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CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA
CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

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CAPÍTULO 14
Ensonado, David foi tomando consciência de que as cortinas estavam a ser afastadas. Desviou o rosto da luz ofuscante.
- Raios! - Exclamou uma voz masculina, despertando-o. David abriu uma nesga do olho. A não ser que estivesse a sonhar,
a sua esposa desaparecera e o rei de Inglaterra estava em pé junto ao leito.
- Raios, David. Não estava a sonhar.
- Majestade? - proferiu, erguendo-se nos cotovelos. O rei fitou os lençóis com o sobrolho franzido.
- Pretendeis repudiá-la? Filipa garantiu-me que a rapariga estava intacta, juro. Eu disse-lhe que a mandaria examinar, mas ela e Idonia...
David desviou o olhar para contemplar o mesmo lugar que o rei. A colcha e os lençóis estavam puxados para trás de modo a revelarem um leito matrimonial imaculado.
Raios. A última coisa que ele esperara era alguém ali à procura de provas da virgindade de Christiana. E, além disso, o que estava ele a fazer ali?
- Não permitais que isso vos preocupe, majestade. Não haverá repúdio.
O sobrolho de Eduardo descontraiu-se.
- É muito cavalheiresco da vossa parte, David.
- Eu sou um mercador e os nós os mercadores estamos muito distantes das regras de cavalheirismo. Isso está reservado aos vossos
cavaleiros. Contudo, posso garantir-vos que a minha esposa chegou até mim virgem. Se me tivesse ocorrido que alguém quisesse ver as provas esta manhã, teria sangrado uma galinha.
Eduardo fitou-o sem expressão.
O homem ainda estava meio embriagado. David reparou no manto vermelho. O rei estivera ali toda a noite. Onde e com quem? David decidiu que não queria saber.
- Necessitais de ver os lençóis originais? Eu tenho-os - prosseguiu com uma gargalhada, mas assim que o disse reparou que a mente de Eduardo já avançara para outro assunto.
- Quero conversar convosco. Poupar-vos-ei uma viagem até Westrninster.
David lançou um olhar em seu redor. As suas roupas e as de Christiana ainda continuavam espalhadas por todo o lado.
- Talvez no salão? Eduardo assentiu e afastou-se.
David retirou um manto de um cabide no quarto de vestir, lançou-o sobre os ombros e seguiu-o. Eduardo aguardava-o junto às janelas do salão com uma expressão grave e especulativa no rosto.
David juntou-se a ele e lançou um olhar ao pátio. Uma mulher de cabelo vermelho, criada numa casa da vizinhança, deambulava junto ao poço, rodeada pelos detritos da festa da noite anterior.
- Suponho que tenho de lhe dar algo, não? - questionou Eduardo com um suspiro - Raios, nem sequer me recordo. - Tacteou o manto em busca de uma bolsa ou moedas.
- Ela não é uma prostituta - replicou David. - Aguardai um momento.
Regressou ao quarto de vestir e voltou com um véu de seda púrpura bordado com fios de ouro.
- Extremamente bonito, David - exclamou Eduardo depois de o examinar. - Não tendes algo mais simples? Nem sequer sei se tive algum prazer. Contudo, isto seria bom para Filipa. Uma oferenda de paz...
David regressou ao quarto de vestir e trouxe um véu azul sem bordados.
- Guardais uma caixa inteira de véus para oferecerdes às vossas mulheres? - gracejou o rei enquanto os ocultava no seu manto.
- O melhor é que os oculteis da vossa esposa. Falai depois com o meu tesoureiro do guarda-roupa.
David imaginou-se a chegar a Westminster sem uma nota de débito para reclamar o pagamento de dois véus adquiridos pelo rei para a sua prostituta e para a sua esposa negligenciada.
- Considerai-os como uma oferta - disse num tom seco.
- Queríeis falar comigo acerca de algo?
- Sim. O conselho reuniu-se há dois dias. Ficou decidido embarcar logo depois da Páscoa. Em breve convocarei os barões.
David aguardava pacientemente pelo resto.
- Recebemos a notícia de que Grossmont se envolveu num combate com os Franceses e arrebatou a Gasconha - prosseguiu o rei.
David assentiu. A Gasconha, abaixo da Aquitânia Inglesa, na costa ocidental do continente, era território mantido por Eduardo como feudo para o rei francês. Um dos muitos pontos de debate entre os dois monarcas era o grau de controlo que a França queria exercer ali. Henry Grossmont havia sido enviado para estabilizar a zona.
- Além disso, ele retrocedeu para norte até Poitiers - disse Eduardo. - O porto de Bordéus está agora seguro. Iremos nessa direcção, unir-nos-emos a ele, e prosseguiremos para nordeste. Afinal, não vou precisar deste último pedaço de informação da vossa parte.
- Poitiers é distante de Paris. As chuvas da Primavera dificultarão o avanço das tropas.
- O conselho pensou em tudo isso. Ainda assim, o nosso exército e o de Grossmont constituirão uma força formidável. E desembarcar em Bordéus não apresentará qualquer risco.
Decerto o conselho de barões sabia o que estava fazer. Eram soldados experientes. Mas a David pareceu-lhe uma estratégia vã. Eduardo observava-o com uma expressão divertida.
- Não estais de acordo. Dizei o que vos vai na mente.
Ele sabia que o que ia na mente de um mercador era irrelevante, mas disse-o de qualquer forma.
- Bordéus fica a sete dias de viagem. É uma longa jornada para levar um exército por barco, e arriscai-vos a apanhar ventos desfavoráveis. Os Franceses já aguardam por vós em Poitiers. Mesmo com
uma vitória decisiva estareis muito longe de Paris. Se o vosso objectivo é a coroa francesa, deveis conquistar a cidade e os domínios reais, não é assim?
- Terei vinte mil comigo - replicou Eduardo jovialmente.
- Atravessaremos França como uma lâmina quente a atravessar manteiga.
Tal como todos os exércitos recompensados com o produto das pilhagens, o vosso rastejará por França como uma pena através da nata.
- Aquelas armas que me oferecestes - disse Eduardo com uma expressão meditativa. - Onde estão?
- Não estão perto de Poitiers. Tenho uma aqui, fora da cidade. Se tiverdes espaço num dos vossos navios, é vossa. Enviai-me alguns homens e eu treiná-los-ei a usá-la.
- Ah, bem, um brinquedo desses provavelmente será o suficiente. Necessitarei dos mapas que tendes estado a fazer dessa região. Tende-los prontos? É importante que conheçamos todas as estradas possíveis, e as melhores. Especialmente os lugares onde poderemos atravessar o rio Loire durante as inundações da Primavera.
- Estão no meu gabinete.
O rei seguiu-o através da porta junto à lareira, até ao pequeno compartimento.
Retirou alguns rolos de pergaminho de uma estante e pousou-os sobre a mesa.
- Este é do Norte. Este outro é da Bretanha, desde Brest até à fronteira da Normandia. O maior indica as estradas que saem de Bordéus. - Desenrolou o pergaminho maior. - Recordai-vos de que eu estive aqui em Novembro, e os pontos de travessia do rio, e que aqui estão marcados, são baseados em conversas que tive com as pessoas da região, e não no que vi por mim mesmo. Contudo, as condições das estradas eram óbvias, mesmo no final do Outono. Apontou para uma linha. - Esta estrada é bastante directa para os vossos objectivos e fica em terreno elevado, por isso deve estar em melhores condições do que a principal. Atravessa terra de cultivo, e há poucas cidades ao longo dela.
Poucas oportunidades para pilhagens. Os barões iriam fazer pressão para viajarem pela estrada lamacenta, de modo a poderem pagar os seus séquitos.
- Tendes queda para este tipo de coisas - disse Eduardo, admirando o esboço. - Disse ao conselho que vós faríeis o trabalho e que ninguém seria mais discreto.
- Querei-los todos?
- Podeis trazer-me os outros mais tarde. Levarei este agora. Estamos ansiosos por iniciar os nossos planos - declarou, pegando no pergaminho e colocando-o debaixo do braço. - Foi uma excelente ideia terdes realçado três possibilidades. Conheço a vossa ideia acerca disto, mas será Bordéus.
Sim, pensou David. O exército desembarcará e emhrenhar-se-á num confronto armado. Serão travadas batalhas e serão sitiadas cidades, e os cavaleiros e soldados enriquecerão com as pilhagens. Depois de um Verão de combates, regressareis sem que nada tenha ficado resolvido. Até conquistardes Paris, isto nunca mais terá fim.
O que esta decisão significava para ele e para os seus próprios planos era outro assunto, um assunto sobre o qual ele reflectiria cuidadosamente mais tarde.
Um som atrás deles fez com que ambos se voltassem. Christiana mantinha-se na soleira da porta com uma expressão alarmada no rosto. Trazia uma bandeja com comida e cerveja.
- Majestade - proferiu, entrando rapidamente e pousando a bandeja sobre a mesa. - As minhas desculpas.
Ficaram a vê-la sair.
- Pensais que ela ouviu? - inquiriu Eduardo, franzindo o sobrolho.
- Se assim for, não revelará nada. - Na verdade, não tinha qualquer importância.
Dificilmente se conseguiria pôr a navegar centenas de navios ao longo da costa da Bretanha e França e não ser notado. Haveria pouca surpresa quando esta invasão finalmente acontecesse.
Estaria terminado? Ele sorriu para o rei, mas a mente dele já estava novamente a fazer cálculos.
Na quarta manhã após o casamento, David disse a Christiana que iriam viajar para longe, para norte da cidade.
- Adquiri recentemente uma propriedade em Hampstead explicou ele enquanto se dirigiam lado a lado para os portões da
cidade. - Iremos até lá para que a possais ver. Tenho de falar com alguns dos trabalhadores, e há outros assuntos a tratar.
- É uma quinta?
- Há algumas quintas agregadas a ela, mas é a casa que pretendo que visiteis.
- Muitas quintas?
- Dez, se bem me recordo.
- Não tendes medo que o rendimento vos coloque acima do limite de quarenta libras e que tenhais de ser nomeado cavaleiro? gracejou ela.
- Sim. É por isso que está em vosso nome. é
- No meu nome!
- É vossa. Pertence-vos, assim como as rendas das quintas.
Ela absorveu estas novidades surpreendentes. As mulheres casadas quase nunca possuíam propriedades. Iam directamente para os maridos. A única mulher que ela conhecia
que possuía terras era Lady Elizabeth. Joan dissera-lhe que Elizabeth pedia sempre que as propriedades ficassem no seu nome como parte dos seus acordos de casamento com aqueles idosos.
- O solar que Eduardo fixou como dote também é vosso, Christiana.
- Porquê, David?
- Quero que fiqueis ciente de que estais segura, e sem terras jamais vos sentiríeis assim. Sinto-me confortável com a minha riqueza baseada nos créditos e na moeda, mas convosco é diferente. Além disso, é frequente correr riscos nos meus negócios, por vezes, grandes riscos. Preciso de saber que caso o meu raciocínio falhe, vós não sofrereis.
Fazia algum sentido, mas mesmo assim, deixava-a espantada.
- Há algo que deveis saber acerca desta casa - acrescentou mais tarde quando descreveram uma curva na estrada e entraram numa rua estreita. - Adquiri-a através de um empréstimo. Também deveis saber que pertencia a Lady Catherine. Se isso não vos agradar, podeis vendê-la e adquirir outra noutro lado. Mas terá de ser perto de Londres. Quero que tenhais um lugar para ir quando as doenças de Verão se espalharem pela cidade.
A ponta de culpa que Christiana sentia desapareceu assim que avistou a casa. Um edifício imenso, com uma base em pedra e o nível
superior de madeira e estuque, erguia-se majestosamente no interior de uma muralha de pedra no final dessa ruela, rodeada por outros edifícios e jardins. Uma série
de janelas envidraçadas no segundo piso denunciava a sua construção recente.
Os trabalhadores estavam a assentar ladrilhos no chão do salão quando eles entraram, e David foi falar com eles. Christiana foi explorar os outros compartimentos. Havia pouca mobília, e o edifício ecoava com os passos deles. David explicou que deixaria a decoração da casa ao encargo dela.
- Precisamos de cavalgar pela propriedade - disse ele no momento em que pediam os cavalos. - Estão uns homens à minha espera noutra parte.
Os homens trabalhavam a cerca de oitocentos metros de distância num campo aberto. Três deles encontravam-se em redor de um gigantesco cilindro de metal, mais estreito no topo do que no fundo, suportado por cepos e voltado para cima. Ao aproximarem-se, um homem corpulento de cabelo preto explicou algo aos outros.
- O que é aquilo? - perguntou ela?
- Um brinquedo. Já vereis como funciona.
David amarrou os cavalos a uma árvore e dirigiu-se aos homens. Christiana aconchegou melhor a capa ao corpo e sentou-se nas ervas secas, perto de uma pequena fogueira, enquanto David e os homens se ocupavam do brinquedo e se moviam demoradamente em seu redor, muito apreensivos. O homem de cabelo negro acocorava-se com frequência junto à extremidade mais baixa do cilindro, espreitando ao longo da sua extensão. Os olhos dela seguiram a linha de visão do homem, e à distância via um decrépito edifício de madeira.
David verteu alguma areia para dentro do engenho, proveniente de uma bolsa de couro e introduziu um pau pela mesma abertura. Retirou uma pedra enorme que se encontrava em frente. Tinha sido obviamente trabalhada por um pedreiro, pois a pedra era perfeitamente redonda. Ele fez rolar a pedra para o interior do cilindro, em seguida, aproximou-se da fogueira e ergueu uma tocha em chamas.
- Tapai os ouvidos - disse a Christiana.
Acendeu um fio que saía da parte mais baixa do brinquedo.
Um momento depois, o silêncio de Inverno foi quebrado pelo ribombar de trovão mais forte que ela jamais escutara. O cilindro expelia fumo e retrocedeu com um coice. Ela deu um pulo e dirigiu-se
ao cilindro fumegante. O homem de cabelo negro afastou os outros dois para o lado e começou a explicar algo que soava bastante a geometria.
- O que é isto? - perguntou ela, espreitando para o interior oco do cilindro ainda quente.
- O futuro. Chama-se canhão.
Ela caminhou junto a ele e reparou na pilha de pedras redondas ali empilhadas.
- É uma máquina para cercos, não é?
- Sim.
Ela sabia mais do que gostaria acerca de máquinas para cercos. Quando era criança vira as torres e catapultas a serem construídas no exterior de Harclow. Assistira aos horríveis danos que elas provocavam e vivera no pavor daqueles mísseis voadores e cestos de fogo. Ela lançou um olhar ao edifício da quinta. Restavam apenas as ruínas das paredes laterais. Era antigo e construído em madeira, mas este brinquedo possuía mais força no arremesso das suas pequenas pedras do que qualquer uma das máquinas que ela vira em Harclow.
- Planeais construir e comercializar isto?
- Não. Mas serão construídos por outros. É inevitável. Tive conhecimento deles na minha primeira viagem a caminho de casa. Havia uma demonstração perto de Pisa. Nessa altura não funcionavam muito bem, e nunca atingiam o alvo, mas já foram melhorados. Fascinam-me, é tudo. Este é para Eduardo. Outros reis os possuirão, por isso ele deve ter um. - Encaminhou-se para os cavalos.
- vou verificar o edifício. Podeis vir, se assim o desejardes. Ela não estava bem certa de o desejar, mas acompanhou-o de
qualquer forma.
Ela lançou um olhar às ruínas do edifício. Não admirava que David não pretendesse ser um cavaleiro. De que serviam armaduras e escudos contra máquinas de guerra como esta?
Havia outros edifícios perto, todos eles ao abandono. Este local fora em tempos uma quinta de cavalos com muitos estábulos.
- Devo dizer-vos que esta parte da propriedade não vos pertence - explicou enquanto desmontava.
Não havia sinais de trabalho ali. Parecia que David mantivera para si mesmo a parte mais pobre da propriedade.
- Necessitais de um campo com edifícios em ruínas para brincardes com os vossos brinquedos?
- Sim. - Concordou, conduzindo-a até um dos estábulos. E para recolher os materiais que os fazem funcionar.
O telhado desta estrutura encontrava-se num estado avançado de degradação e os raios de sol penetravam pelos orifícios. David entrou num dos estábulos e agachou-se. Esfregou os dedos na terra seca e ergueu a mão. Nos seus dedos brilhava uma substância da textura da areia.
- Este material encontra-se em estábulos como este, que foram usados durante muito tempo, e noutros locais onde residam animais. É importante para fabricar o pó que faz com que a máquina funcione. Consta que o segredo foi trazido por via terrestre desde Catai, no Extremo-Oriente. Não possui um nome no nosso idioma, embora muitas pessoas o denominem como salitre.
- Aqueles homens lá atrás estão a mando do rei?
- Dois sim. O outro trouxe a máquina de Itália.
- Será que Eduardo vai usá-la? Irá levá-la para França? Para Bordéus?
Ele não lhe respondeu. Montaram os cavalos e cavalgaram até junto dos homens, que já tinham preparado a máquina novamente. David falou em italiano com o homem de cabelo negro e depois afastou-a.
- Sei que escutastes a conversa de Eduardo no meu gabinete, Christiana - declarou ele finalmente. - Sabeis, decerto, que não podeis repetir tais coisas. Mesmo quando todas as pessoas suspeitarem ou falarem acerca disso, devereis fingir ignorância.
Então era verdade. Ela escutara o rei mencionar Bordéus e vira o rolo de pergaminho sob o seu braço. Era um daqueles mapas que ela vira naquele dia no gabinete de David. O marido dela não se limitava a entregar mensagens. Também cumpria outras missões para o rei. Missões muito mais perigosas. Perigosas e importantes o suficiente para o rei lhe falar acerca de Bordéus.
Ela rezava para que David se mantivesse afastado disso, agora que Eduardo havia escolhido a sua rota. Ele não era um cavaleiro nem um nobre. Não era justo que o rei o usasse desta forma quando David obteria pouco lucro até e perdas significativas devido a essas guerras.
Aproximaram-se da casa pelas traseiras. O vagão dos ladrilhos havia desaparecido. Todavia, havia um cavalo amarrado na parte lateral da casa, e ao lado dele encontrava-se um homem.
David deteve o seu cavalo. Lançou um olhar intenso ao recém-chegado.
O estranho era um homem de estatura elevada com longos cabelos brancos e barba aparada. Envergava uma capa castanho-escura, que não passava de um manto disforme, e que lhe dava pelos pés. O cavalo junto dele tinha um aspecto ossudo e decrépito.
David desmontou e ergueu Christiana da sela.
- Esperai aqui fora enquanto eu converso com este homem.
- Está frio.
- Lamento, mas não quero que entreis.
Haviam estado durante a maior parte do dia no exterior e já há algum tempo que o frio havia penetrado através da sua capa.
- Subirei ao salão e vós podeis usar o salão - sugeriu ela.
- Não podeis entrar em casa enquanto ele estiver aqui - ordenou rispidamente, fitando o homem. - Insisto que me obedeceis nisto, minha menina.
O tom de voz dele espantou-a. Observou a atenção dele totalmente concentrada na figura junto à casa. Naquele momento, para ele ela havia desaparecido por completo. O afastamento era tão pronunciado que ela se sentiu mais distante dele do que nunca, mais até do que na noite em que o vira pela primeira vez, um perfeito estranho, na sala de espera da casa dele. Esta súbita indiferença, contrastando tão vividamente com a constante atenção que ele lhe dedicava desde o casamento, fez-lhe doer o coração.
Lançando ao estranho um último olhar avaliador, dirigiu-se a passos largos para o jardim.
David encaminhou-se lentamente para a casa, e a cada passo que dava o silêncio sinistro que o dominava ia-se intensificando. Pensamentos dispersos surgiam-lhe desordenadamente na mente, e no seu peito eclodiam emoções estranhas. Emoções que ele não podia dar-se ao luxo de reconhecer nem avaliar nesse momento.
Nem podia dar-se ao luxo de se entregar ao habitual fascínio de escutar o som da roda da Fortuna a rodar mais uma vez. Estremeceu.
O homem aguardava e observava. O seu porte era demasiado imponente e altivo para que a capa de trabalhador constituísse um disfarce eficaz, mas David duvidava que qualquer outra pessoa prestasse muita atenção a isso.
Esperara que este homem um dia viesse ao seu encontro, mas não hoje nem naquele local. Para começar, Oliver ainda não recebera qualquer relatório. Isso devia significar
que o homem teria vindo de um porto setentrional, e não de um ao longo das costas ocidentais ou meridionais. Teria feito, então, um grande desvio, para garantir
a sua segurança. Era o tipo de estratégia refinada e cuidadosa que David apreciava. Também viera sozinho. Ou era muito corajoso ou estava muito seguro de si. Provavelmente, as duas coisas.
Amarrou as rédeas do cavalo a um pilar perto do edifício do estábulo e depois encaminhou-se para o homem. A cabeça branca era da altura da sua. Uns olhos castanhos
e penetrantes fitaram-no cuidadosamente.
Não se cumprimentaram, mas David suspeitava que a estranha familiaridade que estava a sentir era mútua.
- Como foi que me encontrastes?
- Frans soube que havíeis adquirido esta propriedade através do proprietário anterior. Lembrei-me que talvez trouxésseis aqui a vossa noiva. É uma bela jovem, a propósito. Digna da sua linhagem. Digna de vós.
David ignorou o elogio, mas reparou que não era um daqueles elogios que um homem como este faria a um mercador.
- Frans é amigo de Lady Catherine? Ela é uma das vossas? Uma espiã?
O homem hesitou e David teve a sua resposta. Sem dúvida Lady Catherine faria qualquer coisa por dinheiro.
- Devíeis ter aguardado até que a minha esposa não estivesse comigo. Não a quero envolvida nisto.
- Não posso esperar para sempre. Estou aqui a correr um grande risco. Se tivésseis saído de junto dela por algumas horas...
A voz do homem esmoreceu e o silêncio instalou-se entre eles. Assim permaneceram durante algum tempo, frente e frente, sabendo que aquele que falasse primeiro ficaria em desvantagem.
David permitiu calmamente que o tempo passasse. Tinha muito
mais experiência em aguardar do que o seu hóspede. Aguardara uma vida inteira, na verdade.
- Sabeis quem eu sou? - perguntou ele finalmente.
- Sei quem sois. Presumo que procurais o que Frans procurava, e uma vez que lhe disse que não o ajudaria, desconheço o motivo deste encontro.
O homem abriu o manto e retirou um pedaço de pergaminho dobrado.
- Este é um dos vossos. Foi encontrado entre os papéis de Jacques van Artevelde.
- Eu e o vosso homem já discutimos a minha relação com Jacques. A minha correspondência com ele limitou-se apenas a assuntos de comércio, nada mais.
- A relação dele convosco e com pessoas como vós fez com que ele fosse morto.
Jacques van Artevelde, o líder dos cidadãos pro-ingleses de Ghent, havia-se tornado um amigo. A morte dele no ano anterior às mãos da populaça havia sido mais do que uma perda política para David, e não lhe agradou esta brusca referência ao facto.
Era escusado dizer que o conde da Flandres estivera por trás do assassinato perpetrado pela populaça. Teria este homem estado igualmente envolvido?
- Encontrámo-nos para negócios e nada mais - disse David num tom tranquilo.
- Deixemos os joguinhos de lado, mestre David. Tal como Frans explicou, nós temos conhecimento do que se passa na vossa vida. Não tudo, decerto, mas o suficiente. Além disso, não foi o conteúdo desta carta que o fez trazê-la até mim. Foi o selo. - Os seus longos dedos brincaram com o pergaminho. - Um selo invulgar. Três serpentes entrelaçadas. Como é que ele está em vosso poder?
- Era uma peça de joalharia que a minha mãe possuía. Um artigo tão útil como qualquer outro.
- Esta peça de joalharia, era um anel? com uma pedra cinzenta ?
David permitiu que o silêncio se intensificasse à medida que absorvia esta questão surpreendente e as suas inesperadas implicações.
- Sim. Um anel.
O homem soltou um longo suspiro. Aproximou-se mais e perscrutou o rosto de David.
- Sim, consigo vê-lo. Os olhos, mas não a sua cor. Os dele eram castanhos. A boca. Até mesmo a vossa voz.
David enfrentou aquele olhar penetrante sem se desviar.
- Eu, evidentemente, não tenho forma de saber se estais certo ou se mentis. Quereis algo de mim.
É do vosso interesse pretender uma semelhança.
- Não vim aqui para vos convencer a cometer uma traição.
- Só o facto de me encontrar aqui convosco já pode ser encarado como uma traição. A vossa presença aqui compromete-me. Devíeis ter-me dado hipótese de escolha.
- Era essencial que vos visse. Eu tinha de saber. Certamente compreendeis isso.
- Não sei bem se compreendo.
- Por que razão nunca viestes ao nosso encontro?
- Nunca necessitei de vós, nem vós de mim.
- Necessitamos do vosso auxílio agora.
David examinou a expressão séria e expectante do homem.
- Deveis querer isto tremendamente, para apelardes a um estranho.
Uns olhos sagazes encontraram os de David.
- Sim. Quero isto tremendamente. Quero-o pelo meu país, mas também por mim mesmo, e não sois assim tão estranho. Encarreguei-me de recolher informações a vosso respeito. Os vossos feitos no comércio não vos satisfarão durante muito mais tempo. Aquelas pequenas vitórias que obtivestes já vos parecem fracas e superficiais, não é verdade? Especialmente quando comparadas com a política das monarquias.
David afastou o olhar, sabendo, ao fazê-lo, que demonstrava uma certa derrota.
Fez um gesto para que o homem o acompanhasse para dentro de casa.
Christiana aconchegou-se na sua capa, sentada num banco do jardim sob uma árvore. Não se sentia nada satisfeita por estar confinada ao exterior enquanto David se encontrava na sua reunião
secreta. Ainda se sentia menos satisfeita com a forma como ele a havia dispensado, e com o seu tom de voz quando exigira a sua obediência.
A presença daquele homem tão alto fora obviamente uma surpresa para ele, e isso explicava,
em parte, as coisas. O estranho não era nenhum mercador, apesar da sua capa simples e do cavalo humilde. Era-lhe tão fácil ocultar o seu verdadeiro estatuto quanto a sua estatura. Ela reconhecera-o por aquilo que ele era. Os nobres
reconheciam-se uns aos outros em qualquer lado e em qualquer situação.
Já estavam a conversar há muito tempo. As mãos dela estavam um tanto entorpecidas devido ao frio, e escondeu-as nas pregas da capa.
Se David não viesse buscá-la em breve, iria desobedecer-lhe e entrar. Uma coisa era ser uma esposa obediente, e outra completamente diferente era congelar no jardim como uma idiota que não sabia quando devia entrar em casa para se proteger do frio.
Bateu com os pés no chão e aconchegou-se mais. Tentou distrair-se com pensamentos sobre a estranha invenção que David lhe mostrara anteriormente. Para alguém que não apreciava cavaleiros e guerra, David possuía um fascínio peculiar pelas máquinas para cercos.
Os olhos dela perscrutaram a casa em busca de algum sinal de movimento. Provavelmente estariam no salão em frente. Do lugar onde se encontrava conseguia avistar a garupa do cavalo do estranho que estava amarrado à parte lateral do edifício.
David ordenara-lhe que ficasse lá fora. Não dissera onde.
Pôs-se de pé e caminhou pelo jardim, dirigindo os seus passos para o animal de aspecto infeliz. Não era grande cavalo para um nobre. Talvez ele fosse alguém a quem a sorte abandonara, e viera pedir um empréstimo.
Sobre a garupa do animal encontrava-se uma bolsa. Acalmando-o com a voz e as mãos, lançou um olhar à aba.
Não devia fazê-lo. Decididamente, não era nada da sua conta.
Pedindo perdão, levantou a aba e espreitou lá para dentro.
A bolsa continha roupas. Roupas requintadas. Tecidos dispendiosos. Vestimentas que não condiziam em nada com aquele cavalo e aquele manto puído. O homem havia-se disfarçado para parecer pobre.
O som de vozes sobressaltou-a. Deixou cair a aba e afastou-se rapidamente.
Acabara de contornar a casa quando escutou a voz de David.
- Não devemos voltar a encontrar-nos em Inglaterra. Isso deteve-a. Encostou-se à parede da casa.
- Parto amanhã. Não vos preocupeis. Conheço o vosso risco. Não pretendo comprometer-vos - disse o estranho. Falava inglês, mas a pronúncia era inequívoca. Este homem, este nobre, era francês.
- Frans não deve regressar a Inglaterra até isto estar terminado. O homem é descuidado, e a sua estadia prolongada da última vez foi notada. A amiga dele é uma complicação que não aceitarei. Deveis romper os laços com ela - disse David.
Frans van Horlst. Um nobre francês. Santo Deus!
- Ele partirá comigo amanhã e não regressará. A senhora ficará igualmente fora isto.
- Há uma condição final. Pretendo ter documentos da vossa parte. com testemunhas.
Somente o bater do coração de Christiana quebrou o silêncio que se seguiu.
- Não confiais em mim - disse finalmente o estranho. Suponho que não posso censurar-vos. Como faço para que os documentos cheguem até vós?
- Não podeis fazer nada. Eu irei até vós.
A mente dela lutava para tentar descodificar estas frases crípticas. Documentos? Por que razão se encontrava David em segredo com um nobre francês e discutiam tais coisas? O coração dela agitou-se quando lhe ocorreu uma horrível possibilidade. Mas se fosse esse o caso, seria David a fornecer os documentos e não o contrário.
Os sons de uma sela a ranger e dos cascos de um cavalo chegaram-lhe aos ouvidos. Ela começou a afastar-se.
- Estou ansioso por vos conhecer melhor - declarou o estranho. - Em França, então.
O cavalo começou a afastar-se. David iria procurá-la agora. Distanciou-se da casa e correu para o jardim.

CAPITULO 15
Assim que David regressou aos seus negócios, Christiana apresentou-se na casa de Gilbert de Abyndon. Ninguém pareceu surpreendido por ela ir sozinha. Christiana maravilhou-se com esta e outras liberdades, que contrastavam tanto com a vigilância cerrada de Westminster. Uma alegria infantil apoderou-se dela à medida que caminhava pelas ruas da cidade, parando ocasionalmente para inspeccionar as actividades e mercadorias nas janelas dos comerciantes.
Margaret pareceu ao mesmo tempo encantada e perturbada ao vê-la. A hesitação toldou momentaneamente o seu rosto delicado e pálido antes de uma determinação muito madura tomar o seu lugar.
- O vosso marido sabe que estais aqui? - perguntou, depois de ter pedido a uma criada que trouxesse vinho.
- Ele sabe. Foi ele que sugeriu que eu viesse. Necessito de uma criada e ele pensou que poderíeis ajudar-me.
Margaret inclinou a cabeça e ergueu as sobrancelhas.
- Sabeis que os nossos maridos se odeiam.
- Sei. E é sempre um ódio profundo quando acontece entre parentes. Se a minha visita vos causar problemas, partirei.
Margaret sentou-se num assento almofadado junto à janela e deu umas palmadinhas no lugar ao seu lado. Christiana juntou-se a ela.
- Eu trato de Gilbert. Soube recentemente que estou de esperanças. Dir-lhe-ei que estava a sentir-me infeliz e que a vossa visita me animou. - Dirigiu-lhe um sorriso conspiratório. - Esta criança já
mudou muita coisa e irá mudar mais. Ele agora será como barro nas minhas mãos.
Christiana pestanejou perante esta franca admissão de manipulação. Margaret parecia tão delicada e frágil que era difícil de acreditar que era o pragmatismo que a mantinha erguida neste casamento.
Sentia pena de Margaret, por viver num matrimónio no qual apenas se valorizava o seu potencial de reprodução. Depois recordou-se que provavelmente esse seria também o motivo para o seu próprio casamento.
Durante as horas que se seguiram, ela e Margaret formaram laços de amizade. No dia seguinte, Margaret enviou uma rapariga de nome Emrna para entrar ao serviço dela. Embora Emma fosse a filha de um mercador vítima da má sorte, revelou ser uma criada solícita e excelente. Chegava diariamente à casa antes do amanhecer e ajudava Vittorio e Geva até Christiana solicitar os seus serviços.
Christiana tomou conhecimento da perda da fortuna de Emma. O pai dela, um mercador abastado, num dia ficara reduzido à pobreza devido ao naufrágio de um navio. Ela interrogava-se se a fortuna de David também seria assim tão precária. Ele dera-lhe indícios disso no dia em lhe falara das terras que pusera em seu nome. A sua opinião acerca disto e também do lar que agora geria levaram-na a tomar uma decisão. Chegara o momento de adquirir uma educação prática, pois podia chegar o dia em que não tivesse criadas. Decidiu aprender a cozinhar com Vittorio e a costurar junto das mulheres. Aprendeu com Geva a ser uma governanta.
Durante aquelas primeiras semanas também recebeu visitas. Morvan apareceu algumas vezes para a levar a passear e para se assegurar de que não era infeliz. Isabele e Idonia apareceram uma vez para que Isabele pudesse conhecer o novo lar de Christiana. Margaret visitava-a pelo menos uma vez por semana e entre elas começou a nascer uma sólida amizade.
Por volta do final da Quaresma, começaram a chegar as tropas para a campanha francesa do rei. A maior parte dos homens ficava em acampamentos à volta de Londres. Durante o dia, desciam à cidade apinhada de gente para passarem o tempo enquanto aguardavam o embarque. Nessa altura, David restringiu-lhe a liberdade e disse-lhe que não devia sair de casa sozinha.
Na terça-feira antes da Páscoa, Christiana regressou de uma ida ao mercado com Vittorio para encontrar Joan à sua espera. Os fornecedores do rei haviam estado ocupados naquelas últimas semanas, requisitando comida nas zonas rurais para alimentarem o exército, e as bancas de Londres andavam a vender carne em mau estado e produtos agrícolas a preços inflacionados. Ela começou a sua conversa com Joan a queixar-se disto.
- Falais como a mulher de um sapateiro, Christiana - disse Joan com uma gargalhada. - Ainda bem que vim. Iremos até ao vosso quarto e ensinaremos à vossa criada um novo penteado que aprendi. Podeis mostrar-me as coisas que o vosso marido abastado vos ofertou enquanto eu vos conto os mexericos da corte.
- Como está Thomas Holland? - perguntou Christiana enquanto conduzia Joan ao andar de cima.
- Foi enviado para Southampton para ajudar com os navios. Alguma vez vistes algo do género? Só aqui no porto devem estar uns duzentos, e consta que o mesmo acontece em Cinque Ports e ao longo da costa leste. E ninguém sabe onde é que Eduardo planeia desembarcar logo que atinja o continente.
Bordéus, Christiana esteve prestes a dizer. Vai auxiliar Grossmont em Poitiers. Os navios eram navios mercantes, requisitados pelo rei. O comércio externo havia sido interrompido. Mas Joan não pretendia escutar nada acerca das contrariedades que isso iria provocar.
- Sem Thomas aqui, tenho estado muito solitária, mas felizmente William Montagu tem sido muito atencioso, por isso não sinto muito aborrecida - respondeu Joan com umas risadinhas. Na verdade, seria difícil uma rapariga agora sentir-se infeliz na corte. Westminster está pejada de cavaleiros e barões, todos eles sem as suas damas. As poucas mulheres que ali existem encontram-se rodeadas de homens. É maravilhoso.
- Se eu ainda lá estivesse, não seria maravilhoso para mim disse Christiana, rindo. - Morreria de sede nesse lago de atenções masculinas. Morvan provavelmente erguer-se-ia num banquete para emitir um aviso geral e um desafio.
- Mas ele agora já não pode dizer nada. Tendes de vir visitar-nos - persuadiu Joan enquanto começava a arranjar os longos cabelos de Christiana em tranças finas que depois enrolava em redor
da sua cabeça. - Antes que a frota parta, enquanto está movimentado e alegre.
- Sou uma mulher casada, Joan. O meu lugar agora é aqui.
- Não podeis vir durante alguns dias? As coisas não são tão divertidas sem a vossa companhia. Pelo menos vinde para o banquete da Páscoa. Trazei David convosco. Ele pode manter os homens à distância.
Christiana pensou no banquete elaborado e no torneio que se realizava para celebração da Páscoa na corte. Seria divertido frequentá-lo como uma adulta e não como uma criança.
Nessa noite, falou a David acerca do convite de Joan. Estavam sentados no salão enquanto ela praticava a escrita das letras sarracenas que ele lhe havia ensinado.
- Deveis ir, se assim o pretendeis - disse ele.
Ela fitou a caixa de areia rasa na qual traçava as letras com um pau. Estavam casados há cinco semanas e David nunca a acompanhara à corte, mesmo quando ia para um jantar.
- Joan diz que nos arranja um quarto para algumas noites se o desejarmos - disse. - Não pensais que os rapazes se importarão se estivermos fora na Páscoa?
- A criadagem pode celebrar sem nós.
- Iremos, então?
- Ao que parece, estarei ausente de Londres nessa altura.
- E se assim não fosse, não viríeis na mesma, pois não?
- Vós tivestes e tendes uma vida e um lugar lá, e eu não vos negaria essas visitas. Mas não é o meu mundo. Não serei o mercador arrivista que entra na corte do rei agarrado à bainha do véu da esposa.
A franca confissão de que ele nunca iria partilhar essa parte da sua vida dela entristeceu-a. Sentia a falta dele quando se encontrava em Westminster. Uma parte dela permanecia afastada da diversão, pensando nele. Por vezes, dava por si a voltar-se para comentar algo divertido ou engraçado e a assustar-se um pouco por não o encontrar ao seu lado.
Ela apreciava aquelas visitas à corte, mas regressava sempre à cidade ansiosa por ver David e contar-lhe os mexericos e novidades que havia escutado. Apercebeu-se de que não podia haver alegria em nada a não ser que pudesse, de alguma forma, partilhá-lo com ele.
Contemplou o homem que fitava pensativamente as chamas na
lareira, o seu longo corpo reclinado indolentemente na cadeira de
madeira. Pensou na forma como preenchia os seus dias com actividades, mas apesar disso, uma parte de si estava sempre à espera de
algo. À espera dele, à espera do som do cavalo a entrar no pátio e
dos passos dele no salão. Sentia-se sempre tão feliz por vê-lo que,
por vezes, sem pensar, corria para ele e ele ria-se e fazia-a rodopiar
para depois lhe dar um beijo. Pensou no quanto o regresso dele a
casa para almoçar, e de novo a cada anoitecer, a enchiam de conforto
e alívio, como se, aquando da sua partida, ela sustivesse a respiração
e só expirasse quando ele regressava. Ele era o centro do lar, o seu
pulsar. A sua presença era uma garantia de segurança, felicidade e
entusiasmo.
- Necessito de falar convosco acerca desta viagem, Christiana
- Será longa? - perguntou, regressando às suas letras. Perguntava-se como é que iria suportar as noites sem ele.
- Pode ser. Duas semanas, talvez mais.
- Onde ides?
- Para oeste, em direcção a Salisbury. O rei recebeu relatórios de corrupção entre os fornecedores reais nesse condado. Pediu-me que descobrisse o que conseguisse antes de ordenar uma investigação oficial.
Outro favor para Eduardo? O problema com as viagens secretas para o rei é que ninguém podia confirmá-las.
- É a primeira vez que partis de viagem após o nosso matrimónio.
- É por isso que devemos conversar. Todas as viagens representam um perigo em si mesmas. Devo explicar-vos algumas coisas antes de partir.
Ela ergueu bruscamente o olhar. Ele fitava-a, impassível, mas Christiana havia aprendido muito acerca dele nestas últimas semanas, e aquele rosto perfeito jamais
voltaria a ser uma máscara completa para ela. Agora conseguia reparar no fino véu de preocupação que se sobrepunha ao ardor do seu olhar. Um estranho torpor
começou a apoderar-se dela.
- Antes de partir, entregar-vos-ei uma chave. Pertence à caixa que se encontra no meu gabinete. No seu interior está uma moeda. Também vos mostrarei um baú no quarto de vestir que contém
papéis relativos às propriedades e créditos bancários. As contas do comércio de tecidos estão na loja. Andrew encontra-se bastante familiarizado com elas. Se necessitardes de ajuda com alguma coisa, John Constantyn auxiliar-vos-á - Fez uma pausa. - Ele é o executor do meu testamento.
Apesar do choque, ela conseguiu, de alguma forma, desenhar outra letra.
- Ireis só até Salisbury, David.
- Deveis saber o que fazer. Já vi demasiadas mulheres que não o sabiam.
- Não quero falar acerca disto.
- Nem eu, mas é importante que o façamos.
Christiana cerrou os dentes e tentou ignorar a medonha compreensão que se insinuava na sua mente. Ela sabia, de alguma forma sabia, que David não ia a Salisbury. Ia para algum local muito perigoso para fazer algo muito arriscado.
Para Eduardo? Queria acreditar que sim, mas as recordações de Frans van Horlst pedindo ajuda a um homem no corredor secreto do rei, bem como as de um nobre francês a encontrar-se com David em Hampstead, agitavam-se na sua mente.
Não tenho qualquer desejo de vos comprometer. Em França, então.
Ele fitou-a com aquele olhar penetrante que via sempre demasiado. Conseguiria ele ler estes pensamentos da mesma forma que lia muitos outros?
Certamente estava enganada. A mera ideia era indigna dela. Mas ele sabia de Bordéus e jogava para ganhar e fazia as suas próprias regras.
Ele não podia fazer isto. Não o faria. O ouro e a prata não o tentariam. David não era comandado por tais ambições.
- Suponho que com a ajuda de John serei capaz de gerir as coisas - disse ela. - Não vos preocupeis.
- Se alguma coisa me acontecer, a loja pode ser vendida ou liquidada. Andrew pode ajudar-vos com isso. Os oficiais responsáveis pelo comércio encarregar-se-ão dos rapazes e encontrar-lhes-ão outros mestres.
- E eu, David? Também encontrarão outro mestre para mim?
- Não possuem qualquer autoridade sobre a vossa vida. Mas
não há dúvida de que vos oferecerão conselhos e recomendações para que volteis a casar-vos, unindo as vossas propriedades e negócios aos de outro mercador.
- É esse o conselho que dais às mulheres enquanto oficial?
- Muitas vezes. Vós, como é evidente, não necessitareis de procurar um mercador, pois sereis uma mulher muito abastada.
Ele falava como se isso a tranquilizasse. Ele estava a dizer-lhe que, sendo abastada, viúva e nobre, ela poderia ter o marido que nascera para ter. Feria-a profundamente que ele pudesse falar de tais assuntos com tamanha descontracção, da possibilidade de ela ir para os braços de outro homem.
- Presumo que as propriedades que estão em meu nome estejam bem documentadas? E que haja dinheiro suficiente para comprar mais. Talvez, nesse caso, eu não volte a casar-me.
Ele aproximou-se dela e acariciou-lhe a face.
- A ideia de vos ter a viver uma vida solitária não me dá prazer.
- Sejamos francos, David. Estamos a falar da vossa possível morte. O vosso prazer depois dela não importa. Agora, já terminámos este assunto mórbido? Quando partis?
- Dentro de dois dias.
Quinta-Feira Santa. Joan dissera que, de acordo com os boatos, a frota partiria para França pouco depois da Páscoa. Dois dias, e depois duas semanas de salas vazias. Ela sabia que uma parte dela cessaria simplesmente de existir enquanto ele estivesse ausente. Talvez cessasse de existir para sempre. Ela não acreditava nisso, não aceitaria essa possibilidade, mas ele acabara de a prevenir. Não teria mencionado essa possibilidade se não considerasse o risco muito real.
Uma dor dilacerante invadiu-lhe o peito. Onde quer que ele fosse, deveria ser a mando de Eduardo. Decerto ele não se arriscaria a causar-lhe um tormento daqueles por outro motivo qualquer.
Pôs a caixa de areia de lado e fitou o regaço. Tentou não se preocupar. Argumentava corajosamente que, se ele estivesse envolvido em algo desonroso, também nunca mais quereria voltar a vê-lo. Disse a si mesma que se acontecesse o pior e ela se convertesse numa viúva rica, isso não seria mau de todo. Mas nada aliviava o peso que se instalara no seu coração. Ardia-lhe a garganta, e lutou com todas as suas forças para se manter calma.
Subitamente, ele pôs-se de pé diante dela e ergueu-a nos braços. Antes de ocultar o rosto no peito dele, Christiana avistou um olhar de surpresa.
- Não pretendia perturbar-vos, minha menina.
O calor daquele abraço fez com que Christiana vertesse algumas lágrimas.
- Não? - murmurou ela. - Falais-me da vossa morte e da minha viuvez como se estivésseis a especular sobre os carregamentos de lã do próximo ano.
- Isso é porque tenho esperança de que nada me aconteça. Estou apenas a ser prático, pelo vosso bem. Já sobrevivi a perigos bem piores do que aqueles que irei enfrentar
nesta pequena aventura.
Havia muita coisa neste homem que permanecia um mistério para ela, mas aquilo que conhecia, já conhecia muito bem. E agora sabia que ele lhe havia mentido. Ele já não o fazia muitas vezes, principalmente porque ela evitava perguntar-lhe coisas que o levassem a fazê-lo. E as mentiras dele raramente haviam sido mentiras descaradas. Geralmente eram afirmações ambíguas, como esta.
Ela aninhou-se no peito dele e o abraço de David estreitou-se.
- Não podeis ficar? Deixai que seja outro a fazê-lo - murmurou.
- Mais ninguém pode fazer isto - disse suavemente. - comprometi-me a fazê-lo.
- Nesse caso, não quero saber onde, nem por que razão ides
- disse. - Sois um mercador, e irão haver muitas viagens, algumas delas muito longas. Ide onde tendes de ir, David, desde que me prometais que regressareis.
David e Sieg partiram na quinta-feira de manhã. Christiana lançou-se num turbilhão de afazeres para se distrair. Escolheu e voltou a escolher as roupas para levar para a corte até Emma ficar uma pilha de nervos. Tentou não pensar muito acerca da acrimónia que imbuíra o acto de amor de David nas duas noites anteriores.
Ele havia contratado dois homens para guardarem a casa na ausência de Sieg, e durante a tarde um deles escoltou-a até Westminster.
Christiana pediu que lhe fosse concedida a sua antiga cama na antessala, e tentou com todas as suas forças fingir que era como
antigamente. Por vezes era, mas, muito frequentemente, enquanto Toan e ela se recostavam na cama de Isabele e partilhavam mexericos, a mente dela afastava-se subitamente, enquanto se interrogava onde estaria David e se estaria a salvo.
As suas suspeitas acerca do que ele poderia estar a fazer não lhe saíam da ideia, e mais do que uma vez forçou-se a analisar as provas que sugeriam traição. Afinal, era o que aquilo era. Alta traição, que poria em perigo as pessoas que ela amava. Disse a si mesma que não havia provas de que David estivesse a vender informações aos Franceses acerca do destino da frota, convencia-se de que permitira que algumas frases que escutara se deturpassem na sua mente.
No banquete da Páscoa o rei anunciou formalmente o embarque para França, tendo a notícia sido recebida com aclamações no salão, como motivo de alegria. Constava que as tropas embarcariam nos navios na quarta-feira.
Na terça-feira de manhã, Joan incitou-a a erguer-se da cama cedo.
- Vai haver uma grande caçada, e depois várias festas privadas em tabernas e estalagens na Strand antes do banquete desta noite. Uma última celebração antes da partida dos cavaleiros - explicou, enquanto se dirigia ao baú de Christiana e começava a escolher as roupas para ela levar. - Deveis vir comigo e com William, como a minha dama de companhia, para Idonia não interferir. Será um dia de diversão cuja recordação servirá para nos aguentar durante todo o Verão.
Christiana estava a apreciar a sua estadia na corte, apesar de ainda se preocupar com David. Joan não exagerara, a corte em Westminster estava apinhada de cavaleiros ávidos de prestar atenção a qualquer mulher. Experimentavam a sua lisonja poética até mesmo com mulheres inatingíveis. Era esperado que as mulheres da corte aceitassem as atenções mais moderadas, e ela fê-lo, em parte porque a ajudavam a distrair-se das suas preocupações e suspeitas acerca de David.
Tal como a maioria das mulheres, limitou-se a deambular pela caçada e a observar os homens a demonstrarem as suas proezas com as flechas e espadas. Manteve-se junto de Joan e William Montagu durante toda a manhã. O jovem conde mostrava-se perdido de amores pela Bela Donzela do Kent. Joan namoriscou o suficiente para
lhe dar mais esperanças do que seria correcto. Christiana pensava em Thomas Holland a supervisionar o carregamento dos navios em Southampton. Primeiro Andrew e agora William, e sabe-se lá quantos pelo meio. A constância de Joan não durara muito.
Os participantes da caçada dirigiram-se à Strand por volta do meio-dia, e o grupo de Joan parou numa grandiosa estalagem perto dos portões da cidade. Geralmente as estalagens não serviam refeições, mas a maior parte delas contratara cozinheiros para dar vazão ao grande número de visitantes na região. Aquele compartimento único e público ficou tão apinhado de mesas e pessoas que mal se conseguiam mover, e Christiana não tardou a perder o rasto de Joan. Deu por si encostada a uma parede, perscrutando a multidão em busca de um rosto conhecido ao qual se juntar.
- com que então estais aqui - proferiu uma voz suave junto ao seu ombro.
Ela voltou-se e deu de caras com Lady Catherine, que se aproximava lentamente.
Os olhos felinos da mulher mais velha cintilaram.
- Isto é horrível, não é? Eu já contava que assim fosse e reservei um quarto grande lá em cima. Vinde juntar-vos a nós para o jantar, Christiana.
Ela hesitou, recordando-se daquilo que o seu irmão e David lhe haviam dito em relação a Catherine.
- Estou à espera que Morvan se junte a nós para jantar - explicou Lady Catherine.
Não vira o irmão muitas vezes nestes últimos dias. Os cavaleiros do rei haviam estado a gerir as tropas fornecidas pela cidade. Parecia-lhe estranho que Morvan jantasse com Catherine, mas talvez aquilo que o perturbava em relação a ela tivesse sido resolvido.
A multidão pressionava-se contra ela. Catherine tocou-lhe no braço e dirigiu-lhe um aceno com a cabeça. Christiana ponderou sobre a oferta. Seria agradável passar algum tempo com Morvan antes de ele embarcar.
- Obrigada - agradeceu, decidindo rapidamente. Não podia haver mal nenhum naquilo, e decerto David não se importaria se Morvan também estivesse presente.
Seguiu Catherine através da aglomeração de pessoas até às escadas que conduziam ao segundo piso. Mesmo ali, a multidão era
imensa, pois outras pessoas haviam tido a antevisão de Catherine e reservado um quarto no piso superior. Lady Catherine prosseguiu até ao tranquilo terceiro piso da estalagem e conduziu-a até uma porta, onde a incitou a entrar.
O compartimento havia sido preparado para uma reunião de quinze pessoas. Duas longas mesas ocupavam o espaço entre a cama e a lareira. Estava um dia ameno de Abril e as janelas estreitas com vista para o pátio haviam sido abertas, mas as paredes espessas abafavam os sons dos pisos inferiores.
Apenas uma pessoa aguardava no compartimento. Stephen Percy mantinha-se junto da janela mais afastada.
- Tenho de ir em busca dos outros - disse Lady Catherine, voltando-se para sair. - Regressaremos em breve.
Christiana lançou um olhar a Stephen. Ele sorriu, dirigiu-se a uma das mesas e serviu dois copos de vinho.
- Uma coincidência fortuita, Christiana - disse ele, enquanto lhe entregava um dos copos. - Receei não voltar a ver-vos antes da nossa partida.
Ela lançou um olhar às mesas que aguardavam os outros convivas. Quanto tempo demorariam a chegar?
- Ireis com o vosso pai? - perguntou.
- Sim. O rei reuniu um exército colossal. Promete ser uma guerra gloriosa. Vinde e sentai-vos junto de mim enquanto aguardamos a vinda dos outros.
Ela pensou no pedido que David lhe fizera para que não voltasse a ver este homem. O mais correcto seria partir. Mas eles apenas estariam a sós por breves momentos. E não haveria mal algum em desejar-lhe boa sorte. Ocupou um lugar diante dele numa das mesas.
- Como está o vosso mercador? - perguntou Stephen.
- David está bem.
- Ele não está convosco. Não vos acompanhou nesta visita, nem nas outras. - O tom dele não revelava qualquer subtileza. Presumia que ela regressava à corte para evitar David. Que procurava consolo entre as amigas.
- Ele é um homem ocupado, Stephen, e encontra-se ausente da cidade.
- Ainda assim, esperei que ele acolhesse de bom grado a entrada na corte que vós lhe providenciastes.
- Ele tem pouco interesse nessas coisas.
Stephen ergueu o sobrolho com uma surpresa fingida. Inclinou-se para a frente e o seu olhar perscrutou o rosto dela.
A atenção dele revelava uma completa ausência de sentimentos. De uma forma estranha, era como se Christiana estivesse a vê-lo pela primeira vez. O rosto que ela outrora considerara extremamente belo parecia-lhe agora um pouco grosseiro. Havia algo mal definido nas maçãs do rosto e nos maxilares, especialmente quando comparados com a precisão das feições de David. Tinha quase a certeza de que aquele cabelo loiro não seria tão suave se lhe tocasse. Aquelas sobrancelhas espessas contrastavam tão pouco com a pele branca que eram quase invisíveis.
- Sois tão bela - disse ele suavemente. - Parece-me que estais mais encantadora de cada vez que vos vejo.
Ela ergueu o copo de vinho até aos lábios e observou-o através do rebordo. A mão dele estendeu-se para o rosto dela.
De súbito, no preciso instante antes de ele lhe tocar, Christiana compreendeu, com toda a certeza, uma quantidade de coisas. Eram tão certas quanto o facto de a
noite se suceder ao dia. Embora lhe tivessem chegado como revelações, não a surpreenderam em absoluto. Pelo contrário foi como se tivesse dado um passo e deparado
com eles, esses novos factos da vida com os quais deveria contar.
Em primeiro lugar, compreendeu que não viria mais ninguém jantar ali. Ninguém, e muito menos Morvan, entraria por aquela porta. Stephen havia arranjado aquele encontro
com a ajuda de Lady Catherine, ou talvez Catherine o tivesse feito por si mesma. As mesas, os copos, era tudo um estratagema para a atrair e manter ali de modo a que ela e Stephen pudessem estar sozinhos.
Também compreendeu, ao observar aquele rosto subitamente estranho, que nunca havia amado aquele homem. Havia estado, sim, apaixonada, perturbada e extasiada, mas todos esses sentimentos teriam passado com o tempo se ele não tivesse tentado seduzi-la, perturbando assim a sua vida. Ela decidira que o amava de modo a mitigar a sua culpa e humilhação depois de Idonia os ter encontrado. Agarrara-se a essa ilusão na esperança de uma salvação das consequências. Mas nunca o amara de verdade, nem ele a ela, e agora sentia apenas uma indiferença vazia em relação àquela mão que se estendia na sua direcção.
E finalmente compreendeu, com uma resignação pacífica que a fez sorrir, que a filha de Hugh Fitzwaryn se tinha apaixonado por um mercador comum. Uma gloriosa onda de ternura por David fluiu através dela com a aceitação desse sentimento.
Ela inclinou-se para trás, afastando-se dele.
- Não.
Ele deixou cair a mão e sentou-se muito direito, os seus olhos verdes a examinarem os dela. Christiana deixou que ele procurasse durante o tempo que bem entendesse, pois não encontraria o que queria. Ele sorriu pesarosamente e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Crescestes rapidamente. É o rosto de uma mulher que vejo agora.
- Tive poucas opções. Talvez tenha sido uma criança durante demasiado tempo.
- A inocência tem o seu encanto - disse ele, com uma gargalhada.
- E a sua conveniência.
Ele fitou-a e encolheu os ombros.
- O vosso mercador é um homem muito afortunado, minha querida.
Ela sentia uma vaga afeição por Stephen. Não havia dúvida de que era um patife, mas já não constituía um perigo para o seu coração.
- Eu sei que jamais alguém na corte acreditará nisto, Stephen, mas também me considero uma afortunada.
Sabia bem dizer aquilo. Sabia bem defender o marido da piedade e compaixão destas pessoas.
Stephen lançou-lhe um olhar severo e depois deu uma gargalhada muito artificial.
- Então a minha demanda é inútil.
- Sim. Inútil.
Ele soltou um suspiro exagerado.
- Primeiro, a espada do vosso irmão, agora o amor do vosso marido. Esta história é uma tragédia.
Não, foi sempre uma farsa. Escrita por vós e representada por mim, que a julgava ser a vida real. Mas ela descobriu que já não valia a pena recriminá-lo. Não tinha qualquer importância. Ele não tinha importância.
O jantar chegou finalmente, trazido por duas criadas, e ela ficou e comeu com Stephen, porque estar com ele agora já não representava qualquer traição. O seu amor por David funcionava como uma armadura, e ela estava certa de que Stephen reconhecia a inutilidade de a tentar trespassar. Falaram descontraidamente acerca de diversos assuntos, e a hora decorreu agradavelmente.
Todavia, por volta do final da refeição, Christiana suspeitou que ele começava de novo a avaliar a determinação dela contra a sua capacidade de sedução.
Os seus sorrisos tornaram-se mais calorosos e a adulação mais floreada. A mão dele roçou acidentalmente na dela por diversas vezes.
Ela observava o desenrolar deste esforço final com surpresa e divertimento. Levantou-se para sair antes que ele pudesse agir de acordo com as suas intenções.
Stephen foi maís rápido do que ela e interpôs-se entre ela e a porta. O seu sorriso débil e insinuante alarmou-a.
- A refeição estava óptima, e foi bom passar algum tempo com um velho amigo, Stephen, mas agora tenho de ir.
Ele abanou a cabeça e os seus olhos verdes iluminaram-se.
- O dever que dita que deveis ir não foi escolhido por vós. Neste mundo, e neste quarto, ele não vos prende, meu amor.
Ela amaldiçoou-se por pensar que podia tratar este homem como um amigo.
- Não é o dever que me afasta, mas o meu amor pelo meu marido - respondeu, esperando aniquilar quaisquer ilusões que ele pudesse acalentar a seu respeito.
Uma brisa de Primavera, leve e plena de liberdade, soprou através do seu coração com esta confissão mais ostensiva dos seus sentimentos por David. Há quanto tempo
o amava? Há já algum, suspeitava. Era irónico que a primeira pessoa a quem ela tivesse admitido o seu amor por David fosse Stephen Percy. Irónico, e igualmente justo
e merecido. Agora teria de dizer a David quando ele regressasse. Se ele regressasse. Por outro lado, talvez não tivesse de o fazer. Talvez ele se limitasse a olhar
para ela e a saber. De todos os pensamentos, de todas as emoções que ele lia nela, esta seria, provavelmente, a mais óbvia.
Stephen não se afastara do seu caminho, e examinava-a minuciosamente, como se estivesse a avaliar a determinação dela. Christiana enfrentou o seu olhar com firmeza. A resposta dela não provocou a reacção que esperava. Em vez de recuar, Stephen dirieiu-lhe subitamente um olhar feroz, a sua boca contorcida num esgar.
Stephen esticou subitamente os braços para a agarrar. Ela tentou baixar-se para fugir ao seu alcance, mas ele segurou-a pelo ombro e puxou-a para si. Surpreendida com esta insistência agressiva, contorceu-se para se libertar. Ele aprisionou-a nos seus braços.
- Uma mulher como vós não pode amar um homem como ele. Seria como tentar misturar água com óleo. Convencestes-vos disso de modo a sobreviverdes ao vosso declínio, meu amor. É só isso.
- Estais enganado - silvou, estreitando os olhos na direcção dele. - Amo David, e não vos amo. Agora, libertai-me.
- Podeis pensar que não me amais, mas em breve ireis perceber a verdade - o seu rosto e lábios aproximaram-se dela.
Ela inclinou-se para trás o mais que pôde. Afastou desesperadamente o rosto, mas aquela boca grosseira encontrou a sua face e pescoço. Ele segurou-a pelos cabelos para lhe manter a cabeça fixa e esmagou os seus lábios contra os dela num beijo. A sua outra mão deslizou mais para baixo e apertou-lhe o traseiro. Christiana sentiu um aperto no estômago. Pensar que havia chorado por este brutamontes! Começou a usar de todas as suas forças para se libertar.
- Sois audaz - disse Stephen com uma gargalhada. - Isso aplacará a minha mágoa por já não serdes inocente. A memória da paixão que despertei em vós da última vez tem preenchido a minha mente desde então, implorando que se cumpra.
- Paixão? Eu não senti paixão convosco, seu louco presumido! Vós magoastes-me e humilhastes-me naquele dia e não ireis fazê-lo de novo! Libertai-me ou gritarei tão alto que toda a corte saberá que estais a forçar uma mulher relutante!
- Vós não estais relutante, estais com receio - murmurou ele, pressionando-a contra o seu calor e forçando carícias ao longo das suas costas. - Irei mostrar-vos
o prazer que o amor pode trazer quando estais com um homem a sério. Quando gritardes, será de desejo e ninguém vos escutará. As paredes são espessas e o edifício
ruidoso, por isso não vos envergonheis.
Santo Deus, a arrogância dele não conhecia limites. Não admirava que Idonia não as quisesse sozinhas com os homens.
As mãos dele começaram a correr livremente pelo corpo dela. Christiana cerrou os dentes contra a repulsa que sentia, e tirou vantagem do afrouxamento do abraço de
Stephen. Frenética, tacteou a mesa atrás de si procurando algo que pudesse agarrar, em busca de uma arma. A sua mão fechou-se sobre um jarro de porcelana.
E fê-lo mesmo a tempo. A respiração de Stephen havia-se tornado entrecortada e ofegante. Começou a empurrá-la para trás, contra a mesa, tentando
deitá-la. A mão
dele começou a erguer-lhe a saia.
Christiana parou de se debater e ergueu as ancas para se sentar na mesa. Sorriu-lhe. Stephen fez uma pausa, lançou-lhe um olhar triunfante e posicionou-se. Soltando
um urro, ela ergueu o joelho com todas as suas forças entre as pernas dele. Em seguida, despedaçou o jarro na cabeça dele.
O rosto de Stephen contorceu-se de dor e surpresa, enquanto se dobrava sobre si mesmo. Ela afastou-o com um empurrão.
- Sou uma mulher honesta que ama o seu marido. - Proferiu, fervendo de cólera. - Não volteis a tocar-me, nunca mais.
Encaminhou-se rapidamente para a porta. No momento em que ia a sair lançou um último olhar ao homem em quem acreditara durante os últimos dias da sua infância.
Enquanto descia rapidamente as escadas escutou os passos dele atrás de si. No segundo piso, ele alcançou-a. Sacudiu a mão com a qual ele procurou detê-la. Abrindo
caminho pela aglomeração de convivas, apressou-se até à sala pública do piso inferior.
Reparou em Lady Catherine na multidão, e aqueles olhos felinos fitaram-na com presunção. Stephen dissera que não era amigo de Catherine, e no entanto esta mulher
tinha feito de tudo para o ajudar. Interrogava-se por que razão.
- Pelo menos podíeis despedir-vos de mim, minha querida segredou Stephen baixinho ao seu ouvido. A sua tentativa de mostrar descontracção não conseguia esconder
a fúria subjacente no seu tom de voz.
Ela voltou-se para ele, furiosa com a sua persistência. Antes de poder falar, ele inclinou-se e beijou-a, depois sorriu e desapareceu na multidão.

CAPÍTULO 16
A frota fez-se ao mar. Westminster e Londres, destituídas não apenas dos soldados visitantes mas igualmente de muitos dos seus trabalhadores, tornaram-se estranhamente
silenciosas. Christiana regressou a casa e contou impacientemente os dias até ao regresso de David.
Surgiram as tempestades de Primavera e em breve se difundiram as notícias de que a frota estava de regresso. Muito antes de se vislumbrarem os primeiros mastros no rio Tamisa, cinco dias após o embarque, todos compreenderam que os ventos desfavoráveis haviam obrigado o rei Eduardo a cancelar a invasão.
A cidade encheu-se novamente de soldados, desta vez de passagem, enquanto regressavam às cidades, herdades e castelos no interior do país. Eduardo não conseguia manter ali as tropas indefinidamente até conseguir melhores condições de viagem e decidiu dispensá-las.
Christiana ficou espantada com o alívio que sentiu quando tomou conhecimento das notícias da interrupção da campanha. Pensara que já se convencera a si mesma de que David tinha efectivamente ido para Salisbury, mas a sua reacção demonstrou a mentira dessa ilusão. Agora sentia apenas gratidão por os planos de Eduardo terem mudado e tornado irrelevante a possibilidade de traição de David.
A hipótese de ele o ter feito, ou de sequer ter tentado, devia horrorizá-la mais. A potencial desonra devia desgostá-la profundamente. Mas tudo o que lhe interessava
era a segurança dele e o facto
de esta reviravolta nos acontecimentos o preservar das horríveis consequências da descoberta.
Ansiava por vê-lo. As recordações dele não a abandonavam em nenhum momento do dia e preenchiam as horas da noite. Christiana deu-se conta de que provavelmente o
amava há já bastante tempo. Recusara-se a ver isso devido à sua obrigação de lealdade para com Stephen. E, tinha de admitir, negara os seus sentimentos durante muito
tempo porque David era um mercador. As mulheres nobres não deviam apaixonar-se por homens da condição de David. Fora educada para pensar que tais coisas eram contrárias
à natureza.
Será que ele a amava? A alegria dele parecia igualar a sua quando regressava a casa diariamente, e parecera desgostoso por ter de a deixar e embarcar naquela viagem.
Durante o acto de amor, ela via nos seus olhos mais do que o simples prazer, mas na verdade não sabia como é que ele realmente se sentia. Não tinha experiência em
tais coisas, e, em muitos aspectos, ele permanecia um enigma para ela.
Não tinha importância. À medida que os dias fossem passando, ela sabia que não haveria forma de ocultar os seus sentimentos. Certamente quando ela lhe desse um filho, nasceria por ela algum tipo de amor. Entretanto, sentia-se confiante de que ele iria aceitar o seu amor de bom grado. Não planeou uma data para lho dizer. Aconteceria simplesmente no calor da união.
Ele entrou no pátio um dia mais cedo. Ela ouviu-o chegar enquanto costurava na sala de estar. Atirou com a agulha para o lado para se precipitar pela escada abaixo. Irrompendo pela porta, voou na direcção dele e pulou para os seus braços.
Ele apanhou-a como sempre fazia e fê-la rodopiar enquanto a abraçava e beijava. Ela agarrou-se a ele, sentindo aquele odor familiar que despertava de novo a sua alma.
Christiana estava radiante.
- Estou tão feliz por estardes de volta a salvo. Tenho uma coisa para vos dizer...
A expressão nos olhos dele fê-la calar-se repentinamente. David examinou-a com uma atenção perturbada, Não sentiu afecto da parte dele, apesar do abraço. Na verdade, aquele abraço era um pouco restritivo, como se ele procurasse mante-la quieta enquanto a examinava.
Reparou, com um mau pressentimento, nas linhas duras da sua boca. Havia algo de sinistro e alarmante na sua atitude. Nunca havia visto aquela expressão nem aquele
estado de espírito. Na verdade, por um terrível instante, sentiu que nunca tinha visto aquele homem.
- O que foi?
Teria sido descoberto? Estaria em perigo? Ele voltou-a nos seus braços e conduziu-a em direcção ao salão. A mão que sentia a agarrar-lhe o ombro era forte e autoritária.
- Fiz uma péssima viagem e necessito de um banho e de alguma comida, Christiana. Falaremos mais tarde. Enviai-me um criado.
O braço dele afastou-se e David atravessou o salão em direcção aos aposentos deles. As suas palavras e os seus modos deixavam bem claro que não pretendia que ela
o seguisse.
Agitada e magoada, tratou de fazer o que ele lhe pedira.
Enviou Emma e o criado para lhe prepararem o banho e avisou Vittorio que servisse o jantar o mais rapidamente possível. Depois deambulou pelo salão, absorvida com
a preocupação da mudança que se operara nele.
Poderia esta ser a reacção dele ao facto de os seus planos terem sido frustrados? Se ele tinha ido a França, correndo um grande risco, teria ficado enraivecido com
a mudança nos acontecimentos? Pois havia ira naqueles olhos azuis, e um distanciamento frio que a haviam assustado.
Ele juntou-se ao resto da criadagem para jantar. Sentou-se ao lado dela e recebeu relatórios de Andrew enquanto comia. Não houve nada de especial que transmitisse
o seu descontentamento, mas ela percebia-o claramente. No final da mesa, Sieg ingeria a sua refeição com um silêncio metódico que sugeria que pelo menos ele reconhecia
o estado de espírito de David.
Assumira que cairiam na cama na primeira oportunidade que tivessem depois do seu regresso, mas dadas as circunstâncias, não se importou muito quando ele aproximou a cadeira da lareira após a refeição. Os outros saíram e ela sentou-se diante dele e observou-o enquanto ele contemplava as labaredas.
Um estranho silêncio caiu entre eles. Ela suportou-o durante um bocado e depois tentou preenchê-lo com conversas. Descreveu pequenos episódios decorridos no lar durante a ausência dele, e a reacção das pessoas às notícias sobre o regresso da frota. Continuando
a tagarelar ansiosamente, falou-lhe acerca da sua tristeza pela partida de Morvan e do seu alívio pelo seu regresso inesperado.
Ele voltou aqueles olhos perturbados para ela enquanto ela falava. O seu olhar fixo fê-la sentir-se pouco à vontade. Imaginara muitas vezes o regresso dele a casa, repleto de júbilo e alegria, devido ao seu recém-descoberto amor. Ela viu todas aquelas emoções retrocederem perante aquela presença sombria sentada junto dela.
Começou a falar-lhe acerca do torneio da Páscoa, mas ele interrompeu-a com uma rudeza que sugeria que não estivera a escutá-la.
- Fostes vista - disse.
Ela sobressaltou-se, confusa. Assaltou-a a ideia assustadora de que aquela súbita mudança nele tinha a ver com ela.
- Vista? O que quereis dizer? - inquiriu, instintivamente na defensiva.
Ele levantou-se da cadeira. Agarrando-a pelo braço, ergueu-a no ar e empurrou-a à frente dele ao longo do salão.
- De que estais a falar? - prosseguiu, olhando para trás para o estranho que a forçava a subir as escadas.
Ele arrastou-a até ao quarto de dormir e fechou a porta atrás deles com um grande estrondo. Ela sentiu a ira dele avolumar-se perigosamente. Em resposta sentiu também
alguma ira, mas ao mesmo tempo preocupação e temor. Sacudiu as mãos que a agarravam e recuou até à janela.
Ele encarou-a de mãos nas ancas.
- Fostes vista, rapariga. com o vosso amante.
- Havia homens na corte que me prestavam atenções, David, mas foi algo inofensivo. Sem dúvida muitas pessoas me viram, mas não com nenhum amante.
A resposta descontraída dela apenas serviu para piorar as coisas. A fúria dele encapelou-se.
- Que os homens vos prestem atenções é inevitável. Stephen Percy, ao que parece, também o fez, apesar dos vossos votos para comigo. Não demorou muito até encontrardes o vosso caminho de regresso até à cama desse cavaleiro.
As suas palavras duras surpreenderam-na. Tinha realmente esquecido esse jantar com Stephen durante aqueles últimos dias. Stephen Percy cessara de existir para ela no momento em que se deixara submergir pelo amor que sentia por David. Fitou-o, atónita,
e soube que a verdade do seu encontro com Stephen estava escrita no seu rosto.
- Também isso foi inofensivo - disse ela, sabendo que não adiantava negá-lo. O encontro só por si constituía a traição e ele presumiria o pior.
- Não tendes talento para o adultério, querida. Não sabeis sequer quando mentir nem como fazê-lo. Inofensivo? Lady Catherine foi vista a levar-vos até um quarto numa estalagem e a regressar sozinha. Uma hora mais tarde aparecestes na companhia de Stephen Percy. Foi-me dito que o vosso beijo de despedida foi suficientemente casto, mas nessa altura ele podia dar-se ao luxo de mostrar comedimento e discrição.
- O que vos foi dito é verdade, mas não fiz nada de mal naquele quarto. - Explicou com uma calma que não sentia. Só lhe podia dar a sua palavra contra as malditas provas.
- Quem vos contou isto, David? Muitas pessoas viram, estou certa, e lamento por não ter pensado naquilo que lhes pareceria e no que custaria ao vosso orgulho. Mas quem sentiu necessidade de vos contar? Lady Catherine? Foi ela quem auxiliou Stephen no estratagema que me conduziu até ele sem eu saber.
- Sem dúvida, Lady Catherine aguarda ansiosamente para me contar - disse ele com amargura.
- Então, quem foi? - Mas no momento em que estava a colocar a questão soube a resposta. Ele tinha acabado de chegar a Londres. Quem quer que lhe tivesse contado
era alguém da sua confiança. A indignação de Christiana perante as implicações ajudou-a a combater o desespero.
- Oliver - pronunciou, ofegante. - Mandastes Oliver seguir-me. Santo Deus! Durante todo o tempo? Quando eu caminhava pela cidade, ele estava sempre lá? Escondia-se
nas sombras de Westminster e seguiu-nos na floresta durante a caçada. Confiáveis tão pouco em mim...
- Ele seguiu-vos para vossa protecção, e não para vos espiar. Neste único assunto eu confiei realmente em vós, ou não teria permitido que regressásseis à corte, onde ele não pode seguir-vos.
- Ele estava lá? Na estalagem?
David avançou em direcção a ela, perigoso, tenso, e Christiana recuou até embater na janela.
- Ele tentou ocultar-me a verdade, mas eu consigo lê-la no rosto dele, tal como leio no vosso, e forcei-o a confessar.
Ele estendeu a mão e aproximou-a do rosto dela. Não havia nada de tranquilizador na sua voz serena nem de animador naquele toque.
- Então, tivestes finalmente o vosso cavaleiro, minha senhora. Foi como esperáveis? Tal como as canções e a poesia da cavalaria na qual fostes educada? As mãos daquele cavaleiro concederam-vos o conforto de ainda serdes quem nascestes para ser? Que não descestes para lá da redenção no leito de um mercador?
Não, quis ela responder, foi exactamente ao contrário. Mas admitir que Stephen lhe tinha tocado serviria apenas para atiçar esta fogueira.
Ele não estava nem a encurralá-la nem a restringi-la, mas Christiana sentiu-se subitamente muito indefesa. Uma pontinha de sensualidade no seu tom suave fê-la ficar de sobreaviso.
- Não fiz nada de mal... - repetiu, procurando os olhos dele em busca de confiança e compreensão. Apenas viu sombras, fogo e outra coisa que a deixou alarmada.
Quando ele baixou a cabeça, ela tentou afastar-se. A mão dele embrenhou-se no cabelo dela e segurou-a enquanto a sua boca reclamava a dela.
Ela amava-o, sentia a falta dele e queria-o, e, de início, o seu corpo e espírito aceitaram-no com gratidão. Mas à medida que sentia a paixão dele avolumar-se e
o seu beijo aprofundar-se, ela soube que não era amor nem afeição que o moviam, mas o orgulho e a fúria, e isto recordou-a demasiado da investida de Stephen. Afastou
bruscamente a cabeça e debateu-se enquanto ele a puxava para os seus braços.
- Não. Não...
- Sim, minha menina. Estou há duas semanas sem uma mulher. É esta a grande vantagem dos casamentos. Não é necessário perder tempo com galanteios e seduções quando
existe uma mulher à nossa espera em casa.
Ele aprisionou-a com o seu abraço e manteve a cabeça dela fixa com uma mão firme. - Este é o problema do adultério, e é bom que o aprendeis hoje. O homem pode evitar
a esposa, se assim o desejar, mas a mulher deve regressar para um marido que mantém os seus direitos.
Segurou-a com firmeza e beijou-a novamente. Ela contorceu-se desesperadamente contra aqueles braços fortes. O choque eclipsou todas as outras emoções. Podia muito bem ser um estranho a tentar violentá-la.
- Receei que me repudiasses, sabendo onde estivestes e o que estivestes a fazer da primeira vez que me ausento da cidade - disse, enquanto as suas mãos se moviam pelo corpo dela. Exibia um sorriso débil, mas ela conseguia ver que a ira ainda não se dissipara.
- Seria irónico, não é verdade? Ter pago todo aquele dinheiro pela propriedade e depois descobrir que já não pretendo voltar a usá-la.
A mente de Christiana ensombrou-se com horror ao ouvi-lo falar tão friamente do casamento deles. Alguns indícios haviam-na levado a pensar que ele a via dessa forma, e que até a seduzira para reivindicar o que era seu, mas ouvir as palavras pronunciadas com tanta crueza e ver a confirmação a ser-lhe lançada assim, quando sentia tanto amor, era algo que a repugnava.
- Propriedade... - pronunciou, ofegante.
- Sim. Adquirida e paga.
A sua visão turvou-se e ela pensou que o seu coração ia estilhaçar-se. Mas as palavras dele também insultaram o seu orgulho e a fúria dela inflamou-se.
- Não escolhi ser uma propriedade para ser usada a vosso bel-prazer - exclamou, contorcendo-se e debatendo-se para se libertar.
- Não ireis fazer isto numa fúria, como punição.
A luta dela enfureceu-o ainda mais. com dois movimentos violentos, prendeu-a a imobilizou-a contra a janela.
- Sois minha mulher, não tendes escolha.
Christiana gritou quando ele a ergueu e a transportou até à cama como se fosse um tapete. Quando a pousou, ela rebolou para longe e lutou para se libertar. David
agarrou-a e puxou-a para si, pressionando o seu peito contra as costas dela e lançando uma perna sobre as dela.
Ele segurou-a até ela parar de se debater. Christiana emergiu do seu delírio de rebelião e David acariciou-lhe suavemente o cabelo e as costas como se ela fosse um animalzinho assustadiço. Sentiu-se invadir por uma onda de devastação. Mordeu o lábio inferior e
reprimiu as ágrimas. Pensou na alegria estúpida e ingénua que a levara a lançar-se nos braços dele algumas horas antes. O amor, vivo mas maltratado, procurava abrigo algures dentro de si.
Ele saiu de cima dela e percorreu-lhe as costas com a mão. Os seus dedos enfiaram-se no nó dos atilhos do cotehardie.
- Lamento se vos assustei, mas não quero partilhar-vos com nenhum homem, muito menos com aquele. - Falou num tom de voz suave e brando, mas a ira ainda irradiava dele, misturando-se com a paixão do seu corpo. - Não deveis ir ao encontro dele nunca mais. Se o fizerdes, mato-o.
Ele disse aquilo com simplicidade e calma, no tom de voz do David que ela conhecia. As mãos que ela apreciava acariciavam-lhe as costas sob o vestido desapertado, com o seu calor a fluir através do tecido fino do vestido interior. Em resposta, o seu amor tolo voltava a despertar, mas o seu orgulho ferido empurrou-o de novo para um canto.
Christiana voltou-se para ele. O estado de espírito de David não melhorara, muito embora ele procurasse agora ocultá-lo. Fitou aquele belo rosto que punha tão facilmente o seu coração a suspirar. Os traços do rosto dele suavizaram-se, e ele acariciou-lhe a barriga e os seios. Um desejo ardente e agradável percorreu-a e sentiu-se horrorizada por reagir dessa forma naquelas condições. O amor que sentia apoderou-se do seu corpo e ameaçou tecer uma ilusão como forma de escape.
As palavras duras dele ecoavam na sua mente. Agarrou no pulso dele e deteve-lhe a mão. com amor ou sem ele, não podia iludir-se acerca daquilo que estava prestes a acontecer e acerca dos motivos que o levavam a fazê-lo, e o que significava para ele.
- Então, finalmente surge a realidade - disse ela, semicerrando os olhos. - Deve ter sido muito entediante terdes sido obrigado a fingir o contrário com a criança que desposastes.
Ele fitou-a. A sua ausência de resposta e negação converteram a angústia de Christine num rancor hostil.
- O mercador tem necessidade da sua propriedade, da mesma forma que cavalga os seus cavalos quando bem lhe convém? Pois bem, ide em frente, marido. Reclamai os vossos direitos. Mostrai que sois idêntico a qualquer barão que usa uma das suas filhas contra a
sua vontade. Também ireis magoar-me, para vos certificardes de que a lição é bem aprendida?
Ainda assim, ele não reagiu. O coração dela despedaçou-se com uma dor que a sufocava e, em troca, atirou-lhe com tudo o que pudesse magoá-lo. - Não vos preocupeis com sedução e prazer, mercador. A terra não sente nada quando é lavrada, nem a lã quando é cortada. Pensarei em quem eu sou e em quem vós sois
e também não sentirei nada. Mas sede rápido para que eu possa ir lavar-me.
Dito isto, olhou para ele da mesma forma que o fizera no dia em que ele a encontrara no banho.
Ela pensou que ele lhe ia bater. Naquele breve momento em que a ira dele se reacendeu, enquanto ele se erguia e os seus olhos se ensombravam, ela rolou freneticamente para fora da cama e fugiu, meio a correr, meio a rastejar, para a porta do quarto de vestir.
Bateu com a porta e barrou-a no preciso momento em que ele a alcançou. Um pontapé violento sacudiu a porta e o ferrolho. Christiana empurrou um baú pesado de encontro a ela e retrocedeu, atemorizada, enquanto ele a pontapeava de novo.
Depois fez-se silêncio. Ela correu para a porta que conduzia às escadas exteriores e também a trancou. Esperou, tensa, durante bastante tempo, mas a quietude manteve-se
e ele não fez mais tentativas para entrar.
Soltando um suspiro de alívio, desabou num banco e finalmente permitiu que as lágrimas caíssem. Chorou muito e durante muito tempo, avassalada pela tristeza e o
choque, as palavras cruéis dele a ecoarem nos seus ouvidos. O seu amor patético veio à superfície, aumentando a sua agonia.
Finalmente, um torpor letárgico tomou conta dela. Apenas um pensamento nítido se impunha, sem cessar, na sua mente. Tinha de fugir e partir para longe daquela casa e daquele homem. Não iria, não conseguiria, viver com a realidade que ele lhe impusera neste dia. Não agora. Não durante algum tempo. Talvez nunca.
A chuva caía inexoravelmente, fustigando o rosto de David. Ele encontrava-se na doca pequena, observando os padrões que as gotas formavam no Tamisa enlameado. Pingos belos e rítmicos, encerrando
um vislumbre de pureza, existiam durante breves momentos antes de serem absorvidos pelo fluxo enlameado.
David permitiu que a chuva o encharcasse. Ensopava-lhe as roupas e colava-lhe o cabelo à cabeça. Ao fim de algum tempo, a água conseguiu limpar a ira sombria que lhe dominara a mente.
E nessa altura, liberto da loucura, enfrentou a recordação do que acontecera. Era algo que jamais desapareceria com a água e ele revivia-o uma e outra vez. As palavras odiosas que lhe dirigira. Os insultos cruéis de Christiana. A forma maldosa como a depreciara.
Ainda bem que ela fugira.
Conheciam-se suficientemente bem para saberem o ponto exacto onde deveriam espetar a adaga, derramando o sangue das fraquezas de cada um. Ele jamais esqueceria o que ela dissera, mas não podia censurá-la por admitir aqueles sentimentos e pensamentos. Desde o dia em que viera para junto dele, Christiana procurara corajosamente ignorar o que esta união significava para a sua vida.
Nunca fora tão duro com nenhuma mulher como tinha sido com Christiana nesse dia. Oliver e Sieg estavam certos. Não devia ter regressado a casa nem devia tê-la confrontado
enquanto a descoberta da infidelidade dela ainda ardia como um cepo acabado de lançar à fogueira. Ele sabia que eles estavam certos mesmo quando ignorava os seus
conselhos e súplicas.
Recordou-se de Oliver sentado na taberna diante de si e de Sieg, escutando com uma atenção absorta a narração da espera deles nas costas da Normandia pelos sinais da frota que por ali deveria passar. David descreveu como os dias haviam enegrecido com tempestades e como se tinha apercebido de que pelo menos este mês seria poupado da decisão que o aguardava em França.
E durante todo o tempo que Oliver escutava cuidadosamente e prolongava a narração com questões, ele observara os sinais de desconforto no rosto do seu velho amigo. Estes traíram-no ainda mais quando David começou a fazer perguntas acerca de Christiana. Pobre Oliver. Tentara mentir e, em seguida, usar frases ambíguas quando lhe pediu pormenores. David soube que a sua expressão se tornara perigosa quando sentiu no ombro a mão de Sieg e aquela vozinha melodiosa insistindo para que se mantivesse longe de casa durante mais alguns dias.
Era impossível, evidentemente. Tinha de a ver imediatamente e observar aqueles olhos de diamante sabendo o que sabia. Desejava e ansiava sentir-se morto para ela, estar liberto do amor que complicava a sua vida e o tornava subitamente indeciso.
Pois quando saíra do navio de Albin nessa manhã, após dois dias traiçoeiros no mar, ele soube que a amava. Há algum tempo que reconhecia os sentimentos, mas na Normandia tinha-lhes dado um nome. Procurara Oliver antes de regressar a casa porque sabia que quando entrasse no seu lar não iria querer partir durante muito tempo.
Recordou-se de como ela correu na sua direcção, com o rosto ruborizado e os olhos brilhantes. Observara o exuberante cumprimento que ela lhe dirigira com um fascínio sombrio. Não esperara que ela fosse tão boa a enganar. E a par dessa reacção inicial estava a aterradora compreensão de que ainda a desejava.
Uma mistura perigosa, pensava agora enquanto erguia o rosto para a chuva. Ira, desejo e ciúmes. Por que razão a deixara jogar aquele jogo? Por que razão permitira que aquelas horas decorressem enquanto ela fingia que nada havia mudado e o seu próprio rancor crescia? com um esgar, limpou a água do rosto. Estivera a observar,
a esperar e, sim, a ansiar. Estivera à espera de uma confissão, na esperança de que ela lhe desse também uma confirmação de que a sua infidelidade havia sido uma
decepção. Estivera à espera que ela lhe pedisse perdão e dissesse que agora sabia que já não amava Percy.
Louco. As mulheres infiéis não faziam tal coisa. Mesmo quando encurraladas com a prova, o mais prudente era mentir. A honestidade era demasiado perigosa. Os homens
reagiam de uma forma demasiado violenta. Ele provara isso hoje, não provara? Havia-a forçado a mentir ao provocar-lhe medo.
Estremeceu perante a recordação do choque e do terror de Christiana.
Ela negara-o, mas ele não acreditara nela. Ela amava Sir Stephen e o cavaleiro dela ia partir para a guerra. As suas palavras haviam sugerido que Stephen não possuía perícia como amante, mas isso não o tranquilizou minimamente. Uma mulher apaixonada procurava mais do que prazer na cama e desculparia qualquer falta de jeito.
Meditou naquela negação enquanto regressava para junto do cavalo. Uma parte soava-lhe verdadeira. Lady Catherine levou-me
até Stephen sem eu saber, dissera ela. Ele acreditava nisso, e essa parte, pelo menos, era reconfortante. Christiana não arranjara aquele encontro por si, mas fora atraída para ele. Tendo em conta o que sentia por Stephen Percy, talvez o resto tivesse sido inevitável, a ponto de a tornar praticamente inocente.
Quanto ao papel de Lady Catherine nisto... bem, quando ele ajustasse estas novas contas, permitiria a si mesmo o prazer da vingança e não apenas da justiça.
Não se afastaria de casa para sempre, por isso cavalgou de regresso, sem saber ao certo o que iria dizer a Christiana quando lá chegasse. A tentação de esquecer todo aquele dia e a forma como a confrontara com a sua ira era grande.
Aceitaria ela o comportamento de ambos como uma troca eficaz? Uma infidelidade e traição em troca de uma tentativa de violação? Se tivesse sido só isso, as contas estariam saldadas, mas as palavras dele e o modo como as pronunciara haviam-na insultado mais do que qualquer tentativa de violação alguma vez o faria. Para a magoar, dissera-lhe que ela não era mais do que uma prostituta nobre que ele adquirira. Ela não o perdoaria facilmente.
Entrou no pátio húmido e entregou as rédeas do cavalo ao moço da estrebaria. Assim que entrou no salão, uma suspeita insinuou-se na sua alma.
A casa parecia a mesma de antes do casamento de David e Christiana. Esta era a sua casa há muitos anos e David descobrira nela a felicidade. Talvez por isso, nunca reparara nos vazios que ela continha após o falecimento da sua mãe e de David Constantyn. Só depois de Christiana ter preenchido esses vazios com os seus sorrisos e alegria é que ele havia dado conta da sua existência. Agora escutava os seus passos ecoarem pelo amplo salão como se toda a mobília tivesse sido removida. Encaminhou-se
para a lareira, evitando a confirmação das suas suspeitas.
Geva entrou vinda da cozinha com pratos de porcelana nas mãos. Lançou-lhe um olhar e abanou a cabeça.
- Estais ensopado, David. O melhor é despirdes essas roupas
- ralhou ela.
David voltou as costas para o lume. Geva cantarolava baixinho enquanto dispunha os pratos para a ceia. Agia como se não faltasse
nada, e os pressentimentos dele pareceram-lhe fúteis. com um último olhar na direcção dele, Geva desapareceu na direcção da cozinha.
David olhou para as mesas. Contou os pratos. Faltava um. O mau pressentimento regressou.
Atravessou lentamente o salão e subiu ao quarto, sabendo o que ia encontrar.
No quarto de vestir, penduradas nos cabides e dobradas nos baús, encontravam-se todas as roupas que ele lhe havia ofertado, incluindo a capa vermelha. Remexeu nelas, reparando que quase todos os seus outros pertences, os mais antigos, haviam desaparecido. Mas ainda restavam algumas coisas. Um baú ainda continha roupas de lã para o Inverno. Ele ergueu-as e aspirou o aroma dela, e sentiu uma mão invisível apertar-lhe o coração.
Abandonou o compartimento e atravessou rapidamente o quarto, não querendo olhar para o espaço que ainda retinha as imagens vívidas das feridas que haviam infligido um no outro.
Sieg encontrava-se agachado na sala de estar, acendendo a lareira, e ergueu o sobrolho perante as roupas ensopadas de David.
- Então, fostes atirar-vos ao rio, foi? David ignorou-o.
- Magoaste-la? David abanou a cabeça.
- Disse-vos que esperásseis, David - proferiu Sieg, pondo-se de pé depois de terminar de avivar o lume. - O vosso humor estava mais negro do que a noite. Nunca vos havia visto assim, nem mesmo quando os mamelucos vos lançaram naquele inferno comigo depois daquela rameira vos ter denunciado. Nem sequer durante a nossa fuga, quando matastes a pessoa que nos chicoteou.
- Devia ter-vos dado ouvidos.
- Já, mas no que toca a esta rapariga nunca me escutais, por isso, isto não foi diferente.
David hesitou. com outro homem, não teria perguntado, mas Sieg já testemunhara outros momentos de fraqueza dele.
- Onde está ela?
Os olhos de Sieg faiscaram e a sua postura empertigou-se.
- Raios! Não sabeis? Juro que ela me disse que havíeis concordado, caso contrário não a teria levado lá...
- Onde?
- Westminster. - Voltou-se em direcção à porta. - vou já lá buscá-la. Raios.
- Não. Deixai-a lá ficar algum tempo.
- Estais a dizer-me que permitis que este cavaleiro tolo vos roube a esposa? Ireis permiti-lo?
- Se chegarmos a esse ponto, a culpa foi toda minha - disse.
- Pensais que ela tenciona permanecer na corte? Tivestes a sensação de que ela tencionava ir para outro lado?
- Ela prometeu permanecer lá, o que eu considerei estranho, uma vez que não me deve explicações.
- Sir Stephen partiu para Northumberland há alguns dias. Oliver informou-me. Ela saberá que eu sei, ou que descobrirei. A promessa dela era para me garantir que não irá ao encontro dele. Esboçou um sorriso. - Disse-lhe que o mataria se ela o fizesse. O meu comportamento deu-lhe motivos para acreditar em mim.
Sieg lançou as mãos ao ar.
- Isso não faz sentido, David. Se este homem está no Norte, por que razão se limita ela a ir para Westminster? Se não é para ir ao encontro dele, por que razão está a fugir?
David não respondeu, embora a resposta fosse óbvia. Ela não está a fugir para os braços de Percy, pensou ele. Está a fugir de mim.
Christiana sentou-se num jardim impregnado com a fragrância das flores do final do mês de Maio. Fitou os rebentos de tons suaves e sorriu. Ser uma mulher em vez de uma criança não era assim tão mau. No ano anterior, teria tomado a beleza das flores como garantida. Neste momento, admirava cautelosamente a sua pureza viçosa.
David ensinara-lhe isto. A prestar atenção às belezas efémeras do mundo. Uma oferta generosa.
Christiana suspirou no silêncio. O jardim encontrava-se deserto apesar da temperatura amena porque a corte estava nesse momento a jantar no salão. Ela evitava essas refeições repletas de pessoas e todos os outros eventos em que fosse obrigada a conversar e a divertir-se. Fugira para Westminster em busca de um refúgio onde a sua alma e o seu coração pudessem sarar.
Ao chegar, foi acolhida com carinho e compreensão. Lady Idonia olhara para ela e soubera imediatamente a razão da sua visita.
A mulher não fizera quaisquer perguntas e instalara-a como se tivessem estado à espera dela. Joan e Isabele, sem dúvida avisadas por Idonia, também não procuraram
explicações.
Elas eram a única família que Christiana tinha há vários anos, e rodeavam-na e protegiam-na na sua dor. Até mesmo Filipa, ao tomar conhecimento da sua estadia prolongada,
a viera visitar. Sozinhas na antessala, a rainha procurara uma vez na vida ser uma mãe para ela, quando Christiana lhe explicara as dificuldades do matrimónio. No
final, ofereceu-se para escrever a David e comunicar-lhe que exigia que Christiana permanecesse mais algum tempo na corte, por isso ele não se atreveria a vir buscá-la, dando-lhe assim mais tempo.
Mais tempo. Para quê? Para se habituar à ideia de ter de viver a sua vida com um homem que, no mínimo, pretendia tê-la disponível para satisfazer as suas necessidades? Que havia adquirido uma companheira de cama bem nascida e bem formada, da mesma forma cuidadosa que escolhia os seus cavalos? Um homem que não confiava nela agora, embora ela tivesse sido sempre honesta com ele? Um homem que mal se importava com ela, mas que ela amava apesar de tudo?
Era ali que residia o verdadeiro problema, obviamente. com o resto ela poderia lidar e aceitar se não o amasse. Era o destino da maior parte das mulheres, e ela até havia ido para o seu casamento assumindo que seria igualmente o dela. A indiferença mútua podia torná-lo suportável. Margaret, por exemplo, sobrevivia, não é verdade?
Sim, necessitava de tempo. Necessitava de tempo para deixar de o amar. Guardava a recordação da dura indiferença dele e da tentativa de violação bem vivas na sua
mente. Voltou a examinar, na sua mente, as provas que a implicavam num jogo de traição. Não havia funcionado e ela encontrava-se num dilema. O amor não morria e ele havia-lhe furtado a hipótese de construir ilusões a partir de ambiguidades.
Lançou um olhar às flores. Mais tempo. Quanto tempo demoraria? Quanto tempo decorreria até poder regressar àquela casa e àquela cama e mostrar-se tão indiferente para com ele quanto ele se mostrava para com ela? Quanto tempo levaria até que ele lhe pudesse tocar e ela não sentisse mais do que simples prazer ou, até mesmo, alhear-se do acto? David não lhe dissera que Anne lidava dessa forma
com a sua profissão de prostituta? E o que era ela senão uma prostituta incrivelmente dispendiosa?
Decerto bastaria estar afastada dele para que estes sentimentos acabassem por morrer.
Uma porta do palácio abriu-se. Morvan fez uma pausa no limiar. Lançou-lhe um olhar durante um breve momento antes de se encaminhar na sua direcção. Sentou-se junto
dela e permaneceu em silêncio, com o braço à volta das suas costas. Christiana pousou a cabeça no seu ombro.
Não conversara com ele durante toda a sua estadia ali e, na verdade, andava até a evitá-lo. Quando se encontravam brevemente, ela afastava-se das questões que os olhos dele lhe colocavam. Agora ele havia-a procurado deliberadamente e sentia-se grata por isso. Morvan possuía tanta força que parecia sempre haver um pouco para ela.
Christiana voltou-se e observou-o, de perfil, notando a preocupação no rosto dele. Também viu outra coisa e suspeitou, com uma resignação apática, que já não havia escapatória.
- Por que estais aqui, Christiana? - perguntou finalmente, exigindo a informação que mais ninguém pedira. :
- Não podia ficar lá.
- Por que razão?
Porque o meu marido não me ama. Não podia responder isto. Parecia demasiado infantil. Tal como a maioria dos nobres, provavelmente Morvan era da opinião que o assunto do amor era irrelevante nos matrimónios.
- Ele magoou-vos? Maltratou-vos?
- Não - murmurou.
- Esteve com outra mulher? Se assim foi, Christiana, devo dizer-vos que com os homens...
- Que eu saiba, não, Morvan. Ele pensa que eu estive com outro homem. com Stephen. Não acredita em mim quando nego. Estava louco de fúria e ciúmes. Discutimos e ele disse umas coisas... coisas medonhas.
- Todos os casais discutem. Os nossos pais tinham discussões horríveis.
- Isso era diferente.
- Talvez não.
- O nosso pai amava a nossa mãe?
A pergunta surpreendeu-o.
- Foi uma união de amor. Penso que ainda se amavam no final.
- Então, era diferente.
- O que eles tinham é uma coisa rara, Christiana. Não me parece que seja concedido à grande maioria. Não me parece, mesmo.
- Nem avós?
- Não. Nem a mim. Tal como a maioria dos homens, contento-me com breves simulacros.
Para ela, isso era muito triste. Recordou-se de David dizer que Elizabeth não desposaria Morvan devido ao amor desigual. Agora compreendia Elizabeth e sabia por que razão ela havia preferido aquele barão idoso por quem não sentia nada. Uma união com Morvan teria despedaçado diariamente o seu coração.
- Não podeis permanecer aqui - disse Morvan suavemente.
- Filipa falou comigo. Eduardo tomou conhecimento da vossa presença e fez-lhe perguntas. Filipa não é da opinião que David tenha conversado com ele, mas, ao que parece, o rei nutre alguma afeição pelo vosso marido e interferiu de moto próprio.
- Não posso voltar para lá.
- Não tendes outro lugar para ir. Ela fechou os olhos.
- Se for a vontade de Deus, Christiana, há-de chegar o dia em que terei uma casa. Se ainda necessitardes de sair, eu acolher-vos-ei para sempre e impedirei que ele
vos leve de volta. Mas por agora, não tendes escolha - ele fez uma pausa e acrescentou cuidadosamente -, a não ser que pretendais ir para norte, para junto de Percy. Stephen ofereceu-se para vos dar guarida?
- Nada de tão formal ou permanente, irmão. - respondeu Christiana com uma breve gargalhada. - Mas ainda que o tivesse feito, também não iria. Já não sinto afeição
por ele e mesmo que sentisse nunca vos desonraria dessa forma. Também não iria porque David disse que mataria Stephen se eu o fizesse, e eu acredito nele.
- Exibiu um sorriso malicioso. - Ter-me-íeis deixado ir?
- Provavelmente não.
- Bem me quis parecer.
- Pedi a Idonia que reunisse os vossos pertences. - Comunicou-lhe com um sorriso afável. - Os cavalos estão à espera. vou levar-vos agora para casa.
- Já? - Sentiu um aperto no estômago.
- Seja o que for que tenha acontecido entre vós e David, não vale a pena estar a arrastar o problema.
- Não sei se consigo suportar isto, Morvan. Da última vez que o vi...
Da última vez que o vira, ele estivera prestes a bater-lhe porque ela lhe falara num tom superior, de nobre para plebeu, e sugerira que o toque dele a rebaixaria e conspurcaria. O último som que escutara havia sido aquele pontapé que ele desferira ao tentar arrombar a porta do quarto de vestir.
- Ele provavelmente ficará feliz e aliviado por vos ver - disse Morvan enquanto a ajudava a pôr-se de pé. - Estou a lembrar-me que esta é a terceira vez que vos
conduzo até ele. O homem agora já deve nutrir uma grande afeição por mim.
Christiana soltou uma gargalhada forçada perante a tentativa do irmão de lhe levantar o ânimo, mas não pensou por um momento que David ficasse aliviado ao vê-la.
David escutou os cavalos a entrarem no pátio no momento em que terminavam de jantar. Andrew estava a sair do salão e lançou um olhar significativo para fora, confirmando as identidades dos cavaleiros. Michael pôs-se atrás de Andrew junto à porta e anunciou alegremente aos criados que a sua ama havia regressado.
com um gesto, David ordenou que todos saíssem e se ocupassem dos seus afazeres. Dirigiu-se à porta e saiu. Os aprendizes saudaram Christiana ao passarem por ela
a caminho do portão. Ela cavalgava lentamente ao lado do irmão.
Estivera ausente durante praticamente três semanas. Não houvera troca de mensagens ou bilhetes entre eles, e a opção de David de trazê-la de volta havia sido impedida por interferência da rainha. Três semanas, e antes disso aquelas outras duas. Ele só havia passado uma tarde com ela durante todo esse tempo.
Pararam os cavalos mesmo em frente a ele. Christiana baixou o olhar, impassível. Morvan tentou parecer descontraído e amigável. Desceu da sela e deu a volta para ajudar a irmã a descer.
- Christiana pediu que a escoltasse até casa - disse enquanto
desamarrava os pequenos baús da sela. - Na opinião dela, Westminster estava a ficar muito monótona.
David aguardou. Christiana avançou alguns passos e encarou-o.
- Ele está a mentir - declarou calmamente. - Foi ele que me obrigou a vir.
- Ainda assim, é bom ter-vos de volta. Ela lançou-lhe um olhar céptico.
- Emma ainda está ao vosso serviço?
- Está lá dentro.
- vou entrar agora e descansar - anunciou. - Estou com uma dor de cabeça e sinto-me um pouco tonta.
Ele deixou-a passar, limitando-se a assentir perante a sua antiga desculpa para o evitar.
Morvan poisou os baús perto da porta.
- Agradeço-vos, Morvan.
O rosto de Morvan endureceu.
- Não me agradeceis. Ela está magoada com algo, embora eu não saiba com o quê. Se tivesse outro lugar para onde pudesse levá-la, tê-lo-ia feito. - Morvan subiu para
o cavalo. - Voltarei dentro de alguns dias para a ver - anunciou rispidamente.
- Não a magoarei por causa disto.
- Ainda assim - disse, dando a volta ao cavalo -, virei. David atravessou o pátio e entrou no edifício lateral. Quando se
aproximava das escadas viu Emma emergir do antigo quarto da sua mãe. Fechou suavemente a porta e dirigiu-se a ele.
- Ela está muito mal, parece-me. Disse que não conseguiria subir os degraus.
David lançou um olhar à porta do quarto onde a sua jovem esposa se escondia dele. Voltaria ela a sair por vontade própria, ou teria ele de acabar por derrubá-la?
- Nesse caso, usará o quarto até se sentir melhor. Fazei com que se sinta o mais confortável possível, Emma.

CAPÍTULO 17
Christiana estranhou a nova cama. Aconchegou-se sob as mantas, embora a noite de Junho estivesse suficientemente amena para deixar as janelas abertas. Lançou um olhar às cortinas pregueadas.
Não tinha de estar aqui, recordou a si mesma, e ainda estava a tempo de mudar de ideias. Ele só regressaria daí a algumas noites. Ninguém sabia que a sua ama adoentada se havia esgueirado pelas escadas e entrado neste quarto enquanto todos dormiam. Podia regressar ao quarto de Joanna antes do amanhecer e continuar a sua farsa.
Duvidava que alguém se deixasse enganar pela sua doença, excepto talvez a ingénua Emma. A preocupação com a qual cuidara dela durante os primeiros dias há muito que dera lugar a uma curiosidade muda.
Estendeu o braço, sentindo os lençóis onde David dormia, agora frios. Talvez tivesse sido um erro vir até aqui esta noite. Mesmo que ela saísse agora e nunca mais regressasse, ele iria, sem dúvida, aperceber-se de que ela estivera ali. Provavelmente fora uma tolice esgueirar-se até àquela cama e tentar imaginar se poderia regressar para ele sem se sentir devastada.
David havia alinhado na sua pretensão de doença. Durante três semanas havia-a tratado com preocupação em frente aos outros. Saudava-a afavelmente quando regressava a casa e pousava a sua mão sobre a dela quando conversavam após as refeições.
Todavia, quando se encontravam sozinhos, Christiana divisava algo mais naqueles olhos azuis. A compreensão de que estava a evitá-lo deliberadamente. Uma paciência indulgente, mas não eterna. Por vezes, talvez, uma mente masculina inteligente calculando as suas opções com ela.
Uma vez que aparentemente não podia subir as escadas, Christiana começou a costurar no salão após as refeições da noite. Decorridos os primeiros dias, David começou a juntar-se a ela no salão. Durante as conversas formais que mantinham junto à lareira pulsava sempre uma tensão subtil, mas ultimamente essa agitação havia-se intensificado durante os longos silêncios. Christiana erguia os olhos da costura e dava por ele a fixá-la atentamente, e esse olhar provocava-lhe aquele antigo temor que não era temor. Amaldiçoava-se a si mesma e rezava para que ele a deixasse em paz e não a recordasse, com a sua presença e o seu olhar, do quanto ela ainda o amava e desejava.
Fora intencional. Cada toque e cada beijo suave de boas-noites sempre que ela abandonava a lareira para regressar ao quarto de Joanna, tinham a intenção de lhe recordar o prazer que sentia com ele. David estivera a reproduzir uma melodia lenta e metódica nas cordas do desejo dela.
E fora bem-sucedido. Na última semana, deitada na sua cama solitária, havia começado a reflectir que talvez não fosse capaz de viver esta vida na qual se encontrava aprisionada. Podia aceitar o prazer por aquilo que ele era. Para quê negar-se? Havia-se tornado evidente que este desejo ardente, uma vez desperto, não voltaria a adormecer assim tão facilmente.
Desde o dia em que regressara, deitara-se todos os dias naquela cama, incapaz de adormecer rapidamente, à espera dos passos junto à sua porta que a preveniriam que ele finalmente vinha exigir os seus direitos e o dever dela.
Na noite anterior mal conseguira dormir. Ele fazia tenções de sair de manhã para visitar uma feira de comércio. Ela não duvidava da verdade do seu destino desta vez, porque John Constantyn ia com ele. Não seria uma viagem longa, mas a noite silenciosa junto à lareira havia sido difícil devido à sua partida iminente. Ter-se-á ele recordado, tal como ela, da sua última despedida emotiva, do que havia acontecido à sua chegada?
Quando ela finalmente o deixou, o beijo havia sido longo e menos casto, e as mãos dele haviam-na acariciado enquanto a abraçava. Christiana deu por si cheia de sentimentos ávidos e dolorosos, há muito negados, antes de ele se afastar. Se ele a tivesse erguido nos seus braços e levado para a cama dele, ela não teria conseguido impedi-lo.
Todavia, ele não o fez. Permitiu que ela o deixasse, como fazia sempre durante estas últimas semanas. Ela regressou ao pequeno quarto que se havia tornado na sua casa. Aguardou, rezando para que dessa vez ele viesse e acabasse com aquilo, embora ao mesmo tempo o receasse. A necessidade que sentia da proximidade dele subjugava-a. O seu orgulho ferido e a mágoa que sentia perante a indiferença dele deixaram de importar. O facto de o desejo ser indissociável do amor já não a assustava assim tanto. Encontraria uma forma de lidar com esses sentimentos.
Ele viera, mas não durante a noite. Aos primeiros raios da aurora, a porta abrira-se e ela voltou-se para o encontrar ali, a observá-la. Christiana ergueu-se contra a cabeceira da cama e colocou o lençol em redor dos seus ombros nus.
David sentou-se ao seu lado e ela reparou nos sinais de cansaço no seu rosto que sugeriam que ele também não dormira muito.
- Estais de partida? - inquiriu.
- Sim. John aguarda-me lá fora. Sieg ficará por cá. Correm boatos de que o rei Eduardo voltou a convocar o seu exército, Christiana. Se os homens começarem a chegar à cidade, não deveis sair de casa sem Sieg ou Vittorio.
Ela não sabia que Eduardo retomara os seus planos relativamente a França, mas a verdade é que não saía de casa há algumas semanas devido à sua doença. Margaret havia-a visitado algumas vezes, mas como não possuía qualquer interesse nos mexericos da corte ou na política, não lhe havia dito nada. Nem David, até este momento.
Talvez ainda nem sequer existissem boatos. Talvez David soubesse porque o rei lhe dissera.
Ele vai apenas a uma feira, disse para si mesma com firmeza. E John Constayn quem o acompanha e não Sieg.
Ele pousou a mão sobre o joelho dela. Christiana olhou para aquela mão, tão sedutora no seu vigor elegante, tão quente apesar
do lençol entre a pele de ambos. Aquela intensidade palpitante que emanava esta manhã era quase palpável.
- Isto não pode continuar - disse. - Não podeis permanecer aqui.
Nunca haviam falado daquele dia nem da razão pela qual ela fingia estar doente. Uma parte dela desejava que nunca o fizessem.
- Isso foi o que Morvan me disse. Encontrou-se comigo em Westminster e disse-me que eu não podia permanecer lá. Agora dizeis-me o mesmo em relação a esta casa.
- Não. Digo-vos isto em relação a este quarto. Não verei outra mulher enterrada viva nele.
- Então dai-me algum dinheiro para pagar aos criados e irei viver em Hampstead. Saldarei a minha dívida para convosco com as rendas das quintas.
Christiana ainda teve tempo de vislumbrar um lampejo de ira nos seus olhos azuis antes de ele o suprimir. Abanou lentamente a cabeça.
A mão dele ainda repousava no joelho dela, seduzindo-a com o seu calor, oferecendo-lhe os seus prazeres. Teria sido melhor se ele a tivesse levado lá para cima na noite anterior. O melhor era nunca ter falado sobre o que estava a acontecer.
- O que estais a dizer, David? Estais a ordenar-me que me submeta ao meu dever?
- Estou a pedir-vos que regresseis ao nosso casamento e à nossa cama.
- E em relação a Stephen Percy?
- Esqueceremos isso.
- Ainda não acreditais em mim, não é verdade? Mas perdoais-me magnanimamente.
É muito generoso da vossa parte, mas eu não desejo nem necessito do vosso perdão.
- Talvez eu deseje e necessite do vosso.
- Não sei se vo-lo posso conceder - murmurou ela, à medidaque as recordações daquele dia pairavam no espaço entre eles. - Mesmo neste momento em que me pedis que volte para vós, sei que apenas pensais na vossa propriedade e que estais ressentido por ela vos estar a ser negada. Pode ser que estas coisas sejam sempre assim, mas não me parece que muitas mulheres tenham de o escutar com tanta franqueza, para depois viverem com a verdade de uma forma
tão crua. Talvez seja esse o motivo dos dotes. Dar às mulheres outro valor nos matrimónios, de modo a que a sua dignidade seja preservada.
Aquela mão sedutora ergueu-se do seu joelho e acariciou a face acima do lençol amarfanhado com o qual ela se escudava. A mão permaneceu ali, e o seu calor penetrou-a e desceu-lhe pelo pescoço.
- Ambos proferimos palavras muito cruéis. Não penso em ninguém como propriedade minha, Christiana. Muito menos em vós disse, inclinando-se na direcção dela.
Christiana sabia que não seria um simples beijo de despedida, e que deveria afastar-se, mas não podia fazê-lo embora a ligação lhe provocasse angústia. O seu toque quente, a voz suave, os olhos azuis intensos deixaram-na indefesa. Recordações sensuais durante a noite haviam despertado o seu corpo fatigado. O beijo dele prolongou-se e intensificou-se e Christiana não conseguiu debater-se porque algo dentro dela, para lá da razão e da dor, ansiava por ele.
Ele beijou-a como se o mundo tivesse deixado de existir. Mordiscou-lhe os lábios suavemente, quase de uma
forma indolente. As mordidelas e o calor dos seus lábios
atordoaram-na. Ele foi introduzindo lentamente a língua e Christiana afastou os lábios, tensa, aceitando-o com uma hesitação que o seu corpo trémulo e ansioso não
sentia. A intimidade impetuosa desta curta união dominou-a submergindo o seu ressentimento e mágoa.
Uma vozinha dentro de si gritava um aviso, mas a sua avidez incansável e aterradora ignorou-a. Soltou uma mão que segurava o lençol e abraçou desajeitadamente os ombros que se inclinavam na direcção dela.
Beijaram-se mais uma vez, hesitante, como se fosse a primeira vez. Em seguida, com lentidão e cautela, como se cada toque revelasse algo precioso, David pressionou os seus lábios contra o pescoço e os ombros de Christiana. O corpo dela estremeceu de alívio, grato pelo contacto quente e repetido daquela boca.
Ela abriu os olhos e deu com ele a olhar para si. Nesse momento soube que ele conseguia, como sempre, ver tudo e saber que o seu corpo traiçoeiro havia vencido a sua determinação. Implorou-lhe silenciosamente que ficasse e ao mesmo tempo rezava para que não o fizesse.
- Vinde - disse ele, segurando-a nos seus braços. Ergueu-a e sentou-a no seu regaço, fazendo repousar a cabeça
dela num dos braços, enquanto o outro a segurava de encontro a si. Ela continuava agarrada ao lençol, que deslizou ao longo do seu corpo quando ela se contorceu para sair da cama. Apesar do lençol e da roupa dele, Christiana sentia o calor do corpo de David e a sua robustez, e aquela proximidade fê-la suspirar. As nádegas dela pressionavam-se contra os músculos duros das coxas dele, as suas ancas sentiram a protuberância cálida da excitação dele. Haviam decorrido meses desde que ele a tivera assim nos seus braços, e ela perdeu-se na neblina irracional daquele calor partilhado.
Abraçando-a, David ergueu-a para um beijo profundo e faminto. Ela sentiu a paixão dele subjugar por completo o autodomínio das últimas semanas. O seu próprio desejo mal controlado também se libertou da sua ténue prisão. O seu último pensamento nítido foi a consciência indiferente de que iria pagar este prazer com a dor.
com a sua mão livre rodeou o pescoço dele e puxou-o mais para si, exigindo mais, encorajando-o. A longa abstinência tornara-a impudica, e não permitiria que ele pusesse fim àquele beijo intenso e frenético. O abraço dele afrouxou e ela gemeu quando a sua maravilhosa mão lhe acariciou a pele nua das costas e das ancas.
Ele interrompeu o beijo e fitou os olhos dela. O seu olhar desceu e os seus dedos deslocaram-se até ao ponto onde ela ainda segurava o lençol.
- Não vos ajudou muito naquele dia no quarto de vestir, querida - disse ele docemente. - Soltai-o agora.
Referia-se ao lençol, mas também a mais do que isso. David acariciou suavemente a mão que segurava o lençol até os dedos dela relaxarem sob o seu toque suave. Christiana voltou o rosto para o ombro dele enquanto David soltava o lençol da sua mão e o afastava. Todo o seu corpo estremeceu ao sentir o ar fresco.
Christiana sabia que David estava a contemplá-la como fazia tantas vezes, mas sentiu-se subitamente acanhada e espantada pela fúria do seu desejo. Cerrou os dentes e enterrou o rosto no ombro dele.
David beijou-lhe o pescoço e a voz calma dele pairou junto ao ouvido dela.
- Não oculteis o vosso rosto de mim, Christiana. O desejo que sentimos um pelo outro é algo maravilhoso. Quero que olheis para mim enquanto vos dou prazer.
Ela voltou suavemente o rosto na direcção do dele e obrigou-se a enfrentar o seu olhar. Ele ainda nem lhe tinha tocado, mas aquela necessidade dolorosa retesava-lhe os músculos e uma insistência escaldante latejava entre as suas pernas.
Ela ficou a observar, tal como ele ordenara. Observou enquanto ele a acariciava e lhe beijava os seios e humedecia os seus mamilos intumescidos com a língua. Observava enquanto os seus dedos percorriam lentamente o seu peito, provocando-a com os seus movimentos em círculo. Os seios dela regiam àquele toque errante, ansiosos, implorantes, e a consciência dela concentrou-se apenas no seu anseio silencioso e ofegante. Os dedos dele deslizaram para um mamilo humedecido. Ela viu o seu corpo arquear-se em direcção àquele toque devastador, e depois perdeu a noção de tudo. Aquelas sensações incríveis e um desejo tenaz obliteraram qualquer pensamento.
Ele estimulava-a como se o tempo não importasse, como se ninguém aguardasse por ele no pátio e não tivesse uma viagem pela frente. Os seios dela nunca haviam estado tão sensíveis, e as carícias estudadas que ele lhe proporcionava provocavam prazeres excruciantes. Quando o seu braço forte lhe ergueu os ombros e a boca substituiu a mão, a deliciosa necessidade que ele criava com os lábios e dentes tornou-se insaciável e dolorosa.
David ergueu a cabeça e contemplou o corpo dela. Os olhos de Christiana seguiram os dele, contemplando aquela mão aberta sobre o seu ventre, a sua pele dourada contrastando de uma forma irresistível com a sua brancura cremosa. Ele foi descendo, acalmando o ritmo frenético das suas ancas. Acariciou-lhe as coxas e ambos observaram o progresso daquela mão. A respiração dela encurtou-se para uma série de breves suspiros.
- Estou a pensar que é do meu interesse deixar-vos insatisfeita
- disse suavemente à medida que a sua mão deslizava pelo corpo dela. - A abstinência é um poderoso fortificante da paixão. Não me parece que continuásseis doente por muito mais tempo após o meu regresso.
Ela mal escutou esta franca avaliação da sua doença e determinação. Limitava-se a observar e a sentir a mão dele à medida que alcançava a abertura onde as pernas se uniam, distraída pelas pontadas de calor no seu corpo.
- Mas descobri que não sou capaz - disse. - Senti falta da vossa paixão e assim, pelo menos hoje, obtenho isso de vós.
O olhar dele reclamava a atenção dela, e as suas palavras penetravam aquele estado de letargia.
- Abri-vos para mim, querida - disse enquanto os seus dedos acariciavam aquela suave protuberância.
Christiana havia estado à espera que ele se erguesse, se voltasse e a deitasse sobre a cama. Havia estado à espera da intimidade do corpo dele sobre o dela, da obliteração das suas escolhas. Compreendeu que, nesse dia, David não tencionava usar o desejo dela contra ela dessa forma.
Christiana hesitou, e quase disse, tal como ele a forçara a dizer da primeira vez, que o desejava.
- Abri-vos - ordenou suavemente. Os dedos dele encontravam-se tão próximos do ponto de onde brotava a sua necessidade que Christiana susteve a respiração e aquela carne oculta latejava. Não há qualquer derrota em retirardes prazer comigo desta forma.
Ela não ofereceu resistência. Fechou os olhos, abriu as pernas e aceitou o alívio que ele lhe oferecia. Não demorou muito tempo. Ele tocou-lhe lenta e suavemente, como que para prolongar o êxtase, mas o corpo dela já clamava por libertação e cada toque enviava sensações frenéticas ao longo de todo o seu corpo. Em breve sentiu a incrível tensão rodopiar dentro de si e agitava-se com violência, retesava-se e emitia sons de um desejo crescente. David puxou os ombros dela para si e segurou-a com firmeza, beijando-a com ferocidade enquanto a levava ao êxtase, ávido dos seus gritos, até o violento clímax finalmente se abater sobre ela.
Ele segurou-a num abraço apertado durante muito tempo, com o rosto entre o pescoço e o ombro de Christiana. Ela despertou do seu delírio e deu por si agarrada às roupas dele, junto ao seu peito. Duvidava que ele tivesse encontrado alguma satisfação.
Ele afrouxou o abraço e olhou para ela. Christiana reparou num vestígio de sangue no lábio dele onde ela devia tê-lo mordido.
David ergueu-se em silêncio e estendeu-a sobre a cama. Acariciou-lhe o rosto e fitou-a nos olhos.
- Preciso de ir.
Ele havia-a satisfeito, mas o seu desejo interior ainda ardia. Esteve a ponto de o incitar a ficar mais algum tempo e a acabar o que havia começado. Nessa altura a escolha não seria realmente dela.
David abandonou o quarto, deixando-a com a prova de que possuía o poder de a seduzir de novo. Nunca teria sido necessário forçá-la, tal como demonstrava esta visita de despedida, porque esta persuasão mais suave estivera sempre à disposição dele e continuaria a estar no futuro. Todavia, durante mais algum tempo, a escolha seria apenas dela. Ele deixara-a com a hipótese de decidir se podia viver este matrimónio e ir ao encontro dele, mais uma vez, de sua livre vontade.
Lançou um olhar às pregas azuis que se encapelavam acima da cama. Sim, talvez pudesse. Durante essa breve imersão no prazer não pensara em mais nada, nem sequer no que significava para ele. Só mais tarde, depois de ele ter saído, é que a mágoa e as dúvidas regressaram. com o tempo talvez parassem de a atormentar. No espaço de alguns anos, talvez o seu amor por ele existisse apenas como uma recordação divertida.
Devia abandonar a cama agora, antes que voltasse a adormecer. Se Emma a encontrasse de manhã no piso de cima, toda a casa assumiria que a sua doença havia terminado e o quarto de Joanna deixaria de ser uma opção. Nessa altura, deixaria de haver escolha. Sorriu ao perceber o quanto a sua alma se agarrava à possibilidade de auto-ilusão. Fica aqui, adormece, e está feito. Um acidente em lugar de uma decisão.
A cama deixara de lhe parecer estranha e uma deliciosa tranquilidade tomou conta dela. Ao mesmo tempo que se instigava a abandoná-la, as suas pálpebras fechavam.
Rendeu-se ao amor sem orgulho que aceitaria qualquer mágoa para estar junto de David, que aceitaria com gratidão a pequena parte de si mesmo que ele havia escolhido conceder-lhe.
Não sabia quanto tempo havia dormido, mas subitamente os seus olhos abriram-se. Um som havia penetrado o seu sonho, forçando-a a abandonar aquele momento pacífico. Ergueu-se num cotovelo.
Uma vasta sombra passou pela janela perto da porta do quarto de vestir.
- David? - murmurou, esfregando os olhos.
Sentia uma presença estranha no quarto. Escutou o som de passos suaves e arrastados. A sombra moveu-se e duas outras uniram-se-lhe.
O choque despertou-a subitamente e Christiana começou a gritar. A sombra volumosa precipitou-se sobre ela. Braços fortes seguraram-na, enquanto umas mãos ásperas lhe introduziram, à força, uma mordaça na boca.
Ela agitou-se violentamente contra a mordaça que a sufocava. Sentiu outras mãos lançarem-se sobre ela até conseguirem imobilizá-la. Christiana fitou os rostos desconhecidos, que conseguia distinguir à luz do luar, enquanto o seu coração batia furiosamente no silêncio que se instalou.
- Ficai calma, senhora, e nenhum mal vos acontecerá - preveniu suavemente uma voz masculina, a alguns milímetros dos seus ouvidos.
Não era uma pronúncia inglesa, pensou enquanto fazia um esforço para se libertar daquelas mãos que a sujeitavam. Era escocês.
Uma das mãos soltou-a e nela Christiana viu o brilho do aço que acenava diante dos seus olhos.
- Escutai-me com atenção. Iremos permitir que vos levanteis, mas nós somos três e estamos armados, por isso fazei o que eu digo. Ireis até ao quarto de vestir, vestir-vos-eis e emalareis algumas roupas para vós.
Emalar? Estes homens planeavam levá-la para algum lado. Para onde e por que razão?
A mente dela avaliou freneticamente o perigo que estava a correr. Como é que eles haviam entrado na casa com a muralha em seu redor? Onde estava Sieg?
- Compreendeis? Não ergais a mão para a mordaça.
Ela assentiu passivamente. As mãos afastaram-se uma por uma, e o porta-voz distanciou-se. Tremendo de horror, deslizou da cama, grata por não ter acendido uma vela, pois assim estes homens não podiam ver muito bem o seu corpo à luz do luar.
Cambaleou até ao quarto de vestir com as pernas trémulas, tentando controlar o pânico que ameaçava expulsar da sua mente
qualquer raciocínio e bom senso. Apesar dos avisos deles, Christiana queria correr para longe e permitir que o terror a consumisse enquanto o fazia. Numa atitude ousada, decidiu que na escuridão do quarto de vestir removeria a mordaça e gritaria por ajuda. Assim que entrou, viu a porta que dava para o jardim aberta. Entrava luz suficiente através dela para que as linhas da sua sombra se tornassem visíveis e as suas acções óbvias. Os homens observavam-na enquanto ela procurava desajeitadamente um vestido e o vestia. Um dos homens encontrou um pequeno baú de viagem e ela encheu-o com algumas roupas, sem saber bem no que estava a agarrar.
Enfiando os pés nuns sapatos, voltou-se para eles. Procurou permanecer calma, embora o terrível pânico ainda quisesse dominá-la. A sua única esperança era manter-se bem alerta. Se Sieg estivesse vivo, salvá-la-ia quando tentassem sair da casa. Faria todo o ruído que conseguisse no pavimento de pedra do pátio, na esperança de despertar Sieg e os outros.
- Agora vamos descer por esses degraus e iremos pelo jardim das traseiras - explicou o homem.
O desânimo tomou conta dela. Haviam entrado pelo muro, e não pelo portão. Sieg dormia sem se aperceber de nada disto no edifício da frente. Ele e os outros jamais a ouviriam.
Rodearam-na como se fosse uma prisioneira a ser transladada e guiaram-na ao longo das escadas e através do portão até ao jardim principal. No muro das traseiras, dois deles desapareceram por um escadote rudimentar.
- Agora vós. Há outro escadote do outro lado. Tomai cuidado, senhora. A queda pode ser-vos fatal - preveniu o escocês.
Christiana subiu os degraus, vacilante, voltou o corpo às cegas, e tacteou em busca dos degraus de madeira do outro lado. Foi agarrada a meio da descida e pousada no chão. Subiram pela viela onde os cavalos aguardavam. Alguém lhe amarrou as mãos antes de a içarem para uma sela. Estar assim amarrada fê-la sentir-se ainda mais indefesa. Cavalgaram ao longo das ruas da cidade, arrastando-a com eles.
Ela observava as ruas num estado de ansiedade, na esperança de avistar archotes que indicassem outros viajantes nocturnos ou 263
o guarda. Se os mandassem parar, será que o guarda daria pela sua mordaça? Usariam estes homens as suas armas se fossem desafiados?
Não surgiu nenhum desafio. O medo dela cresceu quando reparou que estavam a aproximar-se dos portões da cidade. Para sua angústia e consternação, o guarda do portão deixou-os passar.
O homem que comandava continuou sempre em frente depois de passarem pela muralha. Ela empertigou-se, horrorizada. Dirigiam-se para a estrada que seguia para norte.
Norte. Northumberland. Stephen?
A família Percy detinha propriedades na Escócia e na fronteira de Inglaterra em Northumberland. Seria este escocês um dos seus servidores ?
Stephen estava a raptá-la? Agora? Seria uma loucura. Não, não podia ser Stephen. A não ser que o seu orgulho tivesse ficado ferido por ter perdido a sua caça para um mercador. Durante os torneios, Stephen nunca se mostrara particularmente gracioso na derrota. E se não era Stephen, então quem seria? Não conseguia pensar em mais nenhuma possibilidade.
Enquanto cavalgavam silenciosamente através da noite, Christiana dizia a si mesma que Stephen jamais faria algo tão absurdo, mas uma parte de si temia que ele realmente o fizesse. Ele podia até considerar este acto como cavalheiresco e romântico, um grande gesto de salvação.
Duelos e raptos são o tema de canções, não da vida real. A não ser que estivéssemos a lidar com uma rapariga infantil e um cavaleiro louco. Stephen, suspeitava ela, podia ser muito louco.
Ele parecia ter acabado por aceitar a recusa dela após o jantar na estalagem. Teria reconsiderado posteriormente a determinação dela? A arrogância dele tê-lo-ia levado a concluir que ela o recusara contra o verdadeiro desejo do seu coração?
Santo Deus, David matá-los-ia a ambos.
As suas desconfianças aumentaram quando, algumas milhas a norte de Londres, lobrigou sombras na estrada mais à frente. O seu pequeno grupo aproximou-se de duas outras figuras a cavalo e deteve-se.
- Foi um trabalho rápido - disse uma voz de mulher.
Os olhos de Christiana arregalaram-se e ela perscrutou a escuridão na direcção da figura encapuçada. Conhecia aquela voz. Era
uma proeza de Stephen. E mais uma vez pedira o auxílio de Lady
Catherine.
- Aqui está a moeda de que necessitareis - disse Catherine, estendendo o braço. - Fazei exactamente como vos disse, e não vos atraseis. O homem dar-vos-á a vossa gratificação. E recordai-vos, não deveis magoá-la.
Christiana conseguiu soltar um gemido, apesar da mordaça. Catherine voltou-se na direcção dela.
- Quereis dizer algo, criança? Retirai-lhe a mordaça.
Uns dedos sujos retiraram-lhe a bola de pano da boca. Inspirou fundo por diversas vezes antes de falar.
- Para onde me levais? - perguntou.
- Não tardareis a descobri-lo.
- Se pretendeis um resgate com o meu rapto, dizei-me já. Dizei o vosso preço e levai-me para casa. Eu pago.
- É uma oferta generosa, mas não haverá resgate - respondeu Catherine.
- Então, qual é a razão? Quem vos incitou a fazer isto? Stephen Percy?
- A seu tempo, tudo será explicado - respondeu Catherine com uma gargalhada. No final, ireis agradecer-me por isto.
Teria Catherine assumido, como tantas outras pessoas na corte, que Christiana acolheria bem a sua redenção nos braços de Stephen?
- O meu marido matar-vos-á por isto - lançou na direcção do homem que aguardava.
Apercebeu-se que era a primeira vez que invocava a protecção de David ao invés da de Morvan. Mas David matá-los-ia. O que a propriedade tinha de bom era o facto de ninguém gostar que fosse furtada.
- Quando ele vos encontrar, já não terá assim tanta importância
- responde Catherine. - Ele terá preocupações maiores. Levai-a agora, mas recordai-vos de que não deve ser molestada nem magoada. Não tenteis fugir, Christiana, pois eles têm ordens para vos entregar e amarrar-vos-ão ao cavalo se tiver de ser.
- Isto é uma loucura - começou ela a protestar, mas a mordaça voltou subitamente a ser-lhe enfiada na boca sufocando-lhe as palavras.
Lady Catherine e o seu companheiro silencioso voltaram-se para sul enquanto os seus raptores puxavam pelas rédeas e rumavam para norte. Christiana segurava-se à parte da frente da sela com as mãos amarradas e oscilava ao ritmo do galope veloz do animal.
Norte. De todas as alturas, esta tinha sido a que Stephen Percy finalmente escolhera para viver o tema de uma canção de amor!
Será que ele não se recordava que essas longas canções de amor terminavam frequentemente com mortes violentas e assassínios por ciúmes ?

 


CONTINUA