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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA
CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

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CAPÍTULO 5
Christiana permaneceu firme na sua resolução de não voltar a ficar sozinha com David. Na segunda-feira seguinte, insistiu que permanecessem sentados no jardim, onde Lady Idonia os encontrou por acaso e se juntou a eles. Foi uma visita agradável, na qual ele as distraiu com relatos das suas viagens.
Alguns dias mais tarde, durante o jantar, Sir Walter Manny deteve-se junto à mesa de Christiana. Sir Walter era um dos homens da rainha, originário de Hainault, o país de origem de Filipa. Durante a conversa entre ambos, ele mencionou que conhecia David e que até o apresentara ao rei dois anos antes, quando Eduardo tinha
uma carta para o presidente da Câmara de Ghent e David estava a
li planear uma viagem à Flandres.
- Estais a dizer-me que David entregou a carta do rei? - perguntou ela.
- Está sempre a acontecer, minha senhora. Qual a razão de se enviar um mensageiro se um mercador de confiança vai fazer a viagem? Por vezes, até é melhor desta forma, especialmente se não quereis atrair as atenções para a mensagem. Por exemplo, é do conhecimento geral que existe actualmente um comerciante da Flandres em Westminster que é favorável à aliança francesa do conde da Flandres, ao contrário dos seus concidadãos burgueses que apoiam a Inglaterra. Suspeitamos que ele tenha trazido uma carta privada do conde para o nosso rei. Uma troca formal seria estranha, uma vez que são adversários, mas ainda assim as negociações acontecem. - Lançou um olhar perscrutador pela sala e apontou. - Ali está ele com Lady Catherine. O nome dele é Frans van Horlst.
Christiana olhou e viu um homem de cabelo grisalho adulando servilmente Catherine. Era o seu "diplomata", aquele que ela vira a falar com David naquela primeira terça-feira após os esponsais.
E depois, na sua mente, surgiu outra recordação, a da primeira vez que vira aquele homem no corredor privado do rei. Duas vozes que falavam num francês parisiense. Uma voz suave e tão débil que não passara de um sussurro.
Seria David? A voz soara num tom demasiado ténue para perceber. Ele conhecia o rei suficientemente bem para pedir a mão da filha de Hugh Fitzwaryn em matrimónio, e contudo, nunca ninguém o tinha visto pela corte. O acesso a essa passagem privada podia explicar essa contradição. Teria sido David naquele dia? Se assim fosse, o que era ele ao rei para entrar e sair por essa via privada? E o que quereria Frans van Horlst dele?
- Sabeis se David ainda realiza tais favores ao rei?
- Indiquei-o dessa vez e apresentei-os - respondeu Sir Walter, encolhendo os ombros. - Se a relação prosseguiu, não vos sei dizer.
- Como é que conheceis o meu noivo?
Sir Walter sorriu e inclinou a sua bela cabeça conspiratoriamente.
- Sem dúvida sabeis que ele é um músico de sucesso? E que aprendeu sozinho.
Ela acenou em afirmação, respeitosamente, embora não tivesse qualquer conhecimento disso.
- Ambos pertencemos a Pui - confidenciou ele.
Pui era uma das muitas fraternidades em Londres. O único facto realmente secreto em relação a ela era a data e a localização das suas reuniões anuais. Para além de beberem durante toda a noite, os homens de Pui interpretavam canções que compunham e uma das canções era escolhida para ser "coroada". Por vezes, quando um trovador entoava uma canção nova, era comum ouvirem-se referências a ela como sendo originária de Pui.
- Ele já tocou o alaúde para vós? O instrumento preferido dele é a sua antiga harpa celta, mas por vezes não se adequa bem às canções, e por isso ele aprendeu a tocar alaúde. Ainda assim, há dois anos venceu-me na coroação, e eu ainda posso jurar que foi apenas por causa da originalidade daquela maldita harpa - disse Walter.
Christiana pensou subitamente na forma perfeita de não vir a estar sozinha com David na segunda-feira que se aproximava. Ela confessou que o seu prezado noivo ainda não tivera a oportunidade de tocar para ela. Estaria Sir Walter disposto a ajudar a remediar a situação?
Quando David chegou na segunda-feira de manhã, ela saudou-o alegremente. Até sorriu quando ele a beijou.
- Pedi ao moço da estrebaria que vos traga um cavalo - disse ele. - Iremos jantar a minha casa. Deveis conhecer os criados, e os rapazes devem conhecer-vos.
A última coisa que ela queria era ir a casa dele e conhecer as pessoas envolvidas na sua vida. Iriam cumprimentá-la como sua futura patroa, ao passo que ela estava certa de que jamais as voltaria a ver.
- Vamos sair pelo salão - sugeriu. - Preciso de ver se Morvan anda por lá. Tenho algo para lhe dizer.
Evidentemente, Morvan não se encontrava lá, como ela bem sabia. Mas Sir Walter sim, sentado a um canto, rodeado por sete jovens raparigas. Estava a entoar uma ousada cançoneta de amor enquanto tocava o seu alaúde, erguendo as sobrancelhas de um modo cómico nas partes mais românticas. As raparigas soltavam risadinhas abafadas perante as suas expressões exageradas.
- David! - exclamou, interrompendo a canção quando eles atravessaram o salão.
- Walter! - David saudou-o calorosamente. Lançou um olhar às raparigas sentadas no chão. - Vejo que estás a viver a fantasia de um cavalheiro inglês.
As raparigas voltaram-se e avaliaram-no. Christiana observou as suas reacções perante o belo rosto dele. Eram todas solteiras e mais jovens do que ela.
- Estou a experimentar um novo alaúde - explicou Walter, segurando o instrumento. Apontou para outro pousado sobre o banco ao seu lado. - Mas parece-me que prefiro o antigo.
- É sempre assim no início - disse David. Pegou no braço de Christiana e começou a afastar-se com ela.
Christiana lançou um olhar a Walter.
- Vejamos como soam juntos, David - sugeriu Walter rapidamente.
As raparigas bateram palmas, encorajando-o. David olhou para Walter, depois para o segundo alaúde e, em seguida, para Christiana.
Ela sorriu e tentou exibir uma expressão resplandecente, como a de Joan. Deixou que os seus olhos implorassem um pouco.
com um suspiro de resignação, atravessou o grupo de raparigas e sentou-se ao lado de Walter, segurando o alaúde no seu regaço. Walter murmurou algo e ambos começaram a entoar uma canção acerca da Primavera.
Tocaram durante um bom bocado, até o salão começar a encher-se de pessoas para o jantar. Sempre que David tentava terminar, as raparigas começavam a lamuriar-se e a adulá-lo. Houve uma altura em que Christiana podia jurar que ele já tinha desistido, que se apercebera de que estava encurralado ali por muito tempo. Depois disso, ele até se começou a divertir, trocando piadas com Walter e, finalmente, entoando uma das suas canções.
Era uma canção de amor que ela nunca ouvira. A melodia era lírica, lenta e um pouco triste. Christiana fechou os olhos e sentiu que a canção despertava a sua própria tristeza.
Os seus pensamentos voltaram-se para Stephen e a melancolia intensificou-se. Perdeu a conta às canções seguintes à medida que o seu coração e desvelo se concentraram nele. Em seguida, as raparigas mexeram-se à sua volta e ela voltou a ficar alerta. O grupo alegre desfez-se e Walter insistiu para que David jantasse com ele. David aceitou e ajudou-a a pôr-se de pé. Olhou para ela brevemente, depois sorriu e abanou a cabeça, divertido.
Não chegaram a ir para casa dele. Ela não conheceu as pessoas a quem ele a queria apresentar. Mais importante do que isso, não estiveram sozinhos o dia todo. Quando ela finalmente regressou aos aposentos de Isabele, Idonia e Joan já haviam regressado, e por isso o beijo de despedida foi tão breve e discreto quanto o de chegada.
Christiana despiu o vestido de noiva em tons de rosa prateado e entregou-o ao alfaiate, que conseguiu muito habilmente não a ver com o vestido interior.
Este assunto dos casamentos operava maravilhas no guarda-roupa de uma rapariga. Contudo, não podia sentir-se entusiasmada com este novo vestido. O custo fizera com que se sentisse culpada porque sabia que ele nunca seria usado. Seria de um extremo mau gosto fugir com Stephen, desafiando a rainha, e mesmo assim aceitar o vestido que ela lhe oferecera.
Todavia, o que realmente a incomodava em relação a este vestido, era o seu inexorável progresso. Estes ajustes eram indesejáveis mas inevitáveis lembranças de que o tempo continuava a passar com demasiada celeridade. Metade das cinco semanas já haviam decorrido, e ainda não tivera notícias de Stephen Percy.
Uma criada auxiliou-a a vestir o seu cotehardie simples, de um tom púrpura, e o manto azul. Enviou a mulher em busca de Joan enquanto calçava um par de botas.
Era sexta-feira, e haviam decorrido quase três semanas desde os esponsais. Iria encontrar-se com David nessa tarde ao invés de segunda-feira, uma vez que ele estaria fora da cidade nessa altura. Estavam a planear ir à feira dos cavalos e corridas em Smithfield, um acontecimento que ela pensava que poderia ser engraçado.
Todavia, antes de lá chegarem, tinha um assunto ou dois para discutir com mestre David de Abyndon.
David cavalgava em direcção a Westminster flanqueado por Sieg e Andrew.
- Se, por acaso, a bela e jovem Joan vier com ela, eu parto e Andrew fica - disse Sieg franzindo o sobrolho. - Mas se aquela fagulha do inferno, aquela Lady Idoma, aparecer, então fazemos ao contrário.
- Receio bem que sim, Sieg - respondeu David. À sua esquerda, Andrew exibiu um sorriso afectado.
- E aquele que ficar tem de distrair a outra mulher para ela não se intrometer. - prosseguiu Sieg, franzindo ainda mais o sobrolho.
David acenou em afirmação. Aproveitara-se da mentira de Christiana acerca da insistência da rainha para que as raparigas não ficassem sozinhas com homens, para explicar a Sieg e a Andrew a sua necessidade hoje. Tinha quase trinta anos, mas esta rapariga havia-o reduzido a joguinhos que já não jogava aos dezoito anos. Evitara estar a sós com ele desde aquela terça-feira e havia sido muito esperta em relação a isso. Esse facto divertia-o e não o aborrecia, mas, é claro, começava a ficar fascinado com ela, e por isso provavelmente desculparia tudo.
A atracção mútua simplesmente não encaixava nos planos dela. A resposta de Christiana ao beijo e ao abraço dele tinha-a deixado tremendamente assustada. Ela mostrava-se tão embaraçada e inexperiente como uma virgem intocada. Esse efeito de inocência encantara-o quase tanto quanto a sua rápida paixão o inflamara.
Ele podia evitar este jogo. Ela acabaria por ser sua. Na verdade, sê-lo-ia muito em breve. Mas David deu por si a pensar naqueles olhos e a provar aqueles lábios na sua imaginação com demasiada frequência para poder voltar atrás. Além disso, não queria que ela reconstruísse demasiado bem as suas defesas. Não lhe agradava muito a perspectiva de ter de escolher entre castidade ou violação na sua noite de núpcias.
- O problema - prosseguiu Sieg - é se Lady Idonia não se deixa distrair. Ela é como uma leoa a proteger as crias.
- Raios, Sieg, tens o triplo do tamanho dela, por amor de Deus
- murmurou Andrew. - Pega nela debaixo do braço e afasta-te.
- Já? Foi assim que o fiz lá na minha terra, evidentemente, mas pensei que aqui em Inglaterra...
- O Andrew está a brincar, Sieg.
- Oh, já - exclamou Sieg, voltando a franzir o sobrolho. David concordou em encontrar-se com Christiana no pátio das
traseiras. Ela e Joan mantinham-se junto a dois cavalos, seguros pelos moços da estrebaria. Sieg deu meia-volta ao cavalo e David entregou algumas moedas a um Andrew deliciado.
- Mantém Lady Joan entretida nas corridas e nos estábulos. O moço de estrebaria ajudou as raparigas a montar. Christiana
lançou um olhar significativo na direcção de Andrew.
- Ele virá connosco. Necessita de entregar uma mensagem da minha parte a um homem lá na feira - explicou David.
Ela pareceu aceitar essa explicação. Na altura em que chegaram à Strand, Joan e Andrew encontravam-se a uma distância de quatro cavalos à frente deles e Christiana não pareceu importar-se.
- As pessoas têm falado acerca de vós - disse ela finalmente.
David teve a sensação de que Christiana aguardara pelo momento exacto em que Joan se encontrava demasiado afastada para conseguir escutar o que ela dizia.
- As pessoas?
- Na corte. Falam de vós. De nós. De tudo.
- É natural que aconteça, Christiana.
- Este género de coisa não. Não é natural que se fale nelas porque são muito invulgares.
- Não necessitais de dar ouvidos aos mexericos da corte. Eu dir-vos-ei tudo o que necessitardes de saber.
- Sim? - Questionou, erguendo o sobrolho. - Bem, em primeiro lugar, algumas damas conversaram comigo a vosso respeito. Mencionaram o quanto éreis maravilhoso.
- Que damas? - indagou cautelosamente.
- Lady Elizabeth foi uma delas.
Aquilo surpreendeu-o. Ele e Elizabeth mantinham uma velha amizade, mas não fazia o género dela interferir em tais assuntos.
- Sinto-me honrado se Lady Elizabeth fala bem de mim.
- E Alicia. Raios.
O rosto de Christiana era a imagem de uma cuidadosa indiferença.
- Sois amante de Lady Alicia?
- Ela disse-vos isso?
- Não. Todavia, havia algo na forma como ela falava. Quando se oferecera para lhe falar de tudo, não era isto que
tinha em mente.
- Não me parece que queiramos prosseguir com isto, pois não? Eu não vos pressionei para que me désseis os nomes dos vossos amantes. Não devíeis perguntar os nomes das minhas.
Ela voltou-se abruptamente na direcção dele.
- Amantes! Como vos atreveis a afirmar que eu tive amantes! Eu falei-vos de um homem.
- Falastes-me de um homem neste momento. Pode ter havido outros, mas como já disse, possuo uma mente aberta e não perguntei.
- É evidente que nunca houve outros!
- Não há nada de evidente nisso. Mas não tem qualquer importância. - Sorriu para si mesmo perante a consternação dela. Christiana, tenho praticamente trinta anos e não tenho vivido como um monge. Não tenciono ser-vos infiel. Todavia, se o nosso matrimónio for gélido, imagino que farei o que todos os homens sempre fazem e procurarei calor noutro lado.
Abordara deliberadamente um assunto sobre o qual ela não pretenderia conversar. Tal como ele esperava, ela não teve resposta. E assim terminou o assunto de Lady Alicia. Agora falaria de outra coisa. Ficou a aguardar.
- Isso foi o mais irrelevante do que eu ouvi - disse ela.
- De alguma forma, foi o que eu pensei.
- Comprastes-me? - perguntou, baixando as pálpebras. David já perguntara a si mesmo quando é que ela iria ouvir falar disso.
- Não.
- Não? Ouvi dizer que Eduardo exigiu um preço pela noiva. Um preço chorudo. Morvan diz que é verdade.
Estivera à espera disto e estava preparado.
- Pagar um preço pela noiva não é o mesmo que comprar alguém. O preço das noivas tem uma longa tradição em Inglaterra. As mulheres eram honradas dessa forma nos tempos antigos. com os dotes, a mulher é inferior à propriedade. E como se a família pagasse a alguém para a levar e a retirar do seu encargo. Se pensardes bem nisso, os dotes são mais insultuosos do que os preços das noivas.
- Então é verdade?
Ele escolheu cuidadosamente as palavras. Se ela descobrisse a verdade daí a vinte anos, ele queria ser capaz de dizer que não mentira.
- O vosso irmão viu o contrato, tal como vós em breve também vereis. Não há razão para negar que há nele um preço pela noiva.
- E ao invés de me sentir insultada, vós dizeis que eu devia-me sentir-me lisonjeada?
- Sem dúvida. Teríeis preferido que o rei vos tivesse oferecido a mim?
- Eu teria preferido que o rei continuasse a esquecer-se que eu existia - respondeu rispidamente.
Cavalgaram em silêncio durante um minuto.
- Qual é o valor desse lisonjeiro preço da noiva? - inquiriu finalmente.
Morvan não lhe dissera. Em breve veria o contrato. David pensou na fórmula complicada que continha.
- Sois boa a decifrar enigmas? - questionou despreocupadamente.
- Excelente.
Teria de o ser.
- Mil libras.
- Mil libras? - Ela deteve o cavalo e ficou de boca aberta a olhar para ele. - O rendimento de um conde? Porquê?
- Eduardo não aceitou menos. Podeis estar certa de que regateei bastante. Na minha opinião, trezentas libras seriam suficientes.
Os olhos delas semicerraram-se, desconfiados.
- Morvan tinha razão. Este matrimónio nunca fez qualquer sentido. Agora ainda o faz menos.
- Não valeis mil libras?
- Devíeis estar embriagado quando propusestes essa quantia. Sem dúvida ficareis aliviado quando eu vos libertar desse fardo.
- Ele veio, então? Ela ignorou a questão.
- Assim como para a vossa saúde, é bom que este noivado termine em breve. Ouvi dizer que o meu irmão vos ameaçou.
- Ah, isso.
- Dizem que é quarta-feira.
- Eu espero-o na quinta-feira - corrigiu calmamente. - O vosso irmão sabe que tendes conhecimento disto?
- Certamente. Fui ao encontro dele e disse-lhe que não iria admiti-lo.
- A vossa preocupação enternece-me.
- Sim. Bem, ele não me quis dar ouvidos. Mas, como é óbvio, não ireis encontrar-vos com ele.
- É óbvio que irei.
Ela deteve de novo o cavalo. Joan e Andrew encontravam-se agora bem distantes.
- Não podeis estar a falar a sério.
- Não tenho outra opção.
- Não ireis estar na cidade na segunda-feira. Não podeis prolongar a vossa viagem?
- Algum dia terei de regressar.
- Oh, céus - exclamou, franzindo o sobrolho.
Ele fitou aquele belo rosto, agora toldado pela preocupação.
- Ele não me matará.
- Não é por isso - replicou ela com uma franqueza implacável.
- É só que torna a situação ainda mais complicada. Primeiro um duelo, depois um rapto, depois uma anulação... bem, dará um tremendo escândalo.
- Talvez alguém escreva uma canção acerca do caso.
- Isto não tem piada, David. Devíeis mesmo retirar o pedido ou afastar-vos. A espada de Morvan não é brincadeira. Ele pode não vos matar, mas pode ferir-vos profundamente.
- Sim. Mil libras são uma coisa. Um braço ou uma perna é outra. Espero sinceramente que sejais merecedora disso.
- Como podeis brincar?
- Não estou a brincar. Mas permiti que seja eu a preocupar-me com Morvan, minha senhora. Haverá outros rumores ou mexericos que pretendais discutir?
Tinham-se aproximado da cidade, começando a circundar a sua muralha em direcção a norte.
- Sim. Nem todas as damas que vos conhecem foram tão elogiosas. Lady Catherine falou comigo. E com Morvan.
David aguardou. Não fazia a mínima ideia daquilo que Lady Catherine lhes poderia ter contado.
- Ela explicou-me que vós emprestais dinheiro - disse Christiana em voz baixa, como se não quisesse ser ouvida por quem passava.
Ele quase soltou uma gargalhada perante a circunspecção dela. A rapariga vivia num mundo que já não existia, repleto de cavaleiros virtuosos e honra, e histórias a respeito da Távola Redonda do rei Artur. O rei Eduardo acalentava cuidadosamente estas ilusões na sua corte com os espectáculos, festivais e torneios. A uma milha de distância, dentro dos portões de Londres, o tempo movia-se.
- É verdade. Muitos mercadores emprestam dinheiro.
- A usura é pecado.
- Talvez, mas o empréstimo de dinheiro é um negócio. E amplamente praticado, Christiana, e já ninguém pensa nisso duas vezes. A Inglaterra não podia sobreviver sem eles. Um dos meus empréstimos pecaminosos é para o rei, de acordo com as suas exigências. Dois outros são para as abadias.
- Então só emprestais dinheiro ao rei e às abadias?
- com os outros, compro-lhes as propriedades e torno a vender-lhas mais tarde, a um preço e data pré-acordados.
- com lucro?
- E por que outra razão havia de o fazer senão pelo lucro? Não tenho qualquer relação familiar ou de amizade com estas pessoas. Todavia, muitas vezes, quando volto a vender, a minha gestão melhorou o rendimento, portanto talvez o lucro seja deles.
- Quando o prazo chega ao fim, o que acontece se não puderem comprá-la de volta?
Ele tentara suavizar um pouco a imagem deste negócio para o bem dela, e agora amaldiçoava-se por isso. Jurara a si mesmo que não se desculparia perante esta rapariga por ser o que era.
- Vendo-a a outra pessoa qualquer - respondeu secamente.
- Por que não ficais com ela? - perguntou, depois de reflectir durante algum tempo.
Aquele não era o argumento que ele estava à espera. Ele pensava que ela iria censurá-lo por falta de amabilidade e lançar-se num chorrilho de protestos sentimentais pelos desgraçados que pediam emprestado.
- Não fico com elas devido aos malditos decretos do rei Eduardo, que dizem que um homem com um rendimento proveniente da terra no valor de mais de quarenta libras por ano tem de ser armado cavaleiro. Quase me apanhou por duas vezes.
- O que quereis dizer com "quase vos apanhou"? Ser cavaleiro é uma coisa maravilhosa. São mais respeitados do que os mercadores, e pertencem a uma posição social mais elevada. Melhoraríeis a vossa vida se fôsseis armado cavaleiro.
Ela disse aquilo com simplicidade e inocência, expondo um simples facto da vida. Não tinha consciência do insulto que as suas palavras continham e por isso ele preferiu ignorá-las. Desta vez.
- Bem, eu sou um mercador e sinto-me satisfeito com isso. Era como se alguém lhe tivesse dito que preferia ser um demónio
ao invés de um santo.
- Estais a falar a sério, não é verdade? - perguntou ela com curiosidade. - Não quereis mesmo ser um cavaleiro, pois não?
- Ninguém quer, Christiana. A não ser aqueles que já nasceram para isso. E até mesmo muitos desses procuram evitá-lo. E por essa razão que Eduardo emite aqueles decretos. O reino não possui cavaleiros suficientes para as suas ambições. A posição possui cada vez menos atractivos, por isso Eduardo sobrevaloriza a cavalaria e eleva cada vez mais os cavaleiros para os compensar. - Fez uma pausa. Ele ia desposar esta rapariga, por isso ia tentar explicar-lhe. - Não é cobardia, nem medo das armas. Todos os cidadãos londrinos juram proteger a cidade e o reino. Devemos exercitar-nos nas armas e possuir uma armadura que esteja dentro das nossas possibilidades financeiras. Eu possuo um fato completo do maldito metal. Defendemos a nossa cidade e muitos aprendizes são óptimos arqueiros e Andrew é exímio. Mas se pensardes honestamente na vida militar, tem pouco que se recomende.
- É uma vida gloriosa, repleta de honra e vigor!
- É uma vida de matança, rapariga. Por boas causas ou proveito pessoal, pela honra ou pelo homicídio, os cavaleiros vivem para matar. A verdade é que, apesar de todas aquelas palavras bonitas nas canções, é isso que eles fazem. As guerras deles perturbam o comércio, arruinam a agricultura e incendeiam aldeias e cidades. Quando são vitoriosos, violam as mulheres e pilham tudo o que conseguem.
David havia perdido a paciência e esta longa diatribe saiu-lhe sem querer. Christiana fitou-o como se tivesse sido esbofeteada, e ele arrependeu-se daquela explosão de palavras. Ela era jovem e vivera uma vida protegida. Não devia surpreendê-lo que ela nunca tivesse posto em questão o pequeno mundo protegido no qual vivera.
Fora demasiado duro com ela. Afinal, era do pai e do irmão que ele estava a falar.
- Não duvido que ainda haja muitos cavaleiros que sejam fiéis à sua honra e aos seus votos - disse ele, como que a estender um ramo de oliveira. - Consta que o vosso irmão é um homem de valor.
Aquilo pareceu libertá-la da realidade brutal que ele lançara sobre ela.
- Lady Catherine disse mais alguma coisa que vos preocupe?
- A mim, não. Contou-me que comunicou algo importante a Morvan. Ele limitou-se a dizer-me que não era nada de significativo, e preveniu-me que não devia ser amiga dela.
- E fez bem, Christiana. Não quero que cultiveis qualquer tipo de amizade com essa mulher.
- Parece-me que já tenho idade suficiente para escolher os meus próprios amigos.
- Esta não. Quando nos casarmos, devereis evitá-la.
A irritação dela para com ele era visível, mas não disse nada. Voltou a sua atenção para a estrada à medida que se aproximavam de Smithfield.

CAPÍTULO 6
Smithfield ficava adjacente à muralha norte de Londres. Os comerciantes de cavalos tinham os seus animais presos na periferia da área de corridas, e estava em curso
uma animada negociação. Os compradores exigiam com frequência ver os cavalos a correr antes de os adquirirem, e fora deste modo que haviam surgido as corridas informais. Por sua vez, as multidões atraídas por este espectáculo arrastavam falcoeiros, vendedores ambulantes de comida e artistas, e assim, todas as sextas-feiras, Smithfield, o lugar dos mercados de gado de Londres, transformava-se num festival.
Encontraram um homem com quem podiam deixar os cavalos e mergulharam na multidão. Andrew guiou imediatamente Joan numa direcção oposta à dos seus companheiros. Christiana, ainda absorta nas palavras anteriormente trocadas, não reparou. Caminhava com os braços sob a capa, o rosto pálido ruborizado pelo frio.
- Vamos ver os cavalos - disse David. - Ireis necessitar de um assim que deixardes o castelo.
- Não quero que me compreis um cavalo, David.
- Não ireis continuar a usar os estábulos reais depois de nos casarmos. Encontraremos hoje um cavalo apropriado.
- Depois de eu me casar, não vou montar o vosso cavalo apropriado, uma vez que não me vou casar convosco.
- Nessa altura, vendê-lo-ei. Vamos aproveitar que ainda estais aqui para poderdes escolher e vamos ver se há algum. Pelo sim pelo não.
Christiana reprimiu o desejo de se mostrar obstinada e caminhou ao lado dele para irem inspeccionar os animais.
Enquanto avançavam pelo campo a examinar e a discutir os cavalos que viam, depararam-se com diversas possibilidades. Perto do final do circuito, encontraram um cavalo muito apropriado, um pequeno e belo palafrém negro. O proprietário forneceu uma sela e Christiana experimentou-o. Enquanto David chegava a acordo com o homem e tratava que o cavalo fosse entregue nos estábulos de Westminster, ela perscrutou a multidão em busca de Joan e Andrew, há muito ausentes. O campo era demasiado grande e encontrava-se demasiado apinhado de gente para ela conseguir encontrá-los. Era mesmo de Joan esquecer a razão pela qual viera.
Nesse momento, surgiu um bear baiter1 e algumas bailarinas para o entretenimento. Christiana não tinha qualquer interesse no urso, mas as bailarinas fascinavam-na. Na corte, fazia os possíveis por nunca perder um espectáculo de dança, fosse ele qual fosse. Este grupo era bastante rústico e sem grande preparação comparado com outros que ela vira, mas mesmo assim seguiu os seus movimentos ao ritmo simples da música durante bastante tempo. De certa forma, invejava aquelas mulheres a quem era permitido deixar que a música as envolvesse, cujos corpos se moviam e arqueavam tal como imagens em movimento.
- Eu gostaria de ter sido bailarina.
- Vós dançais em banquetes e festins, não é verdade? - inquiriu David.
Christiana enrubesceu. Não se apercebera de que falara em voz alta.
- Sim. Mas isso é diferente. Isso é como uma conversa ao jantar. Aquilo - prosseguiu, apontando para as mulheres - é como uma meditação, penso eu. Por vezes parece-me ver algumas delas em êxtase, como se já nem sequer se apercebessem do mundo à sua volta.
Ela sentiu os olhos dele fixos nela e desviou o olhar do espectáculo para o fitar. O rosto dele ostentava aquela expressão penetrante que lhe dirigia por vezes. Havia algo de invasivo naquela atenção insistente que nunca deixava de lhe causar um certo desconforto.
1 De bear-baiting, desporto medieval muito em voga até ao século XIX, que consistia em manter um urso amarrado enquanto os cães o atacavam. (N. da T.)
É como se eu fosse feita de vidro, pensou ela. Não era justo que ele conseguisse fazer aquilo. Ele sabia como permanecer sempre opaco para ela.
- Penso que faríeis uma bela bailarina - disse ele. - Se pensais que dançar desta maneira vos dará prazer, então deveis fazê-lo.
Finalmente, as bailarinas fizeram um intervalo e a multidão que se reunira em torno delas dispersou-se.
- Devíamos procurar Joan - sugeriu ela, espreitando pela multidão.
- Tenho a certeza de que nos cruzaremos, caso contrário, encontrar-nos-emos junto aos cavalos.
Christiana juntou-se a ele e ambos examinaram os artigos que os vendedores comercializavam. Perguntava a si mesma o que andaria Joan a aprontar com aquele aprendiz, e o que diria Lady Idonia se descobrisse que Christiana a perdera de vista.
Um dos vendedores oferecia iguarias de pão frito ensopado em mel. O odor que provinha do óleo quente era delicioso, e ela lançou-lhe um olhar de desejo quando passaram
por lá. Era um alimento gorduroso e peganhento e exactamente o tipo de acepipe que Lady Idonia não permitia que ela comprasse quando iam a festivais.
David reparou e foi comprar alguns.
- Decerto vai manchar a minha roupa - disse ela, repetindo a razão que Idonia sempre expusera para evitar tais alimentos.
- Cá nos arranjaremos.
Ele pegou num pedaço de pão delicioso e, com um gesto, indicou-lhe que o seguisse em direcção a umas árvores por detrás da banca.
Os vendedores delimitavam a multidão e o campo, e não havia ninguém por ali.
David partiu um pedaço do pão coberto de mel e estendeu-lho. Ela esticou a mão para o agarrar mas
ele afastou-o.
- Não há razão para ficarmos ambos cobertos de mel - explicou ele, e aproximou a massa dos lábios dela.
Exalava um odor quente, agradável, doce e maravilhoso. Abrindo bem a boca para evitar os dedos que o seguravam, esticou o pescoço e comeu o pedaço à sua frente.
Tinha um paladar divinal e ela revirou os olhos de prazer.
Ele riu-se e quebrou outro pedacinho. Ela esticou-se para o morder.
- Devo assemelhar-me a uma galinha - gracejou Christiana por entre risadinhas abafadas, e com a boca cheia.
Os dedos longos voltaram a estender-lhe um pedaço. Ela sentiu algum mel escorrer pelo lábio e tentou apanhá-lo com a língua. David limpou-o com um movimento rápido e suave, a ponta do dedo a roçar a boca dela. O lábio inferior de Christiana estremeceu com a sensação, provocando-lhe um formigueiro no rosto e no pescoço.
O último pedaço era demasiado grande, por isso teve de o morder. Os seus dentes mordiscaram os dedos dele e Christiana enrubesceu, embaraçosamente consciente daquele contacto. David ainda segurava o que restava da iguaria. O olhar dela repousava naquela bela mão enquanto mastigava rapidamente e depois, com hesitação, apoderou-se do último pedaço.
Desta vez a mão dele não se afastou e seguiu a cabeça dela. Os dedos dele roçaram os lábios dela e aí permaneceram. De súbito, Christiana sentiu a massa muito espessa dentro da sua boca.
Ergueu os olhos para ele e viu a ligeira dureza em redor da sua boca. As pálpebras de David cerraram-se enquanto observava os lábios de Christiana a moverem-se sob a sua mão. Instalou-se entre eles uma estranha quietude e ela engoliu com dificuldade o último pedaço de massa doce.
com um movimento estudado e um olhar atento, David passou o dedo a toda a volta da boca dela, recolhendo o mel que aí se acumulara, e depois epalhou toda aquela doçura pelos seus lábios.
Ela sentiu um desejo súbito e escandaloso de lamber o mel que restava naqueles dedos. Ele fitou-a intensamente, como se compreendesse, e passou, um a um, os dedos pela boca, num convite insistente ao seu impulso, acumulando aquele néctar delicioso nos seus lábios.
Aquele gesto hipnotizou-a. Os sons do campo e das corridas esmoreceram até se tornarem num rumor distante. No silêncio tranquilo que a absorvia, conseguia escutar o bater desenfreado do seu coração, provocado pela leve pressão de cada pequena carícia. A intensidade que sempre sentira emanar dele envolveu-a.
Quando terminou, David fitou-a durante um longo momento. Depois, agarrou-a abruptamente pela mão e puxou-a para as árvores.
Ela caminhou aos tropeções atrás dele, sem cooperar, mas também sem oferecer resistência. A expectativa era tal, à medida que abandonavam o santuário do campo, que Christiana ficou sem fôlego. Dizia a si mesma que não queria fazer isto, que não iria com ele, mas foi.
Ele arrastou-a para debaixo de um carvalho gigantesco. com um braço em redor dos seus ombros, cingiu-a num abraço. O outro braço deslizou sob a capa e rodeou-lhe a cintura, pressionando o corpo de Christiana contra o seu enquanto a beijava.
Todas aquelas novas sensações que a haviam apanhado de surpresa tão insidiosamente da última vez explodiram abruptamente em simultâneo. Era como se tivessem estado cuidadosamente enclausuradas durante duas semanas e agora ele tivesse aberto o portão, libertando-as num frenesim. A intimidade do abraço provocou em Christiana uma sensação inebriante, e um frémito avassalador e sensual percorreu-a desde o pescoço até às coxas.
David começou a beijá-la com mais suavidade, lambendo demoradamente o mel enquanto a cingia ainda mais de encontro a si. Christiana tornou-se subitamente muito alerta, mas apenas para ele e para cada contacto ardente da sua boca. A consciência de tudo o resto dissipou-se sob as impressionantes vagas de calor que percorriam, lenta e continuamente, o seu corpo.
A língua dele roçou os lábios dela, convidando-a a abrir-se para ele. com o único fio de raciocínio que lhe restava, Christiana manteve a boca firmemente fechada. Ele sorriu antes de iniciar, com a boca, um percurso descendente.
Teria ela lançado deliberadamente a cabeça para trás para que ele pudesse alcançar a concavidade na base do seu pescoço? Ela não tinha a certeza, mas subitamente a boca dele encontrava-se lá e os braços dela em volta dos ombros dele, e ambas as mãos de David mantinham-na firmemente segura sob a capa, vergando-a aos seus beijos.
Christiana foi-se tornando cada vez mais consciente de cada toque, de cada beijo e de cada reacção estranha e maravilhosa que sentia. Os seus braços erguidos aproximavam ainda mais o seu corpo do dele, e ao sentir, através do tecido das suas vestes, os músculos e o calor que emanava dele, experimentou uma sensação de formigueiro nos seios. A pressão das mãos de David em torno da cintura dela era simultaneamente perigosa e reconfortante. Foi-se tornando também muito consciente de uma outra coisa, de algo imperioso e expectante, ligado à tensão oca que se espalhava pelo seu ventre. Era isso, quase tanto quanto as deliciosas sensações, que a impedia de o deter. A mente de Christiana reflectiu, de uma forma vaga e entorpecida, que David estava a atraí-la para algo que não compreendia bem.
Ele beijou-lhe novamente a boca, e as suas mãos moveram-se. Lenta e suavemente, foi-lhe acariciando o corpo sob o manto, os dedos a demorarem-se junto aos contornos arredondados dos seus seios. De uma forma chocante e insistente, moveram-se ao longo das suas costas, sobre as nádegas e pelas coxas acima. A tensão no seu ventre afligia-a, e algures, no mais íntimo de si sentia uma exigência pulsante.
Uma mão permaneceu na anca, mas a outra moveu-se num sentido ascendente. Ela sabia o que ele ia fazer. Recordou-se da pressão esmagadora de Stephen e o seu corpo retesou-se, quase regressando a si, quase encontrando as forças para o afastar.
Mas ele não a esmagou. Os dedos dele acariciaram a pele em volta dos seios, de uma forma suave e delicada, atormentando-a e levando-a a uma ansiar, desesperada, por algo, não sabia bem o quê. A respiração dela acelerou para um ritmo ofegante, enquanto o seu corpo aguardava.
Quando David finalmente lhe acariciou o seio, ela reprimiu um gemido. O prazer sobressaltou-a e Christiana tentou libertar-se daquele abraço.
Mas David não a libertou. Beijando-a de uma forma maravilhosa e acariciando-a com suavidade, David conseguiu invocar sensações deliciosas.
Os dedos dele tocaram-na como se não existisse nenhum tecido entre ele e a pele dela. Encontraram o mamilo e brincaram com ele até aquela sensação palpitante entre as suas coxas se tornar praticamente insuportável. Ele segurou no botão duro e ávido entre o polegar e o indicador e friccionou-o suavemente.
Desta vez, ela não foi capaz de evitar soltar um gritinho.
A boca dele deslocou-se até à orelha dela e beijou-a com insistência, e depois a bela voz de David fluiu para dentro dela.
- Vamos para minha casa. Fica apenas a alguns minutos daqui pelo portão.
- Porquê? - murmurou ela, ainda entorpecida pela languidez e sensualidade que a mão dele provocara.
- Porquê? Para já porque deveis visitar e conhecer as pessoas que ali residem - respondeu, erguendo a cabeça para lhe beijar a têmpora e a fronte. A mão dele continuava a acariciá-la e era-lhe por isso difícil prestar atenção ao que ele dizia. - E depois porque sou demasiado velho para fazer amor atrás de árvores e vedações.
A atribuição de um nome ao que estavam a fazer veio intrometer-se entre eles como um ruído forte num sonho. Christiana voltou imediatamente a escutar à sua volta o estrondo das corridas, e a mão dele no seu corpo pareceu-lhe subitamente um acto escandaloso. Ardendo de vergonha, afastou o olhar.
- Isto está errado - proferiu ela.
- Não, está muito certo.
- Sabeis o que quero dizer.
Afastou a mão do seio dela, mas manteve-a segura.
- O vosso amante deu-vos assim tanto prazer? - perguntou ele suavemente.
Ela enrubesceu ainda mais. Não conseguia encará-lo.
- Bem me pareceu que não.
- Foi diferente - retrucou, num tom acusador. - Nós estamos apaixonados. Isto é... é... - O quê? O que era esta coisa horrível e maravilhosa?
- Desejo - declarou ele.
Então era isto o desejo. Não era de admirar que os padres pregassem sempre contra ele. O desejo parecia realmente algo perigoso.
- Bem, minha menina, se eu tivesse de ter um sem o outro, optaria por este - explicou ele. - O desejo pode desenvolver para algo mais, mas se ele não existir desde o início, nunca existirá, e o amor morrerá sem ele.
Ele estava a dar-lhe lições novamente, como se ela fosse uma criança. Ela detestava que ele fizesse aquilo.
- Isto está errado - repetiu ela num tom firme, empurrando-o um pouco, impondo alguma distância entre os seus corpos. Sabeis que sim. Estais a seduzir-me. Não é justo.
- A seduzir-vos? Por que razão faria isso?
- Sabe-se lá por que razão estais a fazer tudo isto? Para começar, por que motivo me pedistes em casamento? Por que pagais um preço pela noiva? - Ela observou-o com atenção. - Talvez pretendais levar-me para o vosso leito para que o noivado não possa ser anulado quando ele vier buscar-me.
- É uma boa ideia. Mas isso nunca me ocorreu, porque eu sei que ele não virá.
Ele dissera aquilo desde a primeira noite. E repetira-o de uma forma calma e inexorável.
- Não podeis saber isso - retorquiu ela asperamente.
Mas desta vez houve algo na voz dele que a alarmou. Como se ele soubesse. Como se de alguma forma ele soubesse.
- Ele não está aqui, Christiana. Ele já recebeu a vossa mensagem há muito tempo.
- Talvez não. Talvez o mensageiro não o tenha conseguido encontrar.
- Eu falei com o mensageiro que contratastes. Ele entregou a carta nas mãos do homem a quem ia dirigida dez dias depois de a terdes escrito.
- Falastes...interferistes nisto? Como vos atreveis!
- E ainda bem que o fiz. O vosso mensageiro não tinha qualquer intenção de partir imediatamente para cumprir a vossa missão. Planeava aguardar que um outro encargo o levasse até ao Norte. Podiam decorrer semanas. E mesmo nessa altura, podia tê-la entregue pelo caminho a um sem-número de outras pessoas e poupar uma viagem.
- Mas partiu de imediato, por vós? E entregou-a em mãos?
- Recompensei-o com uma bela soma para o fazer. E para lhe pedir que trouxesse uma resposta.
Ela não recebera nenhuma carta de resposta. Sentiu uma tristeza avassaladora. Não queria escutar as palavras de David, não queria pensar nas implicações. O mensageiro já havia regressado há algum tempo. Se ele tivera tempo de regressar, Stephen também já podia tê-lo feito. Podia, pelo menos, ter enviado um bilhete. Mas talvez
o mensageiro tivesse admitido estar às ordens do noivo dela, e Stephen preferisse não arriscar.
Felizmente, a sua fúria para com David frustrou os seus maus pressentimentos, ou teria desfalecido ali mesmo.
- É isto que apreciais? Destruir as vidas das pessoas? - inquiriu, fitando-o com um olhar feroz.
Ele lançou-lhe um olhar duro, mas que rapidamente se suavizou. A mão dele afastou-se das suas ancas e acariciou-lhe o rosto.
- Na verdade, custa-me muito ver-vos sofrer.
- Então ajudai-me - bradou impulsivamente. - Libertai-me e ajudai-me a ir até junto dele.
Ele olhou para ela de uma forma que a fez sentir-se transparente.
- Não, porque ele não vos quer o suficiente para ficar convosco, menina, e eu descobri que quero.
Por um instante, enquanto os olhos dele a observavam, Christiana pensou ter vislumbrado alguma hesitação, pareceu-lhe que ele poderia realmente fazer o que lhe estava a pedir. Mas a resposta dele aniquilara aquela vaga esperança. Numa atitude petulante, libertou-se dos braços dele com um safanão e afastou-se.
- Quero voltar para Westminster, imediatamente.
Sem uma palavra, David conduziu-a de regresso ao local onde se encontravam os vendedores e para junto de uma mulher que vendia peças de renda. Dirigiu algumas palavras à mulher e depois voltou-se para ela.
- Esta é a senhora Mary. Ficai junto dela enquanto eu vou procurar Andrew e Lady Joan. Não vos afasteis daqui - ordenou antes de desaparecer por entre a multidão.
Christiana teve a impressão de que ele queria evitar a presença dela e também se sentia satisfeita por ele se ter afastado. Dava-lhe ordens da mesma forma que Morvan, e ela não gostava nada disso. Cavalgaremos para norte. Compraremos um cavalo. Ficai aqui e não vos distancieis. Sentia-se feliz por não ter de desposá-lo.
Viver com ele seria como ter o irmão sempre por perto, a criticar continuamente o seu comportamento. Lady Idonia podia ser sempre ludibriada, não era difícil desobedecer-lhe. Este homem seria demasiado astuto para isso.
Sentia-se feliz por ele ter partido por outra razão. Nunca conseguia ter paz com ele por perto. Sabia agora que tinha a ver com aquilo que acabara de acontecer sob a árvore. Alguma dessa excitação, dessa ardência, pairava entre eles até mesmo quando cavalgavam pela Strand e conversavam. Bastava a evocação desses sentimentos maravilhosos para sentir de novo aquele formigueiro pelo corpo.
Ele dera-lhe o nome de desejo. Não lhe agradava muito este desejo. Não lhe agradava muito o facto de tecer laços invisíveis entre eles. A excitação que sentira com Stephen parecia algo insignificante e infantil em comparação com aquilo, e isso também não era do seu agrado.
Stephen. Ele ainda não viera, nem sequer enviara uma carta de resposta... sentiu no peito o aperto de uma dor horrenda e fria. Não queria pensar nisso, não duvidaria dele. Não pretendia, muito em especial, pensar nas implicações que isso teria relativamente a ela e David de Abyndon.
- Aqui estais vós! - Joan apareceu a saltitar na direcção dela, acompanhada de Andrew.
Christiana lançou um olhar à amiga. Joan estava com uma aparência afogueada e bela. Tinha um pedaço de feno no cabelo.
- Sim. Estou aqui. David foi procurar-vos e ordenou-me que ficasse aqui como uma criança. - Reparou no pedaço de feno e retirou-lho do cabelo. - Onde estivestes?
- Oh, por toda a parte - exclamou Joan. - Isto é muito mais divertido quando Lady Idonia não está connosco.
- Imagino. - Ergueu o feno e franziu o sobrolho. Andrew corou e afastou-se.
- Havia um vagão de feno sob uma árvore - respondeu Joan, encolhendo os ombros. - Trepámos a árvore e saltámos. Foi muito divertido.
- Pensei que estáveis enamorada de Thomas Holland.
- E estou. Só estivemos a brincar.
- Joan! Ele é um aprendiz!
- Oh, sois tão má quanto Idonia. Só nos beijámos uma vez.
- Beijaram-se... pelo amor de Deus!
Os olhos de Joan estreitaram-se. - Foi apenas um beijo. Não é como se eu fosse desposá-lo.
Ela disse-o de ânimo leve, mas a advertência era inequívoca. David fora um aprendiz como Andrew, e Christiana ia desposá-lo. Adoro-vos, diziam a voz e os olhos dela, mas não estais em posição de me criticar.
Uma emoção nova e triste interpôs-se. Joan estava a demonstrar que sentia piedade dela. Todos eles sentiam piedade dela, não era verdade? Todo o desejo e prazer do mundo não eram suficientes para contrabalançar isso, pois não?
Nessa altura, David emergiu da multidão. Reuniu-os em silêncio e liderou-os no percurso até junto dos cavalos.
- Parece zangado - sussurrou Joan. - O que lhe fizestes? Era mais uma questão do que não tinha feito, suspeitava Christiana.
Ainda assim, sentia-se bastante satisfeita por ele estar enfurecido. Talvez por esta ser a primeira emoção evidente que via nele. Era a primeira vez que sabia o que ele estava a pensar.
Recuperaram os cavalos e dirigiram-se a Westminster. Joan e Andrew ficaram para trás e começaram de novo a conversar, mas David tentou cavalgar a um passo acelerado. De início, Christiana tentou acompanhá-lo, mas depois limitou-se a abrandar o passo do seu cavalo e deixou-o ir na frente. Aos poucos, também ele começou a abrandar e a cavalgar ao lado dela. O facto de o ter forçado a fazer aquilo divertiu-a.
O silêncio dele tornou-se opressivo, e depois de reparar, com um suspiro, que ele amuava tal como Morvan, deixou de lhe prestar atenção. Ocupou a mente com especulações acerca da casa de Stephen em Northumberland. A preocupação que David despoletara nela por ele ainda não ter regressado ou escrito uma carta de resposta não tardou a desvanecer-se à medida que ia encontrando uma variedade de desculpas pelo seu atraso em escrever ou regressar.
- Estais novamente a pensar nele, não é verdade? - A voz dele, forte e suave, intrometeu-se nos seus pensamentos.
- O que vos faz dizer isso? - inquiriu, sentindo-se culpada.
- A expressão do vosso rosto, rapariga. Está estampado no
vosso rosto.
Ela sentia-se muito segura de que a sua expressão não revelava nada quando pensava em Stephen. Na verdade, fazia os possíveis por isso. Mas a verdade é que David conseguia sempre ver mais e saber mais acerca dela do que ela pretendia.
- Sois uma cobarde, Christiana - disse ele suavemente, mas a pontinha de irritação era inequívoca. - Dir-se-ia que sou demasiado real para vós. Recusais-vos a ver a realidade. Recusais-vos não só a ver que o vosso amante não vai regressar e que este matrimónio vai mesmo acontecer, como também a realidade em relação a nós.
- Não existe nenhuma realidade a enfrentar acerca de nós.
- Eu quero-vos e vós quereis-me. Isso é muito real. Mas não rima com a canção que compusestes, pois não? Continuais a viver de acordo com as palavras que escrevestes na ignorância acerca deste homem e de vós mesma.
- Eu não vivo de acordo com nenhuma canção.
- É evidente que sim. Duelos e raptos são coisas das canções, não da vida real. Os alaúdes tocam quando pensais no homem que vos usou? As vossas memórias são tão coloridas como as que adornam as imagens pintadas nos tecidos ou nas tapeçarias?
Ela afastou o olhar, estremecendo ao ouvir estas palavras ásperas que exprimiam um entendimento da sua mente que ninguém deveria ter. De súbito, sentiu-se novamente indefesa contra os temores que aquelas palavras suscitaram nela. Ele era horrível ao dizer que Stephen a usara. Era cruel. Odiava-o.
- Devia enviar-vos até ele para verdes como terminava a vossa canção. - Disse ele num tom de voz áspero e irritado.
- Então, por que não o fazeis? - exclamou ela.
Ele deteve ambos os cavalos. A mão dele aproximou-se e segurou-lhe o queixo. Ela resistiu ao gesto firme.
- Olhai para mim - ordenou.
Ela voltou deliberadamente o rosto. As mãos dele forçaram a cabeça dela a voltar-se para ele. Os olhos azuis de David faiscaram com algo perigoso.
- Porque ele ia usar-vos uma vez mais antes de ser honesto convosco. O passado é uma coisa, mas agora pertenceis-me. Não permitirei que mais ninguém vos possua assim tão facilmente. Nunca vos esqueceis disso.
Subitamente, apercebeu-se de que o mau humor dele estava relacionado com algo mais do que simplesmente a sua recusa. Envolvia algo mais sério. Tinha a ver com ele, com ela e com Stephen.
Teria ele ciúmes? De Stephen? Não era nada comum nele mostrar as suas reacções, e a sua ira era bem intensa e visível. Seria esta emoção uma daquelas que ele não estava habituado a controlar?
A ira libertava algo de assustador neste homem, e perturbava-a especialmente o facto de o próprio medo parecer estar ligado àquela outra tensão que parecia existir sempre entre eles.
Quando finalmente chegaram, Westminster pareceu-lhe um refúgio, um abrigo de uma tempestade. Desceu do cavalo antes que alguém pudesse auxiliá-la e correu para dentro sem sequer olhar para trás, para David de Abyndon.

CAPÍTULO 7
Christiana ergueu os joelhos e repousou a cabeça na extremidade da ampla banheira de madeira. A água quente quase chegava ao topo e, posicionada assim, podia flutuar um pouco naquele calor tranquilizante. Uma tenda circular de linho circundava a banheira e conservava o vapor, criando um ambiente húmido e abafado que acalmava os seus músculos tensos.
O castelo estava praticamente vazio quando ela chamara os criados para que lhe preparassem este banho. Um rumor que se difundira por Westminster, dizendo que Morvan
se ia encontrar com David de Abyndon na Ponte de Londres, atraíra os cortesãos enfadados como moscas a um doce. Idonia ficara com ela, mas Isabele e Joan tinham-se
unido a um grupo que incluía o jovem príncipe e Thomas Holland.
Nem todas as pessoas aprovavam este duelo. Alguns dos cavaleiros mais idosos consideravam pouco cortês desafiar um mero mercador, mas até mesmo eles compreendiam
a fúria de Morvan. Uma vez que o duelo ia ser público, todas as pessoas assumiam que Morvan pretendia apenas humilhar David, e isso também o tornava mais aceitável. Afinal, estes mercadores esqueciam com muita frequência o seu lugar. Ao esmagar David, Morvan estaria a recordar a todas as pessoas em Londres que, naquilo que era importante, a riqueza jamais poderia substituir a linhagem e a nobreza.
Christiana fechou os olhos e tentou esquecer o aperto que sentia no estômago. Rezava para que David tivesse adiado o seu regresso a Londres como ela havia aconselhado. Já formulara bastantes orações neste sentido durante os últimos dias, à medida que este duelo se aproximava. Não pretendia ver
David magoado. Ele tornara-se uma espécie de amigo, e Christiana tornara-se cada vez mais dependente da sua presença.
Começara a pensar bastante nele desde aquele dia em Smithfield. Por vezes recordava-se da voz suave que escutara no corredor privado do rei. Quanto mais pensava nisso, mais lhe parecia ser David a pessoa que fora abordada por Frans van Horlst. Outras vezes, a sua mente vagueava para a recordação de ambos sob o carvalho. Aquelas memórias eram ao mesmo tempo envolventes e perturbadoras, e tinham tendência para surgir na sua mente quando ela menos esperava.
Qual das opções seria pior? Se David já tivesse regressado da viagem, defrontaria o seu irmão diante de centenas de pessoas e ele forçá-lo-ia a fazer figura de imbecil. Se não tivesse regressado, ficaria conhecido como cobarde. Morvan e a corte provavelmente preferiam esta última. A lição seria ensinada sem que tivessem de recorrer às armas.
Morvan estava a fazer isto por amor a ela, e por preocupação pela honra da família, mas Christiana teria preferido que ele se tivesse mantido à parte do assunto. Só estava a piorar uma situação já complicada, e podia arruinar completamente os seus planos. Será que Morvan pensava que a humilhação obrigaria David a retirar o pedido de casamento? O mais certo era torná-lo ainda mais obstinado. Podia até voltar atrás com a sua palavra de a deixar partir com Stephen.
É certo que Stephen ainda não viera, e que o casamento se realizaria dentro de doze dias. Tentou não pensar nisso, mas estava a tornar-se cada vez mais difícil. Uma coisa era esperar pacientemente, outra era ver o sol pôr-se todos os dias implacavelmente nos seus sonhos por realizar. Ultimamente, dera por si a prestar mais atenção ao som dos cascos dos cavalos sempre que se encontrava no exterior. Talvez ele estivesse a planear um rapto dramático para breve. Imaginava-o a cavalgar ao longo da estrada paralela ao rio, com os seus companheiros mais chegados à sua espera, talvez mesmo no dia anterior ao casamento. Aguardaria assim tanto tempo? Como é que conseguiria chegar até ela e retirá-la de casa? Havia sempre tantas pessoas nas redondezas.
Sentou-se abruptamente.
Não havia quase ninguém no castelo naquele momento.
Não se vira Morvan em parte alguma durante a manhã à medida que o rumor acerca do duelo na ponte de Londres se disseminava pela corte. Quem dera início àquele burburinho? O próprio Morvan? Ou outra pessoa que desejava que Westminster ficasse liberta de toda a sua guarda essencial?
Uma excitação estonteante tomou conta dela. Seria hoje que Stephen viria buscá-la? Se assim fosse, o plano era audacioso e brilhante. Ela não podia ter a certeza, mas de repente tudo fazia sentido. Se Stephen tivesse tomado conhecimento do duelo e da sua localização através de um dos seus amigos daqui, podia muito bem usar essa informação para seu proveito. Não se apercebera de que ele era assim tão astuto.
Sorrindo alegremente, lavou-se num ápice. Levou uma mão ao cabelo preso acima da sua cabeça e reflectiu se teria tempo de o lavar
e secar.
O seu braço paralisou-se ao escutar o som de botas a entrarem no quarto de vestir onde se encontrava a banheira, diante da lareira.
Não podia crer! Finalmente! Afastou a cortina com alegria para saudar o seu amor.
O seu olhar caiu sobre umas belas botas de couro e um gibão azul, simples e despretensioso. De um cinto pendia uma espada e de outro pendiam duas adagas. Olhos de um azul profundo observavam-na, lendo os seus pensamentos como se fosse feita de vidro.
- Aguardáveis outra pessoa? - questionou David. Desapertou o cinto da espada e pousou a arma sobre uma das
arcas que se alinhavam contra a parede do quarto de vestir. Ela deixou cair a cortina e mergulhou na água.
- Não. Só que não estava à espera de vos ver aqui agora - respondeu através da cortina de tecido.
- Eu disse-vos que viria, mas talvez pensásseis que eu estava morto.
- Gravemente ferido, pelo menos, se fôsseis suficientemente louco para irdes ao encontro dele. Por que razão não estais? Aquilo não saiu como ela planeara e fez uma careta. Parecia que estava aborrecida por ele estar bem.
- Eduardo impediu-o, tal como eu sabia que faria. Está a contar com o dinheiro que vou pagar pela noiva.
Ouviu-o encaminhar-se para a parede junto à porta. Mas não saiu. E se ela estivesse certa e Stephen viesse agora? Encontraria David aqui. Morvan não derramara sangue, mas talvez Stephen o fizesse.
- Tendes de ir, David.
- Não me parece.
- Devo terminar o meu banho. Encontrar-me-ei convosco no salão daqui a pouco.
- vou ficar por aqui. Está quente e um ambiente muito agradável.
Ela bateu com a mão na água, furiosa.
- Estais a confiar muito na capacidade dramática e na inteligência dele, minha menina. Stephen Percy não está em Londres nem em Westminster. Não virá hoje nem nos tempos mais próximos.
Ela mergulhou os ombros na água. Ele sabe o que eu estou apensar. Ele sabe o nome de Stephen. Haverá alguma, coisa que ele não saiba?
- Enviei toda a corte para a Ponte de Londres, Christiana. Não queria que ninguém seguisse o vosso irmão até ao local onde efectivamente nos iríamos encontrar.
- Porquê? Para que ninguém pudesse vê-lo vencer-vos?
- Não. Para que, se ele me forçasse a matá-lo, eu pudesse mentir-vos de modo a que vós jamais soubésseis a verdade.
Um profundo silêncio invadiu o quarto. Era absurdo, evidentemente. David jamais conseguiria magoar Morvan. No que tocava à destreza com as armas... e contudo...
Passos aproximaram-se da banheira. A cortina abriu-se e ele entregou-lhe uma toalha através da abertura.
- Já chega por hoje. A água deve estar a arrefecer. Saí e secai -vos.
Ela pegou na toalha e fechou violentamente a cortina com um safanão. Esperou que ele se afastasse. A água estava efectivamente a arrefecer e o vapor havia desaparecido. Estava a ficar frio no banho.
- Chamai a criada, por favor. Ela está no quarto.
- Eu mandei-a embora.
Ela observou a sua nudez. Escutou o silêncio do castelo vazio. Pensou nas suas roupas empilhadas num banco junto à lareira.
O banho estava a perder rapidamente o seu calor, mas o calafrio que a sacudiu não tinha nada a ver com a água.
- Idonia deve chegar dentro em breve, David. Deixar-me-á muito constrangida se ela vos encontrar aqui.
- Lady Idonia decidiu ir passear com Sieg. Um passeio muito longo, ao que parece.
Christiana ficou visivelmente irritada perante este jogo que ele jogava com ela. Pegou na toalha e ergueu-se na banheira, secando os braços e o corpo com movimentos apressados.
Mostraria a este mercador de que estofo eram feitas as mulheres da nobreza.
Enrolou a imensa toalha de linho em volta do corpo, segurando as pontas sob os braços. Saiu da banheira e afastou a cortina com uma perna. A água que lhe escorria das pernas começou a formar poças no soalho de madeira.
Ele estava sentado sobre um enorme baú junto à lareira, de costas para a parede e com um braço pousado sobre um joelho erguido. O seu olhar frio encontrou o dela e depois começou a descer de uma forma vagarosa. Ela reprimiu o pânico que se avolumava no seu peito.
Ele colocara outro cepo no lume, e o pequeno quarto de vestir que albergava os baús onde Isabele guardava os seus vestidos e peles, encontrava-se bastante quente. Christiana sentou-se num banco junto à banheira e começou a dar pancadinhas com a toalha nas pernas para as secar. Não olhou para ele, mas sabia que ele a observava. Esforçou-se bastante para não o deixar perceber que a sua presença a perturbava.
- Como é que soubestes o nome dele? - perguntou, sentindo-se orgulhosa do tom despreocupado da sua voz. Quase tão despreocupado e plácido quanto a dele na maioria das vezes. Excepto quando estava com ciúmes. Lamentou-se interiormente pela sua estupidez. Talvez fosse melhor evitar falar de Stephen Percy, tendo em conta as circunstâncias.
- Soube quem ele era desde o início. Não vos mostreis tão surpreendida. Dissestes-me tudo à excepção do nome dele na primeira noite. Também sei que não sois a primeira rapariga inocente a quem ele seduz, nem sereis a última. Alguns homens têm um gosto especial nisso, e ele é um deles.
As palavras dele esquadrinhavam pensamentos proibidos enterrados profundamente no seu coração, pensamentos que tinham tentado vir à superfície durante a noite, quando permanecia deitada na cama a contar os dias que passavam e os que faltavam. Havia afastado essas preocupações para um recanto escuro, e rebelava-se contra o facto de este homem se aproximar delas.
Fulminou-o com o olhar. Está ali sentado com tanta calma, pensou ela. Olha para mim como se tivesse o direito de aqui estar. Como se eu lhe pertencesse. Preparou-se para os sentimentos de vulnerabilidade e tensão que aquele olhar provocava.
- Odeio-vos - murmurou. As pálpebras dele baixaram-se.
- Cuidado, rapariga. Posso decidir encorajar o vosso ódio. Descobri que prefiro isso à vossa indiferença.
Ele deu um pulo da arca. O movimento fê-la retesar-se.
- Ainda aguardais por ele - disse. - Depois de todo este tempo, e quando a verdade é tão óbvia. Ainda bem que Eduardo me deu a vossa mão em casamento, caso contrário teríeis passado toda a vossa vida à espera e a viver num sonho desvanecido.
- Talvez o faça à mesma. - Ela pronunciou aquelas palavras como uma ameaça arrojada.
- Não. Despertareis hoje.
David deu um passo na direcção dela. Christiana ergueu-se imediatamente do banco, apertando com firmeza a toalha em seu redor e recuando. Ele deteve-se.
Ela não gostava da forma como ele a observava. Pior ainda, não gostava da forma como ela própria estava a reagir a esse olhar. Apesar de toda a sua irritação, percorreu-a um arrepio de expectativa. As recordações intensas e vívidas do prazer que sentira em Smithfield impunham-se à força nos seus pensamentos e no seu corpo.
- Parti, exijo-vos - implorou.
- Agora o vosso irmão está fora disto - respondeu, abanando a cabeça -, assim como Stephen Percy. Não houve duelo e não haverá nenhum rapto. Finalmente, restamos apenas nós os dois.
O coração dela batia com força, desesperado.
- Estais a assustar-me, David.
- Pelo menos tenho a vossa atenção, para variar. Além disso, já vos disse antes, não é medo que sentis comigo.
- Agora é. - E era. Um misto terrível e maravilhoso de medo, expectativa, atracção e recusa. Tal como os fios de uma corda entrelaçados uns nos outros, estes sentimentos retorciam-se e emaranhavam-se, puxando pela sua alma. Se ele não partisse, estava certa de que algo se quebraria.
- Se não partis, fá-lo-ei eu. - Ela conseguiu, de alguma forma, encontrar serenidade suficiente para falar com calma.
- Não vos deterei, Christiana - disse, apontando para a pilha de roupas sobre o banco.
Para sair dali teria de passar por ele. Seria imaginação dela ou aqueles olhos azuis estavam a incitá-la a aproximar-se? Ele está a, gostar disto, pensou, e a ira tomou conta dela mais uma vez, vencendo todos os outros sentimentos durante um momento e dando-lhe coragem.
A filha de Hugh Fitzwaryn não devia temer um simples mercador, pensou resoluta. Uma mulher nobre podia caminhar ao longo da Strand completamente nua que o seu estatuto protegê-la-ia, cobrindo-a como uma armadura de aço. Quantos costureiros e retroseiros do mesmo grau de David a tinham visto despir-se e ficar em combinação enquanto aguardavam pela princesa e pelas suas amigas? Esta toalha cobria-a ainda mais. Tais homens não existiam se ela se mentalizasse disso.
Sim. Esse seria o caso com David de Abyndon.
Baixou os olhos e recompôs-se. Imaginou que ele era um mercador que viera até ali exibir os seus artigos. Permitiu que o seu espírito se afastasse dele e daqueles estranhos sentimentos que surgiam tão facilmente, e deixou-se envolver pelo conhecimento de que ela pertencia à nobreza e ele não passava de um mercador.
Erguendo o olhar, tentou concentrar-se mais na lareira do que nele. Segurando a toalha em seu redor, caminhou calmamente até ao banco e dobrou os joelhos de modo a chegar às peças de vestuário.
Sentiu uns dedos enterrar-se firmemente nos seus cabelos, torcendo-os. As peças de roupa tombaram das suas mãos quando ele a puxou violentamente para cima. Respirando com dificuldade devido ao choque, ela deu pela sua face a escassos centímetros de uns olhos azuis flamejantes.
- Não volteis a fazer isso. - Preveniu. - Nunca mais.
Christiana contemplava a face do perigo e sabia-o. Não se moveu. Quase nem respirava.
Lentamente, enquanto a segurava e a fitava, as chamas arrefeceram e a dureza, abandonou os seus olhos e boca. Christiana apercebeu-se do momento em que ele recuperou o controlo e a ira desapareceu do seu rosto perfeito.
Contudo, a expressão que a substituiu era, à sua maneira, quase tão perigosa quanto a anterior. A mão dele não soltou o seu cabelo. Quando muito, apertou-o ainda mais.
David contemplou lentamente o rosto dela e depois o seu olhar foi descendo pelos ombros nus e pelo pescoço. Ela observava o olhar dele avançar e deter-se sobre a toalha molhada que a envolvia. Nunca havia sido tão cuidadosamente examinada na sua vida. A inspecção lenta e possessiva dele deixou-a tão ofegante e dormente como se tivesse sido acariciada.
Ele puxou-a para si. Um frémito de antecipação percorreu-a. As pernas dela quase não suportaram o seu peso quando o corpo se deixou levar. Ele inclinou a boca na direcção da boca dela.
Christiana lutou contra as emoções. Combateu-as energicamente com todas as suas forças. Mas as suas defesas nunca haviam sido muito fortes face aos beijos dele, e à medida que este se prolongava, e que o outro braço dele a rodeava, fundiu-se nele enquanto todas aquelas sensações deliciosas se apoderavam do seu corpo.
A boca dele movia-se habilmente sobre o seu rosto, pescoço, orelhas e ombros, beijando e mordiscando com suavidade, arrastando-se com doçura sobre os pontos mais sensíveis. Ele brincava com as linhas de tensão que se retesavam no corpo dela como as cordas de um alaúde, atraindo-a para a aceitação. Christiana sabia o que estava a acontecer, mas o prazer ardente de cada beijo fazia com que quisesse mais, e as ondas suaves que fluíam através do seu corpo, provocadas pela carícias nas suas
costas, prometiam um oceano de delicioso esquecimento.
David puxou suavemente pela parte de trás da toalha e ela debateu-se para vir à superfície daquele mar de sensualidade.
- Não - sussurrou.
- Sim - disse ele.
A ponta da toalha desprendeu-se de debaixo do braço dela e deslizou-lhe pelas costas. O temor que não era temor levou-a a guinchar e apertar o tecido com mais força sobre o peito, os braços cruzados sobre os seios.
Ele não procurou afastar a toalha. Desenredando os dedos dos seus cabelos, abraçou-a com mais força de modo a que os braços dela ficassem presos entre os seus corpos. Baixou a boca até à pele mesmo acima das mãos dela enquanto as suas mãos lhe avançavam pelas costas.
A sensação das mãos quentes de David na sua pele nua estimulava-a. Até mesmo a consciência daqueles beijos se esbateu à medida que todos os seus sentidos se concentravam naquelas carícias cálidas. Todo o seu ser aguardava, sentia e saboreava o progresso daquele toque. Nas mais íntimas profundezas do seu corpo, sentiu novamente aquela estranha palpitação.
Ele recuperou de novo a boca dela, e as suas mãos desceram mais um pouco, passando pelas ancas e o fundo das costas, detendo-se finalmente nas nádegas. Ela sobressaltou-se, admirada, mas ele beijou-a com mais força e as mãos permaneceram ali, seguindo os contornos do seu corpo. Aquela palpitação aumentava de intensidade, de calor, e ela compreendeu que era no fundo do seu ventre, perto das coxas, e que as mãos dele estavam lá muito próximas.
A sensação era demasiado intensa, demasiado deliciosa para o deter. A vozinha da sua mente tornou-se muito débil e suave. Aquela percepção racional limitava-se a observar, notando o aroma do homem que a agarrava e o som da sua respiração entrecortada. A expectativa que sentira em Smithfield obliterou qualquer pensamento real e convertia-se agora em algo imperioso e impaciente, e ligeiramente doloroso.
As mãos dele desceram um pouco mais. Acariciou-lhe a parte inferior das nádegas num gesto de intimidade autoritária. Ela soltou um arquejo quando aquele centro de prazer latejante explodiu com um calor branco.
Os dedos dele repousaram no cimo das suas coxas, no ponto em que elas se uniam. Ela sentiu-se como no momento em que aguardava que ele lhe tocasse no seio, só que a expectativa tinha uma qualidade frenética e desesperada e a ânsia pulsante possuía uma realidade física que a impressionava.
Subitamente, o temor que sempre estivera presente quando ele a beijava e tocava subiu das profundezas, do lugar para onde o prazer o havia banido. A vozinha na sua mente admitiu que estava a acontecer algo ali que nunca ocorrera com Stephen.
- David... - sussurrou ela, dando início a um fraco protesto. Ele ergueu a cabeça e fitou-a com uma expressão transformada
e ainda mais bela do que nunca. O brilho caloroso naqueles olhos deixava-a sem palavras.
Ele puxou as ancas dela para mais perto das suas. Os braços dela continuavam a segurar a toalha junto ao peito, e agora não se mantinha de pé por vontade própria. Os dedos perto das suas coxas afastaram-se quando ele a puxou para junto de si.
O ventre dela estava comprimido contra o dele. Ela sentia calor e a solidez do corpo dele. Aquele lugar secreto, dominado pela ânsia e o desejo e tão perto da mão dele, reagiu energicamente.
Os olhos dela arregalaram-se. ;
Ele inclinou-se para a beijar novamente.
- Sim - afirmou ele com suavidade.
Uma ideia muito peculiar penetrou na mente dela e depois impôs-se à força.
Era realmente ultrajante.
Impossível.
Como se tivesse lido os pensamentos dela, David fez deslizar a mão entre a parte de trás das coxas e tocou-lhe com suavidade. Sem esforço, os seus dedos encontraram essa dor faminta.
Ela gritou com o choque do prazer. Retorcendo-se violentamente, soltou-se dos braços dele e limitou-se a fitá-lo.
A reacção dele foi igualmente poderosa. Ela observava-o, ofegante, enquanto a surpresa dava lugar à perplexidade e depois finalmente à ira. Voltando a colocar a toalha em redor do corpo, afastou-se, tentando desesperadamente recompor os seus pensamentos e emoções confusos.
Não queria fazê-lo zangar-se. Queria explicar. Mas explicar o quê? Que uma ideia bizarra e pouco natural daquilo que ele queria dela se tinha inexplicavelmente alojado na sua mente e subitamente parecia... lógica? Provavelmente estava enganada, e se lhe falasse disto, ele pensaria que ela era uma depravada. Ao mesmo tempo, não queria que ele voltasse a tocar-lhe, especialmente daquela forma, até ela descobrir com toda a certeza que não havia confundido tudo.
Ele limitou-se a olhar para ela, o calor belo a desvanecer-se do olhar e a expressão plácida tornando conta dele. Ela sentiu-se como uma idiota, ali de pé, enrolada na toalha, mas não sabia o que dizer.
- Muito bem, Christiana, se não quereis entregar-vos a mim, esperarei - disse, finalmente, encaminhando-se para o lugar onde deixara a espada.
A mente dela retrocedeu. Entrega-te a mim, pedira Stephen naquele dia na cama. Ela pensou que ele se referia a casamento. Mas referia-se a algo diferente, não é
verdade? Teria ela compreendido tudo totalmente mal?
Necessitava de falar com alguém. Agora. Em breve. Quem? Joan? Será que Joan sabia?
David encaminhou-se na direcção da porta. Ides despertar hoje, dissera ele. Santo Deus, mas ela sentia-se desperta agora. Horrivelmente desperta.
- Não regressarei aqui, Christiana. Faremos as coisas à vossa maneira. Hoje fiquei a saber que Eduardo virá ao nosso casamento. O vosso irmão e o rei entregar-vos-ão a mim daqui a duas terças-feiras. Se necessitardes de mim antes, sabeis onde me encontrar.
Daid fez menção de sair. No meio de toda a confusão de ideias que ensombravam a mente de Christiana, surgiu uma questão sobre a qual andava a ponderar.
- Quem é Frans van Horlst, e o que tem ele a ver convosco?
- perguntou bruscamente, sem pensar.
Talvez pelo facto de ser tão inesperada, e irrelevante para tudo o que tinha acabado de acontecer, sobressaltou-o. Recompôs-se rapidamente.
- É um mercador flamengo. Temos negócios juntos.
Ele estava a mentir. Ela sentia-o. Santo Deus, eu não o conheço. Faltam doze dias e eu não o conheço.
O choque das emoções havia-a deixado alerta. Algumas incongruências relativamente a David surgiram subitamente na sua mente. Christiana nunca havia reparado nelas. Nunca prestara atenção.
Havia imensas, e as suas suspeitas em relação a Frans van Horlst vinham juntar-se a elas. Que viagens eram aquelas que ele fazia? Como é que tinha acesso a Eduardo? Por que razão a pedira em casamento e pagava uma exorbitância pelo preço da noiva? Por que razão tinha um criado que se assemelhava a um soldado? Como é que ele sabia que Stephen não viria?
Ele tinha a certeza, disso. Ela sentia-o.
- Quem sois vós, na realidade? - perguntou finalmente.
A questão sobressaltou-o novamente. Por um instante muito breve a máscara caiu e naqueles olhos de lápis-lazúli ela viu camadas e camadas de emoções toldadas. Em seguida, a sua expressão cautelosa regressou e ele sorriu-lhe. Era um sorriso débil que não revelava nada.
- Sabeis quem sou, minha senhora - disse, abrindo a porta.
- Sou o mercador que pagou uma fortuna pelo direito de vos ter no seu leito.
Ela permaneceu com os braços a segurar a toalha contra o corpo e a escutar os passos a afastarem-se através da antessala.
Ele respondera à última questão da mesma forma que ela a havia perguntado, num francês parisiense perfeito.
Christiana aguardou que fosse bem tarde de noite, de modo a que os aposentos e o castelo estivessem mergulhados num profundo silêncio, antes de se esgueirar do seu leito. Na extremidade do quarto, Lady Idonia dormia um sono de pedra, o que não surpreendia Christiana. Idonia regressara do seu passeio com Sieg de rosto afogueado e olhos brilhantes, com uma aparência muito jovem para os seus trinta e oito anos. Sem o lenço na cabeça e com o cabelo em desalinho, tinha apenas murmurado algumas críticas em relação ao criado presunçoso de David, bem como ao amo dele, que dera ordens a Sieg para a levar para longe.
Caminhou cautelosamente os poucos passos até à cama de Joan e esgueirou-se por entre as cortinas. Sentou-se na cama e sacudiu-a pelo ombro. A cama estava envolta em escuridão, o que até lhe convinha. Sentia-se como uma idiota e não precisava de ver a expressão divertida de Joan durante esta conversa.
Sentiu o despertar sobressaltado de Joan e ouviu-a sentar-se.
- Sou eu - sussurrou Christiana. - Preciso de falar convosco. É muito importante.
Joan espreguiçou-se e bocejou, e depois afastou-se para o lado para arranjar espaço para a amiga. Christiana cruzou as pernas e tapou-as com uma parte da colcha.
- Joan, preciso que me expliqueis o que acontece entre um homem e uma mulher quando são casados.
- Oh, meu Deus - disse Joan. - Quereis dizer... nunca ninguém.. Idonia não...
- Idonia explicou-me, quando eu tinha cerca de dez anos, mas parece-me que compreendi tudo mal.
Christiana recordava-se bem do que Idonia lhe dissera. À sua maneira, tinha sido bastante directa, até certo ponto, e nessa altura o assunto parecera-lhe muito peculiar e pouco interessante. Suspeitava que Idonia assumira que ao longo dos anos o senso comum preencheria as lacunas, mas até essa tarde, carecera de imaginação.
- Christiana, ides casar-vos daqui a menos de duas semanas.
- É por isso que preciso de saber.
- Eu diria que sim. Demora um pouco até nos habituarmos à ideia.
- Quanto tempo?
- Para mim, cerca de três anos. Fantástico.
- Então, dizei-me.
- Vejamos - começou Joan com um suspiro. - Bem, nunca assististes ao acasalamento dos animais?
- Vivo na corte desde os sete anos. Onde é que, nestes castelos e palácios cheios de gente, os animais acasalam? Nos estábulos? Nos canis? Não é de certeza no salão
de jantar ou nos jardins. Eu não cresci como vós numa propriedade no campo, Joan.
- Santo Deus.
- Dizei-me sem rodeios, Joan. Linguagem simples. Sem lacunas. Joan respirou fundo e depois explicou sem demoras. Christiana
sentia-se mais tola a cada palavra que escutava. No fundo do seu coração soubera, desde a primeira vez que David lhe tocara, que seria assim, mas a sua mente simplesmente não queria aceitar a terrível lógica daquilo.
Subitamente, as piadas faziam sentido. Vagas frases em canções tornavam-se, de repente, perceptíveis. A mão de Stephen afastando
as suas coxas...
Ele não lhe tinha feito aquilo, mas planeara fazê-lo. Apenas a chegada de Idonia a tinha salvo daquele choque brutal. Ela nem sequer sabia quais eram as intenções dele. David... santo deus.
- Um homem consegue perceber se já fizemos isto antes? perguntou cautelosamente.
Sentiu o olhar penetrante os olhos de Joan através da escuridão.
- Geralmente - Joan explicou-lhe como é que eles conseguiam saber.
Christiana estremeceu perante a ideia da dor e do sangramento.
- Estais a dizer-me que fizestes isto e não sabíeis, Christiana? Isso não faz sentido.
- Não. Pensei que o tinha feito... disse a David que o tinha feito.
Joan mal conseguiu reprimir uma gargalhada abafada.
- Ora aí está uma situação diferente. Normalmente as raparigas precisam de arranjar uma desculpa para o facto de não haver sinais de virgindade. Vós, por outro lado...
- Não troceis de mim, Joan. Isto é sério.
- Sim. Ele pode pensar que mentistes para vos escapardes do casamento, não é verdade?
Sim, pode, pensou Christiana apaticamente. A mão de Joan tocou-lhe no braço.
- Quem era ele? Nunca me apercebi que houvesse alguém. Não admira que tenhais ficado tão infeliz com estes esponsais. Nem sequer vos vi conversar com um homem mais do que uma vez ou duas, excepto, talvez... - A mão dela apertou-a com mais força. Era esse? Stephen Percy? Oh, Christiana.
Ela não concordou nem discordou. Contudo, Joan sabia que tinha acertado, e de certa forma Christiana sentia-se satisfeita por isso. Sabia bem finalmente partilhar aquela agonia, ainda que já se tivesse habituado à dor.
A mão de Joan procurou a sua na obscuridade. Quando falou a sua voz era baixa e solidária.
- Tenho de dizer-vos algo. Em breve escutá-lo-eis, pois circulará pela corte amanhã ou depois. O tio de Stephen esteve na ponte, e eu e Thomas falámos com ele. Ele recebeu hoje um mensageiro de Northumberland. - Ela apertou a mão de Christiana. - Os esponsais de Stephen realizaram-se há dez dias. A união foi preparada quando ele ainda era adolescente.
Uma fissura profunda e imensa abriu-se dentro de si, dilacerando-lhe a alma como aço em brasa. Alcançou o ponto mais profundo do seu ser, libertando, finalmente, todos aqueles terrores, as suspeitas e as dúvidas proibidas. Invadiu-a uma onda de dor, submergindo-a por completo.
- Estou certa de que ele vos ama - acrescentou Joan suavemente. - Sem dúvida foi a família que o forçou a fazer isto. É bastante comum quando os casamentos são arranjados muito cedo.
Sim. Bastante comum. Os homens desposavam mulheres que não amavam nem pretendiam e divertiam-se noutro lado à sua vontade. Viu súbita e nitidamente o quanto o interesse de Stephen por ela, a sua corte, fora fingida e desonrosa. Um jogo de sedução para passar o tempo, sabendo bem que a sua futura mulher o aguardava em casa. Teriam as ameaças de Morvan tornado o galanteio mais interessante, mais excitante?
Pensou na carta que lhe enviara. Teria ele troçado dela? A sua ignorância acerca do que acontecia entre os homens e as mulheres obrigara-a a fazer figura de tola esta noite, mas isso não era nada comparado com a devastadora desolação que esta notícia acerca de Stephen causara. O seu corpo tremia e sentia o coração a arder e a despedaçar-se. Soltou a mão de Joan e afastou-se da cama.
- Lamento, Christiana - disse Joan.
Lutando para controlar as emoções, afastou as cortinas e correu para a sua própria cama. Atirou-se nela de barriga para baixo e, mordendo a almofada para abafar o som, chorou de humilhação e amarga desilusão.

CAPITULO 8
Christiana permaneceu na cama durante dois dias. No primeiro, afogou-se numa dor amarga, repleta de recordações que agora via por um outro prisma. As palavras de
Stephen e o seu rosto não se haviam alterado, mas conseguia agora distinguir, com uma terrível clareza, significados diferentes para tudo. A verdade mortificava-a, e por volta do final do dia quase odiava Stephen Percy por tê-la usado e humilhado.
No dia seguinte, permaneceu numa letargia taciturna, pairando inconscientemente através do tempo. O entorpecimento causado pela confusão mental era tranquilizador, e ela desejou ficar assim para sempre.
No domingo levantou-se da cama e vestiu-se. Conseguiu não pensar muito em Stephen, mas nas poucas ocasiões que o fazia, reabria uma ferida em carne viva, causada pela dor e pela raiva, antes de conseguir banir a recordação da sua mente.
Na terça-feira já se sentia muito melhor, mais recomposta. Até soltou uma gargalhada perante uma piadinha que Isabele proferiu enquanto se vestiam nessa manhã. Os olhares de alívio entre Idonia e Joan fizeram-na rir de novo.
E depois, mesmo a seguir ao jantar, o costureiro chegou para a prova final do seu vestido de noiva, recordando-a abruptamente de que dentro de precisamente uma semana desposaria David de Abyndon.
Essa realidade havia sido engenhosamente obscurecida pelas emoções violentas que se tinham apoderado dela após escutar as notícias acerca de Stephen. Todavia, enquanto permanecia imóvel no vestido rosa prateado, sabia que chegara o momento de encarar os factos acerca deste enlace.
Ia acontecer. Dentro de uma semana, Morvan iria literalmente entregá-la a ele. Residiria na casa que se recusara a visitar, e seria a senhora de uma criadagem que se recusara a conhecer. O centro da sua vida mudar-se-ia da corte de Westminster para a comunidade mercantil de Londres. A sua vida estaria ligada e possuída por este homem para sempre.
Nada voltaria a ser o mesmo. Lançou um olhar a Joan e a Isabele. Continuariam elas a ser suas amigas ? Talvez, mas afastar-se-iam porque a sua vida já não seria aqui. Pensou na animosidade entre Morvan e David. Será que o marido lhe permitiria voltar a ver o irmão? Teria o poder de o recusar.
Durante os seus anos na corte, andara sempre um pouco à deriva, mas o irmão e as poucas amigas tinham servido de âncoras para ela. Após o seu matrimónio, teria apenas David durante muito tempo. Sem ele, estaria completamente sozinha na nova vida que a aguardava.
À medida que ia voltando para que o costureiro examinasse o seu trabalho, ela pensava em David. Queria desesperadamente odiá-lo por estar certo em relação a Stephen, mas não conseguia. Se ele não lhe tivesse apontado o caminho da verdade, será que alguma vez o teria visto? Era tão mais fácil arranjar desculpas para Stephen, como Joan fizera. Como seria tranquilizador evitar a dor real e continuar na ilusão de um amor proibido. Ela não conhecia David muito bem, mas tinha estado muito próxima de não o conhecer em absoluto. Perante a sua indiferença para com ele e lealdade cega para com Stephen, ele tinha tentado prepará-la.
As coisas entre eles tinham ficado feias por sua culpa. Fiel à sua palavra, ele não regressara a Westminster. Ela insultara-o naquele dia de uma forma que não compreendia totalmente.
O costureiro partiu e ela caminhou até junto de uma janela e lançou um olhar ao pátio. Na sua mente, viu David a entrar a cavalo no pátio e a desmontar, e imaginou os seus passos encaminhando-se para os seus aposentos. Na sua imaginação, ele beijou-a, e a pele dela despertou com a calidez dos seus lábios. Permitiu que as recordações se fundissem, desenvolvessem, e sentiu a mão firme dele no seu seio.
Cerrou os dentes contra o desejo que esse toque imaginário despertou. Finalmente, forçou-se a imaginar a união que Joan descrevera.
A imaginação não foi suficiente e a imagem desapareceu, como se tivesse caído um pano diante dela. Dor e sangue da primeira vez, de acordo com Joan. Atraída pelo prazer para o horror.
Ele não viria. Sabeis onde encontrar-me, dissera. Um convite. Todavia, para quê? Para a sua companhia ou para o seu leito?
Surpreendia-se com o rumo que os seus pensamentos estavam a levar. O coração dela ansiava realmente vê-lo aparecer no pátio lá em baixo. Sentia a falta dele, e o facto de saber que ele a aguardava conseguia acalmar a dor daqueles últimos dias. O receio daquilo que ele esperava não conseguia obscurecer as imagens das suas atenções gentis para com ela. Pensar em Stephen ainda feria a sua alma, mas a recordação de David mitigava a devastação.
Constava que ele a queria tanto que havia pago o preço da noiva para a possuir. A ideia do leito matrimonial enchia-a de temor, mas pelo menos David perseguira-a com honradez. Não procurara obter o que pretendia num quarto poeirento numa passagem deserta, como Stephen fizera.
Ele tinha o direito de saber a verdade acerca de Stephen. Mais importante do que isso, ela necessitava de lhe explicar o erro estúpido que cometera acerca da outra coisa. O mundo tratava a virgindade como algo muito sério, e por isso suspeitava que isso tinha muita importância para os homens.
Não seria fácil ir ao encontro dele. Reuniu toda a sua coragem. Iam enfrentar uma vida juntos. Não podia simplesmente encontrar-se com ele no dia do casamento com tanto por resolver entre eles.
Iria ao encontro dele no dia seguinte. Iria no seu cavalo negro e usaria a capa vermelha. Lidaria igualmente com um outro problema.
Nessa noite, desceu ao salão muito antes da ceia e foi em busca de Morvan. Encontrou-o com uma jovem viúva que viera recentemente das Midlands para visitar Filipa. Os seus olhos escuros faiscaram com o seu fogo negro. A pobre rapariga assemelhava-se a um animal assustado apanhado à luz de um archote. Christiana conhecia bem esta reacção feminina ao irmão. Contudo, agora sabia o que ele procurava. Entrou de rompante e interrompeu a sedução, saudando o irmão de forma exuberante e mandando a mulher embora numa atitude rude.
- Mais tarde, Christiana - retorquiu Morvan num tom áspero.
- Agora, irmão - replicou. - No jardim, onde podemos estar a sós, por favor.
Praguejando para si mesmo, libertou a sua presa indefesa e seguiu Christiana até ao jardim ao longo dos corredores. O sol tinha-se posto e o crepúsculo desvanecia-se.
Ele ainda estava enfurecido, mas ela não se importava. As histórias acerca do irmão faziam parte das coisas que agora, de repente, haviam adquirido um novo sentido. Pelo que lhe era dado perceber, ele era pouco melhor do que Stephen, à excepção de que não arruinava a reputação das mulheres virgens.
- Amanhã quero ir visitar David na cidade - explicou. - Quero que me leveis até ele.
- Enviai-lhe um mensageiro e deixai que ele venha até cá.
- Ele não virá. Deixei as coisas muito desagradáveis entre nós da última vez que nos vimos.
- Então deixai que ele aguarde até ao dia do casamento para
vos ver.
- Eu tenho de conversar com ele, Morvan. Há coisas que necessito de esclarecer.
- Tereis anos para falar, graças ao rei. Não vos levarei até ele voltou-se para partir.
Ela bateu com o pé no chão e agarrou-o pelo braço.
- Ele pensa que eu não sou virgem, Morvan. Aquilo deteve-o. Olhou-a com cautela.
- Porquê?
Ela encarou-o com bravura. Agora compreendia o irmão, e a sua protecção exagerada. Tal como David, ele conhecia bem os homens. Ele protegia-a de homens como ele próprio.
- Porque eu lhe disse que não era.
- Mentistes em relação a uma coisa dessas? Até mesmo para evitar este casamento, uma mentira dessas, Christiana...
- Eu pensava que era verdade.
As implicações disto penetraram no espírito dele.
- Quem? - inquiriu serenamente. Demasiado serenamente.
- Não vos direi. Não penseis em forçar-me, Morvan. Está tudo terminado e graças a Idonia a minha virgindade está intacta. Em parte, é culpa vossa, irmão. Se não tivésseis amedrontado todos os rapazes, eu poderia ter alguma experiência sobre as intenções de um homem. Da forma como as coisas estavam, sentia-me indefesa contra eles e, até há três dias, nem
sequer sabia o que ele pretendia de mim. Ele manteve-se silencioso naquela luz cinzenta.
- Santo Deus - exclamou, finalmente.
- Sim. Dezoito anos e ignorante como um bebé. Estive muito perto de aprender da pior forma, não é verdade? E quase fui para o leito matrimonial na mais completa inocência.
- Raios.
- Por isso, não menti a David. O que aconteceu entre mim e esse outro homem parecia corresponder a todos os requisitos, da forma como eu, estupidamente, os entendi.
- E este mercador, mesmo sabendo isso, ainda assim quis a vossa mão?
- Sim. Eu disse-lhe antes dos esponsais. Ele disse que repudiar-me arruinaria a minha reputação.
Morvan abanou a cabeça, pensativo.
- Este matrimónio nunca fez qualquer sentido.
- Não, mas não posso preocupar-me com isso agora. Tenho de falar com ele antes do casamento. Quero explicar-lhe isto.
Morvan pousou o braço em redor dos ombros dela e começou a guiá-la em direcção à porta do castelo.
- É bom que expliqueis. Ele pode magoar-vos mais do que o necessário se não lhe disserdes.
A forma muito franca como ele disse isto surpreendeu-a. Assim como esta nova informação. Talvez devesse ter falado com Morvan ao invés de Joan. Ela sorriu ao imaginar a aflição do irmão quando lhe pedisse descrições directas e sem lacunas.
- Se ides ao encontro de David, ele irá perceber mal a razão que vos levou até lá - disse ele. - Consta que ele vos deseja intensamente. Talvez essa seja afinal a explicação para tudo.
- Então desejava não ter sido tão ingénua. Nessa noite poderia ter trocado o meu corpo pela minha liberdade.
- As coisas não funcionam assim, Christiana. Como é que funcionam? Quis perguntar.
- Bem, irei desposá-lo em menos de uma semana. Quando ele escutar o que tenho para dizer, não irá perceber mal a razão que me levou até lá. Quero ir e quero que me leveis.
Um archote à entrada da porta iluminava o belo rosto de Morvan.
- Então ides ao encontro dele antes do casamento e eu levo-vos até lá? De vossa livre vontade, antes da ordem do rei? Tendo acabado de saber o que este homem espera de vós?
- Espera-me uma vida ao lado dele, Morvan. Quero vê-lo e iniciá-la bem. E quero que ele saiba que vós o aceitais, para que ele talvez não se intrometa entre nós. Sim, vou de minha livre vontade e quero que ele perceba isso.
Morvan soltou um suspiro de resignação.
- De manhã, então. Embora isso dê cabo de mim. Nunca entreguei um presente tão precioso a um homem com quem antipatizo tanto.
Detiveram os cavalos ao fundo da ruela e lançaram um olhar à loja de David. No exterior, encontrava-se uma grande carroça carregada com enormes cilindros, envoltos em pano áspero. Sieg puxava tenazmente uma corda que ia dar a uma roda que se projectava da trave do sótão. Um dos cilindros baloiçava na outra ponta da corda, enquanto ele o içava pela parte lateral do edifício, os seus músculos tensos devido ao esforço, à medida que ele puxava a corda com uma mão atrás da outra.
O cilindro aproximou-se da janela aberta do sótão. Christiana teve um breve vislumbre de uma cabeleira castanho dourada quando um braço forte se estendeu e agarrou a corda, puxando a carga para dentro.
A sua coragem começara a desvanecer-se lentamente desde a véspera, e ela agora debatia-se com a ideia de voltar atrás. Se David estava ocupado hoje...
- Ele parará de trabalhar assim que vos vir - disse Morvan. Incitou o cavalo a avançar.
Ela cavalgou ao lado dele.
- Não sei, Morvan, talvez...
- Ele quer-vos e nada mais importa. Confiai em mim, irmã. Sei do que estou a falar. - Acrescentou com um piscar de olhos.
Morvan ajudou-a a desmontar. Sieg estava ocupado a amarrar outro cilindro à corda e não reparou nela.
- Regressarei daqui a algumas horas. Ao final da tarde. - Informou Morvan.
- Talvez seja melhor voltarmos amanhã. Ele beijou-lhe a fronte.
- Tomastes a vossa decisão com uma mente aberta e um coração honesto, Christiana. Estáveis certa. Este casamento não pode ser impedido e é melhor que converseis com ele. Agora, coragem.
Ela assentiu com um aceno e entrou na loja.
No interior, dois aprendizes atendiam alguns clientes. O mais jovem, o de cabelo escuro, um adolescente de uns catorze anos, aproximou-se dela.
- O meu nome é Michael, minha senhora. Em que posso ser-vos útil?
- Sou Christiana Fitzwaryn. Vim falar com o vosso mestre. Ele está lá em cima?
Michael assentiu, com uma expressão intimidada.
- O meu cavalo está na ruela - disse Christiana, entregando-lhe a capa. - Talvez quando estiverdes livre pudésseis retirá-lo de lá por mim.
Avançou corajosamente pelo corredor. Subiu os íngremes degraus até ao segundo andar e escutou os sons dos alfaiates a conversarem e a trabalharem no compartimento da frente. Junto à parede deste corredor erguia-se outro lanço de escadas, muito íngremes e abertas como um escadote. Caminhou até à sua base e, reunindo toda a sua coragem, levantou a saia para os subir.
Apoiou-se na parede para manter o equilíbrio. Os degraus eram estreitos e traiçoeiros. A concentração distraiu-a e por isso estava quase a chegar ao topo das escadas
quando se apercebeu que tinha o caminho bloqueado. Um som débil captou a sua atenção.
No terceiro degrau a partir do topo, empoleirava-se um gatinho preto. Gemia débil e desamparadamente ao examinar a sua precária posição. Havia chegado até ali de
alguma forma, mas não sabia como subir ou descer.
Christiana vacilou nas escadas. Nunca vira muitos gatos antes e algumas pessoas tinham medo deles. Este, com os seus gemidos débeis e baixos, era adorável. E estava no seu caminho.
Ergueu o gatinho nos seus braços. De início ele enroscou-se contra o peito dela, parecendo quase grato pela segurança. Mas quand ela tentou subir o degrau seguinte, ele guinchou de horror e retesou-se, cravando as unhas no peito dela. Ela soltou um arquejo quando as minúsculas unhas se lhe cravaram na pele.
Passos aproximaram-se no topo das escadas. Andrew, despido da cintura para cima, fitava-a lá de cima.
- David - chamou sobre o ombro.
David apareceu no seu campo de visão. Tal como Andrew, encontrava-se despido da cintura para cima e uma ligeira camada de suor cintilava nos seus ombros devido ao trabalho no sótão quente. Notou com surpresa a definição pronunciada dos músculos dos seus ombros largos, braços e tórax. David exibia uma aparência esguia, robusta e atlética.
Estava pouco habituada a ver homens despidos. No Verão, os cavaleiros e os soldados despiam-se assim quando usavam os campos para praticar, e algumas raparigas faziam questão de passar por lá, mas Lady Idonia havia-o proibido e dava-lhes sermões acerca de pensamentos impuros. Ela contemplava, sem fala, o belo rosto e corpo.
O gatinho decidiu mexer-se. Christiana soltou um grito e cambaleou quando as patinhas daquele corpinho peludo cravaram as unhas na sua pele, subindo até ao ombro
dela, onde o gatinho permaneceu empoleirado.
- Calma - disse David.
Desceu um degrau e sentou-se no patamar, alcançando o gatinho. Retirou cuidadosamente as unhas do animal da pele dela, de modo a que o tecido da capa e do vestido não se rasgasse. Ergueu o animalzinho, que não parava de gemer.
O gatinho macio e peludo, enroscou-se, contente, contra o peito dele. David acariciou-o distraidamente e voltou os seus olhos azuis para ela. A visão das suas belas mãos acariciando aquele pêlo negro contra o seu peito vigoroso era algo incrivelmente sedutor.
- Estais ocupado. Devia ter-vos avisado primeiro - disse ela. Ele voltou-se e colocou o gato no chão atrás dele. Os seus músculos retesaram-se com uma elegância sinuosa.
- Vai procurar a tua mãe - disse, dirigindo-se ao gato.
O pequeno focinho negro fechou os olhos e esfregou-se contra as suas costas antes de desaparecer a correr. Ele olhou de novo para ela e sorriu.
- Não estou assim tão ocupado. Ainda bem que viestes. - Pôs-se de pé e desceu na direcção dela. - Eu ajudo-vos a descer.
Ele comprimiu-se para passar junto dela e auxiliou-a à medida que os seus pés procuravam cegamente cada degrau. A meio da descida ele saltou para o chão, segurou-a pela cintura e pousou-a ao seu lado.
- Ide lá para baixo e aguardai por mim.
Não tinha havido saudação. Nem comentários lisonjeiros. Não perguntara por que razão viera, agiu simplesmente como se soubesse. Christiana apressou-se a descer para a invisibilidade da passagem inferior.
David viu-a afastar-se apressadamente. Tinha-o surpreendido ao vir até aqui. Subestimara-a.
Andrew saltitou pelos degraus abaixo, transportando ambas as camisas. Ainda viu a saia de Christiana a desaparecer ao longe.
- Ela vai fugir - observou descontraidamente. David pegou na sua camisa.
- Quando estiverdes lavado e vestido, ela já terá partido disse Andrew, indicando as escadas com um gesto.
- Agora vais dar-me conselhos acerca das mulheres? Andrew soltou uma gargalhada.
- Mulheres? Céus, não, nem me ocorria tal coisa. Mas por outro lado, ela não é uma mulher, pois não? Não passa de uma rapariga. Aposto que tenho tido mais experiência com elas do que vós, ultimamente. - Enfiou a camisa pela cabeça. - Um minuto são corajosas, no minuto seguinte são tímidas. Primeiro é sim, depois é não. Recordais-vos? Ela usou de toda a sua coragem para vir, e agora está a dizer a si mesma que deve partir. A não ser, evidentemente, que as vossas calorosas boas-vindas a tenham tranquilizado. Portaste-vos bem.
David lançou um olhar às escadas desertas. O sarcasmo de Andrew era justificado. Ele não a havia cumprimentado devidamente e tinha sido necessária muita coragem da parte dela para vir.
Dirigiu-se à sala de contabilidade, pegou no gibão de Andrew e lançou-o sobre ele.
- Então vai até junto dela e empata-a até eu chegar - disse. Bloqueia o raio da porta com uma espada se tiver de ser.
Andrew sorriu e vestiu o gibão.
- Sim. E direi a Sieg que faremos uma interrupção do trabalho com os tapetes. Ele e eu podemos tratar dos últimos antes do jantar, sem vós. - Caminhou de lado até à porta. - Presumo que isto signifique que podemos esquecer a multa do passeio nocturno de ontem à noite.
-Vai!
Seguiu Andrew pelas escadas abaixo e ficou a observá-lo ir em busca de Christiana. Saiu pelas traseiras, dirigiu-se ao poço e começou a lavar a poeira no ar gélido.
É evidente que ela ouvira falar dos esponsais de Stephen Percy. Provavelmente, há cerca de uma semana. Teria sido muito duro para ela? Não gostava de a imaginar a sofrer, mas também não queria que ela arranjasse desculpas para aquele homem. Uma mulher podia passar uma vida inteira a arranjar desculpas para evitar encarar a verdade.
David não parara de pensar em Christiana desde que a deixara na última terça-feira. Raramente reprovava as suas próprias acções, mas durante o dia e grande parte da noite, quando pensava nela, vinha-lhe à ideia a forma como lidara com esta rapariga e interrogava-se se por acaso não teria emitido julgamentos equivocados. Não estava habituado a mulheres tão jovens, evidentemente. Por vezes esquecia-se de que ainda havia algo de infantil nela. Até mesmo o seu cumprimento desta tarde... uma Alicia teria acolhido bem aquela franca aceitação da sua chegada. Mas Christiana não era como Alicia.
Visitara Westminster na segunda-feira, e quase subira até aos aposentos dela. Sentira-se atraído para lá, e apenas um longo debate interior o mantivera afastado. Ela que venha ao meu encontro, decidira. Ou por sua vontade própria, ou no dia do casamento. Mantivera-se firme na decisão até à noite anterior, altura em que Oliver aparecera lá em casa, altas horas da noite, com notícias. E nessa altura, soube que não podia esperar mais por ela.
Ia-se secando à medida que subia as escadas para se vestir. Se não fosse pela chegada prematura daquele navio vindo de Espanha e da sua carga de tapetes, David ter-lhe-ia poupado este custo ao seu orgulho. Ele tencionava ir buscá-la a Westminster essa manhã, e apenas o trabalho o atrasara. Todavia, ela viera primeiro ao seu encontro. Uma pequena oferta para si da Fortuna. Para Christiana, também era melhor assim.
Voltou a descer as escadas. Conseguia ver um pouco de vermelho perto da entrada da loja. Ela já havia pedido a capa. O corpo de Andrew encontrava-se descontraidamente apoiado contra a ombreira da porta, com o pé esticado até à jamba oposta. Não bloqueara propriamente o caminho com a espada, mas a capa vermelha não podia passar.
Caminhou em direcção a eles e Andrew lançou-lhe um olhar significativo. Afastou a perna e permitiu que a capa vermelha entrasse no corredor, directamente para os braços de David.
- Estais pronta para ir, então? - Perguntou David.
- Para ir? - Inquiriu, perturbada pela sua súbita presença.
- Iremos lá a casa. John Constantyn virá jantar, mas primeiro teremos de arranjar algum unguento para os arranhões do gato. Se não tiverdes cuidado, podeis ficar doente.
- A vossa casa... - Sorriu debilmente. - Sim, gostaria de
a ver.
Havia a possibilidade, pequena mas real, de que ela tivesse vindo pedir a anulação. David permitiu a si mesmo respirar de alívio pelo facto de o pedido não ter surgido e por não ter de o recusar.
- Como chegastes até aqui?
- O meu cavalo está no beco, penso eu. Morvan trouxe-me. Estará de regresso daqui a sensivelmente três horas.
Interessante.
- Iremos a pé. vou dizer aos rapazes que tragam o cavalo.
Regressou à loja e deu instruções aos aprendizes, depois regressou para junto dela. Guiou-a ao longo da ruela, com o braço sobre os ombros dela. Gostava de sentir o calor dela, aquele braço sob a sua mão.
O sol brilhava de tal forma que David pôde estudar o rosto de Christiana. Ela estava tão admiravelmente bela como sempre, mas havia algumas mudanças subtis. Ele conhecia bem o seu rosto, tinha decorado os seus pormenores e nuances, e conseguia ler nele a angústia dos últimos dias. Ela voltou a cabeça e os seus olhos cintilantes fitaram-no. Viu igualmente uma mudança naqueles diamantes negros. O seu brilho tinha-se esbatido ligeiramente, como se uma faceta de confiança e inocência se tivesse desvanecido.
Irei obliterar a memória que tendes dele.
Ela continuava a olhar para ele e a abrir os lábios, como se tencionasse falar.
- Estáveis certo. - As palavras saíram finalmente. - Acerca de Stephen. Ele também está noivo. Uma aliança antiga. Mas vós sabíeis disso, não é verdade? Na quinta-feira sabíeis que eu viria a ter conhecimento disso em breve.
Quanto tempo faltaria para que ela conseguisse lê-lo com tanta clareza como ele a lia a ela? Christiana era por natureza inteligente e perceptiva. com frequência, a sua inocência de menina interpretava mal o que via, mas enquanto mulher não o faria.
- Sabia.
- Por que não me dissestes?
- Não me cabia a mim fazê-lo.
- Vós soubestes antes de toda a corte. Até mesmo o tio dele só o soube naquela manhã.
- Mercadores e peregrinos chegam todos os dias vindos do Norte. Trazem notícias e bisbilhotices.
- Perguntastes-lhes?
- Sim.
- Sinto-me uma idiota - proferiu energicamente. - Deveis pensar que as mulheres são tolas e que eu sou uma das piores.
- Não penso isso. E se vos faz sentir uma idiota, não falemos mais do assunto.
Viraram para a rua onde se situava a casa dele. Ela parou e voltou-se para ele. O seu sobrolho franziu-se quando enfrentou o olhar dele.
- Ireis dizer-me agora? Por que razão ides desposar-me?
Ele afastou o olhar da curiosidade confusa dela. Vexada e ferida, pensava que não tinha nada a perder com estas questões directas e respostas francas. Como reagiria ela se ele lhe contasse a verdade?
Qual era a verdade?
Há semanas que não pensava no estranho negócio que a colocara nas suas mãos. Na sua mente, a história de Eduardo tornara-se real, e a licença e o seu pagamento,
a mentira. Era verdade que ele a vira, a desejara e oferecera uma fortuna por ela. O dinheiro tinha sido para ela e a licença viera por acréscimo, e não o contrário. Se o rei amanhã lhe exigisse mais mil libras para poder continuar com ela, entregar-lhas-ia sem pensar duas vezes.
Ele queria-a. Não por uma noite ou alguns meses. Não pensava nela dessa forma e nunca o fizera. Talvez a inevitável permanência do casamento tivesse despertado este desejo profundo nele. Ele queria o seu corpo, a sua alma, a sua lealdade e a sua alegria. Não questionava por que razão a queria. Apenas queria.
- Desposo-vos porque é essa a minha vontade - respondeu.

CAPÍTULO 9
O portão que dava para o pátio encontrava-se aberto. Ela fez uma pausa na passagem e depois encaminhou-se corajosamente para o jardim ensolarado, repleto de mulheres risonhas e tecidos esvoaçantes. Viu duas grandes selhas lado a lado, uma delas sobre um lume brando.
Dia de lavar a roupa.
David deambulou pela confusão de pessoas e roupas. Uma mulher idosa e esguia, com um lenço no cabelo, apressou-se na direcção deles. Ele abraçou a idosa e beijou-lhe a face.
- Disseram que estáveis ausente para um carregamento e não estava à espera de vos ver - disse a mulher, sorrindo.
- Abranda um pouco, para poderdes jantar connosco, Meg disse David. - John também virá. - Voltou-se e puxou Christiana para a frente. - Esta é Christiana. A minha esposa.
Meg examinou-a com olhos velados. A sua boca desdentada abriu-se num largo sorriso.
- É uma beleza, David - declarou com um piscar de olhos na direcção de Christiana. - Cuidado, desde que ele começou a andar que só se mete em sarilhos e diabruras.
David afastou Christiana para longe.
- Vós e as mulheres ficais, Meg. Avisarei Vittorio. Christiana seguiu-o até ao salão.
- A lavadeira Meg conhece-vos há muito tempo - disse ela, enquanto observava as mobílias do vasto salão.
Cadeiras lindíssimas. Uma bela tapeçaria. Belíssimos castiçais em cobre seguravam os archotes de parede.
- A minha mãe trabalhava para ela quando eu era criança. Uma mulher de meia-idade abriu uma porta na extremidade
oposta e chegaram até eles os sons tumultuosos de panelas a baterem umas na outras e de um homem a praguejar. A mulher roliça carregava nos seus braços uma pilha de loiça em prata. Mirou Christiana de cima a baixo. David apresentou-a como sendo Geva, a governanta. Geva sorriu, mas Christiana viu uma expressão crítica nos seus olhos cinzentos penetrantes.
David abriu com um empurrão a porta de acesso à cozinha, que ficava junto ao salão.
- E este é o Vittorio. - Indicou com um gesto um homem rotundo de olhos redondos, que vociferava, com um forte sotaque, ordens a uma rapariga e a um homem que o ajudavam. Bancadas repletas de facas e comida partida aos pedaços delimitavam o compartimento. Na gigantesca chaminé estavam suspensas várias panelas de cobre. Vitorio
inclinou a cabeça para dentro de uma das panelas, inalou e ergueu as suas espessas sobrancelhas negras numa expressão de aprovação relutante.
- Vittorio - chamou David.
O homem obeso endireitou-se e olhou em seu redor.
- Ah! La ragazza! La sposa! - anunciou aos assistentes. Estes interromperam as suas tarefas e cumprimentaram-nos com um sorriso.
Ele apertou-lhes as mãos efusivamente. - Finalmente! Signorina Christiana, eh? Belo nome. Bellissima, David. Exibiu um olhar cómico de aprovação.
- Lady Christiana ceará connosco, Vittorio. Assim como Meg e as outras mulheres.
- Si, si - assentiu Vittorio.
Voltou-se para a cozinha e gesticulou em direcção aos assistentes.
David conduziu-a ao edifício em frente ao portão. Sabia pela sua última visita que a sala de estar era no andar de cima, mas ele levou-a para um simples quarto de dormir, depois de passarem os degraus.
- vou pedir a Geva os unguentos - explicou antes de sair. Christiana despiu a capa. Este quarto continha alguns artigos de
natureza pessoal. Uma única capa estava pendurada num cabide de
parede. Um pente de prata jazia sobre uma mesa. Sentou-se na cama e esperou por Geva.
Contudo, foi David quem regressou e não a governanta. Transportava uma bacia de água, um farrapo e um pequeno pote. Pousou-os sobre a mesa.
Os seus longos dedos destaparam o ombro dela. Christiana contemplou aquela mão e as arranhadelas que ela revelava. David pôs-se atrás dela e começou a desapertar o vestido sem mangas. Ela olhou para ele surpreendida.
- O unguento manchá-lo-á - explicou, indicando-lhe com um gesto que se pusesse de pé e ajudando-a a despir-se. A intimidade daquele gesto simples perturbou-a.
- Este é o quarto de Geva?
A gola do seu cotehardie era baixa e larga e expunha os arranhões. Ele mergulhou um farrapo na água e começou a limpar os pequenos fios de sangue da sua pele.
- Geva habita na cidade com a família e vem diariamente. Este era o quarto da minha mãe. Ela foi governanta de David Constantyn durante dez anos antes de morrer. Ele conheceu-a através de Meg. Ela lavava roupa aqui juntamente com as outras e quando a sua governanta faleceu ele concedeu-lhe o lugar.
- E mais tarde fez de vós seu aprendiz?
- Sim.
David limpou cuidadosamente os arranhões na parte de trás do ombro dela. Christiana tentou ignorar a proximidade dele e a atenção que conferia aos curativos. Reparou mais uma vez nos objectos sobre a mesa. Pareciam ainda conter algo da presença da mulher morta.
Ele ergueu o pote.
- Não vos preocupeis. Não estais a intrometer-vos num santuário. Este quarto é usado pelos visitantes.
Friccionou um pouco de unguento sobre os arranhões, e ela manteve-se muito serena sob a tepidez dos seus dedos na sua pele e o ligeiro ardor do medicamento nas chagas. Ergueu os olhos e viu que ele ainda a fitava. Pensou conhecer aquele olhar.
Era melhor explicar por que motivo viera. Em breve. Necessitavam de um local para falarem a sós, mas não ali naquele quarto.
- Há algum jardim? - Inquiriu ela, pondo-se de pé.
Ele ergueu-lhe a capa até aos ombros.
- Por aqui.
O jardim estendia-se por detrás do edifício e da cozinha e era delimitado por um muro elevado. Nesta altura do ano estava árido, à excepção de algumas sebes e hera, mas dava para ver que no Verão seria luxuriante. Canteiros de flores, entrecruzados com trilhos, estendiam-se até um pequeno pomar de árvores de fruto. Um canteiro maior perto da cozinha conteria vegetais.
- Há um pequeno jardim aqui atrás - disse ele, conduzindo-a para uma porta no muro.
O segundo jardinzinho encantou-a. As heras cresciam por toda a parte, cobrindo as paredes e o chão e invadindo tudo até formar um tecto num pequeno caramanchão disposto num dos cantos. Duas árvores imponentes preenchiam o espaço. No Verão, este local deveria ser fresco e tranquilo. Uma escada exterior ia do jardim até ao segundo piso do edifício.
Ela duvidava conseguir encontrar um lugar mais privado do que este.
- Podemos sentar-nos? Necessito de vos dizer algo.
Sentaram-se num banco de pedra abrigado no interior do caramanchão coberto de hera. Os raios de sol penetravam através da densa cobertura, matizando as sombras com pequenas manchas de luz amarela.
Ela inclinou-se e colheu um raminho de hera do tapete aos seus pés. Nervosamente arrancou as pontinhas das folhas. Provavelmente o melhor era começar.
- Quando nos conhecemos, eu disse-vos... sugeri que não era... que Stephen e eu tínhamos...
- Isso agora não importa.
- Importa, sim. Devo explicar algo. - Tentou recordar-se das palavras exactas que ensaiara.
A voz dele interpôs-se, suave e serena.
- Estais a dizer-me que houve outros?
- Céus, não! Não menti acerca disso. Estou a tentar explicar que não houve nenhum, nem mesmo Stephen. Parece que eu estava enganada. Equivoquei-me. - Pensou que se iria sentir menos embaraçada quando o pronunciasse, mas as coisas não funcionavam assim.
Durante algum tempo, ele não se moveu nem falou. Ela concentrou-se em arrancar as folhas de hera do ramo.
- É difícil uma rapariga equivocar-se quanto a isso, Christiana. Impossível, diria eu - exclamou ele, finalmente.
Santo Deus, ela sentia-se como uma tola.
- Não se ela não souber do que está a falar, David.
O silêncio imóvel dele prolongou-se mais desta vez. Ela suportou-o durante um momento, e depois lançou-lhe um olhar furtivo.
- Estais zangado?
- Estais a pôr as coisas ao contrário. É suposto um homem ficar zangado quando descobre a experiência da sua nova mulher, não a sua inocência.
- Podíeis zangar-vos se pensásseis que eu mentira de propósito. Para vos desencorajar.
- Não penso isso. Na verdade, o que me dissestes explica muita coisa. Quando é que vos apercebestes do vosso equívoco?
Christiana assumira que podia confessar aquilo e dar o assunto por terminado. Nunca esperara uma conversa.
- Na quinta-feira à noite.
Ele permaneceu em silêncio e ela soube que ele estava a recordar-se do episódio no quarto de vestir. O corpo dele pressionado contra o dela. Aquela carícia íntima. O grito de sobressalto dela.
- Devo ter-vos assustado bastante.
Fitou-a com uma expressão calorosa e preocupada. Por vezes conseguia ser um homem muito delicado. Talvez ele até compreendesse o quanto tudo isto tinha sido angustiante. Talvez...
- Não - disse ele com um sorriso débil.
- Não o quê?
- Estais a pensar se, dadas as circunstâncias, podíamos adiar o casamento, ou pelo menos essa parte. Não me parece.
Ela corou intensamente. Era realmente desconcertante que ele lesse os pensamentos dela daquela maneira.
Ele aproximou-se e tocou-lhe ao de leve nos cabelos.
- Embora, tendo em conta esta revelação assombrosa, provavelmente não vos seduzirei hoje, como tinha planeado.
Christiana quase suspirou de alívio e gratidão antes de se recompor. O seu rosto estava ainda mais quente. Todavia, aqueles dedos no seu cabelo transmitiam-lhe uma boa sensação. Reconfortante.
- Quem falou convosco ?
- Perguntei a Joan.
- Mas ela própria não é casada. Tendes a certeza de que vos explicou bem? De que sabeis o que espero de vós?
- Duvido que Joan se engane muito no que diz respeito aos homens
- Sim, quer-me parecer que não - disse ele com uma gargalhada.
Nunca na sua vida se sentira assim embaraçada e envergonhada. Desejou que alguém aparecesse a anunciar a chegada de David Constantyn.
- Quantas vezes estivestes com ele?
Santo Deus. Ela contemplou o seu regaço, coberto agora com pequenos pedaços de folhas de hera e ramos. Sacudiu-os.
- Só uma vez. Não sejais duro com ele, David. Ele teve razões para pensar que eu concordei. A minha incompreensão das suas intenções e acções era tanta...
- Estáveis despida?
A boca dela abriu-se de espanto. Continuou a olhar para o seu regaço, e enquanto o fazia, a mão dele apareceu lá, depositando ali outro raminho de hera. Aquele gesto, e o facto de ele compreender o seu embaraço comoveram-na. Ao mesmo tempo, ele aguardava uma resposta. Parecia estranho que quando ele pensava que ela era experiente, não pedira qualquer informação, mas agora que sabia que não o era, queria que lhe fornecesse estes pormenores. Ela abrirauma porta e ele estava determinado a examinar o quarto todo.
- Em parte. Ele rasgou um dos meus casacos. - A falta de cuidado de Stephen nesse ponto assumira uma qualidade simbólica durante estes últimos dias.
A mão dele continuava a afagar suavemente a cabeça dela, afastando da sua têmpora alguns cabelos.
- Ele tocou-vos?
- Estávamos juntos numa cama. Era difícil não me tocar - respondeu bruscamente. - Não quero falar acerca disto. Por que me perguntais estas coisas?
- Para saber o quão cuidadoso devo ser convosco.
Ela inspirou profundamente. Compreendeu que existia um grau
máximo de embaraço, e que acabara de o atingir. Havia uma certa liberdade no facto de saber que as coisas não podiam piorar.
- Não da mesma forma que vós... da última vez. Idonia apareceu antes disso. Contudo, tocou-me no seio. Magoou-me.
Sabia-lhe bem acusar Stephen disso. Naquela altura pensara que era assim que as coisas se passavam.
- Não gostei - acrescentou, recordando com honestidade a sua reacção ao corpo que a esmagava. - Pensei que era uma dessas mulheres que... que...
- São frias?
- Sim. Uma dessas.
- Ambos sabemos bem que não é assim, Christiana. Além disso, sou da opinião de que não existem muitas mulheres frias. Todavia, há muitos homens que são ignorantes, egoístas ou impacientes. Vereis que eu não encaixo em nenhuma destas categorias.
No fundo do seu coração, ela sabia-o. Era o que a impedia de entrar em pânico quando pensava neste matrimónio, tão inevitável, e agora tão próximo. Fora isso que lhe dera a coragem para vir apesar dos avisos de Morvan sobre aquilo a que esta visita poderia conduzir. Ainda assim, sentia-se satisfeita por ele não tencionar seduzi-la hoje.
Ela aguardou pela questão seguinte enquanto ele a tocava daquela forma apaziguante e vagamente excitante.
Sentia um formigueiro no couro cabeludo devido à leve pressão dos seus dedos. Contemplou o seu regaço e a destruição que distraidamente provocara no segundo raminho de hera.
Havia outras coisas que ela precisava de dizer. Queria dizer-lhe que aceitava o matrimónio. Ele merecia escutá-lo depois de todas as vezes que presunçosamente insistira que jamais se realizaria. Precisava de lhe prometer que seria uma boa esposa para ele, fosse qual fosse o seu significado. Gostaria de lhe agradecer por ser tão paciente com ela. Ela tivera esperança de que todas aquelas coisas fossem mais fáceis de explicar do que a sua primeira confissão, mas agora descobria que eram muito mais difíceis.
Enquanto procurava as palavras certas para expressar as outras coisas e reunia coragem para as dizer, a mão direita dele surgiu no seu campo de visão e pousou no seu regaço, ao lado da sua. David voltou a palma da mão para cima.
Christiana sorriu para a bela mão que esperava por ela. O seu olhar fixou-se na sua robustez excitante e graciosa. Nenhum parente ou sacerdote estaria ali para os unir hoje, mas havia no seu gesto uma oferta e uma promessa muito mais significativas do que o noivado oficial.
Ele compreendeu. Estava a tornar as coisas mais fáceis para ela. Aquela mão dizia que hoje era o verdadeiro início.
Para sempre. A imensidão daquilo ameaçou sufocá-la por um instante, mas ela afastou o medo.
Fora para isso que viera, não é verdade?
Ela colocou a sua própria mão na dele. De sua livre vontade. Ele puxou-a suavemente e ergueu-a, voltando-a de modo a conseguir sentá-la nos seu regaço. Os pedacinhos de hera deslizaram pelo manto de Christiana.
Ela contemplou aqueles olhos azuis profundos, repletos de amabilidade e afecto. Ocorreu-lhe que talvez não tivesse de dizer mais nada.
Timidamente, pousou um braço em redor dos ombros dele. Um tanto desajeitadamente, estendeu a mão e tocou-lhe na face. Era a primeira vez que lhe tocava, ao invés de ser ele a tocar-lhe. A sensação foi diferente desta vez e ela maravilhou-se com a sensação da pele dele sob os seus dedos.
Permitiu que os seus dedos acariciassem a superfície lisa do seu belo rosto, terminando nos seus lábios e afagando levemente aquela boca quente.
Ele não se moveu. Ela ergueu o olhar para enfrentar o dele e reuniu toda a sua coragem. Após uma ligeira hesitação, inclinou-se para a frente e beijou-o.
Ela nunca fizera isto, com ele ou com outra pessoa, e assim que os lábios dela tocaram os dele, ela não sabia o que fazer. Contudo, a sensação era boa e ela pressionou um pouco mais. A boca dele sorriu sob a dela.
Ela afastou-se timidamente.
- Estais a rir-vos de mim porque eu não sei como fazê-lo. A mão dele ergueu-se e acariciou-lhe a cabeça.
- Não. Estou a pensar que esse foi o beijo mais maravilhoso que já recebi.
Ela corou e beijou-o de novo. Desta vez, ele assumiu o controlo, respondendo à singela iniciativa dela.
Ela adorava a forma como ele a beijava. Sempre adorara. As sensações que ele despertava nela eram sempre tão poderosas, doces e estonteantes. Todavia, desta vez ela não se descontrolou totalmente, mas seguiu a sua orientação, agindo como ele, aprendendo com ele. Finalmente, quando David mordeu gentilmente o canto da sua boca, ela afastou os lábios.
Ele não a fez sufocar ou engasgar como Stephen fizera, mas, ao invés, acariciou suavemente o interior da boca dela no início, provocando-lhe arrepios por todo o corpo. Aquela intimidade sobressaltou-a, e quando ele aprofundou o beijo, sentiu uma mudança nele e uma paixão crescente que a excitava quase tanto quanto o seu calor e toque. Estivera sempre tão absorta nas suas próprias reacções que não notara as dele. Partilhar o prazer era muito melhor do que limitar-se a aceitá-lo e, de certa forma, este beijo sensibilizou-a mais do que qualquer outra coisa que tivessem feito antes.
- Oh, céus! - exclamou, arquejante, quando se afastaram.
- Certamente já beijastes desta forma antes.
- Não foi assim tão bom.
- Ah. Bem, talvez seja melhor agora que sabeis que não ficareis de esperanças.
Ela fechou os olhos e gemeu de humilhação.
- Como soubestes? - Murmurou lastimosamente, enterrando o rosto no ombro dele.
- Mantivestes sempre os lábios cerrados - explicou com uma gargalhada -, como se eles fossem o portão para o Paraíso, Christiana. Pensei que simplesmente não apreciásseis. Mas é o único equívoco que contém alguma lógica.
Ela também se riu. Ergueu a cabeça e limpou as lágrimas que lhe afloravam os olhos.
- Oh, santo Deus. Garanto-vos que fazia perfeitamente sentido à luz daquilo que Idonia me explicara quando eu era mais jovem. Deveis pensar que eu sou a rapariga mais estúpida que já conhecestes.
Ele abanou a cabeça.
- Penso que sois a rapariga mais bela que já conheci.
Era simpático da parte dele dizer aquilo, mas não tinha dúvidas
de que ele conhecia muitas mulheres belas. Ainda assim, era bom ser cortejada com palavras bonitas. Ele nunca fizera isso.
- Não acreditais no que vos digo.
- Sou bonita, David. Sei disso. Mas não bela. Não como Joan.
- Lady Joan é como um raio de sol e é uma rapariga bonita, Christiana. Vós, todavia, sois a noite aveludada. Um céu negro disse enquanto lhe tocava no cabelo -, a luz pálida - os dedos dele tocaram-lhe na pele -, e estrelas - disse, beijando-lhe o canto do olho.
O som de vozes intrometeu-se, vindo do jardim principal. Ela lançou um olhar na direcção das vozes, desiludida. Queria permanecer naquele caramanchão secreto durante mais tempo, rindo e conversando com David. Talvez beijá-lo de novo.
- Devemos regressar - disse ele pesarosamente. - John já deve ter chegado.
Depararam com John conversando ruidosamente com Sieg e correndo os olhos pelo jardim em busca de sinais dos amantes, que já estavam de sobreaviso. Dirigiu a David um olhar muito masculino quando o casal surgiu pela entrada do jardim e o saudou.


CONTINUA

CAPÍTULO 5
Christiana permaneceu firme na sua resolução de não voltar a ficar sozinha com David. Na segunda-feira seguinte, insistiu que permanecessem sentados no jardim, onde Lady Idonia os encontrou por acaso e se juntou a eles. Foi uma visita agradável, na qual ele as distraiu com relatos das suas viagens.
Alguns dias mais tarde, durante o jantar, Sir Walter Manny deteve-se junto à mesa de Christiana. Sir Walter era um dos homens da rainha, originário de Hainault, o país de origem de Filipa. Durante a conversa entre ambos, ele mencionou que conhecia David e que até o apresentara ao rei dois anos antes, quando Eduardo tinha
uma carta para o presidente da Câmara de Ghent e David estava a
li planear uma viagem à Flandres.
- Estais a dizer-me que David entregou a carta do rei? - perguntou ela.
- Está sempre a acontecer, minha senhora. Qual a razão de se enviar um mensageiro se um mercador de confiança vai fazer a viagem? Por vezes, até é melhor desta forma, especialmente se não quereis atrair as atenções para a mensagem. Por exemplo, é do conhecimento geral que existe actualmente um comerciante da Flandres em Westminster que é favorável à aliança francesa do conde da Flandres, ao contrário dos seus concidadãos burgueses que apoiam a Inglaterra. Suspeitamos que ele tenha trazido uma carta privada do conde para o nosso rei. Uma troca formal seria estranha, uma vez que são adversários, mas ainda assim as negociações acontecem. - Lançou um olhar perscrutador pela sala e apontou. - Ali está ele com Lady Catherine. O nome dele é Frans van Horlst.
Christiana olhou e viu um homem de cabelo grisalho adulando servilmente Catherine. Era o seu "diplomata", aquele que ela vira a falar com David naquela primeira terça-feira após os esponsais.
E depois, na sua mente, surgiu outra recordação, a da primeira vez que vira aquele homem no corredor privado do rei. Duas vozes que falavam num francês parisiense. Uma voz suave e tão débil que não passara de um sussurro.
Seria David? A voz soara num tom demasiado ténue para perceber. Ele conhecia o rei suficientemente bem para pedir a mão da filha de Hugh Fitzwaryn em matrimónio, e contudo, nunca ninguém o tinha visto pela corte. O acesso a essa passagem privada podia explicar essa contradição. Teria sido David naquele dia? Se assim fosse, o que era ele ao rei para entrar e sair por essa via privada? E o que quereria Frans van Horlst dele?
- Sabeis se David ainda realiza tais favores ao rei?
- Indiquei-o dessa vez e apresentei-os - respondeu Sir Walter, encolhendo os ombros. - Se a relação prosseguiu, não vos sei dizer.
- Como é que conheceis o meu noivo?
Sir Walter sorriu e inclinou a sua bela cabeça conspiratoriamente.
- Sem dúvida sabeis que ele é um músico de sucesso? E que aprendeu sozinho.
Ela acenou em afirmação, respeitosamente, embora não tivesse qualquer conhecimento disso.
- Ambos pertencemos a Pui - confidenciou ele.
Pui era uma das muitas fraternidades em Londres. O único facto realmente secreto em relação a ela era a data e a localização das suas reuniões anuais. Para além de beberem durante toda a noite, os homens de Pui interpretavam canções que compunham e uma das canções era escolhida para ser "coroada". Por vezes, quando um trovador entoava uma canção nova, era comum ouvirem-se referências a ela como sendo originária de Pui.
- Ele já tocou o alaúde para vós? O instrumento preferido dele é a sua antiga harpa celta, mas por vezes não se adequa bem às canções, e por isso ele aprendeu a tocar alaúde. Ainda assim, há dois anos venceu-me na coroação, e eu ainda posso jurar que foi apenas por causa da originalidade daquela maldita harpa - disse Walter.
Christiana pensou subitamente na forma perfeita de não vir a estar sozinha com David na segunda-feira que se aproximava. Ela confessou que o seu prezado noivo ainda não tivera a oportunidade de tocar para ela. Estaria Sir Walter disposto a ajudar a remediar a situação?
Quando David chegou na segunda-feira de manhã, ela saudou-o alegremente. Até sorriu quando ele a beijou.
- Pedi ao moço da estrebaria que vos traga um cavalo - disse ele. - Iremos jantar a minha casa. Deveis conhecer os criados, e os rapazes devem conhecer-vos.
A última coisa que ela queria era ir a casa dele e conhecer as pessoas envolvidas na sua vida. Iriam cumprimentá-la como sua futura patroa, ao passo que ela estava certa de que jamais as voltaria a ver.
- Vamos sair pelo salão - sugeriu. - Preciso de ver se Morvan anda por lá. Tenho algo para lhe dizer.
Evidentemente, Morvan não se encontrava lá, como ela bem sabia. Mas Sir Walter sim, sentado a um canto, rodeado por sete jovens raparigas. Estava a entoar uma ousada cançoneta de amor enquanto tocava o seu alaúde, erguendo as sobrancelhas de um modo cómico nas partes mais românticas. As raparigas soltavam risadinhas abafadas perante as suas expressões exageradas.
- David! - exclamou, interrompendo a canção quando eles atravessaram o salão.
- Walter! - David saudou-o calorosamente. Lançou um olhar às raparigas sentadas no chão. - Vejo que estás a viver a fantasia de um cavalheiro inglês.
As raparigas voltaram-se e avaliaram-no. Christiana observou as suas reacções perante o belo rosto dele. Eram todas solteiras e mais jovens do que ela.
- Estou a experimentar um novo alaúde - explicou Walter, segurando o instrumento. Apontou para outro pousado sobre o banco ao seu lado. - Mas parece-me que prefiro o antigo.
- É sempre assim no início - disse David. Pegou no braço de Christiana e começou a afastar-se com ela.
Christiana lançou um olhar a Walter.
- Vejamos como soam juntos, David - sugeriu Walter rapidamente.
As raparigas bateram palmas, encorajando-o. David olhou para Walter, depois para o segundo alaúde e, em seguida, para Christiana.
Ela sorriu e tentou exibir uma expressão resplandecente, como a de Joan. Deixou que os seus olhos implorassem um pouco.
com um suspiro de resignação, atravessou o grupo de raparigas e sentou-se ao lado de Walter, segurando o alaúde no seu regaço. Walter murmurou algo e ambos começaram a entoar uma canção acerca da Primavera.
Tocaram durante um bom bocado, até o salão começar a encher-se de pessoas para o jantar. Sempre que David tentava terminar, as raparigas começavam a lamuriar-se e a adulá-lo. Houve uma altura em que Christiana podia jurar que ele já tinha desistido, que se apercebera de que estava encurralado ali por muito tempo. Depois disso, ele até se começou a divertir, trocando piadas com Walter e, finalmente, entoando uma das suas canções.
Era uma canção de amor que ela nunca ouvira. A melodia era lírica, lenta e um pouco triste. Christiana fechou os olhos e sentiu que a canção despertava a sua própria tristeza.
Os seus pensamentos voltaram-se para Stephen e a melancolia intensificou-se. Perdeu a conta às canções seguintes à medida que o seu coração e desvelo se concentraram nele. Em seguida, as raparigas mexeram-se à sua volta e ela voltou a ficar alerta. O grupo alegre desfez-se e Walter insistiu para que David jantasse com ele. David aceitou e ajudou-a a pôr-se de pé. Olhou para ela brevemente, depois sorriu e abanou a cabeça, divertido.
Não chegaram a ir para casa dele. Ela não conheceu as pessoas a quem ele a queria apresentar. Mais importante do que isso, não estiveram sozinhos o dia todo. Quando ela finalmente regressou aos aposentos de Isabele, Idonia e Joan já haviam regressado, e por isso o beijo de despedida foi tão breve e discreto quanto o de chegada.
Christiana despiu o vestido de noiva em tons de rosa prateado e entregou-o ao alfaiate, que conseguiu muito habilmente não a ver com o vestido interior.
Este assunto dos casamentos operava maravilhas no guarda-roupa de uma rapariga. Contudo, não podia sentir-se entusiasmada com este novo vestido. O custo fizera com que se sentisse culpada porque sabia que ele nunca seria usado. Seria de um extremo mau gosto fugir com Stephen, desafiando a rainha, e mesmo assim aceitar o vestido que ela lhe oferecera.
Todavia, o que realmente a incomodava em relação a este vestido, era o seu inexorável progresso. Estes ajustes eram indesejáveis mas inevitáveis lembranças de que o tempo continuava a passar com demasiada celeridade. Metade das cinco semanas já haviam decorrido, e ainda não tivera notícias de Stephen Percy.
Uma criada auxiliou-a a vestir o seu cotehardie simples, de um tom púrpura, e o manto azul. Enviou a mulher em busca de Joan enquanto calçava um par de botas.
Era sexta-feira, e haviam decorrido quase três semanas desde os esponsais. Iria encontrar-se com David nessa tarde ao invés de segunda-feira, uma vez que ele estaria fora da cidade nessa altura. Estavam a planear ir à feira dos cavalos e corridas em Smithfield, um acontecimento que ela pensava que poderia ser engraçado.
Todavia, antes de lá chegarem, tinha um assunto ou dois para discutir com mestre David de Abyndon.
David cavalgava em direcção a Westminster flanqueado por Sieg e Andrew.
- Se, por acaso, a bela e jovem Joan vier com ela, eu parto e Andrew fica - disse Sieg franzindo o sobrolho. - Mas se aquela fagulha do inferno, aquela Lady Idoma, aparecer, então fazemos ao contrário.
- Receio bem que sim, Sieg - respondeu David. À sua esquerda, Andrew exibiu um sorriso afectado.
- E aquele que ficar tem de distrair a outra mulher para ela não se intrometer. - prosseguiu Sieg, franzindo ainda mais o sobrolho.
David acenou em afirmação. Aproveitara-se da mentira de Christiana acerca da insistência da rainha para que as raparigas não ficassem sozinhas com homens, para explicar a Sieg e a Andrew a sua necessidade hoje. Tinha quase trinta anos, mas esta rapariga havia-o reduzido a joguinhos que já não jogava aos dezoito anos. Evitara estar a sós com ele desde aquela terça-feira e havia sido muito esperta em relação a isso. Esse facto divertia-o e não o aborrecia, mas, é claro, começava a ficar fascinado com ela, e por isso provavelmente desculparia tudo.
A atracção mútua simplesmente não encaixava nos planos dela. A resposta de Christiana ao beijo e ao abraço dele tinha-a deixado tremendamente assustada. Ela mostrava-se tão embaraçada e inexperiente como uma virgem intocada. Esse efeito de inocência encantara-o quase tanto quanto a sua rápida paixão o inflamara.
Ele podia evitar este jogo. Ela acabaria por ser sua. Na verdade, sê-lo-ia muito em breve. Mas David deu por si a pensar naqueles olhos e a provar aqueles lábios na sua imaginação com demasiada frequência para poder voltar atrás. Além disso, não queria que ela reconstruísse demasiado bem as suas defesas. Não lhe agradava muito a perspectiva de ter de escolher entre castidade ou violação na sua noite de núpcias.
- O problema - prosseguiu Sieg - é se Lady Idonia não se deixa distrair. Ela é como uma leoa a proteger as crias.
- Raios, Sieg, tens o triplo do tamanho dela, por amor de Deus
- murmurou Andrew. - Pega nela debaixo do braço e afasta-te.
- Já? Foi assim que o fiz lá na minha terra, evidentemente, mas pensei que aqui em Inglaterra...
- O Andrew está a brincar, Sieg.
- Oh, já - exclamou Sieg, voltando a franzir o sobrolho. David concordou em encontrar-se com Christiana no pátio das
traseiras. Ela e Joan mantinham-se junto a dois cavalos, seguros pelos moços da estrebaria. Sieg deu meia-volta ao cavalo e David entregou algumas moedas a um Andrew deliciado.
- Mantém Lady Joan entretida nas corridas e nos estábulos. O moço de estrebaria ajudou as raparigas a montar. Christiana
lançou um olhar significativo na direcção de Andrew.
- Ele virá connosco. Necessita de entregar uma mensagem da minha parte a um homem lá na feira - explicou David.
Ela pareceu aceitar essa explicação. Na altura em que chegaram à Strand, Joan e Andrew encontravam-se a uma distância de quatro cavalos à frente deles e Christiana não pareceu importar-se.
- As pessoas têm falado acerca de vós - disse ela finalmente.
David teve a sensação de que Christiana aguardara pelo momento exacto em que Joan se encontrava demasiado afastada para conseguir escutar o que ela dizia.
- As pessoas?
- Na corte. Falam de vós. De nós. De tudo.
- É natural que aconteça, Christiana.
- Este género de coisa não. Não é natural que se fale nelas porque são muito invulgares.
- Não necessitais de dar ouvidos aos mexericos da corte. Eu dir-vos-ei tudo o que necessitardes de saber.
- Sim? - Questionou, erguendo o sobrolho. - Bem, em primeiro lugar, algumas damas conversaram comigo a vosso respeito. Mencionaram o quanto éreis maravilhoso.
- Que damas? - indagou cautelosamente.
- Lady Elizabeth foi uma delas.
Aquilo surpreendeu-o. Ele e Elizabeth mantinham uma velha amizade, mas não fazia o género dela interferir em tais assuntos.
- Sinto-me honrado se Lady Elizabeth fala bem de mim.
- E Alicia. Raios.
O rosto de Christiana era a imagem de uma cuidadosa indiferença.
- Sois amante de Lady Alicia?
- Ela disse-vos isso?
- Não. Todavia, havia algo na forma como ela falava. Quando se oferecera para lhe falar de tudo, não era isto que
tinha em mente.
- Não me parece que queiramos prosseguir com isto, pois não? Eu não vos pressionei para que me désseis os nomes dos vossos amantes. Não devíeis perguntar os nomes das minhas.
Ela voltou-se abruptamente na direcção dele.
- Amantes! Como vos atreveis a afirmar que eu tive amantes! Eu falei-vos de um homem.
- Falastes-me de um homem neste momento. Pode ter havido outros, mas como já disse, possuo uma mente aberta e não perguntei.
- É evidente que nunca houve outros!
- Não há nada de evidente nisso. Mas não tem qualquer importância. - Sorriu para si mesmo perante a consternação dela. Christiana, tenho praticamente trinta anos e não tenho vivido como um monge. Não tenciono ser-vos infiel. Todavia, se o nosso matrimónio for gélido, imagino que farei o que todos os homens sempre fazem e procurarei calor noutro lado.
Abordara deliberadamente um assunto sobre o qual ela não pretenderia conversar. Tal como ele esperava, ela não teve resposta. E assim terminou o assunto de Lady Alicia. Agora falaria de outra coisa. Ficou a aguardar.
- Isso foi o mais irrelevante do que eu ouvi - disse ela.
- De alguma forma, foi o que eu pensei.
- Comprastes-me? - perguntou, baixando as pálpebras. David já perguntara a si mesmo quando é que ela iria ouvir falar disso.
- Não.
- Não? Ouvi dizer que Eduardo exigiu um preço pela noiva. Um preço chorudo. Morvan diz que é verdade.
Estivera à espera disto e estava preparado.
- Pagar um preço pela noiva não é o mesmo que comprar alguém. O preço das noivas tem uma longa tradição em Inglaterra. As mulheres eram honradas dessa forma nos tempos antigos. com os dotes, a mulher é inferior à propriedade. E como se a família pagasse a alguém para a levar e a retirar do seu encargo. Se pensardes bem nisso, os dotes são mais insultuosos do que os preços das noivas.
- Então é verdade?
Ele escolheu cuidadosamente as palavras. Se ela descobrisse a verdade daí a vinte anos, ele queria ser capaz de dizer que não mentira.
- O vosso irmão viu o contrato, tal como vós em breve também vereis. Não há razão para negar que há nele um preço pela noiva.
- E ao invés de me sentir insultada, vós dizeis que eu devia-me sentir-me lisonjeada?
- Sem dúvida. Teríeis preferido que o rei vos tivesse oferecido a mim?
- Eu teria preferido que o rei continuasse a esquecer-se que eu existia - respondeu rispidamente.
Cavalgaram em silêncio durante um minuto.
- Qual é o valor desse lisonjeiro preço da noiva? - inquiriu finalmente.
Morvan não lhe dissera. Em breve veria o contrato. David pensou na fórmula complicada que continha.
- Sois boa a decifrar enigmas? - questionou despreocupadamente.
- Excelente.
Teria de o ser.
- Mil libras.
- Mil libras? - Ela deteve o cavalo e ficou de boca aberta a olhar para ele. - O rendimento de um conde? Porquê?
- Eduardo não aceitou menos. Podeis estar certa de que regateei bastante. Na minha opinião, trezentas libras seriam suficientes.
Os olhos delas semicerraram-se, desconfiados.
- Morvan tinha razão. Este matrimónio nunca fez qualquer sentido. Agora ainda o faz menos.
- Não valeis mil libras?
- Devíeis estar embriagado quando propusestes essa quantia. Sem dúvida ficareis aliviado quando eu vos libertar desse fardo.
- Ele veio, então? Ela ignorou a questão.
- Assim como para a vossa saúde, é bom que este noivado termine em breve. Ouvi dizer que o meu irmão vos ameaçou.
- Ah, isso.
- Dizem que é quarta-feira.
- Eu espero-o na quinta-feira - corrigiu calmamente. - O vosso irmão sabe que tendes conhecimento disto?
- Certamente. Fui ao encontro dele e disse-lhe que não iria admiti-lo.
- A vossa preocupação enternece-me.
- Sim. Bem, ele não me quis dar ouvidos. Mas, como é óbvio, não ireis encontrar-vos com ele.
- É óbvio que irei.
Ela deteve de novo o cavalo. Joan e Andrew encontravam-se agora bem distantes.
- Não podeis estar a falar a sério.
- Não tenho outra opção.
- Não ireis estar na cidade na segunda-feira. Não podeis prolongar a vossa viagem?
- Algum dia terei de regressar.
- Oh, céus - exclamou, franzindo o sobrolho.
Ele fitou aquele belo rosto, agora toldado pela preocupação.
- Ele não me matará.
- Não é por isso - replicou ela com uma franqueza implacável.
- É só que torna a situação ainda mais complicada. Primeiro um duelo, depois um rapto, depois uma anulação... bem, dará um tremendo escândalo.
- Talvez alguém escreva uma canção acerca do caso.
- Isto não tem piada, David. Devíeis mesmo retirar o pedido ou afastar-vos. A espada de Morvan não é brincadeira. Ele pode não vos matar, mas pode ferir-vos profundamente.
- Sim. Mil libras são uma coisa. Um braço ou uma perna é outra. Espero sinceramente que sejais merecedora disso.
- Como podeis brincar?
- Não estou a brincar. Mas permiti que seja eu a preocupar-me com Morvan, minha senhora. Haverá outros rumores ou mexericos que pretendais discutir?
Tinham-se aproximado da cidade, começando a circundar a sua muralha em direcção a norte.
- Sim. Nem todas as damas que vos conhecem foram tão elogiosas. Lady Catherine falou comigo. E com Morvan.
David aguardou. Não fazia a mínima ideia daquilo que Lady Catherine lhes poderia ter contado.
- Ela explicou-me que vós emprestais dinheiro - disse Christiana em voz baixa, como se não quisesse ser ouvida por quem passava.
Ele quase soltou uma gargalhada perante a circunspecção dela. A rapariga vivia num mundo que já não existia, repleto de cavaleiros virtuosos e honra, e histórias a respeito da Távola Redonda do rei Artur. O rei Eduardo acalentava cuidadosamente estas ilusões na sua corte com os espectáculos, festivais e torneios. A uma milha de distância, dentro dos portões de Londres, o tempo movia-se.
- É verdade. Muitos mercadores emprestam dinheiro.
- A usura é pecado.
- Talvez, mas o empréstimo de dinheiro é um negócio. E amplamente praticado, Christiana, e já ninguém pensa nisso duas vezes. A Inglaterra não podia sobreviver sem eles. Um dos meus empréstimos pecaminosos é para o rei, de acordo com as suas exigências. Dois outros são para as abadias.
- Então só emprestais dinheiro ao rei e às abadias?
- com os outros, compro-lhes as propriedades e torno a vender-lhas mais tarde, a um preço e data pré-acordados.
- com lucro?
- E por que outra razão havia de o fazer senão pelo lucro? Não tenho qualquer relação familiar ou de amizade com estas pessoas. Todavia, muitas vezes, quando volto a vender, a minha gestão melhorou o rendimento, portanto talvez o lucro seja deles.
- Quando o prazo chega ao fim, o que acontece se não puderem comprá-la de volta?
Ele tentara suavizar um pouco a imagem deste negócio para o bem dela, e agora amaldiçoava-se por isso. Jurara a si mesmo que não se desculparia perante esta rapariga por ser o que era.
- Vendo-a a outra pessoa qualquer - respondeu secamente.
- Por que não ficais com ela? - perguntou, depois de reflectir durante algum tempo.
Aquele não era o argumento que ele estava à espera. Ele pensava que ela iria censurá-lo por falta de amabilidade e lançar-se num chorrilho de protestos sentimentais pelos desgraçados que pediam emprestado.
- Não fico com elas devido aos malditos decretos do rei Eduardo, que dizem que um homem com um rendimento proveniente da terra no valor de mais de quarenta libras por ano tem de ser armado cavaleiro. Quase me apanhou por duas vezes.
- O que quereis dizer com "quase vos apanhou"? Ser cavaleiro é uma coisa maravilhosa. São mais respeitados do que os mercadores, e pertencem a uma posição social mais elevada. Melhoraríeis a vossa vida se fôsseis armado cavaleiro.
Ela disse aquilo com simplicidade e inocência, expondo um simples facto da vida. Não tinha consciência do insulto que as suas palavras continham e por isso ele preferiu ignorá-las. Desta vez.
- Bem, eu sou um mercador e sinto-me satisfeito com isso. Era como se alguém lhe tivesse dito que preferia ser um demónio
ao invés de um santo.
- Estais a falar a sério, não é verdade? - perguntou ela com curiosidade. - Não quereis mesmo ser um cavaleiro, pois não?
- Ninguém quer, Christiana. A não ser aqueles que já nasceram para isso. E até mesmo muitos desses procuram evitá-lo. E por essa razão que Eduardo emite aqueles decretos. O reino não possui cavaleiros suficientes para as suas ambições. A posição possui cada vez menos atractivos, por isso Eduardo sobrevaloriza a cavalaria e eleva cada vez mais os cavaleiros para os compensar. - Fez uma pausa. Ele ia desposar esta rapariga, por isso ia tentar explicar-lhe. - Não é cobardia, nem medo das armas. Todos os cidadãos londrinos juram proteger a cidade e o reino. Devemos exercitar-nos nas armas e possuir uma armadura que esteja dentro das nossas possibilidades financeiras. Eu possuo um fato completo do maldito metal. Defendemos a nossa cidade e muitos aprendizes são óptimos arqueiros e Andrew é exímio. Mas se pensardes honestamente na vida militar, tem pouco que se recomende.
- É uma vida gloriosa, repleta de honra e vigor!
- É uma vida de matança, rapariga. Por boas causas ou proveito pessoal, pela honra ou pelo homicídio, os cavaleiros vivem para matar. A verdade é que, apesar de todas aquelas palavras bonitas nas canções, é isso que eles fazem. As guerras deles perturbam o comércio, arruinam a agricultura e incendeiam aldeias e cidades. Quando são vitoriosos, violam as mulheres e pilham tudo o que conseguem.
David havia perdido a paciência e esta longa diatribe saiu-lhe sem querer. Christiana fitou-o como se tivesse sido esbofeteada, e ele arrependeu-se daquela explosão de palavras. Ela era jovem e vivera uma vida protegida. Não devia surpreendê-lo que ela nunca tivesse posto em questão o pequeno mundo protegido no qual vivera.
Fora demasiado duro com ela. Afinal, era do pai e do irmão que ele estava a falar.
- Não duvido que ainda haja muitos cavaleiros que sejam fiéis à sua honra e aos seus votos - disse ele, como que a estender um ramo de oliveira. - Consta que o vosso irmão é um homem de valor.
Aquilo pareceu libertá-la da realidade brutal que ele lançara sobre ela.
- Lady Catherine disse mais alguma coisa que vos preocupe?
- A mim, não. Contou-me que comunicou algo importante a Morvan. Ele limitou-se a dizer-me que não era nada de significativo, e preveniu-me que não devia ser amiga dela.
- E fez bem, Christiana. Não quero que cultiveis qualquer tipo de amizade com essa mulher.
- Parece-me que já tenho idade suficiente para escolher os meus próprios amigos.
- Esta não. Quando nos casarmos, devereis evitá-la.
A irritação dela para com ele era visível, mas não disse nada. Voltou a sua atenção para a estrada à medida que se aproximavam de Smithfield.

CAPÍTULO 6
Smithfield ficava adjacente à muralha norte de Londres. Os comerciantes de cavalos tinham os seus animais presos na periferia da área de corridas, e estava em curso
uma animada negociação. Os compradores exigiam com frequência ver os cavalos a correr antes de os adquirirem, e fora deste modo que haviam surgido as corridas informais. Por sua vez, as multidões atraídas por este espectáculo arrastavam falcoeiros, vendedores ambulantes de comida e artistas, e assim, todas as sextas-feiras, Smithfield, o lugar dos mercados de gado de Londres, transformava-se num festival.
Encontraram um homem com quem podiam deixar os cavalos e mergulharam na multidão. Andrew guiou imediatamente Joan numa direcção oposta à dos seus companheiros. Christiana, ainda absorta nas palavras anteriormente trocadas, não reparou. Caminhava com os braços sob a capa, o rosto pálido ruborizado pelo frio.
- Vamos ver os cavalos - disse David. - Ireis necessitar de um assim que deixardes o castelo.
- Não quero que me compreis um cavalo, David.
- Não ireis continuar a usar os estábulos reais depois de nos casarmos. Encontraremos hoje um cavalo apropriado.
- Depois de eu me casar, não vou montar o vosso cavalo apropriado, uma vez que não me vou casar convosco.
- Nessa altura, vendê-lo-ei. Vamos aproveitar que ainda estais aqui para poderdes escolher e vamos ver se há algum. Pelo sim pelo não.
Christiana reprimiu o desejo de se mostrar obstinada e caminhou ao lado dele para irem inspeccionar os animais.
Enquanto avançavam pelo campo a examinar e a discutir os cavalos que viam, depararam-se com diversas possibilidades. Perto do final do circuito, encontraram um cavalo muito apropriado, um pequeno e belo palafrém negro. O proprietário forneceu uma sela e Christiana experimentou-o. Enquanto David chegava a acordo com o homem e tratava que o cavalo fosse entregue nos estábulos de Westminster, ela perscrutou a multidão em busca de Joan e Andrew, há muito ausentes. O campo era demasiado grande e encontrava-se demasiado apinhado de gente para ela conseguir encontrá-los. Era mesmo de Joan esquecer a razão pela qual viera.
Nesse momento, surgiu um bear baiter1 e algumas bailarinas para o entretenimento. Christiana não tinha qualquer interesse no urso, mas as bailarinas fascinavam-na. Na corte, fazia os possíveis por nunca perder um espectáculo de dança, fosse ele qual fosse. Este grupo era bastante rústico e sem grande preparação comparado com outros que ela vira, mas mesmo assim seguiu os seus movimentos ao ritmo simples da música durante bastante tempo. De certa forma, invejava aquelas mulheres a quem era permitido deixar que a música as envolvesse, cujos corpos se moviam e arqueavam tal como imagens em movimento.
- Eu gostaria de ter sido bailarina.
- Vós dançais em banquetes e festins, não é verdade? - inquiriu David.
Christiana enrubesceu. Não se apercebera de que falara em voz alta.
- Sim. Mas isso é diferente. Isso é como uma conversa ao jantar. Aquilo - prosseguiu, apontando para as mulheres - é como uma meditação, penso eu. Por vezes parece-me ver algumas delas em êxtase, como se já nem sequer se apercebessem do mundo à sua volta.
Ela sentiu os olhos dele fixos nela e desviou o olhar do espectáculo para o fitar. O rosto dele ostentava aquela expressão penetrante que lhe dirigia por vezes. Havia algo de invasivo naquela atenção insistente que nunca deixava de lhe causar um certo desconforto.
1 De bear-baiting, desporto medieval muito em voga até ao século XIX, que consistia em manter um urso amarrado enquanto os cães o atacavam. (N. da T.)
É como se eu fosse feita de vidro, pensou ela. Não era justo que ele conseguisse fazer aquilo. Ele sabia como permanecer sempre opaco para ela.
- Penso que faríeis uma bela bailarina - disse ele. - Se pensais que dançar desta maneira vos dará prazer, então deveis fazê-lo.
Finalmente, as bailarinas fizeram um intervalo e a multidão que se reunira em torno delas dispersou-se.
- Devíamos procurar Joan - sugeriu ela, espreitando pela multidão.
- Tenho a certeza de que nos cruzaremos, caso contrário, encontrar-nos-emos junto aos cavalos.
Christiana juntou-se a ele e ambos examinaram os artigos que os vendedores comercializavam. Perguntava a si mesma o que andaria Joan a aprontar com aquele aprendiz, e o que diria Lady Idonia se descobrisse que Christiana a perdera de vista.
Um dos vendedores oferecia iguarias de pão frito ensopado em mel. O odor que provinha do óleo quente era delicioso, e ela lançou-lhe um olhar de desejo quando passaram
por lá. Era um alimento gorduroso e peganhento e exactamente o tipo de acepipe que Lady Idonia não permitia que ela comprasse quando iam a festivais.
David reparou e foi comprar alguns.
- Decerto vai manchar a minha roupa - disse ela, repetindo a razão que Idonia sempre expusera para evitar tais alimentos.
- Cá nos arranjaremos.
Ele pegou num pedaço de pão delicioso e, com um gesto, indicou-lhe que o seguisse em direcção a umas árvores por detrás da banca.
Os vendedores delimitavam a multidão e o campo, e não havia ninguém por ali.
David partiu um pedaço do pão coberto de mel e estendeu-lho. Ela esticou a mão para o agarrar mas
ele afastou-o.
- Não há razão para ficarmos ambos cobertos de mel - explicou ele, e aproximou a massa dos lábios dela.
Exalava um odor quente, agradável, doce e maravilhoso. Abrindo bem a boca para evitar os dedos que o seguravam, esticou o pescoço e comeu o pedaço à sua frente.
Tinha um paladar divinal e ela revirou os olhos de prazer.
Ele riu-se e quebrou outro pedacinho. Ela esticou-se para o morder.
- Devo assemelhar-me a uma galinha - gracejou Christiana por entre risadinhas abafadas, e com a boca cheia.
Os dedos longos voltaram a estender-lhe um pedaço. Ela sentiu algum mel escorrer pelo lábio e tentou apanhá-lo com a língua. David limpou-o com um movimento rápido e suave, a ponta do dedo a roçar a boca dela. O lábio inferior de Christiana estremeceu com a sensação, provocando-lhe um formigueiro no rosto e no pescoço.
O último pedaço era demasiado grande, por isso teve de o morder. Os seus dentes mordiscaram os dedos dele e Christiana enrubesceu, embaraçosamente consciente daquele contacto. David ainda segurava o que restava da iguaria. O olhar dela repousava naquela bela mão enquanto mastigava rapidamente e depois, com hesitação, apoderou-se do último pedaço.
Desta vez a mão dele não se afastou e seguiu a cabeça dela. Os dedos dele roçaram os lábios dela e aí permaneceram. De súbito, Christiana sentiu a massa muito espessa dentro da sua boca.
Ergueu os olhos para ele e viu a ligeira dureza em redor da sua boca. As pálpebras de David cerraram-se enquanto observava os lábios de Christiana a moverem-se sob a sua mão. Instalou-se entre eles uma estranha quietude e ela engoliu com dificuldade o último pedaço de massa doce.
com um movimento estudado e um olhar atento, David passou o dedo a toda a volta da boca dela, recolhendo o mel que aí se acumulara, e depois epalhou toda aquela doçura pelos seus lábios.
Ela sentiu um desejo súbito e escandaloso de lamber o mel que restava naqueles dedos. Ele fitou-a intensamente, como se compreendesse, e passou, um a um, os dedos pela boca, num convite insistente ao seu impulso, acumulando aquele néctar delicioso nos seus lábios.
Aquele gesto hipnotizou-a. Os sons do campo e das corridas esmoreceram até se tornarem num rumor distante. No silêncio tranquilo que a absorvia, conseguia escutar o bater desenfreado do seu coração, provocado pela leve pressão de cada pequena carícia. A intensidade que sempre sentira emanar dele envolveu-a.
Quando terminou, David fitou-a durante um longo momento. Depois, agarrou-a abruptamente pela mão e puxou-a para as árvores.
Ela caminhou aos tropeções atrás dele, sem cooperar, mas também sem oferecer resistência. A expectativa era tal, à medida que abandonavam o santuário do campo, que Christiana ficou sem fôlego. Dizia a si mesma que não queria fazer isto, que não iria com ele, mas foi.
Ele arrastou-a para debaixo de um carvalho gigantesco. com um braço em redor dos seus ombros, cingiu-a num abraço. O outro braço deslizou sob a capa e rodeou-lhe a cintura, pressionando o corpo de Christiana contra o seu enquanto a beijava.
Todas aquelas novas sensações que a haviam apanhado de surpresa tão insidiosamente da última vez explodiram abruptamente em simultâneo. Era como se tivessem estado cuidadosamente enclausuradas durante duas semanas e agora ele tivesse aberto o portão, libertando-as num frenesim. A intimidade do abraço provocou em Christiana uma sensação inebriante, e um frémito avassalador e sensual percorreu-a desde o pescoço até às coxas.
David começou a beijá-la com mais suavidade, lambendo demoradamente o mel enquanto a cingia ainda mais de encontro a si. Christiana tornou-se subitamente muito alerta, mas apenas para ele e para cada contacto ardente da sua boca. A consciência de tudo o resto dissipou-se sob as impressionantes vagas de calor que percorriam, lenta e continuamente, o seu corpo.
A língua dele roçou os lábios dela, convidando-a a abrir-se para ele. com o único fio de raciocínio que lhe restava, Christiana manteve a boca firmemente fechada. Ele sorriu antes de iniciar, com a boca, um percurso descendente.
Teria ela lançado deliberadamente a cabeça para trás para que ele pudesse alcançar a concavidade na base do seu pescoço? Ela não tinha a certeza, mas subitamente a boca dele encontrava-se lá e os braços dela em volta dos ombros dele, e ambas as mãos de David mantinham-na firmemente segura sob a capa, vergando-a aos seus beijos.
Christiana foi-se tornando cada vez mais consciente de cada toque, de cada beijo e de cada reacção estranha e maravilhosa que sentia. Os seus braços erguidos aproximavam ainda mais o seu corpo do dele, e ao sentir, através do tecido das suas vestes, os músculos e o calor que emanava dele, experimentou uma sensação de formigueiro nos seios. A pressão das mãos de David em torno da cintura dela era simultaneamente perigosa e reconfortante. Foi-se tornando também muito consciente de uma outra coisa, de algo imperioso e expectante, ligado à tensão oca que se espalhava pelo seu ventre. Era isso, quase tanto quanto as deliciosas sensações, que a impedia de o deter. A mente de Christiana reflectiu, de uma forma vaga e entorpecida, que David estava a atraí-la para algo que não compreendia bem.
Ele beijou-lhe novamente a boca, e as suas mãos moveram-se. Lenta e suavemente, foi-lhe acariciando o corpo sob o manto, os dedos a demorarem-se junto aos contornos arredondados dos seus seios. De uma forma chocante e insistente, moveram-se ao longo das suas costas, sobre as nádegas e pelas coxas acima. A tensão no seu ventre afligia-a, e algures, no mais íntimo de si sentia uma exigência pulsante.
Uma mão permaneceu na anca, mas a outra moveu-se num sentido ascendente. Ela sabia o que ele ia fazer. Recordou-se da pressão esmagadora de Stephen e o seu corpo retesou-se, quase regressando a si, quase encontrando as forças para o afastar.
Mas ele não a esmagou. Os dedos dele acariciaram a pele em volta dos seios, de uma forma suave e delicada, atormentando-a e levando-a a uma ansiar, desesperada, por algo, não sabia bem o quê. A respiração dela acelerou para um ritmo ofegante, enquanto o seu corpo aguardava.
Quando David finalmente lhe acariciou o seio, ela reprimiu um gemido. O prazer sobressaltou-a e Christiana tentou libertar-se daquele abraço.
Mas David não a libertou. Beijando-a de uma forma maravilhosa e acariciando-a com suavidade, David conseguiu invocar sensações deliciosas.
Os dedos dele tocaram-na como se não existisse nenhum tecido entre ele e a pele dela. Encontraram o mamilo e brincaram com ele até aquela sensação palpitante entre as suas coxas se tornar praticamente insuportável. Ele segurou no botão duro e ávido entre o polegar e o indicador e friccionou-o suavemente.
Desta vez, ela não foi capaz de evitar soltar um gritinho.
A boca dele deslocou-se até à orelha dela e beijou-a com insistência, e depois a bela voz de David fluiu para dentro dela.
- Vamos para minha casa. Fica apenas a alguns minutos daqui pelo portão.
- Porquê? - murmurou ela, ainda entorpecida pela languidez e sensualidade que a mão dele provocara.
- Porquê? Para já porque deveis visitar e conhecer as pessoas que ali residem - respondeu, erguendo a cabeça para lhe beijar a têmpora e a fronte. A mão dele continuava a acariciá-la e era-lhe por isso difícil prestar atenção ao que ele dizia. - E depois porque sou demasiado velho para fazer amor atrás de árvores e vedações.
A atribuição de um nome ao que estavam a fazer veio intrometer-se entre eles como um ruído forte num sonho. Christiana voltou imediatamente a escutar à sua volta o estrondo das corridas, e a mão dele no seu corpo pareceu-lhe subitamente um acto escandaloso. Ardendo de vergonha, afastou o olhar.
- Isto está errado - proferiu ela.
- Não, está muito certo.
- Sabeis o que quero dizer.
Afastou a mão do seio dela, mas manteve-a segura.
- O vosso amante deu-vos assim tanto prazer? - perguntou ele suavemente.
Ela enrubesceu ainda mais. Não conseguia encará-lo.
- Bem me pareceu que não.
- Foi diferente - retrucou, num tom acusador. - Nós estamos apaixonados. Isto é... é... - O quê? O que era esta coisa horrível e maravilhosa?
- Desejo - declarou ele.
Então era isto o desejo. Não era de admirar que os padres pregassem sempre contra ele. O desejo parecia realmente algo perigoso.
- Bem, minha menina, se eu tivesse de ter um sem o outro, optaria por este - explicou ele. - O desejo pode desenvolver para algo mais, mas se ele não existir desde o início, nunca existirá, e o amor morrerá sem ele.
Ele estava a dar-lhe lições novamente, como se ela fosse uma criança. Ela detestava que ele fizesse aquilo.
- Isto está errado - repetiu ela num tom firme, empurrando-o um pouco, impondo alguma distância entre os seus corpos. Sabeis que sim. Estais a seduzir-me. Não é justo.
- A seduzir-vos? Por que razão faria isso?
- Sabe-se lá por que razão estais a fazer tudo isto? Para começar, por que motivo me pedistes em casamento? Por que pagais um preço pela noiva? - Ela observou-o com atenção. - Talvez pretendais levar-me para o vosso leito para que o noivado não possa ser anulado quando ele vier buscar-me.
- É uma boa ideia. Mas isso nunca me ocorreu, porque eu sei que ele não virá.
Ele dissera aquilo desde a primeira noite. E repetira-o de uma forma calma e inexorável.
- Não podeis saber isso - retorquiu ela asperamente.
Mas desta vez houve algo na voz dele que a alarmou. Como se ele soubesse. Como se de alguma forma ele soubesse.
- Ele não está aqui, Christiana. Ele já recebeu a vossa mensagem há muito tempo.
- Talvez não. Talvez o mensageiro não o tenha conseguido encontrar.
- Eu falei com o mensageiro que contratastes. Ele entregou a carta nas mãos do homem a quem ia dirigida dez dias depois de a terdes escrito.
- Falastes...interferistes nisto? Como vos atreveis!
- E ainda bem que o fiz. O vosso mensageiro não tinha qualquer intenção de partir imediatamente para cumprir a vossa missão. Planeava aguardar que um outro encargo o levasse até ao Norte. Podiam decorrer semanas. E mesmo nessa altura, podia tê-la entregue pelo caminho a um sem-número de outras pessoas e poupar uma viagem.
- Mas partiu de imediato, por vós? E entregou-a em mãos?
- Recompensei-o com uma bela soma para o fazer. E para lhe pedir que trouxesse uma resposta.
Ela não recebera nenhuma carta de resposta. Sentiu uma tristeza avassaladora. Não queria escutar as palavras de David, não queria pensar nas implicações. O mensageiro já havia regressado há algum tempo. Se ele tivera tempo de regressar, Stephen também já podia tê-lo feito. Podia, pelo menos, ter enviado um bilhete. Mas talvez
o mensageiro tivesse admitido estar às ordens do noivo dela, e Stephen preferisse não arriscar.
Felizmente, a sua fúria para com David frustrou os seus maus pressentimentos, ou teria desfalecido ali mesmo.
- É isto que apreciais? Destruir as vidas das pessoas? - inquiriu, fitando-o com um olhar feroz.
Ele lançou-lhe um olhar duro, mas que rapidamente se suavizou. A mão dele afastou-se das suas ancas e acariciou-lhe o rosto.
- Na verdade, custa-me muito ver-vos sofrer.
- Então ajudai-me - bradou impulsivamente. - Libertai-me e ajudai-me a ir até junto dele.
Ele olhou para ela de uma forma que a fez sentir-se transparente.
- Não, porque ele não vos quer o suficiente para ficar convosco, menina, e eu descobri que quero.
Por um instante, enquanto os olhos dele a observavam, Christiana pensou ter vislumbrado alguma hesitação, pareceu-lhe que ele poderia realmente fazer o que lhe estava a pedir. Mas a resposta dele aniquilara aquela vaga esperança. Numa atitude petulante, libertou-se dos braços dele com um safanão e afastou-se.
- Quero voltar para Westminster, imediatamente.
Sem uma palavra, David conduziu-a de regresso ao local onde se encontravam os vendedores e para junto de uma mulher que vendia peças de renda. Dirigiu algumas palavras à mulher e depois voltou-se para ela.
- Esta é a senhora Mary. Ficai junto dela enquanto eu vou procurar Andrew e Lady Joan. Não vos afasteis daqui - ordenou antes de desaparecer por entre a multidão.
Christiana teve a impressão de que ele queria evitar a presença dela e também se sentia satisfeita por ele se ter afastado. Dava-lhe ordens da mesma forma que Morvan, e ela não gostava nada disso. Cavalgaremos para norte. Compraremos um cavalo. Ficai aqui e não vos distancieis. Sentia-se feliz por não ter de desposá-lo.
Viver com ele seria como ter o irmão sempre por perto, a criticar continuamente o seu comportamento. Lady Idonia podia ser sempre ludibriada, não era difícil desobedecer-lhe. Este homem seria demasiado astuto para isso.
Sentia-se feliz por ele ter partido por outra razão. Nunca conseguia ter paz com ele por perto. Sabia agora que tinha a ver com aquilo que acabara de acontecer sob a árvore. Alguma dessa excitação, dessa ardência, pairava entre eles até mesmo quando cavalgavam pela Strand e conversavam. Bastava a evocação desses sentimentos maravilhosos para sentir de novo aquele formigueiro pelo corpo.
Ele dera-lhe o nome de desejo. Não lhe agradava muito este desejo. Não lhe agradava muito o facto de tecer laços invisíveis entre eles. A excitação que sentira com Stephen parecia algo insignificante e infantil em comparação com aquilo, e isso também não era do seu agrado.
Stephen. Ele ainda não viera, nem sequer enviara uma carta de resposta... sentiu no peito o aperto de uma dor horrenda e fria. Não queria pensar nisso, não duvidaria dele. Não pretendia, muito em especial, pensar nas implicações que isso teria relativamente a ela e David de Abyndon.
- Aqui estais vós! - Joan apareceu a saltitar na direcção dela, acompanhada de Andrew.
Christiana lançou um olhar à amiga. Joan estava com uma aparência afogueada e bela. Tinha um pedaço de feno no cabelo.
- Sim. Estou aqui. David foi procurar-vos e ordenou-me que ficasse aqui como uma criança. - Reparou no pedaço de feno e retirou-lho do cabelo. - Onde estivestes?
- Oh, por toda a parte - exclamou Joan. - Isto é muito mais divertido quando Lady Idonia não está connosco.
- Imagino. - Ergueu o feno e franziu o sobrolho. Andrew corou e afastou-se.
- Havia um vagão de feno sob uma árvore - respondeu Joan, encolhendo os ombros. - Trepámos a árvore e saltámos. Foi muito divertido.
- Pensei que estáveis enamorada de Thomas Holland.
- E estou. Só estivemos a brincar.
- Joan! Ele é um aprendiz!
- Oh, sois tão má quanto Idonia. Só nos beijámos uma vez.
- Beijaram-se... pelo amor de Deus!
Os olhos de Joan estreitaram-se. - Foi apenas um beijo. Não é como se eu fosse desposá-lo.
Ela disse-o de ânimo leve, mas a advertência era inequívoca. David fora um aprendiz como Andrew, e Christiana ia desposá-lo. Adoro-vos, diziam a voz e os olhos dela, mas não estais em posição de me criticar.
Uma emoção nova e triste interpôs-se. Joan estava a demonstrar que sentia piedade dela. Todos eles sentiam piedade dela, não era verdade? Todo o desejo e prazer do mundo não eram suficientes para contrabalançar isso, pois não?
Nessa altura, David emergiu da multidão. Reuniu-os em silêncio e liderou-os no percurso até junto dos cavalos.
- Parece zangado - sussurrou Joan. - O que lhe fizestes? Era mais uma questão do que não tinha feito, suspeitava Christiana.
Ainda assim, sentia-se bastante satisfeita por ele estar enfurecido. Talvez por esta ser a primeira emoção evidente que via nele. Era a primeira vez que sabia o que ele estava a pensar.
Recuperaram os cavalos e dirigiram-se a Westminster. Joan e Andrew ficaram para trás e começaram de novo a conversar, mas David tentou cavalgar a um passo acelerado. De início, Christiana tentou acompanhá-lo, mas depois limitou-se a abrandar o passo do seu cavalo e deixou-o ir na frente. Aos poucos, também ele começou a abrandar e a cavalgar ao lado dela. O facto de o ter forçado a fazer aquilo divertiu-a.
O silêncio dele tornou-se opressivo, e depois de reparar, com um suspiro, que ele amuava tal como Morvan, deixou de lhe prestar atenção. Ocupou a mente com especulações acerca da casa de Stephen em Northumberland. A preocupação que David despoletara nela por ele ainda não ter regressado ou escrito uma carta de resposta não tardou a desvanecer-se à medida que ia encontrando uma variedade de desculpas pelo seu atraso em escrever ou regressar.
- Estais novamente a pensar nele, não é verdade? - A voz dele, forte e suave, intrometeu-se nos seus pensamentos.
- O que vos faz dizer isso? - inquiriu, sentindo-se culpada.
- A expressão do vosso rosto, rapariga. Está estampado no
vosso rosto.
Ela sentia-se muito segura de que a sua expressão não revelava nada quando pensava em Stephen. Na verdade, fazia os possíveis por isso. Mas a verdade é que David conseguia sempre ver mais e saber mais acerca dela do que ela pretendia.
- Sois uma cobarde, Christiana - disse ele suavemente, mas a pontinha de irritação era inequívoca. - Dir-se-ia que sou demasiado real para vós. Recusais-vos a ver a realidade. Recusais-vos não só a ver que o vosso amante não vai regressar e que este matrimónio vai mesmo acontecer, como também a realidade em relação a nós.
- Não existe nenhuma realidade a enfrentar acerca de nós.
- Eu quero-vos e vós quereis-me. Isso é muito real. Mas não rima com a canção que compusestes, pois não? Continuais a viver de acordo com as palavras que escrevestes na ignorância acerca deste homem e de vós mesma.
- Eu não vivo de acordo com nenhuma canção.
- É evidente que sim. Duelos e raptos são coisas das canções, não da vida real. Os alaúdes tocam quando pensais no homem que vos usou? As vossas memórias são tão coloridas como as que adornam as imagens pintadas nos tecidos ou nas tapeçarias?
Ela afastou o olhar, estremecendo ao ouvir estas palavras ásperas que exprimiam um entendimento da sua mente que ninguém deveria ter. De súbito, sentiu-se novamente indefesa contra os temores que aquelas palavras suscitaram nela. Ele era horrível ao dizer que Stephen a usara. Era cruel. Odiava-o.
- Devia enviar-vos até ele para verdes como terminava a vossa canção. - Disse ele num tom de voz áspero e irritado.
- Então, por que não o fazeis? - exclamou ela.
Ele deteve ambos os cavalos. A mão dele aproximou-se e segurou-lhe o queixo. Ela resistiu ao gesto firme.
- Olhai para mim - ordenou.
Ela voltou deliberadamente o rosto. As mãos dele forçaram a cabeça dela a voltar-se para ele. Os olhos azuis de David faiscaram com algo perigoso.
- Porque ele ia usar-vos uma vez mais antes de ser honesto convosco. O passado é uma coisa, mas agora pertenceis-me. Não permitirei que mais ninguém vos possua assim tão facilmente. Nunca vos esqueceis disso.
Subitamente, apercebeu-se de que o mau humor dele estava relacionado com algo mais do que simplesmente a sua recusa. Envolvia algo mais sério. Tinha a ver com ele, com ela e com Stephen.
Teria ele ciúmes? De Stephen? Não era nada comum nele mostrar as suas reacções, e a sua ira era bem intensa e visível. Seria esta emoção uma daquelas que ele não estava habituado a controlar?
A ira libertava algo de assustador neste homem, e perturbava-a especialmente o facto de o próprio medo parecer estar ligado àquela outra tensão que parecia existir sempre entre eles.
Quando finalmente chegaram, Westminster pareceu-lhe um refúgio, um abrigo de uma tempestade. Desceu do cavalo antes que alguém pudesse auxiliá-la e correu para dentro sem sequer olhar para trás, para David de Abyndon.

CAPÍTULO 7
Christiana ergueu os joelhos e repousou a cabeça na extremidade da ampla banheira de madeira. A água quente quase chegava ao topo e, posicionada assim, podia flutuar um pouco naquele calor tranquilizante. Uma tenda circular de linho circundava a banheira e conservava o vapor, criando um ambiente húmido e abafado que acalmava os seus músculos tensos.
O castelo estava praticamente vazio quando ela chamara os criados para que lhe preparassem este banho. Um rumor que se difundira por Westminster, dizendo que Morvan
se ia encontrar com David de Abyndon na Ponte de Londres, atraíra os cortesãos enfadados como moscas a um doce. Idonia ficara com ela, mas Isabele e Joan tinham-se
unido a um grupo que incluía o jovem príncipe e Thomas Holland.
Nem todas as pessoas aprovavam este duelo. Alguns dos cavaleiros mais idosos consideravam pouco cortês desafiar um mero mercador, mas até mesmo eles compreendiam
a fúria de Morvan. Uma vez que o duelo ia ser público, todas as pessoas assumiam que Morvan pretendia apenas humilhar David, e isso também o tornava mais aceitável. Afinal, estes mercadores esqueciam com muita frequência o seu lugar. Ao esmagar David, Morvan estaria a recordar a todas as pessoas em Londres que, naquilo que era importante, a riqueza jamais poderia substituir a linhagem e a nobreza.
Christiana fechou os olhos e tentou esquecer o aperto que sentia no estômago. Rezava para que David tivesse adiado o seu regresso a Londres como ela havia aconselhado. Já formulara bastantes orações neste sentido durante os últimos dias, à medida que este duelo se aproximava. Não pretendia ver
David magoado. Ele tornara-se uma espécie de amigo, e Christiana tornara-se cada vez mais dependente da sua presença.
Começara a pensar bastante nele desde aquele dia em Smithfield. Por vezes recordava-se da voz suave que escutara no corredor privado do rei. Quanto mais pensava nisso, mais lhe parecia ser David a pessoa que fora abordada por Frans van Horlst. Outras vezes, a sua mente vagueava para a recordação de ambos sob o carvalho. Aquelas memórias eram ao mesmo tempo envolventes e perturbadoras, e tinham tendência para surgir na sua mente quando ela menos esperava.
Qual das opções seria pior? Se David já tivesse regressado da viagem, defrontaria o seu irmão diante de centenas de pessoas e ele forçá-lo-ia a fazer figura de imbecil. Se não tivesse regressado, ficaria conhecido como cobarde. Morvan e a corte provavelmente preferiam esta última. A lição seria ensinada sem que tivessem de recorrer às armas.
Morvan estava a fazer isto por amor a ela, e por preocupação pela honra da família, mas Christiana teria preferido que ele se tivesse mantido à parte do assunto. Só estava a piorar uma situação já complicada, e podia arruinar completamente os seus planos. Será que Morvan pensava que a humilhação obrigaria David a retirar o pedido de casamento? O mais certo era torná-lo ainda mais obstinado. Podia até voltar atrás com a sua palavra de a deixar partir com Stephen.
É certo que Stephen ainda não viera, e que o casamento se realizaria dentro de doze dias. Tentou não pensar nisso, mas estava a tornar-se cada vez mais difícil. Uma coisa era esperar pacientemente, outra era ver o sol pôr-se todos os dias implacavelmente nos seus sonhos por realizar. Ultimamente, dera por si a prestar mais atenção ao som dos cascos dos cavalos sempre que se encontrava no exterior. Talvez ele estivesse a planear um rapto dramático para breve. Imaginava-o a cavalgar ao longo da estrada paralela ao rio, com os seus companheiros mais chegados à sua espera, talvez mesmo no dia anterior ao casamento. Aguardaria assim tanto tempo? Como é que conseguiria chegar até ela e retirá-la de casa? Havia sempre tantas pessoas nas redondezas.
Sentou-se abruptamente.
Não havia quase ninguém no castelo naquele momento.
Não se vira Morvan em parte alguma durante a manhã à medida que o rumor acerca do duelo na ponte de Londres se disseminava pela corte. Quem dera início àquele burburinho? O próprio Morvan? Ou outra pessoa que desejava que Westminster ficasse liberta de toda a sua guarda essencial?
Uma excitação estonteante tomou conta dela. Seria hoje que Stephen viria buscá-la? Se assim fosse, o plano era audacioso e brilhante. Ela não podia ter a certeza, mas de repente tudo fazia sentido. Se Stephen tivesse tomado conhecimento do duelo e da sua localização através de um dos seus amigos daqui, podia muito bem usar essa informação para seu proveito. Não se apercebera de que ele era assim tão astuto.
Sorrindo alegremente, lavou-se num ápice. Levou uma mão ao cabelo preso acima da sua cabeça e reflectiu se teria tempo de o lavar
e secar.
O seu braço paralisou-se ao escutar o som de botas a entrarem no quarto de vestir onde se encontrava a banheira, diante da lareira.
Não podia crer! Finalmente! Afastou a cortina com alegria para saudar o seu amor.
O seu olhar caiu sobre umas belas botas de couro e um gibão azul, simples e despretensioso. De um cinto pendia uma espada e de outro pendiam duas adagas. Olhos de um azul profundo observavam-na, lendo os seus pensamentos como se fosse feita de vidro.
- Aguardáveis outra pessoa? - questionou David. Desapertou o cinto da espada e pousou a arma sobre uma das
arcas que se alinhavam contra a parede do quarto de vestir. Ela deixou cair a cortina e mergulhou na água.
- Não. Só que não estava à espera de vos ver aqui agora - respondeu através da cortina de tecido.
- Eu disse-vos que viria, mas talvez pensásseis que eu estava morto.
- Gravemente ferido, pelo menos, se fôsseis suficientemente louco para irdes ao encontro dele. Por que razão não estais? Aquilo não saiu como ela planeara e fez uma careta. Parecia que estava aborrecida por ele estar bem.
- Eduardo impediu-o, tal como eu sabia que faria. Está a contar com o dinheiro que vou pagar pela noiva.
Ouviu-o encaminhar-se para a parede junto à porta. Mas não saiu. E se ela estivesse certa e Stephen viesse agora? Encontraria David aqui. Morvan não derramara sangue, mas talvez Stephen o fizesse.
- Tendes de ir, David.
- Não me parece.
- Devo terminar o meu banho. Encontrar-me-ei convosco no salão daqui a pouco.
- vou ficar por aqui. Está quente e um ambiente muito agradável.
Ela bateu com a mão na água, furiosa.
- Estais a confiar muito na capacidade dramática e na inteligência dele, minha menina. Stephen Percy não está em Londres nem em Westminster. Não virá hoje nem nos tempos mais próximos.
Ela mergulhou os ombros na água. Ele sabe o que eu estou apensar. Ele sabe o nome de Stephen. Haverá alguma, coisa que ele não saiba?
- Enviei toda a corte para a Ponte de Londres, Christiana. Não queria que ninguém seguisse o vosso irmão até ao local onde efectivamente nos iríamos encontrar.
- Porquê? Para que ninguém pudesse vê-lo vencer-vos?
- Não. Para que, se ele me forçasse a matá-lo, eu pudesse mentir-vos de modo a que vós jamais soubésseis a verdade.
Um profundo silêncio invadiu o quarto. Era absurdo, evidentemente. David jamais conseguiria magoar Morvan. No que tocava à destreza com as armas... e contudo...
Passos aproximaram-se da banheira. A cortina abriu-se e ele entregou-lhe uma toalha através da abertura.
- Já chega por hoje. A água deve estar a arrefecer. Saí e secai -vos.
Ela pegou na toalha e fechou violentamente a cortina com um safanão. Esperou que ele se afastasse. A água estava efectivamente a arrefecer e o vapor havia desaparecido. Estava a ficar frio no banho.
- Chamai a criada, por favor. Ela está no quarto.
- Eu mandei-a embora.
Ela observou a sua nudez. Escutou o silêncio do castelo vazio. Pensou nas suas roupas empilhadas num banco junto à lareira.
O banho estava a perder rapidamente o seu calor, mas o calafrio que a sacudiu não tinha nada a ver com a água.
- Idonia deve chegar dentro em breve, David. Deixar-me-á muito constrangida se ela vos encontrar aqui.
- Lady Idonia decidiu ir passear com Sieg. Um passeio muito longo, ao que parece.
Christiana ficou visivelmente irritada perante este jogo que ele jogava com ela. Pegou na toalha e ergueu-se na banheira, secando os braços e o corpo com movimentos apressados.
Mostraria a este mercador de que estofo eram feitas as mulheres da nobreza.
Enrolou a imensa toalha de linho em volta do corpo, segurando as pontas sob os braços. Saiu da banheira e afastou a cortina com uma perna. A água que lhe escorria das pernas começou a formar poças no soalho de madeira.
Ele estava sentado sobre um enorme baú junto à lareira, de costas para a parede e com um braço pousado sobre um joelho erguido. O seu olhar frio encontrou o dela e depois começou a descer de uma forma vagarosa. Ela reprimiu o pânico que se avolumava no seu peito.
Ele colocara outro cepo no lume, e o pequeno quarto de vestir que albergava os baús onde Isabele guardava os seus vestidos e peles, encontrava-se bastante quente. Christiana sentou-se num banco junto à banheira e começou a dar pancadinhas com a toalha nas pernas para as secar. Não olhou para ele, mas sabia que ele a observava. Esforçou-se bastante para não o deixar perceber que a sua presença a perturbava.
- Como é que soubestes o nome dele? - perguntou, sentindo-se orgulhosa do tom despreocupado da sua voz. Quase tão despreocupado e plácido quanto a dele na maioria das vezes. Excepto quando estava com ciúmes. Lamentou-se interiormente pela sua estupidez. Talvez fosse melhor evitar falar de Stephen Percy, tendo em conta as circunstâncias.
- Soube quem ele era desde o início. Não vos mostreis tão surpreendida. Dissestes-me tudo à excepção do nome dele na primeira noite. Também sei que não sois a primeira rapariga inocente a quem ele seduz, nem sereis a última. Alguns homens têm um gosto especial nisso, e ele é um deles.
As palavras dele esquadrinhavam pensamentos proibidos enterrados profundamente no seu coração, pensamentos que tinham tentado vir à superfície durante a noite, quando permanecia deitada na cama a contar os dias que passavam e os que faltavam. Havia afastado essas preocupações para um recanto escuro, e rebelava-se contra o facto de este homem se aproximar delas.
Fulminou-o com o olhar. Está ali sentado com tanta calma, pensou ela. Olha para mim como se tivesse o direito de aqui estar. Como se eu lhe pertencesse. Preparou-se para os sentimentos de vulnerabilidade e tensão que aquele olhar provocava.
- Odeio-vos - murmurou. As pálpebras dele baixaram-se.
- Cuidado, rapariga. Posso decidir encorajar o vosso ódio. Descobri que prefiro isso à vossa indiferença.
Ele deu um pulo da arca. O movimento fê-la retesar-se.
- Ainda aguardais por ele - disse. - Depois de todo este tempo, e quando a verdade é tão óbvia. Ainda bem que Eduardo me deu a vossa mão em casamento, caso contrário teríeis passado toda a vossa vida à espera e a viver num sonho desvanecido.
- Talvez o faça à mesma. - Ela pronunciou aquelas palavras como uma ameaça arrojada.
- Não. Despertareis hoje.
David deu um passo na direcção dela. Christiana ergueu-se imediatamente do banco, apertando com firmeza a toalha em seu redor e recuando. Ele deteve-se.
Ela não gostava da forma como ele a observava. Pior ainda, não gostava da forma como ela própria estava a reagir a esse olhar. Apesar de toda a sua irritação, percorreu-a um arrepio de expectativa. As recordações intensas e vívidas do prazer que sentira em Smithfield impunham-se à força nos seus pensamentos e no seu corpo.
- Parti, exijo-vos - implorou.
- Agora o vosso irmão está fora disto - respondeu, abanando a cabeça -, assim como Stephen Percy. Não houve duelo e não haverá nenhum rapto. Finalmente, restamos apenas nós os dois.
O coração dela batia com força, desesperado.
- Estais a assustar-me, David.
- Pelo menos tenho a vossa atenção, para variar. Além disso, já vos disse antes, não é medo que sentis comigo.
- Agora é. - E era. Um misto terrível e maravilhoso de medo, expectativa, atracção e recusa. Tal como os fios de uma corda entrelaçados uns nos outros, estes sentimentos retorciam-se e emaranhavam-se, puxando pela sua alma. Se ele não partisse, estava certa de que algo se quebraria.
- Se não partis, fá-lo-ei eu. - Ela conseguiu, de alguma forma, encontrar serenidade suficiente para falar com calma.
- Não vos deterei, Christiana - disse, apontando para a pilha de roupas sobre o banco.
Para sair dali teria de passar por ele. Seria imaginação dela ou aqueles olhos azuis estavam a incitá-la a aproximar-se? Ele está a, gostar disto, pensou, e a ira tomou conta dela mais uma vez, vencendo todos os outros sentimentos durante um momento e dando-lhe coragem.
A filha de Hugh Fitzwaryn não devia temer um simples mercador, pensou resoluta. Uma mulher nobre podia caminhar ao longo da Strand completamente nua que o seu estatuto protegê-la-ia, cobrindo-a como uma armadura de aço. Quantos costureiros e retroseiros do mesmo grau de David a tinham visto despir-se e ficar em combinação enquanto aguardavam pela princesa e pelas suas amigas? Esta toalha cobria-a ainda mais. Tais homens não existiam se ela se mentalizasse disso.
Sim. Esse seria o caso com David de Abyndon.
Baixou os olhos e recompôs-se. Imaginou que ele era um mercador que viera até ali exibir os seus artigos. Permitiu que o seu espírito se afastasse dele e daqueles estranhos sentimentos que surgiam tão facilmente, e deixou-se envolver pelo conhecimento de que ela pertencia à nobreza e ele não passava de um mercador.
Erguendo o olhar, tentou concentrar-se mais na lareira do que nele. Segurando a toalha em seu redor, caminhou calmamente até ao banco e dobrou os joelhos de modo a chegar às peças de vestuário.
Sentiu uns dedos enterrar-se firmemente nos seus cabelos, torcendo-os. As peças de roupa tombaram das suas mãos quando ele a puxou violentamente para cima. Respirando com dificuldade devido ao choque, ela deu pela sua face a escassos centímetros de uns olhos azuis flamejantes.
- Não volteis a fazer isso. - Preveniu. - Nunca mais.
Christiana contemplava a face do perigo e sabia-o. Não se moveu. Quase nem respirava.
Lentamente, enquanto a segurava e a fitava, as chamas arrefeceram e a dureza, abandonou os seus olhos e boca. Christiana apercebeu-se do momento em que ele recuperou o controlo e a ira desapareceu do seu rosto perfeito.
Contudo, a expressão que a substituiu era, à sua maneira, quase tão perigosa quanto a anterior. A mão dele não soltou o seu cabelo. Quando muito, apertou-o ainda mais.
David contemplou lentamente o rosto dela e depois o seu olhar foi descendo pelos ombros nus e pelo pescoço. Ela observava o olhar dele avançar e deter-se sobre a toalha molhada que a envolvia. Nunca havia sido tão cuidadosamente examinada na sua vida. A inspecção lenta e possessiva dele deixou-a tão ofegante e dormente como se tivesse sido acariciada.
Ele puxou-a para si. Um frémito de antecipação percorreu-a. As pernas dela quase não suportaram o seu peso quando o corpo se deixou levar. Ele inclinou a boca na direcção da boca dela.
Christiana lutou contra as emoções. Combateu-as energicamente com todas as suas forças. Mas as suas defesas nunca haviam sido muito fortes face aos beijos dele, e à medida que este se prolongava, e que o outro braço dele a rodeava, fundiu-se nele enquanto todas aquelas sensações deliciosas se apoderavam do seu corpo.
A boca dele movia-se habilmente sobre o seu rosto, pescoço, orelhas e ombros, beijando e mordiscando com suavidade, arrastando-se com doçura sobre os pontos mais sensíveis. Ele brincava com as linhas de tensão que se retesavam no corpo dela como as cordas de um alaúde, atraindo-a para a aceitação. Christiana sabia o que estava a acontecer, mas o prazer ardente de cada beijo fazia com que quisesse mais, e as ondas suaves que fluíam através do seu corpo, provocadas pela carícias nas suas
costas, prometiam um oceano de delicioso esquecimento.
David puxou suavemente pela parte de trás da toalha e ela debateu-se para vir à superfície daquele mar de sensualidade.
- Não - sussurrou.
- Sim - disse ele.
A ponta da toalha desprendeu-se de debaixo do braço dela e deslizou-lhe pelas costas. O temor que não era temor levou-a a guinchar e apertar o tecido com mais força sobre o peito, os braços cruzados sobre os seios.
Ele não procurou afastar a toalha. Desenredando os dedos dos seus cabelos, abraçou-a com mais força de modo a que os braços dela ficassem presos entre os seus corpos. Baixou a boca até à pele mesmo acima das mãos dela enquanto as suas mãos lhe avançavam pelas costas.
A sensação das mãos quentes de David na sua pele nua estimulava-a. Até mesmo a consciência daqueles beijos se esbateu à medida que todos os seus sentidos se concentravam naquelas carícias cálidas. Todo o seu ser aguardava, sentia e saboreava o progresso daquele toque. Nas mais íntimas profundezas do seu corpo, sentiu novamente aquela estranha palpitação.
Ele recuperou de novo a boca dela, e as suas mãos desceram mais um pouco, passando pelas ancas e o fundo das costas, detendo-se finalmente nas nádegas. Ela sobressaltou-se, admirada, mas ele beijou-a com mais força e as mãos permaneceram ali, seguindo os contornos do seu corpo. Aquela palpitação aumentava de intensidade, de calor, e ela compreendeu que era no fundo do seu ventre, perto das coxas, e que as mãos dele estavam lá muito próximas.
A sensação era demasiado intensa, demasiado deliciosa para o deter. A vozinha da sua mente tornou-se muito débil e suave. Aquela percepção racional limitava-se a observar, notando o aroma do homem que a agarrava e o som da sua respiração entrecortada. A expectativa que sentira em Smithfield obliterou qualquer pensamento real e convertia-se agora em algo imperioso e impaciente, e ligeiramente doloroso.
As mãos dele desceram um pouco mais. Acariciou-lhe a parte inferior das nádegas num gesto de intimidade autoritária. Ela soltou um arquejo quando aquele centro de prazer latejante explodiu com um calor branco.
Os dedos dele repousaram no cimo das suas coxas, no ponto em que elas se uniam. Ela sentiu-se como no momento em que aguardava que ele lhe tocasse no seio, só que a expectativa tinha uma qualidade frenética e desesperada e a ânsia pulsante possuía uma realidade física que a impressionava.
Subitamente, o temor que sempre estivera presente quando ele a beijava e tocava subiu das profundezas, do lugar para onde o prazer o havia banido. A vozinha na sua mente admitiu que estava a acontecer algo ali que nunca ocorrera com Stephen.
- David... - sussurrou ela, dando início a um fraco protesto. Ele ergueu a cabeça e fitou-a com uma expressão transformada
e ainda mais bela do que nunca. O brilho caloroso naqueles olhos deixava-a sem palavras.
Ele puxou as ancas dela para mais perto das suas. Os braços dela continuavam a segurar a toalha junto ao peito, e agora não se mantinha de pé por vontade própria. Os dedos perto das suas coxas afastaram-se quando ele a puxou para junto de si.
O ventre dela estava comprimido contra o dele. Ela sentia calor e a solidez do corpo dele. Aquele lugar secreto, dominado pela ânsia e o desejo e tão perto da mão dele, reagiu energicamente.
Os olhos dela arregalaram-se. ;
Ele inclinou-se para a beijar novamente.
- Sim - afirmou ele com suavidade.
Uma ideia muito peculiar penetrou na mente dela e depois impôs-se à força.
Era realmente ultrajante.
Impossível.
Como se tivesse lido os pensamentos dela, David fez deslizar a mão entre a parte de trás das coxas e tocou-lhe com suavidade. Sem esforço, os seus dedos encontraram essa dor faminta.
Ela gritou com o choque do prazer. Retorcendo-se violentamente, soltou-se dos braços dele e limitou-se a fitá-lo.
A reacção dele foi igualmente poderosa. Ela observava-o, ofegante, enquanto a surpresa dava lugar à perplexidade e depois finalmente à ira. Voltando a colocar a toalha em redor do corpo, afastou-se, tentando desesperadamente recompor os seus pensamentos e emoções confusos.
Não queria fazê-lo zangar-se. Queria explicar. Mas explicar o quê? Que uma ideia bizarra e pouco natural daquilo que ele queria dela se tinha inexplicavelmente alojado na sua mente e subitamente parecia... lógica? Provavelmente estava enganada, e se lhe falasse disto, ele pensaria que ela era uma depravada. Ao mesmo tempo, não queria que ele voltasse a tocar-lhe, especialmente daquela forma, até ela descobrir com toda a certeza que não havia confundido tudo.
Ele limitou-se a olhar para ela, o calor belo a desvanecer-se do olhar e a expressão plácida tornando conta dele. Ela sentiu-se como uma idiota, ali de pé, enrolada na toalha, mas não sabia o que dizer.
- Muito bem, Christiana, se não quereis entregar-vos a mim, esperarei - disse, finalmente, encaminhando-se para o lugar onde deixara a espada.
A mente dela retrocedeu. Entrega-te a mim, pedira Stephen naquele dia na cama. Ela pensou que ele se referia a casamento. Mas referia-se a algo diferente, não é
verdade? Teria ela compreendido tudo totalmente mal?
Necessitava de falar com alguém. Agora. Em breve. Quem? Joan? Será que Joan sabia?
David encaminhou-se na direcção da porta. Ides despertar hoje, dissera ele. Santo Deus, mas ela sentia-se desperta agora. Horrivelmente desperta.
- Não regressarei aqui, Christiana. Faremos as coisas à vossa maneira. Hoje fiquei a saber que Eduardo virá ao nosso casamento. O vosso irmão e o rei entregar-vos-ão a mim daqui a duas terças-feiras. Se necessitardes de mim antes, sabeis onde me encontrar.
Daid fez menção de sair. No meio de toda a confusão de ideias que ensombravam a mente de Christiana, surgiu uma questão sobre a qual andava a ponderar.
- Quem é Frans van Horlst, e o que tem ele a ver convosco?
- perguntou bruscamente, sem pensar.
Talvez pelo facto de ser tão inesperada, e irrelevante para tudo o que tinha acabado de acontecer, sobressaltou-o. Recompôs-se rapidamente.
- É um mercador flamengo. Temos negócios juntos.
Ele estava a mentir. Ela sentia-o. Santo Deus, eu não o conheço. Faltam doze dias e eu não o conheço.
O choque das emoções havia-a deixado alerta. Algumas incongruências relativamente a David surgiram subitamente na sua mente. Christiana nunca havia reparado nelas. Nunca prestara atenção.
Havia imensas, e as suas suspeitas em relação a Frans van Horlst vinham juntar-se a elas. Que viagens eram aquelas que ele fazia? Como é que tinha acesso a Eduardo? Por que razão a pedira em casamento e pagava uma exorbitância pelo preço da noiva? Por que razão tinha um criado que se assemelhava a um soldado? Como é que ele sabia que Stephen não viria?
Ele tinha a certeza, disso. Ela sentia-o.
- Quem sois vós, na realidade? - perguntou finalmente.
A questão sobressaltou-o novamente. Por um instante muito breve a máscara caiu e naqueles olhos de lápis-lazúli ela viu camadas e camadas de emoções toldadas. Em seguida, a sua expressão cautelosa regressou e ele sorriu-lhe. Era um sorriso débil que não revelava nada.
- Sabeis quem sou, minha senhora - disse, abrindo a porta.
- Sou o mercador que pagou uma fortuna pelo direito de vos ter no seu leito.
Ela permaneceu com os braços a segurar a toalha contra o corpo e a escutar os passos a afastarem-se através da antessala.
Ele respondera à última questão da mesma forma que ela a havia perguntado, num francês parisiense perfeito.
Christiana aguardou que fosse bem tarde de noite, de modo a que os aposentos e o castelo estivessem mergulhados num profundo silêncio, antes de se esgueirar do seu leito. Na extremidade do quarto, Lady Idonia dormia um sono de pedra, o que não surpreendia Christiana. Idonia regressara do seu passeio com Sieg de rosto afogueado e olhos brilhantes, com uma aparência muito jovem para os seus trinta e oito anos. Sem o lenço na cabeça e com o cabelo em desalinho, tinha apenas murmurado algumas críticas em relação ao criado presunçoso de David, bem como ao amo dele, que dera ordens a Sieg para a levar para longe.
Caminhou cautelosamente os poucos passos até à cama de Joan e esgueirou-se por entre as cortinas. Sentou-se na cama e sacudiu-a pelo ombro. A cama estava envolta em escuridão, o que até lhe convinha. Sentia-se como uma idiota e não precisava de ver a expressão divertida de Joan durante esta conversa.
Sentiu o despertar sobressaltado de Joan e ouviu-a sentar-se.
- Sou eu - sussurrou Christiana. - Preciso de falar convosco. É muito importante.
Joan espreguiçou-se e bocejou, e depois afastou-se para o lado para arranjar espaço para a amiga. Christiana cruzou as pernas e tapou-as com uma parte da colcha.
- Joan, preciso que me expliqueis o que acontece entre um homem e uma mulher quando são casados.
- Oh, meu Deus - disse Joan. - Quereis dizer... nunca ninguém.. Idonia não...
- Idonia explicou-me, quando eu tinha cerca de dez anos, mas parece-me que compreendi tudo mal.
Christiana recordava-se bem do que Idonia lhe dissera. À sua maneira, tinha sido bastante directa, até certo ponto, e nessa altura o assunto parecera-lhe muito peculiar e pouco interessante. Suspeitava que Idonia assumira que ao longo dos anos o senso comum preencheria as lacunas, mas até essa tarde, carecera de imaginação.
- Christiana, ides casar-vos daqui a menos de duas semanas.
- É por isso que preciso de saber.
- Eu diria que sim. Demora um pouco até nos habituarmos à ideia.
- Quanto tempo?
- Para mim, cerca de três anos. Fantástico.
- Então, dizei-me.
- Vejamos - começou Joan com um suspiro. - Bem, nunca assististes ao acasalamento dos animais?
- Vivo na corte desde os sete anos. Onde é que, nestes castelos e palácios cheios de gente, os animais acasalam? Nos estábulos? Nos canis? Não é de certeza no salão
de jantar ou nos jardins. Eu não cresci como vós numa propriedade no campo, Joan.
- Santo Deus.
- Dizei-me sem rodeios, Joan. Linguagem simples. Sem lacunas. Joan respirou fundo e depois explicou sem demoras. Christiana
sentia-se mais tola a cada palavra que escutava. No fundo do seu coração soubera, desde a primeira vez que David lhe tocara, que seria assim, mas a sua mente simplesmente não queria aceitar a terrível lógica daquilo.
Subitamente, as piadas faziam sentido. Vagas frases em canções tornavam-se, de repente, perceptíveis. A mão de Stephen afastando
as suas coxas...
Ele não lhe tinha feito aquilo, mas planeara fazê-lo. Apenas a chegada de Idonia a tinha salvo daquele choque brutal. Ela nem sequer sabia quais eram as intenções dele. David... santo deus.
- Um homem consegue perceber se já fizemos isto antes? perguntou cautelosamente.
Sentiu o olhar penetrante os olhos de Joan através da escuridão.
- Geralmente - Joan explicou-lhe como é que eles conseguiam saber.
Christiana estremeceu perante a ideia da dor e do sangramento.
- Estais a dizer-me que fizestes isto e não sabíeis, Christiana? Isso não faz sentido.
- Não. Pensei que o tinha feito... disse a David que o tinha feito.
Joan mal conseguiu reprimir uma gargalhada abafada.
- Ora aí está uma situação diferente. Normalmente as raparigas precisam de arranjar uma desculpa para o facto de não haver sinais de virgindade. Vós, por outro lado...
- Não troceis de mim, Joan. Isto é sério.
- Sim. Ele pode pensar que mentistes para vos escapardes do casamento, não é verdade?
Sim, pode, pensou Christiana apaticamente. A mão de Joan tocou-lhe no braço.
- Quem era ele? Nunca me apercebi que houvesse alguém. Não admira que tenhais ficado tão infeliz com estes esponsais. Nem sequer vos vi conversar com um homem mais do que uma vez ou duas, excepto, talvez... - A mão dela apertou-a com mais força. Era esse? Stephen Percy? Oh, Christiana.
Ela não concordou nem discordou. Contudo, Joan sabia que tinha acertado, e de certa forma Christiana sentia-se satisfeita por isso. Sabia bem finalmente partilhar aquela agonia, ainda que já se tivesse habituado à dor.
A mão de Joan procurou a sua na obscuridade. Quando falou a sua voz era baixa e solidária.
- Tenho de dizer-vos algo. Em breve escutá-lo-eis, pois circulará pela corte amanhã ou depois. O tio de Stephen esteve na ponte, e eu e Thomas falámos com ele. Ele recebeu hoje um mensageiro de Northumberland. - Ela apertou a mão de Christiana. - Os esponsais de Stephen realizaram-se há dez dias. A união foi preparada quando ele ainda era adolescente.
Uma fissura profunda e imensa abriu-se dentro de si, dilacerando-lhe a alma como aço em brasa. Alcançou o ponto mais profundo do seu ser, libertando, finalmente, todos aqueles terrores, as suspeitas e as dúvidas proibidas. Invadiu-a uma onda de dor, submergindo-a por completo.
- Estou certa de que ele vos ama - acrescentou Joan suavemente. - Sem dúvida foi a família que o forçou a fazer isto. É bastante comum quando os casamentos são arranjados muito cedo.
Sim. Bastante comum. Os homens desposavam mulheres que não amavam nem pretendiam e divertiam-se noutro lado à sua vontade. Viu súbita e nitidamente o quanto o interesse de Stephen por ela, a sua corte, fora fingida e desonrosa. Um jogo de sedução para passar o tempo, sabendo bem que a sua futura mulher o aguardava em casa. Teriam as ameaças de Morvan tornado o galanteio mais interessante, mais excitante?
Pensou na carta que lhe enviara. Teria ele troçado dela? A sua ignorância acerca do que acontecia entre os homens e as mulheres obrigara-a a fazer figura de tola esta noite, mas isso não era nada comparado com a devastadora desolação que esta notícia acerca de Stephen causara. O seu corpo tremia e sentia o coração a arder e a despedaçar-se. Soltou a mão de Joan e afastou-se da cama.
- Lamento, Christiana - disse Joan.
Lutando para controlar as emoções, afastou as cortinas e correu para a sua própria cama. Atirou-se nela de barriga para baixo e, mordendo a almofada para abafar o som, chorou de humilhação e amarga desilusão.

CAPITULO 8
Christiana permaneceu na cama durante dois dias. No primeiro, afogou-se numa dor amarga, repleta de recordações que agora via por um outro prisma. As palavras de
Stephen e o seu rosto não se haviam alterado, mas conseguia agora distinguir, com uma terrível clareza, significados diferentes para tudo. A verdade mortificava-a, e por volta do final do dia quase odiava Stephen Percy por tê-la usado e humilhado.
No dia seguinte, permaneceu numa letargia taciturna, pairando inconscientemente através do tempo. O entorpecimento causado pela confusão mental era tranquilizador, e ela desejou ficar assim para sempre.
No domingo levantou-se da cama e vestiu-se. Conseguiu não pensar muito em Stephen, mas nas poucas ocasiões que o fazia, reabria uma ferida em carne viva, causada pela dor e pela raiva, antes de conseguir banir a recordação da sua mente.
Na terça-feira já se sentia muito melhor, mais recomposta. Até soltou uma gargalhada perante uma piadinha que Isabele proferiu enquanto se vestiam nessa manhã. Os olhares de alívio entre Idonia e Joan fizeram-na rir de novo.
E depois, mesmo a seguir ao jantar, o costureiro chegou para a prova final do seu vestido de noiva, recordando-a abruptamente de que dentro de precisamente uma semana desposaria David de Abyndon.
Essa realidade havia sido engenhosamente obscurecida pelas emoções violentas que se tinham apoderado dela após escutar as notícias acerca de Stephen. Todavia, enquanto permanecia imóvel no vestido rosa prateado, sabia que chegara o momento de encarar os factos acerca deste enlace.
Ia acontecer. Dentro de uma semana, Morvan iria literalmente entregá-la a ele. Residiria na casa que se recusara a visitar, e seria a senhora de uma criadagem que se recusara a conhecer. O centro da sua vida mudar-se-ia da corte de Westminster para a comunidade mercantil de Londres. A sua vida estaria ligada e possuída por este homem para sempre.
Nada voltaria a ser o mesmo. Lançou um olhar a Joan e a Isabele. Continuariam elas a ser suas amigas ? Talvez, mas afastar-se-iam porque a sua vida já não seria aqui. Pensou na animosidade entre Morvan e David. Será que o marido lhe permitiria voltar a ver o irmão? Teria o poder de o recusar.
Durante os seus anos na corte, andara sempre um pouco à deriva, mas o irmão e as poucas amigas tinham servido de âncoras para ela. Após o seu matrimónio, teria apenas David durante muito tempo. Sem ele, estaria completamente sozinha na nova vida que a aguardava.
À medida que ia voltando para que o costureiro examinasse o seu trabalho, ela pensava em David. Queria desesperadamente odiá-lo por estar certo em relação a Stephen, mas não conseguia. Se ele não lhe tivesse apontado o caminho da verdade, será que alguma vez o teria visto? Era tão mais fácil arranjar desculpas para Stephen, como Joan fizera. Como seria tranquilizador evitar a dor real e continuar na ilusão de um amor proibido. Ela não conhecia David muito bem, mas tinha estado muito próxima de não o conhecer em absoluto. Perante a sua indiferença para com ele e lealdade cega para com Stephen, ele tinha tentado prepará-la.
As coisas entre eles tinham ficado feias por sua culpa. Fiel à sua palavra, ele não regressara a Westminster. Ela insultara-o naquele dia de uma forma que não compreendia totalmente.
O costureiro partiu e ela caminhou até junto de uma janela e lançou um olhar ao pátio. Na sua mente, viu David a entrar a cavalo no pátio e a desmontar, e imaginou os seus passos encaminhando-se para os seus aposentos. Na sua imaginação, ele beijou-a, e a pele dela despertou com a calidez dos seus lábios. Permitiu que as recordações se fundissem, desenvolvessem, e sentiu a mão firme dele no seu seio.
Cerrou os dentes contra o desejo que esse toque imaginário despertou. Finalmente, forçou-se a imaginar a união que Joan descrevera.
A imaginação não foi suficiente e a imagem desapareceu, como se tivesse caído um pano diante dela. Dor e sangue da primeira vez, de acordo com Joan. Atraída pelo prazer para o horror.
Ele não viria. Sabeis onde encontrar-me, dissera. Um convite. Todavia, para quê? Para a sua companhia ou para o seu leito?
Surpreendia-se com o rumo que os seus pensamentos estavam a levar. O coração dela ansiava realmente vê-lo aparecer no pátio lá em baixo. Sentia a falta dele, e o facto de saber que ele a aguardava conseguia acalmar a dor daqueles últimos dias. O receio daquilo que ele esperava não conseguia obscurecer as imagens das suas atenções gentis para com ela. Pensar em Stephen ainda feria a sua alma, mas a recordação de David mitigava a devastação.
Constava que ele a queria tanto que havia pago o preço da noiva para a possuir. A ideia do leito matrimonial enchia-a de temor, mas pelo menos David perseguira-a com honradez. Não procurara obter o que pretendia num quarto poeirento numa passagem deserta, como Stephen fizera.
Ele tinha o direito de saber a verdade acerca de Stephen. Mais importante do que isso, ela necessitava de lhe explicar o erro estúpido que cometera acerca da outra coisa. O mundo tratava a virgindade como algo muito sério, e por isso suspeitava que isso tinha muita importância para os homens.
Não seria fácil ir ao encontro dele. Reuniu toda a sua coragem. Iam enfrentar uma vida juntos. Não podia simplesmente encontrar-se com ele no dia do casamento com tanto por resolver entre eles.
Iria ao encontro dele no dia seguinte. Iria no seu cavalo negro e usaria a capa vermelha. Lidaria igualmente com um outro problema.
Nessa noite, desceu ao salão muito antes da ceia e foi em busca de Morvan. Encontrou-o com uma jovem viúva que viera recentemente das Midlands para visitar Filipa. Os seus olhos escuros faiscaram com o seu fogo negro. A pobre rapariga assemelhava-se a um animal assustado apanhado à luz de um archote. Christiana conhecia bem esta reacção feminina ao irmão. Contudo, agora sabia o que ele procurava. Entrou de rompante e interrompeu a sedução, saudando o irmão de forma exuberante e mandando a mulher embora numa atitude rude.
- Mais tarde, Christiana - retorquiu Morvan num tom áspero.
- Agora, irmão - replicou. - No jardim, onde podemos estar a sós, por favor.
Praguejando para si mesmo, libertou a sua presa indefesa e seguiu Christiana até ao jardim ao longo dos corredores. O sol tinha-se posto e o crepúsculo desvanecia-se.
Ele ainda estava enfurecido, mas ela não se importava. As histórias acerca do irmão faziam parte das coisas que agora, de repente, haviam adquirido um novo sentido. Pelo que lhe era dado perceber, ele era pouco melhor do que Stephen, à excepção de que não arruinava a reputação das mulheres virgens.
- Amanhã quero ir visitar David na cidade - explicou. - Quero que me leveis até ele.
- Enviai-lhe um mensageiro e deixai que ele venha até cá.
- Ele não virá. Deixei as coisas muito desagradáveis entre nós da última vez que nos vimos.
- Então deixai que ele aguarde até ao dia do casamento para
vos ver.
- Eu tenho de conversar com ele, Morvan. Há coisas que necessito de esclarecer.
- Tereis anos para falar, graças ao rei. Não vos levarei até ele voltou-se para partir.
Ela bateu com o pé no chão e agarrou-o pelo braço.
- Ele pensa que eu não sou virgem, Morvan. Aquilo deteve-o. Olhou-a com cautela.
- Porquê?
Ela encarou-o com bravura. Agora compreendia o irmão, e a sua protecção exagerada. Tal como David, ele conhecia bem os homens. Ele protegia-a de homens como ele próprio.
- Porque eu lhe disse que não era.
- Mentistes em relação a uma coisa dessas? Até mesmo para evitar este casamento, uma mentira dessas, Christiana...
- Eu pensava que era verdade.
As implicações disto penetraram no espírito dele.
- Quem? - inquiriu serenamente. Demasiado serenamente.
- Não vos direi. Não penseis em forçar-me, Morvan. Está tudo terminado e graças a Idonia a minha virgindade está intacta. Em parte, é culpa vossa, irmão. Se não tivésseis amedrontado todos os rapazes, eu poderia ter alguma experiência sobre as intenções de um homem. Da forma como as coisas estavam, sentia-me indefesa contra eles e, até há três dias, nem
sequer sabia o que ele pretendia de mim. Ele manteve-se silencioso naquela luz cinzenta.
- Santo Deus - exclamou, finalmente.
- Sim. Dezoito anos e ignorante como um bebé. Estive muito perto de aprender da pior forma, não é verdade? E quase fui para o leito matrimonial na mais completa inocência.
- Raios.
- Por isso, não menti a David. O que aconteceu entre mim e esse outro homem parecia corresponder a todos os requisitos, da forma como eu, estupidamente, os entendi.
- E este mercador, mesmo sabendo isso, ainda assim quis a vossa mão?
- Sim. Eu disse-lhe antes dos esponsais. Ele disse que repudiar-me arruinaria a minha reputação.
Morvan abanou a cabeça, pensativo.
- Este matrimónio nunca fez qualquer sentido.
- Não, mas não posso preocupar-me com isso agora. Tenho de falar com ele antes do casamento. Quero explicar-lhe isto.
Morvan pousou o braço em redor dos ombros dela e começou a guiá-la em direcção à porta do castelo.
- É bom que expliqueis. Ele pode magoar-vos mais do que o necessário se não lhe disserdes.
A forma muito franca como ele disse isto surpreendeu-a. Assim como esta nova informação. Talvez devesse ter falado com Morvan ao invés de Joan. Ela sorriu ao imaginar a aflição do irmão quando lhe pedisse descrições directas e sem lacunas.
- Se ides ao encontro de David, ele irá perceber mal a razão que vos levou até lá - disse ele. - Consta que ele vos deseja intensamente. Talvez essa seja afinal a explicação para tudo.
- Então desejava não ter sido tão ingénua. Nessa noite poderia ter trocado o meu corpo pela minha liberdade.
- As coisas não funcionam assim, Christiana. Como é que funcionam? Quis perguntar.
- Bem, irei desposá-lo em menos de uma semana. Quando ele escutar o que tenho para dizer, não irá perceber mal a razão que me levou até lá. Quero ir e quero que me leveis.
Um archote à entrada da porta iluminava o belo rosto de Morvan.
- Então ides ao encontro dele antes do casamento e eu levo-vos até lá? De vossa livre vontade, antes da ordem do rei? Tendo acabado de saber o que este homem espera de vós?
- Espera-me uma vida ao lado dele, Morvan. Quero vê-lo e iniciá-la bem. E quero que ele saiba que vós o aceitais, para que ele talvez não se intrometa entre nós. Sim, vou de minha livre vontade e quero que ele perceba isso.
Morvan soltou um suspiro de resignação.
- De manhã, então. Embora isso dê cabo de mim. Nunca entreguei um presente tão precioso a um homem com quem antipatizo tanto.
Detiveram os cavalos ao fundo da ruela e lançaram um olhar à loja de David. No exterior, encontrava-se uma grande carroça carregada com enormes cilindros, envoltos em pano áspero. Sieg puxava tenazmente uma corda que ia dar a uma roda que se projectava da trave do sótão. Um dos cilindros baloiçava na outra ponta da corda, enquanto ele o içava pela parte lateral do edifício, os seus músculos tensos devido ao esforço, à medida que ele puxava a corda com uma mão atrás da outra.
O cilindro aproximou-se da janela aberta do sótão. Christiana teve um breve vislumbre de uma cabeleira castanho dourada quando um braço forte se estendeu e agarrou a corda, puxando a carga para dentro.
A sua coragem começara a desvanecer-se lentamente desde a véspera, e ela agora debatia-se com a ideia de voltar atrás. Se David estava ocupado hoje...
- Ele parará de trabalhar assim que vos vir - disse Morvan. Incitou o cavalo a avançar.
Ela cavalgou ao lado dele.
- Não sei, Morvan, talvez...
- Ele quer-vos e nada mais importa. Confiai em mim, irmã. Sei do que estou a falar. - Acrescentou com um piscar de olhos.
Morvan ajudou-a a desmontar. Sieg estava ocupado a amarrar outro cilindro à corda e não reparou nela.
- Regressarei daqui a algumas horas. Ao final da tarde. - Informou Morvan.
- Talvez seja melhor voltarmos amanhã. Ele beijou-lhe a fronte.
- Tomastes a vossa decisão com uma mente aberta e um coração honesto, Christiana. Estáveis certa. Este casamento não pode ser impedido e é melhor que converseis com ele. Agora, coragem.
Ela assentiu com um aceno e entrou na loja.
No interior, dois aprendizes atendiam alguns clientes. O mais jovem, o de cabelo escuro, um adolescente de uns catorze anos, aproximou-se dela.
- O meu nome é Michael, minha senhora. Em que posso ser-vos útil?
- Sou Christiana Fitzwaryn. Vim falar com o vosso mestre. Ele está lá em cima?
Michael assentiu, com uma expressão intimidada.
- O meu cavalo está na ruela - disse Christiana, entregando-lhe a capa. - Talvez quando estiverdes livre pudésseis retirá-lo de lá por mim.
Avançou corajosamente pelo corredor. Subiu os íngremes degraus até ao segundo andar e escutou os sons dos alfaiates a conversarem e a trabalharem no compartimento da frente. Junto à parede deste corredor erguia-se outro lanço de escadas, muito íngremes e abertas como um escadote. Caminhou até à sua base e, reunindo toda a sua coragem, levantou a saia para os subir.
Apoiou-se na parede para manter o equilíbrio. Os degraus eram estreitos e traiçoeiros. A concentração distraiu-a e por isso estava quase a chegar ao topo das escadas
quando se apercebeu que tinha o caminho bloqueado. Um som débil captou a sua atenção.
No terceiro degrau a partir do topo, empoleirava-se um gatinho preto. Gemia débil e desamparadamente ao examinar a sua precária posição. Havia chegado até ali de
alguma forma, mas não sabia como subir ou descer.
Christiana vacilou nas escadas. Nunca vira muitos gatos antes e algumas pessoas tinham medo deles. Este, com os seus gemidos débeis e baixos, era adorável. E estava no seu caminho.
Ergueu o gatinho nos seus braços. De início ele enroscou-se contra o peito dela, parecendo quase grato pela segurança. Mas quand ela tentou subir o degrau seguinte, ele guinchou de horror e retesou-se, cravando as unhas no peito dela. Ela soltou um arquejo quando as minúsculas unhas se lhe cravaram na pele.
Passos aproximaram-se no topo das escadas. Andrew, despido da cintura para cima, fitava-a lá de cima.
- David - chamou sobre o ombro.
David apareceu no seu campo de visão. Tal como Andrew, encontrava-se despido da cintura para cima e uma ligeira camada de suor cintilava nos seus ombros devido ao trabalho no sótão quente. Notou com surpresa a definição pronunciada dos músculos dos seus ombros largos, braços e tórax. David exibia uma aparência esguia, robusta e atlética.
Estava pouco habituada a ver homens despidos. No Verão, os cavaleiros e os soldados despiam-se assim quando usavam os campos para praticar, e algumas raparigas faziam questão de passar por lá, mas Lady Idonia havia-o proibido e dava-lhes sermões acerca de pensamentos impuros. Ela contemplava, sem fala, o belo rosto e corpo.
O gatinho decidiu mexer-se. Christiana soltou um grito e cambaleou quando as patinhas daquele corpinho peludo cravaram as unhas na sua pele, subindo até ao ombro
dela, onde o gatinho permaneceu empoleirado.
- Calma - disse David.
Desceu um degrau e sentou-se no patamar, alcançando o gatinho. Retirou cuidadosamente as unhas do animal da pele dela, de modo a que o tecido da capa e do vestido não se rasgasse. Ergueu o animalzinho, que não parava de gemer.
O gatinho macio e peludo, enroscou-se, contente, contra o peito dele. David acariciou-o distraidamente e voltou os seus olhos azuis para ela. A visão das suas belas mãos acariciando aquele pêlo negro contra o seu peito vigoroso era algo incrivelmente sedutor.
- Estais ocupado. Devia ter-vos avisado primeiro - disse ela. Ele voltou-se e colocou o gato no chão atrás dele. Os seus músculos retesaram-se com uma elegância sinuosa.
- Vai procurar a tua mãe - disse, dirigindo-se ao gato.
O pequeno focinho negro fechou os olhos e esfregou-se contra as suas costas antes de desaparecer a correr. Ele olhou de novo para ela e sorriu.
- Não estou assim tão ocupado. Ainda bem que viestes. - Pôs-se de pé e desceu na direcção dela. - Eu ajudo-vos a descer.
Ele comprimiu-se para passar junto dela e auxiliou-a à medida que os seus pés procuravam cegamente cada degrau. A meio da descida ele saltou para o chão, segurou-a pela cintura e pousou-a ao seu lado.
- Ide lá para baixo e aguardai por mim.
Não tinha havido saudação. Nem comentários lisonjeiros. Não perguntara por que razão viera, agiu simplesmente como se soubesse. Christiana apressou-se a descer para a invisibilidade da passagem inferior.
David viu-a afastar-se apressadamente. Tinha-o surpreendido ao vir até aqui. Subestimara-a.
Andrew saltitou pelos degraus abaixo, transportando ambas as camisas. Ainda viu a saia de Christiana a desaparecer ao longe.
- Ela vai fugir - observou descontraidamente. David pegou na sua camisa.
- Quando estiverdes lavado e vestido, ela já terá partido disse Andrew, indicando as escadas com um gesto.
- Agora vais dar-me conselhos acerca das mulheres? Andrew soltou uma gargalhada.
- Mulheres? Céus, não, nem me ocorria tal coisa. Mas por outro lado, ela não é uma mulher, pois não? Não passa de uma rapariga. Aposto que tenho tido mais experiência com elas do que vós, ultimamente. - Enfiou a camisa pela cabeça. - Um minuto são corajosas, no minuto seguinte são tímidas. Primeiro é sim, depois é não. Recordais-vos? Ela usou de toda a sua coragem para vir, e agora está a dizer a si mesma que deve partir. A não ser, evidentemente, que as vossas calorosas boas-vindas a tenham tranquilizado. Portaste-vos bem.
David lançou um olhar às escadas desertas. O sarcasmo de Andrew era justificado. Ele não a havia cumprimentado devidamente e tinha sido necessária muita coragem da parte dela para vir.
Dirigiu-se à sala de contabilidade, pegou no gibão de Andrew e lançou-o sobre ele.
- Então vai até junto dela e empata-a até eu chegar - disse. Bloqueia o raio da porta com uma espada se tiver de ser.
Andrew sorriu e vestiu o gibão.
- Sim. E direi a Sieg que faremos uma interrupção do trabalho com os tapetes. Ele e eu podemos tratar dos últimos antes do jantar, sem vós. - Caminhou de lado até à porta. - Presumo que isto signifique que podemos esquecer a multa do passeio nocturno de ontem à noite.
-Vai!
Seguiu Andrew pelas escadas abaixo e ficou a observá-lo ir em busca de Christiana. Saiu pelas traseiras, dirigiu-se ao poço e começou a lavar a poeira no ar gélido.
É evidente que ela ouvira falar dos esponsais de Stephen Percy. Provavelmente, há cerca de uma semana. Teria sido muito duro para ela? Não gostava de a imaginar a sofrer, mas também não queria que ela arranjasse desculpas para aquele homem. Uma mulher podia passar uma vida inteira a arranjar desculpas para evitar encarar a verdade.
David não parara de pensar em Christiana desde que a deixara na última terça-feira. Raramente reprovava as suas próprias acções, mas durante o dia e grande parte da noite, quando pensava nela, vinha-lhe à ideia a forma como lidara com esta rapariga e interrogava-se se por acaso não teria emitido julgamentos equivocados. Não estava habituado a mulheres tão jovens, evidentemente. Por vezes esquecia-se de que ainda havia algo de infantil nela. Até mesmo o seu cumprimento desta tarde... uma Alicia teria acolhido bem aquela franca aceitação da sua chegada. Mas Christiana não era como Alicia.
Visitara Westminster na segunda-feira, e quase subira até aos aposentos dela. Sentira-se atraído para lá, e apenas um longo debate interior o mantivera afastado. Ela que venha ao meu encontro, decidira. Ou por sua vontade própria, ou no dia do casamento. Mantivera-se firme na decisão até à noite anterior, altura em que Oliver aparecera lá em casa, altas horas da noite, com notícias. E nessa altura, soube que não podia esperar mais por ela.
Ia-se secando à medida que subia as escadas para se vestir. Se não fosse pela chegada prematura daquele navio vindo de Espanha e da sua carga de tapetes, David ter-lhe-ia poupado este custo ao seu orgulho. Ele tencionava ir buscá-la a Westminster essa manhã, e apenas o trabalho o atrasara. Todavia, ela viera primeiro ao seu encontro. Uma pequena oferta para si da Fortuna. Para Christiana, também era melhor assim.
Voltou a descer as escadas. Conseguia ver um pouco de vermelho perto da entrada da loja. Ela já havia pedido a capa. O corpo de Andrew encontrava-se descontraidamente apoiado contra a ombreira da porta, com o pé esticado até à jamba oposta. Não bloqueara propriamente o caminho com a espada, mas a capa vermelha não podia passar.
Caminhou em direcção a eles e Andrew lançou-lhe um olhar significativo. Afastou a perna e permitiu que a capa vermelha entrasse no corredor, directamente para os braços de David.
- Estais pronta para ir, então? - Perguntou David.
- Para ir? - Inquiriu, perturbada pela sua súbita presença.
- Iremos lá a casa. John Constantyn virá jantar, mas primeiro teremos de arranjar algum unguento para os arranhões do gato. Se não tiverdes cuidado, podeis ficar doente.
- A vossa casa... - Sorriu debilmente. - Sim, gostaria de
a ver.
Havia a possibilidade, pequena mas real, de que ela tivesse vindo pedir a anulação. David permitiu a si mesmo respirar de alívio pelo facto de o pedido não ter surgido e por não ter de o recusar.
- Como chegastes até aqui?
- O meu cavalo está no beco, penso eu. Morvan trouxe-me. Estará de regresso daqui a sensivelmente três horas.
Interessante.
- Iremos a pé. vou dizer aos rapazes que tragam o cavalo.
Regressou à loja e deu instruções aos aprendizes, depois regressou para junto dela. Guiou-a ao longo da ruela, com o braço sobre os ombros dela. Gostava de sentir o calor dela, aquele braço sob a sua mão.
O sol brilhava de tal forma que David pôde estudar o rosto de Christiana. Ela estava tão admiravelmente bela como sempre, mas havia algumas mudanças subtis. Ele conhecia bem o seu rosto, tinha decorado os seus pormenores e nuances, e conseguia ler nele a angústia dos últimos dias. Ela voltou a cabeça e os seus olhos cintilantes fitaram-no. Viu igualmente uma mudança naqueles diamantes negros. O seu brilho tinha-se esbatido ligeiramente, como se uma faceta de confiança e inocência se tivesse desvanecido.
Irei obliterar a memória que tendes dele.
Ela continuava a olhar para ele e a abrir os lábios, como se tencionasse falar.
- Estáveis certo. - As palavras saíram finalmente. - Acerca de Stephen. Ele também está noivo. Uma aliança antiga. Mas vós sabíeis disso, não é verdade? Na quinta-feira sabíeis que eu viria a ter conhecimento disso em breve.
Quanto tempo faltaria para que ela conseguisse lê-lo com tanta clareza como ele a lia a ela? Christiana era por natureza inteligente e perceptiva. com frequência, a sua inocência de menina interpretava mal o que via, mas enquanto mulher não o faria.
- Sabia.
- Por que não me dissestes?
- Não me cabia a mim fazê-lo.
- Vós soubestes antes de toda a corte. Até mesmo o tio dele só o soube naquela manhã.
- Mercadores e peregrinos chegam todos os dias vindos do Norte. Trazem notícias e bisbilhotices.
- Perguntastes-lhes?
- Sim.
- Sinto-me uma idiota - proferiu energicamente. - Deveis pensar que as mulheres são tolas e que eu sou uma das piores.
- Não penso isso. E se vos faz sentir uma idiota, não falemos mais do assunto.
Viraram para a rua onde se situava a casa dele. Ela parou e voltou-se para ele. O seu sobrolho franziu-se quando enfrentou o olhar dele.
- Ireis dizer-me agora? Por que razão ides desposar-me?
Ele afastou o olhar da curiosidade confusa dela. Vexada e ferida, pensava que não tinha nada a perder com estas questões directas e respostas francas. Como reagiria ela se ele lhe contasse a verdade?
Qual era a verdade?
Há semanas que não pensava no estranho negócio que a colocara nas suas mãos. Na sua mente, a história de Eduardo tornara-se real, e a licença e o seu pagamento,
a mentira. Era verdade que ele a vira, a desejara e oferecera uma fortuna por ela. O dinheiro tinha sido para ela e a licença viera por acréscimo, e não o contrário. Se o rei amanhã lhe exigisse mais mil libras para poder continuar com ela, entregar-lhas-ia sem pensar duas vezes.
Ele queria-a. Não por uma noite ou alguns meses. Não pensava nela dessa forma e nunca o fizera. Talvez a inevitável permanência do casamento tivesse despertado este desejo profundo nele. Ele queria o seu corpo, a sua alma, a sua lealdade e a sua alegria. Não questionava por que razão a queria. Apenas queria.
- Desposo-vos porque é essa a minha vontade - respondeu.

CAPÍTULO 9
O portão que dava para o pátio encontrava-se aberto. Ela fez uma pausa na passagem e depois encaminhou-se corajosamente para o jardim ensolarado, repleto de mulheres risonhas e tecidos esvoaçantes. Viu duas grandes selhas lado a lado, uma delas sobre um lume brando.
Dia de lavar a roupa.
David deambulou pela confusão de pessoas e roupas. Uma mulher idosa e esguia, com um lenço no cabelo, apressou-se na direcção deles. Ele abraçou a idosa e beijou-lhe a face.
- Disseram que estáveis ausente para um carregamento e não estava à espera de vos ver - disse a mulher, sorrindo.
- Abranda um pouco, para poderdes jantar connosco, Meg disse David. - John também virá. - Voltou-se e puxou Christiana para a frente. - Esta é Christiana. A minha esposa.
Meg examinou-a com olhos velados. A sua boca desdentada abriu-se num largo sorriso.
- É uma beleza, David - declarou com um piscar de olhos na direcção de Christiana. - Cuidado, desde que ele começou a andar que só se mete em sarilhos e diabruras.
David afastou Christiana para longe.
- Vós e as mulheres ficais, Meg. Avisarei Vittorio. Christiana seguiu-o até ao salão.
- A lavadeira Meg conhece-vos há muito tempo - disse ela, enquanto observava as mobílias do vasto salão.
Cadeiras lindíssimas. Uma bela tapeçaria. Belíssimos castiçais em cobre seguravam os archotes de parede.
- A minha mãe trabalhava para ela quando eu era criança. Uma mulher de meia-idade abriu uma porta na extremidade
oposta e chegaram até eles os sons tumultuosos de panelas a baterem umas na outras e de um homem a praguejar. A mulher roliça carregava nos seus braços uma pilha de loiça em prata. Mirou Christiana de cima a baixo. David apresentou-a como sendo Geva, a governanta. Geva sorriu, mas Christiana viu uma expressão crítica nos seus olhos cinzentos penetrantes.
David abriu com um empurrão a porta de acesso à cozinha, que ficava junto ao salão.
- E este é o Vittorio. - Indicou com um gesto um homem rotundo de olhos redondos, que vociferava, com um forte sotaque, ordens a uma rapariga e a um homem que o ajudavam. Bancadas repletas de facas e comida partida aos pedaços delimitavam o compartimento. Na gigantesca chaminé estavam suspensas várias panelas de cobre. Vitorio
inclinou a cabeça para dentro de uma das panelas, inalou e ergueu as suas espessas sobrancelhas negras numa expressão de aprovação relutante.
- Vittorio - chamou David.
O homem obeso endireitou-se e olhou em seu redor.
- Ah! La ragazza! La sposa! - anunciou aos assistentes. Estes interromperam as suas tarefas e cumprimentaram-nos com um sorriso.
Ele apertou-lhes as mãos efusivamente. - Finalmente! Signorina Christiana, eh? Belo nome. Bellissima, David. Exibiu um olhar cómico de aprovação.
- Lady Christiana ceará connosco, Vittorio. Assim como Meg e as outras mulheres.
- Si, si - assentiu Vittorio.
Voltou-se para a cozinha e gesticulou em direcção aos assistentes.
David conduziu-a ao edifício em frente ao portão. Sabia pela sua última visita que a sala de estar era no andar de cima, mas ele levou-a para um simples quarto de dormir, depois de passarem os degraus.
- vou pedir a Geva os unguentos - explicou antes de sair. Christiana despiu a capa. Este quarto continha alguns artigos de
natureza pessoal. Uma única capa estava pendurada num cabide de
parede. Um pente de prata jazia sobre uma mesa. Sentou-se na cama e esperou por Geva.
Contudo, foi David quem regressou e não a governanta. Transportava uma bacia de água, um farrapo e um pequeno pote. Pousou-os sobre a mesa.
Os seus longos dedos destaparam o ombro dela. Christiana contemplou aquela mão e as arranhadelas que ela revelava. David pôs-se atrás dela e começou a desapertar o vestido sem mangas. Ela olhou para ele surpreendida.
- O unguento manchá-lo-á - explicou, indicando-lhe com um gesto que se pusesse de pé e ajudando-a a despir-se. A intimidade daquele gesto simples perturbou-a.
- Este é o quarto de Geva?
A gola do seu cotehardie era baixa e larga e expunha os arranhões. Ele mergulhou um farrapo na água e começou a limpar os pequenos fios de sangue da sua pele.
- Geva habita na cidade com a família e vem diariamente. Este era o quarto da minha mãe. Ela foi governanta de David Constantyn durante dez anos antes de morrer. Ele conheceu-a através de Meg. Ela lavava roupa aqui juntamente com as outras e quando a sua governanta faleceu ele concedeu-lhe o lugar.
- E mais tarde fez de vós seu aprendiz?
- Sim.
David limpou cuidadosamente os arranhões na parte de trás do ombro dela. Christiana tentou ignorar a proximidade dele e a atenção que conferia aos curativos. Reparou mais uma vez nos objectos sobre a mesa. Pareciam ainda conter algo da presença da mulher morta.
Ele ergueu o pote.
- Não vos preocupeis. Não estais a intrometer-vos num santuário. Este quarto é usado pelos visitantes.
Friccionou um pouco de unguento sobre os arranhões, e ela manteve-se muito serena sob a tepidez dos seus dedos na sua pele e o ligeiro ardor do medicamento nas chagas. Ergueu os olhos e viu que ele ainda a fitava. Pensou conhecer aquele olhar.
Era melhor explicar por que motivo viera. Em breve. Necessitavam de um local para falarem a sós, mas não ali naquele quarto.
- Há algum jardim? - Inquiriu ela, pondo-se de pé.
Ele ergueu-lhe a capa até aos ombros.
- Por aqui.
O jardim estendia-se por detrás do edifício e da cozinha e era delimitado por um muro elevado. Nesta altura do ano estava árido, à excepção de algumas sebes e hera, mas dava para ver que no Verão seria luxuriante. Canteiros de flores, entrecruzados com trilhos, estendiam-se até um pequeno pomar de árvores de fruto. Um canteiro maior perto da cozinha conteria vegetais.
- Há um pequeno jardim aqui atrás - disse ele, conduzindo-a para uma porta no muro.
O segundo jardinzinho encantou-a. As heras cresciam por toda a parte, cobrindo as paredes e o chão e invadindo tudo até formar um tecto num pequeno caramanchão disposto num dos cantos. Duas árvores imponentes preenchiam o espaço. No Verão, este local deveria ser fresco e tranquilo. Uma escada exterior ia do jardim até ao segundo piso do edifício.
Ela duvidava conseguir encontrar um lugar mais privado do que este.
- Podemos sentar-nos? Necessito de vos dizer algo.
Sentaram-se num banco de pedra abrigado no interior do caramanchão coberto de hera. Os raios de sol penetravam através da densa cobertura, matizando as sombras com pequenas manchas de luz amarela.
Ela inclinou-se e colheu um raminho de hera do tapete aos seus pés. Nervosamente arrancou as pontinhas das folhas. Provavelmente o melhor era começar.
- Quando nos conhecemos, eu disse-vos... sugeri que não era... que Stephen e eu tínhamos...
- Isso agora não importa.
- Importa, sim. Devo explicar algo. - Tentou recordar-se das palavras exactas que ensaiara.
A voz dele interpôs-se, suave e serena.
- Estais a dizer-me que houve outros?
- Céus, não! Não menti acerca disso. Estou a tentar explicar que não houve nenhum, nem mesmo Stephen. Parece que eu estava enganada. Equivoquei-me. - Pensou que se iria sentir menos embaraçada quando o pronunciasse, mas as coisas não funcionavam assim.
Durante algum tempo, ele não se moveu nem falou. Ela concentrou-se em arrancar as folhas de hera do ramo.
- É difícil uma rapariga equivocar-se quanto a isso, Christiana. Impossível, diria eu - exclamou ele, finalmente.
Santo Deus, ela sentia-se como uma tola.
- Não se ela não souber do que está a falar, David.
O silêncio imóvel dele prolongou-se mais desta vez. Ela suportou-o durante um momento, e depois lançou-lhe um olhar furtivo.
- Estais zangado?
- Estais a pôr as coisas ao contrário. É suposto um homem ficar zangado quando descobre a experiência da sua nova mulher, não a sua inocência.
- Podíeis zangar-vos se pensásseis que eu mentira de propósito. Para vos desencorajar.
- Não penso isso. Na verdade, o que me dissestes explica muita coisa. Quando é que vos apercebestes do vosso equívoco?
Christiana assumira que podia confessar aquilo e dar o assunto por terminado. Nunca esperara uma conversa.
- Na quinta-feira à noite.
Ele permaneceu em silêncio e ela soube que ele estava a recordar-se do episódio no quarto de vestir. O corpo dele pressionado contra o dela. Aquela carícia íntima. O grito de sobressalto dela.
- Devo ter-vos assustado bastante.
Fitou-a com uma expressão calorosa e preocupada. Por vezes conseguia ser um homem muito delicado. Talvez ele até compreendesse o quanto tudo isto tinha sido angustiante. Talvez...
- Não - disse ele com um sorriso débil.
- Não o quê?
- Estais a pensar se, dadas as circunstâncias, podíamos adiar o casamento, ou pelo menos essa parte. Não me parece.
Ela corou intensamente. Era realmente desconcertante que ele lesse os pensamentos dela daquela maneira.
Ele aproximou-se e tocou-lhe ao de leve nos cabelos.
- Embora, tendo em conta esta revelação assombrosa, provavelmente não vos seduzirei hoje, como tinha planeado.
Christiana quase suspirou de alívio e gratidão antes de se recompor. O seu rosto estava ainda mais quente. Todavia, aqueles dedos no seu cabelo transmitiam-lhe uma boa sensação. Reconfortante.
- Quem falou convosco ?
- Perguntei a Joan.
- Mas ela própria não é casada. Tendes a certeza de que vos explicou bem? De que sabeis o que espero de vós?
- Duvido que Joan se engane muito no que diz respeito aos homens
- Sim, quer-me parecer que não - disse ele com uma gargalhada.
Nunca na sua vida se sentira assim embaraçada e envergonhada. Desejou que alguém aparecesse a anunciar a chegada de David Constantyn.
- Quantas vezes estivestes com ele?
Santo Deus. Ela contemplou o seu regaço, coberto agora com pequenos pedaços de folhas de hera e ramos. Sacudiu-os.
- Só uma vez. Não sejais duro com ele, David. Ele teve razões para pensar que eu concordei. A minha incompreensão das suas intenções e acções era tanta...
- Estáveis despida?
A boca dela abriu-se de espanto. Continuou a olhar para o seu regaço, e enquanto o fazia, a mão dele apareceu lá, depositando ali outro raminho de hera. Aquele gesto, e o facto de ele compreender o seu embaraço comoveram-na. Ao mesmo tempo, ele aguardava uma resposta. Parecia estranho que quando ele pensava que ela era experiente, não pedira qualquer informação, mas agora que sabia que não o era, queria que lhe fornecesse estes pormenores. Ela abrirauma porta e ele estava determinado a examinar o quarto todo.
- Em parte. Ele rasgou um dos meus casacos. - A falta de cuidado de Stephen nesse ponto assumira uma qualidade simbólica durante estes últimos dias.
A mão dele continuava a afagar suavemente a cabeça dela, afastando da sua têmpora alguns cabelos.
- Ele tocou-vos?
- Estávamos juntos numa cama. Era difícil não me tocar - respondeu bruscamente. - Não quero falar acerca disto. Por que me perguntais estas coisas?
- Para saber o quão cuidadoso devo ser convosco.
Ela inspirou profundamente. Compreendeu que existia um grau
máximo de embaraço, e que acabara de o atingir. Havia uma certa liberdade no facto de saber que as coisas não podiam piorar.
- Não da mesma forma que vós... da última vez. Idonia apareceu antes disso. Contudo, tocou-me no seio. Magoou-me.
Sabia-lhe bem acusar Stephen disso. Naquela altura pensara que era assim que as coisas se passavam.
- Não gostei - acrescentou, recordando com honestidade a sua reacção ao corpo que a esmagava. - Pensei que era uma dessas mulheres que... que...
- São frias?
- Sim. Uma dessas.
- Ambos sabemos bem que não é assim, Christiana. Além disso, sou da opinião de que não existem muitas mulheres frias. Todavia, há muitos homens que são ignorantes, egoístas ou impacientes. Vereis que eu não encaixo em nenhuma destas categorias.
No fundo do seu coração, ela sabia-o. Era o que a impedia de entrar em pânico quando pensava neste matrimónio, tão inevitável, e agora tão próximo. Fora isso que lhe dera a coragem para vir apesar dos avisos de Morvan sobre aquilo a que esta visita poderia conduzir. Ainda assim, sentia-se satisfeita por ele não tencionar seduzi-la hoje.
Ela aguardou pela questão seguinte enquanto ele a tocava daquela forma apaziguante e vagamente excitante.
Sentia um formigueiro no couro cabeludo devido à leve pressão dos seus dedos. Contemplou o seu regaço e a destruição que distraidamente provocara no segundo raminho de hera.
Havia outras coisas que ela precisava de dizer. Queria dizer-lhe que aceitava o matrimónio. Ele merecia escutá-lo depois de todas as vezes que presunçosamente insistira que jamais se realizaria. Precisava de lhe prometer que seria uma boa esposa para ele, fosse qual fosse o seu significado. Gostaria de lhe agradecer por ser tão paciente com ela. Ela tivera esperança de que todas aquelas coisas fossem mais fáceis de explicar do que a sua primeira confissão, mas agora descobria que eram muito mais difíceis.
Enquanto procurava as palavras certas para expressar as outras coisas e reunia coragem para as dizer, a mão direita dele surgiu no seu campo de visão e pousou no seu regaço, ao lado da sua. David voltou a palma da mão para cima.
Christiana sorriu para a bela mão que esperava por ela. O seu olhar fixou-se na sua robustez excitante e graciosa. Nenhum parente ou sacerdote estaria ali para os unir hoje, mas havia no seu gesto uma oferta e uma promessa muito mais significativas do que o noivado oficial.
Ele compreendeu. Estava a tornar as coisas mais fáceis para ela. Aquela mão dizia que hoje era o verdadeiro início.
Para sempre. A imensidão daquilo ameaçou sufocá-la por um instante, mas ela afastou o medo.
Fora para isso que viera, não é verdade?
Ela colocou a sua própria mão na dele. De sua livre vontade. Ele puxou-a suavemente e ergueu-a, voltando-a de modo a conseguir sentá-la nos seu regaço. Os pedacinhos de hera deslizaram pelo manto de Christiana.
Ela contemplou aqueles olhos azuis profundos, repletos de amabilidade e afecto. Ocorreu-lhe que talvez não tivesse de dizer mais nada.
Timidamente, pousou um braço em redor dos ombros dele. Um tanto desajeitadamente, estendeu a mão e tocou-lhe na face. Era a primeira vez que lhe tocava, ao invés de ser ele a tocar-lhe. A sensação foi diferente desta vez e ela maravilhou-se com a sensação da pele dele sob os seus dedos.
Permitiu que os seus dedos acariciassem a superfície lisa do seu belo rosto, terminando nos seus lábios e afagando levemente aquela boca quente.
Ele não se moveu. Ela ergueu o olhar para enfrentar o dele e reuniu toda a sua coragem. Após uma ligeira hesitação, inclinou-se para a frente e beijou-o.
Ela nunca fizera isto, com ele ou com outra pessoa, e assim que os lábios dela tocaram os dele, ela não sabia o que fazer. Contudo, a sensação era boa e ela pressionou um pouco mais. A boca dele sorriu sob a dela.
Ela afastou-se timidamente.
- Estais a rir-vos de mim porque eu não sei como fazê-lo. A mão dele ergueu-se e acariciou-lhe a cabeça.
- Não. Estou a pensar que esse foi o beijo mais maravilhoso que já recebi.
Ela corou e beijou-o de novo. Desta vez, ele assumiu o controlo, respondendo à singela iniciativa dela.
Ela adorava a forma como ele a beijava. Sempre adorara. As sensações que ele despertava nela eram sempre tão poderosas, doces e estonteantes. Todavia, desta vez ela não se descontrolou totalmente, mas seguiu a sua orientação, agindo como ele, aprendendo com ele. Finalmente, quando David mordeu gentilmente o canto da sua boca, ela afastou os lábios.
Ele não a fez sufocar ou engasgar como Stephen fizera, mas, ao invés, acariciou suavemente o interior da boca dela no início, provocando-lhe arrepios por todo o corpo. Aquela intimidade sobressaltou-a, e quando ele aprofundou o beijo, sentiu uma mudança nele e uma paixão crescente que a excitava quase tanto quanto o seu calor e toque. Estivera sempre tão absorta nas suas próprias reacções que não notara as dele. Partilhar o prazer era muito melhor do que limitar-se a aceitá-lo e, de certa forma, este beijo sensibilizou-a mais do que qualquer outra coisa que tivessem feito antes.
- Oh, céus! - exclamou, arquejante, quando se afastaram.
- Certamente já beijastes desta forma antes.
- Não foi assim tão bom.
- Ah. Bem, talvez seja melhor agora que sabeis que não ficareis de esperanças.
Ela fechou os olhos e gemeu de humilhação.
- Como soubestes? - Murmurou lastimosamente, enterrando o rosto no ombro dele.
- Mantivestes sempre os lábios cerrados - explicou com uma gargalhada -, como se eles fossem o portão para o Paraíso, Christiana. Pensei que simplesmente não apreciásseis. Mas é o único equívoco que contém alguma lógica.
Ela também se riu. Ergueu a cabeça e limpou as lágrimas que lhe afloravam os olhos.
- Oh, santo Deus. Garanto-vos que fazia perfeitamente sentido à luz daquilo que Idonia me explicara quando eu era mais jovem. Deveis pensar que eu sou a rapariga mais estúpida que já conhecestes.
Ele abanou a cabeça.
- Penso que sois a rapariga mais bela que já conheci.
Era simpático da parte dele dizer aquilo, mas não tinha dúvidas
de que ele conhecia muitas mulheres belas. Ainda assim, era bom ser cortejada com palavras bonitas. Ele nunca fizera isso.
- Não acreditais no que vos digo.
- Sou bonita, David. Sei disso. Mas não bela. Não como Joan.
- Lady Joan é como um raio de sol e é uma rapariga bonita, Christiana. Vós, todavia, sois a noite aveludada. Um céu negro disse enquanto lhe tocava no cabelo -, a luz pálida - os dedos dele tocaram-lhe na pele -, e estrelas - disse, beijando-lhe o canto do olho.
O som de vozes intrometeu-se, vindo do jardim principal. Ela lançou um olhar na direcção das vozes, desiludida. Queria permanecer naquele caramanchão secreto durante mais tempo, rindo e conversando com David. Talvez beijá-lo de novo.
- Devemos regressar - disse ele pesarosamente. - John já deve ter chegado.
Depararam com John conversando ruidosamente com Sieg e correndo os olhos pelo jardim em busca de sinais dos amantes, que já estavam de sobreaviso. Dirigiu a David um olhar muito masculino quando o casal surgiu pela entrada do jardim e o saudou.

 


CONTINUA