desprezado por causa dela, por ambas as raças?
— Não é sorte — falou, tentando aparentar calma. Seus cabelos escuros tinham fios grisalhos, o rosto era anglo-saxão e bonito, embora um pouco flácido nas bochechas, e os olhos escuros apenas levemente asiáticos. Tinha quarenta e dois anos, e usava ternos de tropical, sempre impecavelmente talhados, com sapatos Hermes e relógio Rolex.
— Não concordo — falou Armstrong, sem ironia. — Ser o representante nativo da Struan, a Casa Nobre da Ásia... é algo muito especial.
— É, é especial — disse John Chen, secamente.
Desde que se entendia por gente, sua herança familiar o atormentava. Podia sentir olhos a fitá-lo — a ele, o filho mais velho, o seguinte na linha de sucessão —, podia sentir a cobiça e a inveja perenes. Aquilo o aterrorizava continuamente, embora tentasse combater de todas as formas o terror. Nunca quisera aquele poder ou aquela responsabilidade. Na véspera mesmo tivera outra briga angustiante com o pai, pior que as anteriores.
— Não quero ter nada a ver com a Struan! — berrara. — Pela centésima vez, quero dar o fora de Hong Kong, quero voltar para os Estados Unidos, quero viver a minha vida, do jeito que quero, onde quero e como quero!
— Pela milésima vez, vai me escutar. Mandei-o para os Esta...
— Deixe-me cuidar dos nossos interesses americanos, Pai.
Por favor. Há coisa de sobra para se fazer! Podia me dar uns dois mil...
— Ayeeyah, trate de me escutar! É aqui, aqui em Hong Kong e na Ásia que ganhamos o nosso dinheiro! Mandei-o estudar nos Estados Unidos para preparar a família para o mundo moderno. Está preparado, é seu dever para com a fam...
— Pai, há Richard, e o jovem Kevin... Richard é dez vezes melhor comerciante que eu, e está louco para agir. E quanto ao tio Jam...
— Fará o que estou mandando! Santo Deus, sabe que este americano Bartlett é vital para nós, precisamos do seu conheci...
—...tio James ou tio Thomas. Tio James seria o melhor para o senhor; melhor para a família e mel...
— Você é o meu filho mais velho. Será o próximo chefe de família e o próximo representante da firma!
— Juro por Deus que não!
— Então não ganhará nem mais um tostão furado!
— O que não fará muita diferença! Todos nós só recebemos uma miséria, não importa o que os estranhos pensem! Quanto o senhor vale? Quantos milhões? Cinqüenta? Setenta? Cem?...
— A não ser que peça desculpas imediatamente e acabe com toda essa baboseira, agora e para sempre, deserdo você agora mesmo! Agora mesmo!
— Peço desculpas por deixá-lo zangado, mas nunca vou mudar! Nunca!
— Dou-lhe um tempo até o meu aniversário. Oito dias. Oito dias para se tornar um filho obediente. É a minha última palavra. A não ser que se torne obediente até o meu aniversário, retirarei você e sua linhagem para sempre da nossa árvore genealógica! Agora, saia daqui!
O estômago de John Chen retorceu-se, desagradavelmente. Odiava as brigas intermináveis, o pai roxo de raiva, a mulher em lágrimas, os filhos apavorados, a madrasta, irmãos e primos todos exultando maldosamente, querendo que ele se fosse, todas as suas irmãs, a maioria dos tios, todas as suas mulheres. Inveja, cobiça. "Para o diabo tudo e todos", pensou. "Mas o Pai tem razão quanto a Bartlett, embora não do jeito que imagina. Não. Este é para mim. Este negócio. Basta este para eu ficar livre para sempre."
A essa altura já tinham atravessado quase todo o longo saguão da alfândega, fortemente iluminado.
— Vai às corridas no sábado? — perguntou John Chen.
— E quem não vai?
Na semana anterior, para êxtase geral, o imensamente poderoso Turf Club, com o seu monopólio exclusivo das corridas de cavalo — a única forma legal de jogo permitida na colônia —, distribuíra um aviso especial:
"Embora a nossa temporada oficial não comece este ano antes de 5 de outubro, com a gentil permissão de nosso ilustre governador, Sir Geoffrey Allison, os administradores resolveram declarar o sábado, dia 24 de agosto, um Dia de Corridas Muito Especial, para o prazer de todos, e como homenagem à nossa população trabalhadora, que está suportando o forte peso da segunda pior seca de nossa história com ânimo forte..."
— Ouvi dizer que a sua Golden Lady corre no quinto páreo — disse Armstrong.
— O treinador disse que ela tem chance. Por favor, venha até a tribuna do Pai tomar um drinque conosco. Bem que eu podia usar alguns dos seus palpites, você é um grande apostador.
— Só tenho sorte. Mas meus dez dólares de apostas jamais poderiam se comparar aos seus dez mil.
— Mas isso é só quando algum de nossos cavalos está correndo. A temporada passada foi um desastre... estou a fim de um vencedor.
— Eu também. — "Ah, Deus, como preciso de um vencedor", pensou Armstrong. "Mas quanto a você, Johnny Chen, está se cagando se perde ou ganha dez mil ou cem mil." Tentou controlar a sua inveja crescente. "Acalme-se", disse a si mesmo. "Os vigaristas existem, e é seu trabalho apanhá-los, se puder... não importa quão ricos ou poderosos sejam... e se contentar com o seu salário miserável quando em cada esquina há um monte de grana grátis. Por que invejar este filho da mãe... vai se ferrar, de um jeito ou de outro." — Ah, a propósito, mandei um guarda ir buscar o seu carro para passá-lo pelo portão. Estará à sua espera e dos seus convidados na saída do avião.
— Puxa, que ótimo, obrigado. Lamento a trabalheira.
— Não é trabalheira nenhuma. É uma questão de prestígio. Não é? Achei que devia ser muito especial, para você vir em pessoa. — Armstrong não pôde resistir a mais uma alfinetada. — Como já disse, nada é trabalho demais para a Casa Nobre.
John Chen manteve o seu sorriso cortês, mas pensou: "Vá se foder. Nós o toleramos pelo que é, um tira muito importante, cheio de inveja, com dívidas até o pescoço, certamente corrupto e que nada entende de cavalos. Vá se foder duas vezes. Dew neh loh moh para todas as suas gerações", pensou John Chen, mas disfarçou cuidadosamente o pensamento obsceno, pois embora Armstrong fosse verdadeiramente odiado por todos os yan de Hong Kong, John Chen sabia, de longa experiência, que a astúcia implacável e vingativa de Armstrong era digna de um manchu nojento. Estendeu a mão para a meia moeda que usava num fio de couro fino ao pescoço. Seus dedos tremeram ao tocar no metal, através da camisa. Estremeceu, involuntariamente.
— O que foi? — perguntou Armstrong.
— Nada. Nada mesmo. "Controle-se", pensou John Chen.
Já haviam cruzado o saguão da alfândega e estavam na área da Imigração, com a noite escura lá fora. Filas de pessoas ansiosas, inquietas, cansadas, esperavam diante das mesas pequenas e ordeiras dos funcionários da Imigração, uniformizados e de ar frio. Os homens saudaram Armstrong. John Chen sentiu sobre si seus olhos perscrutadores.
Como sempre, seu estômago dava voltas sob o escrutínio deles, embora soubesse que estava a salvo de suas perguntas insistentes. Tinha um passaporte britânico, não apenas um passaporte de Hong Kong de segunda classe, e também um cartão verde americano — o cartão dos estrangeiros —, o bem sem preço que lhe dava livre acesso a trabalhar, divertir-se e morar nos Estados Unidos, todos os privilégios de um americano nato, exceto o direito de votar. E quem precisava votar, pensou, e devolveu o olhar de um dos homens, tentando ganhar coragem, mas mesmo assim sentindo-se despido ante o olhar fixo do homem.
— Superintendente? — Um dos funcionários segurava um telefone. — É para o senhor.
Ficou olhando Armstrong voltar para atender ao telefonema, e imaginou como seria ser um policial, com tantas oportunidades para a corrupção, e pela milionésima vez, como seria ser totalmente britânico ou totalmente chinês, e não um eurasiano desprezado por ambas as raças.
Olhava enquanto Armstrong escutava atentamente, depois ouviu-o dizer, acima da balbúrdia:
— Não, basta protelar. Eu mesmo trato disso, pessoalmente. Obrigado, Tom.
Armstrong voltou.
— Desculpe — disse. Depois cruzou o cordão da Imigração, subiu um pequeno corredor e entrou na sala VIP. Era simpática e espaçosa, com um bar e uma bela vista do aeroporto, da cidade e da baía. A sala estava vazia, exceto por dois funcionários da Imigração e da alfândega, e um dos homens de Armstrong esperando junto ao portão 16... uma porta de vidro que dava para a pista iluminada. Podiam ver o 707 chegando junto às suas marcas de estacionamento.
— Boa noite, sargento Lee — disse Armstrong. — Tudo certo?
— Sim, senhor. O Yankee 2 está desligando os motores. O sargento Lee bateu continência de novo, e abriu o portão para eles.
Armstrong olhou para John Chen, sabendo que o gargalo da armadilha estava quase fechado.
— Pode passar.
— Obrigado.
John Chen saiu para a pista de tarmac.
O Yankee 2 agigantava-se acima deles, os jatos que se desligavam emitindo apenas um rosnar abafado. A tripulação de terra colocava a escada alta, motorizada, no lugar. Pelas pequenas janelas da cabine podiam ver os pilotos fracamente iluminados. A um canto, nas sombras, estava o Silver Cloud Rolls azul-escuro de John Chen, com o chofer chinês uniformizado de pé ao lado da porta, e um policial próximo.
A porta principal do avião se abriu e um comissário uniformizado saiu para cumprimentar os dois funcionários do aeroporto que esperavam na plataforma. Ele entregou a um dos funcionários uma sacola com os documentos do avião e o manifesto de chegada, e começaram a bater papo, afavelmente. Então todos pararam. Respeitosamente. E fizeram uma saudação cortês.
A moça era alta, elegante, requintada e americana.
Armstrong assobiou baixinho.
— Ayeeyah!
— Bartlett tem bom gosto — comentou John Chen, o coração batendo mais depressa.
Ficaram observando enquanto ela descia as escadas, ambos perdidos em reflexões masculinas.
— Acha que é modelo?
— Anda como se fosse. Quem sabe uma estrela de cinema?
John Chen se adiantou.
— Boa noite. Sou John Chen, da Struan. Vim receber o Sr. Bartlett e o Sr. Tchuluck.
— Ah, claro, Sr. Chen. Muita gentileza sua, senhor, especialmente num domingo. Prazer em conhecê-lo, Sou K. C. Tcholok. Linc disse que se...
— Casey Tchuluck? — John Chen fitou-a, de boca aberta. — Como?
— É — disse ela, com um sorriso amável, ignorando pacientemente a pronúncia errada. — Sabe, Sr. Chen, como as minhas iniciais são K. C, acabei ficando com o apelido de Casey, que é a pronúncia inglesa das duas letras juntas. — Fitou Armstrong. — Boa noite. Também é da Struan?
A voz dela era melodiosa.
— Ah, sim, desculpe, este, este é o superintendente Armstrong — gaguejou John Chen, ainda tentando se recuperar.
— Boa noite — cumprimentou Armstrong, notando que ela ainda era mais atraente vista de perto. — Bem-vinda a Hong Kong.
— Obrigada. Superintendente? Da polícia? — E então o nome se encaixou no lugar. — Ah, Armstrong. Robert Armstrong? Chefe do DIC de Kowloon?
Ele disfarçou a surpresa.
— Está muito bem informada, srta. Tcholok. — Ela riu.
— Parte da minha rotina. Quando vou a um lugar novo, especialmente um como Hong Kong, meu trabalho é estar preparada... portanto mandei buscar as listagens atuais.
— Não temos listagens publicadas.
— Eu sei. Mas a administração de Hong Kong imprime um catálogo telefônico do governo que qualquer um pode comprar por uma ninharia. Mandei buscar um desses. Constam dele todos os departamentos policiais... chefes dos departamentos, a maioria com o telefone de casa... juntamente com todos os outros departamentos governamentais. Consegui um catálogo através do escritório de RP de Hong Kong, em Nova York.
— Quem é o chefe da Seção Especial? — perguntou, testando-a.
— Não sei. Não creio que esse departamento esteja incluído. Está?
— Às vezes.
Uma ligeira ruga vincava-lhe a testa.
— Vem receber todos os aviões particulares, superintendente?
— Somente quando me dá vontade. — Sorriu para ela. — Somente quando há senhoras bonitas e bem-informadas a bordo.
— Alguma coisa errada? Algum problema?
— Ah, não. Só rotina. O aeroporto de Kai Tak é parte de minha responsabilidade — disse Armstrong, com naturalidade. — Posso ver seu passaporte, por favor?
— Claro.
A ruga se aprofundou, enquanto ela abria a bolsa e lhe entregava o passaporte americano.
Anos de experiência fizeram com que a inspeção dele fosse muito detalhada.
— Nasceu em Providence, Rhode Island, a 25 de novembro de 1936; altura, um metro e setenta e três, cabelos louros, olhos castanho-amarelados.
O passaporte ainda tinha validade por dois anos. "Vinte e seis, hem? Pensei que fosse mais moça, mas se a gente olhar de perto, nota algo estranho nos olhos dela."
Com casualidade aparente, foi virando descuidadamente as páginas. Seu visto de três meses para Hong Kong estava em ordem. Uma dúzia de carimbos de imigração, todos da Inglaterra, França, Itália ou América do Sul. Exceto um. URSS, datado de julho daquele ano. Uma visita de sete dias. Reconheceu o carimbo de Moscou.
— Sargento Lee!
— Pronto, senhor.
— Mande carimbá-lo para ela — disse, com naturalidade, e sorriu para a moça. — Tudo em ordem. Pode ficar o tempo que quiser. Quando os três meses estiverem chegando ao fim, basta ir à delegacia mais próxima e prolongaremos o seu visto.
— Muitíssimo obrigada.
— Vai ficar com a gente durante muito tempo?
— Isso vai depender dos nossos negócios — disse Casey, depois de uma pausa. Sorriu para John Chen. — Esperamos que os nossos negócios durem muito tempo.
John Chen disse:
— E nós esperamos a mesma coisa.
Ainda estava intrigado, com a cabeça a mil por hora. "Certamente é impossível que Casey Tcholok seja uma mulher", pensou.
Às costas deles o comissário de bordo, Sven Svensen, desceu animadamente a escada, carregando duas malas leves.
— Pronto, Casey. Tem certeza de que chega, por esta noite?
— Tenho, sim. Obrigada, Sven.
— Linc mandou você ir na frente. Quer uma mãozinha para passar pela alfândega?
— Não, obrigada. O Sr. John Chen teve a gentileza de vir nos receber. Assim como o superintendente Armstrong, chefe do DIC de Kowloon.
— Certo. — Sven olhou pensativo para o policial, por um momento. — É melhor eu voltar.
— Tudo bem? — perguntou ela.
— Acho que sim. — Sven Svensen abriu um sorriso. — A alfândega está verificando o nosso estoque de bebidas e cigarros.
Apenas quatro coisas estavam sujeitas a licença de importação ou taxa alfandegária na colônia: ouro, bebidas alcoólicas, fumo e gasolina. Só um contrabando (sem falar em narcóticos) era totalmente proibido: todas as formas de armas de fogo e munição.
Casey sorriu para Armstrong.
— Não temos arroz a bordo, superintendente. Linc não come arroz.
— Então vai passar mal aqui.
Ela deu uma risada, depois virou-se para Svensen.
— Até amanhã. Obrigada.
— Às nove em ponto!
Svensen voltou para o avião, e Casey virou-se para John Chen.
— Linc disse que não esperássemos por ele. Espero que não haja mal nisso — disse.
— Hã?
— Vamos? Temos reservas no Victoria and Albert Hotel, em Kowloon. — Começou a pegar as malas, mas um carregador surgiu de dentro da escuridão e tirou-as de suas mãos. — Linc virá mais tarde... ou amanhã.
John Chen ficou olhando para ela, com cara de bobo.
— O Sr. Bartlett não vem?
— Não. Vai passar a noite no avião, se obtiver permissão. Senão, virá depois, de táxi. De qualquer modo, almoçará conosco amanhã, conforme o combinado. O almoço ainda está de pé, não é mesmo?
— Claro, mas... — John Chen tentava pôr sua cabeça para funcionar. — Então, vai querer cancelar a reunião das dez horas?
— Ah, não. Comparecerei, como foi combinado. Linc não é esperado nessa reunião, que trata só de finanças... não de política. Estou certa de que compreende. Linc está muito cansado, Sr. Chen. Chegou da Europa ontem. — Olhou para Armstrong. — O comandante perguntou à torre se Linc podia pernoitar no avião, superintendente. Eles foram verificar com a Imigração; de lá responderam que depois entrariam em contato conosco, mas imagino que nosso pedido acabará chegando às suas mãos. Gostaríamos muito que o aprovasse. Linc está há muito tempo com os horários descontrolados, por causa das viagens a jato.
Armstrong se pegou dizendo:
— Acertarei isso com ele.
— Ah, obrigada, muito obrigada. — Voltou-se novamente para John Chen. — Desculpe toda essa trabalheira, Sr. Chen. Vamos?
Começou a se dirigir para o portão 16, com o carregador atrás, mas John Chen indicou o seu Rolls.
— Não, por aqui, srta. Tchu... Casey. — Ela arregalou os olhos.
— E a alfândega?
— Hoje, não — disse Armstrong, gostando dela. — Um presente do governo de Sua Majestade.
— Sinto-me como se fosse membro da realeza, em visita.
— Tudo faz parte do serviço.
Ela entrou no carro. Cheiro gostoso de couro. E de luxo. Então, notou o carregador cruzando o portão que levava ao terminal do aeroporto.
— Mas, e quanto às minhas malas?
— Não precisa se preocupar com elas — falou John Chen, com irritação. — Estarão na sua suíte antes que chegue lá.
Armstrong ficou segurando a porta por mais um momento.
— John veio com dois carros. Um para a senhorita e o Sr. Bartlett... outro para a bagagem.
— Dois carros?
— Claro. Não se esqueça de que está em Hong Kong.
Armstrong ficou observando o carro se afastar. "Linc Bartlett é um homem de sorte", pensou, e ficou imaginando, distraidamente, por que o SEI, Serviço Especial de Informações, estava interessado nela.
— Vá receber o avião e examine o passaporte dela pessoalmente — o diretor do sei lhe dissera, pela manhã. — E o do Sr. Lincoln Bartlett também.
— Posso saber por quê, senhor?
— Não, Robert, não pode. Já não faz mais parte desta seção... está num empreguinho confortável em Kowloon. Uma bela sinecura, pois não?
— Sim, senhor.
— E Robert, faça o favor de não esculhambar a nossa operação de hoje à noite... pode haver muitos figurões envolvidos. Temos um trabalhão para manter vocês atualizados com o que os "homens maus" estão fazendo.
— Sim, senhor.
Armstrong suspirou enquanto subia as escadas que levavam ao avião, seguido pelo sargento Lee. Dew neh loh moh para todos os oficiais superiores, especialmente o diretor do SEI.
Um dos funcionários da alfândega esperava no topo da escada, junto com Svensen.
— Boa noite, senhor — cumprimentou ele. — Tudo em ordem a bordo. Há um 38 com uma caixa de cem cartuchos fechada como parte do estoque do avião. Uma pistola Verey Light. E mais três rifles de caça e um calibre 12 com munição, pertencentes ao Sr. Bartlett. Estão todos arrolados no manifesto de carga, e já os inspecionei. Há um armário de armas trancado na cabine principal. O comandante tem a chave.
— Ótimo.
— Ainda vai precisar de mim, senhor?
— Não, obrigado. — Armstrong pegou o manifesto de carga do avião e começou a verificá-lo. Muito vinho, cigarro, fumo, cerveja e bebidas mais fortes. Dez caixas de Dom Pérignon 59, quinze de Puligny Montrachet 53, nove de Château Haut Brion 53. — Não têm Lafite Rothschild 1916, Sr. Svensen? — perguntou, com um sorrisinho.
— Não, senhor — respondeu Svensen, com um sorriso amplo.— 1916 foi um ano muito ruim. Mas temos meia caixa do 1923. Está na página seguinte.
Armstrong virou a página. Havia mais vinhos e charutos na lista.
— Ótimo — falou. — Naturalmente, tudo isso estará sob retenção alfandegária, enquanto estiverem em terra.
— Sim, senhor. Já tranquei tudo no armário... e seu homem o lacrou. Disse que não fazia mal deixar uma caixa com doze latas de cerveja na geladeira.
— Se quiser importar qualquer vinho, basta me avisar. Não há complicações, apenas uma modesta contribuição para a gaveta inferior de Sua Majestade.
— Como? — perguntou Svensen, perplexo.
— Hem? Ah, só uma piadinha inglesa. Refere-se à gaveta inferior da cômoda de uma senhora... onde guarda as coisas de que vai precisar no futuro. Desculpe. O seu passaporte, por favor. — O passaporte de Svensen era canadense. — Obrigado.
— Posso apresentá-lo ao Sr. Bartlett? Está à sua espera.
Svensen entrou no avião, à sua frente. O interior era elegante e simples. Saindo do pequeno corredor, entrava-se numa sala de estar com meia dúzia de poltronas de couro e um sofá. Uma porta central isolava o resto do avião, na direção da popa. Numa das poltronas uma aeromoça dormitava, com as maletas ao lado. À esquerda ficava a porta da cabine de vôo. Estava aberta.
O comandante e o co-piloto estavam nos seus lugares, ainda examinando a papelada.
— Com licença, comandante. Este é o superintendente Armstrong — disse Svensen, afastando-se.
— Boa noite, superintendente — falou o comandante. — Sou o comandante Jannelli e este é o meu co-piloto, Bill O'Rourke.
— Boa noite. Posso ver seus passaportes, por favor?
Os dois pilotos tinham vistos internacionais e carimbos de imigração aos montes. Nenhum país da Cortina de Ferro. Armstrong entregou-os ao sargento Lee, para carimbá-los.
— Obrigado, comandante. Esta é sua primeira visita a Hong Kong?
— Não, senhor. Estive aqui umas duas vezes, de licença, durante a Guerra da Coréia. E viajei com a Far Eastern, como primeiro-oficial, durante seis meses, na rota da volta ao mundo deles em 56, durante os tumultos.
— Que tumultos? — quis saber O'Rourke.
— Kowloon inteira explodiu. Uns duzentos mil chineses de repente endoidaram, saíram por aí destruindo, queimando. Os tiras, desculpe, a polícia tentou resolver a coisa com paciência, depois as turbas começaram a matar, então os tiras, bem, a polícia passou a mão nuns fuzis e matou uma meia dúzia de palhaços e tudo se acalmou rapidinho. Aqui, só a polícia tem armas de fogo, o que é uma ótima idéia. — E, dirigindo-se a Armstrong: — Acho que vocês fizeram um serviço e tanto.
— Obrigado, comandante Jannelli. Onde teve início este vôo?
— Em Los Angeles. O escritório principal de Linc, do Sr. Bartlett, fica lá.
— Sua rota foi Honolulu, Tóquio, Hong Kong?
— Sim, senhor.
— Quanto tempo ficaram parados em Tóquio?
Bill O'Rourke foi verificar imediatamente o registro.
— Duas horas e dezessete minutos. Apenas para reabastecimento, senhor.
— Um tempinho para esticar as pernas, não é? Jannelli falou:
— Fui o único a saltar. Sempre dou uma checada no trem de aterrissagem e faço uma inspeção externa, onde quer que pousemos.
— É um bom hábito — falou o policial, cortesmente. — Quanto tempo vão ficar aqui?
— Não sei, isso é com Linc. Com certeza até amanhã.
Não podemos partir antes das catorze horas. Nossas ordens são para estarmos prontos para ir a qualquer lugar, a qualquer hora.
— Tem um belo avião, comandante. Pode ficar aqui até as catorze horas. Se quiser uma prorrogação, fale com o controle de terra antes desse horário. Quando estiver pronto, passe pela alfândega por aquele portão. E por favor, que a tripulação passe toda junta.
— Claro. Logo que acabarmos de abastecer.
— O senhor e toda a sua tripulação sabem que a importação de qualquer arma de fogo para a colônia é estritamente proibida? Ficamos muito nervosos com armas de fogo em Hong Kong.
— Eu também fico, superintendente... em qualquer lugar. É por isso que possuo a única chave do armário das armas.
— Ótimo. Qualquer problema, por favor, fale com o meu gabinete.
Armstrong saiu e passou para a ante-sala, com Svensen à sua frente.
Jannelli observou-o enquanto ele inspecionava o passaporte da aeromoça. Ela era bonitinha, e chamava-se Jenny Pollard.
— Filho da puta — resmungou, depois acrescentou baixinho: — Alguma coisa aqui está cheirando mal.
— Hem?
— Desde quando um figurão do DIC vem verificar as porras dos passaportes? Tem certeza de que não estamos transportando nada de curioso?
— Porra, não. Sempre verifico tudo. Inclusive os estoques de Sven. Claro que não vistorio as coisas de Linc... nem de Casey... mas eles não fariam nenhuma burrice.
— Há quatro anos vôo para ele, e nem uma só vez... Mesmo assim, pode apostar que alguma coisa está cheirando mal. — Jannelli se virou, cansado, e se acomodou mais confortavelmente no assento do piloto. — Puxa, o que eu não daria por uma massagem e uma semana de folga.
Na ante-sala, Armstrong entregou o passaporte ao sargento Lee, que o carimbou.
— Obrigado, srta. Pollard.
— Obrigada.
— Acabou a tripulação, senhor — falou Svensen. — Agora, o Sr. Bartlett.
— Sim, por favor.
Svensen bateu à porta central e abriu-a sem esperar resposta.
— Linc, este é o superintendente Armstrong — falou, com tranqüila informalidade.
— Oi — disse Linc Bartlett, levantando-se da mesa de trabalho. Estendeu a mão. — Quer uma bebida? Cerveja?
— Não, obrigado. Quem sabe um café. Svensen dirigiu-se imediatamente para a copa.
— Vem já — falou.
— Fique à vontade. Aqui está meu passaporte — falou Bartlett. — Vou demorar só um momentinho.
Voltou à máquina de escrever, e continuou a bater nas teclas com dois dedos.
Armstrong examinou-o com calma. Bartlett tinha cabelos avermelhados, olhos azul-acinzentados, um rosto forte e bonito. Esbelto. Camisa esporte e jeans. Armstrong olhou para o passaporte. Nascido em Los Angeles, no dia 1.° de outubro de 1922. "Parece jovem, para quarenta anos", pensou. Carimbo de Moscou, como Casey Tcholok, e mais nenhuma visita à Cortina de Ferro.
Correu os olhos pelo aposento. Espaçoso, toda a largura do avião. Havia um curto corredor central na direção da popa, que dava para duas cabines e dois banheiros. E no final do corredor uma porta que imaginava dar para a suíte principal.
A cabine mais parecia um centro de comunicações. Tele-tipos, telefones internacionais, máquinas de escrever embutidas. Um relógio iluminado marcava as horas numa antepara. Arquivos, copiadora e uma escrivaninha embutida de tampo de couro, coalhada de papéis. Prateleiras com livros. Livros de impostos. Algumas brochuras. O resto eram livros de guerra, e livros sobre generais ou escritos por generais. Às dúzias. Wellington, Napoleão e Patton, Cruzada na Europa, de Eisen-hower, A arte da guerra, de Sun Tse...
— Pronto, senhor — falou uma voz, interrompendo a inspeção de Armstrong.
— Ah, obrigado, Svensen.
Pegou a xícara de café e acrescentou um pouco de creme.
Sven pôs uma lata nova e aberta de cerveja gelada ao lado de Bartlett, pegou a lata vazia e voltou para a copa, fechando a porta atrás de si. Bartlett bebeu a cerveja direto da lata, relendo o que havia escrito, depois apertou uma campainha. Svensen apareceu imediatamente.
— Diga a Jannelli que peça à torre para transmitir isso. — Svensen fez um sinal de cabeça e saiu. Bartlett relaxou os ombros e voltou-se na cadeira giratória. — Desculpe... tinha que mandar aquilo com urgência.
— Tudo bem, Sr. Bartlett. Seu pedido para pernoitar está aprovado.
— Obrigado... muito obrigado. Será que Svensen também poderia ficar? — Abriu um sorriso. — Não sou grande coisa como dono-de-casa.
— Pois não. Quanto tempo seu avião vai ficar aqui?
— Tudo depende da reunião que teremos amanhã, superintendente. Esperamos fazer negócios com a Struan. Uma semana, dez dias.
— Então vai precisar de um local de estacionamento alternativo, amanhã. Temos outro vôo VIP chegando às dezesseis horas. Disse ao comandante Jannelli para ligar para o controle de terra antes das catorze horas.
— Obrigado. O chefe do DIC de Kowloon costuma tratar do estacionamento aqui no aeroporto?
Armstrong sorriu.
— Gosto de saber o que ocorre na minha divisão. É um hábito tedioso, mas arraigado. Não é freqüente termos aviões particulares nos visitando... ou o Sr. Chen vindo receber alguém pessoalmente. Gostamos de agradar, quando possível. A Struan é dona da maior parte do aeroporto, e John é um amigo pessoal. É um velho amigo seu?
— Passei algum tempo com ele em Nova York e Los Angeles, e gostei muito dele. Sabe, superintendente, este avião é o meu cen... — Um dos telefones tocou. Bartlett atendeu. — Ah, alô, Charlie, o que está acontecendo em Nova York?... Puxa, que ótimo! Quanto?... Certo, Charlie, compre o lote todo... É, todas as duzentas mil ações... Claro, logo na segunda de manhã, assim que o mercado abra. Mande a confirmação por telex... — Bartlett largou o telefone e voltou-se para Armstrong. — Desculpe. Sabe, superintendente, este é meu centro de comunicações, e estaria perdido sem ele. Se estacionarmos por uma semana, posso entrar e sair à vontade?
— Temo que isso seja um pouco enrolado, Sr. Bartlett.
— Isso quer dizer sim, não, ou talvez?
— Ah, é gíria para "difícil". Sinto muito, mas nossa segurança em Kai Tak é muito especial.
— Se tiver que destacar mais homens, não me incomodo em pagar.
— É questão de segurança, não de dinheiro, Sr. Bartlett. E vai ver que o sistema telefônico de Hong Kong é de primeira classe.
"Além disso, vai ser muito mais fácil para o Serviço de Informações controlar suas ligações", pensou.
— Bem, se puder conseguir isso, ficaria grato. Armstrong tomou o café.
— É sua primeira visita a Hong Kong?
— É, sim. Minha primeira visita à Ásia. O mais longe que já tinha ido foi Guadalcanal, em 43.
— Exército?
— Sargento, da Engenharia. Construção... construíamos de tudo: hangares, pontes, campos, o que surgisse. Uma grande experiência. — Bartlett bebia direto da lata. — Não quer mesmo uma bebida?
— Não, obrigado. — Armstrong esvaziou a xícara, começou a se levantar. — Obrigado pelo café.
— Agora posso lhe fazer uma pergunta?
— Claro.
— Que tal é Dunross? Ian Dunross, o chefe da Struan?
— O tai-pan? — Armstrong riu francamente. — Isso depende da pessoa a quem perguntar, Sr. Bartlett. Não o conhece?
— Não, ainda não. Vou conhecê-lo amanhã. Na hora do almoço. Por que o chama de o tai-pan?
— "Tai-pan" quer dizer "líder supremo" em cantonense... a pessoa com o poder definitivo. Os chefes europeus de todas as velhas firmas comerciais são todos tai-pans, para os chineses. Mas mesmo entre os tai-pans, há sempre o maior. O tai-pan. A Struan é apelidada de Casa Nobre ou Hong Nobre, e "hong" significa "companhia". Isso remonta ao começo do comércio com a China e aos primórdios de Hong Kong. Hong Kong foi fundada em 1841, no dia 26 de janeiro, para ser preciso. O fundador da Struan e Companhia foi legendário... ainda o é, de certa forma: Dirk Struan. Há quem diga que foi um pirata, há quem diga que foi um príncipe. De qualquer maneira, fez fortuna contrabandeando ópio indiano para a China, depois convertendo o dinheiro em chás chineses que transportava para a Inglaterra numa frota de veleiros chineses. Tornou-se um príncipe mercador, ganhou o título de tai-pan, e desde então a Struan tem sempre tentado ser a primeira em tudo.
— E é?
— Ah, tem umas duas companhias nos seus calcanhares, especialmente a Rothwell-Gornt, mas diria que é a primeira, sim. A verdade é que não é possível que coisa alguma entre ou saia de Hong Kong, seja comida, enterrada ou fabricada sem que a Struan, a Rothwell-Gornt, as Propriedades Asiáticas, o BLACS (Banco de Londres, Cantão e Xangai), ou o Victoria Bank tenham metido a colher, de alguma forma.
— E Dunross, pessoalmente, como é?
Armstrong pensou um momento, depois disse, despreocupadamente:
— Repito, isso depende da pessoa a quem perguntar, Sr. Bartlett. Eu o conheço um pouco, socialmente... de vez em quando nos encontramos nas corridas. Já tive dois encontros oficiais com ele. É encantador, excelente no seu trabalho... suponho que "brilhante" seja a palavra certa.
— Ele e a família são donos de grande parte da Struan?
— Não sei ao certo. Duvido que alguém saiba, fora da família. Mas suas ações não são a chave para a mesa do tai-pan. Ah, não. Não na Struan. Disso estou certo. — Armstrong olhou firme nos olhos de Bartlett. — Há quem diga que Dunross é implacável e vive pronto para matar. Sei que não gostaria de tê-lo como inimigo.
Bartlett tomou a cerveja, e as ruguinhas ao redor dos olhos apareceram, num sorriso curioso.
— Às vezes, um inimigo é mais valioso do que um amigo.
— Às vezes. Espero que tenha uma estadia proveitosa. Bartlett pôs-se de pé, imediatamente.
— Obrigado. Vou acompanhá-lo. — Abriu a porta e fez Armstrong e o sargento Lee passarem, depois saiu atrás deles pela porta da cabine principal, até os degraus da escada. Inspirou fundo. Mais uma vez, notou algo de estranho no vento, nem agradável nem desagradável, nem odor nem perfume... só estranho, e curiosamente excitante. — Superintendente, que cheiro é esse? Casey também o sentiu, no momento em que Sven abriu a porta.
Armstrong hesitou. Depois sorriu.
— É o cheiro particular de Hong Kong, Sr. Bartlett. De dinheiro.
23h48m
— Todos os deuses são testemunhas do azar que estou tendo hoje — disse Wu Quatro Dedos, e cuspiu no tombadilho. Estava na popa de seu junco marítimo, que fora amarrado junto a um grande grupo de barcos espalhados pelo porto de Aberdeen, na costa sul da ilha de Hong Kong. A noite era quente e úmida, e ele estava jogando mah-jong com três amigos, todos velhos e castigados pelas intempéries, como ele, e todos comandantes dos próprios juncos. Mesmo assim, navegavam na frota dele, e era dele que recebiam ordens. Seu nome formal era Wu Sang Fang. Era um pescador baixo e analfabeto, com poucos dentes, e lhe faltava o polegar da mão esquerda. Seu junco era velho, maltratado e imundo. Era chefe dos Transportes Marítimos Wu, comandante das frotas, e sua bandeira, a Lótus Prateada, tremulava nos quatro mares.
Quando chegou de novo a sua vez, pegou outra das pecinhas de marfim. Lançou-lhe um olhar, e como em nada melhorava a sua mão, descartou-a ruidosamente, e cuspiu de novo. A saliva brilhava no tombadilho. Usava uma camiseta velha e esfarrapada, calças de cule pretas, como os amigos, e apostara dez mil dólares só naquela partida.
— Ayeeyah — disse Tang Bexiguento, fingindo aborrecimento, embora a peça que acabara de pegar praticamente formasse uma combinação vencedora, faltando-lhe apenas mais uma peça. O jogo era parecido com gin rummy. — Fodam-se todas as mães, exceto as nossas, se eu não ganhar!
Descartou uma peça, com um floreio.
— Foda-se a sua, se você ganhar e eu não! — disse um outro, e todos riram.
— E fodam-se aqueles demônios estrangeiros da Montanha Dourada se não chegarem hoje à noite — falou Poon Bom Tempo.
— Chegarão — disse Wu Quatro Dedos, confiante. —
Os demônios estrangeiros grudam-se aos horários. Mesmo assim, mandei o Sétimo Filho ao aeroporto, para se certificar.
Começou a apanhar uma peça do jogo, mas deteve-se e olhou por sobre o ombro, observando com ar crítico um junco de pesca que passava, os motores roncando baixinho, subindo o canal de acesso estreito e sinuoso entre os grupos de barcos, na direção da garganta do porto. Apenas as luzes de ancoragem, de bombordo e boreste, estavam acesas. Ostensivamente, o junco ia só pescar, mas aquele junco era um dos dele, e ia interceptar uma traineira tai com um carregamento de ópio. Quando viu que ele tinha passado em segurança, o homem voltou a concentrar-se no jogo. A maré agora estava baixa, mas a maioria dos grupos de barcos estava cercada por águas profundas. Da praia e dos baixios vinha o fedor de algas apodrecidas, mariscos e excremento humano.
A maior parte dos juncos e sampanas estava agora às escuras, e seus muitos ocupantes, adormecidos. Aqui e ali, viam-se uns poucos lampiões a querosene. Barcos de todos os tamanhos amarravam-se precariamente uns aos outros, aparentemente sem seguir ordem alguma, com minúsculos becos marítimos entre as aldeias flutuantes. Esses eram os lares dos povos tanka e haklo — os moradores dos barcos —, que viviam suas vidas sobre as águas, nasciam e morriam sobre as águas. Muitos desses barcos nunca abandonavam sua amarração, mas ficavam grudados uns aos outros até afundarem, se desfazerem em pedaços, irem a pique num tufão, ou pegarem fogo num dos incêndios espetaculares que freqüentemente varriam os amontoados, quando pés ou mãos descuidados derrubavam um lampião, ou deixavam cair algo inflamável nas inevitáveis fogueiras sem proteção.
— Vovô! — chamou o jovem vigia.
— O que é? — perguntou Wu.
— Ali no molhe, veja! O Sétimo Filho!
O garoto, que mal teria doze anos, apontava para a terra firme.
Wu e os outros se levantaram e olharam para a terra. O jovem chinês acabava de pagar o táxi. Usava jeans, uma camiseta limpa e tênis. O táxi havia parado junto à prancha de desembarque de um dos imensos restaurantes flutuantes amarrados aos molhes modernos, a uns cem metros de distância. Havia quatro desses restaurantes flutuantes espalhafatosos — com três, quatro ou cinco andares —, iluminadíssimos, esplendorosamente decorados em escarlate, verde e ouro, com telhados chineses acanelados, deuses, gárgulas e dragões.
— Tem bons olhos, Neto Número Três. Ótimo. Vá encontrar-se com o Sétimo Filho. — Imediatamente, o garoto saiu correndo, pisando firme nas tábuas desconjuntadas que uniam aquele junco aos demais. Quatro Dedos ficou vendo seu sétimo filho dirigir-se a um dos molhes, onde as balsas-sampanas que serviam ao porto estavam agrupadas. Quando viu que o barqueiro que mandara o havia interceptado, deu as costas para a terra e sentou-se novamente. — Vamos lá, vamos acabar o jogo — falou, carrancudo. — Esta é a minha última mão, bosta. Tenho que ir para terra logo mais.
Jogaram por um momento, comprando e descartando as peças de marfim.
— Ayeeyah! — gritou Tang Bexiguento, ao ver a peça que comprara. Largou-a sobre a mesa, com um floreio, virada para cima, e desvirou as outras treze peças que lhe davam a vitória. — Olhem, pelos deuses!
Wu e os demais olharam, boquiabertos, para a mão.
— Merda! — exclamou Wu, escarrando ruidosamente. — Danem-se todas as suas gerações, Tang Bexiguento! Que sorte!
— Mais um jogo? Vinte mil, Wu Quatro Dedos? — perguntou Tang, alegremente, convencido de que o velho demônio, Chi Kung, o deus dos jogadores, estava sentado no seu ombro.
Wu começou a sacudir a cabeça, mas naquele momento uma ave marinha passou voando e piando queixosamente.
— Quarenta — disse imediatamente, mudando de idéia, interpretando o piado como um sinal dos céus, de que sua sorte mudara. — Quarenta mil ou nada! Mas terá que ser com dados, porque agora não tenho tempo.
— Não tenho quarenta em espécie, por todos os deuses, mas com os vinte que me deve, dou meu junco como garantia amanhã, quando os bancos abrirem, e arranjo um empréstimo, e lhe dou toda a parte do meu lucro no nosso próximo carregamento de ouro ou ópio, até que você seja pago, heya?
Poon Bom Tempo falou, com azedume:
— É dinheiro demais para um só jogo. Seus dois sacanas, perderam o juízo?
— Número mais alto, um arremesso? — perguntou Wu.
— Ayeeyah, os dois enlouqueceram — falou Poon. No entanto, estava tão excitado quanto os demais. — Onde estão os dados?
Wu pegou os dados. Eram três.
— Jogue pela porra do seu futuro, Tang Bexiguento! Tang Bexiguento cuspiu nas palmas das mãos, fez uma prece silenciosa, depois arremessou os dados, com um grito.
— Oh, oh, oh — exclamou, angustiado. Um 4, um 3 e outro 4. — Onze!
Os outros homens mal respiravam.
Wu cuspiu nos dados, amaldiçoou-os, abençoou-os, e arremessou. Um 6, um 2 e um 3.
— Onze! Ah, todos os deuses, grandes e pequenos! De novo... jogue de novo.
A excitação crescia no convés. Tang Bexiguento arremessou.
— Catorze!
Wu se concentrou, a tensão intoxicante, depois jogou os dados.
— Ayeeyah! — explodiu, todos eles explodiram. Um 6, um 4 e um 2.
— Eeee — foi só o que Tang Bexiguento conseguiu dizer, segurando a barriga, rindo de alegria enquanto os outros lhe davam os parabéns e se condoíam do perdedor.
Wu deu de ombros, com o coração ainda batendo forte no peito.
— Malditas sejam todas as aves marinhas que voam sobre a minha cabeça numa hora dessas!
— Ah, foi por isso que mudou de idéia, Wu Quatro Dedos?
— Foi... pareceu-me um sinal. Quantas aves marinhas piam enquanto nos sobrevoam, à noite?
— É verdade. Eu teria feito o mesmo.
— Azar! — Depois, Wu abriu um sorriso. — Eeee, mas o jogo é melhor do que Nuvens e Chuva, heya?
— Não na minha idade!
— Quantos anos tem, Tang Bexiguento?
— Sessenta... quem sabe setenta. Quase a sua idade. — Os haklos não mantinham um registro permanente de nascimento, como os moradores das aldeias em terra firme. — Não me sinto com mais de trinta.
— Soube que a Farmácia da Sorte, no mercado de Aberdeen, recebeu um novo carregamento de ginseng coreano, alguns com cem anos de idade! Isso vai tocar fogo no seu pau!
— Vai tudo bem com o pau dele, Poon Bom Tempo! Sua terceira mulher está esperando outra vez!
Wu abriu um sorriso sem dentes e pegou um grosso maço de notas de quinhentos dólares. Começou a contá-las, com os dedos ágeis, embora lhe faltasse o polegar. Anos atrás, havia sido cortado fora durante uma briga com os piratas do rio, numa expedição de contrabando. Parou momentaneamente, quando o Sétimo Filho subiu a bordo. O rapaz era alto para um chinês, e tinha vinte e seis anos. Cruzou o convés, andando desajeitadamente. Um avião a jato que chegava começou a sobrevoá-los.
— Eles chegaram, Sétimo Filho?
— Sim, pai, chegaram.
Quatro Dedos sacou o barrilete emborcado com alegria.
— Ótimo. Agora, podemos começar!
— Ei, Quatro Dedos — comentou Tang Bexiguento, indicando os dedos. — Um 6, um 4 e um 2... dá 12, que também é 3, o 3 mágico.
— É, eu vi.
Tang Bexiguento abriu um sorriso e apontou para o norte, um tantinho também para o leste, onde ficaria o aeroporto de Kai Tak... atrás das montanhas de Aberdeen, do outro lado do porto em Kowloon, a quase dez quilômetros dali.
— Quem sabe a sua sorte mudou, heya?
Segunda-feira
5hl6m
Na semi-alvorada, um jipe com dois mecânicos de macacão dobrou o portão 16, na extremidade leste do terminal, e parou perto do principal trem de aterrissagem do Yankee 2. A escada ainda estava no lugar, e a porta principal, levemente entreaberta. Os mecânicos, ambos chineses, saltaram, e um deles começou a inspecionar o trem de aterrissagem de oito rodas, enquanto o outro, com o mesmo cuidado, inspecionava o trem de aterrissagem do nariz do avião. Metodicamente, examinaram os pneus, as rodas e depois o acoplamento hidráulico dos freios. Então espiaram para dentro dos vãos de aterrissagem. Ambos usavam lanternas elétricas. O mecânico no trem de aterrissagem principal pegou uma chave de parafuso e subiu numa das rodas para olhar mais de perto, com a cabeça e os ombros agora bem enfiados no bojo do avião. Depois de um momento, chamou, em cantonense:
— Ayeeyah! Ei, Lim, dê uma olhada nisso.
O outro homem se aproximou e olhou para cima, o suor manchando o macacão branco.
— Estão aí ou não? Não dá para eu ver daqui.
— Irmão, enfie o pau na boca e desça pela privada para os esgotos. Claro que estão aqui. Estamos ricos. Vamos comer arroz para sempre! Mas fique quieto, para não acordar os demônios estrangeiros cagados aí em cima! Tome...
O homem entregou a Lim um pacote comprido, envolto em lona, e ele o guardou rápida e silenciosamente no jipe. Depois outro, e mais outro, menor, os dois homens nervosos e suando, trabalhando depressa, e em silêncio.
Outro pacote. E outro...
E então Lim viu o jipe da polícia dobrar a esquina e simultaneamente outros homens uniformizados saírem aos montes do portão 16, entre eles muitos europeus.
— Fomos traídos — exclamou, ofegante, enquanto corria, numa fuga desesperada para a liberdade. O jipe interceptou-o facilmente, e ele parou, tremendo de terror reprimido. Depois, cuspiu, praguejou e retraiu-se.
O outro homem pulara para o chão imediatamente e saltara para o assento do motorista do jipe. Antes que pudesse girar a chave na ignição, foi dominado e algemado.
— Então, seu safado — sibilou o sargento Lee —, aonde pensa que vai?
— A lugar nenhum, seu guarda, foi ele, aquele lá, aquele filho da puta, seu guarda, jurou que cortaria a minha garganta se não o ajudasse. Não sei de nada, juro sobre o túmulo da minha mãe!
— Seu sacana mentiroso, você nunca teve mãe. Vai passar cinqüenta anos na cadeia, se não falar!
— Seu guarda, juro por todos os deu...
— Mijo nas suas mentiras, seu cara de bosta. Quem está lhe pagando por esse serviço?
Armstrong cruzava devagarinho a pista do aeroporto, o gosto doce e enjoativo do golpe mortal na boca.
— Então — falou em inglês —, o que temos aqui, sargento? — Fora uma longa noite de vigília, e estava cansado e com a barba por fazer, e sem nenhuma disposição de ouvir os choramingos e protestos de inocência do mecânico. Portanto, falou suavemente, num perfeito cantonense de sarjeta: — Mais uma só palavra sua, por mais insignificante que seja, seu fornecedor de bosta leprosa, e mandarei meus homens saltarem sobre o seu Saco Secreto.
O homem ficou mudo.
— Ótimo. Como se chama?
— Tan Shu Ta, senhor.
— Mentiroso! Como se chama o seu amigo?
— Lim Ta-cheung, mas não é meu amigo, senhor, não o conhecia antes de hoje de manhã.
— Mentiroso! Quem pagou a vocês para fazerem isso?
— Não sei quem pagou a ele, senhor. Sabe, ele jurou que cortaria...
— Mentiroso! Sua boca está tão cheia de bosta que deve ser o deus da bosta em pessoa. O que há nesses embrulhos?
— Não sei. Juro pelo túmulo dos meus ancestr...
— Mentiroso! — disse Armstrong, sabendo que as mentiras eram inevitáveis.
Seu primeiro instrutor na polícia, calejado no trato com os chineses, lhe dissera:
— O chinês não é igual à gente. Ah, não quero dizer que seja feito de outro jeito... só que é diferente. Mente para os tiras o tempo todo, até ficar roxo, e quando a gente agarra um bandido, agindo limpamente, mesmo assim ele ainda mente e é escorregadio como um pau-de-sebo num monte de merda. Ele é diferente. Veja só os seus nomes. Cada chinês tem quatro nomes diferentes, um quando nasce, outro na puberdade, outro quando fica adulto, e um que escolhe para si mesmo, e eles se esquecem de um deles, ou acrescentam outro por dá cá aquela palha. E os nomes deles... pela madrugada! Os chineses se chamam de Lao-tsi-sing — os Cem Nomes Antigos. Há apenas cem sobrenomes básicos em toda a China, e desses há vinte Yus, oito Yens, dez Wus, e sabe lá Deus quanto Pings, Lis, Lees, Chens, Chins, Chings, Wongs e Fus, e cada um deles é pronunciado de cinco modos diferentes, portanto, sabe-se lá quem é quem!
— Então vai ser difícil identificar um suspeito, senhor?
— Nota 10, jovem Armstrong! Nota 10, meu rapaz. Você pode ter cinqüenta Lis, cinqüenta Changs e quatrocentos Wongs, e um não ser aparentado com o outro. Pela madrugada! Este é o problema, aqui em Hong Kong.
Armstrong deu um suspiro. Depois de dezoito anos, os nomes chineses eram tão confusos como nunca. E ainda por cima, todos eles pareciam ter um apelido pelo qual eram conhecidos.
— Como se chama? — perguntou de novo, e não se incomodou de esperar a resposta. — Mentiroso! Sargento! Desembrulhe um desses pacotes! Deixe ver o que contém.
O sargento Lee afastou o último envoltório. Dentro dele havia um M14, um rifle automático do exército dos Estados Unidos. Novo e bem lubrificado.
— Por causa disso, seu maldito filho da mama esquerda de uma puta — rosnou Armstrong —, você uivará durante cinqüenta anos!
O homem fitava a arma, apalermado, com cara de besta. Depois, soltou um gemido baixo.
— Fodam-se todos os deuses, não sabia que eram armas.
— Ah, sabia, sim! — disse Armstrong. — Sargento, bote este pedaço de bosta no camburão e fiche-o como contrabandista de armas.
O homem foi levado dali, com brutalidade. Um dos jovens policiais chineses estava desembrulhando outro pacote. Era pequeno e quadrado.
— Espere! — ordenou Armstrong em inglês. O policial e todos os outros que o ouviram ficaram imóveis. — Um deles pode conter uma bomba. Afastem-se todos do jipe! — Suando, o homem fez o que lhe mandaram. — Sargento, mande buscar os encarregados da remoção de bombas. Não há mais pressa.
— Sim, senhor.
O sargento Lee dirigiu-se ao intercomunicador no camburão da polícia.
Armstrong foi para baixo do avião e espiou para dentro do vão do trem de aterrissagem principal. Não dava para enxergar nada de estranho. Então, subiu numa das rodas.
— Santo Deus! — exclamou. Cinco prateleiras estavam firmemente presas a cada lado do tabique. Uma delas estava quase vazia, as outras, ainda cheias. Pelo tamanho e formato dos pacotes, julgava que fossem mais M14 e caixas de munição... ou granadas.
— Alguma coisa aí em cima, senhor? — perguntou o inspetor Thomas. Era um jovem inglês que estava há três anos na força policial.
— Dê uma olhada! Mas não toque em nada.
— Santo Deus! Há o bastante para algumas brigadas de choque!
— É. Mas quem seriam os revoltosos?
— Comunas?
— Ou nacionalistas... ou bandidos. Esses...
— Mas que diabo está acontecendo aí embaixo? Armstrong reconheceu a voz de Linc Bartlett. Fechou a cara e saltou para o chão, com Thomas logo atrás. Dirigiu-se para a ponta da escada.
— É o que eu também gostaria de saber, Sr. Bartlett — falou, secamente.
Bartlett estava parado na porta principal do avião, com Svensen ao lado. Ambos estavam de pijama e robe, e com cara de sono.
— Gostaria que desse uma olhada nisso.
Armstrong apontou para o rifle, agora parcialmente escondido no jipe.
Bartlett desceu as escadas imediatamente, com Svensen atrás.
— No quê?
— Queira fazer a gentileza de esperar no avião, Sr. Svensen.
Svensen ia responder, mas parou. Depois olhou para Bartlett, que balançou a cabeça.
— Prepare um café, sim, Sven?
— Claro, Linc.
— Bem, que história é essa, superintendente?
— Veja! — apontou Armstrong.
— É um M14. — Os olhos de Bartlett se estreitaram. — E daí?
— E daí que parece que seu avião está transportando armas.
— Não é possível.
— Acabamos de pegar dois homens descarregando. Lá está um dos sacanas — Armstrong apontou para o mecânico algemado, esperando de cara fechada ao lado do jipe —, e o outro está no camburão. Queira fazer a gentileza de olhar para o vão do trem de aterrissagem principal, senhor.
— Claro. Onde?
— Vai ter que trepar na roda.
Bartlett obedeceu. Armstrong e o inspetor Thomas anotaram o lugar exato onde ele pôs as mãos, para identificação de digitais. Bartlett ficou olhando estupefato para as prateleiras.
— Puta que o pariu! Se houver mais dessas, é um verdadeiro arsenal.
— É. Por favor, não toque em nada.
Bartlett examinou as prateleiras, depois saltou para o chão, agora totalmente desperto.
— Este não é um simples contrabandozinho. Aquelas prateleiras foram feitas sob medida.
— É. Não faz objeção a que revistemos o avião?
— Não. Claro que não.
— Pode ir, inspetor — falou Armstrong, imediatamente. — E faça uma inspeção muitíssimo cuidadosa. Agora, Sr. Bartlett, se quiser fazer a gentileza de explicar...
— Não contrabandeio armas, superintendente. Não creio que meu comandante o faça... ou Bill O'Rourke. Ou Svensen.
— E quanto à srta. Tcholok?
— Ora, faça-me o favor! Armstrong falou, com voz gélida:
— Este é um assunto muito sério, Sr. Bartlett. Seu avião está sob custódia, e sem aprovação da polícia, até ordem posterior, nem o senhor nem membro algum da sua tripulação poderão sair da colônia durante nossas investigações. Bem, e quanto à srta. Tcholok?
— É impossível, totalmente impossível, que Casey esteja envolvida de alguma maneira com armas, contrabando de armas ou qualquer outro tipo de contrabando. Impossível. — Bartlett parecia lastimar aquilo tudo, mas não tinha medo algum. — O mesmo se aplica ao resto de nós. — Sua voz tornou-se mais cortante. — O senhor foi avisado, não foi?
— Quanto tempo pararam em Honolulu?
— Uma ou duas horas, só para reabastecer, não me lembro ao certo. — Bartlett pensou por um momento. — Jannelli saltou, mas sempre salta. Essas prateleiras não podiam ter sido carregadas em uma hora e pouco.
— Tem certeza?
— Não, mas apostaria que isso foi feito antes de sairmos dos Estados Unidos. Embora não tenha a menor idéia de quando, onde, por quê e por quem. O senhor tem?
— Ainda não. — Armstrong observava-o atentamente. — Quem sabe gostaria de voltar ao seu gabinete, Sr. Bartlett. Poderíamos tomar lá o seu depoimento.
— Claro. — Bartlett olhou para o relógio. Eram cinco horas e quarenta e três minutos. — Façamos isso agora, depois tenho que dar alguns telefonemas. Ainda não estamos ligados ao seu sistema. Há algum telefone local ali? — perguntou, apontando para o terminal.
— Há. Naturalmente, preferimos interrogar o comandante Jannelli e o Sr. O'Rourke antes do senhor... se não se importa. Onde estão hospedados?
— No Victoria and Albert.
— Sargento Lee!
— Pronto, senhor.
— Pode ir indo para o QG.
— Sim, senhor.
— Também gostaríamos de falar com a srta. Tcholok primeiro. Novamente, se o senhor não se importar.
Bartlett subia as escadas, com Armstrong ao lado. Finalmente, falou:
— Está certo. Desde que o senhor o faça pessoalmente, e não antes das sete e quarenta e cinco. Ela tem trabalhado demais, tem um dia pesado pela frente, e não quero que seja incomodada desnecessariamente.
Entraram no avião. Sven esperava ao lado da copa, vestido normalmente, e muito perturbado. Policiais uniformizados e à paisana estavam por todo canto, revistando diligentemente.
— Sven, e aquele café?
Bartlett foi na frente, cruzando a ante-sala e entrando no seu escritório-gabinete. A porta central da popa, no final do corredor, estava aberta. Armstrong pôde ver parte da suíte principal, com sua cama tamanho extragrande. O inspetor Thomas vasculhava algumas gavetas.
— Merda! — resmungou Bartlett.
— Lamento — disse Armstrong —, mas é necessário.
— O que não quer dizer que eu tenha que gostar, superintendente. Jamais gostei de estranhos metendo o nariz na minha vida privada.
— É, concordo. — O superintendente fez sinal para um dos oficiais à paisana. — Sung!
— Sim, senhor.
— Anote aqui, por favor.
— Um minuto, vamos poupar tempo — falou Bartlett. Virou-se para um amontoado de aparelhos eletrônicos e apertou dois interruptores. Um gravador com dois cassetes começou a funcionar. Ele enfiou um microfone na tomada e colocou-o na mesa. — Haverá duas fitas, uma para o senhor, outra para mim. Depois que seu funcionário a transcrever, se quiser a minha assinatura, estarei às ordens.
— Obrigado.
— Bem, vamos começar.
Armstrong ficou constrangido, de repente.
— Queira por favor dizer-me o que sabe sobre o carregamento ilegal encontrado no vão do trem de aterrissagem principal de seu aeroplano, Sr. Bartlett.
Bartlett repetiu que não sabia de nada.
— Não creio que ninguém da minha tripulação ou do meu pessoal esteja envolvido, de forma alguma. Nenhum deles jamais esteve envolvido com a lei, ao que eu saiba. E eu saberia.
— Há quanto tempo o comandante Jannelli está com o senhor?
— Há quatro anos, O'Rourke, há dois. Svensen, desde que adquiri o avião, em 58.
— E a srta. Tcholok?
Depois de uma pausa, Bartlett disse:
— Seis... quase sete anos.
— Ela é uma importante executiva de sua companhia?
— É. Muito importante.
— Isso é incomum, não, Sr. Bartlett?
— É. Mas não tem nada a ver com o problema atual.
— O senhor é proprietário deste aparelho?
— A minha companhia é que é. Indústrias Par-Con S.A.
— Tem inimigos... alguém que gostaria de deixá-lo numa séria enrascada?
Bartlett riu.
— Será que um cachorro tem pulgas? Não se chega a chefe de uma companhia de meio bilhão de dólares fazendo amigos.
— Nenhum inimigo em especial?
— Diga-me o senhor. Contrabando de armas é uma operação especial... isso não pode deixar de ter sido feito por um profissional.
— Quem sabia do seu plano de vôo para Hong Kong?
— A visita já está marcada há uns dois meses. Minha diretoria sabia. E minha equipe de planejamento. — Bartlett franziu o cenho. — Não era nenhum segredo. Não havia motivo para tal. — Depois, acrescentou: — É claro que a Struan sabia... exatamente. Há pelo menos duas semanas. Na verdade, confirmamos a data no dia 12 por telex, junto com as horas previstas para a partida e para a chegada. Eu queria vir antes, mas Dunross disse que segunda-feira, dia 19, seria melhor para ele, e 19 é hoje. Por que não o interroga?
— É o que farei, Sr. Bartlett. Obrigado, senhor. No momento, é o suficiente.
— Também tenho umas perguntas, superintendente, se não se importa. Qual a penalidade para o contrabando de armas?
— Dez anos, sem condicional.
— Qual o valor desse carregamento?
— Não tem preço, para o comprador certo, porque nenhuma arma, absolutamente nenhuma, está ao alcance de pessoa alguma.
— Quem é o comprador certo?
— Qualquer um que queira começar um levante, uma insurreição, ou cometer assassinato em massa, assalto a bancos, ou algum crime de grande porte.
— Comunistas?
Armstrong sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não precisam atirar em nós para tomar a colônia, ou contrabandear M14... têm armas de sobra nas mãos.
— Nacionalistas? Gente de Chang Kai-chek?
— O governo americano lhes fornece em quantidade todo tipo de armamentos, Sr. Bartlett. Não é? Portanto, também não precisam contrabandear desse jeito.
— Uma guerra de quadrilhas, talvez?
— Santo Deus, Sr. Bartlett, nossas quadrilhas não atiram umas nas outras. Nossas quadrilhas, chamamo-las de tríades, nossas tríades acertam suas diferenças de modo chinês sensato e civilizado, com facas, machados, pedaços de ferro e telefonemas anônimos para a polícia.
— Aposto que foi alguém da Struan. É aí que encontrará a resposta a este enigma.
— Talvez. — Armstrong riu de modo estranho, depois repetiu: — Talvez. Agora, se me dá licença...
— Claro.
Bartlett desligou o gravador, tirou de lá os dois cassetes e entregou um deles ao outro homem.
— Obrigado, Sr. Bartlett.
— Quanto tempo ainda vai durar esta revista?
— Depende. Talve2 uma hora. Pode ser que tragamos alguns peritos. Tentaremos tornar tudo o mais fácil possível. Vai sair do avião antes do almoço?
— Vou.
— Se quiser se comunicar, por favor entre em contato com meu gabinete. O número é 88-7733. Por enquanto, haverá aqui uma guarda policial permanente. Vai ficar no Vic?
— Vou. Estou livre agora para ir à cidade, fazer o que quiser?
— Está sim, senhor, desde que não deixe a colônia, durante as nossas investigações.
Bartlett abriu um sorriso.
— Já tinha entendido bem claramente o recado.
Armstrong se foi. Bartlett tomou banho, vestiu-se e esperou até que todos os policiais se houvessem retirado, exceto o que vigiava a escada. Depois, voltou para o seu gabinete e fechou a porta. Agora, totalmente só, deu uma olhada no relógio. Eram sete e trinta e sete. Foi até o centro de comunicações, ligou dois interruptores de microfone e apertou o botão de transmissão.
Daí a um momento, ouviu o ruído de estática, e a voz sonolenta de Casey:
— Sim, Linc?
— Jerônimo — disse ele, claramente, ao microfone. Fez-se uma longa pausa.
— Saquei — disse ela. O alto-falante emudeceu.
9h40m
O Rolls saiu da balsa de automóveis que ligava Kowloon à ilha de Hong Kong, e virou para o leste, na Connaught Road, entrando no tráfego denso. A manhã estava quente, úmida e sem nuvens, sob um sol agradável. Casey afundou-se mais no banco traseiro. Deu uma olhada no relógio de pulso, com a excitação aumentando.
— Tempo de sobra, senhorita — disse o chofer, de olhar atento. — Casa Nobre fim da rua, prédio alto. Dez, quinze minutos, não se preocupe.
— Ótimo.
"Isto é que é vida", disse para si mesma. "Um dia também vou ter um Rolls só meu, e um chofer chinês garboso, calmo e educado, e não vou ter que me preocupar com o preço da gasolina. Nunca mais. Quem sabe agora — finalmente — vou botar as mãos no meu dinheiro do não enche." Sorriu consigo mesma. Linc fora o primeiro a lhe explicar sobre o dinheiro do não enche. Ele o chamava de dinheiro do foda-se. O bastante para dizer "foda-se" a qualquer um ou a qualquer coisa.
— O dinheiro do foda-se é o mais valioso do mundo... porém o mais caro — dissera. — Se você trabalhar para mim, comigo, mas para mim, ajudo você a conseguir o seu dinheiro do foda-se. Mas Casey, não sei se vai querer pagar o preço.
— Qual é o preço?
— Não sei. Só sei que varia de pessoa para pessoa... e sempre custa mais do que se está preparado a pagar.
— O seu custou?
— Ah, custou, sim.
"Bom", pensou ela, "por enquanto o preço ainda não foi alto demais. Ganho cinqüenta e dois mil dólares por ano, minha verba de representação é boa, e meu trabalho puxa pelo cérebro. Mas o governo me taxa demais, e nunca sobra o bastante para ser o dinheiro do não enche."
— O dinheiro do não enche vem de uma negociata — dissera Linc. — Não do fluxo de caixa.
"De quanto preciso?"
Nunca se fizera esta pergunta antes.
"Quinhentos mil? A sete por cento, dará trinta e cinco mil dólares por ano para sempre, mas tributável. E quanto à garantia do governo mexicano de onze por cento, menos um por cento para eles pelo seu esforço? Ainda tributáveis. Em obrigações não-tributáveis a quatro por cento dá vinte mil, mas as obrigações são perigosas, e a gente não arrisca o dinheiro do não enche."
— Esta é a primeira regra, Casey — dissera Linc. — A gente nunca o arrisca. Nunca. — E então dera uma das suas risadas gostosas, que sempre a desarmava. — A gente nunca arrisca o nosso dinheiro do foda-se exceto uma ou duas vezes, quando decide fazê-lo.
"Um milhão? Dois? Três?
"Concentre-se na reunião e pare de sonhar", disse consigo mesma. "Vou parar, mas meu preço é dois milhões em espécie no banco. Isentos de impostos. É isso o que quero. Dois milhões a 5,25 por cento, isentos de impostos, me darão cento e cinco mil dólares por ano. E isso dará a mim e à minha família tudo o que quero, dinheiro de sobra para sempre. E ainda posso conseguir mais do que 5,25 para o meu dinheiro.
"Mas, como obter dois milhões isentos de impostos?
"Não sei. Mas sinto que aqui é o lugar para isso."
O Rolls parou de repente quando uma massa de pedestres passou por entre as filas apertadas de carros e ônibus de dois andares, táxis, caminhões, carroças, furgões, bicicletas, carrinhos de mão e alguns jinriquixás. Milhares de pessoas andavam apressadas de um lado para outro, entrando ou saindo de becos e ruas laterais, saltando das calçadas para o meio da rua na hora do maior movimento matutino. Rios de formigas humanas.
Casey pesquisara muito sobre Hong Kong, mas ainda assim não estava preparada para o impacto que o excesso incrível de gente lhe causara.
— Nunca vi nada igual, Linc — dissera pela manhã, quando ele chegou ao hotel, pouco antes de ela sair para a reunião. — Passava das dez horas quando viemos do aeroporto para cá, mas havia milhares de pessoas na rua, inclusive crianças, e tudo, restaurantes, mercados e lojas, ainda estava aberto.
— Gente quer dizer lucro... por que outro motivo estamos aqui?
— Estamos aqui para usurpar o domínio da Casa Nobre sobre a Ásia com a ajuda e o conluio secretos de um Judas Iscariotes, John Chen. Linc riu com ela.
— Correção. Estamos aqui para fazer um negócio com Struan, e para dar uma olhada nas coisas.
— Quer dizer que o plano mudou?
— Taticamente, sim. A estratégia é a mesma.
— Por que a mudança, Linc?
— Charlie me telefonou ontem à noite. Acabamos de comprar mais duzentas mil ações da Rothwell-Gornt.
— Então, a proposta para a Struan é só para despistar, e o nosso alvo real é a Rothwell-Gornt?
— Ainda temos três alvos: a Struan, a Rothwell-Gornt e as Propriedades Asiáticas. Damos uma olhada e esperamos. Se as coisas estiverem com boa cara, atacamos. Se não, poderemos ganhar cinco, quem sabe oito milhões este ano na nossa transação legal com a Struan. É um maná.
— Não está aqui pelos cinco ou oito milhões. Qual o verdadeiro motivo?
— Prazer.
O Rolls avançou mais alguns metros, depois parou de novo, com o tráfego agora mais denso, à medida que se acercavam da zona central. "Ah, Linc", pensou ela, "seu prazer abrange uma infinidade de piratarias."
— Sua primeira visita a Hong Kong, senhorita? — perguntou o chofer, interrompendo seus pensamentos.
— É, sim. Cheguei ontem à noite.
— Ah, que bom. Tempo muito ruim, não se preocupe. Muito mau cheiro, muito úmido. Sempre úmido no verão. Primeiro dia bonito, heya?
O primeiro dia começara com o toque agudo do transmissor-receptor da faixa do cidadão despertando-a. E "Jerônimo".
Era a palavra de código deles para "perigo... cuidado". Tomara banho e se vestira rapidamente, sem saber de onde vinha o perigo. Acabara de colocar as lentes de contato, quando o telefone tocou.
— Aqui fala o superintendente Armstrong. Desculpe incomodá-la tão cedo, srta. Tcholok, mas pode me receber por um momento?
— Claro, superintendente. — Hesitara. — Daqui a cinco minutos... encontro-o no restaurante?
Encontraram-se, e ele a interrogara, contando-lhe apenas que fora descoberto contrabando no avião.
— Há quanto tempo trabalha para o Sr. Bartlett?
— Diretamente, há seis anos.
— Houve algum problema com a polícia antes? De qualquer tipo?
— Quer dizer com ele... ou comigo?
— Com ele. Ou com a senhorita.
— Nenhum. O que foi que encontraram a bordo, superintendente?
— Não parece muito preocupada, srta. Tcholok.
— E por que estaria? Não fiz nada de ilegal, e nem Linc. Quanto à tripulação, são profissionais escolhidos a dedo; portanto, duvido que se metessem com contrabando. São drogas, não é? Que tipo de drogas?
— Por que seriam drogas?
— Não é isso o que se contrabandeia para cá?
— Foi um carregamento muito grande de armas.
— O quê?
Ele fizera mais perguntas, à maioria das quais ela respondera, e depois Armstrong se fora. Ela terminara o café, e recusara, pela quarta vez, os pãezinhos franceses quentinhos, feitos em casa, que um garçom jovem, sorridente e engomado, lhe oferecia. Lembravam-lhe os que comera no sul da França, há três anos.
"Ah, Nice e Cap-d'Ail e o vin da Provença! E o querido Linc", pensara, voltando à suíte para esperar seu telefonema.
— Casey? Ouça, o...
— Ah, Linc, que bom que ligou — dissera imediatamente, interrompendo-o de propósito. — O superintendente Armstrong esteve aqui há alguns minutos... e esqueci de lembrar-lhe ontem à noite para ligar para Martin, sobre as ações.
"Martin" também era uma palavra em código, que significava "Acho que estão escutando esta conversa".
— Também pensei nele. Mas agora não tem importância. Conte-me exatamente o que aconteceu.
Ela contou. E ele relatou brevemente o que se passara.
— Conto mais detalhes quando chegar aí. Estou indo direto para o hotel. Que tal a suíte?
— Fantástica! A sua se chama Riacho Fragrante. Meu quarto é contíguo, acho que normalmente faz parte dela. Parece que aqui há dez criados de quarto por suíte. Pedi um café no quarto, e ele chegou numa bandeja de prata antes que eu desligasse o telefone. Os banheiros são tão grandes que neles seria possível oferecer um coquetel para vinte pessoas, com um conjunto de três músicos.
— Ótimo. Espere por mim.
Ela ficou sentada num dos sofás de couro da sala de estar luxuosa, esperando, saboreando a qualidade de tudo o que a cercava. Lindas cômodas chinesas laqueadas, um bar bem-provido num nicho espelhado, arranjos de flores discretos e uma garrafa de uísque escocês com monograma — Lincoln Bartlett —, com os cumprimentos do gerente-geral. A suíte dela, com uma porta de comunicação, de um lado; a suíte dele, a principal, do outro. Ambas eram as maiores que já vira, com camas de tamanho extragrande.
Por que haviam colocado armas no avião, e quem o teria feito?
Imersa em seus pensamentos, olhou pela janela, que ia de parede a parede, e fitou a ilha de Hong Kong e o imponente Pico, a montanha mais alta da ilha. A cidade, chamada Vitória em homenagem à rainha Vitória, começava ao nível do mar, depois se erguia, camada sobre camada, na periferia das montanhas vivamente inclinadas, diminuindo à medida que os morros se elevavam, mas ainda assim havia prédios de apartamentos próximos ao topo. Dava para ver um deles logo acima do terminal do funicular do Pico. "A vista de lá deve ser fantástica", pensou Casey, distraidamente.
A água azul rebrilhava lindamente, o porto tinha um tráfego tão denso quanto as ruas de Kowloon, lá embaixo. Navios de passageiros e cargueiros estavam ancorados ou amarrados aos cais de Kowloon, ou entrando e saindo, as sereias tocando alegremente. Lá no estaleiro, no lado de Hong Kong, via-se um destróier da Marinha Real, e, ancorada perto dele, uma fragata cinza-escura da marinha americana. Havia centenas de juncos de todos os tamanhos e idades — na sua maior parte barcos de pesca —, alguns movidos a motor, outros velejando imponentes para lá e para cá. Balsas de dois andares, abarrotadas, entravam e saíam do porto com a leveza de libélulas, e por toda parte sampanas, movidas a remo ou a motor, cruzavam destemidas as faixas marítimas estabelecidas.
"Onde mora toda essa gente?", perguntava-se a moça, estupefata. "E como ganha o seu sustento?"
Um criado de quarto abriu a porta com a sua chave-mestra, sem bater, e Linc Bartlett entrou no aposento.
— Está com ótimo aspecto, Casey — falou, fechando a porta atrás de si.
— Você também. Essa história das armas é coisa feia, não é?
— Alguém aqui? Alguma empregada nos quartos?
— Estamos sozinhos, mas os criados de quarto parece que entram e saem ao seu bel-prazer.
— Aquele já estava com a chave na mão antes que eu chegasse ao quarto. — Linc contou-lhe o que acontecera no aeroporto. A seguir, baixou a voz. — E quanto a John Chen?
— Nada. Conversou fiado, nervosamente. Não queria discutir negócios. Acho que não conseguiu se recuperar do fato de eu ser mulher. Deixou-me aqui no hotel e disse que mandariam um carro apanhar-me às nove e quinze.
— Quer dizer que o plano deu certo.
— Certíssimo.
— Ótimo. Conseguiu?
— Não. Disse-lhe que estava autorizada por você a aceitar a entrega e ofereci a letra à vista inicial. Mas fingiu surpresa e disse que falaria com você em particular logo mais, depois do almoço. Parecia muito nervoso.
— Não importa. Seu carro chegará daqui a alguns minutos. Vejo-a na hora do almoço.
— Devo mencionar as armas à Struan? A Dunross?
— Não. Vamos esperar para ver quem toca no assunto.
— Acha que podem ter sido eles?
— Tranqüilamente. Conheciam o nosso plano de vôo, e têm um motivo.
— Qual?
— Desacreditar-nos.
— Mas por quê?
— Talvez pensem que conhecem o nosso plano de batalha.
— Mas, então, não teria sido bem mais sensato da parte deles não fazer nada... e tentar nos passar a perna?
— Talvez. Mas deste modo fizeram a jogada inicial. Primeiro dia: cavalo na casa 3 do bispo do rei. Teve início o ataque contra nós.
— É. Mas da parte de quem? E estamos jogando com as brancas ou as pretas?
Seus olhos se endureceram, perderam o ar amistoso.
— Não me importo, Casey, contanto que vençamos. E foi embora.
"Está acontecendo alguma coisa", disse consigo mesma. "Alguma coisa perigosa, que ele não quer me contar."
— O sigilo é vital, Casey — dissera ele, nos primeiros dias do seu relacionamento. — Napoleão, César, Patton... qualquer um dos grandes generais... geralmente escondiam seu plano real dos seus assessores. Só para mantê-los, e portanto aos espiões inimigos, meio no ar. Se eu esconder algo de você, Casey, não significa falta de confiança. Mas você nunca deve esconder nada de mim.
— Isso não é justo.
— A vida não é justa. A morte não é justa. A guerra não é justa. Os negócios em grande escala são uma guerra. Ajo como se estivesse numa guerra, e é por isso que vou ganhar.
— Ganhar o quê?
— Quero que as Indústrias Par-Con sejam maiores do que a General Motors e a Esso juntas.
— Por quê?
— Porra, para o meu prazer.
— Agora, conte-me o motivo real.
— Ah, Casey, é por isso que a amo. Você escuta e sabe.
— Ah, Incursor, eu também o amo.
Então, os dois riram juntos, pois sabiam que não se amavam, não no sentido comum da palavra. Tinham combinado, desde o começo, deixar de lado o comum pelo extraordinário. Durante sete anos.
Casey olhou pela janela para o porto e os navios no porto.
"Esmagar, destruir e ganhar. Os Grandes Negócios, o jogo Monopólio mais excitante do mundo. E o meu líder é o Incursor Bartlett, o Perito Mestre no jogo. Mas o nosso tempo está se esgotando, Linc. Este ano, o sétimo ano, o último ano, termina com o meu aniversário, 25 de novembro, o meu vigésimo sétimo aniversário..."
Ouviu a meia batida e a chave-mestra na fechadura, e virou-se para dizer "Entre", mas o camareiro engomado já tinha entrado.
— Bom dia, senhorita, sou o Camareiro Diurno Número Um Chang. — Chang era grisalho e solícito. Abriu um sorriso.
— Arrumar quarto, por favor?
— Nenhum de vocês espera que a gente mande entrar?
— perguntou, bruscamente.
Chang fitou-a, confuso.
— Senhorita?
— Ah, deixe pra lá — respondeu, cansadamente.
— Lindo dia, heya? Qual primeiro, o quarto do Patrão ou da senhorita?
— O meu. O Sr. Bartlett ainda não usou o dele.
Chang abriu um sorriso cheio de dentes. "Ayeeyah, você e o Patrão treparam no seu quarto, senhorita, antes que ele saísse? Mas transcorreram apenas catorze minutos entre a chegada e a partida do Patrão, e ele não parecia afogueado, quando foi embora.
"Ayeeyah, primeiro deviam ser dois demônios estrangeiros homens partilhando a minha suíte, e depois um deles é ela... confirmado pelo Noturno Ng, que, naturalmente, revistou toda a bagagem e encontrou provas concretas de que ela era mesmo uma verdadeira mulher — provas confirmadas com grande satisfação pela Terceira Arrumadeira Fung!
"Pêlos púbicos dourados! Que repelente!
"E a Pêlos Púbicos Dourados não apenas não é a primeira mulher do Patrão... não é sequer uma segunda mulher, e oh ko, pior ainda, não teve a educação de fingir que era, para que as regras do hotel pudessem ser seguidas e ninguém ficasse desprestigiado."
Chang riu alto, pois aquele hotel sempre tivera as regras mais espantosas sobre senhoras nos quartos dos homens — oh, deuses, para que serviam as camas? —, e agora uma mulher bárbara estava vivendo abertamente em pecado! Ah, como os gênios tinham se exaltado, na véspera! Bárbaros! Dew neh loh moh para todos os bárbaros! Mas aquela sem dúvida era um dragão, pois enfrentara e vencera o assistente de gerente eurasiano, o gerente da noite eurasiano, e até mesmo o velho hipócrita, o Gerente-Geral Grande Vento em pessoa.
— Não, não, não — choramingara ele, segundo haviam contado a Chang.
— Sim, sim, sim — replicara ela, insistindo em ficar com a metade adjacente da suíte Riacho Fragrante.
Fora então que o Honorável Mong, porteiro-chefe e chefe de uma tríade, portanto líder do hotel, solucionara o que não tinha solução.
— A suíte do Riacho Fragrante tem três portas, heya? — dissera. — Uma para cada quarto, uma para a sala principal. Levem-na para o Riacho Fragrante B, que é o quarto inferior, pela sua própria porta. Mas a porta interna para a sala principal, e daí para o quarto do Patrão, ficará bem trancada. Mas que haja uma chave à vista. Se a meretriz hipócrita destrancar a porta pessoalmente... o que se pode fazer? E depois, se houver uma confusão nas reservas amanhã ou depois, e o nosso honorável gerente-geral tiver que pedir ao bilionário e à sua vagabunda da Terra da Montanha Dourada para saírem, bem, lamentamos muito, e não se preocupem, temos reservas de sobra, e temos que proteger a nossa dignidade.
E assim fora feito.
"A porta externa da parte B foi destrancada, e mandaram a Pêlos Púbicos Dourados entrar. Quem pode dizer se ela pegou a chave e destrancou de imediato a porta interna? Que a porta está aberta agora, bem, certamente eu jamais contarei a alguém de fora, meus lábios estão selados. Como sempre.
"Ayeeyah, mas embora as portas externas possam estar trancadas e ser modestas, as internas podem estar escancaradas e ser deliciosas. Como o Portão de Jade dela", refletiu. "Dew neh loh moh, como será invadir um Portão de Jade do tamanho do dela?"
— Faço a cama, senhorita? — perguntou meigamente, em inglês.
— Pode ir em frente.
"Oh, como é horrível o som da língua bárbara deles. Ugh!"
O Diurno Chang gostaria de escarrar e lançar longe o deus cuspe, mas era contra as regras do hotel.
— Heya, Diurno Chang — disse a Terceira Arrumadeira Fung, alegremente, quando entrou no quarto, depois de ter batido debilmente na porta da suíte, muito depois de tê-la aberto. — Sim, senhorita, desculpe, senhorita — em inglês, depois de novo para Chang, em cantonense. — Ainda não acabou? A bosta dela é tão doce que quer ficar remexendo nas suas gavetas?
— Dew neh loh moh para você, Irmã. Cuidado com a língua, senão seu velho pai pode lhe dar uma boa sova.
— A única sova que sua velha mãe quer, você não pode me ajudar a ganhar! Vamos, deixe-me ajudá-lo a fazer depressa a cama dela. Daqui a meia hora vai começar um jogo de moh-jong. O Honorável Mong mandou que viesse buscá-lo.
— Ah, obrigado, Irmã. Heya, viu mesmo os pêlos púbicos dela?
— Já não lhe contei? Por acaso sou mentirosa? São bem dourados, mais claros ainda que os cabelos. Ela estava no banho, e eu estava tão perto dela quanto agora de você. Ah, e os mamilos dela são rosados, não marrons.
— Eeee! Imagine!
— Como os de uma porca.
— Que coisa horrível.
— É. Leu o Commercial Daily de hoje?
— Não, Irmã, ainda não. Por quê?
— Bem, o astrólogo diz que esta é uma excelente semana para mim, e hoje o editor financeiro diz que parece que vai começar uma nova alta.
— Dew neh loh moh, não diga!
— Então, disse ao meu corretor hoje de manhã para comprar mais mil da Casa Nobre, o mesmo da Balsa Dourada, quarenta da Segunda Grande Casa e cinqüenta da Propriedades Boa Sorte. Meus banqueiros são generosos, mas agora não tenho uma só moeda em Hong Kong que possa pedir de esmola ou emprestada.
— Eeee, está se enchendo de dívidas, Irmã. Eu mesmo já me encalacrei. Na semana passada fiz um empréstimo no banco dando como garantia as minhas ações, e comprei mais seiscentas da Casa Nobre. Isso foi terça-feira. Comprei-as a 25,23!
— Ayeeyah, Honorável Chang, elas fecharam a 29,41, ontem à noite. — A Terceira Arrumadeira Fung fez um cálculo automático. — Já está dois mil trezentos e quarenta e oito HK na frente! E estão dizendo que a Casa Nobre vai fazer uma proposta às Propriedades Boa Sorte. Se tentarem, vão deixar os inimigos fervendo de raiva. Ah! O tai-pan da Segunda Grande Casa vai se danar todo.
— Oh, oh, oh, mas enquanto isso as ações vão subir como doidas! De todas as três companhias! Ah! Dew neh loh moh, onde posso arrumar mais dinheiro?
— Nas corridas, Diurno Chang! Peça emprestado quinhentas, contra os seus ganhos atuais, e ponha tudo na dupla diária do sábado, ou na loteria dupla. Meus números de sorte são o 4 e o 5...
Ambos ergueram os olhos quando Casey entrou no quarto. Chang passou a falar em inglês:
— Sim, senhorita?
— Há roupa suja no banheiro. Pode mandar apanhar, por favor?
— Claro, dou um jeito. Hoje seis horas tudo certo, não se preocupe.
"Esses demônios estrangeiros são tão burros!", pensou Chang, desdenhosamente. "O que sou eu, um monte de bosta desmiolado? Claro que vou cuidar da roupa suja, se houver roupa suja."
— Obrigada.
Ambos olharam fascinados enquanto ela retocava a maquilagem no espelho do quarto, preparando-se para sair.
— As mamas dela não são nem um pouco caídas, não é, Irmã? — comentou Chang. — Mamilos rosados, heya? Extraordinário!
— Como os de uma porca, já lhe disse. Será que suas orelhas não passam de penicos para se urinar nelas?
— Na sua orelha, Terceira Arrumadeira Fung.
— Ela já lhe deu gorjeta?
— Não. O Patrão deu demais, e ela não deu nada. Revoltante, heya?
— É. O que se pode fazer? O povo da Montanha Dourada é mesmo muito pouco civilizado, não é, Diurno Chang?
9h50m
O tai-pan surgiu de trás do morro e desceu à toda a Peak Road no seu Jaguar modelo E, indo para o leste, na direção da Magazine Gap. Na estrada sinuosa havia uma só faixa de cada lado, com poucos lugares para a ultrapassagem e beirando precipícios na maioria das curvas. Naquele dia a superfície estava seca, e, conhecendo bem o caminho, Ian Dunross fazia as curvas rápida e docemente, colado às montanhas, seu conversível escarlate firme nas curvas internas. Engrenou a marcha de corrida e desceu desabalado, freando com força ao fazer uma curva e deparar com um caminhão antiquado e vagaroso. Esperou com paciência, depois, na hora exata, saiu na contramão e fez a ultrapassagem com segurança antes que o carro que vinha na direção oposta houvesse dobrado a curva cega logo adiante.
Agora, Dunross estava livre durante um certo trecho, e podia ver que a estrada sinuosa à sua frente estava vazia. Pisou fundo no acelerador e fez algumas curvas ocupando a estrada inteira, seguindo a linha mais reta, usando mãos, olhos, pés e mudanças em uníssono, sentindo o imenso poder da máquina e das rodas em todo o seu ser. Bem à frente, subitamente, apareceu um caminhão dobrando a curva, vindo em sua direção, e sua liberdade desapareceu. Mudou de marcha e freou em cima da hora, colando-se no seu lado da estrada, lamentando a perda da liberdade. Depois acelerou e voltou a entrar firme nas curvas perigosas. Agora surgia um outro caminhão, desta feita cheio de passageiros, e ele esperou alguns metros, atrás dele, sabendo que durante certo tempo não havia como ultrapassar. Foi então que uma das passageiras notou o número da sua chapa, 1-1010, apontou, e todos olharam, tagarelando excitados uns com os outros, e um deles bateu na boléia do caminhão. O motorista, gentilmente, saiu da estrada para o minúsculo acostamento, e fez-lhe sinal para passar. Dunross certificou-se de que era seguro, depois passou, acenando-lhes e sorrindo.
Mais curvas, a velocidade, a espera para ultrapassar, a ultrapassagem e o perigo dando-lhe prazer. A seguir, virou à esquerda na Magazine Gap Road, desceu o morro, as curvas mais traiçoeiras, o tráfego aumentando e tornando-se mais vagaroso. Ultrapassou um táxi e três carros com muita velocidade, e estava de volta à sua faixa, embora ainda acima do limite permitido, quando viu os policiais de trânsito de motocicleta, logo à frente. Mudou de marcha e passou por eles na velocidade permitida de cinqüenta quilômetros por hora. Acenou-lhes, bem-humorado. Eles retribuíram o aceno.
— Você precisa andar mais devagar, Ian — havia lhe dito seu amigo Henry Foxwell, superintendente-chefe do tráfego. — Precisa mesmo.
— Nunca sofri um acidente... ainda. Nem fui multado.
— Santo Deus, Ian, não há um guarda de tráfego nesta ilha que tenha coragem de multá-lo! Você, o tai-pan? Deus o livre. Estou falando para o seu próprio bem. Guarde bem guardado o seu demônio da velocidade para Mônaco, ou para sua Corrida da Estrada de Macau.
— Mônaco é para profissionais. Não me arrisco, e além disso não corro tanto assim.
— Cento e cinco quilômetros por hora em Wongniechong não é exatamente devagar, meu velho. Vamos admitir que fossem quatro horas e vinte e três minutos da manhã e a estrada estivesse quase vazia. Mas é uma zona de cinqüenta quilômetros horários.
— Há muitos modelos E em Hong Kong.
— É, concordo. Sete. Mas conversíveis escarlates com uma placa de número especial? Com capota de lona preta, rodas e pneus de corrida que fazem um barulhão dos diabos? Foi na quinta-feira, meu velho. Radar e tudo o mais. Você tinha ido... visitar amigos. Na Sinclair Road, creio.
Dunross controlou a sua ira súbita.
— É? — disse, a superfície do rosto ostentando um sorriso. — Quinta-feira? Parece que fui jantar com John Chen naquele dia. No apartamento dele, no Sinclair Towers. Mas pensei que tinha chegado a casa muito antes das quatro e vinte e três.
— Ah, com certeza chegou. Decerto o policial se enganou quanto à placa, à cor e a tudo o mais. — Foxwell bateu-lhe nas costas, amistosamente. — Mesmo assim, ande um pouco mais devagar, sim? Seria muito chato se você se matasse durante a minha gestão. Espere até me transferirem de novo para a Seção Especial... ou para a escola de polícia, sim? É, estou certo que ele cometeu um engano.
"Não há engano", disse Dunross consigo mesmo. "Você sabe, eu sei, John Chen devia saber e Wei-wei também.
"Com que então vocês estão sabendo sobre Wei-wei! Que interessante!"
— Vocês estão me vigiando? — perguntou, sem rodeios.
— Santo Deus, não! — Foxwell ficou chocado. — O Serviço Especial de Informações estava vigiando um bandido que tem um apartamento no Sinclair Towers. Aconteceu de você ser visto. É uma pessoa muito importante aqui, sabe disso. Chegou aos meus ouvidos através de certos canais. Sabe como é.
— Não, não sei.
— Dizem que para bom entendedor meia palavra basta, meu velho.
— É o que dizem. Então, é melhor avisar ao seu pessoal do Serviço de Informações para ser mais inteligente no futuro.
— Felizmente, são muito discretos.
— Mesmo assim, não quero que meus movimentos sejam registrados.
— Estou certo de que não são.
— Ótimo. Que bandido mora no Sinclair Towers?
— Um dos nossos informantes capitalistas, mas secretamente suspeito de ser um camarada comuna. Muito tedioso, mas o sei tem que ganhar o pão nosso de cada dia, não é?
— Será que o conheço?
— Imagino que conheça todo mundo.
— É xangaiense ou cantonense?
— O que o faz pensar que seja uma coisa ou outra?
— Ah, então é europeu?
— É só um bandido, Ian. Lamento, mas ainda está tudo sob sigilo.
— Qual é, aquele bloco de apartamentos é nosso! Quem foi? Não vou abrir a boca.
— Eu sei. Desculpe, meu velho, mas não posso. Contudo, tenho outra idéia hipotética para você. Digamos que um VIP casado tenha uma amiguinha cujo tio é o subchefe secreto da polícia secreta ilegal do Kuomintang em Hong Kong. Digamos, hipoteticamente, que o Kuomintang quisesse o tal VIP do seu lado. Claro que ele poderia ser pressionado pela amiguinha. Não acha?
— Acho — disse Dunross, tranqüilamente —, se ele fosse burro.
Sabia tudo sobre o tio de Wei-wei Jen, e se encontrara com ele várias vezes, em diversas festas particulares em Taipé. E simpatizara com ele. "Nenhum problema por esse lado", pensara, "porque ela não é minha amante nem minha amiguinha, embora muito linda e desejável. E tentadora."
Sorriu consigo mesmo ao entrar no fluxo de tráfego da Magazine Gap Road, depois esperou na fila para fazer o balão e descer a Garden Road na direção da Central, a uns oitocentos metros, e em direção ao mar.
Agora podia ver o altíssimo bloco de escritórios modernos que era a Struan. Tinha vinte e dois andares, ficava de frente para a Connaught Road e para o mar, quase em frente ao Terminal da Balsa Dourada, cujas balsas trafegavam entre Hong Kong e Kowloon. Como sempre, a vista lhe era agradável.
Foi serpenteando pelo tráfego denso sempre que podia, passou se arrastando pelo Hilton Hotel e pelo campo de críquete à sua esquerda, depois entrou na Connaught Road, com suas calçadas abarrotadas de pedestres. Parou diante da entrada principal.
"Hoje é o grande dia", pensou. "Os americanos chegaram.
"E, com sorte, Bartlett será a corda que enforcará Quillan Gornt para todo o sempre. Santo Deus, se isso der certo!"
— Bom dia, senhor — cumprimentou vivamente o porteiro uniformizado.
— Bom dia, Tom.
Dunross esgueirou-se de dentro do carro baixo e subiu correndo os degraus de mármore, de dois em dois, na direção da imensa entrada de vidro. Outro porteiro foi guardar o carro na garagem subterrânea, e um terceiro abriu-lhe a porta de vidro. Percebeu na porta o reflexo do Rolls que se acercava. Reconhecendo-o, olhou para trás. Casey saltou, e ele deu um assobio involuntário. Carregava uma pasta. Usava um costume de seda verde-mar, muito conservador, mas que não conseguia esconder a esbelteza do corpo, ou a graça do andar, o tom de verde realçando o louro-queimado do seu cabelo.
Ela olhou à sua volta, sentindo o olhar dele. Reconheceu-o imediatamnete, e avaliou-o como ele a avaliara; embora o instante fosse breve, pareceu longo a ambos. Longo e descontraído.
Ela se mexeu primeiro e dirigiu-se a ele, que veio encontrá-la a meio caminho.
— Alô, Sr. Dunross.
— Alô. Nunca nos vimos antes, não é?
— Não. Mas é fácil reconhecê-lo pelas suas fotografias. Não esperava ter o prazer de conhecê-lo, senão mais tarde. Sou Cas...
— Sei — disse, abrindo um sorriso. — Recebi um telefonema perturbado de John Chen, ontem à noite. Bem-vinda a Hong Kong, srta. Tcholok. É senhorita, não?
— É. Espero que o fato de eu ser mulher não vá atrapalhar demais as coisas.
— Ah, vai sim, e muito. Mas tentaremos contornar o problema. A senhorita e o Sr. Bartlett aceitariam ser meus convidados para as corridas de sábado? Com almoço e tudo?
— Eu gostaria muito. Mas terei que consultar Linc... posso confirmar hoje à tarde?
— Claro. — Ele olhou para ela, que retribuiu o olhar. O porteiro ainda mantinha a porta aberta. — Bem, vamos indo, srta. Tcholok, e que a batalha comece.
Ela lançou-lhe um rápido olhar.
— Por que falar em batalha? Estamos aqui para tratar de negócios.
— Ah, sim, claro. É só um ditado de Sam Ackroyd. Explico outra hora. — Fê-la entrar no prédio e dirigiu-se para os elevadores. As muitas pessoas nas filas, esperando, imediatamente se afastaram para que eles entrassem no primeiro elevador, deixando Casey embaraçada. — Obrigado — falou Dunross, sem achar aquilo fora do comum. Fê-la entrar, apertou o botão superior, do vigésimo andar, notando distraidamente que a moça não usava perfume ou jóias, apenas uma fina corrente de ouro no pescoço.
— Por que a porta da frente está inclinada? — perguntou ela.
— Como?
— A entrada da frente me pareceu ligeiramente inclinada, não está em linha reta... fiquei imaginando o motivo.
— É muito observadora. A resposta é fung sui. Quando o prédio foi construído, há quatro anos, não sei como esquecemos de consultar o nosso homem do fung sui. Ele é como um astrólogo, um homem que se especializa em céu, terra, correntezas e demônios, esse tipo de coisa, e se certifica de que o prédio foi construído nas costas do Dragão da Terra, e não na sua cabeça.
— Como?
— É isso mesmo. Sabe, cada prédio em toda a China ergue-se sobre alguma parte do Dragão da Terra. Ficar nas costas dele é perfeito, mas ficar na cabeça é muito ruim, e é terrível ficar no seu globo ocular. Bem, quando resolvemos consultá-lo, o nosso homem do fung sui disse que estávamos sobre as costas do Dragão, graças a Deus, caso contrário teríamos que nos mudar, mas que os demônios estavam entrando pela porta, e que essa era a razão dos problemas. Ele me aconselhou a mudar a porta de posição, e assim, sob a orientação dele, mudamos o ângulo, e agora todos os demônios foram afastados.
Ela riu.
— Agora, conte-me o verdadeiro motivo.
— Fung sui. Tivemos muito azar por aqui, um azar dos diabos, para falar a verdade, até que a porta foi mudada. — O rosto dele se endureceu momentaneamente, depois a sombra passou. — No momento em que modificamos o ângulo, tudo ficou bom novamente.
— Está querendo me dizer que acredita mesmo nisso? Em demônios e dragões?
— Não acredito em nada disso. Mas a gente aprende, a duras penas, que quando se está na China é bom agir um pouco à chinesa. Nunca se esqueça de que, embora Hong Kong seja britânica, ainda fica na China.
— Aprendeu a du...
O elevador parou e a porta se abriu, dando para um corredor de lambris, uma escrivaninha e uma recepcionista chinesa elegante e eficiente. Os olhos dela avaliaram instantaneamente o preço das roupas de Casey.
"Vaca", pensou Casey, lendo os pensamentos dela, e retribuiu o sorriso com igual doçura.
— Bom dia, tai-pan — disse suavemente a recepcionista.
— Mary, esta é a srta. K. C. Tcholok. Por favor, leve-a ao escritório do Sr. Struan.
— Ah, mas... — Mary Li tentou disfarçar o choque. — Eles, bem, estão esperando um... — Pegou no telefone, mas ele a deteve.
— Basta levá-la. Agora. Não há necessidade de anunciá-la. — Virou-se para Casey e sorriu. — É a sua vez. Até breve.
— Obrigada. Até logo.
— Por favor, queira vir comigo, srta. Tchuluk — falou Mary Li, e começou a descer o corredor, com o cheong-sam justo e aberto no alto das coxas, pernas longas com meias de seda e andar atrevido. Casey observou-a por um momento. "Deve ser o corte que torna o andar delas tão descaradamente sensual", pensou, achando divertida tal demonstração óbvia. Lançou um olhar para Dunross, e alçou uma das sobrancelhas.
Ele abriu um sorriso.
— Até logo, srta. Tcholok.
— Por favor, chame-me de Casey.
— Quem sabe eu prefira Kamalian Ciranoush. Ela o olhou, de boca aberta.
— Como sabe os meus nomes? Duvido que até mesmo Linc se lembre deles.
— Ah, vale a pena ter amigos em posições influentes, não é? — disse, com um sorriso. — À bientôt.
— Oui, merci — replicou ela, automaticamente.
Ele se dirigiu para o elevador em frente e apertou o botão. As portas se abriram instantaneamente e se fecharam às suas costas.
Pensativa, Casey seguiu Mary Li, que esperava, ouvido atento a cada nuança. Dentro do elevador, Dunross pegou uma chave, enfiou na fechadura e girou. Agora, o elevador estava ativado. Servia apenas aos dois andares superiores. Apertou o botão inferior. Somente três pessoas tinham chaves semelhantes: Claudia Chen, sua secretária-executiva, Sandra Yi, sua secretária particular, e o seu Criado Número Um Lim Chu.
No vigésimo primeiro andar ficavam seus escritórios particulares, e a sala da diretoria da assembléia interna. No vigésimo segundo, a cobertura, ficava a suíte pessoal do tai-pan. E somente ele possuía a chave para o último elevador particular que ligava a garagem subterrânea diretamente com a cobertura.
— Ian — dissera o tai-pan que o precedera, Alastair Struan, ao lhe entregar as chaves, depois que Phillip Chen os deixara a sós —, sua privacidade é a coisa mais valiosa que possui. Também isso Dirk Struan especificou no seu legado, e como foi sábio! Nunca se esqueça: os elevadores particulares não são um luxo ou uma ostentação, do mesmo modo que a suíte do tai-pan não o é. Existem apenas para lhe dar uma noção do sigilo de que vai precisar, talvez até de um lugar para se esconder. Vai entender melhor depois de ler o legado e ver o que há no cofre do tai-pan. Proteja esse cofre com todas as armas de que dispuser. Todo o cuidado é pouco, há muitos segredos ali, segredos demais, no meu entender, e alguns não são bonitos.
— Espero não falhar — dissera cortesmente, detestando o primo, seu entusiasmo intenso pela posse do prêmio pelo qual tanto trabalhara e tanto arriscara.
— Não falhará. Não você — dissera o velho, tensamente. — Você foi testado, e quer este cargo desde que se entende por gente, não é?
— É — replicara Dunross. — Tentei me preparar para ele. É. Só estou surpreso por você tê-lo dado a mim.
— Você está recebendo o cargo máximo da Struan não por causa do seu direito inato... ele só lhe dava acesso à assembléia interna... mas porque acho que você é o melhor que temos para me suceder, e há anos você vem tramando, empurrando e forçando a barra. É verdade, não é?
— A Struan precisa de modificações. Vamos falar mais verdades: a Casa Nobre está uma joça. Não é tudo culpa sua, houve a guerra, depois a Coréia, depois Suez, você teve uma longa maré de azar. Levará anos para ficarmos em segurança. Se Quillan Gorn, ou qualquer outro dos nossos vinte inimigos, soubesse metade da verdade, soubesse como estamos endividados, estaríamos afogados nos nossos títulos inúteis em uma semana.
— Nossos títulos têm valor... não são inúteis! Você está exagerando... como sempre!
— Valem vinte centavos em cada dólar, porque não temos capital suficiente, nem fluxo de caixa suficiente, e estamos realmente em perigo mortal.
— Besteira!
— É? — A voz de Dunross se tornara cortante, pela primeira vez. — Rothwell-Gorn podia nos engolir em um mês, se soubesse o valor das nossas atuais contas a receber, comparadas às nossas obrigações prementes.
O velho olhara para ele, sem responder. Depois dissera:
— É uma condição temporária. Oportuna e temporária.
— Besteira! Sabe muito bem que está me dando o cargo porque sou o único homem que pode endireitar a bagunça que vocês deixaram, você, meu pai, e seu irmão.
— É, estou apostando que pode. Isso lá é verdade — explodiu Alastair. — É, você realmente tem a quantidade certa do Demônio Struan no seu sangue para servir a esse amo, se quiser.
— Obrigado. Admito que não vou deixar que nada se interponha no meu caminho. E já que esta é a noite das verdades, posso dizer-lhe por que sempre me odiou, por que meu próprio pai sempre me odiou.
— Pode, é?
— Posso. É porque sobrevivi à guerra, e seu filho, não. E porque seu sobrinho Linbar, o último do seu ramo dos Struans, é um bom rapaz, mas um inútil. É, eu sobrevivi, mas meus pobres irmãos, não, e isso ainda deixa meu pai louco. É ou não é a verdade?
— É — concordou Alastair Struan. — Temo que seja.
— Eu não temo que seja. Eu não temo nada. Vovó Dunross cuidou para que eu não temesse.
— Heya, tai-pan — falou Claudia Chen alegremente quando a porta do elevador se abriu. Era uma eurasiana grisalha e animada, de sessenta e tantos anos, e estava sentada atrás de uma mesa imensa que dominava o saguão do vigésimo primeiro andar. Servia à Casa Nobre há quarenta e dois anos, e aos diversos tai-pans, exclusivamente, há vinte e cinco desses anos. — Neh hoh mah? Como vai?
— Ho, ho — replicou, distraidamente. Bom. E a seguir, em inglês: — Bartlett telefonou?
— Não. — Franziu o cenho. — Não é esperado antes da hora do almoço. Quer que tente localizá-lo?
— Não, deixe para lá. E quanto à minha ligação para Foster, em Sydney?
— Ainda não foi completada. Nem sua ligação para o Sr. MacStruan, em Edimburgo. Algum problema? — perguntou, percebendo instantaneamente a disposição dele.
— O quê? Ah, não, nenhum. — Afastou a sua tensão, passou pela mesa dela, entrou na própria sala, com vista para o porto, e sentou-se na poltrona junto ao telefone. Ela fechou a porta e sentou-se perto dele, com o bloquinho à mão. — Estava apenas recordando o meu Dia D — disse ele. — O dia em que assumi o cargo.
— Ah. Sorte, tai-pan.
— É.
— Sorte — repetiu ela —, e há muito tempo. Ele riu.
— Muito tempo? Quarenta vidas inteiras. Faz três anos, mas o mundo todo mudou, e continua indo depressa. Como serão os próximos dois anos?
— Semelhantes, tai-pan. Ouvi dizer que o senhor se encontrou com a srta. Casey Tcholok na porta de entrada.
— Ei, quem lhe contou? — perguntou, vivamente.
— Pelo bom Deus, tai-pan, não posso revelar as minhas fontes. Mas ouvi dizer que a fitou, e ela ao senhor. Heya?
— Bobagem! Quem lhe falou dela?
— Ontem à noite liguei para o hotel para verificar se tudo estava bem. O gerente me contou. Sabe que aquele idiota ia estar com "a casa cheia"? "Ora, se eles partilham uma suíte ou uma cama, não é da sua conta", disse-lhe eu. "Estamos em 1963, na era moderna, com muita liberação, e de qualquer maneira, é uma bela suíte com suas entradas e quartos separados, e, mais importante ainda, são nossos convidados." — Ela casquinou. — Dei uma de importante... Ayeeyah, o poder é um belo brinquedo.
— Contou ao jovem Linbar, ou aos outros, que K. C. é mulher?
— Não. A ninguém. Sabia que o senhor sabia. Barbara Chen me contou que o Patrão Chen já lhe telefonara contando sobre Casey Tcholok. Que tal é ela?
— "Boa para se levar para a cama", seria uma descrição — disse ele, sorrindo.
— Sei... e que mais? Dunross pensou por um momento.
— É muito atraente, veste-se muito bem, embora muito discretamente hoje, imagino que por nossa causa. Muito confiante e muito observadora; notou que a porta da entrada estava fora de esquadro e me perguntou o motivo. — Apanhou um cortador de papel de marfim e ficou brincando com ele. — John não gostou dela nem um pouquinho. Falou que apostava que ela era uma daquelas mulheres americanas patéticas que são como as frutas da Califórnia: bonitas, vistosas, mas sem gosto algum!
— Pobre Patrão John, embora adore a América, prefere certos... aspectos da Ásia!
Dunross riu.
— Logo vamos ver se ela é uma negociadora astuta. — Sorriu. — Mandei que entrasse sem ser anunciada.
— Aposto cinqüenta HK que pelo menos um deles sabia antecipadamente que ela era mulher.
— Phillip Chen, é claro, mas a velha raposa não diria aos outros. Aposto cem que nem Linbar, nem Jacques ou Andrew Gavallan sabiam.
— Fechado — disse Claudia, satisfeita. — Pode me pagar agora, tai-pan. Verifiquei muito discretamente, hoje de manhã.
— Tire o dinheiro da caixa das despesas — disse ele, com azedume.
— Desculpe. — Estendeu a mão. — Aposta é aposta, tai-pan.
Relutante, ele lhe entregou a nota vermelha de cem dólares.
— Obrigada. Agora, aposto cem que Casey Tcholok vai dar um banho no Patrão Linbar, Patrão Jacques e em Andrew Gavallan.
— O que você está sabendo? — perguntou ele, desconfiado. — Hem?
— Cem?
— Está bem.
— Excelente! — exclamou ela, vivamente, mudando de assunto. — E quanto aos jantares para o Sr. Bartlett? A partida de golfe e a viagem a Taipé? Claro que não vai poder levar uma mulher junto. Devo cancelá-los?
— Não. Vou falar com Bartlett... ele vai compreender. Mas convidei-a para vir com ele às corridas de sábado.
— Ih, vai haver um casal a mais. Vou cancelar os Pangs, não se importarão. Quer sentá-los juntos, à sua mesa? Dunross franziu o cenho.
— Ela deve sentar-se à minha mesa, como convidada de honra, e sente-o ao lado de Penelope, como convidado de honra.
— Pois não. Vou ligar para a sra. Dunross e avisá-la. Ah, e Barbara, a mulher do Patrão John, quer falar com o senhor. — Claudia deu um suspiro e alisou um vinco no seu elegante cheong-sam azul-escuro. — O Patrão John não voltou para casa ontem à noite, não que isso seja algo fora do comum. Mas já são dez e dez, e também não consigo encontrá-lo. Parece que nem compareceu à oração matinal.
— Ê, eu sei. Como ficou com Bartlett ontem à noite, disse-lhe que não precisava comparecer. — Oração matinal era o modo brincalhão com que o pessoal da Struan se referia à reunião obrigatória, realizada todos os dias às oito horas, com todos os diretores administrativos de todas as subsidiárias da Struan e o tai-pan. — Não havia necessidade de ele vir hoje, não tem nada para fazer até a hora do almoço. — Dunross apontou pela janela para o porto. — Está provavelmente no seu barco. Hoje é um dia excelente para se velejar.
— Ela estava muito exaltada, tai-pan, até mesmo pelos padrões dela.
— Ela está sempre exaltada, pobre coitado! John está no barco dele... ou no apartamento de Ming-li. Já ligou para lá?
Ela fungou.
— Seu pai costumava dizer que em boca fechada não entra mosca. Mesmo assim, acho que agora posso lhe contar. Há quase dois meses que Ming-li é a Namorada Número Dois. A nova favorita se chama Flor Fragrante, e ocupa um dos "apartamentos particulares" dele, perto da Aberdeen Main Road.
— Ah, por acaso perto do ancoradouro dele.
— Isso mesmo. Ela é bem uma flor, uma Flor Caída do Cabaré Dragão da Boa Sorte, em Wanchai. Mas também não sabe onde está o Patrão John. Não visitou nenhuma das duas, embora tivesse um encontro marcado com a srta. Flor Caída à meia-noite, segundo ela.
— Como descobriu tudo isso? — perguntou, cheio de admiração.
— Poder, tai-pan... e uma rede de relações construída ao longo de cinco gerações. De que outro modo sobrevivemos, heya? — Deu uma risadinha abafada. — Claro, se quiser um gostinho de escândalo de verdade, John Chen não sabe que ela não era a virgem que ela e seu agente alegavam que era, quando deitou com ela pela primeira vez.
— Hem?
— Não. Pagou ao agente... — Um dos telefones tocou e ela o apanhou e disse: — Um momento, por favor — apertou o botão de espera e continuou alegremente, no mesmo fôlego —...quinhentos dólares americanos à vista, mas todas as lágrimas dela, e todas as... provas, eram fingimento. Pobre coitado, mas bem feito, hem, tai-pan? Por que um homem da idade dele ia querer virgindade para nutrir o yang... ele tem só quarenta e dois anos, heya? — Apertou o botão que soltava a ligação. — Escritório do tai-pan, bom dia — disse, educadamente.
Ele a observava. Sentia-se divertido e perplexo, atônito como sempre com suas fontes de informação, incisivas ou não, e com sua alegria em conhecer segredos. E passá-los adiante. Mas só para os membros do clã, e alguns escolhidos especiais.
— Um momento, por favor. — Apertou o botão de espera. — O superintendente Armstrong gostaria de vê-lo. Está lá embaixo com o superintendente Kwok. Lamenta ter vindo sem marcar hora, mas será que o senhor poderia dar-lhes um momento de atenção?
— Ah, as armas. Nossa polícia fica mais eficiente a cada dia que passa — falou, com um sorriso sombrio. — Só os esperava depois do almoço.
Às sete da manhã recebera um relatório detalhado de Phillip Chen, que recebera um telefonema de um dos sargentos da polícia que participara da batida e era parente dos Chens.
— Ponha todas as nossas fontes particulares em ação para descobrir quem e por quê, Phillip — dissera, muito preocupado.
— Foi o que já fiz. É coincidência demais que as armas estivessem no avião de Bartlett.
— Poderá ser altamente embaraçoso se por acaso estivermos ligados a isso, de qualquer modo.
Viu que Claudia esperava pacientemente.
— Peça a Armstrong para me dar dez minutos. Depois, faça-os subir.
Ela tratou disso, depois falou:
— Se o superintendente Kwok já entrou na jogada tão cedo, deve ser mais sério do que imaginávamos, heya, tai-pan?
— A Seção Especial ou o Serviço Especial de Informações têm que se envolver imediatamente. Aposto que o FBI e a CIA já foram contatados. Brian Kwok é a escolha lógica, porque é um velho amigo de Armstrong... e um dos melhores homens que eles têm.
— É mesmo — concordou Claudia, orgulhosamente. — Eeeee, mas que marido fabuloso daria!
— Especialmente para uma Chen... tanto poder a mais, heya?
Era voz corrente que Brian Kwok estava sendo preparado para ser o primeiro-comissário assistente chinês.
— Naturalmente que um poder desses tem que ficar na família. — O telefone tocou. Ela atendeu. — Sim, direi a ele, obrigada. — Pôs o fone no gancho, abespinhada. — O camarista do governador... ligou para relembrar o coquetel de hoje, às dezoito horas... humm, como se eu fosse esquecer!
Dunross pegou um dos telefones e discou.
— Weyyyy? — disse a voz áspera da amah, a empregada chinesa. — Alô?
— Chen tai-tai — falou ao telefone, no seu cantonense perfeito. — A sra. Chen, por favor. Aqui fala o Sr. Dunross.
Esperou.
— Ah, Barbara, bom dia.
— Oh, alô, Ian. Já teve notícias do John? Desculpe incomodá-lo — falou.
— Não é incômodo algum. Não, ainda não. Mas tão logo saiba dele, mandarei que ligue para você. Pode ter ido cedo à pista para ver Golden Lady treinar. Já tentou o Turf Club?
— Já, mas não se lembram de o terem visto tomando café ali, e os treinos são entre cinco e seis horas. Que droga! Ele não tem consideração alguma! Ayeeyah, homens!
— Provavelmente está no barco. Não tem nada para fazer aqui até a hora do almoço, e está um dia excelente para velejar. Sabe como ele é... já verificou no ancoradouro?
— Não posso, Ian, não sei ir até lá, não há telefone. Tenho hora marcada no cabeleireiro, e não posso faltar... Hong Kong inteira estará na sua festa, logo mais... simplesmente não posso ir a Aberdeen.
— Mande um dos seus motoristas — disse Dunross, secamente.
— Tang está de folga hoje, e preciso de Wu-chat para me levar aos meus compromissos, Ian. Não dá para mandá-lo a Aberdeen... isso levaria uma hora, e tenho um jogo de tnah-jong das duas às quatro.
— Mandarei John ligar para você, mais ou menos na hora do almoço.
— Antes das cinco não estarei em casa. Quando eu o encontrar, ele vai comer fogo. Oh, bem, obrigada, desculpe incomodá-lo. Até logo.
— Até logo. — Dunross desligou o aparelho e deu um suspiro. — Sinto-me como se fosse uma ama-seca.
— Fale com o pai de John, tai-pan — disse Claudia Chen.
— Já falei. Uma vez. E chega. Não é só culpa do John. Essa mulher deixa qualquer um louco. — Abriu um sorriso. — Mas concordo em que está exaltadíssima... desta vez. Isso vai custar a John um anel de esmeraldas, ou pelo menos um casaco de vison.
O telefone tocou de novo. Claudia atendeu.
— Alô, escritório do tai-pan! Sim? Oh! — Sua felicidade se evaporou, e ela endureceu a fisionomia. — Um momento, por favor. — Apertou o botão de espera. — Uma ligação pessoal de Hiro Toda, de Yokohama.
Dunross sabia como Claudia se sentia a respeito do homem, sabia que ela odiava os japoneses e abominava a ligação da Casa Nobre com eles. Ele tampouco podia perdoar aos japoneses o que haviam feito à Ásia durante a guerra. O que haviam feito com aqueles que conquistaram, com os indefesos. Homens, mulheres e crianças. Os campos de prisioneiros e as mortes desnecessárias. De soldado a soldado, não tinha por que se queixar. Guerra é guerra.
A guerra dele fora contra os alemães. Mas a guerra de Claudia fora ali em Hong Kong. Durante a ocupação japonesa, como era eurasiana, não fora posta na Prisão Stanley junto com todos os civis europeus. Ela, a irmã e o irmão haviam tentado ajudar os prisioneiros de guerra com alimentos, remédios e dinheiro, contrabandeando-os para dentro do campo. A Kampeitai, a polícia militar japonesa, a pegara. Agora, não podia ter filhos.
— Digo que não está? — perguntou.
— Não. — Dois anos antes, Dunross aplicara uma quantia enorme de capital nas Indústrias de Navegação Toda, de Yokohama, comprando dois gigantescos cargueiros para aumentar a frota Struan, que fora dizimada na guerra. Escolhera o estaleiro japonês porque o produto deles era o melhor, assim como os seus termos — eles garantiam a entrega e tudo o mais que os estaleiros britânicos não garantiam —, e porque sabia que estava na hora de esquecer. — Alô, Hiro — disse. Gostava do sujeito, pessoalmente. — Prazer em ouvi-lo. Como vai o Japão?
— Por favor, desculpe-me por interrompê-lo, tai-pan. O Japão vai bem, embora quente e úmido. Nenhuma mudança.
— E meus navios, como vão indo?
— Muito bem, tai-pan. Tudo corre conforme combinamos. Só queria avisá-lo de que irei a Hong Kong no sábado de manhã, a negócios. Passarei aí o fim de semana, seguirei para Cingapura e Sydney, depois voltarei a tempo de fechar o negócio em Hong Kong. Ainda pretende vir a Yokohama para os dois lançamentos?
— Sim, sem dúvida. A que horas chega no sábado?
— Às onze e dez, pela Japan Air Lines.
— Mandarei um carro ir recebê-lo. Não quer vir diretamente para o Happy Valley, para as corridas? Podia almoçar conosco, depois meu carro o levará ao hotel. Vai se hospedar no Victoria and Albert?
— Desta vez no Hilton, no lado de Hong Kong. Tai-pan, queira me desculpar, não quero lhe dar nenhum trabalho, sinto muito.
— Não é trabalho nenhum. Mandarei um dos meus homens recebê-lo. Provavelmente Andrew Gavallan.
— Ah, ótimo. Então, obrigado, tai-pan. Terei prazer em vê-lo. Desculpe o transtorno.
Dunross desligou o telefone. "Por que será que me ligou, o motivo verdadeiro?", perguntou-se. Hiro Toda, diretor-administrativo do complexo de construção de navios mais ativo do Japão, nunca fazia nada repentino ou não-premeditado.
Dunross pensou no fechamento da transação deles, e nos três pagamentos de dois milhões cada, que venciam nos dias 1°, 11 e 15 de setembro, o restante em noventa dias; doze milhões de dólares americanos ao todo, que ele não tinha no momento. Ou o contrato assinado do fretador que era necessário para sustentar o empréstimo bancário que não tinha, ainda.
— Não faz mal — falou, tranqüilamente —, tudo vai dar certo.
— Para eles, sim — falou Claudia. — Sabe que não confio neles, tai-pan. Em nenhum deles.
— Não pode culpá-los, Claudia. Estão apenas tentando fazer economicamente o que não conseguiram fazer militar-mente.
— Tirando todo mundo dos mercados mundiais, com sua política de preços.
— Eles estão trabalhando duro, estão obtendo lucros, e nos enterrarão, se deixarmos. — O olhar dele também endureceu. — Mas, afinal, Claudia, por baixo do verniz de todo inglês, ou escocês, encontra-se um pirata. Se formos tão idiotas a ponto de permitir que nos enterrem, merecemos esse fim... afinal, não é esta a finalidade de Hong Kong?
— Por que ajudar o inimigo?
— Eles foram o inimigo — falou, bondosamente. — Mas apenas durante vinte e tantos anos, e nossas ligações com o Japão datam de cem anos. Não fomos os primeiros comerciantes a entrar no Japão? A Bruxa Struan não comprou para nós o primeiro lote posto à venda em Yokohama, em 1860? Ela não ordenou que fosse uma das pedras fundamentais da política da Struan manter o triângulo China-Japão-Hong Kong?
— Sim, tai-pan, mas não ach...
— Não, Claudia, negociamos com os Todas, os Kasigis, os Toranagas durante cem anos, e neste momento as Indústrias de Navegação Toda são muito importantes para nós.
O telefone tocou de novo. Ela atendeu:
— Sim, ligo depois para ele. — Depois, para Dunross: — É do bufê... sobre a sua festa logo mais.
— Qual é o problema?
— Nenhum, tai-pan... estão preocupados. Afinal, é o vigésimo aniversário de casamento d'o tai-pan. Hong Kong inteira tem que ficar impressionada. — O telefone tocou outra vez. Claudia atendeu. — Ah, ótimo! Complete a ligação... É Bill Foster, de Sydney.
Dunross atendeu.
— Bill... não, você estava no topo da lista. Já fechou negócio com as Propriedades Woolara?... Qual é o galho?... Não estou gostando. — Deu uma olhada no relógio. — Passa do meio-dia, aí na sua terra. Ligue para eles imediatamente e ofereça mais cinqüenta centavos australianos por ação, a oferta valendo até o encerramento do expediente comercial de hoje. Entre em contato com o banco em Sydney imediatamente e diga-lhes para exigirem o pagamento integral de todos os seus empréstimos até o fim do expediente comercial de hoje... Pouco me importa, já estão com trinta dias de atraso. Quero o controle daquela companhia agora. Sem ele, nosso novo negócio de cargueiros a frete vai se desmantelar, e vamos ter que começar do zero de novo. E tome o vôo 543 da Qantas na quinta-feira. Quero você aqui para uma conferência. — Desligou. — Mande o Linbar aqui para cima logo que a reunião com a Tcholok acabe. Reserve passagem para ele no vôo 716 da Qantas para Sydney, na sexta de manhã.
— Sim, tai-pan. — Tomou nota, depois entregou-lhe uma lista. — Estes são os seus compromissos para hoje.
Lançou uma olhada para o papel. Quatro reuniões de diretoria de algumas companhias subsidiárias naquela manhã: Balsa Dourada, às dez e meia; Motores Importados da Struan de Hong Kong, às onze; Alimentos Chong-Li, às onze e quinze; e Investimentos Kowloon, às onze e trinta. Almoço com Lincoln Bartlett e a srta. Casey Tcholok, de doze e quarenta às catorze horas. Mais reuniões de diretoria à tarde, Peter Marlowe às dezesseis. Phillip Chen às dezesseis e vinte, coquetel com o governador às dezoito, sua festa de aniversário de casamento começando às vinte, um lembrete para ligar para Alastair Struan na Escócia às onze, e pelo menos mais umas quinze pessoas em toda a Ásia para quem telefonar.
— Marlowe? — indagou.
— É escritor, está hospedado no Vic... Não está lembrado? Escreveu pedindo uma entrevista faz uma semana. Está fazendo pesquisas para um livro sobre Hong Kong.
— Ah, sei, o cara que foi da RAF.
— É. Quer que adie o encontro?
— Não. Mantenha o programa combinado, Claudia. — Tirou do bolso das calças um estojinho de couro preto para cartões, e passou para ela uma dúzia de cartões cobertos com anotações taquigrafadas. — Aqui estão alguns telegramas e telex para serem enviados imediatamente, e anotações para as diversas reuniões. Ligue-me com Jen, em Taipé, depois com Havergill, no banco, depois vá seguindo a lista.
— Sim, tai-pan. Ouvi dizer que Havergill vai se aposentar.
— Que maravilha! Quem vai tomar o seu lugar?
— Ninguém sabe, ainda.
— Tomara que seja o Johnjohn. Ponha seus espiões para trabalhar. Aposto cem como descubro antes de você!
— Fechado!
— Ótimo. — Dunross estendeu a mão e falou, docemente: — Pode ir me pagando. É o Johnjohn.
— Hem?
Ela o fitou, aparvalhada.
— Decidimos ontem à noite... todos os diretores. Pedi-lhes para não dizerem a ninguém até as onze horas de hoje.
Relutante, ela apanhou a nota de cem dólares e entregou a ele.
— Ayeeyah, eu gostava especialmente desta nota.
— Obrigado — falou Dunross, pondo-a no bolso. — Eu também gosto dela, especialmente.
Bateram à porta.
— Sim? — falou ele.
A porta foi aberta por Sandra Yi, a secretária particular de Dunross.
— Com licença, tai-pan, mas o mercado subiu dois pontos, e Holdbrook está na linha 2.
Alan Holdbrook era o chefe da companhia de corretagem da casa.
Dunross apertou o botão da linha 2.
— Claudia, logo que eu acabar, pode trazer Armstrong. Ela saiu com Sandra Yi.
— Sim, Alan?
— Bom dia, tai-pan. Primeiro: corre à boca pequena que vamos fazer uma oferta para o controle das Propriedades Asiáticas.
— Isso foi provavelmente espalhado por Jason Plumm, para aumentar o valor de suas ações antes da reunião anual deles. Sabe como é esperto o filho da mãe.
— Nossas ações subiram dez centavos, talvez por causa do boato.
— Ótimo. Compre-me vinte mil imediatamente.
— Com margem de lucro?
— Claro que sim.
— Certo. Segundo boato: fechamos um negócio multi-milionário com as Indústrias Par-Con... grandes expansões.
— Fantasias — falou Dunross, com naturalidade, perguntando-se furiosamente onde estariam os "vazamentos". Apenas Phillip Chen e, em Edimburgo, Alastair Struan e o velho Sean MacStruan deviam saber da trama para esmagar as Propriedades Asiáticas. E a transação da Par-Con era secretíssima, apenas de conhecimento da assembléia interna.
— Terceiro: há alguém comprando grandes lotes das nossas ações.
— Quem?
— Não sei. Mas há alguma coisa ocorrendo que não me cheira bem, tai-pan. O jeito que nossas ações vêm subindo devagar, neste último mês... Não vejo motivo para isso, exceto um comprador, ou compradores. A mesma coisa com a Rothwell-Gornt. Ouvi dizer que um lote de duzentas mil foi comprado no exterior.
— Descubra quem comprou.
— Santo Deus, gostaria de saber como. O mercado está instável, muito nervoso. Um bocado de dinheiro chinês flutuando por aí. Muitas pequenas transações acontecendo... umas poucas ações aqui, outras ali, mas multiplicadas por cerca de cem mil... o mercado pode começar a desabar... ou subir vertiginosamente.
— Ótimo. Então todos vamos ter um lucro e tanto. Ligue para mim antes de o mercado fechar. Obrigado, Alan. — Desligou o aparelho, sentindo as costas molhadas de suor. — Merda — falou em voz alta. — Mas que diabo está acontecendo?
Na ante-sala, Claudia Chen examinava alguns papéis com Sandra Yi, que era sua sobrinha por parte de mãe... inteligente, bonita, vinte e sete anos, e uma cabeça como um ábaco. A seguir, olhou para o relógio e disse, em cantonense:
— O superintendente Brian Kwok está lá embaixo, por que não vai buscá-lo, Irmãzinha... daqui a seis minutos?
— Ayeeyah, sim, Irmã Mais Velha!
Sandra Yi deu uma retocada rápida na maquilagem e saiu. Claudia sorriu ao vê-la se afastar, e pensou que Sandra Yi seria perfeita... a escolha perfeita para Brian Kwok. Feliz, sentou-se à sua mesa e começou a datilografar os telex. "Tudo o que tinha que ser feito foi feito", disse para si mesma. "Não, algo que o tai-pan disse... O que foi mesmo? Ah, sim!" Ligou para a sua casa.
— Weyyyyy? — atendeu a sua amah, Ah Sam.
— Escute, Ah Sam — perguntou em cantonense —, a Terceira Arrumadeira Fung, do Vic, não é sua prima em terceiro grau?
— Ah, sim, Mãe — respondeu Ah Sam, usando o modo polido com que a criada se dirigia à patroa. — Mas é em quarto grau, e dos Fung-tats, não dos Fung-sams, que é o meu ramo.
— Não importa, Ah Sam. Ligue para ela e descubra tudo o que puder sobre os dois demônios estrangeiros da Montanha Dourada. Estão na suíte Riacho Fragrante. — Pacientemente, soletrou os seus nomes, depois acrescentou, com delicadeza: — Ouvi dizer que têm hábitos de cama peculiares.
— Ayeeyah, se alguém for capaz de descobrir, esse alguém é a Terceira Arrumadeira Fung. Ah! Peculiares, como?
— Peculiares, estranhos, Ah Sam. Trate logo disso, sua danadinha.
Abriu um amplo sorriso e desligou.
As portas do elevador se abriram e Sandra Yi fez entrar os dois policiais, depois foi embora, relutante. Brian Kwok ficou olhando enquanto ela se afastava. Tinha trinta e nove anos, era alto para um chinês, passava um pouco de um metro e oitenta, bonitão, com cabelos negro-azulados. Os dois homens estavam à paisana. Claudia Chen conversou educadamente com eles, mas no momento em que viu a luz da linha 2 se apagar, fê-los entrar na outra sala e fechou a porta.
— Desculpe aparecer sem marcar hora — disse Armstrong.
— Não esquente a cabeça, Robert. Está com cara de cansado.
— Uma noite pesada. É todo esse banditismo à solta em Hong Kong — falou Armstrong, descontraidamente. — Abundam os homens maus, e os santos são crucificados.
Dunross sorriu, depois lançou um olhar para Kwok.
— E que tal a vida, Brian? Brian Kwok também sorriu.
— Muito boa, obrigado, Ian. O mercado de capitais está alto... tenho alguns dólares no banco, meu Porsche ainda não caiu aos pedaços, e as damas continuam a existir.
— Graças a Deus! Vai subir a colina no domingo?
— Se puder botar a Lulu em forma. Está lhe faltando um acoplamento hidráulico de direita.
— Já tentou na nossa loja?
— Já. Não dei sorte, tai-pan. Você vai?
— Depende. Tenho que ir a Taipé no domingo à tarde... irei se tiver tempo. De qualquer forma, inscrevi-me. Que tal o sei?
Brian Kwok abriu um sorriso.
— É melhor do que trabalhar para viver.
O Serviço Especial de Informações era um departamento completamente independente dentro da semi-secreta Seção Especial, o departamento de elite responsável pela prevenção e detecção de atividades subversivas na colônia. Tinha os seus modos de agir secretos, fundos secretos e poderes quase absolutos. Respondia exclusivamente ao governador.
Dunross recostou-se na cadeira.
— O que há? Armstrong disse:
— Estou certo de que já sabe. É sobre as armas no avião de Bartlett.
— Ah, é, ouvi dizer, hoje de manhã. Como posso ajudar? Tem alguma idéia de para onde se destinavam? E por quem foram enviadas? Pegou dois homens?
Armstrong deu um suspiro.
— Peguei. Eram mesmo mecânicos de verdade... os dois previamente treinados pela Força Aérea Nacionalista. Nenhuma ficha criminal anterior, embora sejam suspeitos de pertencer a tríades secretas. Ambos estão aqui desde o êxodo de 1949. A propósito, podemos manter isso confidencial, só entre nós três?
— E quanto aos seus superiores?
— Gostaria também de incluí-los... mas não conte a mais ninguém.
— Por quê?
— Temos motivos para crer que as armas destinavam-se a alguém na Struan.
— Quem? — perguntou Dunross, bruscamente.
— Confidencial.
— Sei. Quem?
— O que sabe a respeito de Lincoln Bartlett e Casey Tcholok?
— Temos um dossiê detalhado sobre ele... mas não sobre ela. Gostaria de vê-lo? Posso lhe dar uma cópia, desde que também seja considerada confidencial.
— Naturalmente. Seria uma grande ajuda. Dunross apertou o intercomunicador.
— Sim, senhor? — disse a voz de Claudia.
— Faça uma cópia do dossiê de Bartlett e entregue-a ao superintendente Armstrong na saída.
Dunross desligou o intercomunicador.
— Não vamos tomar muito mais do seu tempo — falou Armstrong. — Sempre faz dossiê dos clientes em potencial?
— Não. Mas gostamos de saber com quem estamos lidando. Se o negócio com Bartlett for fechado, pode significar milhões para nós, para ele, mil novos empregos para Hong Kong... fábricas, depósitos, uma grande expansão... juntamente com riscos igualmente grandes. Todos os empresários fazem um levantamento financeiro confidencial... talvez sejamos mais meticulosos. Aposto cinqüenta dólares contra um alfinete quebrado que ele tem um dossiê sobre mim.
— Nenhuma ligação criminosa foi mencionada? Dunross ficou espantado.
— Máfia? Esse tipo de coisa? Santo Deus, nada. Além disso, se a Máfia estivesse tentando entrar aqui, não iria mandar apenas dez rifles Ml4, duas mil balas e uma caixa de granadas.
— Sua informação é boa pra cachorro — interrompeu Brian Kwok. — Boa demais. Desempacotamos o material só faz uma hora. Quem é seu informante?
— Sabe que não há segredos em Hong Kong.
— Não se pode confiar nem nos nossos tiras, hoje em dia.
— A Máfia certamente enviaria um carregamento vinte vezes maior do que esse, e seriam armas portáteis, estilo americano. Mas a Máfia na certa falharia aqui, não importa o que fizesse. Jamais poderia substituir as nossas tríades. Não, não pode ser a Máfia. Tem que ser alguém do lugar. Quem lhe deu a dica sobre o carregamento, Brian?
— A polícia do aeroporto de Tóquio — falou Kwok. — Um dos mecânicos deles estava fazendo uma inspeção de rotina... sabe como são meticulosos. Relatou a descoberta ao seu superior, a polícia deles nos telefonou, e nós mandamos deixar passar.
— Nesse caso entre em contato com o FBI e a CIA... mande que verifiquem o que houve em Honolulu... ou Los Angeles.
— Também viu o plano de vôo?
— Claro. É óbvio. Por que alguém da Struan?
— Os dois bandidos disseram... — Armstrong pegou o seu bloquinho e consultou-o. — A nossa pergunta foi: "Para onde deviam levar os embrulhos?" Ambos responderam, usando palavras diferentes: "Para o barracão 15, devíamos colocar os pacotes no compartimento número 7, nos fundos".
Ergueu os olhos para Dunross.
— Isso não prova nada. Temos os maiores depósitos em Kai Tak... só porque iam levá-los para um dos nossos barracões, não prova nada... exceto que são espertos. Temos tanta mercadoria em circulação, que seria fácil para um caminhão de fora entrar. — Dunross pensou por um momento. — O número 15 fica junto da saída... localização perfeita. — Estendeu a mão para o telefone. — Vou pôr minha segurança no circuito, agora mes...
— Por favor, agora não.
— Por quê?
— Nossa pergunta seguinte foi: "Quem os contratou?" Claro que nos deram nomes e descrições fictícios, e negaram tudo, mas não tardarão a ser mais prestimosos. — Deu um sorriso sombrio. — Um deles falou, contudo, quando um dos meus sargentos torcia um pouco a sua orelha, de modo figurado, é claro — leu no bloquinho: — "Deixe-me em paz, tenho amigos muito importantes!" "Não tem nenhum amigo no mundo", falou o sargento. "Pode ser, mas o Honorável Tsu-yan tem, e o Chen da Casa Nobre tem."
O silêncio foi longo e pesado. Esperaram. "Aquelas armas amaldiçoadas!", pensou Dunross, furioso. Mas manteve a fisionomia calma e ficou mais atento.
— Temos mais de uma centena de Chens trabalhando para nós, aparentados ou não... Chen é um nome tão comum quanto Smith.
— E Tsu-yan? — perguntou Brian Kwok. Dunross deu de ombros.
— É diretor da Struan... mas também é diretor do Blacs, do Victoria Bank e de quarenta outras companhias, um dos homens mais ricos de Hong Kong, e um nome que qualquer um na Ásia poderia citar facilmente. Como o Chen da Casa Nobre.
— Sabe que suspeitam que ele seja muito graduado na hierarquia das tríades... especialmente na Pang Verde? — perguntou Brian Kwok.
— Todo xangaiense importante é igualmente suspeito. Meus Deus, Brian, você sabe que dizem que Chang Kai-chek entregou Xangai à Pang Verde há anos, como seu distrito exclusivo, em troca do apoio deles na sua campanha setentrional contra os senhores da guerra. A Pang Verde ainda não é, mais ou menos, uma sociedade secreta nacionalista oficial? Brian Kwok disse:
— Onde foi que Tsu-yan ganhou o seu dinheiro, Ian? Sua primeira fortuna?
— Não sei. Conte-me, Brian.
— Ganhou-a durante a Guerra da Coréia, contrabandeando penicilina, drogas e gasolina, especialmente penicilina, para o outro lado da fronteira, para os comunistas. Antes da Coréia, tudo o que tinha era uma tanga e um jinriquixá desconjuntado.
— São boatos, Brian.
— A Struan também fez fortuna.
— É. Mas seria muito pouco sensato sugerir que a fizemos contrabandeando... pública ou particularmente — falou Dunross, suavemente. — Muito pouco sensato, realmente.
— E não fizeram?
— A Struan começou com um pouco de contrabando há cento e vinte e tantos anos, segundo consta, mas era uma profissão honrada, e nunca contra a lei britânica. Somos capitalistas tementes à lei e mercadores da China, e o temos sido há anos.
Brian Kwok não sorriu.
— Outros boatos dizem que um bocado da penicilina dele não prestava. Não prestava mesmo.
— Se não prestava, se isso for verdade, por favor, vá prendê-lo, Brian — disse Dunross, friamente. — Pessoalmente, acho que é mais um boato espalhado por competidores invejosos. Se isso fosse verdade, ele estaria boiando na baía, com os outros que tentaram, ou seria punido, como Wong Pó Estragado.
Referia-se a um contrabandista de Hong Kong que vendera grande quantidade de penicilina estragada para o outro lado da fronteira, durante a Guerra da Coréia, e investira sua fortuna em ações e terras em Hong Kong. Dentro de sete anos, estava riquíssimo. E então, certas tríades de Hong Kong tiveram ordens para acertar as contas. Cada semana um membro da família dele desaparecia, ou morria. Por afogamento, acidente de carro, estrangulamento, veneno ou arma branca. Nenhum assaltante jamais foi preso. A matança continuou por dezessete meses e três semanas, e depois parou. Apenas ele e um neto, um bebê meio retardado, sobreviveram. Ainda viviam, enfurnados no mesmo vasto apartamento de cobertura, outrora luxuoso, com um criado e um cozinheiro, apavorados, vigiados dia e noite, sem jamais sair de casa... sabendo que nem guardas nem dinheiro algum no mundo seriam capazes de impedir a inexorabilidade da sua sentença, publicada num quadrinho minúsculo de um jornal chinês local: "Wong Pó Estragado será punido, ele e todas as suas gerações". Brian Kwok disse:
— Entrevistamos o sujeito certa vez, Robert e eu.
— Não diga!
— É assustador. Todas as portas têm trancas duplas e correntes, todas as janelas são fechadas com tábuas e pregos... só uns buraquinhos aqui e ali, por onde espiar. Ele não saiu de casa desde que a matança começou. O lugar fedia, meu Deus, mas como fedia! Só o que ele faz é jogar damas com o neto e ver televisão.
— E esperar — disse Armstrong. — Um dia irão atrás dos dois. O neto deve estar agora com uns sete ou oito anos.
Dunross disse:
— Acho que você provou o que eu disse. Tsu-yan não é como ele, e nunca foi. E qual a utilidade de uns poucos Ml4 para Tsu-yan? Imagino que, se quisesse, poderia reunir metade do exército nacionalista, junto com um batalhão de tanques.
— Em Formosa, mas não em Hong Kong.
— Tsu-yan já esteve alguma vez envolvido com Bartlett? — perguntou Armstrong. — Nas suas negociações?
— Já. Esteve uma vez em Nova York, e em Los Angeles, nos representando. Ambas as vezes com John Chen. Eles deram início ao acordo entre a Struan e as Indústrias Par-Con, que deverá ser ultimado... ou abandonado... aqui, este mês, e convidaram Bartlett formalmente para vir a Hong Kong, em meu nome.
Armstrong olhou para seu parceiro chinês. Depois, perguntou:
— E quando foi isso?
— Há quatro meses. Foi necessário todo esse tempo para os dois lados prepararem todos os detalhes.
— John Chen, hem? — comentou Armstrong. — Ele bem que podia ser o Chen da Casa Nobre.
— Sabe que John não é desse tipo — falou Dunross. — Não há motivo para ele estar metido numa trama dessas. Deve ser coincidência.
— Há mais uma coincidência curiosa — falou Brian Kwok. — Tanto Tsu-yan quanto John Chen conhecem um americano chamado Banastasio, ou pelo menos ambos já foram vistos em sua companhia. O nome não lhe diz nada?
— Não. Quem é ele?
— Um jogador da pesada, e suspeito de ser escroque. Dizem também que mantém ligações estreitas com uma das famílias da Cosa Nostra. Vincenzo Banastasio.
Os olhos de Dunross se estreitaram.
— Você falou "foram vistos em sua companhia". Quem foi que viu?
— O FBI.
O silêncio ficou mais pesado.
Armstrong enfiou a mão no bolso para puxar um cigarro. Dunross empurrou em sua direção a caixa de cigarros de prata.
— Tome.
— Ah, obrigado. Não, não vou fumar... agi sem pensar. Há duas semanas que parei. Cigarro mata. — A seguir acrescentou, tentando controlar o seu desejo: — O FBI nos passou a informação porque Tsu-yan e John Chen são figuras muito destacadas aqui. Pediram-nos que ficássemos de olho neles.
Foi então que Dunross se lembrou de repente do comentário de Foxwell sobre um importante capitalista que era comunista em segredo, e a quem estava vigiando no Sinclair Towers. "Santo Deus", pensou, "Tsu-yan tem um apartamento lá, e John Chen também. Mas é impossível que um deles esteja metido com os comunistas."
— Claro que a heroína é um negócio grande — dizia Armstrong, com voz muito dura.
— O que quer dizer, Robert?
— O tráfico de drogas exige quantias imensas para financiá-lo. Dinheiro de tal ordem só pode vir de bancos ou banqueiros, disfarçadamente, é claro. Tsu-yan faz parte da diretoria de vários bancos... e o Sr. Chen também.
— Robert, é melhor ir com muita calma nesse tipo de comentário — falou Dunross, com voz áspera. — Está tirando conclusões muito perigosas, sem prova alguma. Isso pode ser discutível, creio, e não o admito.
— Tem razão, desculpe. Retiro a coincidência. Mesmo assim, o comércio de drogas é um negócio e tanto, e existe aqui em Hong Kong em abundância, especialmente para posterior consumo nos Estados Unidos. Vou dar um jeito de descobrir quem são os nossos homens maus.
— É elogiavel. E terá todo o auxílio que quiser da Struan e de mim. Também odeio o tráfico.
— Ah, não o odeio, tai-pan, nem aos traficantes. É um fato da vida. É só mais um negócio... ilegal, é claro, mas ainda assim um negócio. Deram-me a tarefa de descobrir quem são os tai-pans. É uma questão de satisfação pessoal, nada mais.
— Se quiser ajuda, é só pedir.
— Obrigado. — Armstrong levantou-se, cansado. — Antes de partirmos, tenho mais duas coincidências para o senhor. Quando Tsu-yan e o Chen da Casa Nobre foram mencionados, hoje de manhã, pensamos em bater um papinho com eles imediatamente, mas logo depois que descobrimos as armas, Tsu-yan pegou o primeiro vôo para Taipé. Curioso, não?
— Ele viaja daqui para lá o tempo todo — falou Dunross, sua inquietação aumentando vertiginosamente. Tsu-yan era esperado na sua festa, logo mais à noite. Seria um fato extraordinário se não comparecesse.
Armstrong assentiu.
— Parece que foi uma decisão de última hora... não tinha reservas, nem bilhete, nem bagagens, mas passou alguns dólares extras por baixo do balcão, e alguém desistiu do vôo, deixando-lhe o lugar. Carregava apenas uma pasta. Estranho, não?
Brian Kwok falou:
— Não temos a mínima esperança de conseguir sua extradição de Formosa.
Dunross fitou-o, depois voltou a encarar Armstrong, os olhos firmes e da cor do gelo do mar.
— Disse que havia duas coincidências. Qual é a outra?
— Não conseguimos achar John Chen.
— Mas do que está falando?
— Não está em casa, nem na casa da namorada, nem nos lugares que costuma freqüentar. Há meses que o vigiamos, assim como a Tsu-yan, desde que o FBI nos alertou sobre eles.
O silêncio aumentou.
— Verificou o barco dele? — perguntou Dunross, já certo da resposta.
— Está atracado, não saiu desde ontem. Seu marinheiro também não o viu.
— No campo de golfe?
— Não está lá — falou Armstrong. — Nem na pista de corridas. Não foi assistir ao treino, embora fosse esperado, segundo o treinador. Sumiu, desapareceu, evaporou-se.
11h15m
Fez-se um silêncio estupefato na sala da diretoria.
— Qual o problema? — perguntou Casey. — Os números falam por si.
Os quatro homens à volta da mesa de reunião olharam para ela. Andrew Gavallan, Linbar Struan, Jacques de Ville e Phillip Chen, todos membros da assembléia interna.
Andrew Gavallan tinha quarenta e sete anos, era alto e magro. Deu uma olhada no maço de papéis à sua frente. "Dew neh loh moh para todas as mulheres metidas em negócios", pensou, irritado.
— Talvez devêssemos consultar o Sr. Bartlett — falou, constrangido, ainda muito perturbado por ter que lidar com uma mulher.
— Já lhe disse que tenho autoridade nessa área — retrucou ela, tentando ser paciente. — Sou tesoureira e vice-presidente executiva das Indústrias Par-Con, e tenho poderes para negociar com vocês. Confirmamos isso por escrito, no mês passado.
Casey controlou a raiva. A reunião fora pesadíssima. Desde a reação inicial de choque deles pelo fato de ela ser mulher, até o constrangimento inevitável, o excesso de cortesia, esperando que ela se sentasse, esperando que falasse, depois não se sentando até que ela mandasse, conversando fiado, não querendo tratar de negócios, não querendo negociar com ela como pessoa, como empresária, de modo algum, todos dizendo, ao invés disso, que as mulheres teriam grande prazer em levá-la às compras, depois ficando de boca aberta porque ela conhecia todos os detalhes particulares da transação em projeto. Tudo fazia parte de um esquema com o qual, normalmente, estava habituada a lidar com facilidade. Mas não naquele dia. "Deus", pensou, "tenho que me sair bem. Tenho que sacudi-los."
— É, realmente, muito fácil — dissera inicialmente, tentando dissipar o constrangimento deles, usando sua abertura padrão. — Esqueçam que sou mulher... julguem-me pela minha capacidade. Bem, temos três tópicos na nossa agenda: as fábricas de poliuretano, a representação do arrendamento de computadores, e, finalmente, a representação geral dos nossos produtos derivados do petróleo, fertilizantes, produtos farmacêuticos e esportivos por toda a Ásia. Primeiro, vamos debater as fábricas de poliuretano, os suprimentos da mistura da substância química e um projeto do prazo para o financiamento.
Logo a seguir, ela lhes apresentou os gráficos e a documentação preparada, fez uma sinopse verbal de todos os fatos, números e porcentagens, taxas dos bancos, juros, tudo de maneira muito simples e rápida, de modo que até uma pessoa de inteligência curta poderia entender o projeto. E agora, todos a fitavam.
Andrew Gavallan rompeu o silêncio.
— Muito impressionante, minha cara.
— Na verdade, não sou "sua cara" — disse ela, com uma risada. — Sou muito cabeça-dura na defesa da minha companhia.
— Mas mademoiselle — disse Jacques de Ville, com suave charme francês —, sua cabeça é perfeita, e não é nada dura.
— Merci, monsieur — replicou ela imediatamente, e acrescentou despreocupadamente, num francês passável: — Mas, por favor, deixemos de lado a forma da minha cabeça, e discutamos a forma da transação em pauta. É melhor não misturarmos as coisas, não acha?
Novo silêncio.
— Quer um pouco de café? — perguntou Linbar Struan.
— Não, obrigada, Sr. Struan — falou Casey, tratando de se adaptar aos costumes deles, e não chamá-los muito cedo pelos nomes de batismo. — Vamos discutir esta proposta? É a que lhe enviamos no mês passado... tentei dar atenção aos seus problemas, assim como aos nossos.
Fez-se novo silêncio. Linbar Struan, trinta e quatro anos, bonitão, com cabelos avermelhados e olhos azuis com um brilho atrevido, insistiu:
— Tem certeza de que não quer um pouco de café? Quem sabe um chá?
— Não, obrigada. Então, aceitam a nossa proposta como está?
Phillip Chen tossiu e disse:
— Em princípio, concordamos em negociar com a Par-Con em diversas áreas. Os tópicos do contrato indicam isso. Quanto às fábricas de poliuretano...
Casey escutou as generalizações dele, depois tentou mais uma vez descer às especificações... que eram o motivo daquela reunião. Mas a parada era dura, e podia senti-los refugando. Nunca tinha sido tão difícil. "Talvez seja porque são ingleses, e eu ainda não tinha lidado com os ingleses."
— Há alguma coisa específica que necessite ser esclarecida? — perguntou. — Se existe algo que não compreendem...
— Compreendemos muito bem — disse Gavallan. — A senhorita nos apresenta números tendenciosos. Estamos financiando a construção das fábricas. Vocês nos fornecem as máquinas, mas o custo delas é amortizado ao longo de três anos, o que anulará qualquer fluxo de caixa, e significará lucro nenhum durante pelo menos cinco anos.
— Disseram-me que é costume aqui em Hong Kong amortizar o custo total de uma construção num período de três anos — replicou ela, igualmente brusca, contente por ter sido desafiada. — Estamos nos propondo a seguir os seus costumes. Se quiserem cinco... ou dez anos... tê-los-ão, desde que o mesmo se aplique à construção.
— Vocês não estão pagando pelas máquinas... são arrendadas, e o custo mensal para a joint venture¹ é alto.
— Qual a prime rate² do seu banco hoje, Sr. Gavallan? Consultaram o banco, depois deram-lhe a resposta. Ela usou sua régua de cálculo de bolso durante alguns segundos. — À taxa de hoje, poupariam dezessete mil HK por semana por máquina, se aceitassem a nossa proposta, que, no período que estamos discutindo... — mais um cálculo rápido — aumentaria sua parte dos lucros em trinta e dois por cento acima do máximo que conseguiriam... e olhe que estamos falando em milhões de dólares.
¹ "Sociedade em conta de participação." (N. da T.)
² "Taxa de juro preferencial." (N. da T.)
Eles a fitaram em silêncio.
Andrew Gavallan fez-lhe novas perguntas sobre os números em questão, mas ela não vacilou nem uma vez. A antipatia que sentiam por ela aumentou.
Silêncio.
Estava certa de que eles estavam confusos com os números que apresentara. "O que mais posso fazer para convencê-los?", pensou, ficando cada vez mais ansiosa. "A Struan vai ganhar uma bolada se eles se mexerem, nós faremos uma fortuna, e eu finalmente vou ganhar o meu dinheiro do não enche. Basta a parte da espuma para enriquecer a Struan, e a Par-Con vai ganhar quase oitenta mil dólares líquidos por mês durante os próximos dez anos, e Linc falou que eu podia ficar com uma parte."
— Quanto você quer? — ele lhe perguntara, pouco antes de terem saído dos Estados Unidos.
— Cinqüenta e um por cento — respondera, dando uma risada —, já que você está perguntando.
— Três por cento.
— Qual é, Linc, preciso do meu dinheiro do não enche.
— Feche o negócio todo e terá uma opção de compra de cem mil ações da Par-Con a quatro dólares abaixo do preço de mercado.
— Pode contar comigo. Mas quero a companhia de espuma também — dissera, prendendo a respiração. — Fui eu que a comecei, e eu a quero: cinqüenta e um por cento. Para mim.
— Em troca do quê?
— Da Struan.
— Fechado.
Casey esperou, aparentemente calma. Quando julgou que era o momento correto, perguntou, inocentemente:
— Estamos de acordo, então, em que a proposta é aceita como está? Estamos meio a meio com vocês. O que poderia ser melhor do que isso?
— Ainda afirmo que vocês não estão entrando com cinqüenta por cento do financiamento da joint venture — retrucou Andrew Gavallan, bruscamente. — Estão fornecendo máquinas e materiais em sistema de arrendamento, com prejuízos passíveis de compensação com lucros de exercícios passados, portanto seu risco não eqüivale ao nosso.
— Mas isso é apenas por causa do nosso fisco, e para diminuir a quantia desembolsada, cavalheiros. Estamos fazendo o nosso financiamento do fluxo de caixa. O total das cifras é o mesmo. O fato de que temos um subsídio para a desvalorização e diversos abatimentos não tem nada a ver. — Ainda mais inocentemente, pondo isca na armadilha, acrescentou: — Nós financiamos nos Estados Unidos, onde temos traquejo. Vocês financiam em Hong Kong, onde são os peritos.
Quillan Gornt afastou-se da janela do seu escritório.
— Repito, podemos superar qualquer acordo que façam com a Struan, Sr. Bartlett. Qualquer um.
— Dólar por dólar?
— Dólar por dólar. — O inglês voltou a sentar-se atrás de sua mesa vazia de papéis, e encarou Bartlett novamente. Estavam no último andar do Edifício Rothwell-Gornt, que também dava para a Connaught Road e a orla marítima. Gornt era um homem corpulento, barbudo, de fisionomia dura, com pouco menos de um metro e oitenta de altura, cabelos negros e sobrancelhas espessas um pouco grisalhos, e olhos castanhos. — Não é nenhum segredo que nossas companhias são rivais seriíssimas, mas asseguro-lhe que podemos cobrir e superar qualquer oferta deles, e providenciaria o nosso lado do financiamento até o fim da semana. Poderíamos ter uma sociedade lucrativa, o senhor e eu. Sugiro que formemos uma companhia conjunta, segundo as leis de Hong Kong... os impostos aqui são bem razoáveis... quinze por cento de tudo o que é ganho em Hong Kong, com o resto do mundo livre de qualquer imposto. — Gornt sorriu. — Melhor do que nos Estados Unidos.
— Muito melhor — disse Bartlett. Estava sentado numa cadeira de couro de espaldar alto. — Muitíssimo melhor.
— É por isso que está interessado em Hong Kong?
— Esse é um dos motivos.
— Quais são os outros?
— Aqui não há nenhuma companhia americana do tamanho da minha com força total, e devia haver. Essa é a era do Pacífico. Mas vocês poderiam beneficiar-se da nossa vinda. Temos muito do traquejo que vocês não têm e uma grande influência em áreas do mercado americano. Por outro lado, a Rothwell-Gornt e a Struan têm o traquejo que nos falta e uma grande influência nos mercados asiáticos.
— Como podemos cimentar um relacionamento?
— Primeiro, tenho que descobrir o que a Struan está pretendendo. Comecei a negociar com eles, e não gosto de trocar de avião no meio do oceano.
— Posso lhe dizer de pronto o que estão pretendendo: lucro para eles, e o resto que vá para o diabo.
O sorriso de Gornt era duro.
— A transação que discutimos me pareceu muito justa.
— Eles são mestres em parecer muito justos, entrar com a metade da participação, depois vender ao seu bel-prazer para raspar o lucro e ainda conservar o controle.
— Isso não seria possível conosco.
— Há quase um século e meio que vêm agindo assim. A esta altura já aprenderam alguns macetes.
— Vocês também.
— Claro. Mas a Struan é muito diferente de nós. Somos donos de coisas e companhias... eles possuem porcentagens. Têm pouco mais de cinco por cento da maioria de suas subsidiárias e, no entanto, exercem o controle absoluto por meio de ações com poder de voto especial, ou tornando obrigatório, nos artigos de associação, que o tai-pan deles também seja o tai-pan da subsidiária, com poder de decisão final.
— Isso me parece inteligente.
— E é. E eles são. Mas nós somos melhores e mais corretos... e nossos contatos e influência na China e por toda a costa do Pacífico, com exceção dos Estados Unidos e do Canadá, são mais fortes do que os deles, e ficam mais fortes a cada dia que passa.
— Por quê?
— Porque as operações da nossa companhia tiveram origem em Xangai, a maior cidade da Ásia, onde dominávamos. A Struan sempre se concentrou em Hong Kong, que, até bem pouco tempo, mal passava de uma cidadezinha provinciana.
— Mas Xangai são águas passadas, desde que os comunistas isolaram o continente, em 1949. Não há nenhum comércio externo passando hoje em dia através de Xangai; é tudo através de Cantão.
— É. Mas foram os xangaienses que saíram da China e vieram para o sul com dinheiro, cérebro e garra, que fizeram de Hong Kong o que é hoje e o que será amanhã: a metrópole de hoje e do futuro de todo o Pacífico.
— Melhor do que Cingapura?
— Sem dúvida.
— Manila?
— Sem dúvida.
— Tóquio?
— Esta será sempre só para os japoneses. — Os olhos de Gornt brilharam, as rugas de seu rosto tornaram-se mais nítidas. — Hong Kong é a maior cidade da Ásia, Sr. Bartlett. Quem a dominar, acabará por dominar a Ásia... naturalmente, estou me referindo ao comércio, finanças, transportes, grandes negócios.
— E quanto à China Vermelha?
— Achamos que Hong Kong é vantajosa para a RPC, como chamamos a República Popular da China. Somos a "porta aberta" controlada para eles. Hong Kong e a Rothwell-Gornt representam o futuro.
— Por quê?
— Porque, quando Xangai era o centro empresarial e industrial da China, quem regulava o passo do país eram os xangaienses. Eles são os "furões" da China, sempre foram e sempre serão. E agora, os melhores deles estão aqui conosco. Logo verá a diferença entre os cantonenses e os xangaienses. Estes são os empresários, os industriais, os promotores, os inter-nacionalistas. Não há um só grande magnata têxtil, armador ou industrial que não seja oriundo de Xangai. Os cantonenses dirigem as empresas da família, Sr. Bartlett, são individualistas, mas os xangaienses entendem de sociedades nos seus diversos aspectos e, acima de tudo, entendem de operações bancárias e financiamentos. — Gornt acendeu outro cigarro. — É aí que reside a nossa força, é por isso que somos melhores do que a Struan... e por que acabaremos sendo os maiores.
Linc Bartlett examinou o homem à sua frente. Pelo dossiê que Casey preparara, sabia que Gornt nascera em Xangai, de pais britânicos, tinha quarenta e oito anos, era viúvo com dois filhos crescidos, e que servira como capitão na infantaria australiana de 42 a 45, no Pacífico. Sabia também que governava a Rothwell-Gornt com muito êxito como um feudo particular, isso há oito anos, desde que assumira o lugar do pai.
Bartlett acomodou-se melhor na poltrona funda.
— Se existe esta rivalidade com a Struan, e tem tanta certeza de que acabará sendo a número 1, por que esperar? Por que não lhes tomar o lugar agora?
Gornt o fitava, fisionomia dura.
— Não há nada no mundo que mais me agradasse fazer. Mas não posso, ainda não. Quase consegui, faz três anos... eles haviam passado dos limites, o joss do tai-pan anterior se esgotara.
— Joss?
— É uma palavra chinesa que quer dizer "sorte", "destino", mas um pouquinho mais. — Gornt observava-o, pensativo. — Somos muito supersticiosos, por essas bandas. Joss é muito importante, como a escolha do momento preciso. Bem, a sorte de Alastair Struan se esgotara, ou virará azar. Tivera um ano anterior desastroso, e então, num gesto de desespero, passou o cargo para Ian Dunross. Quase afundaram, daquela vez. As ações deles começaram a cair. Parti para cima deles, mas Dunross conseguiu superar a crise e estabilizar o mercado.
— Como?
— Digamos que exerceu uma quantidade indevida de influência em certos círculos bancários.
Gornt recordou com fúria gelada que Havergill, do banco, de repente, em desacordo com todas as suas combinações particulares e secretas, não se opusera ao pedido da Struan de uma linha de crédito enorme e temporária que dera a Dunross tempo para se recuperar.
Gornt recordou sua ira cega quando ligara para Havergill.
— Diabos, mas por que fez isso? — perguntara-lhe. — Cem milhões com crédito extraordinário? Salvou o pescoço deles, pela madrugada! Nós estávamos com eles nas mãos. Por quê?
Havergill lhe contara que Dunross conseguira reunir votos suficientes na junta diretora, e impusera extrema pressão pessoal a ele, Havergill.
— Nada havia que eu pudesse fazer...
"É", pensou Gornt, olhando para o americano. "Perdi, daquela vez, mas acho que você é a chave explosiva de vinte e quatro quilates que irá acionar a bomba que fará a Struan ir pelos ares, deixando a Ásia para sempre."
— Dunross foi a extremos, daquela vez, Sr. Bartlett. Conseguiu alguns inimigos implacáveis. Mas agora somos igualmente fortes. É o que o senhor chamaria de um impasse. Eles não podem nos pegar, e nós não podemos pegá-los.
— A não ser que cometessem um erro.
— Ou nós cometêssemos um erro. — O homem mais velho soprou um anel de fumaça e ficou olhando para ele. Finalmente, voltou a olhar para Bartlett. — Acabaremos por vencer. O tempo na Ásia é um pouco diferente do tempo nos Estados Unidos.
— É o que me dizem.
— Não acredita?
— Sei que as mesmas regras de sobrevivência se aplicam aqui, ali, ou seja onde for. Apenas o grau varia.
Gornt ficou vendo a fumaça do cigarro enroscar-se até o teto. Sua sala era grande, com poltronas de couro bem usadas, excelentes quadros a óleo nas paredes, e recendia a couro lustrado e bons charutos. A cadeira de espaldar alto de Gornt, de carvalho antigo e entalhado, com estofamento vermelho, parecia dura, funcional e sólida, pensou Bartlett, igual ao homem.
— Podemos superar a oferta da Struan, e o tempo está do nosso lado, aqui, ali, ou seja lá onde for — disse Gornt.
Bartlett achou graça.
Gornt também sorriu, mas Bartlett notou que seus olhos não sorriam.
— Circule por Hong Kong, Sr. Bartlett. Faça perguntas sobre nós, e sobre eles. Depois, decida-se.
— É o que farei.
— Ouvi dizer que seu avião está retido aqui.
— Está, sim. A polícia do aeroporto encontrou armas a bordo.
— É, eu soube. Curioso. Bem, se precisar de ajuda para liberá-lo, talvez eu lhe possa ser útil.
— Podia ajudar agora mesmo, contando-me por que e por quem.
— Não tenho idéia... mas aposto que alguém da Struan tem.
— Por quê?
— Sabiam dos seus movimentos exatos.
— Vocês também.
— É. Mas não tinha nada a ver conosco.
— Quem sabia que íamos ter este encontro, Sr. Gornt?
— O senhor e eu. Conforme combináramos. Não houve vazamento por aqui, Sr. Bartlett. Depois do nosso encontro particular em Nova York, no ano passado, tudo foi feito por telefone... nem mesmo um telex de confirmação. Apoio a sua política sábia de cautela, sigilo, e contatos pessoais. Em particular. Mas, do seu lado, quem sabe do nosso... nosso interesse continuado?
— Ninguém, exceto eu.
— Nem mesmo sua tesoureira vice-presidente-executiva? — perguntou Gornt, sem disfarçar a surpresa.
— Não, senhor. Quando soube que Casey era "ela"?
— Em Nova York. Ora, vamos, Sr. Bartlett, não é provável que estivéssemos contemplando uma associação sem averiguarmos suas credenciais e as dos seus principais executivos.
— Ótimo. Isso poupará tempo.
— É curioso ter uma mulher numa posição-chave dessas.
— Ela é meu braço direito e esquerdo, e o melhor executivo que tenho.
— Então, por que não lhe contou do nosso encontro hoje?
— Uma das primeiras regras da sobrevivência é manter suas opções em aberto.
— Ou seja?
— Ou seja, não dirijo meus negócios em comitê. Além disso, gosto de agir de improviso, manter certas operações em segredo. — Bartlett pensou um momento, depois acrescentou:
— Não é falta de confiança. Na verdade, estou tornando as coisas mais fáceis para ela. Se alguém na Struan descobrir, e perguntar-lhe por que estou tendo um encontro agora com o senhor, a surpresa dela será genuína.
Depois de uma pausa, Gornt falou:
— É raro encontrar alguém realmente digno de confiança. Muito raro.
— Por que alguém iria querer M14 e granadas em Hong Kong, e por que usariam o meu avião?
— Não sei, mas me proponho a descobrir. — Gornt apagou o cigarro. O cinzeiro era de porcelana... dinastia Sung.
— Conhece Tsu-yan?
— Encontrei-o umas duas vezes. Por quê?
— É um excelente sujeito, embora seja diretor da Struan.
— É xangaiense?
— É. Um dos melhores. — Gornt ergueu os olhos, com expressão muito dura. — É possível que haja vantagem periférica em negociar conosco, Sr. Bartlett. Ouvi dizer que a Struan está se expandindo muito, no momento. Dunross está apostando alto na sua frota, especialmente nos dois imensos cargueiros que encomendou no Japão. O primeiro deles está com um pagamento substancial a vencer, dentro de uma semana, mais ou menos. Além disso, correm boatos de que ele vai fazer uma oferta pelas Propriedades Asiáticas. Já ouviu falar delas?
— Um grande empreendimento imobiliário, por toda a Hong Kong.
— É. São os maiores... maiores até que a ik da Struan.
— A Investimentos Kowloon faz parte da Struan? Pensei que fosse uma companhia independente.
— E é, na aparência. Mas Dunross é tai-pan da ik... eles sempre têm o mesmo tai-pan.
— Sempre?
— Sempre. Faz parte das cláusulas de contrato deles. Mas Ian está exagerando. A Casa Nobre pode logo se tornar ignóbil. Ele está com muito pouco dinheiro vivo no momento.
Bartlett pensou um momento, depois perguntou:
— Por que não se junta a outra companhia, talvez as Propriedades Asiáticas, e assumem juntos o controle da Struan? Isso é o que eu faria, nos Estados Unidos, se quisesse uma companhia que não pudesse tomar sozinho.
— É isso o que está querendo fazer aqui, Sr. Bartlett? — perguntou Gornt de pronto, fingindo estar chocado. — "Tomar" a Struan?
— É possível?
Gornt fitou o teto cuidadosamente, antes de responder.
— É... mas precisaria de um sócio. Talvez conseguisse obtê-lo com as Propriedades Asiáticas, mas duvido. Jason Plumm, o tai-pan, não tem peito para isso. Precisaria de nós. Só nós temos a perspicácia, a garra, o conhecimento e o desejo. Contudo, teria que arriscar uma imensa quantia. Em dinheiro vivo.
— Quanto?
Gornt riu com gosto.
— Vou pensar nisso. Primeiro, teria que me dizer se está mesmo levando a idéia a sério.
— Se estiver, quer entrar na jogada? Gornt devolveu-lhe o olhar, igualmente firme.
— Primeiramente teria que estar certo, certíssimo, de que está falando sério. Não é segredo que detesto a Struan de modo geral, e Ian Dunross pessoalmente, e que gostaria de vê-los aniquilados. Portanto, já conhece a minha posição a longo prazo. Não sei a sua. Ainda.
— Se pudéssemos assumir o controle da Struan... valeria a pena?
— Ah, sim, Sr. Bartlett. Ah, sim... valeria a pena — disse Gornt jovialmente, depois sua voz voltou a ficar gelada. — Mas ainda preciso saber quão seriamente encara isso.
— Dir-lhe-ei depois de me encontrar com Dunross.
— Vai sugerir-lhe a mesma coisa... que juntos poderão engolir a Rothwell-Gornt?
— Meu propósito ao vir aqui é tornar a Par-Con internacional, Sr. Gornt. Quem sabe um investimento de até trinta milhões, cobrindo toda uma variedade de mercadorias, fábricas e depósitos. Até bem pouco tempo, nunca ouvira falar na Struan... ou na Rothwell-Gornt. Ou na rivalidade entre as duas.
— Muito bem, Sr. Bartlett, deixemos as coisas como estão. Faça o senhor o que fizer, será interessante. É. Será interessante ver se sabe segurar uma faca.
Bartlett fitou-o, sem compreender.
— É um velho termo chinês de culinária, Sr. Bartlett. O senhor cozinha?
— Não.
— A culinária é um dos meus passatempos. Os chineses dizem que é importante saber como segurar a faca, que não se pode usar uma faca até que se saiba segurá-la corretamente. Caso contrário, a pessoa pode se cortar, e a coisa já começa mal. Não é mesmo?
Bartlett abriu um sorriso.
— Segurar a faca, não é isso? Não vou me esquecer. Não, não sei cozinhar. Nunca cheguei a aprender. Casey também não entende nada de cozinha.
— Os chineses dizem que há três artes em que as outras civilizações não se podem comparar à deles: literatura, pintura a pincel e culinária. Sinto-me inclinado a concordar. Gosta de boa comida?
— A melhor refeição que já comi foi num restaurante nos arredores de Roma, na Via Flaminia, o Casale.
— Então, temos ao menos isso em comum, Sr. Bartlett. O Casale também é um dos meus favoritos.
— Casey me levou para comer lá certa vez: spaghetti alla matriciana al dente e buscetti com uma cerveja estupidamente gelada, seguidos de picatta e mais cerveja. Nunca esquecerei.
Gornt sorriu.
— Quem sabe gostaria de jantar comigo, enquanto estiver aqui? Posso oferecer-lhe também o alla matriciana; terá o mesmo sabor, a receita é a mesma.
— Gostaria muito.
— E uma garrafa de Valpolicella, ou de um grande vinho toscano.
— Pessoalmente, gosto de cerveja com massa. Cerveja americana bem gelada, direto da lata.
Depois de uma pausa, Gornt perguntou:
— Quanto tempo vai se demorar em Hong Kong?
— O tempo que for preciso — respondeu Bartlett, sem hesitar.
— Ótimo. Então podemos marcar o jantar para a semana que vem? Terça ou quarta?
— Terça está ótimo, obrigado. Posso levar Casey?
— Claro. — Gornt acrescentou, em tom mais seco: — A essa altura, talvez o senhor já tenha mais certeza do que quer fazer.
Bartlett achou graça.
— E a essa altura, já saberá se sei segurar a faca.
— Talvez. Mas quero que se lembre de uma coisa, Sr. Bartlett: se unirmos nossas forças contra a Struan, uma vez iniciada a batalha, não haverá como bater em retirada sem danos muito sérios. Seriíssimos, mesmo. Eu precisaria ter muita certeza. Afinal, o senhor sempre poderá se retirar ferido para os Estados Unidos, para voltar à luta outro dia. Nós ficamos aqui... portanto os riscos são desiguais.
— Mas o espólio também é desigual. Vocês ganhariam uma coisa sem preço, que para mim não vale dez centavos. Seriam a Casa Nobre.
— É — falou Gornt, cerrando as pálpebras. Inclinou-se para a frente para escolher outro cigarro, e o pé esquerdo moveu-se sob a mesa para apertar um interruptor oculto. — Vamos deixar tudo em suspenso até ter...
A voz da secretária de Gornt fez-se ouvir pelo intercomunicador.
— Com licença, Sr. Gornt, quer que adie a reunião da diretoria?
— Não — respondeu Gornt. — Eles que esperem.
— Sim, senhor. A srta. Ramos está aqui. Pode conceder-lhe alguns minutos?
Gornt fingiu-se surpreso.
— Um momento. — Olhou para Bartlett. — Terminamos?
— Sim. — Bartlett levantou-se imediatamente. — A terça-feira está de pé. Até lá, deixamos tudo em suspenso. — Virou-se para sair, mas Gornt o deteve.
— Só um momento, Sr. Bartlett — disse, depois falou no intercomunicador: — Diga a ela que entre. — Desligou o interruptor e se levantou. — Fiquei muito feliz com o nosso encontro.
A porta se abriu e uma moça entrou. Tinha vinte e cinco anos, era impressionante, cabelos pretos curtos, olhos negros, nitidamente eurasiana, vestida informalmente, com jeans americanos desbotados e justos e camisa.
— Alô, Quillan — falou, com um sorriso que aqueceu o ambiente, seu inglês com leve sotaque americano. — Desculpe interromper, mas acabei de chegar de Bangkok e quis vir cumprimentá-lo.
— Que bom que veio, Orlanda. — Gornt sorriu para Bartlett, que não tirava os olhos da moça. — Este é Linc Bartlett, dos Estados Unidos. Orlanda Ramos.
— Alô — cumprimentou Bartlett.
— Oi... ah, Linc Bartlett? O contrabandista de armas americano? — disse, rindo.
— Como?
— Não fique tão chocado, Sr. Bartlett. Todo mundo em Hong Kong já sabe... Hong Kong não passa de uma aldeia.
— Falando sério... como soube?
— Li no jornal da manhã.
— Impossível. Aconteceu às cinco e meia da manhã.
— Foi no Fai Pao, o Expresso, na coluna de última hora, às nove horas. É um jornal chinês, e os chineses sabem de tudo o que se passa aqui. Não se preocupe, os jornais ingleses não saberão da novidade até as edições vespertinas, mas pode esperar a imprensa na sua porta por volta da hora dos coquetéis.
— Obrigado.
"A última coisa que estou querendo é a maldita imprensa atrás de mim", pensou Bartlett com azedume.
— Não se preocupe, Sr. Bartlett, não vou pedir entrevista, embora seja uma repórter free lance da imprensa chinesa. Sou mesmo muito discreta — falou. — Não sou, Quillan?
— Sem dúvida. Tem a minha garantia... Orlanda é totalmente digna de confiança — falou Gornt.
— Claro, se quiser me oferecer uma entrevista... aceitarei. Amanhã.
— Vou pensar no seu caso.
— Prometo que o farei parecer maravilhoso!
— Os chineses sabem mesmo de tudo por aqui?
— Claro — disse ela, prontamente. — Mas os quai loh, os estrangeiros, não lêem os jornais chineses, exceto uma meia dúzia de gente que está "por dentro"... como Quillan.
— E todo o pessoal do Serviço Especial de Informações, da Seção Especial e a polícia em geral — disse Gornt.
— E Ian Dunross — acrescentou ela, com a ponta da língua tocando os dentes.
— Ah, ele é vivo assim? — perguntou Bartlett.
— Ah, é. Tem o sangue do Demônio Struan nas veias.
— Não entendi.
— Vai entender, se ficar por aqui algum tempo. Bartlett pensou na frase, depois franziu o cenho.
— Também sabia das armas, Sr. Gornt?
— Apenas que a polícia havia interceptado armas contrabandeadas a bordo do "jato particular do americano milionário que chegou ontem à noite". Também estava no meu jornal chinês matinal. O Sing Pao. — O sorriso de Gornt era sardônico. — É The Times em cantonense. Também estava na sua coluna de última hora. Mas, ao contrário de Orlanda, estou surpreso pelo fato de o senhor ainda não ter sido interceptado por membros da nossa imprensa inglesa. São muito diligentes, aqui em Hong Kong. Mais diligentes do que Orlanda diz que são.
Bartlett sentiu o perfume dela, mas continuou.
— Estou surpreso de que não tenha mencionado o fato, Sr. Gornt.
— E por que mencionaria? O que é que as armas têm a ver com a nossa possível futura associação? — Gornt deu uma risadinha abafada. — Se o pior acontecer, iremos visitá-lo na cadeia, Orlanda e eu.
Ela riu.
— Sem dúvida.
— Muitíssimo obrigado! — O perfume dela, de novo. Bartlett esqueceu as armas e concentrou-se nela. — Ramos... é espanhol?
— Português. De Macau. Meu pai trabalhava para a Rothwell-Gornt em Xangai... minha mãe nasceu lá. Fui criada em Xangai até 49, depois fui para os Estados Unidos durante alguns anos, para a escola secundária em San Francisco.
— É mesmo? Los Angeles é minha cidade natal... fiz a escola secundária no vale.
— Adoro a Califórnia — disse ela. — Que tal está achando Hong Kong?
— Acabo de chegar. — Bartlett abriu um sorriso. — Parece que tive uma entrada explosiva.
Ela riu. Lindos dentes brancos.
— Hong Kong não é má... desde que a gente possa sair daqui, mais ou menos de mês em mês. Devia passar um fim de semana em Macau... é antiquada, muito bonita, fica a apenas sessenta quilômetros de distância, com bom serviço de barcas. É muito diferente de Hong Kong. — Voltou-se para Gornt. — Mais uma vez, desculpe ter interrompido. Quillan, só quis dar um alô...
Começou a se retirar.
— Não, já acabamos... eu já ia embora — disse Bartlett, interrompendo-a. — Obrigado, mais uma vez, Gornt. Até terça, se não antes... Espero vê-la de novo, srta. Ramos.
— Seria um prazer. Eis meu cartão... se me der a entrevista, garanto que ela lhe será simpática.
Ela estendeu a mão, ele a tocou e sentiu seu calor.
Gornt acompanhou-o até a porta, depois fechou-a, voltou à sua mesa e pegou um cigarro. A moça acendeu o fósforo para ele, depois soprou a chama, e foi sentar-se na cadeira que Bartlett ocupara.
— Um cara bonitão — comentou.
— É. Mas é americano, ingênuo, e um filho da mãe arrogante que talvez precise baixar um pouco a crista.
— É o que quer que eu faça?
— Pode ser. Leu o dossiê dele?
— Li. Muito interessante. Orlanda sorriu.
— Não deve pedir-lhe dinheiro — disse Gornt, bruscamente.
— Ayeeyah, Quillan, será que sou tão burra? — perguntou ela, igualmente ríspida, olhos faiscando.
— Ótimo.
— Por que ele contrabandearia armas para Hong Kong? — É mesmo de se perguntar por quê, minha cara. Talvez alguém o esteja usando.
— Deve ser essa a resposta. Se tivesse todo o dinheiro que ele tem, jamais faria uma burrice dessas.
— Não — falou Gornt.
— Como é, gostou da história de eu ser uma repórter free lance? Achei que me saí muito bem.
— É, mas não o subestime. Não é nenhum tolo. É vivo. Vivíssimo. — Contou-lhe sobre o Casale. — É coincidência demais. Ele também deve ter um dossiê sobre a minha pessoa, e bem detalhado. Não há muita gente que saiba que gosto daquele restaurante.
— Quem sabe também estou no dossiê.
— Talvez. Não deixe que a pegue, na tal história de ser repórter free lance.
— Ora, qual é, Quillan? Quem, entre os tai-pans, exceto você e Dunross, lê os jornais chineses? e mesmo assim não podem ler todos. Já escrevi uma ou duas colunas... como "correspondente especial". Se ele me conceder a entrevista, posso escrevê-la. Não se preocupe. — Levou o cinzeiro para mais perto dele. — Saiu tudo bem, não foi? Com Bartlett?
— Perfeitamente. Está sendo desperdiçada. Devia estar trabalhando no cinema.
— Então fale com seu amigo a meu respeito, por favor, por favor, Quillan querido. Charlie Wang é o maior produtor de Hong Kong, e lhe deve tantos favores! Charlie Wang tem tantos filmes em andamento, que... só preciso de uma chance... podia me tornar uma estrela! Por favor!
— Por que não? — comentou ele, secamente. — Mas não creio que você seja o tipo dele.
— Posso me adaptar. Não agi exatamente como você queria, com Bartlett? Não estou vestida perfeitamente, à moda americana?
— É, está sim. — Gornt olhou para ela, depois falou, delicadamente: — Podia ser perfeita, para ele. Estava pensando que vocês dois podiam, quem sabe, ter algo mais permanente do que um simples caso...
Ela ficou completamente atenta.
— O quê?
— Você e ele podiam se ajustar como um perfeito quebra-cabeças chinês. Você é bem-humorada, da idade certa, linda, esperta, educada, maravilhosa na cama, muito inteligente, com verniz americano suficiente para deixá-lo à vontade. — Gornt exalou a fumaça e acrescentou: — E de todas as damas que conheço, você seria a que mais gastaria o dinheiro dele. É, vocês dois se encaixariam perfeitamente... ele seria ótimo para você, que iluminaria a vida dele consideravelmente. Não é?
— Ah, sim — retrucou ela, prontamente. — Ah, sim, iluminaria. — Sorriu, depois franziu o cenho. — Mas, e quanto à mulher que o acompanha? Estão juntos numa suíte do Vic. Ouvi falar que é maravilhosa. E quanto a ela, Quillan? Gornt deu um débil sorriso.
— Meus espiões dizem que eles não dormem juntos, embora sejam mais que amigos.
O rosto dela expressou desalento.
— Ele não é bicha, é?
Gornt soltou uma risada gostosa.
— Não faria isso com você, Orlanda! Não, estou certo que não. É só um acordo estranho que ele tem com Casey.
— Qual é?
Gornt deu de ombros. Após um momento, ela falou:
— O que faço com ela?
— Se Casey Tcholok está no seu caminho, afaste-a. Você tem garras.
— Você é... Às vezes não gosto de você nem um pouquinho.
— Somos ambos realistas, você e eu. Não somos?
A voz dele era inexpressiva, mas ela percebeu a violência latente. Prontamente, pôs-se de pé, debruçou-se sobre a mesa e deu-lhe um beijinho.
— Você é um demônio — falou, apaziguando-o. — Isto é pelos velhos tempos.
A mão dele buscou o seio dela, e ele suspirou, recordando, saboreando o calor que vinha através do tecido fino.
— Ayeeyah, Orlanda. Bons tempos aqueles, não?
Ela fora sua amante aos dezessete anos. Ele foi o seu primeiro homem e a manteve durante quase cinco anos; teria continuado a mantê-la, mas ela foi para Macau com um rapaz, quando ele estava fora, e aquilo chegara aos seus ouvidos. E então ele parará. Imediatamente. Embora tivessem uma filha, àquela altura, com um ano de idade.
— Orlanda — dissera-lhe, enquanto ela suplicava o seu perdão —, não há o que perdoar. Já lhe disse uma dúzia de vezes que a juventude precisa da juventude, e que chegaria o dia... Seque as lágrimas, case com o rapaz... dar-lhe-ei um dote, e a minha bênção. — E em meio a toda a choradeira dela, mantivera-se firme. — Continuaremos amigos — assegurara-lhe —, e cuidarei de você, quando precisar...
No dia seguinte, voltara todo o calor da sua fúria secreta contra o rapaz, um inglês, um executivo de menos importância das Propriedades Asiáticas, e no fim do mês já tinha acabado com ele.
— É uma questão de dignidade — disse a ela, calmamente.
— Ah, eu sei, compreendo, mas... o que faço agora? — choramingara ela. — Ele vai embora para a Inglaterra amanhã, quer que eu vá junto e case com ele, mas não posso casar agora, ele não tem dinheiro, nem futuro, nem emprego, nem dinheiro...
— Enxugue as lágrimas, depois vá fazer compras.
— Como?
— É, tome um presente. — Ele lhe dera um bilhete de ida e volta de primeira classe, para Londres, no mesmo avião em que o rapaz viajaria na classe turista. E mil libras em notas novinhas de dez libras. — Compre um monte de roupas bonitas, e vá ao teatro. Tem reserva no Connaught para onze dias... basta assinar a conta... e sua passagem de volta está confirmada, portanto, divirta-se e volte nova em folha, sem problemas!
— Ah, obrigada, Quillan querido, obrigada... sinto tanto. Você me perdoa?
— Não há o que perdoar. Mas se você voltar a falar com ele, ou a vê-lo em particular... jamais voltaria a ser amigo seu, ou da sua família.
Ela lhe agradecera profusamente, em meio às lágrimas, xingando-se pela sua estupidez, suplicando que a ira dos céus descesse sobre aquele que a atraiçoara. No dia seguinte, o rapaz tentara falar com ela no aeroporto, e no avião, e em Londres, mas ela o afastara, praguejando. Agora conhecia bem o seu lugar. No dia em que ela deixou Londres, ele cometeu suicídio.
Quando Gornt ouviu a novidade, acendeu um belo charuto e levou-a para jantar no topo do Victoria and Albert, com castiçais, toalha de mesa e talheres finos, e, depois que ele tomara o seu conhaque Napoléon e ela o seu creme de menthe, mandara-a para casa, sozinha, para o apartamento cujo aluguel ainda pagava. Pedira mais um conhaque e ficara ali, olhando para as luzes do porto e para o Pico, sentindo a glória da vingança, a majestade da vida, a sua dignidade recobrada.
— Ayeeyah, tivemos bons momentos — dizia Gornt agora, ainda desejando-a, embora não tivesse se deitado com ela desde que soubera de Macau.
— Quillan... — começou ela, sentindo-se também excitada com o toque dele.
— Não.
Os olhos dela voltaram-se para a porta interna.
— Por favor. Faz três anos, nunca houve ninguém...
— Obrigado, mas não. — Afastou-a dele, as mãos firmes nos seus braços, embora gentis. — Já tivemos o melhor — disse, como se fosse um connaisseur. — Não gosto de menos que o melhor.
Ela se sentou na beirada da mesa, olhando para ele, emburrada.
— Você sempre ganha, não é?
— No dia em que se tornar amante de Bartlett, eu lhe dou um presente — falou, calmamente. — Se ele a levar para Macau, e ficar com você abertamente por três dias, dou-lhe um Jaguar novo. Se a pedir em casamento, você ganha o apartamento com tudo o que tem dentro, e mais uma casa na Califórnia como presente de casamento.
Ela soltou uma exclamação abafada, depois sorriu, gloriosamente.
— Um XK-E preto, Quillan, seria perfeito! — E então, sua felicidade se evaporou. — O que há de tão importante nele? Por que é tão importante para você?
Ele simplesmente a fitou.
— Desculpe — disse ela —, desculpe, não devia ter perguntado.
Pensativa, pegou um cigarro, acendeu-o, inclinou-se para a frente e passou-o para ele.
— Obrigado — falou Gornt, vendo a curva do seio dela, curtindo-a, embora um pouco entristecido por tanta beleza ser tão transitória. — A propósito, não gostaria que Bartlett soubesse do nosso acordo.
— Nem eu. — Deu um suspiro e forçou um sorriso. Depois levantou-se e deu de ombros. — Ayeeyah, nunca teria durado mesmo entre nós, com ou sem Macau. Você teria mudado... teria se entediado, os homens sempre se entediam.
Ajeitou a maquilagem e a camisa, jogou-lhe um beijo e saiu. Ele fitou a porta fechada, depois sorriu e apagou o cigarro que ela lhe dera, sem tê-lo posto na boca, não querendo a mácula dos lábios dela. Acendeu um novo cigarro e cantarolou baixinho.
"Excelente", pensou, satisfeito. "Agora veremos, Sr. Maldito Arrogante Confiante Ianque Bartlett, agora veremos como segura a faca. Macarrão com cerveja, imagine!"
E então Gornt sentiu um cheirinho do perfume dela que permanecera no ar, e isso lhe trouxe momentaneamente lembranças de quando se deitavam juntos. Quando ela era mais jovem, forçou-se a se lembrar. Graças a Deus não há falta de juventude ou beleza por aqui, e uma substituta se arranja com um telefonema ou uma nota de cem dólares.
Pegou o telefone e discou um número particular especial, satisfeito porque Orlanda era mais chinesa do que européia. Os chineses são um povo tão prático!
O telefone parou de tocar e ele ouviu a voz resoluta de Paul Havergill.
— Pronto!
— Paul, Quillan. Como vão indo as coisas?
— Alô, Quillan... naturalmente já sabe que Johnjohn vai assumir a direção do banco em novembro.
— Já. Lamento muito.
— Que droga. Eu esperava ser confirmado, mas a junta diretora resolveu escolher Johnjohn. Ontem à noite a resolução tornou-se oficial. É Dunross de novo, a panelinha dele, a as malditas ações que possuem. E como foi o seu encontro?
— O nosso americano está meio indócil na pista, bem como eu previa. — Gornt deu uma boa tragada no cigarro e tentou manter a voz controlada. — O que acha de uma agitaçãozinha especial antes de se aposentar?
— O que está pretendendo?
— Vai sair no fim de novembro?
— Vou. Depois de vinte e três anos. De certa forma, não vou achar ruim.
"Nem eu", pensou Gornt, satisfeito. "Você está fora de moda, é conservador demais. A única coisa a seu favor é que odeia Dunross."
— É daqui a quase quatro meses. Isso nos daria tempo de sobra. A você, a mim e ao nosso americano.
— O que está pretendendo?
— Lembra-se de um dos meus planos de jogo hipotéticos, aquele a que dei o nome de "Competição"?
Havergill pensou por um momento.
— Sobre como assumir o controle de um banco rival ou eliminá-lo, não era? Por quê?
— Digamos que alguém tenha tirado o pó do plano, feito algumas modificações e apertado o botão de funcionamento... há dois dias. Digamos que alguém sabia que Dunross e os outros votariam pela sua eliminação e queria vingança. O Competição funcionaria perfeitamente.
— Não vejo por quê. Qual a vantagem de se atacar o Blacs? — O Banco de Londres, Cantão e Xangai era o maior rival do Victoria. — Não tem sentido.
— Ah, mas digamos que alguém tenha mudado o alvo, Paul.
— Para quem?
— Passo por aí às três horas, para explicar.
— Para quem?
— Richard.
Richard Kwang controlava o Ho-Pak Bank, um dos maiores dos muitos bancos chineses de Hong Kong.
— Santo Deus! Mas isso é... — Houve uma longa pausa. — Quillan, você começou mesmo o Competição... botou-o em ação?
— Foi, e ninguém sabe disso, exceto você e eu.
— Mas, como isso vai funcionar contra Dunross?
— Explico mais tarde. Ian pode cumprir seus compromissos com os navios?
Houve uma pausa, que Gornt percebeu.
— Sim — ouviu Havergill dizer.
— Sim, mas o quê?
— Mas estou certo de que dará um jeito.
— Que outros problemas Dunross tem?
— Desculpe, mas seria falta de ética.
— Claro. — Gornt acrescentou, suavemente: — Vou dizer a coisa de outro modo: digamos que o barco deles esteja balançando um pouco. Hem?
Uma pausa mais longa.
— No momento apropriado, uma onda pequenina poderia botá-los a pique, ou qualquer outra companhia. Até mesmo você.
— Mas não o Victoria Bank.
— Ah, não.
— Ótimo. Até logo mais, às três. — Gornt desligou e enxugou a testa de novo, excitadíssimo. Apagou o cigarro, fez um cálculo rápido, acendeu outro cigarro, depois discou. — Charles, Quillan. Está ocupado?
— Não. O que posso fazer por você?
— Quero um balanço geral.
Um balanço geral era um sinal particular para o advogado telefonar para oito representantes que comprariam ou venderiam no mercado de ações em lugar de Gornt, mas secretamente, para evitar que as negociações fossem descobertas como partindo dele. Todas as ações e o dinheiro passariam exclusivamente pelas mãos do advogado, para que nem os representantes nem os corretores soubessem para quem a transação estava sendo feita.
— Um balanço geral, Quillan, pois não. De que tipo?
— Quero vender a descoberto.
Vender a descoberto significava que venderia ações que não possuía, imaginando que o valor delas baixaria. Assim, antes que tivesse que recomprá-las — tinha para isso uma margem máxima de duas semanas, em Hong Kong —, se as ações realmente tivessem baixado, ele embolsaria a diferença. Claro, se arriscasse e perdesse, isto é, se as ações subissem de preço, teria que pagar a diferença.
— Que ações, e quantas?
— Cem mil ações do Ho-Pak...
— Meu Deus...
—...a mesma coisa, tão logo o mercado abra amanhã, e mais duzentas durante o dia. Depois lhe darei novas instruções.
Fez-se um silêncio atônito.
— Disse mesmo Ho-Pak?
— Disse.
— Vai levar tempo para arranjar todas essas ações. Santo Deus, Quillan, quatrocentas mil?
— Melhor arranjar mais cem mil. Meio milhão, certinho.
— Mas... mas a Ho-Pak é uma blue chip autêntica. Há anos que não baixa de valor.
— É.
— O que andou ouvindo?
— Boatos — falou Gornt, seriamente, rindo consigo mesmo. — Que tal almoçar cedo, lá no clube?
— Estarei lá.
Gornt desligou, depois discou outro número particular.
— Pronto.
— Sou eu — disse Gornt, cautelosamente. — Está sozinho?
— Estou. E?
— No nosso encontro, o ianque sugeriu uma incursão.
— Ayeeyah! E?
— E Paul está na jogada — falou, o exagero saindo com naturalidade. — Sigilo absoluto, naturalmente. Acabo de falar com ele.
— Então, pode contar comigo. Desde que eu fique com o controle dos navios da Struan, sua operação de propriedades em Hong Kong, e quarenta por cento das suas terras na Tailândia e em Cingapura.
— Você está brincando!
— Nada é demais para aniquilá-los, não é, meu rapaz? Gornt escutou a risada refinada e zombeteira e odiou Jason
Plumm por ela.
— Você o despreza tanto quanto eu — falou Gornt.
— Ah, mas você vai precisar de mim e dos meus amigos especiais. Mesmo com Paul em cima do muro, ou embaixo, você e o ianque não vão ter êxito, não sem mim e os meus.
— Por que outro motivo estaria conversando com você?
— Escute, não esqueça que não estou pedindo nenhum pedaço do bolo americano.
Gornt manteve a voz calma.
— E o que tem isso a ver com a história?
— Eu o conheço. Ah, sim, conheço, meu velho.
— Conhece mesmo?
— Conheço. Não vai se satisfazer apenas em destruir o nosso "amigo", vai querer o bolo inteiro.
— Não diga!
— Digo. Há muito tempo que está querendo pôr um pé no mercado americano.
— E você?
— Não. Sabemos de que saco é a nossa farinha. Satisfaze-mo-nos em seguir atrás, direitinho. Satisfazemo-nos com a Ásia. A gente não quer ser nobre coisa nenhuma.
— É?
— É. Então, negócio fechado?
— Não — falou Gornt.
— Deixarei de lado os navios. Em vez disso, ficarei com a Investimentos Kowloon de Ian, a operação Kai Tak, e quarenta por cento das terras na Tailândia e em Cingapura, e aceitarei vinte e cinco por cento da Par-Con e três postos na diretoria.
— Ora, vá se lixar!
— A oferta é válida até segunda-feira.
— Qual segunda-feira?
— A próxima.
— Dew neh loh moh para todas as suas segundas-feiras.
— E as suas! Farei uma última oferta. A Investimentos Kowloon e a sua operação Kai Tak, integral, trinta e cinco por cento das terras na Tailândia e em Cingapura, e dez por cento do bolo americano, com três postos na diretoria.
— Só isso?
— Só. Repito, a oferta é válida até segunda que vem. E não pense que pode nos engolir no meio do caminho.
— Ficou maluco?
— Já lhe disse... conheço você. Negócio fechado?
— Não.
Novamente a risada macia e malévola.
— Até segunda... segunda que vem. Tempo de sobra para você se decidir.
— Verei você logo mais na festa do Ian? — perguntou Gornt, suavemente.
— Está louco? Não iria nem se... Santo Deus, Quillan, você vai mesmo aceitar? Em pessoa?
— Não estava pretendendo ir... mas agora acho que vou. Não gostaria de perder o que talvez seja a última festança do último tai-pan da Struan...
12h01m
Na sala da diretoria, as coisas continuavam difíceis para Casey. Eles não pegavam nenhuma das iscas que lhes jogava. Sua ansiedade aumentara, e agora, enquanto esperava, sentiu uma onda de medo rebelde percorrê-la.
Phillip Chen rabiscava, Linbar mexia nos seus papéis, Jacques de Ville observava-a, pensativo. Então, Andrew Gavallan parou de anotar as últimas porcentagens que ela havia citado. Deu um suspiro e olhou para ela.
— Está claro que esta deve ser uma operação co-financiada — falou, vivamente. A eletricidade no aposento subiu assustadoramente, e Casey teve dificuldade em abafar um "viva", quando ele acrescentou: — Quanto a Par-Con estaria preparada para investir, em regime de financiamento conjunto, no negócio todo?
— Dezoito milhões de dólares americanos este ano dariam para cobrir tudo — respondeu imediatamente, notando satisfeita que todos abafaram uma exclamação.
O patrimônio líquido da Struan publicado no ano anterior fora de quase vinte e oito milhões, e ela e Bartlett haviam calculado sua oferta com base nessa cifra.
— Faça a primeira oferta de vinte milhões — Linc lhe dissera. — Deverá fisgá-los com vinte e cinco, o que seria formidável. É essencial que façamos o co-financiamento, mas a proposta terá que partir deles.
— Mas olhe para o balanço geral deles, Linc. Não dá para se saber ao certo qual é o verdadeiro patrimônio líquido. Pode ser dez milhões a mais ou a menos, talvez mais. Não sabemos realmente o quanto são fortes... ou fracos. Olhe só para este item: "Catorze milhões e setecentos mil retidos em subsidiárias". Que subsidiárias, onde e para quê? Eis aqui outro: "Sete milhões e quatrocentos mil transferidos para..."
— E daí, Casey? Então são trinta milhões, ao invés de vinte e cinco. Nossa projeção ainda é válida.
— É... mas a contabilidade deles... Meu Deus, Linc, se fizéssemos um por cento disso nos Estados Unidos, a SEC¹ nos arrancaria o couro, e acabaríamos passando cinqüenta anos na cadeia.
¹ Comissão de Títulos e Câmbio. (N. da T.)
— É. Mas não é contra a lei deles, e esse é um dos principais motivos para vir para Hong Kong.
— Vinte milhões é demais para começo de conversa.
— Deixo a seu critério, Casey. Basta lembrar que em Hong Kong jogamos pelas regras de Hong Kong... as que forem legais. Quero entrar no jogo deles.
— Por quê? E não me responda "Porra, para o meu prazer".
Linc achara graça.
— Está certo... então, para o seu prazer. Só não deixe de fechar o negócio com a Struan!
A umidade na sala de reuniões aumentara. Gostaria de pegar um lenço de papel, mas ficou quieta, fingindo calma, torcendo para que eles continuassem.
Gavallan rompeu o silêncio.
— Quando o Sr. Bartlett confirmaria a oferta de dezoito milhões... se aceitássemos?
— Está confirmada — disse docemente, ignorando o insulto. — Tenho carta branca para investir até vinte milhões nesta transação sem consultar Linc ou sua junta diretora — falou, dando-lhes deliberadamente espaço para manobrar. A seguir, acrescentou, inocentemente: — Então, tudo acertado? Ótimo. — Começou a mexer na sua papelada. — Próximo assunto: eu...
— Só um momento — disse Gavallan, desconcertado. — Eu... bem... dezoito é... De qualquer modo, temos que apresentar o pacote ao tai-pan.
— Oh — falou ela, fingindo surpresa. — Pensei que estávamos negociando como iguais, que os quatro cavalheiros tinham poderes equivalentes aos meus. Talvez seja melhor eu falar diretamente com o Sr. Dunross, no futuro.
Andrew Gavallan enrubesceu.
— O tai-pan tem a palavra final. Em tudo.
— Folgo muito em sabê-lo, Sr. Gavallan. Eu só tenho a palavra final até vinte milhões. — Abriu-lhes um sorriso. — Bem, apresentem a proposta ao seu tai-pan. E que tal marcarmos um prazo para o período de reflexão?
Novo silêncio.
— O que sugere? — perguntou Gavallan, sentindo-se cair numa armadilha.
— O tempo mínimo de vocês. Não conheço a rapidez com que gostam de trabalhar — replicou Casey.
Phillip Chen disse:
— Por que não deixar para marcar a hora para a resposta depois do almoço, Andrew?
— É... boa idéia.
— Para mim, tudo bem — disse Casey. "Fiz o meu trabalho", pensou. "Vou aceitar vinte milhões, quando podiam ser trinta, e eles são homens e fraquejados e maiores de idade, e pensam que sou uma otária. Mas agora, vou ganhar o meu dinheiro do não enche. Deus do céu, permita que este negócio se realize, para que eu fique livre para sempre.
"Livre para fazer o quê?
"Não importa", falou consigo mesma. "Penso nisso depois."
Ouviu a própria voz continuando no padrão estabelecido:
— Que tal repassarmos os detalhes de como vão querer os dezoito milhões e...
— Dezoito não é suficiente — interrompeu Phillip Chen, mentindo com toda a tranqüilidade. — Há toda a espécie de custos adicionais...
No perfeito estilo de negociações, Casey argumentou e deixou que eles a levassem até vinte milhões, e depois, com relutância aparente, falou:
— Os senhores são homens de negócios excepcionais. Pois bem, vinte milhões.
Notou os sorrisos disfarçados deles, e riu consigo mesma.
— Ótimo — falou Gavallan, muito satisfeito.
— E agora — disse ela, querendo continuar mantendo a pressão —, como querem que seja a estrutura da nossa joint venture? Claro, sujeita à aprovação do seu tai-pan... desculpem, sujeita à aprovação d'o tai-pan — falou, corrigindo-se com a dose certa de humildade.
Gavallan fitava-a, desejando irritado que fosse um homem. "Então, poderia dizer-lhe vá tomar no cu, ou vá à merda, e riríamos juntos, porque você sabe e eu sei que a gente sempre tem que consultar o tai-pan, de uma maneira ou outra... seja ele Dunross, Bartlett, uma junta diretora, ou uma mulher. É, e se você fosse homem, não teríamos esta maldita sexualidade enchendo a sala de reuniões, uma sexualidade que, para começo de conversa, não tem nada que ver com este lugar. Meu Deus, se ainda fosse uma bruxa velha, talvez fizesse diferença, mas, porra, uma uva como você?
"Mas que diabo está dando nas mulheres americanas? Por que, em nome de Deus, não ficam no seu lugar e se satisfazem com aquilo em que são excelentes? Cretinas!
"E é uma cretinice conceder financiamento tão depressa, e cretinice ainda maior dar-nos mais dois milhões, quando dez provavelmente teria sido uma quantia aceitável, para começo de conversa. Pelo amor de Deus, devia ter sido mais paciente, e teria feito um negócio bem melhor. Esse é o problema com vocês, americanos, não têm fines se, nem paciência, nem estilo, e não compreendem a arte da negociação, e você, minha cara moça, está impaciente demais para provar o seu valor. Portanto, agora sei como lidar com você."
Lançou um olhar para Linbar Struan, que observava Casey disfarçadamente, esperando que ele, Phillip ou Jacques continuassem. "Quando eu for tai-pan", pensou Gavallan, sombriamente, "vou destruí-lo, jovem Linbar, destruí-lo ou dar um jeito em você. Precisa ser lançado no mundo por conta própria, para pensar por si próprio, para confiar em si próprio, não no seu nome ou na sua linhagem. É, e com muito trabalho duro, para tirar um pouco do calor do seu yang — quanto mais cedo se casar de novo, melhor."
Voltou os olhos para Jacques de Ville, que sorriu para ele. "Ah, Jacques", pensou, sem rancor, "você é o meu principal adversário. Está fazendo o que costuma fazer: falando pouco, observando tudo, pensando muito... durão e cruel, se for necessário. Mas, o que está achando desta transação? Deixei passar alguma coisa? O que sua astuta mente legal parisiense está prevendo? Ah, mas ela cortou o seu barato com a piada sobre a sua piada sobre a cabeça dela, não foi?
"Também gostaria de ir para a cama com ela", pensou, distraidamente, sabendo que Linbar e Jacques já tinham decidido a mesma coisa. "Claro... quem não o faria?
"E quanto a você, Phillip Chen?
"Ah, não. Você, não. Gosta delas bem mais jovens, e gosta que façam a coisa com você estranhamente, se é que os boatos são verdadeiros, heya?"
Voltou a olhar para Casey. Podia sentir sua impaciência. "Você não parece lésbica", pensou, e gemeu intimamente. "Será esta a sua outra fraqueza? Puxa, mas que terrível desperdício seria!"
— A joint venture deve ser organizada segundo as leis de Hong Kong — disse ele.
— Naturalmente. Há...
— Sims, Dawson e Dick podem aconselhar-nos como agir. Marcarei hora para amanhã ou depois.
— Não será necessário, Sr. Gavallan. Já tenho as possíveis propostas deles, hipotéticas e confidenciais, claro, para o caso de decidirmos concluir o negócio.
— Como?
Eles a fitaram, boquiabertos, enquanto ela apanhava cinco cópias de um contrato legal resumido e entregava uma a cada um deles.
— Soube que eram seus advogados — falou, animada. — Mandei nosso pessoal se informar, e me disseram que eram os melhores, portanto, para nós está tudo bem. Pedi-lhes que considerassem as nossas necessidades hipotéticas conjuntas... tanto as suas quanto as nossas. Algum problema?
— Não — respondeu Gavallan, subitamente furioso porque sua própria firma nada lhes contara sobre as indagações da Par-Con. Começou a passar os olhos pela carta.
"Dew neh loh moh para esta Casey desgraçada, sejam lá quais forem os seus nomes", pensava Phillip Chen, furioso com a desmoralização. "Que a sua ravina dourada murche e seja para sempre seca e cheia de pó, pelos seus modos vulgares e seus hábitos abusados, nojentos, não-femininos!
"Deus nos livre das mulheres americanas!
"Ayeeyah, vai custar bem caro a Lincoln Bartlett ter ousado nos impingir... esta criatura", prometeu a si mesmo. "Que ousadia!"
Apesar disso, sua mente calculava o valor espantoso do negócio que lhes estavam oferecendo. "Significa pelo menos cem milhões de dólares americanos, potencialmente, ao longo dos próximos anos", disse a si mesmo, com a cabeça girando. "Isso dará à Casa Nobre a estabilidade de que precisa.
"Ah, que dia feliz!", rejubilava-se. "E um co-financiamento de dólar por dólar! Incrível! Que burrice dar-nos isso tão depressa sem exigir nem uma concessãozinha em troca! Burrice, mas o que se pode esperar de uma mulher burra? Ayeeyah, a costa do Pacífico se entupirá de todos os produtos de espuma de poliuretano que faremos... para embalagem, construção, pertences de cama e material isolante. Uma fábrica aqui, uma em Formosa, outra em Cingapura, uma em Kuala Lumpur, e uma última, inicialmente, em Jacarta. Ganharemos milhões, dezenas de milhões. E quanto à agência de arrendamento de computadores, ora, com o aluguel que esses idiotas estão nos oferecendo, dez por cento menos do que a lista de preços da IBM, menos a nossa comissão de sete e meio por cento... bastava pechinchar um pouco que teríamos concordado de bom grado com cinco por cento... já no próximo fim de semana posso vender três em Cingapura, uma aqui, outra em Kuala Lumpur, e uma para aquele armador pirata na Indonésia, com um lucro limpo de sessenta e sete mil e quinhentos dólares cada, ou quatrocentos e cinco mil dólares com seis telefonemas. E quanto à China...
"E quanto à China...
"Ah, todos os deuses, grandes, pequenos e muito pequenos, ajudem este negócio a se concretizar, e darei dinheiro para um novo templo, uma catedral, em Tai-ping Shan", prometeu, cheio de fervor. "Se a China não ficar muito em cima, ou pelo menos facilitar um pouquinho, poderemos fertilizar os arrozais da província de Kwantung e depois de toda a China, e durante os próximos doze anos esta transação significará dezenas de centenas de milhões de dólares, dólares americanos, não dólares de Hong Kong!"
A idéia de tanto lucro diminuiu sua ira consideravelmente.
— Acho que esta proposta pode ser a base para uma discussão posterior — disse, acabando de ler. — Não acha, Andrew?
— Acho. — Gavallan largou a carta. — Ligarei para eles depois do almoço. Quando seria conveniente para o Sr. Bartlett... e para a senhorita, naturalmente... nos encontrarmos?
— Hoje à tarde... quanto mais cedo melhor... ou amanhã, a qualquer hora, mas Linc não virá. Cuido de todos os detalhes, é o meu serviço — disse Casey, vivamente. — Ele determina a política a ser seguida... e assinará formalmente os documentos finais... depois que eu os tiver aprovado. Afinal, esta é a função do comandante supremo, não é?
Abriu-lhes um sorriso de orelha a orelha.
— Marcarei uma hora e deixarei recado no seu hotel — disse Gavallan.
— Quem sabe poderíamos marcar a hora agora... e já liquidar esse assunto?
Com azedume, Gavallan olhou para o relógio. Quase hora do almoço, graças a Deus.
— Jacques... qual a melhor hora para você, amanhã?
— Na parte da manhã é melhor do que à tarde.
— E para o John também — disse Phillip Chen. Gavallan pegou o telefone e discou.
— Mary? Ligue para Dawson e marque hora para amanhã às onze, incluindo o Sr. De Ville, o Sr. John Chen e a srta. Casey na entrevista. No escritório deles. — Desligou o aparelho. — Jacques e John Chen cuidam de todos os nossos assuntos corporativos. John tem experiência com problemas americanos, e Dawson é o perito. Mandarei um carro apanhá-la às dez e meia.
— Obrigada, mas não precisa se incomodar.
— Como queira — disse ele, cortesmente. — Talvez seja hora de pararmos para almoçar.
Casey falou:
— Ainda temos um quarto de hora. Vamos começar a debater como gostariam do nosso financiamento? Ou, se preferirem, podemos mandar buscar uns sanduíches e seguir trabalhando.
Eles a fitaram, aparvalhados.
— Trabalhar durante o almoço?
— Por que não? É um velho costume americano.
— Graças a Deus não é costume aqui — disse Gavallan.
— É — exclamou Phillip Chen, com brusquidão.
Ela sentiu a desaprovação deles cair sobre si como um manto, mas nem ligou. Que fossem todos à merda, pensou, com irritação, depois forçou-se a mudar de atitude. "Escute, idiota, não deixe esses filhos da puta pegarem no seu pé!" Sorriu meigamente:
— Se quiserem parar agora para almoçar, para mim tudo bem.
— Ótimo — disse Gavallan imediatamente, e os outros deram um suspiro de alívio. — Começamos a almoçar às doze e quarenta. Talvez queira retocar a maquilagem antes.
— Quero, sim, obrigada — falou, sabendo que eles a queriam longe dali, para poderem discutir a sua pessoa... e depois a transação. "Podia ser diferente", pensou, "mas não vai ser. Não. Vai ser como sempre. Vão apostar para ver quem será o primeiro a me comer. Mas não vai ser nenhum deles, porque eu não quero nenhum deles no momento, embora sejam atraentes, cada um ao seu modo. Esses homens são iguais a todos os outros que já conheci. Não querem amor, querem apenas sexo.
"Exceto Linc.
"Não pense em Linc nem no seu amor por ele, nem em como esses anos foram terríveis. Terríveis e maravilhosos.
"Lembre-se da sua promessa.
"Não pensarei em Linc e no amor.
"Não até o dia do meu aniversário, daqui a noventa e oito dias. No nonagésimo oitavo dia termina o sétimo ano, e, graças ao meu querido, terei o meu dinheiro do não enche, seremos realmente iguais e, se Deus quiser, teremos a Casa Nobre. Será este o meu presente de casamento para ele? Ou o dele para mim?
"Ou um presente de despedida?"
— Onde fica o toalete das senhoras? — perguntou, levantando-se, e todos ficaram de pé, bem mais altos do que ela, exceto Phillip Chen, que era uns dois centímetros e meio mais baixo. Gavallan indicou-lhe o banheiro.
Linbar Struan abriu a porta para ela, e fechou-a às suas costas. Depois, abriu um sorriso.
— Aposto mil que esta você não consegue, Jacques.
— Mais mil — disse Gavallan. — E dez que você não consegue, Linbar.
— A aposta está valendo — disse Linbar —, desde que ela passe um mês aqui.
— Está ficando muito devagar, hem, meu velho? — disse Gavallan. Depois, virou-se para Jacques. — E então?
O francês sorriu.
— Aposto vinte que você, Andrew, jamais conseguirá dobrar com o seu encanto a senhorita, e levá-la para a cama... e quanto a você, pobre jovem Linbar, cinqüenta contra o seu cavalo de corrida, que terá o mesmo resultado.
— Gosto da minha égua, pelo amor de Deus. Noble Star tem grande chance de ser vencedora. É a melhor do nosso estábulo.
— Cinqüenta.
— Cem, e posso pensar no seu caso.
— Não desejo nenhum cavalo a esse preço. — Jacques sorriu para Phillip Chen. — O que acha, Phillip?
Phillip Chen se levantou.
— Acho que vou para casa, deixando vocês, garanhões, com os seus sonhos. O gozado é que estão todos apostando que os outros não conseguirão... nenhum apostou que conseguirá.
Novamente, todos riram.
— Que burrice dar-nos o extra, não? — comentou Gavallan.
— O negócio é fantástico — disse Linbar Struan. — Puxa vida, tio Phillip, é fantástico!
— Como o derrière dela — falou De Ville, como um connaisseur. — Hem, Phillip?
Simpaticamente, Phillip Chen assentiu e saiu da sala, mas, ao ver Casey entrar no toalete das senhoras, pensou: "Ayeeyah, e quem ia querer esse monte de carne?"
Dentro do banheiro, Casey olhou à sua volta, estupefata. Era limpo, mas cheirava a ralos velhos, e havia baldes empilhados uns sobre os outros, e alguns estavam cheios de água. O chão era ladrilhado, mas estava molhado e sujo. "Já tinha ouvido dizer que os ingleses não primam pela higiene", pensou, enojada, "mas aqui na Casa Nobre? Puxa! Espantoso!"
Entrou num dos cubículos, com o chão molhado e escorregadio, e depois que acabou, puxou a descarga. Nada aconteceu. Tentou de novo, e mais uma vez, e nada. Praguejou e levantou a tampa do reservatório de água. Estava seco e enferrujado. Irritada, destrancou a porta, foi até a pia, abriu a torneira, mas não saiu água.
"Mas o que há com este lugar? Aposto que aqueles filhos da mãe me mandaram para cá deliberadamente."
Havia toalhas de mão limpas, portanto jogou um balde de água na pia, desajeitadamente, derrubando um pouco, lavou as mãos, enxugou-as, furiosa porque havia molhado os sapatos. Intempestivamente, pegou outro balde e jogou a água dentro da privada, depois usou mais outro balde para lavar de novo as mãos. Quando saiu do banheiro, sentia-se muito suja.
"Imagino que o raio do cano quebrou e o encanador só virá amanhã. Malditos sejam todos os sistemas de encanamento!
"Acalme-se", disse a si mesma. "Vai começar a cometer erros."
O corredor era coberto por um fino tapete de seda chinesa, e as paredes ostentavam quadros a óleo de veleiros e paisagens chinesas. Ao se aproximar da sala de reuniões, pôde ouvir as vozes abafadas e uma risada... do tipo que se dá ao ouvir uma piada pesada ou um comentário sujo. Sabia que, no momento em que abrisse a porta, o bom humor e a camaradagem desapareceriam e o silêncio constrangedor retornaria.
Abriu a porta, e todos se levantaram.
— Estão tendo problemas com os encanamentos? — perguntou, controlando a raiva.
— Não, acho que não — respondeu Gavallan, sobres-saltado.
— Bem, não há água. Não sabiam?
— Claro que não há... Oh! — Deteve-se. — Está hospedada no Victoria, portanto... Ninguém lhe contou da falta d'água?
Começaram todos a falar a uma só voz, mas a de Gavallan sobrepujou as outras.
— O Victoria tem sua própria caixa d'água, assim como mais um ou dois hotéis. O resto da cidade tem direito apenas a quatro horas diárias de quatro em quatro dias. Portanto, é preciso usar um balde. Não me ocorreu que a senhorita não soubesse. Desculpe.
— E como se ajeitam? De quatro em quatro dias?
— É. Durante quatro horas, das seis às oito, depois das dezessete às dezenove. É uma caceteação, claro, porque temos que juntar água para quatro dias. Baldes, banheiras, o que for possível encher. Já estamos com poucos baldes... o nosso dia de água é amanhã. Ah, meu Deus, havia água bastante para a senhorita, não?
— Havia, mas... Quer dizer que o fornecimento de água é cortado? Por toda parte?
— É — explicou Gavallan, pacientemente. — Exceto durante quatro horas a cada quatro dias. Mas no Victoria não há problemas. Como estão bem à beira-mar, podem encher a sua caixa d'água diariamente das barcaças... Claro que têm que comprar a água.
— Não podem tomar banho nem se lavar? Linbar Struan riu.
— Todo mundo fica meio gosmento, depois de três dias neste calor, mas pelo menos estamos todos no mesmo esgoto. Mas faz parte do treinamento de sobrevivência certificar-se de que há um balde cheio antes de ir ao banheiro.
— Eu não tinha a menor idéia — disse ela, consternada por ter usado três baldes.
— Nossos reservatórios estão vazios — explicou Gavallan. — Este ano quase não choveu, e o ano passado também houve seca. É uma chateação, mas o que se vai fazer? Coisas da vida. Azar.
— Então, de onde vem a água de vocês? Eles a fitaram, desconcertados.
— Da China, é claro. Por meio de canos, cruzando a fronteira nos Novos Territórios, ou por navio-tanque, do rio Pearl. O governo acaba de contratar uma frota de dez navios-tanques que sobem o rio Pearl, num acordo com Pequim. Eles nos trazem cerca de dez milhões de galões por dia. O governo vai gastar mais de vinte e cinco milhões de frete este ano. O jornal de sábado disse que o nosso consumo caiu para trinta milhões de galões por dia, para a nossa população de três milhões e meio... e isso inclui as indústrias. Dizem que no seu país uma pessoa usa cento e cinqüenta galões por dia.
— É igual para todos? Quatro horas a cada quatro dias?
— Até mesmo na Casa Grande usam-se baldes. — Gavallan deu de ombros de novo. — Mas o tai-pan tem uma casa em Shek-0 que tem poço próprio. Todos nós nos mandamos para lá quando somos convidados, para tirar o limo do corpo.
Ela pensou de novo nos três baldes que usara. "Meu Deus", pensou, "será que acabei com tudo? Não me lembro se sobrou alguma água."
— Acho que tenho muito o que aprender — falou. "É", pensaram todos. "É, porra, e como tem."
— Tai-pan?
— Sim, Claudia? — disse Dunross pelo intercomunicador.
— A reunião com Casey acaba de ser interrompida para o almoço. O Patrão Andrew está na linha 4. O Patrão Linbar está subindo.
— Adie tudo isso para depois do almoço. Teve alguma notícia de Tsu-yan?
— Não, senhor. O avião pousou na hora, às oito e quarenta. Ele não está no escritório em Taipé. Nem no apartamento. Vou continuar tentando, é claro. Mais uma coisa. Recebi um telefonema interessante, tai-pan. Parece que o Sr. Bartlett esteve na Rothwell-Gornt hoje de manhã, e teve uma entrevista particular com o Sr. Gornt.
— Tem certeza? — perguntou, uma sensação gelada no estômago.
— Ah, sim, tenho.
"Filho da mãe", pensou Dunross. "Será que Bartlett estava querendo que eu descobrisse?"
— Obrigado — disse, deixando o assunto de lado momentaneamente, mas muito contente por ter sabido. — Pode apostar mil dólares por minha conta em qualquer cavalo, no sábado.
— Ah, obrigada, tai-pan.
— Vamos voltar ao trabalho, Claudia. — Apertou o botão número 4. — Sim, Andrew? Qual a proposta?
Gavallan contou-lhe a parte importante.
— Vinte milhões em dinheiro? — perguntou, incrédulo.
— Em dinheiro americano, lindo, maravilhoso! — Dunross podia sentir a alegria do outro através do telefone. — E quando perguntei quando Bartlett confirmaria a transação, a safadinha teve o topete de dizer: "Ah, já está confirmada... tenho poderes para investir até vinte milhões nessa transação sem consultá-lo, ou a qualquer outra pessoa". Acha possível?
— Não sei. — Os joelhos de Dunross estavam um pouco bambos. — Bartlett está para chegar a qualquer momento. Perguntarei a ele.
— Ei, tai-pan, se isso se concretizar...
Mas Dunross mal escutava enquanto Gavallan continuava a falar, entusiasmadíssimo. "É uma oferta inacreditável", dizia a si mesmo.
"É boa demais. Onde está a falha?
"Onde está a falha?"
Desde que se tornara tai-pan tivera que se virar, mentir, bajular e até ameaçar — como a Havergill, do banco — muito mais do que imaginara, para superar os desastres que herdara, e os desastres naturais e políticos que pareciam assolar o mundo. Mesmo a transformação da Struan em companhia de capital aberto não lhe dera o capital e o tempo que esperara ter, porque uma baixa mundial fizera o mercado em pedaços. E em agosto do ano anterior o tufão Wanda viera com força total, deixando a desgraça no seu rastro, centenas de mortos, centenas de milhares de desabrigados, meio milhar de barcos de pesca e vinte navios afundados, um dos seus navios de três toneladas lançado à terra, o seu gigantesco e inacabado cais destroçado e todo o seu programa de construção interrompido totalmente por seis meses. No outono, a crise cubana, e outra queda do mercado. Na primavera, De Gaulle vetara a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu, e nova queda. China e Rússia às turras, nova baixa do mercado...
"E agora tenho quase vinte milhões de dólares americanos, mas acho que estamos envolvidos, de alguma maneira, em contrabando de armas. Tsu-yan aparentemente pôs-se em fuga, e John Chen está sabe lá Deus onde!"
— Puta que o pariu! — resmungou, com raiva.
— O quê? — Gavallan parou de falar, aparvalhado. — O que foi?
— Nada, nada, Andrew — falou. — Nada com você. Fale-me dela. Que tal é?
— Boa de cálculo, ligeira e confiante, mas impaciente. E é a garota mais bonita que vejo há anos, aparentemente com o melhor par de mamas na cidade. — Gavallan contou-lhe das apostas. — Acho que Linbar está correndo por dentro.
— Vou despedir Foster e mandar Linbar para Sydney durante seis meses, para dar um jeito nas coisas por lá.
— Ótima idéia. — Gavallan riu. — Isso vai fazer com que pare de arrotar grandeza... embora digam que as moças da Austrália são muito "dadivosas".
— Acha que esse negócio vai ser fechado?
— Acho. Phillip estava eufórico com a proposta. Mas é uma merda negociar com uma mulher, juro. Acha que poderíamos chutá-la para escanteio e lidar diretamente com Bartlett?
— Não. Ele deixou bem claro na sua correspondência que K. C, Tcholok era quem faria as negociações.
— Ora bolas... então vamos em frente! O que não fazemos pela Casa Nobre!
— Já encontrou o ponto fraco dela?
— Impaciência. Ela quer "se enturmar"... ser um dos rapazes. Diria que o calcanhar-de-aquiles dela é que deseja desesperadamente ser aceita no mundo masculino.
— Não há mal em desejar isso... como o Santo Graal.
A reunião com Dawson foi marcada para amanhã às onze?
— Foi.
— Mande Dawson cancelá-la, mas não antes das nove de amanhã. Diga-lhe que dê uma desculpa qualquer e marque nova reunião para quarta-feira ao meio-dia.
— Boa idéia, deixá-la meio no ar, hem?
— Diga ao Jacques que eu mesmo vou à reunião.
— Sim, tai-pan. E quanto a John Chen? Vai querer que ele vá?
Depois de uma pausa, Dunross falou:
— Vou. Já o viu?
— Não. É esperado para o almoço... quer que vá caçá-lo?
— Não. Onde está Phillip?
— Foi para casa. Voltará às duas e meia.
Ótimo, pensou Dunross. Não se preocuparia mais com John Chen até aquela hora.
— Ouça... — O intercomunicador soou. — Um minutinho, Andrew. — Apertou o botão de espera. — Sim, Claudia?
— Desculpe a interrupção, tai-pan, mas sua ligação para o Sr. Jen, em Taipé, está na linha 2, e o Sr. Bartlett acaba de chegar lá embaixo.
— Faça-o entrar tão logo eu acabe de falar com Jen. — Apertou de novo a linha 4. — Andrew, talvez eu me atrase alguns minutos. Sirva drinques e banque o anfitrião por mim. Eu mesmo levarei Bartlett lá para cima.
— Certo.
Dunross apertou a linha 2.
— Tsaw an? — disse, em dialeto mandarim. — Como vai? Feliz por falar com o tio de Wei-wei, general Jen Tang-wa, subchefe da polícia secreta ilegal do Kuomintang em Hong Kong.
— Shey-shey — depois, em inglês: — O que há, tai-pan?
— Achei que devia saber... — Dunross contou-lhe rapidamente sobre as armas e Bartlett, e que a polícia estava envolvida, mas não sobre Tsu-yan ou John Chen.
— Ayeeyah! Muito curioso.
— Foi o que também achei. Muito curioso.
— Está convencido de que não é coisa do Bartlett?
— Estou. Parece não haver motivo para tal. Motivo algum. Seria uma estupidez usar o próprio avião. Bartlett não é estúpido — falou Dunross. — Quem precisaria desses armamentos aqui?
Fez-se uma pausa.
— Elementos criminosos.
— Tríades?
— Nem todas as tríades são criminosas.
— Não — disse Dunross.
— Verei o que posso descobrir. Tenho certeza de que não tem nada a ver conosco, Ian. Ainda vem para cá no domingo?
— Vou.
— Ótimo. Verei o que posso descobrir. Drinques às dezoito horas?
— Não poderia ser às vinte? Já se encontrou com Tsu-yan?
— Pensei que ele só viria no fim de semana. Não vai fazer o nosso quarteto na segunda-feira, com o americano?
— Vai. Ouvi dizer que tomou um avião hoje cedo para aí — disse Dunross, tentando falar com naturalidade.
— Com certeza vai me ligar... quer que ele telefone para você?
— Quero. A qualquer hora. Mas não é nada importante. Até domingo, às oito.
— Até, e obrigado pela informação. Se souber de alguma coisa, telefono imediatamente. Adeus.
Dunross desligou o aparelho. Estivera prestando muita atenção ao tom de voz de Jen, mas não percebeu nada de diferente. Onde diabo se metera Tsu-yan?
Uma batida à porta.
— Entre. — Levantou-se e foi receber Bartlett. — Alô.
— Sorriu e estendeu a mão. — Sou Ian Dunross.
— Linc Bartlett. — Apertaram-se as mãos com firmeza.
— Cheguei cedo demais?
— Está bem na hora. Deve saber que gosto de pontualidade. — Dunross riu. — Ouvi dizer que a reunião correu muito bem.
— Ótimo — replicou Bartlett, perguntando-se se Dunross estava se referindo à reunião com Gornt. — Casey conhece os fatos e os números.
— Meus companheiros ficaram muito impressionados. Ela disse que tinha poderes para concluir as negociações. Tem, Sr. Bartlett?
— Pode negociar e confirmar até vinte milhões. Por quê?
— Por nada. Só queria conhecer seu modo de trabalhar. Por favor, queira sentar-se. Ainda temos alguns minutos. O almoço só começa às doze e quarenta. Parece que temos um empreendimento lucrativo à nossa frente.
— Espero que sim. Tão logo eu fale com Casey. Quem sabe o senhor e eu possamos conversar?
Dunross verificou sua agenda.
— Amanhã às dez. Aqui?
— Combinado.
— Fuma?
— Não, obrigado. Parei faz alguns anos.
— Eu também... mas ainda sinto falta de um cigarro. — Dunross recostou-se na cadeira. — Antes de irmos almoçar, Sr. Bartlett, temos algumas coisinhas a conversar. Vou para Taipé no domingo à tarde, devo voltar na terça até a hora do jantar, e gostaria que o senhor fosse comigo. Gostaria que conhecesse umas pessoas, teremos um jogo de golfe de que poderá participar. Poderíamos conversar com bastante calma, e o senhor poderia ver os prováveis locais das fábricas. Poderia ser importante. Já tomei todas as providências, mas não será possível levar a srta. Tcholok.
Bartlett franziu o cenho, perguntando-se se a escolha de terça-feira seria apenas uma coincidência.
— Segundo o superintendente Armstrong, não posso sair de Hong Kong.
— Estou certo de que daremos um jeito nisso.
— Então também já sabe das armas? — perguntou Bartlett, e depois se xingou pelo deslize. Conseguiu manter o olhar firme.
— Sei, sim. Há mais alguém incomodando-o por causa delas? — perguntou Dunross, observando-o.
— A polícia até interrogou Casey! Meu Deus! Meu avião está retido, somos todos suspeitos, e não sei coisíssima alguma sobre arma nenhuma.
— Bem, não há por que se preocupar, Sr. Bartlett. A nossa polícia é muito boa.
— Não estou preocupado, só chateado.
— É compreensível — falou Dunross, satisfeito porque o encontro com Armstrong fora confidencial. Muito satisfeito.
"Santo Deus", pensou, inquieto, "se John Chen e Tsu-yan estiveram envolvidos de alguma forma, Bartlett vai ficar chateado de verdade, e perderemos o negócio. Ele vai se unir ao Gornt e então..."
— Como soube das armas?
— Fomos informados pelo nosso escritório em Kai Tak, hoje de manhã.
— Uma coisa dessas já aconteceu antes?
— Já. — Dunross acrescentou, despreocupadamente: — Mas não há mal algum num contrabandozinho, mesmo de armas. Na verdade é uma profissão muito honrada, mas é claro que o fazemos em outras bandas.
— Onde?
— Onde o governo de Sua Majestade o desejar. — Dunross riu. — Somos todos piratas aqui, Sr. Bartlett, pelo menos para o pessoal de fora. — Fez uma pausa. — Caso eu possa ajeitar as coisas com a polícia, irá a Taipé?
Bartlett disse:
— Casey sabe ficar de boca fechada.
— Não estou sugerindo que não seja digna de confiança.
— Só que não está sendo convidada?
— Alguns dos nossos costumes aqui são um tanto diferentes dos seus, Sr. Bartlett. Na maioria das vezes ela será bem-vinda... mas, às vezes, bem, pouparia muito embaraço se fosse excluída.
— Casey não fica embaraçada com facilidade.
— Não estava pensando no embaraço dela. Desculpe ser franco, mas, tudo somado, talvez fosse mais sensato.
— E se eu não "me sujeitar"?
— Provavelmente significará que vai perder uma oportunidade única, o que seria uma pena... principalmente se pretende ter uma associação a longo prazo com a Ásia.
— Pensarei no assunto.
— Desculpe, mas preciso de uma resposta agora.
— Precisa?
— Preciso.
— Então vá para o diabo! Dunross abriu um sorriso.
— Não vou, não. Como é, definitivamente: sim ou não? Bartlett desatou a rir.
— Já que não tenho outra escolha, pode contar comigo para ir a Taipé.
— Ótimo. Naturalmente, minha mulher cuidará da srta. Tcholok enquanto estivermos fora. Ela não se sentirá desprestigiada.
— Obrigado. Mas não precisa se preocupar com Casey. Que jeito vai dar no Armstrong?
— Não vou dar jeito nenhum nele. Apenas solicitar ao comissário assistente que me permita ficar responsável pelo senhor, ida e volta.
— Vou ficar em liberdade condicional, sob sua custódia?
— É.
— Como sabe que não vou sair da cidade? E se eu estiver mesmo contrabandeando as armas?
Dunross fitou-o.
— Talvez esteja. Talvez tente... mas posso trazê-lo de volta vivo ou morto, como dizem no cinema. Hong Kong e Taipé ficam dentro do meu feudo.
— Vivo ou morto, hem?
— Hipoteticamente, é claro.
— Quantos homens já matou na vida?
A atmosfera na sala se modificou, e os dois homens sentiram profundamente a mudança.
"Ainda não há nada de perigoso entre nós dois", pensou Dunross. "Ainda não."
— Doze — replicou, os sentidos alerta, embora a pergunta o houvesse pegado de surpresa. — De doze tenho certeza. Fui piloto de caça durante a guerra. Spitfires. Derrubei dois caças de um só passageiro, um Stuka e dois bombardeiros... Eram Dornier 17 e deveriam ter uma tripulação de quatro homens cada. Todos os aviões incendiaram-se ao cair. De doze tenho certeza, Sr. Bartlett. Claro que atiramos em muitos trens, comboios, concentrações de tropas. Por quê?
— Ouvi dizer que foi aviador. Acho que nunca matei ninguém. Estava construindo campos, bases no Pacífico, coisas assim. Nunca disparei uma arma com raiva.
— Mas gosta de caçar?
— Gosto. Participei de um safári no Quênia, em 1959. Matei um elefante e um grande antílope africano, e muitos animais para a panela.
— Acho que prefiro matar aviões, trens e barcos. Os homens, na guerra, são incidentais. Não são? — disse Dunross depois de uma pausa.
— Uma vez que o general foi posto em campo pelo governante, é claro. É um fato da guerra.
— Leu A arte da guerra, de Sun Tse?
— O melhor livro sobre a guerra que já li — falou Bartlett entusiasticamente. — Melhor que Clausewitz ou Liddel Hart, embora tenha sido escrito em 500 a.C.
— É? — Dunross recostou-se na cadeira, satisfeito por deixarem as mortes de lado. "Há anos que não me lembrava dessas mortes", pensou. "Não é justo para com aqueles homens, é?"
— Sabia que o livro de Sun Tse foi publicado em francês em 1782? Tenho uma teoria de que Napoleão tinha um exemplar dele.
— É certo que foi publicado em russo... e Mao sempre carregava consigo um exemplar supermanuseado — falou Dunross.
— O senhor o leu?
— Meu pai me forçou, tive que lê-lo no original... em chinês. E depois ele me fazia perguntas, muito seriamente.
Uma mosca começou a bater irritantemente contra a vidraça.
— Seu pai queria que fosse soldado?
— Não. Sun Tse, como Maquiavel, escreveu mais sobre a vida do que sobre a morte... e mais sobre a sobrevivência do que a guerra...
Dunross olhou para a janela, depois se levantou e foi até lá, destruindo a mosca com uma selvageria controlada que serviu como uma advertência a Bartlett.
Dunross voltou para a mesa.
— Meu pai achava que eu devia entender de sobrevivência, e saber como lidar com grandes grupos de homens. Queria que fosse digno de ser tai-pan, algum dia, embora achasse que eu nunca ia valer grande coisa.
Deu um sorriso.
— Ele também foi tai-pan?
— Foi. E muito bom. No começo.
— O que aconteceu?
Dunross deu uma risada sardônica.
— Querendo descobrir nossos segredos de família tão cedo, Sr. Bartlett? Bem, em resumo, tivemos uma diferença de opinião muito aborrecida e prolongada. Então, ele passou o cargo para o meu antecessor, Alastair Struan.
— Ele ainda vive?
— Vive.
— Quer dizer, em sua discrição britânica, que foi à luta com ele?
— Sun Tse é muito específico sobre ir à luta, Sr. Bartlett. É muito ruim guerrear, a não ser que seja necessário. Citando-o: "A suprema excelência do generalato consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar".
— O senhor o quebrou?
— Ele se retirou do campo, Sr. Bartlett, como homem sensato que era.
A fisionomia de Dunross endurecera. Bartlett o fitava. Os dois homens sabiam que, mesmo a contragosto, estavam traçando linhas de batalha.
— Estou contente por ter vindo a Hong Kong — disse o americano. — Estou contente por tê-lo conhecido.
— Obrigado. Quem sabe um dia não estará. Bartlett deu de ombros.
— Quem sabe. Entrementes, temos um negócio em estudos... bom para vocês, bom para nós. — Abriu um sorriso repentino, lembrando-se de Gornt e da faca de cozinha. — É. Estou contente por ter vindo a Hong Kong.
— O senhor e Casey aceitariam ser meus convidados hoje à noite? Vou dar uma festinha modesta, por volta das oito e meia.
— Traje a rigor?
— Dinner jacket, está bem?
— Ótimo. Casey falou que vocês gostam de black-tie e coisa e tal. — Foi então que Bartlett notou o quadro na parede: uma tela antiga de uma linda chinesinha barqueira carregando um garotinho inglês, com os cabelos louros presos numa trança. — É um Quance? Um Aristotle Quance?
— É, é sim — disse Dunross, mal disfarçando a surpresa. Bartlett aproximou-se e examinou o quadro.
— Este é o original?
— É. Entende muito de arte?
— Não, mas Casey me falou de Quance quando vínhamos para cá. Disse que é quase como um fotógrafo, um historiador dos tempos antigos.
— É mesmo.
— Se me lembro direito, este aqui é o retrato de uma moça chamada May-may, May-may T'Chung, e a criança é um dos filhos que teve com Dirk Struan?
Dunross ficou calado, fitando as costas de Bartlett. Bartlett olhou mais de perto.
— É difícil enxergar os olhos. Então o garoto é Gordon Chen, o futuro Sir Gordon Chen?
Virou-se e olhou para Dunross.
— Não sei ao certo, Sr. Bartlett. Esta é uma das histórias que correm.
Bartlett observou-o por um momento. Os dois homens combinavam bem, Dunross um pouquinho mais alto, mas Bartlett de ombros mais largos. Ambos tinham olhos azuis, os de Dunross levemente mais esverdeados, os de ambos bem espaçados em rostos vividos.
— Gosta de ser o tai-pan da Casa Nobre? — perguntou Bartlett.
— Gosto.
— Não sei ao certo quais os poderes de um tai-pan, mas na Par-Con posso contratar e despedir quem quiser, e posso fechar a companhia, se me der na telha.
— Então, é um tai-pan.
— Então, também gosto de ser tai-pan. Quero pôr um pé na Ásia, o senhor, nos Estados Unidos. Juntos podemos enfiar toda a costa do Pacífico numa sacola e carregá-la, nós dois.
"Ou preparar uma mortalha para um de nós", pensou
Dunross, gostando de Bartlett, a despeito de saber que era perigoso gostar dele.
— Tenho o que lhe falta, o senhor tem o que me falta.
— É — concordou Dunross. — E agora o que nos falta é almoçar.
Dirigiram-se para a porta. Bartlett chegou primeiro. Mas não a abriu imediatamente.
— Sei que não é o costume de vocês, mas já que vamos juntos para Taipé, não podia me chamar de Linc, e eu chamá-lo de Ian, e começarmos desde já a calcular quanto vamos apostar na partida de golfe? Estou certo de que o meu hanà-icap é 13, oficialmente, e sei que o seu é 10, oficialmente, o que provavelmente quer dizer pelo menos uma tacada extra de cada um, por medida de segurança.
— Por que não? — concordou Dunross imediatamente. — Mas aqui não costumamos apostar dinheiro, só bolas.
— Pois sim que vou apostar as do meu saco numa partida de golfe!
Dunross achou graça.
— Pode ser que aposte, algum dia. Normalmente apostamos meia dúzia de bolas de golfe aqui... mais ou menos isso.
— É um mau costume britânico apostar dinheiro, Ian?
— Não. Que tal quinhentos cada lado, e o vencedor leva tudo?
— Americanos ou de Hong Kong?
— Hong Kong. Entre amigos, devem ser os de Hong Kong. Inicialmente.
O almoço foi servido na sala de jantar particular dos diretores, no décimo nono andar. Era uma sala de canto em forma de L, com teto alto e cortinas azuis, tapetes chineses azuis mosqueados, e janelas amplas de onde se podia ver Kowloon e os aviões pousando e decolando em Kai Tak, a ilha Stonecutters e a ilha Tsing Yi a oeste, e, mais além, parte dos Novos Territórios. A mesa de carvalho antiga e grande, que comportava facilmente vinte pessoas, estava posta com um jogo americano, talheres de prata e o melhor cristal Waterford. Para os seis comensais havia quatro garçons silenciosos e bem-treinados, de calças pretas e túnicas brancas bordadas com o emblema da Struan.
Os coquetéis já haviam começado a ser servidos quando Bartlett e Dunross chegaram. Casey tomava um martíni seco junto com os outros... excetuando Gavallan, que tomava um gim cor-de-rosa duplo. Sem precisar fazer o pedido, Bartlett recebeu uma lata supergelada de cerveja Anweiser numa salva de prata georgiana.
— Quem lhe contou? — perguntou Bartlett, encantado.
— Com os cumprimentos de Struan e Companhia — disse Dunross. — Soubemos que é assim que gosta. — Apresentou-o a Gavallan, De Ville e Linbar Struan, e aceitou uma taça de chablis gelado, depois sorriu para Casey: — Como vai?
— Bem, obrigada.
— Com licença — disse Bartlett aos outros —, mas tenho que dar um recado a Casey, antes que me esqueça. Casey, quer ligar para o Johnston em Washington, amanhã?... descubra quem seria o nosso melhor contato no consulado aqui.
— Claro. Se não conseguir falar com ele, perguntarei a Tim Diller.
Qualquer referência a Johnston queria dizer, em código: que tal vai indo o negócio? Na resposta: Diller queria dizer bem; Tim Diller, muito bem; Jones, mal; George Jones, muito mal.
— Boa idéia — respondeu Bartlett, sorrindo, depois voltou-se para Dunross. — Que belo aposento!
— É adequado — replicou Dunross.
Casey riu, percebendo a desvalorização propositada do ambiente.
— A reunião correu muito bem, Sr. Dunross — disse. — Chegamos a uma proposta para ser submetida à sua apreciação.
"Bem típico de um americano. Que falta de finesse! Será que ela não sabe que os negócios devem ser discutidos depois do almoço, não antes?"
— É, Andrew me falou por alto — retrucou Dunross. — Quer mais uma bebida?
— Não, obrigada. Acho que a proposta cobre todos os tópicos, senhor. Há algum ponto que deseja que eu esclareça?
— Tenho certeza de que haverá, futuramente — disse Dunross, intimamente divertido, como sempre, pelo senhor que muitas mulheres americanas usavam em conversa, e com freqüência, incongruentemente, ao se dirigirem aos garçons. — Tão logo eu a estude, conversarei com a senhorita. Uma cerveja para o Sr. Bartlett — acrescentou, tentando mais uma vez transferir os negócios para depois. Em seguida, dirigiu-se a Jacques: — Ça va?
— Oui, merci. À rien. Nada ainda.
— Não se preocupe — disse Dunross. Na véspera, a filha adorada de Jacques e o marido, que estavam de férias na França, haviam sofrido um feio acidente de carro. Ele ainda não conhecia direito as proporções do acidente. — Não se preocupe.
— Não.
Novamente o dar de ombros gaulês, ocultando a enormidade da sua preocupação.
Jacques era primo-irmão de Dunross, e entrara para a Struan em 45. A guerra dele fora tétrica. Em 1940, mandara a mulher e os dois filhos pequenos para a Inglaterra e permanecera na França. Até o fim da guerra. Maquis, prisão, condenação, fuga e maquis de novo. Estava com cinqüenta e quatro anos, era um homem forte e quieto, mas perigoso quando provocado, com um peito largo, olhos castanhos, mãos rudes e muitas cicatrizes.
— Em princípio o negócio lhe parece bom? — perguntou Casey.
Dunross soltou um suspiro, intimamente, e concentrou-se integralmente nela.
— Posso apresentar uma contraproposta em um ou dois pontos de menor importância. Entrementes — acrescentou, com decisão —, pode estar certa de que, em termos gerais, a proposta parece aceitável.
— Ah, que bom! — exclamou Casey, feliz.
— Ótimo — disse Bartlett, igualmente satisfeito, e ergueu sua lata de cerveja. — Bebamos a uma conclusão bem-sucedida, e a grandes lucros... para vocês e para nós.
Brindaram, os outros percebendo os sinais de perigo em Dunross, imaginando qual seria a contraproposta do tai-pan.
— Vai levar muito tempo para concluir, Ian? — perguntou Bartlett, e todos eles ouviram o Ian. Linbar Struan não ocultou uma careta.
Para espanto geral, Dunross apenas respondeu:
— Não. — Era como se o tratamento familiar fosse muito comum. Acrescentou: — Duvido que os advogados levantem algum obstáculo intransponível.
— Vamos nos encontrar com eles amanhã às onze — disse Casey. — O Sr. De Ville, John Chen e eu. Já tivemos a aprovação prévia deles... sem problemas, por esse lado.
— Dawson é muito bom, especialmente em leis de taxação americanas.
— Casey, quem sabe devemos trazer nosso especialista em impostos de Nova York — falou Bartlett.
— Claro, Linc, logo que estivermos de acordo. E o Forrester. — Para Dunross, explicou: — É o chefe da nossa divisão de espumas.
— Ótimo. E, agora, chega de falar de negócios antes do almoço — disse Dunross. — Regras da casa, srta. Casey: nada de papo comercial durante as refeições, faz mal para a digestão.
— Fez sinal para Lim. — Não vamos esperar pelo Patrão John.
Instantaneamente os garçons se materializaram e as cadeiras foram puxadas; havia nomes datilografados nos marcadores de lugar de prata, e a sopa foi servida.
O menu previa xerez com a sopa, chablis com o peixe — ou clarete com a carne assada e o pudim Yorkshire, se preferissem —, vagens, batatas e cenouras cozidas. Trifle de xerez, doce típico inglês, como sobremesa. Vinho do Porto com os queijos.
— Quanto tempo vai ficar por aqui, Sr. Bartlett? — perguntou Gavallan.
— O tempo que for necessário. Mas, Sr. Gavallan, já que parece que vamos nos dar comercialmente por muito tempo, que tal deixar de lado o Sr. Bartlett e a srta. Casey e nos chamar de Linc e Casey?
Gavallan manteve os olhos fitos em Bartlett. Gostaria de ter dito: "Bem, Sr. Bartlett, gostamos de ir com calma nessas coisas, por aqui... é um dos poucos modos de se diferenciar os amigos dos conhecidos. Para nós, os nomes de batismo são uma coisa particular. Mas, como o tai-pan não fez objeções ao espantoso Ian, não há nada que eu possa fazer".
— Por que não, Sr. Bartlett? — falou, serenamente. — Não é necessário fazer cerimônia. É?
Jacques de Ville, Struan e Dunross riram-se intimamente do Sr. Bartlett e do modo hábil com que Gavallan transformara a aceitação indesejável num fora e num desprestígio que nenhum dos americanos jamais compreenderia.
— Obrigado, Andrew — disse Bartlett. A seguir, acrescentou: — Ian, posso alterar as regras e fazer mais uma pergunta antes do almoço? Seria possível você concluir o acordo até a terça que vem, de uma maneira ou de outra?
Instantaneamente, a atmosfera da sala se modificou. Lim e os outros criados hesitaram, chocados. Todos os olhares se dirigiram para Dunross. Bartlett achou que tinha ido longe demais, e Casey teve certeza disso. Estivera observando Dunross. A expressão dele não se modificara, mas os olhos, sim. Todos na sala sabiam que o tai-pan fora pressionado como por um adversário num jogo de pôquer. Jogue ou passe. Até a próxima terça-feira.
Ficaram esperando. O silêncio parecia pesar. E pesar.
Então, Dunross o rompeu.
— Dou-lhe a resposta amanhã — falou, com voz calma, e o momento passou. Todos suspiraram intimamente, os garçons continuaram seu trabalho e todos se descontraíram. Exceto Linbar. Ainda podia sentir as palmas das mãos molhadas de suor, porque somente ele, entre todos, conhecia o fio que corria por dentro de todos os descendentes de Dirk Struan — um ímpeto de violência repentino, estranho, quase primitivo —, e quase o vira vir à tona então, quase, mas não viera. Desta feita, fora embora. Mas o fato de saber que existia, e a sua proximidade, o aterrorizavam.
Ele próprio descendia do ramo de Robb Struan, meio irmão e sócio de Dirk Struan. Portanto não tinha o sangue de Dirk Struan nas veias. Ressentia-se disso amargamente, e detestava Dunross ainda mais por deixá-lo doente de inveja.
"A maldição da Bruxa Struan caia sobre você, maldito Ian Dunross, e sobre todos os seus descendentes", pensou, e estremeceu involuntariamente, ao pensar nela.
— O que foi, Linbar? — perguntou Dunross.
— Oh, nada, tai-pan — respondeu, quase morrendo de susto. — Nada... só um pensamento repentino. Desculpe.
— Que pensamento?
— Estava só pensando na Bruxa Struan.
A colher de Dunross ficou parada no ar, e os outros olharam para ele.
— Não é um pensamento que faça bem à digestão.
— Não, senhor.
Bartlett olhou para Linbar, depois para Dunross.
— Quem é a Bruxa Struan?
— Um esqueleto — replicou Dunross, com uma risada seca. — Temos muitos esqueletos escondidos nos armários da família.
— E quem não tem? — falou Casey.
— A Bruxa Struan foi o nosso eterno bicho-papão... ainda é.
— Não agora, tai-pan, sem dúvida — falou Gavallan. — Já morreu faz quase cinqüenta anos.
— Pode ser que morra conosco, com Linbar, Kathy e eu, com a nossa geração, mas duvido. — Dunross lançou um olhar estranho para Linbar. — Será que a Bruxa Struan vai sair do seu caixão hoje à noite para nos engolir?
— Juro por Deus que nem gosto de brincar assim com ela, tai-pan.
— Maldita seja a Bruxa Struan — disse Dunross. — Se estivesse viva, eu lhe rogaria uma praga cara a cara.
— Acho que sim. É — riu-se Gavallan. — Gostaria de ter visto a cena.
— Eu também. — Dunross riu com ele, até que viu a expressão de Casey. — Ah, é só bravata, Casey. A Bruxa Struan era um demônio dos infernos, se formos acreditar em metade das lendas sobre ela. Era a mulher de Culum Struan, filho de Dirk Struan, o nosso fundador. O nome dela era Tess, Tess Brock, e era a filha do inimigo ferrenho de Dirk, Tyler Brock. Culum e Tess fugiram para se casar em 1841, segundo a história. Ela estava com dezesseis anos e era uma beleza, e ele era o herdeiro da Casa Nobre. É uma história à la Romeu e Julieta... só que eles viveram, e o casamento deles não diminuiu em nada o ódio mortal entre Dirk e Tyler, ou entre os Struans e os Brocks. Ao contrário, aumentou e complicou tudo. Ela nasceu Tess Brock em 1825, e morreu Bruxa Struan em 1917, aos noventa e dois anos de idade, desdentada, careca, embriagada, malvada e mesquinha até o último dia de sua vida. Como é estranha a vida, heya?
— É. Incrível, às vezes — disse Casey, pensativa. — Por que será que as pessoas mudam tanto ao envelhecer?... Ficam azedas e amargas. Especialmente as mulheres.
"É costume", Dunross podia ter respondido de pronto, "e porque os homens e as mulheres envelhecem de modo diferente. É injusto... mas é um fato imutável. Uma mulher vê as rugas e a flacidez começando, e a pele não mais fresca e firme, mas seu homem ainda tem boa aparência e é solicitado, e depois ela vê os brotinhos e fica aterrorizada de perdê-lo, e acaba perdendo-o porque ele fica cheio das lamúrias dela e da agonia auto-infligida da automutilação... e também por causa do seu instinto incontrolável e inato em direção à juventude..."
"Ayeeyah, não há afrodisíaco no mundo como a juventude", o velho Chen-Chen (pai de Phillip Chen) e mentor de Ian sempre dizia. "Nenhum, jovem Ian, nenhum. Nenhum, nenhum, nenhum. Ouça. O yang necessita dos sumos do yin, mas sumos jovens, ah, sim, têm que ser jovens, os sumos, para aumentar a sua vida e nutrir o yang... oh, oh, oh! Lembre-se, quanto mais velho se tornar o seu Talo Masculino, mais precisará de juventude, mudança e entusiasmo juvenil para atuar exuberantemente, e, quanto mais, melhor! Mas lembre-se também de que a Caixa Formosa que se aninha entre as coxas dela, embora incomparável, adorável, deliciosa, fantástica, oh, tão doce, e oh, tão satisfatória, que é... cuidado! Ah!, também é uma armadilha, uma emboscada, uma câmara de torturas, e o seu caixão!" Depois, o velho, bem velhinho, dava risada e sua barriga subia e descia, e as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. "Ah, os deuses são maravilhosos, não são? Dão-nos o céu na terra, mas é um verdadeiro inferno quando não conseguimos fazer o nosso monge de um olho só erguer a cabeça para entrar no paraíso! Joss, meu filho! Esta é a nossa sorte... ansiar pela Ravina Gulosa até que ela nos devore, mas oh, oh, oh..."
"Deve ser muito difícil para as mulheres, especialmente as americanas", pensou Dunross, "esse trauma de envelhecer, a inevitabilidade de acontecer tão cedo, cedo demais... pior na América do que em qualquer outra parte do mundo.
"Por que lhe dizer uma verdade, que já deve saber no seu âmago?", perguntou-se Dunross. "Ou ainda dizer mais, que a moda americana exige um esforço para se agarrar a uma juventude eterna que nem Deus, o Diabo ou o cirurgião podem lhe dar. Não se pode ter vinte e cinco anos aos trinta e cinco, nem ter a juventude dos trinta e cinco aos quarenta e cinco, nem ter quarenta e cinco aos cinqüenta e cinco anos. Desculpe, sei que é injusto, mas é a verdade.
"Ayeeyah, agradeço fervorosamente a Deus — se houver um Deus —, agradeço a todos os deuses grandes e pequenos por ser homem, e não mulher. Tenho pena de você, moça americana dos nomes bonitos."
Mas Dunross respondeu, simplesmente:
— Suponho que seja porque a vida não é nenhum mar de rosas, e somos alimentados de baboseiras e valores errados ao crescer... não como os chineses, que são sensatos... Meu Deus, como são incrivelmente sensatos! No caso da Bruxa Struan, talvez fosse o sangue ruim dos Brocks. Acho que era o joss dela: seu destino, sua sorte ou seu azar. Ela e Culum tiveram sete filhos, quatro homens e três mulheres. Todos os homens tiveram morte violenta, dois de "fluxo", provavelmente de peste, aqui em Hong Kong, um foi assassinado a facadas em Xangai, e o último morreu afogado perto de Ayr, na Escócia, onde ficam as terras da nossa família. Isso bastaria para deixar qualquer mãe meio louca, isso e o ódio e a inveja que a cercaram, e a Culum, a vida toda. Mas quando se acrescenta a isso tudo os problemas de morar na Ásia, a passagem da Casa Nobre para os filhos de outras pessoas... bem, dá para entender. — Dunross pensou um momento, depois acrescentou: — Conta a lenda que ela dominou Culum Struan a vida inteira, e tiranizou a Casa Nobre até o dia de sua morte, e todos os tai-pans, todas as noras, todos os genros, e até todas as crianças. Até mesmo depois da morte. Lembro-me de uma babá inglesa que tive, possa a sua alma arder no inferno para sempre, que me dizia: "É melhor se comportar, Patrãozinho Ian, ou vou invocar o espírito da Bruxa Struan, e ela vai devorá-lo..." Eu não teria mais do que cinco ou seis anos.
— Que coisa terrível! — exclamou Casey. Dunross deu de ombros.
— As babás fazem isso com as crianças.
— Nem todas, graças a Deus — disse Gavallan.
— Eu nunca tive uma que prestasse. Ou uma gan sun que fosse má.
— O que é uma gan sun? — quis saber Casey.
— Quer dizer "corpo próximo", é o nome correto para uma amah. Na China de antes de 49, as crianças das famílias abastadas, da maioria das antigas famílias européias ou eurasianas daqui, sempre tinham a sua "corpo próximo" para cuidar delas... na maioria das vezes, ficavam com elas a vida toda. A maioria das gan sun faz voto de celibato. Pode-se sempre reconhecê-las pela trança comprida que usam costas abaixo. A minha gan sun chama-se Ah Tat. É uma velhota fabulosa. Ainda está conosco — falou Dunross.
Gavallan disse:
— A minha foi mais mãe para mim do que minha mãe de verdade.
— Com que então a Bruxa Struan era sua bisavó? — perguntou Casey a Linbar.
— Santo Deus, não! Não... eu não descendo de Dirk Struan — replicou, e ela notou suor na testa dele, e não entendeu. — Descendo do meio irmão dele, Robb Struan. Ele era sócio de Dirk. O tai-pan descende diretamente de Dirk, mas... mesmo assim... nenhum de nós descende da Bruxa.
— São todos parentes? — perguntou Casey, sentindo uma tensão curiosa na sala. Viu Linbar hesitar e olhar para Dunross, enquanto ela o fitava.
— Sim — disse ele. — Andrew é casado com minha irmã, Kathy. Jacques é primo, e Linbar... Linbar tem o nosso nome. — Dunross riu. — Muita gente em Hong Kong ainda se lembra da Bruxa, Casey. Sempre usava um vestido preto comprido com anquinhas e um chapéu gozado com uma pena comida de traças, tudo totalmente fora de moda, e carregava uma bengala preta de cabo de prata o tempo todo. Costumava ser levada pelas ruas numa espécie de palanquim com quatro carregadores. Não media muito mais de metro e meio, mas era redonda e durona como o pé de um cule. Os chineses morriam de medo dela, também. O apelido dela era "Honorável Velha Demônia Mãe Estrangeira com Mau-Olhado e Dentes de Dragão".
— É verdade — disse Gavallan, com uma risada curta. — Meu pai e minha avó a conheceram. Tinham a sua própria companhia mercantil aqui e em Xangai, Casey, mas foram mais ou menos liquidados na Grande Guerra, e se uniram à Struan em 1919. Meu velho me contava que, quando era menino, ele e os amigos costumavam seguir a Bruxa pelas ruas, e quando ela ficava especialmente zangada, tirava os dentes postiços e os abria e fechava para as crianças, como se fosse mordê-las. — Todos riram junto com ele, quando a imitou. — Meu velho jurava que os dentes tinham sessenta centímetros de altura e uma espécie de mola, e ficavam mordendo e mordendo.
— Ei, Andrew, eu tinha me esquecido disso — interrompeu Linbar, com um amplo sorriso. — Minha gan sun, a velha Ah Fu, conhecia bem a Bruxa Struan, e cada vez que se falava nela Ah Fu revirava os olhos e implorava aos deuses que a protegessem do mau-olhado e dos dentes mágicos. Meu irmão Kyle e eu... — parou, depois recomeçou, num tom de voz diferente — costumávamos implicar com Ah Fu sobre ela.
Dunross disse para Casey:
— Há um retrato dela lá na Casa Grande... dois, na verdade. Se estiver interessada, eu os mostrarei a você, qualquer dia.
— Ah, obrigada... gostaria, sim. Há algum de Dirk Struan?
— Vários. E um de Robb, seu meio irmão.
— Adoraria vê-los.
— Eu também — falou Bartlett. — Que diabo, nunca sequer vi um retrato dos meus avós, que dirá do meu tataravô. Sempre quis saber dos meus antepassados, como eram, de onde vieram. Não sei nada a seu respeito, exceto que meu avô parece que dirigiu uma companhia de fretagem no velho oeste, num lugar chamado Jerrico. Deve ser formidável a gente saber de onde vem. Vocês têm sorte. — Ele estivera sentado, prestando atenção nas correntes ocultas, fascinado por elas, buscando pistas para quando chegasse a hora de ter que decidir: Dunross ou Gornt. "Se for Dunross, Andrew Gavallan é um inimigo, e terá que pular fora", disse para si mesmo. "O jovem Struan odeia Dunross, o francês é um enigma, e o próprio Dunross é nitroglicerina, e tão perigoso quanto ela." — A sua Bruxa Struan me parece fantástica — disse. — E Dirk Struan também deve ter sido uma figura e tanto!
— Isso é que é uma obra-prima de eufemismo! — disse Jacques de Ville, os olhos escuros brilhando. — Ele foi o maior pirata da Ásia! Espere só... vai olhar para o retrato de Dirk e notar os traços de família! Nosso tai-pan e ele são a cara um do outro, e, ma foi, ele herdou todas as partes piores.
— Não amole, Jacques — respondeu Dunross, bem-humorado. Depois, para Casey: — Não é verdade. Jacques está sempre me gozando. Não sou nada parecido com ele.
— Mas descende dele.
— É. Minha bisavó era Winifred, a única filha legítima de Dirk. Casou-se com Lechie Struan Dunross, um membro do clã. Tiveram apenas um filho, que era meu avô, foi o tai-pan depois de Culum. Minha família, os Dunrosses, são os únicos descendentes diretos de Dirk Struan, ao que se saiba.
— Quer dizer a legítima? Dunross sorriu.
— Dirk teve outros filhos e filhas. Um deles, Gordon Chen, era de uma moça chamada Shen, na verdade. É a linhagem da família Chen de hoje. Há também a linhagem da família T'Chung, de Duncan T'Chung e Kate T'Chung, o filho e a filha que Dirk teve com a famosa May-may T'Chung. Bem, a lenda é esta, são lendas aceitas por aqui, embora ninguém possa prová-las ou deixar de prová-las. — Dunross hesitou, e as rugas à volta de seus olhos aumentaram com a profundidade de seu sorriso. — Em Hong Kong e Xangai, nossos antecessores eram, digamos, amistosos, e as moças chinesas eram tão bonitas quanto hoje. Mas eles raramente se casavam com as amantes, e a pílula é uma invenção muito recente... portanto, a gente nem sempre sabe com quem pode ser aparentado. Nós, bem, não discutimos esta espécie de coisa em público... bem à moda britânica, fingimos que não existe, embora todos saibamos que existe, e assim ninguém fica desmoralizado. As famílias eurasianas de Hong Kong em geral tomaram os nomes das mães, as de Xangai, os dos pais. Todos parecemos ter-nos adaptado ao problema.
— É tudo muito amigável — disse Gavallan.
— Às vezes — comentou Dunross.
— Quer dizer que John Chen é seu parente? — perguntou Casey.
— Se nos reportarmos ao Jardim do Éden, todos são aparentados entre si, suponho.
Dunross fitava o lugar vazio. "Não é típico de John sumir", pensou, inquieto, "e ele não é do tipo de se envolver em contrabando de armas, seja por que motivo for. Ou de ser tão burro a ponto de ser preso. Tsu-yan? Bem, ele é xangaiense, e pode ter entrado em pânico facilmente, se estiver metido nisso. John é conhecido demais para conseguir tomar um avião hoje de manhã sem ser notado. Portanto, não fugiu de avião. Teria que ser de barco... se é que realmente fugiu. Um barco para onde... Macau? Não, é um beco sem saída. Navio? Fácil demais", pensou, "se a fuga foi planejada, ou mesmo se não foi planejada e arranjada com uma hora de antecedência. Em qualquer dia do ano há trinta ou quarenta partidas marcadas para todas as partes do mundo, navios grandes e pequenos, sem falar nos mil juncos não programados, e, mesmo em fuga, alguns dólares aqui e ali, e seria uma facilidade sair às escondidas... sair ou entrar. Homens, mulheres, crianças. Drogas. Qualquer coisa. Mas não há motivo para se contrabandear para Hong Kong, exceto seres humanos, drogas, armas, bebidas alcoólicas, cigarros e gasolina... tudo o mais é livre de impostos e restrições.
"Exceto o ouro."
Dunross sorriu consigo mesmo. "Importa-se ouro legalmente, com licença, a trinta e cinco dólares a onça pelo trânsito para Macau, e o que acontece depois não é da conta de ninguém, mas é imensamente lucrativo." É, pensou, "e a reunião da junta da nossa Nelson Trading é hoje à tarde. Ótimo. Esse é um empreendimento comercial que nunca falha."
Enquanto se servia de um pouco de peixe da travessa que lhe era oferecida, notou que Casey o fitava.
— Sim, Casey.
— Oh, estava só imaginando como soube meus nomes.
— Virou-se para Bartlett. — O tai-pan me surpreendeu, Linc. Mesmo antes de sermos apresentados, chamou-me de Kamalian Ciranoush, como se fosse Mary Jane.
— O nome é persa? — indagou Gavallan prontamente.
— Armênio, originariamente.
— Kamahlyarn Cirrannouussssh — disse Jacques, gostando da sibilação dos nomes. — Très joli, mademoiselle. Ils ne sont pas difficiles, sauf pour les crétins.
— Ou les ingleses — falou Dunross, e todos acharam graça.
— Como soube, tai-pan? — perguntou Casey, sentindo-se mais à vontade com tai-pan do que com Ian. "Ainda não é hora de Ian", pensou, fascinada pelo passado dele, pela Bruxa Struan e pelas sombras que pareciam cercá-lo.
— Perguntei ao seu advogado.
— Como assim?
— John Chen me ligou ontem à noite, por volta da meia-noite. Você não lhe dissera o que as letras K e C representavam, e eu queria saber. Era cedo demais para falar com o seu escritório em Los Angeles, oito da manhã, hora de Los Angeles. Portanto liguei para o seu advogado, em Nova York. Meu pai costumava dizer: "Quando tiver dúvidas, pergunte".
— Conseguiu falar com Seymour Steigler III num sábado? — perguntou Bartlett, assombrado.
— Consegui, na casa dele em White Plains.
— Mas o número do telefone da casa dele não está no catálogo.
— Eu sei. Liguei para um chinês amigo meu, da ONU. Ele descobriu o número para mim. Disse ao Sr. Steigler que queria saber por causa dos convites... o que, naturalmente, é a verdade. Deve-se ser preciso, não é?
— É — replicou Casey, admirando-o enormemente. — Deve-se, sim.
— Sabia que Casey... que Casey era mulher, ontem à noite? — indagou Gavallan.
— Sabia. Na verdade, já sabia há vários meses, embora não soubesse o que representavam as letras K e C. Por quê?
— Por nada, tai-pan. Casey, você estava falando da Armênia. Sua família imigrou para os Estados Unidos depois da guerra?
— Depois da Primeira Grande Guerra, em 1918 — falou Casey, começando a contar mais uma vez a história tantas vezes repetida. — Originalmente, nosso sobrenome era Tcholokian. Quando meus avós chegaram a Nova York, tiraram o ian, para simplificar as coisas e ajudar os americanos. Ainda assim, me sobrou Kamalian Ciranoush. Como sabem, a Armênia é a parte sul do Cáucaso... fica ao norte do Irã e da Turquia, e ao sul da Geórgia russa. Era uma nação livre e soberana, mas agora tudo foi absorvido pela União Soviética ou pela Turquia. Minha avó era georgiana... havia muitos casamentos mistos, naqueles tempos. Meu povo estava todo espalhado pelo Império Otomano, cerca de dois milhões, mas os massacres, especialmente em 1915 e 1916... — Casey estremeceu. — Foi genocídio, na verdade. Sobraram cerca de quinhentos mil de nós, e agora estamos espalhados pelo mundo todo. Os armênios eram comerciantes, artistas, pintores e ourives, escritores, guerreiros também. Havia cerca de cinqüenta mil armênios no exército turco antes de serem desarmados, proscritos e fuzilados pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial... generais, oficiais e soldados. Eram uma minoria de elite, há séculos que o eram.
— Esse é o motivo pelo qual os turcos os odiavam? — quis saber De Ville.
— Eram muito trabalhadores e unidos, muito bons mercadores e comerciantes, sem dúvida... controlavam grande parte do comércio e dos negócios. Meu avô dizia que o comércio está no nosso sangue. Mas talvez o motivo principal seja que os armênios são cristãos... foram o primeiro Estado cristão na história, sob o jugo romano... e é claro que os turcos são maometanos. Os turcos conquistaram a Armênia no século XVI e sempre houve uma guerra de fronteira entre a Rússia cristã czarista e os turcos "infiéis". Até 1917, a Rússia czarista era a nossa real protetora... Os turcos otomanos sempre foram um povo estranho, muito cruel, muito estranho.
— Sua família escapou antes da confusão?
— Não. Meus avós eram muito ricos, e, como muita gente, achavam que nada lhes podia acontecer. Escaparam por pouco dos soldados, agarraram dois filhos e uma filha e saíram pela porta dos fundos com o que puderam pegar na sua fuga para a liberdade. O resto da família não conseguiu fugir. Meu avô escapou de Istambul subornando o capitão de um barco de pesca que levou minha avó e ele escondidos até Chipre, onde deram um jeito de obter vistos para os Estados Unidos. Tinham um pouco de dinheiro e jóias... e muito talento. Vovó ainda é viva... ainda barganha como ninguém.
— Seu avô era mercador? — perguntou Dunross. — Foi assim que começou a se interessar pelo mundo dos negócios?
— Pelo menos, desde que nos entendíamos por gente, era o que tentavam nos enfiar na cabeça — disse Casey. — Meu avô começou com uma companhia óptica em Providence, fazendo lentes e microscópios, e uma companhia de exportação e importação que lidava na sua maior parte com tapetes e perfumes, e com um comerciozinho de ouro e pedras preciosas para complementar. Meu pai desenhava e fazia jóias. Agora já morreu, mas tinha a sua lojinha própria em Providence, e o irmão dele, meu tio Bghos, trabalhava com vovô. Agora, depois que vovô morreu, meu tio dirige a companhia de exportação e importação. É pequena, mas estável. Crescemos, minha irmã e eu, cercadas de barganhas, negociações e conversas de lucro. Era um grande jogo, e éramos todos iguais.
— Onde... quer mais sobremesa, Casey?
— Não, obrigada, estou satisfeita.
— Onde se formou em administração?
— Acho que em toda parte — explicou ela. — Depois que terminei a escola secundária, fiz um curso comercial de dois anos na Katharine Gibbs, em Providence: taquigrafia, datilografia, noções de contabilidade, arquivo, e mais uns fundamentos comerciais. Mas, desde que aprendi a contar, trabalhava à noite e nos feriados e fins de semana com vovô, no negócio dele. Aprendi a pensar, a planejar e pôr o plano em funcionamento, portanto a maior parte do meu treinamento foi nesse campo. Claro que desde que saí da escola não deixei de fazer cursos especializados... principalmente à noite. — Casey riu. — No ano passado, cheguei a fazer um curso na Escola de Administração de Harvard, fato que escandalizou loucamente alguns membros do corpo docente, embora agora as coisas estejam ficando mais fáceis para a mulher.
— Como conseguiu chegar à sua atual posição nas Indústrias Par-Con? — perguntou Dunross.
— Perspicácia — falou, e todos riram com ela. Bartlett explicou:
— Casey é uma danada para trabalhar, Ian. A velocidade de leitura dela é fantástica. Pode cobrir mais terreno do que dois executivos normais. Tem um faro para o perigo, não tem medo de tomar uma decisão, gosta mais de realizar do que de destruir uma transação, e não fica vermelha com facilidade.
— Este é o meu aspecto mais vantajoso — disse Casey. — Obrigada, Linc.
— Mas isso não é muito duro para você, Casey? — perguntou Gavallan. — Não tem que abrir mão de um bocado de coisas como mulher, para continuar? Não deve ser fácil para você fazer um trabalho de homem.
— Não considero que meu trabalho seja trabalho de homem, Andrew — replicou ela, prontamente. — As mulheres têm a mesma inteligência e a mesma capacidade de trabalho que os homens.
Houve imediatamente uma vaia amigável por parte de Linbar e Gavallan, mas Dunross abafou-a e disse:
— Acho melhor adiarmos essa manifestação. Mas repito a pergunta, Casey: como chegou a tal posição na Par-Con?
"Devo contar-lhe a história verdadeira, Ian-parecido-com-Dirk-Struan, o maior pirata da Ásia, ou devo contar-lhe a que virou lenda?", perguntou a si mesma.
Então, ouviu Bartlett começar, e soube que poderia deixar o pensamento vagar com segurança, pois já ouvira a versão dele uma centena de vezes antes. Era em parte verdadeira, em parte falsa, e em parte o que ele queria acreditar que acontecera. "Quantas das lendas de vocês são verdadeiras... a Bruxa Struan e Dirk Struan... e qual a sua história real, e como se tornou tai-pan?" Bebericou o seu vinho do Porto, saboreando a suave doçura, deixando o pensamento vagar.
"Há alguma coisa errada", pensou. "Posso senti-lo, fortemente. Há alguma coisa errada com Dunross.
"O quê?"
— Conheci Casey há uns sete anos, em Los Angeles, Califórnia — começara Bartlett. — Recebera uma carta de um tal Casey Tcholok, presidente da Hed-Opticals de Providence, que queria discutir uma fusão. Naquela época, eu estava metido em construções por toda a Los Angeles, áreas residenciais, supermercados, dois grandes prédios de escritórios, zona industrial, centros comerciais. Era só falar comigo, que eu construía. Tínhamos um capital de giro de três milhões e duzentos mil, e eu acabara de virar empresa de capital aberto... mas ainda estava a milhões de quilômetros do Big Board. Eu...
— Está se referindo à Bolsa de Valores de Nova York?
— Estou. Bem, chega Casey, toda animada, e diz que quer que eu me una à Hed-Opticals, que, segundo ela, teve uma renda bruta de duzentos e setenta e sete mil e seiscentos dólares no ano anterior, e depois, juntos, iríamos em busca da Randolf Opticals, uma empresa das grandes, cinqüenta e três milhões em vendas, citada no Big Board, uma fatia imensa do mercado de lentes e muito dinheiro no banco. E eu disse: "Você é maluca, por que a Randolf?" Ela respondeu que, primeiro, porque era acionista da Bartlett Construction, comprara dez ações de um dólar. Eu capitalizara com um milhão de ações e vendera quinhentas mil ao valor nominal, e ela achava que seria ótimo para a Bartlett Construction ser dona da Randolf, e segundo, "porque aquele filho da puta do George Toffer, que dirige a Randolf Opticals, é um mentiroso, um vigarista, um ladrão, e está tentando liquidar o meu negócio".
Bartlett abriu um sorriso e parou para respirar, e Dunross o interrompeu com uma risada.
— Isso é verdade, Casey?
Casey voltou ao presente rapidamente.
— Ah, é, eu disse que George Toffer era um mentiroso, um vigarista, um ladrão e um filho da puta. Ainda é. — Casey sorriu, sem achar graça. — E sem dúvida estava tentando liquidar o meu negócio.
— Por quê?
— Porque eu dissera para ele ir... para ele não encher.
— E por que agiu assim?
— Eu acabara de assumir a direção da Hed-Opticals. Meu avô falecera no ano anterior, e meu tio Bghos e eu tiráramos cara ou coroa para ver quem ficava com qual negócio... eu ganhei a Hed-Opticals. Tivéramos uma oferta da Randolf para nos comprar, há cerca de um ano, mas recusáramos... tínhamos um negócio pequeno, gostoso, bons operários, bons técnicos, vários armênios, uma pequena fatia do mercado. Não tínhamos capital nem espaço para expandir, mas nos virávamos direitinho, e a qualidade da Hed-Opticals era excelente. Logo depois que assumi a direção, George Toffer "deu uma passadinha por lá". Ele se achava o máximo, meu Deus, como se achava. Alegava ser herói de guerra do exército americano, mas descobri que não era... era o tipo do sujeito... Bem, ele me fez outra oferta ridícula para tirar a Hed-Opticals das minhas mãos... o papo da pobre garotinha que devia estar numa cozinha, junto com "Vamos jantar juntos na minha suíte, e por que não nos divertimos um pouco, já que estou aqui sozinho por uns dias..." Eu disse "Não, obrigada", e ele ficou muito chateado. Muito. Mas disse "Tudo bem", voltou a falar de negócios e sugeriu que, ao invés de comprar minha firma, ele me passaria alguns dos contratos dele. Fez-me uma boa oferta, e depois de barganhar um pouco, concordamos com os termos. Se eu me saísse bem, ele dobraria o negócio. Durante o mês seguinte, fizemos um trabalho melhor e mais barato do que ele seria capaz de fazer, entreguei as encomendas segundo o contrato, e ele teve um lucro fabuloso. E então ele "roeu a corda" numa cláusula verbal e deduziu, roubou, vinte mil trezentos e setenta e oito dólares, e no dia seguinte cinco dos meus melhores clientes nos trocaram pela Randolf, e na semana seguinte outros sete... ele oferecera a todos negócios abaixo do custo. Ele me deixou "em banho-maria" por uma ou duas semanas, depois me ligou. "Oi, neguinha", falou, feliz como um sapo num balde de lama, "estou passando o fim de semana sozinho em Martha's Vineyard." É uma ilhazinha no litoral leste. Depois, acrescentou: "Por que não vem para cá para nos divertirmos um bocado e discutirmos o futuro e a duplicação dos pedidos?" Eu pedi o meu dinheiro, e ele riu de mim e disse para eu crescer, e sugeriu que era melhor eu reconsiderar a oferta dele, porque do jeito que as coisas iam, logo não haveria mais nenhuma Hed-Opticals.
"Xinguei-o. Sei xingar bem à beça quando fico com raiva, e disse a ele o que podia fazer em três línguas. Dentro de mais quatro semanas, não me sobrava nenhum cliente. Mais outro mês, os funcionários tiveram que procurar outro emprego. Mais ou menos àquela época, resolvi ir para a Califórnia. Não queria ficar no leste." Casey deu um sorriso amargo. "Era uma questão de prestígio... como se eu entendesse àquela altura o que isso quer dizer. Resolvi tirar duas semanas de folga para decidir o que fazer. Então, certo dia, andava sem destino por uma feira estadual em Sacramento, e lá estava Linc. Vendia ações da Bartlett Construction num balcão, e eu comprei..."
— Ele o quê? — perguntou Dunross.
— Claro — disse Bartlett. — Vendi mais de vinte mil ações desse jeito. Vendi em feiras estaduais, por via postal, em supermercados, centros comerciais, através de corretores... e também em bancos de investimentos. Claro. Continue, Casey!
— Então li os prospectos dele e fiquei a observá-lo por algum tempo, e achei que tinha muita garra e ambição. Os números, o balanço geral e a taxa de expansão dele eram excepcionais, e achei que uma pessoa que vendia pessoalmente as suas ações tinha que ter futuro. Assim, comprei dez ações, escrevi para ele e fui procurá-lo. Fim da história.
— Fim uma ova, Casey — disse Gavallan.
— Conte você, Linc — disse ela.
— Está bem. Então...
— Um pouco de porto, Sr.... desculpe, Linc?
— Obrigado, Andrew, mas será que posso tomar outra cerveja? — Ela chegou instantaneamente. — E assim Casey veio me ver. Depois que me contou a história, praticamente como a contou agora, eu disse:
"— Uma coisa, Casey. A Hed-Opticals rendeu menos de trezentos mil no ano passado. Quanto vai render este ano?
"— Zero — falou ela, com aquele seu sorriso. — Sou o único bem da Hed-Opticals, eu e nada mais.
"— Então, qual a vantagem de uma fusão minha com zero? Já tenho problemas bastantes.
"— Sei como aniquilar a Randolf Opticals.
"— Como?
"— Vinte e dois por cento da Randolf estão nas mãos de três homens, e todos abominam Toffer. Com vinte e dois por cento, você obteria o controle. Sei como pode conseguir as procurações deles. E mais ainda: conheço os pontos fracos de Toffer.
"— E quais são?
"— Vaidade, e é um megalomaníaco; e mais ainda, é burro.
"— Não pode ser burro e dirigir aquela companhia.
"— Talvez não fosse burro no passado, mas agora é. Está no ponto para ser derrubado.
"— E o que vai querer ganhar com isso, Casey?
"— A cabeça de Toffer... quero ser eu a despedi-lo.
"— O que mais?
"— Se eu tiver êxito no que me proponho... se conseguirmos o controle da Randolf Opticals em, digamos, seis meses, quero... quero um contrato de um ano com você, podendo ser aumentado para sete, com um salário que você ache compatível com a minha capacidade, como sua vice-presidenta-executiva encarregada de aquisições. Mas quero-o como pessoa, não como mulher, como uma pessoa em grau de igualdade com você. Claro que o patrão é você, mas serei igual ao que um homem seria, como um indivíduo... se fizer bem o meu trabalho."
Bartlett abriu um sorriso e tomou um gole de cerveja.
— Concordei, negócio fechado. Pensei: "O que tenho a perder? Eu com os meus míseros três quartos de milhão e ela com o seu saldo zero tomarmos a Randolf Opticals em seis meses, ora, é um negócio e tanto". E assim apertamos as mãos, de homem para mulher. — Bartlett riu. — Era a primeira vez que fazia um negócio daqueles com uma mulher, sem mais nem menos... e nunca me arrependi.
— Obrigado, Linc — disse Casey, meigamente, e todos sentiam inveja de Bartlett.
"E o que aconteceu depois que você despediu Toffer?", pensava Dunross, juntamente com os outros. "Foi então que começou o seu caso?"
— E a compra do controle? — perguntou a Bartlett. — Foi tranqüila?
— Foi nojenta, mas as lições que aprendi, que aprendemos, renderam mil por cento. Em cinco meses já tínhamos o controle. Casey e eu havíamos conquistado uma companhia cinqüenta e três vezes e meia maior que a nossa. Um minuto antes da hora H eu estava com quatro milhões de dólares no vermelho no banco, e praticamente na cadeia, e na hora seguinte assumira o controle. Puxa, mas foi uma batalha e tanto! Em um mês e meio tínhamos reorganizado a companhia, e agora a Divisão Randolf da Par-Con rende cento e cinqüenta milhões por ano, e suas ações estão lá em cima. Foi uma Blitzkrieg clássica, e estabeleceu o padrão para as Indústrias Par-Con.
— E esse George Toffer, Casey? Como o despediu?
Casey desviou os olhos castanho-amarelados de Linc e fixou-os em Dunross, e ele pensou: "Santo Deus, gostaria de possuir você".
— No momento em que assumimos o controle, eu... — Interrompeu-se quando o único telefone na sala tocou, e houve uma tensão repentina no ambiente. Todos, até mesmo os garçons, imediatamente desviaram sua atenção integral para o telefone... exceto Bartlett. Os rostos de Gavallan e de De Ville estavam completamente sem cor. — O que foi? — perguntou Casey.
Dunross quebrou o silêncio.
— É uma das normas da casa. Não se completa nenhuma ligação durante o almoço, a não ser que seja uma emergência... uma emergência pessoal... para um de nós.
Todos fitaram Lim enquanto largava a bandeja do café. Parecia que ele levava uma eternidade para cruzar o aposento e pegar o telefone. Todos tinham mulheres, filhos, famílias, e todos imaginavam que morte ou que tragédia seria, e "Por favor, Deus, que o telefonema seja para algum outro", lembran-do-se da última vez que o telefone tocara, há dois dias. Para Jacques. E no mês passado, para Gavallan. A mãe dele estava morrendo. Todos haviam recebido telefonemas, ao longo dos anos. Todos ruins.
Andrew Gavallan estava certo de que o telefonema era para ele. Sua mulher, Kathren, irmã de Dunross, estava no hospital, esperando o resultado de testes exaustivos. Há semanas que estava doente, sem motivo aparente. "Meu Deus", pensou, "controle-se", cônscio dos olhares dos outros sobre a sua pessoa.
— Weyyyy? — Lim escutou por um momento, depois virou-se e estendeu o aparelho. — É para o senhor, tai-pan.
Os outros voltaram a respirar, e observaram Dunross, que caminhava ereto para o telefone.
— Alô?... Oh... O quê?... Não... não, vou já para aí... Não, não façam nada, vou já para aí. — Notaram o ar de choque dele ao repor o fone no gancho, em meio ao silêncio mortal. Depois de uma pausa, falou: — Andrew, diga a Claudia para adiar minhas reuniões de diretoria de hoje à tarde. Você e Jacques, continuem com Casey. Era Phillip. Infelizmente, o pobre John Chen foi seqüestrado.
E saiu da sala.
14h35m
Dunross saltou do carro e entrou apressado pela porta aberta da imensa mansão em estilo chinês que ficava encravada na crista da montanha chamada Mirante de Struan. Passou por um criado aparvalhado, que fechou a porta às suas costas, e entrou na sala de estar, em estilo vitoriano, espalhafatosa, entulhada de quinquilharias e móveis que não combinavam.
— Alô, Phillip — falou. — Lamento tanto. Pobre John! Onde está a carta?
— Aqui. — Phillip pegou-a de cima do sofá, enquanto se levantava. — Mas primeiro olhe para aquilo.
Apontou para uma caixa de sapatos de papelão amassada numa mesa de mármore ao lado da lareira.
Enquanto atravessava a sala, Dunross notou Dianne, a mulher de Phillip Chen, sentada numa cadeira de espaldar alto, na outra extremidade do aposento.
— Oh, alô, Dianne, lamento o que aconteceu — repetiu. Ela deu de ombros, impassível.
— Joss, tai-pan. — Tinha cinqüenta e dois anos, era eurasiana, a segunda mulher de Phillip Chen, uma matrona atraente e cheia de jóias, que usava um cheong-sam marrom-escuro, um colar de jade de valor inestimável e um anel de brilhantes de quatro quilates... entre muitos outros anéis. — Joss — repetiu.
Dunross assentiu, antipatizando com ela ainda mais do que habitualmente. Espiou o conteúdo da caixa, sem tocá-lo. No meio de folhas de jornal soltas e amassadas, viu uma caneta que reconheceu como sendo de John Chen, uma carteira de motorista, algumas chaves num chaveiro, uma carta endereçada a John Chen, Sinclair Towers, 14A, e um saquinho de plástico com um pedaço de pano meio enfiado dentro. Com uma caneta que tirou do bolso Dunross abriu a carteira de motorista. John Chen.
— Abra o saquinho de plástico — disse Phillip.
— Não. Poderia danificar as impressões digitais que nele houver — disse Dunross, sentindo-se cretino, mas mesmo assim dizendo as palavras.
— Ah... tinha me esquecido disso. Merda. Claro, impressões digitais! As minhas estão... claro que abri o saco. As minhas devem estar nele... em toda parte.
— O que há nele?
— É... — Phillip Chen se aproximou, e antes que Dunross pudesse detê-lo, tirou o pano de dentro do saco, sem tocar novamente no plástico. — Não pode haver digitais no pano, não é? Olhe!
O pano continha a maior parte de uma orelha humana, o corte limpo e bem-feito, e não irregular. Dunross praguejou baixinho.
— Como foi que a caixa chegou? — indagou.
— Chegou por mensageiro. — Phillip Chen voltou a embrulhar a orelha com mãos trêmulas, recolocando-a na caixa. — Abri... abri a caixa, como qualquer pessoa o faria. Foi entregue há cerca de meia hora.
— Por quem?
— Não sabemos. Era apenas um rapaz, disse a criada. Um rapaz de moto. Ela não o reconheceu nem tomou nota da placa. Recebemos muitas encomendas por mensageiro. Não havia nada fora do comum... exceto o "Sr. Phillip Chen, assunto de grande importância, para ser aberto pessoalmente", escrito do lado de fora do embrulho, e que ela não notou imediatamente. Quando abri o embrulho e li a carta... bem, foi só um rapaz que disse "Encomenda para o Sr. Phillip Chen" e foi embora.
— Já chamaram a polícia?
— Não, tai-pan, você disse para não fazer nada. Dunross foi até o telefone.
— Já falou com a mulher do John?
— Por que o Phillip deve dar-lhe as más notícias? — disse Dianne imediatamente. — Ela vai ter um ataque de destelhar a casa, pode apostar. Ligar para Barbara? Ah, não, caro tai-pan, não... só depois que tivermos informado a polícia. Eles que contem a ela. Sabem como fazer essas coisas.
A repulsa de Dunross aumentou.
— É melhor mandá-la vir para cá rapidamente.
Ligou para a chefatura de polícia e perguntou por Armstrong. Não estava. Dunross deixou o nome, e depois pediu para falar com Brian Kwok.
— Sim, tai-pan?
— Brian, pode vir para cá imediatamente? Estou na casa de Phillip Chen, aqui no Mirante de Struan. John Chen foi seqüestrado.
Contou-lhe sobre o conteúdo da caixa.
Houve um silêncio chocado, depois Brian Kwok falou:
— Vou já para aí. Não toque em nada e não deixe que ele fale com ninguém.
— Está certo.
Dunross desligou o aparelho.
— Dê-me a carta agora, Phillip.
Segurou-a com cuidado, pelas pontas. Os caracteres chineses estavam escritos com nitidez, mas não por uma pessoa instruída. Leu-a devagar, conhecendo a maioria dos caracteres.
"Sr. Phillip Chen, informo-lhe que estou precisando desesperadamente de quinhentos mil em moeda de Hong Kong e venho consultá-lo a esse respeito. O senhor é tão rico que é como arrancar um fio de cabelo de nove bois. Temendo que recuse, não tenho outra alternativa senão usar seu filho como refém. Agindo assim, não temerei sua recusa. Espero que pense seriamente no caso, três vezes, e leve-o em consideração. Depende do senhor chamar a polícia ou não. Estou enviando junto alguns artigos que seu filho usa diariamente como prova da situação em que se encontra. Envio também uma parte da orelha de seu filho. Deve se dar conta da inclemência e da crueldade das minhas ações. Se pagar o dinheiro sem problemas, a segurança de seu filho estará garantida. Escrito pelo Lobisomem."
Dunross indicou a caixa.
— Desculpe, mas reconhece a... bem... aquilo? Phillip Chen deu uma risada nervosa, e sua mulher também.
— Você reconhece, Ian? Conheceu John a sua vida inteira... Como se reconhece uma coisa dessas, heya?
— Mais alguém sabe do seqüestro?
— Não, exceto os criados, é claro, Shitee T'Chung e alguns amigos que estavam almoçando aqui comigo. Eles... estavam aqui quando o embrulho chegou. É, estavam aqui. Saíram pouco antes de você chegar.
Dianne Chen mudou de posição na cadeira e disse o que Dunross estava pensando.
— Então é claro que toda Hong Kong saberá do caso até o anoitecer!
— É. E haverá manchetes escandalosas ao alvorecer. —
Dunross tentou pôr em ordem a infinidade de perguntas e respostas que inundavam a sua mente. — A imprensa vai saber da... orelha e do Lobisomem e vai deitar e rolar.
— É, se vai.
Phillip Chen lembrou-se do que Shitee T'Chung havia dito no momento em que todos liam a carta.
"Não pague o resgate pelo menos durante uma semana, Phillip, velho amigo, e será famoso no mundo inteiro! Ayeeyah, imagine, um pedaço da orelha dele e Lobisomem! Eeee, será famoso no mundo inteiro!"
— Talvez não seja a orelha dele, talvez seja só um truque — disse Phillip Chen, esperançoso.
— É. — "Se for mesmo a orelha de John", pensou Dunross, muito perturbado, "e se já a mandaram no primeiro dia, sem tentar negociar nem nada, aposto que o pobre infeliz já está morto." — Não há motivo para feri-lo desse jeito — falou. — Claro que você vai pagar.
— Mas é claro. Que sorte não estarmos em Cingapura, não é?
— É. — Àquela época, em Cingapura, por lei, no momento em que alguém era seqüestrado, as contas bancárias de toda a família eram congeladas para impedir o pagamento aos seqüestradores. Lá os raptos tinham se tornado endêmicos, quase sem prisões dos envolvidos, pois os chineses preferiam pagar rápida e discretamente, sem nada comunicar à polícia. — Mas que filho da mãe! Pobre do John!
Phillip perguntou:
— Aceita um pouco de chá... ou uma bebida? Está com fome?
— Não, obrigado. Vou esperar até Brian Kwok chegar, depois vou embora. — Dunross olhou para a caixa e para as chaves. Vira aquele chaveiro muitas vezes. — Está faltando a chave da caixa de depósito do banco — falou.
— Que chave? — perguntou Dianne Chen.
— John sempre tinha uma chave da caixa de depósito no chaveiro.
Ela não se mexeu da cadeira.
— E agora não está aí?
— Não.
— Talvez você esteja enganado. Sobre o fato de ele sempre a trazer no chaveiro.
Dunross olhou para ela e depois para Phillip Chen. Ambos devolveram o seu olhar. "Bem", pensou, "se os bandidos não a pegaram, agora está com Phillip ou Dianne, e se eu fosse eles, faria o mesmo. Sabe lá Deus o que pode haver naquela caixa."
— Talvez você esteja enganado — falou, tranqüilamente.
— Chá, tai-pan? — perguntou Dianne, e ele viu a sombra de um sorriso no fundo dos olhos dela.
— Sim, acho que aceito — falou, sabendo que eles haviam ficado com a chave.
Ela se levantou e pediu o chá em voz alta, depois voltou a sentar-se.
— Eeeee, gostaria que andassem depressa... os policiais.
Phillip olhava pela janela para o jardim estorricado.
— Gostaria que chovesse.
— Imagino quanto vai custar para termos o John de volta — resmungou ela.
Depois de uma pausa, Dunross perguntou:
— E isso importa?
— Mas claro que importa — falou Dianne, prontamente. — Francamente, tai-pan!
— Ah, sim — ecoou Phillip Chen. — Quinhentos mil! Ayeeyah, quinhentos mil, uma fortuna. Malditas tríades! Bem, se pediram quinhentos mil, posso chegar a cento e cinqüenta mil... Graças a Deus não pediram um milhão! — As sobrancelhas dele se alçaram, e o rosto ficou mais cinzento ainda. — Dew neh loh moh para todos os seqüestradores. Deviam ser mortos... todos eles.
— É — confirmou Dianne. — Tríades nojentas. A polícia devia ser mais esperta! Mais viva e mais esperta, e nos proteger melhor.
— Isso não é justo — falou Dunross, vivamente. — Há anos que não há um seqüestro de importância em Hong Kong, e acontece todos os meses em Cingapura! O índice de crimes aqui é fantasticamente baixo... nossa polícia faz um excelente trabalho... excelente.
— Hum — debochou Dianne. — São todos corruptos. Por que outro motivo ser policial, senão para enriquecer? Não confio em nenhum deles... Sabemos, ora se sabemos! Quanto a seqüestros, o último foi há seis anos. A vítima foi meu primo em terceiro grau, Fun San Sung... a família teve que pagar seiscentos mil dólares para recebê-lo de volta... Quase a levou à falência.
— Ah! — ironizou Phillip Chen. — Levar à falência o Colibri Sung? Impossível!
Colibri Sung era um armador xangaiense riquíssimo, na casa dos cinqüenta anos, com um nariz afilado, comprido para um chinês. Seu apelido era Colibri Sung porque estava sempre dardejando de cabaré em cabaré, de flor em flor, em Cingapura, Bangkok, Taipé e Hong Kong, mergulhando o membro numa infinidade de "potes de mel" femininos, embora corresse o boato de que não era o membro, pois apreciava o sexo oral mútuo.
— Se bem me lembro, a polícia recuperou a maior parte do dinheiro, e mandou os criminosos para a cadeia por vinte anos.
— Foi isso mesmo, tai-pan. Mas levaram meses e meses. E não me admiraria se um ou dois policiais soubessem mais do que admitiam.
— Mas quanta bobagem! — exclamou Dunross. — Não tem nenhum motivo para acreditar numa coisa dessas! Nenhum.
— Isso mesmo! — concordou Phillip Chen, irritado. — Eles os prenderam, Dianne. — Ela olhou para ele, que imediatamente mudou o tom de voz. — Claro, minha querida, que alguns policiais podem ser corruptos, mas temos muita sorte aqui, muita sorte. Acho que não me incomodaria tanto, sobre John... é só uma questão de resgate, e temos tido sorte como família, até agora... não me incomodaria se não fosse por... por aquilo. — Fez um sinal para a caixa, enojado. — Terrível! E totalmente incivilizado.
— É — concordou Dunross, e ficou imaginando, se não fosse a orelha de John Chen, de quem seria... onde se arranja uma orelha? Quase riu do ridículo da sua pergunta. Depois, ficou matutando se o rapto teria alguma ligação com Tsu-yan, as armas e Bartlett. Não fazia o gênero dos chineses mutilar uma vítima. Não, e certamente não tão cedo. O seqüestro era uma antiga arte chinesa, e as regras sempre foram claras: "Pague e fique calado, e não haverá problema; protele e fale e haverá muitos problemas".
Ficou olhando pela janela para os jardins e para o imenso panorama setentrional da cidade e do mar, lá embaixo. Navios, juncos e sampanas pontilhavam o mar azul. O céu estava limpo, sem promessas de chuva, a monção de verão firme vinda do sudoeste. Dunross ficou imaginando distraidamente como seriam os veleiros antigos ao acompanhar o vento ou enfrentar os vendavais, na época dos seus ancestrais. Dirk Struan sempre tivera um vigia secreto no topo da montanha acima. De lá, o homem podia enxergar o sul, o leste e o oeste, e o grande canal Sheung Sz Mun, que vinha do sul para Hong Kong... o único caminho interno para os navios vindos de casa, da Inglaterra. Do Mirante de Struan, o vigia podia ver secretamente o navio-correio que chegava, e dar um sinal de aviso secreto lá para baixo. Então, o tai-pan despacharia um barco a vela rápido para pegar a correspondência primeiro, para ter algumas horas de vantagem sobre os seus rivais, essas poucas horas podendo significar a diferença comercial entre a fortuna e a falência... tão vasto era o tempo que os separava de casa. Não como agora, com comunicações instantâneas, pensou Dunross. "Temos sorte... não temos que esperar quase dois anos por uma resposta, como o Dirk. Jesus, mas que homem deve ter sido!
"Não posso falhar com Bartlett. Preciso daqueles vinte milhões."
— O negócio parece muito bom, tai-pan — disse Phillip Chen, como se lesse os seus pensamentos.
— É, é, sim.
— Se eles realmente entrarem com o dinheiro, faremos fortuna, e será h'eung yau para a Casa Nobre — acrescentou, com um amplo sorriso.
O sorriso de Dunross foi sardônico, mais uma vez. "H'eung yau" queria dizer "graxa fragrante", e normalmente se referia ao dinheiro, ao suborno, à proteção, que eram pagos por todos os restaurantes chineses, a maior parte das empresas, todas as casas de jogo, todos os cabarés, todas as damas da "vida fácil", às tríades, a alguma forma de tríade, em todo o mundo.
— Ainda me desconcerta saber que se paga h'eung yau onde houver um chinês fazendo negócio.
— Francamente, tai-pan — disse Dianne, como se ele fosse uma criança. — Como qualquer negócio pode existir sem proteção? A gente espera pagar, naturalmente, e paga, e pronto. Todos pagam h'eung yau... alguma forma de h'eung yau. — As contas de jade do seu colar fizeram barulho quando ela mudou de posição na cadeira, os olhos escuríssimos na brancura do rosto... tão valorizada pelos chineses. — Mas o negócio com Bartlett, tai-pan, acha que vai se realizar?
Dunross observou-a. "Ah, Dianne", disse consigo mesmo "você sabe de cada detalhe importante sobre os negócios de Phillip e dos meus, e muito mais coisas que fariam Phillip chorar de raiva se soubesse que você sabe. Portanto, sabe que a Struan poderia ficar encrencadíssima se não houvesse nenhum negócio com Bartlett, mas que, se ele for consumado, nossas ações subirão como um foguete, e seremos ricos outra vez... e você também será, se puder entrar no jogo logo no começo, se puder comprar no começo.
"É.
"E eu conheço vocês, senhoras chinesas de Hong Kong, como o pobre Phillip não conhece, porque não sou nem um tiquinho chinês. Sei que vocês, senhoras chinesas de Hong Kong, são as mulheres mais duronas do mundo quando se trata de dinheiro... ou talvez as mais práticas. E você, Dianne, sei também o quanto está eufórica agora, embora possa fingir o oposto. Porque John Chen não é seu filho. Com ele eliminado, seus dois filhos serão os herdeiros diretos, e o mais velho, Kevin, o herdeiro evidente. Portanto, rezará, como nunca rezou antes, para que John tenha desaparecido para sempre. Está encantada. John foi seqüestrado, provavelmente assassinado, mas, e quanto à transação com Bartlett?"
— As mulheres são tão práticas — comentou.
— Como assim, tai-pan? — perguntou, estreitando os olhos.
— Mantêm as coisas em perspectiva.
— Às vezes não o compreendo nem um pouquinho, tai-pan — replicou ela, uma ponta de irritação na voz. — O que mais podemos fazer agora por John Chen? Nada. Fizemos tudo o que foi possível. Quando o bilhete de resgate chegar, negociaremos e pagaremos, e tudo será como antes. Mas o negócio com Bartlett é importante, muito importante, importantíssimo, aconteça o que acontecer, heya? Moh ching, moh meng. Sem dinheiro, sem vida.
— Isso mesmo. É muito importante, tai-pan. — Phillip olhou para a caixa e estremeceu. — Acho que, nas atuais circunstâncias, tai-pan, se puder nos desculpar logo mais à noite... não ach...
— Não, Phillip — disse a mulher com firmeza. — Não. Precisamos ir. É uma questão de prestígio para toda a Casa. "Iremos hoje à noite, e toda a Hong Kong só falará de nós. iremos, segundo os planos.
— Bem, se você acha melhor.
— Acho. — "Ora se acho", pensava, replanejando toda a sua toalete para realçar o efeito dramático da entrada deles. "Iremos hoje à noite, e toda a Hong Kong só falará de nós. Levaremos Kevin, é claro. Talvez já seja o herdeiro, agora. Ayeeyah! Com quem deve meu filho se casar? Preciso pensar no futuro, agora. Vinte e dois é uma idade perfeita, e preciso pensar no seu futuro. É, uma mulher. Quem? É melhor eu escolher a garota certa imediatamente, depressa, se for o herdeiro, antes que alguma rapariga com fogo entre as pernas e uma mãe esperta o façam por mim. Ayeeyah", pensou, exaltando-se, "os deuses nos livrem de tal coisa!" — É — falou, tocando os olhos com o lenço, como se ali houvesse alguma lágrima —, nada mais há a ser feito pelo pobre John, senão esperar... e continuar a trabalhar, planejar e manobrar para o bem da Casa Nobre. — Ergueu para Bartlett os olhos brilhantes. — O negócio com Bartlett resolveria tudo, não é?
— É.
"E estão ambos certos", pensou Dunross. "Não há mais nada a ser feito no momento. Os chineses são muito sábios e muito práticos.
"Portanto, concentre-se nas coisas importantes", disse para si mesmo. "Coisas importantes... por exemplo, você joga? Pense. Que melhor local ou hora do que aqui e agora poderia achar para começar a pôr em prática o plano que vem delineando desde que conheceu Bartlett?
"Nenhum."
— Ouçam — falou, decidindo irrevogavelmente, depois lançou um olhar para a porta que dava para os alojamentos dos criados, certificando-se de que estavam sós. Baixou o tom de voz para um sussurro conspiratório, e Phillip e a mulher se debruçaram para a frente para ouvir melhor. — Tive uma reunião particular com Bartlett antes do almoço. Fechamos o negócio. Vai precisar de umas pequenas alterações, mas assinamos o contrato formalmente na terça-feira da semana que vem. Os vinte milhões estão garantidos, e mais vinte no ano que vem.
Phillip Chen abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Parabéns.
— Fale baixo, Phillip — sibilou a mulher, igualmente satisfeita. — Aqueles escravos de boca de tartaruga na cozinha têm ouvidos que escutam o que se fala em Java. Ah, mas que notícia fantástica, tai-pan!
— Manteremos isso em família — falou Dunross, suavemente. — Hoje à tarde darei ordem aos nossos corretores para começarem a comprar ações da Struan em segredo... cada tostão disponível que tivermos. Façam o mesmo, em lotes pequenos, e espalhem as ordens por corretores e representantes diferentes... o de sempre.
— Sim, claro que sim.
— Eu pessoalmente comprei quarenta mil hoje de manhã.
— Quanto as ações vão subir? — quis saber Dianne Chen.
— Vão dobrar!
— Em quanto tempo?
— Trinta dias!
— Eeee — exclamou ela alegremente. — Imaginem só!
— É — disse Dunross, amavelmente. — Imaginem só! E vocês dois só contarão aos parentes muito íntimos, que são muitos, e eles só contarão aos parentes muito íntimos deles, que são uma infinidade, e todos vocês comprarão e comprarão, porque esta é uma "dica" folheada a ouro, mais certa é impossível, o que acrescentará mais combustível ao aumento das ações. O fato de que é só uma transa de família com certeza vai escapar da boca de alguém, e mais gente entrará na dança, depois mais, e depois a declaração formal do negócio com a Par-Con aumentará o fogo, e então, na semana que vem, anunciarei a proposta para a compra do controle das Propriedades Asiáticas, e então Hong Kong inteira comprará. Nossas ações atingirão a estratosfera. E então, no momento certo, deixo de lado as Propriedades Asiáticas e parto para o alvo real.
— Quantas ações, tai-pan? — perguntou Phillip Chen, a cabeça cheia dos próprios cálculos dos possíveis lucros.
— O máximo. Mas tem que se limitar à família. Nossas ações vão liderar a alta da Bolsa.
Dianne soltou uma exclamação abafada.
— Vai haver uma alta?
— Vai. Vamos liderá-la. A hora é essa, todos em Hong Kong estão prontos. Vamos fornecer os meios, vamos ser os líderes, e com um bom empurrão aqui e ali, vai haver uma disparada.
Fez-se um grande silêncio. Dunross ficou observando a avareza no rosto dela.
Seus dedos brincavam com as contas de jade. Viu Phillip fitando a distância, sabia que parte da sua mente de homem de negócios estava nas várias notas promissórias que ele, Phillip, subscrevera pela Struan, e que venciam num período de treze a trinta dias: doze milhões de dólares americanos para as Indústrias de Navegação Toda de Yokohama, pelos dois cargueiros gigantes, seis milhões e oitocentos mil para o Orlin International Merchant Bank, e setecentos e cinqüenta mil para Tsu-yan, que cobrira um outro problema para ele. Mas a maior parte da mente de Phillip estaria concentrada nos vinte milhões de Bartlett e na alta das ações... na duplicação que ele previra arbitrariamente.
Duplicação?
De jeito nenhum... não, não havia a menor chance disso.
A não ser que houvesse uma alta desenfreada. A não ser que houvesse uma alta!
Dunross sentiu o coração bater mais rápido.
— Se houver uma alta... Santo Deus, Phillip, podemos ter sucesso!
— É, é, concordo. Hong Kong está no ponto. Ah, sim. —
Os olhos de Phillip Chen brilharam, seus dedos tamborilaram na mesa. — Quantas ações, tai-pan?
— Todo tos...
Excitada, Dianne interrompeu Dunross.
— Phillip, na semana passada meu astrólogo disse que este ia ser um mês importante para nós! Uma alta da Bolsa! Era a isso que devia estar se referindo.
— É verdade, lembro que você me contou, Dianne. Oh, oh, oh! Quantas ações, tai-pan? — perguntou de novo.
— Todo tostão disponível! Esta vai ser a grande oportunidade. Mas só a família até sexta-feira. Exclusivamente, até sexta-feira. Depois que a Bolsa fechar, deixarei transpirar a conclusão do negócio com Bartlett...
— Eeee — sibilou Dianne.
— É. Durante o fim de semana direi "nada a comentar"; certifique-se de que não possam localizá-lo, Phillip, e na segunda de manhã todo mundo estará indócil na pista. Ainda direi "nada a comentar", mas na segunda compraremos abertamente. Então, logo depois que se encerrar o expediente comercial de segunda, anunciarei a confirmação da transação. E aí, na terça...
— Vai começar a alta!
— É.
— Oh, dia feliz — coaxava Dianne, radiante. — E cada amah, camareiro, cule ou comerciante perceberá que a sorte está do seu lado, e tirará suas economias, e comprará, e todas as ações dispararão. Que pena que não vai haver um editorial amanhã... melhor ainda, um astrólogo num dos jornais... que tal o Fong Cem Anos... ou... — Estava quase vesga, de tão excitada. — E quanto a o astrólogo, Phillip?
Ele a fitou, chocado.
— O Velho Cego Tung?
— Por que não? Um pouco de h'eung yau na palma da sua mão... ou a promessa de algumas ações escolhidas. Heya?
— Bem, eu...
— Deixe comigo. O Velho Cego Tung me deve um ou dois favores, mandei-lhe um bocado de clientes! É. E ele não vai estar longe da verdade anunciando que os desígnios do céu prevêem a maior alta na história de Hong Kong, vai?
5h25m
O patologista da polícia, dr. Meng, ajustou o foco do microscópio e examinou a lasca de carne que cortara da orelha. Brian Kwok observava-o, impaciente. O médico era um can-tonense pequeno e pedante, com óculos de lentes grossas encarapitados na testa. Finalmente, ergueu os olhos, e os óculos caíram convenientemente sobre seu nariz.
— Bem, Brian, pode ter sido cortada de uma pessoa viva, e não de um cadáver... possivelmente. Possivelmente dentro das últimas oito ou dez horas. A machucadura... aqui, olhe aqui atrás — o dr. Meng mostrou delicadamente a descoloração atrás e em cima —, isso certamente indica para mim que a pessoa estava viva na hora do corte.
— Por que a machucadura, dr. Meng? O que a causou? O corte?
— Podia ter sido causada por alguém que estivesse segurando firmemente o espécime — falou o dr. Meng, cautelosamente — enquanto era removido.
— Pelo quê? Faca, navalha, canivete, ou um cutelo chinês... cutelo de cozinha?
— Por um instrumento cortante. Brian Kwok soltou um suspiro.
— E isso poderia matar alguém? O choque? Uma pessoa como John Chen?
O dr. Meng formou um triângulo com os dedos.
— Poderia, possivelmente. Possivelmente não. Ele tem problemas cardíacos?
— O pai disse que não; ainda não falei com o médico particular dele, o sacana está de férias, mas John sempre demonstrou gozar de boa saúde.
— Esta mutilação provavelmente não mataria um homem saudável, mas ele se sentiria muito desconfortável por uma ou duas semanas. — O doutor abriu um sorriso. — Muito desconfortável, mesmo.
— Meu Deus! — exclamou Brian. — Não pode me dizer nada que me ajude?
— Sou um patologista forense, Brian, não um vidente.
— Não dá para me dizer se a orelha é eurasiana... ou apenas chinesa?
— Não. Não, com este espécime seria quase impossível. Mas certamente não é anglo-saxã, indiana ou negróide. — O dr. Meng tirou os óculos e fitou com olhar míope o superintendente alto. — Isto poderia possivelmente causar uma agitação e tanto na Casa de Chen, heya?
— É, e na Casa Nobre. — Brian Kwok pensou por um momento. — Na sua opinião, este Lobisomem, este maníaco, diria que ele é chinês?
— A escrita pode ser de uma pessoa instruída. Igualmente, pode ser de um quai loh fingindo ser uma pessoa instruída. Mas se ele ou ela era uma pessoa instruída, isso não significa necessariamente que a mesma pessoa que cometeu a ação tenha escrito a carta.
— Sei disso. Quais as probabilidades de que John Chen esteja morto?
— Pela mutilação?
— Pelo fato de que o Lobisomem, ou mais provavelmente os Lobisomens, mandaram a orelha sem sequer dar início às negociações.
O homenzinho sorriu e falou, secamente:
— Está se referindo ao ditado do velho Sun Tse "Mate um para aterrorizar dez mil"? Não sei. Não faço especulações sobre coisas tão imponderáveis. Calculo apenas as probabilidades dos cavalos, Brian, ou da Bolsa de Valores. Que tal a Golden Lady de John Chen no sábado?
— Tem grandes chances. Definitivamente. E a Noble Star de Struan, o Pilot Fish de Gornt, e mais ainda, a Butter-scotch Lass de Richard Kwang. Nesta favorita é que vou apostar. Mas Golden Lady é uma lutadora. Vai começar com três contra um. Corre muito, e a pista lhe vai ser favorável. Seca. Não dá nada na pista molhada.
— Ah, e algum sinal de chuva?
— É possível. Dizem que vem temporal por aí. Até um chuvisco pode fazer diferença.
— Então, é melhor que não chova até domingo, heya?
— Não vai chover este mês... só se tivermos uma sorte enorme.
— Bem, se chover, chove, e se não chover, não chove, e daí! O inverno já vem vindo... então esta maldita umidade irá embora. — O dr. Meng deu uma olhada para o relógio de parede. Eram cinco e trinta e cinco da tarde. — Que tal um traguinho rápido antes de irmos para casa?
— Não, obrigado. Ainda tenho umas coisinhas para fazer. Mas que abacaxi danado, esse!
— Amanhã verei se posso arrumar algumas pistas no pano, no papel de embrulho ou nas outras coisas. Quem sabe as impressões digitais serão de alguma ajuda — acrescentou o médico.
— Não estou apostando nisso. Essa história toda me cheira mal, me cheira muito mal, mesmo.
O dr. Meng concordou, e sua voz perdeu a suavidade.
— Qualquer coisa ligada à Casa Nobre e à sua marionete, a Casa de Chen, cheira mal, não é?
Brian Kwok passou a conversar em sei yap, um dos principais dialetos da província de Kwantung, falado por muitos dos cantonenses de Hong Kong.
— Ei, irmão, não quer dizer que todo e qualquer cão capitalista cheira mal, e que a Casa Nobre e a Casa de Chen têm os que mais fedem a bosta? — disse, caçoando.
— Ah, Irmão, não sabe ainda, bem dentro da sua cabeça, que os ventos da mudança estão varrendo o mundo? E que a China, sob a orientação imortal do presidente Mao, e do Pensamento de Mao, lide...
— Guarde a sua doutrinação para si mesmo — disse Brian Kwok friamente, voltando a falar em inglês. — A maioria dos pensamentos de Mao é tirada dos escritos de Sun Tse, Confúcio, Marx, Lao-Tse e outros. Sei que ele é um poeta... um grande poeta... mas usurpou a China, e agora ali não existe liberdade. Nenhuma.
— Liberdade? — replicou desafiadoramente o homenzinho. — O que significa a liberdade por alguns anos, quando, sob a liderança do presidente Mao, a China voltou a ser a China, e retomou o seu lugar de direito no mundo? Agora, a China é temida por todos os capitalistas nojentos! Até mesmo pela Rússia revisionista.
— É. Concordo. E por isso eu agradeço a ele. Entrementes, se não gosta daqui, volte para Cantão e vá trabalhar até gastar os colhões no seu paraíso comunista, e dew neh loh moh para todos vocês, comunistas... e seus seguidores da mesma estirpe!
— Você devia ir para lá, para ver por si mesmo. É pura propaganda que o comunismo é ruim para a China. Não lê os jornais? Agora não há ninguém passando fome.
— E quanto aos vinte e tantos milhões que foram assassinados após a tomada do poder? E quanto a toda a lavagem cerebral?
— Mais propaganda! Só porque freqüentou escolas inglesas e canadenses, e fala feito um porco capitalista, não quer dizer que seja um deles. Lembre-se das suas origens.
— Lembro. E muito bem.
— Seu pai errou quando o mandou embora!
Todos sabiam que Brian Kwok nascera em Cantão, e que, aos seis anos de idade, fora a Hong Kong para estudar. Foi um estudante tão bom que, em 1937, aos doze anos, ganhou uma bolsa de estudos para uma excelente escola particular em Londres, e seguiu para lá, e depois, em 1939, com o começo da Segunda Guerra Mundial, toda a escola foi transferida para o Canadá. Em 1942, aos dezoito anos, formou-se em primeiro lugar como monitor, e entrou para a Real Polícia Montada do Canadá, no setor à paisana, no imenso Bairro Chinês de Vancouver. Falava cantonense, mandarim, sei yap, e serviu com distinção. Em 1945, solicitou transferência para a Real Polícia de Hong Kong. Com a aprovação relutante da RPMC, que queria que continuasse lá, voltou a Hong Kong.
— Você está perdendo tempo trabalhando para eles, Brian — continuou o dr. Meng. — Devia servir às massas e trabalhar para o partido!
— O partido assassinou meu pai e minha mãe, e a maioria da minha família, em 43!
— Nunca se provou isso! Nunca. Foram boatos. Talvez os demônios do Kuomintang o tenham feito... havia caos àquela época em Cantão. Eu estava lá, eu sei! Talvez os porcos japoneses tenham sido os responsáveis... ou as tríades... quem sabe? Como pode estar certo?
— Estou certo, por Deus.
— Houve alguma testemunha? Não! Você mesmo me contou! — A voz de Meng era áspera, e ele ergueu os olhos míopes para Kwok. — Ayeeyah, você é chinês, use a sua educação para a China, para as massas, não para o amo capitalista.
— Vá tomar no rabo!
O dr. Meng riu, e os óculos caíram para cima do nariz.
— Espere só, superintendente Kar-shun Kwok. Um dia, seus olhos se abrirão. Um dia verá toda a beleza da coisa.
— Enquanto isso não ocorre, trate de me arranjar umas respostas!
Brian Kwok saiu com largas passadas do laboratório e subiu o corredor até o elevador, com a camisa grudada às costas. "Gostaria que chovesse", pensou.
Entrou no elevador. Outros policiais o cumprimentaram, e ele retribuiu o cumprimento. Saltou no terceiro andar e caminhou pelo corredor até o seu gabinete. Armstrong estava à sua espera, lendo preguiçosamente um jornal chinês.
— Oi, Robert — disse ele, satisfeito ao ver o outro. — O que há de novo?
— Nada. E com você?
Brian Kwok contou-lhe o que o dr. Meng dissera.
— Aquele sacana e os seus "possivelmente"! A única coisa sobre a qual é enfático é um cadáver... e mesmo assim tem que verificar umas duas vezes.
— É... ou sobre o presidente Mao.
— Ah, tocou de novo esse disco quebrado?
— Foi. — Brian Kwok sorriu. — Disse-lhe que voltasse para a China.
— Jamais irá embora.
— Eu sei. — Brian ficou olhando para uma pilha de papéis na sua mesa, e soltou um suspiro. Depois, falou: — Não faz o gênero do pessoal daqui cortar uma orelha tão cedo.
— Não, não se for um seqüestro de verdade.
— Como?
— Podia ser uma vingança, e o seqüestro ser só um disfarce — falou Armstrong, o rosto gasto endurecendo. — Concordo com você e Dunross. Acho que já o mandaram desta para melhor.
— Mas, por quê?
— Talvez John estivesse tentando fugir, talvez tenha começado uma luta, e eles ou ele entraram em pânico, e antes que eles ou ele soubessem o que se passava, eles ou ele o esfaquearam ou o acertaram na cabeça com um instrumento rombudo. — Armstrong suspirou e espreguiçou-se para aliviar a pressão nos ombros. — De qualquer modo, meu caro, nosso Grande Pai Branco quer isso resolvido rapidamente. Honrou-me com um telefonema para dizer que o governador ligara-lhe pessoalmente para expressar sua preocupação.
Brian Kwok praguejou baixinho.
— Notícias ruins correm depressa! Nada ainda nos jornais?
— Não, mas toda a Hong Kong já sabe, e teremos um vento em brasa soprando nos nossos traseiros amanhã de manhã. O Sr. Maldito Lobisomem... assistido pela imprensa bexiguenta... malvada e não-cooperativa de Hong Kong... nos causará somente aborrecimentos, temo eu, até que prendamos o filho da mãe, ou os filhos da mãe.
— É. Mas nós vamos pegá-lo, ora se vamos!
— É. E que tal uma cerveja... ou melhor, um gim com tônica bem grande? Bem que me agradaria.
— Boa idéia. Seu estômago está ruim de novo?
— Está. Mary diz que são todos os bons pensamentos que guardo dentro de mim.
Riram juntos e dirigiram-se para a porta; já estavam no corredor quando o telefone tocou.
— Ignore o danado, não atenda, só pode ser problema — disse Armstrong, sabendo que nem ele nem Brian deixariam de atender.
Brian Kwok pegou o telefone e ficou petrificado. Era Roger Crosse, superintendente-chefe, diretor do Serviço Especial de Informações.
— Pronto, senhor?
— Brian, quer subir imediatamente?
— Sim, senhor.
— Armstrong está com você?
— Está, sim, senhor.
— Traga-o, também.
O telefone foi desligado.
— Sim, senhor. — Recolocou o fone no gancho, sentindo as costas molhadas de suor. — Deus está nos chamando, e rapidinho.
O coração de Armstrong bateu descompassado.
— Quem, eu? — Juntou-se a Brian, que se dirigia para o elevador. — Para que diabo ele me quer? Não pertenço mais ao sei.
— Não nos cabe perguntar por quê, cabe-nos apenas cagar nas calças quando ele murmura. — Brian Kwok apertou o botão do elevador. — O que estará havendo?
— Tem que ser importante. Será o continente?
— Chu En-lai derrubou Mao e os moderados estão no poder?
— Sonhador! Mao vai morrer no posto, a Divindade da China.
— A única coisa boa que se pode dizer de Mao é que é chinês em primeiro lugar, e comuna em segundo. Amaldiçoados comunas!
— Ei, Brian, quem sabe os soviéticos não estão criando caso de novo na fronteira! Outro incidente?
— Quem sabe. É. A guerra está chegando... é, a guerra entre a Rússia e a China. Mao está certo nisso, também,
— Os soviéticos não são assim tão estúpidos.
— Não faça apostas, meu velho. Já disse e repeti antes, os soviéticos são o inimigo do mundo. Vai haver guerra... logo você vai me dever mil dólares, Robert.
— Não gostaria de pagar essa aposta. A matança será pavorosa.
— É. Mas, ainda assim, vai acontecer. Mao está certo, outra vez. Será realmente pavorosa... mas não catastrófica. — Brian Kwok apertou de novo o botão do elevador, com irritação. Ergueu os olhos, subitamente. — Será que finalmente foi iniciada a invasão, vinda de Formosa?
— Qual é, Brian! Fantasia? Deixe disso! Chang Kai-chek jamais sairá de Formosa.
— Se não sair, o mundo todo ficará atolado na pilha de estrume. Se Mao tiver trinta anos para consolidar... Meu Deus, você nem imagina! Um bilhão de autômatos? Chang é que estava certo em perseguir os comunas sacanas... são eles os verdadeiros inimigos da China. São a praga da China. Santo Deus, se tiverem tempo para condicionar todos os garotos!
— Você fala exatamente como um nacionalista militante — disse Armstrong suavemente. — Esfrie a cuca, rapaz, tudo está uma bosta no mundo, que não é nem nunca será normal... mas você, cão capitalista, pode correr no sábado, fazer alpinismo no domingo, e há sempre muitas gatinhas para comer. Certo?
— Desculpe. — Entraram no elevador. — Aquele sacana do Meng me tirou do sério — disse Brian, apertando o botão do último andar.
Armstrong passou a falar em cantonense.
— Dane-se a sua mãe com o seu desculpe, Irmão.
— E a sua foi enfiada por um macaco vagabundo com um só testículo num balde de excrementos de um porco.
Armstrong riu de orelha a orelha.
— Nada mau, Brian — falou, em inglês. — Nada mau mesmo.
O elevador parou. Seguiram pelo corredor pardacento. Diante da porta, prepararam-se, Brian bateu suavemente.
— Entre.
Roger Crosse estava na casa dos cinqüenta anos, um homem alto e magro de olhos azuis muito claros e cabelos louros, que começavam a ficar ralos, e mãos pequenas, de dedos longos. Sua mesa era meticulosamente arrumada, como suas roupas civis — um gabinete espartano. Indicou as cadeiras. Sentaram-se. Continuou lendo uma pasta. Quando acabou, fechou-a com cuidado e colocou-a diante de si. A capa era pardacenta, comum, de uso dos gabinetes.
— Um milionário americano chega com armas contrabandeadas, um milionário xangaiense muito suspeito, ex-traficante de drogas, foge para Formosa, e agora um seqüestro com, Deus nos ajude, Lobisomens e uma orelha mutilada. Tudo isso em dezenove horas e uns quebrados. Onde está a ligação? Armstrong rompeu o silêncio.
— E deveria haver alguma, senhor?
— Não deveria?
— Desculpe, senhor, não sei. Ainda.
— Isso é muito chato, Robert, muito chato mesmo.
— Sim, senhor.
— Tedioso, para falar a verdade, especialmente porque os poderes lá de cima já começaram a respirar pesadamente no meu pescoço. E quando isso acontece... — Sorriu para eles, e ambos reprimiram um arrepio. — Claro, Robert, eu lhe avisei ontem que nomes importantes poderiam estar envolvidos.
— Sim, senhor.
— Bem, Brian, estamos preparando você para um alto posto. Não acha que podia desviar sua atenção de corridas de carro, corridas de cavalo e rabos-de-saia, e aplicar alguns dos seus talentos incontestes na solução deste modesto enigma?
— Sim, senhor.
— Por favor, faça-o. E bem depressa. Está designado para o caso juntamente com o Robert, porque pode requerer a sua perícia... durante os próximos dias. Quero essa história solucionada muito, mas muito depressa mesmo, pois temos um ligeiro problema. Um dos nossos amigos americanos no consulado ligou para mim ontem à noite. Particularmente. — Fez um gesto na direção da pasta. — Este é o resultado. Com a dica dele interceptamos o original nas horas mortas... é claro que esta é uma cópia, o original foi devolvido, naturalmente, e o... — ele hesitou, escolhendo a palavra correta — mensageiro, um amador, diga-se de passagem, saiu sem ser incomodado. É um relatório, uma espécie de análise confidencial de notícias com diferentes cabeçalhos. São todos muito interessantes. É, são. Um deles diz "KGB na Ásia". Alega que têm uma rede de espionagem ultra-secreta, da qual nunca ouvi falar, de codinome "Sevrin", com gente hostil de alto nível em posições-chaves no governo, na polícia, no empresariado, ao nível dos tai-pans, espalhada por todo o sudeste asiático, especialmente aqui em Hong Kong.
Um assobio mudo escapou dos lábios de Brian Kwok.
— Isso mesmo — disse Crosse, amavelmente. — Se for verdade.
— E acha que é, senhor? — perguntou Armstrong.
— Francamente, Robert, talvez você esteja precisando de uma aposentadoria precoce por motivos de saúde: está de miolo mole. Se eu não estivesse preocupado, acha que me submeteria ao prazer infeliz de solicitar a assistência do DIC de Kowloon?
— Não, senhor. Desculpe, senhor.
Crosse virou a pasta para eles, e abriu-a na página inicial. Os dois homens soltaram uma exclamação abafada. Dizia: "Confidencial, somente para Ian Dunross. Entregue em mãos, relatório 3/1963. Uma única cópia".
— É — continuou Crosse. — É. Esta é a primeira vez que temos provas concretas de que a Struan tem seu próprio sistema de informações. — Sorriu para eles, que ficaram arrepiados. — Certamente me agradaria saber como os negociantes conseguem estar a par de todo tipo de informações muito íntimas que devíamos saber séculos antes deles.
— Sim, senhor.
— É óbvio que o relatório faz parte de uma série. Ah, sim, e este aqui está assinado pelo Comitê de Pesquisas da Struan 16, por um certo A. M. Grant... datado em Londres, há três dias.
Brian Kwok soltou nova exclamação.
— Grant? Seria o Alan Medford Grant, associado do Instituto de Planejamento Estratégico de Londres?
— Nota 10, Brian, não errou uma. É. O Sr. A. M. Grant em pessoa. O Sr. VIP, o conselheiro do governo de Sua Majestade para negócios sigilosos, que sabe distinguir alhos de bugalhos. Conhece-o, Brian?
Brian Kwok respondeu:
— Encontrei-o umas duas vezes na Inglaterra o ano passado, senhor, quando fiz o curso para oficiais superiores da Escola do Estado-Maior. Apresentou um trabalho sobre as considerações estratégicas avançadas no Extremo Oriente. Brilhante. Absolutamente brilhante.
— Felizmente ele é britânico e está do nosso lado. Mesmo assim... — Crosse soltou outro suspiro. — Espero sinceramente que ele esteja enganado desta vez, ou estamos mais atolados do que até eu imaginava. Parece que poucos dos nossos segredos ainda são segredos. Cansativo. Muito. E quanto a isso — tocou de novo na pasta —, estou realmente muito chocado.
— O original foi entregue, senhor? — quis saber Armstrong.
— Foi. A Dunross, pessoalmente, às quatro horas e dezoito minutos desta tarde. — A voz dele ficou ainda mais sedosa. — Felizmente, graças a Deus, minhas relações com nossos primos de além-mar são de primeira classe. Como as suas, Robert... e ao contrário das suas, Brian. Nunca realmente gostou dos Estados Unidos, não é, Brian?
— Não, senhor.
— Por quê, posso perguntar?
— Falam demais, senhor, e não dá para a gente lhes confiar nenhum segredo... são escandalosos, e acho que são burros.
Crosse sorriu apenas com os lábios.
— Não é motivo para não se dar bem com eles, Brian. Quem sabe o burro não é você?
— Sim, senhor.
— Não são todos burros, de jeito nenhum.
O diretor fechou a pasta, mas deixou-a virada para eles, que a fitavam, fascinados.
— Os americanos contaram como descobriram sobre a pasta, senhor? — perguntou Armstrong, sem pensar.
— Robert, creio realmente que sua sinecura em Kowloon deixou você de miolo mole. Devo recomendá-lo para uma aposentadoria por razões de saúde?
O grandalhão se crispou todo.
— Não, senhor. Obrigado, senhor.
— Nós lhes revelaríamos as nossas fontes?
— Não, senhor.
— Eles me diriam, se eu fosse grosso a ponto de lhes perguntar?
— Não, senhor.
— Essa história toda é muito tediosa, e cheia de desprestígio. Para mim. Não concorda, Robert?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Ainda bem.
Crosse recostou-se na sua cadeira, balançando-a. Seus olhos não se desgrudavam dos dois homens. Ambos se perguntavam quem dera a dica, e por quê.
"Não pode ter sido a CIA", pensava Brian Kwok. "Teria interceptado a informação ela mesma, não precisa do sei para fazer seu trabalho sujo. Aqueles filhos da mãe malucos fariam qualquer coisa, pisariam em todo mundo", pensou, enojado. "Se não foram eles, quem?
"Quem?
"Deve ter sido alguém que pertence aos serviços de informações, mas que não pode, ou não pôde, interceptar o material, alguém que se dá bem, com segurança, com Crosse. Um funcionário consular? É possível, Johnny Mishauer, do Serviço Naval de Informações? Fora do seu campo. Quem? Não há muitos que... Ah, o sujeito do FBI, o protegido de Crosse! Ed Langan. Bem, e como Langan saberia desta pasta? Informações de Londres? É possível, mas o FBI não tem escritório lá. Se a dica veio de Londres, provavelmente a MI-5 ou 6 teriam sabido dela primeiro, e eles dariam um jeito de arranjar o material na fonte, e o teriam mandado por telex para nós, dando-nos o maior esporro por sermos incapazes no nosso próprio quintal. O avião do mensageiro pousou no Líbano? Parece que me lembro de um homem do FBI. Se não foi do Líbano ou de Londres, a informação deve ter vindo do próprio avião. Ah, um delator amistoso que estava presente e viu a pasta, ou a capa? Tripulação? Ayeeyah! Será que o avião era da twa ou da Pan Am? O FBI tem todo tipo de ligações, ligações estreitas... com todo tipo de empresas comuns, e acertadamente. Ah, sim. Há um vôo de domingo? Há. Pan Am, hora aproximada de chegada: vinte e trinta. Tarde demais para uma entrega noturna, na hora em que se chegasse ao hotel. Perfeito."
— É estranho que o mensageiro tenha vindo pela Pan Am e não pela boac... o vôo é muito melhor — disse, satisfeito com o modo oblíquo pelo qual sua mente funcionara.
— É, foi o que pensei — disse Crosse, serenamente. — Terrivelmente antibritânico da parte dele. Claro que a Pan Am sempre pousa na hora, enquanto com a pobre velha boac nunca se sabe, hoje em dia... — Fez um gesto de cabeça afável na direção de Brian. — Nota 10, de novo. É o primeiro da classe.
— Obrigado, senhor.
— O que mais você deduziu? Após uma pausa, Brian Kwok disse:
— Em troca da dica, o senhor concordou em dar a Langan uma cópia exata da papelada.
— E...?
— E lamenta ter cumprido o prometido. Crosse soltou um suspiro.
— Por quê?
— Só saberei depois de ter lido o que contém a pasta.
— Brian, você está realmente se superando, hoje. Ótimo. — Distraidamente, o diretor ficou brincando com a pasta, e os dois homens sabiam que ele os estava provocando, deliberadamente, mas nenhum sabia por quê. — Há uma ou duas coincidências muito curiosas em outras seções desta pasta. Nomes como Vincenzo Banastasio... locais de encontro como o Sinclair Towers... O nome Nelson Trading significa algo para qualquer um de vocês?
Ambos sacudiram a cabeça.
— Tudo muito curioso. Comunas à nossa direita, comunas à nossa esquerda... — Os olhos dele ficaram ainda mais duros.
— Parece que temos um homem mau nas nossas próprias fileiras, possivelmente a nível de superintendente.
— Impossível! — exclamou Armstrong, involuntariamente.
— Durante quanto tempo esteve conosco no sei, meu rapaz?
Armstrong quase se encolheu.
— Dois turnos, quase cinco anos, senhor.
— O espião Sorge era impossível, Kim Philby era impossível, santo Deus, Philby! — A súbita deserção para a Rússia soviética, em janeiro daquele ano, desse inglês, desse antigo agente destacado da MI-6, o serviço de informações militar britânico para espionagem e contra-espionagem além-mar, fizera correr ondas de choque por todo o mundo ocidental, especialmente porque, até recentemente, Philby fora primeiro-secretá-rio da embaixada britânica em Washington, responsável pela ligação com os departamentos de Estado e da Defesa dos Estados Unidos e a CIA sobre todos os assuntos de segurança, no mais alto nível. — Como, em nome de tudo o que é sagrado, podia ter sido um agente soviético por todos esses anos, e continuar despercebido? É impossível, não é, Robert?
— Sim, senhor.
— E no entanto continuou, e esteve por dentro dos nossos principais segredos durante anos. Sem dúvida, de 42 a 58. E onde começou a espionar? Deus nos ajude, em Cambridge, em 1931. Recrutado para o partido por outro arquitraidor, Burgess, também de Cambridge, e seu amigo Maclean, que ambos queimem no inferno por toda a eternidade. — Alguns anos antes, esses dois diplomatas do Ministério do Exterior, em importantes colocações (ambos haviam sido do Serviço de Informações, durante a guerra), haviam fugido abruptamente para a Rússia segundos antes de serem apanhados pelos agentes da contra-espionagem britânica, e o escândalo que se seguiu abalara os alicerces da Grã-Bretanha e de toda a OTAN. — Quem mais recrutaram eles?
— Não sei, senhor — respondeu Armstrong, cautelosamente. — Mas pode apostar que agora são todos VIPS no governo, no Ministério do Exterior, no setor da educação, na imprensa, especialmente na imprensa, e como Philby, todos muito bem entocados.
— Com as pessoas, nada é impossível. Nada. As pessoas são realmente terríveis. — Crosse deu um suspiro e endireitou levemente a pasta. — É. Mas é um privilégio pertencer ao sei, não é, Robert?
— Sim, senhor.
—. É preciso ser convidado, não é? Não se pode entrar como voluntário, pode?
— Não, senhor.
— Nunca lhe perguntei por que não ficou conosco, perguntei?
— Não, senhor.
— E então?
Armstrong gemeu intimamente e respirou fundo.
— É porque gosto de ser policial, senhor, não um homem de capa-e-espada. Gosto de trabalhar no DIC. Gosto de medir inteligência com o bandido, gosto da caçada e da captura, e depois de provar tudo no tribunal, segundo as regras... a lei, senhor.
— Ah, mas no sei não agimos assim, não é? Não estamos interessados em tribunais ou leis ou coisa nenhuma, só nos resultados?
— O SEI e a SB têm regras diferentes, senhor — disse Armstrong, com cuidado. — Sem eles, a colônia estaria liquidada.
— É, estaria sim. As pessoas são terríveis, e os fanáticos se multiplicam como vermes num cadáver. Você foi um bom agente secreto. Agora me parece que chegou a hora de pagar todas as horas e meses de treinamento cuidadoso que teve, às expensas de Sua Majestade.
O coração de Armstrong baqueou duas vezes, mas ele ficou calado, apenas prendeu a respiração, e agradeceu a Deus porque nem mesmo Crosse poderia transferi-lo do DIC contra a sua vontade. Ele detestara os períodos passados no sei — no começo, fora excitante, e o fato de ter sido escolhido representava um grande voto de confiança, mas logo perdeu a graça —, os ataques súbitos contra os bandidos, nas horas mortas, interrogatórios in camera, nenhuma preocupação sobre a existência de provas concretas, apenas resultados e uma ordem secreta e rápida de deportação assinada pelo governador, depois a viagem imediata até a fronteira, ou até um junco com destino a Formosa, sem apelação ou volta. Jamais.
— Não é o estilo britânico, Brian — sempre comentara com o amigo. — Sou a favor de um julgamento justo, público.
— E que diferença faz? Seja prático, Robert. Sabe que os sacanas são todos culpados... são o inimigo, agentes inimigos comunas que se valem de nossas regras para continuar aqui, destruindo-nos e à nossa sociedade... auxiliados por alguns advogados filhos da mãe que fariam qualquer coisa por trinta moedas de prata, ou menos. A mesma coisa no Canadá. Santo Deus, cortávamos um dobrado na RPMC, nossos próprios advogados e políticos eram o inimigo, e canadenses recentes, curiosamente sempre britânicos, líderes dos sindicatos socialistas que estavam sempre na dianteira de qualquer agitação. Que diferença faz, contanto que a gente se livre desses parasitas?
— Faz diferença, no meu modo de pensar. E aqui não há só bandidos comunistas. Há um bocado de bandidos nacionalistas que querem...
— Os nacionalistas querem que os comunas saiam de Hong Kong, só isso.
— Uma ova! Chang Kai-chek queria tomar posse da colônia, depois da guerra. Foi a marinha britânica que o deteve, depois que os americanos abriram mão de nós. Ainda deseja ser o nosso soberano. Nesse aspecto, não é diferente de Mao Tsé-tung!
— Se o sei não tiver a mesma liberdade que o inimigo, como vamos evitar que ele nos aniquile?
— Brian, meu rapaz, só disse que eu não gosto de pertencer ao sei. Você vai adorá-lo. Eu só quero ser um tira, não um maldito Bond!
"É", pensou Armstrong, sombriamente, "só um tira, no DIC, até me aposentar e voltar para a boa e velha Inglaterra. Santo Deus, tenho problemas de sobra com os amaldiçoados Lobisomens." Olhou para Crosse, mantendo a fisionomia cuidadosamente impassível, e esperou.
Crosse o observou, depois deu uma batidinha na pasta.
— Segundo isto aqui, estamos muito mais atolados na lama do que até mesmo eu imaginava. Muito deprimente. É. — Ergueu os olhos. — Este relatório se refere a outros, anteriores, enviados a Dunross. Gostaria de vê-los o mais depressa possível. Rápida e discretamente.
Armstrong olhou para Brian Kwok.
— Que tal Claudia Chen?
— Não. Nem pensar. De jeito nenhum.
— Então o que sugere, Brian? — perguntou Crosse. — Imagino que meu amigo americano vá ter a mesma idéia... e se ele foi mal orientado o bastante para passar adiante a pasta, uma cópia dela, para o diretor da CIA aqui... eu realmente me sentiria muito deprimido se eles chegassem lá primeiro de novo.
Brian Kwok pensou por um momento.
— Podíamos mandar uma equipe especializada aos escritórios executivos e à cobertura do tai-pan, mas levaria tempo... não sabemos onde procurar... e teria que ser à noite. Poderia ser complicado, senhor. Os outros relatórios, se é que existem, podem estar num cofre na Casa Grande, ou na casa dele em Shek-O... até mesmo no seu... apartamento particular no Sinclair Towers, ou num outro qualquer cuja existência desconhecemos.
— Deprimente — concordou Crosse. — Nosso serviço de informações está ficando espantosamente relaxado, na nossa própria jurisdição. Uma pena. Se fôssemos chineses, saberíamos tudo, não é, Brian?
— Não, senhor. Desculpe, senhor.
— Bem, se não sabe onde procurar, terá que perguntar.
— Senhor?
— Pergunte. Dunross sempre pareceu cooperar, no passado. Afinal, é seu amigo. Pergunte onde estão, peça para vê-los.
— E se ele disser que não, ou que foram destruídos?
— Use a sua cuca talentosa. Bajule-o um pouco, use de alguma arte, chegue-se a ele. E negocie.
— Temos algo no momento para negociar com ele?
— A Nelson Trading.
— Senhor?
— Parte consta do relatório. Mais uma informaçãozinha modesta que terei prazer em dar-lhes, mais tarde.
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
— Robert, o que você fez para encontrar John Chen e o Lobisomem, ou os Lobisomens?
— O DIC inteiro foi alertado, senhor. Pegamos o número do carro dele imediatamente e já o distribuímos num boletim. Entrevistamos a mulher dele, sra. Barbara Chen, entre outros... ela estava histérica quase o tempo todo, mas lúcida, muito lúcida sob a torrente de lágrimas.
— É?
— Sim, senhor. Ela... Bem, o senhor compreende.
— Sim.
— Disse que não era incomum o marido ficar fora até tarde... disse que tinha muitas reuniões de negócios até altas horas, e às vezes saía cedo para ir ao prado ou ao seu barco. Tenho absoluta certeza de que ela sabia que ele dava as suas voltinhas. Reconstituir os movimentos dele ontem à noite foi relativamente fácil até as duas da madrugada. Deixou Casey Tcholok no Old Vic por volta das dez e meia...
— Ele viu Bartlett ontem à noite?
— Não, senhor. Bartlett ficou dentro do seu avião em Kai Tak o tempo todo.
— John Chen falou com ele?
— Só se houvesse algum modo de ligar o avião ao nosso sistema telefônico. Nós o mantivemos sob vigilância até a batida de hoje de manhã.
— Continue.
— Depois de deixar a srta. Tcholok (a propósito, descobri que aquele era o Rolls-Royce do pai dele), ele tomou a balsa para o lado de Hong Kong, onde foi a um clube chinês particular perto da Queen's Road, e dispensou carro e chofer... — Armstrong pegou o seu bloquinho e consultou-o. —...Era o Tong Lau Club. Lá encontrou-se com um amigo e colega de negócios, Wo Sang Chi, e começaram a jogar mah-jong. Mais ou menos à meia-noite o jogo foi encerrado. Depois, com Wo Sang Chi e os outros dois jogadores, ambos amigos, Ta Pan Fat, um jornalista, e Po Cha Sik, corretor de valores, pegaram um táxi.
Robert Armstrong ouviu sua voz relatar os fatos, caindo no padrão policial familiar, e isso o deixou satisfeito e distraiu sua atenção da pasta e de todos os conhecimentos secretos que continha, e do problema do dinheiro de que necessitava com tanta pressa. "Tomara Deus eu pudesse ser apenas um policial", pensou, detestando o Serviço Especial de Informações e a necessidade da sua existência.
— Ta Pan Fat saltou do táxi primeiro, em sua casa na Queen's Road, depois Wo Sang Chi saltou na mesma rua, logo a seguir. John Chen e Po Cha Sik — achamos que ele tem ligações com as tríades, está sendo investigado com muito cuidado — foram para a Garagem Ting Ma, na Sunning Road, Causeway Bay, para apanhar o carro de John Chen, um Jaguar 1960. — Novamente consultou o bloquinho, desejando ser preciso, achando os nomes chineses confusos como sempre, mesmo depois de tantos anos. — Um empregado da garagem, Tong Ta Wey, confirmou isso. Depois, John Chen levou o amigo Po Cha Sik de carro até sua casa, Village Street, 17, no Happy Valley, onde o amigo saiu do veículo. Entrementes, Wo Sang Chi, companheiro de negócios de John Chen, que, curiosamente, dirige a companhia de transportes da Struan, que tem o monopólio dos carretos de e para Kai Tak, fora para o Restaurante Sap Wah, na Fleming Road. Declara que, quando já estava lá há trinta minutos, John Chen veio se encontrar com ele, e saíram do restaurante no carro de John, pretendendo apanhar umas dançarinas na rua e levá-las para cear...
— Ele nem pensou em ir a um cabaré e pagar pela companhia das garotas? — perguntou Crosse, pensativo. — Quanto custaria, Brian?
— Sessenta dólares de Hong Kong, senhor, àquela hora da noite.
— Sei que Phillip Chen tem reputação de ser avarento, mas o filho é igual?
— Àquela hora da noite, senhor — explicou Brian Kwok —, muitas moças começam a deixar os clubes, se ainda não arrumaram um parceiro. A maioria dos clubes fecha por volta da uma hora. O domingo não é um dia rendoso, senhor. É bem comum rodar por aí, pois não há necessidade de desperdiçar sessenta dólares, talvez duas ou três vezes sessenta dólares, porque as garotas decentes andam aos pares, ou trios, e comumente se leva duas ou três para jantar primeiro. Não há por que desperdiçar todo esse dinheiro, não é, senhor?
— Você roda por aí, Brian?
— Não, senhor. Não tenho necessidade... não, senhor. Crosse soltou um suspiro e voltou-se para Armstrong.
— Continue, Robert.
— Bem, senhor, eles não conseguiram pegar nenhuma moça, e foram para o Copacabana Night Club, no Sap Chuk Hotel, na Gloucester Road, para cear. Chegaram lá por volta da uma hora, e saíram por volta de uma e quarenta e cinco. Wo Sang Chi disse que viu John Chen entrar no seu carro, mas que não o viu sair dirigindo... depois foi a pé para casa, pois mora ali perto. Disse que John Chen não estava alto, ou de mau humor, nada disso, mas parecia animado, embora, anteriormente, no Tong Lau Club, parecesse irritadiço e quisesse interromper logo o jogo de mah-jong. E é o fim de tudo. Daí em diante, John Chen não foi mais visto pelos amigos... nem pela família.
— Ele contou a Wo Sang Chi aonde iria?
— Não. Wo Sang Chi nos disse que imaginara que tivesse ido para casa, mas depois acrescentou: "Quem sabe foi visitar a namorada?" Perguntamos quem era, mas ele disse que não sabia. Depois de muito insistirmos, falou que parecia lembrar um nome, Flor Fragrante, mas nada de endereço ou telefone... só isso.
— Flor Fragrante? Isso poderia se aplicar a uma infinidade de damas da noite.
— Sim, senhor.
Crosse ficou imerso em pensamentos, por um momento.
— Por que motivo Dunross iria querer eliminar John Chen?
Os dois policiais fitaram boquiabertos o seu superior.
— Ponha isso no seu cérebro de ábaco, Brian.
— Sim, senhor, mas não há motivo. John Chen não representa ameaça para Dunross, de modo algum... mesmo que se tornasse o representante nativo. Na Casa Nobre, o tai-pan detém todo o poder.
— É?
— Ê. Por definição. — Brian Kwok hesitou, desconcertado de novo. — Bem, senhor, sim... eu... na Casa Nobre, sim.
Crosse voltou a atenção para Armstrong.
— E então?
— Nenhum motivo que eu possa imaginar, senhor. Ainda.
— Bem, continue tentando.
Crosse acendeu um cigarro, e Armstrong sentiu violentamente ânsia de fumar. "Nunca vou manter minha promessa", pensou. "Sacana maldito, Crosse, a cruz-que-todos-temos-que-carregar! Que diabo está pensando?" Viu Crosse oferecer-lhe um maço de Sênior Service, a marca que costumava fumar. "Não se iluda", pensou, "a marca que você ainda fuma."
— Não, senhor, obrigado — ouviu-se dizer, agulhadas de dor no estômago, no corpo todo.
— Não está fumando, Robert?
— Não, senhor, parei... estou tentando parar.
— Admirável! Por que motivo Bartlett iria querer eliminar John Chen?
Novamente, os dois policiais o fitaram, embasbacados. Depois Armstrong perguntou, com voz rouca:
— Sabe por quê, senhor?
— Se soubesse, por que lhes perguntaria? Cabe a vocês descobrir. Há uma ligação num canto qualquer. Coincidências demais, a coisa está certinha demais, simples demais... e fedendo demais. É, isso está me cheirando a envolvimento do KGB, e quando isso acontece nos meus domínios, devo confessar que fico irritado.
— Sim, senhor.
— Então, até agora tudo bem. Ponham a sra. Phillip Chen sob vigilância. É bem provável que esteja implicada, de alguma forma. As vantagens para ela são realmente bastante compensadoras. Sigam Phillip Chen também, por um ou dois dias.
— Isso já foi feito, senhor. Com os dois. Quanto a Phillip Chen, não é que suspeite dele, mas só porque acho que eles farão o de costume: não cooperar, ficar na moita, negociar em segredo, pagar em segredo e soltar um suspiro de alívio quando tudo estiver terminado.
— Exatamente. Por que será que esses sujeitos, não importa o quanto sejam educados, acham que são muito mais espertos do que nós, e não nos ajudam a fazer o trabalho que somos pagos para fazer?
Brian Kwok sentiu os olhos de aço penetrantes sobre si, e o suor escorreu pelas suas costas. "Controle-se", pensou. "Esse sacana não passa de um demônio estrangeiro, incivilizado, comedor de bosta, coberto de merda, sem mãe, saturado de dew neh loh mob, descendente de um macaco."
— É um velho costume chinês, que certamente o senhor conhece — retrucou, cortesmente —, desconfiar de todos os policiais, de todos os funcionários do governo... eles têm quatro mil anos de experiência, senhor.
— Concordo com a hipótese, mas com uma exceção. Os britânicos. Provamos, sem margem de dúvida, que somos dignos de confiança, podemos governar, e, de um modo geral, nossa burocracia é incorruptível.
— Sim, senhor.
Crosse fitou-o por um momento, tirando baforadas do seu cigarro. Depois, falou:
— Robert, sabe o que disseram ou conversaram John Chen e a srta. Tcholok?
— Não, senhor. Ainda não pudemos interrogá-la... passou o dia inteiro na Struan. Poderia ter importância?
— Vai à festa de Dunross, logo mais à noite?
— Não, senhor.
— Brian?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Robert, estou certo de que Dunross não vai se importar se eu o levar comigo, venha me buscar às oito. Todas as pessoas que contam em Hong Kong estarão lá... você pode ficar de ouvidos abertos e enfiar o nariz em qualquer canto. — Sorriu do seu comentário, e não se importou porque nenhum dos dois sorriu com ele. — Leiam agora o relatório. Volto logo. E Brian, por favor, não falhe hoje à noite. Seria realmente muito chato.
— Sim, senhor. Crosse saiu da sala.
Quando ficaram a sós, Brian Kwok enxugou a testa.
— Esse sacana me aterroriza.
— A mim, também, meu chapa. Sempre aterrorizou.
— Será que mandaria mesmo uma equipe invadir a Struan? — perguntou Brian Kwok, incrédulo. — O âmago dos âmagos da Casa Nobre?
— Claro. Até lideraria a equipe, pessoalmente. Este é o seu primeiro período no sei, meu rapaz, portanto você não o conhece como eu. Aquele sacana lideraria uma equipe de assassinos até o inferno, se achasse isso suficientemente importante. Aposto que foi ele próprio que pegou a pasta. Santo Deus, atravessou a fronteira duas vezes, que eu saiba, para bater papo com um agente amistoso. Foi sozinho, imagine só!
Brian soltou uma exclamação abafada.
— E o governador sabe disso?
— Acho que não. Teria uma hemorragia, e se a MI-6 soubesse, ele seria assado vivo, e Crosse seria mandado para a Torre de Londres. Ele conhece segredos demais para se arriscar desse jeito... mas é o Crosse, e não há nada que se possa fazer a respeito.
— Quem era o agente?
— O nosso homem em Cantão.
— Wu Fong Fong?
— Não, um novo; pelo menos era novo no meu tempo. Do exército.
— Capitão Ta Quo Sa? Armstrong deu de ombros.
— Esqueci. Kwok sorriu.
— É isso aí.
— Mesmo assim, o fato é que Crosse atravessou a fronteira. Ele faz as suas próprias leis.
— Puxa vida, você nem pode ir a Macau porque pertenceu ao sei há dois anos, e ele cruza a fronteira. É louco de se arriscar assim.
— É. — Armstrong começou a imitar Crosse. — "E como é que os comerciantes sabem das coisas antes de nós, meu caro rapaz? "É simples" — disse, respondendo a si mesmo, e sua voz voltou ao normal. — Eles gastam dinheiro. Gastam porradas de dinheiro, enquanto nós só temos brisa para gastar. Ele sabe disso, eu sei, e o mundo todo sabe. Santo Deus, como é que o FBI, a CIA, o KGB ou a CIA coreana trabalham? Gastando dinheiro! Diabos, mas é fácil ter Alan Medford Grant na sua equipe. Dunross o contratou. Um adiantamento de dez mil libras, isso compraria um bocado de relatórios. É mais do que o suficiente, quem sabe foi até menos. Quanto nos pagam? Duas mil libras por ano por trezentos e sessenta e seis dias de vinte e cinco horas, e um patrulheiro ganha quatrocentas libras. Imagine a burocracia que teríamos que enfrentar para obter dez mil libras secretas para comprar informações de um homem. Onde o FBI, a CIA e o maldito KGB estariam, se não tivessem fundos ilimitados? Diabos — acrescentou com azedume —, levaríamos seis meses para obter o dinheiro, se conseguíssemos obtê-lo, enquanto Dunross e cinqüenta outros tiram esse dinheiro da "caixinha". — O grandalhão ficou largado na cadeira, olheiras escuras, olhos vermelhos, as maçãs do rosto marcadas pela luz do teto. Lançou um olhar para a pasta em cima da mesa, à sua frente, mas sem tocá-la, imaginando as notícias tenebrosas que devia conter. — É fácil para os Dunrosses do mundo — comentou.
Brian Kwok concordou, enxugou as mãos e guardou o lenço.
— Dizem que Dunross tem um fundo secreto, o fundo do tai-pan, iniciado por Dirk Struan com o dinheiro obtido quando incendiou e saqueou Foochow, um fundo que apenas o tai-pan atual pode usar para esse tipo de coisa, para h'eung yau, pagamentos especiais, qualquer coisa... quem sabe até um assassinatozinho. Dizem que chega a milhões.
— Também ouvi esse boato. É. Tomara Deus... ora, deixe pra lá. — Armstrong estendeu a mão para a pasta, hesitou, depois se levantou e se dirigiu para o telefone. — As primeiras coisas em primeiro lugar — disse ao amigo chinês, com um sorriso sardônico. — Primeiro vamos arrochar alguns VIPS. — Ligou para o QG da polícia, em Kowloon. — Armstrong... ligue-me com o sargento comissionado Tang-po, por favor.
— Boa noite, senhor. Sim, senhor? — a voz do sargento comissionado Tang-po era cálida e amistosa.
— Boa noite, sargento — respondeu ele, docemente. — Preciso de informações. Preciso saber a quem aquelas armas eram destinadas. Preciso saber quem são os raptores de John Chen. Quero John Chen, ou o corpo dele, de volta em três dias. E quero o Lobisomem, ou Lobisomens, atrás das grades, rapidinho.
Fez-se uma ligeira pausa.
— Sim, senhor.
— Por favor, espalhe a notícia. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. E quando ele fica só um pouquinho zangado, os superintendentes são enviados para outros comandos, e os inspetores também... até os sargentos, mesmo os sargentos comissionados de primeira classe. Alguns chegam a ser rebaixados para simples guardas e mandados para a fronteira. Alguns podem até ser exonerados ou deportados ou mandados para a prisão. Certo?
Fez-se uma pausa maior.
— Sim, senhor.
— E quando ele está realmente muito zangado, os homens sensatos fogem, antes que o combate à corrupção desabe sobre os culpados, e até sobre os inocentes.
Outra pausa.
— Sim, senhor. Vou espalhar a notícia, senhor, imediatamente. Sim, imediatamente.
— Obrigado, sargento. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. Ah, mais uma coisa. — A voz dele tornou-se mais seca. — Talvez você deva pedir ajuda aos seus irmãos sargentos. Eles certamente entenderão, o meu modesto problema é deles também. — Passou a falar em cantonense. — Quando os Dragões arrotam, Hong Kong inteira defeca. Heya?
Uma pausa mais longa.
— Cuidarei do caso, senhor.
— Obrigado.
Armstrong pôs o fone no gancho. Brian Kwok sorriu.
— Isso vai lhe contrair alguns músculos do esfíncter.
O inglês assentiu e sentou-se de novo, mas sua fisionomia continuava dura.
— Não gosto de apelar para isso com freqüência... para falar a verdade, é a segunda vez que o faço, mas não tenho opção. Ele deixou isso bem claro, assim como o Velho. É melhor você fazer o mesmo com suas fontes.
— Claro. "Quando os Dragões arrotam..." Estava fazendo trocadilho com os Cinco Dragões lendários?
— Estava.
Agora, o belo rosto de Brian Kwok se acomodara num molde — frios olhos negros na pele dourada, o queixo quadrado quase imberbe.
— Tang-po é um deles?
— Não sei, ao certo. Sempre achei que era, embora sem nada em que me basear. Não, não estou certo, Brian. Ele é?
— Não sei.
— Bem, não importa que seja ou não. A notícia chegará a um deles, e é só o que me interessa. Pessoalmente, estou convencido de que os Cinco Dragões existem, que são cinco sargentos chineses, talvez até sargentos de polícia, que controlam toda a jogatina ilegal de Hong Kong, e provavelmente, possivelmente, redes de proteção, alguns cabarés e garotas... cinco entre onze. Cinco sargentos superiores entre onze possibilidades. Hem?
— Eu diria que os Cinco Dragões são reais, Robert, talvez haja mais, talvez menos, mas toda a jogatina de rua é controlada pela polícia.
— Provavelmente controlada por membros chineses da nossa Real Força Policial, meu rapaz — disse Armstrong, corrigindo-o. — Ainda não temos prova concreta alguma... e há anos que estamos atrás dela. Duvido que jamais consigamos provar a coisa. — Abriu um sorriso. — Talvez você consiga, quando for comissário assistente.
— Corta essa, Robert, pelo amor de Deus.
— Diabos, você tem apenas trinta e nove anos, tem o curso especial de figurão da Escola do Estado-Maior, e já é superintendente. Aposto cem contra dez que você vai terminar nesse posto.
— Fechado.
— Devia ter apostado cem mil — falou Armstrong, fingindo azedume. — Aí você não teria aceito.
— Experimente para ver.
— Não posso. Quem sou eu para perder todo esse tutu? Você pode ser morto, ou coisa parecida, neste ano ou no próximo, ou pedir demissão... mas se nada disso acontecer, vai para o posto antes de se aposentar, presumindo-se que queira chegar lá.
— Nós dois.
— Eu não... sou um inglês fanático demais. — Armstrong bateu-lhe nas costas, satisfeito. — Vai ser um grande dia. Mas você também não vai acabar com os Dragões... mesmo que consiga provar a coisa, do que duvido.
— Não?
— Não. Pouco se me dá a jogatina. Todos os chineses querem jogar, e se alguns sargentos chineses da polícia controlam a jogatina ilegal de rua, na sua maior parte ela será limpa e justa, embora ilegal pra caramba. Se eles não a controlarem, as tríades o farão, e então os pequenos grupos de sacanas nojentos que conseguimos manter afastados com tanto cuidado vão se unir de novo num único e grande tong, e aí teremos um problema de verdade. Você me conhece, rapaz, não sou cara de balançar nenhum coreto, e é por isso que não chegarei a comissário assistente. Gosto do status quo. Os Dragões controlam a jogatina, e assim mantemos as tríades divididas... e enquanto a polícia se mantiver unida e for a tríade mais forte de Hong Kong, sempre teremos paz nas ruas, uma população bem-comportada e quase nenhum crime, crime violento.
Brian Kwok fitou-o.
— Você acredita mesmo nisso, não é?
— Acredito. No momento, de uma maneira meio estranha, os Dragões são um dos nossos esteios mais fortes. Sejamos realistas, Brian, só os chineses podem governar os chineses. O status quo também é bom para eles... o crime violento é ruim. E assim, obtemos ajuda quando precisamos, e às vezes, ajuda que nós, demônios estrangeiros, provavelmente não conseguiríamos obter de outra maneira. Não sou favorável à corrupção deles, ou à infração da lei, de modo algum... ou ao suborno e a todos os outros golpes baixos que temos que dar, ou aos delatores. Mas qual a força policial do mundo que pode operar sem sujar as mãos algumas vezes, e sem os alcagüetes filhos da mãe? Assim, o mal que os Dragões representam preenche uma necessidade existente aqui, acho eu. Hong Kong é a China, e a China é um caso especial. Enquanto for só o jogo ilegal, pouco se me dá. Se estivesse nas minhas mãos, tornaria o jogo legal hoje mesmo, mas arrasaria com qualquer um por rede de proteção a lojas, cabarés, garotas, ou seja lá o que for. Não suporto cafetão, como bem sabe... O jogo já é outra história. Como se pode impedir que um chinês jogue? Não se pode. Assim, tornemo-lo legal, e deixemos todo mundo feliz. Há quantos anos a polícia de Hong Kong vem aconselhando isso, e todo ano a proposta é rejeitada? Que eu saiba, vinte anos. Mas, ah, não, e por quê? Macau. Claro como a água. A boa e velha Macau portuguesa se alimenta do jogo ilegal e do contrabando de ouro, e é isso o que a mantém viva, e nós não podemos nos dar ao luxo, nós, o Reino Unido, não podemos nos dar ao luxo de deixar o nosso velho aliado entrar pelo cano.
— Robert Armstrong para primeiro-ministro!
— Vá tomar no rabo! Mas é verdade. O que recolhemos com o jogo ilegal é o nosso único dinheiro para suborno... um bocado da grana vai para o pagamento da nossa rede de informantes. Onde mais podemos conseguir esse dinheiro? Com o nosso governo agradecido? Não me faça rir! De alguns dólares extras de impostos da população agradecida que protegemos? Ah!
— Talvez. Talvez não, Robert. Mas o tiro vai sair pela culatra, qualquer dia desses. Os pagamentos especiais... o dinheiro solto e sem origem definida que, "por acaso", vai parar numa gaveta de delegacia? Não é?
— É, mas não no meu bolso, porque não estou metido nisso, não recebo nada por fora, e nem a grande maioria, quer seja britânica, quer chinesa. Entrementes, como podemos nós, trezentos e vinte e sete pobres demônios estrangeiros policiais superiores, controlar oito mil e tantos policiais subalternos e tiras, e mais três milhões e meio de filhos da mãe civilizados que nos odeiam? É essa a questão.
Brian Kwok riu. Foi uma risada contagiosa, e Armstrong riu com ele, acrescentando:
— Vá tomar no rabo de novo, por provocar o meu desabafo.
— Da mesma forma. Como é, quem vai ler primeiro, você ou eu?
Armstrong olhou para a pasta que tinha nas mãos. Era fina continha doze páginas datilografadas em espaço 1, e mais parecia um relatório confidencial de análise de notícias, com tópicos sob cabeçalhos diferentes. A página do índice dizia: "Parte 1: Previsão política e comercial do Reino Unido. Parte 2: O KGB na Ásia. Parte 3: Ouro. Parte 4: Progressos recentes da CIA".
Com ar cansado, Armstrong pôs os pés em cima da mesa e se acomodou mais confortavelmente na cadeira. Depois, mudou de idéia e entregou a pasta ao outro.
— Tome, leia você. Lê mais depressa do que eu, mesmo. Já estou cansado de ler sobre desgraças.
Brian Kwok pegou a pasta, mal contendo a impaciência, o coração batendo forte e pesadamente. Abriu-a e começou a ler.
Armstrong observava-o. Viu o rosto do amigo se modificar imediatamente e perder a cor. Aquilo o perturbara demais. Brian Kwok não se chocava com facilidade. Observou-o enquanto lia até o fim sem fazer comentário, depois voltava a reler um ou outro parágrafo, até que fechou a pasta, devagar.
— É tão ruim assim? — falou Armstrong.
— É pior. Parte dele... bem, se não fosse assinado por A. Medford Grant, eu diria que ele estava doido. Alega que a gia tem uma ligação séria com a Máfia, que estão tramando e já tramaram o assassinato de Castro, estão com força total no Vietnam, envolvidos em drogas e sabe lá Deus o que mais... tome... leia você mesmo.
— E quanto ao agente inimigo infiltrado, ao "toupeira"?
— Temos um toupeira, sem dúvida. — Brian reabriu a pasta e achou o parágrafo que queria. — Escute: "Não há dúvida de que atualmente existe um agente comunista de alto nível infiltrado na polícia de Hong Kong. Documentos altamente secretos que foram trazidos para o nosso lado pelo general Hans Richter (segundo em comando do Departamento de Segurança Interna da Alemanha Oriental), quando se bandeou para nós em março deste ano, afirmam claramente que o codinome do agente é 'Nosso Amigo', e que está na posição há pelo menos dez, ou talvez quinze anos. O contato dele é provavelmente um oficial do KGB em Hong Kong, fazendo-se passar por um empresário amigável em visita, vindo dos países da Cortina de Ferro, possivelmente por um banqueiro ou um jornalista, ou um marujo de um dos cargueiros soviéticos visitando Hong Kong ou sendo consertado aqui. Entre outras informações documentadas que agora sabemos que Nosso Amigo forneceu ao inimigo estão: todos os canais de rádio reservados, todos os números de telefone particulares do governador, chefe de polícia e altos escalões do governo de Hong Kong, juntamente com dossiês muito particulares sobre a maioria deles..."
— Dossiês? — interrompeu Armstrong. — Estão incluídos?
— Não.
— Merda! Continue, Brian.
— "...sobre a maioria deles; os planos de batalha secretos da polícia para enfrentar uma insurreição provocada pelos comunistas, ou uma repetição dos tumultos de Kowloon; cópias dos dossiês particulares de todos os policiais acima do posto de inspetor; os nomes dos seis principais agentes secretos nacionalistas do Kuomintang, operando em Hong Kong sob a autoridade atual do general Jen Tang-wa (Apêndice A); uma lista detalhada dos agentes do Serviço Especial de Informações em Kwantung, sob a autoridade geral do agente graduado Wu Fong Fong (Apêndice B)."
— Meu Deus! — Armstrong soltou uma exclamação abafada. — É melhor tirarmos o velho Fong Fong e o pessoal dele de lá, rapidinho.
— Wu Tat-sing está na lista? Kwok examinou o apêndice.
— Está. Ouça, o parágrafo termina assim: "...O comitê chegou à conclusão de que, até que este traidor seja eliminado, a segurança interna de Hong Kong está em perigo. Ignoramos por que esta informação ainda não foi passada adiante à própria polícia. Imaginamos que isso tenha ligação com a atual infiltração política soviética na administração do Reino Unido, em todos os níveis, o que permite a existência de Philbys e que informações como estas sejam omitidas, suavizadas ou até alteradas (o que foi material do Estudo 4/1962). Sugerimos que este relatório, ou parte dele, chegue imediatamente por vias indiretas aos ouvidos do governador ou do comissário de polícia de Hong Kong (se os considerar dignos de confiança)". — Brian Kwok ergueu os olhos, a mente em torvelinho. — Tem mais umas coisinhas aqui. Deus, a situação política no Reino Unido, e depois Sevrin... Leia. — Sacudiu a cabeça, desalentado. — Pombas, se isso é verdade... estamos atolados até o pescoço. Deus do céu!
Armstrong praguejou baixinho.
— Quem? Quem poderia ser o espião? Tem que ser lá de cima. Quem?
Depois de um grande silêncio, Brian disse:
— O único... o único que poderia saber disso tudo é o próprio Crosse.
— Ora, qual é, pela madrugada!
— Pense bem, Robert. Ele conhecia Philby. Não freqüentou Cambridge, também? Ambos têm origens semelhantes, estão na mesma faixa de idade, pertenceram à Inteligência durante a guerra... como Burgess e Maclean. Se Philby conseguiu tapear o mundo por todos esses anos, por que não Crosse?
— Impossível!
— Quem mais, senão ele? Não pertenceu à MI-6 a vida toda? Não passou um período trabalhando aqui, no começo dos anos 50, e não foi trazido de volta para organizar o nosso sei como setor separado da sb há cinco anos? Não tem sido o diretor, desde então?
— Isso não prova nada.
— É?
Fez-se um longo silêncio. Armstrong observava o amigo atentamente. Conhecia-o bem demais e sabia que falava sério.
— O que você sabe? — perguntou, inquieto.
— Digamos que Crosse seja homossexual.
— Você está completamente louco — explodiu Armstrong. — Ele é casado e... e pode ser um filho da mãe safado, mas nunca houve sequer um murmúrio a respeito disso, nunca.
— É, mas ele não tem filhos, a mulher mora quase permanentemente na Inglaterra, e, quando está aqui, dormem em quartos separados.
— Como sabe?
— A amab sabe, portanto, se eu quisesse saber, seria fácil descobrir.
— Isso não prova nada. Muita gente tem quartos separados. Está errado sobre Crosse.
— Digamos que eu pudesse apresentar-lhe provas?
— Que provas?
— Onde vai sempre passar parte da sua licença? Nas montanhas Cameron, na Malásia. Digamos que tenha um amigo ali, um jovem malaio, um conhecido pervertido.
— Eu precisaria de fotografias, e ambos sabemos que elas podem ser adulteradas — disse Armstrong, asperamente. — Precisaríamos de fitas gravadas, e ambos sabemos que também podem ser adulteradas. O jovem? Isso nada prova... é o truque mais antigo do mundo apresentar falso testemunho e falsas testemunhas. Nunca houve nem mesmo uma insinuação... e ainda que seja "gilete", isso nada prova... nem todos os pervertidos são traidores.
— Não. Mas todos os pervertidos são um excelente alvo para a chantagem. E se ele for, é altamente suspeito. Altamente suspeito. Certo?
Armstrong olhou à sua volta, inquieto.
— Ele pode ter posto escutas na sala.
— E se tiver?
— Se tiver e for verdade, pode acabar com a gente num piscar de olhos. Sendo verdade ou não.
— Pode ser... mas se ele for o espião, saberá que nós estamos sabendo, e se não for, rirá na nossa cara, e eu estou fora do sei. De qualquer maneira, Robert, ele não pode acabar com todos os chineses da força policial.
Armstrong fitou-o.
— O que quer dizer com isso?
— Talvez também haja uma pasta sobre ele. Talvez todo chinês, de cabo para cima, já a tenha lido.
— Como?
— Qual é, Robert? Você sabe como os chineses são unidos. Talvez haja uma pasta, tal...
— Está querendo dizer que estão todos organizados numa irmandade? Uma tong, uma sociedade secreta? Uma tríade dentro da polícia?
— Eu disse "talvez". Tudo isso são suposições, Robert. Eu disse "talvez" e "pode ser".
— Quem é o Grande Dragão? Você?
— Nunca disse que havia tal agrupamento. Disse "talvez". — Existem outras pastas? Sobre mim, por exemplo?
— Talvez.
— E?
— E, se houvesse, Robert — disse Brian Kwok, suavemente —, ela diria que você é um excelente policial, incorrupto, que jogou muito na Bolsa, e jogou mal, e precisava de vinte e tantos mil dólares para pagar umas dívidas urgentes... e mais algumas coisinhas.
— Que coisinhas?
— Estamos na China, amigão. Sabemos de quase tudo o que se passa com os quai loh. Temos que sobreviver, não?
Armstrong olhou para ele, de modo estranho.
— Por que não me contou antes?
— Não lhe contei nada, agora. Nada. Disse "talvez" e repito: "talvez". Mas se tudo isso for verdade... — entregou a pasta e enxugou o suor do lábio superior. — Leia você mesmo. Se for verdade, estamos no mato sem cachorro e teremos que agir muito rapidamente. O que eu falei foram apenas suposições. Mas não quanto a Crosse. Escute, Robert, aposto mil... mil contra um que o toupeira é ele.
19h43m
Dunross acabou de ler a pasta de capa azul pela terceira vez. Leu-a logo que chegou, como sempre, depois mais uma vez, enquanto se dirigia para o palácio do governador. Fechou a capa azul e pousou-a por um momento no colo, a mente tumultuada. Agora, estava no seu escritório no segundo andar da Casa Grande, que se situava num cômodo na parte superior do Pico, os janelões envidraçados dando para jardins iluminados por holofotes, e depois, bem lá embaixo, a cidade e a imensidão do porto.
O relógio de pé, antigo, bateu um quarto para as oito.
"Faltam quinze minutos", pensou. "Depois, nossos convidados chegam, a festa começa e todos tomamos parte numa nova charada. Ou quem sabe apenas continuamos com a mesma."
A sala tinha teto alto e lambris de carvalho velho, cortinas de veludo verde-escuro e tapetes de seda chineses. Era um aposento masculino, confortável, antigo, um pouco gasto e decorado com carinho. Ouviu as vozes abafadas dos criados, lá embaixo. Um carro subiu o morro e passou adiante.
O telefone tocou.
— Sim? Ah, alô, Claudia.
— Ainda não consegui falar com Tsu-yan, tai-pan. Não estava no escritório. Já ligou para o senhor?
— Não, ainda não. Continue tentando.
— Certo. Até daqui a pouco. Tchau.
Estava sentado numa poltrona funda, de braços e espaldar alto, e usava um dinner jacket com o nó na gravata ainda por dar. Ficou olhando distraído pela janela, a vista sempre agradável. Mas naquele dia estava cheio de maus pressentimentos, pensando em Sevrin, no traidor, e em todas as outras coisas más que o relatório previra.
O que fazer?
— Rir — falou em voz alta. — E lutar.
Levantou-se e caminhou com passos suaves até o retrato a óleo de Dirk Struan que estava na parede, acima da cornija da lareira. A moldura era pesada, dourada e velha, o dourado estava lascado aqui e ali, e havia dobradiças secretas num dos lados. Afastou-a da parede e abriu o cofre que a tela escondia. No cofre havia muitos papéis, alguns amarrados com capricho com fitas escarlates, alguns antigos, outros novos, umas poucas caixinhas, uma Mauser carregada e bem lubrifiçada presa a um dos lados do cofre, uma caixa de munição, uma imensa Bíblia antiga com as armas da Struan gravadas no belo couro velho, e sete pastas de capa azul, semelhantes à que trazia nas mãos.
Pensativo, colocou a pasta ao lado das outras, em seqüência. Fitou-as por um momento, e começou a fechar o cofre, mas mudou de idéia quando seus olhos depararam com a Bíblia antiga. Acariciou-a de leve, depois tirou-a de lá e abriu-a. Presas à grossa folha de rosto com lacre velho, havia as metades de duas velhas moedas de bronze chinesas, partidas grosseiramente. Era óbvio que, antigamente, tinha havido quatro daquelas meias moedas, pois ainda havia a impressão das duas que faltavam, e os restos do mesmo lacre vermelho presos ao papel antigo. A caligrafia que encabeçava a página era linda e nítida: "Juro pelo Senhor Deus, que, quem quer que seja que apresente a outra parte de qualquer dessas moedas, eu lhe concederei qualquer coisa que pedir". Estava assinado: "Dirk Struan, 10 de junho de 1841", e abaixo da assinatura dele havia a de Culum Struan e as de todos os outros tai-pans, e o último nome era Ian Dunross.
Ao lado do primeiro espaço, onde antes houvera uma moeda, fora escrito: "Wu Fang Choi, pago parcialmente, 16 de agosto, Ano do Nosso Senhor de 1841", e havia novamente a assinatura de Dirk Struan, com a co-assinatura de Culum Struan logo abaixo, e, datado de 18 de junho de 1845, "pago integralmente". Ao lado do segundo: "Sun Chen-yat, pago integralmente, 10 de outubro de 1911", assinado, ousadamente, pela Bruxa Struan.
"Ah", disse Dunross para si mesmo, perturbado, "que bela arrogância! Ser segura ao ponto de assinar o livro daquele jeito, e não como Tess Struan, para que as futuras gerações vissem.
"Quantas gerações mais?", perguntou-se. "Quantos tai-pans mais terão que assinar cegamente, e fazer o juramento sagrado de cumprir os desejos de um homem morto há quase um século e meio?"
Pensativo, correu os dedos pelas beiradas irregulares das duas meias moedas que restavam. Depois de um momento, fechou a Bíblia com firmeza, colocou-a de novo no lugar, tocou-a uma vez para dar sorte e trancou o cofre. Girou a tela de volta para o lugar, e fitou o quadro, agora de pé, com as mãos enfiadas nos bolsos, diante da cornija da lareira, o carvalho velho e pesado entalhado com as armas da Struan, lascado e quebrado aqui e ali, um velho pára-fogo chinês em frente da imensa lareira.
Aquele retrato a óleo de Dirk Struan era o seu preferido. Quando se tornara tai-pan, ele o havia tirado da Galeria Longa e o pendurara ali no lugar de honra, em substituição ao retrato da Bruxa Struan que encimara a lareira do escritório do tai-pan desde que existira uma Casa Grande. Ambos tinham sido pintados por Aristotle Quance. No retrato, Dirk Struan estava de pé diante de uma cortina carmesim, ombros largos, arrogante, seu casaco preto bem-talhado, o colete, a gravata e a camisa de babados brancos e bem-talhados. Sobrancelhas cerradas, nariz forte, cara raspada, cabelos avermelhados e suíças, lábios encrespados, e podia-se sentir os seus olhos penetrantes, o verde deles realçado pelo preto, o branco e o escarlate.
Dunross deu um meio sorriso, sem medo, sem inveja, mais acalmado do que qualquer outra coisa pelo olhar do seu ancestral... sabendo que era possuído, parcialmente possuído por ele. Ergueu a taça de champanha para a tela numa brincadeira meio zombeteira, como havia feito tantas vezes antes.
— Saúde!
Os olhos o fitavam, também.
"O que faria você, Dirk... fantástico Dirk?", pensou.
— Provavelmente diria: "Encontre os traidores e mate-os" — refletiu em voz alta —, e provavelmente teria razão.
O problema do traidor na polícia não o abalava tanto quanto a informação sobre a rede de espionagem Sevrin, suas ligações nos Estados Unidos e os lucros secretos e espantosos obtidos pelos comunistas na Grã-Bretanha. "Mas que diabo, onde Grant consegue todas essas informações?", perguntou a si mesmo, pela centésima vez.
Lembrou-se do primeiro encontro que tiveram. Alan Medford Grant era um homem baixo, com jeito de gnomo, quase calvo, e tinha olhos e dentes grandes. Usava um terno riscadinho e chapéu-coco, e Dunross gostou dele imediatamente.
— Não se preocupe, Sr. Dunross — dissera Grant quando Dunross o contratara em 1960, logo que se tornara tai-pan. — Asseguro-lhe que não haverá interesses conflitantes com o governo de Sua Majestade, se eu presidir o seu comitê de pesquisas, sem exclusividade, como combinamos. Para falar a verdade, já obtive a aprovação deles. Dar-lhe-ei apenas, confidencialmente, é claro, para o senhor pessoalmente, é claro, e com a publicação absolutamente vedada, dar-lhe-ei apenas as informações sigilosas que, na minha opinião, não põem em risco o interesse nacional. Afinal de contas, nossos interesses são os mesmos, não são?
— Acho que sim.
— Posso perguntar-lhe como soube de mim?
— Temos amigos em altas esferas, Sr. Grant. Em certos círculos o seu nome é muito famoso. Talvez até mesmo um secretário do exterior o recomendasse — acrescentara, delicadamente.
— Ah, sei.
— Nosso arranjo é satisfatório?
— Sim... um ano, inicialmente, podendo ser prorrogado para cinco, se tudo correr bem. Após os cinco?
— Mais cinco — disse Dunross. — Se obtivermos os resultados que quero, seu pagamento antecipado será dobrado.
— Ah, quanta generosidade! Mas posso perguntar-lhe por que está sendo tão generoso, talvez "extravagante" fosse a palavra certa, comigo e com esse comitê em projeto?
— Sun Tse disse: "O que permite a um sábio soberano ou a um bom general atacar, conquistar e obter coisas fora do alcance dos homens normais é o conhecimento antecipado. O conhecimento antecipado vem somente através dos espiões. Nada é mais importante para o Estado do que a qualidade dos seus espiões. É dez mil vezes mais barato pagar regiamente aos melhores espiões do que até mesmo a um pequeno exército pobremente".
Alan Medford Grant riu de orelha a orelha.
— Certíssimo! As minhas oito mil e quinhentas libras por ano são um régio pagamento, Sr. Dunross. Ah, sim, sem dúvida.
— Consegue pensar num melhor investimento para mim?
— Não, se eu atuar corretamente, se eu e os que escolher formos os melhores existentes. Mesmo assim, trinta e tantas mil libras em salários por ano... um fundo de até cem mil libras para... para informantes e informações, tudo dinheiro sigiloso... bem, espero que fique satisfeito com o seu investimento.
— Se você for o melhor, recuperarei dez mil vezes o meu investimento. Espero recuperá-lo dez mil vezes — disse, falando sério.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, é claro. Agora, especificamente, que tipo de informação quer?
— Toda e qualquer informação, comercial, política, que ajude a Struan a fazer planos antecipados, especialmente no tocante à costa do Pacífico, ao modo de pensar russo, americano e japonês. Nós próprios provavelmente saberemos mais sobre as atitudes chinesas. Por favor, dê-me sempre mais do que menos. Na verdade, qualquer coisa seria mais valiosa, porque estou querendo tirar a Struan do comércio da China... mais especificamente, quero que a companhia seja internacional, e quero diversificar, sair da nossa dependência atual do comércio com a China.
— Muito bem. Primeiro: não gostaria de confiar os nossos relatórios aos correios.
— Providenciarei um mensageiro.
— Obrigado. Segundo: preciso ter carta branca para escolher, nomear e demitir os outros membros do comitê... e gastar o dinheiro como achar apropriado.
— De acordo.
— Cinco membros serão suficientes.
— Quanto quer lhes pagar?
— Cinco mil libras por ano, pagamento antecipado, sem exclusividade, para cada um, seria excelente. Por esse preço posso conseguir os melhores homens. É. Nomearei membros associados para estudos especiais, à medida que for precisando. Como a maioria dos nossos contatos serão no exterior, muitos na Suíça, será que poderia haver fundos à disposição lá?
— Digamos que eu deposite a quantia total combinada trimestralmente numa conta suíça numerada. Pode sacar os fundos à medida que for precisando... somente a sua assinatura, ou a minha. Preste contas a mim, exclusivamente, trimestralmente. Se quiser estabelecer um código, tudo bem para mim.
— Excelente. Não poderei dar o nome de ninguém... não posso prestar contas das pessoas a quem vou dar o dinheiro.
Depois de uma pausa, Dunross disse:
— Está bem.
— Obrigado. Acho que nos entendemos. Pode me dar um exemplo do que deseja?
— Por exemplo, não quero ser pego de surpresa, como aconteceu com meu predecessor, no caso de Suez.
— Ah! Está se referindo ao fiasco de 1956, quando Eisenhower nos traiu de novo e causou o fracasso do ataque britânico-franco-israelense ao Egito... porque Násser nacionalizara o canal?
— É. Aquilo nos custou uma fortuna... acabou com os nossos interesses no Oriente Médio, quase nos arruinou. Se o tai-pan anterior tivesse sabido sobre um provável fechamento de Suez, teríamos ganho uma fortuna reservando espaço para carga, aumentando nossa frota... ou se tivéssemos conhecimento, antecipadamente, do modo de pensar americano, especialmente de que Eisenhower ficaria novamente do lado da Rússia, contra nós, poderíamos ter diminuído em muito as nossas perdas.
O homenzinho comentou, com tristeza:
— Sabe que ele ameaçou congelar todos os bens britânicos, franceses e israelenses nos Estados Unidos, instantaneamente, se não nos retirássemos de pronto do Egito, quando estávamos a poucas horas da vitória? Acredito que todos os nossos problemas atuais no Oriente Médio derivam daquela decisão americana. É. Inadvertidamente, os Estados Unidos aprovaram a pirataria internacional pela primeira vez, e estabeleceram um precedente para piratarias futuras. Nacionalização. Que piada! "Roubo" é uma palavra melhor... ou "pirataria". É. Eisenhower foi mal assessorado. E muito mais mal assessorado ao prosseguir com o insensato acordo político de Yalta, de um Roosevelt doente, do incompetente Attlee, permitindo que Stálin engolisse a maior parte da Europa, quando era militar-mente claro até para o político mais burro ou para o general mais turrão que era contrário aos nossos absolutos interesses nacionais, nossos e dos Estados Unidos, nos determos. Acho que Roosevelt realmente nos detestava, a nós e ao nosso Império Britânico.
O homenzinho formou um triângulo com os dedos e abriu um sorriso.
— Temo que haja uma grande desvantagem em me contratar, Sr. Dunross. Sou inteiramente pró-britânico, anticomunista e, especialmente, contra o KGB, que é o principal instrumento da política externa soviética, que é aberta e eternamente dedicada à nossa destruição, portanto o senhor pode dar o desconto em algumas das minhas previsões mais apimentadas, se quiser. Sou completamente contra um Partido Trabalhista dominado pela ala esquerdista, e constantemente lembro a quem queira ouvir que o hino do Partido Trabalhista é A bandeira vermelha. — Alan Medford Grant deu aquele seu sorriso de elfo. — É melhor que conheça a minha posição desde o início. Sou monarquista, legalista, e acredito no sistema parlamentar britânico. Jamais, conscientemente, lhe darei informações falsas, embora minhas avaliações sejam parciais. Posso perguntar-lhe qual é a situação política de vocês?
— Não temos política em Hong Kong, Sr. Grant. Não votamos, não temos eleições... somos uma colônia, especificamente uma colônia de porto livre, não uma democracia. A coroa governa... na verdade o governador o faz, despoticamente, em nome da coroa. Ele tem um conselho legislativo, mas é um conselho "vaca de presépio", e a orientação política histórica é o laissez-faire. Sabiamente, ele deixa as coisas como estão. Ouve a comunidade empresarial, faz mudanças sociais, muito cautelosamente, e deixa todos em paz para ganhar ou não ganhar dinheiro, criar, expandir-se, arruinar-se, ir ou vir, sonhar ou ficar acordado, viver ou morrer como puder. E o imposto máximo é de quinze por cento, mas só sobre dinheiro ganho em Hong Kong. Não temos política aqui, não queremos política aqui... nem a China quer que a tenhamos. Eles também são a favor do status quo. Minha posição política pessoal? Sou monarquista, a favor da liberdade, da pirataria e do livre comércio. Sou escocês, sou a favor da Struan, do laissez-faire em Hong Kong e da liberdade em todo o mundo.
— Acho que nos entendemos. Ótimo. Nunca trabalhei antes para um indivíduo, só para o governo. Esta será uma nova experiência para mim. Espero satisfazê-lo. — Grant fez uma pausa e pensou por um momento. — Como Suez em 56? — Formaram-se ruguinhas fundas ao redor dos olhos do homenzinho. — Muito bem, faça planos para a perda do Canal do Panamá pelos americanos.
— Isso é ridículo!
— Ora, não fique tão chocado, Sr. Dunross! É fácil demais. Bastam dez ou quinze anos de trabalho constante do inimigo e muito papo liberal nos Estados Unidos, muito bem auxiliados pelos inocentes úteis que acreditam na benevolência da natureza humana, acrescente a tudo isso uma quantidade modesta de agitação panamenha calculada, estudantes e coisa e tal (de preferência, ah, sempre estudantes), hábil e secretamente assistidos por alguns agitadores profissionais pacientes e altamente treinados, e a técnica pericial, o financiamento e um plano a longo prazo, oh, tão secretos, do KGB — pronto, no devido tempo o canal passaria das mãos dos Estados Unidos para as do inimigo.
— Eles jamais aceitariam isso.
— Certo, Sr. Dunross. Mas terão outra alternativa? Que garrote melhor contra seu principal inimigo capitalista declarado, em tempo de hostilidades, ou até de crise, do que ser capaz de impedir o Canal do Panamá, ou mesmo bloqueá-lo? Um navio afundado em qualquer um de uma centena de locais, ou uma tranca destruída, poderia deixar o canal obstruído durante anos.
Dunross lembrou-se de que servira mais dois drinques antes de responder:
— Está sugerindo seriamente que façamos planos para essa eventual conjuntura?
— Estou — disse o homenzinho, com sua extraordinária inocência. — Levo meu trabalho muito a sério, Sr. Dunross.
Meu trabalho, aquele que escolhi, é o de procurar, pôr a descoberto e avaliar as jogadas inimigas. Não sou anti-russo, antichinês, antigermânico oriental ou contra qualquer um do bloco... pelo contrário, desejo desesperadamente ajudá-los. Estou convencido de que estamos num estado de guerra, de que o inimigo de todo o povo são os membros do Partido Comunista, seja ele britânico, soviético, chinês, húngaro, americano, irlandês... até marciano... e que todos eles estão ligados, de um jeito ou de outro. E que o KGB, quer a gente goste ou não, está no centro da teia deles. — Tomou um gole da nova dose de uísque que Dunross acabara de servir-lhe. — Que uísque maravilhoso, Sr. Dunross.
— Loch Vey... fabricado numa pequena destilaria perto da nossa terra natal, em Ayr. É uma companhia da Struan.
— Maravilhoso!
Mais um gole apreciador, e Dunross lembrou-se de mandar uma caixa do uísque para Alan Medford Grant, pelo Natal... se os relatórios iniciais fossem interessantes.
— Não sou fanático, Sr. Dunross, nem agitador. Apenas uma espécie de repórter e de prognosticador. Há quem colecione selos. Eu coleciono segredos...
As luzes de um carro que dobrava a curva semi-escondida da estrada, lá embaixo, distraíram Dunross momentaneamente. Caminhou até a janela e ficou olhando o carro até ele sumir, apreciando o barulho do motor bem regulado. Depois, sentou-se numa cadeira de espaldar alto e deixou de novo o pensamento vagar. "É, Sr. Grant, o senhor realmente coleciona segredos", pensou, abalado como sempre pelo raio de alcance dos conhecimentos do homenzinho.
"Sevrin. Deus todo-poderoso! Se isso for verdade...
"Até que ponto você está sendo exato, dessa vez? Até onde confiarei em você, dessa vez... até onde me arriscarei?"
Em relatórios anteriores, Grant fizera duas previsões que, até então, haviam sido confirmadas. Com um ano de antecedência, Grant predissera que De Gaulle vetaria os esforços da Grã-Bretanha para ingressar no Mercado Comum Europeu, que a posição do general francês seria cada vez mais antibritânica, antiamericana e pró-soviética, e que De Gaulle, instado por influências externas e encorajado por um dos seus assessores mais chegados (um espião secretíssimo, dissimulado, do KGB), desfecharia um ataque a longo prazo na economia americana, especulando com ouro. Dunross achara que isso era excesso de imaginação, e perdera uma fortuna potencial.
Recentemente, com seis meses de antecedência, Grant previra a crise dos mísseis em Cuba, e que Kennedy bancaria o durão, imporia o bloqueio a Cuba, exerceria a pressão necessária e não se curvaria sob a tensão da proximidade, e que Khruchov recuaria sob pressão. Apostando que Grant estava certo, desta vez — embora, na época prevista, uma crise de mísseis cubana fosse altamente improvável —, Dunross ganhara meio milhão de libras para a Struan, comprando a termo títulos de açúcar havaiano, mais seiscentas mil na Bolsa, mais seiscentas mil para o fundo secreto do tai-pan... e cimentara um plano de longo alcance para investir em canaviais havaianos logo que pudesse obter o instrumento financeiro. "E agora obtive", disse a si mesmo, radiante, "a Par-Con."
— Quase obtive — resmungou, corrigindo-se.
"Até onde posso confiar neste relatório? Até o momento, o comitê de Alan Medford Grant foi um investimento gigantesco, a despeito de todos os seus meandros", pensou. "É. Mas é quase como ter meu próprio astrólogo. Alguns prognósticos exatos não significam que todos eles o serão. Hitler tinha o seu prognosticador. Júlio César também. Seja sensato, seja cauteloso", lembrou a si mesmo.
"O que fazer? É agora ou nunca."
Sevrin. Alan Medford Grant escrevera: "Documentos trazidos a nós, consubstanciados pela espiã francesa Marie d'Orléans, presa pela Süreté no dia 16 de junho, indicam que o Departamento V do KGB (Desinformação — extremo oriente) tem bem colocada uma rede de espionagem secretíssima, até agora desconhecida, espalhada por todo o Extremo Oriente, codinome 'Sevrin'. O propósito da Sevrin está claramente definido no principal documento roubado:
"Objetivo: Desmantelar a China revisionista — formalmente reconhecida pelo Comitê Central da URSS como o principal inimigo, perdendo apenas para os Estados Unidos capitalista.
"Norma: A eliminação permanente de Hong Kong como o bastião do capitalismo no Extremo Oriente e fonte preeminente para a China de todas as moedas estrangeiras, assistência estrangeira e toda assistência técnica e manufatureira, de qualquer tipo.
"Método: Infiltração a longo prazo na imprensa e meios de comunicação, governo, polícia, empresariado e educação por estrangeiros amistosos controlados pelo Centro... mas somente segundo normas especialíssimas, em toda a Ásia.
"Data de início: Imediata.
"Duração da operação: Provisoriamente, trinta anos.
“Data-alvo: 1980-83.
"Classificação: Vermelho Um.
"Fundos: O máximo.
"Aprovação: L. B., 14 de março de 1950.
"É interessante notar", continuara Grant, "que o documento foi assinado em 1950 por L. B. Supõe-se que seja La-vrenti Béria, quando a Rússia soviética era abertamente aliada da China comunista, e que, já naquele tempo, a China fosse secretamente considerada o seu inimigo número 2 (reportar-se ao nosso relatório anterior, 3/1962, Rússia versus China).
"A China, historicamente, é o grande prêmio que sempre foi (e sempre será) cobiçado pela Rússia imperialista e hegemônica. A posse da China, ou sua mutilação em Estados súditos balcanizados, é a tônica perpétua da política externa russa. Primeiramente, é claro, virá a eliminação da Europa Ocidental, pois então, segundo acredita a Rússia, a China será engolida sem problemas.
"Os documentos revelam que a célula de Hong Kong da Sevrin consiste em um superintendente residente, de codinome Arthur, e seis agentes. Nada sabemos sobre Arthur, exceto que é agente do KGB desde que foi recrutado na Inglaterra, nos anos 30 (não se sabe se nasceu na Inglaterra, ou se seus pais são ingleses, mas deve ter quarenta e tantos ou cinqüenta e poucos anos). Sua missão, naturalmente, é uma operação ultra-secreta, a longo prazo.
"Documentos de apoio altamente secretos do serviço de informações, roubados da STB (Segurança Secreta do Estado) da Tchecoslováquia, datados de 6 de abril de 1959, dizem, em parte: '...entre 1946 e 1959, seis agentes-chaves, ultra-secretos, foram recrutados através de informação fornecida pelo superintendente, Arthur, um em cada um dos seguintes lugares: Ministério Colonial de Hong Kong (codinome Charles), Tesouro (Mason), Base Naval (John), Banco de Londres, Cantão e Xangai (Vincent), Companhia Telefônica de Hong Kong (William) e Struan e Companhia (Frederick). Segundo as normas costumeiras, só o superintendente conhece a verdadeira identidade dos demais. Sete endereços seguros foram estabelecidos, entre eles o Sinclar Towers, na ilha de Hong Kong, e o Hotel Nove Dragões, em Kowloon. O contato da Sevrin em Nova York tem o codinome Guillio. É muito importante para nós por causa das suas ligações com a Máfia e a CIA'."
Grant continuara dizendo "que se acreditava que Guillio fosse Vincenzo Banastasio, um escroque importante e atual chefão da família Sallapione. Isso está sendo verificado pelas nossas fontes americanas. Não sabemos se o agente inimigo infiltrado na polícia (tratamos disso em detalhes em outra seção) faz ou não parte da Sevrin, mas presumimos que sim.
"Na nossa opinião, a China será forçada a buscar um aumento cada vez maior do comércio com o Ocidente, para contrabalançar a hegemonia imperialista soviética e para preencher o vácuo e o caos criados pela retirada súbita, em 1960, de toda a ajuda técnica e financeira dos soviéticos. As forças armadas da China precisam desesperadamente se modernizar. As colheitas têm sido ruins. Portanto, todas as formas de materiais estratégicos e equipamentos militares encontrarão um mercado fácil por muitos anos, assim como a comida, alimentos básicos. A compra de títulos a termo de arroz americano é um investimento de longo alcance recomendado.
"Tenho a honra de ser, senhor, seu servo obediente, A. M. G., Londres, 15 de agosto de 1963."
"Jatos, tanques, porcas, parafusos, foguetes, motores, caminhões, gasolina, pneus, material eletrônico e alimentos", pensou Dunross, animadíssimo. "Uma variedade ilimitada de mercadorias, fáceis de obter, fáceis de transportar por navio, e nada no mundo como uma guerra para dar lucro, se a gente sabe comerciar. Mas a China não está comprando agora, mesmo que esteja precisando, não importa o que Grant diga.
"Quem pode ser Arthur?
"E na Struan, quem? Santo Deus! John Chen e Tsu-yan, e armas contrabandeadas, e agora um agente do KGB lá dentro. Quem? E quanto a..."
Ouviu uma leve batidinha na porta.
— Entre — falou, reconhecendo o modo de bater da mulher.
— Ian, são quase oito horas — disse Penelope. — Achei melhor avisá-lo. Sabe como você é.
— Sei.
— Que tal o dia de hoje? Horrível o que aconteceu com John Chen, não é? Leu os jornais, não leu? Vai descer?
— Vou. Champanha?
— Obrigada.
Ele serviu uma taça para ela, e voltou a encher a sua.
— Ah, Penn, a propósito, convidei um sujeito que conheci hoje à tarde, ex-membro da RAF. Pareceu-me um cara simpático... Peter Marlowe.
— Piloto de caças?
— É. Mas de Hurricanes, não Spits. Vestido novo?
— É.
— Está bonita — disse ele.
— Obrigada, mas não estou. Sinto-me tão velha! Mas obrigada. — Sentou-se na outra poltrona de braços, seu perfume tão delicado quanto suas feições. — Peter Marlowe, é o nome dele?
— É. O pobre infeliz foi preso em Java, em 42. Foi prisioneiro de guerra durante três anos e meio.
— Oh, pobre homem. Foi abatido?
— Não, os japoneses destruíram o aeroporto antes que ele pudesse escapar. Talvez tenha tido sorte. Os Zeros pegaram dois aviões em terra, e os dois últimos pouco depois de terem levantado vôo... os pilotos morreram queimados. Parece que aqueles Hurricanes eram os últimos dos Poucos¹... o resto de toda a defesa aérea do Extremo Oriente. Que estrago, aquele!
¹ Referência à frase de Churchill: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos". (N. da T.)
— Terrível.
— É. Graças a Deus nossa guerra foi na Europa. — Dunross observou-a. — Ele disse que passou um ano em Java, depois os japoneses o mandaram para Cingapura, num destacamento de trabalho.
— Para Changi? — perguntou, a voz diferente.
— É.
— Ah!
— Passou dois anos e meio ali. — "Changi", em malaio, queria dizer "trepadeira", e Changi era o nome da cadeia em Cingapura usada pelos japoneses, na Segunda Guerra Mundial, como um dos seus nefastos campos para prisioneiros de guerra.
Ela pensou por um momento, depois deu um sorriso nervoso:
— Será que ele conheceu Robin lá?
Robin Grey era irmão dela, seu único parente vivo; seus pais haviam morrido num ataque aéreo a Londres, em 1943, pouco antes de seu casamento com Dunross.
— Marlowe disse que sim, que parecia recordar-se dele, mas era evidente que não queria falar daquela época, portanto não puxei mais pelo assunto.
— Posso imaginar. Disse a ele que Robin era meu irmão?
— Não.
— Quando é que Robin deve voltar para cá?
— Não sei ao certo. Dentro de alguns dias. Esta tarde o governador me disse que a delegação está agora em Pequim. — Uma delegação comercial parlamentar britânica, com deputados dos três partidos (Conservador, Liberal e Trabalhista), fora convidada em Londres por Pequim para debater todas as formas de comércio. A delegação chegara a Hong Kong fazia duas semanas e seguira diretamente para Cantão, onde todas as negociações comerciais eram realizadas. Era muito raro alguém receber um convite, muito menos uma delegação parlamentar, e mais raro ainda o convite incluir uma ida a Pequim. Robin Grey era um dos membros, representando o Partido Trabalhista. — Penn, querida, não acha que devíamos receber Robin, dar uma festa para ele? Afinal, há anos que não o vemos, e esta é a primeira vez que ele vem à Ásia... não acha que está na hora de esquecer o passado e fazer as pazes?
— Ele não receberá convites para a minha casa. Para nenhuma das minhas casas.
— Não acha que devia relaxar um pouco? Afinal, águas passadas não movem moinhos.
— Não, eu o conheço, você não. Robin tem a vida dele, nós temos a nossa. Há anos que eu e ele chegamos a este acordo. Não tenho a menor vontade de revê-lo. É horrível, perigoso, desbocado e um chato de galocha.
Dunross riu.
— Concordo que seja odioso, e detesto suas opiniões políticas... mas é apenas um entre meia dúzia de deputados. Esta delegação é importante. Tenho que entretê-los de alguma forma, Penn.
— Pois faça-o, Ian. Mas não aqui, de preferência. Ou então me avise com bastante antecedência, para eu ter algum mal-estar, e providenciar para que as crianças também tenham. É uma questão de prestígio, e ponto final. — Penelope sacudiu a cabeça, afastando o mau humor. — Deus! Não vamos deixar que ele estrague esta noite! O que esse Marlowe está fazendo em Hong Kong?
— É escritor. Quer escrever um livro sobre Hong Kong. Mora nos Estados Unidos, agora. A mulher dele também vem. Ah, a propósito, convidei também os americanos, Linc Bartlett e Casey Tcholok.
— Ah! — Penelope Dunross achou graça. — Ora, afinal quatro ou quarenta pessoas a mais não farão nenhuma diferença... não conheço a maioria mesmo, e Claudia organizou tudo com sua eficiência de sempre. — Arqueou uma sobrancelha. — Vejam só! Um contrabandista de armas entre os piratas! Isso não vai nem causar uma pequena comoção.
— E ele é?
— Todo mundo diz que sim. Não leu o artigo do Mirror de hoje à tarde, Ian? Ah Tat está convencida de que o americano dá azar. Informou a todos os empregados, às crianças e a mim, o que torna a coisa oficial. Ah Tat contou a Adryon que o astrólogo dela pediu que ela dissesse a você para ficar alerta contra a má influência vinda do Leste. Ah Tat está certa de que isso se refere aos ianques. Ainda não veio fazer fofoca no seu ouvido?
— Ainda não.
— Deus, como gostaria de poder tagarelar em cantonense como você e as crianças. Diria àquela harpia velha para guardar para si suas superstições e opiniões... ela é uma péssima influência...
— Daria a vida pelas crianças.
— Sei que é a sua gan sun, e que praticamente o criou, e que se acha uma dádiva de Deus para o clã dos Dunrosses. Mas, no que me diz respeito, é uma vaca velha rabugenta e detestável, eu a odeio. — Penelope sorriu docemente. — Ouvi dizer que a moça americana é bonita.
— Atraente... não bonita. Andrew está cortando um dobrado com ela.
— Acredito. Uma dama falando de negócios! Aonde vamos parar, neste nosso grande mundo! Ela é capaz?
— Ainda é cedo para dizer. Mas é muito esperta. Está criando... irá criar situações constrangedoras, sem dúvida.
— Já viu Adryon hoje?
— Não... o que foi? — perguntou, reconhecendo imediatamente seu tom de voz.
— Andou mexendo de novo no meu armário... metade das minhas melhores meias sumiu, o resto está espalhado, meus lenços de seda estão todos remexidos, minha blusa e meu cinto novos desapareceram. Mexeu até no meu melhor Hermes... essa garota é o fim da picada!
— Com dezenove anos, não é uma garota — disse ele, cansadamente.
— É o fim da picada! Perdi a conta das vezes que falei com ela!
— Falarei de novo.
— Não vai adiantar nada.
— Eu sei.
Ela riu junto com ele.
— Ela é uma parada!
— Tome. — Entregou a ela um estojo fino. — Feliz vigésimo!
— Oh, obrigada, Ian. O seu está lá embaixo. Você o... — Interrompeu-se e abriu o estojo. Continha uma pulseira de jade entalhado, o jade encravado em filigrana de prata, finíssima, antiqüíssima... uma peça de colecionador. — Ah, que lindo! Obrigada, Ian. — Colocou-a no pulso, sobre a corrente fina de ouro que usava, e ele não notou prazer verdadeiro ou desapontamento verdadeiro no seu tom de voz, embora estivesse atento às nuanças. — É uma beleza — falou, debruçando-se para a frente e roçando os lábios no rosto dele. — Obrigada, querido. Onde o conseguiu? Em Formosa?
— Não, aqui na Cat Street. Na loja de Wong Chun Kit, ele ga...
A porta se escancarou, e uma garota entrou atropelada-mente. Era alta, esguia e claríssima, e disse, depressa e sem fôlego:
— Espero que não haja problemas. Convidei um rapaz para hoje à noite e acabo de receber seu telefonema confirmando que virá e que vai chegar atrasado. Mas achei que não faria mal. Ele é legal, um barato.
— Pelo amor de Deus, Adryon — disse Dunross, suavemente —, quantas vezes já lhe disse para bater antes de irromper sala adentro, e quer por favor falar inglês? Que diabo é um barato?
— Bom, grande, legal, um barato. Desculpe, papai, mas você é mesmo muito careta, porque "legal" e "um barato" estão na moda, até mesmo em Hong Kong. Até já. Tenho que correr, depois da festa eu vou sair... vou chegar tarde, portanto não...
— Espere um mi...
— Essa blusa é minha, a minha blusa nova — explodiu Penelope. — Adryon, tire-a imediatamente! Já lhe disse umas cinqüenta vezes para não mexer no meu armário!
— Ora, mamãe — retrucou Adryon, com a mesma brusquidão —, você não está precisando dela, não posso usá-la esta noite? — O tom de voz dela mudou. — Por favor! Puxa, por favor! Papai, fale com ela. — Passou a falar em perfeito cantonense de amah: — Honorável Pai... por favor, ajude sua Filha Número Um a obter o impossível de obter, senão eu chorarei, chorarei, chorarei oh ko... — Depois, no mesmo fôlego, voltando ao inglês: — Mamãe... você não precisa dela, e vou tomar cuidado, juro. Por favor!
— Não.
— Vamos, por favor, eu tomo cuidado, prometo.
— Não.
— Mamãe!
— Bem, se você pro...
— Puxa, obrigada.
A garota riu de orelha a orelha, virou-se e saiu correndo, batendo a porta atrás de si.
— Puta que o pariu — disse Dunross, com azedume —, mas por que as portas sempre têm que bater atrás dela?
— Bem, pelo menos agora ela não bate de propósito. — Penelope soltou um suspiro. — Acho que não agüentaria passar por aquilo tudo de novo.
— Nem eu. Graças a Deus Glenna é razoável.
— É puramente temporário, Ian. Ela também puxou ao pai, como Adryon.
— Hum! Eu não tenho um gênio dos diabos — disse ele, vivamente. — E já que estamos falando no assunto, estou torcendo para que Adryon tenha encontrado um sujeito decente para trazer, ao invés do palhaço de costume. Quem é esse que vem hoje?
— Não sei, Ian. Também estou sabendo disso agora.
— Eles são sempre um horror! O gosto dela em matéria de homem é um espanto... Lembra-se daquele pateta de cabeça de melão com braços neolíticos por quem estava "loucamente apaixonada"? Santo Deus, mal tinha quinze anos e...
— Tinha quase dezesseis.
— Como era o nome dele? Ah, é, Byron. Byron, pela madrugada!
— Você não devia ter ameaçado estourar os miolos dele, Ian. Era só uma paixãozinha juvenil.
— Era mais uma paixão de gorila, por Deus — resmungou Dunross, com maior azedume. — Era um maldito gorila... Lembra-se do outro, daquele antes do desgraçado do Byron... aquele filho da mãe psiquiátrico... como se chamava?
— Victor. É, Victor Hopper. Foi ele que... é, estou lembrando, foi ele que perguntou se não faria mal se ele dormisse com Adryon.
— Ele o quê?
— Foi, sim. — Sorriu para ele, não tão inocentemente. — Não lhe contei, na época... achei que seria melhor.
— Ele o quê?
— Não fique irritado agora, Ian. Isso aconteceu há quatro anos. Eu disse a ele que não, não no momento, que Adryon tinha apenas catorze anos, mas sim, certamente, quando tivesse vinte e um anos. Aquele foi outro que morreu no nascedouro.
— Santo Deus! Ele perguntou se po...
— Pelo menos perguntou, Ian! Já é alguma coisa. Tudo isso é tão comum! — Levantou-se, serviu mais champanha para ele e para si mesma. — Você tem apenas mais uns dez anos de purgatório, e depois virão os netos. Feliz aniversário de casamento, e o melhor das coisas britânicas para você!
Ela riu, encostou a taça na dele, bebeu e sorriu para ele.
— Está certa, mais uma vez — retrucou ele, devolvendo o sorriso, gostando muito dela.
Tantos anos, anos bons. "Tive sorte", pensou. "É. Fui abençoado, naquele primeiro dia." Estava no seu posto da RAF em Biggin Hill, numa manhã quente e ensolarada de agosto de 1940, durante a Batalha da Grã-Bretanha, e ela era do Corpo Auxiliar Feminino, recém-destacada para lá. Era o oitavo dia de guerra dele, sua terceira missão naquele dia, e a primeira vez que abatera alguém. Seu Spitfíre estava todo pontilhado de buracos de bala, partes da asa haviam sido derrubadas, a cauda parecia tatuada. Por todas as regras da sorte, devia estar morto, mas não estava, e o Messerschmitt e seu piloto estavam, e ele estava em casa, seguro, o sangue fervendo, tonto de medo e vergonha e alívio porque voltara, e o jovem que vira na outra cabine de piloto, o inimigo, incendiara-se berrando, enquanto descia em espiral.
— Alô, senhor — dissera Penelope Grey. — Bem-vindo, senhor. Tome.
Entregara-lhe uma xícara de chá quente e doce, e nada mais dissera, embora devesse ter começado imediatamente a interrogá-lo sobre os detalhes da missão... fazia parte do Serviço de Comunicações. Ela nada dissera, apenas sorrira, dando-lhe tempo para descer dos céus da morte para a vida, novamente. Ele não lhe agradecera, apenas tomara o chá, que fora o melhor que jamais bebera.
— Peguei um Messerschmitt — dissera, quando estava em condições de falar, a voz tão trêmula quanto os joelhos. Não se lembrava de ter se soltado dos cintos de segurança, de sair da cabine ou de entrar no caminhão junto com os outros sobreviventes. — Era um 109.
— Sim, senhor, o líder da Esquadrilha Miller confirmou a destruição do aparelho inimigo e disse que o senhor se aprontasse, pois deve voltar a subir a qualquer minuto. Vai levar o Poppa Mike Kilo, desta vez. Obrigada pelo avião derrubado, senhor, é um daqueles demônios a menos... ah, como gostaria de poder ir com vocês para ajudar a matar todos aqueles monstros...
Mas eles não eram monstros, pensou, pelo menos o primeiro piloto e o primeiro avião que abatera não haviam sido... apenas um jovem como ele próprio, quem sabe da mesma idade, que se incendiara berrando, que morrera berrando, uma folha caída em chamas, e naquela tarde, ou na próxima, ou em breve, seria a vez dele... inimigos demais, gente nossa de menos.
— Tommy voltou, Tom Lane?
— Não, senhor. Lamento, senhor. Ele... o líder da esquadrilha disse que o capitão-aviador Lane foi derrubado sobre Dover.
— Tenho pavor de ser derrubado, de pegar fogo — dissera ele.
— Ah, mas não vai, senhor, não o senhor. Eles não vão derrubá-lo. Eu sei. Não vai, senhor, não, o senhor não. Nunca irão pegá-lo, nunca, nunca, nunca — dissera ela, os olhos azuis muito claros, cabelos claros, rosto bonito, dezoito anos incompletos, mas forte, muito forte e muito confiante.
Ele acreditara nela, e sua fé o acompanhara durante mais quatro meses de missões — às vezes cinco missões por dia — e mais aviões derrubados, e, embora ela estivesse errada e mais tarde ele também tivesse sido acertado em pleno ar, ele sobreviveu. Apenas se queimou um pouquinho. E depois, quando saiu do hospital, impossibilitado para sempre de voltar a pilotar, eles se casaram.
— Nem parece que foram vinte anos — disse ele, contendo a sua felicidade.
— E mais dois antes — disse ela, contendo a sua felicidade.
— E mais dois na...
A porta se abriu. Penelope soltou um suspiro quando Ah Tat invadiu o aposento, falando pelos cotovelos em cantonense.
— Ayeeyah, meu Filho, mas você ainda não está pronto, os nossos honrados convidados chegarão a qualquer momento, e o nó de sua gravata ainda não foi dado, e aquele estrangeiro sem mãe trazido desnecessariamente de Kwantung Norte para a nossa casa para cozinhar... aquele rebento fedido de uma meretriz de um dólar de Kwantung Norte, de onde vêm os melhores ladrões e as piores prostitutas, e que se considera um cozinheiro... Ah!... Esse homem e a sua equipe igualmente desprezível estão sujando a nossa cozinha e roubando a nossa paz. Oh ko — continuou a velhinha enrugada, sem tomar fôlego, enquanto seus dedos encurvados subiam automaticamente e habilmente davam o nó na gravata dele — e isso não é tudo! A Filha Número Dois... a Filha Número Dois não quer botar o vestido que a Honorável Primeira Mulher escolheu para ela, e está tendo um ataque de raiva que se ouve em Java! Eeee, esta família! Tome, meu Filho — tirou do bolso um envelope de telex e passou-o a Dunross —, eis outra mensagem dos bárbaros dando mais parabéns por este dia feliz, e que sua pobre velha Mãe teve que trazer ela mesma, escada acima, com suas pobres e velhas pernas, porque os outros criados ociosos são vadios e preguiçosos...
Fez uma pausa momentânea para tomar fôlego.
— Obrigado, Mãe — agradeceu ele, cortesmente.
— Na época do seu Honorável Pai, os criados trabalhavam e sabiam o que fazer, e sua velha Mãe não tinha que aturar estranhos sujos na nossa Casa Grande! — Foi saindo, xingando ainda mais o pessoal do bufê. — Não se atrase, Filho, senão...
Ainda falava, mesmo depois de ter fechado a porta.
— O que há com ela? — indagou Penelope, desanimada.
— Está reclamando do pessoal do bufê, não gosta de estranhos... sabe como ela é.
Abriu o envelope, onde estava o telex dobrado.
— O que estava falando de Glenna? — perguntou a mulher, tendo reconhecido yee-chat, Segunda Filha, embora seu cantonense fosse mínimo.
— Só que estava tendo um ataque por causa do vestido que você escolheu para ela.
— O que há de errado nele?
— Ah Tat não disse. Olhe, Penn, quem sabe Glenna devesse ir logo para a cama... já está quase passando da hora de ela dormir e...
— Imagine! Só quando as galinhas criarem dentes. Até mesmo a Bruxa Struan não conseguiria evitar que Glenna comparecesse à sua primeira festa adulta, como ela diz. Você concordou, Ian, você concordou. Eu, não. Foi você!
— É, mas não ach...
— Não. Tem idade suficiente. Afinal, está com treze anos. — Penelope terminou calmamente o seu champanha. — Mesmo assim, agora vou ter uma palavrinha com a senhorita, pode deixar.
Levantou-se. Depois, notou a fisionomia dele, que fitava o telex.
— O que aconteceu?
— Um empregado nosso foi morto em Londres. Grant. Alan Medford Grant.
— Ah. Será que eu ò conhecia?
— Acho que foi apresentada a ele uma vez, em Ayrshire. Era um homenzinho com jeito de gnomo. Esteve numa das nossas festas no Castelo Avisyard... na nossa última viagem.
Ela franziu o cenho.
— Não me lembro. — Pegou o telex que ele lhe oferecia. Dizia: "Lamento informar-lhe que A. M. Grant foi morto em acidente de motocicleta hoje de manhã. Os detalhes seguirão quando eu os tiver. Lamento. Lembranças, Kiernan". — Quem é Kiernan?
— O assistente dele.
— Esse Grant... era amigo seu?
— De certo modo.
— É importante para você?
— É.
— Ah, sinto muito.
Dunross forçou-se a dar de ombros e a manter a voz serena. Mas, no íntimo, praguejava obscenamente.
— Coisas da vida. Joss.
Penelope queria lamentar com ele, reconhecendo de pronto a profundidade do choque que tivera. Sabia que ele estava perturbadíssimo, tentando disfarçar... e queria saber imediatamente quem era e que importância tinha aquele desconhecido. Mas ficou calada.
"Esse é o meu papel", lembrou a si mesma. "Não fazer perguntas, ficar calma e estar presente... para apanhar os cacos, mas só quando ele me permite."
— Vai descer?
— Num minuto.
— Não demore, Ian.
— Está bem.
— Mais uma vez, obrigada pela minha pulseira — disse, apreciando-a.
— De nada — ele respondeu.
Mas ela sabia que ele não a escutara, de verdade. Já estava ao telefone, pedindo uma ligação interurbana. Ela saiu e fechou a porta suavemente, e ficou parada tristemente no longo corredor que levava às alas leste e oeste, o coração disparado. "Malditos sejam todos os telex e todos os telefones, e maldita seja a Struan e Hong Kong, e malditos sejam todas as festas e todos os bicões, e, ah, como gostaria que pudéssemos ir embora para sempre, esquecer Hong Kong, esquecer o trabalho, a Casa Nobre, os Grandes Negócios, a costa do Pacífico e a Bolsa de Valores, e maldi..."
— Mamãeeeee!
Ouviu a voz estridente de Glenna vinda do fundo do seu quarto, dobrando o ângulo mais afastado da ala leste, e imediatamente todos os seus sentidos se concentraram. Havia raiva frustrada na voz de Glenna, mas não havia perigo, portanto ela não se apressou, simplesmente respondeu:
— Já vou... o que é, Glenna ?
— Onde você estááááãá?
— Já estou indo, querida — respondeu, pensando agora em coisas importantes. "Glenna vai ficar linda naquele vestido. Ah, já sei", pensou, satisfeita, "vou lhe emprestar o meu colarzinho de pérolas. Vai ficar perfeito." Apressou o passo.
Do outro lado do porto, em Kowloon, o sargento comissionado Tang-po, DIC, subiu as escadas desconjuntadas e entrou na sala. O âmago da sua tríade secreta já estava ali.
— Enfiem isso nesse osso que alguns de vocês têm entre as orelhas: os Dragões querem que se encontre o Chen da Casa Nobre, e que esses Lobisomens bexiguentos, comedores-de-bosta, sejam presos tão rapidamente que até os deuses piscarão os olhos!
— Sim, senhor — responderam os subalternos em coro, chocados com o seu tom de voz.
Estavam no esconderijo de Tang-po, um pequeno e desenxabido apartamento de três peças, atrás de uma porta de entrada desenxabida no quinto andar de um prédio de apartamentos igualmente desenxabido, encimando umas lojas muito modestas num beco sujo, a apenas três quarteirões de distância do quartel-general da polícia do distrito de Tsim Sha Tsui, que ficava de frente para o porto e o Pico, na ponta da península de Kowloon. Eles eram em número de nove: um sargento, dois cabos, os outros guardas — todos detetives à paisana do DIC, todos cantonenses, todos escolhidos a dedo, tendo feito juramentos de sangue, de lealdade e sigilo. Eram o tong, ou irmandade secreta, de Tang-po, que protegia toda a jogatina de rua no distrito de Tsim Sha Tsui.
— Olhem em toda parte, falem com todo mundo. Temos três dias — falou Tang-po. Era um homem corpulento, de cinqüenta e cinco anos, com cabelos levemente grisalhos e sobrancelhas cerradas, e seu posto era o mais alto que podia alcançar, sem ser oficial. — Esta é a minha ordem, de todos os meus irmãos Dragões e do Altíssimo em pessoa. Além disso — acrescentou, com azedume —, a Grande Montanha de Bosta prometeu rebaixar-nos e destacar-nos para a fronteira ou outros lugares, a todos nós, se falharmos, e esta é a primeira vez que nos ameaça com isso. Que todos os deuses mijem de uma grande altura sobre os demônios estrangeiros, especialmente aqueles fornicadores sem mãe que não aceitam sua situação difícil e se comportam como gente civilizada!
— Amém! — exclamou o sargento Lee, com grande fervor. Ele era católico de vez em quando, porque, na juventude, freqüentara uma escola católica.
— A Grande Montanha de Bosta deixou bem claro, hoje à tarde: resultados, caso contrário, rumo à fronteira, onde não há um penico onde mijar, nem ninguém para ser extorquido num raio de trinta quilômetros. Ayeeyah, que todos os deuses nos protejam do fracasso!
— É — disse o cabo Ho, em nome de todos, tomando notas no seu livro. Era um homem de feições marcadas, que estudava à noite para ser contador, e era ele que cuidava dos livros da irmandade e das atas das suas reuniões.
— Irmão Mais Velho — começou o sargento Lee, cortesmente —, há uma recompensa fixa que possamos oferecer aos nossos informantes? Há um máximo ou um mínimo?
— Há — Tang-po lhes disse, acrescentando cuidadosamente: — O Grande Dragão falou cem mil HK, se for dentro de três dias... — A sala ficou repentinamente silenciosa, com o vulto da recompensa — metade para encontrar o Chen da Casa Nobre, metade para encontrar os raptores. E uma bonificação de dez mil para o irmão cujo informante apresentar ou um ou outro... e uma promoção.
— Dez mil por Chen e mais dez mil pelos raptores? — indagou o cabo. "Oh, deuses, concedam-me o prêmio", orava ele, assim como oravam os demais. — É isso mesmo, Irmão Mais Velho?
— Dew neh loh moh, foi o que eu disse — replicou Tang-po bruscamente, tirando baforadas do cigarro. — Está com as orelhas cheias de pus?
— Não, lamento, Honorável Senhor. Por favor, desculpe.
Todos estavam absortos no prêmio. O sargento Lee pensava: "Eee, dez mil, e promoção, se for dentro de três dias! Ah, se for dentro de três dias, então será a tempo para o Dia da Corrida, e aí... Ah, todos os deuses grandes e pequenos, abençoem-me uma vez, e a segunda vez na loteria dupla de sábado".
Tang-po estava consultando suas anotações.
— Vamos agora tratar de outros assuntos. Através da cooperação do Diurno Chan e do Honorável Song, a irmandade poderá usar os chuveiros deles no Victoria diariamente entre oito e nove horas da manhã, não mais entre sete e oito horas, como antes. Mulheres e concubinas numa base de rodízio. Cabo Ho, reorganize o rodízio.
— Ei, Honrado Senhor — chamou um dos jovens detetives —, ouviu falar da Pêlos Púbicos Dourados?
— Hem?
O jovem relatou o que o Diurno Chang lhe contara, pela manhã, quando fora tomar café na cozinha do hotel. Riram.
— Ayeeyah, imagine só! Como ouro, heya?
— Já deitou com algum demônio-fêmea estrangeiro, Honorável Senhor?
— Não, nunca. Não. Ayeeyah, só de pensar... eca!
— Eu gostaria de possuir uma — falou Lee, com uma risada —, só para ver como é a coisa!
Todos riram com ele, e um falou:
— Um Portão de Jade é um Portão de Jade, mas dizem que algumas fêmeas estrangeiras são tortas!
— Ouvi dizer que são rachadas de banda!
— Honorável Senhor, mais uma coisa — o jovem detetive falou, quando as risadas haviam cessado. — O Diurno Chang me disse que lhe contasse que a Pêlos Púbicos Dourados tem um transmissor-receptor em miniatura... o melhor que ele já viu, melhor do que qualquer um que tenhamos, mesmo na Seção Especial. Ela o leva sempre consigo.
Tang-po fitou-o.
— Curioso. Ora, por que um demônio-fêmea estrangeiro iria querer uma coisa dessas?
Lee perguntou:
— Algo a ver com as armas?
— Não sei, Irmão Mais Moço. Mulheres com transmissores-receptores? Interessante. Não estava na bagagem dela quando o nosso pessoal a revistou, ontem à noite, portanto tinha que estar na bolsa. Bom, muito bom. Cabo Ho, depois da nossa reunião, deixe um presente para o Diurno Chang, duas vermelhas. — Uma nota vermelha valia cem HK. — Realmente, gostaria de saber para quem se destinavam aquelas armas — acrescentou, pensativo. — Certifiquem-se de que todos os informantes saibam que também estou muito interessado nisso.
— O Chen da Casa Nobre está metido com as armas e os demônios estrangeiros? — quis saber Lee.
— Acho que sim, Irmão Mais Moço, acho que sim. Outra curiosidade... mandar uma orelha não é civilizado... não cedo assim. Não é nada civilizado.
— Ah, então acha que os Lobisomens são demônios estrangeiros? Ou mestiços fornicadores? Ou portugueses?
— Não sei — disse Tang-po, com azedume. — Mas aconteceu no nosso distrito, portanto é uma questão de prestígio para todos nós. A Grande Montanha de Bosta está com muita raiva. Ele também está desprestigiado.
— Eee — comentou Lee —, aquele sacana tem um gênio dos diabos!
— É. Quem sabe a informação sobre o transmissor-receptor o acalme um pouco. Acho que vou pedir a todos os meus irmãos para ficarem de olho na Pêlos Púbicos Dourados e no seu amigo contrabandista de armas, por via das dúvidas. Ora, havia mais alguma coisa... — Novamente, Tang-po consultou as anotações. — Ah, sim, por que a nossa contribuição da Boate Recepcionista Feliz baixou trinta por cento?
— Ela mudou de dono, Honrado Senhor — respondeu o sargento Lee, em cuja zona ficava o cabaré. — Pok Um Olho Só vendeu a casa para um xangaiense sacana chamado Wang... Wang Feliz. Wang Feliz disse que a Graxa Fragrante é muito alta, os negócios vão mal, muito mal.
— Dew neh loh moh para todos os xangaienses. E vão mesmo?
— O movimento baixou, mas não muito.
— É verdade, Honrado Senhor — falou o cabo Ho. — Estive lá à meia-noite para recolher o dinheiro adiantado da semana, a bosta do lugar fedorento estava meio cheio.
— Havia ali demônios estrangeiros?
— Dois ou três, Honrado Senhor. Ninguém de importância.
— Dê ao Honorável Wang Feliz um recado meu: ele tem três semanas para melhorar os negócios. Depois, vamos pensar de novo no caso dele. Cabo Ho, diga a algumas garotas do Grande Novo Oriental para recomendarem a Recepcionista Feliz por um mês, mais ou menos... elas têm bastantes fregueses entre os demônios estrangeiros... e diga ao Wang que vai chegar um porta-aviões nuclear, o Corregidor, depois de amanhã, para R e R... — Ele usou as letras inglesas, pois todos compreendiam rest and recreation¹ da época da Guerra da Coréia.
¹ "Descanso e recreação." (N. da T.)
— Perguntarei ao meu Irmão Dragão em Wanchai e na zona do cais se Wang Feliz pode distribuir por lá alguns cartões de visita. Cerca de mil bárbaros do País Dourado ajudariam muito a receita! Vão passar oito dias aqui.
— Honrado Senhor, farei isso ainda hoje — prometeu o cabo Ho.
— Meu amigo da polícia marítima me contou que vai haver muitos vasos de guerra em visita, brevemente; a Sétima Frota Americana está sendo aumentada. — Tang-po franziu a testa. — Dobrada, segundo ele. O que se comenta no continente é que os soldados americanos vão entrar no Vietnam com força total... já têm uma linha aérea ali... pelo menos — acrescentou — a tríade CIA deles tem.
— Eeee, isso é bom para os negócios! Teremos que consertar os navios deles. E entreter os seus homens! Bom. Ótimo para nós.
— É. Ótimo. Mas uma burrice para eles. O Honorável Chu En-lai já os vem advertindo, há meses, educadamente, de que a China não os quer lá! Por que não escutam? O Vietnam é a nossa esfera externa bárbara! É uma burrice escolher aquela selva horrorosa e aqueles bárbaros detestáveis para fazer uma guerra. Se a China não conseguiu subjugar aqueles bárbaros estrangeiros durante séculos, como poderão eles fazê-lo? — Tang-po riu e acendeu outro cigarro. — Para onde foi Pok Um Olho Só?
— A raposa velha conseguiu o visto permanente e se mandou para San Francisco no primeiro avião. Ele, a mulher e oito filhos.
Tang-po virou-se para o contador.
— Ele nos devia algum dinheiro?
— Ah, não, Honrado Senhor. Estava com os pagamentos integralmente atualizados. O sargento Lee cuidou disso.
— Quanto custou àquele fornicador velho? Para obter o visto?
— Sua saída foi facilitada por um presente de três mil HK para o cabo Sek Pun So, da Imigração, segundo nossas recomendações. Nossa porcentagem foi paga, e também o ajudamos a encontrar o mercador de diamantes certo para converter sua fortuna nas melhores pedras branco-azuladas disponíveis. — Ho consultou os seus livros. — Nossa comissão de dois por cento foi de oito mil novecentos e sessenta HK.
— O velho e bom Um Olho Só! — exclamou Tang-po, contente por ele. — Saiu-se muito bem. Com que emprego "especializado" conseguiu o visto?
O sargento Lee explicou:
— O de cozinheiro num restaurante do Bairro Chinês, chamado O Lugar de Comer Bem. Oh ko, já provei a comida feita por ele, e o velho Um Olho Só é ruim pra cachorro.
— Vai contratar outro para tomar o seu lugar, e vai se meter no ramo imobiliário, ou com jogo e cabarés — disse alguém. — Eeee, que sorte!
— Mas quanto lhe custou o visto americano?
— Ah, o dom dourado para o Paraíso! — Ho suspirou. — Ouvi dizer que pagou cinco mil dólares americanos para encabeçar a lista.
— Ayeeyah, é mais do que o costumeiro. Por quê?
— Parece que há também a promessa de um passaporte americano, logo que acabe o prazo de cinco anos, e de ignorarem o fato de o velho Um Olho Só não falar inglês...
— Aqueles sacanas do País Dourado... extorquem, mas não são organizados. Não têm classe nenhuma — falou Tang-po, desdenhosamente. — Um ou dois vistos, aqui e ali... quando todos aqui sabem que se pode comprar um, na hora certa e com a propina certa. Então por que não agem direito, de modo civilizado? Vinte vistos por semana... até mesmo quarenta... são todos doidos, esses demônios estrangeiros!
— Dew neh loh moh, mas como está certo! — falou o sargento Lee, tonto com a quantidade potencial das propinas que poderia ganhar, se fosse vice-cônsul do consulado dos Estados Unidos em Hong Kong, no Departamento de Vistos. — Eeee!
— Deveríamos ter uma pessoa civilizada nesse cargo, logo estaríamos estabelecidos como mandarins e policiando San Francisco! — disse Tang-po, e todos riram junto com ele. A seguir, acrescentou, enojado: — Pelo menos deviam ter um homem no cargo, não um que goste de uma Haste Ardente na sua Cloaca Medonha, ou da sua na de outro homem!
Riram ainda mais.
— Ei — exclamou um deles —, ouvi dizer que o parceiro dele é o Jovem Demônio Estrangeiro Fedorento Barriga de Porco, das Obras Públicas... sabe, aquele que está vendendo licenças para construções que não deviam ser feitas!
— Isso são águas passadas, Chan, há muito tempo. Ambos já estão de cacho novo. O último boato é que o nosso demônio vice-cônsul está ligado a um jovem... — Tang-po acrescentou, delicadamente: — filho de um contador de destaque, que também é um comunista de destaque.
— Eeee, isso não é bom — disse o sargento Lee, identificando o homem imediatamente.
— Não — concordou Tang-po. — Especialmente porque ouvi dizer, ontem, que o jovem tem um apartamento secreto dobrando a esquina. No meu distrito! E o meu distrito é o que tem menos crimes.
— Isso mesmo — concordaram todos, com orgulho.
— Devemos falar com ele, Irmão Mais Velho? — perguntou Lee.
— Não, apenas mantê-lo sob vigilância especial. Quero saber tudo sobre esses dois. Tudo. Até mesmo se arrotam. — Tang-po soltou um suspiro. Deu ao sargento Lee o endereço e distribuiu as missões a cada um. — Já que estão todos aqui, decidi antecipar o pagamento de amanhã.
Abriu a sacola grande, que continha dinheiro em notas. Cada homem recebeu o equivalente ao seu pagamento na polícia, mais despesas autorizadas.
Trezentos HK por mês, sem custas, não era um salário suficiente para um guarda alimentar uma família, mesmo pequena, e ter um pequeno apartamento, nem mesmo de duas peças, com uma pia e sem sanitários, e para mandar um filho para a escola; ou o suficiente para conseguir mandar um pouco para a sua aldeia natal, em Kwantung, para pais, avós, mães, tios e avôs necessitados, muitos dos quais, há tantos anos, haviam dado as economias de toda uma vida para ajudá-lo a se pôr a caminho, na estrada irregular para Hong Kong.
Tang-po fora um desses. Sentia muito orgulho por ter sobrevivido à viagem, aos seis anos de idade, sozinho, por ter encontrado os parentes, e depois, aos dezoito anos, ter entrado para a polícia... há trinta e seis anos. Servira bem à rainha, impecavelmente à força policial, não servira aos inimigos japoneses durante a ocupação, e agora chefiava uma divisão-chave na colônia de Hong Kong. Respeitado, rico, com um filho cursando a universidade em San Francisco, outro dono de metade de um restaurante em Vancouver, no Canadá, sua família em Kwantung sustentada... e, o que era mais importante, seu distrito de Tsim Sha Tsui com menos roubos sem solução, menos ferimentos, mutilações e guerras entre tríades sem solução do que qualquer outro distrito... e apenas três assassinatos em quatro anos, todos resolvidos e os culpados presos e condenados, e um deles um demônio estrangeiro marujo que matara outro por causa de uma dançarina de cabaré. E quase nenhum furto de pouca monta, e nunca um demônio estrangeiro turista incomodado por mendigos ou pivetes, e era a maior área turística, com mais de trezentas mil pessoas civilizadas para policiar e proteger dos bandidos e delas mesmas.
"Ayeeyah, é", Tang-po disse para si mesmo. "Se não fosse por nós, aqueles camponeses fornicadores de cabeça dura estariam se engalfinhando uns com os outros, brigando, pilhando, matando, e depois o grito inevitável da turba se ergueria: 'Matem os demônios estrangeiros!' E eles tentariam, e depois voltariam os levantes outra vez. Fodam-se todos os malfeitores e as pessoas arruaceiras!"
— Agora — disse ele amavelmente —, vamos nos reunir daqui a três dias. Encomendei um jantar de dez pratos do Chang Boa Comida. Até lá, que todos encostem o olho no orifício dos deuses, e me arranjem as respostas. Quero os Lobisomens... e quero John Chen de volta. Sargento Lee, fique mais um momento. Cabo Ho, escreva a ata e me entregue as contas amanhã às cinco.
— Sim, Honrado Senhor.
Saíram todos. Tang-po acendeu outro cigarro. O sargento Lee fez o mesmo. Tang-po tossiu.
— Devia parar de fumar, Irmão Mais Velho.
— Você também! — Tang-po deu de ombros. — Joss! Quando eu tiver que ir, eu vou. Joss! Mesmo assim, para ter paz, disse à minha Mulher Principal que parei. Ela fica reclamando o tempo todo.
— Mostre-me uma que não reclame, e vai ver que ela é um ele com a Cloaca Medonha.
Riram juntos.
— É verdade. Heya, na semana passada ela insistiu em que eu fosse consultar um médico, e sabe o que o sacana sem mãe me disse? Disse: "É melhor parar de fumar, velho amigo, ou não passará de cinzas num vaso funerário antes de ficar vinte luas mais velho, e aposto que a sua Mulher Principal vai gastar todo o seu dinheiro com rapazes de vida livre, e a sua concubina vai provar os frutos de outro!"
— O porco! Ah, mas que porco!
— É. Ele me assustou de verdade. Senti as palavras dele me atingirem no Saco Secreto! Mas quem sabe falava a verdade.
Pegou um lenço, assoou o nariz, com a respiração asmática, pigarreou ruidosamente e cuspiu na escarradeíra.
— Ouça, Irmão Mais Moço, o nosso Grande Dragão disse que chegou a hora de organizar o Contrabandista Yuen, Lee Pó Branco e o primo dele, Wu Quatro Dedos.
O sargento Lee fitou-o, chocadíssimo. Aqueles três homens tinham a fama de ser os Grandes Tigres do comércio de ópio. Importadores e exportadores. Para uso local e também, segundo a voz corrente, para exportação para o País Dourado, onde havia o dinheiro grosso. Ópio trazido para Hong Kong secretamente e convertido em morfina e, depois, em heroína.
— Ruim, muito ruim. Nunca tocamos nesse comércio antes.
— É — falou Tang-po delicadamente.
— Seria muito perigoso. O Departamento de Narcóticos é seriamente contra ele. A Grande Montanha de Bosta em pessoa está muito seriamente interessada em apanhar esses três... interessada pra caralho.
Tang-po fitou o teto. Depois, falou:
— Q Grande Dragão explicou assim: uma tonelada de ópio no Triângulo Dourado custa sessenta e sete mil dólares americanos. Transformada na porra da morfina, e depois na porra da heroína, e a heroína pura diluída a cinco por cento, a proporção costumeira nas ruas do País Dourado, e entregue ali, já se tem quase seiscentos e oitenta milhões em dólares americanos. Com uma tonelada de ópio.
Tang-po tossiu e acendeu outro cigarro.
O suor começou a porejar nas costas de Lee.
— Quantas toneladas poderiam passar através desses três fornicadores?
— Não sabemos. Mas disseram-lhe que cerca de trezentos e oitenta toneladas por ano são produzidas no Triângulo Dourado — Yunan, Birmânia, Laos e Tailândia. Grande parte vem para cá. Eles lidariam com cinqüenta toneladas, falou ele. Tem certeza de cinqüenta toneladas.
— Oh ko!
— É. — Tang-po também suava. — Nosso Grande Dragão disse que chegou a hora de investirmos no negócio. Vai crescer e crescer. Ele tem um plano para fazer a marinha se unir a nós...
— Dew neh loh moh, não se pode confiar naqueles filhos da mãe marítimos.
— Foi o que eu disse, mas ele falou que precisamos dos filhos da mãe marítimos, e que podemos confiar em alguns, selecionados. Quem mais poderá agarrar e interceptar uns vinte por cento de sinal... quem sabe até cinqüenta por cento para apaziguar a Grande Montanha de Bosta em pessoa, em momentos pré-combinados? — Tang-po cuspiu certeiramente, de novo. — Se pudéssemos juntar a marinha, o Departamento de Narcóticos e o Bando dos Três, o nosso h'eung yan atual seria igual à mijada de uma criança nas águas do porto.
Fez-se um silêncio sério no aposento.
— Teríamos que recrutar novos membros, e isso é sempre perigoso.
— É.
Lee pegou o bule de chá e serviu-se de um pouco de chá de jasmim, com o suor escorrendo costas abaixo, o ar abafado e cheio de densa fumaça. Esperou.
— O que acha, Irmão Mais Moço?
Os dois homens não eram aparentados, mas usavam a cortesia chinesa entre si porque há mais de quinze anos confiavam um no outro. Lee salvara a vida do seu superior nos levantes de 1956. Estava agora com trinta e cinco anos, e seu heroísmo nos levantes lhe garantira uma medalha da polícia. Era casado e tinha três filhos. Há dezesseis anos estava na força policial, e seu salário integral era de oitocentos e quarenta e três HK por mês. Tomava o bonde para ir para o trabalho. Se não complementasse a sua renda através da irmandade, como todos eles, teria tido que ir a pé ou de bicicleta, na maior parte dos dias. O bonde levava duas horas.
— Acho que a idéia é muito ruim — falou. — Drogas, qualquer tipo de droga é ruim pra caralho... é, muito ruim. O ópio é ruim, embora seja bom para gente velha... o pó branco, cocaína, é ruim, mas não tão ruim quanto as seringas da morte. Dá azar comerciar com as seringas da morte.
— Foi o que eu lhe disse.
— Vai obedecê-lo?
— O que é bom para um irmão deve ser bom para todos — disse Tang-po, cautelosamente, evitando uma resposta direta.
Novamente, Lee esperou. Não sabia como um Dragão era eleito, ou exatamente quantos havia, ou quem era o Grande Dragão. Sabia apenas que o seu Dragão era Tang-po, um homem sábio e cauteloso, que pensava nos interesses deles.
— Falou também que um ou dois dos nossos demônios estrangeiros superiores estão ficando com cócegas quanto às suas malditas fatias do dinheiro do jogo.
Lee cuspiu, enojado.
— O que esses fornicadores fazem para merecer a sua parte? Nada. Só fecham os olhos malditos. Exceto o Cobra.
Esse era o apelido do inspetor-chefe Donald C. C. Smyth, que organizara abertamente seu distrito de Aberdeen Leste e vendia favores e proteção em todos os níveis, diante dos seus subalternos chineses.
— Ah, ele! Devia ser enfiado esgoto abaixo, o sacana. Logo, aqueles a quem paga, acima deles, não poderão mais esconder o seu fedor. E o fedor dele se espalhará sobre todos nós.
— Ele deve se aposentar daqui a dois anos — falou Lee, sombriamente. — Talvez fique puxando o saco de todos os figurões até sair, e eles não poderão fazer nada. Os amigos dele estão lá no alto, segundo dizem.
— E enquanto isso? — perguntou Tang-po. Lee soltou um suspiro.
— Meu conselho, Irmão Mais Velho, é ser cauteloso, não entrar nessa se puder evitar. Se não puder... — deu de ombros. — É o destino. Já está decidido?
— Não. Ainda não. O assunto foi mencionado na nossa reunião semanal. Para ser estudado.
— Já se dirigiram ao Bando dos Três?
— Parece que foi Lee Pó Branco que nos procurou em primeiro lugar, Irmão Mais Moço. Parece que os três vão se unir.
Lee soltou uma exclamação abafada.
— Com juramentos de sangue?
— Parece que sim.
— Vão trabalhar juntos? Aqueles demônios?
— Foi o que disseram. Aposto que Wu Quatro Dedos vai ser o Tigre Maior.
— Ayeeyah, ele? Dizem que matou pessoalmente cinqüenta homens — falou Lee, sombriamente. Estremeceu ao pensar no perigo. — Devem ter uns trezentos lutadores no seu rol de pagamento. Seria melhor para todos nós se aqueles três estivessem mortos... ou atrás das grades.
— É. Mas, entrementes, Lee Pó Branco diz que eles estão prontos para se expandir, e que em troca de uma pequena cooperação da nossa parte poderão garantir um lucro gigantesco. — Tang-po enxugou a testa, tossiu e acendeu outro cigarro. — Ouça, Irmãozinho — falou, suavemente. — Ele jura que lhes ofereceram uma grande fonte de dinheiro americano, dinheiro vivo e de banco, e um grande mercado varejista para a sua mercadoria lá, com sede nesse lugar chamado Manhattan.
Lee sentiu o suor na testa.
— Um mercado varejista lá... ayeeyah, isso significa milhões. Eles garantem?
— Garantem. Com muito pouca coisa para fazermos. Exceto fechar os olhos e cuidar para que a marinha e o Departamento de Narcóticos apreendam apenas os carregamentos corretos, e fechem os olhos quando for a hora. Não está escrito nos Livros Antigos: se você não der um aperto, o raio o atingirá?
Um novo silêncio.
— Quando é que a decisão... quando vai ser decidido?
— Na semana que vem. Se for sim, bem, o fluxo do tráfico vai levar meses para ser organizado, quem sabe um ano. — Tang-po deu uma olhada no relógio e se levantou. — Hora do nosso banho. O Noturno Song providenciou jantar para nós, depois.
— Eeeee, que ótimo. — Inquieto, Lee apagou a única lâmpada do teto. — E se a decisão for não?
Tang-po apagou o cigarro e tossiu.
— Se for não... — Deu de ombros. — Temos uma só vida, a despeito dos deuses, portanto é nosso dever pensar nas nossas famílias. Um dos seus parentes trabalha como comandante com Wu Quatro Dedos...
20h30m
— Alô, Brian — cumprimentou Dunross. — Seja bem-vindo.
— Boa noite, tai-pan... parabéns... bela noite para uma festa — respondeu Brian Kwok. Um garçom de libre apareceu vindo do nada e ele aceitou uma taça de champanha, servido num cristal finíssimo. — Obrigado pelo convite.
— É sempre bem-vindo.
Dunross estava ao lado da porta do salão de baile da Casa Grande, alto e garboso. Penelope estava a poucos passos de distância, recebendo outros convidados. O salão de baile meio cheio dava para terraços e jardins superlotados e iluminados por holofotes, onde a maioria das senhoras vistosamente trajadas e cavalheiros de dinner jacket conversavam em grupos, ou sentavam-se a mesas redondas. Uma brisa fresca chegara junto com a noite.
— Penelope querida — chamou Dunross —, lembra-se do superintendente Brian Kwok?
— Mas é claro — disse ela, abrindo caminho na direção deles, ostentando um sorriso feliz, sem absolutamente lembrar-se dele. — Como vai?
— Muito bem, obrigado... parabéns!
— Obrigada... fique à vontade. O jantar vai ser servido às nove e quinze. Claudia tem a lista dos lugares às mesas, caso tenha perdido o seu cartão. Ah, com licença, um momentinho...
Virou-se para interceptar outros convidados, tentando olhar para toda parte para ver se tudo corria bem e se ninguém estava isolado... sabendo, no íntimo, que, se houvesse um desastre, ela não teria nada a fazer, pois outros dariam um jeito de consertar de novo as coisas.
— Tem muita sorte, Ian — disse Brian Kwok. — Ela fica mais moça a cada ano que passa.
— É.
— É isso aí. Brindemos a mais vinte anos. Saúde! Fizeram tintim com as taças. Eram amigos desde o início da década de 50, quando se haviam encontrado na primeira corrida realizada nos morros, e desde então tinham-se tornado rivais amistosos... e membros fundadores do Clube de Rally e Carros Esporte de Hong Kong.
— Mas e você, Brian, nenhuma garota especial? Veio sozinho?
— Estou curtindo as garotas, sem compromisso. — Brian Kwok baixou o tom de voz. — Na verdade, vou ficar solteiro permanentemente.
— Que idéia! Este é o seu ano... você é o partidão de Hong Kong. Até Claudia está de olho em você. Está ferrado, amigão.
— Oh, Deus! — Brian parou de brincar, por um momento. — Escute, tai-pan, posso falar-lhe uns dois minutos em particular, ainda hoje?
— John Chen? — perguntou Dunross, prontamente.
— Não. Todos os nossos homens estão procurando, mas até agora, nada. É outra coisa.
— Negócios?
— Sim.
— Muito em particular?
— Em particular.
— Está certo — retrucou Dunross. — Procuro você logo após o jantar. Que...
Uma explosão de risadas fez com que ambos olhassem à sua volta. Casey estava no centro de um grupo de admiradores — Linbar Struan, Andrew Gavallan e Jacques de Ville entre eles —, junto a uma das grandes portas envidraçadas que davam para o terraço, do lado de fora.
— Eeee — murmurou Brian Kwok.
— É isso aí — falou Dunross, sorrindo.
Ela usava um vestido justo e longo de seda verde-esmeralda, ajustado na conta certa e transparente na conta certa.
— Pombas, ela está ou não está?
— O quê?
— Usando roupa de baixo?
— Procurai e achareis.
— Gostaria. Ela é deslumbrante.
— Também acho — concordou Dunross, amavelmente —, embora imagine que cem por cento das outras senhoras não achem.
— Os seios dela são perfeitos, dá para se ver.
— Na verdade, não dá. Quase que dá. Está tudo na sua cabeça.
— Aposto que não há um par em Hong Kong que se compare a eles.
— Aposto cinqüenta dólares contra uma moeda de cobre que você está errado... desde que incluamos as eurasianas.
— Como vamos provar quem ganhou?
— Não podemos. Para falar a verdade, sou mais ligado em tornozelos.
— Como?
— O velho tio Chen-Chen costumava dizer: "Olhe primeiro para os tornozelos dela, meu filho, então ficará sabendo a sua raça, como se comportará, como cavalgará, como... igual a qualquer égua. Mas não se esqueça de que todas as gralhas sob os céus são negras!"
Brian Kwok sorriu junto com ele, depois acenou amistosamente para alguém. Do outro lado da sala, um homem alto, de rosto marcado, acenava também. Ao lado dele estava uma mulher extremamente bela, alta, loura, de olhos cinzentos. Também ela acenou alegremente.
— Aquilo sim é que é uma beldade inglesa!
— Quem? Ah, Fleur Marlowe? É, é mesmo. Não sabia que conhecia os Marlowes, tai-pan.
— A recíproca é verdadeira! Conheci-o hoje à tarde, Brian. Conhece-o há muito tempo?
— Uns dois meses e pouco. Ele é persona grata para nós.
— É?
— É. Estamos lhe mostrando como funcionam as coisas.
— É? Por quê?
— Faz alguns meses ele escreveu ao comissário, disse que vinha a Hong Kong fazer pesquisas para escrever um romance, e pediu a nossa colaboração. Parece que o Velho leu o primeiro romance dele e viu alguns dos seus filmes. Claro que fizemos uma verificação e ele nos pareceu legal. — Os olhos de Brian Kwok voltaram para Casey. — O Velho achou que uma imagem melhorada só nos podia fazer bem, então mandou avisar que, dentro de limites, Peter fora aprovado, e que lhe mostrássemos as coisas. — Lançou um olhar para Dunross e deu um breve sorriso. — Não nos cabe discutir por quê!
— Qual é o livro dele?
— Chama-se Changi, e é sobre seus dias como prisioneiro de guerra. O irmão do Velho morreu lá, portanto creio que isso o tocou fundo.
— Já o leu?
— Quem sou eu... tenho muitas montanhas para subir!
Folheei-o, apenas. Peter diz que é ficção, mas não acredito. — Brian deu uma risada. — Mas ele sabe entornar uma cerveja. Robert levou-o a dois dos seus Festivais de Cerveja, e ele se saiu muito bem.
Os Festivais eram festas dadas pelos policiais, só para homens, para as quais os oficiais contribuíam com um barril de cinqüenta litros de cerveja. A festa acabava quando a cerveja acabava.
Os olhos de Brian Kwok banqueteavam-se em Casey, e Dunross se perguntou pela milionésima vez por que os asiáticos preferiam os anglo-saxões, e os anglo-saxões preferiam os asiáticos.
— Por que o sorriso, tai-pan?
— Por nada. Mas Casey não é nada má, hem?
— Aposto cinqüenta dólares que é bat jam gai, heya?
Dunross pensou um momento, sopesando a aposta cuidadosamente. "Bat jam gai" queria dizer, literalmente, "carne branca de galinha". Era assim que os cantonenses se referiam às mulheres que raspavam os pêlos púbicos.
— Tá valendo! Está errado, Brian, ela é see yau gai — que significava "galinha com molho de soja" —, ou, no caso dela, vermelha, macia, e com tempero gostoso. Opinião das mais abalizadas!
Brian achou graça.
— Apresente-me.
— Vá você mesmo se apresentar. Já tem mais de vinte e um anos.
— Deixarei que você ganhe a subida do morro, no domingo.
— Essa é boa! Pode ir, e aposto mil que não consegue.
— Quanto me dá de vantagem?
— Deve estar brincando!
— Perguntar não ofende. Puxa, mas gostaria de faturar aquela. Onde está o sortudo Sr. Bartlett?
— Acho que está no jardim... mandei Adryon fazer-lhe sala. Com licença...
Dunross virou-se para receber um convidado que Brian Kwok não reconheceu.
Mais de cento e cinqüenta convivas já haviam chegado, sendo recebidos pessoalmente. O jantar era para duzentas e dezessete pessoas, todas cuidadosamente sentadas de acordo com a posição e o costume, em mesas redondas que já estavam postas, e com luz de velas, nos gramados. Velas e candelabros nos corredores, garçons de libre servindo champanha em finas taças de cristal, ou salmão defumado e caviar em travessas e salvas de prata.
Um pequeno conjunto tocava sobre uma plataforma, e Brian Kwok notou algumas fardas em meio aos dinner jackets, americanas e inglesas, exército, marinha e força aérea. Não surpreendia que o número de europeus fosse dominante. Aquela festa era estritamente para o círculo interno britânico que mandava no distrito central e era o bloco de poder da colônia, para os seus amigos caucasianos e uns poucos eurasianos, chineses e indianos escolhidos. Brian Kwok reconheceu a maioria dos convidados: Paul Havergill, do Victoria Bank de Hong Kong, o velho Sir Samuels, multimilionário, tai-pan de vinte companhias imobiliárias, bancárias, de transporte por barcas e de valores mobiliários; Christian Toxe, editor do China Guardian, conversando com Richard Kwang, presidente da junta diretora do Ho-Pak Bank; o armador multimilionário V. K. Lam, conversando com Phillip e Dianne Chen, cujo filho, Kevin, estava com eles; o americano Zeb Cooper, herdeiro da mais antiga firma mercantil americana, Cooper-Tillman, de conversa com Sir Dunstan Barre, tai-pan das Fazendas de Hong Kong e Lan Tao. Notou Ed Langan, o homem do FBI, entre os convidados, e isso o surpreendeu. Não sabia que Langan, ou o homem com quem estava conversando, Stanley Rosemont, um subdiretor do contingente da CIA de vigia à China, eram amigos de Dunross. Deixou os olhos correrem pelos grupos de homens que tagarelavam, e pelos grupos das suas mulheres, a maioria separadamente.
"Estão todos aqui", pensou, "todos os tai-pans, exceto Gornt e Plumm, todos os piratas, todos aqui, com ódio incestuoso, rendendo homenagens a o tai-pan.
"Qual deles é o espião, o traidor, o controlador da Sevrin, Arthur?
"Tem que ser europeu.
"Aposto que está aqui. E eu vou pegá-lo. É, vou pegá-lo em breve, agora que sei a seu respeito. Vamos pegá-lo, e pegar todos", pensou, sombriamente. "E vamos pegar estes ladrões com a boca na botija, vamos acabar de vez com as suas piratarias, para o bem comum."
— Champanha, Honrado Senhor — ofereceu o garçom, em cantonense, com um sorriso cheio de dentes.
Brian aceitou uma taça cheia.
— Obrigado.
O garçom se curvou, para ocultar os lábios.
— O tai-pan trouxe uma pasta de capa azul entre os seus papéis, quando chegou hoje — murmurou, rapidamente.
— Aqui existe um esconderijo seguro e secreto? — Brian perguntou, igualmente cauteloso, e no mesmo dialeto.
— Os criados dizem que fica no escritório dele, no outro andar — replicou o homem. Chamava-se Feng Garçom de Vinhos e fazia parte da rede sigilosa de agentes do sei. Seu disfarce como garçom do bufê responsável por todas as melhores e mais exclusivas festas de Hong Kong dava-lhe um grande valor. — Pode ser que fique atrás do quadro, foi o que ouvi... — Deteve-se, repentinamente, e começou a falar em inglês ar-revesado com sotaque chinês: — Champigni, senholita? — perguntou, com os dentes à mostra, oferecendo a bandeja à minúscula velhinha eurasiana que se aproximava: — Muito, muito plimeila classe.
— Não me venha com "senholita", seu fedelho impertinente — ela replicou altivamente, em cantonense.
— Sim, Honrada Tia-Avó, desculpe, Honrada Tia-Avó. Sorriu de orelha a orelha, e sumiu.
— E então, jovem Brian Kwok — falou a velhinha, erguendo para ele os olhos apertados. Sarah Chen, tia de Phillip Chen, tinha oitenta e oito anos e era uma pessoa miudinha de pele branca e pálida e olhos asiáticos que se moviam incessantemente. E embora aparentasse ser frágil, mantinha as costas bem retas e o espírito forte. — Que bom vê-lo. Onde está John Chen? Onde está meu pobre sobrinho-neto?
— Não sei, Grande Senhora — respondeu ele, polidamente.
— Quando vai trazer de volta o meu Sobrinho-Neto Número Um?
— Logo. Estamos fazendo tudo o que podemos.
— Ótimo. E não atrapalhem o jovem Phillip, se ele quiser pagar o resgate particularmente. Cuide disso, ouviu?
— Sim, farei o que puder. A mulher de John está aqui?
— Hem? Quem? Fale alto, rapaz!
— Barbara Chen está aqui?
— Não. Ela veio, mas logo que aquela mulher chegou, "ficou com dor de cabeça" e foi embora. Não a culpo nem um pouquinho! — Seus velhos olhos lacrimejantes fitavam Dianne Chen, do outro lado da sala. — Ah, aquela mulher! Viu a entrada que fez?
— Não, Grande Senhora.
— Ah, como se fosse a Dama Nellie Melba em pessoa. Entrou sala adentro, de lenço aos olhos, trazendo a tiracolo o filho mais velho, Kevin (não gosto desse rapaz), e o meu pobre sobrinho Phillip os seguia, como um ajudante de cozinha de segunda classe. Ah! A única vez que Dianne Chen chorou foi em 1956, na queda da Bolsa, quando suas ações baixaram e ela perdeu uma fortuna e molhou a roupa de baixo. Ah! Olhe só para ela, pavoneando-se! Fingindo estar perturbada, quando todo mundo sabe que já está agindo como se fosse a imperatriz mãe! Tenho vontade de beliscar-lhe as bochechas! Revoltante! — Voltou a olhar para Brian Kwok. — Encontre o meu sobrinho-neto John... não quero aquela mulher ou o seu moleque lok-pan na nossa casa.
— Mas ele pode ser tai-pan?
Os dois riram juntos. Pouquíssimos europeus sabiam que, embora "tai-pan" significasse "grande líder", na China antiga era o título coloquial dado ao encarregado de um bordel ou de um banheiro público. Assim, chinês algum se denominaria "tai-pan", apenas "loh-pan", que também significava "grande líder" ou "líder supremo". Os chineses e os eurasianos achavam divertidíssimo que os europeus gostassem de se denominar "tai-pan", deixando de lado, estupidamente, o título correto.
— Pode. Se for o pan certo — falou a velha, e os dois deram uma risada abafada. — Trate de achar o meu John Chen, jovem Brian Kwok!
— Sim, vamos achá-lo.
— Ótimo. Bem, o que me diz das chances de Golden Lady, no sábado?
— Boas, se a pista estiver seca. A três contra um ela está valendo uma nota. Fique de olho em Noble Star... também tem chances.
— Ótimo. Venha me ver depois do jantar. Quero falar com você.
— Sim, Grande Senhora.
Sorriu, e ficou vendo a mulher se afastar, sabendo que só o que ela queria era bancar a casamenteira para alguma sobrinha-neta. "Ayeeyah, vou ter que tomar alguma providência nesse sentido logo", pensou.
Os olhos dele voltaram-se para Casey. Ficou encantado com os olhares de reprovação de todas as mulheres... e com a admiração cautelosa e disfarçada de todos os seus acompanhantes. Então Casey ergueu os olhos e notou que ele a observava, do lado oposto da sala. Ela devolveu o olhar avaliador, com igual franqueza, por um breve instante.
"Dew neh loh moh", pensou, contrafeito, sentindo-se despido. "Gostaria de possuir aquela mulher." Foi então que notou Roger Crosse, com Armstrong ao lado. Pôs as idéias em ordem e foi juntar-se a eles.
— Boa noite, senhor.
— Boa noite, Brian. Está com um ar muito distinto.
— Obrigado, senhor. — Não era bobo de replicar com uma palavra amável. — Vou falar com o tai-pan depois do jantar.
— Ótimo. Logo depois de falar com ele, venha me procurar.
— Sim, senhor.
— Quer dizer que acha a moça americana deslumbrante?
— Sim, senhor.
Brian suspirou, intimamente. Esquecera-se de que Crosse sabia fazer leitura labial em inglês, francês e um pouco de árabe (não falava nenhum dialeto chinês) e que a sua visão era excepcional.
— Na verdade, é um pouco escandalosa — falou Crosse.
— Sim, senhor.
Notou que Crosse estava se concentrando nos lábios dela, e soube que estava prestando atenção à conversa dela, no outro lado da sala, e ficou furioso consigo mesmo, por não ter desenvolvido esse talento.
— Ela parece ter paixão por computadores. — Crosse voltou a olhar para eles. — Curioso, não?
— Sim, senhor.
— O que foi que o Feng Garçom de Vinhos disse? Brian contou.
— Ótimo. Providenciarei para que Feng ganhe uma gratificação. Não esperava ver Langan e Rosemont aqui.
— Pode ser coincidência, senhor — comentou Brian Kwok. — Ambos são ávidos apostadores. Ambos já estiveram no reservado do tai-pan.
— Não confio em coincidências — disse Crosse. — No que tange a Langan, claro que vocês não sabem nada, nenhum dos dois.
— Sim, senhor.
— Ótimo. É melhor vocês dois irem cuidar dos nossos negócios.
— Sim, senhor.
Satisfeitos, os dois homens se viraram para ir embora, mas se detiveram, ao notar o súbito silêncio. Todos os olhos se voltaram para a porta de entrada. Quillan Gornt ali se encontrava, barba e sobrancelhas negras, cônscio de que fora notado. Os outros convivas apressadamente continuaram as conversas interrompidas e desviaram os olhos, mas aguçaram os ouvidos.
Crosse assobiou baixinho.
— Ora, por que estará aqui?
— Aposto cinqüenta contra um que está tramando alguma sujeira — respondeu Brian Kwok, igualmente espantado.
Ficaram observando Gornt entrar no salão de baile e estender a mão a Dunross e a Penelope, ao seu lado. Claudia Chen, próxima a eles, estava quase em estado de choque, imaginando como poderia reorganizar a mesa de Dunross assim, em cima da hora, pois é claro que Gornt teria que se sentar ali.
— Espero que não se incomodem por eu ter mudado de idéia em cima da hora — dizia Gornt, sorridente.
— Absolutamente — retrucou Dunross, sorridente.
— Boa noite, Penelope. Achei que devia dar-lhes os parabéns pessoalmente.
— Ah, obrigada. — O sorriso dela permaneceu intacto, mas o coração batia descompassadamente, agora. — Eu, eu sinto muito o que houve com sua mulher.
— Obrigado. — Emelda Gornt sofrerá de artrite, e há anos vivia presa a uma cadeira de rodas. No começo do ano, pegara pneumonia e falecera. — Ela teve muito azar — disse Gornt. Olhou para Dunross. — Foi azar o que houve com John Chen, também.
— Muito.
— Suponho que tenha lido a Gazette da tarde. Dunross fez que sim com a cabeça, e Penelope disse:
— É de deixar qualquer um morto de medo. — Todos os jornais da tarde exibiram manchetes enormes e se regalaram com os detalhes da orelha mutilada e dos Lobisomens. Houve uma ligeira pausa. Ela apressou-se a preenchê-la. — Os seus filhos vão bem?
— Vão. Annagrey vai para a Universidade da Califórnia em setembro... Michael está aqui, passando as férias de verão. Estão em muito boa forma, folgo em dizer. E os seus?
— Vão muito bem. Embora eu tivesse muita vontade de que Adryon fosse para a universidade. Puxa vida, mas como as crianças são difíceis, hoje em dia, não é?
— Acho que sempre foram. — Gornt deu um ligeiro sorriso. — Meu pai vivia reclamando que eu era muito difícil.
Olhou novamente para Dunross.
— É. E como vai seu pai?
— Muitíssimo bem-disposto, folgo em dizer. O clima da Inglaterra lhe faz muito bem, diz ele. Vem passar o Natal aqui. — Gornt aceitou uma taça de champanha que lhe fora oferecida. O garçom estremeceu sob seu olhar, e afastou-se depressa, ergueu a taça. — Uma vida feliz e parabéns.
Dunross retribuiu o brinde, ainda atônito com a chegada de Gornt. Fora apenas por educação e classe que Gornt e outros inimigos haviam recebido convites formais. Uma recusa polida era só o que se esperava deles... Gornt já havia recusado.
"Por que ele está aqui?
"Veio gozar com a minha cara", pensou Dunross. "Como o maldito do pai dele. O motivo deve ser esse. Mas por quê? O que ele andou aprontando contra nós? Bartlett? Será através de Bartlett?"
— Que bela sala, lindas proporções — dizia Gornt. — E que bela casa. Sempre invejei essa sua bela casa.
"É, seu filho da mãe, eu sei", pensou Dunross, furioso, recordando a última vez que qualquer dos Gornts tinha estado na Casa Grande. Há dez anos, em 1953, quando o pai de Ian, Colin Dunross, ainda era o tai-pan. Fora durante a festa de Natal da Struan, tradicionalmente a maior da temporada natalina, e Quillan Gornt havia chegado, junto com o pai, William, na época tai-pan da Rothwell-Gornt, e também inesperadamente. Depois do jantar houvera um bate-papo público e amargo entre os dois tai-pans, no salão de bilhar onde cerca de uma dúzia de homens se havia reunido para um joguinho. Fora na época em que a Struan havia sido bloqueada pelos Gornts e seus amigos xangaienses na sua tentativa de tomar posse da South Orient Airways, que, devido à conquista do continente pelos comunistas, ficara disponível. Essa companhia aérea auxiliar monopolizava todo o tráfego aéreo de e para Xangai, vindo de Hong Kong, Cingapura, Taipé, Tóquio e Bangkok, e se houvesse uma fusão dela com a Air Struan, a recém-fundada companhia aérea deles, a Struan obteria o virtual monopólio do Extremo Oriente, com sede em Hong Kong. Os dois homens se haviam acusado de práticas escusas... e as acusações de ambas as partes eram verdadeiras.
É, pensou Ian Dunross consigo mesmo, os dois homens haviam ido a extremos, daquela vez. William Gornt tentara de todas as formas estabelecer-se em Hong Kong depois das perdas imensas da Rothwell-Gornt em Xangai. E quando Colin Dunross sentiu que a Struan não seria mais a companhia dominante, tirara a South Orient das mãos de William Gornt, unindo-se a um grupo cantonense seguro.
— E foi o que você fez, Colin Dunross, foi o que você fez. Caiu na armadilha e agora jamais nos deterá — jactara-se William Gornt. — Viemos para ficar. Vamos expulsá-los da Ásia, a você e à sua amaldiçoada Casa Nobre. A South Orient é apenas o começo. Vencemos!
— Venceram, uma ova! O grupo Yan-Wong-Sun associou-se a nós. Temos um contrato!
— Está cancelado. — William Gornt fizera sinal a Quillan, seu filho mais velho e herdeiro presumível, que pegou uma cópia de um contrato. — Este contrato aqui é com o grupo Yan-Wong-Sun, representantes do grupo Tso-Wa-Feng — disse, alegremente —, representantes do Ta-Weng-Sap, que vende o controle da South Orient para a Rothwell-Gornt por um dólar além do custo original! — Quillan Gornt colocara o documento sobre a mesa de bilhar, ostensivamente. — A South Orient é nossa!
— Não acredito!
— Pode acreditar. Feliz Natal!
William Gornt dera uma risada grande, debochada, e fora embora. Quillan colocara no lugar seu taco de bilhar, rindo também. Ian Dunross estava junto à porta.
— Um dia vou ser dono desta casa — Quillan Gornt sibilara para ele, depois virara-se e dissera para os outros, em voz alta: — Se algum de vocês quiser um emprego, venha nos procurar. Não demora estarão desempregados. Sua Casa Nobre não vai ser nobre por muito tempo.
Lá estavam Andrew Gavallan, Jacques de Ville, Alastair Struan, Lechie e David MacStruan, Phillip Chen, até mesmo John Chen.
Dunross lembrava-se de como o pai esbravejara, naquela noite, e amaldiçoara a traição, os representantes e o azar, sabendo o tempo todo que o filho o advertira, muitas vezes, e que suas advertências haviam sido postas de lado. "Santo Deus, como fomos humilhados! Hong Kong inteira riu de nós, daquela vez... os Gornts e seus xangaienses intrusos mijando de uma grande altura sobre a Casa Nobre.
"É. Mas aquela noite marcou o início da derrubada de Colin Dunross. Foi naquela noite que decidi que ele tinha que ser afastado antes que a Casa Nobre se perdesse para sempre. Usei Alastair Struan. Ajudei-o a tirar meu pai da jogada. Alastair Struan tinha que ser tai-pan. Até que eu fosse sagaz e forte o suficiente para tirá-lo da jogada.
"Será que sou suficientemente sagaz agora?
"Não sei", pensou Dunross, concentrando-se agora em Quillan Gornt, escutando suas amenidades, ouvindo-se reagir com igual galanteria, enquanto intimamente dizia "Não esqueci a South Orient, ou que tivemos que fundir a nossa linha aérea com a sua a preço de banana e perder o controle da nova linha, rebatizada Ail Ásia Airways. Nada foi esquecido. Perdemos, daquela vez, mas ganharemos desta. Ganharemos tudo, por Deus".
Casey observava os dois homens, fascinada. Notara Quillan Gornt desde o primeiro momento, reconhecendo-o das fotos do dossiê. Pressentira sua força e masculinidade mesmo do outro lado do aposento, e sentira-se estranhamente excitada por ele. Enquanto os observava, quase podia tocar a tensão que emanava dos dois homens... dois touros se desafiando. Andrew Gavallan contara-lhe imediatamente quem era Gornt. Ela não mencionara que o reconhecera, apenas perguntara a Gavallan e Linbar Struan por que haviam ficado tão chocados com a chegada de Gornt. E então, como agora estavam sozinhos, os quatro — Casey, Gavallan, De Ville e Linbar Struan — contaram-lhe sobre o "Feliz Natal" e "Um dia vou ser dono desta casa".
— O que foi que o tai-pan... o que foi que Ian fez? — perguntou.
Gavallan respondeu:
— Ele simplesmente olhou para Gornt. Sabíamos que, se tivesse um revólver, uma faca ou um porrete, ele os teria usado, dava para se sentir isso. E como não tinha arma alguma, sabíamos que, a qualquer momento, usaria as mãos ou os dentes... Ficou absolutamente imóvel e olhou para Gornt, e este recuou um passo, saindo do seu alcance... literalmente. Mas o sacana do Gornt tem cojones. Recuperou o controle e devolveu o olhar de Ian, por um momento. Depois, sem dizer palavra, virou-se muito devagar, com muito cuidado, sem desfitar Ian, e foi embora.
— O que esse filho da mãe está fazendo aqui hoje? — murmurou Linbar.
Gavallan disse:
— Tem que ser importante.
— Qual deles? — perguntou Linbar. — Qual é o importante?
Casey olhou para ele, e com o canto dos olhos viu Jacques de Ville sacudir a cabeça, em sinal de advertência, e imediatamente Linbar e Gavallan se retraíram. Mesmo assim, ela perguntou:
— O que Gornt está fazendo aqui?
— Não sei — respondeu Gavallan, e ela acreditou nele.
— Eles voltaram a se encontrar, desde aquele Natal?
— Oh, sim, muitas vezes, o tempo todo — disse Gavallan. — Socialmente, é claro. Além disso, pertencem às mesmas juntas diretoras, comitês, conselhos administrativos. — Contrafeito, acrescentou: — Mas... bem, estou certo de que estão apenas esperando.
Ela viu os olhos deles se voltarem para os dois inimigos, e os dela fizeram o mesmo. Seu coração batia fortemente. Viram Penelope se afastar para falar com Claudia Chen. Daí a um momento, Dunross olhou na direção deles. Ela sabia que ele estava fazendo alguma espécie de sinal para Gavallan. A seguir, seus olhos detiveram-se nela. Gornt acompanhou-lhe o olhar. Agora, os dois homens olhavam para ela. Sentiu o magnetismo deles intoxicando-a. Um demônio dentro dela guiou seus passos na direção deles. Sentia-se contente, agora, por ter-se vestido daquele jeito, mais provocantemente do que planejara, mas Linc lhe dissera que naquela noite devia parecer menos "executiva".
Enquanto caminhava, sentia o roçar da seda no corpo, e seus mamilos endureceram. Sentiu os olhos deles percorrendo o seu corpo, despindo-a, e desta vez, estranhamente, não se incomodou. Seu andar tornou-se imperceptivelmente mais felino.
— Alô, tai-pan — falou, com fingida inocência. — Queria que viesse fazer-lhes companhia?
— Sim — replicou ele, prontamente. — Creio que vocês dois se conhecem.
Ela sacudiu a cabeça e sorriu para os dois, sem perceber a armadilha.
— Não, não nos conhecemos. Mas é claro que sei quem é o Sr. Gornt. Andrew me contou.
— Ah, então deixe-me apresentá-los, formalmente. Sr. Quillan Gornt, tai-pan da Rothwell-Gornt. Srta. Tcholok, Ciranoush Tcholok, dos Estados Unidos.
Ela estendeu a mão, ciente do perigo de se meter entre os dois homens, metade da sua mente excitada pelo perigo, a outra metade gritando: "Meu Deus, o que estou fazendo aqui?"
— Ouvi falar muito a seu respeito, Sr. Gornt — disse, satisfeita porque sua voz estava controlada, satisfeita com o toque da mão dele... diferente da de Dunross, mais áspera, e não tão forte. — Creio que a rivalidade entre as suas firmas existe há gerações.
— Apenas três. Foi meu avô quem primeiro sentiu a misericórdia não tão suave dos Struans — disse Gornt, tranqüilamente. — Um dia desses gostaria de lhe contar a nossa versão das lendas.
— Acho que vocês dois deviam fumar o cachimbo da paz — falou. — Certamente a Ásia é ampla o bastante para os dois.
— O mundo inteiro não o é — replicou Dunross, afavelmente.
— Não — concordou Gornt, e se ela não tivesse ouvido a história real, teria imaginado, pelo tom de voz e pelo jeito deles, que eram apenas rivais cordiais.
— Nos Estados Unidos temos muitas companhias enormes... e elas convivem em paz. Em competição.
— Aqui não é a América — disse Gornt, calmamente. — Quanto tempo vai ficar aqui, srta. Tcholok?
— Depende de Linc... Linc Bartlett. Trabalho nas Indústrias Par-Con.
— É, eu sei. Ele não lhe contou que vamos jantar juntos na terça-feira?
Os sinais de alerta percorreram o corpo dela.
— Terça-feira?
— É. Combinamos hoje de manhã. Na nossa reunião. Ele não lhe contou?
— Não — disse, momentaneamente abalada. Os dois homens a fitavam atentamente, e ela teve vontade de poder sair de fininho e voltar dali a cinco minutos, depois de ter pensado direito no caso. "Caramba", pensou, e lutou para manter a serenidade, enquanto todas as implicações vinham à sua mente. — Não — repetiu —, Linc não me falou de nenhuma reunião. O que combinaram?
Gornt lançou um olhar para Dunross, que ainda escutava tudo com fisionomia inexpressiva.
— Apenas um jantar na terça-feira. O Sr. Bartlett e a senhorita... se estiver livre.
— Seria ótimo... obrigada.
— E onde está o seu Sr. Bartlett, agora? — perguntou ele.
— No... no jardim, acho. Dunross falou:
— A última vez que o vi estava no terraço. Adryon estava com ele. Por quê?
Gornt pegou uma cigarreira de ouro e ofereceu-a à moça.
— Não, obrigada. Não fumo.
— Incomoda-se se eu fumar? Ela fez que não com a cabeça.
Gornt acendeu um cigarro e olhou para Dunross.
— Só gostaria de cumprimentá-lo antes de ir embora — falou, amavelmente. — Espero que não se incomode por eu ter vindo apenas por alguns minutos... desculpe não poder ficar para o jantar. Tenho um compromisso urgente... você compreende.
— Claro. — Dunross acrescentou. — Lamento que não possa ficar.
Nenhum dos dois homens demonstrava coisa alguma, na fisionomia. Só nos olhos. Era neles que se via o ódio. A fúria. Sua profundidade chocou Casey.
— Peça a Ian Dunross para mostrar-lhe a Galeria Longa — dizia Gornt para ela. — Ouvi dizer que há nela excelentes retratos. Eu próprio nunca estive na Galeria Longa... apenas no salão de bilhar.
Ela sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha enquanto ele olhava para Dunross, que retribuía o olhar.
— A tal reunião de hoje de manhã — falou Casey, pensando agora com clareza, achando mais sensato falar logo tudo na frente de Dunross. — Quando foi marcada?
— Há umas três semanas — disse Gornt. — Pensei que fosse sua principal executiva. Estou surpreso de ele não a ter mencionado para a senhorita.
— Linc é o nosso tai-pan, Sr. Gornt. Trabalho para ele, que não é obrigado a me contar tudo — respondeu, agora mais calma. — Ele deveria ter-me contado, Sr. Gornt? Quero dizer, era importante?
— Poderia ser. É. Confirmei, oficialmente, que podemos cobrir qualquer oferta que a Struan faça. Qualquer oferta. — Gornt voltou a olhar para o tai-pan. A voz dele ficou uma fração mais dura. — Ian, queria dizer-lhe, pessoalmente, que estamos no mesmo mercado.
— Foi por esse motivo que veio?
— Um dos motivos.
— O outro?
— Prazer.
— Há quanto tempo conhece o Sr. Bartlett?
— Uns seis meses. Por quê?
Dunross deu de ombros, depois olhou para Casey, e ela não pôde lhe notar no rosto, na voz, nem nos modos nada além de simpatia.
— Não sabia nada das negociações com a Rothwell-Gornt? Sinceramente, sacudiu a cabeça, impressionada com o habilidoso planejamento a longo prazo de Bartlett.
— Não. Existem negociações em andamento, Sr. Gornt?
— Eu diria que sim. Gornt sorriu.
— Então veremos, não é mesmo? — falou Dunross. — Veremos quem fará a melhor proposta. Obrigado por contar-me pessoalmente, embora não houvesse necessidade. Eu sabia, naturalmente, que você estaria interessado. Não há necessidade de repisar o assunto.
— Na verdade, há um bom motivo para isso — retrucou Gornt, vivamente. — Nem o Sr. Bartlett nem esta moça podem se dar conta de como a Par-Con é vital para você. Senti-me obrigado a vir pessoalmente para apontar a eles esse fato. E a você. E, naturalmente, para dar os meus parabéns.
— "Vital" por quê, Sr. Gornt? — indagou Casey, agora interessada.
— Sem a transação com a Par-Con e o fluxo de caixa que ela vai gerar, a Struan vai soçobrar. Poderia soçobrar facilmente dentro de alguns meses.
Dunross soltou uma risada, e aqueles poucos que escutavam disfarçadamente estremeceram e elevaram o nível de sua conversa um decibel, estupefatos com a idéia do fracasso da Struan, e pensando ao mesmo tempo: "Que transação? Par-Con? Devemos vender ou comprar? Ações da Struan ou da Rothwell-Gornt?"
— Não há a menor chance disso — falou Dunross. — Mas nem por sombra!
— Acho que há uma chance muito boa. — O tom de voz de Gornt mudou. — De qualquer modo, como você diz, veremos.
— É, veremos... nesse meio tempo... — Dunross se interrompeu ao ver Claudia se aproximando, constrangida.
— Desculpe, tai-pan — falou —, seu telefonema pessoal para Londres está na linha.
— Oh, obrigado. — Dunross virou-se e fez sinal para Penelope, que se aproximou imediatamente. — Penelope, quer entreter Quillan e a srta. Tcholok por um momento? Tenho que atender a um telefonema. Quillan não vai ficar para jantar, tem um compromisso urgente.
Acenou alegremente e deixou-os. Casey notou a graça animal do seu andar.
— Não vai ficar para o jantar? — dizia Penelope, com um alívio evidente que procurava disfarçar.
— Não. Lamento ter-lhe dado trabalho... chegando tão abruptamente, depois de ter recusado seu gentil convite. Infelizmente, não posso ficar.
— Ah! Então... queiram me dar licença um momento. Volto já.
— Não precisa se preocupar conosco — disse Gornt, gentilmente. — Podemos cuidar de nós mesmos. Mais uma vez, desculpe ter sido um transtorno... está com uma aparência maravilhosa, Penelope. Nunca muda.
Ela agradeceu, e ele esperou que ela se fosse. Agradecida, Penelope dirigiu-se para junto de Claudia Chen, que esperava a curta distância.
— Você é um homem curioso — falou Casey. — Num momento, guerra; no seguinte, um grande charme.
— Temos regras, nós, ingleses, na paz e na guerra. Só porque se odeia alguém, não é motivo para xingá-lo, cuspir-lhe na cara ou ser grosseiro com a sua mulher. — Gornt sorriu para ela. — Vamos procurar o seu Sr. Bartlett? Depois, preciso mesmo sair.
— Por que agiu assim? Com o tai-pan? O desafio para a batalha... aquela "vital" que mencionou. Foi um desafio formal, não? Em público.
— A vida é um jogo — disse ele. — Toda a vida é um jogo, e nós, ingleses, obedecemos a regras diferentes das de vocês, americanos. É. E a vida é para ser curtida. Ciranoush... que lindo nome o seu. Posso chamá-la assim?
— Pode — replicou ela, depois de uma pausa. — Mas, por que o desafio, agora?
— A hora era agora. Não exagerei sobre a importância de vocês para a Struan. Vamos sair em busca do seu Sr. Bartlett?
"É a terceira vez que ele diz seu Sr. Bartlett", pensou ela. "Será para sondar, ou para irritar?"
— Claro, por que não? — Virou-se na direção dos jardins, consciente dos olhares, francos ou discretos, dos outros convivas, sentindo o perigo de modo agradável. — Sempre faz entradas dramáticas como a de hoje?
Gornt achou graça.
— Não. Perdoe se fui abrupto, Ciranoush... se a perturbei.
— Está se referindo ao seu encontro particular com Linc? Não me perturbou. Foi muito astuto da parte de Linc se acercar da oposição sem que eu soubesse. Isso me deu uma liberdade de ação que, de outro modo, eu não teria tido hoje de manhã.
— Ah, então não está irritada porque ele não confiou em você, nesse caso?
— Não tem nada a ver com confiança. Eu, com freqüência, oculto informações de Linc, até a hora adequada, para protegê-lo. É óbvio que ele estava fazendo o mesmo por mim. Linc e eu nos entendemos. Pelo menos, acho que o entendo.
— Então, diga-me como concluir uma transação.
— Primeiro, preciso saber o que você quer. Além da cabeça de Dunross.
— Não quero a cabeça dele, a sua morte, nada disso... só uma breve transferência da sua Casa Nobre. Tão logo a Struan seja destruída, nós nos tornaremos a Casa Nobre. — O rosto dele ficou duro. — Então, todos os fantasmas poderão descansar.
— Fale-me deles.
— A hora não é apropriada, Ciranoush, não mesmo. Ouvidos hostis em demasia. É algo só para os seus ouvidos.
Estavam agora no jardim, tocado por uma brisa suave, encimado por um lindo céu estrelado. Linc Bartlett não estava nesse terraço, portanto desceram os largos degraus de pedra em direção ao terraço inferior, passando por entre outros convivas, dirigindo-se para as trilhas que cortavam o relvado. Então, foram interceptados.
— Alô, Quillan, que surpresa agradável.
— Alô, Paul. Srta. Tcholok, deixe-me apresentá-la a Paul Havergill, atualmente diretor do Victoria Bank.
— Temo que seja uma posição temporária, srta. Tcholok, e somente porque nosso gerente-geral está licenciado por motivo de saúde. Vou me aposentar daqui a alguns meses.
— O que muito lamentamos — falou Gornt. Depois, apresentou Casey ao resto do grupo: Lady Joanna Temple-Smith, uma mulher alta, de rosto esticado, na casa dos cinqüenta, e Richard Kwang e a mulher, Mai-ling. — Richard Kwang é o presidente da junta diretora do Ho-Pak, um dos nossos melhores bancos chineses.
— No ramo bancário, somos todos competidores cordiais, srta.... senhorita, com exceção, naturalmente, do Blacs — disse Havergill.
— Como? — indagou Casey.
— Blacs? Ah, é o apelido do Banco de Londres, Cantão e Xangai. Podem ser maiores do que nós, cerca de um mês mais antigos, mas somos o melhor banco daqui, srta....
— O Blacs é o meu banco — disse Gornt para Casey. — Servem-me muito bem. São banqueiros de primeira classe.
— Segunda classe, Quillan. Gornt voltou-se para Casey.
— Temos um ditado aqui que diz que o Blacs é constituído de cavalheiros tentando ser banqueiros, e o Victoria, de banqueiros tentando ser cavalheiros.
Casey riu. Os outros sorriram educadamente.
— São todos apenas competidores amistosos, Sr. Kwang? — perguntou.
— Oh, sim. Não ousaríamos nos opor ao Blacs ou ao Victoria — disse Richard Kwang, afavelmente. Era baixo, atarracado, de meia-idade, com cabelos pretos salpicados de fios grisalhos, e um sorriso fácil, falando um inglês perfeito. — Ouvi dizer que a Par-Con vai investir em Hong Kong, srta. Tchelek.
— Estamos apenas estudando o assunto, Sr. Kwang. Não há nada decidido, ainda.
Ignorou a pronúncia errada do seu nome. Gornt baixou o tom de voz.
— Cá entre nós, já disse formalmente ao Sr. Bartlett e à srta. Tcholok que cobrirei qualquer oferta que a Struan possa fazer. O Blacs me dá apoio de cem por cento. E tenho amigos banqueiros em outros lugares. Estou torcendo para que a Par-Con considere todas as possibilidades antes de assumir qualquer compromisso.
— Imagino que isso seria muito sensato — falou Havergill. — Naturalmente, a Struan está correndo por dentro.
— O Blacs e a maioria de Hong Kong não concordariam com você — disse Gornt.
— Espero que não chegue a haver um choque, Quillan — disse Havergill. — A Struan é nosso principal cliente.
Richard Kwang falou.
— De qualquer forma, srta. Tchelek, seria muito bom ter uma grande companhia como a Par-Con aqui. Bom para vocês, bom para nós. Esperamos que seja encontrado um acordo que agrade à Par-Con. Se o Sr. Bartlett precisar de qualquer assistência...
O banqueiro ofereceu o seu cartão comercial. Ela o pegou, abriu a sua bolsa de seda e ofereceu o seu com igual presteza, tendo vindo preparada para a troca de cartões imediata que é de bom-tom e obrigatória na Ásia. O banqueiro chinês olhou para o cartão, depois seus olhos se estreitaram.
— Desculpe ainda não tê-lo traduzido para caracteres chineses — disse ela. — Nossos banqueiros nos Estados Unidos são o First Central New York Bank e o Califórnia Merchant Bank and Trust Company. — Casey citou-os orgulhosamente, certa de que o ativo combinado desses gigantes bancários superava seis bilhões. — Terei pr... — Interrompeu-se, espantada com a súbita frieza que a cercava. — Algo errado?
— Sim e não — disse Gornt, após um momento. — É só que o First Central New York Bank não é nada popular por aqui.
— Por quê?
Havergill explicou, desdenhosamente:
— Mostraram-se desprezíveis, srta.... senhorita. O First Central New York fez alguns negócios aqui antes da guerra, depois se expandiu, em meados dos anos 40, enquanto nós, do Victoria e de outras instituições britânicas, ainda estávamos nos erguendo do chão. Em 49, quando o presidente Mao jogou Chang Kai-chek para fora do continente, para Formosa, as tropas de Mao estavam em massa na nossa fronteira, a poucos quilômetros para o norte, nos Novos Territórios. A invasão e destruição da colônia pelas hordas estavam por um fio. Um bocado de gente se apavorou e arrepiou carreira. Nenhum de nós, é claro. Mas todos os chineses que puderam saíram. Sem nenhum aviso, o First Central New York rescindiu todos os seus empréstimos, pagou a seus depositantes, cerrou suas portas e fugiu... tudo no espaço de uma semana.
— Eu não sabia — disse Casey, consternada.
— Foram um bando de covardes sujos, minha cara, se me desculpa a expressão — falou Lady Joanna, com desprezo evidente. — Claro que foi o único banco que se mandou... que fugiu. Mas, afinal, eram... bem, o que se podia esperar, minha cara?
— Provavelmente que se comportassem melhor, Lady Joanna — disse Casey, furiosa com o vice-presidente encarregado da sua conta, por não os ter advertido. — Talvez haja atenuantes, Sr. Havergill. Os empréstimos eram substanciais?
— Infelizmente sim, e muito, naquela época. É. Aquele banco arruinou muita gente e muitas empresas importadoras. Causou muita dor e desprestígio. Apesar disso — continuou, com um sorriso —, todos nos beneficiamos com a partida dele. Há uns dois anos, tiveram a desfaçatez de pedir ao secretário de Finanças uma nova licença para operar!
Richard Kwang acrescentou, jovialmente:
— Essa é uma licença que jamais será renovada! Sabe, srta. Tchelek, todos os bancos estrangeiros operam com uma licença renovável anualmente. Podemos passar muito bem sem eles, ou outro banco americano qualquer, diga-se de passagem. São tão... bem, verá que o Victoria, o Blacs ou o Ho-Pak, quem sabe os três, srta. K. C, atenderão perfeitamente a todas as necessidades da Par-Con. Se a senhorita e o Sr. Bartlett quiserem ter uma conversinha...
— Terei prazer em conversar com o senhor, Sr. Kwang. Digamos, amanhã? Inicialmente, sou eu que trato da maioria das nossas necessidades bancárias. Quem sabe pela manhã?
— Mas claro. Verá que somos competitivos — falou Richard Kwang, sem vacilar. — Às dez?
— Ótimo. Estamos no Victoria, em Kowloon. Se dez horas não lhe convier, basta me avisar — falou. — Gostei de conhecê-lo pessoalmente, também, Sr. Havergill. Suponho que nosso compromisso para amanhã ainda esteja de pé.
— Naturalmente. Às quatro, não é? Espero ansioso a oportunidade de conversar com calma com o Sr. Bartlett... e com você também, é claro, minha cara.
Era um homem alto e esbelto, e ela notou que seus olhos haviam estado fitos no decote dela. Pôs de lado a antipatia imediata que sentiu. "Posso precisar dele", pensou, "e do seu banco."
— Obrigada — falou, com a dose exata de deferência, e passou a agradar Lady Joanna. — Mas que lindo vestido, Lady Joanna — falou, detestando-o, e ao fio de pequenas pérolas que rodeava o pescoço esquálido da mulher.
— Oh, obrigada, querida. O seu também é de Paris?
— Indiretamente. É um Balmain, mas foi comprado em Nova York. — Sorriu para a mulher de Richard Kwang, uma senhora cantonense baixa, sólida e bem-conservada, com o penteado rebuscado, pele muito pálida e olhos apertados. Usava um imenso pingente de jade imperial e um anel de brilhantes de sete quilates. — Pra2er em conhecê-la, sra. Kwang — disse, atônita com a fortuna que aquelas jóias representavam. — Estávamos procurando Linc Bartlett. Vocês o viram?
— Faz algum tempo que não o vemos — adiantou Haver-gill. — Acho que foi para a ala leste. Acredito que há um bar por lá. Estava com Adryon... filha de Dunross.
— Adryon virou uma mocinha tão linda! — falou Lady Joanna. — Fazem um casal muito bonito. Um homem encantador, o Sr. Bartlett. Não é casado, é, querida?
— Não — disse Casey, de modo igualmente agradável, acrescentando Lady Joanna Temple-Smith à sua lista particular de pessoas detestáveis. — Linc não é casado.
— Vai ser encaçapado muito em breve, escute o que eu digo. Acredito que Adryon está verdadeiramente fascinada. Quem sabe gostaria de vir tomar chá comigo na quinta-feira, minha cara? Gostaria muito que conhecesse algumas das moças. Quinta é o dia do nosso Clube das Maiores de Trinta.
— Obrigada — Casey falou. — Não me enquadro na categoria, mas adoraria ir assim mesmo.
— Ah, desculpe, querida! Imaginei que... mandarei um carro ir buscá-la. Quillan, vai ficar para o jantar?
— Não posso. Tenho um compromisso urgente.
— Que pena.
Lady Joanna sorriu, deixando à mostra os dentes estragados.
— Se nos derem licença... preciso achar Bartlett, depois vou embora. Até sábado.
Gornt segurou Casey pelo braço, e foi se afastando. Eles ficaram olhando enquanto os dois se distanciavam.
— Ela é bem atraente, de uma maneira vulgar, não é? — comentou Lady Joanna. — Chuluk. É da Europa central, não é?
— Possivelmente. Podia ser do centro-leste, Joanna, turca, ou coisa assim, possivelmente dos Bálcãs... — Havergill se deteve. — Ah, estou entendendo. Não, não acho. Ela certamente não tem cara de judia.
— Hoje em dia nunca se pode saber ao certo, não é? Podia ter feito plástica no nariz... hoje em dia fazem-se maravilhas, não é?
— Nunca me ocorreu prestar atenção. Hum! Acha mesmo?
Richard Kwang passou o cartão de Casey para a mulher, que o leu instantaneamente, e entendeu, instantaneamente.
— Paul, o cartão dela diz: "tesoureira e vice-presidente-executiva da companhia holding"... muito impressionante, não? A Par-Con é uma grande companhia.
— Ora, meu caro, mas eles são americanos. Fazem coisas extraordinárias por lá. Claro que é só um título... nada mais.
— Dando cartaz para a amante? — indagou Joanna.
21h
O taco de bilhar acertou na bola branca, ela voou pela mesa verde, enfiou a vermelha numa caçapa oposta e parou perfeitamente atrás da outra vermelha.
Adryon bateu palmas, alegremente.
— Oba, Linc, que legal! Pensei que você só estava contando vantagem. Faça de novo!
Linc Bartlett abriu um sorriso.
— Por um dólar, a vermelha correndo a mesa e entrando naquela caçapa, e a branca aqui.
Marcou o local com a ponta do giz.
— Fechado!
Ele se debruçou sobre a mesa, mirou, e a branca parou a um milímetro da marca, a vermelha encaçapada com inevitabilidade maravilhosa.
— Ayeeyah! Não tenho um dólar aqui. Droga! Posso ficar devendo?
— Uma dama... não importa o quanto seja bela... tem que pagar suas dívidas de jogo imediatamente.
— Eu sei. É o que papai sempre diz. Posso lhe pagar amanhã?
Ele a observava, curtindo-a, satisfeito porque sua perícia a encantara. Ela usava uma saia preta na altura dos joelhos, e uma linda blusa de seda. Tinha as pernas longas, muito longas e perfeitas.
— Nada disso!
Fingiu mau humor, e então riram juntos na sala imensa, as luzes fortes e baixas encimando a mesa de bilhar grande, o resto da sala escuro e íntimo, exceto pela réstia de luz que vinha pela porta aberta.
— Você joga incrivelmente bem — disse ela.
— Não conte a ninguém, mas ganhei a vida no exército jogando sinuca.
— Na Europa?
— Não. No Pacífico.
— Meu pai era piloto de caça. Derrubou seis aviões antes de ser abatido e proibido de voar.
— Acho que isso o tornou um ás, não é?
— Você tomou parte naqueles terríveis desembarques contra os japoneses?
— Não. Eu fazia parte das equipes de construção. Vínhamos quando tudo já havia sido tomado.
— Ah!
— Construímos bases, pistas de pouso em Guadalcanal, e nas ilhas por todo o Pacífico. A minha guerra foi fácil... não foi parecida com a do seu pai. — Enquanto ia guardar o taco, lamentou pela primeira vez não ter pertencido aos Fuzileiros Navais. A expressão do rosto dela quando ele falou em construção fê-lo sentir-se emasculado. — Devíamos ir procurar o seu namorado. Quem sabe já chegou.
— Ah, ele não é importante! Não é um namorado de verdade, conheci-o há cerca de uma semana, na festa de uma amiga. Martin é jornalista, trabalha no China Guardian. Não é um amante.
— Todas as jovens inglesas falam tão abertamente sobre seus amantes?
— É a pílula. Libertou-nos para sempre da servidão masculina. Agora, somos iguais.
— São?
— Eu sou.
— Então tem sorte.
— É, eu sei que tenho muita sorte. — Ficou olhando para ele. — Que idade tem, Linc?
— Bastante.
Enfiou o taco no porta-tacos. Era a primeira vez na vida que não quisera dizer a sua idade. "Merda", pensou, curiosamente perturbado. "Qual é o problema?
"Nenhum. Não há problema. Há?"
— Tenho dezenove anos — dizia ela.
— Quando faz anos?
— No dia 27 de outubro, sou Escorpião. E você?
— Em 1.° de outubro.
— Mentira! Diga a verdade.
— Juro, de pés juntos. Ela bateu palmas de alegria.
— Oh, que maravilha! Papai faz anos no dia 10. Que maravilha... é um bom sinal!
— Por quê?
— Vai ver.
Toda contente, abriu a bolsa e achou um maço de cigarros amassado e um isqueiro de ouro gasto. Ele tirou o isqueiro das mãos dela e acionou-o, mas ele não acendeu. Uma segunda e uma terceira vez, e nada.
— Droga de isqueiro — falou ela. — Essa droga nunca funciona direito, mas foi papai quem me deu. Eu o adoro. É claro que já o deixei cair umas duas vezes.
Ele ficou olhando para o isqueiro, soprou o pavio, e ficou brincando com ele por um momento.
— De qualquer modo, você não devia fumar.
— É o que papai sempre diz.
— Ele tem razão.
— É. Mas gosto de fumar, por enquanto. Quantos anos tem, Linc?
— Quarenta.
— Oh! — Ele notou a surpresa. — Então tem a mesma idade que papai! Bem, quase. Ele tem quarenta e um.
— São, ambas, excelentes idades — Linc falou, secamente, pensando: "Seja lá de que modo você o encare, Adryon, tenho realmente idade para ser seu pai".
Ela franziu a testa de novo.
— É gozado, vocês não parecem nem um pouco ter a mesma idade. — A seguir, acrescentou, aos borbotões: — Daqui a dois anos, terei vinte e um anos, praticamente dobrando o cabo da Boa Esperança, nem posso me imaginar tendo vinte e cinco anos, que dirá trinta, e quanto a quarenta... Deus, acho que prefiro estar embaixo da terra.
— Vinte e um anos é idade... sim, senhora, idade pra burro. — Pensou: "Faz muito tempo que você não passa o seu tempo na companhia de uma garota tão jovem. Cuidado. Essa aí é dinamite". Acionou o isqueiro, e ele acendeu. — Ora, vejam só!
— Obrigada — disse ela, acendendo o cigarro na chama. — Você não fuma? — perguntou.
— Não, agora não. Antes eu fumava, mas Casey me mandava panfletos ilustrados sobre o câncer e o fumo de hora em hora, até que eu saquei o perigo. Não me grilou nem um pouco parar... uma vez que tomei a decisão. Realmente, houve uma melhora dos diabos no meu golfe e no tênis e... — sorriu — e em todas as formas de esporte.
— Casey é espetacular. É mesmo a sua vice-presidente-executiva?
— É.
— Ela vai... vai ser muito difícil para ela, aqui. Os homens não vão gostar nada de ter que lidar com ela.
— Nos Estados Unidos é igual. Mas estão se acostumando. Criamos a Par-Con em seis anos. Casey sabe trabalhar como ninguém. É uma vencedora.
— Ela é sua amante?
Ele tomou um gole da sua cerveja.
— Todas as jovens inglesas são assim tão diretas?
— Não. — Ela riu. — É que eu estava curiosa. Todo mundo diz... todo mundo supõe que seja.
— Não diga!
— Digo. Vocês são o prato da sociedade de Hong Kong, e esta noite vai coroar a coisa. Os dois fizeram uma entrada espetacular, com o seu jato particular, as armas contrabandeadas, e Casey a última européia a ver John Chen, segundo os jornais. Gostei da sua entrevista.
— É, aqueles filh... aqueles sujeitos da imprensa estavam à minha espera na soleira da porta, hoje à tarde. Tentei ser breve e brusco.
— A Par-Con vale mesmo meio bilhão de dólares?
— Não. Vale uns trezentos milhões... mas logo será uma companhia de um bilhão de dólares. É, agora, logo será.
Notou que ela o olhava com aqueles olhos francos, cinza-esverdeados, tão adultos, e no entanto tão jovens.
— É um homem muito interessante, Sr. Linc Bartlett. Gosto de conversar com você. Gosto de você, também. Não gostei, de início. Fiz o maior escândalo quando papai disse que eu tinha de lhe fazer companhia, acompanhá-lo e apresentá-lo aos outros, durante algum tempo. Não fiz um trabalho muito bom, não é mesmo?
— Foi legal.
— Ora, corta essa. — Ela também deu um amplo sorriso. — Monopolizei-o totalmente.
— Não é verdade, conheci Christian Toxe, o editor, Richard Kwang e aqueles dois americanos do consulado. Lannan, não é?
— Langan, Edward Langan. É simpático. Não guardei o nome do outro... na verdade, não os conheço, têm apenas vindo às corridas conosco. Christian é simpático, e a mulher dele é muito legal. Ela é chinesa, por isso não está aqui, hoje.
Bartlett fechou o cenho.
— Porque é chinesa?
— Ah, foi convidada, mas não veio. É uma questão de prestígio, para não desprestigiar o marido. A "gente fina" não aprova casamentos entre raças diferentes.
— Casamentos com os nativos?
— Mais ou menos isso. — Ela deu de ombros. — Você vai ver. É melhor eu apresentá-lo a mais pessoas, senão vou levar a maior bronca.
— Que tal ao banqueiro Havergill? Como é ele?
— Papai acha que ele é um bobalhão.
— Então, por Deus, ele é um bobalhão de vinte e dois quilates, de agora em diante.
— Ótimo — falou ela, e os dois riram juntos.
— Linc?
Viraram-se para olhar para as duas figuras recortadas na réstia de luz que entrava pela porta. Reconheceu o contorno e a voz de Casey imediatamente, mas não o homem. Não era possível, de onde estavam, ver contra a luz.
— Oi, Casey! Como vão indo as coisas?
Ele pegou o braço de Adryon com naturalidade, e foi levando-a na direção da silhueta.
— Estive ensinando a Adryon alguns macetes da sinuca. Adryon riu.
— Mas que excesso de modéstia! Ele joga espetacularmente, não é, Casey?
— É, sim. Oh, Linc, Quillan Gornt queria se despedir antes de ir embora.
Abruptamente, Adryon parou onde estava, e seu rosto ficou branco. Linc parou, espantado.
— O que foi? — perguntou.
— Boa noite, Sr. Bartlett — falou Gornt, dirigindo-se para junto deles, perto da luz. — Alô, Adryon.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ela, com voz fina.
— Vim só por alguns minutos — replicou Gornt.
— Já viu papai?
— Já.
— Então, saia. Saia e deixe esta casa em paz.
Adryon voltou a falar na mesma vozinha fina. Bartlett a fitava.
— Mas que diabo está acontecendo?
Gornt disse, calmamente:
— É uma longa história. Pode esperar até amanhã... ou até a semana que vem. Só queria confirmar o nosso jantar na terça-feira... e se estiverem livres no fim de semana, quem sabe gostariam de passar o dia no meu barco. No domingo, se o tempo estiver bom.
— Obrigado, acho que sim, mas podemos confirmar amanhã? — indagou Bartlett, ainda intrigado com o comportamento de Adryon.
— Adryon — disse Gornt, suavemente —, Annagrey vai embora na semana que vem, e pediu-me que lhe dissesse para telefonar para ela. — Adryon não respondeu, apenas o fitava, e Gornt acrescentou, para os outros dois: — Annagrey é minha filha. Elas são boas amigas... freqüentaram as mesmas escolas quase a vida toda. Ela vai para a universidade, na Califórnia.
— Ah, então se houver alguma coisa que possamos fazer por ela... — disse Casey.
— Muita gentileza sua. Vocês a conhecerão na terça-feira. Quem sabe então possamos conversar a resoeito. Vou dar-lhes b...
A porta do outro extremo da sala de bilhar se abriu e Dunross apareceu.
Gornt sorriu e voltou sua atenção para os outros.
— Boa noite, Sr. Bartlett... Ciranoush. Até terça, para os dois. Boa noite, Adryon. — Fez uma leve curvatura para eles e atravessou toda a sala, depois parou. — Boa noite, Ian — falou, cortesmente. — Obrigado pela sua hospitalidade.
— Boa noite — respondeu Dunross, igualmente cortês, e se afastou, com um leve sorriso retorcendo-lhe os lábios.
Ficou vendo Gornt sair pela porta da frente, depois voltou a atenção para a sala de bilhar.
— Está quase na hora do jantar — falou, a voz calma. E cálida. — Devem estar mortos de fome. Eu estou.
— O que... o que ele queria? — perguntou Adryon, com voz trêmula.
Dunross acercou-se dela com um sorriso, acalmando-a.
— Nada. Nada de importante, benzinho. Quillan está amolecendo, com a idade.
— Tem certeza?
— Claro. — Envolveu-a com um dos braços, dando-lhe um apertão carinhoso. — Não precisa preocupar essa linda cabecinha.
— Ele já foi?
— Já.
Bartlett começou a abrir a boca, mas parou instantaneamente, ao perceber o olhar de Dunross, por cima da cabeça de Adryon.
— Pronto, está tudo bem, minha querida — dizia Dunross, dando-lhe outro abracinho, e Bartlett viu Adryon envolver-se naquele calor, e acalmar-se. — Não há com que se preocupar.
— Linc estava me mostrando como jogava sinuca e então... Foi tão repentino. Era como se ele fosse um fantasma.
— Eu também fiquei completamente atônito quando ele apareceu, como a Fada Má. — Dunross riu, depois acrescentou para Casey e Bartlett: — Quillan é muito teatral. — Depois, só para Bartlett: — Vamos conversar sobre isso depois do jantar, você e eu.
— Claro — disse Bartlett, notando que os olhos do outro não sorriam.
Soou o gongo anunciando o jantar.
— Ah, graças a Deus! — exclamou Dunross. — Venham todos, é a comida, finalmente. Casey, você está à minha mesa.
Ele manteve o braço carinhoso ao redor de Adryon, e levou-a para a luz.
Casey e Bartlett os acompanharam.
Gornt sentou-se ao volante do Silver Cloud Rolls preto que estacionara bem diante da Casa Grande. A noite estava agradável, embora a umidade houvesse aumentado outra vez. Estava muito satisfeito consigo mesmo. "E agora, jantar e Jason Plumm", pensou. "Logo que aquele sacana se comprometer, Ian Dunross pode se considerar acabado, e serei o dono desta casa e da Struan e da tralha toda!"
Não podia ter sido melhor: primeiro, Casey e Ian quase simultaneamente, e tudo exposto às claras diante deles. Depois, Havergill e Richard Kwang juntos. Depois Bartlett, no salão de bilhar, e depois Ian em pessoa, de novo. Perfeito!
"Agora, Ian vai pagar para ver, e Bartlett também, e Casey, Havergill, Richard Kwang, e o Plumm. Ah! Se eles soubessem!
"Tudo está perfeito. Exceto por Adryon. Tenho pena dela, é uma pena que os filhos tenham que herdar as rixas dos pais. Mas, é a vida, é o destino. Uma pena que não queira se mandar de Hong Kong, como Annagrey... pelo menos até que Ian Dunross e eu tenhamos acertado nossas contas definitivamente. Seria melhor que ela não estivesse aqui para vê-lo destroçado... nem Penelope. Azar delas se estiverem aqui, sorte se não estiverem. Quero que ele esteja aqui quando eu tomar posse do seu reservado nas corridas, do lugar permanente em todas as juntas diretoras, todas as sinecuras, na legislatura... ah, sim. Logo será tudo meu. Junto com a inveja da Ásia inteira."
Soltou uma risada. "É. E já não era sem tempo. Então, todos os fantasmas poderão descansar. Danem-se todos os fantasmas!"
Girou a chave na ignição e ligou o motor, curtindo o luxo do couro verdadeiro e da bela madeira, o cheiro forte e exclusivo. Depois, engrenou a primeira e foi descendo, passando pelo estacionamento onde estavam todos os outros carros, até chegar aos imensos portões principais de ferro batido, com as armas da Struan entrelaçadas. Parou para poder entrar no fluxo do tráfego, e enxergou a Casa Grande pelo espelho retrovisor. Alta, imponente, as janelas iluminadas, dando as boas-vindas.
"Logo serei realmente seu dono", pensou. "Darei festas aqui como a Ásia jamais viu, e jamais verá. Suponho que precisarei de uma anfitriã.
"Que tal a moça americana?"
Deu uma risadinha abafada.
— Ah, Ciranoush, que lindo nome! — falou em voz alta, com a mesma dose perfeita de charme másculo que usara anteriormente. "Essa vai cair feito um patinho", disse a si mesmo, Confiantemente. "Basta usar o charme do Velho Mundo e ótimos vinhos, comida leve mas excelente, e paciência... juntamente com o máximo da sofisticação masculina da classe alta inglesa, nada de palavrões, e ela cairá onde e quando você quiser. E depois, se escolher o momento correto, pode usar um palavreado de sarjeta e um pouco de brutalidade controlada, e porá a nu as paixões recolhidas dela como nenhum homem jamais o fez.
"Se saquei corretamente, ela está muito precisada de uma boa trepada. Portanto, ou Bartlett não está à altura, ou eles não são realmente amantes, como sugeriu o relatório confidencial. Interessante.
"Mas, você a quer? Como brinquedo... talvez. Como instrumento... é claro. Como anfitriã, não, entrona demais."
Agora o caminho estava livre, portanto ele saiu com o carro e foi até o cruzamento e virou à esquerda, e logo estava descendo a Peak Road, na direção da Magazine Gap, onde ficava o apartamento de cobertura de Plumm. Depois de jantar com ele, ia a um encontro, depois para Wanchai, para um dos seus apartamentos particulares, e o abraço quente de Mona Leung. Seu pulso se acelerou ao pensar no modo violento como ela fazia amor, com o seu ódio maldisfarçado por ele e todos os quai loh em permanente conflito com seu gosto pelo luxo, o apartamento que ele lhe emprestava e a quantia modesta que lhe dava mensalmente.
— Nunca lhes dê dinheiro suficiente — dissera-lhe seu pai, William, há muito tempo. — Roupas, jóias, férias... tudo bem. Mas nada de dinheiro demais. Controle-as com os dólares. E nunca pense que o amam por você mesmo. Não amam. É só o seu dinheiro, só dinheiro, e sempre o será. Pouco abaixo da superfície elas o desprezarão sempre. Isso é justo, se pararmos para pensar... não somos chineses, e nunca seremos.
— Não há exceções?
— Acho que não. Não para um quai loh, meu filho. Acho que não. Nunca aconteceu comigo, e olhe que conheci algumas. Oh, ela lhe dará o corpo, os filhos, até a vida, mas sempre o desprezará. Tem que ser assim, ela é chinesa e somos quai loh!
"Ayeeyah", pensou Gornt. "Seu conselho provou-se verdadeiro, vezes sem conta. E me poupou muita angústia. Vai ser bom ver o Velho", pensou. "Este ano lhe darei um belo presente de Natal: a Struan."
Guiava com cuidado pelo lado esquerdo da estrada sinuosa, grudada à montanha, a noite gostosa, a superfície lisa e o tráfego leve. Normalmente, quem estaria guiando seria o motorista, mas naquela noite não queria testemunhas do seu encontro com Plumm.
"Não", pensou. "Nem testemunhas quando for me encontrar com Wu Quatro Dedos. Que diabo aquele pirata está querendo? Nada de bom. Com certeza é coisa perigosa. É. Mas durante a Guerra da Coréia Wu me fez um enorme favor, e talvez agora esteja querendo que seja pago. Sempre há um acerto de contas, mais cedo ou mais tarde. É justo, e é a lei chinesa. Ganha-se um presente, dá-se outro um pouquinho mais valioso. Alguém lhe faz um favor..."
Em 1950, quando os exércitos comunistas chineses estavam abrindo um caminho sangrento para o sul, vindos de Yalu, com perdas monstruosas, tinham uma falta desesperada de todos os suprimentos estratégicos, e estavam dispostos a pagar muitíssimo bem àqueles que conseguissem furar o bloqueio com os suprimentos de que necessitavam. Naquela época, a Rothwell-Gornt também estava em dificuldades, por causa das suas perdas imensas em Xangai, no ano anterior, devido à conquista de Mao. Assim, em dezembro de 1950, ele e o pai haviam feito pesados empréstimos e comprado secretamente um enorme carregamento de penicilina, morfina, sulfa e outros suprimentos médicos nas Filipinas, evitando a licença de exportação obrigatória. Haviam ocultado o carregamento num junco marítimo alugado, com uma das suas tripulações de confiança, e o tinham enviado para Wampoa, uma ilha desolada no rio Pearl, perto de Cantão. O pagamento seria em ouro, contra a entrega, mas, a meio caminho, nos remansos secretos do estuário do rio Pearl, o junco deles fora interceptado por piratas fluviais favoráveis aos nacionalistas de Chang Kai-chek, que exigiram um resgate. Não tinham dinheiro para resgatar o carregamento, e se os nacionalistas descobrissem que a Rothwell-Gornt estava negociando com o odiado inimigo comunista, o futuro da companhia na Ásia estaria perdido para sempre.
Através do seu representante nativo, Gornt arranjara um encontro no porto de Aberdeen com Wu Quatro Dedos, supostamente um dos maiores contrabandistas do estuário do rio Pearl.
— Onde navio agora? — indagara Wu Quatro Dedos, no seu execrável inglês arrevesado, com sotaque chinês.
Gornt lhe respondera do melhor modo possível, expressando-se no mesmo inglês, já que não sabia falar haklo, o dialeto de Wu.
— Talvez, talvez não! — sorrira Wu Quatro Dedos. — Ligo três dias. Senha nee choh wah. Três dias, heya?
No terceiro dia, ele telefonara.
— Ruim, bom, não sei. Encontro dois dias Aberdeen. Começo Hora do Macaco.
A referida hora era às dez da noite. Os chineses dividiam o dia em doze segmentos de duas horas, cada um com um nome, sempre na mesma seqüência, começando às quatro da madrugada com o Galo, depois às seis da manhã com o Cão, e daí por diante: Javali, Rato, Boi, Tigre, Coelho, Dragão, Cobra, Macaco, Cavalo e Carneiro.
No Hora do Macaco, no junco de Wu, em Aberdeen, daí a dois dias, ele recebera o pagamento integral pelo seu carregamento em ouro, mais quarenta por cento extra. Um lucro fabuloso de quinhentos por cento.
Wu Quatro Dedos sorrira amplamente.
— Faço melhor negócio do que quai loh, tudo bem, vinte oito mil taéis de ouro. — Um tael pesava um pouco mais do que uma onça. — Próxima vez mim transporta. Sim?
— Sim.
— Você compra, mim transporta, mim vende, quarenta por cento meu, preço de venda.
— Sim.
Gornt, agradecido, tentara dar-lhe uma percentagem muito maior, daquela vez, mas Wu a recusara.
— Quarenta por cento só, preço de venda.
Mas Gornt compreendera que agora devia o favor ao contrabandista.
O ouro estava em barras de contrabando de cinco taéis. À taxa oficial, era avaliado em trinta e cinco dólares americanos a onça. Mas, no câmbio negro, contrabandeado para a Indonésia, a índia, ou de volta para a China, valia duas ou três vezes essa quantia... às vezes, mais. Nesse único carregamento, de novo com a ajuda de Wu, a Rothwell-Gornt ganhara um milhão e meio de dólares americanos, e estava a caminho da recuperação.
Depois disso, houvera mais três carregamentos, imensamente lucrativos para os dois lados. Depois, a guerra acabara, e o relacionamento deles também.
"Nem uma só palavra desde então", pensou Gornt. "Até o telefonema de hoje à tarde."
— Ah, velho amigo, pode encontrar? Hoje? — perguntara Wu Quatro Dedos. — Pode ser? Qualquer hora... eu espero. Mesmo lugar antigamente. Sim?
Bem, tinha chegado a hora de retribuir o favor.
Gornt ligou o rádio. Chopin. Guiava automaticamente pela estrada sinuosa, concentrado nos encontros que teria a seguir, o motor do carro quase silencioso. Diminuiu a marcha por causa de um caminhão em sentido contrário, depois girou o volante e acelerou na reta curta para ultrapassar um táxi vagaroso. Agora em velocidade bem alta, freou bruscamente a uma distância segura da curva cega, depois algo pareceu se romper nas entranhas do motor, seu pé afundou o quanto pôde no freio; seu estômago deu uma cambalhota, e ele entrou na curva muito fechada ligeiro demais.
Em pânico, enfiou o pé no freio até o fundo de novo, e de novo, mas nada acontecia, e ele girava o volante com as mãos. Entrou mal na primeira curva, serpenteando como se estivesse bêbado, ao ver que saíra dela no lado oposto da estrada. Felizmente, não vinha nada na sua direção, e ele corrigiu a posição do carro, com exagero, indo quase para cima da montanha, o estômago revirado de náusea. Corrigiu a posição de novo, em alta velocidade, e a curva seguinte surgiu à sua frente. Aqui a inclinação era maior, a estrada mais estreita e sinuosa. Novamente, fez a curva mal, mas depois dela teve uma fração de segundo para puxar o freio de mão, e isso diminuiu só um pouco a velocidade. Uma nova curva estava à sua frente, e ele saiu dela completamente fora da sua mão, com os faróis do carro na direção contrária a cegarem-no.
O táxi deslizou apavorado para o acostamento, e quase rolou lá para baixo, a buzina à toda, mas passou por ele a alguns centímetros de distância, enquanto ele jogava o carro, desesperado, para o lado certo, e depois descia o morro, completamente descontrolado. Um momento de estrada reta, e ele conseguiu engrenar uma primeira, enquanto enfrentava nova curva cega, com o motor agora uivando. Se não fosse pelo cinto de segurança, a súbita diminuição de velocidade o teria arremessado pelo pára-brisa, com as mãos quase grudadas ao volante.
Conseguiu passar pela nova curva, mas fê-la muito aberta, novamente, e não atingiu por um milímetro o carro que vinha em sua direção; deslizou de novo para o seu lado da estrada, manobrou para corrigir a posição, agora um pouco mais devagar, mas não havia alívio na inclinação ou na sinuosidade da estrada à sua frente. Ainda ia depressa demais na nova curva fechadíssima, e, ao sair da primeira parte da curva, já se encontrava totalmente na pista contrária. O caminhão supercarregado que subia o morro não podia fazer nada.
Desesperado, girou violentamente o volante para a esquerda e conseguiu passar pelo caminhão com apenas um raspão. Tentou engrenar uma ré, mas ela não obedeceu, as engrenagens guinchando em protesto. Então, apavorado, viu o tráfego vagaroso adiante, na sua faixa, tráfego vindo em sua direção na faixa oposta, e a estrada sumir por detrás da curva seguinte. Estava tão perdido que virou à esquerda, para cima da montanha, tentando ricochetear e parar, daquela maneira.
Houve um uivo do metal que protestava, a janela lateral de trás se estilhaçou, e ele ricocheteou. O carro que se aproximava jogou-se para o acostamento, o motorista deitado na buzina. Ele fechou os olhos e preparou-se para a colisão de frente, mas, não sabia como, ela não aconteceu, e ele tinha passado, e teve apenas força suficiente para girar violentamente o volante de novo e bater na encosta do morro, de raspão. O pára-lama esquerdo dianteiro foi arrancado. O carro entrou vegetação e terra adentro, depois bateu com força numa formação rochosa, empinou e lançou Gornt para o lado. Mas quando o carro ia voltar a tocar o chão, a roda mais próxima entrou na calha de chuva e engatou ali e, pouco antes de entrar de cara no Mini paralisado à sua frente, parou completamente.
Gornt levantou-se debilmente. O carro ainda estava semi-aprumado. O suor escorria do seu corpo e o coração lhe batia descompassadamente. Mal conseguia respirar ou pensar. O tráfego nas duas faixas estava parado, congestionado. Ouviu buzinas tocando impacientemente, acima e abaixo, depois passos apressados.
— Está bem, meu velho? — perguntou o estranho.
— É, acho que estou. Fiquei, fiquei sem freios. — Gornt enxugou o suor da testa, tentando fazer o cérebro funcionar. Tateou o peito, depois mexeu os pés, e não sentiu dor. — Eu... fiquei sem freios... ia fazer uma curva... e depois tudo...
— Freios, hem? Isso não é coisa de Rolls. Pensei que você estava fingindo ser o Stirling Moss. Teve muita sorte.
Pensei umas vinte vezes que tinha chegado o seu fim. Se fosse você, desligaria o motor.
— Hem?
Foi então que Gomt percebeu que o motor ainda funcionava suavemente, e o rádio ainda tocava. Desligou a ignição e, depois de um momento, retirou as chaves.
— Belo carro — falou o estranho —, mas está num estado lamentável, agora. Sempre gostei deste modelo, 62, não é?
— É, é sim.
— Quer que eu chame a polícia?
Gornt fez um grande esforço e pensou por um momento, as têmporas ainda latejando. Debilmente, soltou o cinto de segurança.
— Não. Há uma delegacia logo ali atrás. Poderia me dar uma carona até lá?
— Com prazer, meu velho. — O estranho era baixo e rotundo. Olhou à sua volta para os outros carros e táxis e caminhões que estavam parados em ambas as direções, os motoristas e passageiros chineses fitando-os, aparvalhados, das janelas. — Gente danada — resmungou, com azedume. — A gente podia estar morrendo no meio da rua, e ainda teria sorte se eles não pisassem na gente.
Abriu a porta e ajudou Gornt a sair.
— Obrigado.
Gornt sentiu os joelhos trêmulos. Por um momento, não pôde dominar o tremor e apoiou-se no carro.
— Está certo de estar se sentindo bem?
— Estou, sim. É só que... isso me matou de medo! — Examinou os danos, o nariz do carro enfiado na vegetação e na terra, um enorme arranhão do lado direito, o carro batera com força na curva interna. — Que estrago!
— É, mas não teve um final trágico! Teve uma sorte dos diabos de estar num bom carro, meu velho. — O estranho deixou a porta se abrir inteiramente, depois fechou-a com um clique abafado. — Execução de mestre. Bem, pode deixá-lo aqui. Não creio que ninguém vá roubá-lo. — O estranho riu, e foi mostrando o caminho até seu próprio carro, estacionado, com o pisca-pisca ligado, logo atrás. — Pode entrar, logo estará lá.
Foi então que Gornt se lembrou do meio sorriso zombeteiro no rosto de Dunross, que ele tomara por bravata, ao se retirar. Sua mente se desanuviou. Teria havido tempo para Dunross mexer... com seu conhecimento de motores... mas teria coragem... ?
— Filho da puta — resmungou, estupefato.
— Não se preocupe, meu velho — disse o estranho, ultrapassando o local do desastre, fazendo a volta. — A polícia cuidará de tudo para você.
O rosto de Gornt ficou sombrio.
— É, cuidará, sim.
22h25m
— Excelente jantar, Ian, melhor do, que o do ano passado — comentou expansivamente Sir Dunstan Barre, do lado oposto da mesa.
— Obrigado.
Dunross ergueu seu copo polidamente, depois tomou um gole do conhaque de primeira.
Barre engoliu de uma vez o vinho do Porto, depois encheu de novo o cálice, o rosto mais rosado do que de costume.
— Comi demais, como sempre, por Deus! Hem, Phillip? Phillip!
— Ah... é sim... muito melhor — murmurou Phillip Chen.
— Está bem, meu velho?
— Estou... é só que... ah, estou.
Dunross franziu a testa, depois correu os olhos pelas outras mesas, mal escutando o que eles diziam.
Estavam só eles três agora, sentados à mesa redonda que acomodara doze pessoas confortavelmente. Às outras mesas, espalhadas pelos terraços e gramados, os homens se demoravam tomando conhaque, vinho do Porto, fumando charutos, ou formavam grupinhos, em pé, já que todas as senhoras haviam entrado na casa. Viu Bartlett de pé junto às mesas do bufê, que uma hora antes gemiam ao peso de pernis de carneiro assado, saladas, rosbifes malpassados, imensos empadões de carne e rins, batatas assadas e legumes de vários tipos, doces, bolos e esculturas de sorvete. Um pequeno exército de criados estava retirando as sobras, esvaziando as mesas. Bartlett estava muito entretido conversando com o superintendente-chefe Roger Crosse e o americano, Ed Langan. "Daqui a pouco vou tratar dele", pensou, sombriamente... "mas primeiro vem Brian Kwok." Olhou ao seu redor. Brian Kwok não estava à sua mesa, aquela em que Adryon fora a anfitriã, nem sentado a outra mesa qualquer, portanto ele se recostou pacientemente, bebericou o seu conhaque e deixou o pensamento vagar.
Arquivos secretos, MI-6, Serviço Especial de Informações, Bartlett, Casey, Gornt, nada de Tsu-yan, e agora Alan Medford Grant mortinho da Silva. Seu telefonema de antes do jantar para Kiernan, o assistente de Alan Medford Grant em Londres, fora chocante.
— Foi hoje de manhã, Sr. Dunross — dissera Kiernan. — Chovia, estava muito escorregadio, e ele era um motoqueiro entusiástico, como o senhor sabe. Vinha para a cidade, como de costume. Ao que nos consta, não houve testemunhas. O sujeito que o encontrou, na estrada rural perto de Esher e da Auto-Estrada A3, disse que vinha guiando em meio à chuva quando, de repente, deparou com a moto virada de lado e um homem caído na beira da estrada. Disse que, ao que lhe parecera, Alan já estava morto quando chegou junto dele. Chamou a polícia, e ela começou as investigações, mas... bem, que posso dizer? É uma grande perda para todos nós.
— É. Ele deixou família?
— Não que eu saiba, senhor. Naturalmente, informei a MI-6 imediatamente.
— É?
— É, sim, senhor.
— Por quê?
Houve forte estática na linha.
— Ele deixara instruções comigo, senhor. Se alguma coisa lhe acontecesse, eu devia ligar para dois números imediatamente, e passar-lhe um telegrama, o que fiz. Nenhum dos números me dizia nada. O primeiro deles acabou sendo o número particular de um alto funcionário da MI-6... chegou aqui em meia hora, com alguns auxiliares, e eles revistaram a escrivaninha e os documentos pessoais de Alan. Levaram a maioria, quando se foram. Quando ele viu a cópia do último relatório, daquele que acabáramos de lhe mandar, ficou uma fera, e quando pediu cópias de todos os outros, e eu lhe disse, seguindo as instruções de Alan, que eu sempre destruía a cópia do escritório logo que tínhamos notícia de que o senhor recebera a sua, ele quase teve um derrame. Parece que Alan não tinha, realmente, permissão do governo de Sua Majestade para trabalhar para o senhor.
— Mas eu tenho, por escrito, a garantia de Grant de que obtivera autorização, prévia do governo.
— Sei, senhor. O senhor não fez nada de ilegal, mas o tal sujeito da MI-6 quase ficou maluco.
— Quem era ele? Como se chamava?
— Disseram-me, senhor, disseram-me, que não devia mencionar nome algum. Ele era muito pomposo, e resmungou algo sobre a Lei dos Segredos Oficiais.
— Você falou em dois números de telefone?
— Sim, senhor. O outro ficava na Suíça. Uma mulher atendeu, e quando lhe contei, ela disse: "Ah, que pena", e desligou. Era estrangeira, senhor. Uma coisa interessante, nas instruções finais de Alan, ele mandara que eu não mencionasse nenhum dos números um para o outro, mas, como o cavalheiro da MI-6 estava, digamos assim, nervoso, eu lhe contei. Ligou prontamente, mas a linha estava ocupada, e ficou ocupada muito tempo, e então a telefonista avisou que o número fora temporariamente desligado. Ele ficou um bocado furioso, senhor.
— Pode continuar com os relatórios de Alan?
— Não, senhor. Eu era apenas um auxiliar... punha em ordem as informações que ele arranjava. Apenas escrevia os relatórios para ele, atendia ao telefone quando ele não estava, pagava as contas do escritório. Ele passava uma boa parte do tempo no continente, mas nunca dizia onde tinha estado, nem me confidenciava nada. Ele era... bem, jogava com as cartas bem grudadas ao nariz. Não sei quem lhe dava coisa alguma... nem conheço o número do seu telefone em Whitehall. Como disse, ele era muito reservado...
Dunross suspirou e tomou o seu conhaque. "Uma pena", pensou. "Foi mesmo um acidente... ou ele foi assassinado? E quando a MI-6 vai pular no meu pescoço? A conta numerada na Suíça? Isso também não é ilegal, e não é da conta de ninguém, salvo minha e dele.
"O que fazer? Tem que haver um substituto, em algum lugar.
"Foi um acidente? Ou ele foi morto?"
— Como disse? — falou, sem ter percebido o que Barre dissera.
— Eu estava dizendo que foi gozado à beca quando Casey não quis ir e você a mandou embora. — O grandalhão riu. — Você tem peito, meu velho.
No final do jantar, pouco antes da chegada do porto, do conhaque e dos charutos, Penelope se levantara da mesa, onde Linc Bartlett estava entretidíssimo conversando com Havergill, e as senhoras a acompanharam, e depois Adryon, à sua mesa, e então, vindas de todos os lados, as senhoras se levantaram e a seguiram. Lady Joanna, sentada à direita de Dunross, dissera:
— Vamos, garotas, hora de empoar o nariz. Obedientemente, as outras mulheres se levantaram com ela, e os homens, educadamente, fingiram não estar aliviados com o êxodo delas.
— Vamos indo, querida — disse Joanna a Casey, que permanecera sentada.
— Não, obrigada, estou bem.
— Sei que está, mas... venha, mesmo assim. Então, Casey notou que todos a fitavam.
— O que é que há?
— Nada, querida — disse Lady Joanna. — É costume as senhoras deixarem os homens sozinhos por algum tempo, com o vinho do Porto e os charutos. Portanto, venha comigo.
Casey a fitou, surpresa.
— Quer dizer que somos mandadas embora enquanto os homens discutem negócios de Estado e o preço do chá na China?
— É questão de bons modos, querida. Em Roma, faça como os romanos...
Lady Joanna a observava, com um leve sorriso desdenhoso nos lábios, curtindo o silêncio embaraçado e o ar chocado da maioria dos homens. Todos os olhares se voltaram para a moça americana.
— Não pode estar falando a sério. Esse costume acabou antes da Guerra Civil — falou Casey.
— Estou certa que sim, nos Estados Unidos. — Joanna deu o seu sorriso retorcido. — Aqui é diferente, faz parte da Inglaterra. É uma questão de bons modos. Vamos, minha cara.
— Já vou... minha cara — retrucou Casey, com igual doçura. — Daqui a pouco.
Joanna soltou um suspiro, deu de ombros, olhou para Dunross com a sobrancelha levantada, deu o seu sorriso torto e se retirou com as outras senhoras. Fez-se um silêncio atônito à mesa.
— Tai-pan, não se incomoda que eu fique, não é? — perguntou Casey, rindo.
— Infelizmente, incomodo-me — disse ele, gentilmente. — É só um costume, nada importante. É apenas para que as senhoras possam se utilizar primeiro do banheiro e dos baldes de água.
O sorriso dela se desvaneceu, e começou a empinar o queixo.
— E se eu preferir não ir?
— É só um costume nosso, Ciranoush. Na América é costume chamar pelo primeiro nome uma pessoa a quem se acaba de conhecer, aqui não é. Mesmo assim... — Dunross devolvia o olhar calma, mas inflexivelmente. — Não é nenhum desprestígio.
— Acho que é.
— Lamento... mas lhe asseguro que não é.
Os outros esperavam, observando-o e observando-a, curtindo o confronto, mas ao mesmo tempo estupefatos com ela. Exceto Ed Langan, que estava constrangidíssimo por causa dela.
— Qual é, Casey — falou, tentando levar a coisa na brincadeira —, não se pode lutar contra a prefeitura.
— É o que venho tentando fazer a vida inteira — disse ela, vivamente... claro que furiosa. Depois, abruptamente, deu um sorriso glorioso. Tamborilou com os dedos momentaneamente na toalha da mesa, e se levantou. — Se os cavalheiros me dão licença... — disse, meigamente, e se foi, com um silêncio atônito seguindo seus passos.
— Não é que eu a tenha mandado embora — disse Dunross.
— Mas foi gozado à beca, mesmo assim — disse Barre. — O que a fez mudar de idéia? Hem, Phillip?
— O quê? — indagou Phillip Chen, distraído.
— Houve um momento em que pensei que ela ia dar um soco no pobre do Ian, você não pensou? Mas ela pensou em alguma coisa que a fez mudar de idéia. O quê?
Dunross sorriu.
— Aposto que não foi boa coisa. Aquela fulana é perigosa como um punhado de escorpiões.
— Mas tem uma bela peitaria — comentou Barre.
Eles riram. Phillip Chen não riu. A preocupação de Dunross com ele aumentou. Tentara animá-lo a noite toda, mas nada afastara aquele véu. Durante todo o jantar Phillip estivera apagado, monossilábico. Barre levantou-se, soltando um arroto.
— Acho que vou dar uma mijada enquanto ainda há espaço.
Saiu aos tropeções para o jardim.
— Não mije em cima das camélias — disse Ian, distraidamente, depois forçou-se a se concentrar. — Phillip, não fique preocupado — falou, agora que estavam sozinhos. — Logo vão encontrar John.
— É, estou certo que sim — disse Phillip Chen, desanimado, a mente não propriamente embotada pelo seqüestro, mas aparvalhada com o que descobrira na caixa de depósito bancário do filho, naquela tarde. Ele a abrira com a chave que tirara da caixa de sapatos.
— Ande, Phillip, pegue-a, não seja bobo — sibilara-lhe a mulher, Dianne. — Pegue-a... se não a pegarmos, o tai-pan a pegará!
— É, é, eu sei.
"Graças a todos os deuses que a peguei", pensou, ainda em choque, lembrando-se do que encontrara ao examinar o conteúdo da caixa. Envelopes de papel pardo de diversos tamanhos, a maior parte especificando os itens, um diário e um caderno de telefones. No envelope marcado "dívidas", papéis de apostas no valor de noventa e oito mil HK de dívidas com jogadores ilegais e clandestinos de Hong Kong. Uma promissória em favor de Avarento Sing, um agiota notório, no valor de trinta mil HK, com juros de três por cento ao mês. Uma promissória há muito vencida no Ho-Pak Bank, no valor de vinte mil dólares americanos, e uma carta de Richard Kwang, datada da semana anterior, dizendo que, a não ser que John Chen tomasse logo providências, seria forçado a conversar com o pai dele. Depois havia cartas que documentavam uma amizade crescente entre o filho e um jogador americano, Vincenzo Banastasio, que assegurava a John Chen que não havia pressa no pagamento das suas dívidas para com ele: "...não se apresse, John, seu crédito é o melhor; em qualquer época, este ano, estará ótimo..." Anexo às cartas, a fotocópia de uma nota promissória autenticada, perfeitamente legal, pela qual o filho, seus herdeiros ou procuradores, obrigavam-se a pagar a Banastasio, mediante requisição, quatrocentos e oitenta e cinco mil dólares americanos, mais juros.
"Burro, burro", vociferara intimamente, sabendo que o filho não tinha mais do que um quinto daquele valor, e que portanto ele próprio acabaria tendo que pagar a dívida.
Fora então que um envelope grosso em que estava escrito "Par-Con" chamara sua atenção.
Nele havia um contrato de emprego com a Par-Con assinado por K. C. Tcholok, há três meses, contratando os serviços de John Chen como consultor particular da Par-Con por "... cem mil de entrada (dos quais cinqüenta mil são por este considerados como já tendo sido pagos) e, tão logo um negócio satisfatório seja fechado e assinado entre a Par-Con e a Struan, a Rothwell-Gornt ou qualquer outra companhia escolhida pela Par-Con, mais um milhão de dólares pagos ao longo de um período de cinco anos, em prestações iguais; e dentro de trinta dias, a partir da assinatura do contrato acima mencionado, uma dívida contraída com o Sr. Vincenzo Banastasio, de Orchard Road, 85, Las Vegas, Nevada, de quatrocentos e oitenta e cinco mil dólares, será paga, mais a prestação de duzentos mil referente ao primeiro ano, juntamente com o saldo de cinqüenta mil..."
— Em troca do quê? — murmurara Phillip Chen, ofegante e impotente, dentro do cofre-forte do banco.
Mas o longo contrato nada mais indicava além de que John Chen seria um "consultor particular na Ásia". Não havia notas ou papéis anexos ao contrato.
Apressadamente, verificara de novo o envelope, para ver se deixara escapar algo, mas ele estava vazio. Uma verificação rápida dos outros envelopes dera em nada. Fora então que notara um fino envelope aéreo meio grudado a outro. Nele estava escrito "Par-Con II". Continha fotocópias de bilhetes escritos à mão pelo filho para Linc Bartlett.
O primeiro era datado de seis meses atrás, e confirmava que ele, John Chen, forneceria à Par-Con as informações mais confidenciais sobre o funcionamento secreto de todo o complexo Struan. "...naturalmente, isto tem que ser mantido em completo sigilo, mas, por exemplo, Sr. Bartlett, o senhor pode ver pelas folhas de balanço geral da Struan, anexas, desde 1954 até 1961 (quando ela se tornou empresa de capital aberto), que o que aconselho é perfeitamente exeqüível. Se examinar o mapa da estrutura corporativa da Struan, e a lista de alguns dos mais importantes acionistas da Struan, e seus bens secretos, inclusive os do meu pai, não terá problemas com nenhuma proposta de compra de controle que a Par-Con queira compor. Acrescente a essas fotocópias a outra coisa que lhe contei (juro por Deus que pode crer em mim) e garanto o seu êxito. Estou pondo minha vida em risco. Isso deve ser garantia suficiente, mas se me adiantar agora cinqüenta dos cem primeiros, deixarei que tome posse, tão logo chegue — comprometendo-se o senhor a devolvê-la logo que o seu negócio seja fechado — ou para ser usada contra a Struan. Garanto usá-la contra a Struan. No final das contas, Dunross terá que fazer qualquer coisa que o senhor queira. Por favor, responda para a caixa postal de costume, e destrua este, conforme combinamos."
— Posse do quê? — Phillip Chen murmurara, desesperado de ansiedade. Suas mãos tremiam enquanto lia a segunda carta, datada de três semanas atrás. "Caro Sr. Bartlett. Esta confirmará a sua data de chegada. Tudo está preparado. Espero com prazer poder revê-lo e conhecer o Sr. K. C. Tcholok. Obrigado pelos cinqüenta mil, que chegaram em segurança... todas as quantias futuras deverão ir para uma conta numerada em Zurique. Dar-lhe-ei os detalhes bancários quando chegar. Obrigado também por ter concordado com o nosso trato não escrito de que, se eu puder ajudá-lo da maneira que aleguei, receberei três por cento do movimento da nova Companhia Mercantil Par-Con (Ásia).
"Anexo mais algumas coisas de interesse: repare nas datas de vencimento das promissórias da Struan (rubricadas por meu pai) a favor das Indústrias de Navegação Toda pelos seus novos supercargueiros: dias 1.°, 11 e 15 de setembro. A Struan não tem dinheiro bastante para quitá-las.
"A seguir: em resposta à pergunta do Sr. Tcholok sobre a posição do meu pai em qualquer briga de compra de controle ou procurações. Ele pode ser neutralizado. As fotocópias anexas são uma amostra de muitas que possuo. Mostram um relacionamento muito chegado com Lee Pó Branco e seu primo, Wu Sang Fang, também conhecido como Wu Quatro Dedos, desde o começo da década de 50, e posse secreta junto com eles (até mesmo hoje) de uma companhia imobiliária, duas companhias de navegação e interesses comerciais em Bangkok. Embora na aparência, atualmente, ambos se façam passar por comerciantes respeitáveis, donos de empreendimentos imobiliários e armadores milionários, é do conhecimento geral que há anos são piratas e contrabandistas bem-sucedidos... e corre um forte boato nos círculos chineses de que são eles os Grandes Dragões do comércio de ópio. Se a ligação de meu pai com eles fosse tornada pública, ele perderia seu prestígio para sempre, os elos íntimos que tem com a Struan, e com todas as outras hongs que existem hoje, seriam desfeitos e, o que é mais importante, sua chance de tornar-se cavaleiro (a coisa que mais deseja no mundo) seria destruída para sempre. A simples ameaça de fazer isso seria o suficiente para neutralizá-lo... até mesmo torná-lo um aliado. Claro que me dou conta de que esses papéis e outros que possuo necessitam de maior documentação para valerem num tribunal, mas já a tenho em abundância, num local seguro..."
Phillip Chen se lembrava de como, tomado de pânico, procurara desesperadamente a tal documentação mencionada, sua mente berrando que era impossível o filho dispor de tantas informações secretas, impossível ele ter os balanços gerais da Struan antes de ela se ter tornado empresa de capital aberto, impossível saber sobre Wu Quatro Dedos e todas aquelas coisas secretas.
"Oh, deuses, isto é quase tudo o que eu sei... nem mesmo Dianne sabe da metade! O que mais John sabe... o que mais contou ao americano?"
Alucinado de ansiedade, revistara cada envelope, mas nada mais havia.
— Ele deve ter outra caixa em algum lugar... ou um cofre — resmungara em voz alta, mal conseguindo pensar.
Furioso, enfiara tudo aquilo em sua pasta, esperando que um exame mais minucioso respondesse às suas perguntas... depois fechara com força a caixa e a trancara. Num repente, reabrira-a. Tirara a bandeja fina de dentro do cofre individual e virara-a ao contrário. Presas com fita adesiva, na parte externa, havia duas chaves. Uma delas era a chave de uma caixa de depósito bancário com o número cuidadosamente obliterado. A outra o deixara paralisado. Reconhecera-a, imediatamente. Era a chave do seu próprio cofre, da casa no morro. Teria apostado a vida em que a única chave existente era a que usava sempre à volta do pescoço, que nunca saíra de junto dele... desde que seu pai lha dera, no leito de morte, há dezesseis anos.
— Oh ko — dissera em voz alta, mais uma vez consumido de fúria.
Dunross perguntou:
— Está bem? Quer tomar um conhaque?
— Não, não, obrigado — respondeu Phillip Chen, com voz trêmula, de volta ao presente. Com esforço, controlou-se e fitou o tai-pan, sabendo que lhe devia contar tudo, mas sem ter coragem. Pelo menos até saber a extensão dos segredos roubados. Mesmo então, não teria coragem. Além das muitas transações que as autoridades poderiam facilmente interpretar mal, e outras que poderiam ser altamente embaraçosas e dar início a todo tipo de ações civis, se não criminais... "Maldita lei inglesa!", pensou furioso. Era uma cretinice haver uma só lei para todos, cretinice não haver uma lei para os ricos e outra para os pobres. Por que então trabalhar, sacrificar-se, arriscar e tramar para ser rico... além disso tudo, ainda teria que admitir para Dunross que vinha documentando os segredos da Struan há anos, que seu pai já agira assim antes dele... folhas de balanço, investimento em ações, e outras coisas secretas e muito, muito particulares, pessoais e familiares, contrabandos e subornos... e sabia que de nada adiantaria dizer que agira assim para proteger a Casa, porque o tai-pan diria, e corretamente, que agira para proteger a Casa de Chen, e não a Casa Nobre, e o atacaria justificadamente, e voltaria toda a sua ira contra ele e sua família, e no holocausto de uma luta contra a Struan ele perderia na certa (o testamento de Dirk Struan se encarregara disso), e tudo o que levara quase um século e meio para ser construído desapareceria.
Graças a todos os deuses não estava tudo no cofre, pensou, fervorosamente. Graças a todos os deuses as outras coisas estavam bem enterradas.
Então, subitamente, algumas palavras da primeira carta do filho atingiram brutalmente sua consciência: "...Acrescente a estas fotocópias as outras coisas de que lhe falei..."
Ele empalideceu e pôs-se de pé, com esforço. — Se me dá licença, tai-pan... eu... vou me despedindo. Vou buscar Dianne e... eu... obrigado, boa noite. Saiu apressado em direção à casa. Dunross ficou olhando enquanto ele se afastava, chocado.
— Oh, Casey — dizia Penelope —, deixe-me apresentar-lhe Kathren Gavallan. Kathren é irmã de Ian.
— Oi! — cumprimentou Casey, sorrindo, simpatizando com ela à primeira vista. Estavam numa das antecâmaras do andar térreo, entre outras mulheres que conversavam, retocavam a maquilagem, ou faziam fila, esperando a vez para visitar o banheiro anexo. A sala era ampla, confortável e espelhada.
— Ambos têm os mesmos olhos... reconheceria a semelhança em qualquer parte — disse. — Ele é um homem e tanto, não é?
— Nós achamos que sim — replicou Kathren, com um sorriso vivo. Tinha trinta e oito anos, era atraente, possuía um sotaque escocês agradável, e o vestido de seda estampado que usava era longo e fresco. — Essa falta d'água é um abacaxi, não é?
— É. Deve ser muito difícil, tendo crianças.
— Não, chêrie, as crianças a adoram — manifestou-se Susanne de Ville. Estava com quarenta e tantos anos, era chique, com ligeiro sotaque francês. — Como se pode insistir em que tomem banho todas as noites?
— Os meus dois são iguaizinhos — sorriu Kathren. — Isso incomoda a nós, pais, mas não a eles. Mas é um abacaxi tentar fazer uma casa correr nos eixos.
Penelope disse:
— Deus, como detesto isso! Este verão foi um horror. Você está com sorte hoje, geralmente já estaríamos pingando!
— Retocava a maquilagem no espelho. — Mal posso esperar até o mês que vem. Kathren, já lhe contei que vamos para casa por duas semanas? Pelo menos, eu vou. Ian prometeu ir também, mas com ele nunca se pode ter certeza.
— Ele precisa de umas férias — disse Kathren, e Casey percebeu sombras nos seus olhos, e olheiras sob a maquilagem.
— Vão para Ayr?
— Vamos, e para Londres, por uma semana.
— Que sortuda! Quanto tempo vai ficar em Hong Kong, Casey?
— Não sei. Tudo depende da Par-Con.
— Sei. Andrew me contou que você teve uma reunião de dia inteiro, com eles.
— Não creio que lhes tenha agradado muito falar de negócios com uma mulher.
— Como você está sendo delicada — riu-se Susanne de Ville, levantando a saia para puxar a blusa para baixo. — Claro que meu Jacques é meio francês, portanto entende que as mulheres estejam no mundo dos negócios. Mas os ingleses...
Ergueu bem alto as sobrancelhas.
— O tai-pan não pareceu se importar — falou Casey —, mas, na verdade, ainda não discuti direito negócios com ele.
— Mas discutiu com Quillan Gornt — disse Kathren, e Casey, muito em guarda, mesmo na privacidade do banheiro das senhoras, percebeu a tensão latente na sua voz.
— Não — replicou —, não discuti... só o conheci hoje à noite... mas meu patrão, sim.
Pouco antes do jantar, encontrara um tempinho para contar a Bartlett a história do pai de Gornt e de Colin Dunross.
— Puxa vida! Não admira que Adryon tenha ficado tonta! — dissera Bartlett. — E logo no salão de bilhar! — Pensara por um momento, depois dera de ombros. — Mas só o que isso significa é mais pressão sobre Dunross.
— Pode ser. Mas a inimizade deles é a mais profunda que já vi, Linc. O tiro nos pode sair pela culatra.
— Não sei como... ainda. Gornt estava apenas abrindo um flanco, como compete a um bom general. Se não tivéssemos tido as informações antecipadas de John Chen, o que Gornt disse poderia ter sido vital para nós. Gornt não tem meios de saber que estamos à sua frente. Portanto, está acelerando o ritmo. Ainda nem puxamos as nossas grandes armas, e os dois já estão nos cortejando.
— Já decidiu com qual vai ficar?
— Não. Qual é o seu palpite?
— Não tenho nenhum. Ainda. Os dois são impressionantes. Linc, acha que John Chen foi seqüestrado porque vinha nos dando informações?
— Não sei. Por quê?
— Antes da chegada de Gornt, fui interceptada pelo superintendente Armstrong. Interrogou-me sobre o que John Chen disse ontem à noite, o que conversamos, o que foi dito, exatamente. Contei-lhe tudo de que me lembrava... exceto que nunca mencionei que deveria receber "aquilo". Já que ainda não sei o que "aquilo" é.
— Não é nada ilegal, Casey.
— Não gosto de ficar no escuro. Não agora. Está ficando... forte demais para mim, as armas, o seqüestro brutal e a polícia tão insistente,
— Não é nada ilegal. Deixemos a coisa nesse pé. Armstrong disse que havia uma ligação?
— Não mencionou nada. É um policial inglês, cavalheiro, forte e silencioso, e tão inteligente e bem-treinado quanto os que já vi no cinema. Estou certa de que ele sabia que eu estava ocultando alguma coisa. — Hesitara. — Linc, o que John Chen tem que é tão importante para nós?
Lembrou-se de como ele a fitara, os olhos profundos e azuis, zombeteiros e risonhos.
— Uma moeda — dissera, calmamente.
— O quê? — perguntara ela, atônita.
— É. Na verdade, meia moeda.
— Mas, Linc, o que uma moe...
— É só o que vou lhe contar por ora, Casey, mas, diga-me, será que Armstrong acha que há alguma ligação entre o seqüestro de Chen e as armas?
— Não sei. — Dera de ombros. — Acho que não, Linc. Nem posso arriscar um palpite. Aquele cara é vivo demais. — Nova hesitação por parte dela. — Linc, fechou negócio, qualquer negócio, com Gornt?
— Não. Nada definitivo. Gornt só quer destruir a Struan, e quer se unir a nós para fazer o serviço. Disse que discutiríamos o assunto na terça-feira. Durante o jantar.
— O que vai dizer ao tai-pan, depois do jantar?
— Depende das perguntas dele. Ele sabe que é boa estratégia sondar as defesas do inimigo.
Casey começava a se perguntar quem era o inimigo, sentindo-se estranha demais, mesmo ali, entre todas as outras mulheres. Sentira apenas hostilidade, exceto da parte dessas duas, Penelope e Kathren Gavallan... e de uma mulher que encontrara antes, na fila do banheiro.
— Alô — dissera a mulher, suavemente. — Ouvi dizer que você também é uma estranha, aqui.
— É, sou, sim — replicou Casey, assombrada com a beleza da outra.
— Sou Fleur Marlowe. Meu marido é Peter Marlowe. É escritor. Acho que você está lindérrima!
— Obrigada. Você também. Acabaram de chegar a Hong Kong?
— Não. Estamos aqui há três meses e dois dias, mas esta é a primeira festa realmente inglesa a que comparecemos — disse Fleur, seu sotaque britânico não tão carregado quanto o dos outros. — Passamos a maior parte do tempo com os chineses, ou sozinhos. Temos um apartamento no anexo do Victoria. Meu Deus — acrescentou, olhando para a porta do reservado, logo à frente —, gostaria que ela andasse depressa. Estou apertadíssima.
— Também estamos hospedados no Victoria.
— É, eu sei. Vocês dois são famosos. — E Fleur Marlowe riu.
— Mal-afamados! Não sabia que o hotel tinha apartamentos.
— Não são bem apartamentos. Só dois quartinhos de dormir e uma saleta. A cozinha parece um armário. Mas é o nosso lar. Temos um banheiro, água corrente, e as privadas dão descarga.
Fleur Marlowe tinha grandes olhos cinzentos que se inclinavam de modo agradável, e longos cabelos louros, e Casey julgou que teria mais ou menos a sua idade.
— Seu marido é jornalista?
— Escritor. De um único livro. O que faz mesmo é escrever e dirigir filmes em Hollywood. É isso o que paga o aluguel.
— Por que estão com os chineses?
— É que Peter está interessado neles. — Fleur Marlowe sorriu e deu um sussurro de conspiradora, olhando para o resto das mulheres à sua volta. — Elas são bastante assustadoras, não?... mais inglesas do que os ingleses. Cheias de tradição e coisa e tal.
Casey franziu o cenho.
— Mas você também é inglesa.
— Sim e não. Sou inglesa, mas de Vancouver, no Canadá. Moramos nos Estados Unidos, Peter, eu e as crianças, na velha Hollywood, Califórnia. Não sei direito o que sou, metade uma coisa, metade outra.
— Nós também moramos em Los Angeles, Linc e eu.
— Acho que ele é um pão. Você tem sorte.
— Que idade têm seus filhos?
— Quatro e oito anos... graças a Deus ainda não racionaram a nossa água.
— Que tal está achando Hong Kong?
— É fascinante, Casey. Peter está aqui fazendo pesquisas para um livro, portanto é maravilhoso para ele. Meu Deus, se a metade das lendas for verdade... os Struans, os Dunrosses e todos os outros, e o seu Quillan Gornt.
— Não é meu. Conheci-o esta noite.
— Criou um pequeno terremoto ao atravessar a sala ao lado dele. — Fleur riu. — Se vai ficar por aqui, fale com Peter. Ele lhe contará os mais diversos tipos de escândalos. — Fez um sinal de cabeça na direção de Dianne Chen, que empoava o nariz diante de um dos espelhos. — Aquela é a madrasta de John Chen, a mulher de Phillip Chen. É a segunda mulher... a primeira morreu. Ela é eurasiana, e quase todos a odeiam, mas é uma das pessoas mais bondosas que já conheci.
— Por que a odeiam?
— A maioria tem inveja. Afinal de contas, é a mulher do representante nativo da Casa Nobre; conhecemo-nos faz algum tempo, e ela foi formidável para mim. É... é difícil para uma mulher viver em Hong Kong, especialmente uma mulher de fora. Não sei bem por quê, mas ela me tratou como pessoa da família. Tem sido formidável.
— Ela é eurasiana? Parece chinesa.
— Às vezes, é difícil dizer-se. O nome de solteira dela é TChung, segundo Peter, e da família da mãe é Sung. Os T'Chungs descendem de uma das amantes de Dirk Struan, e a linhagem dos Sungs é igualmente ilegítima, do famoso pintor Aristotle Quance. Já ouviu falar nele?
— Ah, já.
— Muitas das... melhores famílias de Hong Kong são... bem, o velho Aristotle gerou quatro ramos... — Neste exato momento a porta do reservado se abriu, dando passagem a uma mulher, e Fleur exclamou: — Graças a Deus!
Enquanto esperava a sua vez, Casey prestava alguma atenção à conversa das outras. O papo era sempre o mesmo: roupas, o calor, a falta d'água, queixas sobre amahs e outros criados, como tudo estava caro, ou as crianças e as escolas. Aí, chegou a vez dela e, quando saiu, Fleur Marlowe desaparecera, e Penelope se acercou dela.
— Oh, acabo de saber que você não queria se retirar. Não ligue para Joanna — disse Penelope, serenamente. — É uma chata, e sempre foi.
— Foi minha culpa... ainda não me habituei aos seus costumes.
— É tudo uma bobagem, mas, no final das contas, é muito mais fácil fazer a vontade dos homens. Eu, pessoalmente, fico muito satisfeita em me retirar. Acho a maioria das conversas deles uma amolação.
— É, às vezes é. Mas é o princípio da coisa. Devíamos ser tratadas como iguais.
— Jamais seremos iguais, querida. Não aqui. Esta é a colônia da coroa de Hong Kong.
— É o que todos me dizem. Quanto tempo devemos ficar afastadas?
— Ah, cerca de meia hora. Não há um período exato. Há muito tempo que conhece Quillan Gornt?
— Hoje foi a primeira vez que o vi — disse Casey.
— Ele... não é bem-vindo nesta casa — falou Penelope.
— É, eu sei. Contaram-me sobre a festa de Natal.
— O que lhe contaram?
Ela relatou o que sabia.
Fez-se um silêncio cortante. Depois, Penelope falou:
— Não é bom para os estranhos se envolverem em brigas de família, é?
— Não — respondeu Casey. — Mas todas as famílias têm as suas briguinhas. Estamos aqui, Linc e eu, para começar um negócio... esperamos começar o negócio com uma das suas grandes companhias. Somos estranhos aqui, sabemos disso... mas é por este motivo que estamos procurando um sócio.
— Bem, minha querida, estou certa de que se decidirão. Sejam pacientes e cautelosos. Não concorda, Kathren? — perguntou à cunhada.
— Sim, Penelope, concordo. — Kathren fitou Casey com o mesmo olhar franco de Dunross. — Espero que façam a escolha correta, Casey. O pessoal aqui é muito vingativo.
— Por quê?
— Um dos motivos é que somos uma sociedade muito fechada, muito interligada, e todos se conhecem uns aos outros... e quase todos os seus segredos. O outro é porque os ódios por aqui florescem há gerações, e vêm sendo alimentados há gerações. Quando se odeia, odeia-se de todo o coração. Outro ainda é que esta é uma sociedade à moda dos piratas, corn pouquíssimos freios, portanto a gente pode se safar com todos os tipos de vingança. Ah, sim. Mais um: aqui os prêmios são altos... se você ganhar um monte de ouro, pode ficar com ele, legalmente, mesmo se o tiver conseguido ilegalmente. Hong Kong é um lugar de trânsito... ninguém vem para cá para ficar, nem mesmo os chineses, só para ganhar dinheiro, e ir embora. É o local mais extraordinário do mundo.
— Mas os Struans, os Dunrosses e os Gornts estão aqui há gerações — disse Casey.
— É, mas individualmente vieram para cá por um único motivo: dinheiro. Aqui, nosso deus é o dinheiro. E logo que se põe a mão nele, some, quer seja europeu, americano... e especialmente chinês.
— Está exagerando, Kathy querida — falou Penelope.
— É. Mas é a verdade. Outro motivo é que vivemos o tempo todo à beira da catástrofe: fogo, inundação, peste, avalanche, levantes. Metade da nossa população é comunista, metade nacionalista, e se odeiam de uma maneira que nenhum europeu jamais poderá compreender. E a China... a China pode nos engolir a qualquer momento. Portanto, a gente vive o dia de hoje, e para o diabo com tudo, agarre o que puder, porque amanhã, quem sabe? Não se interponha no caminho! As pessoas são mais brutais aqui porque tudo realmente é precário, e nada dura em Hong Kong.
— Exceto o Pico — disse Penelope. — E os chineses.
— Até mesmo os chineses querem enriquecer depressa para ir embora depressa... eles, mais do que a maioria. Espere só, Casey, e verá. Hong Kong a afetará com a sua magia... ou a sua maldade, dependendo do ponto de vista. Para os negócios, é o lugar mais excitante do mundo, e logo você sentirá que está no centro do mundo. É selvagem e excitante para os homens, meu Deus, é maravilhoso para um homem, mas para nós é horrível, e toda mulher, toda esposa, odeia Hong Kong apaixonadamente, embora finja o contrário.
— Kathren — começou Penelope —, está exagerando de novo.
— Não. Não estou. Estamos todas ameaçadas aqui, Penny, você sabe! Nós, mulheres, estamos numa batalha perdida...
— Kathren se deteve e forçou um sorriso cansado. — Desculpe, entusiasmei-me demais. Penn, acho que vou procurar Andrew, e se ele quiser ficar, eu vou indo, se você não se importa.
— Está se sentindo bem, Kathy?
— Estou, sim, só cansada. O meu caçula é uma parada, mas no ano que vem irá para o colégio interno.
— Que tal foi o seu checkup?
— Bom. — Kathy deu um sorriso cansado para Casey. — Quando estiver disposta, ligue para mim. O número está no catálogo. Não escolham Gornt. Seria fatal. Adeus, querida — acrescentou para Penelope, e se retirou.
— Ela é um amor — disse Penelope. — Mas fica baratinada à toa.
— Você se sente ameaçada?
— Estou muito satisfeita com as minhas filhas e meu marido.
— Ela perguntou se você se sentia ameaçada, Penelope.
— Susanne de Ville empoou habilmente o nariz e examinou o seu reflexo. — Sente-se?
— Não. Às vezes sinto-me oprimida. Mas... mas não estou mais ameaçada do que você.
— Ah, chérie, mas eu sou panúenne. Como posso estar ameaçada? já esteve em Paris, mademoiselle?
— Já — disse Casey. — É linda.
— É o mundo — declarou Susanne, com modéstia gaulesa. — Puxa, mas estou com cara de pelo menos trinta e seis anos.
— Bobagem, Susanne. — Penelope olhou para o relógio de pulso. — Acho que já podemos voltar. Com licença um minutinho...
Susanne fitou-a enquanto ela se afastava, depois voltou a se concentrar em Casey.
— Jacques e eu viemos para Hong Kong em 1946.
— Também fazem parte da família?
— O pai de Jacques casou-se com uma Dunross na Primeira Grande Guerra... uma tia do tai-pan. — Inclinou-se para junto do espelho e tirou um tiquinho do excesso de pó. — Na Struan é importante ser da família.
Casey notou os astutos olhos gauleses observando-a pelo espelho.
— Claro, concordo com você que é uma bobagem as mulheres se retirarem depois do jantar, pois, obviamente, quando vamos embora, o calor também vai, não?
Casey sorriu.
— Acho que sim. Por que Kathren falou "ameaçada"? Ameaçada pelo quê?
— Pela juventude, claro que pela juventude! Aqui existem dezenas de milhares de lindas jovens chinoises, chiques, sensatas, de cabelos negros e longos, derrières bonitos e atrevidos e pele dourada, que realmente entendem os homens e encaram o sexo pelo que representa: comida e, com freqüência, permuta. Foi o inglês puritano e gaúche que torceu a mente das suas damas, pobrezinhas! Graças a Deus nasci francesa! Pobre Kathy!
— Oh — disse Casey, compreendendo imediatamente. — Descobriu que Andrew tem um caso?
Susanne sorriu e não respondeu, apenas fitou o seu reflexo. Depois, disse:
— O meu Jacques... claro que tem casos, claro que todos os homens têm casos, e nós também, se somos sensatas. Mas nós, franceses, compreendemos que essas transgressões não devem interferir num bom casamento. Damos a elas a dose exata de importância, non? — Seus olhos castanho-escuros se alteraram um pouco. — Oui!
— Isso é duro, não é? Duro para uma mulher ter que conviver com isso.
— Tudo é duro para a mulher, chérie, porque os homens são uns crétins. — Susanne de Ville alisou uma prega, depois pôs um pouco de perfume atrás das orelhas e no meio dos seios. — Você falhará aqui, se tentar jogar usando regras masculinas, e não regras femininas. Tem uma chance rara aqui, mademoiselle, se é mulher o bastante. E se se lembrar de que os Gornts são todos venenosos. E cuidado com o seu Linc Bartlett, Ciranoush, já há mulheres aqui querendo possuí-lo, e humilhá-la.
22h42m
Lá em cima, no segundo andar, o homem saiu cautelosamente das sombras do balcão comprido e entrou pelas portas envidraçadas abertas na escuridão mais profunda do escritório de Dunross. Hesitou, ouvidos atentos, suas roupas negras tornando-o quase invisível. Os sons distantes da festa entravam pelo aposento adentro, tornando o silêncio e a espera mais pesados. Acendeu uma pequena lanterna elétrica.
O círculo de luz caiu sobre o quadro que encimava a lareira. Ele se acercou ainda mais. Dirk Struan parecia observá-lo, o leve sorriso debochado. Agora a luz se moveu para as beiradas da moldura. A mão dele se estendeu delicadamente e experimentou-a, primeiro para um lado, depois para o outro. Silenciosamente, o quadro se afastou da parede.
O homem soltou um suspiro.
Espiou de perto a fechadura, depois apanhou um pequeno molho de chaves-mestras. Escolheu uma, experimentou-a, mas ela não girou. Mais outra. Novo fracasso. Outra, e mais outra, depois um leve estalido, e a chave quase girou, quase, mas ficou no quase. As demais chaves também falharam.
Irritado, tentou de novo a chave do quase, mas ela não abriu a fechadura.
Com perícia, seus dedos correram pelas beiradas do cofre, mas não conseguiu achar nenhum interruptor ou fecho secreto. Tentou de novo a chave do quase, para cá e para lá, suave ou firmemente, mas ela não girou.
Hesitou de novo. Depois de um momento, recolocou com cuidado o quadro no lugar, os olhos agora zombando dele, e foi até a escrivaninha. Havia dois telefones sobre a mesa. Pegou o aparelho, que sabia não possuir outras extensões na casa, e discou.
O telefone soou monotonamente, depois parou. — Sim? — atendeu uma voz masculina, em inglês.
— O Sr. Lop-sing, por favor — disse ele, suavemente, começando o código.
— Aqui não há nenhum Lop-sing. Lamento, é engano. Essa era a resposta em código que queria ouvir. Continuou:
— Queria deixar um recado.
— Lamento, discou o número errado. Olhe no catálogo. Novamente a resposta correta, a derradeira.
— Aqui é Lim — sussurrou, usando o seu codinome. — Arthur, por favor. Urgente.
— Um momentinho.
Ouviu o telefone sendo passado a outra pessoa, e a tosse seca que reconheceu imediatamente.
— Sim, Lim? Encontrou o cofre?
— Encontrei. Fica atrás do quadro acima da lareira, mas nenhuma das chaves serviu. Vou precisar de equipamento espe...
Interrompeu-se, subitamente. Vozes se aproximavam. Desligou, suavemente. Uma verificação rápida e nervosa de que tudo estava no lugar, e ele desligou a lanterna elétrica correndo para o balcão que acompanhava toda a extensão da face norte. O luar iluminou-o por um instante. Era Feng Garçom de Vinhos. Depois ele desapareceu, suas roupas negras de garçom misturando-se perfeitamente com a escuridão.
A porta se abriu. Dunross entrou, seguido por Brian Kwok. Acendeu as luzes. Imediatamente, a sala ficou cálida e cordial.
— Não seremos perturbados aqui — falou. — Fique à vontade.
— Obrigado.
Era a primeira vez que Brian Kwok era convidado a subir ao andar superior da casa.
Os dois homens carregavam copos de conhaque e foram para junto do frescor das janelas, a brisa leve movendo as cortinas finas, e sentaram-se nas poltronas de espaldar alto, um de frente para o outro. Brian Kwok fitava o quadro, com a sua luz própria perfeitamente colocada.
— Que beleza de quadro.
— É, sim.
Dunross olhou para o quadro, e ficou gelado. A tela estava imperceptivelmente fora do lugar. Mais ninguém o teria notado.
— Algum problema, Ian?
— Não. Nada — disse Dunross, recobrando os sentidos que instintivamente haviam entrado em alerta, sondando o aposento atrás de uma presença estranha. Agora, voltou sua atenção integral para o superintendente chinês, mas se preocupava profundamente com quem havia mexido na tela, e por quê.
— O que queria falar comigo?
— Duas coisas. Primeiro, o seu cargueiro, Eastern Cloud. Dunross ficou espantado.
— Sim?
Aquele era um dos muitos cargueiros costeiros sem rota regular da Struan, que servia aos portos comerciais da Ásia. O Eastern Cloud era um navio de dez toneladas na rota altamente lucrativa de Hong Kong, Bangkok, Cingapura, Calcutá, Madrasta e Bombaim, com uma parada ocasional em Rangum, na Birmânia, transportando todo tipo de mercadoria fabricada em Hong Kong e enviada para o exterior, e todo tipo de matéria-prima, sedas, pedras preciosas, juta, teca, alimentos da índia, Malásia, Tailândia e Birmânia vindos para Hong Kong. Seis meses antes, fora apreendido pelas autoridades indianas em Calcutá, depois de uma revista surpresa da alfândega ter revelado trinta e seis mil taéis de ouro contrabandeados num dos seus depósitos de carvão. Um pouco mais de uma tonelada.
— O ouro é uma coisa, Excelência, e nada tem a ver conosco — dissera Dunross ao cônsul-geral da índia em Hong Kong —, mas apreender o nosso navio já é outra história!
— Ah, sinto muito, Sr. Dunross. Lei é lei, e contrabandear ouro para a índia é coisa muito séria, sah, e a lei diz que qualquer navio com mercadoria contrabandeada a bordo pode ser confiscado e vendido.
— É, pode ser. Quem sabe, Excelência, nesse caso o senhor poderia interceder junto às autoridades...
Mas todos os pedidos tinham sido postos de lado, e tentativas de intercessão a alto nível ao longo dos meses, ali, na índia, até mesmo em Londres, não haviam dado em nada. As investigações policiais na índia e em Hong Kong não haviam apresentado nenhuma prova contra membro algum da sua tripulação, mas mesmo assim o Eastern Cloud ainda estava preso no porto de Calcutá.
— O que é que tem o Eastern Cloud? — perguntou.
— Achamos que podemos persuadir as autoridades indianas a liberá-lo.
— Em troca do quê? — perguntou Dunross, desconfiado. Brian Kwok riu.
— De nada. Não sabemos quem são os contrabandistas, mas sabemos quem fez a denúncia.
— Quem?
— Há cerca de sete meses vocês mudaram a política de recrutamento de tripulação. Até então, a Struan utilizava exclusivamente tripulações cantonenses nos seus navios, mas de repente, por algum motivo, resolveu empregar xangaienses. Certo?
— É — concordou Dunross, lembrando-se de que Tsu-yan, também xangaiense, dera a sugestão, dizendo que faria muito bem à Struan dar também alguma ajuda aos refugiados nortistas.
"Afinal, tai-pan", dissera ele, "são marinheiros tão bons quanto os outros... e seus salários são muito competitivos."
— E então a Struan contratou uma tripulação xangaiense para o Eastern Cloud. Foi a primeira, se não me falha a memória. E a tripulação cantonense que não foi contratada sentiu-se humilhada, e então queixou-se a Cajado Vermelho, líder daquela tríade, que...
— Corta essa, pelo amor de Deus, nossas tripulações não pertencem a nenhuma tríade!
— Já disse muitas vezes que os chineses adoram aderir, Ian. Está certo, chamemos ao chefe de tríade com o posto de Cajado Vermelho de seu representante sindical... embora saiba que vocês também não têm sindicatos... mas o sacana disse, sem medir palavras: "Oh ko, fomos realmente humilhadíssimos por causa daqueles cretinos do norte. Vou dar um jeito nos filhos da mãe", e deu a dica a um delator indiano aqui, que, em troca de uma boa parte da recompensa, naturalmente combinada previamente, concordou e passou a informação ao consulado indiano.
— O quê?
Brian Kwok sorriu de orelha a orelha.
— É isso aí. A recompensa foi rachada. Vinte por cento para o indiano e os oitenta por cento para a tripulação cantonense que devia ter embarcado no Eastern Cloud... os cantonenses recuperaram o prestígio e os desprezíveis rebotalhos xangaienses nortistas foram postos numa fedorenta cadeia indiana, e foi a vez deles de ficarem desprestigiados.
— Ah, Deus!
— É.
— Tem provas?
— Claro que sim! Mas digamos que o nosso amigo indiano está nos ajudando em investigações futuras, em troca de... bem, serviços prestados, portanto prefiro não mencionar seu nome. Seu "representante sindical"? Ah, um dos nomes dele era Tuk Boca Grande, e foi foguista no Eastern Cloud por mais de três anos. Foi, porque, infelizmente, não o veremos de novo.
Prendemo-lo todo paramentado como membro da 14K (todo paramentado como Cajado Vermelho, muito graduado), graças a um delator xangaiense amistoso, irmão de um dos membros da sua tripulação que penou na mencionada cadeia indiana fedorenta.
— Foi deportado?
— Ah, foi, num piscar de olhos. Nós realmente não aprovamos as tríades. Atualmente são quadrilhas criminosas, metidas em todo tipo de atividades vis. Foi mandado para Formosa, onde creio que não será nem um pouco bem-vindo... já que a tríade xangaiense Pang Verde, do norte, e a tríade cantonense 14K, do sul, ainda estão brigando pelo controle de Hong Kong. Tuk Boca Grande era mesmo um 426...
— O que é um 426?
— Ah, pensei que soubesse. Todos os componentes das tríades são conhecidos por números, assim como por títulos simbólicos... os números sempre divisíveis pelo algarismo místico 3. Um líder é um 489, que também soma 21, que soma 3, e 21 é um múltiplo de 3, representando a criação, vezes 7, morte, significando o renascer. Um membro do segundo time é um Leque Branco 438, e um Cajado Vermelho é 426. O mais baixo é um 49.
— Pombas, mas 49 não é divisível por 3!
— É, mas 4 vezes 9 dá 36, o número dos juramentos de sangue secretos. — Brian Kwok deu de ombros. — Sabe como nós, chineses, somos loucos por números e numerologia. Ele era um Cajado Vermelho, um 426, Ian. Nós o prendemos. Portanto, as tríades existem, ou existiam, pelo menos num dos seus navios. Não é?
— É o que parece.
Dunross estava se xingando por não ter previsto que era claro que o prestígio xangaiense e cantonense estaria em jogo, e portanto haveria encrencas. E agora sabia que estava noutra armadilha. Agora tinha sete navios com tripulações xangaienses contra cinqüenta e tantas cantonenses.
— Pombas, não posso despedir as tripulações xangaienses que já contratei, e, se não o fizer, haverá mais encrencas semelhantes, e desprestígio de ambos os lados. Qual a solução para esse problema? — indagou.
— Destaque certas rotas exclusivamente para os xangaienses, mas só depois de consultar os seus Cajados Vermelhos 426... desculpe, os seus representantes e, naturalmente, os seus equivalentes cantonenses... e apenas depois de consultar um vidente famoso que lhe sugira que essa atitude trará uma sorte fantástica para os dois lados. Que tai o Velho Cego Tung?
— O Velho Cego Tung? — Dunross riu. — Perfeito! Brian, você é um gênio. Uma mão lava a outra. Quer ouvir um segredo?
— Está certo.
— Garantido?
— Sim.
— Compre ações da Struan amanhã bem cedinho.
— Quantas?
— As que puder comprar.
— Seguro-as por quanto tempo?
— Que tal estão os seus cojones? Brian soltou um assobio mudo.
— Obrigado. — Pensou por um momento, depois forçou-se de novo a se concentrar no assunto em questão. — Voltando ao Eastern Cloud. Agora é que chegamos à parte interessante, Ian: trinta e seis mil taéis de ouro valem legalmente um milhão quinhentos e catorze mil quinhentos e vinte dólares americanos. Mas, derretidos nas barras de contrabando de cinco taéis e entregues secretamente em terra, em Calcutá, o carregamento valeria duas, talvez três vezes essa quantia para compradores particulares... digamos, quatro e meio milhões americanos. Certo?
— Não sei exatamente.
— Ah, mas eu sei. O lucro perdido foi de mais de três milhões... O investimento perdido de cerca de um milhão e meio.
— E daí?
— Daí que todos sabemos que os xangaienses são tão reservados e unidos quanto os cantonenses, os chu chow, os fukienenses ou qualquer outro pequeno agrupamento de chineses. Portanto, é claro que a tripulação xangaiense foi quem contrabandeou... têm que ser eles, Ian, embora não possamos prová-lo, ainda. Portanto, pode apostar seu último tostão que os xangaienses também contrabandearam o ouro de Macau para Hong Kong, e para dentro do Eastern Cloud, que foi dinheiro xangaiense que comprou o ouro originariamente em Macau, e que, portanto, é certo que parte desse dinheiro pertencia aos fundos da Pang Verde.
— Não tem sentido.
— Já teve notícias de Tsu-yan? Dunross fitou-o.
— Não. E vocês?
— Ainda não, mas estamos investigando. — Brian fitou-o, também. — O ponto que estou enfatizando é que a Pang
Verde foi massacrada, e que os criminosos odeiam perder o seu dinheiro ganho com tanto esforço, portanto a Struan pode esperar um bocado de encrenca, a não ser que você corte o mal pela raiz, como sugeri.
— Nem todos os membros da Pang Verde são criminosos.
— Isso é questão de opinião, Ian. Segundo ponto, exclusivamente para os seus ouvidos: temos certeza de que Tsu-yan está no negócio de contrabando de ouro. Meu terceiro e último ponto é que, se uma certa companhia não quer seus navios apreendidos por contrabandear ouro, devia diminuir facilmente o risco, reduzindo suas importações de ouro para Macau.
— Como disse? — falou Dunross, agradavelmente surpreso por notar que conseguira manter a voz calma, perguntando-se quanto o sei sabia, e quanto estava tentando adivinhar.
Brian Kwok soltou um suspiro e continuou a apresentar as informações que Roger Crosse lhe dera:
— Nelson Trading.
Com grande esforço, Dunross manteve o rosto impassível.
— Nelson Trading?
— É. Nelson Trading Company Limited of London. Como sabe, a Nelson Trading tem a licença exclusiva do governo de Hong Kong para a compra de ouro em barra no mercado internacional para os joalheiros de Hong Kong e, o que é muitíssimo mais importante, o monopólio igualmente exclusivo para o transbordo das barras de ouro sob retenção alfandegária através de Hong Kong para Macau... juntamente com uma segunda companhia menor, a Companhia de Metais Preciosos Saul Feinheimer, também de Londres. A Nelson Trading e a Feinheimer têm diversas coisas em comum. Diversos diretores, por exemplo, os mesmos advogados, por exemplo.
— É?
— É. Creio que você também faz parte das juntas diretoras.
— Faço parte das juntas de quase setenta companhias — disse Dunross.
— É verdade, e nem todas são total ou parcialmente de propriedade da Struan. É claro que algumas delas podem ser de propriedade total da Struan, secretamente, através de representantes, não é?
— É, claro.
— É uma sorte que em Hong Kong não tenhamos que enumerar os diretores... ou os bens, não é?
— Aonde está querendo chegar, Brian?
— Outra coincidência: os escritórios da Nelson Trading na cidade de Londres ficam no mesmo prédio de sua subsidiária britânica, a Struan London Limited.
— É um prédio grande, Brian, num dos melhores pontos da cidade. Lá deve haver umas cem companhias.
— Muitos milhares, se incluirmos todas as companhias registradas com advogados, ali, todas as companhias holding que incluem outras companhias, com diretores representantes, que escondem todo tipo de esqueletos no armário.
— E daí?
Dunross agora pensava com toda a clareza, imaginando aonde Brian conseguira todas aquelas informações, perguntando-se também que diabo significava aquela conversa. A Nelson Trading fora uma subsidiária secreta, de propriedade integral da Struan, através de representantes, desde que fora formada em 1953, especificamente para o comércio de ouro em Macau — já que Macau era o único lugar da Ásia onde a importação de ouro era legal.
— A propósito, Ian, já conheceu aquele gênio português de Macau, Sr. Lando Mata?
— Já. Já, sim. Homem encantador.
— É mesmo... e muito bem relacionado. É voz corrente que há uns quinze anos ele persuadiu as autoridades de Macau a criarem um monopólio para a importação de ouro, depois a venderem o monopólio para ele, e mais dois amigos, por uma modesta taxa anual: cerca de um dólar americano a onça. É o mesmo sujeito, Ian, que conseguiu que as autoridades de Macau legalizassem o jogo... e, curiosamente, que lhe concedessem, e a mais dois amigos, o mesmo monopólio. Tudo muito cômodo, não é?
Dunross não respondeu, apenas ficou fitando o sorriso e os olhos que não sorriam.
— Assim, tudo correu mansamente por alguns anos — continuou Brian. — Depois, em 1954, alguns entusiastas do ouro de Hong Kong o procuraram (a nossa lei do ouro foi mudada em 1954) e lhe ofereceram um aperfeiçoamento, agora legal, do seu plano: a companhia deles compra o ouro em barra legalmente nos mercados mundiais para esse sindicato de Macau ao preço legal de trinta e cinco dólares a onça, e o traz para Hong Kong abertamente, de avião ou navio. Ao chegar, o pessoal alfandegário de Hong Kong vigia e supervisiona, legalmente, o transbordo de Kai Tak, ou do cais, para as barcas de Macau ou o hidroavião Catalina. Quando a barca ou o hidroavião chega a Macau, é recebido pelos guardas alfandegários portugueses, e o ouro, todo em barras regulamentares de quatrocentas onças, é levado sob guarda até os carros, na verdade, táxis, que o conduzem ao banco. Fica num prediozinho feio e escondido, não faz transações bancárias normais, não tem clientes, ao que se saiba... exceto o sindicato... nunca abre as portas... exceto para o ouro... e não gosta nem um pouco de visitantes. Adivinhe quem é o dono dele? O Sr. Mata... e o seu sindicato. Uma vez dentro do banco, o ouro some! — Brian Kwok abriu um sorriso como um mágico fazendo o seu melhor truque. — Até agora, neste ano, cinqüenta e três toneladas; quarenta e oito toneladas no ano passado! A mesma coisa no ano anterior, e no ano anterior a ele, e assim por diante.
— É um bocado de ouro — disse Dunross, prestativo.
— É, sim. O que é muito estranho é que nem as autoridades de Macau nem as de Hong Kong parecem se importar com o fato de que o que entra parece nunca sair. Está me acompanhando ?
— Estou.
— Claro que o que acontece é que, uma vez dentro do banco, o ouro é derretido das barras regulamentares de quatrocentas onças para pequenos pedaços, barras de dois taéis, ou, com mais freqüência, de cinco taéis, que são carregadas e contrabandeadas mais facilmente. Agora, chegamos à única parte ilegal de toda a maravilhosa cadeia: retirar o ouro de Macau e contrabandeá-lo para Hong Kong. Claro que não é ilegal retirá-lo de Macau, somente contrabandeá-lo para Hong Kong. Mas você e eu sabemos que é relativamente fácil contrabandear qualquer coisa para Hong Kong. E a beleza incrível da coisa é que, uma vez dentro de Hong Kong, não importa como o ouro chegou aqui, é perfeitamente legal para qualquer pessoa possuí-lo, e não se fazem perguntas. Ao contrário de, digamos, nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, onde nenhum cidadão tem o direito de possuir, particularmente, ouro em barra. Uma vez que se tem posse legal dele, pode-se exportá-lo legalmente.
— Qual é o propósito de toda essa conversa, Brian? — perguntou Dunross, tomando o seu conhaque.
Brian Kwok girou a bebida envelhecida e perfumada no copo imenso e deixou o silêncio pesar. Finalmente, falou:
— Nós queremos ajuda.
— Nós? Está se referindo ao Serviço Especial de Informações?
Dunross estava espantado.
— Quem no SEI? Você?
Brian Kwok hesitou.
— O Sr. Crosse em pessoa.
— Que ajuda?
— Ele gostaria de ler todos os seus relatórios de Alan Medford Grant.
— Como disse? — falou Dunross, dando-se um tempo para pensar, pois jamais esperara aquilo.
Brian Kwok apanhou uma fotocópia da primeira e última páginas do relatório interceptado, e estendeu-a.
— Uma cópia disto acaba de chegar às nossas mãos. — Dunross lançou um olhar às páginas. Era evidente que eram genuínas. — Gostaríamos de dar uma olhada rápida nos outros.
— Não estou entendendo.
— Não trouxe todo o relatório, só por conveniência, mas, se quiser, posso trazê-lo amanhã — falou Brian, e seu olhar se manteve firme. — Gostaríamos muito... o Sr. Crosse disse que apreciaria a ajuda.
A enormidade das implicações do pedido deixou Dunross paralisado por um momento.
— Este relatório (e os outros, se ainda existirem) são particulares — ouviu sua voz dizer, cautelosamente. — Pelo menos todas as informações nele contidas são particulares para mim, pessoalmente, e para o governo. Certamente vocês poderão conseguir tudo o que desejam através dos seus próprios canais de informações.
— É. Nesse meio tempo, Ian, o superintendente Crosse realmente apreciaria se você nos deixasse dar uma espiada ligeira.
Dunross tomou um gole de conhaque, a mente em estado de choque. Sabia que poderia facilmente negar que os outros existiam e queimá-los, ocultá-los ou simplesmente deixá-los onde estavam, mas não queria deixar de ajudar o Serviço Especial de Informações. Era seu dever ajudá-los. O sei era uma parte vital da Seção Especial, e da segurança da colônia, e ele estava convencido de que, sem eles, a colônia e toda a posição deles na Ásia seriam insustentáveis. E sem um maravilhoso serviço de contra-informações, se um vigésimo dos relatórios de Alan Medford Grant fosse verdade, seus dias estariam contados.
"Santo Deus, nas mãos erradas..."
Sentiu uma opressão no peito enquanto tentava resolver o seu dilema. Parte daquele último relatório lhe viera à cabeça: sobre o traidor na polícia. Depois, lembrou-se de que Kiernan lhe contara que suas cópias atrasadas eram as únicas que existiam. Quanta coisa era só do seu conhecimento, quanta era do conhecimento do Serviço de Informações britânico? Por que o sigilo? Por que Grant não recebera permissão? "Deus, digamos que eu esteja errado afirmando serem algumas coisas excesso de imaginação! Nas mãos erradas, nas mãos inimigas, muito daquela informação será letal."
Com esforço, acalmou-se e concentrou-se.
— Pensarei no que disse e falarei com você amanhã. Bem cedinho.
— Desculpe, Ian. Mandaram que eu insis... que eu lhe fizesse ver a urgência da situação.
— Você ia dizer insistisse?
— Ia. Lamento. Queremos pedir a sua ajuda. Este é um pedido formal de cooperação.
— E o Eastern Cloud e a Nelson Trading são o outro lado da permuta?
— O Eastern Cloud é um presente. A informação também foi um presente. A Nelson Trading não nos diz respeito, exceto por um interesse passageiro. Tudo o que foi dito é confidencial. Ao que eu saiba, não temos registros.
Dunross examinou o amigo, as maçãs do rosto altas, os olhos largos, de pálpebras pesadas, francos e firmes, o rosto atraente e bem-proporcionado, com sobrancelhas negras e grossas.
— Leu o relatório, Brian?
— Li.
— Então entende o meu dilema — falou, testando-o.
— Ah, está se referindo ao tal traidor da polícia?
— O que disse?
— Está certo ao ser cauteloso. Certíssimo. Está se .referindo à parte que cita um ser hostil possivelmente ao nível de superintendente?
— Estou. Sabem quem ele é?
— Não. Ainda não.
— Suspeitam de alguém?
— Suspeitamos. Está sendo vigiado, agora. Não precisa se preocupar com isso, Ian, as cópias atrasadas serão vistas apenas por mim e pelo Sr. Crosse. Nada transpirará, não se preocupe.
— Um momentinho, Brian... eu não disse que elas existiam — falou Dunross, fingindo irritação, e imediatamente notou um lampejo nos olhos do outro, que tanto poderia ser de raiva como de desapontamento. O rosto continuara impassível. — Ponha-se na minha posição, um leigo — falou, os sentidos aguçadíssimos, continuando na mesma linha. — Seria um imbecil chapado de manter informações como essas soltas por aí, não acha? Muito mais inteligente seria destruí-las... uma vez que tivesse tomado providências quanto às partes pertinentes. Não acha?
— É.
— Deixemos a coisa nesse pé, por hoje. Até cerca de dez horas da manhã.
Brian Kwok hesitou. Depois, sua fisionomia endureceu.
— Isso não é um jogo de salão, Ian. Não vale algumas toneladas de ouro, ou algumas transações na Bolsa, ou alguns negócios imobiliários escusos, não importa quantos milhões estejam envolvidos. Este jogo é mortal, e os milhões envolvidos são gente, gerações por nascer e a praga comunista. A Sevrin é um perigo. O KGB também... até os nossos amigos da CIA e do KMT podem ser igualmente perversos, se preciso for. É melhor postar uma forte guarda nos seus arquivos aqui, hoje à noite.
Dunross fitou o amigo, impassível.
— Então, sua posição oficial é de que esse relatório é exato?
— Crosse acha que pode ser. Talvez fosse de bom alvitre termos um homem aqui, por via das dúvidas, não acha?
— Faça o que achar melhor, Brian.
— Devemos botar um homem em Shek-O?
— Faça o que achar melhor, Brian.
— Não está cooperando muito, não é?
— Está errado, amigão. Estou levando o que você disse muito a sério — disse Dunross, vivamente. — Quando arranjou a cópia, e como?
Brian Kwok hesitou.
— Não sei, e se soubesse, não sei se deveria lhe dizer. Dunross se pôs de pé.
— Bem, então vamos procurar Crosse.
— Mas por que os Gornts e os Rothwells odeiam tanto os Struans e os Dunrosses, Peter? — perguntava Casey. Ela e Bartlett estavam passeando pelos lindos jardins na noite fresca, ao lado de Peter Marlowe e da mulher, Fleur.
— Ainda não conheço todos os motivos — respondeu o inglês. Era um homem alto de trinta e nove anos, cabelos claros, sotaque distinto e uma estranha intensidade por trás dos olhos azul-acinzentados. — Dizem os boatos que a inimizade remonta aos Brocks... que há um tipo de ligação, uma ligação de família entre os Gornts e os Brocks. Talvez remonte ao velho Tyler Brock em pessoa. Ouviu falar nele?
— Claro — respondeu Bartlett. — Como começou a rixa?
— Quando Dirk Struan era garoto, foi aprendiz de marinheiro num dos navios mercantes armados de Tyler Brock. A vida no mar era muito brutal, na época, a vida em qualquer parte, na verdade, mas então no mar... nem se fala! Bem, de qualquer modo, Tyler Brock açoitou impiedosamente o jovem Struan por uma falta imaginária, depois deixou-o como morto em algum local da costa da China. Dirk Struan tinha catorze anos, na época, e jurou por Deus e pelo Diabo que quando fosse homem arrasaria a Casa de Brock e Filhos e iria atrás de Tyler com um chicote de múltiplas pontas. Ao que me conste, nunca o fez, embora contem que espancou até a morte o filho mais velho de Tyler, com um ferro de combate chinês.
— O que é isso? — quis saber Casey, inquieta.
— É como uma clava, Casey, três ou quatro pequenos elos de ferro com uma bola de pregos numa das extremidades e um cabo na outra.
— Ele o matou para vingar-se do pai dele? — perguntou ela, chocada.
— Esse detalhe ainda não sei, mas aposto que tinha seus motivos. — Peter Marlowe deu um sorriso estranho. — Dirk Struan, o velho Tyler e todos os outros homens que fizeram o Império Britânico, conquistaram a índia, abriram a China, meu Deus, eram gigantes! Será que já lhes contei que Tyler tinha um olho só? Um dos seus olhos foi arrancado por uma adriça açoitada por um temporal na década de 1830, quando corria com seu veleiro de três mastros, o White Witch, atrás de Struan, com um grande carregamento de ópio a bordo, Struan ia um dia à frente dele no seu veleiro, o China Cloud, na corrida dos campos de ópio britânico da índia para os mercados da China. Dizem que Tyler apenas derramou conhaque no buraco do olho arrancado e xingou seus marinheiros para que soltassem mais as velas. — Peter Marlowe hesitou, depois continuou: — Dirk foi morto por um tufão que atingiu Happy Valley em 1841, e Tyler morreu sem um tostão, falido, em 1863.
— Por que sem um tostão, Peter? — perguntou Casey.
— Conta a lenda que Tess, sua filha mais velha, a futura Bruxa Struan, vinha tramando a derrocada do pai há anos... sabiam que ela se casou com Culum, o único filho de Dirk? Bem, a Bruxa Struan tramou secretamente com o Victoria Bank, que Tyler fundara na década de 1840, e com a Cooper-Tillman, os sócios de Tyler nos Estados Unidos. Eles o atraiçoaram e derrubaram a grande Casa de Brock e Filhos num só golpe gigantesco. Ele perdeu tudo... os navios, as cargas de ópio, propriedades, armazéns, ações, tudo. Foi destroçado.
— O que lhe aconteceu?
— Não sei, ninguém sabe ao certo. Mas contam que naquela mesma noite, 31 de outubro de 1863, o velho Tyler foi para Aberdeen (um porto que fica do outro lado de Hong Kong) com o neto, Tom, que tinha então vinte e cinco anos, e seis marujos, tomaram à força uma lorcha marítima (a lorcha é um navio com casco chinês mas equipamento europeu) e se puseram ao mar. Dizem que ele estava louco de raiva, e hasteou a flâmula dos Brocks no mastro; tinha pistolas na cinta e uma espada de abordagem sangrenta na mão... eles haviam matado quatro homens para tomar o navio. Na garganta do porto, um cúter veio atrás dele, e ele o fez em pedaços... naquele tempo quase todos os barcos eram armados com canhões por causa dos piratas... estes mares têm sempre sido infestados de piratas, desde tempos imemoriais. E assim, o velho Tyler pôs-se ao mar, um bom vento soprando do leste, e uma tempestade chegando. Na desembocadura de Aberdeen, ele começou a soltar pragas. Amaldiçoou a Bruxa Struan e amaldiçoou a ilha, amaldiçoou o Victoria Bank, que o traíra, e os Coopers da Cooper-Tillman. Porém, mais do que todos, amaldiçoou o tai-pan que estava morto há mais de vinte anos. E o velho Tyler Brock jurou vingança. Dizem que berrou que ia para o norte fazer pilhagens e que ia começar de novo. Ia construir de novo a sua Casa, e então: "...então, eu volto, por Deus... eu volto e me vingo, e vou ser a Casa Nobre, por Deus... eu volto..."
Bartlett e Casey sentiram um frio na espinha quando Peter Marlowe engrossou a voz. Depois, ele continuou:
— Tyler foi para o norte, e nunca mais se soube notícias dele, nenhum vestígio dele, da lorcha ou da tripulação, nunca mais. Mesmo assim, a presença dele ainda está aqui... como a de Dirk Struan. É melhor que não esqueçam que, ao lidarem com a Casa Nobre, também estarão lidando com esses dois, os seus fantasmas. Na noite em que Ian Dunross assumiu o posto de tai-pan, a Struan perdeu o seu principal cargueiro, o Lasting Cloud, num tufão. Foi um desastre financeiro gigantesco. Ele soçobrou perto de Formosa, e perdeu-se com todos os seus marinheiros, exceto um moço de convés inglês. O jovem estivera na ponte e jurou que havia sido atraído para cima das rochas por luzes falsas, e que ouvira um maníaco rindo enquanto iam a pique.
Casey estremeceu involuntariamente.
Bartlett notou, e deu-lhe o braço, com naturalidade, e ela sorriu para ele. Linc disse:
— Peter, as pessoas aqui falam sobre gente que já morreu há cem anos como se estivessem na sala ao lado.
— É um antigo hábito chinês — replicou Peter Marlowe, prontamente. — Os chineses acreditam que o passado controla o futuro e explica o presente. Claro que Hong Kong tem apenas cento e vinte anos de existência, portanto, um homem de oitenta anos hoje... Veja por exemplo Phillip Chen, o atual representante nativo da Struan. Está com sessenta e cinco anos... o seu avô foi o famoso Sir Gordon Chen, filho ilegítimo de Dirk Struan, que morreu em 1907, com oitenta e seis anos. Phillip Chen estaria então com nove anos. Um garoto vivo de nove anos se lembraria de todas as histórias que seu adorado avô lhe teria contado sobre o seu pai, o tai-pan, e May-may, sua famosa amante. Dizem que o velho Sir Gordon Chen era uma figura e tanto, um verdadeiro ancestral. Teve duas mulheres oficiais, oito concubinas de idades variadas, e deixou a imensa família Chen rica, poderosa, e metida em tudo o que era possível. Peça a Dunross para lhe mostrar os seus retratos... vi apenas cópias das telas, mas, puxa vida, que homem bonito era! Há dúzias de pessoas vivas aqui, hoje em dia, que o conheceram... um dos grandes fundadores originais. E, meu Deus, a Bruxa Struan morreu faz apenas quarenta e seis anos. Olhe ali... — Fez sinal para um homenzinho murcho, magro como bambu, e igualmente resistente, conversando animadamente com uma jovem. — Aquele é Vincent McGore, tai-pan da quinta grande hong, a International Asian Trading. Trabalhou durante anos para Sir Gordon, e depois para a Casa Nobre. — Abriu um sorriso de repente. — Conta a lenda que ele foi amante da Bruxa Struan quando tinha dezoito anos e acabara de saltar de um cargueiro de gado vindo de algum porto do Oriente Médio... ele de escocês não tem nada.
— Pare com isso, Peter — exclamou Fleur. — Você acaba de inventar esta história!
— Como ousa? — disse ele, sem deixar de sorrir. — Ela só tinha setenta e cinco anos, na época.
Todos riram.
— Qual é a verdade? — perguntou Casey.
— Quem sabe o que é verdade e o que é ficção, Casey? Foi o que me contaram.
— Eu não acredito — disse Fleur, Confiantemente. — Peter inventa histórias.
— Onde descobriu tudo isso, Peter? — perguntou Bartlett.
— Uma parte eu li. Na biblioteca do Tribunal de Justiça há exemplares de jornais que datam de 1870. Há também a História dos Tribunais de Justiça de Hong Kong. É um livro que mostra o lado pior de Hong Kong, se você estiver interessado. Pombas, as coisas que aprontavam, os pseudojuízes e secretários coloniais, governadores e policiais, os tai-pans, os bem-nascidos e os malnascidos. Roubalheira, assassinato, corrupção, adultério, pirataria, suborno... está tudo lá!
"Além disso, fiz perguntas. Há dúzias de velhos moradores da China que adoram relembrar os velhos tempos, e que sabem um bocado de coisas sobre a Ásia e Xangai. Além disso, há gente que odeia, ou tem inveja, e mal pode esperar para derramar um pouco de veneno numa boa reputação, ou numa que seja má. Naturalmente, a gente peneira, tenta peneirar a verdade da mentira, e isso é muito difícil, se não impossível."
Por um momento, Casey ficou imersa em seus pensamentos. Depois, indagou:
— Peter, como era Changi? De verdade?
O rosto dele não se alterou, mas os olhos, sim.
— Changi foi a gênese, o lugar de recomeçar. — O tom de voz dele deixou-os a todos gelados, e ela viu Fleur dar a mão ao marido, e num momento ele voltou ao presente. — Estou bem, querida — falou. Em silêncio, um tanto encabulados, eles saíram do caminho e passaram para o terraço inferior. Casey soube que tinha se metido onde não devia. — Que tal tomarmos uma bebida, hem, Casey? — falou Peter Marlowe, bondosamente, consertando a situação.
— Sim. Obrigada, Peter.
— Linc — falou Peter Marlowe —, existe uma incrível inclinação para a violência que passa de geração a geração nesses bucaneiros... porque é o que são. Este é um lugar muito especial... gera gente muito especial. — Depois de uma pausa, acrescentou, pensativo: — Ouvi dizer que está pensando em fazer negócios por aqui. Se eu fosse você, seria muito, muito cuidadoso.
23h05m
Dunross, seguido por Brian Kwok, dirigia-se para Roger Crosse, chefe do Serviço Especial de Informações, que estava no terraço, batendo papo amavelmente com Armstrong e os três americanos, Ed Langan, comandante John Mishauer, o oficial de marinha fardado, e Stanley Rosemont, um homem alto, na casa dos cinqüenta. Dunross não sabia que Langan era do FBI, nem que Mishauer pertencia ao Serviço de Informações da Marinha americana, apenas que serviam no consulado. Mas sabia que Rosemont era da CIA, embora desconhecesse o seu posto. As senhoras ainda estavam voltando devagar para as suas mesas, ou tagarelando nos terraços e no jardim. Os homens saboreavam seus drinques, e a festa seguia gostosa e suave como a noite. Alguns casais dançavam no salão, ao som de música lenta e doce. Adryon estava entre essas pessoas, e ele viu Penelope aturando estoicamente Havergill. Notou Casey e Bartlett conversando animadamente com Peter e Fleur Marlowe, e teria adorado poder escutar o que diziam. Aquele tal de Marlowe podia facilmente tornar-se uma pedrinha no sapato, pensou, de passagem. "Já está sabendo segredos demais, e se lesse o nosso livro... De maneira alguma!", pensou. "Absolutamente. Esse é um livro que jamais lerá. Como Alastair pôde ser tão estúpido?"
Alguns anos atrás, Alastair Struan contratara um famoso escritor para escrever a história da Struan, para comemorar os seus cento e vinte e cinco anos de comércio, e entregara a ele velhos livros razão e malas cheias de velhos documentos, sem tê-los lido ou selecionado. Dentro de um ano, o escritor produzira um trabalho inflamado que documentava muitos acontecimentos e transações que se pensava enterrados para sempre. Em choque, agradeceram ao escritor, pagaram o seu serviço, acrescentando uma gratificação generosa, e o livro (dois únicos exemplares) fora colocado no cofre do tai-pan.
Dunross chegara a pensar em destruir os exemplares. Mas depois pensou: "A vida é a vida, a sorte é a sorte, e desde que apenas nós leiamos o livro, não há perigo".
— Alô, Roger — disse, sombriamente divertido. — Podemos lhes fazer companhia?
— Claro, tai-pan. — Crosse cumprimentou-o calorosamente, e os outros também. — Está em casa!
Os americanos sorriram educadamente da piada. Bateram papo por um momento sobre coisas inconseqüentes e as corridas de sábado, depois Langan, Rosemont e o comandante Mishauer, pressentindo que os outros queriam conversar em particular, pediram licença e saíram. Quando estavam sozinhos, Brian Kwok resumiu exatamente o que Dunross lhe dissera.
— Nós certamente apreciaremos a sua ajuda, Ian — disse Crosse, os olhos claros e penetrantes. — Brian tem razão sobre os prováveis riscos envolvidos... se, é claro, existirem outros relatórios de Alan Medford Grant. Mesmo que não existam, alguns homens maus podem querer investigar.
— Exatamente como e quando arranjou uma cópia do meu último relatório?
— Por quê?
— Vocês mesmos a conseguiram... ou foi por intermédio de uma terceira pessoa?
— Por quê?
A voz de Dunross endureceu.
— Porque é importante.
— Por quê?
O tai-pan o fitou, e os três homens sentiram a força da sua personalidade. Mas Crosse era igualmente voluntarioso.
— Posso responder parcialmente à sua pergunta, Ian — disse, serenamente. — Se o fizer, responderá à minha?
— Responderei.
— Conseguimos uma cópia do seu relatório hoje de manhã. Um agente de informações (imagino que na Inglaterra) deu a dica a um amigo aqui de Hong Kong que um mensageiro estava lhe trazendo algo que nos interessaria. Esse contato de Hong Kong nos perguntou se estaríamos interessados em dar uma espiada na coisa... por um preço, é claro.
— Crosse era tão convincente que os dois outros policiais que conheciam a história real ficaram duplamente impressionados.
— Hoje de manhã, a fotocópia foi entregue na minha casa por um chinês que eu nunca tinha visto antes. Ele foi pago... naturalmente, você há de compreender que nessas coisas não se perguntam nomes. Agora, por quê?
— A que horas, hoje de manhã?
— Às seis horas e quatro minutos, se quer a hora exata. Mas por que isso é tão importante para você?
— Porque Alan Medford Grant...
— Ah, papai, desculpe interrompê-lo — falou Adryon, aparecendo sem fôlego, trazendo consigo um rapaz alto e bonitão, o dinner jacket largo e amassado, a gravata torta e os sapatos gastos e mal engraxados destoando de toda aquela elegância. — Desculpe interromper, mas posso mexer na música?
Dunross fitava o rapaz. Conhecia Martin Haply e a sua reputação. O jornalista canadense treinado na Inglaterra tinha vinte e cinco anos, e estava há dois na colônia, e agora era o flagelo da comunidade empresarial. Seu sarcasmo cortante e devassas penetrantes na vida de personalidades e em práticas comerciais que eram legais em Hong Kong, mas em nenhuma outra parte do mundo ocidental, eram uma irritação constante.
— A música, papai — repetiu Adryon, continuando —, é pavorosa. Mamãe disse que tinha que pedir licença a você. Posso pedir-lhe que toquem algo diferente, por favor?
— Tudo bem, mas não vá transformar minha festa num happening.
Ela riu, e ele voltou sua atenção para Martin Haply.
— Boa noite.
— Boa noite, tai-pan — disse o rapaz com um sorriso confiante e desafiador. — Adryon me convidou. Espero não incomodar por ter vindo depois do jantar.
— Claro que não. Divirta-se — disse Dunross, depois acrescentou, secamente: — Há muitos amigos seus, aqui.
Haply riu.
— Perdi o jantar porque estava seguindo a pista de uma fofoca e tanto.
— É?
— É. Parece que certos interesses, em conjunção com um certo grande banco, têm espalhado boatos maldosos sobre a solvência de um certo banco chinês.
— Está se referindo ao Ho-Pak?
— Mas é tudo besteira. Os boatos. Só mais tapeações hong-konguianas.
— É? — O dia todo Dunross ouvira boatos sobre a situação periclítante do Ho-Pak Bank de Richard Kwang. — Tem certeza?
— Vou escrever um artigo a respeito no Guardian de amanhã. Mas, por falar no Ho-Pak... — Martin Haply acrescentou, despreocupadamente: — souberam que mais de cem pessoas tiraram todo o seu dinheiro da agência de Aberdeen, hoje à tarde? Pode ser o começo de uma corrida e...
— Desculpe, papai... vamos indo. Martin, não está vendo que papai está ocupado?
Ela se esticou e deu um leve beijo em Dunross, e a mão dele automaticamente enlaçou-a e apertou-a.
— Divirta-se, querida.
Ele ficou olhando enquanto ela se afastava rapidamente, com Haply logo atrás. "Filho da puta atrevido", pensou Dunross distraidamente, ansioso agora pelo artigo do dia seguinte, sabendo que Haply era meticuloso, insubornável, e muito bom na sua profissão. Será que Richard tinha mesmo ultrapassado os seus limites?
— O que dizia, Ian? Sobre Alan Medford Grant? — falou uma voz, interrompendo-lhe os pensamentos.
— Ah, sim, desculpe. — Dunross voltou a sentar-se à mesa, pondo em compartimentos mentais os outros problemas. — Alan está morto — falou, suavemente.
Os três policiais fitaram-no, boquiabertos.
— O quê?
— Recebi um telegrama a um minuto para as oito desta noite, e falei com o assistente dele em Londres às nove horas e onze minutos. — Dunross observava-os. — Queria saber o seu "quando", porque é óbvio que daria tempo de sobra para o seu espião do KGB (se existir) ligar para Londres e mandar assassinar o pobre Alan. Não daria?
— Daria. — A fisionomia de Crosse estava séria. — A que horas ele morreu?
Dunross contou-lhe toda a conversa que tivera com Kiernan, exceto o detalhe do telefonema para a Suíça. Uma intuição advertiu-o para ficar calado.
— Agora, a pergunta é: foi acidente, coincidência ou assassinato?
— Não sei — disse Crosse. — Mas não creio em coincidências.
— Nem eu.
— Santo Deus — falou Armstrong, entre dentes —, se Alan não tinha autorização... só Deus sabe o que há naqueles relatórios, Deus e você, Ian. Se você possui as únicas cópias existentes, isso as torna potencialmente mais explosivas do que nunca.
— Se é que existem — disse Dunross.
— E existem?
— Eu lhes direi amanhã. Às dez horas. — Dunross se levantou. — Querem me dar licença, por favor — disse cortesmente, com o seu charme tranqüilo. — Preciso ir atender agora aos meus outros convidados. Ah, só mais uma coisa. E quanto ao Eastern Cloud? Roger Crosse respondeu:
— Será liberado amanhã.
— Haja o que houver? Crosse pareceu ficar chocado.
— Santo Deus, tai-pan, não estávamos negociando! Brian, você não disse que estávamos apenas tentando ajudar?
— Disse, sim, senhor.
— Os amigos devem sempre se ajudar entre si, não é, tai-pan?
— É. Sem dúvida. Obrigado.
Ficaram vendo-o afastar-se até sumir de vista.
— Sim ou não? — murmurou Brian Kwok.
— Se existem? Eu diria que sim — falou Armstrong.
— Claro que existem — disse Crosse, cheio de irritação. — Mas onde? — Pensou por um momento, depois acrescentou, com mais irritação ainda, e o coração dos dois homens bateu fora do compasso: — Brian, enquanto você estava com o Ian, Feng Garçom de Vinhos me contou que nenhuma das suas chaves serviu.
— Puxa, que pena, senhor — disse Brian Kwok, cautelosamente.
— É. O cofre aqui não vai ser moleza. Armstrong se manifestou:
— Quem sabe devíamos procurar em Shek-O, senhor, por via das dúvidas.
— Você guardaria ali tais documentos... se existissem?
— Não sei, senhor. Dunross é imprevisível. Eu diria que estão na sua cobertura na Struan, seria o local mais seguro.
— Já esteve lá?
— Não, senhor.
— Brian?
— Não, senhor.
— Nem eu. — Crosse sacudiu a cabeça. — Mas que merda.
Brian Kwok disse, pensativo:
— Poderíamos somente mandar uma equipe à noite, senhor. Existe um elevador particular que leva àquele andar, mas é preciso uma chave especial. Parece que há também um outro elevador direto que sai da garagem subterrânea.
— Deram uma mancada dos diabos em Londres — falou Crosse. — Não entendo por que aqueles cretinos não estavam por dentro. Nem por que Alan não pediu permissão.
— Quem sabe não queria que o pessoal interno soubesse que estava transando com um cara de fora.
— Se havia um cara de fora, podia haver outros. Crosse soltou um suspiro e, imerso em seus pensamentos, acendeu um cigarro. Armstrong sentiu as pontadas de fome de tabaco. Tomou um gole de conhaque, mas isso não aliviou a dor.
— Langan passou a sua cópia adiante, senhor?
— Sim, para Rosemont, aqui, e, pela mala diplomática, para o seu QG do FBI em Washington.
— Pombas — lamentou-se Brian Kwok —, então Hong Kong inteira vai ficar sabendo, pela manhã.
— Rosemont me assegurou que não. — Crosse deu um sorriso sem humor. — Contudo, é melhor estarmos preparados.
— Quem sabe o Ian cooperaria mais prontamente, se soubesse, senhor.
— Não, melhor deixarmos isso entre nós. Mas ele está aprontando alguma coisa.
Armstrong falou:
— Quem sabe se o superintendente Foxwell falasse com ele, senhor, são velhos amigos.
— Se Brian não conseguiu persuadi-lo, ninguém mais conseguirá.
— O governador, senhor? Crosse sacudiu a cabeça.
— Não há por que envolvê-lo. Brian, cuide de Shek-O.
— Encontro e abro o cofre dele, senhor?
— Não. Basta levar uma equipe para lá e cuidar para que ninguém mais entre. Robert, vá para o QG e ligue para Londres. Chame Pensely na MI-5 e Sinders na MI-6. Descubra a hora exata do ocorrido com Alan. Tudo o que puder. Verifique a história do tai-pan. Verifique tudo... pode ser que haja outras cópias. A seguir, mande uma equipe de três agentes para cá, para vigiar o local hoje à noite, especialmente para vigiar Dunross, sem que ele saiba, é claro. Vou me encontrar com o chefe deles na junção da Peak Road com a Culum's Way dentro de uma hora, e isso lhe dará tempo o bastante. Mande outra equipe vigiar o prédio da Struan. Ponha um homem na garagem... por via das dúvidas. Deixe o seu carro comigo, Robert. Encontro vocês no meu gabinete dentro de uma hora e meia. Tratem de ir andando.
Os dois homens foram se despedir do anfitrião, e agradecer-lhe; depois foram para o carro de Brian Kwok. Enquanto desciam a Peak Road no velho Porsche, Armstrong disse o que ambos vinham pensando desde que Dunross lhes contara.
— Se Crosse é o espião, teria tempo de sobra para ligar para Londres, ou avisar a Sevrin, o KGB, ou quem diabo seja.
— Saímos do gabinete dele às seis e dez, onze horas de Londres, portanto não podíamos ter sido nós, não haveria tempo. — Armstrong mudou de posição para aliviar a dor nas costas. — Porra, mas que vontade de fumar um cigarrinho.
— Há um maço no porta-luvas, amigão.
— Amanhã... vou fumar amanhã. Igualzinho aos AA, a um maldito viciado! — Armstrong riu, mas não havia humor na sua risada. Lançou um olhar para o amigo. — Descubra discretamente quem mais leu a pasta de Alan hoje... além de Crosse... o mais rápido que puder.
— Foi o que também pensei.
— Se ele tiver sido o único a lê-la... bem, é mais uma evidência. Não chega a ser uma prova, mas estaremos chegando lá. — Abafou um bocejo nervoso, sentindo-se muito cansado. — Se for mesmo ele, estamos atolados na merda.
Brian dirigia muito depressa e muito bem.
— Ele disse quando deu a cópia para Langan?
— Disse. Ao meio-dia. Almoçaram juntos.
— Bem, então o vazamento de informações poderia ser deles, do pessoal do consulado... aquele lugar está cheio de boquirrotos.
— É possível, mas meu faro diz que não. Rosemont é legal, Brian... e o Langan. São profissionais.
— Não confio neles.
— Você não confia em ninguém. Ambos pediram aos seus QGs para verificarem as viagens de Bartlett e Casey a Moscou.
— Ótimo. Acho que vou mandar um telex para um amigo em Ottawa. Lá também pode haver alguma ficha deles. Aquela Casey é mesmo uma uva, não é? Será que estava usando alguma coisa sob a roupa?
— Aposto dez dólares contra um pêni como você nunca vai descobrir.
— Fechado.
Ao dobrarem uma esquina, Armstrong olhou para a cidade lá embaixo, para o porto, o cruzador americano todo iluminado ancorado no cais, do lado de Hong Kong.
— Nos bons tempos teríamos ali meia dúzia dos nossos vasos de guerra — comentou, tristemente. — A boa Marinha Real!
Ele servira em torpedeiros durante a guerra, tenente da Marinha Real. Fora a pique duas vezes, uma em Dunquerque, a segunda vez três dias após o Dia D, perto de Cherburgo.
— É. Uma pena, quanto à marinha, mas, bem, o tempo vai passando.
— Mas não melhora nada, Brian. Uma pena que o raio do Império tenha ido para o brejo! As coisas eram melhores antes. Melhores para toda esta droga de mundo! Maldita guerra! Malditos alemães, malditos japoneses...
— É. Falando na marinha, que tal o Mishauer?
— O sujeito do Serviço de Informações da Marinha americana? Foi legal — disse Armstrong, cansadamente. — Falou muito sobre assuntos navais. Murmurou para o Velho que os Estados Unidos vão dobrar a sua Sétima Frota. É tão super-secreto que nem quis confiar no telefone. Vai haver uma grande expansão por terra no Vietnam.
— Um bando de idiotas... vão ser triturados, como os franceses. Será que não lêem os jornais, para não falar nos relatórios dos serviços de informações?
— Mishauer murmurou também que o porta-aviões nuclear deles vai chegar depois de amanhã para uma visita de oito dias de descanso e recreação. Outro assunto ultra-secreto. Pediu-nos que dobrássemos a segurança... e bancássemos a ama-seca para os ianques em terra.
— Mais chateação.
— É. — E Armstrong acrescentou, secamente: — Especialmente porque o Velho mencionou que um cargueiro soviético danificado chegara à noite, para sofrer reparos.
— Puta que o pariu! — exclamou Brian, corrigindo um golpe de direção involuntário.
— Foi o que eu pensei. Mishauer quase teve um enfarte, e Rosemont soltou palavrões por dois minutos inteiros. O Velho lhes assegurou que, naturalmente, nenhum marujo russo poderá baixar a terra sem permissão especial, como sempre, e que nós os seguiremos, como sempre, mas um ou dois darão um jeito de precisar de um médico, ou coisa parecida, de repente, e talvez escapem da rede.
— É. — Depois de uma pausa, Brian Kwok disse: — Espero que possamos pôr as mãos naquelas pastas de Alan, Robert. A Sevrin é uma faca nas entranhas da China.
— É.
Guiaram em silêncio durante algum tempo.
— Estamos perdendo a nossa guerra, não estamos? — comentou Armstrong.
— Estamos.
23h25m
O cargueiro soviético Soviétski Ivãnov estava ancorado no cais do imenso Estaleiro Wampoa, que fora construído sobre terras recuperadas no lado oriental de Kowloon. Estava todo iluminado por holofotes. Era um navio de vinte mil toneladas que seguia as rotas comerciais da Ásia, partindo de Vladivostok, bem ao norte. Na sua ponte havia muitas antenas e equipamentos modernos de radar. Marinheiros russos rodeavam as pranchas de desembarque da proa e da popa, já em terra. Próximo de cada prancha havia um policial fardado, um jovem chinês usando as calças curtas caqui regulamentares, meias três-quartos, cinto e sapatos pretos. Um marujo que se dirigia a terra teve seu passe examinado pelos colegas, depois pelo guarda, e então, enquanto caminhava para os portões do estaleiro, dois chineses em trajes civis saíram das sombras e começaram a seguir-lhe os passos... abertamente.
Outro marujo desceu pela prancha da popa. Verificaram-lhe o passe e então, logo a seguir, mais policiais chineses à paisana saíram silenciosamente atrás dele.
Sem ser notado, um barco a remo saiu sem fazer barulho do lado oposto da popa do navio e enfiou-se sob as sombras do cais. Deslizou suavemente ao longo da muralha alta na direção de um lance de degraus úmidos que adentravam o mar, a uns cinqüenta metros de distância. Havia dois homens a bordo, e as forquetas estavam abafadas. Na base dos degraus, o barco parou. Os dois homens começaram a aguçar os ouvidos.
Na prancha da proa, um terceiro marujo que ia para a terra desceu cambaleante os degraus escorregadios. Ao chegar ao chão, foi interceptado, examinaram-lhe o passe e começou uma discussão. A guarda de terra recusou-lhe permissão. Ele estava obviamente bêbado, e, portanto, xingando em altos brados, e largou um soco num dos guardas. O homem se desviou e acertou o marujo com um forte soco. A atenção dos dois guardas chineses concentrou-se na luta unilateral. O homem corpulento e despenteado que estava sentado na popa do barco a remo subiu correndo os degraus, cruzou correndo o cais iluminado e os trilhos da estrada de ferro, e sumiu nos becos do estaleiro, sem ser visto. Calmamente, o barco a remo começou a voltar pelo caminho pelo qual viera, e, num momento, a briga acabou. O pobre bêbado foi carregado de volta para bordo, sem brutalidade.
Nos atalhos do estaleiro, o homem despenteado seguia o seu caminho. De quando em vez, hábil e descontraidamente, olhava para trás, para certificar-se de que não estava sendo seguido. Usava terno de tropical escuro e sapatos de boa qualidade de sola de borracha. Seus papéis identificavam-no como Ígor Voranski, marinheiro de primeira classe, marinha mercante soviética.
Ele evitou os portões do estaleiro e o policial que os vigiava, e acompanhou o muro por uns cem metros, até uma porta lateral. A porta ia dar num beco da área de reurbanização de Tai-wan Shan — um labirinto de barracos de ferro corrugado, madeira compensada e papelão. Apressou o passo. Logo saía da área e entrava em ruas fortemente iluminadas, cheias de lojas, barraquinhas e gente, que acabaram por conduzi-lo à Chatham Road, onde fez sinal para um táxi.
— Mong Kok, o mais rápido que puder — disse, em inglês. — Balsas Yaumati.
O motorista fitou-o com insolência.
— Hem?
— Ayeeyah! — replicou Voranski imediatamente, e acrescentou em cantonense rude e perfeito: — Mong Kok! Está surdo? Andou cheirando o Pó Branco? Está me tomando por um demônio estrangeiro turista da Montanha Dourada... eu, claramente uma pessoa de Hong Kong, que morou aqui vinte anos? Ayeeyah! Balsas Yaumati, do outro lado de Kowloon. Precisa de orientação? É da Mongólia Exterior? É um estranho, hem?
O motorista abaixou a bandeira, carrancudo, e arrancou, dirigindo-se para o sul, e depois para o oeste. O homem no assento traseiro vigiava a rua atrás deles. Não enxergou nenhum carro a segui-los, mas mesmo assim não se descontraiu. "São espertos demais aqui", pensou. "Tenha cuidado!" Na estação das Balsas Yaumati, pagou o táxi, deu ao homem a gorjeta estritamente correta, depois entrou no meio do povo, saiu, e fez sinal para outro táxi.
— Balsa Dourada.
O motorista concordou com ar de sono, bocejou e foi para o sul.
No terminal das balsas, ele pagou ao motorista quase antes que este parasse o carro, e se meteu no meio do povo que se apressava para chegar às borboletas das barcas e balsas de Hong Kong. Porém, depois de cruzar a borboleta, ele não se dirigiu para o portão das balsas, mas sim para o banheiro dos homens. Logo saiu de lá e entrou numa cabine telefônica. Agora, bem certo de que não fora seguido, estava mais descontraído.
Enfiou uma moeda no aparelho e discou.
— Sim? — atendeu um homem, falando inglês.
— Sr. Lop-sing, por favor.
— Não conheço tal nome. Aqui não há nenhum Sr. Lop-ting. É engano.
— Quero deixar um recado.
— Lamento, discou o número errado. Olhe no catálogo. Voranski relaxou, o coração bateu mais devagar.
— Quero falar com Arthur — disse, num inglês perfeito.
— Desculpe, ele ainda não chegou.
— Mandaram-lhe que ficasse aí, à espera do meu telefonema — disse, secamente. — Por que houve alteração?
— Quem fala, por favor?
— Brown — falou bruscamente, usando o seu codinome. Acalmou-se um pouco ao notar que a outra voz imediatamente assumiu a justa deferência.
— Ah, Sr. Brown, bem-vindo de volta a Hong Kong. Arthur ligou e me disse que esperasse o seu telefonema. Pediu-me que lhe desse as boas-vindas e dissesse que tudo está preparado para a reunião, amanhã.
— Para quando o espera?
— Estará chegando a qualquer momento, senhor. Voranski praguejou em silêncio, pois tinha obrigação de telefonar para o navio dentro de uma hora. Não gostava de divergências em nenhum plano.
— Está certo — disse. — Diga-lhe que ligue para mim no 32. — Este era o codinome do apartamento seguro deles, no Sinclair Towers. — O americano já chegou?
— Já.
— Ótimo. Veio acompanhado?
— Sim.
— Ótimo. E então?
— Arthur não me contou mais nada.
— Já a conheceu?
— Não.
— E Arthur?
— Não sei.
— Já foi feito contato com qualquer um dos dois?
— Desculpe, não sei. Arthur não me contou.
— E o tai-pan? E quanto a ele?
— Está tudo acertado.
— Ótimo. Quanto tempo vocês levariam para chegar ao 32, se fosse necessário?
— De dez a quinze minutos. Quer que o encontremos lá?
— Decido mais tarde.
— Ah, Sr. Brown, Arthur achou que o senhor talvez gostasse de companhia, depois de uma viagem tão longa. O nome dela é Koh, Maureen Koh.
— Gentil da parte dele... muito gentil.
— O número do telefone dela está ao lado do telefone, no 32. Basta ligar, e ela chegará dentro de meia hora. Arthur queria saber se o seu superior estava com o senhor hoje... talvez também gostasse de companhia.
— Não. Ele virá amanhã, conforme o planejado. Mas amanhã à noite estará esperando a hospitalidade. Boa noite. — Voranski desligou arrogantemente, consciente da sua posição hierárquica mais alta no KGB. Neste exato instante a porta da cabine telefônica se abriu e um chinês entrou violentamente, enquanto outro bloqueava a abertura. — Mas o que...
As palavras morreram enquanto ele morria. O estilete era longo e fino. Saiu com facilidade. O chinês deixou o corpo cair. Fitou o monte inerte por um momento, depois limpou a faca no cadáver e enfiou-a de volta na bainha, na manga da sua roupa. Deu um amplo sorriso para o chinês corpulento que ainda bloqueava a janela de vidro da parte superior da cabine, como se fosse o freguês seguinte, depois colocou uma moeda no aparelho e discou.
No terceiro toque uma voz educada disse:
— Delegacia de Tsim Sha Tsui, boa noite.
O homem deu um sorriso sardônico e perguntou rudemente, em xangaiense:
— Fala xangaiense?
Uma hesitação, um estalido, e agora nova voz, em xangaiense, falou:
— Aqui é o sargento comissionado Tang-po. O que é?
— Um porco soviético escapou da sua rede filha da puta esta noite, com a mesma facilidade com que o novilho caga, mas agora já foi se juntar aos seus ancestrais. Será que nós, da 14K, temos que fazer todo o seu trabalho infestado de estrume para vocês?
— Que sovi...
— Cale a boca e escute! O cadáver de bosta de tartaruga dele está numa cabine telefônica na Balsa Dourada, do lado de Kowloon. Diga aos cornos dos seus superiores para ficarem de olho nos inimigos da China, e não fitando os próprios eus!
Desligou imediatamente e saiu da cabine. Virou as costas momentaneamente e cuspiu no corpo, depois fechou a porta, e foi, junto com o amigo, unir-se às filas de passageiros que se dirigiam para a balsa que partiria para Hong Kong.
Eles não notaram o homem que os seguia. Era um americano baixo e gorducho, vestido como todos os outros turistas, com a inevitável máquina fotográfica à volta do pescoço. Agora, ele se apoiava à amurada de boreste, misturando-se perfeitamente com a multidão, apontando a câmara daqui para lá, enquanto a balsa seguia para a ilha de Hong Kong. Mas, ao contrário dos demais turistas, o filme dele era muito especial, assim como as lentes e a câmara.
— Alô, amigo — disse outro turista, sorriso amplo, aproximando-se dele. — Divertindo-se?
— Claro — retrucou o homem. — Hong Kong é uma beleza, hem?
— Sem dúvida. — Virou-se e admirou a vista. — Deixa Minneapolis no chinelo.
O primeiro homem também se virou, mas sem tirar os chineses da sua linha de visão, depois baixou a voz.
— Temos encrenca.
O outro turista perdeu a cor.
— Nós o perdemos? Ele não deu meia-volta, Tom, estou certo. Cobri as duas saídas. Pensei que você o tinha na mira, dentro da cabine.
— Pode apostar as calças que ele estava na mira. Olhe lá para trás, fileira do centro: o palhaço chinês de camisa branca e o que está ao lado dele. Os dois filhos da puta fecharam o paletó dele!
— Puta que o pariu! — Marty Povitz, um dos agentes da equipe da CIA encarregada da cobertura do Soviétski Ivánov, olhou com cuidado para os dois chineses. — Kuomintang? Nacionalistas? Ou comunas?
— Porra, e eu lá sei. Mas o presunto está numa cabine telefônica, lá atrás. Onde está Rosemont?
— Foi... — Povitz se deteve, depois ergueu a voz e tornou-se afável e turista de novo, enquanto os passageiros começaram a se amontoar perto da saída. — Olhe para lá! — falou, apontando para o topo do Pico. Os prédios de apartamentos eram altos e bem-iluminados, assim como as casas que pontilhavam as encostas, uma delas em especial, muito lá no alto, a mansão particular mais alta em Hong Kong. Estava iluminada por holofotes, e brilhava como uma jóia. — Puxa, quem mora lá mora quase no topo do mundo, hem?
Tom Connochie, o mais velho dos dois, soltou um suspiro.
— Só pode ser a casa do tai-pan. — Meditativo, acendeu um cigarro, e deixou o fósforo descer em espiral até as águas negras. Depois, tagarelando abertamente, como qualquer turista, tirou uma foto da casa e terminou com naturalidade o rolo do filme, tirando mais diversas fotos dos dois chineses. Recarregou a máquina fotográfica, e, sem ser observado, passou para o parceiro o outro rolo de filme. Mal movendo os lábios, falou:
— Mande chamar Rosemont lá, tão logo atraquemos... diga-lhe que temos problemas... depois vá mandar revelar isso ainda hoje. Ligo para você quando esses dois estiverem na cama.
— Está louco? — exclamou Povitz. — Não vai atrás deles sozinho.
— É preciso, Marty, o filme pode ser importante. Não vamos arriscar.
— Não.
— Porra, Marty, eu sou o tai-pan desta operação.
— As ordens dizem que dois...
— Fodam-se as ordens! — sibilou Connochie. — Basta ligar para Rosemont, e não deixe pintar sujeira com o filme.
— A seguir, ergueu a voz e comentou, animado: — Bela noite para um passeio de barco, não?
— É, sim.
Ele fez um sinal de cabeça para a luz que rebrilhava no alto do Pico, depois focalizou-a através do seu visor superpotente com lentes telescópicas.
— Quem mora lá em cima está mesmo numa boa, hem?
Dunross e Bartlett se fitavam na Galeria Longa no topo da escadaria. Sozinhos.
— Já fechou o negócio com Gornt? — indagou Dunross.
— Não — replicou Bartlett. — Ainda não.
Era vivaz e durão como Dunross, e seu traje a rigor lhe caía com igual elegância.
— Nem você nem Casey? — perguntou Dunross.
— Não.
— Mas estudou as possibilidades?
— Fazemos negócios para ganhar dinheiro, Ian... como você!
— É. Mas há uma questão de ética.
— Ética de Hong Kong?
— Posso perguntar-lhe há quanto tempo vem mantendo conversações com Gornt?
— Há uns seis meses. Vai concordar com a nossa proposta hoje?
Dunross tentou afastar o seu cansaço. Não tinha a menor vontade de falar com Bartlett ainda naquele dia, mas era necessário. Sentiu os olhos de todos os retratos pintados a observá-lo, da parede.
— Você falou terça-feira. Eu lhe direi na terça-feira.
— Bem, então até lá, se quiser negociar com Gornt, ou qualquer outro, estou no meu direito. Se você aceitar a nossa oferta agora, é negócio fechado. Disseram-me que é o melhor, a Casa Nobre, portanto prefiro negociar com você do que com ele... desde que consiga o maior valor pelo meu dólar, com todas as garantias necessárias. Eu tenho o ativo disponível, você não. Você tem a Ásia na palma da mão, eu não. Assim, deveríamos fazer negócio.
"É", disse Bartlett consigo mesmo, disfarçando seus pressentimentos, embora radiante de que sua entrevista com Gornt no dia seguinte houvesse produzido o confronto tão depressa, e encurralado o seu oponente... "No momento, Ian, você não passa disso, um oponente. Até fecharmos negócios, se fecharmos."
Chegara a hora da Blitzkrieg?
Estivera estudando Dunross a noite toda, fascinado por ele, pelas correntes ocultas, por tudo o que dizia respeito a Hong Kong, tão totalmente estranho a tudo o que jamais conhecera. Nova selva, novas regras, novos perigos. "Claro", pensou sombriamente, "com Dunross e com Gornt, tão perigosos quanto um pântano cheio de cascavéis, e sem um padrão para julgá-los, tenho que ser cauteloso como nunca."
Sentiu fortemente a tensão, cônscio dos olhos que o fitavam das paredes. "Até onde ouso forçá-lo, Ian? Até onde devo arriscar? O lucro em potencial é imenso, o prêmio é imenso, mas um só erro e você nos engolirá, a mim e a Casey. Você é o tipo de homem que aprecio, mas mesmo assim um oponente, e governado por fantasmas. Ah, sim, acho que Peter Marlowe estava certo sobre isso, embora não sobre tudo.
"Deus! Fantasmas e a extensão do ódio deles! Dunross, Gornt, Penelope, o jovem Struan, Adryon... Adryon, tão corajosa após o susto inicial!"
Voltou a fitar os frios olhos azuis que o observavam. "O que eu faria agora, Ian, se fosse você, com essa sua ascendência tão maluca, parado aí, aparentemente tão confiante?
"Não sei. Mas eu me conheço, e sei o que Sun Tse falou sobre os campos de batalha: só leve o seu oponente à luta na hora e local de sua própria escolha. Bem, já escolhi: é aqui e agora."
— Diga-me, Ian, antes de decidirmos, como vai pagar as suas três notas promissórias de setembro para as Indústrias de Navegação Toda?
Dunross ficou chocado.
— Como disse?
— Você ainda não tem um fretador, e seu banco não lhe pagará sem que o tenha, portanto depende de você, não é?
— O banco... não há problema.
— Mas ao que eu saiba você já passou vinte por cento dos limites da sua linha de crédito. Isso não significa que terá que arranjar uma nova linha de crédito?
— Terei uma, se precisar — disse Dunross, com um toque de irritação na voz, e Bartlett percebeu que ele fechara a guarda.
— Doze milhões para a Toda é um bocado de dinheiro, quando a gente o soma às outras dívidas.
— Que outras dívidas?
— A prestação de seis milhões e oitocentos mil dólares americanos, que vence a 8 de setembro, do seu empréstimo do Orlin Internacional Banking, de trinta milhões a descoberto. Você tem quatro milhões e duzentos mil em perdas do grupo consolidado este ano, até agora, contra um lucro escriturai aumentado de sete milhões e meio no ano passado; e doze milhões de perda do Eastern Cloud e todas aquelas máquinas de contrabando.
O rosto de Dunross estava sem cor.
— Você parece estar especialmente bem informado.
— E estou. Sun Tse disse que é preciso estar bem informado sobre os seus aliados.
A pequena veia na testa de Dunross pulsava.
— Quer dizer inimigos.
— Os aliados às vezes se tornam inimigos, Ian.
— É. Sun Tse também se referiu muito a espiões. Seu espião pode ser apenas um dentre sete homens.
Bartlett replicou, com igual aspereza.
— Por que deveria ter um espião? Esta informação pode ser obtida dos bancos... só é preciso cavoucar um pouco. O banco da Toda é o Yokohama National do Japão, que está metido em muitas transações junto com o Orlin... assim como nós, nos Estados Unidos.
— Seja lá quem for o seu espião, está errado. O Orlin aumentará o prazo. Sempre o fez.
— Não aposte nisso, dessa vez. Conheço aqueles sacanas, e, se farejarem um sucesso financeiro grande e rápido, terão a sua cabeça numa bandeja antes que você saiba o que aconteceu.
— Fazer uma coisa dessas com a Struan? — riu Dunross, sardonicamente. — Não há jeito de o Orlin, ou qualquer outro banco amaldiçoado, poder (ou querer) nos destruir.
— Talvez Gornt esteja em conluio com eles.
— Santo Deus... — Dunross controlou-se com esforço. — Está ou não está?
— Pergunte a ele.
— Perguntarei. Nesse meio tempo, se sabe de alguma coisa, conte-me agora!
— Você tem inimigos por toda parte.
— Você também.
— É. Isso nos torna sócios bons ou maus?
Bartlett fitava Dunross. Depois, seu olhar deparou com um retrato no final da galeria. Ian Dunross fitava-o do alto da parede, parte de um veleiro de três mastros pintado ao fundo. Que maravilhosa semelhança!
— Aquele é... pombas, tem que ser Dirk, Dirk Struan! Dunross virou-se para olhar para o quadro.
— É.
Bartlett foi até o quadro e examinou-o. Agora que olhava mais de perto, podia ver que o comandante não era Dunross, mas, mesmo assim, havia uma semelhança curiosa.
— Jacques estava certo — falou.
— Não.
— Ele está certo. — Virou-se e estudou Dunross como se o homem fosse um quadro, comparando um com o outro. Finalmente, falou: — São os olhos e a linha do maxilar. E o ar de desafio nos olhos, que diz: "Pode apostar que sou capaz de encher você de porrada na hora em que me der na telha".
Ian sorriu para ele.
— Está dizendo isso agora?
— Está.
— Não há problemas com linhas de crédito, novas ou antigas.
— Acho que há.
— O Victoria é o nosso banco... somos grandes acionistas.
— Grandes, como?
— Temos fontes alternativas de crédito, se houver necessidade. Mas teremos tudo o que quisermos do Vic. Eles também têm ativo disponível.
— Não é o que acha o seu Richard Kwang. Dunross afastou os olhos da tela, vivamente.
— Por quê?
— Ele não disse, Ian. Não disse nada, mas Casey conhece banqueiros e leu nas entrelinhas, e é isso o que ela acha que ele acha. Penso que ela também não foi muito na conversa do Havergill.
Depois de uma pausa, Dunross perguntou:
— O que mais ela acha?
— Que talvez devamos nos unir ao Gornt.
— À vontade.
— Pode ser. E quanto a Taipé? — perguntou Bartlett, tentando manter Dunross desconcertado.
— O que é que tem?
— O convite ainda está de pé?
— Está, é claro. Isso me lembra que você está entregue à minha custódia por gentil permissão do comissário assistente da polícia. Armstrong será informado disso amanhã. Você terá que assinar um pedaço de papel em que garante que voltará quando eu voltar.
— Obrigado por ter arranjado tudo. Casey não será mesmo convidada?
— Pensei que tínhamos deixado isso acertado hoje de manhã.
— Estava só perguntando. E quanto ao meu avião? Dunross franziu a testa, desconcertado.
— Suponho que ainda esteja retido. Queria usá-lo para a viagem a Taipé?
— Seria conveniente, não acha? Assim poderíamos partir ao nosso bel-prazer.
— Vou ver o que posso fazer. — Dunross observava-o. — E sua oferta vale até terça-feira?
— Vale, como Casey falou. Até o fim do expediente comercial de terça-feira.
— Até a meia-noite de terça-feira — retrucou Dunross.
— Você sempre barganha, independentemente de que diabo a outra pessoa diga?
— E você, não?
— Está certo, meia-noite de terça-feira. A um minuto da quarta, todas as dívidas e amizades ficam canceladas. — Bartlett precisava manter a pressão sobre Dunross, precisava da contraproposta agora, e não terça-feira, para poder usá-la com, ou contra, Gornt. — O sujeito do Blacs, o presidente da junta, como se chama?
— Compton Southerby.
— É, Southerby. Estava conversando com ele, depois do jantar. Disse que apoiavam Gornt integralmente. Insinuou também que Gornt tem um bocado de eurodólares à sua disposição, quando precisar. — Novamente, Bartlett viu uma informação atingir em cheio o alvo. — Portanto, ainda não sei como você vai pagar às Indústrias de Navegação Toda — concluiu.
Dunross não respondeu de pronto. Ainda estava tentando descobrir uma saída do labirinto. Todas as vezes, voltava ao começo: o espião tinha que ser Gavallan, De Ville, Linbar Struan, Phillip Chen, Alastair Struan, David MacStruan, ou seu pai, Colin Dunross. Algumas das informações de Bartlett seriam do conhecimento dos bancos... mas não as perdas da companhia naquele ano. A quantia fora precisa demais. Aquilo é o que o chocara. E o "...lucros escriturais aumentados".
Olhava para o americano, imaginando que outras informações confidenciais teria, sentindo a armadilha fechar-se sobre ele, sem espaço para manobrar, e no entanto sabendo que não poderia conceder demais, ou perderia tudo.
O que fazer?
Lançou um olhar a Dirk Struan, no alto da parede, e viu o meio sorriso retorcido e o olhar que lhe dizia: "Arrisque, rapaz, cadê os seus colhões?"
Pois bem.
— Não se preocupe com a Struan. Se decidir unir-se a nós, quero um contrato de dois anos... vinte milhões no ano que vem, também — falou, arriscando tudo. — Quero sete na assinatura do contrato.
Bartlett não demonstrou no rosto a alegria que sentia.
— Concordo com o contrato de dois anos. Quanto ao fluxo de caixa, Casey ofereceu dois milhões no ato e depois um e meio por mês no dia 1." de cada mês. Gavallan disse que era aceitável.
— Não é. Quero sete à vista, o resto dividido mensalmente.
— Se eu concordar com isso, quero o título dos seus novos navios da Toda como garantia, este ano.
— Mas para que diabo quer garantias? — falou Dunross, bruscamente. — O objetivo do negócio todo é sermos sócios, sócios numa imensa expansão pela Ásia.
— É. Mas os nossos sete milhões à vista cobrem os seus pagamentos de setembro para a Toda, livram-no do arrocho do Orlin. E não recebemos nada em troca?
— Por que lhe devo dar qualquer concessão? Posso descontar o seu contrato imediatamente, e receber um adiantamento de dezoito dos vinte milhões que você fornece, sem problema algum.
"É, pode sim", pensou Bartlett, "assim que o contrato esteja assinado. Mas, antes disso, não tem nada."
— Concordo em alterar o pagamento inicial, Ian. Mas em troca do quê?
Casualmente, olhou para o retrato à sua frente, mas sem vê-lo, pois todos os seus sentidos se concentravam em Dunross, sabendo que estavam chegando ao ponto que interessava. O título dos imensos cargueiros da Toda cobririam todos os riscos da Par-Con, fosse lá o que Dunross fizesse.
— Não se esqueça — acrescentou —, os seus vinte e um por cento das ações do Victoria já estão empenhados, entregues como garantia da sua dívida para com eles. Se você falhar no pagamento à Toda ou ao Orlin, seu velho amigo Havergill puxará o tapete de sob os seus pés. Eu puxaria.
Dunross sabia que estava derrotado. Se Bartlett sabia a quantidade exata de seus valores bancários secretos, dos valores secretos de Chen, junto com seus valores mobiliários conhecidos, era impossível prever que outro poder o americano teria sobre ele.
— Está bem — falou. — Dou-lhe o título dos meus navios por três meses, desde que, primeiro: você prometa que isso ficará apenas entre nós dois; segundo, que nossos contratos sejam assinados dentro de sete dias, a partir de hoje; terceiro, que concorde com o fluxo de caixa que sugeri; e último: que garantirá não deixar escapar uma só palavra do que foi dito entre nós até que eu anuncie a decisão.
— E quando fará isso?
— Entre a sexta e a segunda-feira.
— Eu gostaria de saber antecipadamente — falou Bartlett.
— Claro, vinte e quatro horas.
— Quero o título dos navios por seis meses, os contratos dentro de dez dias.
— Não.
— Então, nada feito — falou Bartlett.
— Pois bem — retrucou Dunross, imediatamente. — Então, voltemos à festa.
Virou-se prontamente e dirigiu-se com serenidade para as escadas.
Bartlett ficou espantado com o término abrupto das negociações.
— Espere — falou, o coração batendo fora do compasso. Dunross parou na balaustrada e fitou-o, uma das mãos pousada com naturalidade no corrimão.
Sombriamente, Bartlett tentou sondar Dunross, com o estômago dando voltas. Leu a decisão definitiva nos olhos do outro.
— Está certo, o título até 1.º de janeiro, são quatro meses e tanto, segredo entre mim, você e Casey, contratos terça-feira que vem (isso me dá tempo de trazer meus especialistas em impostos para cá), o fluxo de caixa como você quer, sujeito a... quando vai ser a nossa reunião de amanhã?
— Estava marcada para as dez. Pode ser às onze horas?
— Claro. Então, negócio fechado, sujeito a confirmação amanhã às onze horas.
— Não. Você não precisa de mais tempo. Eu posso precisar, mas você, não. — Outra vez, o sorriso seco. — Sim ou não?
Bartlett hesitou, todos os seus instintos dizendo "Feche agora, estenda a mão e feche, você tem tudo o que queria. É... mas e quanto a Casey?"
— Este negócio é de Casey. Ela pode negociar até vinte milhões. Incomoda-se de fechar apertando a mão dela?
— Um tai-pan só fecha com outro tai-pan, é um velho costume chinês. Ela é tai-pan da Par-Con?
— Não — disse Bartlett, serenamente. — Eu sou.
— Ótimo. — Dunross voltou e estendeu a mão, incitando-o, jogando com ele, lendo-lhe o pensamento. — Negócio fechado?
Bartlett olhou para a mão, depois para os frios olhos azuis, o coração batendo com força.
— Negócio fechado... mas quero que ela o feche com você.
Dunross deixou cair a mão.
— Repito, quem é o tai-pan da Par-Con? Bartlett devolveu-lhe o olhar, serenamente.
— Promessa é promessa, Ian. É importante para ela, e prometi-lhe que, até vinte milhões, a bola era dela.
Viu que Dunross começava a se afastar. Por isso, falou, com firmeza:
— Ian, se eu tiver que escolher entre o negócio e Casey, minha promessa a Casey, não há competição. Nenhuma. Consideraria um fa...
Interrompeu-se. Os dois moveram violentamente a cabeça ao ouvirem um barulho leve e involuntário de um espreitador oculto nas sombras do final da galeria, onde havia um grupo de sofás e poltronas de espaldar alto. Instantaneamente, Dunross girou nos calcanhares e, com a agilidade de um gato, lançou-se ao ataque, silenciosamente. As reações de Bartlett foram quase tão rápidas. Também partiu para ajudar.
Dunross parou junto ao sofá de veludo verde. Soltou um suspiro. Não era nenhum espreitador, era sua filha de treze anos, Glenna, ferrada no sono, toda enroscada, só braços e pernas, como uma potrinha, angelical no vestido de festa amassado, o fino colar de pérolas da mãe no pescoço.
O coração de Bartlett começou a bater mais devagar, ele murmurou:
— Deus, por um momento... Ei, mas ela é uma gracinha!
— Você tem filhos?
— Um menino e duas meninas. Brett tem dezesseis anos, Jenny, catorze, e Mary, treze. Infelizmente, não os vejo com muita freqüência. — Bartlett, recobrando o fôlego, continuou em voz baixa: — Moram agora na costa leste. Parece que não sou muito popular. A mãe deles... bem, nós nos divorciamos faz sete anos. Ela se casou de novo, mas... — Bartlett deu de ombros, depois olhou para a garota. — É uma bonequinha. Você tem sorte!
Dunross inclinou-se e levantou com cuidado a filha. Ela mal se moveu, apenas aninhou-se mais junto dele, satisfeita. Ele olhou pensativo para o americano. A seguir disse:
— Traga Casey para cá em dez minutos. Farei o que me pede, embora desaprove completamente, porque você deseja cumprir sua promessa.
Afastou-se, com passos firmes, e desapareceu na ala leste, onde ficava o quarto de Glenna.
Após uma pausa, Bartlett olhou para o retrato de Dirk Struan. O sorriso debochava dele.
— Vá se foder — resmungou, sentindo que Dunross lhe havia passado a perna, de alguma maneira. Depois, abriu um sorriso. — Que diabo, porra! O seu rapaz está se saindo bem, Dirk, meu velho!
Caminhou para as escadas. Foi então que notou um quadro sem iluminação, numa alcova semi-escondida. Parou. A tela representava um velho comandante de navio, de barba grisalha, com um olho só, nariz de gancho, ar arrogante, cicatrizes no rosto, uma espada de abordagem na mesa ao seu lado.
Bartlett soltou uma exclamação abafada ao ver que a tela fora cortada, numa direção e na outra, e que havia uma faca curta enfiada no coração do homem, prendendo o quadro à parede.
Casey fitava a faca. Tentou disfarçar o seu choque. Estava sozinha na galeria, esperando, irrequieta. O som de música para dançar chegava aos seus ouvidos, vindo lá de baixo... música rhythm-and-blues. Um vento breve repuxou as cortinas e moveu uma mecha de seus cabelos. Um mosquito zumbia.
— Este é Tyler Brock.
Casey deu meia-volta, assustada. Dunross a observava.
— Ah, não o escutei voltar — disse ela.
— Desculpe. Não quis assustá-la.
— Tudo bem.
Ela voltou a olhar para a tela.
— Peter Marlowe estava nos falando dele.
— Ele sabe muita coisa sobre Hong Kong, mas não tudo, e nem todas as informações que tem são precisas. Algumas são até bem erradas.
Após um momento, ela comentou:
— É... é um pouco melodramático, não é, deixar a faca aí, desse jeito?
— Foi a Bruxa Struan quem a pôs aí. Deu ordens para que não fosse retirada.
— Por quê?
— Dava-lhe prazer. Ela era tai-pan.
— Falando sério, por quê?
— Eu falava a sério. — Dunross deu de ombros. — Ela odiava o pai e queria que todos nos lembrássemos da nossa herança familiar.
Casey franziu o cenho, depois indicou uma tela na parede oposta.
— É ela?
— É. Foi pintada logo depois de seu casamento.
A moça do quadro era esbelta, teria uns dezessete anos, olhos azuis bem claros, cabelos louros. Usava um vestido de baile decotado — cintura fina, colo cheio —, um colar verde trabalhado enfeitando-lhe o pescoço.
Ficaram ali parados, fitando o quadro por um momento. Não havia nome na pequena placa de bronze ao pé da moldura dourada trabalhada, apenas os anos: 1825-1917. Casey falou:
— É um rosto comum, bonitinho mas comum, exceto pelos lábios. São finos, apertados, desaprovadores... e duros. O artista captou bem a força deles. É um Quance?
— Não. Nem sabemos quem o pintou. Dizem que era o seu retrato favorito. Há um Quance dela na cobertura da Struan, pintado mais ou menos na mesma época. É bem diferente, no entanto muito parecido.
— Pintaram algum retrato dela, quando mais velha?
— Três. Destruiu todos eles, no momento em que ficaram prontos.
— Existe alguma fotografia dela?
— Não que eu saiba. Odiava máquinas fotográficas... não admitia nenhuma dentro de casa. — Dunross riu, e ela notou como ele estava cansado. — Certa vez um repórter do China Guardian tirou uma foto dela, pouco antes da Grande Guerra. Dentro de uma hora ela havia mandado uma tripulação armada de um dos nossos navios mercantes para os escritórios do jornal, com ordens de tocar fogo no local se não lhe entregassem o negativo e todas as cópias, e se o editor não prometesse "desistir de atormentá-la". Ele prometeu.
— Mas não é possível agir assim impunemente!
— Realmente, não é... a não ser que se seja tai-pan da Casa Nobre. Além disso, todo mundo sabia que a Bruxa Struan não queria que tirassem seu retrato, e aquele filhozinho da mãe atrevido infringira a regra. Ela era como os chineses. Acreditava que, cada vez que alguém tira o seu retrato, você perde parte da sua alma.
Casey fitou o colar. Perguntou:
— É de jade?
— De esmeraldas.
Ela soltou uma exclamação abafada.
— Devia valer uma fortuna.
— Dirk Struan legou-lhe o colar... jamais poderia sair da Ásia... teria que pertencer à mulher de cada tai-pan da Casa Nobre, uma herança que passaria de senhora a senhora. — Deu um estranho sorriso. — A Bruxa Struan guardou o colar a vida inteira, e, quando morreu, deu ordem para que fosse queimado com ela.
— Meu Deus! E foi?
— Foi.
— Que desperdício!
Dunross voltou a olhar para o quadro.
— Não — falou, a voz diferente. — Ela manteve a Struan como Casa Nobre da Ásia durante quase setenta e cinco anos. Era a tai-pan, a verdadeira tai-pan, embora outros tivessem o título. A Bruxa Struan derrotou inimigos e catástrofes, manteve-se fiel ao legado de Dirk e arrasou os Brocks, fez o que era necessário. Portanto, o que significa um enfeite bonito que provavelmente nada custou, para começo de conversa? Foi provavelmente surrupiado do tesouro de algum mandarim, que o roubou de outra pessoa, cujos camponeses pagaram por ele com o seu suor.
Casey ficou observando enquanto ele fitava o rosto, quase alçado a outra dimensão.
— Só espero me sair igualmente bem — murmurou, distraidamente, e parecia a Casey que ele estava falando com ela, com a moça do quadro.
Os olhos dela foram para além de Dunross, para o quadro de Dirk Struan, e ela notou outra vez a maravilhosa semelhança. Havia uma forte parecença de família em todos os dez grandes retratos pintados (nove homens e a moça) pendurados nas paredes, em meio a paisagens de todos os tamanhos de Hong Kong, Xangai e Tien-tsin e muitas marinhas dos elegantes veleiros da Struan, e alguns dos seus navios mercantes. Ao pé do retrato de cada tai-pan havia uma pequena placa de bronze com o seu nome e os anos da sua vida: "Dirk Dunross, 4.° tai-pan, 1852-1894, perdido no oceano Índico com todos os seus marujos, no Sunset Cloud"... "Sir Lochlin Struan, 3.° tai-pan, 1841-1915"... "Alastair Struan, 9.° tai-pan, 1900-..." "Dirk Struan, 1798-1841"... "Ross Lechie Struan, 7.° tai-pan, 1887-1915, capitão do Regimento Real Escocês, morto em ação em Ypres"...
— Quanta história — falou ela, achando que era hora de desviá-lo de seus pensamentos.
— É. É mesmo — replicou, olhando agora para ela.
— Você é o décimo tai-pan?
— Sou.
— Já mandou pintar o seu retrato?
— Não.
— Vai ter que mandar, não é?
— É, vou, quando chegar a hora. Não há pressa.
— Como a pessoa se torna tai-pan, Ian?
— É preciso ser escolhido pelo anterior. É decisão dele.
— Já escolheu quem o sucederá?
— Não — retrucou ele, mas Casey achava que sim. "E por que deveria contar-me?", perguntou-se. "E por que você está lhe fazendo tantas perguntas?"
Desviou o olhar dele. Um quadro pequeno chamou sua atenção.
— Quem é esse? — perguntou, inquieta. O homem era deformado, um anão corcunda, os olhos curiosos e o sorriso sardônico. — Também foi tai-pan?
— Não. Esse é Stride Orlov, era o comandante-em-chefe de Dirk. Depois que o tai-pan foi morto no grande tufão, e Culum assumiu seu lugar, Stride Orlov tornou-se o mestre da nossa frota de veleiros. Conta a lenta que era um marujo e tanto.
Depois de uma pausa, ela disse:
— Desculpe, mas há alguma coisa nele que me dá arrepios. — Havia pistolas na cinta de Orlov e um veleiro ao fundo. — É um rosto assustador.
— Ele produzia esse efeito em todos... exceto no tai-pan e na Bruxa Struan. Dizem que até mesmo Culum o odiava.
Dunross virou-se e estudou-a. Ela sentiu o seu olhar perscrutador, que fez com que se sentisse excitada e perturbada, a um só tempo.
— Por que ela gostava dele? — indagou.
— Diz a história que logo após o grande tufão, quando todo mundo em Hong Kong ainda estava juntando os pedaços, inclusive Culum, o Demônio Tyler começou a tomar conta da Casa Nobre. Deu ordens, assumiu o controle, tratou Culum e Tess como se fossem crianças... mandou Tess para o seu navio, o White Witch, e ordenou a Culum que estivesse a bordo antes do pôr-do-sol, senão ia se ver com ele. No que dizia respeito a Tyler, a Casa Nobre agora era a Brock-Struan, e ele era o tai-pan! De um jeito ou de outro, ninguém sabe por quê ou como, Culum teve coragem... meu Deus, Culum tinha apenas vinte anos, na época, e Tess mal completara dezesseis... mas Culum ordenou a Orlov que subisse a bordo do White Witch e trouxesse sua mulher para terra. Orlov foi sozinho, imediatamente... Tyler ainda estava em terra, na ocasião. Orlov trouxe-a de volta, deixando atrás de si um homem morto e mais meia dúzia com cabeças ou membros quebrados. — Dunross olhava-a, e ela reconheceu o mesmo sorriso semizombeteiro, semiviolento, semidiabólico que havia no rosto d'o taipan, o do retrato. — Desde então, para todo o sempre, Tess (a futura Bruxa Struan) o adorou, é o que dizem. Orlov serviu bem à nossa frota, até que desapareceu. Era um bom homem, e um grande marujo, a despeito de toda a sua feiúra.
— Desapareceu? Perdeu-se no mar?
— Não. A Bruxa Struan contou que ele desembarcou certo dia em Cingapura, e jamais voltou. Estava sempre ameaçando partir e voltar para sua terra, a Noruega. Assim, pode ser que tenha ido para casa. Talvez tenha sido esfaqueado. Quem sabe? A Ásia é um lugar violento, embora a Bruxa Struan tenha jurado que homem algum poderia matar Stride Orlov, e que deve ter sido uma mulher. Talvez Tyler o tenha pegado de emboscada. Quem sabe?
Inexoravelmente, os olhos dela se voltaram para Tyler Brock. Ela estava fascinada com o rosto e as implicações da faca.
— Por que ela fez isso com a imagem do pai?
— Algum dia eu lhe contarei, mas hoje só vou dizer que ela martelou a faca na parede com o bastão de críquete de meu avô, e amaldiçoou ante Deus e o Diabo a quem tirasse a faca dela da parede dela. — Sorriu para Casey, e novamente ela notou o seu extremo cansaço, e ficou satisfeita, porque ela mesma estava ficando exausta, e não queria cometer nenhum erro, agora. Ele estendeu a mão. — Temos que fechar um negócio.
— Não — falou Casey, calmamente, feliz por poder começar. — Desculpe, estou fora dessa.
O sorriso dele se evaporou.
— Como?
— É, Linc me falou das alterações que você quer. É um negócio de dois anos... isso faz subir o nosso pagamento, portanto não posso aprová-lo.
— É?
— Pois é. — Ela continuou no mesmo tom de voz monótono mas agradável. — Desculpe, meu limite é vinte milhões, portanto vai ter que fechar com o Linc. Ele está esperando no bar.
A compreensão estampou-se no rosto dele por um instante (junto com alívio, achou ela), mas logo ficou sereno de novo.
— Está, é? — falou, suavemente, observando-a.
— Está.
Casey sentiu uma onda de calor percorrê-la, suas faces começaram a arder e ela ficou imaginando se estaria vermelha.
— Então, não podemos fechar, você e eu. Tem que ser Linc Bartlett?
Ela manteve o olhar firme, com esforço.
— Um tai-pan deve tratar com um tai-pan.
— É uma regra básica, mesmo na América? A voz dele era suave e meiga.
— É.
— Isso foi idéia sua ou dele?
— Isso importa?
— Muitíssimo.
"Se eu disser que foi do Linc, ele fica desmoralizado, e se eu disser que foi minha, também fica, embora de forma diferente."
Dunross sacudiu de leve a cabeça e sorriu. O calor do seu sorriso aumentou a íntima excitação de Casey. Embora estivesse muito controlada, sentiu-se reagir à sua masculínidade intacta.
— Todos nós estamos presos a esse tipo de convenção, de uma forma ou de outra, não é? — comentou ele.
Ela não respondeu. Olhou para o outro lado para dar-se um tempo. Seus olhos detiveram-se no retrato da moça. Como era possível uma moça tão bonita ficar conhecida como a Bruxa, pensou. Devia ser horrível envelhecer no rosto e no corpo, quando ainda se é jovem de coração, e forte e decidida... era tão injusto para a mulher. "Será que, algum dia, também ficarei sendo conhecida como a Bruxa Tcholok? Ou como 'aquele chinelo velho Tcholok', se ainda estiver sozinha, solteira, no mundo dos negócios, no mundo dos homens, ainda lutando pelas mesmas coisas por que eles lutam — identidade, poder e dinheiro —, e odiada por ser igual ou melhor do que eles no meu trabalho? Pouco me importa, contanto que ganhemos, Linc e eu. Portanto, desempenhe o papel que escolheu para esta noite", disse consigo mesma, "e agradeça à senhora francesa o conselho que lhe deu."
"Lembre-se, menina", o pai lhe repetira inúmeras vezes, "lembre-se de que os conselhos, os bons conselhos, surgem em locais inesperados, em horas inesperadas."
"É", pensou Casey, feliz "se não fosse pelo lembrete de Susanne de como uma mulher deve operar neste mundo masculino, Ian, talvez eu não lhe tivesse oferecido essa fórmula para ficar por cima. Mas não se engane, Ian Struan Dunross. Este negócio é meu, e nele eu sou tai-pan da Par-Con."
Casey sentiu uma sensação gostosa e diferente percorrer-lhe o corpo. Nunca anteriormente definira sua posição real na Par-Con para si mesma. "É", pensou, muito satisfeita, "é isso o que sou."
Olhou para a moça do retrato com ar crítico, e notou, agora, o quanto estivera errada antes, e como a jovem era especialíssima. Não era a tai-pan em embrião, já naquela época?
— Você é muito generosa — disse Dunross, interrompendo os pensamentos dela.
— Não — replicou imediatamente, preparada, e voltou a olhar para ele, pensando: "Se quer a verdade, tai-pan, não sou nada generosa. Estou simplesmente sendo modesta, doce e meiga porque isso o faz se sentir mais à vontade". Mas não foi isso o que disse. Apenas baixou o olhar e murmurou com a dose certa de suavidade: — Você é que é generoso.
Ele tomou sua mão, curvou-se sobre ela e beijou-a com galanteria à moda antiga.
Ela ficou espantada, e tentou disfarçar. Nunca ninguém fizera aquilo com ela antes. Emocionou-se, apesar de tudo.
— Ah, Ciranoush — disse ele, com falsa gravidade —, sempre que precisar de um campeão, mande me chamar. — Abriu um sorriso repentino. — Provavelmente meterei os pés pelas mãos, mas tudo bem.
Ela achou graça, toda a tensão evaporada, agora, simpatizando demais com ele.
— Negócio fechado.
Com naturalidade, ele a enlaçou pela cintura e conduziu-a suavemente para as escadas. O contato dele era agradável... agradável demais. "Esse aí não é nenhum garoto", pensou. "Tenha cuidado."
23h58m
O Rolls de Phillip Chen freou ruidosamente diante de sua casa. Ele saltou do banco traseiro, o rosto rubro de raiva, Dianne caminhando nervosa, atrás dele. A noite estava escura, as luzes da cidade, dos navios e dos prédios altos brilhavam forte bem lá embaixo.
— Tranque os portões, depois entre você também — falou com brusquidão para o chofer, igualmente nervoso. Depois dirigiu-se apressado para a porta da frente.
— Ande logo, Dianne — falou, irritado, enfiando a chave na fechadura.
— Phillip, mas que diabo está lhe acontecendo? Por que não pode me contar? Por que...
— Cale a boca! — berrou, perdendo a paciência, e ela parou de chofre, chocada. — Cale a boca e faça o que estou mandando! — Escancarou violentamente a porta da frente. — Chame aqui as criadas!
— Mas, Phil...
— Ah Sun! Ah Tak!
As duas amahs sonolentas e despenteadas vieram às pressas da cozinha e fitaram-no boquiabertas, chocadas com aquela raiva fora do comum.
— Sim, Pai? Sim, Mãe? — perguntaram em coro, em cantonense. — Mas o que aconteceu, em nome dos deu...
— Bico fechado! — rugiu Phillip Chen, o pescoço vermelho e agora o rosto mais vermelho. — Entrem nessa sala e fiquem aí até que eu mande todos saírem! — Escancarou a porta. Era a sala de jantar deles, e as janelas davam para a estrada norte. — Fiquem todos aqui até eu mandar que saiam, e se algum de vocês se mexer ou olhar pela janela, antes que eu volte... mandarei alguns amigos meus amarrar pesos nos seus corpos e jogá-los na baía!
As duas amahs começaram a choramingar, mas todos obedeceram rapidamente, e ele bateu a porta com força.
— Parem já com isso, as duas! — gritou Dianne Chen para as amahs. Depois estendeu a mão e beliscou com força a bochecha de uma delas. A velha parou de choramingar, e falou, ofegante, revirando os olhos:
— O que deu em todo mundo? O que deu no Pai? Oh, oh, oh, a fúria dele se ouve em Java... oh, oh, oh...
— Cale-se, Ah Tak!
Dianne se abanou, fumegando, desnorteada de raiva. "Em nome de todos os deuses, o que deu nele? Não confia em mim... sua única mulher verdadeira e o amor da sua vida? Em toda a minha vida... E sair correndo daquele jeito da festa do tai-pan quando tudo ia indo tão bem... todo mundo em Hong Kong falando de nós, todos admirando o meu querido Kevin, bajulando-o, certos de que agora é o novo herdeiro da Casa de Chen, pois todos concordaram em que John Chen certamente morreu de choque quando lhe cortaram fora a orelha. Qualquer um morreria! Eu, na certa, morreria."
Estremeceu, sentindo de novo a sua orelha sendo cortada e vendo-se raptada, como no sonho daquela tarde, quando acordara da sesta suando frio.
— Ayeeyah — murmurou, para ninguém em especial. — Ele enlouqueceu?
— É, Mãe — disse o chofer, Confiantemente —, acho que sim. É o resultado do seqüestro. Nunca vi o Pai assim, em todos os meu an...
— Quem lhe perguntou alguma coisa? — gritou Dianne. — E depois, é tudo culpa sua! Se tivesse trazido o meu pobre John para casa em vez de deixá-lo com suas meretrizes nojentas, isso nunca teria acontecido!
As duas amahs recomeçaram a choramingar, por causa da fúria dela, e Dianne descarregou nelas o seu mau humor, por um momento, acrescentando:
— E quanto a vocês duas, já que estamos nesse assunto, a qualidade do serviço nesta casa está de dar desarranjo em qualquer um. Alguém me perguntou se preciso de um calmante, ou de aspirinas? Ou de chá? Ou de uma compressa fria?
— Mãe — disse uma delas, apaziguadoramente, apontando esperançosa para o aparador laqueado —, não posso fazer chá, mas gostaria de um pouco de conhaque?
— Wat? Ah, ótimo. Sim, sim, Ah Tak. Prontamente a velha se dirigiu ao aparador, apanhou uma garrafa do conhaque que sabia que a patroa apreciava e serviu-o num copo.
— Pobre Mãe, ver o Pai tão furioso! Terrível! O que deu nele, e por que não quer que a gente olhe pela janela?
"Porque não quer que vocês, seus ladrões de bosta, o vejam desenterrar seu cofre secreto no jardim", pensava Dianne. "Não quer nem que eu veja." Sorriu sombriamente consigo mesma, bebericando o conhaque suave e gostoso, acalmada pelo conhecimento do lugar onde a caixa de ferro estava enterrada. Estava no seu direito ao protegê-lo, observando secretamente quando ele a enterrara, para o caso de, Deus nos livre, os deuses o levarem deste mundo antes que lhe pudesse revelar o esconderijo. Fora seu dever quebrar a promessa de não ir espiá-lo, naquela noite, durante a ocupação japonesa, quando ele sabiamente arrebanhara todos os seus objetos de valor e os escondera.
Ela não sabia o que havia realmente na caixa. Nem se importava. Ela fora aberta e fechada muitas vezes, sempre em segredo, ou assim ele pensava. A mulher não se importava, contanto que soubesse onde estava o marido, onde estavam todas as suas diversas caixas de depósito bancário, e as suas chaves, por via das dúvidas.
"Afinal de contas", disse consigo mesma, confiante, "se ele morrer, a Casa de Chen desmoronará sem mim."
— Pare de choramingar, Ah Sun!
Levantou-se e cerrou as longas cortinas. Do lado de fora a noite estava escura, e ela não conseguia enxergar o jardim, apenas a entrada dos carros, os altos portões de ferro e a estrada que ficava além deles.
— Mais uma bebida, Mãe? — perguntou a velha amah.
— Obrigada, sua bajuladora — replicou, afetuosamente, o calor da bebida alcoólica afastando sua ira. — E depois pode massagear o meu pescoço. Estou com dor de cabeça. Vocês dois fiquem sentados, de boca fechada, não dêem um pio até o Pai voltar!
Phillip Chen descia apressado a trilha que cortava o jardim, uma lanterna elétrica numa das mãos, uma pá na outra. A trilha se enroscava pelo meio de jardins bem-cuidados, que iam terminar num bosque de árvores e arbustos. Parou um momento, para se orientar, depois achou o lugar que procurava. Hesitou e olhou para trás, embora soubesse que agora estava bem escondido de olhares vindos da casa. Tranqüilizado, pois não podiam observá-lo, acendeu a lanterna. O círculo de luz percorreu a vegetação rasteira e foi parar ao pé de uma árvore. O local aparentava não ter sido tocado. Cuidadosamente, afastou a cobertura natural de matéria vegetal. Quando viu que a terra por baixo fora remexida, xingou obscenamente:
— Ah, que porco... meu próprio filho! Controlando-se com dificuldade, começou a cavar. A terra estava macia.
Desde a hora em que saíra da festa, estivera tentando lembrar-se exatamente de quando desenterrara a caixa pela última vez. Agora, estava certo de que fora na primavera, quando precisara das escrituras de uma fila de cortiços em Wanchai, que vendera cinqüenta vezes mais caro a Donald McBride, para um dos seus grandes novos empreendimentos imobiliários.
— Onde estava John, então? — resmungava. — Estava em casa?
Enquanto cavava, tentava recordar-se, mas não conseguia. Sabia que jamais teria desenterrado a caixa quando fosse perigoso, ou quando houvesse estranhos na casa, e que tinha sido sempre cuidadoso. Mas John? "Jamais me ocorreria... John deve ter dado um jeito de me seguir."
A pá bateu no metal. Cuidadosamente, afastou a terra, tirou o pano que protegia a caixa e a pesada fechadura, e abriu-a. As dobradiças da tampa estavam bem lubrificadas. Com os dedos trêmulos, iluminou a caixa aberta com a lanterna elétrica. Todos os seus papéis, escrituras e folhas de balanço particulares pareciam estar em ordem e não ter sido mexidos, mas ele sabia que todos deviam ter sido retirados da caixa e lidos... e copiados ou memorizados. Algumas das informações encontradas na caixa de depósito bancário do filho só poderiam provir dali.
Todas as caixas de jóias, grandes e pequenas, estavam lá. Nervosamente, buscou a que o preocupava, e abriu-a. A meia moeda tinha sumido, assim como o documento que explicava sobre a moeda.
Lágrimas de ódio desceram pelas suas faces. Sentiu o coração batendo forte, as narinas aspiraram o cheiro da terra úmida, e teve certeza de que, se o filho estivesse ali, ele o teria estrangulado com prazer com as próprias mãos.
— Ah, meu filho, meu filho... maldito seja, para todo o sempre!
Sentiu os joelhos fracos. Sentou-se, trêmulo, numa pedra, e tentou pôr as idéias em ordem. Podia ouvir a voz do pai no leito de morte, a alertá-lo:
— Nunca perca a moeda, meu filho... é a nossa chave para a sobrevivência derradeira e o poder sobre a Casa Nobre.
Aquilo ocorrera em 1937, e fora a primeira vez que conhecera os mais íntimos segredos da Casa de Chen: que aquele que se tornava o representante nativo da Casa Nobre tornava-se o mais alto líder em Hong Kong da Hung Mun — a grande sociedade tríade secreta da China, que, sob o comando de Sun Yat-sen, se tornara a 14K, formada originariamente como ponta de lança na revolta da China contra seus odiados senhores manchus; que o representante era o elo principal e legítimo entre a hierarquia chinesa na ilha e os herdeiros da 14K no continente; que, por causa de Chen-tse Jin Arn, conhecido como Jin-qua, o lendário mercador chefe da co-hong que possuíra o monopólio do imperador sobre todo o comércio exterior, a Casa de Chen estava perpetuamente interligada com a Casa Nobre por direito de posse e por sangue.
— Ouça atentamente, meu filho — murmurara o moribundo. — O tai-pan, Bisavô Dirk Struan, foi criação de Jin-qua, assim como a Casa Nobre. Jin-qua criou-a, formou-a, e ao Dirk Struan. O tai-pan teve duas concubinas. A primeira foi Kai-sung, uma das filhas de Jin-qua com uma quinta mulher. O filho deles foi Gordon Chen, meu pai, seu avô. A segunda concubina do tai-pan foi T'Chung Jin May-may, sua amante durante seis anos, com quem se casou em segredo pouco antes do grande tufão que os matou, aos dois. Ela estava com vinte e três anos na época, uma neta brilhante e favorita de Jin-qua, vendida ao tai-pan quando tinha dezessete anos para ensinar-lhe modos civilizados, sem que ele soubesse que estava sendo ensinado. Deles nasceram Duncan e Kate, que tomaram o sobrenome T'Chung, e foram criados na casa de meu pai. Papai casou Kate com um comerciante de Xangai chamado Peter Gavallan. Andrew Gavallan também é nosso primo, embora não o saiba... Tantas histórias para contar, tão pouco tempo para contá-las, agora. Não faz mal, todas as árvores genealógicas da família estão no cofre. Existem tantas! Somos todos aparentados, os Wu, Kwang, Sung, Kau, Kwok, Ng... todas as antigas famílias. Use esse conhecimento com cuidado. Eis a chave do cofre.
"Outro segredo, Phillip, meu filho. Nossa linhagem descende da segunda mulher de meu pai, que se casou com ela quando tinha cinqüenta e três anos, e ela, dezesseis. Ela era a filha de John Yuan, o filho ilegítimo do grande mercador americano Jeff Cooper, com uma moça eurasiana, Isobel Yau. Isobel Yau era a filha eurasiana supersecreta de Robb Struan, o meio irmão do tai-pan e co-fundador da Casa Nobre. Portanto, temos sangue dos Struans de ambos os lados. Alastair Struan é primo e Colin Dunross é primo... os MacStruans não são, a história deles está nos diários do Avô. Meu filho, os bárbaros ingleses e escoceses vinham para a China e nunca se casavam com aquelas a quem adoravam, e a quem, na maioria das vezes, abandonavam quando voltavam para a ilha cinzenta de névoa, chuva e céu coberto. Meu Deus, como odeio o clima inglês e abomino o passado!
"É, Phillip, somos eurasianos, não pertencemos nem a um lado nem a outro. Nunca consegui me acostumar com isso. É a nossa maldição e a nossa cruz, mas cabe a todos nós torná-la uma bênção. Passo a nossa Casa para você, rica e forte como era o desejo de Jin-qua... faça o mesmo com seu filho, e certifique-se de que ele faça o mesmo com o dele. Jin-qua nos deu à luz, de uma certa maneira, deu-nos fortuna, conhecimentos secretos, continuidade e poder... e deu-nos uma das moedas. Tome, Phillip, leia sobre a moeda."
A caligrafia do pergaminho antigo era exótica.
"Neste oitavo dia do sexto mês do ano de 1841, segundo a contagem bárbara, eu, Chen-tse Jin Arn, de Cantão, mercador-chefe da co-hong, emprestei no dia de hoje ao Demônio de Olhos Verdes, tai-pan da Casa Nobre, pirata-chefe de todos os demônios estrangeiros que guerrearam contra o Reino Celestial e roubaram a nossa ilha de Hong Kong, quarenta laques de prata... um milhão de esterlinas na moeda deles... e, com esta quantia, salvei-o de ser engolido por Um Olho Só, seu arquiinimigo e rival. Em troca, o tai-pan nos concede vantagens comerciais especiais pelos próximos vinte anos, promete que um membro da Casa de Chen será para sempre o representante nativo da Casa Nobre, e jura que ele ou seus descendentes honrarão todas as dívidas e a dívida das moedas. Elas são quatro. As moedas foram partidas ao meio. Dei ao tai-pan quatro metades. Sempre que uma das outras metades lhe for apresentada, ou a um dos tai-pans que o sucederem, ele jurou que qualquer favor que seja pedido será atendido... quer dentro da lei deles, da nossa, ou fora delas.
"Uma das moedas fica comigo; uma dou ao senhor de guerra Wu Fang Choi, meu primo; uma será dada ao meu neto, Gordon Chen; e quem fica com a última eu guardo em segredo. Lembre-se, quem ler isso no futuro: não use a moeda levianamente, pois o tai-pan da Casa Nobre tem que conceder qualquer coisa... mas apenas uma vez. E lembre-se de que, embora o Demônio de Olhos Verdes em pessoa honre sua promessa, assim como seus descendentes, ainda é um bárbaro cão danado, astuto como um manchu nojento, graças ao nosso treinamento, e sempre tão perigoso quanto um ninho de víboras."
Phillip Chen estremeceu involuntariamente, lembrando-se da violência sempre pronta para explodir em Ian Dunross. "Sem dúvida é um descendente do Demônio de Olhos Verdes", pensou. "É, ele e o pai dele.
"Maldito John! O que deu nele? Que patifaria tramou com Linc Bartlett? Será que a moeda agora está nas mãos de Bartlett? Ou será que John ainda está com ela? Quem sabe agora não estará nas mãos dos seqüestradores?"
Enquanto o seu cérebro cansado examinava as possibilidades, os dedos verificavam as caixas de jóias, uma por uma. Não faltava nada. Deixou a maior para o fim. Sua garganta estava apertada ao abri-la, mas o colar ainda estava lá. Soltou um grande suspiro de alívio. A beleza das esmeraldas à luz da lanterna elétrica deu-lhe um enorme prazer e afastou um pouco da sua ansiedade. Que cretinice da Bruxa Struan ordenar que o colar fosse queimado com seu corpo! Que desperdício arrogante, terrível, sacrílego, seria! Como seu pai fora sensato ao interceptar o caixão, antes de ser queimado, e retirar as esmeraldas!
Com relutância, recolocou o colar na caixa e começou a fechar o cofre. "O que fazer quanto à moeda? Quase a usei quando o tai-pan nos tirou as ações do banco... e a maior parte do nosso poder. É. Mas decidi dar-lhe tempo para provar o seu valor. Já estamos no terceiro ano e nada ainda foi provado, e embora o negócio americano pareça excelente, ainda não foi assinado. E agora a moeda desapareceu."
Gemeu em voz alta, perturbadíssimo, as costas lhe doendo como a cabeça. Podia ver toda a cidade lá embaixo, navios amarrados em Glessing's Point, e outros ancorados na baía-Kowloon estava igualmente brilhante, e podia ver um avião a jato decolando de Kai Tak, outro virando-se para pousar, outro sobrevoando bem alto, as luzes piscando.
"O que fazer?", perguntava-se incansavelmente. "Será que Bartlett está de posse da moeda? Ou John? Ou os Lobisomens?
"Nas mãos erradas poderia destruir-nos a todos."
Terça-feira
0h36m
— É claro que Dunross podia ter mexido nos meus freios, Jason! — disse Gornt.
— Ora, qual é, pelo amor de Deus! Meter-se debaixo do seu carro durante uma festa com duzentos convidados à solta? Ian não é assim tão burro.
Estavam na cobertura de Jason Plumm, acima de Happy Valley, o ar da meia-noite gostoso, embora a umidade houvesse aumentado de novo. Plumm levantou-se e jogou fora a guimba do charuto, pegou um novo e acendeu-o. O tai-pan das Propriedades Asiáticas, a terceira maior hong, era mais alto do que Gornt, estava com cinqüenta e muitos anos, tinha rosto magro e elegante e usava um paletó caseiro de veludo vermelho.
— Até mesmo o maldito Ian Dunross não é um idiota tão chapado — repetiu.
— Errado. Apesar de toda a sua astúcia de escocês, é um animal impulsivo, e esta é a sua falha. Acho que foi ele.
Plumm formou um triângulo com os dedos, pensativo.
— O que foi que a polícia disse?
— Tudo o que lhes disse foi que meus freios haviam pifado. Não havia necessidade de envolver esses sacanas abelhudos, pelo menos não por enquanto. Mas os freios de um Rolls não pifam assim sozinhos, sem mais nem menos, pelo amor de Deus. Bem, deixe para lá. Amanhã farei com que Tom Nikklin me dê uma resposta, uma resposta definitiva, se houver uma. Tempo bastante para se chamar a polícia, então.
— Concordo. — Plumm deu um sorriso seco. — Não precisamos da polícia para lavar a nossa roupa suja... não importa o quão estranha seja... não é?
— É.
Os dois homens riram.
— Você teve muita sorte. A Peak Road não é uma estrada boa para se descer sem freios. Deve ter sido muito desagradável.
— Foi, por um momento, Jason, mas depois não houve problema, após passado o choque inicial. — Gornt floreou a verdade e bebeu o seu uísque com soda. Haviam saboreado um elegante jantar no terraço que dava para o Happy Valley, a pista de corridas, a cidade e o mar logo além, os dois sozinhos — a mulher de Plumm estava de férias na Inglaterra, e seus filhos já estavam crescidos e não moravam mais em Hong Kong. Agora, fumavam charutos sentados em amplas poltronas no escritório cheio de livros de Plumm, a sala luxuosa mas discreta, de muito bom gosto, como o resto da cobertura de dez cômodos. — Se há alguém que poderá descobrir se mexeram no meu carro, é Tom Nikklin — disse, resolutamente.
— É. — Plumm bebia um copo de Perrier gelada. — Vai dar corda de novo no jovem Nikklin sobre Macau?
— Eu? Deve estar brincando!
— Não. Para falar a verdade, não estou — replicou Plumm, com sua risadinha zombeteira e bem-educada. — O motor de Dunross não explodiu durante a corrida, faz três anos, e ele quase bateu as botas?
— Sempre acontecem coisas com os carros de corrida.
— É, é verdade, embora nem sempre a oposição dê uma mãozinha.
Plumm sorriu.
Gornt conservou o seu sorriso, mas intimamente não sorria.
— O que isso significa?
— Nada, meu rapaz. Só boatos. — O homem mais velho se inclinou e serviu mais uísque para Gornt, depois usou o sifão de soda. — O boato é que um certo mecânico chinês, por uma pequena quantia, usou... digamos, usou uma chave de parafuso onde não devia.
— Duvido que seja verdade.
— Duvido que possa ser provado. De uma maneira ou de outra. É revoltante, mas certas pessoas fazem qualquer coisa por uma quantia bem pequena.
— É. Felizmente estamos no mercado das quantias grandes.
— Exatamente o que eu queria dizer, meu rapaz. Bem.
— Plumm deu uma batidinha e soltou a cinza do charuto. — Qual é o plano?
— E muito simples: desde que Bartlett não assine contrato com a Struan nos próximos dez dias, poderemos depenar a Casa Nobre como um pato morto.
— Muita gente já pensou assim antes, e a Struan ainda é a Casa Nobre.
— É. Mas, no momento, estão vulneráveis.
— Como?
— As promissórias das Indústrias de Navegação Toda, e a prestação do Orlin.
— Não é verdade. O crédito da Struan é excelente... claro, eles ultrapassaram o limite, mas não mais que outro qualquer. Apenas aumentarão a sua linha de crédito... Ian se dirigirá a Richard Kwang, ou ao Blacs.
— Digamos que o Blacs não ajude, e não ajudará, e digamos que Richard Kwang esteja neutralizado. Isso lhe deixa apenas o Victoria.
— Então Dunross pedirá mais crédito ao banco, e teremos que dá-lo. Paul Havergill levará o pedido à votação da diretoria. Todos sabemos que não podemos derrotar o bloco da Struan, portanto concordaremos, para não perder prestígio, fingindo que estamos muito contentes em conceder o crédito, como sempre.
— É. Mas, desta feita, folgo em dizer que Richard Kwang votará contra a Struan. Haverá empate, o pedido de crédito será adiado... ele não conseguirá fazer seus pagamentos, e Dunross afundará.
— Pelo amor de Deus, Richard Kwang nem faz parte da diretoria! Você ficou maluco?
Gornt fumava o seu charuto.
— Não. Você esqueceu o meu plano de jogo. Aquele chamado Competição. Começou faz dois dias.
— Contra Richard?
— É.
— Pobre do velho Richard!
— É. Ele será o nosso voto decisivo. E Dunross jamais esperará um ataque vindo desse lado.
Plumm fitou-o.
— Richard e Dunross são grandes amigos.
— Mas Richard está encrencado. A derrocada do Ho-Pak já começou. Ele fará qualquer coisa para se salvar.
— Entendo. Quantas ações do Ho-Pak você vendeu a descoberto?
— Muitas.
— Tem certeza de que Richard não tem recursos para deter a corrida... que não pode arranjar fundos extras?
— Se conseguir, sempre podemos fazer abortar, você e eu.
— É, podemos, sim. — Jason Plumm ficou olhando a fumaça em espiral do seu charuto. — Mas mesmo que Dunross não consiga fazer os pagamentos dentro do prazo, isso não quer dizer que estará acabado.
— Concordo. Mas depois do "desastre" do Ho-Pak, a notícia de que a Struan não cumpriu seus compromissos fará suas ações caírem verticalmente. O mercado estará muito nervoso, haverá todos os sinais de uma queda da Bolsa no horizonte, e nós atiçaremos o fogo vendendo a descoberto. Não há nenhuma reunião de diretoria marcada para dentro de duas semanas, a não ser que Paul Havergill convoque uma reunião especial. E não o fará. Por que o faria? Quer sua fatia de ações de volta, mais do que qualquer outra coisa no mundo. Portanto, tudo será combinado com antecedência. Ele estabelecerá as regras para salvar Richard Kwang, e votar conforme os desejos de Paul será uma delas. Portanto, a diretoria deixa Ian em banho-maria por alguns dias, depois se oferece para aumentar o crédito e restaurar a confiança... em troca das ações do banco que a Struan possui... que já estão empenhadas como garantia do crédito, de qualquer forma.
— Dunross jamais concordará... nem ele, nem Phillip Chen, nem Tsu-yan.
— Ou isso, ou a Struan soçobra... desde que você fique firme e tenha o controle da votação. Uma vez que o banco retire dele o seu bloco de ações... se você controla a junta diretora, e portanto o Victoria Bank, então ele está acabado.
— É. Mas digamos que ele consiga uma nova linha de crédito.
— Então ficará apenas muito machucado, quem sabe permanentemente enfraquecido, Jason, mas nós teremos um lucro, de uma forma ou de outra. É tudo uma questão de agir na hora certa, sabe disso.
— E Bartlett?
— Bartlett e a Par-Con são meus. Ele jamais entrará no navio da Struan, que está indo a pique. Eu me encarrego disso.
Depois de uma pausa, Plumm disse:
— É possível, sim, é possível.
— Você topa, então?
— Depois de Struan, como vai engolir a Par-Con?
— Eu não vou. Mas nós talvez pudéssemos. — Gornt apagou o charuto. — A Par-Con é um trabalho a longo prazo, e um grupo de problemas totalmente diferentes. Primeiro a Struan. E então?
— Se eu ficar com a divisão de propriedades de Hong Kong da Struan... trinta e cinco por cento de suas terras na Tailândia e em Cingapura, e mais meio a meio da operação deles de Kai Tak?
— Sim, tudo exceto Kai Tak... preciso dela para rematar a Ail Ásia Airways. Estou certo de que compreende, meu velho. Mas você tem lugar garantido na nova diretoria, dez por cento das ações ao valor nominal, lugares na junta diretora da Struan, é claro, e de todas as suas subsidiárias.
— Quinze por cento. E a presidência da junta da Struan, em anos alternados. Um ano eu, outro você.
— De acordo, mas eu serei o primeiro. — Gornt acendeu um cigarro. "Por que não?", pensou, expansivamente. "A essa altura, no ano que vem, a Struan já estará desmembrada, portanto sua posição de presidência é uma mera questão acadêmica, Jason, meu velho." — Então, tudo acertado? Podemos fazer um memorando conjunto, se você quiser, uma cópia para cada um.
Plumm sacudiu a cabeça, e sorriu.
— Nada por escrito, Deus nos livre! Tome. — Estendeu a mão. — De acordo.
Os dois homens trocaram um firme aperto de mão.
— Abaixo a Casa Nobre!
Os dois riram, muito satisfeitos com a transação combinada. A aquisição das terras que a Struan possuía faria das Propriedades Asiáticas a maior companhia imobiliária de Hong Kong. Gornt adquiriria o monopólio quase total de todo o transporte de carga aérea, marítima e das fábricas de Hong Kong... e a primazia na Ásia.
"Ótimo", pensou Gornt. "Agora, vou tratar de Wu Quatro Dedos."
— Se puder me chamar um táxi, já vou indo.
— Leve meu carro, meu chofer o...
— Não, obrigado, prefiro ir de táxi. Mas, de qualquer modo, obrigado, Jason.
Então Plumm telefonou para a zeladora do prédio de vinte andares que as Propriedades Asiáticas possuíam e administravam. Enquanto esperavam, brindaram um ao outro, à destruição da Struan e aos lucros que iam obter. Um telefone tocou no quarto ao lado.
— Dê-me licença um momentinho, meu velho.
Plumm cruzou a porta e deixou-a meio aberta às suas costas. Aquele era seu dormitório particular, que às vezes usava quando trabalhava até tarde. Era um quarto pequeno e impecável, à prova de som, decorado como se fosse uma cabine de navio, com um beliche embutido, alto-falantes que transmitiam música, um pequeno fogareiro e geladeira. E, num dos lados, um imenso e complicado equipamento de ondas curtas de radioamador, que fora o hobby permanente de Jason desde criança.
Ele atendeu ao telefone.
— Sim?
— O Sr. Lop-sing, por favor — disse uma voz feminina.
— Aqui não há nenhum Sr. Lop-ting — retrucou, com naturalidade___Lamento, é engano.
— Quero deixar um recado.
— Discou o número errado. Olhe no catálogo.
— Um recado urgente para Arthur: o Centro avisou por rádio que a reunião foi adiada até depois de amanhã. Fique a postos para instruções urgentes às seis horas.
Desligaram. Ouviu-se de novo o ruído de discar. Plumm franziu o cenho ao recolocar o aparelho no gancho.
Wu Quatro Dedos estava à amurada do seu junco com Poon Bom Tempo, vendo Gornt entrar na sampana que havia enviado para apanhá-lo.
— Não mudou muito nesse tempo todo, não é? — falou Wu, descuidadamente, os olhos apertados brilhando.
— Os demônios estrangeiros me parecem todos iguais, de qualquer modo. Quantos anos faz? Dez? — perguntou Poon, coçando as hemorróidas.
— Não, faz quase doze. Bons tempos aqueles, heya — disse Wu. — Grandes lucros. Muito bom subir rio acima na direção de Cantão, driblando os demônios estrangeiros e seus lacaios, o povo do presidente Mao nos dando as boas-vindas. É. O nosso povo no comando, e nem um só demônio estrangeiro à vista... tampouco algum funcionário gordo estendendo a mão para a graxa fragrante. A gente podia visitar toda a família e os amigos, então, sem problemas, heya? Não como agora, heya?
— Os vermelhos estão ficando durões, muito espertos e muito durões... piores do que os mandarins.
Wu voltou-se quando seu sétimo filho apareceu no convés. Agora, o rapaz usava uma camisa branca limpa, calças cinzentas e bons sapatos.
— Tenha cuidado — falou, com brusquidão. — Está certo de que sabe o que tem que fazer?
— Sim, Pai.
— Ótimo — disse Quatro Dedos, disfarçando o orgulho. — Não quero nenhum erro.
Ficou olhando enquanto ele se dirigia, desajeitadamente, para a prancha desconjuntada de tábuas que unia o seu junco ao seguinte, e daí para outros juncos, até chegar a um cais improvisado a oito barcos de distância.
— O Sétimo Filho já está sabendo de alguma coisa? — perguntou Poon, suavemente.
— Não, não, ainda não — falou Wu, com azedume. — Aqueles idiotas de merda, serem apanhados com as minhas armas! Sem as armas, todo o nosso trabalho será em vão.
— Boa noite, Sr. Gornt. Sou Paul Choy... meu tio Wu mandou-me vir lhe mostrar o caminho — disse o jovem, num inglês perfeito, repetindo a mentira que agora era quase verdade para ele.
Gornt parou, espantado. Depois continuou a subir as escadas desconjuntadas, com mais equilíbrio do que o rapaz.
— Boa noite — respondeu. — É americano? Ou apenas estudou lá, Sr. Choy?
— As duas coisas. — Paul Choy sorriu. — Sabe como é. Cuidado com a cabeça nas cordas... e está escorregadio como o diabo.
Virou-se e começou a mostrar o caminho de volta. Seu nome verdadeiro era Wu Fang Choi, e era o sétimo filho de seu pai com a terceira mulher, mas, quando nasceu, seu pai, Wu Quatro Dedos, lhe arranjara uma certidão de nascimento de Hong Kong, um gesto incomum para os moradores dos barcos, pusera o nome de solteira da mãe na certidão, acrescentara "Paul" e arrumara um dos seus primos para fazer o papel do pai de verdade.
— Ouça, meu filho — dissera Wu Quatro Dedos, tão logo Paul pôde compreendê-lo —, quando estiver falando em haklo no meu navio, pode me chamar de pai... mas jamais na frente de um demônio estrangeiro, mesmo em haklo. Todas as outras vezes, sou seu tio, somente um dos muitos tios. Compreendeu?
— Compreendi. Mas por quê, Pai? Fiz alguma coisa errada? Desculpe se o ofendi.
— Não ofendeu. É um bom menino, e dá duro no trabalho. Só que é melhor para a família que tenha outro nome.
— Mas por quê, Pai?
— Quando chegar a hora, saberá. — Então, quando estava com doze anos, e treinado, e provara o seu valor, o pai o mandara para os Estados Unidos. — Agora vai aprender os costumes dos demônios estrangeiros. Deve começar a falar como se fosse um deles, dormir como se fosse um deles, tornar-se externamente um deles, mas nunca se esquecer de quem é, de quem é o seu povo, ou de que todos os demônios estrangeiros são inferiores, mal são seres humanos e não são civilizados porra nenhuma.
Paul Choy riu consigo mesmo. "Se os americanos soubessem — desde os tai-pans até a escória —, se os britânicos, iranianos, alemães, russos, gente de todas as raças e cores, se todos eles soubessem realmente o que até o mais ínfimo cule pensa deles, teriam um derrame", disse para si mesmo pela milionésima vez. "Não é que todos os povos da China desprezem os estrangeiros. É só que os estrangeiros estão abaixo de qualquer consideração. Claro que estamos errados", disse consigo mesmo. "Os estrangeiros são humanos, e alguns são civilizados (à moda deles), e muito à nossa frente, tecnicamente. Mas nós somos melhores..."
— Do que está sorrindo? — perguntou Gornt, abaixando a cabeça para não tocar nas cordas, desviando-se do lixo espalhado por todos os tombadilhos.
— Ah, estava só pensando como esta vida é maluca. No mês passado, nesta época, eu estava fazendo surfe em Malibu Colony, Califórnia. Pombas, Aberdeen é bem diferente, não é?
— Está se referindo ao cheiro?
— Claro.
— É mesmo.
— Não é muito melhor na maré alta. Parece que só eu sinto o fedor!
— Quando esteve aqui pela última vez?
— Faz uns dois anos... durante dez dias... depois que me formei em administração de empresas, mas não me acostumo com ele. — Choy riu. — Não tem nada a ver com a Nova Inglaterra!
— Onde estudou?
— Primeiro em Seattle. Depois, cursei a Universidade de Washington em Seattle. Depois, fiz mestrado em Harvard, na Escola de Administração de Harvard.
Gornt parou.
— Harvard?
— É isso aí, consegui uma bolsa, como assistente.
— Que beleza! Quando se formou?
— Em junho do ano passado. Foi como sair da prisão! Puxa, eles realmente fazem você cortar um dobrado, se não tira notas altas. Dois anos de inferno! Quando saí de lá, me mandei para a Califórnia com um amigo, fazendo biscates aqui e ali, ganhando o bastante para sustentar o nosso surfe, divertindo-nos um bocado para compensar o sufoco da escola. Então... — Choy abriu um sorriso — então há dois meses o Tio Wu me procurou e disse: "Chegou a hora de trabalhar", e cá estou eu! Afinal, foi ele quem pagou os meus estudos. Meus pais morreram há anos.
— Você foi o primeiro da turma em Harvard?
— Fui o terceiro.
— Que beleza!
— Obrigado. Não falta muito, agora. O nosso é o último junco.
Conseguiram atravessar uma prancha precária, enquanto Gornt era observado com desconfiança pelos habitantes dos barcos, em silêncio, quando passavam de casa flutuante para casa flutuante, as famílias cochilando, cozinhando, comendo, ou jogando mah-jong, alguns ainda consertando redes de pescar, algumas crianças fazendo pescaria noturna.
— Este pedaço é escorregadio, Sr. Gornt. — Saltou para o convés pegajoso. — Chegamos! Lar, doce lar! — Despenteou o cabelo do garotinho sonolento que fazia as vezes de vigia, e disse em haklo, que sabia que Gornt não compreendia: — Fique acordado, Irmãozinho, senão os demônios vêm nos pegar.
— Fico, sim — disse logo o menino, os olhos desconfiados fitos em Gornt.
Paul Choy desceu na frente. O velho junco cheirava a piche e teca, peixe podre, maresia e mil tormentas. Sob o convés, a prancha da meia-nau dava para a única grande cabine normal, para vante, que ocupava toda a extensão e a largura do navio, até a proa. Um fogo de carvão aberto queimava numa lareira de tijolos malcuidada, com uma chaleira suja de fuligem fervendo sobre ele. A fumaça se enroscava para o alto, e chegava ao exterior através de um conduto tosco aberto no convés. Umas velhas cadeiras de palhinha, mesas e camadas de beliches toscos ocupavam um dos lados da cabine.
Wu Quatro Dedos estava sozinho; indicou uma das cadeiras e abriu um amplo sorriso.
— Heya, prazer em ver — falou, num inglês incerto, quase incompreensível. — Uísque?
— Obrigado — replicou Gornt. — Prazer em vê-lo, também.
Paul Choy serviu o bom uísque em dois copos semilimpos.
— Quer água, Sr. Gornt? — perguntou.
— Não, puro está ótimo. Apenas um pouco, por favor.
— Certo.
Wu aceitou o copo e brindou a Gornt.
— Prazer ver você, heya?
— É. Saúde!
Observaram-no enquanto Gornt bebia o seu uísque.
— Bom — aprovou Gornt. — Muito bom uísque.
Wu sorriu amplamente de novo, e indicou Paul.
— Ele filho irmã.
— Sei.
— Boa escola... País Dourado.
— É. É, ele me contou. Você deve estar muito orgulhoso.
— Como?
Paul Choy traduziu para o velho.
— Ah, obrigado, obrigado. Ele fala bom, heya?
— É. — Gornt sorriu. — Muito bom.
— Ah, bom, tudo bem. Fuma?
— Obrigado. — Ficaram olhando-o enquanto Gornt aceitava um cigarro. Depois Wu apanhou um, e Paul Choy acendeu ambos. Novo silêncio.
— Tudo bom com velho amigo?
— Tudo. E com você?
— Bom. — Novo silêncio. — Ele filho irmã — falou o velho marujo outra vez, e viu Gornt sacudir a cabeça e ficar calado, esperando. Ficou contente ao ver que Gornt permanecia sentado, esperando pacientemente que ele fosse ao assunto que interessava, como convém a uma pessoa civilizada.
"Alguns desses diabos rosados estão aprendendo, finalmente. É, mas alguns aprenderam bem demais, porra, como o tai-pan, por exemplo, aquele com os olhos azuis de peixe, feios e frios, que a maioria dos demônios estrangeiros tem, e que fitam a gente como um tubarão morto, o tal que até sabe falar um pouquinho do dialeto haklo. É, o tai-pan é astuto e civilizado demais, mas, enfim, teve gerações antes dele, e todos os seus ancestrais tiveram o Mau-Olhado, antes dele. É, mas o velho Demônio de Olhos Verdes, o primeiro da família, que fez um pacto com o meu ancestral, o grande senhor da guerra do mar, Wu Fang Choi, e seu filho, Wu Kwok, o cumpriu e fez com que seus filhos o cumprissem... e os filhos deles. Portanto, este tai-pan atual deve ser considerado um velho amigo, embora seja o mais mortífero de toda a descendência."
O velho conteve um estremecimento, escarrou e cuspiu para afastar o deus mau da saliva que espreitava na garganta de todos os homens. Examinou Gornt. "Eeee", falou consigo, "deve ser terrível ter que olhar para aquele rosto rosado em cada espelho... todo aquele pêlo facial, feito um macaco, e uma pele pálida de barriga de sapo branco no resto do corpo. Arre!”.
Forçou um sorriso para disfarçar o seu embaraço e tentou ler o rosto de Gornt, o que havia por detrás dele, mas não conseguiu. "Não faz mal", disse para si mesmo, alegremente, "foi para isso que se gastou tanto tempo e dinheiro a fim de preparar o Filho Número Sete... ele conseguirá”.
— Poderia pedir favor? — perguntou, testando.
As vigas do navio rangiam agradavelmente, enquanto ele forçava as suas amarras.
— Sim. Que favor, velho amigo?
— Filho irmã... hora trabalhar... dá emprego? — Notou o espanto evidente no rosto de Gornt, e isso o irritou, mas soube disfarçar. — Explique — falou, em inglês. Depois acrescentou para Paul Choy, num haklo gutural: — Explique para esse Comedor de Bosta de Tartaruga o que eu quero. Como lhe ensinei.
— Meu tio pede desculpas por não poder falar-lhe diretamente, por isso pediu-me para explicar, Sr. Gornt — falou Paul Choy, educadamente. — Quer pedir-lhe que me dê um emprego... como uma espécie de estagiário... na sua divisão de aviões e navegação.
Gornt bebericava o seu uísque.
— Por que nessa divisão, Sr. Choy?
— Meu tio possui substanciais interesses em navegação, como o senhor sabe, e deseja que eu modernize a sua operação. Posso dar-lhe todas as informações sobre os meus antecedentes, se resolver me aceitar, senhor... meu segundo ano em Harvard foi dirigido para essas áreas... meu principal interesse era todo tipo de transportes. Já tinha sido aceito na Divisão Internacional do Ohio Bank quando meu tio me arran... mandou me chamar. — Paul Choy hesitou. — Bem, é isso o que ele está pedindo.
— Que dialetos fala, além do haklo?
— Mandarim.
— Quantos caracteres sabe escrever?
— Cerca de quatro mil.
— Sabe taquigrafia?
— Apenas datilografia rápida, senhor. Posso bater oitenta palavras por minuto, mas não perfeitas.
— O quê? — perguntou Wu.
Gornt esperou que Paul Choy traduzisse o que fora dito para o tio, observando-o... e a Wu Quatro Dedos. Finalmente, perguntou:
— Que espécie de estagiário quer ser?
— Ele quer que eu aprenda tudo o que for possível sobre a administração de navios e aviões. Também o negócio de corretagem e fretagem, o funcionamento prático e, é claro, quer que eu seja uma engrenagem lucrativa para o senhor, na sua máquina. Talvez a minha perícia técnica ianque, ao menos teórica, possa lhe ser de alguma ajuda. Estou com vinte e seis anos. Tenho o meu mestrado. Estou por dentro de todas as novas teorias de computadores. Claro que sei programar um. Em Harvard, especializei-me em conglomerados, fluxos de caixa.
— E se não se sair bem, ou se houver, digamos, um conflito de personalidades?
O rapaz disse com firmeza:
— Não haverá, Sr. Gornt. Pelo menos, trabalharei feito um burro de carga para evitar isso.
— O que foi que ele disse exatamente? — Quatro Dedos perguntou vivamente em haklo, notando uma mudança de inflexão, os olhos e os ouvidos ultra-atentos.
O filho explicou, exatamente.
— Ótimo — falou Wu, a voz roufenha. — Diga-lhe, exatamente, que se você não cumprir suas tarefas como for do agrado dele, será escorraçado da família, e a minha ira destruirá os seus dias.
Paul Choy hesitou, ocultando o seu choque, todo o seu treinamento americano gritando que mandasse o pai ir se foder, que era formado por Harvard, que era americano, e tinha um passaporte americano que ele próprio ganhara, não importa de que maldita sampana ou maldita família tivesse vindo. Mas manteve os olhos baixos e não deixou transparecer no rosto a raiva que sentia.
"Não seja ingrato", ordenou a si mesmo. "Você não é americano, americano de verdade. É chinês, e o chefe de sua família tem o direito de mandar. Se não fosse por ele, você provavelmente estaria dirigindo um bordel flutuante, aqui em Aberdeen."
Paul Choy soltou um suspiro. Sabia que era mais afortunado do que os seus onze irmãos. Quatro eram comandantes de juncos em Aberdeen, um morava em Bangkok e navegava no rio Mekong, um tinha uma balsa em Cingapura, outro tinha um negócio de importação e exportação de material de construção naval na Indonésia, dois haviam morrido no mar, um estava na Inglaterra (fazendo o quê, não sabia) e o último, o mais velho, chefiava, no porto de Aberdeen, a dúzia de sampanas auxiliares que eram cozinhas flutuantes... e também três barcos-bordel e oito damas da noite.
Depois de uma pausa, Gornt perguntou:
— O que foi que ele disse? Exatamente?
Paul Choy hesitou, depois resolveu dizer-lhe, exatamente.
— Obrigado por ter sido franco comigo, Sr. Choy. Foi muito sensato da sua parte. É um rapaz realmente notável. — falou Gornt. — Compreendo perfeitamente. — Agora, pela primeira vez desde que Wu fizera a pergunta original, voltou o olhar para o velho marujo e sorriu. — Mas, claro. Prazer em dar emprego sobrinho.
Wu sorriu de orelha a orelha, e Paul Choy tentou não demonstrar na fisionomia o seu alívio.
— Não o desapontarei, Sr. Gornt.
— É, sei que não. Wu indicou a garrafa.
— Uísque?
— Não, obrigado. Já chega — disse Gornt.
— Quando começa emprego? Gornt olhou para Paul Choy.
— Quando gostaria de começar?
— Amanhã? Quando for conveniente para o senhor.
— Amanhã. Quarta-feira.
— Puxa, obrigado. Oito horas?
— Nove; do dia seguinte em diante, às oito. Semana de seis dias. Trabalhará muitas horas, e eu ficarei em cima de você. Dependerá de você o quanto poderá aprender, e a presteza com que poderei aumentar suas responsabilidades.
— Obrigado, Sr. Gornt.
Muito contente, Paul Choy traduziu para o pai. Wu tomou goles do seu uísque, sem se apressar.
— Qual dinheiro? — perguntou.
Gornt hesitou. Sabia que tinha que ser a quantia certa, nem de mais nem de menos, para não desprestigiar nem Paul Choy nem o tio.
— Mil HK por mês, nos três primeiros meses, depois revejo a quantia.
O rapaz não demonstrou na fisionomia o seu aborrecimento. Mal chegava a duzentos dólares americanos, mas traduziu para o haklo.
— Quem sabe dois mil? — falou Wu, disfarçando o seu prazer. Mil era a quantia perfeita, mas estava barganhando meramente para não desprestigiar o demônio estrangeiro, nem o filho.
— Se vai ser treinado, muitos gerentes valiosos terão que perder tempo, afastando-se de suas outras obrigações — Gornt disse, cortesmente. — Sai caro treinar uma pessoa.
— Muito dinheiro Montanha Dourada — Wu falou, com firmeza. — Dois?
— Mil no primeiro mês, mil duzentos e cinqüenta nos dois meses seguintes?
Wu franziu o cenho, e acrescentou:
— Mês três, mil e quinhentos?
— Pois bem, mil e quinhentos no terceiro e quarto meses. E reexaminarei o salário dele depois de quatro meses. E Paul Choy se compromete a trabalhar para a Rothwell-Gornt durante pelo menos dois anos.
— Hem?
Paul Choy traduziu de novo. "Merda", pensava, "como vou poder tirar férias nos Estados Unidos com cinqüenta mangos por mês, ou mesmo sessenta? Merda! E onde vou morar, porra? Numa bosta duma sampana?" Então ouviu Gornt dizer algo que o desnorteou inteiramente.
— Senhor?
— Falei que, como você foi muito honesto comigo, dar-lhe-emos acomodações grátis numa das casas da nossa companhia: The Gables. É onde colocamos todos os nossos gerentes estagiários que vêm da Inglaterra. Se vai fazer parte de uma hong de demônios estrangeiros, então é melhor se misturar aos seus futuros líderes.
— Sim, senhor! — Paul Choy não conseguiu conter o amplo sorriso. — Sim, senhor, obrigado, senhor.
Wu Quatro Dedos perguntou alguma coisa em haklo.
— Ele está perguntando onde fica a casa, senhor.
— Fica no Pico. É realmente muito simpática, Sr. Choy. Estou certo de que ficará mais do que satisfeito.
— Pode apostar que... sim, senhor.
— Esteja preparado para mudar-se amanhã à noite.
— Sim, senhor.
Depois que Wu compreendeu o que Gornt dissera, concordou com um aceno de cabeça.
— Tudo concordado. Dois anos, depois ver. Quem sabe mais, heya?
— É.
— Bom. Obrigado, velho amigo. — Depois, em haklo: — Agora pergunte a ele o que queria saber... sobre o banco.
Gornt preparava-se para se levantar quando Paul Choy disse:
— Há mais uma coisinha que meu tio queria perguntar-lhe, senhor, se dispuser de tempo.
— Claro.
Gornt acomodou-se na cadeira, e Paul Choy notou que o homem parecia mais atento agora, mais cauteloso.
— Meu tio gostaria de saber sua opinião sobre a corrida à agência do Ho-Pak Bank de Aberdeen, hoje.
Gornt fitou-o, olhar firme.
— O que é que tem?
— Corre todo tipo de boatos — dizia Paul Choy. — Meu tio tem muito dinheiro lá, a maioria dos amigos dele também. Uma corrida àquele banco seria uma péssima notícia.
— Acho que seria uma boa idéia sacar o dinheiro dele — disse Gornt, radiante com a oportunidade inesperada de alimentar o fogo.
— Deus — murmurou Paul Choy, estupefato. Estivera sondando Gornt com muito cuidado, e percebera a súbita tensão, e agora um prazer igualmente súbito o surpreendera. Pensou por um momento, depois decidiu mudar de tática e mostrar as cartas. — Ele queria saber se o senhor estava vendendo a descoberto.
Gornt falou, ironicamente:
— Ele ou o senhor, Sr. Choy?
— Nós dois, senhor. Ele tem uma grande carteira de ações que quer que eu administre, no futuro — falou o jovem, o que era um exagero completo. — Estive lhe explicando a mecânica da operação moderna dos bancos e da Bolsa de Valores... como funcionam, e como Hong Kong é diferente dos Estados Unidos. Ele entendeu facilmente, senhor. — Novo exagero. Paul Choy descobrira ser impossível derrubar os preconceitos do pai. — Pergunta se deve vender a descoberto.
— Sim, acho que deve. Tem havido muitos boatos de que o Ho-Pak ultrapassou seus limites... pedindo emprestado a curto prazo e juros baixos, emprestando a longo prazo e juros altos, especialmente com propriedades, o meio clássico de qualquer banco se meter em sérias dificuldades. Por medida de segurança, ele devia retirar todo o seu dinheiro e vender a descoberto.
— Próxima pergunta, senhor: o Blacs ou o Victoria Bank salvarão o Ho-Pak?
Foi com esforço que Gornt manteve a fisionomia impassível. O velho junco inclinou-se de leve quando as ondas formadas por outro junco que passava lamberam seus flancos.
— Por que outros bancos fariam tal coisa?
"Estou encurralado", pensava Gornt, estupefato. "Não posso contar-lhes a verdade... é impossível saber quem mais obterá a informação. Ao mesmo tempo, não ouso não contar ao velho sacana e ao seu maldito pirralho. Ele está pedindo a retribuição do favor, e eu tenho que pagar, é uma questão de prestígio."
Paul Choy inclinou-se para a frente, na cadeira, com excitação evidente:
— A minha teoria é que, se houver mesmo uma corrida de verdade ao Ho-Pak, os outros não deixarão que entre em colapso... não como o desastre do East índia and Canton Bank no ano passado, porque isso criaria ondas de choque que o mercado, os grandes operadores do mercado, não apreciariam. Todo mundo aqui está à espera de uma alta repentina, e aposto que os figurões não vão deixar que uma catástrofe destrua esta chance. Como o Blacs e o Victoria são os bancos da pesada, é lógico imaginar que eles salvarão o outro.
— Aonde quer chegar, Sr. Choy?
— Se alguém soubesse antecipadamente quando as ações do Ho-Pak chegariam ao fundo do poço, e quando um dos bancos, ou os dois, começariam a operação para tirá-lo do buraco, essa pessoa poderia ganhar uma fortuna.
Gornt estava tentando decidir o que fazer, mas agora estava cansado, sua mente não estava tão aguçada quanto deveria. "O acidente deve ter me esgotado mais do que imaginei", disse consigo mesmo. "Será que foi Dunross? O filho da mãe estaria tentando acertar as contas, me fazer pagar por aquela noite de Natal, ou pela vitória do Pacific Orient, ou cinqüenta outras vitórias... talvez até mesmo a velha ferida de Macau."
Gornt sentiu uma súbita animação ao recordar-se da excitação febril que sentira ao assistir à corrida, sabendo que a qualquer momento o motor do tai-pan pifaria... vendo os carros passarem roncando, volta após volta, e então, Dunross, o líder, não mais apareceria... depois a espera da torcida, e depois a notícia de que ele saíra fora da pista na curva Melco, superfechada, numa batida ruidosíssima, quando seu motor pifara. Nova espera, o estômago dando voltas. Depois, a notícia de que o carro de corrida explodira numa bola de fogo, mas que Dunross tivera tempo de pular fora, incólume. Ficara a um só tempo muito triste e muito feliz.
Não queria que Dunross morresse. Queria-o vivo e destruído; queria-o vivo para dar-se conta da sua destruição.
Riu baixinho, consigo mesmo. "Ora, não fui eu que...
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