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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA / Madeline Hunter
CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA / Madeline Hunter

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Lady Christiana Fitzwaryn está apaixonada. Infelizmente, o seu futuro marido não é o homem dos seus sonhos mas sim um perfeito desconhecido, com quem o próprio rei Eduardo negociou o enlace. Sobre este homem, Christiana apenas sabe tratar-se de um mero mercador plebeu. Não estava, pois, preparada para o primeiro encontro: David de Abyndon revela ter um carisma extraordinário e nutre uma indiferença desconcertante em relação ao estatuto social dela. Para sua grande surpresa, é a aristocrata quem se sente perturbada na presença daquele homem de enigmáticos olhos azuis. Por seu lado, David guarda uma dor secreta. Como pode confessar a Christiana que há mais naquele casamento do que aquilo que salta à vista? Como pode falar-lhe do seu acordo com o rei? Conseguirá convencê-la de que o amor que ela procura não se encontra no cavaleiro com quem ela sonha mas sim nos seus braços?
É que David pode ter-lhe comprado o corpo mas, no negócio, ter perdido para sempre o seu coração...

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1
Se o vosso irmão vier a saber disto, terei muita sorte se conseguir escapar com a minha virilidade intacta, para não falar da minha cabeça - proferiu Thomas.
A luz pálida da lua lançava sombras nas paredes dos estabelecimentos que se alinhavam ao longo da rua. Movimentos ominosos à esquerda e à direita captavam ocasionalmente
a atenção de Christiana, mas esta noite ela não receava salteadores nem ladrões. Ao seu lado cavalgava Thomas Holland, um dos cavaleiros da rainha, e o brilho do
seu archote punha em evidência a sua longa espada. Christiana não esperava desafios de quem quer que os visse na cidade depois do recolher obrigatório.
- Ele nunca saberá, prometo-vos. Ninguém virá a saber. Tranquilizou-o.
Thomas tinha razões para estar preocupado. Se Morvan, o irmão de Christiana, descobrisse que ele a ajudara a escapulir-se de Westminster depois do anoitecer, fá-lo-ia
pagar bem caro. Todavia, ela assumiria todas as responsabilidades caso fossem descobertos. Afinal, dificilmente se poderia meter num sarilho maior do que este.
- Esse mercador que necessitais de ver deve ser rico, uma vez que não reside sobre o estabelecimento - proferiu Thomas com ar apreensivo. - Não é minha intenção intrometer-me, senhora, mas esta é uma altura peculiar para fazer visitas, e para mais, em segredo. Espero não estar a conduzir-vos a algum amante. O rei em pessoa esventrar-me-ia se fosse esse o caso.
Christiana teria achado graça à sugestão dele, se o seu transtorno, naquele momento, não a tivesse deixado demasiado indisposta para apreciar a terrível piada.
- Não é um amante, e venho a esta hora porque é a única altura em que tenho a certeza de o encontrar em casa - replicou, na esperança de que ele não pedisse mais explicações.
Necessitara de toda a sua astúcia para conseguir escapulir-se para esta visita clandestina, e já não lhe restava mais para inventar outra mentira.
O dia anterior fora o pior e o mais longo da sua vida. Teria sido apenas na noite anterior que se encontrara com a rainha Filipa e lhe havia sido comunicada a decisão do rei de aceitar uma oferta de casamento para ela? Desde então, todos os momentos haviam sido uma eternidade de pânico e indignação.
Não era contra o casamento em si que ela se opunha. Na realidade, com dezoito anos, já ultrapassara a idade em que a maior parte das raparigas contraíam matrimónio. Mas aquela oferta não proviera de Stephen Percy, o cavaleiro a quem ofererecera o seu coração. Nem proviera de qualquer outro cavaleiro ou lorde, como seria adequado à filha de Hugh Fitzwaryn, uma menina pertencente a uma família da antiga nobreza.
Não, o rei Eduardo decidira casá-la com David de Abyndon, que ela nunca conhecera.
Um mercador comum.
Um mercador comum e idoso, de acordo com as palavras da sua tutora, Lady Idonia, que se recordava de comprar sedas ao senhor David, o mercador da sua juventude.
Era a forma de o rei a castigar. Desde a morte dos seus pais que ficara sob a sua custódia e vivia na corte com a sua filha mais velha, Isabele, e a jovem prima dele, Joan do Kent. O rei devia ter explodido de fúria quando descobrira a sua ligação com Stephen, para lhe atribuir um castigo assim tão drástico.
Stephen. O belo e loiro Stephen. O coração de Christiana sofria por ele. As suas atenções secretas haviam trazido o sol à sua vida protegida e solitária. Fora o primeiro homem a atrever-se a fazer-lhe a corte. Morvan ameaçara matar todo o homem que a cortejasse antes dos esponsais. A corpulência do irmão e a sua destreza com as armas haviam-se revelado um impedimento desgraçadamente eficaz a qualquer ligação amorosa. As outras raparigas da corte tinham admiradores, mas ela não. Até Stephen aparecer.
Aquele casamento seria um castigo severo pelo que havia acontecido naquela cama antes de Idonia os ter encontrado juntos. Um castigo que ela não planeava aceitar. Tão-pouco o aceitaria o idoso mercador quando tivesse conhecimento da forma como estava a ser usado pelo rei.
Christiana e Thomas seguiram a cabeça loira do aprendiz a quem haviam despertado na loja do mercador. O jovem concordara em guiá-los até casa do seu amo. Conduziu-os pela vereda para longe da zona de Cheap e depois em direcção ao edifício da Câmara Municipal antes de parar diante de um portão e bater suavemente. A imensa porta abriu-se e uma figura corpulenta surgiu à ombreira, bloqueando-a.
O guarda do portão segurava um archote numa mão maciça. Era o homem mais alto que Christiana alguma vez vira, e robusto como o tronco de uma árvore. O seu cabelo ondulado, loiro esbranquiçado, dava-lhe pelos ombros.
- Andrew, és tu? - inquiriu numa voz acentuada com os tons melodiosos da pronúncia sueca. - O que raio estás tu aqui a fazer? Se os guardas te apanham de novo depois do recolher obrigatório...
- Estes dois apareceram-me lá na loja, Sieg. Tinha de lhes mostrar o caminho, não te parece?
Sieg apontou o archote na direcção deles para poder ver melhor.
- Ele tem estado à vossa espera - proferiu cautelosamente -, mas tinham-me dito que eram dois homens. Já, bem, sigam-me. Eu levo-os até o salão pequeno e digo-lhe que estão aqui.
- Eu acompanho-vos até lá acima - sussurrou Thomas, voltando-se para ela. - Se acontecer alguma coisa...
- Tenho de fazer isto sozinha. Não há perigo nenhum para mim aqui.
Thomas não gostou daquilo.
- Estou a ver um pátio para lá deste portão. Aguardarei ali. Sede rápida e gritai se necessitardes de mim.
Ela seguiu a montanha denominada Sieg. Havia portas de ambos os lados de uma curta passagem. Atravessaram o pátio e entraram num salão perpendicular ao primeiro. Ficou com a impressão de ter visto bancos e mesas à medida que avançavam, descrevendo finalmente uma curva para uma outra ala, que ficava na direcção da primeira, do outro lado do pátio. Aqui, uma escada estreita conduzia ao segundo piso.
Sieg abriu uma porta no patamar superior e indicou-lhe, com um gesto, que entrasse.
- Podeis aguardar aqui. O mestre David deve estar deitado, por isso pode demorar um pouco.
- Eu não pretendia perturbá-lo - disse, erguendo uma mão para o impedir. - Posso regressar noutra altura.
- Foi-me dito que o despertasse aquando da vossa chegada. Esta era a segunda vez que este homem sugeria que estavam à
espera dela.
- Creio que estais enganado - começou ela, mas Sieg já havia saído.
A sala de estar era bastante espaçosa, e, numa das extremidades, via-se uma lareira onde ardia um lume brando. O mobiliário não se lhe afigurava como mais do que sombras escuras à luz do luar, que penetrava através da fileira de janelas em arco ogival, ao longo da parede mais distante. Christiana encaminhou-se a passos largos para junto dessas janelas e passou os dedos pela superfície rugosa dos vidros e do rendilhado de chumbo. Vidro. Grandes quantidades de vidro, e muito dispendioso. Este senhor David fora bem-sucedido ao longo da vida a comercializar as suas roupas e futilidades.
Não era de surpreender. Tinha conhecimento de que alguns dos mercadores ingleses eram tão ricos quanto os lordes proprietários de terras, e que alguns se haviam mesmo convertido em fidalgos por meio da sua riqueza. O presidente da Câmara de Londres havia sido sempre tratado como um par do reino nas cerimónias importantes da corte, e as famílias que apoiavam os vereadores também fruíam de um estatuto muito elevado. Os mercadores londrinos, com as suas cartas régias de liberdade, eram um grupo de homens orgulhosos e influentes, ciosos das suas prerrogativas e direitos. Eduardo negociava e aconselhava-se tanto com Londres como com os seus barões.
Sieg regressou e avivou o lume. Antes de sair, acendeu apressadamente algumas velas numa mesa próxima. Christiana manteve-se no seu canto sombrio, junto das janelas e longe da luz.
Uma porta junto à lareira abriu-se e entrou um homem. Deteve-se e lançou um olhar pelo compartimento. O seu olhar encontrou a sombra dela perto das vidraças, e ele deu alguns passos na sua direcção.
A luz da lareira iluminava-o e Christiana contemplou a figura alta e esguia, o cabelo castanho dourado e os traços de um belo rosto.
Uma sensação de humilhação percorreu-a. Tinha vindo ao sítio errado!
- Minha senhora? - pronunciou numa voz suave de barítono. Uma bela voz. Era um timbre cativante e levava a que se escutasse o que dizia, ainda que fosse algum disparate.
Procurou as palavras para formular um pedido de desculpas.
- Tendes algo para mim? - encorajou ele.
Talvez pudesse sair dali sem que este homem viesse a saber a identidade da pessoa que fizera figura de tola naquela noite.
- Lamento muito. Houve um engano - explicou ela. - Parece que vim à casa errada.
- Quem procurais?
- Mestre David, o negociante de sedas.
- Sou o próprio.
- Penso que seja um David diferente. Disseram-me que ele era... mais velho.
- Eu sou David, o comerciante de sedas, e não há outro. Se trouxestes algo para mim...
Christiana queria desaparecer. Sentia-se capaz de matar Idonia! O seu comerciante amável e idoso era um homem com pouco mais de trinta anos.
Ele detivera-se a meio de uma frase, e Christiana sentiu que ele se apercebia de que também ela não era a pessoa que ele esperava.
- Talvez se me dissésseis a razão pela qual me procurais... disse, dando mais uns passos na sua direcção.
Velho ou novo, não fazia qualquer diferença. Encontrava-se ali naquele momento e contar-lhe-ia a sua história. Não agradaria a este homem ser tratado como um joguete pelo rei, independentemente da sua idade.
- O meu nome é Christiana Fitzwaryn.
Permaneceram num longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar dos cepos que agora avivavam as chamas na lareira.
- Bastava que me tivésseis avisado e eu teria ido ao vosso encontro. Na verdade, foi-me dito que a rainha iria apresentar-nos amanhã no castelo - declarou por fim.
Nessa altura, ela teve a certeza, de que não tinha havido qualquer engano.
- Eu pretendia falar-vos em privado.
O mercador inclinou a cabeça para trás. - Então vinde e sentai-vos, Lady Christiana - disse. - Dizei o que vos traz aqui.
Perto da lareira encontravam-se três cadeirões grandes, todos eles com costas e braços. Reprimindo o instinto de fugir da sala a sete pés, sentou-se no do meio. Era demasiado grande para ela, e mesmo sentada na beira do cadeirão, os seus pés permaneciam suspensos. Sentia-se exactamente como se sentira na noite anterior, junto da rainha, como uma criança à espera de ser castigada. Ergueu os braços, alcançou o capuz do manto e fê-lo deslizar pela cabeça.
À sua esquerda, David de Abyndon sentou-se noutro cadeirão. Posicionou-o de modo a ficar à sua frente. Mais de perto, com a claridade do lume, ela conseguia vê-lo nitidamente.
Os seus olhos incidiram sobre um par de botas castanhas de cano alto, habilmente confeccionadas, e umas longas pernas bem torneadas, envoltas numas bragas igualmente castanhas. O seu olhar foi subindo até deparar com uma bela mão masculina, de dedos longos, e repleta de veias esguias, que repousava no braço do cadeirão. O gibão de lã era completamente desprovido de adornos, tanto de bordados como de jóias, e contudo, até mesmo na luminosidade bruxuleante do lume, Christiana percebia que o tecido e o acabamento eram da melhor qualidade, e muito dispendiosos. Fez uma pausa durante um momento, e estudou o cadeirão trabalhado onde ele se sentava, e os pássaros e as trepadeiras que o adornavam.
Finalmente, não havia mais nenhum ponto para fixar senão o rosto dele.
Uns olhos de um tom azul-escuro como lápis-lazúli examinavam-na com a mesma atenção com que ela o examinava a ele. Pareciam ser uns olhos amigáveis, até mesmo expressivos, mas para ela foi um tanto desconcertante não conseguir interpretar os pensamentos e as reacções neles contidos. O que estaria reflectido naqueles olhos? Divertimento? Curiosidade? Enfado? Eram admiravelmente encimados por umas sobrancelhas levemente arqueadas, e os ossos em seu redor, na verdade todos os ossos do seu rosto, pareciam perfeitamente formados e simetricamente distribuídos, como se um mestre artesão de grande perícia tivesse escolhido cuidadosamente cada um dos elementos e os tivesse disposto dessa forma. Um nariz rectilíneo conduzia a uma boca rasgada e estreita. O cabelo castanho dourado e farto, um pouco mais curto do que ditava a moda naquele ano, estava dividido ao meio e caía-lhe despreocupadamente sobre as têmporas e ao longo das maçãs do rosto e dos maxilares bem definidos, até ao colarinho da camisa.
David de Abyndon, responsável pela companhia de comércio de sedas e mercador de Londres, era um homem muito atraente. Era quase um homem belo, mas uma vaga dureza nos seus olhos e na sua boca impediam que o fosse.
Os seus olhos azuis fitavam-na com uma expressão avaliadora, e ela sentiu-se subitamente muito constrangida. Havia sido pouco delicado da sua parte examiná-lo assim tão descaradamente, é certo, mas ele era mais velho e devia saber que não lhe ficava bem fazer o mesmo.
- Não quereis tirar a vossa capa? Aqui está quente - inquiriu aquela voz suave.
A ideia de retirar a capa horrorizava-a de um modo incompreensível. Estava certa de que se sentiria nua sem ela. Na verdade, em jeito de resposta, aconchegou-a ainda mais ao corpo.
Ele voltou a esboçar um sorriso. Fê-lo parecer amigável, mas não revelava nada.
- Disseram-me que vós éreis... - explicou Christiana depois de aclarar a garganta - que éreis...
- Mais velho.
- Sim.
- Sem dúvida alguém me confundiu com o meu falecido mestre e sócio David Constantyn. O negócio era dele antes de ser meu.
- Sem dúvida.
O silêncio prolongou-se. Ele mantinha-se calmamente sentado a observá-la e ela sentia que emanava dele uma força inexplicável. O ar em seu redor possuía uma tensão ou urna intensidade que ela não conseguia definir. Christiana começou a sentir-se muito desconfortável. Depois recordou-se que tinha ido até ali para falar com ele e que ele estava pacientemente à espera que ela o fizesse.
- Preciso de falar-vos de algo muito importante. - Folgo em sabê-lo.
- O quê? - inquiriu fitando-o em sobressalto.
- Folgo em saber que é algo importante. Não gostaria de pensar que atravessastes as ruas de Londres à noite por um motivo frívolo.
Estava subtilmente a repreendê-la ou a troçar dela. Christiana não conseguia perceber qual das duas hipóteses estava correcta.
- Não estou sozinha. Tenho um cavaleiro à minha espera no pátio - disse sem rodeios.
- Foi generoso da parte dele em acompanhar-vos. Não estava a troçar dela. Estava a repreendê-la.
Isso aborreceu-a o suficiente para que reorganizasse rapidamente as ideias. Começava a pensar que não sentia grande apreço por este homem. Fazia-a sentir-se muito vulnerável. Também sentia nele algum orgulho e altivez, e isso irritava-a ainda mais. Estava à espera de encontrar um idoso que a tratasse com uma certa deferência devido à diferença de posição. Não havia deferência alguma neste homem.
- Mestre David, vim pedir-lhe que retire o seu pedido de casamento.
Ele olhou de relance para o lume e depois o seu olhar pousou novamente sobre ela. Cruzou uma perna esguia e musculada sobre a outra e recostou-se confortavelmente no cadeirão. Nos seus olhos surgiu uma expressão ilegível, e o sorriso ténue formou-se novamente.
- Por que razão iria eu querer fazer tal coisa, minha senhora? Não pareceu minimamente surpreendido ou irritado. Talvez este
encontro viesse a correr conforme planeara.
- Mestre David, estou certa de que sois o homem bom e honrado que o rei afirma, mas esta oferta foi aceite sem o meu consentimento.
- E? - fitou-a de um modo impassível.
- E? - repetiu ela um tanto surpreendida.
- Minha senhora, essa é uma excelente razão para a vossa recusa, mas não para a minha. Expressai a vossa vontade ao rei ou ao bispo e é tudo. Mas o vosso consentimento ou a ausência dele não é da minha conta.
- Não é assim tão simples. Talvez o seja para pessoas como vós, mas eu estou sob a custódia do rei. Ele falou por mim. Desafiá-lo nisto...
- A Igreja não casará uma mulher contra a sua vontade, ainda que tenha sido o rei a fazer a aliança. Eu, por outro lado, dei o meu consentimento e não posso retirá-lo.
Não tenho qualquer razão para o fazer, como já disse.
A sua calma ausência de reacção irritou-a.
- Muito bem, então permita que vos explique mais claramente a minha posição e talvez encontreis a vossa razão. Não dou o meu consentimento porque estou apaixonada por outro homem.
Nada mudou nos olhos dele nem na expressão do seu rosto. Teria surtido mais efeito se lhe tivesse dito que possuía uma verruga a desfear-lhe uma perna.
- Sem dúvida que é uma excelente razão para, no vosso entender, vos recusardes, Christiana, mas, mais uma vez, não é da minha conta.
Ela não conseguia acreditar na sua branda aceitação daquele facto. Não teria orgulho? Não teria coração?
- Não podeis querer desposar uma mulher que ama outro homem - disse de um modo abrupto.
- Suponho que esteja sempre a acontecer. A Inglaterra está repleta de casamentos realizados sob essas circunstâncias. A longo prazo, não é um assunto muito grave.
Ob, Céus, pensou Christiana. Um homem que acreditava em casamentos práticos. Que sorte a dela. Mas, por outro lado, ele era um mercador.
- Pode não ser um assunto grave entre pessoas como vós tentou ela explicar. - Mas os casamentos baseados no amor tornaram-se cada vez mais desejáveis...
- É a segunda vez que dizeis isso, senhora. Espero que não volteis a fazê-lo.
Disse-o com a mesma voz suave e a mesma expressão impassível, e todavia adivinhava-se um tom imperativo.
- O que é que eu disse?
- Pessoas como vós. Usastes esta frase duas vezes.
- Não quis dizer nada de especial com ela.
- Quisestes dizer tudo com ela. Mas discutiremos isso noutro dia.
Ele havia-a desorientado e distraído com esta segunda repreensão. Procurou o fio do seu raciocínio. Ele encontrou-o por ela.
- Minha senhora, estou certo de que uma jovem considera que deve desposar o homem que pensa que ama. Mas as vossas emoções são um problema a curto prazo. Serão ultrapassadas. O casamento é um investimento a longo prazo. No final, tudo dará certo.
Ele dirigia-se a ela como se ela fosse uma criança, e de uma forma calma, como se estivessem a discutir o embarque de um carregamento de lã. Fora um erro pensar que podia apelar à compreensão dele. Afinal, era um negociante, e para ele provavelmente a vida era apenas um grande livro-mestre de despesas e lucros.
Bem, talvez ele compreendesse melhor as coisas se pudesse ver o custo potencial do seu orgulho.
- Isto não é apenas uma paixoneta de curto prazo da minha parte, mestre David. Não sou nenhuma criança - exclamou. - comprometi-me moralmente com este homem.
- Prometeram-se um ao outro em segredo?
Podia ser feito assim. Podia mentir. Desejava ardentemente fazê-lo, e sentia-se deveras tentada a isso, mas uma tal mentira podia ter consequências desastrosas, e tornar-se muito pública, e ela não era assim tão corajosa.
- Não formalmente - respondeu, desejando criar um pouco de ambiguidade com esta resposta.
Pelo menos agora ele parecia mais interessado.
- Esse homem pediu-vos em casamento?
- A família dele enviou-o para casa e afastou-o da corte antes que ele pudesse fazê-lo.
- Ele é alguma criança a quem a família controla? Christiana teve de recordar-se de quem era o seu interlocutor.
- A vontade da família pode ser vista como um assunto de menor importância para um homem como vós, mas ele pertence a uma família poderosa do Norte. Ninguém desafia os laços de sangue assim tão facilmente. De qualquer forma, estou certa de que regressará logo que tome conhecimento da realização destes esponsais.
- Então, Christiana, estais a dizer-me que este homem afirmou pretender casar-se convosco, mas que vos deixou sem nada definido.
Aquela parecia uma forma bastante directa de colocar a questão.
- Sim.
- Ah - proferiu, com um sorriso.
Christiana sentiu-se realmente melindrada com aquele "Ah". A irritação tornou-a arrojada. Inclinou-se na direcção dele, cerrando os dentes com a raiva reprimida.
- Mestre David, permiti que seja franca convosco. Eu entreguei-me a este homem.
Finalmente houve uma reacção para além daquela indiferença passiva. A cabeça dele descaiu um pouco para trás e ele estudou-a através das suas pálpebras semicerradas.
- Sede então franca minha senhora. O que quereis dizer exactamente com isso?
Ela atirou as mãos ao ar num gesto de exasperação.
- Fizemos amor. Isso é ser suficientemente franca? Fomos para a cama juntos. Na verdade, fomos apanhados na cama juntos. A vossa oferta só foi aceite para que a rainha pudesse silenciar qualquer escândalo e impedir que o meu irmão forçasse um casamento que a família do meu amado não aprova.
Ela pensou ter visto um clarão de fúria sob aquelas pálpebras.
- Fostes descobertos dessa forma e esse homem deixou-vos sozinha para enfrentardes a situação? A vossa devoção para com esse modelo ideal de cavaleiro é impressionante.
O julgamento que ele emitiu de Stephen assentou-lhe como uma bofetada.
- Como é que alguém como vós se atreve...
- Estais a fazê-lo de novo.
- A fazer o quê? - retorquiu asperamente.
- "Alguém como vós." É a segunda vez. Outra expressão que, a bem da prudência, deveis evitar. - Fez uma pausa. - Quem é esse homem?
- Jurei que jamais o revelaria. - Proferiu duramente. - O meu irmão... Além disso, tal como dissestes, não é da vossa conta.
Ele pôs-se de pé, erguendo-se com um movimento elegante, e dirigiu-se à lareira. As linhas sob o gibão sugeriam um corpo esguio e robusto. Era bastante alto. Não
tanto como Morvan, mas mais alto do que a maioria dos homens, a presença dele perturbava-a. Era suposto que os mercadores fossem homens enfezados ou corpulentos, com chapéus de pele.
- Estais de esperanças? - inquiriu, olhando para as labaredas.
A ideia deixou-a perplexa. Não havia pensado nisso. Mas talvez a rainha o tivesse feito. Fitou-o com uma expressão vaga. Ele voltou-se e reparou nela.
- Conheceis os sinais? - Questionou suavemente. Christiana sacudiu a cabeça em negação.
- Já tivestes a vossa menstruação desde o dia em que vos deitastes com ele?
Enrubesceu e assentiu em afirmação. Na verdade, havia aparecido hoje.
David voltou-se para o lume.
O que estaria ele a pensar enquanto observava aquelas línguas de fogo, interrogava-se Christiana. Permaneceu em silêncio, permitindo que ele avaliasse se dava ou não valor àquelas coisas, rezando para que fosse bem-sucedida, ansiando que ele tivesse realmente uma alma de mercador e se sentisse repugnado em aceitar mercadoria usada.
Finalmente, sentiu que não podia esperar mais.
- Então, ireis ao encontro do rei para retirardes a vossa oferta?
- perguntou esperançosamente.
- Não me parece - respondeu, lançando-lhe um olhar sobre o ombro.
O coração dela esmoreceu.
- As jovens cometem erros - acrescentou.
- Isto não foi um erro - respondeu ela impetuosamente. - Se não recuardes, acabareis por fazer figura de tolo. Ele virá buscar-me, se não for antes dos esponsais, será depois. Quando ele vier, partirei com ele.
Ele não olhou para ela, mas a sua voz bela e suave pairou no espaço entre ambos.
- O que vos leva a pensar que eu permitiria tal coisa?
- Não conseguireis impedir-me. Ele é um cavaleiro, hábil com
as armas...
- Há neste mundo armas mais eficazes do que o aço, Christiana
- disse, voltando-se para ela. - Tal como referi anteriormente, sois sempre livre para declarardes ao bispo a vossa recusa em consentir que este matrimónio se realize. Mas eu não recuarei agora.
- Um homem honrado não esperaria que eu tivesse de enfrentar a ira do rei - proferiu asperamente.
- Um homem honrado não destruiria a reputação de uma jovem a pedido dela. Se eu retirar o pedido, ofenderei o rei, a quem não tenho qualquer desejo de enfurecer. Pelo menos, necessitarei de uma boa razão. Poderei usar aquela que me destes? Poderei repudiar-vos por não serdes virgem? É a única forma.
Ela baixou os olhos. O pânico e a desolação do dia anterior regressaram para a subjugar.
Sentiu um movimento e, em seguida, David de Abyndon encontrava-se diante dela. Uma mão firme e amável ergueu-lhe o queixo até ela olhar para cima para o seu belo rosto. Parecia-lhe que aqueles olhos azuis conseguiam ler-lhe a alma e a mente, trespassarem-na. Nem mesmo as inspecções de Lady Idonia, minuciosas como as de um falcão, conseguiram ser tão completas e bem-sucedidas. Curiosamente, nem tão hipnotizantes.
A intensidade que emanava dele envolvia-a. Ela tornou-se muito consciente daqueles dedos ásperos no seu queixo. O polegar dele estendia-se pelo seu maxilar, acariciando-o, e sentiu uma espécie de formigueiro no pescoço.
- Se ele vos procurar antes do matrimónio, eu afastar-me-ei disse. - Não contestarei uma anulação do noivado. Mas devo dizer-vos, senhora, eu conheço os homens e não me parece que ele venha, embora sejais realmente digna do preço que ele teria de pagar.
- Vós não o conheceis.
- Não, não conheço. E não sou assim tão velho que não possa ser surpreendido. - Proferiu com um sorriso. Um sorriso autêntico, apercebeu-se ela. O primeiro da noite. Um sorriso admirável, na verdade. A mão dele afastou-se e Christiana sentiu a pele quente no ponto onde ele havia tocado.
- Tenho de ir - disse, pondo-se de pé. - A minha escolta impacientar-se-á.
Ele acompanhou-a até à porta.
- Irei ao vosso encontro daqui a alguns dias.
Sentiu um aperto no coração. Ele estava a obrigá-la a ir em frente com a farsa do noivado, e iria complicar muito as coisas. Não tinha qualquer desejo de desempenhar aquele papel por mais tempo do que o estritamente necessário.
- Por favor, não. Não há qualquer razão para tal.
- De acordo, Christiana. - Respondeu. Voltou-se e fitou-a enquanto abria a porta e a conduzia às escadas.
Ela avistou a forma indistinta de Thomas no pátio e correu para ele assim que saíram do vestíbulo. Voltou-se para olhar para a porta, onde David ficara a observá-la.
Thomas começou a guiá-la até ao portão.
- Fizestes o que pretendias?
- Sim - mentiu.
Thomas não tinha conhecimento do noivado. Ainda não fora anunciado, e ela tinha esperança de que nunca o fosse. A teimosia de mestre David significava que agora as coisas iam ser muito complicadas. Teria de encontrar outra forma de impedir o noivado ou, pelo menos, o matrimónio.
David observava-a enquanto ela atravessava o pátio, a sua nobreza evidente na postura e no modo gracioso de caminhar. Uma estranha serenidade começou a apoderar-se dele, e os movimentos dela abrandaram, como se o tempo se tivesse tornado lento. Sentiu que se avolumava dentro de si um misterioso silêncio, capaz de bloquear todos os sons. Começou a observá-la de uma forma abstracta, num mundo isolado ligado ao do pátio, mas separado dele por graus invisíveis.
Já havia sentido isto várias vezes na sua vida, e admirava-se por estar a ter essa experiência agora. Ainda assim, não fez nada para impedir a sensação e não questionou a importância do que estava a acontecer.
Reconheceu o silêncio que o envolvia como sendo o som inaudível da Fortuna a fazer girar a sua roda caprichosa e a alterar a sua vida de um modo que ele apenas entrevia vagamente. Ao contrário da maioria dos homens, não receava as coincidências imprevisíveis que revelavam a pertinácia da Fortuna, pois ele havia sido até então um dos seus filhos favoritos.
Christiana Fitzwaryn de Harclow. As grutas de Harclow. Havia um equilíbrio elegante nesta coincidência em particular.
O portão fechou-se atrás dela e o tempo retomou abruptamente o seu ritmo normal. David ponderou sobre as implicações da visita da jovem.
Compreendera o desejo do rei Eduardo de ocultar o pagamento para a licença de comercialização exclusiva que ele estava a comprar. Se aquilo se viesse a saber, os outros mercadores iriam sentir inveja. Ele próprio havia sugerido várias outras formas de dissimular o acordo, que envolviam o escalonamento dos pagamentos, mas o rei, desesperado por capital para financiar a sua guerra contra os Franceses, pretendia a totalidade do dinheiro agora. A solução de Eduardo de lhe oferecer uma esposa pertencente à nobreza, e disfarçar o pagamento como o preço da noiva, criara uma série de problemas, e claro, ainda havia a possibilidade, que não era de somenos importância, de a jovem não lhe agradar.
Na sua mente, ele viu o cabelo negro de Christiana, a sua pele alva e o belo rosto. Os seus olhos escuros faiscavam como diamantes negros. Não era especialmente franzina, mas a sua elegância criava a impressão de delicadeza, até mesmo de fragilidade. A primeira visão que teve dela diante do brilho do lume fizera-o perder o fôlego, tal como acontecia sempre que encontrava um objecto ou uma paisagem de uma beleza invulgar.
Ficara muito surpreendido quando o rei escolhera a filha de Hugh Fitzwaryn para ser a noiva neste esquema, e realçara que ela se encontrava muito acima dele. Até mesmo a soma abissal que todas as pessoas pensariam que ele estava a pagar pela noiva não ultrapassaria as diferenças entre as posições sociais de ambos.
O rei afastara essa preocupação. Explicaremos que a vistes, que a desejastes e que me pagastes uma fortuna por ela.
Bem, agora sabia a razão pela qual o rei escolhera Christiana. Um casamento rápido extinguiria qualquer escândalo em relação a ela e ao seu amante.
Era bom saber a verdade. Não lhe agradava ser um peão no jogo de outro homem. Geralmente era ele quem movia as peças.
Atravessou o pátio em direcção a Sieg.
- Está feito, então? - inquiriu o sueco quando se voltou para entrar no seu quarto.
- Não eram eles.
- com mil diabos!
- Vai dormir! - disse David com uma gargalhada. - Duvido que ainda venham esta noite.
- Espero bem que não. Da maneira como as coisas estão, há mais visitantes aqui à noite do que de dia. - Sieg fez uma pausa. E em relação ao guarda de Lady Alicia?
David lançou um olhar à extremidade do edifício, e ao brilho de uma vela através de uma janela.
- Ele sabe que terá de permanecer ali. Mais tarde levo-a até ele.
- Fez menção de se afastar mas deteve-se. - Sieg, amanhã necessito que me descubras o nome de um homem. É um cavaleiro e a família é do Norte. É uma família importante.
- Não há muito por onde me virar. Deve haver dúzias...
- Ele deixou Westminster recentemente. Julgo que ontem, possivelmente.
- Isso simplifica muito as coisas.
- O nome dele, Sieg, e tudo o que conseguires saber acerca dele.

CAPÍTULO 2
Christiana passou a noite em desespero, procurando descobrir uma salvação para si mesma. Pela manhã ainda não descobrira nenhuma solução, excepto escrever a Stephen, subornar um mensageiro real para levar a carta até ao Norte e rezar para que ele a recebesse rapidamente. Mas os esponsais realizar-se-iam dentro de uma semana, um intervalo demasiado curto para que Stephen tivesse tempo de receber a carta e vir ao seu encontro.
A única solução era falar com o rei. Não recusaria o matrimónio abertamente, mas dar-lhe-ia a conhecer que não era muito do seu agrado. Talvez, pelo menos, conseguisse convencê-lo a adiar os esponsais.
Cheia de determinação, abandonou os aposentos que partilhava com Isabele e Joan sob o olhar atento de Idonia, e percorreu os corredores do castelo até à sala onde o rei se encontrava com os peticionários. Quando lá chegou, a sua antessala já estava apinhada de pessoas. Deu o seu nome ao escrivão que se encontrava à porta e teve esperança de que o seu lugar na família lhe permitisse passar à frente de alguns dos outros.
Havia bancos alinhados contra a parede. Um cavaleiro mais velho cedeu-lhe o seu lugar e ela sentou-se. A multidão em pé emparedava-a enquanto se concentrava na formulação do seu pedido.
Enquanto aguardava e ponderava, a porta exterior abriu-se e entrou um pagem, seguido pelo seu irmão Morvan. Ela viu a sua cabeça negra desaparecer nos aposentos do rei. O rei iria informá-lo agora acerca do acordo de casamento. O que diria o seu orgulhoso irmão? Como reagiria?
Não tardou a ter a sua resposta. No espaço de poucos minutos, ouviu-se o vociferar comedido de uma voz exaltada por detrás da parede que separava os aposentos do rei da antessala. Sabia que tinha sido Eduardo a perder a calma, porque a pior fúria de Morvan manifestava-se sempre de uma forma calma e fria.
Tinha de sair dali imediatamente. com o rei enraivecido, não haveria qualquer benefício em falar com ele hoje, e não convinha que Morvan a visse ali sentada quando saísse dos aposentos do rei.
Estava a erguer-se para sair quando Morvan saiu apressadamente, com os seus olhos negros a faiscarem e a sua bela face contorcida numa máscara de fúria. Caminhou a passos largos pelo corredor como um homem a dirigir-se para o campo de batalha.
Ainda precisava de sair dali, mas não se atrevia a segui-lo. Ele podia ter-se detido nalgum dos corredores que desembocavam na antessala.
Lançou um olhar em volta. Havia uma outra porta numa parede lateral que ia dar a um corredor privado que ligava os aposentos e salões do rei. Conduzia a uma escadaria exterior, e havia rumores de que convidados secretos, diplomatas, e por vezes mulheres, utilizavam esta passagem. Mesmo sem nunca haver sido declarada formalmente como área proibida, todas as pessoas sabiam que quem fosse encontrado ali estaria metido num sarilho. Nem mesmo a rainha usava aquela passagem.
Abriu caminho através da multidão. Podia esgueirar-se por ali e ninguém viria sequer a saber que ela lá estivera.
Entreabrindo a pequena porta, esgueirou-se através dela. A passagem estendia-se ao longo da parede exterior do castelo, iluminada por grandes janelas dispostas em nichos de parede de pouca profundidade. Christiana precipitou-se para a extremidade oposta, a que tinha a escadaria.
O som de uma porta a abrir-se atrás de si fê-la ocultar-se rapidamente num dos nichos. Pressionando-se contra o canto, rezou para que quem quer que tivesse entrado na passagem seguisse na outra direcção. Suspirou de alívio quando ouviu passos a afastarem-se.
Pouco depois, para seu horror, escutou o som de outros passos que se aproximavam, vindos da direcção que ela tomara. Encolhendo-se o mais que podia contra o canto pouco profundo do nicho, cerrou os dentes e aguardou que a descobrissem.
Um homem baixo de meia-idade com cabelo branco e barba, usando as vestes sumptuosas de um diplomata, passou apressadamente por ela. Não deu pela sua presença pois toda a sua atenção estava fixada no espaço à sua frente. Dava a impressão de que tentava caminhar de uma forma mais suave do que seria normal.
- Pardon, attendez1 - escutou-o sussurrar em voz alta.
Os outros passos detiveram-se. Ouviu enquanto os homens se encontravam. Começaram a falar em voz baixa, mas as suas palavras chegaram-lhe aos ouvidos. Falavam ambos
um francês parisiense, do género do que lhe era ensinado pelos seus tutores, e não o dialecto corrompido e usado vulgarmente pelos cortesãos ingleses.
- Se vos encontrarem aqui tereis problemas - disse o outro homem. A sua voz parecia muito baixa, pouco mais do que um sussurro, mas as suas palavras chegaram igualmente
aos ouvidos de Christiana.
- É um risco necessário. Necessito de saber se aquilo que ouvi dizer é verdade.
- E o que foi que ouvistes dizer?
- Que nos podeis ajudar.
- Dirigistes-vos ao homem errado.
- Não me parece. Segui-vos até aqui. Foi-me dito que vós tendes o acesso.
- Se vós quereis o que eu penso, tendes o homem errado.
- Pelo menos escutai-me.
- Não.
Os homens começaram a afastar-se e as suas vozes foram diminuindo de intensidade.
- Acreditai que valerá a pena - disse o primeiro homem.
- Não há nada que vós tenhais que eu queira.
- Como sabeis, se não me escutais?
- Sois louco por me abordardes com esse assunto aqui. Eu não lido com loucos.

1 Perdoai-me, esperai. (N. da T.)

As vozes e os passos iam ficando cada vez mais ténues. Christiana ficou à escuta até o som desaparecer pela escadaria abaixo. Levantando um pouco a saia, correu
até ao seu quarto.
Estava sentada na sua cama, na antessala de Isabele, reflectindo se devia ou não abordar o rei no dia seguinte, quando Morvan entrou tempestuosamente no compartimento, ainda furioso devido ao seu encontro com o rei.
Caminhava a passos largos e arengava num tom empolado, com uma fúria perigosa. Poucas vezes o vira naquele estado e a sua primeira preocupação foi impedir que ele fizesse algo irreflectido. Sentiu-se culpada enquanto o acalmava e tranquilizava, pois sabia que era tudo culpa sua e ele, evidentemente, não o sabia. Morvan atribuía todas as culpas ao rei e ao mercador.
- Este mercador nem sequer teve a decência de falar comigo em primeiro lugar - proferiu com violência, os seus olhos negros a faiscarem à medida que caminhava a passos largos pelo compartimento. Morvan era um homem corpulento, mais alto do que a maioria, e preenchia todo o espaço. - Dirigiu-se directamente ao rei! A presunção destes malditos mercadores é sempre exasperante, mas isto é um ultraje!
- Talvez ele não saiba como as coisas se processam no nosso meio - disse ela. Precisava que o irmão estivesse calmo e racional. Se pensassem em conjunto, poderiam ter algumas ideias.
- É o mesmo em cada categoria social, minha irmã. Teria este homem ido ao encontro do seu presidente da Câmara para pedir em casamento a filha de algum peleiro?
- Bem, ele fê-lo desta forma e o rei concordou. Quanto a isso, não há nada a fazer.
- Sim, Eduardo concordou. - Deteve subitamente as suas passadas furiosas e fitou tristemente a lareira. - Isto é um mau sinal, Christiana. Significa que o rei realmente se esqueceu.
Christiana compadeceu-se dele. Avançou até junto do irmão e abraçou-o, esquecendo a sua própria decepção e os seus problemas. Estivera tão egoisticamente preocupada com o seu próprio orgulho que não havia percebido as implicações maiores deste casamento.
Memórias efémeras e vagas de outra vida surgiram na sua mente fatigada. Recordações de Harclow e da felicidade. Imagens de guerra e morte. O eco de uma fome atroz e de um medo inexorável durante o cerco. E finalmente, de uma forma clara e distinta, recordou a imagem de Morvan, com dez anos mas já bastante alto, transpondo corajosamente o portão do castelo para se render ao inimigo. Ele pensava seriamente que seria assassinado. Ao longo dos anos, Christiana acabou por acreditar que Deus tinha levado esse lorde escocês a poupar a vida do irmão para que ela não ficasse totalmente sozinha no mundo.
Quando fugiram de Harclow e se dirigiram ao jovem rei Eduardo para o informarem da morte de Hugh Fitzwaryn e da perda do património, Eduardo culpara-se a si mesmo por não ter proporcionado reforços com a rapidez necessária. O pai deles fora um dos seus amigos e apoiantes nas marchas escocesas e, diante de Morvan e da sua mãe moribunda, Eduardo jurara vingar o amigo e devolver as terras à família.
Haviam decorrido onze anos. Durante muito tempo depois disso, Morvan assumira que logo que o rei ganhasse as suas esporas de cavaleiro cumpriria aquele juramento. Mas já há dois anos que era cavaleiro, e tinha-se tornado evidente que Eduardo não planeava quaisquer campanhas agressivas nas fronteiras escocesas. O exército enviado anualmente para essas fronteiras pouco mais fazia do que retardar o avanço do inimigo. A atenção do rei estava agora toda concentrada em França.
E agora isto. Concordando em cedê-la a este mercador era uma admissão tácita da parte do rei de que jamais ajudaria Morvan a reclamar Harclow. A antiga nobreza da família Fitzwaryn não teria qualquer significado numa próxima geração.
Não era de admirar que os Percy não pretendessem que um dos seus membros masculinos mais jovens a desposasse. Mas o amor de Stephen seria mais forte do que essas preocupações frívolas da política e da propriedade. E logo que estivessem casados, ela tinha esperança que a família Percy auxiliasse Morvan, uma vez que ele teria parentesco com eles por afinidade através dela.
Essa possibilidade aumentara desde sempre o encanto de Stephen. A redenção da honra da família deles não repousaria inteiramente sobre os ombros de Morvan. Era dever dela desposar um homem que proporcionasse ao seu irmão uma boa aliança.
Morvan afastou-se dela.
- O rei informou-me que os esponsais seriam no sábado. Não compreendo esta pressa.
Dificilmente podia confiar ao seu austero irmão mais velho que a pressa visava garantir que o seu amante não interferisse. E talvez também para evitar a fúria de
Morvan. Se ele viesse a saber o que se passara com Stephen, não havia qualquer dúvida de que exigiria um duelo. Muito provavelmente o rei Eduardo pretendia evitar
os problemas com a família Percy que um tal desafio acarretaria.
As suas tentativas para o tranquilizar fracassaram. A tempestade desencadeou-se de novo na sua expressão. Saiu tão furiosamente
como entrara.
- Não vos apoquenteis, minha irmã, eu lidarei com este mercador.
David mantinha-se à porta do seu estabelecimento, observando os seus dois jovens aprendizes, Michael e Roger, enquanto estes carregavam as sedas e peles envoltas
em musselina até aos vagões de transporte. O vagão, uma caixa longa e alegremente decorada sobre rodas, possuía lugares sentados para as senhoras e janelas de lado.
A princesa Isabele encontrava-se sentada numa das aberturas.
A chegada de Lady Idonia, de Lady Joan e da princesa Isabele hoje havia-o divertido e inspirado respeito nos seus aprendizes. Aparentemente, as senhoras haviam lá
ido para escolherem um tecido para o cotebardiele1 para o manto que Isabele usaria no matrimónio de Christiana, mas a princesa não era o seu patrono. A novidade acerca dos esponsais acabara de se disseminar por Westminster, e ele sabia que na realidade as amigas de Christiana haviam vindo inspeccioná-lo.
Tinham ficado desiludidas, uma vez que ele só aparecera quando já estavam de saída. Os seus afazeres estendiam-se muito para além das paredes do seu estabelecimento, e deixava as tarefas diárias do mesmo a Andrew. Sorriu perante a recordação da minúscula Lady
1 Vestido muito popular entre os séculos XIV e XV, constituído por duas peças, ura vestido interior muito justo e uma sobretúnica ampla e volumosa de cintura alta, decote pronunciado e aberturas, especialmente nas mangas. (N. da T.)
Idonia lançando-se entre Isabele e Sieg ao vê-lo entrar no estabelecimento, como se procurasse salvar a rapariga de um rapto viking.
Os rapazes entregaram os seus pacotes a Lady Idonia e espreitaram uma última vez para o interior do vagão à medida que este se afastava, rodeado por cinco guardas a cavalo.
Tinham muito para onde olhar, pensou David, observando a multidão de espectadores que se formara na ruela quando o vagão parou. Uma princesa e a famosa Lady Joan, A Bela Donzela do Kent, prima do rei. Os membros da família real raramente visitavam os estabelecimentos dos comerciantes. Pelo contrário, era mais comum serem estes a levarem-lhes as mercadorias.
Christiana não viera, obviamente. David interrogou-se sobre o estratagema que ela terá usado para o evitar. Todavia, ele enviara-lhe um presente através de Idonia, uma capa vermelha orlada a pele negra que o alfaiate George, que trabalhava ao cimo das escadas, costurara sob as suas instruções. O manto que ela usara no dia em que fora a sua casa, quatro noites antes, aparentava ter já alguns anos e não era muito largo. Viver sob a custódia do rei não significava viver na opulência.
Provavelmente iria sentir-se culpada por aceitar o presente dele. Nos breves momentos que passaram na sala de estar da casa dele, aprendera muito acerca do carácter dela, tendo ficado bem impressionado. A beleza dela impressionara-o ainda mais. A recordação daqueles olhos brilhantes e daquela tez pálida não havia andado muito distante da sua mente desde a visita dela.
Christiana esperava pelo seu amante. Até quando aguardaria?
Ao contrário de muitos homens, ele estimava as mulheres e compreendia-as. Não havia dúvida de que compreendia a angústia de Christiana. Afinal, vivera dezoito anos perto de uma angústia semelhante. Estaria ele condenado a passar o resto da sua vida na sua sombra novamente? Seria esse o preço a pagar desta vez pelos benefícios da sorte? A rapariga parecia mais forte e orgulhosa do que isso.
Perdera brevemente a consciência de que se encontrava na rua, mas os seus movimentos e cores reclamaram a sua atenção. Afastou-se da ombreira da porta. No momento em que se voltava para entrar no edifício reparou num homem que subia a ruela vindo de Cheap, usando um libré que ele reconheceu. Ficou à espera que o homem o alcançasse.
- David de Abyndon?
- Sim.
Foi-lhe entregue um pedaço de pergaminho dobrado. David leu a mensagem. Estava à espera daquela carta. Na verdade, há mais de dez anos que aguardava o encontro para o qual ela o convocava. O melhor era acabar logo com aquilo. Os esponsais e o matrimónio tinham, provavelmente, uma forma de complicar assim as coisas.
- Dizei-lhe que não posso vê-la esta semana - disse, voltando-se para o mensageiro. - Na próxima terça-feira à tarde, ela que venha a minha casa.
Entrou no estabelecimento. Michael e Roger estavam a fechar as persianas da frente, e Andrew entrou com um tecido, vindo das traseiras.
- Coloquei o registo de contas de Lady Idonia e Lady Joan no gabinete de contabilidade. - Informou Andrew, pousando o fardo que transportava.
David deu-lhe uma palmadinha no ombro.
- com que então, uma tarde inteirinha com a Bela Joan. Os teus amigos irão pagar-te cerveja durante um mês só para escutarem a tua história.
- Estava a pensar exactamente o mesmo - respondeu Andrew com um sorriso malicioso. Ela é muito bela. Assim como Lady Christiana Fitzwaryn. Vi-as juntas na cidade. Podíeis ter-nos falado destes esponsais. Foi muito estranho vir a sabê-lo por elas.
Os rapazes detiveram-se e ficaram à escuta. Sieg mantinha-se junto à porta.
- Foi decidido há pouco tempo. Aguardaram todos em silêncio.
- Fechemos o estabelecimento e vamos para casa. Lá explicarei tudo.
Mas explicar o quê? Não a verdade. Ninguém podia tomar conhecimento da verdade, nem mesmo Christiana. Teria de engendrar uma boa história, e depressa.
Quando se encontravam quase prontos para sair, chegou-lhes através das persianas o som de um cavalo detendo-se na viela. Michael apressou-se até à porta e espreitou.
- Um cavaleiro do rei - disse. - O mesmo que veio à vossa procura hoje de manhã, David.
David sabia quem era.
- Ide para casa todos. Tu também, Sieg. Eu trato disto.
A porta abriu-se e por ela entrou um jovem alto e de cabelo escuro. Deteve-se na soleira da porta e olhou em seu redor. Usava a libré do rei e uma longa espada pendia do seu cinto de cavaleiro. Uns olhos negros e brilhantes, tão semelhantes a uns outros que ele conhecia, mas endurecidos por uma luz mais glacial, pousaram sobre David.
Os aprendizes saíram em fila, contornando o jovem alto, claramente impressionados pela sua estatura e pelo seu porte.
- Sou Morvan, o irmão de Christiana. - Explicou o cavaleiro quando finalmente ficaram a sós.
- Eu sei quem sois.
- Sabeis? Julguei que talvez pensásseis, erradamente, que ela não tinha família.
Davia aguardou. Permitiria que este irmão colocasse as suas objecções. Não assumiria que sabia quais seriam, pois havia muita coisa a objectar.
- Pensei que deveríamos encontrar-nos - disse Sir Morvan, avançando pela passagem. - Queria ver o homem que compra uma esposa como se ela fosse um cavalo.
David recordou-se das duas horas que despendera durante a manhã com um dos escrivães do rei, redigindo o contrato de matrimónio. Tinha sido impossível excluir completamente os termos do suposto preço da noiva, porque somente Eduardo e ele sabiam o seu verdadeiro objectivo. Ainda assim, David tentara, e finalmente negociara apenas uma alusão ao seu montante, envolvendo uma fórmula complicada baseada no preço das exportações de lã do ano transacto. Somente alguém muito interessado se daria ao trabalho de fazer os cálculos.
Alguém devia ter mostrado o contrato a Morvan para que este o aprovasse, e provavelmente ele já teria visto esta cláusula em especial.
- O rei insistiu no preço da noiva, tal como nos tempos antigos. Por mim, não teria pago nada.
- Se ela não fosse minha irmã - proferiu Morvan, avaliando David -, poderia considerar isto muito engraçado. Estais a dar-vos a muito trabalho para desposardes uma mulher que não conheceis.
- Está sempre a acontecer.
- Sim, quando o dote é satisfatório.
- Não tenho necessidade de um dote.
- Foi o que me disseram. Assim como nem sequer estais muito necessitado de uma mulher para vos aquecer a cama, de acordo com o que me constou. Então, por que razão pagais uma fortuna pela minha irmã?
David tinha de admitir que aquela era uma boa questão. Apercebeu-se de que não deveria subestimar este jovem. Morvan andara a recolher informações acerca da sua pessoa, assim como David andara a recolher informações acerca de Morvan. Talvez a explicação proposta pelo rei funcionasse. Explicaremos que vós a vistes, a desejastes e me pagastes uma fortuna pela sua posse. Todavia, suspeitava que a explicação de um homem que sentia desejo carnal pela sua irmã não seria muito atractiva para este jovem cavaleiro.
- Tive oportunidade de a ver por diversas vezes e informei-me acerca dela. O rei mostrou-se receptivo às minhas questões.
- Quereis dizer que quisestes desposá-la somente por a terdes visto ?
- Costumo ter desses caprichos, por vezes. Quase sempre funcionam. Quanto ao resto, a ausência de dote e o pagamento, as coisas desenvolveram-se muito à semelhança do que acontece em tais negociações. - Soava quase plausível. Era bom que assim fosse. Não tinha mais nada para oferecer.
Morvan ponderou cuidadosamente aquela explicação.
- Isso faria sentido se fôsseis louco, mas não me parece que o sejais. Na minha opinião, vós sois um arrivista que procura adquirir estatuto entre os seus semelhantes através deste enlace, alguém que vê os seus filhos serem educados acima da sua posição social através da nobreza da mãe.
Outra explicação plausível. Mas se Morvan tivesse falado com as pessoas certas, saberia o quanto estava enganado.
- Vós sois o irmão de Christiana, e por esse motivo desconheceis o quanto a vossa irmã pode tornar louco um homem que, caso contrário, não o seria - retorquiu David.
- Não permitirei este enlace. Não verei Christiana ligada a um mercador comum, por muito abastado que seja. Ela não é nenhuma égua reprodutora para ser adquirida com a finalidade de enobrecer a linhagem de um bastardo. Também não é esse o desejo dela.
David procurou ignorar os insultos, notando apenas que Morvan andara a recolher bastantes informações a seu respeito.
- Eu e ela já conversámos acerca disso. Ela sabe que não vou retirar a minha oferta. Não tenho razões para o fazer.
- Permiti então que vos forneça uma razão. Ide ao encontro do rei e dizei-lhe que a senhora tem um irmão que vos ameaçou de morte caso não retireis a vossa proposta. Explicai que não estáveis à espera disso quando fizestes a proposta.
- E em relação à cólera do rei para convosco se eu lhe disser isso?
- Se necessário for, a minha espada servirá outro homem.
- E se eu me recusar?
- A ameaça não será apenas vã.
David examinou atentamente a sua expressão resoluta. Um homem inteligente, e provavelmente honesto.
- Sabeis a razão pela qual a vossa irmã não dá o seu consentimento para este enlace?
- É óbvia, não vos parece?
Então Morvan não sabia de Sir Stephen. Ela afirmara que ele não o sabia, mas o irmão podia tê-lo descoberto por si mesmo e estar a forçar as coisas com Percy.
- Será que é?
- Ela é filha de um barão. Este matrimónio é um insulto para ela. David reprimiu uma irritação súbita e profunda. Há já muito
tempo que se tornara quase imune a tais comentários, e às pretensões de superioridade que eles revelavam. Mas já ouvira mais deste homem nos últimos minutos do que normalmente suportaria de qualquer outra pessoa. Encostou-se à parede e cruzou os braços, enfrentando o olhar exaltado de Morvan.
- Ireis retirar a vossa proposta?
- Não me parece.
- Tendes uma adaga. Sabeis usar uma espada? - inquiriu Morvan, olhando-o de alto a baixo.
- Não muito bem.
- Então tivésseis tido uma prática melhor.
- Estais a planear matar-me por causa disto?
- Não posso impedir estes esponsais, mas impedirei a cerimónia de casamento. Daqui a um mês, se não tiverdes saído de Londres ou anulado o matrimónio, encontrar-nos-emos.
A cólera subiu à cabeça de David. Já quase nunca perdia o controlo, mas estava em perigo de o perder agora.
- Dizei quando e onde e eu estarei lá.
Sabia que a fúria glacial de Morvan igualava a sua. Mas também via surpresa pelo facto de a ameaça ter sido recebida com ira e não temor.
- Veremos se aparecereis. - Proferiu Morvan com um sorriso brando. - Penso que o tempo revelará que sois como a maioria da vossa estirpe. Rico em ouro mas pobre em honra.
- E vós sois como demasiados cavaleiros dos tempos que correm. Ricos em arrogância pomposa mas sem terras ou valor. - Respondeu David rispidamente. Era indigno da sua parte pronunciar tais palavras, mas atingira o seu limite.
Os olhos de Morvan faiscaram perigosamente. Girou nos calcanhares e caminhou os vinte passos que o separavam da porta.
- A minha irmã não é para vós, mercador. Tendes um mês para desfazer isto.
Ouviu-se um estalido. Assim que Morvan desapareceu na rua, David endireitou-se com um movimento fluido e tenso. Levou a mão à anca e uma longa adaga de aço voou, cravando-se directamente na ombreira da porta, atrás do local onde estivera há pouco o pescoço de Morvan Fitzwaryn.
Uma cabeça loira moveu-se na penumbra, atrás da porta aberta, e Sieg inclinou-se no limiar. Olhou para David e depois voltou-se e arrancou do seu alvo a adaga ainda oscilante.
- Parece-me que ainda é muito cedo para vos felicitar por este matrimónio - comentou enquanto entrava.
David pegou na adaga e embainhou-a. O pior da sua ira voara com o punhal.
- Ouviste a conversa. -Já.
- Eu disse-vos para partirem.
- A espada e o rosto dele disseram-me para ficar. Pensei ter oportunidade de saldar a minha dívida hoje.
David ignorou-o e começou a afastar-se.
- Quereis que tratemos dele? A rapariga não precisa de saber. Há imensos rios por aqui. Qualquer um pode cair.
- Não.
- A espada não é o vosso forte.
- Não chegaremos a esse ponto.
- Estais certo disso? Ele parecia determinado.
- Estou certo.
Subiram a ruela em direcção à casa. Sieg não parava de olhar para trás.
- É uma altura estranha para vos casardes.
- Sim.
E era. Nos meses que se avizinhavam um bom número de campos cuidadosamente cultivados aguardavam a colheita.
- Pode dificultar as coisas - prosseguiu Sieg.
- Já pensei nisso.
- Poderíeis adiar a boda até ao próximo Inverno. Talvez para Novembro. E nessa altura já tudo estaria terminado.
David abanou a cabeça. Apercebeu-se de que não estava inclinado a dar ao amante dela um ano inteiro para regressar. Também já sabia que não tinha qualquer intenção de esperar tanto tempo para levar a bela Christiana Fitzwaryn para o seu leito.
- Não. Será mais seguro tê-la em casa.
- E se houver problemas...
- Nessa altura, a rapariga será duplamente abençoada. Livra-se de um marido que não deseja e converte-se numa viúva rica.
Uma neblina fina e glacial cobria a Strand, à medida que o pequeno grupo a percorria. John Constantyn sentava-se erecto e altivo no seu alazão, as suas vestes orladas de pele e cheias de jóias mal cobertas pelo manto azul claro lançado sobre os seus ombros. Deitou um olhar ao gibão azul, austero e sem adornos de David.
- Graças a Deus que usáveis, pelo menos, essa corrente - disse John com um sorriso de orelha a orelha. - Caso contrário, podiam ter-vos tomado por algum escudeiro. Dadas as circunstâncias, podíeis ter-vos aperaltado um pouco mais, só desta vez. Passais uma estranha mensagem com as vossas roupas, David.
David gostaria de refutar que não pretendia transmitir mensagem alguma com as suas roupas, que a sua simplicidade reflectia apenas o seu gosto pessoal, mas sabia que isso não era inteiramente verdade. Na sua recusa em competir no jogo do luxo da nobreza encontrava-se, supunha ele, uma tácita rejeição ao pretenso valor superior dos nobres.
Sentia a pesada corrente no seu peito, de um ombro ao outro. Até mesmo esta corrente usara com uma certa relutância, e decidira-se a colocá-la apenas por Christiana. As amigas dela conheceriam o seu valor. Não tornaria este dia mais difícil para ela do que já era.
- Devíeis ter visto o rosto do vosso tio Gilbert quando lhe disse o que vinha fazer hoje - disse John. - Por Deus, foi divertido. Ali mesmo no exterior da Câmara Municipal, perguntei-lhe se iria assistir, sabendo bem que ele o desconhecia. Também o forcei a arrancar-me todas as informações, uma a uma. Pelo menos vinte dos guardas devem ter escutado. - a gargalhada sincera de John ecoou pela Strand. - "Sim, Gilbert", disse-lhe, "não sabíeis? A filha do famoso Hugh Fitzwaryn. Nada mais, nada menos do que pela vontade do rei. Na capela real e com a família real a assistir". Antes de eu poder terminar, o rosto dele estava da cor das cinzas.
David sorriu perante a ideia da expressão de Gilbert ao tomar conhecimento de que ele desposaria a filha de um barão. Era a primeira vez que estes esponsais lhe proporcionavam algum deleite.
Não tinha contacto com nenhum dos Abyndon desde a sua adolescência, altura em que compreendera totalmente o que haviam feito à sua mãe. Também se recusava a negociar com eles, e nunca lhes vendia nenhumas das mercadorias que importava. Era uma vingança infantil, mas a única que lhe era permitida por agora. Mais cedo ou mais tarde, teria a hipótese de semear esse campo em especial de uma forma mais apropriada.
John sorriu com uma expressão mais séria.
- Quem dera que o meu irmão pudesse ver isto.
Sim, pensou David. Mas ainda bem que não pode. Recordou durante um momento o seu velho mestre e sócio, o homem que provavelmente o resgatara de uma vida nas ruas. Um bom homem, David Constantyn, cuja confiança no seu jovem aprendiz os tinha tornado a ambos ricos e permitira a David tornar-se no homem que era presentemente. Amara o seu mestre mais do que um filho ama o seu pai.
Tinha sido por respeito e devoção para com ele que ficara a aguardar. Aguardara pela morte do seu mestre antes de plantar aqueles campos que agora estavam à espera de ser colhidos. É melhor que ele cá não esteja, pois há muita coisa que esse homem honesto não apreciaria, pensou David. Mas por outro lado, ele era sagaz, e não ficaria assim tão surpreendido. Provavelmente sabia o que podia esperar de mim.
Cavalgaram pela cidade de Westminster até ao castelo e aos edifícios que albergavam a corte e a regência. David liderou o caminho até à capela real.
O povo agitava-se impacientemente no exterior. A aproximação da carruagem do rei não causou muito alvoroço, nem sequer muita atenção. Eduardo e Filipa traziam os seus filhos e os seus criados mais próximos para a missa do dia. David não teve dificuldade em localizar Christiana no grupo, porque ela usava a capa escarlate. O seu olhar não o procurou enquanto permanecia em silêncio entre Joan e Idonia.
Um pagem reservara lugar para David atrás da família real. Na outra extremidade desta fila vislumbrava-se a forma rígida de Morvan Fitzwaryn. Diante de si, Christiana centrava a sua atenção no sacerdote no altar, não voltando uma única vez a cabeça.
A missa foi breve e, no final, o sacerdote desceu do altar e chamou Christiana e David para que avançassem. Christiana, com a capa ainda posta para se proteger do ar gélido da capela, foi ao encontro de seu irmão e ambos uniram-se a David diante do sacerdote. Ele fitou-a e viu uma expressão vazia no seu olhar enquanto mantinha os olhos fixos num ponto algures na distância. Tinha uma aparência nobre e emocionalmente vazia.
Morvan pegou na mão dela e pousou-a sobre a de David. Pareceu-lhe incrivelmente pequena e macia. Um ligeiro tremor sacudiu o braço dela e depois escutaram a oração do sacerdote antes de se comprometerem um com o outro. Ela recitou as palavras como se fosse uma lição escolar, o seu tom inexpressivo sugerindo que não possuíam qualquer significado, se é que chegara até a escutá-las.
Christiana voltou-se para o beijo dos esponsais. Ergueu obedientemente o rosto mas manteve o olhar baixo. David sentiu uma estranha combinação de compaixão e irritação.
Perante a lei da igreja e do reino, ela agora pertencia-lhe, mas conseguira, com todo o cuidado, não o ver ou dar pela presença dele desde que chegara. Havia sido subtil, e ele sabia que Christiana o fizera para o seu próprio bem e para controlar a sua dor. Não tentara deliberadamente insultá-lo. Ele simplesmente não tinha qualquer importância para ela. Duvidava que alguém para além de Morvan tivesse reparado nisso.
Suspeitava que Christiana procurava transformar estes esponsais num sonho, de modo a que pudesse despertar quando o seu amante viesse buscá-la e descobrir que aquilo realmente nunca acontecera. O facto de ele compreender a rapariga não significava, todavia, que estivesse disposto a satisfazer as suas ilusões com o beijo obediente que ela agora oferecia e esperava.
Não se preocupava se o rei e a rainha estivessem perto e que o irmão furioso estivesse a observar. Isto era apenas entre ele e ela.
Aproximou-se e encostou a mão à face dela. Aquele toque suscitou um ligeiro tremor.
O capuz ainda se mantinha sobre a cabeça dela, ocultando os seus cabelos. Ele sabia que ela o usava solto, um símbolo de virgindade, como era tradição na cerimónia. com a outra mão afastou o capuz. Os espessos canudos negros caíam-lhe pelas costas, e as suas mãos seguiram-nos até a envolver num abraço.
- Olhai para mim, Christiana - ordenou tranquilamente.
As pestanas negras agitaram-se e as pálpebras delicadas ergueram-se lentamente. Dois diamantes tremeluziram com uma vivacidade alarmada e temor.
Ele inclinou a cabeça e saboreou a doçura suave dos seus lábios trémulos.

CAPÍTULO 3
Christiana analisava o tabuleiro de xadrez pousado na arca entre ela e Joan. Moveu um peão. Joan apressou-se a retirar-lhe um dos seus cavaleiros.
- Hoje estais a jogar muito mal - disse-lhe.
Estavam sentadas junto a uma janela no quarto de dormir de Isabele. A princesa encontrava-se ausente, de visita a uma amiga noutra parte de Westminster, e Lady Idonia acompanhara-a.
Christiana tentou concentrar-se no jogo e não no seu noivado, ocorrido três dias antes. Muito especialmente, procurava não pensar em David de Abyndon, mas o seu olhar intenso e toque suave intrometiam-se continuamente na sua memória de uma forma angustiante. Ele conduzira a cerimónia e o jantar de um modo muito cortês, quase afável. com uma assombrosa excepção.
- Não chegastes a dizer-me como era ficar noiva - disse Joan.
- Não me recordo bem. Estava muito perturbada - respondeu Christiana, encolhendo os ombros.
Joan afastou os seus caracóis loiros. Os seus olhos brilhavam.
- Como foi o beijo? Pareceu-me maravilhoso. Christiana fixou o olhar nas peças de xadrez espalhadas pelo
tabuleiro. Esforçara-se, acima de tudo, por não pensar naquele beijo. O que haveria de responder a Joan? O que poderia dizer? Como poderia explicar-lhe que apenas a parte mais necessária de si mesma prestara atenção tanto à missa como à cerimónia de noivado? Que entorpecera deliberadamente os seus sentidos de modo a suportar aquela manhã sem entrar em pânico. Que preenchera o seu coração com a imagem de Stephen, com o conhecimento e a esperança no seu amor, e que toda aquela cena na igreja não passara de um sonho inquietante que em breve se dissiparia.
Até ao momento em que aquela mão sobre o seu rosto, num gesto de intimidade, forçou o seu despertar com a firmeza de um abanão a meio da noite. Uma voz a ordenar-lhe que encarasse a realidade de frente. Um abraço e um beijo de posse magistral.
Como tinha sido aquele beijo? Desconcertante. Assustador. Mais longo do que o necessário. Suficientemente longo para deixar bem claro que um deles tencionava levar a sério este noivado. Veio-lhe à memória a sensação de uma onda de calor percorrendo-lhe o corpo. Moveu-se, inquieta, e concentrou toda a sua atenção no jogo de xadrez.
Sim, a verdade é que não pretendia pensar nem um pouco ou falar sequer desse beijo.
- Foi satisfatório.
Pelo menos essa parte da farsa estava terminada. Agora só tinha de esperar que Stephen viesse.
- Já havíeis sido beijada antes? - questionou Joan. Christiana desejou poder confiar na amiga, mas Joan tinha fama
de intriguista. Ocorreu-lhe, obviamente, que se Joan fosse fazer intrigas e Morvan viesse a saber de Stephen, talvez nessa altura o seu irmão pudesse encorajar os Percys a mudarem de opinião. Mas sentiu-se logo culpada por lhe ter ocorrido tal ideia. Afinal, ela não queria que a proposta de Stephen tivesse de vir através das armas. De qualquer forma, isso também não seria necessário.
A recordação da boca de Stephen a esmagar-se contra a sua pairou na sua mente. O beijo de David não tinha sido nada assim, mas nessa altura encontravam-se numa igreja, diante do rei e de um sacerdote. Ainda assim... não, não pretendia pensar nesse beijo.
- Já fui beijada antes. Francamente, não gostei. Penso que sou uma dessas mulheres que não gostam de ser beijadas.
A expressão de Joan revelava um pouco de piedade.
- Ele é muito atraente - disse, após uma pausa. - Se tendes de desposar um comerciante, pelo menos que seja abastado e belo.
Christiana sabia que Joan transmitia a opinião de toda a corte. Pobre Christiana. Uma doce rapariga. Foi uma pena o rei tê-la concedido a um simples mercador, mas pelo menos é abastado e belo. Isso fê-la recordar-se das palavras de compaixão e conforto que se dirigem a um cavaleiro estropiado.
É uma pena não poderdes voltar a caminhar, mas pelo menos não estais morto.
- Lady Elizabeth faz compras na loja dele, sabíeis? - acrescentou Joan muito despreocupadamente. - Assim como Lady Agnes e algumas outras.
Joan conseguia sempre descobrir esse tipo de informações. Na semana anterior, devia ter conseguido descobrir tudo o que havia para saber em Westeminster acerca de David de Abyndon. Ia-lhe transmitindo estes pedacinhos de informação, aqui e ali, consoante a sua vontade.
- Preferem ir a esta loja, que é maravilhosa. Devíeis ter vindo connosco, Christiana. Ele importa sedas de Itália e de países tão distantes como a índia. Também tem alfaiates. As mulheres que lá fazem compras tratam-no como um segredo e não compram em mais nenhum lado. Lady Elizabeth diz que todo o seu estilo branco e prateado foi ideia dele. Admira-me que nunca o tenhais visto antes de isto acontecer, se Elizabeth é uma das suas benfeitoras.
Lady Elizabeth, uma viúva, havia sido, um ano antes, uma amiga especial de Morvan durante alguns meses. Era pelo menos dez anos mais velha do que ele, mas extremamente bela. As suas características mais notáveis eram o seu cabelo prematuramente branco e a sua tez pálida e translúcida. Os rumores da corte prediziam um casamento, mas depois Elizabeth aceitara a oferta de um lorde idoso e subitamente a sua amizade com Morvan tinha arrefecido.
Há já dois anos que Elizabeth assumia um estilo muito pessoal que realçava a sua beleza invulgar. Usava apenas trajes de cor branca e argêntea. Até mesmo as suas jóias eram engastadas em prata.
- Isabele está convencida de que ele vai obrigar-vos a trabalhar para ele - comentou Joan, soltando umas risadinhas abafadas. Idonia explicou que os mercadores abastados não fazem isso, mas Isabele vê mulheres a trabalhar na loja e pensa que tenhais de fazer
o mesmo.
Santo Deus, Morvan matá-la-ia para proteger a honra da família antes de aceitar uma coisa dessas.
- Sois vós a jogar, Joan - disse-lhe, decidindo que tinha chegado o momento de mudar de assunto.
Pouco depois, um pagem entrou nos aposentos.
- Senhora, o vosso esposo encontra-se no átrio e ordena que o recebeis - disse, dirigindo-se a ela.
Christiana fitou o rapaz como se ele tivesse acabado de pronunciar um discurso sem nexo.
- Foi nesses termos que ele falou?
- Sim, senhora.
- Não me agrada muito esta mensagem - disse a Joan.
- A mim parece-me bastante normal.
- Ele ainda não é meu esposo.
- Oh, Christiana, sabeis que os noivos são frequentemente denominados como marido e mulher. Sábado foi a primeira parte da cerimónia e o matrimónio será a conclusão. Está meio feito.
Não para mim, quis gritar. E este homem sabe-o.
Também não gostava, nem um pouco, de ser "ordenada" a fazer fosse o que fosse por David de Abyndon. Quando Morvan pousara a mão dela sobre a de David, fora uma entrega de autoridade e responsabilidade simbólicas, mas, dadas as circunstâncias deste noivado em particular, também isso não detinha qualquer significado.
- Dizei ao meu noivo que lamento não poder recebê-lo esta manhã. Estou-lhe muito grata pela visita, mas não me encontro bem. Dizei-lhe que tenho uma dor de cabeça e tonturas.
- Espero que saibais o que estais a fazer - exclamou Joan. Mais importante era que David soubesse o que ela estava a fazer.
Ela dissera-lhe que não se veriam, e se ele pensara erradamente que seria apenas antes dos esponsais, então isto clarificá-lo-ia. Não fazia tenções de explicar a Stephen, quando este regressasse, que estivera a desempenhar esta farsa por mais tempo do que o necessário.
Um pouco mais tarde, a porta abriu-se e o pagem reapareceu, com o rosto afogueado e ofegante da corrida.
- Senhora, o vosso espo... aquele homem está a dirigir-se para cá.
- Para aqui!?
- Sim. Encaminhei-o para outro pagem e enviei-os pelo caminho mais longo, mas estará aqui em breve.
Ela olhou desesperadamente para Joan quando o pagem saiu.
- Pensei que sabíeis o que estáveis a fazer - gracejou Joan, soltando uma gargalhada.
Christiana pôs-se de pé num salto. - Ajudai-me. Rápido.
Correu até à antessala do quarto de dormir e retirou a colcha da cama.
- Tapai-me e fechai as cortinas. Tentai que não se veja o meu vestido.
- Isto não vai funcionar - disse Joan soltando uma gargalhadinha enquanto arranjava a colcha junto ao pescoço de Christiana e a aconchegava à volta dela.
- Dizei-lhe que estou a descansar e mandai-o embora. Joan exibiu um sorriso largo e fechou as cortinas. Christiana permaneceu absolutamente imóvel na obscuridade
da cama. Conseguia ouvir Joan a caminhar de um lado para o outro, entoando uma melodia. Sentiu-se um tanto ridícula ao fazer isto, mas algo dentro de si que lhe dizia que não devia voltar a ver aquele homem.
Embora as cortinas abafassem o som, conseguiu escutar o som das botas de David quando ele entrou no quarto.
- Mestre David! - exclamou Joan alegremente.
- Lady Joan. Vós, pelo menos, aparentais estar bem de saúde. Christiana suspirou. A voz bela e tranquila deste homem possuía
o talento especial de atribuir um grande significado a palavras simples sem sequer alterar a sua inflexão. Tornou-se bem claro que ele sabia que ela mentira acerca da sua doença, mas, por outro lado, ela quisera que ele percebesse isso. Só não tinha contado que ele viesse confrontá-la e forçá-la, desse modo, a fingir que não tinha mentido.
- Estou realmente bastante bem, David. E vós?
- Estou razoavelmente bem senhora, embora ultimamente dê por mim com menos serenidade do que o normal.
- Sem dúvida foi algo que comestes.
- Sem dúvida.
Christiana escutou o som de botas a avançarem pelo chão.
- Foi-me dito que Christiana está adoentada.
- Sim. Está a repousar, David, e realmente não pode ser perturbada.
- Qual é a doença dela?
- Foi realmente bastante assustador. Quando despertou esta manhã foi acometida de umas vertigens. Quase caiu ao chão. Voltámos a deitá-la, evidentemente, e isso pareceu ajudar. Poderá ficar de cama durante dias, até mesmo semanas.
Não exagereis, incitou Christiana em silêncio.
- Parece muito misterioso - disse David. - Uma enfermidade desse género não deve ser encarada assim com leveza. Talvez deva pagar aos monges da abadia para rezarem umas missas por ela.
- Estamos muito preocupadas, mas tenho esperança que melhore em breve. Avisá-lo-emos assim que ela melhorar.
- Aquela é a cama dela? Quero vê-la antes de partir.
- Não me parece que isso seja sensato, David - interveio Joan apressadamente -, a luz parece deixá-la pior.
Uma observação inteligente, pensou Christiana com aprovação. Mas não o suficiente.
- Serei breve.
Mesmo com os olhos fechados, Christiana viu a luz recair sobre si quando as cortinas foram afastadas.
Arquejou quando ele a segurou firmemente pela cintura, a soergueu na cama e a deixou tombar de costas.
Ela pestanejou, como se a luz lhe ferisse os olhos, e gemeu. Ansiava ter um aspecto adequadamente pálido e enfermiço.
David deu-lhe uma pancadinha suave na anca, para que se afastasse. Reprimindo a sua indignação, ela chegou-se um pouco para o lado e ele sentou-se na beira da cama.
- Bem, Christiana, estou muito preocupado. Uma dor de cabeça e vertigens. Pareceis realmente estar acometida de uma doença grave.
A dureza em torno da sua boca parecia um pouco mais pronunciada. Algo na sua expressão sugeria que ele era capaz de ser o exacto oposto do mercador gentil que ela esperara.
- Não tendes febre - depois de encostar as costas dos dedos às faces dela. - De qualquer forma, penso que deveis ser imediatamente vista por um médico.
- Estou certa de que não será necessário - disse, num tom de voz que pretendeu fazer parecer mais débil, mas não em excesso.
- Estou a sentir-me melhor, e estou certa de que isto é passageiro.
David ignorou-a.
- vou ter de fazer algumas perguntas e ver quais dos médicos da corte são realmente bons. Alguns deles querem sangrar logo o paciente, e isso é tão doloroso. Gostaríamos de o evitar, se possível, não vos parece? - Ela havia sido sangrada uma vez aos onze anos. Pensou que evitá-lo seria uma excelente ideia. - Por outro lado, dores de cabeça e vertigens são provavelmente causados pelos humores que o requerem.
- Parece-me realmente que já me sinto muito melhor. A luz já nem me incomoda.
- A ideia de se ser sangrado faz sempre com que as pessoas melhorem mais depressa, mas não dura muito. Contudo, se vos parece que estais a recuperar um pouco por agora, eu preferiria vestir-vos e levar-vos até um médico sarraceno que conheço em Southwark. É um especialista em doenças femininas, e é ele quem trata as prostitutas na zona dos bordéis. É um médico muito competente.
- Um sarraceno! Um médico de prostitutas! - bradou, esquecendo-se de falar com voz débil.
- Sim, formado em Alexandria. Os médicos sarracenos são muito melhores do que os médicos cristãos. Em comparação com eles, somos bárbaros.
- Garanto-vos que não será necessário ir até Southwark, David. A sério, estou a sentir-me muito melhor. Totalmente recuperada, na verdade. Estou confiante de que estou completamente curada.
- Estais? - questionou, sorrindo suavemente. - Isso é uma boa notícia. Contudo, deveis avisar-me se estes sintomas regressarem. Tratarei imediatamente de vos arranjar um médico. Agora sou responsável por vós, e não deixarei que a vossa saúde seja negligenciada.
Ela lançou-lhe um olhar furioso. Este "esposo" que "ordenara" que ela o recebesse estava a recordá-la dos seus direitos e a avisá-la de que não a deixaria voltar a jogar aquele jogo. Christiana conseguia pensar em formas mais simpáticas de esclarecer a questão sem que ele tivesse de ameaçar abrir o braço dela.
David pôs-se de pé. Aparentemente, a sua repreensão dissimulada havia terminado, e Christiana sentia-se confiante de que ele partiria. Lançou um olhar triunfante a Joan.
- Está um dia bonito - disse David, olhando para ela. - Talvez um pouco de ar para arejar a mente seja suficiente.
- Não estou bem certa de...
O olhar dele recaiu sobre o armário de parede mais próximo.
- As vossas roupas estão aqui? Vamos vestir-vos e depois eu levo-vos a sair durante um bocado.
Ela semicerrou os olhos perante a visão do belo rosto de David. Uma farsa após outra. Não podia afirmar-se demasiado tonta para sair e ao mesmo tempo demasiado bem para não precisar de consultar um médico. Ele voltara aquele estratagema contra ela de uma forma elegante e inteligente.
- Já estou vestida - anunciou, atirando a colcha para trás e sentando-se, admitindo a derrota.
- Pois é - concordou ele tranquilamente, aproximando-se dela com um sorriso vago no rosto e o manto dela na mão. - Que desilusão, eu estava ansioso por essa parte.
Aquele sorriso fê-la sentir-se muito desconfortável. Admitiria a derrota, mas não a rendição.
- Infelizmente - informou ela com pesar -, não posso ir convosco. É uma regra. Nenhuma de nós pode estar sozinha com um homem.
Joan assentiu vigorosamente, como que a apoiá-la.
- Lady Idonia não está, e infelizmente Joan tem de se encontrar em breve com o irmão - acrescentou.
Joan continuou a assentir, apesar de não ter tais planos.
- É uma proibição muito séria - enfatizou. - Como podeis imaginar, as consequências pela sua desobediência são terríveis.
- Terríveis - repetiu Joan, solícita.
David lançou-lhes um olhar que indicava que, na sua opinião, as consequências ainda não haviam sido suficientemente terríveis para ambas ao longo dos anos.
- Eu poderia arriscar, só que a rainha é muito rigorosa... disse, erguendo as mãos no ar.
David colocou-lhe a capa sobre os ombros. Inclinou-se para apertar o broche sob o pescoço. A sua proximidade, as suas mãos movendo-se junto do seu corpo fizeram-na sentir ainda mais desconfortável.
- Eu não sou um homem qualquer. Sou o vosso noivo. Qual é a pior coisa que pode acontecer? Se eu vos violar, só significa que o casamento foi consumado mais cedo. Talvez me agradeçam por vos retirar do encargo deles. Além disso, no que respeita ao vosso futuro mau comportamento, é a mim que cabe castigar-vos e não à rainha ou a Lady Idonia.
Estava a dirigir-se a ela novamente como se fosse uma criança. Na verdade, estava a vesti-la como se ela fosse uma criança. Além disso, esta era a sua segunda referência àquilo e ela realmente dispensava as suas insinuações. Espicaçavam algo dentro dela, algo em que Christiana não pretendia pensar. Uma vez que insinuavam uma familiaridade que simplesmente não se iria desenvolver, era da opinião de que nem sequer deviam gracejar com aquilo.
As presunções deste mercador indicavam que ele estava a levar os seus direitos de noivo demasiado a sério. Não queria estar sozinha com David de Abyndon mais tempo do que o necessário, e havia arruinado a hipótese de Joan os acompanhar. Enquanto ele vestia o seu próprio manto, ela captou a atenção de Joan.
Idonia, murmurou.
Pôs-se em pé para sair. com um movimento suave, David inclinou-se e apanhou-a nos seus braços.
- Oh! - bradou assustada, olhando para ele. - Eu consigo caminhar - exclamou, enfurecida quando ele desatou às gargalhadas.
- Há degraus. Se tiverdes outra tontura podeis cair e partir o pescoço.
- O mais provável é que me deixeis cair.
- Disparate. Sois muito leve.
- Oh, céus - gemeu ela, deixando cair a cabeça para trás num gesto de exasperação. - Bem, pelo menos descei pelas escadas dos fundos até à entrada que ali há. Não quero que toda a corte assista a isto.
Enquanto ele a transportava para o exterior, ela voltou a cabeça e olhou desesperadamente para Joan.
Procurai Idonia, murmurou novamente.
David pousou-a no chão na porta das traseiras, que conduzia a um pequeno pátio sob a janela de Isabele.
- Há aqui alguns bancos e o sol é quente junto àquela parede - sugeriu ela -, podemos sentar-nos ali.
- Penso que preferiríamos cavalgar um pouco.
Idonia jamais os descobriria, e assim não poderia salvá-la.
- Eu preferia sentar-me ali.
- Em breve a sombra alcançará a parede, e nessa altura ficareis enregelada. Uma cavalgada ao sol será bem melhor.
Caminhando ao lado dele enquanto contornavam a esquina do solar, interrogou-se se todos os homens ficariam assim voluntariosos depois do noivado. Será que Stephen deixaria de lhe dirigir palavras bonitas após o matrimónio? Seria apenas algo que se fazia antes para seduzir as mulheres? As canções não eram uma grande ajuda neste ponto. Os casais naquelas canções românticas nunca eram casados. Sentiu-se imediatamente culpada por comparar Stephen com aquele mercador. Stephen era um cavaleiro galante, e a poesia e o romance fluíam-lhe nas veias.
David retirou as rédeas do seu cavalo das mãos do moço de estrebaria que estivera a segurá-las.
- vou pedir que me tragam uma montada dos estábulos disse ela.
- Vireis comigo. Um dos problemas com as vertigens é que não podereis cavalgar sozinha durante algum tempo.
Ergueu-a e sentou-a na parte da frente da sela e, em seguida, içou-se e sentou-se por trás.
Christiana nunca cavalgara com um homem. O lugar na dianteira era um pouco precário, especialmente se se inclinasse para a frente, como estava a tentar fazer. Aquilo prometia uma forte dor nas costas e o seu humor não melhorou nem um pouco.
Saíram pelo portão do castelo e seguiram rio acima. A estrada foi ficando cada vez mais deserta à medida que se afastavam do castelo e da cidade. Cruzaram-se com algumas carroças e, de vez em quando, com uma barcaça que deslizava pelo rio. Encontravam-se a menos de dois quilómetros das muralhas de Londres, mas de súbito pareceu a Christiana que estavam a um mundo de distância.
Cavalgaram em silêncio durante cerca de quatrocentos metros. Christiana fez os possíveis por evitar qualquer contacto com o homem tão próximo de si. As costas doíam-lhe devido ao esforço. Subitamente e sem aviso, David instigou o cavalo a acelerar o passo. Aquilo estragou tudo. O galope atirou-a de costas contra o peito e os ombros dele. O braço dele deslizou pela sua cintura e ela retesou o corpo, surpreendida, à medida que aquela intensidade fluía e a envolvia com mais segurança do que o braço dele.
Reparou na firmeza do apoio de David e o toque do seu braço transtornou-a. Olhou para baixo, para a bela mão masculina que a segurava com delicadeza, e sentiu a
pressão suave dos seus dedos enquanto ele a amparava. Havia algo de torturante no calor que emanava dele junto às suas costas.
Percorreu-a um estremecimento estranho. Retesou de novo o corpo.
- Tendes receio de mim, Christiana? - questionou.
O rosto dele estava muito junto da sua cabeça e a sua voz era pouco mais do que um sussurro. O hálito dele pairou junto à sua têmpora, transportando as suas palavras. O som cálido fundiu-se com o ar quente, acariciando-a quase como se um dedo a tocasse. Apesar de todo esse calor, um arrepio percorreu-lhe o pescoço e as costas. Um arrepio muito peculiar.
- Claro que não.
- Estais a agir como se tivésseis.
Ele notara os tremores, pensou ela, um pouco horrorizada, mas sem saber bem a razão.
- Tenho um pouco de frio, é tudo.
Em resposta, ele lançou as extremidades do seu manto à volta dela. Agora parecia estar ainda mais perto. O hálito dele roçou-lhe o cabelo, provocando-lhe um formigueiro na nuca. Ele era praticamente um estranho e a subtil intimidade de estar envolta naquele manto junto dele deixava-a agora um pouco receosa, embora não soubesse bem de quê. Contorceu-se, para lhe dar a entender que pretendia que a soltasse.
Ele não a soltou. Ao invés, inclinou o corpo sobre o dela. O cabelo macio dele roçou-lhe na face antes de David voltar a cabeça para lhe beijar o pescoço.
O calor dos lábios dele contra a sua pele produziu um choque incrível. Ele voltou a beijá-la, aumentando a pressão, e a ardência daquela boca penetrou na pele dela, fluiu-lhe pelo pescoço e pelos braços, espalhando-se pelo seu peito e ventre. A pura fisicalidade da sensação assombrou-a.
Ele puxou-a mais para si com o braço. Os seus lábios avançaram ao longo do seu pescoço. Trémula, Christiana foi percorrida por uma série de deliciosos frémitos. David mordiscou-a ao de leve, ao longo da extremidade da orelha. Uma tensão surda explodiu, sacudindo-a, e ela arquejou.
O som despertou-a daquele torpor sensual.
- Agora estou com receio de vós - disse, afastando a cabeça da boca dele.
- Isso não foi receio.
- Quero descer! - exclamou empurrando-lhe o braço. - Esta familiaridade não está certa.
- Nós estamos noivos.
- Nem por isso.
- Estamos, sim.
- Não na minha mente e vós sabeis disso. Quero descer. Quero caminhar um pouco.
Ele deteve o cavalo e desmontou. Ela preparou-se para a fúria dele enquanto se voltava para ser posta no chão, mas ele limitou-se a sorrir e a concertar o seu passo com o dela.
Mesmo caminhando afastada dele, Christiana conseguia sentir a força de atracção daquela perturbadora intimidade. Aquele homem fizera-a sentir-se desconfortável e vulnerável desde a primeira vez que o vira, e as coisas não estavam a melhorar.
Sentiu necessidade de banir os últimos minutos da sua memória, e refugiou-se na conversação para o conseguir.
- Lady Idonia disse-me que os Abyndon são uma família de vereadores em Londres.
- O meu tio Stephen era vereador, há cerca de dez anos, na altura em que faleceu. Tenho outro tio, Gilbert, que gostaria de o ser.
- Ele não esteve presente no sábado.
- Estamos de relações cortadas.
- E os vossos pais também não vieram. Faleceram ou também estais de relações cortadas com eles ?
David não respondeu imediatamente.
- Não vos falaram muito a meu respeito, pois não? A minha mãe já faleceu. Não conheci o meu pai. Abyndon é o nome da minha mãe.
Era um bastardo. De todos os tópicos à escolha para estabelecer uma conversa, provavelmente este seria o pior.
- O vosso irmão tem conhecimento disto - acrescentou.
- É algo muito comum. Deve ter pensado que não valia a pena partilhá-lo comigo.
Era uma mentira cortês, obviamente. Não era assim tão comum.
- Há mais alguma coisa que queirais saber a meu respeito? Ela reflectiu durante uns momentos.
- Que idade tendes?
- Vinte e nove.
- E fostes aprendiz até aos vinte e cinco?
- Na verdade, até aos vinte e quatro.
- Como foi então que enriquecestes tão rapidamente?
Ele soltou uma gargalhada. Uma gargalhada simpática. Discreta.
- É uma longa história.
- Não muito longa, tendes apenas vinte e nove anos. Ele soltou outra gargalhada.
- O meu mestre, David Constantyn, adquiria as suas mercadorias a comerciantes que viajavam para Inglaterra. Principalmente italianos, de Génova e Veneza. Quando eu tinha a idade de Andrew, vinte anos, convenci-o a enviar-me a Flandres para adquirir alguma lã directamente. Os preços a que vendemos são tabelados, de modo que a única forma de obter mais lucro era adquirir mais barato.
- A vossa viagem foi bem-sucedida?
- Bastante. Fizemo-lo durante um ano inteiro. Pouco depois, ele veio ao meu encontro e concordou com outra ideia que eu lhe propusera. Ele dava-me uma avultada soma de dinheiro para eu tentar a minha sorte noutra parte. Estive fora durante três anos, e visitei muitos dos portos em redor do Mar Interior. Enviei mercadorias, fiz amizades com homens que se tornaram nossos agentes, e estabeleci uma rede comercial. A partir daí, ficámos com uma grande vantagem.
Ele relatou aquela história como se os homens estivessem sempre a fazer aquilo, mas era evidente que não, e até mesmo
uma rapariga como ela sabia disso.
- Nessa altura ainda éreis aprendiz dele?
- Aos olhos da lei, mas ele foi durante anos mais do que um pai para
mim. Assim que a cidade me concedeu a carta de liberdade e a cidadania, ele fez de mim seu sócio. Era viúvo e não tinha filhos, e deixou-me todos os seus bens quando morreu. A riqueza dele foi concedida à caridade e aplicada em missas pela sua alma.
Christiana nunca pensara que um mercador podia ser um aventureiro. Para uma jovem como ela, apenas um cavaleiro andante ou um cruzado poderia vaguear assim.
- E por onde viajastes?
- Naveguei pela costa de Aquitânia e Castela até ao Mar Interior através das Colunas de Hércules. Em seguida, ao longo da costa do Continente Negro.
- Terras sarracenas!
- Temos de negociar com sarracenos para obtermos alguma mercadoria do oriente.
- Deve ter sido perigoso.
- Apenas uma vez. No Egipto. Permaneci ali demasiado tempo. Os portos acolhem bem os comerciantes e dependem deles. Ninguém pretende desencorajar o comércio assassinando
os mercadores. Depois do Egipto, segui para Trípoli e Constantinopla, e depois para Génova. Regressei pela França.
Ela recordou os mapas do Mar Interior que vira. Imaginou-o a cavalgar através dos desertos e a passar pelos Alpes. Lançou um olhar às adagas que ele usava. Uma delas
era uma ferramenta decorativa de mesa, mas a outra era grande e tinha um aspecto letal.
- Ainda me parece perigoso. E muito arriscado. - Na verdade, parecia-lhe extraordinariamente excitante e aventureiro.
- O risco era efectivamente real, mas acima de tudo era um risco financeiro. Talvez David Constantyn fosse um pouco louco, para concordar com aquilo. Somente ao ver Andrew aproximar-se dessa mesma idade é que vejo a confiança que ele depositou em mim.
- Ireis permitir que Andrew faça o mesmo que vós?
- Não. Mas vou enviá-lo a Génova em breve, para onde os agentes aqui enviam os seus bens para expedição. Necessito de um homem lá, penso, de modo a não ter de me deslocar até lá ano sim, ano não.
Havia muitos banqueiros florentinos e mercadores italianos em Londres, e muitas histórias desse país soalheiro haviam circulado pela corte ao longo dos anos. Sentiu alguma inveja de Andrew. A ideia de passar o resto da sua vida a bordar num dos castelos repletos de correntes de ar de Stephen pareceu-lhe subitamente muito enfadonha.
- Vim falar convosco acerca de um assunto, Christiana - disse David - Estive em Westminster para planear o matrimónio. A Primavera e o início do Verão estão fora de questão. Haverá alturas em que terei de me ausentar de Londres inesperadamente.
A Primavera e o Verão eram alturas em que se realizavam muitas feiras. Presumivelmente, ele teria de visitar algumas.
- No próximo Outono, então - sugeriu ela. - Outubro ou Novembro.
- Não me parece. Antes da Quaresma. Final de Fevereiro.
- Daqui a cinco semanas! É muito cedo!
- Como assim?
Fitou-o com um olhar feroz. Tinham estado a conversar tão bem. Ele sabia "a resposta". Christiana estugou o passo, com os olhos postos na estrada.
Para conseguir acompanhá-la bastou-lhe alongar a passada. Finalmente, a sua voz calma fluiu em volta dela.
- Eu disse que me afastaria se esse homem viesse, mas não podeis esperar que eu disponha a minha vida segundo as conveniências dele. Se ele vos quiser, estará aqui em breve.
- Sois convencido e arrogante e eu odeio-vos. Estais a fazer isto deliberadamente para tornar as coisas mais difíceis para mim exclamou, voltando-se para ele.
- Não. Apenas procuro evitar dificuldades para mim mesmo que podem complicar os meus negócios. Cinco semanas são tempo suficiente para um homem decidir se quer ou não uma mulher. Eu tomei a minha decisão no espaço de dias. Um homem apaixonado deve ser ainda mais rápido.
Ele não acreditava que Stephen viesse, e agora apresentara-lhe um teste. Como é que ele se atrevia a afirmar que conhecia o coração de um cavaleiro galante! Como é que se atrevia a comparar-se a ele! Stephen era tão diferente deste mercador como um corcel de um palafrém. O animal é o mesmo, mas as raças e os deveres são diferentes.
- Cinco semanas, minha senhora - repetiu num tom firme. Lançou um olhar ao sol. - Agora temos de regressar. Tenho um encontro esta tarde.
Foi buscar o cavalo e ergueu-a sobre a sela. Christiana manteve as costas muito direitas durante toda a viagem de regresso a Westminster.
No pátio das traseiras depararam com Lady Idonia sentada junto à parede. Ela pôs-se imediatamente de pé e dirigiu-se a eles. David desmontou e fez descer Christiana.
- Também decidistes apanhar ar, minha senhora? Está um lindo dia, não é verdade?
- Não devíeis ter levado Christiana quando ela se encontrava adoentada. As vertigens dela eram muito graves - esforçou-se Lady Idonia.
David lançou um braço sobre os ombros de Christiana. Era um gesto descontraído, mas foi muito eficaz para a impedir de fugir.
- A sua cuidadosa preocupação para com a minha noiva enternece-me, minha senhora. Mas tenho algo a dizer a Christiana em privado. Talvez pudésseis aguardar por ela junto à entrada.
Idonia ficou extremamente agitada em resposta a esta ordem brusca para se afastar, lançou um olhar severo a Christiana e afastou-se furiosamente.
David deixou cair o braço e voltou-se para ela.
- Virei visitar-vos na próxima semana.
Stephen viria em breve, mas não estaria cá antes da próxima semana. Ela realmente não pretendia despender mais tempo com David. Sentia isso como uma traição para com o seu amado.
- Não será necessário - respondeu.
- Pode não ser necessário, mas para vosso bem é prudente. Esperais que o vosso amante venha, mas e se não vier?
- Ele virá.
- E se não vier?
A insistência dele irritou-a.
- O que acontece?
- Nesse caso, daqui a cinco semanas desposar-me-eis, minha menina. Pelo sim pelo não, não deveríamos aproveitar este tempo para nos conhecermos um ao outro? Não é para isso que serve o noivado?
Mas eu não sou vossa, noiva de verdade, pensou ela, fitando-o obstinadamente. Pelo menos não no meu coração ou na minha mente.
- Christiana, se não pretendeis um novo encontro até ao dia do casamento, assim será. Todavia, pensai bem, minha menina. Ir para a cama com uma estranha não me incomoda nada, mas vós podeis considerar a experiência muito angustiante.
A boca dela escancarou-se em choque perante esta franca alusão ao leito marital. Memórias de si mesma com Stephen afluíram-lhe, velozes, à mente. Ele não havia sido um estranho, e ela reviveu rapidamente o choque da sua paixão feroz, da insistência esmagadora dos seus beijos, da quase horrível intimidade das suas mãos na sua nudez.
Olhou para cima, para David de Abyndon, notando a forma franca e aberta como ele a fitava. Era cruel da parte dele fazê-la pensar nisto e enfrentar a possível conclusão deste noivado. Ao mesmo tempo, a mente dela começou involuntariamente a substituí-lo por Stephen nessas memórias. Sentiu-se estarrecida ao ver que não tinha qualquer dificuldade em fazê-lo e que os sentimentos estranhos que ele invocara tentavam ligar-se a esta fantasia espectral. Toda aquela ideia era efectivamente angustiante. E muito assustadora.
Cinco semanas.
- E é suposto eu aguardar lá em cima pela vossa vinda e que me "ordeneis que vos receba"? - questionou sarcasticamente.
- Digamos que virei na segunda-feira. Se não puder vir, mandarei avisar-vos. Se adoecerdes de novo, avisai-me.
Ela acenou em afirmação e voltou-se em direcção à porta. Queria dar por terminada a visita deste homem por hoje. Queria limpar da sua mente aquilo que acabara de imaginar.
Ele segurou-a pelo braço e fê-la recuar. com movimentos suaves mas firmes, cingiu-a num abraço.
Uma vaga de desespero submergiu-a. Recordou-se da cerimónia de noivado e sabia, de alguma forma sabia, que era vital, essencial, que ele não voltasse a beijá-la. Debateu-se nos braços dele e quase gritou por Idonia. Quando a cabeça dele se inclinou sobre ela, contorceu-se para o evitar.
Mas os lábios dele encontraram os dela e uniram-se num aflorar suave e ligeiro que nem sequer se tratou de um beijo. Ela sentiu a mesma leveza cálida e balsâmica repetidamente na face, fronte e pescoço. Apesar do seu amor por Stephen, apesar da sua ira contra a intrusão deste homem na sua vida, aquietou-se sob a carícia repetida da sua boca à medida que ondas de sensação fluíam pelo seu corpo. A sua consciência ficou entorpecida a tudo excepto àqueles sentimentos que a subjugavam.
Quando David finalmente parou, ela já não estava a debater-se. Um pouco inebriada, ergueu o olhar para ele. As linhas perfeitas do seu rosto pareciam mais tensas do que o habitual, e ele fitou-a com um olhar de domínio que parecia falar uma linguagem que ela não compreendia. Christiana sabia que ele ia beijá-la e que devia escapar, mas quando ele inclinou a boca na sua direcção, não conseguiu resistir-lhe.
Foi um belo beijo, repleto de calor e promessa. Foi-se aprofundando lentamente enquanto David segurava a cabeça dela com uma mão, e com o outro braço a erguia para ele. As ondas de sensação aumentavam e fluíam com mais intensidade, transportando-a em direcção a um delicioso abandono.
Ele aliviou a pressão que exercia sobre ela e prendeu-lhe um lábio, depois outro, suavemente entre os seus dentes. Um ardor mais intenso disparou ao longo do seu corpo. Era um frémito estonteante de um agradável desconforto que parecia percorrê-la completamente. com menos suavidade, David beijou cada ponto pulsante do seu pescoço e aquele desconforto subjugante regressou, uma e outra vez, de uma forma cada vez mais forte e crescente.
Ergueu-lhe a cabeça e fitou-a, a sua boca disposta numa linha dura com os lábios ligeiramente afastados. Estava gloriosamente belo naquela posição.
- Fazeis-me perder a cabeça - disse, com os dedos a percorrerem os cabelos dela.
Aos poucos, o ambiente que os rodeava foi-se intrometendo entre eles. A posição dela, arqueando-se receptiva ao seu abraço, subitamente também se tornou óbvia. Horrorizada, libertou-se abruptamente dele, e David largou-a. com o rosto muito afogueado, Christiana correu até à porta.
Lady Idonia encontrava-se ali à sua espera. Fitou-a com severidade.
- "Ide pedir a Idonia que me salve" - imitou-a. - Fiquei ali sentada quase uma hora, preocupada convosco, embora não saiba porquê, uma vez que ides desposar este homem. Depois regressais e o que observo? Continuai assim, rapariga, e não haverá necessidade de um matrimónio.
Christiana corou ainda mais. Invadiu-a um profundo sentimento de culpa. Ela amava Stephen. Como fora capaz de deixar aquele homem beijá-la daquela forma? Ainda que ele a tenha forçado a isso, como foi que permitira que aqueles sentimentos a subjugassem de uma forma tão indecorosa?
Seguiu Idonia pelas escadas acima, mais confusa e assustada do que estivera no dia do seu noivado. Isto estava errado. Não devia permitir que voltasse a acontecer. Devia assegurar-se de que não voltaria a ficar sozinha com aquele mercador.
No segundo patamar, fez uma pausa e lançou um olhar pelo peitoril da janela até ao pátio. David estava a montar o seu cavalo para partir. À medida que começou a afastar-se, um movimento no final do pátio captou a sua atenção. Um homem afastou-se do edifício e caminhou em direcção ao cavalo de David.
David deteve-se e falou com o homem durante um momento, depois fez menção de se afastar. Mas o homem seguiu-o, falando e gesticulando. Finalmente, David desmontou. Atou as rédeas a um poste e desapareceu atrás do edifício, seguido pelo homem.
Christiana franziu o sobrolho. Encontravam-se a alguma distância, mas estava certa de que conhecia o homem. Era o diplomata de língua francesa que passara por ela no nicho, na passagem do rei, na manhã a seguir ao seu encontro com David.

CAPÍTULO 4
David permaneceu no limiar entre a sala de estar e o quarto de dormir e analisou a mulher que Sieg acabara de fazer subir. Ainda era uma mulher atraente, mas treze anos cobram os seus dividendos em qualquer pessoa. Naquela altura não se apercebera do quanto ela devia ser jovem. Na altura não devia ter mais de vinte e cinco, avaliando pelo seu aspecto actual. De qualquer forma, ele recordava-se bem dela.
Ela não reparara nele, e David observava-a enquanto ela caminhava pelo salão, correndo os dedos pelo entalhe dos cadeirões e examinando as tapeçarias na parede. Tocou nas vidraças da janela, muito à semelhança do que Christiana fizera naquela primeira noite.
Mas não queria pensar em Christiana naquele momento. Se o fizesse, suspeitava que não conseguiria ir para a frente com aquilo. Já despendera mais tempo na semana anterior a ponderar sobre aqueles olhos de diamante do que sobre a colheita de justiça cuidadosamente planeada que ceifaria nessa tarde. A última coisa que pretendia agora era a ideia de uma boa mulher enfraquecendo-o perante uma má.
O rosto da mulher estava mais pálido do que as mãos, o que lhe deu a entender que usara farinha de trigo para o tornar ainda mais pálido. Uma engenhosa pincelada de tinta animava as suas maçãs do rosto e coloria-lhe os lábios. Se ele se importasse minimamente com ela, teria encontrado uma forma delicada de lhe dizer que a coloração era um pouco forte em relação ao cabelo cor de mel, que tinha começado a tornar-se baço com a idade. Suspeitava que ela era uma daquelas mulheres que se mira muito ao espelho mas que nunca vê realmente o que nele se reflecte.
Ele mexeu-se desconfortavelmente, mas aquilo atraiu à mesma a atenção dela. Olhos felinos cor de âmbar voltaram-se e fitaram-no. Ele contemplou o breve escrutínio e depois o lento alívio. Sim, pensou ele, se esta mulher se vende a um homem, prefere-o novo e belo. Ela continuou a olhar para ele e David não detectou sequer uma
pontinha de reconhecimento.
- David de Abyndon? - questionou. Os seus olhos semicerraram-se e abriu a boca num leve sorriso.
- Lady Catherine. Peço desculpa por não ter podido recebê-la mais cedo.
Ela não o compreendeu bem e, sentindo-se lisonjeada, sorriu com mais naturalidade.
A um gesto dele, ela juntou-se a ele na soleira da porta. Quando viu que era um quarto de dormir, olhou para ele, reprovando a sua falta de subtileza.
Entrou lentamente e, uma vez mais, observou minuciosamente os pormenores do quarto, calculando o seu valor. Ocasionalmente, fitava a enorme banheira disposta diante da lareira. Havia sido trazida pelos criados antes de David os dispensar a todos nessa tarde. Se eles se interrogavam por que razão ele a queria ali e não no quarto de vestir, onde ela pertencia, não o disseram.
Estava cheia, e havia mais água a aquecer junto à lareira. David ergueu os baldes e despejou-os na banheira.
Ela observava-o, divertida.
- Talvez tivesse chegado demasiado cedo.
- Isto é para vós.
- Pensastes que eu viria imunda?
Estais tão imunda que toda a água do mundo não bastaria para vos purificar.
- Não, mas recordei-me do quanto apreciais banhos e procurei agradar-vos.
Ela franziu o sobrolho e olhou para ele com mais atenção. Uma centelha de recordação tentou encontrar uma chama, mas David viu-a apagar-se.
- O meu marido supôs...
- Eu sei o que o vosso marido supôs. Mas fazemo-lo desta forma ou não o fazemos.
Encostou-se à parede da lareira e aguardou.
Um pouco enervada, mas não em demasia, começou a retirar as roupas. Dobrou cuidadosamente o manto ornado de jóias e pousou-o num banco ali perto. Em seguida, retirou o cotehardie. Tecidos dispendiosos. David não teve dificuldade em calcular o valor das dívidas do marido que se deviam ao seu guarda-roupa.
Desapertou o cinto de ligas e retirou as meias. Ele reparou na sua ausência de constrangimento. Ele não era, de longe, o primeiro estranho para quem se despia.
O vestido interior caiu ao chão e ela fitou-o com audácia. Ele indicou-lhe a banheira com um gesto e ela entrou, visivelmente irritada.
Catherine sentou-se na banheira. Não tivera filhos e o seu corpo ainda era juvenil. Os seios volumosos flutuavam-lhe na água.
- Então? - perguntou ela.
- O vosso marido enviou-vos aqui para me pedirdes algo. Para negociar por ele, não é verdade?
Ela fez um gesto de exasperação em direcção à banheira. David sorriu.
- Só faço isto para vos conceder todas as vantagens, minha senhora. Recordo-me que negociais melhor dessa forma.
Novamente o exame. Novamente a faísca do reconhecimento que se consumiu antes de encontrar uma chama. Ela voltou-se para os negócios.
- O meu marido diz que comprastes todas as suas dívidas.
O homem havia amontoado dívidas a mercadores e banqueiros durante os últimos anos. Quando começou a valer-se de um empréstimo para pagar outro e quando o mercado financeiro em Londres compreendeu que ele oscilava à beira da ruína, David comprara os empréstimos com um grande desconto. Nem sequer fora à procura da justiça deste dia. Caíra-lhe simplesmente no colo, um dos muitos presentes que a Fortuna lhe concedia.
- Ele necessita de tempo para as liquidar.
- O prazo de pagamento já venceu há muito tempo, tal como vos expliquei.
- Ele pensou que podíeis ser mais razoável comigo. Vim pedir que adie a data de pagamento das dívidas. As propriedades têm sido menos lucrativas ultimamente, mas isso deve melhorar.
- São menos produtivas porque são negligenciadas e mal geridas. As que já se encontram em meu poder já melhoraram.
- Os empréstimos foram feitos com a promessa de que a propriedade que vós agora detendes nos fosse devolvida.
- Só se os empréstimos forem pagos. - Fez uma pausa. Contudo, penso que podemos ser capazes de chegar a alguma conclusão em relação aos empréstimos e à propriedade. Desejais mais alguma coisa?
O rosto dela iluminou-se. Estava a correr melhor do que ela imaginara.
- Sim. Necessitamos de mais um empréstimo. Um pequeno empréstimo. Uma espécie de ajuda até as coisas começarem a melhorar.
Este marido atribuía um valor elevado aos favores da sua esposa.
- Estais a pedir-me que desperdice mais dinheiro?
- Sereis reembolsado na totalidade.
- Minha senhora, o vosso marido joga. Vós sois extravagante. Ambos os vícios raramente são ultrapassáveis. vou considerar a prorrogação dos antigos empréstimos, mas a verdade é que jamais conseguireis reembolsá-los. Por que razão vos daria mais dinheiro?
Ela fitou-o ousadamente e um leve sorriso formou-se nos seus lábios pintados. Lentamente, de uma forma hábil, moveu-se na banheira para que ele tivesse uma visão completa do seu corpo.
Os anos esfumaram-se. Ele encontrava-se noutro quarto, de pé, diante de uma mulher mais jovem. Ela era uma cliente assídua da loja, mas quando viera nesse dia, David Constantyn não se encontrava presente. Ela adquiriu roupas dispendiosas e pagou com uma nota de débito, como era habitual nessas mulheres, mas depois insistiu que
o jovem aprendiz entregasse os bens nessa tarde no seu solar em Hampstead, onde a nota de débito seria convertida em dinheiro.
Ele havia obedecido. Tal como outros antes dele, cavalgara, inocentemente as cinco milhas para norte até Hampstead.
Ela recebera-o no quarto, estendida numa banheira, muito à semelhança deste momento. Fingindo ignorar a sua presença, pediu aos criados que abrissem e examinassem as compras enquanto ele aguardava. Durante todo esse tempo, ela banhou-se, de uma forma lenta e lânguida, fitando-o, ocasionalmente, com um olhar de provocação que o desafiava a reagir à sua nudez.
Ele não o fez. Aos dezasseis anos, era lascivo o suficiente e nada inexperiente, mas conseguiu dominar o seu corpo. De início, o receio e o choque ajudaram-no. O seu conhecimento das mulheres limitava-se às criaditas exuberantes com quem copular era uma forma de prazer e diversão. Instintivamente, David sabia que esta mulher não era como elas, e que procurava tentá-lo para algo mais do que o prazer.
Mas à medida que ela continuava a exibir-se, era a ira que o mantinha sob controlo. Afastou-se dela. Não gostava de ser o rato no jogo daquela felina. Ressentiu-se por ela estar a usar a sua posição e hierarquia para o humilhar.
Finalmente, conseguiu perceber que ela também estava a ficar irada. Dirigiu-se a ele directamente e começou a renegociar o preço das mercadorias. Continuou a insistir durante um bom bocado, recusando-se a pagar a nota de débito na totalidade, exigindo a atenção dele. Por fim, ele teve de olhar para ela, e quando o fez, ela ergueu uma perna até à parte lateral da banheira, expondo-se completamente.
Nessa altura, ele perdeu o controlo, mas não da forma que ela supunha. Permitiu que o seu rosto expressasse o que estava a pensar, mas não era o desejo que ela pretendia. Antes de sair, fitou-a com desprezo e deixou que ela se apercebesse da profunda aversão que lhe inspirava.
Estava quase na estrada quando os homens dela vieram atrás dele e o arrastaram de volta a casa. Amarraram-no a uma argola de metal cravada no tronco de um carvalho no jardim. Antes do chicote cair, olhou sobre o ombro e viu o cabelo cor de mel dela junto a uma vidraça.
- Não vos recordais de mim - disse David. - Mas afinal, éramos tantos, por que motivo iríeis recordar-vos de um?
Ao longo dos anos haviam-se encontrado, aqueles rapazes, agora adultos, que ela enredara na sua teia. O apetite doentio daquela mulher não era discutido abertamente, mas não era desconhecido. Era por isso que David Constantyn não permitia que os seus aprendizes a servissem ou lhe entregassem mercadorias. Mas ele tinha sido o único a não jogar o seu jogo como ela pretendia, e por isso o chicote recaíra mais duramente sobre ele do que sobre os outros, cujo único crime havia sido mostrar a luxúria que ela exigia, para depois os castigar enquanto observava dos seus aposentos. Fora açoitado uma vez no Egipto, mas esta havia sido a primeira vez que as suas costas tinham ficado cobertas de cicatrizes. Nesse dia, a juventude fora-lhe arrancada do corpo através da flagelação.
Ele contemplava-a, impassível, observando-a enquanto ela o examinava. Desta vez a centelha da memória apoderou-se de uma chama e os seus olhos faiscaram com reconhecimento. O olhar dela percorreu lentamente o quarto à medida que avaliava o perigo. Recuperou o domínio de si mesma.
- Fostes compensado - disse ela friamente.
Sim. Ele havia sido compensado. Quando regressara a casa e o mestre vira o seu estado, aquele bom homem fez o que nenhum outro mestre ou pai teria feito. Dirigiu-se aos tribunais da cidade no dia seguinte, apresentou queixa contra aquela mulher e forçou o presidente da Câmara a resolver o assunto. Após algum tempo, o marido foi obrigado a pagar cinquenta libras. David recusara-se a tocar no dinheiro.
- Mas os outros não o foram, e não é uma dívida que o dinheiro resolva.
Ela fitou-o furiosamente antes de se acalmar. Deitou um olhar à cama e depois olhou para ele interrogativamente.
- Sim. Isso também. Mas se quereis este prorrogamento, eu tenho outros termos. Alargarei o prazo dos empréstimos em troca do solar de Hampstead e a propriedade, e por uma hora do vosso tempo.
- As propriedades de Hampstead pertencem-me a mim, não ao meu marido. Não foram prometidas como penhor em nenhum dos empréstimos.
- Eu sei que são vossas. Todavia, em troca delas, não me limitarei a prorrogar o prazo, perdoar-vos-ei os empréstimos. - Sorriu.
- Estais a ver como negociais bem? Já vos concedi muito mais do que tinha em mente.
Viu-a ponderar a ruína certa contra a propriedade. Se ele cobrasse os empréstimos, ela teria de a vender na mesma.
- Por que razão quereis aquela casa? Porque não outra? Ireis incendiá-la, ou algo do género?
- Não. Nós os mercadores somos pessoas muito práticas. Raramente destruímos propriedades. É uma casa muito bela e eu admirei-a. Em breve vou ter necessidade de uma casa de campo perto de Londres. Não guardo rancor a um edifício.
- E a hora do meu tempo?
- Isso é para a outra dívida. Ireis a um local que eu vos indicarei. Estará lá um homem que vos açoitará tal como vós vistes outros a serem açoitados para vosso prazer. Dez chicotadas.
Os olhos dela arregalaram-se com o choque. Foi com alívio que ele reparou na sua reacção. Aquelas pessoas que geralmente tiram pruzer com a dor dos outros, também retiram prazer da sua própria dor, e ele não queria que ela obtivesse um prazer perverso nisto.
- Não me tinha apercebido de que tínhamos tanto em comum
- disse ela finalmente.
- Não temos nada em comum. Não estarei presente, embora alguns dos outros possam estar. Ser-lhes-á comunicado e eles poderão querer estar presentes. Eu pediria ao vosso marido que o fizesse, como o deveria ter feito há já muito tempo, mas ele sabe quem vós sois e se ele começasse podia não conseguir parar. É justiça que procuramos, não vingança, ou a satisfação do vosso marido.
Ela ergueu-se abruptamente da banheira. Saiu e começou a secar-se. Todavia, os seus movimentos apressados e coléricos iam abrandando gradualmente, e a expressão do seu rosto alterou-se. Ele viu-a ponderar, calcular e planear a negociação final que, se fosse bem executada, poderia mudar tudo.
Compreendeu, para sua surpresa, que perdera totalmente o interesse em prolongar mais a humilhação dela.
Retirou uma pequena bolsa da parte da frente do seu gibão. Continha exactamente a diferença entre o valor dos empréstimos e o valor da propriedade de Hampstead. Deixou cair a bolsa sobre as roupas dela.
- É o dinheiro que procurais, mas não é um empréstimo. Isso seria um mau negócio. Contudo, pago sempre às minhas prostitutas, quer as use ou não.
Encaminhou-se para a porta.
- Daqui a uma semana, minha senhora. A hora e o lugar ser-vos-ão comunicados. Depois disso, o vosso marido pode contactar-me para pormos em ordem a situação dos empréstimos e da propriedade.
- Haverá uma nova dívida depois disto, meu bastardo, filho de uma prostituta! - A voz dela, áspera e desagradável, ecoou pelo quarto.
Ele fez uma pausa. Justiça, e não vingança, recordou a si mesmo. Todavia...
- Quinze chicotadas, parece-me melhor, minha senhora. As últimas cinco pelo insulto à minha mãe.
Atravessou o salão e o átrio a passos largos e abandonou a casa.
O céu tinha-se encoberto e uma neve ligeira caía no momento em que David seguia, a passo, no seu cavalo à saída da taberna. À sua direita, ao longo das docas de
Southwark, flutuavam pequenas embarcações de todo o tipo. Defronte delas estendiam-se as pequenas casas onde as prostitutas exerciam o seu oficio. Até mesmo à noite
estas docas estavam repletas de gente, pois a cidade desencorajava que se atravessasse o rio de noite e era tradição os clientes destas mulheres permanecerem com elas até de madrugada.
A rústica taberna era sombria e exalava um odor a bafio devido à humidade do rio. David deixou que os seus olhos se ajustassem à penumbra, e depois encaminhou-se para uma mesa de canto.
- Estás atrasado - disse o homem lá sentado. David deslizou para o banco.
- Oliver, és o proxeneta mais pontual que eu conheço. Oliver passou-lhe uma caneca de cerveja, bebeu alguma da sua ;
e limpou o bigode negro e a barba à manga.
- Sou um homem ocupado, David. Tempo é dinheiro.
- O tempo da tua mulher é dinheiro, Oliver, não o teu. Como está Anne?
- Ela não gosta do Inverno - respondeu, encolhendo os ombros. - Na opinião dela, as noites são muito longas.
Provavelmente, ela mudar-se-ia em breve para Cock Lane. Era mesmo à saída das muralhas da cidade e as mulheres ali trabalhavam de um modo diferente de Southwark. Mas nessa altura também teriam de lidar com as leis da cidade. Southwark, na outra margem do Tamisa, em frente a Londres, era uma cidade à parte e quase sem leis.
Observou o corpo seco e magro de Oliver e o seu longo cabelo negro. Conheciam-se desde a adolescência, quando brincavam e lutavam juntos nas ruas e becos da cidade. Ocasionalmente, durante esses dias descontracção, haviam enfrentado momentos de perigo lado a lado. Mas depois a família pobre de Oliver mudara-se para Hull e David tinha sido retirado daqueles becos e enviado para a escola e para o comércio.
Tinham-se voltado a encontrar quando Oliver regressou a Londres, alguns anos antes. David vira imediatamente que encontrara um homem em quem podia confiar. Tal como Sieg, Oliver podia cometer, por vezes, alguns crimes, mas vivia de acordo com um código de lealdade e justiça que envergonharia muitos cavaleiros. Desde então, haviam enfrentado novamente o perigo em conjunto, em mais do que uma ocasião.
A decisão que levara Anne a converter-se numa prostituta fora, simplesmente, a mais fácil de várias opções que haviam tido à disposição quando regressaram a Londres. Anne já havia concluído que as noites de Inverno eram demasiado longas quando ele os encontrou, pouco tempo depois. Ainda assim, ela provavelmente ganhava três vezes mais dessa forma do que eles os dois juntos num trabalho honesto. Os trabalhos ocasionais que Oliver fazia para ele e para outros ajudavam um pouco.
Não sabia bem como é que iria explicar a Christiana a sua amizade com Oliver e Anne. A história de Sieg já seria, por isso, suficientemente estranha quando ela finalmente se apercebesse de que ele não era um empregado típico.
- Ele falou contigo? - perguntou Oliver.
- Duas vezes. A última vez foi esta manhã.
- Segui-o, tal como me pediste. Ele falou com o comandante de um navio ontem. Penso que irá viajar em breve.
- Terá de o fazer. Contudo, espero que ele me procure mais uma vez, e atrase a sua viagem até que eu consiga falar pormenorizadamente com ele. Até agora, ele limitou-se a sondar-me, mas ainda não completou o que veio fazer.
- Pensas que está decidido, então?
- Penso que sim. Eu recusei-o, mas deixei a porta aberta.
- Não estou convencido disso - disse Oliver, abanando a cabeça. - O seu dia-a-dia tem sido muito normal. Ele vai ao encontro de mercadores e frequenta outros locais de negócio. E é tudo.
- A oferta que ele me fez até agora foi subtil mas inequívoca. Ele aparenta ser um mercador porque o é. À excepção da carta para Eduardo e da sua missão para comigo, ele está aqui para negociar. É essa a ideia. Sempre que vou a Flandres ou França, também vou em negócios. - Esticou as pernas debaixo da mesa. - Por falar nisso, diz a Albin que necessito de ir até lá dentro de uma semana, sensivelmente.
- Estás a fugir do duelo? - questionou Oliver com um largo sorriso.
- Antes disso. Depois de ele falar comigo, mas antes do meu casamento. Quero viajar ao longo da costa.
- Estás a abusar, meu amigo - disse Oliver, soltando uma gargalhada. - Espera até desposares essa princesa. Provoca o destino e podes dar por ti aprisionado em mares tempestuosos durante uma semana, faltando à cerimónia. Isso necessitaria de algumas explicações, isso te garanto.
David afastou o olhar. Sieg estava certo. Era má altura para casar. Oliver também tinha razão. Devia esperar pelo casamento e só depois viajar pela costa. Mas precisava de ser feito em breve, e ele não tinha qualquer intenção de deixar Christiana durante algum tempo depois do enlace. Esta rapariga, e o enorme desejo que sentia por ela, estavam a complicar as coisas.
Os seus olhos eram jóias facetadas repletas de reflexos brilhantes. Um homem podia perder a alma nuns olhos como aqueles.
Em primeiro lugar, começara a perder o interesse naqueles planos subtis e perigosos que maquinara, nos quais Oliver desempenhava um papel. Admitira finalmente esse facto durante o caminho para a taberna, e havia ficado muito admirado com a descoberta. Afinal, ele andara a semear, lentamente, este campo em especial ao longo de quase dois anos. Um pedaço de informação aqui, um deslize deliberado ali. Funcionara porque as pessoas como ele eram rápidas a notar os erros, as fraquezas e as potenciais vantagens, e ele sabia que estava a lidar com um homem muito idêntico a si mesmo. Na verdade, o facto de possuírem ambos uma inteligência equivalente devia ser só por si um prazer, e a justiça final muito mais satisfatória do que o contentamento bastante insuficiente que sentira hoje com Lady Catherine.
Ao invés, estava a perder o interesse e até a considerar abreviar as coisas à medida que elas se aproximavam das jogadas cruciais. Os seus planos e os de Eduardo haviam-se entrelaçado de tal forma que ele ponderava finalmente se seria possível desemaranhá-los uns dos outros. Considerara até que aquilo tivesse a ver com Christiana. Por causa dela começara a pensar mais no futuro do que no passado. Sentia-se já responsável por ela. Perguntava-se com demasiada frequência o que seria dela se no final ele perdesse este jogo.
Alterara o seu testamento de modo a que ela pudesse converter-se numa viúva abastada se algo corresse mal. Haveria igualmente fundos nas mãos dos banqueiros florentinos. Quando chegasse a altura, ele daria instruções a Sieg e a Oliver para a retirarem do país, se isso viesse a ser necessário. Mas nada disso a compensaria caso ele falhasse.
Os seus gestos transmitiam elegância e firmeza, as mãos e os braços magnificamente delineados, como os de uma bailarina. Era a forma como ela se movia que lhe conferia um aspecto frágil.
Ainda esperava que o amante viesse buscá-la. Não duvidava nem por um momento da sua determinação nesse ponto.
Stephen Percy. Saber o nome do homem e algo acerca do seu carácter havia sido relativamente fácil, mas essa descoberta apenas viera confirmar os seus instintos iniciais acerca dele. Christiana ia sofrer uma grande desilusão.
Não havia dúvida que o coração dela se quebraria em breve, mas quando veria ela a verdade por detrás das ilusões? Daí a duas semanas? Um mês? Nunca? O mais tarde possível. O primeiro amor de uma rapariga podia ser algo cego, e ela estava convencida de que estava apaixonada por aquele homem. Aceitar a verdade podia muito bem ser impossível. Deus sabia que ele já vira aquilo antes.
Digamos que o jovem Percy não vem buscá-la. O que acontece depois? Um matrimónio repleto de um dever gélido? Sorriu levemente perante a ideia. Sabia bem o que acontecia em tais uniões. Os homens não tardavam a encontrar amantes ou passavam demasiadas noites com prostitutas em Cock Lane. As esposas mais honestas deixavam-se absorver pela religião ou pelos filhos.
E as mulheres mais corajosas e ousadas... bem, essas acabavam por descobrir um caminho para a cama de homens como David de Abyndon.
Ele sentira aquele corpo esguio e ágil contra o seu. Sentiu as reacções dela às suas investidas e o temor que sentira delas. Um frémito percorreu o corpo dela e penetrou no dele, e ele quisera beijá-la uma e outra vez.
Tinha experiência suficiente para reconhecer as possibilidades que esses tremores revelavam. Mas também os sentira na primeira noite na sala de estar.
Na sua memória, via os olhos cintilantes de Christiana, a tez pálida e a boca generosamente rasgada que não era capaz de ver sem desejar beijá-la. Imaginou-a caminhando na sua direcção, desnuda e convidativa, aquele belo rosto e boca finalmente voltados para si, ansiosos.
Mas depois a imagem dela tornou-se difusa e esbatida, e o rosto de outra mulher substituiu-a. Magro e cansado, este rosto também era belo, apesar da fadiga. Repousando numa almofada com o cabelo castanho dourado a emoldurá-lo como um halo, os seus olhos finalmente fecharam-se em desapontamento e desilusão.
A imagem ampliou-se e ele conseguiu ver o quarto inteiro com as velas bruxuleantes e os lençóis brancos no leito. Havia roupas penduradas nos cabides ao longo da parede e na lareira ardia um lume demasiado quente. Sentado na cama, com a cabeça cinzenta enterrada naquele corpo sem vida, jazia a figura angustiada de David Constantyn.
Nunca se apercebera até àquele momento do quanto ele a amava. À noite, quando a casa ficava envolta na penumbra, será que ele ia ao encontro dela? Será que ela ia ao encontro dele? Teria ela dormido com ele? Céus, mas ele esperava que sim.
Pôs firmemente de lado a análise dos riscos que nada significavam para ele até conhecer Christiana.
Por ambos, então, pensou.
- Se recusares este mercador, pensas que o outro virá?
- Virá - respondeu David. - Se fosse eu viria. Mantém os teus ouvidos e os dos teus homens bem atentos, Oliver. Não só por isso, a propósito. Fica junto das tabernas dos peregrinos. Aguardo notícias de Northumberland.
- Alguma notícia em especial?
- Vive lá um cavaleiro de nome Stephen Percy. Se ele vier até Westminster, quero sabê-lo imediatamente. Ou se escutares algo mais acerca dessa família.
- E se esse homem vier? - inquiriu Oliver, erguendo um sobrolho.
David viu o olhar dele e soube imediatamente que Sieg falara a Oliver do seu interesse nesse Sir Stephen. Sem dúvida, calculavam que teria algo a ver com Christiana.
Recordava-se da oferta de Sieg para tratar de Morvan, e sabia que Oliver estava agora a fazer a mesma sugestão. Não era da natureza deles fazerem tal coisa, mas por amizade a David fariam o que fosse preciso. A lealdade deles por vezes podia ser um fardo. David tinha já demasiada dificuldade em lutar contra as suas próprias vontades para ainda ter de se preocupar com as almas dos homens que trabalhavam para ele.
Pensou na promessa que fizera de deixar o caminho livre. Fora num momento de fraqueza enquanto fitava um belo rosto. A sua inclinação para a beleza levava-o por vezes de um mau negócio a outro, especialmente quando se tratava de algo que desejava para si mesmo. Felizmente, Percy não regressaria para testar a sua honestidade nessa promessa. Mas pelo sim pelo não...
- Avisa-me imediatamente - respondeu. - Nessa altura, decidirei o que fazer.

 

 


CONTINUA