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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASÓRIO / Marian Keyes
CASÓRIO / Marian Keyes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CASÓRIO

Primeira Parte

 

Lucy nem ao menos tem namorado (para falar com franqueza, ela não tem assim tanta sorte no amor). Mas a senhora Nolan jogou o tarô e previu que Lucy estará entrando na igreja, a caminho do altar, dentro de um ano.

As amigas que dividem o apartamento com Lucy ficaram estarrecidas com a notícia. S ela for embora, isso vai acabar pondo fim ao seu maravilhoso estilo de vida, que consiste em comer quentinhas, beber muito vinho, levar rapazes para o apartamento e jamais fazer uma faxina na casa. Mas Lucy as tranqüiliza, dizendo que anda ocupada demais brigando com a mãe e se preocupando com o irresponsável do pai para pensar em se casar.

E há um pequeno problema: não existe nenhum namorado na jogada. Entretanto, Lucy conhece Gus, o lindo e nada confiável Gus, e começa a se perguntar: será que ele poderá ser o futuro Senhor Lucy Sullivan? Ou quem sabe Chuck, o americano bonitão? Ou Daniel, o maior paquerador do mundo? Ou quem sabe Jed, o novo rapaz que foi trabalhar na firma?

Será que Lucy vai encontrar a sua alma gêmea? Leia este livro se você estiver a fim de chorar de tanto rir e ficar sem trabalhar por uma semana.

 

 

Quando Meredia me lembrou de que nós quatro, do escritório, havíamos marcado uma consulta com uma taróloga na segunda-feira, meu estômago se revirou ligeiramente, pelo choque.

- Você esqueceu - acusou Meredia, balançando a cara gorda.

Eu esquecera mesmo.

Espalmando as mãos por sobre a mesa, ela me avisou:

- Nem mesmo pense em dizer que não vai.

- Saco - murmurei, porque era exatamente isso que eu pensava em fazer.

Não que eu tivesse objeções sobre conhecer o futuro. Pelo contrário, isso era até um pouco divertido. Especialmente quando chegava a parte onde as videntes me diziam que o homem dos meus sonhos estava para aparecer a qualquer momento, essa parte era sempre hilária.

Às vezes, até mesmo eu ria.

Só que eu estava duranga. Embora tivesse acabado de receber o salário, minha conta parecia um país arrasado, pós-holocausto, com cadáveres por toda parte, pois no dia em que recebi o contracheque gastei uma fortuna em óleos aromáticos que prometiam me rejuvenescer, me energizar e levantar meu astral.

Além de me levar a falência, embora não especificassem isso na embalagem. Acho que a idéia era me deixar rejuvenescida, energizada e com o astral tão alto que eu não ia me importar com o resto.

Assim, quando Meredia lembrou que eu me comprometera a pagar trinta libras a uma mulher para que ela me dissesse que eu ia viajar por sobre o mar e possuía um pouco de mediunidade, compreendi que ia ficar sem almoçar por duas semanas.

- Acho que não vou poder pagar... - disse, nervosa.

- Voce não pode dar para trás agora! – trovejou Meredia. - A Sra. Nolan vai nos dar um desconto. Nós três vamos ter que pagar mais caro se você não for.

- Quem é essa tal de Sra. Nolan? – perguntou Megan, desconfiada, interrornpendo o jogo de paciência e olhando por cima do computador.

- A taróloga - respondeu Meredia.

- Mas que tipo de nome é esse, "Sra. Nolan”? – quis saber Megan.

- É um nome irlandês.

- Não! - Megan sacudiu os cabelos louros, aborrecida. - Estou perguntando que tipo de nome é esse, "Sra. Nolan?” para uma taróloga. Ela devia se chamar Madame Zora ou algo desse tipo. Ela não pode ter esse nome, "Sra. Nolan". Com um nome desses, como é que a gente vai acreditar no que ela prevê?

- Bem, é o nome dela. - Meredia parecia magoada.

- Mas por que ela não troca? - insistiu Megan. – Deve ser fácil fazer isso. Pelo menos é o que me disseram. O que acha você, que todas as pessoas se chamam Meredia?

Uma pausa para fazer suspense.

- Ou elas deveriam chamar você de "Carol”? - continuou Megan, triunfante.

- Não, não deveriam - respondeu Meredia. – Porque o meu nome é Meredia.

- Claro que é - afirmou Megan, com sarcasmo.

- É mesmo - retrucou Meredia, com raiva.

- Então mostre a sua certidão de nascimento - desafiou Megan.

Megan e Meredia não se cruzavam na maioria dos assuntos, e especialmente a respeito do nome de Meredia. Megan era uma australiana toda prática, com um alarme antimentiras eternamente ligado. Desde que começara a trabalhar no escritório como estagiária, vinha insistindo que Meredia não era o verdadeiro nome da colega. Talvez ela estivesse certa. Embora gostasse muito de Meredia, eu tinha de reconhecer que o seu nome possuía um ar assim meio de coisa inventada às pressas, de improviso.

Só que, ao contrário de Megan, eu não me importava com isso.

- Então não é mesmo "Carol"? - Megan pegou um caderninho na bolsa e riscou um dos nomes de uma lista.

- Não - respondeu Meredia, com firmeza.

- Certo - disse Megan. - Acabei com a letra "C". Hora de passar para o "D". Seu nome é Daphne? Deirdre? Dolores? Denise?Diana? Dinah?

- Não enche! - reagiu Meredia. Estava quase chorando.

- Parem vocês duas. - Hetty colocou a mão com delicadeza no braço de Megan, porque esse era o tipo de coisa que Hetty fazia. Embora fosse toda elegante, ela era uma boa pessoa, que vivia colocando paninhos quentes nas brigas. Por causa disso, é claro que não era muito divertida, mas ninguém é perfeito.

Assim que a gente a conhecia, dava para notar que ela pertencia à classe alta. Nao só porque parecia urn cavalo, mas também porque rinha roupas horríveis. Embora tivesse só uns trinta e cinco anos, usava saias de tweed e vestidos floridos que mais pareciam relíquias de família. Jamais comprava roupas novas, o que era, uma pena, porque uma das melhores formas de as mulheres do escritório se relacionarem bem era estourarem o salário logo no dia seguinte para exibir roupas novas umas para as outras.

- Como eu queria que aquela vaca australiana fosse embora daqui! - murmurou Meredia para Hetty.

- Provavelmente é o que vai acontecer logo, logo - tranqüilizou-a Hetty. .

Então, completou com uma coisa bem elegante:

- Cabeça para cima!

- Quando é que você vai embora daqui, hein? - Meredia quis saber de Megan.

- Assim que juntar uma grana, sua gorducha – replicou Megan.

Megan planejava viajar por toda a Europa, mas estava temporariamente sem dinheiro. Assim que conseguisse juntar o bastante, ela ia viajar, como constantemente nos lembrava, para a Escandinávia, ou para a Grécia, ou para os Pirineus, ou para a Costa Oeste da Irlanda.

Até esse momento, Hetty e eu tinhamos de separar as brigas terríveis que quase sempre pintavam.

Eu tinha quase certeza de que muito da animosidade entre elas vinha do fato de que Megan era alta, bronzeada e linda, enquanto Meredia era baixa, gorda e feia. Meredia tinha inveja da beleza de Megan, enquanto esta despresava o excesso de peso de Meredia. Quando Meredia não conseguia achar roupas que servissem nela, em vez de soltar gemidos animadores como o resto de nós, Megan esbravejava:

- Pare de choramingar, rolha-de-poço, e faça uma droga de dieta!

Meredia jamais fez isso. Assim, estava condenada a fazer os carros se desviarem, assustados, cada vez que pisava na rua. Porque, em vez de tentar disfarçar seu tamanho avantajado com listras verticais e cores escuras, ela parecia querer chamar ainda mais a atenção para seu peso. Costumava usar o visual "em camadas".

Camadas em cima de camadas e mais camadas de tecido. Sério, gente, era muito pano! Hectares de panos, metros e mais metros de veludos, drapeados, franzidos, dobrados e amarrados, ancorados por broches, acompanhados de lenços de pescoço que desciam e se prendiam em volta de sua gigantesca circunferência.

E quanto mais cores, melhor. Carmesim, vermelhão, laranja forte, vermelho-fogo e fúcsia.

E tudo isso só no cabelo. Ela adorava usar hena.

- Ou ela vai embora daqui ou quem sai sou eu – murmurou Meredia enquanto olhava com ar ameaçador para Megan.

Mas isso era tudo onda. Meredia já trabalhava no escritório há muito tempo. Pelo que ela contava, desde a pré-história. Na verdade, estava só com oito anos de em presa, e jamais conseguira mudar de função. Nem fora promovida. Jogava a culpa disso na administração, que era preconceituosa com o seu tamanho (embora não houvesse nenhum empecilho à ascensão rápida dos homens rechonchudos, o que os levava a alcançar os postos mais elevados da companhia).

Enfim, como eu tinha coração mole, nunca discutia com Meredia. Consegui até mesmo me convencer de que ficar sem dinheiro ia ser até bom. Ver-me forçada a ficar sem almoço por duas semanas ia ser um golpe fatal para a dieta perpétua que eu fazia.

E Meredia me lembrou de um detalhe que eu esquecera:

- Você acabou de terminar com o Steven - disse ela. - Está precisando mesmo visitar uma tarologa.

Embora eu não gostasse de reconhecer, talvez ela tivesse razão. Agora que acabara de descobrir que Steven não era o homem dos meus sonhos, era só uma questão de tempo antes de eu começar a fazer algumas pesquisas paranormais, a fim de descobrir quem, exatamente, seria. Esse era o tipo de coisa que minhas amigas e eu fazíamos, embora fosse tudo farra, e ninguém pretendesse acreditar, de verdade, na cartomante. Pelo menos nenhuma de nos ia admitir que acreditara nela.

Pobre Steven. Que grande decepção ele fora.

Especialmente depois de as coisas terem começado de forma tão promissora. Achei que ele era lindo. Sua beleza apenas mediana tinha sido ampliada, pelos meus olhos, ao nível de Adonis, por causa dos seus cabelos louros encaracolados, as calças pretas de couro e a moto. Ele parecia selvagem, perigoso e despreocupado. Bem, isso era de esperar, não é? Para que serviam as motos e as calças pretas de couro, a não ser para representar o uniforme de um homem selvagem, perigoso e despreocupado?

Evidentemente, achei que não tinha a mínima chance de conquista-lo, que alguém maravilhoso como ele teria urn monte de garotas a sua disposição, e é claro que não ia demonstrar nenhum interesse por alguém tão comum como eu.

Porque eu era comum mesmo. Certamente parecia comum. Tinha urn cabelo castanho ondulado, bem comum, e gastava tanta grana em alisantes que não receberia salário algum se o meu contracheque fosse pago diretamente à farmácia que ficava perto do trabalho. Tinha olhos castanhos comuns e, como castigo por ter pais irlandeses, exibia uns oito milhões de sardas bem comuns, uma para cada irlandês que morreu de fome na época da grande escassez, como meu pai costumava dizer quando estava meio alto e um pouco sentimental a respeito da "velha terrinha".

Apesar de todas as minhas características comuns, Steven me chamou para sair e agia como se gostasse de mim.

A princípio, eu mal conseguia entender como é que um homem tão sexy quanto Steven queria ficar comigo.

Evidentemente, eu não acreditava em uma só palavra que saía de sua boca. Quando dizia que eu era a única garota em sua vida, imaginava que ele estava mentindo; quando dizia que eu era adorável, eu me perguntava por qual ângulo, e dava voltas para inspecionar o meu reflexo e descobrir o que é que ele queria de mim.

Na verdade, não me importava com as mentiras, simplesmente achava que esse era o tipo de coisa que a gente tinha de aceitar para ter um homem como Steven.

Levou algum tempo para eu compreender que ele estava sendo sincero, e não dizia a mesma coisa para todas as garotas.

Então, resolvi que estava maravilhada com aquilo, mas, na verdade, estava era confusa. Tinha certeza de que ele levava outra vida, totalmente secreta, uma vida sobre a qual eu não deveria saber nada: saídas no meio da noite em cima da sua Harley, para fazer sexo na praia com mulheres desconhecidas, esse tipo de coisa. Ele parecia ser assim.

Esperava ter um breve caso com ele, bem passional, uma montanha-russa de sentimentos, em que meus nervos iam viver retesados a espera de seu telefonema, para finalmente eu sentir o corpo inundado pelo êxtase quando ele realmente me telefonava.

Só que ele sempre ligava na hora que marcava. E sempre dizia que eu estava linda, não importa a roupa que eu usasse. Em vez de me sentir feliz, comecei a me sentir pouco à vontade.

O que eu via era exatamente o que havia para ver, e me senti cortada, de forma estranha.

Ele começou a gostar demais de mim.

Certa manhã, acordei e lá estava ele, apoiado no cotovelo, olhando para mim. "Você é linda", ele murmurou, e tudo me pareceu totalmente errado.

Quando transávamos, ele dizia: "Lucy, Lucy, ai, meu Deus, Lucy" , milhões de vezes, todas elas de forma quente e passional, e eu tentava me juntar a ele, repetindo os gemidos quentes e passionais, mas acabava me sentindo simplesmente uma idiota.

E quanto mais ele parecia se apegar a mim, mais eu me desligava, até chegar a um ponto em que mal conseguia respirar perto dele.

Sentia-me sufocada por tanta adulação, estrangulada por tanta admiração. Eu não era assim tão] atraente, não podia deixar de perceber, e se ele achava que eu era, isso queria dizer que havia algo de muito errado com ele.

- Por que você gosta de mim? – vivia perguntando a ele.

- Porque você é linda! Ou porque você é sexy! Ou porque você é muito feminina! – Eram as respostas nauseantes que ele me dava.

- Não, não sou – replicava eu, desesperada. – Como é que você pode dizer que sou?

- Até parece que você está querendo me dar o fora – dizia ele, sorrindo carinhosamente.

Foram os carinhos dele que provavelmente me deixaram louca.

Seus sorrisos suaves, seus olhares suaves, seus beijos suaves, suas carícias suaves, tanta suavidade era um pesadelo.

E ele era todo grudento comigo. Senhor Grude, eu não agüentava mais!

A todo lugar que íamos, ele segurava a minha mão, orgulhosamente me exibindo como “sua mulher”. Quando estávamos no carro, ele plantava a mão na minha coxa; quando assistíamos televisão, ele só faltava subir em mim. Estava sempre pegando em mim, passando o dedo no meu braço, fazendo cafuné ou coçando minhas costas, até eu não agüentar mais e empurrá-lo para o lado.

“Homem-velcro” era como eu o chamava secretamente, depois de um tempo.

No final, já estava dizendo isso na cara dele.

À medida que o tempo passava, eu queria me rasgar toda e arrancar a pele fora cada vez que ele me tocava, e só de pensar em fazer sexo com ele já me deixava enjoada.

Um dia, ele me disse que adoraria ter um jardim imenso e um punhado de filhos, e aí eu disse: “Chega!”

Terminei com ele imediatamente.

Não conseguia entender como foi que um dia pude achá-lo tão atraente, porque, a essa altura, eu não conseguia imaginar homem algum na face da Terra que fosse mais repulsivo. Ele continuava com os mesmos cabelos louros, as calças de couro e a moto, mas isso tudo já não me enganava.

Eu o desprezava por gostar tanto de mim. Ficava me perguntando como é que ele podia se contentar com tão pouco.

Nenhuma das minhas amigas conseguiu entender o motivo de eu ter terminado com ele. "Mas ele era tão legal!", era uma das frases que todas diziam. "Mas ele era tão bom para você..." era outra. "Ele é um tremendo partido!", protestavam todas. Diante disso, eu replicava: "Não, não é. Um tremendo partido não é assim tão fácil de conseguir. "

Ele me desapontara.

Eu esperava desrespeito, e em vez disso consegui dedicação. Esperava infidelidade, e em vez disso consegui um compromisso. Esperava uma relação tumultuada, e em vez disso consegui uma relação previsível. Além de tudo (e esse era o maior desapontamento de todos), eu esperava um lobo e acabei com um cordeiro.

Sei que é desagradável quando o cara legal de quem você tanto gosta demonstra ser um canalha completo, mentiroso e com duas caras. Mas é quase tão mau quando o cara que você pensava ser um galinha em quem não se pode confiar prova que é, na verdade, um sujeito descomplicado e legal.

Passei uns dois dias tentando descobrir por que eu gostava dos caras que não eram bons para mim. Por que eu não conseguia gostar dos que eram?

Será que eu ia sempre desprezar todos os homens que me tratassem bem? Será que era o meu destino querer apenas os homens que não me quisessem?

Acordei no meio da noite, me perguntando a respeito do meu amor-próprio. Por que eu só me sentia confortável quando me tratavam mal?

Foi quando entendi que a frase "mulher gosta de apanhar" já rolava ha centenas de anos, e então relaxei - afinal, não fui eu que fiz as regras.

E daí se o meu homem ideal era um sujeito egoísta, confiável, infiel, leal, traidor, traiçoeiro, um paquerador adorável que me achava o máximo, nunca ligava na hora em que combinava, fazia me sentir a mulher mais especial de todo o universo e tentava ganhar todas as minhas amigas? Era minha culpa que eu quisesse um namorado tipo "metamorfose ambulante", um homem que fosse várias coisas conflitantes ao mesmo tempo?

 

Parecia haver uma ligação direta entre a dificuldade de se chegar à casa de uma taróloga e a sua reputação. Quanto mais inacessível e desanimadora a localização de sua residência, melhores e mais confiáveis eram as suas previsões. Essa era a idéia geralmente aceita.

Isso significava que a Sra. Nolan devia ser brilhante, porque e1a morava em um subúrbio distante e horroroso nos arredores de Londres. Tão obscuro e escondido que tivemos de ir ate lá no carro de Hetty.

- Por que não podemos ir de ônibus? - perguntou Megan, ao ouvir Hetty avisar que todo mundo ia ter de rachar a gasolina.

- Os ônibus não vão mais até lá - disse Meredia, de forma vaga.

- Por que não? - insistiu Megan.

- Porque não - explicou Meredia.

- Mas por quê? - eu continuava intrigada.

- Houve um... problema - resmungou Meredia, e isso foi tudo o que explicou sobre o assunto.

Na segunda-feira, as cinco em ponto, Megan, Hetty, Meredia e eu nos encontramos na escadaria externa do nosso local de trabalho. Hetty foi buscar o carro onde o deixara estacionado a vários quilômetros dali, pois estacionar no centro de Londres era assim mesmo. Finalmente, partimos.

- Vamos deixar para trás este lugar amaldiçoado - sugeriu uma de nós. Não sei exatamente qual de nos pronunciou esta frase, porque sempre dizíamos isso na hora de ir para casa. Embora ache que não deve ter sido Hetty.

A viagem foi um pesadelo. Passamos horas no tráfego engarrafado ou então passando por subúrbios desconhecidos, até que entramos em uma rodovia. Depois de andarmos por mais algumas décadas, viramos em uma estrada secundária e, finalmente, chegamos a um conjunto residencial.

E que conjunto residencial.

Eu e meus dois irmãos (Christopher Patrick Sullivan e Peter Joseph Mary Plunkett Sullivan, como eles foram batizados por minha mãe, católica fanática) fomos criados em uma casa de conjunto residencial, de forma que me permito criticar esses conjuntos e seu aspecto desumano sem correr o risco de ser chamada de liberal radical.

Só que o conjunto em que fui criada não tinha um aspecto tão apocalíptico como aquele em que a Sra. Nolan morava.

Dois imensos blocos de apartamentos pintados de cinza pareciam torres de sentinela acima de centenas de casinhas cinzentas paupérrimas. Dois vira-latas vagavam por ali, sem rumo, com a esperança de achar alguém para morder.

Não havia jardins, nem plantas, nem arvores. Nem grama.

Ao longe, havia uma pequena fileira de lojas. Quase todas fechadas por tábuas, com exceção de um bar, uma loteria e um depósito de bebidas. Talvez tenha sido obra da minha imaginação muito ativa, mas, em meio a escuridão do entardecer, eu poderia jurar que vi quatro homens a cavalo passando na frente do bar. Até ali, tudo bem. A Sra. Nolan, pelo jeito, era ainda melhor do que eu imaginara.

- Meu Deus! - disse Megan, com a cara retorcida de nojo. - Que buraco.

- É mesmo, não é? - sorriu Meredia, com orgulho.

No meio de todo aquele panorama cinzento havia um pequeno terreno que algum paisagista achou, obviamente, que poderia ser um oásis de jardins verdejantes, onde famílias sorridentes se espalhariam, tomando sol. Só que já fazia muito tempo que não nascia grama ali.

Sob a luz difusa dava para ver um grupo formado por umas quinze crianças reunidas naquele espaço. Estavam todas amontoadas em volta do que parecia, de forma preocupante, um carro incendiado.

Embora estivéssemos em urn dia frio de março, a noitinha, nenhuma das crianças estava de casaco (nem mesmo casaquinhos leves). Assim que nos viram, interromperam a atividade criminal que deviam estar planejando e correram em nossa direção, aos berros.

-Minha nossa! - gritou Hetty. - Tranquem as portas!

As quatro portas foram travadas ao mesmo tempo, enquanto as crianças cobriam o carro como um enxame, olhando para nós com seus olhinhos sofridos e experientes.

O que as fazia parecer ainda mais assustadoras era o fato de estarem com o rosto sujo de fuligem, provavelmente do óleo ou da tinta do carro incendiado.

Aquilo parecia pintura de guerra.

Elas abriam e fechavam a boca, parecendo dizer algo.

- O que é que elas estão falando? - perguntou Hetty, aterrorizada.

- Acho que estão perguntando se viemos para ver a Sra. Nolan- respondi, sem muita certeza.

Abri a janela uns poucos centímetros e, em meio ao tumulto e à algazrra, consegui descobrir que era exatamente aquilo que elas estavam nos perguntando.

- Ufa! Os nativos são amigáveis. - Sorriu Hetty, enxugando o suor da testa com estardalhaço e respirando fundo, aliviada.

- Fale com eles, Lucy!

Nervosa, abaixei o vidro um pouco mais.

- Hã... Viemos ver a Sra. Nolan - disse eu.

Uma cacofonia de vozes estridentes foi a resposta:

- A casa dela é aquela ali.

- Ela mora lá.

- É aquela!

- Vocês podem deixar o carro aqui mesmo.

- A casa dela é aquela.

- Bem ali.

- Vou mostrar para vocês.

- Não, deixe que eu mostro!

- Não, sou eu que vou mostrar!

- Não, eu é que vou mostrar!

- Mas fui eu que vi primeiro!

- Você ficou com o último grupo!

- Vá se foder, Cherise Tiller!

- Não, vá você se foder, Claudine Hall!

Um arranca-rabo violento estourou entre quatro ou cinco das garotas menores, enquanto continuávamos sentadas dentro do carro, esperando que elas parassem.

- Vamos saltar. - Megan parecia um pouco entediada com aquilo. Era preciso mais do que um bando de crianças semi-selvagens para assustá-la. Abrindo a porta com determinação, saltou e passou por cima de duas crianças que se engalfinhavam na calçada.

Então Hetty e eu saímos também.

Assim que Hetty colocou o pé fora do carro, uma garotinha esquelética que parecia ter trinta e cinco anos começou a puxar o seu casaco.

- Olha, eu e minha amiga aqui vamos tomar conta do seu carro - prometeu ela.

A amiga, que era menorzinha, ainda mais esquelética e parecia um macaco pouco amigável, concordou com a cabeça, em silêncio.

- Obrigada - disse Hetty, com horror estampado no rosto enquanto tentava tirar a garotinha da sua frente.

- Vamos ficar olhando para que nada de mau aconteça com ele - disse a garorinha, seca como um graveto, dessa vez com a voz um pouco mais ameaçadora e ainda segurando a ponta do casaco de Hetty, com força.

- Dê algum dinheiro para elas - sugeriu Megan, irritada. - Na verdade é isso que ela está querendo.

- Como assim? - perguntou Hetty, indignada. - Não vou fazer isso. É chantagem.

- Você quer que as rodas ainda estejam no carro quando a gente voltar ou não? - insistiu Megan.

A garotinha e a amiga com carinha de macaco observavam pacientemente o diálogo, com os braços cruzados. Agora que uma mulher experiente e sensata como Megan entrara no papo, elas sabiam que o resultado ia ser favorável.

- Tomem - disse eu, dando uma libra para a menininha de trinta e cinco anos.

Ela aceitou com um aceno de cabeça.

- Agora, será que podemos ir ver o que nos reserva o futuro, por favor? - perguntou Megan, impaciente.

Meredia, a gorda covarde, permanecera escondida no carro durante todo o primeiro contato com as Crianças do Inferno. E esperou até que todas elas se afastassem antes de sair do carro.

Porém, no instante em que as crianças a viram emergir do carro, voltaram correndo a toda velocidade. Não era todo dia que uma mulher gigantesca, vestida de vermelho dos pés à cabeça, em veludo pregueado e o cabelo combinando, aparecia rolando em seu caminho. Quando tal fato acontecia, porém, elas sabiam como tirar o maior proveito, reconhecendo uma diversão gratuita de imediato, fazendo pouco e debochando.

Os guinchos, urros e risadas que surgiram daquelas paródias de crianças foram de arrepiar os cabelos.

Os comentários variavam de "porra! olha que vaca gorda!" a "porra! ela vestiu as cortinas da mãe!", "porra! aquilo não e horrível?" a "porra! onde estao os barcos do Greenpeace?".

Pobre Meredia! Com o rosto tão vermelho quanto todo o resto, ela atravessou toda a curta distância até a porta da frente da Sra. Nolan como se fosse o Flautista de Hamlin, com u, enxame de horríveis fedelhos correndo e dançando atrás dela, rindo e atirando insultos. Uma atmosfera de carnaval se estabeleceu, como se o circo estivesse chegando à cidade, enquanto Hetty, Megan e eu nos acotovelávamos de forma protetora em volta de Meredia, fazendo inúteis tentativas com as mãos para enxotar as crianças dali.

Então chegamos a casa da Sra. Nolan. Só podia ser aquela. Tinha revestimento de pedra, janelas de vidro duplo e uma pequena varanda envidraçada, que se projetava para fora. Todas as janelas tinham cortinas finas, rendadas, e lindas persianas de laminas estreitas. Os peitoris das janelas estavam lotados de enfeites, cavalinhos de louça, cachorros de vidro e canecas de metal, além de bichinhos peludos em pequenas cadeiras de balanço de madeira. Evidentes sinais de prosperidade que faziam a casa se sobressair de todas as outras em volta. A Sra. Nolan devia ser uma espécie de estrela entre as tarólogas.

- Toque a campainha - disse Hetty para Meredia.

- Eu não. Toque você - reagiu Meredia.

- Mas você já esteve aqui antes - explicou Hetty.

- Deixem que eu toco - suspirei, esticando o braço e apertando o botão.

Quando os primeiros acordes de Greensleeves começaram a soar pela sala, Megan e eu tivemos de prender o riso.

Meredia se virou e nos lançou um olhar furioso, cochichando:

- Calem a boca. Mostrem um pouco de respeito. Esta mulher é a melhor. Ela é o máximo.

- Ela está vindo. Ai, meu Deus, ela está vindo - sussurrou Hetty, rouca de empolgação ao ver uma sombra que se moveu por trás do vidro fosco da porta da varanda.

Hetty não costumava sair muito de casa.

- Nossa, Hetty, você precisa aprender a se controlar! – disse Megan, com desdém.

A porta se abriu e em vez de uma mulher exótica, sombria e com cara de médium, um rapaz de cara emburrada nos encarava.

Uma criança pequena com o rosto todo sujo colocou a cabeça de fora, por trás das pernas do rapaz.

- Sim? - disse ele, olhando para cada uma de nós. Seus olhos se arregalaram, mostrando um leve choque ao avistar Meredia em toda a sua vermelhidão.

Nenhuma de nos falou. Todas tínhamos nos vestido em estilo classe média, bem discretas. Até mesmo eu, que era mais para classe operária.

Hetty deu uma cotovelada de leve em Meredia, que deu uma leve cotovelada em Megan, que, por sua vez, me cutucou de leve com o cotovelo.

- Fale alguma coisa - soprou Hetty.

- Não, fale você - murmurou Meredia.

- E então? - indagou mais uma vez o rapaz de cara fechada, de forma pouco gentil.

- A Sra. Nolan está? - perguntei.

Ele me olhou desconfiado, e então decidiu que eu tinha um ar confiável.

- Ela está ocupada - rnurmurou.

- Fazendo o quê? - quis saber Megan, impaciente.

- Está tomando chá - respondeu ele.

- Bem, então podemos entrar e esperar por ela? – perguntei.

- Ela está nos esperando - arriscou Meredia.

- Viajamos de muito longe - explicou Hetty.

- Viemos seguindo uma estrela do Oriente – completou Megan, prendendo o riso atrás de nós.

Todas três se viraram para ela ao mesmo tempo e franziram a testa.

- Desculpem - resmungou ela.

O rapaz se mostrou mortalmente ofendido pela falta de respeito com a sua mãe, avó ou seja lá o que a Sra. Nolan fosse dele, e fez menção de fechar a porta.

- Não, por favor, não faça isso! - implorou Hetty. - Ela já pediu desculpas.

- Pedi sim - confirmou Megan com ar alegre e sem parecer nem um pouco arrependida.

- Está certo então - disse ele, a contragosto, deixando-nos entrar em uma sala minúscula.

Mal havia espaço para nós quatro.

- Esperem aqui - ordenou ele, e entrou em outro cômodo.

Devia ser a cozinha, pelo barulho de louça, a fumaça e o cheiro de ovos fritos que vieram lá de dentro quando ele abriu a porta, desaparecendo tudo em seguida assim que ele tornou a fechá-la.

Não havia um só centímetro nas paredes que não estivesse coberto com quadros, barômetros, tapeçarias ou ferraduras. Meredia se moveu ligeiramente e derrubou da parede a fotografia de uma família muito grande. Ao se agachar para pegar a foto que caíra no chão, seu traseiro derrubou outras dez fotos.

Durante décadas ficamos ali na sala, andando de um lado para outro, totalmente ignoradas, enquanto os sons de risos e conversa continuavam a vir de trás da porta fechada.

- Estou morrendo de fome - disse Megan.

- Eu também - concordei. - O que será que eles estão comendo, hein?

- Isso tudo é ridículo - declarou Megan. - Vamos embora.

- Por favor, esperem - pediu Meredia. - Ela é maravilhosa. Sério, ela é mesmo.

Finalmente, a Sra. Nolan terminou o chá e surgiu no meio de nós. Não consegui evitar o desapontamento ao avistá-la. Ela parecia tão comum... Não tinha a cabeça coberta por um lenço vermelho, e não havia sequer uma argola de ouro à vista.

Usava óculos, £izera permanente no cabelo, vestia um blusão bege com calça de moletom e, o pior de tudo, estava de chinelos. Além do mais, era baixinha! Não sou muito alta, e ela mal batia na minha cintura!

- Certo, meninas - disse ela, de forma rápida e decidida, com sotaque de Dublin. - Quem é a primeira?

Meredia foi na frente. Depois, Hetty. Em seguida, eu. Megan ficou por último, a fim de esperar para ver se nos três achávamos que o dinheiro tinha valido a pena.

 

Quando chegou a minha vez, entrei no que era, evidentemente, a . "sala boa" da casa. Mal consegui passar da porta, porque o ambiente estava entulhado com móveis e tralhas. Havia um biombo todo trabalhado junto de um enorme aparador de mogno que rangia sob o peso de uma pilha de outros enfeites. Havia banquinhos e mesinhas por todo lado que olhássemos, além de um conjunto estofado em veludo marrom que ainda estava coberto com o plástico original.

A Sra. Nolan estava sentada em uma das poltronas cobertas de plástico e fez um gesto para que eu me sentasse na poltrona na frente.

Enquanto entrava, abrindo caminho por entre os móveis até chegar à poltrona, comecei a me sentir nervosa e empolgada. Porque, apesar de a Sra. Nolan ter a aparência de quem se sentiria mais à vontade ajoelhada, limpando o chão da cozinha de Hetty, ela conseguira a sua maravilhosa reputação como vidente por algum motivo.

- Sente-se, minha querida - disse ela.

Eu me sentei, com o traseiro apoiado na ponta da poltrona coberta de plástico.

Ela olhou para mim. De forma astuta? De forma sábia?

E falou. Em forma de profecia? Em forma de presságio?

- Você percorreu um longo caminho para chegar até aqui, minha querida - disse ela.

Dei um pulo. Não esperava que já fôssemos começar tão depressa. E que ela fosse acertar na mosca logo de cara. Sim, era verdade, eu percorrera realmente um longo caminho, desde os tempos da minha infância no conjunto residencial em Uxbridge.

- Sim - concordei, hesitando um pouco, ainda abalada por sua percepção profunda.

- O tráfego estava engarrafado, querida?

- Quê? O quê? Hã... o... tráfego? Não, até que não - consegui responder.

Entendi. Ela estava só puxando assunto. A sessão de leitura de cartas ainda não começara. Que desapontamento. Bem, deixei pra lá.

- Sim, minha querida - suspirou ela. - Se eles conseguirem terminar aquela porcaria de viaduto, vai ser um milagre. Atualmente, com o engarrafamento e a fila de carros buzinando a noite toda, a gente nem consegue dormir direito.

- Hã... sim - concordei.

Por algum motivo, conversar sobre o tráfego e os engarrafamentos naquele momento não me parecia apropriado.

Então ela foi direto ao que interessava:

- Bola ou cartas? - perguntou, de repente.

- Co... como disse? - perguntei, com educação.

- Bola ou cartas? Bola de cristal ou cartas de tarô?

- Ah! Bem, deixe ver... Qual é a diferença?

- Cinco libras.

- Não, estou falando... deixa pra lá. Cartas, por favor.

- Certo - disse a Sra. Nolan e, com isso, começou a embaralhar as cartas com a habilidade de um jogador de pôquer veterano.

- Agora você deve embaralhá-las um pouco, querida - disse ela, entregando-me as cartas. - Mas tenha cuidado! Haja o que houver, não as deixe cair no chão.

Deixá-las cair no chão devia representar má sorte, avaliei, compreendendo tudo.

- Tenho problemas de coluna - explicou ela. - O médico disse "nada de se abaixar". Agora, faça uma pergunta a si mesma querida - orientou-me ela. - Uma pergunta que você queira ver respondida pelas cartas, querida. Mas não me conte nada, querida. Não preciso saber qual é a pergunta - e fez uma pequena pausa, olhando para os meus olhos de forma significativa -, minha querida.

Eu podia ter escolhido uma de várias perguntas. Por exemplo: "haveria um fim para a fome no mundo?", "os cientistas iam descobrir a cura da Aids?", "haveria paz no planeta?", "será que alguém ia conseguir fechar o buraco na camada de ozônio?". De forma curiosa, porém, descobri que a pergunta para a qual eu realmente queria uma resposta era: "Algum dia vou conhecer um homem legal?” Engraçado isso.

- Já decidiu qual é a sua pergunta, querida? - quis saber ela, pegando o baralho de volta.

Fiz que sim com a cabeça. Ela começou a arremessar as cartas por sobre a mesa a uma velocidade espantosa. Eu não sabia o que aquelas figuras significavam, mas achei que não pareciam muito promissoras. Parecia haver um monte de espadas em várias delas, e isso não podia ser coisa boa, não é?

- Sua pergunta tem relação com um homem, querida? - perguntou ela.

Mas isso não impressionou nem mesmo a mim.

Isto é, eu era uma mulher jovem. Tinha poucas preocupações na vida. Bem, na verdade, tinha muitas. Uma jovem da minha idade só ia pensar em buscar a ajuda de uma cartomante por dois motivos: carreira ou vida amorosa. E se ela estivesse com problemas na carreira, provavelmente ia fazer alguma coisa de útil a respeito por conta própria.

Como ir para a cama com o chefe.

Assim, restava apenas a opção da vida amorosa.

- Sim - respondi, com jeito cansado -, tem a ver com um homem.

- Você tem tido pouca sorte no arnor, querida - disse, compr eensivo.

Novamente, não me deixei impressionar por aquilo.

Sim, eu andava tendo pouca sorte no arnor. No entanto, mostre-me uma mulher que não seja assim!

- Há um homem louro no seu passado, querida - afirrnou ela.

Imagino que ela estivesse se referindo a Steven. Mas, pensei, quem é que não tinha um homem louro em seu passado?

- Ele não era o homem certo para você, querida – continuou ela.

-Obrigada - disse eu, um pouco aborrecida, porque esse fato eu já descobrira sozinha.

- Não desperdice lágrimas por causa dele, querida - aconselhou-me ela.

- Pode deixar.

- Porque há outro homem a caminho, querida - afirmou ela, abrindo um sorriso imenso.

- Sério? - quis saber, deliciada com aquilo, inclinando-me mais para perto dela e sentindo o plástico da poltrona guinchar por baixo das minhas coxas. - Agora sim!

- É verdade - disse ela, analisando as cartas. - Estou vendo casamento, aqui.

- É mesmo? - eu quis saber. - De quem? Meu?

- Sim, querida - disse ela. - Seu.

- Sério mesmo? Quando?

- Antes que as folhas caiam no chão pela segunda vez, querida.

- Como disse?

- Antes que as quatro estações passem uma vez e metade de outra - explicou ela.

- Desculpe, mas acho que ainda não estou entendendo - disse eu, sem graça.

- Em um ano - decidiu ela, parecendo um pouco chateada.

Fiquei um pouco desapontada. Se era em um ano, ia acontecer no inverno, e eu sempre me imaginara casando na primavera! Isto é, nas raríssimas vezes em que eu me imaginara casando.

- Não dá para esticar este prazo para um pouco mais de um ano, dá? - perguntei.

- Minha querida - respondeu ela, com firmeza -, não sou eu que determino essas coisas. Sou simplesmente a mensageira.

- Desculpe - murmurei.

- Bem - continuou ela, em um tom de voz mais gentil-, vamos dizer que a previsão vai acontecer em até dezoito meses, para garantir.

- Obrigada - disse, achando que aquilo tinha sido muito respeitável da parte dela. Então eu ia me casar!, pensei. Isso era algo monumental. Especialmente se considerarmos que eu já ficaria feliz com um namorado.

- Estou me perguntando quem poderia ser ele... - falei.

- Você precisa ter cuidado, querida - avisou ela. - A princípio, pode ser que você não o reconheça como a pessoa que realmente é.

- E vou conhecê-lo em uma festa?

- Não - disse ela, com ar profético. - No primeiro momento, pode ser que ele não pareça ser quem é.

- Ah, quer dizer que ele vai mentir para mim - disse, compreendendo tudo. - Bem, acho que é sempre assim mesmo. Por que esse aí seria diferente?

E dei uma risada.

A Sra. Nolan pareceu aborrecida.

- Não, querida - explicou, irritada. - Eu quis dizer que você precisa tomar cuidado para não usar antolhos nessa procura. Talvez você tenha que buscar este homem e olhar para ele com visão clara, sem medos. Pode ser que ele não tenha dinheiro, e você não deve humilhá-lo. Pode ser que ele não seja bonito, mas você não deve zombar dele.

Que ótimo!, pensei. Eu devia saber! Um mendigo todo deformado.

- Entendo - respondi. - Então ele vai ser feio e pobre.

- Não, querida - replicou a Sra. Nolan, já desesperada, deixando de lado o linguajar místico. – Estou dizendo que pode ser que ele não seja o seu tipo preferido de homem.

- Entendo - respondi.

Se ao menos ela tivesse falado isso logo de cara. Visão clara e sem medos, tá bom!...

- Então - continuei -, quando Jason, o garoto de dezessete anos, todo sardento, que usa aquelas roupas largas horrorosas me encontrar na sala da xerox e me convidar para sair, a fim de curtir uma drogas, eu não devo mais rir na cara dele e responder que só Dia de São Nunca.

- Essa é a idéia, querida - disse a Sra. Nolan, parecendo satisfeita-, pois a flor do amor pode brotar nos lugares mais inesperados e você deve estar sempre pronta para colhê-la.

- Compreendo - balancei afirmativamente a cabeça.

Mesmo assim, eu tinha de estar muito a perigo para Jason ter alguma chance. Mas não havia necessidade de contar isso à Sra. Nolan.

Enfim, se ela era realmente boa naquilo, já sabia de tudo. Começou a apontar com rapidez para as cartas e soltar frases curtas, indicando desse modo que a sessão estava chegando ao fim.

- Você vai ter três filhos, duas meninas e um menino, querida.

E continuou:

- Jamais vai conseguir ser rica, mas vai ter muita felicidade, querida.

Disse também:

- Você tem uma inimiga no trabalho, querida. Ela tem inveja do seu sucesso.

Nessa eu tive que rir. Foi um riso meio amargo. Ela também ia cair na risada se soubesse como o meu emprego era humilhante e horrível.

Nesse ponto ela fez uma pausa.

Olhou para as cartas e, então, olhou para mim. Algo que parecia preocupação estava estampado em seu rosto.

- Vejo uma nuvem sobre você, querida - disse ela, bem devagar. - Uma escuridão, uma tristeza...

De repente, para meu horror, senti um nó na garganta. Uma nuvem escura, era exatamente assim que eu descrevia as crises de depressão que às vezes me atacavam. Não era aquele tipo comum de depressão, como "bem que eu gostaria de ter uma saia de camurça", embora eu sofresse desse tipo de depressão também. Desde os dezessete anos, porém, eu tinha crises de depressão clínica, de verdade.

Balancei a cabeça, quase sem conseguir falar.

- Sim - sussurrei.

- Você vem carregando este peso há muitos anos - disse baixinho, olhando para mim com muita solidariedade e compreensão.

- Sim - sussurrei de novo, sentindo os olhos se encherem de lágrimas.

- E você vem carregando o fardo quase totalmente sozinha - disse, com gentileza.

- Sim - concordei, sentindo uma lágrima descer lentamente pelo rosto. Ai, meu Deus! Aquilo era horrível. Pensei que tinha ido até ali para me divertir. Em vez disso, aquela mulher, uma completa estranha, conseguira enxergar a minha essência, e me tocara em um ponto onde poucos seres humanos haviam conseguido.

- Desculpe - funguei, enxugando o rosto com a mão.

- Não se preocupe, querida - disse ela, entregando-me um lenço de papel que pegou em uma caixa que, obviamente, estava ali ao lado para esse tipo de coisa. - Isso sempre acontece.

Esperou mais alguns instantes enquanto eu me recompunha, e então começou a falar novamente:

- Tudo bern, querida?

- Sim... - funguei. - Obrigada.

- Tudo vai melhorar, querida. Mas você não pode se afastar das pessoas que querem ajudá-la. Como poderão ajudá-la se você não permitir que elas se aproximem de você?

- Não sei exatamente o que a senhora esta querendo dizer – resmunguei.

- Talvez não saiba, querida - concordou ela, com ar gentil-, mas espero que descubra.

- Obrigada - tornei a fungar -, a senhora foi muito gentil. Obrigada pelo namorado, por me ver casada e tudo o mais. Foi muito bom ouvir isso.

- Não há de quê, querida - disse ela, parecendo satisfeita. – São trinta libras, por favor.

Paguei a ela e me levantei da cadeira com o plástico barulhento.

- Boa sorte, querida - disse ela. - Por favor, pode mandar vir a próxima jovem?

- Quem é a próxima? - pensei alto. - Ah, é a Megan, não é?

- Megan! - exclamou a Sra. Nolan. - Não é um lindo nome? Ela deve ser do País de Gales.

- Não, na verdade é australiana - retruquei e sorri. - Obrigada mais uma vez. Bye-bye.

- Bye-bye, querida - concordou ela, sorrindo. Voltei para a sala minúscula, onde as outras três caíram em cima de mim, cheias de perguntas. "E então?", "o que foi que ela disse?", e "valeu a pena gastar essa grana?" (essa última foi feita por Megan).

- Sim. - disse a ela. - Vale a pena você entrar.

- Só entro se vocês todas me prometerem não comentar nada umas com as outras até eu sair e estarmos juntas novamente - anunciou Megan, com cara feia. - Não quero perder nada!

- Por mim, tudo bem - suspirei.

- Vaca egoísta - murmurou Meredia.

- Cuidado, gorducha - disse Megan, entre dentes.

 

Quando Megan surgiu de volta, uns vinte minutos depois, já estava na hora de enfrentar novamente a noite escura, a fim de descobrir o que os filhos do Demo tinham feito com o carro.

- Ele vai estar inteiro, não vai? - perguntou a pobre Hetty, ansiosa e já quase correndo.

- Sinceramente, espero que sim - respondi, caminhando apressada, logo atrás dela. Esperava que sim, de verdade. As chances de conseguir chegar em casa de algum outro modo eram muito pequenas.

- Jamais devíamos ter vindo - disse ela, sentindo-se horrível.

- Ora, mas é claro que devíamos - replicou Megan, com espiírito de grupo. - Eu me diverti muito.

- Eu também - veio a voz de Meredia, arrastando-se pesadamente, uns cinqüenta metros atrás de nós.

De forma incrível, o carro estava inteiro.

Assim que aparecemos na esquina, a garotinha que devia estar tomando conta do carro surgiu do nada. Não sei que olhar ameaçador lançou a Hetty, mas foi o bastante para que ela imediatamente tateasse em busca da bolsa, a fim de pegar mais umas duas libras para dar a garotinha.

Não vimos nenhuma das outras crianças, mas dava para ouvir os gritos, berros e guinchos, além do barulho de vidro se quebrando, em algum lugar ali perto.

Ao passarmos de carro pelo conjunto, vimos um punhado delas. Estavam fazendo alguma coisa com uma caminhonete. Destruindo-a completamente, me pareceu.

- Essas crianças já não deviam estar na cama? - perguntou Hetty, ansiosa e assustada pelo seu primeiro encontro com um bairro pobre. - Onde estão os pais delas? O que estão fazendo? Certamente deviam tomar alguma providência.

As crianças adoraram nos ver novamente. À medida que o carro se aproximava delas, começaram a rir, a gritar e a apontar para nós às gargalhadas. Obviamente, pareciam ainda estar com grande interesse em Meredia. Três ou quatro meninos começaram a perseguir o carro; conseguiram correr ao lado do veículo por algum tempo, rindo e fazendo caretas para nós, e levou algum tempo até que conseguíssemos nos livrar deles.

Assim que percebemos que conseguíramos escapar ilesas dos pirralhos, relaxamos. Era a hora de contar tudo o que a Sra. Nolan dissera, e nós quatro estávamos muito empolgadas. Todas queriam saber o que as outras "ganharam", como garotinhas na barraca de pescaria em uma festa junina, comparando seus prêmios. "O que você conseguiu? Mostre a sua prenda. Olhe só a minha."

O barulho dentro do carro era ensurdecedor, com Meredia e Megan disputando para contar suas histórias.

- Ela descobriu que eu era australiana! - exclamou Megan, empolgada. - Disse que vai haver uma espécie de ruptura com o passado, um corte na minha vida, mas coisas boas vão acontecer por causa disso, e vou conseguir encarar tudo de forma maravilhosa, do jeito que costumo fazer - disse o finalzinho da frase de forma um pouco convencida. - Então talvez seja a hora mesmo de pôr o pé na estrada novamente - continuou. - De qualquer modo, não vou precisar olhar mais para as caras feias de vocês por muito tempo!

- Ela disse que eu ia receber um dinheiro - disse Meredia, feliz.

- Que bom! - exclamou Hetty, parecendo estranhamente amarga. - Assim você vai poder me pagar as vinte libras que me deve.

Reparei que Hetty estava mais quieta do que de costume. Não estava fazendo bagunça conosco, nem entrando no clima de gozação e empolgação. Continuava apenas dirigindo o carro, olhando direto para a frente.

Será que seu corpo sensível ainda estava em estado de choque pelo contato próximo com aquelas crianças da classe operária? Ou será que era alguma outra coisa?

- O que foi que ela te disse, Hetty? - perguntei, um pouco preocupada. - Previu alguma coisa de ruim para você?

- Sim - respondeu Hetty, baixinho. Parecia que estava quase chorando.

- O que foi? O que ela previu? - explodimos todas ao mesmo tempo, chegando o rosto mais para perto dela, ansiosas por ouvir as previsões terríveis: acidentes, doenças, mortes, falências, execuções de hipotecas, aquecedores explodindo, sei lá.

Ela me disse que muito em breve vou encontrar o grande amor da minha vida - explicou, quase chorando.

Um silêncio profundo baixou sobre o carro. Puxa vida! Isso era mau. Muito mau.

Muito mau mesmo.

Pobre Hetty!

É desagradável, para uma pessoa, descobrir que vai encontrar o grande amor de sua vida quando já é casada e tem dois filhos.

- Ela disse que vou ficar com a cabeça totalmente virada por ele - fungou Hetty. - Vai ser horrível! Jamais aconteceu um caso de divórcio na minha família! E quanto a Marcus e Montague? (Ou poderia ter sido Troilus e Tristan? ou Cecil e Sebastian?) Eles já estão achando o colégio interno tão difícil de agüentar, como é que vão lidar com o embaraço adicional de ter uma mãe largada?

- Ora, querida - disse eu, tentando ser simpática -, foi tudo brincadeira. Provavelmente nada disso vai acontecer.

Isso só serviu para fazer as lágrimas de Hetty aumentarem.

- Mas por que não posso encontrar o grande amor da minha vida? Eu quero encontrá-lo.

Megan, Meredia e eu trocamos olhares chocados. Minha nossa! Aquilo era muito irregular. Será que a normalmente calma, sã e controlada (eu diria até mesmo chata) Hetty estava tendo algum tipo de chilique?

- Por que eu não posso me divertir um pouco? Por que eu tenho que ficar atrelada a vida inteira com o velho Dick, aquele chato de galochas? - quis saber ela.

E batia com a palma da mão no volante a cada vez que dizia "eu", fazendo o carro se desviar da estrada de forma alarmante, invadindo a outra pista. Em volta de nós, todos estavam buzinando, apavorados, mas Hetty parecia não perceber.

Eu estava assombrada. Já trabalhava com Hetty há uns dois anos e, apesar de jamais termos sido almas gêmeas, achei que a conhecia muito bem.

Houve um silêncio de embaraço no carro enquanto Meredia, Mega e eu engolíamos em seco, tentando encontrar, sem conseguir, um jeito de dizer coisas consoladoras.

Foi a própria Hetty que salvou a situação. Não era à toa que ela tinha uma prima em décimo quarto grau, transferida três vezes de local de trabalho, sempre funcionando como assistente da rainha. Hetty não freqüentara uma escola caríssima para sair de lá sem ter aprendido a amenizar situações sociais desconfortáveis.

- Sinto muito - disse ela, subitamente voltando a ser a Hetty de sempre, a educação e gentileza em pessoa, elegante, serena, reservada e de volta ao seu lugar, com firmeza. - Sinto muito, meninas – repetiu. - Vocês precisam me desculpar.

Limpando a garganta, colocou as costas eretas e levantou os ombros indicando que não havia mais nada a comentar sobre aquelê assunto. Dick e a sua chatice extrema não eram mais assuntos para discussão.

Que pena! Sempre tive vontade de saber mais sobre aquilo. Porque, para ser franca, Dick me parecia, mesmo, ser extremamente chato. Por outro lado, como já disse, e falo isso da forma mais gentil possível, também achava Hetty uma chata.

- E então, Lucy? - perguntou ela, falando rápido e desviando as últimas migalhas de interesse para longe dela. - O que a Sra. Nolan predisse para você?

- Para mim? - perguntei. - Ah, sim... ela disse que vou me casar.

Outro silêncio desceu sobre o carro.

Outro silêncio daqueles, provocados pelo choque.

A descrença de Megan, Meredia e Hetty era tão palpável que até parecia uma quinta pessoa dentro do carro. Mais um pouco e ela ia acabar tendo de rachar a gasolina também!

- Sério? - perguntou Hetty, conseguindo, não sei como, pronunciar dezesseis sílabas com uma só palavra.

- Foi - respondi, na defensiva. - O que há de tão estranho nisso?

- Na verdade, nada - disse Meredia, de forma gentil. - É que, você sabe, você não tem tido muita sorte com os homens.

- Não é que a culpa seja sua, é claro - acudiu Hetty, apressada, com todo o tato.

Hetty tinha muito tato.

- Bem, foi isso o que ela me falou - confirmei, com cara amarrada.

Elas realmente não sabiam o que dizer diante daquilo, e a conversa ficou meio parada, até que finalmente voltamos à civilização. Fui a primeira a saltar, porque morava em Ladbroke Grove. A última coisa que ouvi, ao sair do carro, foi Meredia contando para quem quisesse ouvir que a Sra Nolan vira para o futuro dela uma viagem por sobre o mar, e também afirmou que ela possuía um pouco de mediunidade.

 

Eu dividia um apartamento com duas outras garotas, Karen e Char­lotte. Karen tinha vinte e oito anos, eu, vinte e seis, e Charlotte, vinte e três. Éramos um mau exemplo umas para as outras, e gastávamos muito do nosso tempo bebendo garrafas de vinho e pouco do nosso tempo lavando o banheiro.

Quando entrei em casa, Karen e Charlotte já estavam dormindo. Normalmente íamos para a cama cedo nas noites de segunda-feira, para nos recobrarmos dos excessos do fim de semana.

Karen deixara um bilhete sobre a mesa da cozinha, avisando que Daniel ligara para mim.

Daniel era um amigo meu e, embora fosse o mais próximo que se possa ter da idéia de um homem fixo em minha vida, não me envolveria romanticamente com ele nem que o futuro da raça humana dependesse de nós. Portanto, isso serve para dar a vocês uma idéia do quanto a minha vida estava sem uma presença masculina.

Minha vida estava na variedade "homem em quantidades reduzidas”, o tipo de vida "homem light".

Daniel era maravilhoso, realmente era. Os namorados vinham, os namorados iam (e podem acreditar, eles iam mesmo), mas eu sempre podia contar com Daniel para representar o papel de namorado na minha vida, me chatear com comentários machistas e dizer que preferia a saia mais curta e mais apertada.

E ele não era feio não, pelo menos foi o que me falaram. Todas as minhas amigas diziam que ele era lindo. Até Dennis, meu amigo gay dizia que ele não chutaria Daniel para fora da cama nem se ele estivesse comendo um saquinho de batatas fritas embaixo dos lençóis. Sempre que Karen atendia o telefone e era ele, começava a fazer caras e bocas, como se estivesse tendo um orgasmo. Às vezes, Daniel vinha até o nosso apartamento e, depois que ele ia embora, Karen e Charlotte se deitavam na ponta do sofá em que ele estivera sentado e se retorciam todas, fazendo ruídos com a boca como se estivessem em êxtase.

Eu não entendia o porquê de toda aquela agitação. Afinal, Daniel era amigo do meu irmão Chris, eu já o conhecia há anos, anos e mais anos.

Simplesmente o conhecia bem demais para me interessar por ele. Ou para ele se interessar por mim, tanto faz.

Houve um momento, certa vez, milhares de anos-luz atrás, em que Daniel e eu lançamos um para o outro sorrisos tímidos durante uma música do Duran Duran, e pensamos em trocar uns beijinhos. Mas, pensando bem, acho que isso não aconteceu realmente. Pelo menos não me lembro com clareza de nenhuma vez em que tivesse me sentido desse jeito com ele. Acho que apenas imaginei que sim, porque, em meio às emoções desenfreadas da minha adolescência, naquela época eu vivia a fim de quase todo mundo do sexo oposto.

No fundo, foi bem melhor que Daniel e eu não sentíssemos atração um pelo outro, porque, se tivéssemos transado, Chris teria de se dar ao trabalho de tentar espancar Daniel, por ele ter violado a honra de sua irmã, e eu não queria trazer esse tipo de problema para ninguém.

Karen e Charlotte, equivocadamente, invejavam o meu relacionamento com Daniel.

Costumavam balançar a cabeça, incrédulas, dizendo:

- Sua sortuda de uma figa! Como é que você consegue se sentir tão a vontade perto dele? Como é que consegue até ser engraçada e fazê-lo rir? A gente mal consegue pensar em alguma coisa para falar!

Mas isso era fácil para mim, porque eu realmente não sentia interesse por ele. Quando me interessava de verdade por alguém, entra­va em pânico, derrubava as coisas e puxava assunto, dizendo coisas como "você já imaginou como se sentiria se fosse um radiador?".

Olhei para o bilhete que Karen deixara para mim - havia até mesmo uma mancha no papel que ela marcara com uma seta, explicando "isso é baba" - e me perguntei se devia ligar para o Daniel. Decidi que não, porque ele podia já estar na cama.

Acompanhado, se é que me entendem.

Ah, que se danassem o Daniel e sua vida sexual! Eu queria falar com ele.

O que a Sra. Nolan me dissera estava entulhando minha cabeça. Não aquela parte sobre eu me casando, pois é claro que eu não era tola o bastante para levar isso realmente a sério.

O que ela dissera, porém, sobre me ver debaixo de uma nuvem escura me fizera lembrar das crises de depressão e do quanto elas foram terríveis. Eu podia acordar Karen e Charlotte para conversar, mas resolvi que não.

Além do fato de que elas iam virar umas araras enfurecidas se fossem despertadas do sono por outra razão que não fosse uma festa improvisada, nenhuma das duas sabia nada a respeito da minha depressão.

É claro que, às vezes, eu dizia que estava deprimida, e quando me perguntavam "mas por quê?", e eu lhes contava a respeito de um namorado infiel, ou um dia ruim no trabalho, ou não conseguir entrar na saia que comprara no verão passado, elas se mostravam mais do que solidárias.

Mas não imaginavam que, às vezes, eu ficava deprimida com “D“ maiúsculo. Daniel era uma das poucas pessoas fora da minha que realmente sabiam.

Eu tinha vergonha de me sentir assim. As pessoas achavam que a depressão era uma doença mental e que, em conseqüência dela, eu era uma doida completa com quem precisavam falar bem devagar e de quem era melhor se manter longe. Ou, mais freqüentemente, achavam que não existia essa história de depressão, e tudo era apenas um conceito vago e neurótico. A versão atualizada da pessoa que “sofre dos nervos", que todo mundo considerava como "uma pessoa que sente pena de si mesma, sem motivos". Ou achavam que eu estava simplesmente de frescura, entregando-me a alguma ansiedade adolescente que já passara totalmente da data de validade. E que tudo o que eu tinha de fazer era simplesmente "me controlar", "sair fora dessa" e "levar a vida na esportiva".

Eu conseguia entender essa atitude, porque todo mundo fica deprimido de vez em quando. Faz parte da vida, faz parte do pacote, dias ensolarados e outros com dor de ouvido.

As pessoas ficam deprimidas por causa de dinheiro (por não terem o bastante, é claro, não a preocupação do tipo "o dinheiro não está indo muito bem na escola" ou "ele perdeu muito peso ultima­mente").

Coisas desagradáveis aconteciam com as pessoas: relacionamentos eram rompidos, empregos eram perdidos, os aparelhos de televisão enguiçavam dois dias depois de acabar a garantia e assim por diante. E as pessoas se sentiam péssimas a respeito dessas coisas.

Eu sabia de tudo isso, mas a depressão que me acometia não era uma crise ocasional de tristeza, ou uma dose da insatisfação brava do tipo Holly Golightly, * embora eu também sentisse essas coisas, aliás, com freqüência. Mas também um monte de gente sente isso, especialmente se tiver bebido muito e dormido pouco a semana inteira, mas esse tipo de tristeza e de insatisfação brava era coisa de criança se comparado com os demônios negros e assassinos que desciam sobre mim de vez em quando para brincar de crucificar a minha cabeça.A minha não era uma depressão comum, ah, não, a minha era o modelo super, de luxo, topo de linha, versão completa.

Não que isso parecesse óbvio de imediato na primeira vez em que a pessoa me via. Eu não me sentia podre o tempo todo. Na verdade, durante boa parte do tempo eu era brilhante, envolvente e tinha personalidade marcante. Mesmo quando me sentia terrível, fazia força para não aparentar. Só quando as coisas começavam a ficar tão desesperadoras que já não dava mais para esconder é que eu me enfiava na cama por um período que variava de dois dias a uma semana, e esperava aquilo passar. O que invariavelmente acontecia, mais cedo ou mais tarde.

A pior crise de depressão que tive foi, na verdade, a primeira.

Tinha dezessete anos, era o verão em que terminara a escola e então, sem motivos, a não ser os óbvios, enfiei na cabeça a idéia de que o mundo era um lugar muito triste, solitário, injusto, cruel e doloroso.

Ficava deprimida por causa de coisas que estavam acontecendo com pessoas de recantos longínquos do mundo, gente que não conhecia nem, provavelmente, viria a conhecer, ainda mais se considerarmos que o motivo principal de eu me sentir daquele jeito era o fato de eles estarem morrendo de fome, ou de alguma praga contagiosa, ou pelo fato de que a sua casa lhes tinha caído por sobre a cabeça durante um terremoto.

Chorava diante de qualquer notícia que visse ou ouvisse, fossem elas desastres de carro, povos famintos, guerras, programas de tevê sobre as vítimas da Aids, histórias de mães que morreram e deixaram filhos pequenos, reportagens sobre esposas espancadas, entrevistas com homens que perderam o emprego nas minas de carvão, aos milhares e sabiam que, mesmo tendo apenas quarenta anos, jamais conseguiriam emprego novamente. E também artigos de jornal a respeito de famílias de seis pessoas que eram obrigadas a se alimentar com cinqüenta libras por semana, além de imagens de mulas maltratadas. Até mesmo aquela vinheta que mostravam no final do noticiário, em que aparecia um cão correndo em volta de uma bicicleta, dizendo “quero salsicha!", me causava uma dor profunda, porque eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que o cãozinho acabasse morrendo.

Um dia achei uma luva de criança na calçada perto de casa. Era toda em lã azul e branca, e a dor que isso me provocou foi insuportável. Pensar em uma pequena mãozinha enregelada, ou na outra luvinha, tão sozinha sem a sua companheira era tão pungente que eu derramava lágrimas quentes, soluçando sem parar a cada vez que olhava para a luva.

Depois de algum tempo, já não saía de casa. E logo depois, nem levantava mais da cama.

Era horrendo. Eu sentia como se estivesse envolvida pessoalmente com cada foco de tristeza que havia no mundo.

Era como se eu tivesse uma rede mundial de dor dentro da cabeça, uma rede maior do que a Internet, e cada átomo de pesar que já havia existido estivesse sendo canalizado através de mim, antes de ser empacotado e enviado a diversas áreas, como se eu fosse a centralizadora da miséria humana.

Minha mãe entrou em ação. Com a eficiência de um ditador que se sente ameaçado por um golpe de Estado, me impôs uma restrição total de notícias. Fui banida da frente da televisão e, por coincidência essa foi uma daquelas vezes em que meus pais tinham deixado alguns pagamentos em atraso - provavelmente o aluguel -, e os ­oficiais de justiça apreenderam vários itens da nossa mobília, incluindo a televisão, levando-os sob custódia, de modo que eu não teria assistido à tevê de qualquer jeito.

Todas as noites, quando meus irmãos chegavam, minha mãe os revistava na porta da frente e recolhia qualquer jornal que eles pudessem ter escondido em algum bolso, para só então permitir que entrassem em casa.

Não que a sua repressão à imprensa fizesse alguma diferença. Eu tinha uma admirável capacidade de localizar uma tragédia, por menor que fosse, em qualquer lugar, e conseguia chorar até mesmo diante da descrição de pequenos bulbos de flores que morriam sob as nevascas, no inverno, conforme soube por uma revista de jardinagem, meu único material liberado para leitura.

Finalmente, o doutor Thornton foi chamado, não sem antes se passar um ou dois dias em que toda a casa foi limpa e arrumada de forma frenética, em homenagem a sua chegada. Ele diagnosticou depressão e - surpresa, surpresa! - me prescreveu antidepressivos, que eu não queria tomar.

-De que vão adiantar esses remédios? - eu soluçava, olhando para ele. - Os antidepressivos vão trazer de volta os empregos daqueles pobres homens em Yorkshire? Vão ajudar a encontrar o par dessa... dessa... (a essa altura, eu já estava ofegante e falando de forma incompreensível, por causa do choro)... dessa LUVINHA!? - ­lamentei.

- Ah, quer calar a boca e parar de falar nessa porcaria de luvinha? - repreendeu a minha mãe, com rispidez. - Ela já me encheu o saco com essa historia de luvinha de lã, doutor. Pode deixar que ela vai adorar tomar essas pílulas.

Minha mãe era como muitas daquelas pessoas que não consegui­ram terminar os estudos, e acreditava que qualquer um que tivesse freqüentado a universidade, especialmente os médicos, eram pessoas parecidas com o papa, em sua infalibilidade. Tomar narcóticos prescritos por eles era uma espécie de coisa mística e sagrada.

(Eu não sou digno de recebê-lo, mas diga apenas uma palavra e serei curado.)

Além do mais, ela era irlandesa, tinha um tremendo complexo de inferioridade e achava que tudo o que os ingleses sugeriam tinha de estar certo (o doutor Thornton era inglês).

- Deixe comigo! - minha mãe assegurou ao doutor Thornton. - Vou fazer com que ela tome os remédios.

E foi o que fez.

Depois de algum tempo, comecei a me sentir melhor. Não feliz, nem nada desse tipo. Ainda sentia que estávamos todos condenados e que o futuro era um lugar desolado, todo cinza, mas não ia fazer mal se eu me levantasse da cama por meia hora para assistir a Eastenders *.

Depois de quatro meses, o doutor Thornton disse que já era hora de eu parar de tomar os antidepressivos. Toda a família segurou a respiração, esperando para ver se eu ia conseguir voar com minhas próprias asas ou mergulhar em parafuso de volta para aquele terrível inferno da luvinha abandonada.

Só que a essa altura eu já começara as aulas de secretariado e readquirira a fé no futuro, ainda que de forma frágil.

Novos horizontes se abriram com o curso. Aprendi muitas coisas estranhas e fantásticas.

Fiquei surpresa ao saber que a veloz raposa marrom pula sobre o cão preguiçoso, * que antes de "b" e "p" sem­pre se usa “m”, e nunca "n", e que se eu começar uma carta dizendo “Prezado Senhor” e terminar com a palavra "Afetuosamente", o mundo pode se acabar de uma hora para outra.

Aprendi a dominar a difícil arte de me sentar com um notebook fininho no colo e de cobrir uma página inteira com cobrinhas e rabiscos. Trabalhei duro para ser a secretaria perfeita, avançando rapidamente para o nível de quatro Bacardis e Cocas light em uma única noitada com as garotas, e o meu conhecimento sobre os produtos em estoque na Miss Selfridges** era, nessa época, enciclopédico.

Jamais me ocorreu que talvez eu devesse ter feito alguma outra coisa na vida. Por muito tempo, achei que era uma honra tão gran­de ter a chance de fazer treinamento para secretaria que nem sequer percebi o quanto aquilo me entediava. E mesmo que eu tivesse percebido o quanto aquilo me entediava não teria conseguido escapar porque a minha mãe, uma mulher muito determinada, mostrava-se inflexível sobre aquilo ser o melhor para mim. Ela chegou a chorar de alegria no dia em que peguei o meu diploma, o qual provava que eu conseguia movimentar os dedos tão rápido que dava para escrever quarenta e sete palavras por minuto.

Se o mundo fosse mais justo, ela teria se matriculado nos cursos de datilografia e estenografia, e não eu, mas não foi assim que as coisas aconteceram.

Da escola, fui a única garota da sala que fez secretariado. Tirando Gita Pradesh, que fez faculdade de educação física, todas as outras ficaram grávidas, se casaram, arrumaram emprego de reposi­toras de prateleiras nas lojas Safeway, ou uma combinação dessas três opções.

Eu era muito boa na escola, ou, pelo menos, tinha muito medo das freiras e da minha mãe para ser um fracasso completo.

Só que também tinha medo de algumas das outras garotas na sala para ser um sucesso total. Havia uma gangue de garotas "espertas" que fumavam, usavam delineador, tinham peitos muito desenvolvidos para a idade e, segundo os boatos, faziam sexo com os namorados. Eu vivia doida para me tomar uma delas, mas não tinha chance, porque, às vezes, tirava boas notas.

Certo dia tirei sessenta e três em uma prova de biologia e tive sorte de escapar com vida, o que não foi muito justo, já que as questões eram sobre o sistema reprodutor humano, e elas provavelmente sabiam muito mais a respeito do assunto do que eu, e teriam tirado notas muito mais altas se pelo menos tivessem se dado ao trabalho de aparecer para fazer a prova.

Sempre que havia um teste na escola, porém, elas traziam atestados de doença falsos, assinados pelas mães.

As mães eram ainda mais assustadoras do que as filhas, e se as freiras levantavam alguma dúvida a respeito da autenticidade dos atestados e tascavam uma merecida punição nas alunas, as mães - e, às vezes, até os pais - vinham até a escola e provocavam o maior tumulto, ameaçando agredir as freiras, acusando-as de chamar as filhas de mentirosas e avisando aos berros que iam "dar parte" delas.

Uma vez, quando Maureen Quirke trouxe três atestados no mesmo mês, cad a um deles pedindo para que ela fosse dispensada da prova por estar menstruada, a irmã Fidelma a esbofeteou e perguntou: “Você acha que eu sou idiota, garota?" Poucas horas depois, a Sra. Quirke chegou à escola como um anjo vingador. (Como Maureen contou, tempos depois, a parte mais engraçada de tudo aquilo era que, na verdade, ela estava grávida naquela época, embora ainda não soubesse disso quando escreveu os atestados.) A Sra. Quirke berrou para a irmã Fidelma: "Ninguém tem o direito de encostar o dedo em minhas filhas. Ninguém, a não ser eu e o Sr. Quirke!

Vá arrumar um homem, sua ameixa seca ridícula, e deixe minha a minha Maureen em paz!”

Então, marchou de forma arrogante através dos portões da escola, arrastando Maureen pela mão e dando tapas nela por todo o percurso até em casa. Eu soube disso com detalhes porque, ao chegar em casa na hora do almoço, meu pai voou em cima de mim, doido para saber das novidades dizendo: "Eu vi a filha dos Quirke passando com a mãe pela rua ainda há pouco, e a mãe estava metendo a porrada na filha. Conte logo, o que aconteceu?"

Assim, quando parei de tomar antidepressivos e fui estudar secretariado, minha depressão não voltou com toda a fúria, mas também não foi embora de vez. E, por estar morrendo de medo de ficar deprimida novamente, eu, que não queria mais tomar remédios, dediquei a minha vida a encontrar as melhores formas de manter a nivem escura a distância, au naturel.

Queria banir por completo a depressão da minha vida, mas tive que me contentar em deixa-la represada, constantemente reforçando minhas trincheiras emocionais.

Desse modo, junto com a natação e a leitura, combater a depressão se transformou em um hobby. Na verdade, a natação não era assim um hobby no sentido literal. Seria mais apropriado coloca-la sobre o gênero Combate à Depressão, subgênero Exercícios, categoria leve.

Eu lia tudo que caía em minhas mãos a respeito do assunto “depressão, e nada me levantava mais o astral do que uma história boa e suculenta sobre alguém famoso que sofria horrores por causa dela.

Reportagens sobre pessoas que passavam meses a fio na cama, sem comer, sem falar, só olhando para o teto, com as lágrimas descendo lentamente pelas faces e desejando energia suficiente para se matar me deixavam extremamente empolgada.

Eu estava em companhia de gente muito importante.

Churchill chamava a própria depressão de "meu cão negro", só que, aos dezoito anos, isso me deixava confusa, porque eu adorava cães. É claro que isso foi antes de a imprensa inventar os pit bulls.

Depois disso, passei a compreender exatamente o que Winston sentia.

Sempre que eu entrava em uma livraria, fingia que estava só dando uma olhada nas novidades e, antes de perceber, já passara direto pelos lançamentos, pelas seções de ficção, crime, ficção científica, culinária, decoração e histórias de horror, continuava em frente pela seção de biografias (dando só uma paradinha para ver se alguma vítima de depressão publicara recentemente a historia de sua vida) e, de algum modo, como em um passe de mágica, sempre acabava na seção de auto-ajuda, onde passava horas a fio lendo livros que pudessem me consertar ou apresentassem a solução mágica que levaria embora, ou pelo menos aliviaria, as garras corrosivas que estavam quase sempre comigo.

É claro que muitos desses livros de auto-ajuda aconselhavam tantas coisas doidas que eram capazes de jogar a pessoa mais feliz e equilibrada no desespero. Havia alguns que até mesmo um daqueles malucos nascidos em San Francisco teria dificuldade de encarar sem cair na risada. Títulos como Fobia de Ir para a Rua? Não Saia de Casa sem Este Livro ou Cleptomania - Um Guia para Você se Ser­vir à Vontade não estavam muito fora das possibilidades.

Apesar disso, eu normalmente gastava algum dinheiro em um pequeno volume que me encorajava a "sentir o medo e ir em frente assim mesmo" ou quem sabe "curar a minha vida", ou que ensinas­se que talvez não fosse uma má idéia "redescobrir a minha criança interior", ou que me levasse a refletir sobre "por que preciso de alguém que me ame antes de gostar de mim mesma" .

Do que eu precisava mesmo era de um livro de auto-ajuda que me ajudasse a parar de comprar livros de auto-ajuda, porque eles não ajudavam em nada.

Como diria meu pai, eles "só serviam para uso sanitário", o que é que isso significasse.

Os livros me faziam sentir culpada. Não bastava apenas lê-los. Para que funcionassem, eu tinha de fazer coisas como, por exemplo, ficar em pé na frente de um espelho e dizer para mim mesma cem vezes que eu era linda.

sso se chamava "afirmação". Ou passar meia hora todas as manhãs imaginando que estava embebida em amor e afeição. Isso se chamava "visualização". Ou fazer listas de todas as coisas boas em minha vida. Isso se chamava "fazer listas de todas as coisas boas em minha vida".

Normalmente eu lia o livro, fazia tudo o que ele sugeria durante dois dias e depois ficava cansada, ou entediada, ou era pega de surpresa pelos meus irmãos enquanto conversava de modo sedutor olhando para o meu reflexo. (Nunca esqueci a gigantesca gozação que tive que aturar por causa desse mico.)

Tentei um monte de outras coisas: óleo de prímula vespertina, vitamina B6, exercicíos em excesso, fitas de auto-ajuda de ação subconsciente, para tocar quando dormimos, ioga, pilates, tanque de flutuação, massagem aromaterápica, shiatsu, reflexologia, a dieta do levedo, a dieta que corta o levedo, a dieta que corta o açucar, comi­da vegetariana, a dieta "encha-se de carne" (não sei se existe um nome para isso), um ionizador, um curso de pensamento positivo, terapia do sonho, regressão a vidas passadas, oração, meditação e terapia das luz solar (um feriado em Creta, para ser precisa). Por algum tempo não comi nada a não ser laticínios, mas depois abandonei os laticínios por completo (entendi errado o artigo, na primeira vez que li), e finalmente senti que se eu tivesse de passar mais um dia sem comer uma barra de chocolate iria acabar me matando de qualquer jeito.

Apesar de nenhuma dessas medidas ter se mostrado como a Solução Definitiva, pelo menos funcionaram por algum tempo, e nunca mais fiquei tão deprimida quanto na primeira vez.

Só que a Sra. Nolan dissera algo sobre a ajuda estar ao meu alcance, se ao menos eu a buscasse. Gostaria de ter levado um gravador para a sessão, porque não conseguia me lembrar exatamente do que ela falara.

O que ela queria dizer com aquilo?

A única coisa na qual conseguia pensar era que talvez ela estives­se insinuando que eu devia procurar ajuda profissional e me consultar com algum tipo de conselheiro ou terapeuta, ou um psico-isso ou aquilo. O problema é que, um ano antes, eu já fora me consultar com uma espécie de terapeuta. Resolvi vê-la por algum tempo, pelo menos por umas oito semanas, e aquilo acabou sendo um desperdício de tempo.

 

Seu nome era Alison e eu costumava me consultar com ela uma vez por semana. Sentávamos em uma salinha simples e tranqüila para tentarmos descobrir o que havia de errado comigo.

Apesar de termos descoberto um monte de coisas interessantes, como o fato de que eu ainda guardava mágoa de Adrienne Cawley por ela ter me presenteado com um jogo que dizia na caixa "para crianças de dois a cinco anos", no meu sexto aniversário, não me pareceu que eu estivesse descobrindo mais do que já conseguira por mim mesma, em incontáveis noites de insônia.

Naturalmente, a primeira coisa que Alison e eu fizemos foi uma psicoterapêutica caça às bruxas que se chamava "Cherchez la Famille”, onde tentávamos jogar na minha família a culpa por tudo o que havia de errado com a minha psique danificada.

Mas não havia nada de estranho com a minha família, a não ser as esquisitices normais.

Tinha um relacionamento perfeitamente normal com meus dois irmãos, Chris e Peter. Isto é, passei toda a infância odiando-os profundamente e eles retribuiam isso de modo fraternal e bem tradicional, fazendo da minha vida um inferno. Obrigavam-me a ir ao mercado para eles quando eu não queria, monopolizavam a televisão, quebravam meus brinquedos, rabiscavam o meu dever de casa, diziam que eu era adotada e os meus pais verdadeiros estavam na cadeia por roubarem um banco. Depois confessavam que era tudo brincadeira e a minha mãe verdadeira, na realidade, era uma bruxa. E quando mamãe e papai saíam para ir ao pub, contavam-me que eles haviam fugido, nunca mais iam voltar e eu ia ser levada para um orfanato, onde seria espancada e só poderia comer mingau queima­do e tomar chá frio. As tradicionais brincadeiras entre irmãos.

Contei tudo isso para Alison, e quando cheguei à parte sobre pa­pai e mamãe irem ao pub ela se agarrou nesse detalhe, com alegria:

-Conte-me tudo sobre as vezes em que seus pais saíam para beber - pediu ela, recostando-se na cadeira e remexendo-se toda para ficar mais confortável, pronta para a imensa torrente de revelações que esperava que se seguissem.

-Não posso lhe contar nada - expliquei. - Minha mãe não bebe.

Alison pareceu desapontada.

-E o seu pai? - perguntou ela, esperançosa, vendo que nem tudo estava perdido.

-Bem, ele bebe - respondi.

Ela adorou ouvir isso.

-Bebe? - perguntou ela, em um tom de voz extragentil. - E você quer conversar sobre isso?

-Bem, quero - respondi, meio confusa. - Só que não há nada de especial para contar a respeito disso. Quando falei que ele bebe, não quis dizer que ele tem um problema.

- Hummmmm - concordou ela, gentilmente, entendendo tudo. - E o que você quer dizer com "tem um problema”?

-Não sei - respondi. - Acho que estou falando de meu pai ser alcoólatra. E ele não é.

Ela não disse nada.

- Ele não é. - Ri. - Desculpe, Alison, eu adoraria contar a você que o meu pai passou toda a minha infância embriagado, que nunca tínhamos dinheiro suficiente, que ele batia em todos, gritava conosco, tentava fazer sexo comigo e dizia para a minha mãe que estava arrependido por ter se casado com ela.

Alison não me acompanhou na risada e me senti ligeiramente tola.

-O seu pai realmente dizia que estava arrependido por ter se casado com a sua mãe? - perguntou ela, com calma e dignidade.

-Não - respondi, meio sem graça.

-Não? - insistiu Alison.

-Bem, quase nunca - admiti. - E só quando estava bêbado. E isso era quase nunca também.

-E você achava que a sua família jamais tinha dinheiro suficiente? - perguntou ela.

-Não, jamais tivemos pouco dinheiro - respondi, com firmeza.

-Ótimo - disse Alison.

-Olhe, isso não é bem verdade - eu me vi forçada a admitir. - Sempre estávamos com pouco dinheiro, mas isso não acontecia porque o meu pai bebia, é que simplesmente a gente... não tinha muito dinheiro.

- E porque vocês não tinham muito dinheiro? - quis saber Alison.

- Porque meu pai não conseguia arrumar emprego - expliquei, ansiosa. - Veja só, ele não possuía nenhuma qualificação profissional porque teve que largar os estudos aos catorze anos, quando seu pai morreu e ele foi obrigado a tomar conta da mãe.

- Entendo - disse ela.

Na verdade, papai costumava dizer um monte de outras coisas a respeito do seu desemprego, mas eu me senti estranhamente relutante em contar isso a Alison.­

Uma das memórias mais claras da minha infância era a de papai sentado à nossa mesa da cozinha, explicando de forma passional os defeitos do sistema econômico. Costumava dizer que no mercado de trabalho inglês os irlandeses sempre ficavam com "a ponta cagada do bastão”, e que Seamus O'Hanlaoin, Michael O'Herlihy e o resto deles não passavam de uma cambada de vermes e "baba-ovos", porque puxavam o saco dos chefes ingleses pela frente, mas metiam o pau neles pelas costas. E que, embora Seamus O'Hanlaoin e Michael O’Herlihy e todo o resto pudessem ter seus empregos, pelo menos ele, Jamsie Sullivan, tinha integridade.

Isso deveria ser muito importante para ele, porque vivia repetindo essa frase.

E repetiu ainda mais vezes no dia em que Saidbh O’Herlihy e Siobhán O’Hanlaoin foram para a Escócia com uma excursão da escola, e eu não.

Não queria contar nada disso a Alison porque temia que isso pudesse ofendê-la, caso ela tomasse a condenação de meu pai aos possíveis chefes ingleses como algo contra ela.

Comecei a contar a Alison sobre os empregos que meu pai tentou e não conseguiu, mas ela cortou as minhas lembranças:

-Vamos ter que deixar isso para a semana que vem - E se levantou.

-Oh, já está na hora? - perguntei, abalada pela forma abrupta como a sessão terminara.

-Sim - disse Alison.

Uma onda de culpa me inundou. Eu preferia não ter parecido desleal com o papai.

-Olhe, não quero que você fique achando que meu pai não era um homem legal ou algo desse tipo - disse, desesperada. - Ele é adorável, e eu o amo muito.

Alison lançou-me um sorriso de Mona Lisa, sem deixar transparecer nada, e disse:

-Vejo você na semana que vem, Lucy.

-Estou falando sério, ele é ótimo - insisti.

-Sim, Lucy - e sorriu mais, dessa vez mostrando os dentes. - Vejo você na semana que vem.

E a semana seguinte foi pior ainda. De algum modo, Alison conseguiu arrancar de mim a história de eu não ter ido à Escócia com a excursão da escola.

-Você não se importou? - quis saber ela.

-Não - respondi.

-Não sentiu raiva do seu pai? - perguntou.

-Não - respondi novamente.

-Mas por que não? - A essa altura, ela já estava me parecendo desesperada. Foi a primeira vez em que eu a vi mostrar alguma emoção.

-Porque simplesmente não fiquei com raiva - expliquei.

-Qual foi a reação do seu pai quando ficou claro que você não poderia ir? - perguntou ela. - Você se lembra?

-É claro que lembro - disse, surpresa. - Ele me falou que a sua consciência estava limpa.

Na verdade, “minha consciência está limpa” era uma coisa que papai dizia muitas vezes. “Consigo pegar no sono assim que caio na cama” era outra. E ele tinha razão. Muitas vezes ele conseguia pegar no sono antes de ir para a cama. Isso normalmente acontecia nas noites em que ele havia bebido um pouco.

De algum modo, também acabei contando tudo isso para a Alison.

-Conte-me sobre essas noites em que ele... hã... bebia um pouco - pediu ela.

-Ai, você faz isso parecer tão ruim - reclamei. - Não era assim tão mau, era até legal. Ele apenas, sabe, cantava e chorava um pouco.

Alison olhou para mim sem dizer nada e, para quebrar o silêncio, eu me apressei em completar:

-Mas não era triste quando ele chorava, porque eu sabia que, de um modo curioso, ele estava contente por estar triste, se você entende o que quero dizer.

Alison obviamente não entendia.

-Vamos continuar a conversar sobre isso na semana que vem - disse ela. - A sessão terminou.

Mas nós não voltamos a conversar sobre aquilo na semana seguinte, porque eu nunca mais voltei ao consultório de Alison.

Eu me sentira manipulada por ela, obrigada a ser cruel a respeito de papai, e a sensação de culpa era horrível. Além disso, era eu que estava deprimida, portanto não conseguia compreender por que razão duas sessões inteiras haviam sido devotadas ao meu pai e a quanto ele bebia ou não bebia.

Do mesmo modo que seguir dietas faz você engordar, senti que fazer análise lhe traz problemas. Portanto, sinceramente esperava que a Sra. Nolan não estivesse sugerindo que eu fosse procurar outra Alison, porque eu não queria fazer isso não.

 

Teríamos esquecido tudo sobre a Sra. Nolan e a experiência seria relegada a algum sótão escuro e empoeirado de nossas lembranças se duas coisas não tivessem ocorrido.

A primeira coisa que aconteceu foi a previsão de Meredia, que se tornou realidade. Bem... mais ou menos...

No dia seguinte à nossa ida à cartomante, Meredia chegou ao trabalho balançando alguma coisa acima dos cabelos tingidos, com jeito triunfante.

- Olhem só! - comandou. -Olhem, olhem, olhem!!

Hetty, Megan e eu pulamos das nossas mesas e fomos ate Meredia para olhar. A coisa que ela estava balançando sobre a cabeça era um cheque.

- Ela disse que eu ia receber um dinheiro, e recebi mesmo - gritou Meredia, toda excitada, enquanto executava alguns passos imprudentes de dança que derrubaram nove ou dez pastas no chão e lançaram ondas sísmicas por todo o prédio.

- Mostre, mostre - implorei, tentando agarrar o cheque da mão dela. Só que, para uma mulher tão grande, ela era surpreendentemente ágil.

- Vocês sabem há quanto tempo estou esperando por este dinheiro? - lançou ela, olhando de uma para outra. - Vocês tem idéia de quanto tempo faz que estou à espera disto?

Mudas, nós três balançamos a cabeça. Meredia certamente sabia como manter a platéia hipnotizada.

-Pois saibam que estou a espera disto há meses - bramiu ela, jogando a cabeça para trás. - Literalmente, meses.

- Que maravilha - disse eu. - Isto não é incrível?

- De quem é este cheque? - quis saber Hetty.

- De quanto é ? - quis saber Megan, perguntando a única coisa realmente importante.

- É um reembolso do do Clube do Livro - cantou Meredia, alegremente. - Vocês simplesmente não conseguem imaginar o número de cartas que tive que mandar para eles até conseguir essa grana de volta. Já estava a ponto de ir até Swindon pessoalmente, para reclamar.

Megan, Hetty e eu, confusas, trocamos olhares.

-Isso é do Clube do Livro? - perguntei, lentamente. – Um reembolso do Clube do Livro?

-Sim – confirmou Meredia, suspirando de forma dramática. – Foi a maior lengalenga. Eu disse que não queria o livro do mês, mas eles o enviaram mesmo assim, e então...

-Quanto foi que você recebeu? - interrompeu Megan, de forma abrupta.

-Sete cinco zero - disse Meredia.

-E isso são setecentos e cinqüenta libras ou sete libras e cinqüenta? - perguntei, já temendo pelo pior.

-Sete libras e cinqüenta - disse Meredia, parecendo aborrecida. – Que papo é esse de setecentos e cinqüenta? O livro do mês tinha que ser de ouro maciço para que eu pagasse tanto assim por ele. Fala sério, Lucy, às vezes acho você meio estranha!

-Entendo - disse Megan, de forma realista. - Você recebeu um cheque de sete libras e cinqüenta, a quarta parte do que pagou para a Sra. Nolan abrir as cartas, e está achando que a previsão dela de que ia entrar em uma grana preta se realizou? Foi isso mesmo o que aconteceu?

-Foi - disse Meredia, indignada. - Ela não falou quanto eu ia receber. Disse apenas que o dinheiro vinha.

-E veio mesmo! - acrescentou ela, na defensiva.

-O que há de errado com vocês? - gritou, enquanto todas nós voltávamos de mansinho para nossas mesas, com o rosto cheio de desapontamento. - As expectativas de vocês são altas demais! Esse é o problema.

-Por um instante achei que as previsões iam todas se realizar. Só que, pelo jeito, não vou encontrar o grande amor da minha vida... – disse Hetty, com tristeza.

-E não vou ver o corte que vai ser o divisor de águas da minha vida - disse Megan. - A não ser que seja um corte de tecido.

-E eu não vou me casar - disse eu.

-Sem chance - concordou Megan.

- Nenhuma - disse Hetty, dando um suspiro longo.

O papo foi interrompido pela chegada do nosso chefe, Ivor Simmonds. Ou Ivor Veneno, como às vezes o chamávamos. Ou "aquele cretino sem-vergonha", como outras vezes também o chamávamos.

-Caríssimas damas - cumprimentou-nos, com uma cara que dizia que ele achava que nós éramos qualquer coisa, menos damas.

-Bom-dia, Sr. Simmonds - disse Hetty, com um sorriso educado.

-Nham-nham-nham... - ruminou o resto de nós.

Isso foi porque nós o odiávamos.

Sem nenhum motivo em particular. Não era por causa de sua ausência completa de senso de humor - como Megan dizia, os médicos deviam ter removido cirurgicamente todo o seu carisma quando ele nasceu. Também não era por sua baixa estatura, ou o cabelo ralo cor de cenoura desbotada, ou sua barba medonha também da cor de cenoura desbotada. Ou os óculos escuros vagabundos, ou seus lábios gorduchos e vermelhos que sempre pareciam molhados ou, o pior de tudo, seu traseiro redondo e caído, com formato feminino, ou seu terno curto vagabundo e sebento que mal cobria o dito traseiro, ou a marquinha do elástico da cueca que dava para ver nos fundilhos da calça do terno sebento.

É claro que todos esses fatores ajudavam. Basicamente, porém, nos o odiávamos porque ele era o chefe. Essa era a regra geral.

A repugnância que sentíamos por ele era muito útil de vez em quando. Certo dia, quando Megan estava toda enjoada depois de uma noitada regada à cerveja com licor de pêssego, esse nojo foi de grande ajuda.

-Se pelo menos eu conseguisse colocar tudo para fora - reclamou ela -, ia melhorar um pouco.

-Imagine que está transando com o Ivor - sugeri, ansiosa para ajudar.

-É- disse Meredia, toda alegrinha. - Imagine que você está dando um beijo de língua nele, com aquela boca e aquela barba. Argh!

-Nossa - murmurou Megan, arrotando de leve. - Acho que está funcionando...

- E aposto que ele beija fazendo barulho - completou Meredia, com o rosto deliciosamente retorcido de horror.

-Depois pense em como ele fica só de cuecas - sugeri. Imagine só. Aposto que ele não usa cuecas normais. Nada de cuecas largas, dessas com corte moderno.

-Não, ele não usa essas mesmo - confirmou Hetty, que normalmente não entrava na nossa pilha.

Viramo-nos para ela, todas ao mesmo tempo.

-Como é que você sabe? - perguntamos, em uníssono.

-Porque... hã... dá para ver... vocês sabem... a marca do elástico. – E Hetty corou delicadamente.

-Certo, a gente aceita - concordamos.

-Aposto que ele usa calçolas - disse eu, toda empolgada. – Calçolas daquelas bem grandes, cor-de-rosa, bordadas, com a cintura quase nas axilas, e a mulher dele tem que comprá-las para o marido em lojas de senhoras, porque não dá para encontrar nenhum tamanho que sirva nele em lojas comuns.

-E imagine só como é que deve ser o pinto dele – sugeriu Meredia.

-É!... – disse eu, já sentindo o estômago começar a se revirar. – Aposto que é pequeno e mirrado, meio ressecado, e ele deve ter pentelhos cor de cenoura desbotada e...

Isso foi o bastante. Megan saiu em disparada da sala e voltou, toda sorridente, dois minutos depois.

-Uau! – sorriu ela. - Que torpedo. Alguém tem pasta de dentes?

-Francamente, Megan – disse Hett, com frieza. – Você às vazes me cansa.

Megan, Meredia e eu trocamos olhares e levantamos as sobrancelhas, imaginando o que tinha deixado Hetty, normalmente agradável e educada, tão irritada.

Por uma feliz coincidência, o Sr. Simmonds parecia nos odiar tanto quanto nós a ele.

Lançava-nos olhares furiosos, entrava em sua sala e batia a porta.

Meredia, Megan e eu nos mexíamos, parecendo atarefadas, e ligávamos os computadores. Hetty não fazia nada disso, porque o seu já estava ligado.

Hetty fazia quase todo o serviço do escritório.

Houve um período muito preocupante assim que Megan chegou à empresa; ela trabalhava muito, muito mesmo. Não só aparecia na hora, como também começava logo a trabalhar se chegasse mais cedo. Não abria o jornal, olhando para o relógio e dizendo "mais três minutos. Esses canalhas não vão ter nem um segundo a mais do que me pagam", como o resto de nós fazia.

Meredia e eu a levamos para um canto e explicamos que ela não só estava colocando os nossos empregos em risco como também poderia acabar com o próprio emprego, se houvesse redução no quadro.

("E aí, quem é que ia para a Grécia?") Depois desse dia ela maneirou um pouco, e chegou até a dar algumas mancadas. Passamos a nos dar muito melhor depois disso.

"Deixa isso pra Hetty fazer" era o lema do escritório. Só que Hetty não sabia disso.

Eu não conseguia imaginar por que motivo Hetty trabalhava. Certamente ela não precisava do salário. Meredia e eu chegamos a conclusão de que os quadros de todas as instituições de caridade em Londres deviam estar lotados, quando Hetty resolveu que estava entediada e precisava se distrair, então ela baixou suas pretensões e veio trabalhar para nós.

O que não era muito diferente de fazer caridade.

Na verdade, Meredia e eu costumávamos dizer, brincando, que trabalhar para a Companhia Wholesale Plásticos e Metais era exatamente a mesma coisa que fazer um trabalho caritativo, já que nossa remuneração era patética de tão irrisória.

 

O dia seguia. Voltamos ao trabalho. Mais ou menos.

Ninguém voltou a mencionar a Sra. Nolan, nem o grande amor da sua vida, nem as grandes mudanças e cortes bruscos, nem receber dinheiro ou eu me casar.

Mais tarde, nesse mesmo dia, minha mãe telefonou, e me preparei para ouvir a descrição de algum desastre, porque ela jamais me ligava só para bater papo, jogar conversa fora e me ajudar a desperdiçar alguns preciosos minutos do tempo da empresa. Não, ela ligava apenas para relatar catástrofes, de forma tensa. Mortes eram o seu tema favorito, mas qualquer coisa parecida servia. A possibilidade de diminuição do número de funcionários na empresa em que meu irmão trabalhava, um caroço na tireóide do meu tio, um incêndio em um celeiro em Monaghan ou uma prima solteira que engravidou (essa era uma das favoritas, disputando o posto com mortes entre as lâminas de uma colhedeira de grãos).

-Você conhece Maisie Patterson? - perguntou ela, animada.

-Sim - respondi, pensando "Maisie quem?...", mas sabendo por experiência própria que era melhor dizer que conhecia, senão ia ficar ali o dia inteiro conhecendo a árvore genealógica de Maisie Patterson. ("Ela era uma das filhas dos Finertan, antes de se casar... mas é claro que você sabe quem são os Finertan, não se lembra da vez em que você era pequena e eu a levei na casa deles, uma casa bonita, muito grande, com portões verdes, que ficava logo depois da casa dos Nealon?... Você sabe quem são os Nealon, não se lembra de Bridie Nealon, naquele dia em que ela lhe trouxe dois biscoitos Marietta, mas é claro que você sabe o que são biscoitos Marietta, não se lembra de que você ficava espremendo o recheio para ele sair pelos furinhos?...").

-Bem... - disse a minha mãe, fazendo um pouco de suspense. Maisie Patterson fora, obviamente, ao encontro do Criador, mas não tinha graça contar apenas isso.

-Sim - disse eu, paciente.

-Ela foi enterrada ontem! - exclamou, por fim.

-Mas por que eles a enterraram? - perguntei, docemente. - Ela os estava perturbando? Quando é que vão deixá-la sair lá de dentro?

-Rá... Você é muito engraçadinha - disse minha mãe, com tom amargo, chateada pelo fato de a notícia não ter me deixado espantada nem abalada. - Você precisa lhes mandar um cartão de condolências.

-Mas como foi que isso aconteceu? - perguntei, tentando deixá-la mais animada, - Ela prendeu a cabeça nas lâminas da colhedeira de grãos? Foi soterrada no silo por toneladas de milho? Ou será que foi atacada por uma galinha?

-Nada disso - respondeu ela, aborrecida. - Não seja ridícula! Você não lembra que ela já estava morando em Chicago há um tempão?

-Ah... ha... é mesmo.

-Não, foi terrivelmente triste - afirmou ela, baixando a voz alguns decibéis em sinal de respeito, e nos quinze minutos que se seguiram me colocou a par de todo o histórico clínico de Maisie Patterson. As misteriosas dores de cabeça que ela começou a sentir de repente, o monte de remédios que lhe receitaram para curar as dores de cabeça, a tomografia computadorizada que teve de fazer quando os remédios não adiantaram nada, os raios X, a mudança de medicação, as torturas pelas quais passou no hospital, sendo espetada e apalpada por especialistas perplexos, os resultados que finalmente saíram, todos negativos, assegurando que ela não tinha nada e, finalmente, o Toyota vermelho que a atropelou de frente, rompeu-lhe o baço e a fez entrar no outro mundo dando cambalhotas.

Na quinta-feira, o dia começou mal e depois piorou.

Ao acordar sentindo-me péssima, não poderia saber que a "previsão" de Megan estava destinada a se tornar realidade naquele mesmo dia.

Se eu soubesse disso, talvez conseguisse sair da cama com mais facilidade.

Do jeito que eu estava, era duvidoso saber se ia conseguir me livrar do abraço quente e amoroso dos meus lençóis.

Sempre achei difícil levantar da cama de manhã cedo. Esse foi um dos legados da crise de depressão da adolescência ou pelo menos era isso que eu gostava de dizer.

Provavelmente era só um caso de preguicite aguda, mas chamar de depressão fazia com que eu me sentisse menos culpada.

Mal consegui me arrastar até o banheiro e, ao chegar lá, tive um trabalhão para me obrigar a tomar banho.

Meu quarto estava congelando, não consegui achar calcinhas limpas e não passara nenhuma roupa, portanto fui obrigada a usar as mesmas roupas que usara para trabalhar na véspera, as quais eu jogara no chão na noite anterior; e também não achei nenhuma calcinha limpa no armário de Karen nem no de Charlotte, então acabei indo para o trabalho com a parte de baixo do biquíni.

Ao chegar à estação do metrô, vi que todos os jornais bons já haviam esgotado e acabara de perder um trem. Enquanto esperava pelo seguinte, achei que devia comprar um pacote de gotas de chocolate na máquina da plataforma e, pela primeira vez, a porcaria de máquina funcionou direito. Comi as gotinhas deliciosas em dois segundos e imediatamente comecei a me sentir culpada, preocupando-me com o fato de que talvez estivesse com algum distúrbio alimentar, para ficar colocando tanto chocolate dentro do estômago assim, logo de manhã cedo.

Fiquei arrasada.

O tempo estava frio e úmido e parecia haver tão pouco de bom no dia que se iniciava que me deu vontade de estar em casa, em minha cama quentinha, assistindo a Richard e Judy,* enchendo-me de batatas fritas e biscoitos, com pilhas de revistas coloridas do lado.

Mesmo que Megan tivesse dormido apenas por cinco minutos a noite inteira, ela conseguia se levantar a tempo de passar a roupa com que ia para o trabalho. E se não tivesse nenhuma calcinha limpa, conseguia sair de casa com antecedência, a fim de dar uma passada em algum lugar para comprar calcinhas novas. Não que fosse possível Megan ficar sem calcinhas limpas, porque ela sempre lavava as roupas todas muito antes de sua gaveta de calcinhas ficar vazia.

Mas os australianos são assim mesmo. Organizados. Trabalhadores. Capazes.

O dia prosseguia sem novidades. De vez em quando, fantasiava que ia acontecer um desastre aéreo igual ao que houve na cidade de Lockerbie, e que um avião ia despencar do céu bem em cima do meu escritório. De preferência bem em cima da minha mesa, só para garantir. Eu não ia mais precisar ir para o trabalho durante séculos. Poderia estar morta, é claro, mas e daí? Mesmo assim, continuava sem precisar ir trabalhar.

A porta da sala do Sr. Simmonds ficava se abrindo a toda hora, ele saía pisando duro com a bunda balançando e jogava alguma coisa na minha mesa, ou na de Meredia, ou na de Megan, e gritava: “quarenta e oito erros só nesta folha! Você está melhorando!", ou “qual de vocês anda comprando ações do Liquid Paper?", ou algo desagradável desse tipo.

Ele jamais era cruel com Hetty, porque tinha medo dela. Sua elegância servia para lembrar ao chefe que ele era apenas um garoto da classe média que subira um pouco na vida, mas ainda usava ternos de tecido sintético.

Mais ou menos às dez para as duas, quando eu estava quase cochilando na mesa enquanto lia um artigo a respeito de como o café na verdade pode ser muito bom para a saéde, de novo, e Meredia estava roncando baixinho na mesa dela, com uma imensa barra de chocolate ao alcance da mão, um pequeno drama explodiu no escritório. A retumbante previsão de Megan começou a se tornar real.

De certo modo...

Megan entrou de repente, cambaleando, com o rosto branco como o de quem viu um fantasma e sangue escorrendo pela boca.

-Megan! - berrei, alarmada, pulando da cadeira. - O que houve com você?

-Ahn? Que foi? - perguntou Meredia, acordando com um solavanco, meio confusa, com um fino fio de baba pendendo do lado esquerdo da boca.

-Não foi nada - respondeu Megan, mas parecia hesitante, e se sentou sobre a minha mesa. O sangue escorria pelo queixo e pingava na blusa.

-Preciso chamar uma ambulância - continuou Megan.

-Nossa, claro que não! - disse eu, em pânico, entregando-lhe um monte de lenços de papel, que ficavam empapados de sangue no mesmo instante. - Deixe que eu faço isso! É melhor você descansar um pouco aqui. Meredia, mexa esse rabo gordo e me ajude a recostá-la um pouco!

-Não, não é para mim, idiota - disse Megan, irritada, afastando Meredia para longe dela. - É para o cara que voou da bicicleta e aterrissou em cima de mim.

-Ai, meu Deus! – exclamei. – Ele está muito machucado?

-Não - respondeu Megan, lacônica -, mas garanto que vai ficar depois que eu acabar com ele, ah, vai. Vão precisar de um saco preto para levá-lo, e não de uma ambulância.

-Onde ele está? - quis saber Meredia.

-Bem aí na frente, caído na rua, atrapalhando o tráfego - respondeu Megan.

Ela estava, realmente, muito revoltada.

-Alguém esta cuidando dele? - perguntou Meredia, com um lampejo de cobiça nos olhos.

-Um monte de gente! - berrou Megan. - Vocês, ingleses, adoram um bom acidente, não é?

-Bem, é melhor eu ir até lá para dar uma olhada nele, mesmo assim - disse Meredia, arremessando-se pesadamente em direção a porta. - Pode ser que ele esteja em estado de choque, e posso cobri-lo com o meu xale.

-Não precisa não - reclamou Megan, com o sangue brotando enquanto falava. - Alguém já jogou um casaco em cima dele.

Mas Meredia já se fora. Ela sabia reconhecer quando uma oportunidade batia na sua porta. Embora tivesse um rosto bonito (apesar de muito gordo), fazia pouco sucesso com os homens. Os únicos homens que regularmente a perseguiam eram aqueles que tinham uma "quedinha" por mulheres altamente obesas.

E, como Meredia costumava dizer, com dignidade, "quem quer um homem que só a deseja por causa de seu corpo?".

Só que a alternativa era quase tão ruim quanto isso, na minha opinião. Ela gostava de conhecer homens quando eles estavam se sentindo vulneráveis, tanto emocional quanto fisicamente; cuidava deles, tornava-se indispensável, oferecia todo o apoio que uma pessoa fragilizada poderia precisar.

O único ponto fraco dessa tática é que, no instante em que eles melhoravam o bastante para andar com as próprias pernas, era exatamente isso que faziam. Davam no pé e fugiam dos abraços amorosos de Meredia com o máximo de velocidade que suas pernas recém-curadas permitiam.

-Bem, é melhor eu cuidar deste caos aqui - disse Megan, limpando a boca com a manga da blusa.

-Não seja ridícula! - exclamei. - Você vai ter que levar uns pontos.

-Não, nada disso - retrucou ela, com cara de deboche -, isso não foi nada. Você já viu o que as lâminas de uma colhedeira de grãos podem fazer com os braços de um homem quando...

-Ai, deixe de ser tão... tão... australiana! - exclamei. – Você precisa levar pontos. Precisa ir até o hospital. Vou com você.

Se ela achava que eu ia perder a oportunidade de ficar uma tarde inteira longe do trabalho, podia tirar o cavalinho da chuva.

-Não, é claro que você não precisa ir comigo - disse, com cara azeda. - O que você acha que sou? Uma criança pequena?

Nesse instante, a porta do escritório se abriu e Hetty entrou, voltando do almoço. Pareceu adequadamente estarrecida diante da mostra de Apocalipse Now que tomara conta do rosto de Megan.

Dois segundos depois, o Sr. Simmonds também chegou, igualmente vindo do almoço. Almoçaram separados, era o que ele parecia peculiarmente interessado em demonstrar. Parece que os dois tinham se encontrado por acaso na porta do prédio, ao voltar do almoço. Não que alguém estivesse ligando para isso.

Ele também pareceu estarrecido. Estava obviamente preocupado o sangue de Megan que estava sendo derramado, mas acho que ele ainda estava mais preocupado com o lugar onde o sangue de Megan estava sendo derramado. Sobre as mesas e pastas e telefones e cartas e documentos do seu pequeno império precioso.

Disse que, evidentemente, era melhor que Megan fosse até o hospital, e é claro que eu devia ir com ela também, e quando Meredia voltasse para avisar que a ambulância chegara, poderia ir ate lá, junto conosco. Quanto a Hetty, era melhor que ela ficasse, porque ele precisava de alguém para segurar as pontas ali no forte.

Enquanto eu desligava alegremente o meu computador e pegava casaco, de repente me ocorreu que, seja o que for que o Sr. Simmonds queria que Hetty segurasse, certamente não era o seu forte.

 

Ao entrarmos na ambulância, não havia lugar para Meredia. Senti mal-estar por causa daquilo. Só que com todo o equipamento, os dois para-médicos, o ciclista ferido, Megan e eu, simplesmente não sobrava lugar para colocar uma mulher do tamanho de um elefante. Sem se deixar abater, ela avisou que ia pegar um táxi e se encontraria conosco lá.

Enquanto saíamos do local do acidente, me senti assim como uma espécie de pop star, talvez por causa das janelas fumê e a pequena multidão de curiosos que olhavam para nós.

Todos estavam relutantes em ir embora, agarrando-se aos minutos finais da empolgação causada pelo acidente, antes de voltar a cuidar de suas vidas, desapontados por ver o drama se encerrar e ainda mais desapontados por ninguém ter morrido.

-Ele parecia estar bem, não parecia? - comentou um transeunte com outro.

-Parecia - foi a resposta entristecida.

 

Passamos horas sentados em cadeiras duras, no ambulatório de acidentados completamente lotado, sobrecarregado de vítimas e enlouquecido. Gente com ferimentos muito piores do que os de Megan ou os de Shane (o ciclista de quem, a essa altura, já estávamos íntimos) se sentava conosco, igualmente à espera, com firme resignação, segurando no colo os membros ou órgãos que haviam perdido e conseguira recuperar. Macas com gente morrendo passavam por nós, sendo empurradas a toda velocidade. Ninguém sabia informar o que estava acontecendo, nem quando Megan e Shane iam ser atendidos. A máquina de café não estava funcionando. A lanchonete estava fechada. O lugar estava congelando.

-Pensem só... - Fechei os olhos, em absoluto êxtase. – Nós poderíamos estar no escritório agora.

-É mesmo - suspirou Megan, com pedaços de sangue seco despencando do rosto enquanto falava. - Que sorte a nossa, não é?

-Puxa. - Sorri. - Estava me sentindo tão infeliz hoje cedo.Mal sabia que esta imensa curtição estava a caminho.

-Espero que me atendam logo - disse Shane, parecendo ansioso e confuso. - Porque eles estão esperando estes documentos lá no escritório central. Falaram que era urgente. Alguém viu o meu rádio?

Shane era um mensageiro e estava cumprindo uma missão de entrega, quando desviou de mau jeito e atropelou Megan.

Ele continuou ali, cochilando, e de vez em quando se sacudia, assustado, e voltava a falar da entrega urgente no escritório central. Megan e eu trocamos olhares de resignação quando ele tocou no assunto pela décima vez, enquanto Meredia sorria para o rapaz, como se ele fosse um garotinho. Aos poucos, começamos a achar que talvez ele não fosse um palerma total e tivesse realmente sofrido uma concussão cerebral.

A não ser por essas rajadas regulares de Shane, a conversa era superficial.

-Bem, olhe pelo lado bom - sorri para Megan, referindo-me a sua boca mutilada. - Você conseguiu o corte que lhe prometeram. Só que aposto que não imaginava que seria um corte nos lábios.

Diante disso, Meredia se levantou de um salto, como se tivesse levado um tapa nas costas, e agarrou meu pulso, enfiando-me as unhas.

-Meu Deus - sussurrou ela, fitando um ponto a sua frente, com um brilho peculiar nos olhos. Um brilho de loucura, essa é a palavra mais apropriada. Um brilho louco nos olhos.

-Ela tem razão - disse, ainda com a voz sussurrada e continuando a olhar para o ponto a meia distância. - Meu Deus, ela tem razão!

-Eu tenho nome - reclamei, aborrecida com as suas caretas. E o meu pulso doía.

- Ei, é verdade, você tem razão - disse Megan, começando a rir. – Aii!... - gemeu ela quando viu que a gargalhada fizera o corte começar a sangrar de novo.

-Que ruptura - continuou ela, rindo muito, com o sangue jorrando pelos lados do rosto como se fosse as cataratas do Niágara. Foi mesmo, consegui o meu grande corte. Exatamente como ela previu. Só que não consigo ver o que pode me acontecer de bom a partir deste fato.

-Talvez as coisas só comecem a ficar mais claras com o tempo - disse Meredia, com a voz misteriosa, lançando olhares mal disfarçados para Shane e piscando sugestivamente para Megan, antes de apontar com a cabeça de novo na direção de Shane.

-Se é que você me entende... - continuou Meredia, aumentando a ênfase.

-Sim, acho que entendo - riu Megan, com descontração.

Eu não tinha certeza se Meredia estava pensando em Shane para si mesma ou para Megan, mas, pelas experiências do passado, achei que Meredia o queria para si mesma. Aquela situação tinha todo o jeito dela.

Embora, por direito, eu achasse que o rapaz deveria ficar com Megan. Não fora ela que havia amenizado a sua queda? Encarara todo aquele trauma de forma tão corajosa que merecia um prêmio.

-Com isso, só falta a Hetty, além de você, Lucy - disse Megan. - Logo, logo, vai ser a sua vez de ver a previsão se tornar realidade.

-As palavras "saci" e "cruzar as pernas" significam alguma coisa para você? - perguntei, rindo.

-Ah, você parece São Tomé - reprovou Meredia. - Mas tem que admitir que isto tudo é muito significativo.

-Não, não acho. - respondi. - Não sejam tolas. Podemos ajustar qualquer fato que aconteça para encaixá-lo nas previsões que ouvimos, se quisermos.

-Tanto ceticismo em alguém tão jovem - comentou Meredia, balançando a cabeça com tristeza.

-Alguém viu o meu rádio? - grasnou Shane, voltando ao assunto. - Preciso falar com o meu supervisor.

-Não, não, não, querido, acalme-se, esta tudo bem - disse Meredia, confortando-o enquanto forçava a cabeça dele a repousar em seu ombro.

Ele resmungou uma espécie de protesto abafado, mas não adiantou nada.

-Espere só - me avisou Meredia, de forma ameaçadora, falando por cima da cabeça confusa de Shane. - Você vai ver. Tudo vai se tornar realidade. E então você vai se arrepender.

Sorri de forma resignada para Megan, na esperança de que ela me retornasse o sorriso, porém, para meu grande susto, ela não o fez. Estava muito ocupada, balançando a cabeça em sinal de concordância com Meredia.

Caramba! Pensei, sentindo o estômago se apertar com o choque. Será que o cérebro dela poderia ter sido afetado pelo acidente? Isto é, Megan era possivelmente a pessoa mais descrente que eu já conhecera na vida, incluindo a mim mesma, e eu tinha orgulho de possuir os maiores índices de descrença. Havia dias em que eu era capaz de deixar no chinelo os principais descrentes do mercado.

Megan, assim como eu, era tão descrente em tudo que nem mesmo se empolgava com Daniel. "Ele não me engana, com os modos educados e aquela beleza toda", disse, após vê-lo pela primeira vez.

O que acontecera com ela?

Evidentemente, ela não podia achar que as previsões dela e as de Meredia haviam se concretizado, não é? E o que é pior, ela não podia achar que, por causa daquilo, as previsões de Hetty e as minhas iam se concretizar também, não é?

 

Finalmente, quando acabou o estoque de vítimas de infarto e outras pessoas à beira da morte no ambulatório, as enfermeiras deram alguns pontos no rosto de Megan e falaram que Shane não tinha concussão cerebral alguma, estava só se fazendo de vítima.

E fomos, afinal, todos liberados.

-Onde você mora? - perguntou Meredia a Shane, ao chegarmos ao estacionamento do hospital.

-Greenwich - disse ele, cansado.

Isso ficava ao sul de Londres. Muito ao sul de Londres.

-Que sorte - disse Meredia, com rapidez. - Podemos tomar um táxi para casa, juntos.

-Mas... - pensei em protestar, lembrando a Meredia que ela morava em Stoke Newington, que ficava a nordeste de Londres, muito longe de Greenwich.

Ela me fitou com um olhar assassino, que matou meus palpites na mesma hora.

-Mas eu preciso pegar a minha bicicleta - disse Shane, afastando-se, assustado - e também tenho que entregar estes documentos.

-Não seja tolo - disse Meredia, cheia de sorrisos. - Você pode fazer tudo isso amanha. Vamos agora! Boa-noite, meninas, vejo vocês amanha, no escritório. Se eu estiver conseguindo andar murmurou, meio de lado, mas alto o bastante para Shane ouvir e franzir as sobrancelhas.

-Vocês entendem o que quero dizer, não entendem? - E olhou com malícia, gesticulando na direção da parte que ficava abaixo do seu umbigo. E com uma piscada final, muito significativa, lá se foi ela, arrastando o aterrorizado Shane pelo braço.

Ele ainda olhou para trás, de forma suplicante, para Megan e para mim, e o seu rosto formou um imenso pedido de socorro, mas não havia nada que pudéssemos fazer por ele.

Um cordeiro inocente ia ser sacrificado.

 

No dia seguinte, o prédio ficou em polvorosa quando Megan e Meredia notificaram a todas as pessoas do mundo inteiro que eu ia me casar. Na verdade, elas não contaram a todas as pessoas do mundo inteiro, avisaram apenas Caroline, a recepcionista da empresa. Só que isso era tão eficaz, provavelmente até mais eficaz, na verdade, do que contar a todas as pessoas do mundo.

Meredia e Megan haviam decidido, não obstante a minha falta de namorado, que as previsões da Sra. Nolan para mim iam todas se tornar realidade, da mesma forma que as previsões delas.

É claro que elas, mais tarde, se desculparam, e disseram que não tinham feito aquilo com má intenção, que estavam só brincando etc. etc., mas, a essa altura, o mal já estava feito e a idéia já fora plantada na minha cabeça, e comecei a achar que talvez um namorado fosse uma coisa legal, uma alma gêmea, alguém com quem pudesse me sentir segura, alguém com quem pudesse ter intimidade.

Isso reabriu antigos anseios. Comecei a desejar que alguma coisa acontecesse na minha vida, o que era sempre um erro.

Só que tudo aquilo ainda estava muito longe de mim quando o despertador tocou, e me senti péssima na mesma hora.

A única coisa boa é que era sexta-feira.

Quando acordei, estava com tudo tão desorganizado quanto na véspera. Ainda não tinha colocado minhas roupas para lavar e, portanto, continuava sem calcinhas limpas. Tive de usar uma cueca de Steven, que ele deixara no meu quarto quando o forcei a cair fora de modo inesperado, umas três semanas antes. Eu a tinha lavado, com a vaga intenção de devolvê-la para ele e, por isso, estava limpa. Pelo menos isso.

Na estação do metrô, a máquina de chocolate foi bem cretina. Funcionou... de novo! As máquinas me odiavam. Ela cuspiu um tablete com frutas e nozes, e não tive força de vontade suficiente para não comê-lo. Estava ficando a cada instante mais convencida de que estava sofrendo de algum distúrbio alimentar.

As gotas de chocolate tinham só cento e setenta calorias, enquanto um tablete de frutas com nozes tinha duzentas e sessenta e sete. Ou será que eram duzentas e sessenta e nove? Enfim, sei que tinha mais calorias. Eu estava piorando, em vez de melhorar. No dia seguinte, provavelmente, ia tentar pegar um daqueles tabletes gigantescos, tamanho família, na máquina, meditei, e dali a mais uma semana ia estar devorando uma caixa de dois quilos de bombons antes do café da manhã.

Finalmente cheguei ao trabalho e estava muito, muito atrasada, mesmo para os meus padrões.

Ao passar correndo pela recepção, quase fui derrubada pelo Sr. Simmonds, que ia em alta velocidade na direção do toalete. Sua bunda ia correndo uns três metros atrás dele, tentando acompanhar sua pressa. Ele pareceu nervoso, agitado, e seus olhos estavam um pouco vermelhos. Na verdade, se achasse que aquele homem era capaz de emoções humanas, teria jurado que ele estava chorando. Alguma coisa obviamente o deixara chateado.

Meu astral melhorou.

Sorri alegremente para Caroline, a recepcionista, porque a minha vida valia bem mais do que não fazê-lo. Ela ficava ofendida à toa, e ia segurar todos os meus telefonemas pessoais se achasse que eu a esnobara. Ela me retribuiu a mesma alegria com um sorriso. Ao passar correndo, ouvi quando me disse algo. Na verdade, a frase que ela me lançou pareceu ser, estranhamente, "meus parabéns!", mas eu estava ansiosa demais para descobrir qual o desastre que se abatera sobre o Sr. Simmonds para parar.

Entrei voando no escritório, não mais preocupada com o atraso. O Sr. Simmonds, pelo jeito, tinha peixes maiores para fritar.

As marcas roxas haviam surgido de forma magnífica em Megan, e um curativo branco cobria o lado direito do seu rosto, perto do maxilar.

Parei na mesma hora quando reparei que Megan e Meredia não estavam brigando. Na verdade, a imagem das duas me deixou ainda mais confusa, pois conversavam uma com a outra de forma civilizada.

Que estranho, pensei. Algum tipo de cessar-fogo devia estar em andamento. Elas estavam juntas em volta dos biscoitos. O cantinho dos biscoitos era uma área muito popular para contatos. Sussurravam uma com a outra de modo furtivo.

Era pouco provável que estivessem conversando sobre os ferimentos de Megan ou a vida sexual de Meredia. Era preciso um evento muito maior do que qualquer um desses dois para unir Megan e Meredia.

O que significava que alguma coisa estava acontecendo. Ótimo! Meu astral melhorou mais ainda. Eu adorava um pouco de emoção. Talvez o Sr. Simmonds tivesse sido demitido. Ou talvez a sua mulher o tivesse abandonado. Alguma coisa boa assim, eu esperava.

Dei uma olhada em volta, por todo o escritório. Onde estava a eficiente Hetty?

-Lucy! - exclamou Meredia, de forma dramática. Como quase sempre fazia. - Graças a Deus você chegou! Temos uma coisa que você precisa ouvir.

-Que foi? - quis saber, com um arrepio de expectativa percorrendo-me a espinha. - É com você, Meredia? Você se deu bem com Shane?

Uma sombra fugaz passou pelo rosto de Meredia, que disse:

-Depois falamos a respeito disso. Não, a historia tem a ver com a gente, aqui dentro.

-Sério? - arfei de excitação. - Logo vi que devia ter acontecido alguma coisa... Acabei de passar pelo Ivor Veneno no saguão e ele estava...

-Lucy, é melhor você se sentar - interrompeu Megan.

-O que houve? - quis saber, absolutamente morta de curiosidade.

-Aconteceu uma coisa - disse Meredia, em um sussurro dramático, feito para criar clima. - Uma coisa que você deve saber.

-Bem, se eu devo saber, por que vocês não contam logo de uma vez? - quase gritei.

-É a Hetty - disse Megan, com ar solene, pronunciando as palavras pelo canto da boca que não estava machucado.

-Hetty? - assobiei, incrédula. - Mas o que é que a Hetty tem a ver com o Ivor Veneno? Ou comigo? Ai, meu Deus, vocês não vão me dizer que ela está tendo um caso com ele, vão?

-Não, não, não - respondeu Meredia, estremecendo. – Não, é uma coisa boa. Ela não vem trabalhar por uns dias, porque aconteceu uma coisa com ela.

-Bem, então vocês se incomodariam de me contar o que é essa coisa? - perguntei, rabugenta. - Ou vou ter que ficar sentada aqui o dia todo, esperando vocês desfiarem a história?

-Nossa! Tenha um pouco de paciência! - aconselhou Meredia, não muito satisfeita.

-Conte logo a ela - disse Megan com a boca torta, parecendo um gângster.

-Contar o quê? - perguntei, como já era de esperar.

-Hetty... - começou Meredia. E fez uma pausa. Só para fazer suspense. Cristo, como ela era irritante!

-Hetty... - repetiu. Outra pausa.

Fiquei me controlando para não gritar.

-Hetty encontrou o grande amor de sua vida - entoou Meredia, por fim.

Seguiu-se um silêncio. Daria para ouvir uma pluma cair no chão.

-Sério? - consegui articular, com a voz rouca.

-Foi o que você ouviu - confirmou Meredia, com um sorriso convencido. Olhei para Megan. Esperava um pouco de sanidade e normalidade. Mas ela simplesmente balançou a cabeça para a frente e deu o mesmo sorriso convencido.

-Ela encontrou o grande amor da vida dela, abandonou Dick e vai morar com Roger, de imediato - completou Meredia.

-E Ivor Veneno ficou com o coração partido. - Megan soltou uma gargalhada, dando um tapa na coxa magra e dourada.

-Não seja ridícula - disse eu, com ar distante. - Ele nem tem coração.

Explodiram mais gargalhadas de Megan e Meredia, mas não consegui me juntar a elas.

-Acho que ele tinha o maior tesão pela Hetty - disse Megan. - Argh, coitada dela, imagine só! Ele devia andar por ai, para cima e para baixo, com o pau duro.

-Cale a boca, Megan - implorei -, senão vou acabar vomitando!

-Eu também - disse Meredia.

-Então, deixe ver se entendi - disse eu, com a voz fraca. - Roger é esse outro cara?

-Sim - sorriu Meredia.

-Mas a Hetty não faz esse tipo de coisa - disse eu.

Eu estava chateada e confusa. Isto é, Hetty realmente não fazia esse tipo de coisa.

Bem, pelo menos ela não costumava fazer, disso eu tinha certeza. Estava tudo errado. Hetty era estável, responsável, confiável, inabalável e todas as outras palavras terminadas com "ável". Não ficava por aí conhecendo o grande amor da sua vida, abandonando o marido e esse tipo de coisa. Ela não era assim.

Eu me senti tão angustiada e desorientada quanto me sentiria se a Terra começasse a girar para o lado oposto e o Sol nascesse no oeste, em vez de no leste, ou se eu deixasse uma torrada tombar da mão e ela caísse no chão com a manteiga virada para cima.

Hetty largar o marido contradizia tudo aquilo em que eu acreditava como verdade absoluta. As fundações do meu universo ficaram abaladas.

-Você não ficou feliz por ela? - perguntou Meredia.

-Quem é esse Roger? - perguntei, de repente. - Quem é esse grande amor da vida dela?

-Espere só até ouvir - respondeu Meredia, saboreando a informação.

- Sim, escute só - interrompeu Megan, também sentindo um gostinho especial.

-O grande amor da vida dela é, nada mais, nada menos, do que o irmão de Dick - explicou Meredia, com um floreio.

-O irmão de Dick? - perguntei, em um murmúrio. As coisas estavam ficando mais bizarras a cada instante. - Mas... o que aconteceu? Ela já conhecia o sujeito por todos esses anos e, subitamente, descobriu que o ama?

-Não, não, não... - explicou Meredia, sorrindo para mim como se eu fosse uma criança levada. –É tão romântico! Ela jamais o tinha visto, até uns três dias atrás, e assim que os dois puseram os olhos um no outro, voila!, um coup de foudre, l'amour, je t'adore,hã... humm... la plume de ma tante... - e parou subitamente, pois o estoque de frases em francês para descrever o amor de Hetty havia acabado.

-Mas, como é que pode ela nunca ter se encontrado com ele? - perguntei. - Ela está casada há anos!

E então, uma idéia me assaltou.

-Ah, não - disse eu, com temor. - Não acredito que tenha sido desse jeito.

-De que jeito? - disseram Megan e Meredia, em uníssono e ofegantes.

-Por favor, não me digam que ele é o irmão mais novo de Dick, que andou viajando pelo exterior, talvez no Quênia, ou em Burma, ou outro lugar assim, durante os últimos vinte anos, como um personagem do livro Os Últimos Dias do Rajá, e que voltou de repente, todo bronzeado, com os cabelos louros soltos, ficou desfilando por aí usando um terno de linho branco, sentando em cadeiras de ratã, bebendo gim e olhando para Hetty com os olhos lânguidos do tipo "vamos para a cama". Se for isso, eu nao agüento. Seria o cúmulo do clichê.

-Francamente, Lucy - ralhou Meredia -, você tem muita imaginação, sabia? Não, não foi nada disso.

-Ele não a presenteou com um bracelete de marfim? - perguntei.

-Bem, se ele fez isso, ela não mencionou - afirmou Meredia, meio em duvida.

-Ufa. - suspirei em sinal de alívio. - Ótimo!

-É o irmão mais velho de Dick - informou Meredia.

-Ótimo! - repeti. - Assim a coisa já foge um pouco do lugar-comum.

-E Hetty jamais se encontrara com ele porque parece que havia uma espécie de briga dentro da família - continuou Meredia. - Dick e Roger ficaram sem se falar por muitos anos. Em compensação, agora, se transformaram em grandes amigos... embora, pensando bem, talvez não, já que Hetty se apaixonou pelo outro...

Fiquei paralisada, olhando para as caras de felicidade e empolgação das duas.

-O que há de errado com você, sua vaca desolada? – quis saber Megan.

-Não sei - respondi. - Não acho certo.

-Claro que é - cantarolou Meredia. - A cartomante falou que ela ia encontrar o grande amor da vida dela, e agora ela encontrou mesmo!

-Mas está tudo errado - disse eu, desesperada. - Já havia algo errado com Hetty e Dick. Estava na cara, pelo jeito que ela ficou chateada no caminho de volta da Sra. Nolan.

Meredia e Megan se sentaram, caladas e de cara feia.

-Em vez de resolver o problema com o marido - continuei -, ela acreditou nas histórias da carochinha do primeiro charlatão ou, no caso, da cartomante que apareceu.

-Ela não é uma charlatã - interrompeu Meredia, zangada. - Eu não a vi mudar de cor!

-Isso é camaleão, não charlatão - disse eu, exasperada. - Enfim, ela ouviu a cartomante prever que ia encontrar o grande amor da vida dela, então agarrou o primeiro homem que encontrou, um homem que não teve sequer a decência de usar um terno de linho e se sentar em uma cadeira de ratã e, sem pensar nem sequer por um segundo nas conseqüências, Hetty resolveu fugir com ele!

-Por falar nisso - acrescentei -, acho que estava rolando urn flerte, ou algo assim entre ela e Ivor Veneno, pelo jeito que ele está arrasado.

E fiz uma pausa, para o caso de uma das duas precisar vomitar. Elas estavam pálidas, suadas, e esperei um pouco, antes de continuar:

-Gente, não fizemos nada de errado em consultar a cartomante, mas não era para levar as previsões a sério. Era só para nos divertirmos um pouco, e não para conseguirmos uma solução para os problemas verdadeiros.

As duas continuaram caladas.

-Vocês não enxergam isso? - implorei, diante delas, mas me evitaram e desviaram os olhos para analisar os sapatos. - Isso não é o certo para a Hetty.

-Como é que você pode saber? - perguntou Meredia. - Por que você não tem um pouco de fé? Por que não acredita na Sra. Nolan?

-Porque Hetty tem problemas reais com o seu casamento respondi -, e eles não vão ser resolvidos só porque ela quer acreditar que encontrou o grande amor de sua vida. Isso é escapismo.

-Você está é apavorada - soltou Megan de forma súbita e passional, com a boca torta. Ela parecia zangada e seu rosto afogueado mostrava grande emoção. Com as marcas roxas e o curativo, aquilo parecia uma cena de Sons and Daughters ou Home and Away.*

-Apavorada com o quê? - perguntei, surpresa.

-Está apavorada para admitir que as previsões deram certo para mim, para Meredia e Hetty, porque então vai ser obrigada a admitir que a sua previsão também vai dar certo.

-Megan - disse eu, já desesperada -, o que há com você? Estou contando com você para ser a voz da sanidade por aqui, a voz da razão!

Meredia se encrespou toda, zangada, e seu corpo pareceu inchar de indignação, o que foi algo fantástico, pois ela normalmente já parecia estar a ponto de explodir.

-OIhe, Megan - continuei -, você não pode estar realmente acreditando em toda essa baboseira sobre previsões! Diga que não acredita!

-Os fatos falam por si mesmos - disse ela, de forma arrogante.

-É... - concordou Meredia, com desdém, agora mais segura, depois que viu que Megan estava do seu lado. Chegou a fazer beicinho. - Isso mesmo! Os fatos falam por si mesmos. Portanto, é melhor encarar a verdade. Você vai se casar!

-Nao agüento mais ouvir essa besteirada, - disse eu, bem calma. - Não quero brigar com nenhuma de vocês por causa disso, mas, no que me diz respeito, este assunto está encerrado.

As duas trocaram um olhar engraçado (de preocupação?... culpa, talvez?), que preferi ignorar.

Sentei-me à mesa, liguei o computador, resisti bravamente a súbita e forte tentação de me enforcar e dei início ao meu dia de trabalho.

Depois de algum tempo, reparei que as duas continuavam sem fazer trabalho algum. Não que isso fosse estranho, especialmente se considerando que o Sr. Simmonds ainda não retornara. Mas, em vez de ficarem dando telefonemas pessoais para a Austrália, folheando a Marie Claire ou comendo o almoço antes da hora (coisa que Meredia fazia, quase todos os dias, por volta de dez e meia da manhã), elas simplesmente estavam sentadas, me olhando de um jeito esquisito.

Parei de digitar e olhei para elas.

-O que foi? - perguntei, exaltada. - Por que vocês duas estão tão estranhas hoje?

-Conte a ela - murmurou Meredia para Megan.

-Eu não - disse Megan, com um risinho sombrio. - Eu não. Não mesmo! Foi idéia sua, então você é que vai ter que contar a ela.

-Sua piranhazinha! - exclamou Meredia. - Aquilo não foi idéia minha. Foi idéia nossa!

-Vá à merda! - berrou Megan. - Foi você que começou com toda essa história!...

Meu telefone tocou, interrompendo a troca de amabilidades. Consegui atender, sem tirar o olho das duas, que já estavam avançando com tudo, uma contra a outra. Eu detestava perder uma boa briga, e sempre podia contar com Meredia e Megan para esse tipo de emoção. Era engraçado ver o quanto o período de trégua e cordialidade entre elas tinha sido curto.

- Alô? - atendi.

- Lucy - disse uma voz.

Ai, meu Deus! Era uma das amigas com quem eu dividia o apartamento, a Karen. Ela parecia chateada. Eu devia ter esquecido de deixar o cheque para pagar o gás, ou o telefone, ou algo assim.

-Oi, Karen - disse bem depressa, tentando esconder o nervosismo. - Olhe, desculpe eu ter esquecido de deixar o cheque para a conta do telefone. Ou foi o gás? É que cheguei muito tarde em casa ontem à noite e...

-Lucy, isso é verdade mesmo? - interrompeu ela.

-Claro que é verdade - repliquei, indignada. - Já passava de meia-noite quando entrei e...

-Não, não, não - disse ela com impaciência. - Estou perguntando a respeito do seu casamento.

A sala se inclinou ligeiramente para o lado.

-Como é que é? - disse baixinho. - Quem foi que contou isso para você?

-A telefonista - explicou Karen. - E saiba que fiquei muito decepcionada por saber da notícia através dela. Quando é que você ia contar para mim e para Charlotte? Eu achava que éramos as suas melhores amigas... Agora, vamos ter de colocar um anúncio para arrumar uma nova pessoa, e nós nos damos tão bem... E se a gente conseguir uma pessoa horrível, que não beba e não conheça nenhum gato? Não vai ser a mesma coisa sem você, e nós...

Ela continuava a falar, melancólica.

Megan e Meredia ficaram muito quietas de repente. As duas estavam sentadinhas, completamente imóveis, com cara de medo e culpa.

Cara de culpa? Karen falando sobre o meu casamento? A insistência de Megan e Meredia sobre as previsões serem verdadeiras? A Sra. Nolan prevendo que eu ia me casar?

E aquela culpa estampada no rosto delas!

 

De repente, a ficha finalmente caiu.

Era tão ultrajante que eu mal podia acreditar.

Será que era mesmo possível que, pelo fato de elas acharem que as previsões da Sra. Nolan para Meredia, Megan e Hetty haviam se concretizado, as minhas previsões também estavam destinadas a virar realidade? Seria mesmo possível que aquelas duas idiotas haviam saído por aí contando a todo mundo que eu ia me casar, como se aquilo fosse um fato, e não a previsão de uma taróloga?

A raiva tomou conta de mim. E a perplexidade. Como é que elas podiam ser tão boçais?

Mas quem era eu para julgar? Minha vida era uma sucessão de acontecimentos idiotas, um atrás do outro, entremeados com algumas coisas totalmente ridículas e uma ou duas que beiravam a insanidade. Só que eu tinha a certeza de que jamais faria algo tão idiota quanto aquilo!

Apertei os olhos e depois olhei para elas. Meredia se encolheu toda na cadeira, a covardia em pessoa. (É claro que, quando digo “Meredia se encolheu toda”, estou falando de forma puramente metafórica.) Megan fechou a boca, ou pelo menos um dos lados dela, de forma a provar, com teimosia e descaramento, que ela não era assim tão fácil de amedrontar.

Karen continuava a falar sem parar no meu ouvido, soltando a matraca em alta velocidade:

- ...Acho que a gente poderia até arrumar um homem para colocar no seu lugar, mas e se ele começasse a sentir atração por uma de nós, e aí...

- Karen – disse eu, tentando encaixar alguma palavra no meio da enxurrada.

- ...E ele ia acabar mijando fora do vaso e sujando o banheiro todo, você sabe como os homens são...

- Karen – repeti, um pouco mais alto.

- ...É claro que ele podia ter alguns amigos bonitos, ou quem sabe ele mesmo talvez fosse um gato, mas nós não poderíamos mais ficar circulando pela casa sem roupa, embora, se ele fosse um gato, talvez até quiséssemos fazer isso, para...

- Karen! – berrei.

Ela calou a boca.

- Karen – disse, aliviada e feliz por ter conseguido parar o trem descontrolado dos pensamentos dela. – Não dá para conversar com você agora, mas ligo de volta assim que puder.

- Imagino que seja o Steven – interrompeu ela. – Fico feliz por isso, ele é um cara muito legal. Não sei por que você terminou o namoro com ele, a não ser que quisesse que ele a pedisse em casamento, e então planejou tudo. Se foi assim, você foi muito esperta, Lucy. Não imaginava que você fosse tão esperta, porque...

Desliguei o telefone. Tive de desligar. Não sabia mais o que fazer.

Olhei para Meredia, depois para Megan, e em seguida de volta para Meredia. Então desviei o olhar novamente para Megan, só para mostrar que eu continuava atenta.

Depois de alguns segundos, eu disse:

- Era a Karen – disse, me fingindo de confusa. – Ela me pareceu estar com a impressão de que vou me casar.

- Desculpe – murmurou Meredia.

- Sim, desculpe – acompanhou Megan.

- Desculpá-las pelo quê? – quis saber, com cara amarrada. – Será que vocês poderiam ter a bondade de me contar o que está acontecendo?

Isto é, eu tinha uma idéia já relativamente formada do que estava acontecendo. Só que queria saber a história toda, e também queria deixar as duas na posição pouco confortável de terem de me explicar. De terem de me contar da própria boca, em alto e bom som, na frente de todo mundo, a exata natureza da estupidez das duas. A porta se abriu e Catherine, da sala do diretor, entrou e atirou um papel sobre a bandeja de entrada de documentos.

- Lucy! – exclamou ela. – Que grande noticia, hein? Mais tarde volto aqui para saber de todos os detalhes!

E saiu da sala novamente.

- Mas que po... – comecei a falar.

O telefone tocou.

Era Charlotte, a outra garota com quem eu dividia o apartamento.

- Lucy – disse ela, ofegante. – A Karen acabou de me contar! Quero que saiba que estou superfeliz por você. Sei que a Karen disse que você é uma sacana, por não ter nos contado nada antes, mas você deve ter tido suas razões.

- Charl... – tentei falar. Como acontecera com Karen, porem, não houve jeito de encaixar nada no meio da enxurrada de palavras.

- Lucy, estou tão feliz por você ter conseguido fazer com que as coisas funcionassem na sua vida – continuou ela, matraqueando. – Para ser franca, eu achava que você não ia conseguir. Sei que eu sempre discordava quando você ficava falando que ia acabar virando uma solteirona, morando em uma quitinete com um aquecedor que não funcionava direito e quarenta gatos, mas estava começando a achar que era exatamente isso que ia acontecer com você...

- Charlotte! – interrompi, zangada. Um aquecedor que não funcionava direito, francamente. – Tenho que desligar.

E bati o telefone na cara dela.

Na mesma hora, ele voltou a tocar.

Dessa vez era Daniel.

- Lucy – grasnou ele. – Diga-me que não é verdade! Não se case com ele! Ninguém poderia amar você tanto quanto eu.

Esperei que ele acabasse de falar e mantive a cara bem séria.

- Lucy! – disse ele, depois de algum tempo. – Você está me ouvindo?

- Sim – respondi de forma direta. – Quem lhe contou?

- Chris – disse ele, parecendo surpreso.

- Chris? – berrei. – Chris, o meu irmão?

- Hã... É... – disse o pobre Daniel. – Era segredo ou algo assim?

- Daniel – tentei explicar. – Olhe, não posso explicar tudo agora. Ligo para você assim que puder, o.k.?

- O.k. – concordou ele. – Eu estava só brincando ainda há pouco. Na verdade estou muito conten...

Desliguei.

O telefone tornou a tocar.

- Uma de vocês duas, atenda, por favor – disse, de cara feia.

Meredia pegou o fone.

- Alô – atendeu ela, nervosa.

- Não – disse, olhando com medo para mim. – Ela não pode atender neste momento.

Uma pausa.

- Sim, pode deixar que eu digo – afirmou, desligando.

- Quem era? – perguntei, sentindo que aquilo tudo parecia um sonho.

- Hã... eram os rapazes do almoxarifado. Querem tomar um drinque com você, para comemorar.

- A situação está tão ruim assim? – perguntei, com a cabeça transbordando de horror. – Vocês passaram e-mails para todos os funcionários da empresa? Ou só para algumas centenas dos meus amigos mais chegados? Contem-me: como foi que o meu irmão soube?

- Seu irmão? – perguntou Megan, parecendo alarmada.

Meredia engoliu em seco e disse, nervosa:

- Lucy, nós não mandamos e-mails para ninguém. Juro!

- Não mandamos não – cantarolou Megan, rindo de leve, de uma forma que, espero, para o bem dela, mostrava alivio. – Não contamos a quase ninguém. Só para a Caroline. Para a Blandina também, e...

- Blandina! – exclamei com rispidez. – Vocês contaram para a Blandina. Bem, se contaram para a Blandina, não precisamos de porcaria nenhuma de e-mail! O mundo inteiro já deve estar sabendo. Provavelmente a noticia já chegou a Marte. Na verdade, até a minha mãe já deve estar sabendo.

Blandina era a relações-públicas da empresa. Fofoca era o seu instrumento de trabalho, e também o ar que respirava.

O telefone tornou a tocar.

- É melhor uma de vocês atender – disse em tom de ameaça. – Se for mais alguém me dando os parabéns pelas minhas núpcias iminentes, não vou ser responsável pelos meus atos!

Megan atendeu.

- Alô? – disse ela, com um tremor nervoso na voz.

- É para você – avisou, entregando o fone para mim, quase jogando-o na verdade, como se fosse uma batata quente.

- Megan – sussurrei, mandando que ela tapasse o bocal. – Não quero falar com ninguém. Não vou atender.

- É melhor você atender – disse ela, com ar de derrota. – É a sua mãe.

 

Olhei com ar de súplica para Megan, depois para o fone, depois para Megan de novo.

Aquilo não era um bom sinal. É claro que ainda estava muito cedo para alguém ter morrido naquele dia, não é? E ela definitivamente não estava ligando para bater papo. Minha mãe e eu nunca tivemos um relacionamento do tipo: “vá em frente, mãe, pode deixar que não conto para o papai não; ninguém acreditaria que você já tem uma filha adulta; estou falando sério, esse vestido fica melhor em você do que em mim; posso usar um pouquinho do seu perfume? Você está mais bonita agora do que quando se casou; venha, vamos tomar uns drinques, porque você é a minha melhor amiga”. Não, não tínhamos este tipo de relacionamento. Portanto, aquilo só podia significar que a minha mãe já soubera de toda a historia sobre eu estar para me casar, e eu me sentia relutante em conversar com ela. Para falar a verdade, estava é com medo dela.

- Diga a ela que não estou – sussurrei em desespero para Megan.

Imediatamente ouviu-se uma erupção do outro lado da linha, um ruído que parecia o de dois papagaios discutindo, mas era a voz de minha mãe, berrando que tinha ouvido tudo. Então, atendi.

- Quem morreu, mãe? – perguntei, para ganhar tempo.

- Você! – rugiu, com um senso de humor incomum nela.

- Rá-rá... – disse eu, nervosa.

- Lucy Carmel Sullivan – ela parecia furiosa. – Christopher Patrick acabou de me ligar e me contou que você vai se casar. Se casar!

- Mãe...

- A que ponto maravilhoso nós chegamos, não é, em que eu tenho saber de uma noticia dessas através de fofocas!

- Mãe...

- É claro que fui obrigada a dizer para ele que já sabia da novidade. Eu sabia que este dia ia chegar, Lucy. Sempre soube. Desde menina, você sempre foi leviana e irresponsável. Não podíamos contar com você para nada, a não ser para fazer algo de errado. Só há um motivo para uma mulher jovem se casar com essa correria toda. Isso só acontece quando ela foi burra o bastante para se meter em apuros. Apesar disso, você tem muita sorte de conseguir que o sujeito assuma ficar ao seu lado, embora que tipo de idiota inútil ele deve ser, só Deus sabe...

Eu não sabia o que responder a tudo aquilo, porque a situação era até um pouco engraçada. Havia uma antiga brincadeira em minha família, que dizia que tudo o que eu fazia, não importa o que fosse, minha mãe achava sempre errado. Eu já tinha tanta experiência com a sua desaprovação e o seu desapontamento que aquilo nem me incomodava mais.

Há muitos anos eu desistira de esperar que ela aprovasse algum de meus namorados, apreciasse o apartamento em que eu morava, demonstrasse satisfação com o meu emprego ou gostasse de algum dos meus amigos.

- Você é igualzinha ao seu pai – disse, com tom amargo.

Pobre mamãe! Nada, coisa alguma do que eu fizesse era bom o bastante para ela.

Quando me formei em secretariado, consegui emprego na filial londrina de uma empresa multinacional e, logo no meu primeiro dia de trabalho, a minha mãe me ligou, não para me dar os parabéns nem para me desejar felicidades na carreira, mas para me contar que as ações da companhia haviam despencado dez pontos na bolsa!

- Mãe, me escute e deixe de fazer papel de tola – interrompi, falando alto. – Eu não vou me casar!

- Já entendi. Então vai me envergonhar, me dando de presente um neto ilegítimo! – exclamou ela, ainda parecendo furiosa. – e onde foi que você aprendeu a se dirigir à minha pessoa usando esses nomes? Então eu sou uma tola agora, é?...

(Uns dez anos antes, ela visitara a irmã Francês, em Boston, e voltara com o linguajar cheio de americanismos, que pareciam muito estranhos em contraste com o seu sotaque de Monaghan.)

- Mãe, não estou grávida e não vou me casar! – disse eu bem depressa.

Ela fez uma pausa, confusa.

- Foi uma brincadeira. – Tentei parecer um pouco mais amigável.

- Ah... foi só uma brincadeira... logo vi – e pigarreou, voltando à carga: - No dia em que você chegar aqui em casa e me contar que conheceu um rapaz decente e que vai se casar com você, aí sim vou achar que é brincadeira. Vou morrer de rir da piada. Vou chorar de tanto rir.

Para a minha surpresa, me senti subitamente muito zangada. Sem mais nem menos, fiquei com vontade de gritar com ela que jamais iria até a casa dela para contar que eu ia me casar, que não pretendia nem convidá-la para o casamento.

Evidentemente, o mais engraçado de tudo aquilo era que, se acontecesse a improvável situação de eu acabar me ligando a um homem respeitável, que possuísse emprego e residência fixa, não tivesse ex-mulheres nem ficha na polícia, eu não ia conseguir evitar de ficar exibindo-o para a minha mãe, desafiando-a a tentar achar algum defeito nele.

Porque embora eu às vezes sentisse uma espécie de ódio dela, havia uma parte dentro de mim que queria receber um tapinha carinhoso na cabeça e ouvir: “Boa menina, Lucy!”

- Papai está em casa? – perguntei a ela.

- É claro que o seu adorado pai está aqui – respondeu ela. – Onde mais ele poderia estar? Trabalhando?

- Posso falar com ele, por favor?

Se eu conseguisse conversar com papai, nem que fosse por alguns instantes, ia me sentir um pouco melhor. Pelo menos ia conseguir me consolar, convencendo-me de que não era um fracasso total e que um dos meus pais me amava. Papai era sempre bom nisso, em conseguir me alegrar e fazer pouco caso da mamãe.

- Vai ser difícil falar com seu pai, Lucy – disse ela, com jeito cansado. – Ele recebeu o auxílio – desemprego do governo ontem, e, então, em que estado você acha que ele está?

- Entendo – disse. – Ele está dormindo.

- Dormindo? – bramiu ela, de forma melancólica. – O homem está quase em coma alcoólico. Acorda e volta a dormir em seguida, está assim há vinte e quatro horas! A cozinha está entulhada de garrafas vazias!

Eu não disse nada. Minha mãe era abstêmia radical, e achava que qualquer um que bebia um drinque ocasional era automaticamente alcoólatra. Quem a ouvia falar assim, achava que papai bebia mais que do que Oliver Reed.*

- Então você não vai se casar, afinal? – perguntou minha mãe.

- Não.

- E criou toda esta confusão por nada?

- Mas...

- Bem, vou desligar – avisou ela, antes que eu tivesse a chance de pensar em algo bem mordaz para dizer. – Não posso ficar aqui o dia inteiro jogando conversa fora. Isso é bom para quem pode.

A fúria me inundou. Ela ligara para mim, afinal, mas, antes que eu pudesse gritar isso, ela continuou a falar:

- Eu lhe contei, Lucy, que estou trabalhando em uma lavanderia? – perguntou, mudando, de repente, para um tom de voz mais conciliador. – Três vezes por semana.

- Ah, é?

- E ainda lavo toda a roupa aqui de casa lá, aos domingos e quartas.

- Ah, é?

- Fecharam o minimercado onde eu trabalhava – continuou ela.

- Ah, é?

Eu estava chateada demais para me dar ao trabalho de conversar com ela.

- Então adorei quando consegui esse lugar na lavanderia – continuou. – Esses trocados vêm bem a calhar.

- Ah, é?

- Assim, dividindo o meu tempo entre a limpeza do hospital, os arranjos de flores para São Domênico e a organização dos retiros com o padre Colm, eu tenho me mantido ocupada.

Eu odiava quando ela fazia isso. Era pior do que quando estava azeda e horrível. Como é que eu podia mudar de uma hora para outra e entrar em uma conversa civilizada depois das coisas que ela acabara de me dizer?

- E com você, está tudo bem? - perguntou ela, meio sem graça. “Melhor do que nunca, só por não ver a senhora”, me deu vontade de dizer, mas consegui evitar.

- Está tudo bem – respondi de modo vago.

- Não nos vemos há séculos! – disse ela, em um tom que parecia alegre e um pouco provocante.

- É mesmo.

- Por que não aparece aqui em casa uma noite qualquer, na semana que vem?

- Vamos ver... – respondi, começando a entrar em pânico. Não conseguia imaginar nada mais horrível do que passar uma noite na companhia de minha mãe.

- Quinta-feira – determinou ela, com firmeza. – Até lá o dinheiro do seu pai vai ter acabado, e pode ser que ele esteja sóbrio.

- Talvez.

- Quinta-feira – repetiu ela, de forma definitiva. – Agora tenho que desligar. – Ela tentava parecer bem-humorada e amigável, mas dava para sentir a sua inexperiência no assunto. – Amanhã todos aqueles... yuppies, ou sei lá como eles se chamam, vao vir de suas casas ricas para fazer fila na loja, a fim de levar os elegantes ternos Armada e as camisas de seda para lavar. Você sabia que alguns deles levam até as gravatas paras serem lavadas a seco? Vê se pode!... As gravatas. Não falta mais nada! Bem, que bom para eles, que têm toda essa grana para torrar...

- Bem, mãe, é melhor a senhora desligar então – disse eu, com tristeza.

- Deus a abençoe. Nos vemos na quin...

Bati com o fone no gancho.

- E os ternos são Armani! – berrei para o aparelho.

Olhei para Megan e Meredia com os olhos cheios de lágrimas. As duas haviam ficado sentadinhas, caladas e com cara de bunda durante toda a conversa.

- Viu? Olhem só o que vocês fizeram, suas vacas burras! – disse, surpresa pelas lagrimas quentes de raiva que rolavam pelo meu rosto.

- Desculpe – sussurrou Meredia.

- Sim, Lucy, desculpe – murmurou Megan. – Foi idéia de Elaine.

- Vá se foder, sua piranha! – disse Meredia, entre dentes. – Meu nome é Meredia, e a idéia foi sua.

Ignorei as duas.

Elas saíram de perto, de fininho, chocadas e assustadas de ver como eu ficara zangada. Na verdade, eu ficava zangada com freqüência, só que nunca mostrava. Tinha muito medo de as pessoas não gostarem de mim, por isso quase nunca partia para confrontos. Isso tinha prós e contras. Um dos contras é que, provavelmente, eu estava criando uma úlcera que atravessaria o revestimento do meu estômago antes dos trinta anos. Um dos prós de ser assim é que, nas raras ocasiões em que eu dava vazão à minha raiva, impunha um pouco de respeito.

Queria deitar a cabeça na mesa e dormir. Em vez disso, porem, peguei uma nota de vinte libras na bolsa e a coloquei dentro de um envelope, endereçando-o ao meu pai. Se mamãe não estava mais trabalhando no minimercado, o dinheiro por lá deveria andar mais curto do que de costume.

A notícia de que eu não ia mais me casar se espalhou pela companhia com a mesma rapidez que a versão original, em que eu ia. Havia um fluxo constante de gente chegando ao escritório, sob os mais variados pretextos. Era um pesadelo! Grupos de pessoas ficavam em silencio total, e então prendiam o riso quando eu passava por eles no corredor. Parece que alguém do Departamento de Pessoal começara a passar uma lista recolhendo dinheiro para me dar de presente de casamento, e aconteceu uma briga terrível quando começaram a devolver a quantia, porque os valores que as pessoas exigiam de volta eram muitos maiores do que a contribuição inicial, e, embora a culpa não fosse minha, eu continuava a achar que, de certa forma, era.

Aquele dia horrível parecia que ia durar para sempre, mas, finalmente, chegou ao fim.

Era sexta à noite, e nas sextas à noite era tradicional uma saída para “tomar umazinha” com o pessoal do escritório.

Só que, naquela sexta, não.

Resolvi que ia direto para casa.

Não queria ver ninguém. Decidi levar para casa o embaraço e a humilhação diante da pena que as pessoas sentiam de mim por eu continuar solteira. Já estava cheia, por ter sido a fofoca e a piada do dia.

Felizmente, às sextas à noite, Karen e Charlotte também saíam para “tomar umazinha” com seus respectivos colegas de trabalho.

Como “tomar umazinha” normalmente significava uma média de sete horas de muita bebida, que acabavam nas primeiras horas de sábado em alguma boate anônima para turistas ou em um porão perto do Oxford Circus,* com elas dançando em companhia de homens com ternos baratos que usavam as gravatas enroladas na cabeça, havia uma grande chance de eu ficar com o apartamento todo só para mim.

Fiquei feliz por isso.

Sempre que havia um conflito em minha vida e eu saia perdendo (e normalmente era isso o que acontecia), entrava em hibernação.

Escondia-me das pessoas. Não queria conversar com ninguém. Tentava limitar todo o contato com a raça humana ao telefonema para a pizzaria e ao pagamento ao entregador. E preferia que o entregador ficasse de capacete, porque isso evitava o contato olho no olho.

Depois de um tempo, isso passava.

Após alguns dias, eu geralmente recuperava a energia que precisava para tornar a botar a cara para fora, cair no mundo e lidar com os outros seres humanos. Já conseguira ajustar minha armadura de proteção, de forma que já não era uma pé–no–saco chorosa e miserável. A essa altura, conseguia rir dos meus infortúnios e estimular os outros a fazer o mesmo, só para mostrar o grande espírito esportivo que eu possuía.

 

Ao saltar do ônibus, vi que começara a chover e fazia um frio terrível. Embora estivesse muda de tristeza e louca para chegar ao abrigo representado pela minha casa, passei em algumas lojas junto do ponto de ônibus, a fim de comprar suprimentos para os meus dias de isolamento.

Primeiro, passei na banca de jornais, comprei quatro tabletes de chocolate e uma revista bem colorida, produtos que consegui adquirir sem precisar trocar uma única palavra com o vendedor. (Essa era uma das vantagens de morar no centro de Londres.)

Então, passei em uma loja de bebidas e comprei, com um pouco de culpa, uma garrafa de vinho branco. Senti a desconfortável certeza de que o homem sabia que eu pretendia bebê-la toda sozinha, mas não sei por que motivo fiquei assim tão preocupada com isso, pois ele provavelmente não teria movido um músculo mesmo que me visse ser esfaqueada na fila do caixa, desde que eu lhe entregasse o dinheiro do vinho. Mentalidade de cidade pequena era uma herança muito difícil de perder.

Depois, passei em uma loja de conveniência e, a não ser por uma discussão básica a respeito de sal e vinagre, consegui evitar qualquer contato humano e comprar um saco de batatas fritas.

Em seguida passei na locadora, na esperança de pegar um filme bem Lee e divertido com o mínimo de papo.

Mas o destino não quis que fosse assim.

- Lucy! – chamou Adrian, o dono da locadora, parecendo todo animado e feliz por me ver.

Eu merecia que alguém chutasse o meu traseiro por entrar ali! Esqueci que Adrian ia querer conversar comigo, pois os clientes eram toda a sua vida social.

- Oi, Adrian – sorri, com discrição, na esperança de acalmá-lo.

- Que bom ver você! – gritou ele.

Preferia que ele não tivesse gritado. Tinha certeza de que as outras pessoas estavam todas olhando para mim.

Tentei me fazer menor dentro do discreto casaco marrom.

Bem depressa – muito mais depressa do que planejara originalmente -, achei o filme que queria e o levei até o balcão.

Adrian deu um largo sorriso.

Se eu não estivesse com o astral tão baixo, iria ter de admitir que ele era realmente um doce de pessoa. Um pouquinho entusiasmado demais apenas.

- Então, por onde tem andado? – perguntou, bem alto. – Não vejo você há... sei lá, muitos dias!

Os outros clientes pararam de procurar filmes nas prateleiras e olharam para mim, esperando a minha resposta. Bem, pelo menos foi isso que me pareceu, mas eu estava tão constrangida que chegava a estar paranóica.

Corei de vergonha.

- Então, Lucy, você colocou o pé na vida e foi à luta? – perguntou Adrian.

- Fui – murmurei. (Cale a boca, Adrian, por favor!)

- E o que aconteceu? – quis saber ele.

- Levei um tombo. – E sorri de modo triste.

Ele soltou uma gargalhada.

- Você é muito divertida, Lucy, sabia disso?

Lancei-lhe um sorriso tenso.

Tinha certeza de que os outros clientes estavam todos esticando o pescoço, olhando para mim e pensando: “Ela?... Aquela coisinha insignificante? Tem certeza? Ela não parece muito divertida.”

- Bem, é muito bom tornar a vê-la – anunciou Adrian. – O que está levando para assistir esta noite? Ah, não! – Seu largo sorriso se transformou em cara de nojo e ele quase jogou o filme de volta para mim. – Quatro Casamentos e um Funeral? Não acredito.

- Sim, Quatro Casamentos e um Funeral – insisti, empurrando o filme de volta para ele, por sobre o balcão.

- Mas, Lucy – argumentou, empurrando-o de volta com firmeza para mim -, isso é uma bosta sentimental. Eu sei das coisas. Que tal Cinema Paradiso?

- Já assisti – informei-lhe. – Por recomendação sua. Foi naquela noite em que você não me deixou levar Sintonia de Amor.

- Ahá! – disse ele, com ar de triunfo. – Mas que tal levar Cinema Paradiso – Versão do Diretor?

- Também já vi.

- Jean de Florette? – perguntou ele, com esperança.

- Já vi.

- Cyrano de Bergerac?

- Que versão?

- Qualquer uma.

- Já vi todas.

- A Doce Vida?

- Já vi.

- Algum filme do Fassbinder?

- Não,Adrian – insisti, lutando para não entrar em desespero, mas tentando parecer firme. – Você nunca me deixa levar nada do que quero! Já vi todos os filmes cult e os estrangeiros que você tem na loja. Por favor, por favor, só desta vez, deixe-me assistir a alguma coisa bem leve!

- E que seja falada em inglês! – acrescentei, depressa, antes que ele tentasse achar algum filme leve com som original em sueco.

Ele suspirou.

- Bem, está certo. Vá lá... Quatro Casamentos e um Funeral então. E o que comprou para lanchar mais tarde?

- Hã?... – disse eu, pega de surpresa pela mudança de assunto abrupta.

- Deixe-me ver suas sacolas – pediu ele.

Aquele era o ritual pelo qual o Adrian e eu normalmente passávamos. Certa vez, há muito tempo, ele me confessou que o seu trabalho lhe trazia sensação de isolamento. Contou que jamais fazia as refeições no mesmo horário que todo mundo. E o que o fazia sentir que ainda pertencia ao mundo real era o fato de manter contato com o pessoal que trabalhava no horário comercial, saber como eles passavam as noites e, mais especificamente, o que comiam.

Normalmente eu tinha muita afinidade com ele, mas, naquela noite, eu queria dar o fora dali, me desligar do mundo e ficar sozinha com o meu chocolate e o meu vinho, para poder curtir a ausência total de qualquer ser humano.

Além disso, estava com vergonha do nível elevado de açúcar, da gordura saturada, das poucas proteínas e das poucas fibras que havia nas minhas compras.

- Já sei – disse ele, pesquisando minhas sacolas. – Chocolate, batatas fritas, vinho. O chocolate derrete se você deixá-lo junto das batatas, sabia? Você está meio deprimida?

- Acho que sim – respondi, ensaiando um sorriso na tentativa de ser educada. Enquanto isso, cada átomo do meu corpo estava louco para se ver em casa, com a porta da rua trancada atrás de mim.

- Pobrezinha – disse ele com ar gentil.

Novamente tentei sorrir, mas não consegui. Por um instante pensei em contar a ele toda a confusão do meu suposto casamento, mas não tive forças.

Adrian era um doce. Realmente, um doce.

E bonito, reparei, olhando de lado.

Eu tinha a vaga impressão de que ele gostava de mim.

Talvez eu devesse analisá-lo sob esse ângulo, pensei, com pouco entusiasmo.

Quem sabe era isso que a Sra. Nolan quis dizer quando me falou que, à primeira vista, talvez não reconhecesse o meu futuro marido, ou sei lá exatamente do que ela o chamou.

Com um pequeno tremor de irritação, vi que até eu estava começando a acreditar na Sra. Nolan, e que era tão idiota quanto Megan e Meredia.

Zangada, resolvi me mancar, pois não ia me casar com ninguém, muito menos com Adrian.

Jamais daria certo.

Para começar, havia a questão financeira. Não sabia ao certo o quanto Adrian ganhava com a loja, mas não devia ser muito. Certamente não era muito mais do que a mixaria que eu ganhava. É claro que eu não era uma mercenária, mas, fala sério, pensei, como é que a gente ia poder manter uma família, mesmo com os salários somados? E quanto aos nossos filhos? Adrian parecia trabalhar vinte horas por dia, sete dias por semana, de forma que as crianças não iam nem conseguir ver o pai.

Na verdade, era capaz de nem mesmo eu conseguir vê-lo o bastante para que ele conseguisse me engravidar.

Mas enfim...

Adrian digitou o número de minha conta, que sabia de cor, e me avisou que eu estava devendo uma multa por um filme que alugara há dez dias e ainda não devolvera.

- Sério? – perguntei, empalidecendo ao pensar na quantidade de dinheiro que devia, e no medo de talvez jamais conseguir sair da loja.

- Sério – respondeu ele, com ar preocupado. – Você não costuma fazer isso, Lucy.

Ele tinha razão. Eu jamais fazia nada arriscado. Morria de medo de deixar alguém chateado ou levar um fora.

- Ai, meu Deus! – exclamei, alarmada. – Eu nem me lembro de ter alugado alguma coisa aqui nos últimos quinze dias! Que filme foi?

- A Noviça Rebelde.

- Ah... – disse, preocupada. – Então não fui eu. Deve ter sido a Charlotte, usando o meu cartão.

Fiquei desanimada. Isso significava que eu ia ter de chamar a atenção de Charlotte por se fazer passar por mim. E ainda ia ter de arrancar dinheiro dela para pagar a multa. Arrancar alguns dentes dela seria muito mais fácil.

- Mas por que A Noviça Rebelde? – quis saber Adrian.

- É o filme favorito dela.

- Sério mesmo? Ela tem algum problema?

- Não – respondi, na defensiva. – Ela é um doce de pessoa.

- Ah, fala sério! – zombou Adrian. – Ela deve ser meio tapada.

- Não é, não – insisti. – Simplesmente é muito jovem. – E talvez fosse mesmo um pouco tapada, pensei, mas não havia necessidade de dizer isso a Adrian.

- Se ele tem mais de oito anos, já não está mais na categoria de “muito jovem” – bufou ele. – Que idade ela tem?

- Vinte e três – murmurei.

- Então já está grandinha para saber das coisas – afirmou ele. – Aposto que ela tem um edredom cor-de-rosa e chinelos no formato de Mr. Blobby * - acrescentou, torcendo a boca com nojo. – Deve adorar crianças e animais, e acorda bem cedo todos os domingos para assistir a seriados açucarados na tevê.

Se ele soubesse o quanto chegou perto...

- Dá para dizer muita coisa a respeito de uma pessoa só pelo filme que ela escolhe – explicou Adrian. – De qualquer modo, por que ela usou o seu cartão?

- Porque você fechou a conta dela. Lembra?

- Ela não é a loura que levou Antes Só do que Mal Acompanhado para a Espanha, é? - perguntou Adrian, assustado, elevando a voz. Parecia indignado ao perceber que emprestara um dos seus filmes a uma garota horrível, que levara o precioso bebê através da Europa, e ainda se recusou a pagar a multa na volta. E que, de algum modo, as sanções comerciais que ele havia imposto contra Charlotte haviam sido violadas.

- Sim, é ela mesma.

- Como é que pode eu não tê-la reconhecido? – perguntou, parecendo aborrecido.

- Não esquenta, não esquenta – disse eu, de forma tranqüilizadora, torcendo para que ele se acalmasse e me deixasse ir para casa. – Vou lhe trazer o filme. E vou pagar a multa.

Eu teria concordado em pagar qualquer coisa só para ir embora.

- Não. Simplesmente o traga de volta – repetiu. – É tudo o que quero.

Fui embora. Estava exausta. Não adiantou nada não querer conversa com nenhum ser humano.

Mas eu não ia falar com mais ninguém naquela noite, decidi.

Não ia conseguir falar com mais ninguém naquela noite.

Resolvera me cercar, fazendo um voto de silêncio. Embora, pelo jeito, o voto de silencio é que parecia estar me cercando.

 

O apartamento estava uma bagunça terrível. A cozinha parecia um pandemônio, com pratos sujos e panelas empilhadas na pia, formando uma torre instável. O lixo precisava ser levado para fora, as grades dos aquecedores estavam cobertas de roupas para secar, duas embalagens de pizza jaziam atiradas no chão da sala, perfumando o ar com cebola e pepperoni, e a geladeira estava com um cheiro estranho quando abri a porta para guardar o vinho.

Embora o estado do lugar tivesse me deixado ainda mais deprimida do que já estava, não consegui reunir forças para fazer nada além de enfileirar as embalagens de pizza ao lado da lata de lixo.

Pelo menos eu estava em casa.

Enquanto circulava cautelosamente pela cozinha, em busca de um prato limpo para colocar as batatas fritas, o telefone tocou. Antes de pensar no que estava fazendo, atendi.

- Lucy? – disse a voz de um homem.

Ao menos, por um instante, achei que era um homem. Mas compreendi então que era apenas Daniel.

- Oi – disse eu, tentando parecer educada, mas me xingando por ter atendido. Ele, evidentemente, estava ligando só para zoar da história maluca sobre o casamento e a taróloga.

- Oi, Lucy – disse ele, com um tom de voz amigável e preocupado. – Como você está?

Eu tinha razão. Ele definitivamente ligara para me zoar.

- O que quer? – perguntei, com frieza.

- Liguei só para saber como você estava – respondeu ele, fingindo surpresa -, e muito obrigado pela acolhida calorosa.

- Você está ligando só para me zoar – disse eu em um impulso.

- Não estou, não – afirmou ele. – Sério!

- Daniel – suspirei -, é claro que está! Sempre que me acontece alguma coisa desagradável, você liga para me zoar. Da mesma forma, quando alguma coisa desagradável acontece com você, eu fico rouca de tanto rir. Essas são as regras do jogo.

- Não, não é bem assim – reclamou ele, de modo gentil. – Não posso negar que você parece se divertir muito quando me vê quebrar a cara, mas não é verdade que eu fique rindo dos seus infortúnios.

Uma pausa.

- Reconheça! – disse ele, com simpatia. – Se fosse assim, eu não iria fazer outra coisa na vida a não ser rir de você.

- Adeus, Daniel – disse, com frieza, preparando-me para desligar.

- Espere aí, espere, espere, Lucy! – gritou. – Foi brincadeira! Puxa vida – murmurou, em seguida. – Você é muito mais legal quando está com o senso de humor ligado.

Eu não disse nada, porque não tinha certeza sobre se devia ou não acreditar que ele estava brincando. Andava muito sensível a respeito da aparentemente absurda quantidade de desastres que aconteciam comigo. Morria de medo de ser ridicularizada, ou, pior ainda, de alguém ficar com pena de mim.

O silêncio continuou.

Que desperdício de tarifa telefônica, pensei, com tristeza.

Então tentei me recompor. A vida já era ruim o bastante, pensei. Não havia necessidade adicional de eu me arrasar por causa de palavras que nem foram ditas em um simples telefonema.

Para passar o tempo, comecei a folhear minha revista. Achei um artigo sobre a irrigação dos tecidos intestinais. Argh, pensei, que coisa nojenta! Essa reportagem deve estar ótima!

Então, comi dois tabletes de chocolate. Um só não foi o bastante.

- Ouvi dizer que você não vai mais se casar – disse Daniel, finalmente, depois que o silêncio já se esticara demais.

- Não, Daniel, eu não vou me casar – concordei. – Espero que tenha se divertido pelo fim de semana todo. Agora tenho que desligar. Tchau!

- Lucy, por favor! – implorou ele.

- Daniel – interrompi, com ar cansado -, não estou a fim desse papo, sério mesmo.

Não queria conversa com ninguém, muito menos arrumar discussão.

- Sinto muito – disse ele, com tom de desculpas.

- Sente mesmo? – perguntei, desconfiada.

- Sinto – confirmou ele. – De verdade.

- Ótimo! – disse eu. – Agora eu realmente preciso desligar.

- Você continua pau da vida comigo – disse ele. – Dá pra perceber.

- Não, Daniel, não estou, não – disse, sem forças. – Simplesmente quero que me deixem em paz aqui no meu cantinho.

- Ah, não! – disse ele. – Isso quer dizer que você vai sumir, agarrada a um pacote de biscoitos, até o fim da semana que vem?

- Talvez – ri um pouco. – A gente se vê daqui a uma semana.

- Vou ligar de vez em quando, para fazer você se virar na cama – disse ele. – Não quero que fique cheia de assaduras novamente, de tanto ficar deitada.

- Obrigada.

- Não... Escute, Lucy – pediu ele. – Por que não sai comigo amanhã à noite?

- Amanhã à noite? – perguntei. – Sábado à noite?

- É...

- Mas, Daniel, mesmo que eu estivesse a fim de sair amanhã à noite, o que não é o caso, certamente não sairia com você – expliquei.

- Ah, sei...

- Sem querer ofender – continuei, com gentileza – mas sábado à noite... Esse é o dia em que a gente sai para ir a festas e conhecer homens interessantes, não para encontrar velhos amigos. Para a gente fazer isso Deus inventou as segundas à noite.

Um pensamento alarmante subitamente me ocorreu.

- Onde você está? – quis saber, desconfiada.

- Hã... estou em casa – respondeu ele, parecendo envergonhado.

- Em uma sexta à noite? – perguntei, espantada. – E você quer sair comigo em um sábado à noite? O que houve?

Nesse instante eu descobri. E o um astral melhorou na mesma hora, de forma visível.

- Ela largou você, não foi? – disse eu, com voz agradável. – Aquela tal de Graça finalmente recuperou o juízo. Se bem que admito que nem pensava que ela tivesse algum juízo para recuperar.

Eu sempre fazia comentários desagradáveis a respeito das namoradas de Daniel. Achava que qualquer mulher que fosse burra o bastante para se envolver com um cara tão obviamente paquerador e cauteloso na hora de assumir compromissos, como era o caso de Daniel, merecia todas as tolices que alguém dissesse a seu respeito.

- E agora você não gostou de eu ter ligado? – perguntou ele, com tom gentil. – Não foi melhor do que me deixar falando com a secretária eletrônica?

- Sim, obrigada, Daniel – disse eu, sentindo-me subitamente melhor. – Você tem muita consideração. Abrir o coração sempre ajuda a piorar as coisas – continuei, irônica. – O que aconteceu?

- Ah – disse ele, de forma vaga -,uma dessas coisas que acontecem. Eu lhe conto amanhã à noite, quando nos virmos.

- Daniel – disse, com voz carinhosa -, a gente não vai se ver amanhã à noite.

- Mas, Lucy – argumentou ele -, eu até já reservei a mesa em um restaurante.

- Mas, Daniel... – contra-argumentei - ...você não devia ter feito isso sem me consultar antes. Você sabe como me astral é instável. Nesse momento não estou nem um pouco divertida.

- Mas sabe o que é...? – explicou ele -, eu tinha feito essa reserva há muito tempo, era para ir ao restaurante com a Graça, mas como ela e eu não estamos mais namorando...

- Ah, entendi – disse eu. – Você não quer especificamente que eu vá com você. Precisa só de alguém que vá. Bem, isso não deve ser difícil de conseguir, se considerarmos o quanto as mulheres adoram você. Embora, francamente, eu não consiga entender por que elas...

- Não, Lucy – interrompeu ele. – Eu quero que você, especificamente, vá comigo.

- Desculpe, Daniel – disse, com tristeza -, mas estou muito deprimida.

- Mas a notícia de a minha namorada ter me largado não deixou você mais animada? – perguntou ele.

- Sim, claro que sim! – respondi, começando a me sentir culpada. – Só que não consigo encarar a idéia de sair.

Foi nesse momento que ele lançou a cartada final:

- É que é meu aniversário – disse ele, com a voz sem expressão.

- Não, o seu aniversário é só na terça-feira – disse eu, bem depressa.

Esqueci que era o aniversário dele, mas, rapidinho, já estava com a resposta pronta. Tinha muita prática em escapar de coisas que não estava a fim de fazer, como dava para perceber.

- Mas eu queria que você fosse comigo nesse restaurante em particular – disse ele, tentando me convencer. – É tão difícil de conseguir uma mesa lá...

Ah, Daniel – disse, começando a ficar desesperada. – Por que está fazendo isso comigo?

- Você não é a única que pode se sentir péssima, sabia? – disse ele, baixinho. – Você não tem o monopólio da tristeza.

- Puxa, desculpe, Daniel – e me senti culpada e magoada -, você está de baixo astral?

- Bem, você sabe como é... – disse ele, ainda parecendo quieto demais e derrotado. E selou meu destino, perguntando:

- Alguma vez eu a deixei sozinha quando você estava nesse estado, Lucy?

- Isso é chantagem – disse eu, com raiva. – Tudo bem, eu saio com você.

- Ótimo! – reagiu ele, mais alegre.

- Você está mal de verdade? – quis saber. Eu vivia interessada no desespero alheio. Assim, podia comparar e fazer um contraste com a minha própria situação, só para não me sentir tão diferente dos outros.

- Estou sim – confirmou ele, com ar pesaroso. – Você também não ficaria se estivesse sem saber onde conseguir alguém para transar?

- Daniel – disse, ultrajada. – Seu canalha! Eu devia saber que você estava só fingindo estar na fossa. Você não tem uma única fibra de emoção sincera no corpo.

- Brincadeira, Lucy, foi só uma brincadeira – disse ele, de modo suave. – Esse é só o meu jeito pessoal de lidar com coisas desagradáveis.

- Nunca sei quando você está brincando e quando está falando sério – suspirei.

- Nem eu – concordou ele. – Agora, quero lhe contar sobre esse maravilhoso restaurante aonde vou levar você.

- Você não vai me levar a lugar nenhum. – Senti um certo desconforto. – Falando desse jeito, fica parecendo que vamos ter um encontro de namorados, o que não é o caso. Você quer me falar do restaurante aonde você está forçando a barra para eu ir.

- Tudo bem, desculpe - concordou ele. – Vou lhe contar sobre o restaurante aonde eu estou forçando a barra para você ir.

- Ótimo – disse. – Assim é melhor.

- O nome dele é Kremlin.

- O Kremlin? – perguntei, parecendo alarmada. – Quer dizer que é um restaurante russo?

- Obviamente, sim – confirmou ele, com um pouco de ansiedade na voz. – Isso tem algum problema?

- Sim – respondi. – O fato de ser um restaurante russo não quer dizer que vamos ter que esperar em uma fila durante horas e horas e horas a fio, até conseguir comer? Em uma temperatura abaixo de zero? E que, embora o cardápio mostre um monte de comidas deliciosas, a única coisa que vão estar servindo é nabo cru?

- Não, nada disso, sério – protestou ele. – Não vai ser nada desse tipo. O restaurante é pré-Revolução, e isso prova que a comida é maravilhosa. Vamos ter caviar, vodca com diversos sabores e muito luxo. Você vai adorar!

- É bom mesmo – disse eu, com a voz pesada. – Mas continuo sem entender por que você está tão interessado que eu vá. Que tal convidar a Karen ou a Charlotte? As duas estão a fim de você. E ia ser muito mais divertido com qualquer uma delas. Ou se você levasse as duas, pensando melhor. Não gostaria de um flertezinho para temperar o borscht? Ou aproveitar o seu blinis a três?

- Não, obrigado – disse ele, com firmeza. – Chega de ferimentos! Vou dar um tempo com as mulheres.

- Você? – gritei. – Não acredito! Dar em cima das mulheres é tão natural para você quanto respirar.

- Você faz um juízo tão baixo da minha pessoa, Lucy – disse ele, achando graça. – Agora, sério mesmo... Eu preferia ir com alguém que não estivesse a fim de mim.

- Bem, posso não ser muito boa para a maioria das coisas, mas, com relação a isso, sirvo como uma luva para você – comentei, em um tom quase alegre.

Parece que eu conseguira me animar um pouco.

- Ótimo! – disse ele.

Houve uma pequena pausa.

De repente, ele tornou a falar:

- Lucy... – disse, um pouco sem graça. - ...Posso lhe perguntar uma coisa?

- Claro.

- Bem, não que seja importante nem nada – explicou ele -, é que estou um pouco curioso para saber... hã... Por que você não está a fim de mim?

- Daniel! – disse, com cara de nojo. – Você é patético!

- Eu só queria saber o que estou fazendo de errado... – protestou ele.

Desliguei.

Mal conseguira colocar as batatas fritas em um prato e o telefone tornou a tocar, só que desta vez fui esperta e deixei a secretária eletrônica atender por mim.

Não me importava quem fosse, eu não ia atender.

- Hã... hum... aqui fala a Sra. Connie Sullivan. Estou ligando para falar com a minha filha, Lucy Sullivan.

Era a minha mãe.

Quantas Lucys será que ela achava que moravam no meu apartamento?, pensei, com irritação. Ao mesmo tempo, uma sensação de alegria me inundou por eu ter escapado daquela furada! Sentia um alívio total por não ter atendido ao telefonema. Então, o que será que a minha velha queria?

O que quer que fosse, ela não parecia muito à vontade ao compartilhar o assunto com a secretária:

- Lucy, meu amor... é... hum... é... hã... sou eu, a mamãe!

Ela me pareceu um pouco humilde. Sempre que chamava a si mesma de “mamãe” era sinal de que estava querendo ser gentil. Estava telefonando, provavelmente, para se desculpar, a contragosto, por ter sido tão cruel comigo naquele mesmo dia, mais cedo. Esse era o comportamento usual dela.

- Lucy, meu amor, eu... hã... acho que talvez tenha sido um pouco dura demais com você ao telefone hoje. Se fui, isso só aconteceu porque quero o melhor para você.

Eu ouvia tudo com a boca torta e um expressão de desdém.

- Eu tinha que telefonar. Fiquei com isso na cabeça – continuou ela. – É que fiquei um pouco chocada, entende, por pensar que você poderia estar... com problemas... – Ela sussurrou “com problema”, para o caso de alguém de fora ouvir inadvertidamente a sua mensagem e testemunhar uma idéia tão suja quanto aquela sendo proferida.

- Bem, eu a vejo na quinta que vem, e não se esqueça de que quarta é um dia sagrado, é o início da Quaresma...

Levantei os olhos para o teto, mesmo sabendo que não havia ninguém ali para me ver fazendo aquilo, e voltei para a cozinha, a fim de pegar um pouco de sal. Eu não queria admitir nem um pouco melhor sabendo que a minha mãe ligara e, de certa forma, pedira desculpas.

Comi as batatas, comi os chocolates, assisti ao filme e fui para a cama cedo. Não bebi o vinho, mas talvez devesse ter feito isso, porque dormi muito mal.

Pareceu, a noite toda, que havia gente entrando e saindo do apartamento. A campainha tocou; portas abriram e se fecharam; havia no ar um cheiro de torradas sendo preparadas; “Como resolver o problema de Maria” * vinha da sala da frente; risinhos abafados vinham da cozinha; tropeções e ruídos de mobília caindo vinham do quarto de alguém; houve mais risadinhas, dessa vez não tão abafadas; barulhos na gaveta dos talheres mostravam que alguém estava procurando alguma coisa, provavelmente um saca-rolhas, e havia risos masculinos.

Essa era uma das desvantagens de ir para a cama mais cedo em uma noite de sexta-feira em um apartamento onde as duas outras ocupantes saíram e voltaram bêbadas. Com freqüência, era eu que estava do outro lado, soltando risadinhas, deixando as coisas caírem e esbarrando nos móveis, portanto não podia me aborrecer com elas.

Só que era muito mais difícil de aturar tudo aquilo quando estávamos sóbrios, de baixo astral e queríamos isolamento eu poderia ter me levantado da cama, ter marchado de pijama pelo corredor, com o cabelo todo despenteado, a cara sem maquiagem e implorar a Karen, Charlotte e a sei lá mais quem estivesse ali como convidado para que fizessem menos barulho, mas isso não ia me servir de nada. Talvez completamente bêbados eles ridicularizassem o meu pijama e o meu cabelo, ou talvez eu acabasse me vendo forçada a beber meia garrafa de vodca, em uma postura de “já que não posso derrotá-los, é melhor unir-me a eles”.

Às vezes, gostaria de morar sozinha.

Andava pensando muito nessa possibilidade ultimamente.

Finalmente, voltei a pegar no sono e então, no que me pareceu ser logo depois, tornei a acordar.

Não sabia que horas eram, mas ainda estava escuro como breu. A casa estava silenciosa e o meu quarto estava gelado. O aquecimento automático ainda não devia ter ligado. Dava para ouvir que estava chovendo lá fora, e o vento batucava nas frágeis janelas vitorianas. As cortinas moviam-se suavemente, levadas por alguma corrente de ar. Um carro passou na rua, os pneus chiando sobre o asfalto molhado.

Uma fisgada desagradável atravessou o meu peito... Vazio? Solidão? Abandono? Se não era um desses sentimentos, era pelo menos um membro dessa extensa família.

“Nunca mais vou sair de casa”, pensei. “Pelo menos enquanto o mundo estiver do jeito que está. Tempo ruim e gente rindo de mim, não quero nada disso.”

Depois de mais alguns instantes, não pude deixar de reparar que, embora fosse cinco e meia da manhã de um sábado, eu estava acordada.

Isso sempre acontecia comigo. De segunda a sexta eu mal conseguia abrir os olhos de manhã, mesmo com a ajuda do despertador e da ameaça de perder o emprego se chegasse mais um dia atrasada. Sair da cama era quase impossível, como se os lençóis fossem feitos de velcro.

E quando chegava o sábado, quando não precisava levantar cedo, acordava sozinha e não conseguia me convencer, de jeito nenhum, a me virar para o outro lado, fechar os olhos, me encolher debaixo das cobertas e tornar a dormir.

A única exceção a esse padrão acontecia nos poucos sábados em que eu tinha de trabalhar. Então, era tão difícil acordar quanto nas cinco manhãs anteriores.

Se a minha mãe soubesse disso, provavelmente usaria o fato como prova – pelo menos, de acordo com ela – de que eu era sempre do contra.

“Já sei!”, pensei. Vou comer alguma coisa.

Levantei-me da cama. O quarto estava congelando. Atravessei correndo a sala até a cozinha e, para meu desânimo, vi que já havia uma pessoa lá.

“Não me importa quem seja”, pensei, com ar belicoso. “Não vou nem falar com ele.”

Era um rapaz que eu nunca tinha visto. Usava apenas um short vermelho e bebia água energicamente, de uma caneca. Tinha as costas cheias de pintas.

Aquele não era o primeiro sábado de manhã em que eu dava de cara com um homem na cozinha e sabia que jamais o vira antes. A única diferença daquele sábado em particular é que não fui eu que o trouxera para casa.

Alguma coisa nele, não sei se o jeito como bebia a água, como se estivesse morrendo de sede, ou talvez as suas costas cheias de pintinhas, fez com que eu resolvesse ser gentil com ele.

- Tem Coca na geladeira – avisei a ele, hospitaleira.

Ele deu um pulo e se virou para trás. Tinha uma cara cheia de pintas também.

- Hã... é... ahn... olá – disse ele, suas mãos descendo automaticamente para cobrir a parte da frente do short. (Será que lá havia pintas também?, pensei de forma vaga.)

- Desculpe – gaguejou ele. – espero não tê-la assustado. Vim para cá com a... ahn... sua amiga, ontem à noite.

- Ah! – exclamei. – Qual delas?

Quem será que atraíra o interesse daquela criatura toda pintada na noite anterior? Karen ou Charlotte?

- Bem... isso é muito embaraçoso – disse ele, com ar tímido. – Na verdade, não consigo me lembrar do nome dela. Bebi um bocado ontem à noite!

- Bem... descreva-a – sugeri, gentilmente.

- Loura.

- Isso não serve – disse eu. – As duas são louras.

- Bem, ela é bem grande, ahn... – disse ele, fazendo gestos expansivos com as mãos na frente do tórax.

- Sei você quer dizer peitos grandes. – Compreendi de repente. – Bem, também não serve, pode ser qualquer uma das duas.

- Acho que ela tem um sotaque engraçado – afirmou ele.

- Escocês?

- Não.

- De Yorkshire?

- Isso!

- Então é Charlotte.

Peguei um saquinho de biscoitos e voltei para cama.

Poucos minutos depois, o garoto cheio de pintas entrou no meu quarto.

- Ah... – disse ele, confuso e com o rosto vermelho de vergonha, enquanto cobria novamente a parte da frente do short com a mão. – Onde é que fica o quarto...? Achei que...

- É na porta ao lado – respondi, sonolenta.

 

Quando acordei mais tarde, já era quase meio-dia. Alguém estava no banheiro e o vapor saía em nuvens por baixo da porta, de modo que eu mal conseguia enxergar o fim do corredor. Encontrei Karen deitada com um edredom, no sofá da sala. Estava tossindo e fumando, havia um cinzeiro transbordando de guimbas no chão ao lado dela, e seu rosto parecia o de um panda, porque ela não removera a maquiagem da noite anterior.

- Bom-dia. – Ela sorriu, parecendo um pouco pálida e fraca. – O que fez ontem à noite, Lucy?

- Nada – respondi, distraída. – Por que o apartamento está parecendo uma sauna? Quem é que está no banheiro? Por que está demorando tanto?

- É Charlotte. Está se purificando com água escaldante e bucha, esfregando a pele até sangrar, como penitencia pelo pecado que cometeu.

Senti uma imensa onda de solidariedade por ela.

- Ah, não, pobre Charlotte! Então ela dormiu com o “costas cheia de pintas”?

- Quando você o viu? – perguntou Karen, tentando se sentar no sofá, empolgada, mas logo em seguida mudando de idéia.

- Esbarrei com ele na cozinha, mais ou menos às cinco e meia da manhã.

- Ele tem um rosto horrível, não achou? É muito feio. Charlotte estava usando óculos de cerveja... Bem, na verdade eram óculos de tequila, então achou que ele era lindo.

- Senso estético prejudicado?

- Bastante.

- E ela estava se comportando de forma vulgar, dançando de forma sedutora por todo o apartamento?

- Estava.

- Ah, não!

Charlotte era assim, cheia de vida, mas tivera uma criação muito boa e tradicional. Era uma garota respeitável, de uma cidadezinha do interior, perto de Bradford. Morava em Londres há cerca de um ano, e ainda estava passando pelo doloroso processo de tentar descobrir quem realmente era. Continuava a menina animada de Yorkshire, um pouco abusada, mas muito decente, com as maçãs do rosto rosadas e que falava coisas como: “Olha essa foto, uai! Olha eu aqui na roça com o cachorro!” Ou era a loura fatal de peitos grandes na qual se transformava sempre que bebia demais? É estranho, mas, quando ela fazia o papel de loura fatal, o seu cabelo realmente parecia bem mais louro, e o busto bem mais cheio, pelo menos alguns números maior.

Para Charlotte era muito, muito difícil unir esses dois aspectos de si mesma. Sempre que agia como a loura peituda e fatal, ela passava os dias que seguiam em autocensuras e repreensões. Culpa, auto-aversão, autopunição, medo de castigos, repulsa por si mesma e pelo seu comportamento eram seus comportamentos constantes.

Tomava banhos demais e sempre muito quentes nesses períodos.

Era pena o fato de Charlotte ser loura e peituda, porque ela também era meio burrinha, e tudo isso somado confirmava muitos preconceitos. Gente como Charlotte é que dava má fama às louras. Só que eu gostava muito de Charlotte. Ela era uma pessoal adorável e ótima companheira de apartamento.

- Mas deixe-a pra lá e me conte de você – pediu Karen, alegremente. – Conte essa história maluca de você estar para se casar e tudo o mais.

- Não.

- Por que não?

- Não quero falar sobre esse assunto.

- Você sempre diz isso, Lucy.

- Desculpe.

- Por favor.

- Não.

- Por favor!

- Então está bem, mas você não pode rir de mim nem ficar com pena.

Então contei a Karen toda a história da nossa visita à Sra. Nolan, as previsões dela, como Meredia ganhou sete libras e meia, como Megan sofreu uma ruptura na vida com o corte no lábio, como Hetty fugiu com o irmão de Dick, e depois a parte em que Meredia e Megan espalharam para todo mundo que eu ia me casar.

Karen ouvia tudo, boquiaberta.

- Meu Deus – sussurrou ela. – Que coisa terrível. Como deve ter sido embaraçoso!

- Foi mesmo.

- Você está chateada?

- Um pouco – admiti, com relutância.

- Você devia matar a Meredia! Não devia deixar as coisas assim como estão. E não acredito que Megan tenha se envolvido nesse lance. Ela sempre me pareceu tão normal.

- Eu sei.

- Deve ter sido, assim, uma espécie de histeria em massa – sugeriu Karen.

Karen riu tanto que chegou a ficar engasgada.

Charlotte chegou à sala usando um vestido largo e pesado, roxo, com gola fechada e que descia até os tornozelos. Era a sua versão do manto para sofrer penitências.

- Ó Lucy – choramingou ela, explodindo em lágrimas e correndo em minha direção. (Ela pronunciou “Luu-zzie”.)

Passei os braços em torno dela, da melhor forma que pude, tendo sempre em mente que ela era vinte centímetros mais alta do que eu.

- Estou tão envergonhada – soluçou ela. – Eu me odeio. Queria estar morta.

- Shhh... Shhh... – sussurrei, por força da prática. – Logo, logo você vai se sentir melhor. Não se esqueça de que bebeu muito ontem à noite, e o álcool nos deixa deprimidos. Você tem todo o direito de se sentir meio pra baixo hoje.

- Você acha isso mesmo? – perguntou ela, olhando para mim com um olhar esperançoso.

- Honestamente.

- Ah, Lucy, você é tão boa. Sempre sabe as coisas certas para me dizer quando estou de baixo astral.

É claro que eu sabia. Tinha tanta prática comigo mesma que seria egoísmo não compartilhar com os outros o que aprendera pela vida do jeito mais difícil.

- Nunca mais na vida vou beber – prometeu ela.

Eu não disse nada.

- Nunca mais!

Fiquei analisando as unhas.

- Pelo menos nunca mais vou beber tequila – confirmou ela, com veemência.

Dei uma olhada lá fora pela janela.

- Vou ficar só no vinho.

Olhei para a televisão (embora ela não estivesse ligada).

- E vou alternar cada dose de bebida com um copo de água mineral.

Ajeitei uma das almofadas.

- E não vou beber mais do que quatro copos de vinho na mesma noite.

Olhei para as minhas unhas novamente.

- Bem, talvez seis.

Dei outra olhada pela janela.

- Dependendo do tamanho do copo.

A televisão novamente.

- E não vou tomar mais do que catorze doses ao todo em uma semana.

E ela foi indo, foi indo, até que finalmente se convenceu de que uma garrafa de tequila a cada noite era razoável. Eu já ouvira tudo aquilo muitas vezes.

- Lucy, eu estava horrível – confidenciou-me. – Arranquei a blusa e fiquei dançando só de sutiã.

- Só de sutiã? – perguntei, com ar solene.

- É.

- Sem calcinha?

- É claro que mantive as calcinhas. E fiquei de saia.

- Bem, então não foi assim tão mau, foi?

- Não, acho que não. Ah, Lucy, alegre-me um pouco. Conte uma história para mim. Conte... deixe ver, conte... conte sobre aquela vez em que seu namorado a dispensou porque tinha se apaixonado por outro cara.

Desanimei na mesma hora.

Só que eu mesma era culpada. Cultivara cuidadosamente a reputação de ser engraçada para contar histórias – pelo menos entre os amigos mais chegados -, sempre com as tragédias da minha própria vida como protagonistas. Há muito tempo eu chegara à conclusão de que uma das maneiras de evitar ser uma figura trágica e patética era, em vez disso, ser divertida e engraçada. Especialmente se eu fosse divertida e engraçada com as coisas trágicas e patéticas que aconteciam na minha vida.

Desse jeito ninguém ia poder rir de mim, porque eu mesma já rira na frente deles.

Só que, naquele momento, eu não consegui fazer aquilo.

- Não, Charlotte, eu não consigo...

- Ora, vamos, conte...

- Não.

- Por favor. Pelo menos conte a parte em que você cortou o cabelo curtinho e ele, mesmo assim, dispensou você.

- Ah, não... droga. Está bem.

Quem sabe, pensei, pode ser que eu me anime também.

Assim, da forma mais divertida que consegui, alegrei Charlotte com a história de uma das muitas perdas humilhantes e vexames amorosos de minha vida. Só para fazê-la perceber que, não importa o tamanho dos desastres em sua vida, nenhum deles poderia ser tão ruim quanto os meus.

- Vamos a uma festa hoje à noite – informou Karen. – Quer ir também?

- Não posso.

- Não pode ou não quer? – quis saber Karen, com astúcia. Como era escocesa, era boa em perguntar as coisas de forma astuta.

- Não posso.

- Por que não?

- Fui obrigada a aceitar um convite de Daniel para jantar.

- Jantar com Daniel. Sortuda – suspirou Charlotte, com o rosto iluminado.

- Mas porque ele convidou você? – guinchou Karen, revoltada.

- Karen! – ralhou Charlotte.

- Ah, você sabe o que eu quis dizer, Lucy – disse Karen, com impaciência.

- Sei sim.

Karen não media as palavras, mas, para ser justa, ela estava absolutamente certa. Eu também não conseguia entender por que Daniel preferira me levar para jantar.

- Ele terminou com “sei lá o nome dela” – expliquei, e subitamente houve um alvoroço. De repente, Karen se sentou no sofá, rígida como um defunto que se levantou do caixão.

- Você está falando sério? – perguntou ela, com um olhar estranho, meio tarado.

- Absolutamente sério.

- Uau! – soprou Charlotte, com um sorriso de êxtase. – Isso não é maravilhoso?

- Então ele está solto? – perguntou Karen.

- Sim, totalmente – confirmei, de forma solene. – Pagou todas as dívidas com a sociedade e tudo o mais.

- Não por muito tempo, se depender de mim – disse Karen, com a voz firme e determinada, a cabeça cheia de imagens de Daniel e ela entrando de mãos dadas em restaurantes elegantes, Daniel e ela sorrindo um para o outro de forma radiante no dia do casório, Daniel e ela fazendo cócegas carinhosamente no primeiro filho.

- Aonde ele vai levar você? – perguntou Karen, depois que voltara ao presente e o tumulto generalizado já diminuíra um pouco.

- A um restaurante russo.

- Não é o Kremlin, é? – perguntou Karen, parecendo chocada.

- Esse mesmo.

- Sua sortuda, sortuda, sortuda, sortuda. Vaca sortuda.

As duas ficaram olhando para mim, com inveja em estado puro estampada em seus rostos.

- Não fiquem olhando para mim desse jeito – disse, temerosa. – Eu nem queria ir.

- Como pode dizer uma coisa dessas? – reagiu Charlotte. – Um cara lindo e tão...

- Rico! – exclamou Karen.

- Um cara lindo e rico como Daniel convida você para um restaurante chiquérrimo e você nem queria ir?

- Mas ele não é um cara lindo e rico... – protestei, de forma fraca.

- Ele é sim! – falaram as duas, em coro.

- Bem, talvez seja. Mas, mas... mas não adianta nada para mim – disse, baixinho. – Eu não o acho bonito. Ele é apenas um amigo. E acho que é um desperdício total de tempo sair com um velho amigo em um sábado à noite. Especialmente se considerarmos que eu não queria ir.

- Você é esquisita – murmurou Karen.

Eu não negava aquilo. Ela estava chovendo no molhado.

- Que roupa vai usar? – perguntou Charlotte.

- Não sei.

- Mas tem que saber. Você não está simplesmente indo ao pub tomar uma cerveja.

Daniel chegou mais ou menos às oito horas, e eu ainda não estava pronta. O pior é que era bem capaz de eu estar ainda de pijama, se Charlotte e Karen não tivessem me enchido e convencido a tomar banho e depois colocar um glamouroso vestido dourado.

Não que eu que eu estivesse grata a elas por isso. Simplesmente as culpava por estarem me aprontando toda para sair com Daniel por tabela.

Elas me deram um monte de conselhos sobre o que usar e de que jeito colocar a maquiagem e arrumar o cabelo, e começavam todas as frases dizendo: “Se fosse eu que estivesse me preparando para sair com o Daniel...” e “Se Daniel tivesse me convidado...”

- Use estas, use estas – disse Charlotte, toda excitada, pegando um par de meias rendadas e cheias de lacinhos na minha gaveta de roupas de baixo

- Não – disse eu, pegando as meias da mão dela e colocando-as de volta na gaveta

- Mas elas são tão lindas.

- Eu sei.

- Então, por que você não quer usá-las?

- Para que? É só o Daniel!

- Você é muito mal-agradecida.

-Não sou não. Para que vou usá-las? É um desperdício! Quem é que vai vê-las?

- Nossa! – disse Karen, pegando um dos meus sutiãs. – Eu nem sabia que eles fabricavam sutiãs tão pequenos.

- Mostre – pediu Charlotte, pegando-o da mão dela e depois caindo na risada – Meu Deus! Parece até sutiã de boneca, o sutiã da Barbie. Meus mamilos mal cabem nele.

- Você deve ter mamilos minúsculos, Lucy – riu Karen, cutucando Charlotte. – Eu não sabia que eles fabricavam modelos PPP.

Fiquei andando em volta do quarto, dando passos fortes com o rosto vermelho de vergonha, esperando elas acabarem de me zoar.

Depois, no momento em que a campainha tocou, Karen voltou a entrar correndo no meu quarto e me borrifou toda com o perfume dela.

- Obrigada – disse eu, com os olhos cheios d’água esperando a nuvem se dispersar.

- Sua boba – disse ela. – Só estou fazendo isso para que você fique com o meu cheiro. Assim, você vai abrir caminho para eu chegar até Daniel.

-Ah.

Charlotte e Karen começaram a brigar para ver quem é que ia atender a porta, e Karen ganhou porque já morava no apartamento há mais tempo.

- Entre – disse ela, de forma intensa e exuberante, escancarando a porta para ele. Karen parecia sempre intensa e exuberante quando Daniel estava por perto, e a porta provavelmente não era a única coisa que ela gostaria de escancarar para ele.

Daniel estava com a mesma cara de sempre. Sem dúvida, porém, em alguma conversa futura, eu ia ter que agüentar Karen e Charlotte me enchendo com a descrição de como ele estava lindo.

Era engraçada a maneira de como as mulheres gostavam tanto de Daniel, porque realmente não havia nada de especial nele.

Até parece que ele tinha olhos azuis penetrantes, cabelo totalmente negro, uma boca sexy com lábios carnudos e um maxilar tão grande quanto uma mochila. Não havia nada disso.

Ele tinha olhos acinzentados, que não eram nem um pouco penetrantes. Olhos cinza eram sem graça na minha opinião.

E seu cabelo tinha aquela “cor que não é cor”: eram castanhos. Como os meus, por falar nisso, com a única diferença que ele tinha sido tocado pela varinha da fada do cabelo bom, e devido a isso, os fios dele eram lisos, retos e brilhantes, enquanto os meus eram encaracolados, pareciam molas e me davam a cara de quem fez permanente em casa sempre que eu pegava chuva.

Ele sorriu para Karen. Ele sorria muito. E todo mundo que, alguma vez, achou Daniel atraente vivia comentando sobre o sorriso simpático que ele tinha, e eu não conseguia entender porque. Seus dentes eram apenas uma fileira pequena de teclas esmaltadas.

Tudo bem, Daniel tinha todos os dentes, e eles pareciam bem reais. Não havia nenhum faltando, nem preto, nem verde ou coberto de musgo, nem torto ou acavalado, mas e daí?

O segredo do seu sucesso, eu imaginava, era que ele parecia um rapaz simpático, um homem decente, afetuoso, com valores antigos e que tratava as mulheres como se fossem damas

O que estava tão longe da verdade que eu achava até engraçado. Só que no momento em que as mulheres descobriam o engodo, já era tarde demais.

— Olá, Karen — cumprimentou Daniel, dando o golpe do sorriso aberto mais uma vez. — Como vai?

— Maravilhosa! — declarou ela. — Estou ótima!

E, de imediato, passou à etapa do flerte descarado. Ofereceu-lhe muitos olhares sedutores, sorrisos sugestivos e, demonstrando uma suprema autoconfiança, passou a mão sobre o ombro dele de forma possessiva, a fim de retirar fiapos imaginários de seu casaco de inverno.

— Oi, Daniel! —Charlotte saiu lentamente do quarto, meio de lado. Ela também começou a flertar descaradamente com ele, mas usava a tática dos sorrisos doces e tímidos, além de rápidos contatos olho no olho. Parecia toda delicada, com bochechas rosadas, rubores inesperados, olhos sem maquiagem, pele limpa e a robustez de quem só bebe leite.

Daniel estava ali parado, sorrindo, no meio do nosso pequeno vestíbulo, e parecia muito alto.

Resistiu às tentativas de Karen de levá-lo para a sala.

— Obrigado, mas não vou poder entrar — explicou ele. — O táxi está nos esperando.

Olhou para mim com um olhar significativo ao dizer isso, e então olhou para o relógio de pulso.

— Você chegou cedo — acusei. Eu estava correndo de um lado para outro no corredor, tentando achar os meus sapatos de salto alto.

— Na verdade, Lucy, cheguei exatamente na hora marcada — disse ele, com suavidade.

— Bem, você devia saber que eu não ia estar pronta! – berrei do banheiro.

— Você está bem legal! — Agarrou-me pelo braço quando passei correndo novamente pela frente dele, e tentou me dar um beijo no rosto. Charlotte ficou arrasada.

— Argh! — disse eu, limpando o beijo. — Pára com isso, vai estragar minha maquiagem!

Achei meus sapatos de salto alto na cozinha, no espaço entre a geladeira e a máquina de lavar. Coloquei-os e fiquei ao lado de Daniel. Ele continuava muito mais alto do que eu.

— Você está maravilhosa, Lucy — disse Charlotte, com ar melancólico. — Adoro quando você coloca esse vestido dourado. Fica parecendo uma princesa.

— É... — concordou Karen, com os olhos fixos no rosto de Daniel e mantendo o olhar por muito mais tempo do que o necessário. Não que ele se importasse, galinha como era.

— Eles não formam um lindo casal? — perguntou Charlotte, sorrindo de mim para Daniel, e depois para mim, de volta.

— Não, não formamos não — resmunguei, trocando o peso do corpo de um pé para outro, constrangida. — Nós ficamos ridículos juntos. Ele é alto demais, e eu sou baixa demais. As pessoas vão achar que o circo chegou na cidade.

Charlotte negou isso com ar chocado e veemente, mas Karen não me contradisse.

Karen era muito competitiva.

Não conseguia evitar.

Ela era uma dessas pessoas que nunca se diminuem, jamais se depreciam e, sob hipótese alguma, fazem piadinhas à custa de si mesmas ou de suas aparências. Enquanto eu, por outro lado, raramente agia de outro modo. Acho que Karen, na verdade, não conseguiria assim.

Ela era uma pessoa muito legal na maior parte do tempo, mas, se alguma coisa lhe saísse errado, teríamos de cruzar o caminho dela por nossa conta e risco. Especialmente quando estava bêbada, momento em que podia se mostrar muito assustadora. Karen dava muita importância a "respeito". Na verdade, ela tinha quase uma obsessão com a relação a isso, na minha opinião.

Há coisa de dois meses antes, seu namorado, Mark, comentara timidamente, que achava que o namoro deles estava começando a ficar sério demais. Ela mal deixou que ele acabasse de falar e ordenou que ele saísse imediatamente do apartamento dela e nunca mais voltasse. O pobre rapaz mal teve tempo de se vestir. (Na verdade, ela ainda ficou com a cueca dele, que varejou pela janela com ar de triunfo assim que ele conseguiu colocar os pés na rua.) Depois disso, ela comprou um garrafão de três litros de vinho e insistiu para que eu ficasse com ela enquanto bebia tudo, até esquecê-lo.

Foi uma noite terrível. Karen ficou sentada, com a cara amarrada, sem dizer nada, soltando apenas um "canalha" ocasional, sussurrado, enquanto eu ficava ao lado dela, tomando pequenos goles do vinho e murmurando comentários superficiais. Então, de uma hora para outra, ela ficou mais desagradável.

Virou-se para mim, agarrou a parte da frente do meu vestido e falou, engolindo metade das palavras:

— Se num me respeitá, quemque vai?

— Hã?...

Ela tornou a me fazer a pergunta, com as palavras engroladas e aquele sotaque carregado, os olhos semicerrados e o rosto muito próximo do meu:

— Anna logo, Lucy, pói me falá!

— Realmente... — concordei, nervosa. — Quemque vai?

No dia seguinte ela me pediu desculpas, e nunca mais se comportou daquela forma. Tirando o fato de ser competitiva, Karen é uma ótima companheira de apartamento. É muito divertida, tem roupas lindas que costuma emprestar sem implorarmos demais, consegue ser extremamente vulgar, às vezes, mas sempre paga a sua parte do aluguel em dia. É claro que eu sabia muito bem que se os nossos interesses batessem de frente em algum momento eu teria de estar preparada para tirar o time de campo com esportividade ou encarar comida de hospirtal. Só que os nossos interesses nunca bateram de frente, e dificilmente isso ia acontecer agora, por causa de Daniel.

Ela estava tirando o máximo partido o máximo partido do fato de estar junto de Daniel.

— Vai haver uma festa hoje à noite - contou Karen, dirigindo-se a ele, e apenas a ele. - Talvez você queira dar uma passadinha por lá mais tarde.

— Parece uma boa idéia — concordou ele, sorrindo para ela. — É melhor eu anotar o endereço.

— Não precisa — disse eu, quase emocionada pelo clima de romance no vestíbulo. — Eu sei onde fica.

— Tem certeza? — perguntou Karen, ansiosa.

— Tenho. Agora vamos, Daniel. Vamos acabar logo com isso.

— Por favor, apareça lá na festa — pediu Karen —, mesmo que a Lucy não queira ir.

"Especialmente se a Lucy não quiser ir" era o que ela, na verdade, estava querendo dizer, pensei, com um sorriso.

Saímos, Daniel concedendo a Karen e a Charlotte o seu sorriso de apresentador de tevê, enquanto eu olhava para ele, achando tudo divertido.

- Que foi? - perguntou ele enquanto descíamos as escadas. - O que foi que eu fiz?

- Você é deplorável. - Ri. - Alguma vez já encontrou uma mulher sem flertar com ela?

- Mas eu não estava flertando! - protestou ele. - Estava apenas sendo normal. Estava só sendo educado.

Lancei-lhe um olhar do tipo "me engana que eu gosto".

- Você está linda, Lucy! - disse ele.

- Você é um tremendo enrolador de mulheres - repliquei. - Acho até que deviam obrigá-lo a usar uma plaquinha, para proteger as desavisadas que chegarem perto.

- Não sei o que foi que eu fiz de errado - reclamou ele.

- Sabe o que devia vir escrito na plaquinha? - Eu o ignorei, continuando a falar.

- Não, o que devia vir escrito, Lucy?

- Cuidado com as mentiras!

Ele abriu a porta da frente do prédio para mim, e o ar frio do mundo lá fora me atingiu como uma bofetada.

"Ai, meu Deus!", pensei, com ar sombrio. "Como é que vou conseguir agüentar esta noite?"

 

Quando chegamos ao restaurante, o homem com o olhar mais triste que eu já vira na vida confirmou nossa reserva.

— Dimitri vai pegar seus casacos — disse ele, com a voz pesada e um sotaque russo bem acentuado.

Parou em seguida, como se mal conseguisse reunir energia suficiente para continuar a falar.

— Depois disso — suspirou ele —, Dimitri vai acompanhá-los até a mesa.

Com o coração partido, estalou os dedos e, então, uns dez minutos depois, Dimitri apareceu, um homem baixinho e atarracado vestindo um paletó que não servia nele. Parecia à beira das lágrimas.

— Trrata-se do grrupo Vatson? — murmurou ele, pronunciando Watson com som de “V” e fazendo cara de quem estava em um funeral.

— Ahn... como disse? — perguntou Daniel.

— Ele está falando de nós. — Dei-lhe uma cotovelada. — Você é o Sr. Vatson.

— Sou? Ah, sim, sou mesmo!

— Porr-aqui, porr-favor — sussurrou Dimitri, com a voz rouca.

Antes, ele nos levou até um pequeno balcão, onde entregamos os nossos casacos a uma jovem muito bonita, mas com cara de tédio. Tinha uma estrutura óssea cheia de ângulos, uma pele que parecia porcelana, um cabelo negro muito brilhante e o ar de enfado infinito. Nem mesmo o “sorriso de cem watts” de Daniel conseguiu provocar a moça uma centelha de resposta.

— Sapatona! — resmungou ele, baixinho.

Então, seguimos Dimitri através do restaurante, caminhando em uma velocidade espantosa para os padrões dele, mas que, na verdade, era tão devagar quase parando que eu ficava esbarrando nas costas dele o tempo inteiro, atropelando-o por todo o caminho. Acabei pisando com força no seu calcanhar, o que o fez parar, se virar para trás e lançar-me um olhar que era mais de pesar do que de zanga.

Embora eu tivesse feito de tudo para não querer estar ali, tive de reconhecer que o lugar era lindo. Havia candelabros cintilantes, montes de veludo vermelho, gigantescos espelhos com molduras douradas e grandes plantas que pareciam palmeiras. O ambiente cantarolava e retinia com o som de gente jovem e bonita que conversava, bebia vodca aromatizada com cor de Gatorade, e derrubava caviar na roupa e no colo.

Agradeci muito, muito mesmo, por ter deixado que as meninas me convencessem a usar o vestido dourado. Talvez eu não sentisse que ali era o meu lugar, mas, pelo menos, ia aparentar que sim.

Daniel colocou o braço de leve em volta da minha cintura.

— Sai pra lá! — murmurei entre dentes, torcendo o corpo para me afastar dele. — O que pensa que está fazendo? Pare de me tratar como se eu fosse uma de suas mulheres.

— Desculpe, desculpe — disse ele, muito sério. — Agi por instinto. Por um instante me esqueci de que era você e entrei sem querer no estilo restaurante.

Dei uma pequena gargalhada e na mesma hora a cabeça de Dimitri girou para trás, a fim de olhar para mim.

— Hã... desculpe... — murmurei, sentindo-me um pouco envergonhada, como se eu tivesse sido desrespeitosa, dito uma blasfêmia ou algo assim.

— Sua mesa — anunciou Dimitri, fazendo um floreio fraco com as mãos e indicando hectares de branco como neve, linho engomado, centenas de taças de cristal cintilantes e vários quilômetros de talheres enfileirados, com brilho ofuscante.

Talvez acabássemos comendo apenas nabo cru, mas o Kremlin arrumara uma produção fantástica para o tal do nabo cru.

— Tudo aqui é muito legal — sorri para Daniel.

Então Dimitri e eu executamos uma pequena dança, puxando a cadeira ao mesmo tempo, depois afastando as mãos dali e a seguir esticando o braço para alcançá-la novamente.

— Hã... podemos pedir um drinque, por favor? — perguntou Daniel, quando finalmente conseguimos ser instalados em lados opostos da ampla mesa redonda.

Dimitri suspirou, indicando com ar melancólico que sabia o tempo todo que um pedido como aquele ia acabar acontecendo e que tal pedido era totalmente fora de propósito, porém, como era um homem bom e trabalhador, faria o melhor para nos atender.

— Vou mandarr virr Gregorr, seu garrçom de bebidas — anunciou e afastou-se penosamente.

— Mas... — disse Daniel, para as suas costas que se retiravam.

— Puxa — disse ele. — Eu só queria pedir um pouco de vodca, e agora vamos ter de aturar toda aquela lengalenga de vinhos.

Gregor apareceu de imediato e, sorrindo com tristeza, fez surgir uma lista imensa de bebidas que incluía todos os sabores de vodca aromatizada que existiam no planeta.

Eu gostei muito de tudo aquilo. Quase me senti feliz por ter ido.

— Humm... — disse eu, já empolgada. — Que tal o sabor morango? Ou manga? Ou, não, não, espere... que tal cassis?

— Qualquer coisa que você queira — gritou Daniel, do lado distante da mesa. — Escolha por mim.

— Bem, nesse caso — disse eu —, por que a gente não pede a vodca sabor limão, para começar, e depois experimenta outra diferente?

Eu tinha fascinação por cartas de bebida quando era pequena. Queria experimentar tudo, meu sonho era tomar todo o menu em ordem alfabética, sem repetir nada, só que sempre morria de medo de ficar bêbada e jamais fiz isso. Agora, acho que o que estava sugerindo com as vodcas de diversos sabores era apenas a versão adulta da velha idéia. Continuava com medo de ficar bêbada, só que, naquela noite, por algum motivo, achava que poderia sobreviver a isso.

— Então vai ser limão — disse Daniel.

Assim que Gregor saiu, Daniel disse baixinho:

— Venha para cá. Você está muito longe.

— Não — disse eu, um pouco nervosa. — Dimitri falou que era para eu ficar sentada aqui.

— E daí? Você não está na escola.

— Mas não quero deixá-lo chateado...

— Lucy! Não seja fraca e covarde. Venha até aqui.

— Não!

— Tudo bem, então eu vou até aí.

Ele se levantou e arrastou a cadeira por vários metros em volta da mesa, e se sentou quase no meu colo.

Os dois jovens casais glamourosos na mesa ao lado pareceram chocados, e lancei para eles um olhar do tipo “pobre de mim, olhem só para esse maluco que está comigo, sou muito fina e jamais faria uma coisa dessas”, mas Daniel parecia estar adorando.

— Pronto! — ele sorriu. — Assim está bem melhor. Agora consigo enxergar você. — E começou a trazer as facas e garfos e copos e guardanapos para perto dos meus.

— Daniel, por favor! — pedi, em desespero. — As pessoas estão nos observando.

— Onde? — perguntou ele, olhando em volta. — Ah, sei, já vi!

— Agora você vai se comportar? — trovejei, com justificada indignação. Só que eu já o perdera, porque ele fizera contato olho a olho com a mais bonita das duas mulheres da mesa ao lado, e já estava usando os truques habituais. Daniel olhou para a mulher, ela ficou vermelha e olhou para o outro lado. Então, ele olhou para o outro lado e ela o fitou, discretamente. Nesse instante, ele olhou para ela de repente, pegou-a olhando para ele e lançou-lhe um sorriso. Ela sorriu de volta e eu dei-lhe uma cotovelada no braço.

— Olhe aqui, seu canalha estúpido, eu não queria sair com você hoje à noite!

— Desculpe, Lucy, desculpe, desculpe, desculpe.

— Corta essa, o.k.? Não quero passar a noite toda com você olhando por cima do meu ombro.

— Ta legal, desculpe.

— Foi você quem quis que eu viesse, Então é melhor agir com educação e conversar comigo. E, se pretendia flertar com alguém, por que me convidou?

— Sinto muito, Lucy, você tem razão, me desculpe, Lucy.

A voz dele era de quem estava arrependido, mas a cara, não.

— E pode arrancar esse sorriso de garoto levado — continuei —, porque você não me engana.

— Sinto muito.

Gregor chegou com dois copos pesados cheios de um líquido amarelo-canário. Aquilo parecia ter vindo direto de Chernobyl, mas achei que seria deselegante dizer isso.

— Nossa — disse Daniel, desconfiado e segurando o copo contra a luz. — Parece que é radioativo.

— Cale a boca — disse eu. — Feliz aniversário!

Brindamos e entornamos a vodca.

Na mesma hora senti um formigamento na barriga, uma espécie de brilho que começou a se irradiar a partir do estômago.

— Ai, meu Deus! — E soltei uma risadinha.

— Que foi?

— Definitivamente, é radioativo.

— Mas é gostoso.

— Com certeza.

— Quer mais?

— Acho que sim.

— Onde está Gregor?

— Lá vem ele.

Gregor já estava vindo em nossa direção quando Daniel acenou para ele.

— Vamos tomar mais dois desses, Gregor, obrigado — disse Daniel.

Gregor pareceu gostar. Se é que era possível alguém parecer satisfeito e com o coração despedaçado ao mesmo tempo.

— Agora nós queremos o cor-de-rosa, por favor — completei.

— Morango? — perguntou Gregor.

— É cor-de-rosa?

— É.

— Então morango.

— Acho melhor pensarmos em pedir alguma coisa para comer.

— Certo — concordei, pegando o cardápio. Os drinques cor-de-rosa chegaram e estavam tão gostosos que resolvemos pedir mais dois.

Então acrescentei.

— Eles são muito pequenos. Não podem fazer tão mal assim.

Os dois novos drinques chegaram — eram de cassis, desta vez —, e nós os bebemos.

— Eles não duram muito tempo, não é? — comentei.

— Quer mais? — quis saber Daniel.

— Mais.

— E a comida?

— Acho que é melhor pedir. Ah, aqui está o Dimitri! Quando quiser, pode trazer o nabo cru, Dimitri — disse, com jovialidade. Chocada, descobri que estava me divertindo.

— Tenho algo para lhe contar, Lucy — disse Daniel, ficando sério de repente.

— Então vamos lá, desembucha — disse eu. — Por um momento achei que estava começando a me animar, mas decidi que é melhor pararmos com isso.

— Desculpe, eu não devia ter dito nada. Esqueça.

— Agora não posso mais esquecer, seu idiota. Você vai ter que me contar.

— Tá legal, só que você não vai gostar.

— Conte.

— É a respeito da Graça.

— Conte logo!

— Eu terminei com ela. Não foi ela que terminou comigo.

Ah, foi?, pensei, meio confusa. Então lembrei que a minha missão era manter Daniel em seu lugar.

— Seu canalha! Como pôde fazer isso?

— Mas eu estava de saco cheio, Lucy. O namoro estava tão chato... Era um pesadelo.

—Mas ela tinha peitos grandes.

— E daí?

— Daí que podemos dizer que isso foi um caso de “mamárias póstumas”, não é? — soltei, quase me desmanchando de tanto rir. Era uma daquelas raras ocasiões em que eu achava que estava sendo engraçada.

— Exatamente — concordou Daniel, rindo também.

— E agora que ela caiu em des-Graça, você ficou sem Graça — continuei, ainda me achando hilariante.

— Fiquei mesmo.

— Você é muito insensível.

— Ah, Lucy, não sou, não. Tentei ser legal com ela.

— Você a fez chorar?

— Não.

— Mesmo assim, é um canalha.

Daniel me pareceu um pouco chateado, com lágrimas nos olhos. A vodca estava fazendo com que nós dois ficássemos emotivos.

— Agora me arrependi de ter contado — disse ele, com a cara amarrada. — Eu sabia que você não ia gostar.

— Talvez não, mas vou ter que aturar com bravura.

Lancei um pequeno sorriso para ele. De repente, eu já não me importava tanto com Graça. Nada daquilo parecia ter a menor importância naquele momento.

— Isso foi muito filosófico de sua parte, Lucy.

— Eu sei, estou me sentindo muito filosófica.

— Engraçado, eu também.

— Por que será que estamos assim? Será que é a vodca?

— Só pode ser.

— Eu me sinto meio engraçada, Daniel, tipo assim, triste como sempre, mas feliz também. Feliz de um jeito meio triste.

— Eu entendo — concordou ele, depressa. — É exatamente assim que eu também me sinto. Com a diferença de que estou feliz como sempre, mas triste de um jeito meio feliz.

— Deve ser assim que os russos se sentem o tempo todo. — E soltei uma risadinha. Estava me sentindo com a cabeça bem leve, e sabia que estava falando bobagens, mas não me importava. Nada daquilo parecia bobagem, tudo parecia muito importante e real. — Você acha que eles bebem tanta vodca porque são filosóficos e infelizes ou são filosóficos e infelizes por beberem tanta vodca?

— Essa é difícil de responder, Lucy.

— Por que eu nunca encontro a mulher certa, Lucy? — perguntou ele, sério.

— Não sei, Daniel. Por que eu nunca encontro o homem certo?

— Não sei, Lucy. Será que vou ser sempre solitário?

— Sim, Daniel. Será que vou ser sempre soltária?

— Sim, Lucy.

Houve uma pequena pausa, enquanto sorríamos de modo triste um para o outro, unidos pela nossa melancolia acre-doce. Na verdade, adorando tudo aquilo. Em algum momento, a comida chegou. Deve ter sido nessa hora.

— Olhe, Dan, pense só... Nada disso importa, porque, pelo menos, estamos sendo essencialmente humanos. Estamos em contato com a dor de estarmos vivos. Vamos pedir outro drinque?

— De que cor?

— Azul.

Daniel se recostou na cadeira, tentando agarrar um garçom.

— Esta dama quer mais dois destes! — pediu ele, bem alto, balançando o copo em volta da cabeça. — Bem, ela não quer dois só para ela... ou talvez queira, quem sabe? Você quer, Lucy?

— O mesmo drinque, senhor? — perguntou Gregor. Pelo menos acho que era Gregor. Lancei um sorriso melancólico para ele, e ele me lançou um idêntico de volta.

— Exatamente o mesmo — respondeu Daniel. — Só que vão ser dois. Não, é melhor trazer quatro. E... ah, sim! — berrou ele, nas costas do garçom. — Eles têm de ser azuis!

— Muito bem, onde é que nós estávamos mesmo? — perguntou Daniel, sorrindo docemente.

Eu me senti feliz por ter vindo, porque gostava muito dele.

— Estávamos falando sobre dor existencial, não era? — perguntou Daniel.

— Estávamos — disse eu. — Estávamos mesmo. Será que eu ficaria bem com o cabelo como o daquela garota ali?

— Onde? — perguntou ele, olhando em volta. — Ah, ficaria, sim, ficaria linda! Aquele cabelo ia ficar melhor em você do que nela.

— Ótimo! — Dei uma risadinha.

— Qual é a disso tudo, Lucy?

— Qual é a disso tudo o quê?

— Isso tudo, você sabe, isso que estamos falando. A vida, as coisas, a morte, o cabelo?

— Sei lá, Daniel. Por que você acha que me sinto assim tão infeliz o tempo todo?

— Você gosta, não gosta?

— De quê?

— De se sentir infeliz.

— Gosto. — Dei uma risadinha. Mais uma, aliás. Não conseguia parar. Ele estava com a razão. Nós dois nos sentíamos infelizes, mas estávamos flutuando, quase em êxtase com a nossa infelicidade.

— Conte-me a história de você se casar.

— Não.

— Por favor.

— Não.

— Você não quer conversar a respeito?

— Não.

— É isso que você sempre diz a respeito de tudo.

— O quê?

— Que não quer conversar sobre o assunto.

— Bem, é porque eu não quero conversar sobre o assunto.

— Connie ficou furiosa?

— Muito furiosa. Ela me acusou de estar grávida.

— Pobre Connie.

— Pobre Connie uma ova!

— Você é muito dura com ela.

— Não, não sou.

— Ela é uma boa pessoa, sabe, que só quer o melhor para você.

— Rá! Para você é fácil dizer isso, porque ela sempre é simpática com você.

— Eu gosto muito dela.

— Eu não.

— Isso é uma coisa horrível de se dizer sobre a própria mãe.

— Não me importo.

— Você é muito cabeça-dura, Lucy.

— Ah, Daniel — Ri. — Pare com isso, pelo amor de Deus. A minha mãe pagou a você para me dizer coisas agradáveis a respeito dela?

— Não, eu gosto dela, de verdade.

— Bem, já que você gosta tanto assim dela, pode ir comigo até lá na quinta-feira, para visitá-la.

— Ta legal.

— O que quer dizer com “ta legal”?

— Quis dizer “ta legal”.

— Você não se importa?

— Não... É claro que não me importo.

— Ah, eu me importo.

Uma pequena pausa.

— Será que a gente pode parar de falar sobre ela, por favor? — pedi. — Estou começando a me sentir deprimida.

- Mas nós já estávamos nos sentindo infelizes, de qualquer modo.

- Eu sei, mas era um tipo diferente de infelicidade. Uma infelicidade legal. Eu estava gostando.

- O.k. Então vamos conversar a respeito do fato de que vamos todos morrer de qualquer jeito, e nada disso importa?

- Ah, sim, por favor. Obrigada, Dan, você é um anjo.

- Mas, antes... - declarou Daniel. - Mais drinques! Que cor ainda não experimentamos?

- Verde.

- Kiwi?

- Perfeito.

Mais drinques chegaram, e sei que nós dois comemos muito, mas depois de tudo fiquei totalmente perdida sobre o que realmente comera. Mas acho que gostei. Daniel contou que eu falava o tempo todo que a comida estava deliciosa. E tivemos um papo maravilhoso. Não consigo me lembrar de quase nada do que conversamos, mas sei que tinha alguma coisa a ver com o fato de que tudo é inútil e sem importância, já que estamos todos condenados mesmo, e naquele momento tudo fez sentido para mim. Estava me sentindo totalmente em paz comigo mesma, com o universo e com Daniel. Lembro-me vagamente de Daniel dando socos na mesa, dizendo, com entusiasmo: "Concordo plenamente!", e puxando um dos garçons (Gregor? Dimitri?) enquanto gritava: "Ouçam esta mulher, ela fala a verdade e não engana ninguém".

Foi uma noite maravilhosa e eu provavelmente ainda estaria lá gritando: "Lilás! Tem alguma vodca lilás?", se Daniel e eu não tivéssemos reparado, a certa altura, que éramos os únicos clientes ainda estavam no restaurante, e um monte de garçons baixinhos e atarracados, vestidos com paletós, estavam enfileirados atrás do bar, olhando para nós.

- Lucy – cochichou ele. – Acho que já está na hora de irmos embora.

- Não! Eu gostei daqui.

- Sério, Lucy, Gregor e todos os outros têm que voltar para casa.

Eu me senti culpada nesse instante.

- É claro que eles têm. Claro que têm. E vão levar muitas horas para chegar a Moscou, pelo ônibus noturno, pobrezinhos. E aposto que eles precisam acordar muito cedo amanhã, para voltar ao trabalho.

Daniel pediu a conta, falando bem alto. O comportamento reverente que exibimos na entrada já desaparecera há muito tempo.

A conta chegou, na mesma hora, e Daniel olhou para ela.

- Que valor é esse, a dívida externa da Bolívia? – perguntei.

- Parece mais a dívida externa do Brasil – disse ele. – Mas o que importa?

- Exato – concordei. – Além do mais, você é rico.

- Na verdade, não. Tudo é relativo. Só porque você ganha uma mixaria acha que todo mundo que ganha um pouco mais é rico.

- Ah.

- Na verdade, quanto mais você ganha, mais você deve.

- Dan, isso é maravilhoso! Essa é uma verdade econômica muito profunda: nas contas da vida, estamos todos no vermelho. Não é à toa que você tem um emprego tão bom.

- Não, Lucy – replicou Daniel, parecendo rouco de tanta empolgação. – Isso que você acabou de dizer é que é maravilhoso... e tão verdadeiro! Nas contas da vida, estamos todos realmente no vermelho. Você precisa anotar essa frase. Aliás, acho que devíamos anotar tudo o que falamos a noite toda.

Minha cabeça parecia girar ao pensar no quanto eu e Daniel éramos sábios. Disse a ele o quanto eu nos achava sábios e maravilhosos.

- Obrigada, Daniel – disse eu. – Foi tudo fabuloso!

- Fico feliz por você ter gostado.

- Foi ótimo! Tudo faz sentido agora.

- Como o quê, por exemplo?

- Bem, não é de estranhar o fato de eu nunca ter me sentido em casa em parte alguma, porque obviamente eu sou russa.

- Por que acha isso?

- Porque eu me sinto infeliz, mas fico feliz por isso. E sinto como se pertencesse a este lugar.

- Pode ser que você esteja apenas bêbada.

- Não seja tolo! Já fiquei bêbada antes, e nunca me senti desse jeito. Acha que posso arrumar um emprego na Rússia?

- Provavelmente, mas não quero que você vá embora.

- Você pode ir até lá para me visitar. Provavelmente vai ter que ir mesmo, depois que acabarem todas as garotas daqui.

- Bem pensado, Lucy. Afinal, nós vamos à festa sobre a qual Karen falou?

- Sim! Já tinha até esquecido.

 

- Você deixou uma boa gorjeta para eles? – cochichei para Daniel no momento em que finalmente deixamos o Kremlin, acenando para a equipe reunida na porta.

- Sim.

- Ótimo. Eles foram legais.

- Fiquei rindo o tempo todo enquanto subíamos as escadas para sair do Kremlin, e ri ainda mais quando saímos no ar frio da noite.

- Que legal. Foi muito divertido – disse, me apoiando em Daniel.

- Ótimo – disse ele. – Agora, comporte-se, senão a gente não consegue pegar um táxi.

- Desculpe, Daniel, acho que estou meio bêbada, mas me sinto tão feliz...

- Que bom, mas, por favor, cale a boca um minutinho.

Um táxi parou. O motorista tinha cara de irritado.

- Sorria - disse eu, abafando o riso. Foi sorte minha que ele não me ouviu.

Entrei, quase de gatinhas, e Daniel bateu a porta depois que entrou.

- Para onde? – perguntou o homem.

- Para onde o senhor quiser... – respondi, com ar sonhador.

- Hein?...

- Quando quiser e para onde quiser – disse eu. –O que importa? Daqui a cem anos o senhor não vai mais estar aqui, eu não vou mais estar aqui e o seu táxi com certeza não vai mais estar aqui.

- Pare com isso, Lucy. – Daniel me cutucou, tentando não rir. – Deixe o pobre homem em paz. Wimbledon, por favor.

- É melhor parar em uma loja de bebidas e comprar alguma coisa para levar para a festa.

- O que podemos levar?

- Que tal vodca? É o meu drinque preferido hoje.

- Certo.

- Não, acho melhor não.

- Por quê?

- Porque eu já estou bêbada o suficiente.

- E daí? Você não está se divertindo?

- Estou, mas é melhor parar.

- Não faça isso.

- Eu tenho que parar. Vamos comprar outra coisa, alguma coisa menos forte.

- Cerveja?

- Tanto faz.

- Ou você prefere uma garrafa de vinho?

- O que você quiser.

- Que tal uma caixa de cerveja Guinness?

- Você é que sabe.

- Lucy, pelo amor de Deus! Pare de ser tão submissa e diga o que prefere. Por que você fica sempre assim, concordando com tudo e...

- Não estou sendo submissa nem concordando com tudo – É que realmente tanto faz. Você sabe que não sou muito de beber.

O motorista do táxi soltou uma risada de deboche. Acho que ele não acreditou em mim.

Dava para ouvir a musica alta assim que o táxi virou a esquina.

- Parece que a festa está boa – disse Daniel.

- É mesmo – concordei. – Será que vai dar polícia? Essa é a verdadeira marca de uma grande festa.

- Ah, não... Pelo barulho, os vizinhos vão acabar chamando a polícia. Então é melhor entrarmos logo para começarmos a nos divertir, antes que os guardas acabem com a festa.

- Não se preocupe – disse eu, tranqüilizando-o. – Está escrito a respeito dos guardas: "Muitos são chamados, mas poucos são efetivos".

Daniel riu.

Mais do que devia, achei.

A vodca, pelo visto, ainda estava fazendo efeito.

Nesse momento houve uma pequena discussão entre nós dois, quando eu quis pagar o táxi.

- Eu pago – anunciei.

- Não, deixe que eu pago.

- Mas você já pagou o jantar.

- E você nem queria ir.

- Mesmo assim, o que é certo, é certo...

- Por que não relaxa e deixa alguém ser legal com você, Lucy? Você é tão...

- Ei! – disse o motorista. – Resolvam logo. Não tenho a noite toda. – Ele acabou interrompendo a pequena sessão de psicanálise que Daniel estava apresentando, antes mesmo de ela decolar.

- Paque ao homem logo – murmurei -, antes que ele pegue a marreta embaixo do banco.

- Daniel entregou o dinheiro, e o homem, com ar rabugento, aceitou a gorjeta, que deve ter sido alta.

- Você atura muito dessa garota, cara. – Foi o seu comentário de despedida. – Detesto mulher insolente e tagarela. – E o táxi foi embora.

Fiquei na calçada, olhando cheia de ódio para a traseira do táxi que desaparecia pela rua.

- Que atrevimento o dele. Eu não sou insolente e tagarela.

- Lucy, relaxe.

- Ah, tá legal.

- Para falar a verdade, ele tinha um pouco de razão. Você é bem insolente e tagarela, às vezes.

- Ah, cale a boca!

Tentei parecer chateada com Daniel, mas não consegui prender o riso.

Aquele era um comportamento muito incomum para mim. Mas também aquela noite toda estava sendo muito incomum.

Tocamos a campainha da casa onde a festa estava rolando, mas ninguém atendeu.

- Talvez eles não estejam ouvindo a campainha – disse eu enquanto esperávamos em pé na fria névoa noturna com as latas de Guiness debaixo do braço, escutando o som da música e dos risos por trás da pesada porta de madeira. – Talvez a música esteja alta demais.

Continuamos ali fora, esperando, tremendo de frio, sem que nada acontecesse.

- Deixe eu lhe dar pelo menos a metade – disse eu.

Daniel olhou para mim como se eu tivesse ficado maluca.

- Do que você está falando?

- Do táxi. Deixe que eu pelo menos pague metade da corrida.

- Lucy! Às vezes me dá vontade de dar um soco em você, sabia? Você me deixa...

- Shh!... Vem vindo alguém.

A porta se abriu e um rapaz com camisa amarela ficou parado, olhando para nós.

- Posso ajudá-los? – perguntou, com educação.

Foi aí que eu me toquei de que não fazia a menor idéia sobre quem estava oferecendo a festa.

- Hã... - disse Daniel.

- Hum... John nos convidou – murmurei.

- Ah, certo - disse o Camisa Amarela, sorrindo, e, sorrindo, subitamente, mais amigável. – Quer dizer que vocês são amigos do John? Ele é um porra-louca, não acham?

- Hã, sim – concordei, jogando os olhos para cima. – Porra-louca mesmo!

Aquilo era a coisa certa a dizer, porque a porta se escancarou na mesma hora, fomos aceitos e convidados a passar pelo portal, a fim de participar da animação que se desenrolava no lado de dentro. Reparei, com tristeza, que havia um terrível amontoado de garotas lá. Umas mil para cada homem, a proporção que normalmente havia nas festas de Londres, e todas começaram a olhar para Daniel com interesse.

- Quem é esse tal de John? – cochichou Daniel enquanto me empurrava para a sala encharcada de estrogênio.

- Você não ouviu? Ele é um porra-louca.

- Sim, mas quem é ele?

- Sei lá – sussurrei , disfarçando e olhando em volta para me certificar de que o Camisa Amarela não estava ouvindo ali por perto. – Achei que havia uma grande chance de haver alguém chamado John morando aqui, ou de um John ser amigo dos moradores. Lei das probabilidades e tal...

- Puxa, você é uma maravilha – disse Daniel em tom de admiração.

- Não sou não – expliquei. – É que você vive saindo com mulheres muito burras.

- Você tem razão, sabia? – comentou ele, pensativo. – Por que será que eu sempre pego as tapadas?

- Porque elas são as únicas que têm alguma afinidade com você – expliquei, com gentileza.

- Você está sendo muito cruel comigo. – E me lançou um olhar amargo.

- Não estou, não – argumentei, de forma razoável. – Estou falando para o seu próprio bem. Dizer isso magoa mais a mim do que a você.

- Sério?

- Não.

- Ah.

- Agora, nada de ficar com a cara amarrada, Daniel. Vai estragar o perfil másculo do seu rosto e as garotas vão fugir assustadas.

Nossa briga mal começou e foi interrompida por uma voz vibrante e alegre, com sotaque escocês:

- Que ótimo vocês terem chegado!

Karen, com seu olhar agudo e penetrante, vinha em nossa direção, atravessando com dificuldade a multidão que estava em pé na sala, com latas de cerveja nas mãos. Ela devia estar vigiando a porta de entrada a noite toda, pensei, de forma pouco generosa, e na mesma hora me senti culpada. Não era crime achar Daniel atraente, apenas uma terrível falta de bom gosto e discernimento. Karen estava linda, bem ao jeito de Daniel, toda loura, alegrinha e glamourosa. Se ela atacasse do jeito certo e conseguisse fingir que era burra, eu tinha certeza de que havia muita chance de ela ser a próxima namorada de Daniel. Karen, toda exuberante, nos contou o quanto estava feliz por nos ver ali, e começou a metralhar perguntas em cima de nós com a velocidade de pingos de chuva em um temporal de verão.

Como era o restaurante? A comida estava uma delicia? Havia alguém famoso lá?

Por alguns momentos fui tola o bastante para achar que aquilo era uma conversa real, e que eu era parte dela. Ate que comecei a reparar que Karen recebia as minhas historias pretensamente engraçadas a respeito de Gregor e Dimitri com um silêncio sepulcral, mas toda vez que Daniel abria a boca ela se escangalhava toda de tanto rir. E sempre que eu e ela olhávamos nos olhos uma da outra, ela franzia a cara de forma enérgica e significativa. Suas sobrancelhas ricocheteavam da testa para as maças do rosto e subiam de volta, e então notei que ela estava me fazendo algum sinal com os lábios. Apertei os olhos para ver melhor, acompanhando o formato da sua boca para tentar descobrir o que era. Ela fez de novo. Como é que é?... O que poderia ser?... Qual é a primeira letra?... Tem som de quê?... Tem duas sílabas?...

- Cai fora!

Ela se inclinou na minha direção e cochichou na minha orelha, enquanto Daniel estava ligeiramente distraído, tirando o casaco.

- Pelo amor de Deus, cai fora!

- Ah, hã... tá legal.

As sementes da minha conversa estavam caindo em terreno infértil, e ali eu era, com certeza, excesso de bagagem. Era hora de sair de fininho. Do jeito que as coisas estavam, eu já sabia o que me esperava no dia seguinte. Karen ia me dar a maior esculhambação ("Pelo amor de Deus, por que você não caiu fora logo de cara? Fala sério! Não acredito que você seja tão panaca!").

Eu sabia quando não era bem-vinda. Na verdade, eu era muito boa nisso, às vezes sacava até mesmo antes da outra pessoa. Estranhamente, meu desconfiômetro estava desligado naquela noite.

Fiquei vermelha de vergonha. Detestava a sensação de ter feito algo errado e murmurei:

- Eu... hã... vou dar uma volta por aí. – Saí de campo discretamente, me afastei dos dois e fiquei sozinha, em pé no meio da sala.

Nenhum dos dois fez objeções à minha saída. Senti uma leve fisgada de desapontamento por Daniel não tentar me manter ali, ou pelo menos perguntar para onde eu ia, mas eu sabia que se a situação fosse inversa e eu estivesse a fim de alguém, também não ia querer tê-lo por perto.

Só que me senti um pouco humilhada. Estava ali, sozinha, não havia ninguém que eu conhecesse em volta, ainda continuava de casaco e tinha a certeza de que todo mundo estava olhando para a minha cara, achando que eu não tinha amigos. A euforia induzida pela vodca acabara, e o agudo senso de constrangimento retornara. Subitamente me senti muito sóbria, até demais.

Eu passara quase a vida toda achando que a existência era uma festa para a qual eu não fora convidada. Naquele momento eu estava realmente em uma festa para a qual não fora convidada, e era quase reconfortante descobrir que todos os sentimentos que me acompanharam pela maior parte da vida – isolamento, inadequação, paranóia – eram, o tempo todo, as emoções certas para sentir.

Naquele espaço apertado, consegui tirar o casaco, bem devagar. Colei um sorriso alegre na cara, na esperança de transmitir às pessoas barulhentas e felizes à minha volta que elas não eram as únicas ali que estavam se divertindo a valer; que eu também estava feliz, tinha uma vida gratificante e toneladas de amigos, e que estava ali sozinha por decisão própria, mas poderia estar em uma multidão de pessoas amigas a qualquer hora que desejasse. Não que isso importasse alguma coisa para alguém, porque ninguém estava me dando a menor bola. Pelo jeito como uma garota esbarrou em mim e pisou no meu dedão ao correr toda agitada para atender a porta, e pelo jeito que outra garota entornou o cálice de vinho em mim ao tentar ver as horas no relógio de pulso, eu me senti como se as pessoas não estivessem nem mesmo me vendo.

Não foi o vestido manchado que me aborreceu, foi o jeito como ela estalou a língua para mim, como se fosse culpa minha, porque então eu comecei a achar que realmente a culpa tinha sido minha mesmo, pois eu não devia estar parada ali em pé no meio do caminho, para começo de conversa.

Parece que eu passava a vida toda oscilando entre me sentir terrivelmente observada ou totalmente ignorada.

Então, por uma brecha na multidão, avistei Charlotte e fiquei mais animada. Lancei-lhe um imenso sorriso e gritei para ela, avisando que ia para lá. Ela, porém, balançou a cabeça para os lados, de forma quase imperceptível, mas mesmo assim inegável. Acho que estava conversando com um rapaz.

Depois de séculos sorrindo feito uma boba alegre, mais parecendo a idiota da aldeia, encontrei algo para fazer: resolvi colocar a cerveja na geladeira. Adorei descobrir um propósito para mim. Uma utilidade. Uma função. Ainda que de modo humilde, eu tinha alguma importância.

Empolgada comigo mesma e com o recém-descoberto senso de valor próprio, fui abrindo caminho pelo povo que se aglomerava na sala, pelas multidões ainda maiores que havia na cozinha e coloquei quatro latas de Guinness na geladeira. Depois, enfiei duas debaixo do braço e tentei nadar pelo mar de gente tentando voltar à sala da frente, onde toda a diversão parecia estar rolando.

E foi nesse instante que eu o vi.

 

Nos meses que se seguiram, passei a gravação daquela cena na minha cabeça com tanta freqüência que me lembro de absolutamente tudo a respeito dela, até dos mínimos detalhes.

Estava saindo da cozinha quando ouvi a voz de um homem que dizia, em admiração:

- Contemplem! Uma visão toda em ouro! Uma deusa! Uma verdadeira deusa!

Naturalmente continuei a empurrar e a forçar a passagem para conseguir sair da cozinha, porque, embora estivesse usando um vestido dourado, estava usando também o meu complexo de inferioridade feito sob medida e, portanto, nem por um segundo achei que a pessoa que estava sendo chamada de deusa era eu.

- E não se trata de uma deusa qualquer – continuou a voz – mas a minha deusa favorita, a deusa Guinness

Esse detalhe da Guinness conseguiu atravessar a minha barreira da humildade, me virei e vi que havia um rapaz encostado no freezer. Não que isso fosse alguma coisa especial, pois era uma festa, afinal o lugar estava entulhado de gente e havia até mesmo uns dois homens encostados em eletrodomésticos.

O rapaz parecia muito jovem, era difícil determinar sua idade, mas era uma gracinha, tinha cabelos muito pretos, compridos e encaracolados, olhos um pouco avermelhados, mas com uma tonalidade bem verde, e estava sorrindo diretamente para mim, como se me conhecesse, o que fez com que eu me sentisse muito bem.

- Oi? – Acenou ele com a cabeça, de um jeito civilizado e amigável.

Nosso olhos se encontraram e tive uma sensação estranha. Foi como se já o conhecesse também. Comecei a encara-lo e , embora soubesse que estava sendo indelicada, não consegui desviar o olhar. Fui inundada por uma sensação de calor e confusão, ao mesmo tempo que fiquei totalmente intrigada, porque, embora tivesse certeza de que nunca havia me encontrado com ele, de algum modo eu já o conhecia, Não sei bem o que era, mas havia alguma coisa nele, algo muito familiar.

- Porque demorou tanto ? – perguntou ele, com voz alegre. – Estava esperando por você.

- Estava? – engoli em seco, de nervoso.

Meu coração disparou. O que estava havendo?, me perguntei.

Quem era ele? O que significava aquele reconhecimento instantâneo que surgiu entre nós como um relâmpago?

- Estava sim – confirmou ele – Desejei que aparecesse uma mulher linda com uma Lara de Guinness na mão, e aqui esta você.

- Ah.

Fazendo uma pausa, ele se esticou um pouco mais, ainda encostado no freezer. Era a imagem viva do relaxamento, parecia feliz e com boa aparência, apesar de estar com os olhos um pouco turvos. Parecia não achar nada de estranho na conversa.

- Você está esperando por mim faz muito tempo? – perguntei.

De modo estranho, aquilo me pareceu algo perfeitamente normal de perguntar, como se eu tivesse puxando assunto com um estranho no ponto de ônibus.

- Pela maio parte dos últimos novecentos anos – suspirou.

- Ahn?...novecentos anos? – perguntei, levantando uma sobrancelha. – mais ainda não haviam inventado latas de Guinness há novecentos anos.

- Exato – disse ele. – é isso que estou dizendo. Só Deus sabe o quanto sofri. Tive que ficar esperando que eles descobrissem a tecnologia para fazer as latas, e foi muito chato. Se pelo menos eu tivesse desejado uma jarra hidromel * ou uma caneca de cerveja caseira, teria evitado muito trabalho e problemas para nós dois.

- E você está parado aí há muito tempo? - perguntei.

- Estive aqui quase o tempo toso - respondeu ele. – às vezes, eu ia até ali - e indicou com o dedo um ponto no chão, a menos de um metro de onde ele estava -, mas na maior parte do tempo fiquei aqui mesmo.

Sorri. Estava embevecida por ele e suas histórias.

Ele era exatamente o tipo de homem que eu gostava, não era apagado nem ´sério demais, ela criativo, tinha imaginação e era muito gato!

- Estive esperando aqui por tanto tempo que é difícil acreditar que você finalmente está aqui. Voe é real? – perguntou ele – ou é apenas uma criação da minha imaginação sedenta de Guinness?

- Não, sou perfeitamente real – assegurei a ele, embora eu mesma não tivesse tanta certeza. E não tinha certeza se ele era real também.

- Quero que você seja real, você esta me garantindo que é real, mas pode ser que eu esteja apenas imaginando isso tudo, até mesmo a parte em que você me diz que é real. Está tudo meio confuso, consegue compreender o meu problema?

- Consigo – disse, com ar solene. Eu estava encantada.

- Posso pegar a minha lata de Guinness? – quis saber ele.

- Bem, isso eu não sei – disse, um pouco ansiosa, me esquecendo por um istante, de que estava encantada.

- Foram novecentos anos – lembrou-me ele, de forma gentil.

- Sim, eu sei – disse eu. – entendo o seu problema, perfeitamente, só que estas cervejas são do Daniel. Isto é, foi ele que pagou por elas, e eu estava indo, neste exato momento, levar uma delas para ele e... Ah, deixa pra lá, pode beber uma.

- Pode ser que o Donal tenha pago pelas cervejas, mas o destino determinou que elas sejam minhas – explicou-me ele, em tom de confidência e , por algum motivo, acreditei nele.

- è mesmo? – perguntei, com a voz oscilante, dividida entre o desejo de me entregar às forças sobrenaturais que operavam naquele instante entre mim e aquele homem e o medo de ser acusada de não sustentar minha posição com firmeza e sair distribuindo latas de Guinness alheias por aí.

- Donal ia gostar que fosse desse jeito - prosseguiu ele, removendo com delicadeza alguma coisa sob o meu braço.

- Daniel, o nome dele é Daniel – disse, distraída, dando uma olhada em volta da sala. Dava pra ver a cabeça de Daniel e a cabeça de Karen bem próximas uma da outra, e me pareceu que Daniel não ia ligar a mínima para a lata de Guinness, de qualquer modo.

- Talvez você tenha razão - concordei

- Há apenas um problema – disse ele.

- Qual o problema?

- Bem, se você é fruto da minha imaginação, então, por definição, a sua Guinness também é imaginária, e uma Guinness imaginária não é nem de perto tão boa quanto uma Guinness real.

Ele tinha um sotaque lindo, suave e lírico, que me parecia familiar, embora eu não conseguisse descobrir de onde era.

Ele abriu a lata e despejou o conteúdo garganta abaixo. Bebeu a lata inteira de um gole só, sem tira-lá da boca, enquanto eu ficava ali em pé, olhando para ele. Devo confessar que fiquei impressionada com a cena. Em toda minha vida, vira pouquíssimos homens que eram capazes de fazer aquilo. Na verdade, o único que vira fazer isso era meu pai.

Estava deleitada, completamente cativada por aquele homem criança, quem quer que ele fosse.

-Hummm... – disse ele, pensativo, olhando para a lata vazia e depois para mim – é difícil dizer. Pode ter sido real, mas também talvez tenha sido apenas imaginação.

- Tome – disse eu, entregando a outra lata para ele. – É real, garanto.

- Por alguma razão, acredito em você. – E, pegando a segunda lata, repetiu a performance.

- Sabe de outra coisa?... – disse ele pensativo, limpando a boca com as costas da mão. – Acho que talvez você esteja com a razão. E se a Guinness é real, então isso aqui significa que você é real também.

- Acho que sou – disse, com ar pesaroso. – Embora, muitas vezes, eu não tenha certeza.

- Às vezes você se sente invisível? – perguntou ele.

Meu coração disparou. Ninguém, ninguém mesmo, jamais me perguntara aquilo antes, e era exatamente assim que eu me sentia por períodos imensos da minha vida. Será que ele conseguia ler meus pensamentos? Eu estava abismada. Ele reconhecia tanta coisa em mim! Alguém no mundo me compreendia. Um completo estranho conseguira olhar dentro de minha alma e descobrir a minha essência. Senti-me com a cabeça leve de alívio, alegria e esperança.

-Sim – concordei, baixinho. – Às vezes eu me sinto invisível.

- Eu sei – afirmou ele

- como?

- Porque eu me sinto assim também

- Oh!

Houve uma pausa e nós dois ficamos ali em pé, olhando um para o outro por algum tempo, sorrindo levemente.

- Qual é o seu nome? – perguntou ele, de repente. – ou eu posso chamá-la simplesmente de deusa Guinness? Se preferir, podemos abreviar o nome para DG. Só que, neste caso, eu poderia confundi-la com aquele cavalo que também se chama DG, ia acabar apostando seu nome e, cá entre nós, você não se parece nem um pouco com um cavalo, embora tenha pernas lindas (nesse instante parou de falar e se inclinou para o lado até que a cabeça ficou na altura dos meus joelhos) ... Sim, tem pernas muito lindas. – E continuou, endireitando-se: - Mas não acho que você consiga correr rápido o bastante para vencer o Grande Prêmio. Embora talvez conseguisse chegar entre os três primeiros colocados e, portanto, talvez eu devesse apostar em você, afinal. Vamos ver, vamos ver. Enfim, qual o seu nome?

- Lucy.

- Lucy, é? – confirmou, pensativo, olhando para mim com os olhos muito verdes e ligeiramente avermelhados nos cantos.- Um belo nome para uma bela mulher.

Embora não estivesse certa de ser o caso, tinha de perguntar a ele:

- Você... por acaso, não é...irlandês, é?

- Sim, mas veja você!... O que mais eu poderia ser, exceto irlandês? – respondeu ele, exagerando o sotaque irlandês e exibindo um pequeno passo de dança.- Vim direto do condado de Donegal.

- Eu sou irlandesa também- disse, empolgada.

- Mas você não tem sotaque de irlandesa- disse ele, com ar de dúvida.

- Eu sou sim! – protestei.- Pelo menos os meus pais são. Meu sobrenome é Sullivan

- Ah, isso é irlandês, com certeza – admitiu. – Você é da espécie Araquus, variedade Irlanddus?

- Como é que é?

- Você é uma irlandesa de araque?

- Bem, eu nasci aqui na Inglaterra – admiti. – Mas me sinto irlandesa

- Então para mim já está bom – disse, com jeito alegre. – Meu nome é Gus, mas meus amigos me chama, de Augustus, para facilitar

- Ah. – Eu me sentia fascinada. Aquilo estava cada vez melhor.

- Muito prazer em conhecê-la, Lucy Sullivan – disse ele, pegando a minha mão.

- E eu também tenho muito prazer em conhece-lo, Gus.

- Não, por favor -a agradá-lo, mas ao mesmo tem disse ele, levantando a mão, em protesto – Chame-me apenas de Augustus, eu insisto.

- Bem, se dá no mesmo para você, eu preferia chamá-lo de Gus. Augustus vai deixar a minha bica muito cheia.

- Vou? – perguntou ele, parecendo surpreso. – Vou deixar a sua boca muito cheia? E olhe que você acabou de me conhecer, hein?

- Hã... Você entende o que quero dizer – expliquei, imaginando se a gente estava falando de coisas ligeiramente diferentes.

- Em toda a minha vida, nenhuma mulher jamais falou isso a meu respeito – disse ele, olhando para mim pensativo.-Você é uma mulher mesmo muito especial, Lucy Sullivan. Uma mulher muito perceptiva, podemos dizer. E, se insiste em formalidades, então que seja Gus.

- Obrigada.

- Isso mostra que você teve uma criação muito boa.

- Mostra?

- Ah, claro! Você tem modos encantadores, é muito gentil e educada. Imagino que você sabia tocar piano, não sabe?

- Hã... não, não sei – Fiquei me perguntando o que provocara uma mudança de assunto tão repentina. Tive vontade de dizer a ele que sabia tocar piano sim, pois estava louca para agradá-lo, mas ao mesmo tempo fiquei com medo de contar uma mentira tão descarada e ele sugerir que tocássemos alguma coisa em dueto, ali mesmo, naquela hora.

- Você deve tocar violino, então?

- Hã...não.

- apito?

- Não.

- nesse caso, só pode ser sanfona.

- Não – eu disse, querendo que ele parasse com aquilo. Que papo era aquele sobre instrumentos musicais?

- Você não parece ter pulsos fortes o bastante para ser uma tocadora de bodhrán. *

- sobre o que estamos conversando, afinal?

- Bem, Lucy Sullivan, você me derrotou por completo. Desisto. Conte-me, qual é o seu instrumento?

- Que instrumento?

-O instrumento que você toca

- Mas eu não toco instrumento nenhum!

- o quê?! Mas se você não toca nada, então, certamente, escreve poemas.

- Não – disse eu bem depressa, e comecei a pensar em um jeito de escapar. Aquele papo era muito esquisito, até mesmo para mim, e olhe que eu tinha um limite bem alto para esquisitices.

Personagens de Flann O’Brien ** ficavam muito bem nos livros de Flann O’Brien, mas ficar batendo papo com um deles em uma festa era um assunto completamente diferente.

Então, como se ele tivesse lido meus pensamentos, colocou a mão sobre o meu braço e começou a parecer bem mais normal.

-Desculpe-me, Lucy Sulliven – pediu ele, humilde. – sinto muito. Assustei você, não foi?

-Um pouco – admiti.

-Sinto muito – repetiu ele

- Tudo bem- sorri, aliviada. Não fazia objeções a pessoas esquisitas e ligeiramente excêntricas, mas quando elas começavam a exibir tendências psicóticas sabia que era hora de jogar a toalha.

- É que ingeri uma grande quantidade de drogas classe A, no inicio da noite – continuou ele -, e não estou no meu normal.

- Ah, - disse eu desanimada, sem saber o que pensar sobre aquilo. Então ele usava drogas? Aquilo era algum problema para mim? Bem, não exatamente, imaginava, contanto que não fosse heroína injetável, porque ele iria precisar de colherinhas de chá para dosar a quantidade, e nós já tínhamos poucas colherinhas no apartamento.

- Que drogas você usa? – perguntei, com hesitação, tentando parecer que não o censurava.

- Quais a que você tem ai? - começou a rir, mas parou de repente – Estou fazendo aquilo de novo não estou? Assustando você?

- Beemmm... você sabe...

- Não se preocupe Lucy Sullivan. Sou apreciador apenas de alucinógenos leves ou relaxantes, nada mais. E sempre em quantidades pequenas. E com pouca freqüência. Quase nunca, na verdade. A não ser um traguinho. Tenho que admitir que adoro tomar uns traguinhos de vez em quando.

- Ah, então tudo bem - disse eu. Não tinha problemas com homens que bebiam.

Fiquei pensando, porém, que se ele estava sob a influencia de algum narcótico, será que isso significava que normalmente ele não contava historias, casos de sonhos e era um cara maçante como qualquer outro? Esperava desesperadamente que não. Seria um desapontamento insuportável se aquele homem incomum, charmoso e lindo desaparecesse junto com o resto de droga em seu sangue.

-Você normalmente é desse jeito? – perguntei, com cautela – Você sabe, hã... fica imaginando coisas, contando historias e tudo o mais? Ou esta assim só pelo efeito das drogas?

Ele olhou para mim, com os cachos brilhantes caindo-lhe por sobre os olhos.

Por que será que eu não consigo fazer com que os meus cabelos brilhem tanto assim?, perguntei a mim mesma, distraída, imaginado qual condicionador ele usava.

- Esta é uma pergunta muito importante, não é, Lucy Sullivan? – analisou ele, ainda olhando para mim. – Muita coisa esta em jogo nessa resposta.

- Imagino que sim. - resmunguei.

- Vou ser completamente honesto – disse ele, com ar sério. – Não posso apenas lhe dizer o que você deseja ouvir, posso?

Não estava certa sobre se concordava com aquilo ou não. Em um mundo tão imprevisível e desagradável, era incomum e muito gratificante ouvir apenas o que eu queria ouvir.

- Imagino que não. – suspirei

- Você não vai gostar do que vou lhe dizer, mas sou moralmente obrigado a fazê-lo, mesmo assim.

- Tudo bem – disse eu, com tristeza.

- Não tenho escolha. – e tocou meu rosto com delicadeza.

- Eu sei.

- Ah! – gritou ele de repente, abrindo os braços em forma teatral, atraindo olhares preocupados de todos os que estavam na cozinha. Ate as pessoas na porta dos fundos se viraram para olhar. – “oh, que teia confusa tecemos ao mentir pela primeira vez!” * Você não concorda com isso, Lucy Sullivan?

- Sim. – Eu ri. Não pude evitar, ele parecia tão louco e engraçado.

- Você sabe tecer, Lucy? Não? Não há muita procura por isso hoje em dia. É uma arte que está morrendo, uma arte que está realmente morrendo... eu também não sou muito bom nisso. Sou muito desajeitado, sou mesmo. Agora vou lhe contar o que quer saber, com toda honestidade, Lucy Sullivan...

- Sim, eu gostaria que assim fosse normalmente.

- Pois aqui vai: eu sou ainda pior do que isso quando estou careta. Pronto! Contei! Acho que agora vai me virar as costas e ir embora.

-Na verdade, não.

-Mas você não me acha um lunático, um cara exibido, que deixa você constrangida?

- Acho.

-Isso significa que caras lunáticos, exibidos e que deixam você constrangida são os seus preferidos, Lucy Sullivan?

Eu nunca havia pensado sobre isso daquela maneira, mas agora que ele tinha mencionado...

- Sim – disse eu.

 

Ele me pegou pela mão, me levou pela sala e me deixei ser levada. Para onde será que ele estava me puxando, imaginei, empolgada. Empurrei Daniel para o lado e ele levantou as sobrancelhas com ar questionador, e então balançou o indicador para a frente, como se

estivesse dando uma bronca em mim, mas o ignorei. Gus era uma pessoa muito legal para se conversar.

- Sente-se aqui, Lucy Sullivan. - Gus apontou para o primeiro degrau de uma escada. - Podemos levar um papo calmo e agradável.

Isso parecia muito improvável de acontecer, pelo fato de que havia mais gente subindo e descendo a escada do que passeando pela Oxford Street. Eu nem estava muito certa sobre o que estava rolando no andar de cima. O de sempre, eu imaginava. Gente tomando drogas, garotas transando com o melhor amigo do namorado em cima do casaco dele, coisas assim...

- Olhe, me desculpe por ter deixado você apavorada ainda há pouco, Lucy, mas é que imaginei que você devia ser um tipo de pessoa muito criativa - disse Gus, depois de ter me instalado no pé da escada.

- Sou músico, e a música, para mim, é uma coisa apaixonante - continuou ele. - Às vezes eu me esqueço de que nem todos pensam assim.

- Tudo bem - disse, adorando aquilo. Ele não apenas era louco, mas também músico, e os meus homens preferidos sempre tinham sido músicos, escritores ou qualquer outra coisa que envolvesse processo criativo e comportamento típico de um artista torturado. Jamais me apaixonara por um homem que tinha um emprego formal e torcia para que isso jamais acontecesse. Não conseguia imaginar nada mais chato do que um homem assalariado, totalmente controlado com o dinheiro e que conseguia viver dentro das suas posses. Achava a insegurança financeira um grande afrodisíaco. Minha mãe e eu discordávamos violentamente nesse ponto, mas a diferença entre nós é que ela não tinha um único osso de romantismo dentro do corpo, enquanto eu tinha de pensar muito para achar uma porção do meu esqueleto que não fosse romântica. O rádio, o cúbito, a rótula, o fêmur, os ossos da bacia (especialmente esses!), o esterno, o úmero, a escápula - na verdade as duas -, as diversas vértebras, uma imensa seleção de costelas, uma pletora de metatarsos, quase o mesmo número de metacarpos, os três ossinhos do ouvido interno, todos os ossos do meu corpo eram românticos.

- Então você é músico? - quis saber, com interesse. Talvez fosse por isso que eu achava que já o conhecia. Talvez já o tivesse visto em show, ouvido ou visto uma foto dele em algum lugar.

- Sou.

- Você é famoso?

- Famoso?

- Sim, você é muito conhecido?

- Lucy Sullivan, não sou muito conhecido nem mesmo em minha própria casa.

- Ah.

- Deixei você desapontada, não deixei? Mal nos conhecemos e você já está em crise... Vamos precisar de ajuda, Lucy. Fique aqui quietinha que vou procurar um catálogo para telefonarmos para o Serviço de Auxílio a Relacionamentos.

- Não, não precisa! - Ri. - Não fiquei desapontada não. É que me pareceu que já conhecia você, mas não sabia de onde. Pensei que talvez fosse famoso, e isso explicaria tudo.

- Você quer dizer que já não nos conhecíamos? - perguntou ele, parecendo chocado.

- Acho que não - respondi, me divertindo com aquilo.

- Mas é claro que já nos conhecemos - insistiu ele. - Pelo menos em uma existência anterior, se não tiver sido nesta.

- Pode ser - disse eu, pensativa. ­ Mas, mesmo que a gente tenha se conhecido em uma vida anterior, quem é que pode afirmar que gostávamos um do outro? Isso sempre me incomodou. Só porque as pessoas se reconhecem de outra vida não significa que elas tenham de gostar uma da outra, não é?

- Você tem toda a razão - disse Gus, apertando a minha mão com força. - Também sempre achei isso, mas você é a primeira pessoa que encontrei que concorda comigo.

- Imagine só se eu tiver sido o seu chefe em outra vida. Aposto que você não ia ficar muito satisfeita por me encontrar de novo, ia?

- Não! Puxa vida, isso não seria horrível? Morrer, viajar pelo espaço e pelo tempo, tornar a nascer e encontrar as mesmas pessoas desagradáveis com quem convivemos da outra vez. "Lembra-se de mim, do antigo Egito? Ótimo, porque você fez uma porcaria de trabalho naquela pirâmide, volte lá e refaça o serviço."

- Exato, Gus. Ou que tal: "Lembra­se de mim? Eu sou aquele leão que o devorou quando você era cristão em Roma. Lembrou? Ótimo, agora vamos nos casar."

Gus riu, deliciado.

- Você é maravilhosa! De qualquer modo, nós dois devemmos ter nos dado muito bem em qualquer vida dessas em que tenhamos nos conhecido. Estou com um sentimento bom a respeito disso. Você provavelmente me explicou o Teorema de Pitágoras no dia em que ele perdeu a paciência para me ensinar. Era um sujeito muito estourado, o tal de Pitágoras... Ou me emprestou dinheiro na virada do século retrasado, ou algo legal assim. Tem alguma outra Guinness por aí?

Mandei Gus pegar mais na geladeira e fiquei ali sentada na escada, esperando. Estava eletrizada, maravilhada, explodindo de felicidade. Que homem adorável! Fiquei tão feliz por ter ido à festa! Senti o sangue gelar nas veias ao pensar que podia, com a maior facilidade, não ter ido, e então jamais o teria conhecido. Talvez a Sra. Nolan estivesse certa, afinal, Gus podia ser o homem sobre o qual ela falou, o homem pelo qual eu estava esperando.

Por falar em esperar, onde, diabos, ele havia se enfiado?

Quanto tempo levava para ir até a geladeira e roubar o resto das latas de Guinness de Daniel?

Ele já não saíra dali há séculos? Será que, enquanto eu estava sentadinha no degrau com um sorriso de idiota sonhadora na cara, ele começara a bater papo com alguma outra garota e se esquecera completamente de mim?

Comecei a ficar nervosa.

Quanto tempo mais eu devia esperar, antes de começar a procurá-lo?, imaginei. O que poderia ser considerado um intervalo de tempo decente antes de eu ir atrás dele?

E não era um pouco cedo em nosso relacionamento, mesmo para mim, para ele começar a me enrolar?

Meu estado de sonho e introspecção feliz abruptamente se dissolveu. Eu devia saber que aquilo era bom demais para ser verdade.

Comecei a reparar no barulho e nos empurrões que as pessoas trocavam em volta de mim. Eu as esquecera totalmente, enquanto conversava com Gus, e comecei a me perguntar se elas estavam todas rindo da minha cara. Será que todos já haviam visto Gus fazer isso com milhares de mulheres? Será que dava para eles sentirem o meu medo?

Mas não, ali estava ele de volta, meio descabelado.

- Lucy Sullivan - declarou ele, parecendo ansioso e distraído -, desculpe­me por ter demorado tanto, mas acabei me envolvendo em uma terrível rixa.

- Ai, meu Deus. - Ri. ­ O que aconteceu?

- Ao chegar à geladeira, vi um homem que tentava se servir das latas de Guinness do seu amigo Donal. "Tire as mãos destas latas!", gritei. "Não tiro!", disse ele. "Vai tirar sim!", disse eu. "Mas elas são minhas!", disse ele. "Não são suas, não!", insisti. Seguiu-se uma luta corporal, Lucy, na qual sofri pequenos ferimentos, mas a Guinness esté a salvo agora.

- Está? - perguntei, surpresa, porque Gus estava com uma garrafa de vinho tinto na mão e não havia sinal da Guinness em parte alguma.

- Sim, Lucy, executei o sacrifício final, e ela está a salvo agora. Ninguém mais vai tentar roubá-la.

- O que você fez?

- O que fiz? Bebi tudo, é claro, Lucy! O que mais poderia fazer?

- Hā...

Olhei para trás, um pouco nervosa, e, como já era de esperar, avistei Daniel por entre as barras do gradil da escada. Ele estava vindo pela sala em minha direção, com uma cara muito aborrecida.

- Lucy! - gritou ele. ­ Um palhaço acabou de roubar...

E parou de falar quando viu Gus.

- Foi você! - berrou Daniel.

Ai, meu Deus! Daniel e Gus obviamente haviam se encontrado.

- Daniel, Gus. Gus, Daniel ­ apresentei­os, em voz baixa.

- Foi ele - disse Gus, com grande irritação. - Essa figura que está à nossa frente foi o "dedos-­leves" que estava roubando as latas de Guinness do seu amigo!

- Eu devia saber - disse Daniel, balançando a cabeça, resignado e ignorando o dedo acusador de Gus. ­ Eu devia ter desconfiado logo de cara! Como é que você consegue escolhê-­los a dedo, Lucy? Diga-me como você faz.

- Ah, saia daqui, seu porco hipócrita, santo de pau oco! - reagi, chateada e constrangida.

- Você conhece esta pessoa? ­ Gus quis saber de mim. - Não creio que ele seja o tipo de pessoa com que deva manter amizade, Lucy. Você devia ter visto o jeito como ele...

- Vou embora - disse Daniel. ­ E vou levar comigo o vinho que Karen trouxe. - E arrancou a garrafa de vinho da mão de Gus, desaparecendo a seguir, na multidão.

-­ Você viu só? - gritou Gus. - Ele fez a mesma coisa outra vez!

Tentei não rir, mas não resisti. Obviamente, eu não estava tão sóbria quanto imaginava.

- Pare com isso - disse eu, puxando Gus pelo braço. - Sente-se aqui e comporte-­se.

- Ah, é assim? Sente-­se aqui e comporte-­se?

- É!

- Entendo!

Houve uma pequena pausa enquanto ele olhava para baixo, na minha direção, com o rostinho lindo todo franzido.

- Bem, se você está mandando, Lucy Sullivan...

- Sim, estou mandando.

De forma obediente, ele se sentou ao meu lado na escada, com uma expressão muito doce. Ficou em silêncio por alguns momentos, e então disse:

- Bem... pelo menos valeu a pena tentar.

 

Subitamente, senti que ficara sem ter o que dizer. Sentei­me apertada ao lado dele no degrau, vasculhando o cérebro em busca de algo para falar.

- Bem! - disse por fim, de modo alegre, para tentar disfarçar minha timidez repentina. E agora, o que ia acontecer?, perguntei a mim mesma. Será que íamos dizer que tinha sido legal conhecer um ao outro e escapar dali bem de fininho, como barcos soltando as amarras? Eu não queria isso.

Resolvi fazer uma pergunta a ele. A maioria das pessoas gostava de conversar sobre si mesma.

- Quantos anos você tem?

- Sou tão velho quanto as montanhas e tão jovem quanto as manhãs, Lucy Sullivan.

- Você se importaria de ser um pouco mais especifico?

- Vinte e quatro.

- Legal.

- Bem, novecentos e vinte e quatro, na verdade.

- É mesmo?

- E que idade você tem, Lucy Sullivan?

- Vinte e seis.

- Hummm. Entendo. Você percebe então que sou velho o bastante para ser seu pai?

- Se você tem novecentos e vinte e quatro, é velho o bastante para ser meu avô.

- Até mais do que isso, eu diria.

- Mas você está muito bem, para a sua idade.

- Uma vida limpa, Lucy Sullivan, é a isso que atribuo a minha aparência. A isso e ao trato que fiz com o Demônio.

- E qual foi o trato? - Eu estava adorando aquilo, realmente me divertia muito.

- Não envelhecer por nem um dia durante os novecentos anos em que estive à espera de você. Porém, se algum dia eu colocar os pés em um escritório, para arrumar um emprego propriamente dito, vou envelhecer tudo no mesmo instante e morrer.

­ Isso é engraçado - disse eu -, porque é exatamente o que me acontece todas as vezes que eu piso no trabalho, e não precisei esperar novecentos anos para isso. ...

- Você não trabalha em um escritório, trabalha? ­ perguntou ele, horrorizado. - Oh, pobrezinha da minha Lucy! Isto nāo está certo! Você não deveria nem mesmo trabalhar, devia passar os dias repousando em uma cama com lençóis de seda, em seu vestido dourado, comendo frutas cristalizadas e rodeada de admiradores e súditos.

- Concordo plenamente - disse eu, de forma calorosa. - A não ser pela parte das frutas cristalizadas. Você se importaria se eu as trocasse por chocolate?

- Nem um pouco - replicou ele, compreensivo. - Que seja chocolate então! E, por falar em cama com lençóis de seda, você acha que eu seria terrivelmente atirado ao perguntar se é possível acompanhá-la até a sua casa esta noite?

Abri a boca, sentindo-me com a cabeça leve, mas alarmada.

- Perdoe­-me, Lucy Sullivan - disse ele, apertando­me o braço, o rosto abatido pelo choque. ­ Não posso acreditar que eu disse isso... Por favor, por favor, pode me banir dos seus pensamentos, tente esquecer que eu disse tal coisa e que uma sugestão assim tão grosseira passou pelos meus lábios. Que um raio me atinja! Embora um golpe dos céus seja muito pouco para mim.

- Está tudo bem - disse, com gentileza, tranqüilizada pela sua mortificação. Se ele estava assim tão embaraçado, é porque não costumava se convidar para a casa de mulheres que acabara de conhecer, não é?

- Não, não está nada bem! - disse ele, alarmado. - Como pude falar algo assim para uma mulher como você? Vou simplesmente me afastar da sua presença agora e quero que você se esqueça para sempre de que me conheceu, é o mínimo que posso fazer. Adeus, Lucy Sullivan!

- Não, não vá - pedi, tomada de medo. Não tinha certeza se queria dormir com ele, mas certamente não queria que ele fosse embora.

- Você quer que eu fique, Lucy Sullivan? - perguntou ele, com um olhar ansioso.

- Sim!

- Bem, já que você tem certeza... Espere só um instante, enquanto eu pego o meu casaco.

- Mas...

Ai, meu Deus! Eu queria que ele ficasse, mas ficasse ali comigo, na festa, só que ele parecia estar achando que eu o queria na cama com lençóis de seda e frutas cristalizadas, e eu estava com medo de deixá-lo chateado se explicasse o mal-­entendido. Assim, parece que eu tinha um convidado para passar a noite.

Ele voltou muito mais depressa do que da outra vez, trazendo um cachecol, um casaco e um suéter debaixo do braço.

- Estou pronto, Lucy Sullivan.

Aposto que está, pensei, engolindo em seco de nervoso.

- Há apenas um problema, Lucy.

O que será, agora?

- Acho que não tenho dinheiro suficiente para pagar a minha parte do táxi. Ladbroke Grove é muito longe daqui, não é?

- Bem, quanto dinheiro você tem aí?

Ele pegou um monte de moedas no bolso.

- Deixe-­me ver, quatro libras... cinco libras... não, desculpe, estas moedas são pesetas. Cinco pesetas, dez centavos de dólar, uma medalha milagrosa e sete, oito, nove, onze pence!

- Vamos embora! - Ri. Afinal, o que eu esperava? Não podia ficar desejando que aparecesse na minha vida um músico duro e depois reclamar quando ele não tinha dinheiro algum.

- Eu devolvo, Lucy, assim que conseguir alguma grana.

 

Muito tempo depois, chegamos a Ladbroke Grove. Gus e eu ficamos de mãos dadas no táxi, mas ainda não havíamos nos beijado. Era apenas uma questão de tempo, e eu me sentia um pouco nervosa com aquilo. Um tipo excitado de nervoso.

Gus insistiu em ficar de papo com o motorista do táxi, fazendo-lhe todo tipo de perguntas chatas. Qual foi a pessoa mais famosa que ele já transportara no táxi, qual a pessoa menos famosa que ele já transportara no táxi, esse tipo de coisa, e só parou quando o motorista freou bruscamente em algum lugar perto de Fulham e, atirando para trás algumas palavras curtas e bruscas em puro idioma anglo-saxão, avisou que se Gus não calasse a boca ele ia nos fazer saltar e nos deixar na calçada, esperando outro meio de transporte para completar o percurso.

Eu já estava com a paciência saturada por causa do motorista de táxi naquela noite.

- Meus lábios estão selados! - berrou Gus, e passamos o resto da viagem cochichando, cutucando um ao outro e dando risadinhas como se fôssemos crianças de escola, especulando qual o motivo de o motorista ser tão mal-humorado.

Paguei o motorista, e Gus absolutamente insistiu que eu aceitasse o monte de moedinhas estrangeiras.

- Mas eu não quero isso!

- Pegue, Lucy! - insistiu ele.

- Tenho meu orgulho, sabia? - acrescentou ele, com uma pontada de ironia.

- Bem, tá legal. - Sorri, feliz por deixá-lo satisfeito. Mas não quero a sua medalha milagrosa, já tenho milhares delas, obrigada.

- Aposto que foi a sua mãe que deu essas medalhas todas para você.

- Claro que foi.

- Eu sei. Mães irlandesas são uma fonte inesgotável de medalhas milagrosas. Elas sempre escondem uma em algum lugar. E você não sente que ela está sempre forçando você a aceitar as coisas que oferece?

- Como assim?

Gus começou a me cutucar com a ponta do dedo enquanto eu tentava abrir a porta da rua, e disse:

- Quer um pouco de chá? Quer sim! É melhor tomar logo o bule inteiro. Vai ajudá-la a se manter aquecida.

Começou a subir as escadas, fazendo muito barulho com os pés, e continuava a falar, atrás de mim:

- Quer uma fatia de pão de forma? Vamos, pode comer o pacote todo. Quer mais umas quatro batatas? Vamos lá, pode comer sozinha este banquete inteiro para oito pessoas, você está precisando engordar um pouco. Está que é só pele e osso! Sei que você acabou de jantar, mas jantar de novo não vai lhe fazer mal...

Eu não podia evitar o riso, embora estivesse preocupada com os outros moradores do prédio, que iam começar a reclamar por terem sido acordados às duas da manhã por um bêbado irlandês que ficava insistindo que eles deviam comer um bife inteiro.

- Venham! ­ berrava ele. - Nós vamos até fritar os bifes para vocês!

- Silêncio - disse eu, dando risadinhas.

- Desculpe - cochichou ele, com a voz ainda alta. - Você aguenta ou não? - perguntou ele, puxando a manga do meu casaco.

- Aguento o quê?

­- Comer um porco inteiro?

­- Não!

- Mas ele vai acabar indo para o lixo se você não comer tudo. E nós o matamos especialmente para esta refeição.

- Pare com isso!

- Bem, mas pelo menos você vai aceitar umas gotinhas de água benta e uma medalha milagrosa, não vai?

- Então tá! Só para agradar você.

Entramos no apartamento e ofereci chá, mas Gus não estava interessado nisso.

Ai, meu Deus! Eu sabia o que aquilo queria dizer.

Havia tantas coisas com as quais me preocupar, e não apenas a questão do preservativo, pois Gus não parecia estar em condições de cuidar desse assunto. Nem de, ao menos, pensar nisso. Talvez ele fosse um cidadão mais responsável quando não estivesse bêbado, embora eu não pudesse contar com isso. Assim, sobrou pra mim, pelo visto, o papel de sensível e cuidadosa. Não que eu me importasse com aquilo. Preferia os homens que pecavam por serem selvagens demais em vez de cuidadosos.

­ O que acha da idéia, Lucy? - ele sorriu para mim.

- Claro! – repliquei eu, tentando parecer animada, tranqüila, despreocupada, uma mulher no controle da situação. Então achei que talvez eu tivesse me mostrado interessada demais e, apesar de não querer que ele pensasse que eu parecia um feixe de nervos, também não queria que achasse que eu estava desesperada para ir para a cama com ele.

- Hã... vamos – murmurei, esperando que meu tom de voz estivesse bem neutro.

Compreendi então que não estava sendo muito sensata. Convidara um estranho, um estranho do sexo masculino, um estranho completamente estranho para vir ao meu apartamento vazio. Se eu terminasse estuprada, roubada e assassinada, eu mesma ia ser a culpada. Apesar disso, Gus não estava agindo com se pensasse em estupro e pilhagem. Estava muito ocupado dançando em volta do quarto,abrindo gavetas, lendo o extrato do meu cartão de credito, admirando minhas bugigangas e utensílio.

- Uma lareira de verdade! – gritou ele – Lucy Sullivan, você compreende o que isso significa?

- Não, o que significa?

- Significa que vamos ter que pegar duas poltronas, sentar junto do fogo crepitante e contar histórias.

- É? ... Mas veja só, a gente na verdade não usa a lareira, porque a chaminé precisa ser...

Mas eu já perdera a atenção dele, que nesse momento abriu o guarda-roupa e começou a mexer nos cabides.

- Ah-ah! Um manto todo decotado – disse ele, puxando para fora do armário um velho casaco comprido, de veludo, com um capuz.- Que tal?

Ele o vestiu (justiça seja feita, aquilo foi tudo que ele demonstrou interesse em experimentar), colocou o capuz e ficou na frente do espelho girando o corpo e se admirando.

- Lindo “ – Ri. – É a sua cara!

Ele parecia uma espécie de duende, só que um duende muito sexy.

- Você esta me zoando, Lucy Sullivan.

- Não estou não.

E não estava mesmo , porque o achava lindo. Estava adorando o seu entusiasmo, o jeito que tinha da achar tudo interessante, seu jeito incomum de olhar para as coisas. Não havia outra palavra para aquilo – eu estava encantada.

Estava me sentindo também muito aliviada por ele estar brincando de experimentar roupas, em vez de tentar me carregar para a cama com ele.

Em teoria, eu sabia que tinha todo o direito de não ir para a cama com alguém de quem eu não estivesse afim, e podia trocar de idéia a esse respeito em qualquer ponto do caminho, mas a realidade é que eu ia me sentir constrangida de dizer não.

Imagino que depois de ter chegado ate ali seria pouco hospitaleiro mandá-lo embora de mãos vazias. Isso remontava aos tempos da minha infância, quando a generosidade com as visitas importava mais do que qualquer outra coisa, a tal ponto que não importava se nos íamos ter de ficar sem jantar, desde que os convidados estivessem alimentados.

Além do mais, sentia que Gus e eu, de alguma forma, tínhamos sido feitos um para o outro, e isso era muito sedutor. Não apenas seria grosseiro e imperdoável eu me recusar a dormir com ele, mas seria também uma provocação ao destino, que acabaria por atrair a ira dos deuses e fazê-la despencar sobre minha cabeça. Era um grande alivio pensar assim, por isso tirava toda a novela do “devo ou não devo...?” do caminho. Eu tinha de dormir com ele. Sem traumas, era tudo muito simples.

Mesmo assim, eu ainda estava nervosa.

Acho que os deuses não podem pensar em tudo.

Sentei-me na cama e fiquei brincando com os meus brincos enquanto Gus circulava pelo quarto todo, pegando coisas, pondo-as de volta e fazendo todo o tipo de comentários.

- Legais esses livros, Lucy. Tirando toda esta baboseira californiana – murmurou ele, lendo a contracapa de Quem Fica com o Carro da Família Anômala dos Anos Noventa. Fiquei feliz por ver que, apesar de Gus ser ligeiramente excêntrico, não era totalmente neurótico.

Recoloquei os brincos, para poder tirá-los de novo depois. Sempre achei que usar jóias ou bijuterias era uma boa idéia em uma situação do tipo sedução, porque, embora desse a impressão de que eu estava me despindo, parecendo que eu estava afim de qualquer outra coisa e tinha espírito esportivo, na realidade a outra pessoa já estava apenas com as roupas de baixo muito antes de mim, dando-me a chance de mudar de idéia e esconder as cartas sem mostrar a mão entre outra coisas.

Aprendi este recurso durante o verão dos meus quinze anos,período em que Ann Garrett e Fiona Hart costumavam jogar strip-poker com alguns garotos da nossa rua. Tanto Ann quanto Fionajatinham seios, e durante aquele verão cheio de insinuações sexuais, veladas ou não, nenhuma delas provocadas por mim, devo acrescentar, elas viviam loucas para se ver em uma situação qualquer em que fossem obrigadas a exibir o corpo, eu não tinha seios embora adorasse saber que tinha amigos, preferia morrer a ter que me sentar no terreno atrás da fileira de lojas da cidade em uma agradável noite de verão, só de calcinha e sutiã, em companhia de Derek Wheatley, Gordon Wheatley, Joe Newey Paul Stapleton.

Assim resolvi o problema usando tantas jóias, bijuterias e acessórios quanto conseguia reunir. Minhas orelhas não eram furadas – só consegui fazer isso aos vinte e três anos -, de forma que eu tinha de usar brincos de pressão, que paralisavam a circulação e transformavam os lóbulos das orelhas em bolotas vermelhas de agonia latejante, mas isso era um preço pequeno a pagar (embora sempre representasse um alivio, para mim, perder as primeiras rodadas de pôquer). Discretamente , contrabandeava e levava para o jogo um anel de camafeu que a minha mãe mantinha guardado, enrolado em papel de seda no fundo de uma caixa dentro do seu guarda-roupa, exibindo apenas no aniversário de casamento ou no dia em que ela fazia aniversário. O anel era grande demais para mim , e eu vivia aterrorizada em perdê-lo. Com mais três braceletes cor-de-rosa, de plástico, que eu ganhara como prenda em uma quermesse, o crucifixo da Crisma e ainda a corrente, eu garantia que jamais precisaria despir mais do que minhas sandálias e meias, para me sentir ainda mais segura, usava três pares de meias.

O mais curioso é que Ann e Fiona jamais usavam nenhuma bijuteria.

E pareciam não ter muita preocupação com o jogo também, descartando ases e reis como se fossem roupas fora de moda e, em pouco tempo, já estavam de calcinha e sutiã, dando risadinhas e anunciando o quanto estavam envergonhadas, sentadas bem retas, com a barriga encolhida, os ombros para trás e os peitos para cima. Enquanto isso, eu ficava ali do lado, toda vestida, com uma porção de braceletes cor-de-rosa e brincos empilhados na grama, ao lado.

Aquilo era estranho. Eu quase nunca vencia em jogo algum, porem, de algum modo, sempre conseguia ganhar as partidas de strip-poker. O mais estranho ainda é que nenhum dos outros jogadores parecia muito impressionado com minhas vitórias. Levei vários anos para compreender que eles não ligavam a mínima para a própria derrota, ao contrario do que eu, toda convencida, imaginava;

Fui uma adolescente muito ingênua.

Continuei ali, tirando e tornando a colocar os brincos enquanto Gus se familiarizava com todos os objetos do meu quarto.

- Vou dar uma deitadinha aqui, Lucy, tudo bem?

- Claro

- Você se incomoda se eu tirar as botas?

- Hã... não, claro que não. – Na verdade, eu estava esperando que você fosse tirar mais do que as botas. Se ele tirasse apenas as botas, porém, eu ia aceitar numa boa. Com aquela roupa toda, aquilo não ia dar em nada mesmo.

Ele se deitou na cama, ao meu lado.

- Isso é gostoso – disse ele, segurando a minha mão.

- Hum-hum...- murmurei. Era gostoso mesmo.

- Sabe de uma coisa, Lucy Sull,,,?

- O que?

Ele não disse mais nada.

- Sei o quê? – tornei a perguntar, virando-me a fim de olhar pra ele.

Só que Gus já estava profundamente adormecido, estirado na minha cama, ainda de jeans e camiseta. Parecia tão doce, com as pestanas muito pretas e compridas lançando sombras sobre o rosto, as pontinhas da barba por fazer já parecendo em seu maxilar e queixo, a boca sorrindo levemente.

Fiquei ali, olhando pra ele.

É isso o que eu quero pra mim, pensei. Ele é o homem certo.

 

Puxei o edredom de baixo do seu corpo e o cobri com ele, o que fez com que eu me sentisse muito carinhosa e terna. Puxei para o lado a mecha de cabelo que caia em sua testa, só para reforçar a emoção. Será que eu devia deixá-lo dormindo ali, todo vestido?, perguntei a mim mesma. Bem, tinha de ser daquele jeito, porque eu não ia tirar a roupa dele. Certamente não pretendia ficar remexendo nas roupas de baixo dele para dar olhadas furtivas e espiar o trailer antes da estréia.

Então, sentindo-me um pouco assim, tipo sem ter o que fazer, me aprontei para dormir. Coloquei o pijama – eu tinha quase certeza de que Gus não era aquele tipo que gostava de négligé sexy, o que pra mim era ótimo, porque eu não tinha uma négligé sexy. Gus ia provavelmente ficar mais intimidado com uma négligé sexy do que excitado. Por outro lado, sei lá, não dava para saber ao certo.

Eu fui escovar os dentes. É claro que fui escovar os dentes. Escovei tanto que minhas gengivas ficaram quase em carne viva. Sabia muito bem que escovar os dentes era a coisa mais importante a fazer quando dividíamos a cama com m homem estranho. As revistas e as minhas experiências passadas não conseguiam transmitir a real importância daquilo. Era muito triste pensar que um homem que se interessou o bastante por você para fazer sexo à noite e sair disparado porta afora se o seu hálito não tivesse, pelo menos, o aroma de hortelã na manha seguinte. Era assim que as coisas eram. Ficar triste com isso não mudava nada.

Em vez de remover a maquiagem, eu coloquei vários quilos a mais. Queria parecer linda para quando Gus acordasse de manhã. A camada extra de maquiagem ia compensar o fato de ele estar sóbrio e contrabalançar a imagem que ele tinha de mim, se quisesse ver desse modo. Então, pulei na cama, ao lado dele. Ele parecia tão gatinho ali, dormindo...

Fiquei deitada, olhando para a escuridão, pensando em todo o que me acontecera naquela noite, e, talvez devido a empolgação, pela expectativa que sentia, pelo desapontamento ou talvez até pelo alívio, não consegui pegar no sono.

Depois de algum tempo, ouvi a porta da frente do apartamento se abrir, e escutei a voz de Karen, em seguida pela de Charlotte e a de mais alguém com voz de homem conversando, enquanto chá era servido entre cochichos e risadas abafadas. Tudo estava muito mais calmo do que na véspera. Não havia A Noviça Rebelde, sem móveis derrubados, nem explosões de gargalhadas.

Depois de ficar séculos ali, deitada no escuro, resolvi me levantar de novo para ver o que estava rolando lá fora. Estava me sentindo meio largada de lado, mas isso não era novidade. Levantei da cama com toda a cautela, sem querer perturbar Gus, e saí do quarto nas pontas dos pés. Puxei a porta ainda de costas para o corredor, fechei-a com todo o cuidado e esbarrei em uma coisa grande e escura que normalmente não ficava na porta do meu quarto.

Pulei um quilômetro com o susto.

- Nossa! – exclamei.

- Lucy! – disse um homem. A coisa na qual eu esbarrara colocou as mãos nos meus ombros.

- Daniel! – disse, com a voz enrolada pelo sobressalto. – Que diabos você está fazendo aqui? Quase me matou de susto, seu idiota!

Em vez de se desculpar, Daniel achou aquilo hilário, e quase despencou de tanto rir.

- Oi, Lucy – disse, ofegante, sem conseguir falar direito, de tanto que ria. – Você sempre me recebe de modo maravilhoso. Pensei que estivesse a meio caminho de Moscou a essa hora.

- O que estava fazendo, espreitando no escuro, aqui na porta do meu quarto? – quis saber eu.

- Olha só a sua cara. – Daniel se encostou na parede, ainda rindo e enxugando as lágrimas que brotaram em seus olhos. – Você precisa ver a sua cara.

Eu estava abalada, chateada, e não achava nada engraçado, então dei um soco na barriga de Daniel.

- Ai! – gritou ele, ainda rindo e colocando o braço no local que eu atingira. – Você é perigosa, hein?

Antes de conseguir atingi-lo novamente, Karen apareceu no corredor e, subitamente, tudo ficou claro. Piscando o olho para mim de forma sugestiva, ela disse:

- Fui eu que convidei Daniel para volta aqui em casa. Não tem nada a ver com você, não se preocupe.

Fui obrigada a tirar o chapéu para Karen. Eu estava impressionada, muito impressionada. Pelo jeito, ela fizera muito progresso em seus planos de para fisgar Daniel.

- Eu estava de saída, para falar a verdade –disse ele -, mas já que você se levantou, vou ficar mais um pouquinho.

Fomos todos em bando para a sala da frente, e me senti um pouco sem graça por Daniel me pegar usando pijama de flanela. Charlotte estava toda esticada no sofá, parecendo imensamente feliz. A sala mostrava sinais de que alguém estivera bebendo chá ali, há poucos minutos.

- Lucy – disse Charlotte, adorando a minha chegada. – Maravilhoso, você se levantou. Venha até aqui e sente-se a meu lado.

- Ela se sentou e deu uma batidinha no lugar junto dela. Discretamente, eu me apertei as seu lado e encolhi as pernas. As unhas dos meus pés estavam com o esmalte descascando, e havia uma bolha que eu não queria que Daniel visse.

- Sobrou chá? – perguntei.

- Litros – disse Charlotte

- Vou pegar uma xícara pra você – anunciou Daniel, indo pra cozinha. Voltou logo depois, serviu o chá em uma caneca, acrescentou um pouco de leite, duas colheres de açúcar, mexeu com a colherzinha e me entregou.

- Obrigada, até que você serve para alguma coisa, de vez em quando.

Ele ficou de pé ao lado do sofá, olhando para baixo, na minha direção.

- Ai, Daniel, tire esse casaco – reclame, irritada -, você está parecendo um coveiro.

- Eu gosto desse casaco.

- E sente-se logo. Você está bloqueando a luz.

- Desculpe.

Daniel sentou na poltrona que ficava junto do sofá e Karen sentou no chão, apoiando a cabeça no braço da poltrona. Os olhos dela estavam brilhando e ela parecia toda sonhadora e romântica. Eu estava, para ser franca, chocada.

Karen estava se comportando totalmente fora do seu normal. Ela sempre brincava de difícil. Deixava os homens enredados em incertezas, e já transformara muitos sujeitos equilibrados em inseguros bonecos de terno. Era sempre assim, tipo dura de conquistar, e naquele momento parecia meiga, linda e doce.

Ora, ora, quem diria...

- Conheci um cara – disse Charlotte.

- Eu também – disse, com cara de alegre.

Karen também, mas talvez não fosse o momento certo para ela conversar sobre aquilo.

- A gente já sabe, Lucy – disse Charlotte- Karen andou encostando o ouvido na porta do seu quarto, para ouvir se você estava transando com ele.

- Sua vaca linguaruda... – reagiu Karen, furiosa.

- Ah, parem com isso – disse eu. – Não briguem. Quero saber a respeito do cara que Charlotte conheceu.

- Não, quero saber sobre o seu primeiro – disse Charlotte.

- Não, não, primeiro você

- Não, você!

Karen fez uma cara de adulta aborrecida com aquilo, mas só para impressionar Daniel, fazendo-o pensar que ela não agia de modo tolo como uma garotinha que vive trocando fofocas. Mas esse era o jeito certo de agir. Toda nós já havíamos feito a mesma coisa, quando o cara de quem estávamos loucamente a fim encontrava-se presente. Ela no era mais culpada disso do que eu. Aquela era apenas a tática, e logo que Karen tivesse a certeza de que ele estava interessado, poderia voltar ao seu estado normal.

- Por favor, Lucy, conte você primeiro – interveio Daniel.

Karen pareceu surpresa com aquilo, mas disse?

- Isso, conte logo, Lucy. Deixe de ser recatada!

- Está bem – concordei toda satisfeita.

- Ótimo! – Charlotte levantou as pernas e abraçou-as na altura dos joelhos.

- Por onde vocês querem que eu comece a história? – perguntei, rindo de orelha a orelha.

- Olhem só para ela – disse Karen com um tom seco. – Parece que o gato engoliu o canário.

- Qual é o nome dele? – quis saber Charlotte.

- Gus.

- Gus?! – Karen estava horrorizada. – Que nome horrível... Gus, o Gorila!... Gus, o Ganso!...

- Como ele é? – interessou-se Charlotte, ignorando os ruídos de nojo que Karen estava fazendo.

- Ele é adorável – comecei, com a descrição ganhando cada vez mais entusiasmo. E então reparei que Daniel estava olhando para mim com um jeito estranho. Chegou-se para beirada da poltrona, com as mãos nos joelhos, e continuou olhando, parecendo meio intrigado ou meio triste, - Por que é que você está olhando para mim assim ? – perguntei, com indignação.

- Olhando assim como?

Foi Karen que disse isso, não Daniel.

- Obrigado, Karen – disse Daniel, dirigindo-se a ela com toda a educação -, mas acho que consigo articular algumas palavras sozinho.

Karen deu de ombros e jogou os cabelos louros para trás, com desde. A não ser pelo leve rubor em suas bochechas, não dava para ninguém perceber que ela ficara sem graça. Eu invejava toda aquela pose e autocontrole.

Daniel tornou a se virar para mim, continuando:

- Onde é que estávamos? – perguntou ele. – Ah, é mesmo... Olhando assim como?

Comecei a rir, dizendo:

- Não sei. – E soltei mais uma risadinha. – De um jeito engraçado, como se você soubesse alguma coisa ao meu respeito que eu mesma não soubesse.

- Lucy – disse ele, com a cara séria -, eu jamais seria tolo o bastante para presumir que poderia saber alguma coisa que você não soubesse. Eu preso a minha vida.

- Ótimo! – Sorri.- Agora posso continuar a falar a respeito do cara que conheci?

- Sim – sussurrou Charlotte. – Por favor, continue a descrevê-lo.

Beeem... – disse eu, fazendo suspense. – Ele tem vinte e quatro anos, é irlandês e é brilhante. Realmente é muito engraçado e um pouco, vocês sabem... anticonvencional. Não se parece em nada com outro cara que já encontrei na vida e ...

- É mesmo? – perguntou Daniel, com cara de espanto. – E quanto aquele sujeito, o tal de Anthony, por quem você tinha uma quedinha?

- Gus é totalmente diferente de Anthony

- Mas...

- Anthony era louco.

- Mas...

- Gus não é – disse eu, com firmeza.

- Ta bom... mas e quanto aquele outro irlandês bêbado com quem você ando saindo? – perguntou Daniel.

- Quem? – perguntei, começando a me sentir ligeira mente chateada.

- Como era mesmo o mesmo dele..? Matthew? Malcolm?

- Malachy – murmurou Karen, para ajudar. Traidora!

- Isso mesmo, Malachy?

- Gus não é nem um pouco parecido com Malachy também! – exclamei – Malachy vivia bêbado.

Daniel não disse nada. Simplesmente levantou a sobrancelha e lançou-me um olhar expressivo.

- Ta legal! – explodi. – Sinto muito pelas latas de Guinness. Vou comprar outras pra você, não se preocupe. Por falar nisso, desde quando você começou a ficar tão chato e pão-duro, hein?

- Mas não estou...

- Por que esta sendo tão desagradável?

- Mas...

- Não esta feliz por mim?

- Sim, mas...

- Olha, se não tem nada de agradável pra dizer, é melhor ficar calado!

- Desculpe.

Ele pareceu tão arrependido que me senti culpada. Inclinei-me na direção dele e apertei o seu joelho, tentando me desculpar, meio sem graça. Eu era irlandesa. Não sabia lidar com clima quente ou sinais espontâneos de afeto.

- Sinto muito também – murmurei

- Talvez você acabe se cansando, afinal – sugeriu Charlotte. – Esse tal de Gus pode ser o homem sobre o qual a taróloga falou.

- Pode ser – concorde, baixinho. Estava sem coragem de admitir que era isso que eu também estava achando.

- Sabe – disse Charlotte, parecendo um pouco envergonhada -, por algum tempo achei que Daniel podia ser o seu Homem misterioso, seu futuro marido.

Cai na gargalhada.

Ele! – exclamei. – Não encostaria nele nem com uma vara de pescar. Nunca se sebe por onde ele pode ter andado.

Daniel fez cara de ofendido, e Karen ficou meia furiosa.

Na mesma hora retirei o que eu disse e pisquei afetuosamente para ele.

- Estou só brincando, Daniel. Você sabe o que eu quis dizer. S e servir de consolo, saiba que minha mãe ia adorar essa idéia. Você é o genro que ela pediu a Deus.

- Eu sei – suspirou ele – mas você tem razão, jamais daria certo. Sou comum de mais pra você, não é , Lucy?

- Como assim?

- Bem, eu tenho um emprego, não apareço para encontrá-la zureta de tão bêbado, pago as despesas quando saímos e não sou um artista em crise.

- Cale a boca, seu bobalhão. – Ri. – Do jeito que você fala, parece que todos os meus namorados são bêbados e vagabundos interesseiros.

- Parece?

- Sim. E é melhor parar com isso, porque eles não são.

- Desculpe.

- Tudo bem.

- Mesmo assim – completou ele -, acho que Connie não vai ficar muito satisfeita quando conhecer Gus.

- Ela não vi conhecê-lo – afirmei

- Vai ter que conhecê-lo, se você se casar com ele – lembrou ele.

- Daniel, por favor, cale a boca! – implorei. – Este era para ser um momento feliz.

- Sinto muito, Lucy – murmurou ele

Reparei no olhar dele. Daniel não parecia nem um pouco arrependido. Antes que eu pudesse reclamar, ele disse:

- Vamos lá, Charlotte, conte-nos sobre o cara que você conheceu.

Charlotte ficou mais do que feliz por atender a esse pedido. Pelo que cotou, ele se chamava Simon, era alto, bonito, tinha vinte e nove anos, trabalhava com publicidade, tinha um carro sensacional, perseguira Charlotte a noite inteira na festa e combinara de ligar para ela no dia seguinte para levá-la para almoçar.

- E eu sei que ele vai ligar – disse ela, com os olhos brilhando. – Estou com um bom pressentimento sobre ele.

- Ótimo! – disse eu, satisfeita – Pelo jeito, todas nós tivemos sorte esta noite.

Saí da sala e me enfiei na cama, de mansinho, ao lado de Gus.

 

Gus ainda estava dormindo e continuava lindo. Só que as coisas que Daniel dissera haviam me deixado ligeiramente preocupada. Era verdade: a minha mãe não ia gostar nem um pouco de Gus. Na verdade, minha mãe ia odiá-lo. O lado bom de toda aquela noite começou a se desfazer lentamente. Eu ficava admirada da infalível capacidade que a minha mãe tinha de estragar todas as coisas boas que me aconteciam.

Sempre fora assim a vida toda, até onde eu conseguia lembrar.

Quando eu era pequena e papai chegava em casa de bom humor porque conseguira um emprego, ou porque ganhara algum dinheiro nas corridas de cavalos, ou algo desse tipo, ela sempre conseguia neutralizar qualquer celebração. Papai chegava à cozinha, cheio de sorrisos, com o bolso do casaco cheio de balas para nós e um saco de papel pardo na mão, com uma garrafa dentro. E ela, em vez de sorrir e perguntar: “O que aconteceu, Jamsie? O que estamos celebrando?”, arruinava tudo fazendo uma careta e dizendo algo horrível, como: “Ah, Jamsie, outra vez?” ou “Ah, Jamsie, você prometeu!”.

Mesmo com seis ou oito anos, ou sei lá que idade eu tinha, eu me sentia terrível. Arrasada pela ingratidão dela. Ansiosa para mostrara ele que eu estava do lado dele. E não era só pelo fato de os doces serem um acontecimento raro. Eu concordava com papai, de todo o coração, quando ele falava:

- Lucy, sua mãe é muito rabugenta.

Por não haver mais ninguém que fizesse isso, eu achava que era meu papel levantar o astral da casa.

Por isso, quando papai sentava e se servia de uma bebida, eu me sentava à mesa com ele, para fazer-lhe companhia, demonstrar solidariedade e para ele não celebrar sozinho fosse lá o que fosse.

Era legal ficar olhando para ele. Havia um certo ritmo na maneira como ele bebia, e eu achava isso reconfortante.

Minha mãe demonstrava toda a sua desaprovação batendo com as panelas, deixando coisas caírem no chão e fazendo ruídos enquanto lavava e limpava tudo. De vez em quando, papai tentava animá-la, dizendo:

- Coma o chocolate que eu trouxe, Connie.

Se a frase “levante o seu astral!” já tivesse sido inventada, ele provavelmente faria bom uso dela.

Depois de algum tempo, ele colocava uns discos para tocar e cantava junto “Quatro campinas verdes”.”Quem dera eu estivesse em Carrickfergus” e outras canções irlandesas. Ele as tocava várias vezes, sem parar, e de vez em quando, entre as canções, dizia:

- Come a porra do chocolate, mulher!

Dali a mais um pouco, ele normalmente começava a chorar. Mas continuava contando, a voz rouca por causa das lágrimas. Ou talvez por causa da bebida.

Eu sabia que ele estava arrasado por não estar em Carrickfergus. Às vezeseu ficava tão triste por ele que chorava junto. Mas minha mãe falava apenas:

- Meu Deus! Esse idiota nem sabe onde fica Carrickfergus, não se aflija por ele querer estar lá.

Eu não conseguia entender a razão de ela se sentir tão infeliz. Ou de ser tão cruel.

E ele falava, com a voz meio arrastada:

- Não é um lugar, é um estado de espírito, minha cara. É um estado de espírito.

Eu não entendia bem o que ele queria dizer com isso.

E quando ele completava, com a mesma voz arrastada, dizendo:

“Você não pode mesmo saber, porque não tem nem mesmo espírito!”, eu sabia muito bem o que ele queria dizer. Olhava para ele e trocávamos risadinhas, como se conspirássemos.

Todas aquelas noites seguiam o mesmo padrão. O chocolate intocado, a ingestão rítmica da bebida, a bateção de panelas e coisas caindo no chão, a cantoria e a choradeira. Então, quando a garrafa já estava quase vazia, minha mãe normalmente dizia algo assim como “lá vai ele;prepara-se para o espetáculo”.

Papai se colocava em pé. Ás vezes, não conseguia caminharem linha reta. Na maioria das vezes, pra falar a verdade.

- Vou voltar para a Irlanda – dizia minha mãe, com a voz entediada.

- Vou voltar para a Irlanda! – gritava meu pai, com a voz engrolada.

- Se eu partir agora, ainda consigo pegar o trem do correio – dizia minha mãe com a mesma voz entediada, enquanto se encostava na pia.

- Se eu partir agora, ainda consigo pegar o correio do trem! – gritava meu pai. Ás vezes seus olhos ficavam vesgos, como quando tentamos olhar a ponta do nariz.

- Fui uma tola ter saído de lá – dizia mamãe, sem expressão, analisando as unhas. Eu não conseguia compreender a completa falta de emoção que ela exibia.

- Fui um tremendo idiota por ter saído de lá! – gritava papai.

- Ah, dessa vez é um “tremendo idiota”, é? Por mim, preferia o “tolo”, mas até que é bom, para variar.

O pobre do meu pai ficava de pé ali, balançando o corpo levemente para frente e para trás. Depois se encurvava, ficando um pouco parecido com um touro, e olhava para a minha mãe, sem conseguir enxergá-la. Provavelmente, só conseguia ver mesmo a ponta do nariz.

- Vou embalar minhas tralhas – dizia mamãe, como se fosse o ponto, cochichando os diálogos para um ator.

- Vou entralhar minhas balas! – dizia papai, andando com determinação para a porta da cozinha.

Mesmo sabendo que isso não acontecia muitas vezes, e ele jamais ia alem da porta da frente, toda vez eu achava que ele estava indo embora de verdade.

- Papai, por favor, não vá embora – suplicava eu.

- Num posso ficar em uma casa que tem ezza mulher inzuportável que nem come o chogolate que eu trouxe – costumava ele dizer.

- Coma o chocolate! – eu implorava a mamãe, enquanto tentava impedir papai de sair de sala.

- Num fique no meio do caminho, Lucy, senum eu num vô ser rasponza...qué dizê... Num vô ser rospensibi... qué dizê... ah, que se foda! – E saía pelo corredor, em direção à sala.

Então, ouvíamos um som da mesa de sala despencando, e mamãe murmurava:

- Se aquele nojento quebrou minha...

- Mãe, impeça-o! – implorava eu, histérica.

- Ele não vai alem do portão – afirmava ela, com amargura. – O que é uma pena.

Embora eu não acreditasse, ela tinha razão. Ele raramente ia além do portão.

Certa vez ele seguiu pela rua e foi até a casa dos O’Hanlaoin, segurando um saco plástico com quatro fatias de pão de forma e a garrafa com um restinho de bebida debaixo do braço. Aquilo era o seu sustento para ir até Monaghan, Ele ficou parado ali, na frente da casa dos O’Hanlaoin por algum tempo, gritando coisas. Algo a respeito de os O’Hanlaoin serem desonestos e como Seamus tivera de fugir da Irlanda para não ser preso. ”Ocê teve de fugi de lá!”, berrava meu pai.

Mamãe e Chris tiveram de sair e ir até lá para buscá-lo e trazê-lo de volta. Ele veio, mansinho. Mamãe o puxou pela mão diante dos olhares de censura de todos os vizinhos que ficaram em pé, com os braços cruzados, olhando por cima de seus portões baixos, observando o espetáculo em silencio. Quando chegou à porta de nossa casa, mamãe se virou e gritou para eles:

- Podem entrar agora. O circo acabou!

Fiquei surpresa ao perceber que ela estava chorando.

Achei que era de vergonha. Vergonha pela forma como ela o tratava, vergonha por arruinar o humor dele, vergonha por não comer o chocolate que ele trouxera para ela e por encorajá-lo a ir embora.

Uma vergonha que ela merecia muito estar sentindo.

 

Acordei com Gus inclinado, com a cabeça pro cima de mim. Olhando ansioso para meu rosto.

- Lucy Sullivan? – perguntou.

- Sou eu – disse, sonolenta.

- Ah, graças a Deus!

- Pelo quê?

- Achei que você fosse apenas um sonho.

- Que graçinha...

- Estou feliz por pensar assim, Lucy – disse ele, com ar triste. – Mas temo que a coisa não seja tão bonita assim. Com o meu histórico, muitas vezes já acordei desejando que tudo o que aconteceu na noite anterior tivesse sido um sonho. É novidade para mim esperar que não tivesse sido um sonho.

- Ah.

Estava confusa, mas achava que aquilo parecia um elogio.

- Obrigado por me permitir usufruir de suas instalações para dormir, Lucy – disse ele. – Você é um anjinho.

Sentei na cama, alarmada. Aquilo parecia discurso de despedida. Será que ele estava de saída?

Mas, não, ele não estava de camisa; portanto, ainda não ia embora. Eu me deitei na cama outra vez, encolhida, e ele se deitou ao meu lado. Embora o edredom estivesse entre nós, o contato me pareceu muito gostoso.

- O prazer foi todo meu. – E sorri.

- Olha, Lucy, eu poderia saber quantos dias passei aqui?

- Menos de um, na verdade.

- Só? – disse ele, parecendo desapontado. – Isso é muito pouco pra mim. Devo estar ficando velho. Apesar de que ainda é bem cedo. Temos bastante tempo.

Para mim tudo bem, pensei. Fique o tempo que quiser.

- E agora, eu poderia usufruir de suas instalações sanitárias, Lucy?

- Vá em frente pelo corredor. Você vai descobrir onde é.

- Mas é melhor cobrir minhas vergonhas, Lucy.

Na mesma hora eu me levantei um pouco e me apoiei no cotovelo, só para dar uma olhadinha nas vergonhas dele, antes de ele cobri-las, e reparei que, em algum momento, durante a noite, Gus tirara as roupas e ficara só com a cueca samba-canção. E que lindo corpo ele tinha! Pele muito lisa, braços fortes, cintura fina e sem barriga. Não deu para ver direito as pernas dele, porque ele estava quase deitado em cima de mim, mas se eram como o resto dele, deviam ser deliciosas.

- Use o meu roupão, está pendurado atrás da porta.

- Mas e se eu encontrar uma das suas colegas de apartamento? – perguntou ele, fingindo estar receoso.

- Que é que tem? – Dei uma risadinha.

- Vou ficar com vergonha. Elas vão, você sabe... pensar coisas a meu respeito.

Ele colocou a cabeça de lado, parecendo todo tímido e envergonhado.

- Que tipo de coisas? – Eu ri.

- Vão ficar perguntando onde foi que eu dormi, e isso vai arruinar minha reputação.

- Vá em frente que eu defendo a sua honra se alguém falar alguma coisa.

A voz dele e seu sotaque eram tão lindos que era capaz de eu ficar ali para sempre, ouvindo-o falar.

- Que lindo roupão! – disse Gus. Era do tipo atoalhado, com um capuz. Ele o vestiu, colocou o capuz sobre a cabeça e ficou pulando como um pugilista em volta da minha cama, lutando contra o ar.

- Você pertence à Ku Klux Klan, Lucy Sullivan? – perguntou ele, admirando-se no espelho. – Tem alguma cruz em chamas escondida debaixo da cama?

- Não.

- Bem, se resolver se associar a eles, não vai precisar comprar o uniforme, é só jogar o roupão por cima do vestido, levantar o capuz e pronto. Fácil de mais.

Recostei no travesseiro e sorri para ele. Sentia-me feliz

- Certo – disse ele. – Vou até lá, então.

Gus abriu a porta e imediatamente tornou a fechá-la.

Dei um pulo.

- Que foi? Há algo de errado?

- Aquele homem! – disse Gus, parecendo horrorizado.

- Que homem?

- Aquele alto, que roubou a cerveja do seu amigo na festa, e também a minha garrafa de vinho. Ele está aí fora, bem junto da porta.

Então Daniel passara a noite em nosso apartamento... Que engraçado.

- Não, não, escute só... – disse eu, meio ofegante.

- Ele está mesmo, Lucy, juro que está! – insistiu Gus. – A não ser que eu esteja tendo visões de novo.

- Não, você não esta tendo visões – disse eu.

- Bem, então temos que expulsá-lo daqui, senão ele vai roubar coisas, e não vai deixar nem uma perna de móvel para contar história. É sério, Lucy! Já encontrei tipos como esse antes. São profissionais treinados...

- Não, Gus, por favor, me escute – disse, tentando ficar seria. – Ele não vai roubar a nossa mobília, é meu amigo.

- Verdade? Você esta falando serio mesmo? Olha, sei que nada disso me diz respeito, nós acabamos de nos conhecer e eu não tenho o direito de dar palpite, mas ter amizade com um criminoso comum, Lucy?... Eu não esperava por isso, não esperava mesmo...E também não consigo entender por que está achando tudo isso tão engraçado. Não vai achar nem um pouco de graça quando encontrar o seu sofá à venda em uma barraca de Camden Market * e se vir obrigada a dormir no chão. Não acho que isso seja motivo de riso...

- Por favor, cale a boca e me escute – consegui balbuciar. – Daniel é o tal homem alto do lado de fora da porta. Ele não roubou a cerveja de ninguém.

- Mas eu o vi...

- Aquela cerveja era dele mesmo, entende?

- Não, a cerveja era de Donal.

- Mas ele é Donal, e seu nome é Daniel.

Uma pausa, enquanto Gus digeria o fato.

- Ai, meu Deus – gemeu ele.

Ele balançou o corpo, colocando-o para frente, e se jogou na cama, com as mãos no rosto.

- Ai, Deus, ai, Deus, ai, meu Deus – tornou a gemer.

- Está tudo bem... – disse eu, com gentileza.

- Ai, meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Gus levantou a cabeça e olhou para mim, por entre os dedos.

- Ai, meu Deus! – disse ele, com o rosto arrasado.

- Não foi nada, está tudo bem.

- Não, não está.

- Está sim.

- Não, não está. Eu o acusei de roubar a própria cerveja e depois a bebi toda! E ainda por cima peguei a garrafa de vinho da namorada dele.

- Ela não é namorada dele... – expliquei, sem necessidade. – Embora, pensando bem, talvez ela seja, agora...

- A loura com cara de assustada?

- Hã... sim. – Karen poderia ser descrita daquela forma.

- Pode acreditar em mim - insistiu Gus. – Ela é namorada dele sim, pelo menos se tiver alguma coisa a ver com tudo isso.

- Acho que tem razão – admiti.

Que interessante, pensei. Então Gus era perceptivo e muito observador? Quanto daquele jeito dele amalucado e desaparafusado era apenas aparência? Ou será que ele era perceptivo e também amalucado? Era possível que tudo aquilo fosse parte do mesmo homem? E será que eu tinha energia para agüentar aquilo?

- Geralmente não sou tão detestável assim, Lucy, sério mesmo...- insistiu ele. – Deve ter sido por causa das drogas. Só pode ser.

- O.K. – disse eu, quase desapontada.

- Vou ter que pedir desculpas a ele – disse Gus, pulando da cama.

- Não! – disse eu. – Volte aqui. O dia mal começou, ainda está muito cedo para pedir desculpas. Mais tarde.

Gus ficou em pé atrás da porta por algum tempo, parecendo estressado e ansioso, e depois abriu uma frestinha.

- Ele sumiu – anunciou, com alívio. – Agora já é seguro eu sair para tomar uma chuveirada. – E lá se foi ele.

Enquanto ele ficava fora do quarto, fiquei deitada na cama, sentindo-me satisfeita comigo mesma. Tinha de admitir que estava aliviada por ele ficar envergonhado ao saber que acabara com as cervejas de Daniel. Aquilo provava que ele era uma pessoa decente.

E era muito esperto também. Sacou tudo sobre Karen, bem depressa.

E ainda era mais bonito do que eu lembrava. Sorridente, atraente, e seus olhos não estavam mais vermelhos.

O que aconteceria, me perguntei, quando ele voltasse do banheiro? Será que ele ia se vestir para ir embora, esquecendo de mencionar qualquer coisa a respeito de me telefonar? De alguma forma, eu achava que não. Certamente esperava que não.

Não havia no ar aquela sensação sórdida que geralmente acompanha as manhãs de domingo, quando a gente acorda com um completo estranho na cama ou nos vemos na cama de um completo estranho.

Pelo menos Gus me acordara. Não havia escapado da cama sem fazer ruído, nem se vestido no escuro, sem fazer barulho, para em seguida sair desabalado do apartamento, enfiando a cueca no bolso e esquecendo o relógio sobre a mesinha-de-cabeceira.

Eu não acordara com o barulho da porta da frente batendo, após sua saída. E isso, com o meu histórico de relacionamentos, já era um bom começo.

Estar com Gus me parecia a coisa natural e certa. Eu nem estava nervosa. Bem, quase não estava.

Ele voltou do banheiro com uma toalha cor-de-rosa em volta da cintura, o cabelo molhado e brilhando, todo limpo e perfumado.

Perfumado até demais, na verdade.

Eu estava certa sobre suas pernas.

Ele não era muito alto, mas era todo másculo.

Um calafrio me percorreu a espinha. Estava ficando com vontade de... hã... conhecê-lo melhor...

- Você está olhando para um homem que acaba de ser descascado ao extremo, Lucy – sorriu ele, parecendo muito satisfeito.

- Descascado, desfolhado, lavado, condicionado, amaciado, hidratado, massageado, untado, tudo! Pode falar qualquer coisa que eu garanto que passei por isso nos últimos dez minutos. Lembra quando tudo o que esperavam de nós era que nos lavássemos, Lucy? Agora não. Temos que acompanhar os novos tempos, não é verdade, Lucy Sullivan?

- Sim. – Soltei uma risada. Ele era tão engraçado...

- Não podemos ficar parados, senão nasce grama embaixo da gente, não é, Lucy Sullivan?

- É.

- Vai ser difícil você encontrar um homem mais limpo em toda Londres.

- Aposto que vai.

- Suas instalações sanitárias são maravilhosas, Lucy. Você deve ter muito orgulho delas.

- Hã, sim, acho que sim...

O estado do meu banheiro não era algo que ocupasse muito os meus pensamentos.

- Lucy, espero que não haja problemas, mais usei alguns dos produtos de Elizabeth.

- Quem é Elizabeth?

- Bem, não adianta nada você me perguntar, porque é você que mora aqui. Ela não é uma das amigas que dividem o apartamento com você?

- Não, aqui somos só eu, Karen e Charlotte...

- Nesse caso, essa Elizabeth tem a maior cara-de-pau, porque o banheiro está cheio de coisas dela.

- Mas, do que você está falando, afinal?

- Sobre Elizabeth... como era mesmo o sobre nome dela? Começava com “G”. Ah, já sei, Ardente, é isso, eu acho, Elizabeth Ardente. Lembrei agora, porque esse me pareceu um bom pseudônimo para uma escritora de historias de amor. Enfim, tem um monte de frascos, potes e tubos no banheiro, todos com o nome dela.

- Ai, meu Deus. – Comecei a rir.

Gus acabara de usar as embalagens caríssimas dos produtos Elizabeth Arden que pertencem a Karen, inclusive o gel para banho e a loção para o corpo. Produtos da marca “Elizabtesão Arden” para deixar a pessoa mais sedutora, como Charlotte e eu costumávamos chamar de brincadeira. Isso é porque éramos invejosas e cobiçávamos os produtos, mas morríamos de medo de tocar neles.

Para falar a verdade, nem a própria Karen os usava. Eles ficavam lá apenas para exibição, a fim de impressionar figuras como Daniel, não que ele percebesse esse tipo de coisa, ainda mais sendo homem. Até aquele momento eu chegara até mesmo a suspeitar de que havia apenas água com corante dentro dos frascos.

Cabeças iam rolar por causa daquilo.

- Oh, não – disse Gus, nervoso. – Dei outro fora, não dei? Cometi outro faux pás. Acho que até esgotei a minha cota hoje, hein? Não devia ter usado aqueles troços, devia?

- Não se preocupe – disse eu. Não havia motivo para esquentar a cabeça agora. Já estava feito mesmo. Se Karen resolvesse criar caso ou, melhor, quando Karen resolvesse criar caso, eu me ofereceria para pagar pelos produtos.

- Só que eu acho, Gus, que seria melhor se você não tornasse a usar as coisas de Karen.

- Quem é Karem? Ah, sei, já entendi. Karen é a dona das coisas de Elizabeth? Pobre Karen, deve ter herdado frascos e potes com o nome de outra pessoa gravados neles. Isso é um pouco parecido com o que aconteci comigo. Todos os meus livros de escola, até mesmo os cadernos, tinham sempre o nome de outra pessoa neles, poruqe eu tinha um monte de irmãos mais velhos... Enfim, da próxima vez eu uso as suas coisas, Lucy.

- Que bom! – Sorri, adorando a idéia de que haveria uma próxima vez.

- Mas como é que vou saber quais são os produtos que pertencem a você? – perguntou ele. – As únicas outras coisas que havia ali tinham o nome de “Mark Hill” impresso na embalagem, e não adianta você tentar me dizer que são seus, porque ninguém, em sã consciência, poderia chamá-la pelo nome de “Mark”.

- Obrigada, Gus – disse eu, enfeitiçada, hipnotizada pela montanha-russa que era a conversa dele. – Na verdade, as coisas com o nome de “Mark Hill” são minhas mesmo.

- Bem, só espero que você saiba que eles podem processá-la por colocar informações erradas no rótulo de um produto. – E sorriu. – Ainda mais uma mulher linda como você – acrescentou, em tom casual.

Senti o sangue subir todo para o rosto, os elogios pareciam ainda mais sensuais com o sotaque irlandês de Gus.

- Obrigada – gaguejei.

- Lucy – disse ele. Veio ate onde eu estavae se sentou ao meu lado, na cama, segurando a minha mão. A mão dele era macia e quente. A minha parecia minúscula, em comparação.

Eu gostava de me sentir minúscula ao lado de homens. Alguns dos homens com quem eu já sairá eram muito magricelos, e nada cortava mais o meu tesão do que ir para a cama com um homem que tinha uma bunda menor do que a minha e coxas também mais magras do que as minhas.

- Eu realmente sinto muito – disse Gus, com o rosto serio, fazendo círculos nas costas da minha mão com o polegar, enviando pequenos arrepios por todo o meu corpo. Eu quase não conseguia me concentrar no que ele estava dizendo.

- Você é muito legal, e realmente gosto de você – continuou ele, meio sem jeito. – Já fiz um monte de coisas erradas, e nos acabamos de nos conhecer. Às vezes brinco na hora errada, e quando alguma coisa é importante para mim pioro as coisas ainda mais. Desculpe.

Meu coração se dissolveu. Eu não ficara chateada, mesmo, e depois desse pequeno discurso, me senti ainda mais meiga e muito... protetora em relação a ele.

- E, quanto aos troços que usei no banheiro, talvez se eu conversasse com Elizabeth e explicasse que...

- Karen! – insisti. – O nome dela é Karen e não Elizabeth.

- Estou só brincando, Lucy – disse ele. – Entendi que o nome dela é Karen e que não há nenhuma Elizabeth morando aqui.

- Ah – disse eu, meio sem graça.

- Você deve estar achando que sou meio burro – disse ele. – De qualquer modo, é muito gentil de sua parte tentar ser tolerante comigo.

É que achei... você sabe.. – tentei explicar, meio sem jeito.

-Está tudo bem – disse ele.

Trocamos um sorriso de cumplicidade, insinuando que aquela ia ser uma brincadeira só entre nós.

Já estávamos compartilhando segredos, tínhamos piadas intimas e senhas verbais.

- Está legal – disse eu. – Tudo ótimo.

- Se você está dizendo... E agora, Lucy, vamos sair para dar uma caminhada.

Ele já me fizera rir com um monte de coisas que dissera, mas aquela sugestão me fez rir mais do que todo o resto.

- O que há de tão engraçado, Lucy?

- Eu? Uma caminhada? Em um domingo?

- É, ué!...

- Não...

- Por que não?

- Porque lá fora está congelando.

- Nós vamos usar roupas quentes e caminhar bem depressa.

- Mas, Gus, eu jamais saio de casa em um domingo entre outubro e abril, incluindo o inverno todo, a não ser para ir ao Curryfour de noite.

- Então esta na hora de começar a sair. Que lugar é esse, Curryfour, um supermercado?

- Não, é o restaurante indiano que fica logo depois da esquina.

- Que nome legal!

- Bem, na verdade ele não se chama Curryfour, o nome é algo parecido com A Estrela de Lahore ou A Jóia de Bombaim.

- E você vai lá todos os domingos à noite?

- Todo domingo, sem falta, comemos sempre a mesma coisa.

- Certo. Bem, a gente pode ir até lá mais tarde, Lucy, mas agora nós vamos ao Parque Holland, que fica logo adiante, aqui nesta rua.

- Ahn?... Fica, é?

- Fica. Há quanto tempo você mora aqui Lucy Sullivan?

- Uns dois anos só – murmurei, tentando fazer a palavra “anos” soar como “semanas”.

- E em todo esse tempo você nunca foi ao parque? Isso é uma vergonha, Lucy.

- Não sou muito de andar ao ar livre, Gus.

- Pois eu sou.

- Vai ter um aparelho de tevê nesse parque?

- Vai.

- Sério?

- Não. Mas eu vou distraí-la, não se preocupe.

- O.K.

Eu estava realmente muito satisfeita. Adorando tudo, na verdade, ele queria passar o dia inteiro comigo,

- Posso usar esse suéter?

- Pode, se quiser, pode até ficar com ele pra você, eu detesto esse suéter.

Gus estava remexendo o meu armário e desencavou um revoltante suéter azul-escuro que minha mãe fizera para mim, todo um tricô Aran.

Eu jamais o usava exatamente pelo fato de que foi minha mãe que o tricotara. Ainda por cima, ela deixara os pontos tão abertos e frouxos sem tensão, que a gola mais parecia um pneu furado. Isso era surpreendente, porque deixar as coisas tensas era algo no qual normalmente ela era muito boa. Eu ficava parecendo uma tartaruga enlouquecida quando o colocava para sair.

- Puxa, obrigado, Lucy Sullivan.

 

Fui tomar banho e, quando voltei, o quarto estava vazio. Gus se fora, e quase entrei em pânico. Tinha medo de que ele tivesse ido embora do apartamento, mas tinha ainda mais medo de que ele não tivesse saído. Gus possuía a admirável capacidade de criar confusão e, apesar do comovente pedido de desculpas, ainda há pouco, eu ainda não estava convencida de que era seguro deixá-lo passear solto pelo apartamento, sem ter alguém vigiando.

Visões de Gus deitado na cama com Daniel e Karen, batendo papo com eles de forma descontraída, obrigando o casal a fazer uma pausa inesperada em suas atividades sexuais diante dos meus olhos.

Mas estava tudo bem.

Gus estava na cozinha, sentado à mesa com Daniel e Karen. Estavam todos bebendo chá, e o jornal estava todo espalhado. Para grande alívio meu, todos pareciam estar se dando muito bem, batendo um papo alegre e civilizado em plena manha de domingo, não obstante as cervejas roubadas e os artigos de toalete de Elizabeth Arden indevidamente utilizados. Gus e Daniel pareciam ter resolvido suas diferenças com relação ao consumo desautorizado das latas de Guinness de Daniel. Gus e Karen também pareciam ser grandes amigos.

- Lucy! – Sorriu Gus quando apareci na porta da cozinha. – Entre e sente-se aqui, para compartilhar nosso encontro nutricional.

- Ah – disse eu, baixinho, um pouco surpresa com toda aquela camaradagem. Fiquei um pouco... Bem... não exatamente chateada, mas um pouco, sei lá, desbundada, acho, pelo fato de todas aquelas pessoas, que só haviam se conhecido por minha causa, estarem se dando tão bem sem mim.

- Expliquei tudo a Karen a respeito da utilização dos produtos da Elizabeth Ardente – cantarolou Gus, com a inocência estampada no rosto. – Ela me disse que está tudo bem.

- Está tudo certo – disse Karen, sorrindo para Gus, sorrindo para Daniel e sorrindo para mim.

Eu, hein?... Tenho certeza de que Karen não ia se mostrar assim tão compreensiva se Charlotte ou eu tivéssemos usado os mencionados produtos Elizabeth Arden.

Pelo visto, ela gostara de Gus.

Ou talvez Daniel tivesse se superado entre os lençóis na noite anterior. Sem dúvida eu ia descobrir tudo mais tarde. Karen ia me contar tudinho, nos mínimos detalhes, assim que os homens fossem embora.

 

Levei horas para me aprontar. Era a coisa mais difícil do mundo conseguir parecer bem-vestida, bonita, muito feminina e magra, tudo ao mesmo tempo. Aquilo foi muito mais difícil do que fora a minha preparação para jantar com Daniel na noite anterior. O macete de estar bem-vestida para um passeio ao ar livre era fingir que eu nem me importava com a aparência, e enfiara a primeira coisa que me caíra nas mãos.

Experimentei a calça jeans. Sabia que eu ia acabar desistindo dela mesmo, ainda mais pelo fato de odiar o jeito como ela fazia as minhas coxas parecerem grossas.

Eu detestava minhas coxas mais do que qualquer coisa no mundo, e faria qualquer sacrifício na vida para ter coxas fininhas. Costumava até rezar para conseguir isso. Bem, pelo menos rezara uma vez. Foi na missa, em um dia de natal (minha mãe continuava insistindo para que fôssemos à missa em famille e eu tinha de acompanhar o rebanho. Qualquer reclamação significava que eu não ia ganhar Viennetta na hora da ceia). Quando o padre falou que era hora de fazer nossos pedidos especiais, pedi coxas mais finas. Depois, quando minha mãe me perguntou qual tinha sido o meu “pedido especial” e contei, ela ficou furiosa, disse que aquilo era uma coisa completamente indigna e inapropriada para pedir. Diante disso tive de voltar, cheia de vergonha, até a igreja. Abaixei a cabeça, com toda a humildade, e pedi coxas mais finas para minha mãe também, para papai, Chris, vovó Sullivan, os pobres da África e qualquer um que gostasse de coxas finas.

Ó que Deus não premiou meu altruísmo presenteando-me com coxas mais finas, e descobri que a única forma de fazê-las parecer menos volumosas era cercá-las de coisas maiores. Assim, calcei minhas botas grandes e pesadas. Em seguida, tive de anular o “efeito caminhoneiro” que elas provocavam usando um suéter bem infantil, em fio angorá cor-de-rosa. E uma jaqueta xadrez em azule preto por cima de tudo, para me dar a impressão frágil e pequena.

Gastei mais uma hora tentando dar a impressão de que eu simplesmente amontoara o cabelo em cima da cabeça. Levou uma eternidade para conseguir arrumar meus cachos para que eles parecessem ter acabado de cair por sobre os ombros, de forma casual.

Depois, fiz uma pesada aplicação de maquiagem, a fim de conseguir o visual “sem maquiagem”, ou “cara limpa chique”, se preferirem. Bochechas rosadas, pele branca, olhos brilhantes e lábios úmidos.

 

Encontrei Gus na porta da frente, obviamente ainda muito ligado a Karen, Charlotte e Daniel. Eles agiam como se já se conhecessem desde crianças, e fiquei mais animada. Queria que as amigas com quem eu dividia o apartamento e o resto dos meus amigos gostassem dele. E queria que ele também gostasse das minhas colegas e amigos.

Embora, obviamente, sem gostar demais.

Se há uma coisa pior do que o seu namorado e suas amigas não se darem muito bem, é quando eles se dão bem demais. Isso pode resultar em complicações terríveis e muita confusão na hora de fazer os arranjos para se passar a noite.

Simon, o rapaz que Charlotte conhecera na noite anterior, telefonara, e Charlotte, muito maquiada e perfumada, estava se preparando para sair, toda excitada.

- Camisinhas...- disse ela, com o maior fogo, sentando-se e remexendo em toda a bolsa.- Camisinhas, camisinhas, será que não tenho camisinhas aqui?

- Mas você só vai se encontrar com ele para almoçar! – lembrei a ela.

- Lucy, não seja ridícula – disse ela, com ar de deboche. -... Ah, que bom, achei uma! Qual o sabor? Pina Colada?! ... Ah, vai ter que servir!

- Você está muito bonita, Lucy – disse Daniel, com admiração.

- É, está mesmo... Linda! – Gus circulou à minha volta para dar uma olhada melhor.

- É verdade, está mesmo – ecoou Charlotte.

- Obrigada.

- Estamos prontos então? – perguntou Gus.

- Estamos – afirmei.

- Foi um prazer conhecer vocês todos – disse Gus para o grupo reunido, todas as mágoas da noite anterior já esquecidas. – Boa sorte com o... hã... com o... – E balançou a cabeça para Charlotte.

- Obrigada. – Sorriu ela, toda nervosa.

- Divirta-se.- Daniel piscou para mim.

- Você também. – Pisquei de volta.

 

Pelo menos não estava chovendo. Estava frio, mas o céu estava azul, bem claro, e o ar estava parado, sem vento.

- Trouxe luvas, Lucy?

- Trouxe.

- Ah, então você me empresta?

- Ah. – Seu grande egoísta.

- Não, não são para mim! – Riu ele. – Olhe só, uma é para a sua mão direita, a outra é para a minha mão esquerda, e então nós ficamos de mãos dadas para juntar o meio. Viu?

- Vi.

Aquilo foi ótimo, porque cuidou do problema estranho de ficar andando de mãos dadas. Uma questão que não representara problema algum na noite anterior, regada a álcool, mas que poderia se transformar em algo constrangedor à luz fria e sóbria do dia.

Seguimos em frente, balançando as mãos, com o ar gelado fazendo nossos rostos ficarem vermelhos.

Nós reclinamos em um barco e continuamos de mãos dadas, observando os esquilos, que corriam e pulavam à nossa volta.

Embora eu estivesse sentindo um pouco de timidez, não conseguia tirar os olhos de Gus. Ele era lindo, com cabelo tão preto e brilhante, a barba por fazer já cobrindo o maxilar (pelo visto ele não encontrara o depilador de Karen) e os olhos muito verdes sob a luz fria do inverno.

Era maravilhoso estar ali com ele.

- Isso é uma delícia – suspirei. – Estou tão contente por você ter me obrigado a vir.

- E estou contente por você estar contente, pequena Lucy Sullivan.

- Esses esquilos são umas gracinhas – disse eu. – Adoro vê-los correndo em volta, de um lado para outro, pulando e apostando quem corre mais.

Gus na mesma hora se sentou reto e olhou para mim.

- Está falando sério? – quis saber, parecendo muito alarmado.

O que será agora?, perguntei a mim mesma, já ansiosa. Será que ele ia começar outro daqueles papos malucos e fantasiosos?

Pelo jeito, sim.

- Bem... – e começo a falar, muito depressa. – Devo dizer que os bárbaros devem estar nos portões da cidade, já que até as criaturas irracionais do campo são obrigadas a se distrair fazendo apostas ilegais... Enfim, Londres é assim mesmo, imagino. Qualquer dia os esquilos vão estar fumando crack!

Ai, meu Deus, pensei, ele é totalmente pirado! Mas não podia levar aquilo a sério, estava rindo tanto que mal conseguia falar.

- Não é apostando dinheiro, é apostando quem corre mais, de brincadeirinha – expliquei.

- Entendi o que você disse, logo da primeira vez, Lucy Sullivan – disse ele. – E em que tipo de corridas são estas apostas? – quis saber. - Corrida de cães? Corrida de cavalos? Bingo? Atenção! Oitenta e oito é a aposta para os pequenos esquilos! Cartas? Vinte e um? Roleta? Rien ne va plus! Rien ne va plus, é isso ai! Não existe mais inocência, Lucy. Toda ela se foi. Não há mais nada intocado. Só de pensar que os pequenos esquilos estão fazendo apostas me aperta o coração. Isso não se vê em Donegal. O que havia de errado com recolher nozes? Não havia mais emoções nessa atividade, imagino... Isso tudo é influencia da televisão.

E olhou para mim compreendendo tudo.

- Ah... – disse ele, fazendo uma cara envergonhada. – Ah, entendi, você quis dizer esse tipo de apostas, e não aquele tipo de apostas, não foi?

- Sim.

- Ah. Ah, sim. Bem, me desculpe. Um mal-entendido. Você deve estar achando que já estou pronto para ir para o pinel. Preparem a cela acolchoada para Gus.

- Não. Simplesmente acho você hilário.

- Isso é muita gentileza sua, Lucy – disse ele. – A maioria das pessoas simplesmente fala que sou louco.

- E por que será? - perguntei, com ar divertido.

- Sei lá! Veja se descobre – disse ele, com o rosto de duende assumindo a imagem da inocência.

Adoraria tentar descobrir, pensei.

- Enfim – continuou ele -, se eles acham que eu sou louco, deviam conhecer o resto da família.

Oh-oh! Senti uma revelação desagradável vinha surgindo no horizonte. Levantei os ombros, porém, e resolvi encarar tudo de frente.

- Hã... como é que eles são, Gus?

Ele me lançou um sorriso meio de lado e disse:

- Bem, olha, Lucy, insanidade não é uma palavra que fico usando toda hora para descrever qualquer coisa, mas...

Tentei esconder meus temores, mas devo ter demonstrado, por que ele caiu na gargalhada.

- Pobrezinha da Lucy! Você tinha que ver essa sua carinha de preocupação.

Tentei sorrir, levando na brincadeira.

- Pode se tranqüilizar, Lucy, estou só de zoação com você. Eles não são insanos de verdade...

Respirei aliviada.

-... de certo modo...- continuou ele. – Mas são muito, muito passionais, talvez essa seja a melhor forma de descrevê-los.

- Como assim?

Era melhor enfrentar logo o problema, fosse qual fosse, decidi.

- Tenho um certo receio de lhe contar, Lucy, senão você vai se convencer de que sou louco varrido do hospício. Quando souber o tipo de passado que carrego e o lugar de onde vim, provavelmente vai sair correndo pelas ruas, gritando apavorada.

- Não seja tolo – disse eu, tranqüilizando-o.

Mas senti um pequeno nó no estomago. Por favor, senhor, não permita que isto seja tão horrível. Eu gosto demais dele.

- Tem certeza de que quer ouvir isto, Lucy?

- Tenho. Não pode ser assim tão ruim. Você tem pais?

- Ah, sim. Um par deles, combinando um com o outro. Um conjunto completo, com todos os complementos.

- E você já mencionou que tinha um monte de irmãos...

- Cinco.

- É um monte mesmo.

- Nem tanto. Pelo menos não na região de onde vim. Sempre tive vergonha pelo número dos meus irmãos, que não chegava a dez.

- Eles são mais velhos ou mais novos?

- Mais velhos! São todos mais velhos do que eu.

- Sou, embora seja o único dos rapazes que não mora mais na casa dos pais.

- Cinco homens adultos, todos morando na mesma casa. Isso deve criar um bocado de problemas.

- Nossa! Você nem imagina. Mas eles têm que morar lá, porque todos trabalham na fazendo e no pub.

- Vocês tem um pub?

- Temos.

- Então devem ser ricos.

- Não somos, não.

- Mas sempre achei que quem possuía um pub tinha sempre dinheiro de sobra.

- Não o nosso pub. É por causa dos meus irmãos, entende? Gostam de um traguinho.

- Ah, entendi, bebem o lucro todo.

- Não, não bebem – riu ele -, porque não sobram nem os lucros para beber, já que eles bebem o estoque inteiro.

- Ai, Gus.

- Não temos bebida alguma no estoque porque eles bebem tudo, devemos dinheiro a todas as fábricas de cerveja da Irlanda, e quase mais nenhuma delas faz entregas para nós. Nosso nome também está sujo entre todas as destilarias do país.

- Mas vocês não tem clientes, não conseguem lucrar alguma coisa com eles?

- Na verdade, não, porque funcionamos em uma região isolada. Nossos únicos clientes são os meus irmãos e o meu pai. E os guardas do lugar, é claro. Mesmo assim eles só chegam pouco antes do horário de fechar, todas as noites, para ficar bebendo direto lá dentro.

Para falar a verdade, não podemos cobrar preço algum deles, porque, se tentarmos cobrar, eles fecham nossas portas, por não seguirmos a lei e os horários de funcionamento.

- Você está brincando.

- Não estou, não.

Minha cabeça girava, tentando bolar um esquema para melhorar o movimento da loja e tornar o pub da família de Gus lucrativo. Noites com karaokê? Competições com perguntas? Promoções especiais? Servir comida na hora do almoço? E contei cada uma dessas idéias para ele.

- Não, Lucy – ele balançou a cabeça, parecendo divertido com as idéias e triste ao mesmo tempo. – Eles não são muito bons nessa historia de organização. Ia acabar saindo alguma coisa errada, porque eles ficam bêbados o tempo todo e começam a brigar uns com os outros.

- Está falando sério?

- Estou. Durante as noites, lá em casa, sempre acontecia alguma coisa extremamente dramática. Cheguei em casa uma noite e encontrei todos os meus irmãos na cozinha. Dois deles estavam cobertos de sangue, e outro estava com a mão enrolada pela camisa, depois de ter quebrado a vidraça com um soco. Estavam todos se xingando, mas, de repente, começaram a chorar e a dizer um ao outro que se amavam muito, como irmãos. Eu odiava aquilo.

- E qual o motivo de todas essas brigas? – perguntei, intrigada, fascinada.

- Ah, qualquer motivo serve. Eles não são muito exigentes para isso não. Um olhar atravessado, uma inflexão diferente na voz, qualquer coisa serve.

- É mesmo?

- É. Estive lá no Natal e, logo na primeira noite, no mesmo dia em que cheguei, todos encheram a cara. Foi tudo muito legal por algum tempo, até que alguma coisa saiu errado, como geralmente acontecia. Por volta de meia-noite, PJ achou que Paudi estava olhando de um jeito engraçado para ele, e então deu-lhe um soco, Mikey gritou com PJ, mandando-o deixar Paudi em paz, e John Joe deu um soco em Mikey por gritar com PJ. Então, PJ deu um soco em John Joe por ele ter batido em Mikey, e Stevie começou a chorar, por ver seus irmãos agredindo uns aos outros. E PJ começou a chorar também, arrependido por ter deixado Stevie tão aborrecido. Foi quando Stevie deu um soco em PJ por ter começado toda a historia, e então Paudi deu um soco em Stevie, por ele ter batido em PJ, pois quem queria bater em PJ era ele... Nesse ponto, meu pai chegou e resolveu que ia bater em todos eles.

Gus fez uma pausa para pegar fôlego e continuou:

- Era terrível. Deve ser o tédio, tenho certeza. Só que tudo lá em casa é movido a álcool. Eles se acalmaram em pouco, uns anos atrás, quando resolveram assinar o canal de esportes da tevê a cabo, mas papai não pagou a conta, o sinal foi cortado e os atritos recomeçaram.

Eu estava encantada. Poderia ficar ali ouvindo para sempre o sotaque lírico e maravilhoso de Gus, que continuava contando as historias de sua família tão fascinantemente desajustada.

- E onde é que você se encaixa em tudo isso? Em quem você bate?

- Em ninguém. Simplesmente não me encaixo em nada, pelo menos faço tudo para não me encaixar.

- Isso tudo me parece hilário – disse eu. – É como se fossem cenas tiradas de uma peça.

- Você acha? – perguntou Gus, parecendo chocado e até um pouco chateado. – Talvez eu não tenha contado as coisas direito, porque aquilo não era nada engraçado.

Na mesma hora eu me senti envergonhada.

- Desculpe, Gus – murmurei. – Por um momento esqueci que é sobre a sua família que estamos falando. É que você conta as coisas de um jeito tão... Mas imagino que devia ser terrível.

- Pois era mesmo, entende, Lucy? – disse ele, com indignação. – Aquilo me deixou cicatrizes terríveis e me levou a fazer coisas horrorosas.

- Como o que?

- Eu costumava caminhar pelos montes durantes horas a fio, conversar com os coelhos e escrever poesias. Claro que tudo acontecia porque desejava escapar da família, mas não sabia como.

- Mas o que há de errado em caminhar pelos montes, conversar com os coelhos e escrever poesia? – Eu achava que tudo aquilo parecia selvagem, romântico e bem irlandês.

Há muita coisa de errado, Lucy, e tenho certeza de que você concordaria comigo se lesse algum dos meus poemas.

Eu ri, mas só um pouco, porque não queria que ele pensasse que estava caçoando dele.

- Além do mais, os coelhos não são muito bons para se conversar, não – afirmou. – Cenouras e sexo, é só sobre isso que eles falam.

- É mesmo?

- Por tudo isso, assim que consegui escapar de lá, tirei da cabeça toda a poesia e a imagem de alma torturada.

- Bem, não há nada de errado em ser uma alma torturada... – protestei, desesperada para me agarrar à idéia de Gus como uma figura poética.

- Ah, mas há muita coisa de errado sim, Lucy. É constrangedor é chato.

- Ah, é? Pois gosto muito de almas torturadas.

- Não, Lucy, você não deve gostar – disse ele, com firmeza. – Eu insisto nesse ponto.

- E então, como é que os seus pais são? – perguntei, mudando de assunto.

- Meu pai é o pior de todos. Transforma-se em um homem terrível quando bebe. O que acontece quase o tempo todo.

- E quanto à sua mãe?

- Ela não faz nada. Isto é, ela faz muita coisa... cozinha, lava e faz todo o resto, mas não tenta mantê-los na linha. Acho que ela tem medo. Reza muito. E chora... Somos uma família ótima quando se trata de cair no choro, um bando muito lacrimoso. Ela reza o tempo todo, pedindo para que meus irmãos e meu pai se afastem da bebida e virem santos.

- E você tem irmãs?

- Duas, mas elas fugiram quando eram novinhas. Eleanor se casou aos dezenove anos com um homem velho o bastante para ser seu avô, Francis Cassidy, de Letterkenny.

Gus pareceu se animar com aquela recordação.

- Ele foi a nossa fazenda uma vez – continuou -, para pedir a mão de Eleanor ao meu pai. Acho que não devia estar lhe contando isso, porque você vai achar que somos todos um bando de selvagens, mas a verdade é que nós o colocamos para correr dali. Tentamos soltar os cães em cima do velho Francis, mas os cães recusaram-se a mordê-lo. Provavelmente ficaram com medo de pegar alguma doença.

Gus olhou para mim com atenção, bem de perto.

- Devo abaixar a cabeça de vergonha, Lucy?

- Não – disse eu. – É divertido.

- Sei que aquilo não foi muito hospitaleiro, Lucy, mas tínhamos pouca coisa com que nos divertir, e Francis Cassidy era um sujeito horrível, muito poir do qu qualquer um de nós. Ele era um cara magro e com o aspecto mais miserável que alguém já viu, e trouxe um tremendo mau-olhado, porque as galinhas não puseram ovos por quatro dias e as vacas pararam de dar leite depois de sua visita.

- Eileen? Simplesmente sumiu. Nenhum dos homens da região veio pedir a mão dela, acho que Francis Cassidy os alertou. Nós só reparamos que ela havia sumido quando vimos que o café não estava na mesa, certa manha. Era verão, estávamos amontoando feno e tínhamos que levantar assim que amanhecia, Eileen tinha a incumbência de deixar a comida pronta, antes de todos nós irmos para o campo.

- E para onde ela foi?

- Não sei. Dublin, acho.

- E ninguém ficou preocupado com o sumiço dela? – perguntei, indignada. – Ninguém tentou ir atrás dela, nem procurá-la?

- Ora, eles ficaram preocupados, sim. Principalmente por saberem que iam ter que preparar o próprio café da manhã, a partir daquele dia.

- Mas isso é terrível! – disse, ficando aborrecida. A historia de Eileen tinha me deixado muito mais aborrecida do que a historia de Francis Cassidy e os cães. – Isso é muito, muito terrível!

- Lucy – afirmou Gus, apertando a minha mão. – Eu não fiquei preocupado por ter de preparar o meu próprio café da manhã. Queria ir atrás dela, mas meu pai disse que ia me matar se eu fizesse aquilo.

- Ainda bem que foi assim – disse eu, sentindo-me um pouco melhor.

- Eu sentia saudade de Eileen. Ela era linda e costumava conversar comigo, mas fiquei feliz quando ela foi embora.

- Por quê?

- Ela era muito inteligente para ficar ali, servindo de escrava, e o nosso velho já estava com idéias de fazer uma aproximação e arranjar o casamento dela com um dos dois velhos que moravam na fazenda ao lado, só para colocar as mãos na terra deles, entende?

- Isso se chama barbárie – disse, horrorizada.

- Tem gente que acha que se chama “visão econômica” – disse Gus -... Mas eu não sou um deles, não – acrescentou, bem depressa, quando sentiu meu olhar.

- E o que aconteceu com a pobre Eileen? – perguntei, sentindo meu coração bater com a tristeza de tudo aquilo. – Você nunca mais ouviu falar dela?

- Acho que Eileen foi para Dublin, mas ela nunca me escreveu, de modo que não tenho certeza.

- E tudo tão triste – suspirei.

Nesse momento foi atingida por uma idéia e lancei-lhe um olhar penetrante, perguntando?

- Você não esta inventando tudo isso, por acaso, está? Essa não é uma daquelas suas fantasias, como os esquilos que fazem apostas e a minha colega de apartamento, Elizabeth Ardente, ou é?

- Não – protestou ele. – Claro que não! Francamente, Lucy, eu não ai fazer piadas ou inventar coisas sobre algo tão importante. Embora eu desejasse muito que a historia de minha família fosse um conto de fadas. Imagino que tudo isso deve parecer muito esquisito para uma garota sofisticada da cidade, como você.

Por mais estranho que seja, não parecia.

- É que, entenda bem, nós vivemos muito isolados – continuou Gus. – A fazenda ficava longe de tudo, e nós não costumávamos encontrar muita gente de fora, de modo que eu não conhecia nada melhor do que aquilo. Não tinha nada com o que comparar a minha família. Por muitos anos achei que as brigas, a choradeira, os gritos e tudo o mais eram perfeitamente normais, e que todo mundo vivia que nem nós. Foi um grande alivio, poder acreditar, no dia em que descobri que as minhas suspeitas estavam corretas, e que eles eram tão malucos como eu às vezes achava que eram.

- E esta é a história das minhas origens, Lucy.

- Bem, obrigada por me contar.

- Deixei você muito apavorada?

- Não.

- Por que não?

- Não sei.

- Sua família deve ser maluca também.

- Não é não, desculpe desapontá-lo.

- Então, como é que você consegue ser tão compreensiva com o bando lá de casa?

- Porque você é você, e não a sua família.

- Se as coisas fossem tão simples assim, Lucy Sullivan...

- Mas podem ser, Gus... Gus de quê?

- Gus Lavan.

- Prazer em conhecê-lo, Gus Lavan – disse, apertando a mão dele.

Lucy Lavan, fiquei pensando. Lucy Lavan? E... gostei! Ou será que era melhor deixar os dois sobrenomes... Lucy Sullivan Lavan? Tinha um ritmo legal também.

- E também tenho muito prazer em conhecê-la, Lucy Sullivan – disse ele, solenemente, apertando a minha mãe. – Mas acho que já havia falado isso, não?

- Sim, você falou isso a noite passada.

- Mas nem por isso deixa de ser verdade. Vamos tomar uma cervejinha, lucy?

- Hã... vamos, se você quiser. Já caminhou o bastante?

- Se já caminhei o bastante para ficar com tanta sede, então já caminhei o bastante.

- Ótimo.

- Que horas são, Lucy?

- Não sei.

- Você não tem relógio?

- Não.

- Nem eu. Só pode ser um sinal.

- Sinal de quê? – perguntei, de forma calorosa. Sinal de que Gus e eu éramos almas gêmeas? Que nossa união fora escrita nas estrelas?

- Sinal de que nós vamos chegar sempre atrasados nos lugares.

- Ah. Hã... O que está fazendo?

Gus estava recostado quase na horizontal, em cima do banco, olhando para o céu, estalando a língua e murmurando coisas como “cento e oitenta graus” e “sete horas à frente do horário de Nova York” e “ou talvez seja Chicago”.

- Estou olhando para o céu, Lucy.

- Para quê?

- Para descobrir que horas são, é claro.

- É claro.

Uma pausa.

- Chegou a alguma conclusão?

- Sim, acho que sim. – E balançou a cabeça, pensativo. – Acho que sim.

Houve outra pausa.

- Lucy, cheguei à conclusão, quase definitiva, é claro que sempre há espaço para falhas humanas, nesse tipo de coisa, você compreende, mas estou quase que totalmente certo de que , definitivamente, estamos de dia. Com oitenta e sete por cento de certeza. Ou talvez oitenta e quatro.

- Diria que você tem razão.

- Gostaria de saber qual é o seu palpite a respeito de horário, Lucy.

- Eu diria que são quase duas horas.

- Ai, meu Deus!- E deu um pulo do banco. – Então já esta assim tão tarde? Bem, vamos logo então, temos que fazer o melhor que conseguimos.

- Sobre o que você está falando? – Dei uma risada, enquanto ele me arrastava pelo parque.

- Esta quase na hora de fechar, Lucy Sullivan, hora de fechar! Palavra pobre! Três palavras pobres, na verdade. Palavras sujas e odiosas – disse ele, quase cuspindo. – Imundas! Os pubs fecham às três horas da tarde hoje e só vão abrir de novo ás sete, não é verdade?

- Sim – tentei acompanhar o ritmo dele -, a não ser que eles tenham mudado o horário de funcionamento hoje de manha,

- E você acha que eles podem ter feito isso? – perguntou Gus, parando de repente.

- Não.

- Então vamos embora – disse ele quase correndo – Temos apenas uma hora.

 

Paramos no primeiro pub que encontramos assim que saímos do parque. Não era tão horrível, o que dava no mesmo, porque senti que Gus teria me obrigado a entrar ali de qualquer modo, mesmo que o telhado estivesse desabando e as paredes despencando.

Ele colocou a mão sobre o meu braço, na porta.

- Lucy, desculpe por isso, mas receio que você vá ter que financiar esta missão. Só recebo meu pagamento na terça-feira, e não vou poder lhe devolver o dinheiro.

- Oh... Oh... tudo bem!

Meu coração despencou, mas consegui agarrá-lo antes que batesse no chão. Afinal, não era culpa de Gus se o conheci justamente no fim de semana em que ele estava duro.

- O que gostaria de beber? – perguntei a ele.

- Vou tomar uma cerveja.

- De que marca?

- Guinness, é claro!

- É claro.

- ... e uma dose pequena – acrescentou.

- Dose pequena?

- De uísque Jameson, sem gelo.

- Hã... tudo bem.

- É melhor pedir uma maior – sugeriu.

- Como disse?

- Uma dose pequena das maiores.

- Como assim?

- Uma dose maior de Jameson. Dose dupla.

- Ah, o.k.

- Espero que você não se incomode, Lucy, mas é que não vejo razão para se fazer as coisas pela metade – disse ele, com ar de desculpas.

- Tudo bem – disse com a voz fraca.

- E vou querer também o que você for beber – acrescentou ele.

- Hã...obrigada.

Se eu fosse Karen, teria dito “Hã... obrigada”, com tom sarcástico, mas já que era apenas eu, falei “Hã... obrigada”, como se estivesse dizendo “Hã... obrigada”.

- Há uma mesa vaga bem ali adiante, Lucy. Vou tomar conta dela enquanto você pega as bebidas.

Fiquei em pé no bar e me senti triste por um momento. Então me obriguei a parar com aquilo. Estava sendo tola. Ele ia receber o dinheiro dele na terça-feira.

- Traga também um saco de batatas fritas – disse Gus junto do meu ouvido.

- De que sabor?

- Sal e vinagre.

- O.k.

- ... E se tiver traga também de churrasco e mostarda...

- Combinado.

- Grande garota!

Peguei para mim uma Coca light, bem modesta.

Gus já acabara a cerveja e o pequeno uísque duplo antes de eu terminar de beber a Coca. Na verdade, ele já tinha entornado quase tudo antes de eu acabar de sentar.

- Vamos tomar outro – anunciou Gus.

- Acho que vamos.

- Fique quietinha onde está – disse ele, com gentileza. –É só me entregar o dinheiro que eu pego as bebidas.

- Hã... o.k. – disse, pescando a bolsa que eu acabara de fechar e tirando uma nota de cinco libras.

- Cinco das suas suadas libras? – perguntou ele, em dúvida. – Tem certeza que isso vai dar, Lucy?

- Tenho - respondi com firmeza.

- Você também não quer alguma coisa?

- Quero!

Quando ele saiu, bebi o resto da minha Coca, bem depressa.

Resolvi que se ele não me devolvesse o troco sem eu ter de pedir eu ia... Eu ia... Nem sei!

- Aqui esta o seu troco, Lucy.

Levantei os olhos do copo vazio, que estivera fitando com ar sombrio. Gus estava olhando para mim, ansioso, com alguns pence na palma da mão aberta.

- Obrigada. – Sorri e peguei as treze pence, ou sei lá quanto era. Subitamente, comecie a me sentir melhor.

Afinal, não era pelo princípio da coisa.

- Lucy – disse Gus, com cara séria. – Obrigado pelos drinques e tudo mais... é muita bondade sua. Vou receber meu pagamento na terça, vou levá-la para sair e vou lhe devolver o dinheiro. Prometo... Hã... obrigado.

- De nada! – Sorri, sentindo-me muito, muito melhor. Ele se redimira, talvez tivesse percebido o quanto eu começara a ficar desapontada.

Ele era bom naquilo. Bom em se redimir, é o que quero dizer. Bom em tirar o corpo fora do limite da minha desaprovação, sempre no ultimo minuto.

Não que eu me incomodasse em gastar dinheiro com ele, ou com qualquer pessoa, por falar nisso, especialmente quando se tratava de algo tão importante quanto lhes oferecer drinques na hora do almoço, mas me incomodava muito sentir que as pessoas pudessem achar que eu era otária, uma bundona.

Ele tomou vários outros drinques, pelos quais paguei alegremente. (“Devolvo tudo na terça, Lucy.”) Em pouco menos de uma hora já havíamos consumido muitos drinques.

- Grande atuação a nossa. Fizemos maravilhas no curto espaço de tempo que tivemos à nossa disposição, Lucy. – Gus inspecionava a mesa cheia de copos vazios à medida que se aproximavam três horas e o barman fazia um convite para que nos retirássemos.

- Não é realmente espantoso o quanto podemos conseguir quando focamos nossa mente em um objetivo? – E balançou por sobre a mesa o copo de cerveja pela metade, para enfatizar a idéia. – Precisamos apenas de um pouco de um pouco de esforço.

- Embora eu esteja desapontado com você, Lucy. – E tocou meu rosto, com carinho. – Sinto ter que lhe contar isso, mas... duas Cocas light e um gim-tônica? Tem certeza que você é irlandesa?

- Sim – respondi.

- Bem, você vai ter que suar um pouco mais a camisa da próxima vez, não pode deixar todo o esforço por minha conta, sabia?

- Gus. – Dei uma risada. – Tenho uma má notícia para lhe dar.

- Qual é?

- Eu na verdade não bebo tanto assim. E jamais bebo durante o dia... Normalmente – acrescentei, depressa, ao vê-li lançar um olhar acusador para o copo de gim.

- Serio? Mas eu pensei... Você não falou que... Você não se importa de que as outras pessoas bebam muito, se importa? – perguntou, esperançoso.

- Nem um pouco – eu o tranqüilizei. – Nem um pouco.

- Que ótimo então – suspirou com alivio. – Puxa, você me deixou preocupado por um instante. Será que o bar já fechou mesmo?

- Já.

- Talvez seja melhor eu ir até lá, para ter certeza – sugeriu ele, com ar travesso.

- Gus! Está fechado.

- Mas tem um barman lá. Pode ser que ainda estejam servindo.

- Ele está lavando os copos.

- Vou lá conferir.

- Gus!

Mas ele pulara da cadeira e já estava no balcão levando um papo com o barman e fazendo um monte de gestos enérgicos. Então, para meu horror, ouvi vozes ligeiramente alteradas, que pararam de falar abruptamente no momento em que Gus deu uma pancada no balcão de madeira, com toda a força. A seguir, ele voltou até a mesa.

- Está fechado – murmurou ele, vencido. Pegou o resto da cerveja e nem olhou para mim.

Reparei que os poucos clientes que ainda estavam ali começaram a nos olhar com diversão e interesse. Fiquei um pouco sem jeito, mas era engraçado.

- Não sei qual pe o problema dele, mas aquele cara que trabalha como barman é um sujeito pouco razoável – murmurou Gus.- Pouco razoável e desagradável. Não havia necessidade de ele me dizer o que disse. O que aconteceu com o velho “o cliente tem sempre a razão”?

Eu ri e Gus olhou para mim.

- Et tu, lucy? – perguntou ele.

Ri de novo. Não conseguia evitar. Deve ter sido o gim.

- Nunca mais vamos voltar aqui, Lucy. Ah, não! Eu não venho a um pub para ser insultado, portanto nunca mais volto aqui, Lucy. Serio mesmo, nunca mais!

Seu rosto bonito e maleável estava sombrio pelo aborrecimento.

- Há um monte de outros lugares aonde posso ir para ser insultado - acrescentou, com tristeza.

- O que o barman lhe disse? – perguntei, tentando fazer minha boca parar de sorrir.

- Lucy, eu jamais repetiria aquilo, muito menos na sua presença – disse ele, sério. – Jamais mancharia meus lábios nem poluiria o ar aromático que circunda suas delicadas orelhas repetindo o que aquele filho-da-pu... aquele... canalha abominável, espírito do mal, veado enrustido me falou.

- Parece-me justo – disse, de algum modo conseguindo manter o rosto serio.

- Tenho respeito por você, Lucy.

- Eu agradeço.

-Você é uma dama, Lucy. E existem certas regras, certas restrições de ordem pessoal que aplico sempre que estou na presença de uma dama.

- Obrigada, Gus.

- Agora – disse ele, levantando-se e esvaziando o copo -, o nosso trabalho por aqui está encerrado.

- O que quer fazer agora?- perguntei.

- Bem, é domingo à tarde, acabamos de tomar alguns drinques, está frio, acabamos de nos conhecer na noite passada, portanto está determinado que devemos agora voltar ao seu apartamento para nos aconchegarmos no sofá, a fim de assistir um filme em preto e branco. – Gus sorriu de forma sugestiva para mim e colocou o braço em volta da minha cintura coberta de fio angorá cor-de-rosa.

Puxou-me ligeiramente na direção dele e eu senti a cabeça leve, sentindo um pouco de... bem, deve ter sido desejo, imagino. Era uma delicia ser abraçada por ele. Embora não fosse muito alto, ele era forte e másculo.

- A idéia me parece ótima.- Um arrepio percorreu-me a espinha, embora eu estivesse preocupada com o fato de que talvez não estivesse passando nenhum filme em preto e branco na tevê e que Daniel e Karen pudessem estar fazendo sexo no chão da sala de estar. Nós podíamos ir ate a locadora, pegar filme com Adrian, se não tivesse nada de interessante na tevê, mas eu não estava certa sobre como lidar com o problema de Daniel e Karen.

E se Adrian ficasse chateado ao me ver acompanhada por um homem? Como eu ia enfrentar isso? Aquele era um estado de coisas muito tristes, mas a vida era assim mesmo, em todo raio de esperança aparecia uma nuvem, e cada fragmento de felicidade era pago com a dor de alguém.

 

Naquela noite, depois que Gus foi para casa, eu mal conseguia conter a felicidade. Estava louca para falar de Gus com alguém, doida para descrever com os mínimos detalhes a roupa que eu estava usando quando o conheci, o que ele me dissera, como era a sua aparência e tudo mais.

Só que as minhas confidentes de sempre não estavam disponíveis. Karen e Charlotte haviam saído, Daniel estava com Karen e eu estava muito chateada com Megan ou Meredia, então liguei para Dennis. Para minha surpresa, ele estava em casa.

- Achei que você havia saído – disse eu.

- Foi por isso que me ligou?

- Não seja tão sensível.

- O que você quer?

- Dennis – fiquei ofegante, de forma dramática -, conheci um homem!

- Então conte, uai! – E prendeu a respiração. Às vezes ele falava daquele jeito, embora fosse de Cork.

- Venha até aqui, vai ser mais empolgante se eu lhe contar pessoalmente.

- Já estou indo!

Tive que sair correndo para colocar um pouco de maquiagem e pentear o cabelo, porque Dennis sempre me revista com o olhar, analisando a minha aparência, dizendo se eu ganhara ou perdera alguns quilos, qual o peso ideal que eu devia ter, se amava ou odiava meu cabelo e assim por diante. Ele era pior do que minha mãe, só que pelo menos tinha uma desculpa: ele era gay, e não conseguia evitar aquilo.

Ele chegou em mais ou menos dez minutos. A cada vez que o via, ele estava com o cabelo recém-cortado. O comprimento foi ficando cada vez mais curto, e tudo o que ele exibia agora era uma penugem loura, a qual, devido ao seu pescoço comprido e fino, fazia com que ele ficasse parecido com um patinho.

- Você chegou rápido – disse eu enquanto abria a porta. – Veio de táxi?

- Pegue um táxi e destaque-se! Puxa, mas a viagem que eu fiz... Nossa! Mais tarde eu lhe conto, agora quero saber das novidades quentes.

Dennis às vezes exagerava na frescura, mas eu estava grata por ter alguém com quem conversar e não consegui mandá-lo parar. Preparei-me para ouvir alguma coisa bem vulgar em seguida. Ele sempre fazia isso. E não me desapontou.

- Puxa! – declarou, esfregando o traseiro. – Minha olhota está pegando fogo.

Eu o ignorei, porque não queria falar dele. Queria falar de Gus.

Em seguida, ele inspecionou minha aparência, e passei, com algumas recomendações. Dennis pediu chá e reclamou da figura que havia na caneca.

- Um gato... Um GATO! Fala serio, Lucy, não sei como você consegui ser assim.

Havia apenas quatro coisas, mais ou menos, em todo o apartamento de Dennis, mas elas eram muito lindas e caras.

- Você faz parte do meu esquadrão de amigas de emergência – avisei a ele, assim que sentou.

- E o que é isso?

- Em uma emergência, quando preciso conversar com uma amiga e não há nenhuma garota disponível, você sempre vem me socorrer – expliquei. – Fico imaginando você vestido de bombeiro, escorregando para o caminhão, agarrado em um mastro.

Ele ficou tão vermelho que o rosto ficou muito mais escuro do que o cabelo descolorido.

- Quer fazer o favor de parar? – Disse, com arrogância. – Minha vida pessoal só interessa a mim.

- Assumindo posição de fofoca – comandei, e na mesma hora sentamos no sofá, ao mesmo tempo, um de frente para o outro.

Contei a ele sobre a taróloga.

- Você devia ter dito que ia lá... – resmungou ele. – Eu gostaria de ir também.

- Desculpe. – Rapidamente, passei para a parte do boato horrível no trabalho, sobre o meu casamento.

- Sério mesmo, Dennis, eu me senti horrível. Além da humilhação e tudo o mais, aquilo fez com que eu me sentisse tão sozinha... Como se eu jamais fosse me casar.

- Eu jamais vou conseguir me casar – disse Dennis. – Não vão permitir! – E quase cuspiu ao dizer “permitir”.

- Sinto muito, foi falta de sensibilidade de minha parte falar isso – desculpei-me correndo. Não queria que Dennis começasse a falar sobre os gays serem discriminados, e como o governo devia conceder-lhes a permissão para casar, da mesma forma que os “reprodutores”, como ele insistia em chamar os heterossexuais.

- Aquilo fez com que eu me sentisse velha, encalhada, vazia e patética – continuei. – Você entende?

- Ohhh, claro que sim, queridinha! – E apertou os lábios.

- Dennis, por favor, não venha com essa frescura toda pra cima de mim.

- Como assim?

- Não me chame de “queridinha” – implorei – É tão afetado! Você é irlandês, nunca se esqueça disso.

- Então vá se foder!

- Ah, assim é melhor. Agora, onde é mesmo que eu estava? Ah, sim. Não posso acreditar que tanta coisa mudou em vinte e quatro horas.

- A noite sempre parece mais escura pouco antes do amanhecer – disse Dennis, com sabedoria. – Então você encontrou esse homem no sábado à noite?

- Foi.

- Ele só pode ser aquele que a taróloga viu no seu futuro – disse Dennis, falando exatamente o que eu queria ouvir.

- Também acho que pode ser ele – disse, um pouco envergonhada. – Sei que não devia acreditar nisso e, por favor, não conte a ninguém que acredite, mas não seria bom pensar desse modo?

- Posse ser sua dama-de-honra?

- Claro.

- Eu SÓ NÃO POSSO usar roupa cor-de-rosa. Essa cor me deixa com uma aparência MEDONHA!

- Tudo bem, tudo bem, pode ser a cor que você quiser. – Eu não estava interessada em mais nada, a não ser em manter a conversa centrada diretamente em Gus – Ah, Dennis, ele é exatamente o que eu quero. Como pessoa, ele é a minha cara. Se eu tivesse procurado Deus e descrevesse o homem perfeito para mim, e Deus estivesse de bom humor, ele teria me enviado o Gus.

- Sério? Ele é tão bom assim?

- É. Dennis, fico ate meio envergonhada de pensar assim, mas ele é bom demais para ter aparecido na minha vida por acaso, A taróloga devia estar falando sério. Sinto que isso estava escrito nas estrelas.

- Mas então é fabuloso – disse Dennis, todo excitado.

- E estou me sentindo diferente a respeito de toda a minha vida, o meu passado – disse, ficando um pouco filosófica. – Todas aquelas pessoas horríveis com as quais saí no passado aconteceram em minha vida por uma razão. Você lembra como eu sempre parecia me desviar, e era levada de um relacionamento horrível para outro?

- Sei... bem demais, até!

- Sim... desculpe-me, mas nada daquilo vai tornar a acontecer. Pense só, Dennis, o tempo todo eu vinha chegando cada vez mais perto de Gus. Durante todos aqueles anos perdidos em que eu achava que estava vagando pelo deserto, na verdade, seguia o caminho certo.

- Você acha que vai acontecer a mesma coisa comigo? – perguntou ele, esperançoso.

- Tenho certeza de que sim.

- Fui levada em segurança através do Campo Minado dos Homens Errados – continuei, me entusiasmando alem da conta -, e escapei com ferimentos leves, até alcançar a clareira do outro lado e, ao chegar lá, Gus estava esperando por mim.

Continuei em seguida:

- Ah, Dennis, se ao menos eu soubesse que haveria um fim para a minha solidão...

- Se nós dois soubéssemos – desse Dennis, sem dúvida se lembrando de todas as noites que perdera ouvindo minhas historias infindáveis.

- Eu devia ter tido mais fé.

- Você devia ter me escutado.

- Nós não temos idéia do que nós espera lá fora, nem pra onde a vida está nos levando – disse eu, com os olhos enevoados. – Costumava pensar que eu era dona do meu próprio destino e conduzia o meu próprio navio. Na verdade, Dennis, eu até suspeitava de que era exatamente por isso que minha vida estava tão bagunçada: é que tinha a minha mãozinha nela...

- Certo, agora chega disso – disse Dennis, com impaciência. – Jogue a filosofia para o lado, entendo o que você quer dizer, mas me conte a respeito dele. Quero saber as medidas exatas.

- Ah, Dennis, ele é o máximo, realmente ótimo, tudo nele parece estar certo. Acho que vai ser muito legal...

- Detalhes!- pediu ele, ainda mais impaciente. – Ele tem músculos?

- Bem, mais ou menos...

- Isso significa que não.

- Dennis, ele é bem musculoso sim.

- É alto?

- Não.

- O quer dizer com “não”?

- Quero dizer que ele não é alto.

- Então ele é baixo.

- O.k., Dennis, ele é baixo. Mas eu também sou – completei.

- Lucy, você sempre teve um gosto horrível para homens.

- Olha só quem fala – disse eu. – Estas palavras estão vindo do homem que gosta de Michael Flatley.*

Dennis abaixou a cabeça com vergonha.

- O homem que assistiu ao vídeo do show Riverdance mais de cem vezes – provoquei.

Uma noite, quando estava bêbado, Dennis me confessara isso.

Arrependeu-se amargamente de ter contado.

- O mundo é bem grande – disse ele, com humildade. – Tem espaço para todo tipo de gosto.

- Exatamente – disse eu. – Então pode ser que Gus seja baixo...

- Ele é baixo.

- ...Mas é muito bonito, tem um corpo lindo e...

- Ele malha? – perguntou Dennis, com esperança.

- Eu diria que não. – Fiquei triste por desapontar Dennis, mas não podia mentir para ele. De qualquer forma, ele ia acabar descobrindo quando conhecer Gus.

- Então isso quer dizer que ele bebe pra caramba?

- Quer dizer que ele é uma criatura festiva.

- Entendi. Ele bebe pra caramba.

- Ai, Dennis, deixe de ser tão negativo! – Olhei rápido para o alto, desesperada. – Espere só até conhecê-lo, você vai adorá-lo. Sério. Ele é maravilhoso, muito engraçado, charmoso, inteligente, legal e, juro por Deus, muito sexy. Pode ser que ele não seja o seu tipo, mas acho que ele é perfeito!

- Então vamos lá... o que há de errado?

- Como assim?

- Bem, sempre tem alguma coisa de errado, não tem?

- Pare com isso! – reagi. – Sei que não tenho tido muita sorte com homens, mas...

- Eu não disse que há sempre algo de errado com os seus homens – suspirou ele. – O problema é com todos os homens. Ninguém sabe disso melhor do que eu.

- Dennis – disse eu. – Não creio que haja algo de errado com ele.

- Pois confie em mim – afirmou ele -, sempre tem algo de errado. Ele é rico?

- Não.

- Ele é, basicamente, pobre?

- Bem, ele está no auxílio-desemprego...

- Ah, Lucy, outra vez? Por que você sempre arruma esses mendigos que usam aquelas roupas horríveis?

- Porque não sou superficial como você. Você se preocupa demais com as roupas dos rapazes, o jeito que eles cortam o cabelo e o relógio que usam.

- Talvez eu me preocupe demais mesmo... – reconheceu, parecendo ofendido. – Mas você se preocupa de menos!

- Enfim... – disse eu. – Eu não arrumo ninguém, simplesmente aconteceu.

- Aposto que se você morasse na Califórnia não ia dizer isso com essa calma toda... mas deixa pra lá... Então, como é essa história de desemprego?

- Não é o que você está pensando – expliquei bem depressa. – Não é que ele seja preguiçoso ou vadio, ou qualquer uma das coisas pelas quais a minha mãe ia chamá-lo. É que ele é musico, e o trabalho anda difícil.

- Um músico... outra vez?

- Sim, só que ele é diferente, e tenho o maior respeito por alguém disposto a enfrentar dificuldades financeiras por amor à arte.

- Sei...

- E abriria mão com a maior alegria da estiva que encaro de nove às cinco todo dia, só que não possuo talento pra nada.

- E você não se importa de ficar com alguém que está sempre sem dinheiro? Não me venha com aquela historia de que o amor vence tudo, e que há outras coisas mais importantes do que dinheiro. Vamos ser práticos aqui!

- Mas eu não me importo mesmo. Só não sei se vou ter dinheiro para manter nós dois no padrão ao qual Gus parece estar acostumado. – E me senti estranha ao admitir isso.

- E que padrão é esse? Ele cheira cocaína?

- Não. – Então pensei a respeito. – Bem, talvez ele cheire, pra falar a verdade.

- Então você vai ter que arranjar um emprego noturno; na verdade vai ter que correr muito atrás de grana, se é a esse padrão que ele está acostumado.

- Ai, cale a boca, deixe eu contar; hoje, um pouco mais cedo, Gus e eu fomos comer pizza na Torre de Pizza, e ...

- Mas hoje é domingo! Por que vocês não foram ao Curryfour?

- Porque Daniel e Karen tinham ido lá, pareciam estar muito apaixonados e eu não queria atrapalhá-los.

- Daniel e KAREN ?! – guinchou Dennis, empalidecendo. – Karen e DANIEL?

- Hã... sim. – Esqueci que Dennis tinha uma queda por Daniel.

- A Karen que mora aqui? Karen McHaggis, ou sei lá qual é o nome escocês ou caledônio que ela tem? – Dennis não gostava de Karen, agora ia gostar menos ainda.

- Sim, essa Karen .

- Com Daniel, o meu Daniel?

-Se é sobre o Daniel Watson que você está falando, então é o seu Daniel.

- Ai, meu Deus, isso agora me arrasou! – Ele parecia muito abalado. – Preciso de um drinque!

- Tem uma garrafa de alguma coisa bem ali.

- Onde?

- Ali, na estante.

- Ai, vocês são tão pobres! Guardando a bebida na estante de livros.

- Ué, o que podemos fazer? Nós não temos livros, precisamos guardar alguma coisa ali...

Ele procurou pelas prateleiras e disse:

- Não consigo achar...

- Tinha certeza de que estava aí mais cedo.

- Pois não está aqui agora.

- Talvez Karen e Daniel tenham bebido. Desculpe, desculpe – disse, depressa, quando o vi franzir a testa de novo.

- Pode acreditar, esse namoro não vai durar muito. – Sua voz estremeceu ligeiramente. – Ele é gay, sabia?

- Mas você fala isso de todo homem, no universo inteiro.

- Daniel é, mesmo. Mais cedo ou mais tarde vai enxergar a luz.e quando isso acontecer, eu estarei lá.

- Certo, certo, qualquer coisa que você diga está certo. – Eu não queria deixar Dennis chateado, mas... fala sério! Todo gay que eu conhecia insistia em dizer que todo homem heterossexual que eles conheciam era, na realidade, um gay enrustido.

 

Dennis tornou a se sentar, colocou a mãos no peito e ficou inspirando profundamente, durante horas, enquanto eu me retorcia toda de impaciência. Finalmente, ele disse:

- Tudo bem agora. Já me acalmei!

- O.k. – E voltei à história: - Então, quando chegamos à Torre de Pizza, Gus estava sem dinheiro. Bem, certamente que estava, porque ele não tinha um tostão ontem, nem durante o dia, mais cedo, e não creio que a alquimia seja um dos seus dons pessoais...

- Então você pagou a conta de vocês.

- Paguei, e para mim estava tudo bem, porque sou muito sensata...

- Alem do mais, o garçom de lá tem uma bunda linda... – Dennis era gay vinte e quatro horas por dia, e nunca deixava a peteca cair.

- Tem mesmo. Mas, enfim, Gus bebeu dez garrafas de Peroni e...

- Dez garrafas de Peroni?

- Relaxe – disse eu. – Não tenho problemas com isso, em principio, especialmente porque Peroni é uma cerveja fraca, embora a gente tenha que pagar por ela.

- Você não está achando que ele está tentando se aproveitar de você, está? – perguntou Dennis, fixando o olhar em mim.

Aquela idéia passara pela minha cabeça naquele mesmo dia, mais cedo, quando estávamos no pub, e acabei ficando chateada, porque vivia com medo de que alguém me achasse otária ou me tomasse pro idiota.

Só que eu simplesmente odiava discussões por causa de dinheiro. Aquilo era uma coisa que me fazia lembrar dos tempos de criança. Lembranças de minha mãe gritando com meu pai, com o rosto vermelho e distorcido. Eu jamais me comportaria daquela maneira.

- Não, Dennis, não achei isso, porque ele me disse coisas realmente adoráveis no restaurante.

- Mas essas coisas valeram as dez garrafas de Peroni?

- Com certeza!

- Vamos ouvi-las.

- Ele pegou a minha mão – disse eu, lentamente, para criar mais efeito – e falou, muito sério: “Estou gostando muito disso, Lucy.”

- E entao, ele disse: “Odeio estar sem dinheiro, Lucy...”, e escute só, ele completou: “...especialmente quando encontro alguém como você!”. E então, o que acha disso, hein, Dennis?

- O que ele quis dizer com isso?

- Quis dizer que eu era linda, que merecia ser levada a lugares maravilhosos e ganhar coisas maravilhosas.

- Só que não ia conseguir nada disso vindo dele! – Dennis sabia ser bem direto.

- Cale a boca! – disse eu. – Ele falou que adoraria me levar para tomar vinho, jantar fora, me comprar flores, chocolates, casacos de pele, cozinhas planejadas, facas elétricas e um daqueles aspiradores de pó portáteis para limpar sofá, alem de tudo o que o meu coração desejasse.

- E o que seu coração deseja? – perguntou Dennis.

- Ele deseja Gus.

- Então acho que não é do seu coração que estamos falando.

- Você é tão vulgar. Não consegue pensar em outra coisa que não seja sexo?

- Não. E então, o que foi que ele disse?

- Disse que aqueles aspiradores de pó portáteis são ótimos para limpar os bolsos dos casacos.

- Para mim, ele mais parece o açucareiro de um serviço de jantar Fornasetti – debochou Dennis. – Facas elétricas e casacos de pele, francamente!

Mas ele não sabia em a metade da historia, fiquei em duvida de contar a ele. Não queria comentários negativos, queria freses alegres, para combinar com o meu estado de espírito.

Porque a partir daquele ponto a conversa com Gus ficara um pouco confusa.

- Você gosta de flores? – ele me perguntara.

E eu respondera:

- Sim, Gus, as flores são lindas, mas minha vida não fica incompleta sem elas.

Então ele perguntou:

- E chocolate?

- Sim, gosto de chocolate, gosto muito, mas nunca fico sem chocolate por muito tempo.

- Ah, não fica? – Preocupação surgiu em seu rosto, e de repente ele pareceu profundamente deprimido.

- Bem, o que eu poderia esperar? – acrescentou ele, pesaroso. – Uma mulher linda como você! Como é que fui idiota de achar que poderia ser o único homem em sua vida?

- Ah, o orgulho sempre vem antes da ruína! * - exclamou Gus, de forma dramática, enquanto eu olhava para ele, me perguntando o que estava acontecendo agora.

- Fui alertado, Lucy, não posso negar. Muitas vezes por pessoas bem-intencionadas. Cuidado com este orgulho, Gus, elas diziam. Mas eu as ouvi? Não, não ouvi! Entrei marchando, de peito aberto, e achei que uma deusa como você teria tempo para tipos como eu. Enquanto isso, você devia estar transformando em escravos uma fila de pretendentes que se consumiam à espera de um simples olhar gentil de sua parte.

- Gus, por favor, pare! Do que você está falando? Não, está tudo bem com ele – disse eu ao garçom que viera correndo ao ouvir a explosão emocionada de Gus. – Sério mesmo, está tudo bem, obrigada.

- Já que você está ai, podia me trazer mais uma destas – pediu Gus, balançando uma garrafa de Peroni na direção do garçom (devia ser a nona). – Estou falando de você, é claro, senhorita Lucy Deusa Sullivan... É senhorita mesmo, imagino...?

- Sim.

- ...E também dos pretendentes que lhe oferecem chocolates.

- Gus, não tenho pretendentes que me trazem chocolates.

- Mas você não falou...?

- Eu disse que nunca fico sem chocolate, e não fico mesmo. Mas sou eu mesma que compro.

- Oh... – disse ele, devagar - ... você mesma compra. Entendo...

- Ótimo! – Ri. – Que bom que você entende.

- Uma mulher independente, Lucy, isso é o que você é. Não quer ficar devendo favores a eles, e está certa por agir assim. “Sê verdadeiro contigo mesmo”,* como o meu amigo Billy Shakespeare vivia me dizendo.

- Hã... para quem eu não posso ficar devendo favores?

- Para o pretendentes.

- Gus, eu não tenho nenhum pretendente.

- Não tem pretendentes?

- Não. Pelo menos não no momento. – Não queria que ele achasse que eu era um fracasso total.

- Mas, por que não!!?

- Não sei.

- Mas você é linda!

- Obrigada.

- Nunca me disseram que os ingleses tinham visão curta, mas só pode ser isso. É a única explicação que encontro.

- Obrigada.

- Pare de dizer “obrigada”. Estou sendo sincero.

Houve uma agradável pausa enquanto nós dois ficamos sentados ali, sorrindo um para o outro, os olhos de Gus ligeiramente vidrados, provavelmente pelo excesso de Peronis.

Não havia necessidade de contar nada daquilo a Dennis. Decidi pular essa parte e contar a coisa boa que veio a seguir, quando Gus disse:

- Hã... Lucy, posso lhe perguntar uma coisa?

- Claro. – respondi.

- Não pude deixar de ouvir, ainda há pouco, que você está atualmente sem pretendentes...

- Sim.

- Eu estaria correto achar que há um lugar vago, então?

- Sim, acho que essa é uma forma de descrever a situação.

- Sei que vai parecer extremamente abusado de minha parte, mas será que existe alguma chance, por pequena que seja, de que você possa considerar a minha pessoa para ocupar essa vaga?

Olhei para a toalha da mesa, em xadrez de vermelho e branco, envergonhada demais para fitar os olhos dele, e murmurei:

- Sim.

Dennis ficou desapontada comigo.

- Ah, Lucy... – suspirou ele. – Você não prestou atenção a nada do que lhe ensinei. Você não deve se submeter com tanta facilidade. Faça-os suar para conseguir o que querem.

- Não, Dennis – expliquei, com firmeza. – Você precisa entender que eu estava com medo de fazer esses joguinhos com Gus.ele já era capaz de entender errado até mesmo quando eu estava sendo totalmente direta. Piorar as coisas com manipulações e truques femininos, dizendo “não” quando queria dizer “talvez” e dizendo “talvez” quando queria dizer “sim”, ia acabar estragando tudo.

- Está certo, já que você insiste. E então, o que aconteceu depois?

- Ele disse: “Eu também não estou ligado a ninguém no momento, romanticamente. Você vai querer esta resto de pizza?”

- Que lábia a desse cara – murmurou Dennis, mostrando-se pouco impressionado.

- Fiquei emocionada – disse eu.

- Não é um pouco de exagero ficar emocionada? – perguntou Dennis. – Afinal, a pizza já estava paga mesmo, então era melhor que alguém comesse o resto. Fala serio, Lucy, ficar emocionada por causa disso?

Deixei passar.

- E como ele foi na hora do roço-roça? – perguntou Dennis.

- Na verdade, não sei.

- Não o deixou chegar em você?

- Ele não tentou.

- Mas vocês ficaram juntos por quase vinte e quatro horas! Não está preocupada?

- Não. – Realmente, não estava. É claro que o fato de ele se segurar tato era incomum. Mas não era absurdo.

- Provavelmente ele é gay – afirmou Dennis.

- Ele não é gay.

- Mas você não fica nem um pouco preocupada por ele não ter agarrado você? – perguntou Dennis, parecendo confuso.

- É exatamente por isso que não estou preocupada – argumentei. – Gosto de homens que chegam devagar, homens que queiram ma conhecer melhor, antes de dormir comigo.

Aquilo era verdade, não era só da boca pra fora, para convencer Dennis. Eu ficava horrorizada com homens que eram muito diretos (por assim dizer) a respeito de suas necessidades de sexo, homens adultos com imensos apetites sexuais. Homens com olhos do tipo “venha para a cama”, homens com coxas grossas, peito cabeludo e imensas mandíbulas barbadas, homens que tinham seis ereções por hora, homens que cheiravam a suor, sal e sexo. Homens que entravam no quarto parecendo dizer: “aqui está a minha ereção, o resto do meu corpo vai chegar daqui a cinco minutos.”

Homens pelvicêntricos provocavam um medo tremendo em mim.

Provavelmente porque eu achava que eles poderiam ser muito exigentes e críticos a respeito do meu desempenho. Homens desse tipo podiam pegar e escolher qualquer mulher que desejassem, de forma que deviam estar acostumados com o melhor. Se eu escalasse a cama deles sem busto, sem pernas e sem bronzeado, eles ficariam extremamente desapontados.

“O que significa isso?”, perguntariam eles ao me ver tirando a roupa. “Você não é como aquela garota com quem transei hoje à tarde. Você não é uma mulher. Onde estão os peitos?”

Eu tinha esperança de que se um homem conseguisse me conhecer melhor antes de irmos para a cama haveria mais chance de ele ser legal e não rir de mim. De estar mais disposto a fazer vista grossa diante das minhas obvias desvantagens físicas, devido ao fato de eu ter uma personalidade marcante.

Isso não quer dizer que eu não tenha, uma ou duas vezes, dormido com homens que acabara de conhecer. No passado, houve momentos em que eu parecia não ter outra escolha. Momentos em que gostava de um homem e tinha medo de que, se rejeitasse suas investidas sexuais, ele saísse correndo, sem querer saber de mais nada comigo.

- Você e a sua culpa católica – disse Dennis, balançando a cabeça com tristeza. Eu tinha que impedi-lo, antes que ele começasse a atacar a Igreja Católica, as freiras, os Irmãos Cristãos e o modo como eles haviam danificado o psique de todos os menininhos e menininhas com quem tiveram contato, tirando-lhes a capacidade de sentir prazer sem culpa. Aquilo era capaz de render a noite toda.

- Não, Dennis, não é culpa católica que me impede de ser promiscua.

Eu desconfiava de que se possuísse um busto avantajado, com peitões e coxas compridas, douradas, esbeltas e sem celulite, conseguiria superar a minha culpa católica. Provavelmente ia estar muito mais propensa a pular na cama de estranhos com toda a confiança. Talvez sexo se transforme em uma atividade da qual eu poderia simplesmente usufruir, em vez de ser basicamente um exercício constante para tentar diminuir os danos, comportando-se como se eu estivesse me divertindo ao mesmo tempo em que escondia uma bunda que era muito grande, os peitos que eram muito pequenos, coxas que eram muito... etc. etc.

- Bem, se você tem certeza disso... – Dennis ainda parecia meio em dúvida.

- Sim, Dennsi, tenho certeza.

- O.k.

- Então, afinal, para terminar o pão, para resumir tudo, o que acha da historia toda? – perguntei, com ar de alegria. – Ele não parece adorável?

- Bem, não sei se era isso que eu ia querer para mim...

Fiz mímica, com os lábios, da palavra “Michael Flatley”, sem pronunciá-la

- ... mas... – disse ele, apressado. – Ele me parece bonitinho. E, já que você insiste em escolher homens que não tem dinheiro algum, espero que saiba o que está fazendo. Eu não recomendaria isso, mas parece que fico falando com as paredes o tempo todo.

- E não é incrível o que a taróloga disse? – insisti, trazendo-o de volta para o caminha dos comentários positivos.

- Tenho que admitir que o momento não poderia se mais adequado – concordou. – Isso pode realmente ser um sinal. Normalmente eu aconselharia cautela, mas realmente me parece que foi escrito nas estralas.

Isso era exatamente o que eu queria ouvir.

- Tirando o problema do dinheiro, ele é legal com você? – perguntou Dennis.

- Muito legal.

- O.k. Vou ter que vê-lo antes de dar o endosso final. Por ora porém, vocês têm a minha bênção provisória.

- Obrigada.

- Muito bem, já passa de meia-noite e meia, vou dar o fora.

- Você vai sair pra tomar poppers,* usar camisa xadrez e dançar músicas dos Pet Shop Boys?

- Por Deus, Lucy. – Ele fez cara de nojo. – Isso é um estereotipo ultrajante!

- Mas você vai?

- Vou.

- Bom, divirta-se então. Eu vou para a cama.

E fui dormir feliz.

 

É claro que na manhã seguinte a história foi totalmente diferente, quando acordei e me lembrei de que deveria sair da cama para ir trabalhar.

Senti vontade se sumir, por ser segunda-feira. Afinal, era difícil mudar os hábitos de uma vida inteira. Conhecer um novo rapaz, mesmo alguém tão adorável quanto Gus, não ia me transformar da noite para o dia em alguém que salta da cama feliz assim que o despertador tocava, cantando “Que bom que eu não morri dormindo!”.

Tateei com as pontas dos dedos a mesinha-de-cabeceira, até encontrar o botão de “soneca” do despertador, e consegui mais cinco minutos para um cochilo cheio de culpa. Teria feito qualquer coisa para não levantar da cama. Qualquer coisa.

Alguém estava no banheiro, o que era ótimo. Não havia motivo para eu sair da cama até o banheiro ficar livre. Um curto adiamento.

Dava tempo para eu continuar na cama, meio dormindo, contemplando preguiçosamente as varias opções de suicídio que havia à minha mente, porque qualquer uma delas, naturalmente, me parecia muito mais convidativa do que pegar o metrô para ir trabalhar.

Eu já namorara idéias suicidas diversas vezes – a maioria delas em manhãs de dias úteis, para falar a verdade -, e muito tempo atrás descobrira como os apartamentos modernos são mal-equipados para uma pessoa se matar. Nem um frasco de formicida à mão, nem um laço corrediço sequer, nem um implemento agrícola por perto.

Mas eu não devia me mostrar tão negativa. Todos dizem que quando a pessoa quer, sempre da um jeito. Por outro lado, se eu não fosse tão negativa, não ia estar querendo e matar e a historia toda seria irrelevante de qualquer modo.

Pesquisei a lista de possibilidades disponíveis.

Eu podia tomar uma overdose de paracetamol. Só que eu tinha quase certeza de que aquilo não ia adiantar nada, pelo menos para mim, porque umas duas vezes, com uma ressaca muito forte, eu tomara uns doze comprimidos e não me senti nem com sono, muito menos morrendo.

Q idéia de ser sufocada com um travesseiro não me parecia ser tão horrível. Era até mesmo um jeito legal, bem pacífico de ir embora, com a vantagem adicional de nem precisar sair da cama para isso. Só que era um pouco como fazer nada sincronizado... totalmente inútil de se tentar sozinho.

Neste momento ouvi a pessoa sair do banheiro e fiquei rígida de horror. Só que, rápida como um raio, outra pessoa entrou. Respirei aliviada – não ia precisar levantar da cama por mais algum tempo. Apesar de que meus minutos estavam se esgotando, e eu sabia disso.

Durante um pouco mais eu podia continuar na horizontal para ficar analisando o meu suicídio, embora soubesse que, no fundo, eu não queria me matar, nem um pouco. Tirar a própria vida é antinatural.

Além de dar muito trabalho.

Era irônico, na verdade, a pessoa desejar morrer por não querer mais se dar ao trabalho de viver. Então, nesse momento, ela era obrigada a se encher de energia para arrastar móveis, subir em cadeiras, içar cordas, dar nós complicados, amarrar algumas coisas em outras e chutar banquinhos debaixo dela. Ou então a pessoa tinha de se ver às voltas com banhos quentes, lâminas de barbear, ou puxar extensões, ligar aparelhos elétricos e conseguir pesticidas. Suicídio era uma atividade complicada. Realmente dava muito trabalho e exigia até, às vezes, visitas a lojas de equipamentos.

E se você conseguia se arrastar da cama para ir até a rua, para procurar uma loja de jardinagem ou de produtos químicos, o pior já havia passado e era melhor ir logo para o trabalho.

Não, eu não queria me matar. Só havia uma diferença muito grande entre não desejar me matar e querer me levantar, de verdade. Eu podia ter vencido a batalha, mas não havia sinais no horizonte de que ia vencer a guerra.

Karen entrou no quarto, de repente. Parecia chique, elegante, e sua maquiagem estava perfeita. O efeito era um pouco assustador àquela hora da manhã. Karen parecia sempre toda arrumada, e seu cabelo jamais ficava frisado, nem mesmo quando chovia. Algumas pessoas eram assim. Eu não era uma delas.

- Lucy, Lucy, Lucy, acorda! – ordenou. – Quero conversar sobre Daniel. Ele alguma vez já esteve apaixonado, quer dizer, apaixonado de verdade?

- Hã...

- Vamos lá, conte-me logo, você o conhece há anos!

- Bem...

- Ele nunca amou de verdade, já?

- Mas...

- Você não acha que já deu tempo de ele se apaixonar? – quis saber ela

- Acho – respondi. Era mais fácil concordar.

- Eu também acho.

Karen desmoronou em cima da minha cama, dizendo:

- Ai, estou supercansada.

Ficamos ali em silencio por algum tempo. Dava para ouvir Charlotte no banheiro, cantando Somewhere over the Rainbow.

- Aquele cara, o tal de Simon, deve ser bem-dotado – comentou Karen.

Concordei.

- Ai, Lucy... – e suspirou, de forma dramática, - Eu não quero ir para o trabalho.

- Nem eu.

Então começamos a brincar de Explosão de Gás.

- Não seria ótimo se houvesse uma explosão de gás? Perguntou Karen.

- É mesmo! Não uma muito grande, só...

- Mas tinha que ser grande o bastante para nos obrigar a ficar em casa...

- Mas não grande o bastante para deixar alguém ferido...

- Certo, mas o prédio podia desabar, e íamos ter de ficar presas aqui dentro durante dias, só com a televisão e as revistas, e íamos ter que comer tudo o que temos de estoque no freezer e...

Embora o estoque do freezer fosse uma linda fantasia. Jamais guardávamos nada lá dentro, a não ser um pacote de ervilhas que já estava congelado quando Karen fora morar no apartamento, quatro anos antes, às vezes comprávamos um pode gigantesco de sorvete, com a intenção de comer moderadamente, só de vez em quando, para fazê-lo durar alguns meses, só que normalmente ele não passava da primeira noite.

Às vezes, para variar um pouco, brincávamos de Terremoto, em vez de Explosão de Gás. Imaginávamos um terremoto cujo epicentro fosse nosso apartamento. Tínhamos sempre cuidado para não desejar morte ou destruição para qualquer outra pessoa que não fosse a gente. Na verdade, toda a destruição que desejávamos deveria ocorrer do lado de fora do apartamento. Revistas, televisões, comas, sofás e comida continuariam miraculosamente intactos.

Às vezes costumávamos desejar uma ou duas pernas quebradas, seduzidas pela idéia de varias semanas direto deitadas na cama, sem interrupção. Só que no inverno anterior Charlotte quebrara o dedinho do pé em uma aula de dança flamenca (pelo menos essa era a historia oficial. A verdade é que a fratura ocorrera no instante em que ela tentara pular por cima da mesinha de centro, sob a influência considerável do álcool) e contou que a agonia que sentiu não dava nem para descrever. A partir daí, deixamos de desejar braços ou pernas quebrados, mas às vezes sonhávamos com um apêndice supurado.

- Tudo bem – disse Karen, com determinação. – Vou para o trabalho.

- Aqueles cretinos! – acrescentou.

Ela saiu e Charlotte entrou.

- Lucy, eu lhe trouxe uma xícara de café.

- Ah, hã... obrigada – disse, meio irritada, forçando-me a ficar sentada na cama.

Com roupa de trabalhar e sem maquiagem, Charlotte parecia ter doze anos. Só o busto enorme entregava a idade verdadeira.

- Ande logo – disse ela. – Vamos andando até o metrô juntas. Preciso conversar com você.

- Sobre o quê? – perguntei, desconfiada, imaginando se ela ia começar a falar sobre os prós e contras da pílula do dia seguinte.

- Sabe o que é ... – disse ela, parecendo infeliz. – É que dormi com o Simon ontem. Você acha que é muito terrível dormir com duas pessoas diferentes no mesmo fim de semana?

- Nãããão... – disse eu, tranqüilizando-a.

- Eu sou horrível, sei que sou, mas não quis fazer isso, Lucy – disse ela ansiosa. – Bem, é claro que eu quis fazer, na hora, mas não havia planejado dormir com duas pessoas diferentes em dois dias seguidos. Como é que eu podia saber na sexta à noite que ia conhecer o Simon no sábado à noite?

- Exato – concordei, com vontade.

- Isso é terrível, Lucy, vivo quebrando minhas próprias regras – disse Charlotte, com a intenção de se castigar. – Sempre disse que nunca, jamais eu ia dormir com alguém na primeira noite. Não que eu tenha dormido com o Simon na primeira noite, porque esperei até a tarde do dia seguinte, e já havia anoitecido, na verdade. Foi depois das seis.

- Então, tudo bem – disse eu.

- E foi ótimo – acrescentou ela.

- Que bom – disse eu, para encorajá-la.

- Mas, e quanto àquele outro cara, o de sexta à noite. Nossa, nem me lembro mais do nome dele! Isso não é horrível, Lucy? Imagine só! Deixei alguém ver minha bunda e não consigo nem me lembrar do seu nome. Derek... acho que era Derek – disse, pensativa, com a testa franzida, tentando lembrar. – Você o viu... Ele tinha cara de Derek?

- Charlotte, por favor, pare de ser tão dura consigo mesma. Se não se lembra do nome do cara, tudo bem. Isso é assim tão importante?

- Não, claro que não é importante – disse ela agitada. - Claro que não! Acho que o nome dele é Geoff. Ou Alex. Ai, meu Deus! Vamos logo, você já vai se levantar?

- Vou.

- Quer que eu passe alguma roupa para você?

- Quero, por favor.

- Qual?

- Qualquer uma.

Charlotte saiu para pegar o ferro e me arrastei até conseguir sentar na beira da cama. Charlotte me chamou na cozinha, contando que lera, em algum lugar, uma reportagem sobre uma operação que podíamos fazer no Japão para tem o hímen costurado no lugar, conseguindo, assim, a virgindade de volta, e me perguntou se eu achava que ela deveria fazer isso.

Pobre Charlotte. Pobre de todas nós.

Foi muito legal, e nós, mulheres, agradecemos muito por ter recebido o presente da liberação sexual tão maravilhosamente embrulhado (embora nos tenha sido ofertado contra a vontade).

Mas quem será que era a idosa e insensível tia-avó que nos deu o conjunto de paninhos para combinar com o presente, todos feitos a mão em crochê e carregados de culpa?

Aposto que essa tia não ia receber cartõezinhos de agradecimento.

Era como receber de presente um vestido vermelho lindo, curtinho, agarrado, sexy, em tecido brilhante, com a condição de só podermos usá-lo com tamancos irlandeses marrons de salto baixo e sem maquiagem.

Era o mesmo que dar com uma das mãos e tirar com a outra.

 

O trabalho até que não foi tão terrível. Estava me sentindo muito melhor do que quando saíra dali na sexta-feira, com certeza.

Megan e Meredia estavam com remorso, e um ar muito doce. Não estavam conversando uma com a outra, mas isso não era novidade. Só de vez em quando se falavam, quando Megan perguntava a Meredia: “Quer um biscoito, Eleanor?” ou “Poderia me emprestar o grampeador, Fiona?”, e Meredia falava entre dentes: “Meu nome é Meredia!”, vulnerável e constrangida. Conseguia ver as coisas por um ângulo diferente. Cheguei à conclusão de que todo mundo devia estar achando que Megan e Meredia é que eram as bobalhonas, e não eu. Afinal, foram elas que espalharam aquela historia idiota.

E, é claro, acontecera uma grande mudança na minha parte, desde sexta-feira. Eu conhecera o Gus. Todas as vezes em que eu pensava nele, sentia como se estivesse embrulhada por uma armadura protetora, e que ninguém mais poderia ma achar uma perdedora triste e patética, bem... Eu não era, certo?

Era até um pouco irônico que na sexta-feira todos estivessem achando que eu ia me casar, quando, na verdade, nem tinha namorado e, agora, na segunda, depois que eu conhecera alguém muito especial, ninguém sequer ousasse puxar assunto de casamento na minha presença.

Estava louca para contar a Meredia e a Megan a respeito de Gus, mas ainda era muito cedo para perdoá-las, de modo que eu tenha de manter a boca fechada até passar o período adequado de chateação com elas.

Outro motivo de não estar mais me sentindo o centro das atenções no trabalho é que eu realmente já não tinha mais importância. Virara notícia de ontem.

A historia quente do dia era sobre Hetty e a paixão que Ivor Veneno tinha por ela. Aparentemente ele saíra na sexta à noite, enchera a cara e contara para toda a empresa, do diretor-gerente aos porteiros, passando por todos os funcionários, que estava apaixonado por Hetty e ficara arrasado por ela ter deixado o marido, embora, objetivamente falando, ele não estivesse arrasado por ela largar o marido, e sim por ela tê-lo largado para ficar com ele.

Elas estavam me tratando muito bem. É claro que, de vez em quando, eu ainda recebia um olhar interessado de algum dos outros funcionários, mas já não me sentia tão mal,

Quanto a Hetty, ninguém sabia dela.

- Hetty vem trabalhar hoje ou continua doente? – perguntei a Ivor, com toda a inocência. Hetty não andava muito bem de saúde. Pelo menos essa era a desculpa que nós inventamos.

- Não sei – respondeu ele, com os olhos cheios d’água. – Vocês, porém, já que parecem tão preocupadas com Hetty, podem assumir o serviço dela, até o seu retorno – sussurrou ele, para mim.

Que cretino!

- Claro, Sr. Simmonds!

Vá sonhando, meu chapa.

- O que está acontecendo com Hetty? – perguntei a Meredia e a Megan assim que Ivor deu as costas, foi para a sua sala e fechou a porta, na certa para enfiar a cabeça embaixo da mesa e soluçar como uma criança. – Alguma de vocês teve notícias dela?

Sim, sim, eu tive – disse Meredia, doida pro uma oportunidade para se reaproximar de mim. – Liguei para ela ontem...

- Nossa, parece até um abutre! – exclamei.

- Olhe aqui, vai querer saber ou não? – perguntou ela, com cara azeda.

Eu queria saber.

- ... E ela não me pareceu nem um pouco feliz.

- Nem um pouco feliz – repetiu Meredia, de forma pesada e sombria, eletrizada com o drama de tudo aquilo.

O telefone tocou, interrompendo-a. ela atendeu, ouviu com impaciência durante alguns instantes e então falou, bem alto.

- Sim, compreendo o seu problema, mas infelizmente estamos com o sistema fora do ar, e não posso conferir os dados da sua conta. Deixe-me anotar o seu telefone para ligar de volta mais tarde. Hum-hum... – Balançou a cabeça, sem escrever coisa alguma no papel. – Sim, anotei tudo, direitinho, e vou lhe dar um retorno assim que puder. – E bateu com o fone no gancho. – Nossa! Malditos clientes!

- O sistema caiu? – perguntei.

- Como é que vou saber? – reagiu Meredia, parecendo surpresa. - Ainda nem liguei o computador! Mas acho que não caiu, não. Agora, onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, Hetty...

Nós fazíamos muito esse tipo de coisa no escritório. Às vezes dizíamos que o sistema havia caído, às vezes atendíamos o telefone e dizíamos que éramos da turma de limpeza, às vezes fingíamos que a ligação estava muito ruim e não dava para ouvir o cliente, às vezes desligávamos no meio de uma frase para fingir que a ligação tinha caído, às vezes fingíamos que não sabíamos falar inglês muito bem (“Eoo não saber falar zua lingua”). Alguns clientes ficavam muito aborrecidos com isto e exigiam que chamássemos a nossa supervisora. Quando isso acontecia, deixávamos o cliente pendurado no telefone por alguns minutos e voltávamos novamente para atendê-lo, cheias de vaselina e com a voz agradável, garantindo ao cliente furioso que a funcionária que procedera assim de forma tão ofensiva já estava limpando a mesa, pois acabara de ser despedida.

Meredia me contou os detalhes o quanto Hetty estava se sentindo infeliz, e como andava magra e abatida.

- Mas ela sempre pareceu magra e abatida – protestei.

- Não – argumentou ela. Aborrecida. – Dá pra notar que ela está sofrendo muito, percebe-se que está envolvida em um tipo muito traumático de um tipo muito traumático de... Hã, trauma.

- Não sei por que ela está se sentindo tão infeliz – comentou Megan. – Está com dois homens, em vez de um só, os dois dispostos a agarrá-la. Duas cabeças... e não só cabeças... são melhores do que uma, isso é o que sempre digo.

- Ai, meu Deus, francamente! – reagiu Meredia, quase cuspindo de nojo. – É a sua cara reduzir tudo a ... a instintos animais inferiores.

- Você deve saber bem dessas coisas, Gretel – disse Megan, de modo vago, com um sorrisinho secreto brincando em seus lábios cheios e sedutores.

E murmurou mais alguma coisa antes de sair da sala. Acho que foi a expressão “a três”.

- Meu nome é Meredia! – reagiu ela, assim que Megan saiu.

- Sua vaca idiota – resmungou. – E agora, onde é que eu estava mesmo? Ah, sim.

Limpou a garganta.

- Ela está dividida entre os dois amantes. – Meredia assumiu um tom apaixonado. – De um lado, está Dick, o confiável e seguro Dick, pai dos filhos dela. Do outro, Roger, excitante, imprevisível passional...

E assim foi ela, sempre em frente, até que, finalmente, chegou a hora do almoço. Período durante o qual, é claro, parávamos de trabalhar e saíamos do escritório para circular pelas lojas do centro durante uma hora.

O fato de que eu, na verdade, ainda não havia sequer começado a trabalhar não tinha importância alguma.

Saí para comprar um cartão e um presente de aniversário para Daniel, o que era sempre difícil de fazer.

Eu nunca sabia o que comprar para ele.

O que a gente compra para um homem que já tem tudo?, eu me perguntei. Poderia dar um livro para ele, pensei por um momento, só que ele já tem um.

Preciso me lembrar de contar essa piadinha para Daniel, ele vai gostar.

Eu acabava sempre comprando para ele alguma coisa horrível e pouco criativa, como meias, gravatas ou lenços.

E o que tornava as coisas ainda piores é que ele sempre me dava algo lindo ou especial, que demonstrava consideração. No meu último aniversário ele me dera um vale para um dia inteiro no Sanctuary, o melhor centro de estética da cidade, o que representou momentos de felicidade absoluta. Um dia sem culpas, que gastei todinho deitada junto de uma piscina, sendo massageada e paparicada.

De qualquer modo, comprei-lhe uma gravata. Eu não dava gravatas para Daniel há uns dois anos, de forma que achei que podia escapar com aquilo.

Mas comprei também um lindo cartão, muito legal, engraçado e carinhoso, e assinei “Com amor, Lucy”, esperando que Karen não o visse e começasse a me acusar de estar querendo roubar o seu namorado.

O papel de presente custou quase tanto quanto a gravata. Devia ser feito com fibras de ouro.

Fiz o embrulho da gravata quando cheguei de volta no escritório, mas ia ter de ir à agência dos Correios para enviar o pacote. Eu poderia ter enviado através do serviço postal da própria empresa, mas queria que o presente de Daniel chegasse em suas mãos ainda neste século, e os dois rapazes vindos da era de Neanderthal que trabalhavam no setor postal não iam me garantir isso. Não que eles não fossem pessoas legais. Eles eram muito legais até. Os votos de parabéns que me enviaram pelo casamento falso foram sinceros e entusiasmados. De algum modo, porém, eles não me pareciam muito brilhantes, não. Prestativos, esforçados, mas não muito capazes talvez fosse a melhor forma de descrê-los.

Finalmente, o relógio marcou cinco horas e eu, com a velocidade de uma bala ao sair do cilindro de uma arma, fui para casa.

 

Eu adorava as noites de segunda-feira. Ainda estava no estágio da vida em que achava que os dias de semana serviam para nos recuperar do sábado e do domingo. Não conseguia entender o resto do mundo, que parecia ter a impressão de que era o contrário.

Segunda à noite era, normalmente, a única noite da semana em que Karen, Charlotte e eu estávamos todas em casa, arrasadas pelos excessos do fim de semana.

Na terça à noite, Charlotte tinha as aulas de dança flamenca (ou dança de flamingo, como ela achava que era o nome certo. Ninguém tinha coragem de corrigi-la).

Duas de nós estavam sempre desaparecidas nas noites de quarta. E, freqüentemente, nas de quinta, todas nós saíamos, numa espécie de aquecimento para a convivência social intensa que sempre acompanhava os fins de semana, quando as três estavam na rua, o tempo todo (se a minha depressão permitisse, é claro).

Segunda, depois do trabalho, era o dia em que nós íamos ao supermercado e comprávamos maçãs, uvas e iogurte desnatado, sempre em quantidade suficiente para uma semana. Era a noite em que preparávamos legumes no vapor, dizíamos que era preciso abolir as pizzas e que jamais voltaríamos a beber, pelo menos até o sábado seguinte.

(Na terça, já estávamos de volta aos miojos com vinho; na quarta, era sorvete com biscoitos de chocolate; na quinta, um pequeno drinque rápido depois do trabalho e comida chinesa para viagem; e, entre sexta e domingo, não havia restrições de nenhum tipo. Até que a segunda voltava, e comprávamos maçãs, uvas e iogurte desnatado para começar tudo novamente.)

Charlotte já estava em casa quando cheguei, tirando compras de uma sacola do supermercado e jogando fora grandes quantidades, bandejas e mais bandejas de iogurtes desnatados ainda não comidos e já vencidos, muito, mas muito mesmo, além da data de validade. Potinhos que já estavam há muitos meses gingando e rebolando animadamente, dançando uns com os outros dentro da geladeira.

Coloquei a minha sacola bem junto da dela, para que as duas pudessem bater papo uma com a outra.

— Mostre, mostre, o que foi que você trouxe? Alguma coisa interessante? — perguntou Charlotte.

— Maçãs...

— Ah. Eu também. —... e uvas...

— Eu também.

—... e iogurtes desnatados.

— Eu também.

— Então, não, desculpe, não trouxe nada interessante.

— Bem, é melhor assim, porque resolvi me alimentar de forma sensata de agora em diante.

— Eu também.

— Quanto menos tentações, melhor.

— Exato!

— Karen foi dar um pulinho até a loja da esquina. Tomara que ela não traga nenhuma comida interessante de lá.

— Ela foi à loja do Sr. Papadopoulos? -É.

— Então não há perigo.

— Por quê?

— Porque não há nenhuma comida interessante para se comprar lá.

— Acho que você tem razão — concordou Charlotte. — Tudo na loja dele parece meio... sei lá, sujo e velho, não é? Mesmo as coisas boas, como os chocolates, parecem meio caídas, como se já estivessem na prateleira desde antes da guerra.

— É mesmo — concordei. — Nós temos muita, muita sorte, sabia? Pode imaginar como é que estaríamos se morássemos perto de uma loja legal, que vendesse coisas apetitosas?

— Imensas — completou Charlotte. — Ficaríamos enormes.

— Para ser franca, se analisarmos por esse lado — comentei —, esta é uma das coisas boas deste apartamento. Devia até estar no anúncio: "Apartamento de três quartos para alugar, totalmente mobiliado, região dois, junto de pontos de ônibus e estações do metrô, e a quilômetros de lojas que vendem chocolates com boa aparência".

— Isso mesmo — disse Charlotte.

— Olhe, Karen chegou.

Karen entrou com a cara atravessada e jogou as sacolas de compras em cima da mesa. Estava claramente aborrecida.

— O que houve, Karen? — perguntei.

— Escutem aqui, quem é que foi o palhaço que colocou aquelas pesetas na caixinha do dinheiro? Estou tão envergonhada! O Sr. Papadopoulos está achando que tentei passá-lo para trás, e vocês sabem muito bem o que as pessoas geralmente pensam dos escoceses quando se trata de dinheiro!

— O que elas pensam? — perguntou Charlotte. — Ah, já sei. Que vocês são muito pães-duros. Bem, por um lado, as pessoas têm ra...

Parou de falar na mesma hora, quando viu a cara de ódio que Karen fez.

— Quem colocou essas pesetas velhas lá? — quis saber. Ela sabia ser bem assustadora quando queria.

Pensei em negar e jogar a culpa, digamos, no rapaz com as costas cheias de pintas, o pobre e descartado Costas Pintadas, que telefonara no domingo à noite para falar com Charlotte e acabara ouvindo que ali não morava ninguém com esse nome.

Pensei em negar qualquer coisa a respeito daquilo.

— Hã...

Então pensei melhor a respeito.

Karen ia acabar descobrindo uma hora qualquer. E viria com tudo para cima de mim. Minha consciência culpada também ia me corroer por dentro, até eu confessar.

— Desculpe-me, Karen, acho que a culpa é minha... embora não tenha sido eu que coloquei as pesetas na caixinha, é minha culpa que elas tenham aparecido aqui em casa.

— Mas você nunca foi à Espanha.

— Eu sei, mas foi o Gus que me deu aquelas pesetas. Eu não queria recebê-las, e devo tê-las deixado em cima da mesa ou em algum outro lugar. Alguém deve ter encontrado as moedinhas espalhadas, pensou que era dinheiro de verdade e...

— Ah, se foi o Gus, então está tudo bem.

— Sério? — reagimos Charlotte e eu, em coro e surpresas. Karen raramente era tão compreensiva e compassiva.

— Sim, ele é um doce. Uma gracinha. Completamente pirado, é claro, mas de um jeito muito bonitinho.

— ... Elizabeth Ardente... — Riu ela baixinho, para si mesma. — Ele me faz rir.

Charlotte e eu trocamos olhares alarmados.

— Mas você não está com vontade de dar um soco nele? — perguntei, preocupada. — Não quer que ele vá até a loja do Sr. Papadopoulos para explicar que você não é uma escocesa unha-de-fome e...

— Não, não, não — disse ela, abanando a mão para rejeitar a idéia.

Eu estava comovida pela mudança que ocorrera em Karen. Ela parecia muito menos agressiva e muito mais simpática.

— Não — continuou ela. — Você é que tem que ir, Lucy. Pode ir até lá. Vá pedir desculpas ao Sr. Papadopoulos!

— Hã...

— Mas também não precisa ir agora, correndo. Espere até acabarmos de jantar, mas não se esqueça de que ele fecha às oito.

Fiquei olhando para ela, sem saber se estava falando sério ou não. Eu precisava ter certeza, porque não queria me dar a todo aquele trabalho de ficar nervosa só para descobrir, depois, que não precisava.

— Você está brincando, não está, Karen? — perguntei, esperançosa.

Houve um pequeno intervalo, ligeiramente tenso, e então ela disse:

— Certo, estou só brincando. É melhor eu tratar de ser legal com você, já que você é amiga de Daniel e tudo o mais.

E me lançou um sorriso charmoso, de desarmar, daqueles do tipo "eu sou descarada, mas é impossível não gostar de mim". Sorri de volta, de leve.

Eu era a favor de falar tudo às claras. Bem, na verdade, isso é uma mentira, acho que isso de falar às claras é uma das coisas mais supervalorizadas que existem. Só que Karen se comportava como se a franqueza fosse uma grande virtude, a melhor coisa que ela poderia fazer por alguém. Eu, no fundo, achava que há certas coisas que não têm necessidade de serem ditas, nem devem ser ditas. Achava também que às vezes as pessoas usam o velho "estou apenas sendo franco" como oportunidade para falar mal dos outros. Essas pessoas abriam as comportas da maldade, eram extremamente cruéis, arrasavam totalmente com a vida de alguém e depois absolviam a si próprias dizendo, com um ar inocente e comovido: "Estou apenas sendo franco."

Mas eu também não tinha o direito de reclamar dessas pessoas. Karen podia adorar um confronto, mas eu morria de medo disso, chegava a ser uma fobia.

— Queria apenas, Lucy, que você ficasse lembrando a Daniel que sou uma pessoa fabulosa — disse ela —, e comente também que há milhões de homens apaixonados por mim.

— Hã... certo — concordei.

— Vou cozinhar um pouco de brócolis no vapor — anunciou Charlotte, trazendo a conversa de volta aos assuntos domésticos. — Alguém vai querer?

— Bem, vou cozinhar umas cenouras no vapor também — disse eu. — Vocês querem um pouco?

Resolvemos pegar a nossa ração de vegetais cozidos no vapor e dividir igualmente pelas três.

— Ah, Lucy — comentou Karen, com ar casual. Casual demais. Eu me preparei. — Daniel ligou.

— Ah, hã... que bom... ligou?

Será que aquela reação era pouco interessada o bastante para

ela?

— Ligou para mim — disse, triunfante. — Ligou só para falar comigo.

— Ótimo,

— Não ligou para você. Ligou para mim.

— Ótimo, Karen. — Ri. — Então parece que vocês dois estão acertando os ponteiros, hein?

— Pelo jeito, parece que sim — disse ela, toda orgulhosa.

— Que bom para vocês.

— Pode crer.

Comemos nossos vegetais no vapor, assistimos às novelas e depois a um documentário assustador sobre parto natural, que nos fez remexer o tempo todo no sofá. Mulheres com rostos contorcidos, todas cobertas de suor, respirando de forma ofegante e dando gemidos de dor.

As mulheres eram eu, Charlotte e Karen.

— Nossa — disse Charlotte, olhando apavorada para a tela, o rosto rígido devido ao choque. — Jamais vou ter um bebê.

— Nem eu — concordei com energia, subitamente consciente das vantagens de não ter um namorado.

— Mas podemos tomar uma anestesia peridural — disse Karen. — Com isso, não vamos sentir nada.

— Só que nem sempre funciona — lembrei a ela.

— É mesmo? Como é que você sabe? — quis saber ela.

— Ela tem razão — disse Charlotte. — Minha cunhada disse que não adiantou nada. Passou pela maior agonia, e dava para ouvir os gritos dela a três quarteirões.

Uma boa história, muito bem contada, mas eu não estava muito certa se devia acreditar naquilo, porque Charlotte era de Yorkshire, onde as pessoas adoravam histórias de dores insuportáveis.

Karen também não pareceu muito convencida pelo sanguinolento relato de Charlotte. A simples força de vontade de Karen já ia garantir que a anestesia peridural dela funcionasse, a injeção não era besta de não funcionar.

— E a anestesia com gás de bombinha, com a máscara? — perguntei. — Aquilo não ajuda a diminuir a dor?

— Anestesia de bombinha, com máscara — caçoou Charlotte. — Máscara com gás! Isso é tão bom quanto engessar um braço amputado.

— Oh, puxa — disse, baixinho. — Puxa vida. Vamos assistir a outro canal?

Mais ou menos às nove e meia, o período pelo qual conseguimos enganar os estômagos com os vegetais no vapor acabou, e uma fome brava surgiu.

Quem ia capitular primeiro?

A tensão foi aumentando e aumentando, até que finalmente Charlotte perguntou, casualmente:

— Alguém está a fim de dar uma voltinha na rua? Karen e eu soltamos disfarçados suspiros de gratidão.

— Que tipo de voltinha? — perguntei, com cuidado.

Eu não estava insinuando nada que envolvesse comida, mas Charlotte não me deixou desapontada.

— Uma voltinha até a lanchonete — disse ela, meio sem graça.

— Charlotte! — falamos em coro, Karen e eu, parecendo ofendidas. —- Que vergonha! E as nossas boas intenções?

— Mas eu estou com fome — argumentou ela, com a voz fininha.

— Pois coma uma cenoura — disse Karen.

— Para comer uma cenoura prefiro não comer nada e ficar com fome — admitiu Charlotte.

Eu entendia bem como ela se sentia. Eu também preferia mastigar um pedaço de mobília a comer uma cenoura.

— Bem — suspirei, com ar solidário. — Já que você está assim, morrendo de fome, vou até lá com voeê. — Adorei a oportunidade, Estava louca por um saco de batatas fritas.

— Olhem... — suspirou Karen, como se aquilo fosse realmente um sacrifício extremo. — Só para vocês se sentirem melhor, já que vão mesmo lá, tragam um saco de batatas fritas para mim também.

— Se é só para me fazer sentir menos culpada, você não devia fazer isso — disse Charlotte, com suavidade. — Só porque eu não tenho força de vontade, isso não significa que você tenha que abrir mão da sua dieta.

— Não é incômodo algum — protestou Karen.

— Não, estou sendo sincera — insistiu Charlotte. — Realmente não há necessidade de você comer algo que não queira. Eu consigo agüentar sozinha o sentimento de culpa.

— Cale a boca e me traga as batatas! — berrou Karen.

— Saco grande ou pequeno?

— Grande! Com molho curry e umas lingüicinhas!

 

Gus ia me levar para sair na terça-feira, depois do trabalho. Ele dissera isso no domingo à noite.

Mas Gus estava muito animado no domingo à noite, especialmente por causa do elevado teor alcoólico do seu sangue. A caminhada de dez minutos da pizzaria até o meu apartamento levou mais de meia hora, porque ele estava todo agitado, brincalhão, e eu estava começando a ficar preocupada com a possibilidade de ele fazer a maior confusão com o que combinamos para terça à noite.

Tinha medo de que ele fosse ao endereço errado, chegasse na hora errada ou até mesmo aparecesse no dia errado.

Tentar conferir os detalhes com Gus se transformou em um pesadelo confuso.

Porque, quando ele me deixou na porta de casa, educadamente apertou a minha mão e disse:

— Lucy, vejo você amanhã.

— Não, Gus — corrigi, com gentileza. — Você não vai me ver amanhã. Amanhã é segunda. Nós vamos nos ver na terça.

— Não, Lucy — ele me corrigiu de volta. — É que quando eu chegar em casa agora à noite vou fazer alguns preparativos, hã... farmacêuticos, e quando acordar já vai ser terça-feira. Então, para todos os efeitos e finalidades, Lucy Sullivan, nós vamos nos ver amanhã. Pelo menos vai ser o meu amanhã.

— Ah, entendo — disse, meio em dúvida. — E onde é que vamos nos encontrar?

— Eu pego você no trabalho, Lucy. Vou resgatá-la das minas profundas do setor de administração, e do escuro poço do controle de crédito.

— Ótimo.

— Só para eu lembrar — disse ele, levantando meus braços e puxando-me na direção dele —, é rua Cavendish Crescent, número 54, e você sai às cinco e meia, não é?

E lançou-me um sorriso doce, ligeiramente desfocado.

— Não, Gus, não é na rua Cavendish Crescent, é na praça Newcastle, e o número é 6 — disse a ele.

Na verdade, eu já havia recitado o endereço várias vezes, e até mesmo o escrevera para ele em um pedaço de papel, mas aquele fora um longo dia, e ele tinha bebido muito e em grande quantidade.

— Ah, é mesmo? — perguntou Gus. — Por que será que achei que era Cavendish Crescent? Quem é que trabalha neste endereço, você sabe me dizer?

— Não faço idéia, Gus — respondi, cortando o papo. Eu não ia começar a me perder em conjecturas sobre o que funcionava na rua Cavendish Crescent, número 54, se é que tal lugar existia mesmo. Estava muito ocupada naquele instante, tentando manter a conversa sob controle e me assegurando de que Gus sabia onde, quando e como me encontrar.

— Onde está o pedacinho de papel que eu lhe dei, com o endereço? — perguntei, sentindo que estava parecendo uma mãe chata, ou uma professora, mas, se tinha de ser daquele jeito, então que fosse.

— Não sei — disse ele, soltando meus braços e apalpando os bolsos e a jaqueta. — Ah, não, Lucy, acho que perdi.

Escrevi novamente para ele.

— Tente lembrar — sorri, de nervoso, entregando-lhe o novo pedaço de papel. — O endereço é praça Newcastle, número 6, às cinco horas.

— Cinco horas? Pensei que você havia dito cinco e meia.

— Não, Gus, cinco horas.

— Desculpe, Lucy, mas eu nunca me lembro de nada. É capaz até de eu esquecer o meu próprio nome... Para falar a verdade, isso rola mesmo, de vez em quando. Já aconteceram muitas conversas em que eu tive que dizer para a outra pessoa "desculpe, mas como é mesmo o meu nome?". Minha cabeça até parece uma daquelas... você sabe, uma daquelas coisas redondas, cheia de furos?...

— Peneira! — A ansiedade me fez falar muito alto.

— Puxa, Lucy, também não precisava ficar chateada. — E riu, de leve. — Foi só uma brincadeirinha.

— Tá bem.

— Acho que guardei o endereço na cabeça, finalmente — garantiu ele, lançando-me um sorriso lento que fez o meu estômago dar uma cambalhota. — É às cinco horas, na rua Newcastle Crescent, número 56...

—... Não, Gus...

— Não, não, não, desculpe. Praça Cavendish...

Aquilo não era culpa dele, pensei, tentando me acalmar. De certo modo, aquilo era uma gracinha. Qualquer pessoa ia ficar confusa e misturar as coisas se tivesse bebido tanto quanto Gus.

— Não, não, não. Não fique aborrecida comigo não, Lucy. É praça Newcastle, número 56, às cinco horas.

— Seis.

A confusão surgiu em seu rosto perturbado.

— Mas você acabou de dizer cinco horas! — reclamou. — Mas tudo bem, Lucy, é privilégio de toda mulher ficar mudando de idéia, então mude, se quiser.

— Não, Gus, eu não mudei de idéia! Eu quis dizer que é às cinco horas, no número 6.

— Tá, agora acho que entendi. — E sorriu. — Cinco horas no número 6. Cinco horas no número 6. Cinco horas no número 6.

— Nos encontramos lá então, Gus.

— Não é às seis horas no número 5? — perguntou ele.

— Não! — disse eu, já alarmada. — Ah, já sei, você está só brincando...

Ele levantou a mão, dando um aceno de despedida, e disse, repetindo como um papagaio:

— Cinco horas no número 6, cinco horas no número 6, desculpe, Lucy, mas não posso parar de falar para me despedir, porque senão esqueço... cinco horas no número 6, cinco horas no número 6, mas a gente se vê lá... cinco horas...

E lá se foi ele pela rua, repetindo sem parar:

— No número 6, cinco horas no número 6.

Fiquei no portão, olhando para a rua escura, na direção dele. Estava desapontada por ele não ter tentado me beijar. Deixa pra lá, disse a mim mesma. Era muito mais importante que ele se lembrasse do lugar onde ia me encontrar na terça-feira. Contanto que ele conseguisse chegar ao prédio correto, no dia certo e na hora combinada, haveria muito tempo para beijos.

— ... Cinco horas no número 6, cinco horas no número 6... — Ouvi flutuar de volta para mim pelo ar frio da noite, enquanto Gus continuava marchando no compasso do seu mantra.

Tremi, em parte devido ao frio e em parte de alegria, e entrei.

Assim, a ansiedade que eu sentia na terça de manhã era metade medo de que ele não aparecesse e metade expectativa agradável.

Estava certa de que ele gostara de mim, e que não ia me dar o bolo de propósito, mas não estava nem um pouco convencida de que ele não ia acabar esquecendo por completo o combinado, por ter saído tão bêbado no domingo.

Apesar disso, coloquei uma calcinha muito legal, porque era sempre melhor estar preparada. Vesti uma roupinha verde que parecia um paletó apertado na cintura, mas que, na verdade, era um vestido muito curto e provocante, e depois enfiei as botas. Fui me admirar no espelho. Nada mau, pensei. Parecia bem infantil.

Então, um tremor de pânico me percorreu a espinha. E se ele acabasse não aparecendo? Ai, meu Deus, eu devia ter perguntado o telefone dele, pensei, angustiada. Devia ter pedido o número, mas fiquei com medo de parecer muito interessada.

E eu sabia que todo mundo no trabalho ia desconfiar de que eu tinha um encontro à noite ao me ver usando uma roupa que mostrava a minha bunda sempre que eu levantava os braços. Eles eram assim no escritório. Se penteássemos o cabelo, já começaria um boato de que estaríamos a fim de alguém. Não dava nem para aparar a franja sem que todo mundo chegasse à conclusão de que estaríamos de namorado novo.

Havia trezentos funcionários espalhados por cinco andares, e todos eles viviam interessados nos assuntos dos colegas. Só por isso já dava para perceber o quanto eles estavam interessados no próprio serviço.

Era como trabalhar em um aquário. Nada acontecia sem provocar algum comentário. Até mesmo especulações a respeito do recheio que alguém colocava no sanduíche podiam tomar a maior parte da tarde ("Ela não costuma comer sanduíche de salada de ovo, sempre pede presunto. E já comeu salada de ovo duas vezes, só nesta semana. Acho que está grávida").

Caroline, a recepcionista, era a fonte da maior parte das fofocas. Sacava tudo, seu olho não deixava passar nada, e se não havia nada para reparar, ela inventava. Estava sempre interrompendo a passagem das pessoas para dizer coisas como "olha, sabe a Jackie, do setor de contabilidade? Ela está meio abatida hoje. Devem ser problemas sentimentais, não é?". E antes que Jackie percebesse, o prédio já estava todo agitado, comentando que ela estava se divorciando. E tudo só porque ela se levantara atrasada de manhã e não tivera tempo de passar um pouco de base antes de ir para o trabalho.

Por tudo isso, eu nem queria pensar no mico federal que seria passar o dia todo fazendo minhas tarefas seminua para, no fim, nenhum homem aparecer para me encontrar na saída.

Eu podia ter levado a roupa de sair para o escritório em uma sacola, e trocar de roupa no fim do expediente, mas isso provavelmente teria causado um escândalo ainda maior ("Você viu só a Lucy Sullivan? Chegou com uma sacola cheia de roupas, para passar a noite fora. E numa terça, imagina! Ela está planejando uma farra, com certeza!").

Do jeito que foi, já houve bastante tumulto no escritório quando desabotoei o meu casacão marrom medonho e revelei meu vestidinho curto em toda a sua glória.

— Nooossa! — declarou Megan. — Você está toda ventilada hoje!

— Quem é ele? — quis saber Meredia.

— Hã... — Fiquei toda vermelha. Tentei fingir que não sabia do que elas estavam falando, mas não adiantou nada. Eu não sabia mentir.

— É que eu... hã... conheci um cara no fim de semana. Meredia e Megan trocaram olhares triunfantes. Olhares convencidos, do tipo "viu?... eu sabia que isso ia acontecer".

— Bem, já deu para perceber que você conheceu alguém — disse Meredia, com ar de escárnio. — Vai se encontrar com ele hoje à noite?

— Vou. — Bem, eu pelo menos esperava que sim.

 

Mais ou menos às vinte para as cinco, saí do escritório para ir até o banheiro feminino, a fim de aplicar maquiagem, torcendo para que o relógio chegasse logo às cinco horas, horário estimado para a chegada de Gus.

Estava quase passando mal de tanta ansiedade. Assim que acabara de contar tudo a Meredia e a Megan a respeito de Gus, me arrependi de ter aberto a boca. Estava tão chateada por ter dado com a língua nos dentes... Se ao menos tivesse mantido a minha boca imensa fechada, mas não conseguira me controlar.

Estava louca para me exibir e falar dele, mas, agora, como é que eu podia saber se não tinha estragado a história toda? Ao falar de Gus, eu tinha lançado uma tentação para o destino, e agora era capaz de ele não chegar.

Nunca mais vou vê-lo, pensei.

Mas vou me maquiar, só por segurança.

A caminho do banheiro, vi dois dos guardas da recepção do lado de fora do balcão atracados com alguém. Bêbados e mendigos estavam sempre tentando entrar no prédio para escapar do frio, e os guardas tinham a desagradável tarefa de ejetá-los. O mais triste de tudo é que eu às vezes ficava com inveja dos mendigos. Se eu pudesse escolher entre ficar sentada na minha sala e ficar sentada em cima de um papelão na porta de um prédio, morrendo de frio, acho que escolheria a segunda opção.

O trabalho dos guardas era policiar o prédio, deixando entrar apenas as pessoas que eram aguardadas, assinavam a lista de visitantes e prendiam um crachá. Só que os guardas não eram exatamente policiais, e não sabiam muito bem como se defender. Ocasionalmente, quando tentavam colocar alguém para fora, a coisa ficava feia, especialmente quando o transgressor estava bêbado.

Aquilo era sempre muito divertido, e quando Caroline estava de bom humor conosco, chegava a ligar para a nossa sala, avisando do tititi, para descermos correndo e assistir de camarote.

Aquilo era sempre muito divertido, e quando Caroline estava de bom humor conosco, chegava a ligar para a nossa sala, avisando do tititi, para descermos correndo e assistir de camarote.

Estiquei o pescoço para dar uma boa olhada. Um estranho estava sendo levantado por trás, por baixo dos braços, e sendo empurrado para fora, mas resistia de forma valente, brigando com vontade, e cheguei a sorrir ao ver que ele dera um chute em Harry. Eu sempre simpatizava com os pobres coitados.

Virei-me para seguir em frente, achando que havia alguma coisa vagamente familiar no estranho que estava sendo ejetado, e então, de repente, ouvi alguém chamar pelo meu nome:

— Lá está ela, Lucy Sullivan! Lucy! Lucy! Lucy!

— Lucy! Lucy! — continuava a chamar a voz, de forma frenética. — Diga a eles que você me conhece!

Lentamente, tornei a me virar, com uma sensação horrível de tragédia iminente.

Era o Gus. A pessoa que esperneava, se debatia e chutava o ar nos braços de Winston e Harry era o Gus.

Ele girou o corpo para trás e arregalou os olhos para mim, suplicando:

— Lucy! Salve-me!

Harry e Winston, prontos para arremessar Gus na calçada, pararam de balançar o seu corpo no ar.

— Você conhece este homem? — perguntou Winston, sem querer acreditar.

— Sim, conheço — respondi, com toda a calma. — Talvez vocês possam me informar o que está acontecendo aqui.

Eu tentava falar com firmeza e serenidade na voz, tentando não demonstrar que estava morrendo de vergonha, e a tática pareceu funcionar.

— Nós o encontramos no quarto andar. Ele não estava com crachá e...

No quarto andar!, pensei, chocada.

— Eu estava procurando por você, Lucy! — declarou Gus, exaltado. — Tinha todo o direito de ir até lá.

— Não, não tinha não, gracinha — contrariou Harry, com ar ameaçador. Dava para notar que ele estava doido para arrastar o Gus pela orelha, e tratá-lo como se fosse o filhinho de um limpador de chaminés de um romance de Dickens - Ele estava bem no quarto andar, imagine! Parecia até que era o dono do lugar, sentado na cadeira do Sr. Balfour. Trabalho aqui há trinta e oito anos, desde que era rapazinho, e é a primeira vez que vejo...

O quarto andar era onde as altas esferas gerenciais da empresa tinham suas salas, e o local era tratado com tanta reverência que até parecia o Paraíso. O quarto andar era a versão do Salão Oval, no prédio da Wholesale Metais e Plásticos.

Eu mesma jamais havia estado no quarto andar, porque era insignificante demais dentro da empresa, mas Meredia já havia sido rebocada até lá uma vez, por um delito qualquer e, pelo que contou na volta, o andar parecia o País das Maravilhas, cheio de carpetes maravilhosos e macios, secretárias lindas, paredes revestidas de mogno, obras de arte, poltronas confortáveis em couro, globos terrestres que se abriam e exibiam garrafas de bebidas finas e um monte de gordos carecas que tomavam remédio contra úlcera.

Embora estivesse horrorizada, eu tinha de admirar a coragem de Gus, mas Harry e Winston pareciam muito abalados pelo seu comportamento irreverente e profano.

Resolvi que era melhor tomar conta da situação.

— Obrigada, rapazes — disse para os dois guardas, tentando amenizar o incidente. — Está tudo bem agora. Deixem que eu tomo conta disso.

— Mas ele continua sem crachá — disse Harry, com teimosia. — Você conhece as regras, meu amor. Sem crachá, não pode entrar.

Harry era um sujeito legal, mas gostava das coisas todas certinhas.

— Tudo bem — suspirei. — Gus, será que você se importa de ficar me esperando aqui na entrada? Eu saio daqui a pouquinho, às cinco horas, e me encontro com você.

— Onde?

— Bem ali — disse eu, entre dentes e empurrando-o na direção de uma fileira de cadeiras que ficava no saguão.

— E eu vou ficar em segurança ali, Lucy? — perguntou ele, ansioso. — Eles não vão chegar e me expulsar de novo, vão?

— Não, fique ali sentado, Gus.

Fui para o banheiro, soltando fumaça de raiva. Estava furiosa. Furiosa com Gus, por ter me transformado em espetáculo no trabalho, e ainda mais furiosa por ele ter feito isso antes de eu me maquiar.

— Merda — xinguei baixinho, quase chorando de tanta raiva. Chutei a lata de lixo, com o rosto ainda sem maquiagem, mas muito vermelho. — Merda, merda, merda!

Fiquei com vontade de me matar.

Caroline presenciara tudo, de forma que o prédio inteiro ia ficar sabendo em cinco minutos. Há poucos dias eu fizera papel de palhaça no trabalho, e acho que não estava preparada para passar de novo por aquilo. O pior de tudo é que Gus me vira sem maquiagem.

Eu sabia que Gus era meio excêntrico, e isso até me agradava, mas não estava nem um pouco satisfeita com a cena que acabara de presenciar. Minha confiança em Gus estava abalada, e eu me sentia péssima. Será que eu estava errada a respeito dele? Será que aquele relacionamento ia ser outro desastre na minha vida? Será que Gus ia me trazer mais problemas do que alegrias? Será que não era melhor eu cair fora?

Mas eu não queria me sentir desse modo com Gus.

Por favor, Deus, não me deixe ficar desiludida com ele. Eu não vou agüentar. Gostei tanto dele, e estava com tanta esperança em nós dois...

Uma vozinha sussurrou no meu ouvido que eu bem que podia deixá-lo sentado ali no saguão e escapar correndo pela porta dos fundos. A idéia, por um instante, me encheu de alívio, até eu descobrir que ele provavelmente ia ficar ali me esperando a noite inteira, e depois ia voltar na manhã seguinte, esperando por toda a eternidade até que eu finalmente aparecesse.

O que fazer?, perguntei a mim mesma.

Resolvi encarar o problema.

Eu ia até a entrada e seria gentil com ele, agindo como se ele não tivesse feito nada de errado.

No momento em que acabei de aplicar a quarta e última camada de maquiagem, já me acalmara bastante.

Certamente havia alguma coisa muito tranquilizadora em passar batom, base e delineador.

Problemas de início de namoro, achei que era isso que Gus e eu estávamos tendo. Nervoso da primeira noite.

Lembrei a mim mesma de sábado à noite, da alegria que sentira ao conhecê-lo. Recordei o dia adorável que fora o domingo, o quanto tínhamos em comum, como ele era tudo o que eu sempre desejara, o modo como ele me fazia rir, o jeito com que ele parecia me compreender.

Como fui capaz de pensar, por um momento sequer, em abandoná-lo?, perguntei a mim mesma.

Especialmente depois que, indo de encontro a todas as probabilidades, ele conseguira chegar na hora certa (mais ou menos), no dia certo e no lugar certo. Comecei a me sentir compreensiva, querendo perdoá-lo. Pobre Gus!, pensei. Não era culpa dele. Ele era como uma criança em sua inocência. Como é que ele poderia compreender as regras e normas da Wholesale Metais e Plásticos?

A experiência toda provavelmente fora terrível para ele. Gus devia ter levado um tremendo choque. Harry e Winston eram homens grandes, corpulentos. Gus, na certa, ficara aterrorizado.

Quando, finalmente, me encontrei com Gus, eu já estava mais calma, e uma mudança parecia ter ocorrido nele também. Gus parecia mais normal, mais sensato, mais adulto, mais controlado.

Ele se levantou ao ver que eu me aproximava.

Reparei o quanto meu vestido estava curto pelos olhares interessados que recebi dos outros funcionários que circulavam pelo corredor, se apertando e se empurrando, tentando ir embora para casa.

Os olhos de Gus se detiveram em mim por um momento, me analisando com satisfação, para em seguida assumir uma expressão de enterro, pálida, sombria e ansiosa.

— Lucy — disse ele, baixinho. — Então você voltou. Estava com medo de que você fugisse de mim pelos fundos.

— Essa idéia realmente passou pela minha cabeça — admiti.

— Não posso culpá-la — disse ele, parecendo tenso e arrasado. Então limpou a garganta e começou a despejar um discurso de desculpas, que ele obviamente ensaiara durante o tempo em que eu estava no banheiro, passando quilos e quilos de maquiagem.

— Lucy, tudo o que posso fazer é pedir desculpas do fundo do meu coração — disse ele, falando rápido. — Não tive a intenção de fazer nada de errado, e espero que você consiga fazer com que o seu coração me perdoe e...

Continuou a falar sem parar, explicando-me que mesmo que eu o perdoasse ele não teria certeza se poderia algum dia perdoar a si mesmo etc. etc.

Fiquei esperando Gus terminar, na expectativa de ver acabar a pilha de sua torrente de desculpas. O ato de arrasar consigo mesmo foi se tornando mais e mais cruel, seu comportamento cada vez mais desprezível, sua expressão cada vez mais envergonhada e humilde demais. Subitamente, toda a história me pareceu engraçada.

Que diabo importava tudo aquilo?, perguntei a mim mesma, incapaz de impedir o sorriso que começou a se espalhar em meu rosto enquanto meditava no quanto tudo aquilo era uma bobagem.

— O que foi? — perguntou Gus, parando de repente a ladainha de auto-recriminação. — Do que está achando tanta graça?

— De nada! — Ri. — Estou rindo da expressão do seu rosto, como se você estivesse para ser executado, e de Harry e Winston, que agiram como se você fosse alguma espécie de criminoso perigoso..

— Bem, pois saiba que, para mim, não foi nem um pouco engraçado — disse Gus, meio ofendido. — Parecia aquela cena de O Expresso da Meia-noite. Achei que ia ser jogado em uma cela e temi pela minha integridade.

— Mas Harry e Winston são incapazes de machucar uma mosca que seja — garanti a Gus.

- O que Harry e Winston fazem com insetos não é da minha conta — afirmou Gus, cheio de indignação. — A vida pessoal deles não interessa a ninguém. Só sei, Lucy, é que achei que eles fossem me matar.

— Mas eles não mataram você, não é verdade? — perguntei, com jeitinho.

— Não, acho que não.

Subitamente, ele relaxou.

— Você tem razão! — E sorriu, — Puxa, achei que você nunca mais ia querer falar comigo de novo. Estou tão envergonhado...

— Você é que está envergonhado?... — perguntei, quase me engasgando.

Então comecei a rir, ele também riu e compreendi que o caso ia se transformar em uma daquelas histórias que contamos para os netos ("Vovô, vovô, conte novamente sobre aquele dia em que o senhor foi expulso da porta do trabalho da vovó..."). Aquilo era a história, acontecendo ao vivo.

— Espero que isso não vá lhe trazer problemas — disse Gus, preocupado. — Não há perigo de você perder o emprego?

— Não — afirmei. — Não há perigo.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Como é que você pode ter tanta certeza?

— Porque nunca me acontece nada tão bom assim. Nós dois começamos a rir com isso.

— Então vamos. — Ele sorriu, colocando o braço em volta da minha cintura e me guiando enquanto descíamos as escadas. — Deixe-me levá-la a um lugar bem legal para gastar um monte de dinheiro com você.

 

Foi uma noite maravilhosa.

Primeiro, ele me levou a um pub e pediu um drinque para mim. Chegou até mesmo a pagar.

Então, depois que voltara do balcão e se sentou ao meu lado, começou a remexer na sacola que trazia e me presenteou com um pequeno buquê de flores, todas amassadas. Apesar disso, mesmo estando amassadas, pareciam ter sido compradas em uma loja, e não roubadas do jardim de alguém, e adorei esse fato.

— Obrigada, Gus — agradeci. — Elas são lindas. Porque eram mesmo, de um modo meio desgrenhado...

— Você não devia se incomodar com isso — protestei. — Não havia necessidade.

— Claro que havia, Lucy — insistiu ele. — O que mais eu poderia fazer? Ainda mais por uma mulher linda como você?

Ele sorriu e seu rosto me pareceu tão bonito que meu coração deu uma cambalhota. Um arrepio de felicidade percorreu-me o corpo e, de repente, tudo me pareceu certo.

Estava tão contente de não ter dado o bolo nele, fugindo pelos fundos.

— E isso não é tudo! — continuou Gus, enfiando a mão novamente na sacola, como se fosse o Papai Noel, e tirando um pacote embrulhado em um papel cheio de figuras de bebês, fraldas e cegonhas.

— Puxa, desculpe o papel, Lucy — disse ele, olhando para o embrulho, desapontado. — Não reparei na hora que este era um papel para presente de casamento.

— Hã... bem, não se preocupe — garanti a ele, rasgando o papel ofensivo.

Era uma caixa de chocolates.

— Obrigada — agradeci, deliciada e empolgada por ele ter se dado a todo aquele trabalho por mim.

— E ainda tem mais — anunciou ele, recomeçando a pescaria, com o braço enfiado até o ombro dentro da sacola. De repente, aquilo me pareceu uma cena do filme Vida de Veterinário, na seqüência da vaca.

Se for o aspirador de pó portátil vou morrer de rir, decidi, absolutamente encantada pelo carinhoso desfile de presentes que Gus trouxera, todos eles baseados na nossa conversa na pizzaria, no domingo à noite.

Ele devia gostar de mim, pensei. Devia gostar muito de mim para ter todo aquele trabalho. Estava flutuando de tanta felicidade.

Depois de algum tempo, ele tirou outro pacotinho, também embrulhado no mesmo papel com as cegonhas.

Era do tamanho de uma caixa de fósforos, portanto não podia ser o aspirador de pó portátil para limpar o sofá.

Que pena! Meredia ia ficar impressionada, mas tudo bem... Então o que seria, já que não podia ser o aspirador de pó?

— Não pude comprar o casaco de peles de uma vez só — disse ele, como se fosse uma espécie de explicação. — Sendo assim, vou trazê-lo para você em pequenas parcelas. Abra o presente! — E riu quando fiquei olhando para ele, parecendo confusa.

Eu o abri. Era um chaveirinho com um chumaço de pêlo de animal na ponta.

Que gracinha! Gus se lembrara do casaco de peles.

— Que a farsa esteja com você! A farsa do casaco, quero dizer - desculpou-se ele. — Acho que é pele de armarinho.

— Talvez você esteja querendo dizer pele de arminho.

— Sim, talvez seja isso — disse ele. — Ou talvez não seja marinho, afinal. Pode ser terrestre, Mas, Lucy, não se preocupe. Sei que muita gente fica chateada com a matança de animais por causa da pele deles e tudo o mais. Já estou acostumado com a morte de bichos, porque fui criado no campo, mas sei que tem gente que não. Você pode ter certeza, porém, de que nenhum animal foi sacrificado para a confecção deste chaveiro.

— Entendo.

Isso provava que aquele pedacinho de pele não era de um arminho de verdade. Nem de um animal marinho. Nem mesmo terrestre. Mas não importava. Pelo menos eu estaria a salvo dos ativistas que defendem os animais e de seus baldes de tinta vermelha.

— Muito obrigada, Gus — disse eu, muito impressionada. — Obrigada por todas essas coisas adoráveis que você me trouxe.

— De nada, Lucy — disse ele.

Então ele me deu uma piscada de cumplicidade.

— E pode ser que você ainda vá ganhar mais alguma coisa. Não podemos esquecer que a noite é uma criança.

— Hã... é mesmo — murmurei, ficando vermelha.

Talvez aquela fosse a nossa noite, pensei, sentindo um pouco de empolgação na boca do estômago.

— Agora, me conte — e dei uma risadinha —, o que é que você estava fazendo, sentado na cadeira do Sr. Balfour?

— Estava só sentado lá, como aquele cara disse — defendeu-se ele. — Não estava profanando um lugar sagrado.

— Mas o Sr. Balfour é o nosso diretor — tentei explicar.

— E daí? — replicou Gus. — Aquela era apenas uma cadeira, e o Sr. Balfour, quem quer que ele seja, é apenas um homem. Não entendi por que tanta confusão. É muito fácil para aqueles guardas não terem que se preocupar com mais nada na vida, a não ser isso.

Gus estava absolutamente certo, pensei. Que grande atitude ele tomara!

— Mande aqueles dois caras para a Bósnia e quero ver se eles vão se preocupar com a cadeira do Sr. Balfour, quando voltarem — acrescentou ele —, e mande o Sr. Balfour com eles também, aproveitando a viagem. Agora, acabe de tomar o seu drinque, Lucy, e vou levá-la a outro lugar para alimentá-la.

— Ah, Gus, não quero que você gaste todo o seu pagamento comigo — choraminguei. — Não posso permitir isso. O sentimento de culpa ia acabar comigo.

— Lucy, fique quietinha, você vai comer o seu jantar, eu vou pagar a conta e ponto final.

— Não, Gus, não posso aceitar, não posso mesmo. Você já me trouxe todos estes presentes e me pagou um drinque, deixe-me pelo menos pagar o jantar.

— Não, Lucy, não quero nem ouvir falar disso.

— Mas eu insisto, Gus, insisto mesmo!

— Pode insistir à vontade, Lucy — disse Gus —, porque isso não vai adiantar nada.

— Chega, Gus! — afirmei. — Vou pagar o jantar e está decidido.

— Mas, Lucy...

— Não! — disse eu. — Não quero mais ouvir falar nesse assunto.

— Bem, se você tem certeza — aceitou ele, relutante.

— Sim, tenho certeza — afirmei, com segurança. — Onde gostaria de ir?

— Qualquer lugar, Lucy. Sou uma pessoa fácil de contentar. Contanto que tenha comida, vou ficar feliz de comer...

— Ótimo — disse, satisfeita, já com a cabeça girando diante de tantas possibilidades. Havia um lindo restaurante com comida típica da Malásia, pertinho do...

— ... Especialmente se for pizza, Lucy — continuou Gus. — Eu adoro pizza!

— Ah — disse eu, obrigando minha imaginação a voltar correndo do Sudeste Asiático ("Volte, volte, houve uma mudança de planos!").

— Tudo bem, Gus. Então vai ser pizza!

Foi uma daquelas noites perfeitas. Interrompíamos um ao outro, querendo falar coisas ao mesmo tempo. Tínhamos tanto a contar um ao outro a respeito de nós! Nenhum dos dois conseguia falar na velocidade necessária para acompanhar o entusiasmo mútuo e a empolgação crescente.

Para cada coisa que um dizia, o outro respondia:

— Exato! É exatamente isso que eu penso. Ou então:

— Não acredito! Você também se sente desse jeito? E também:

— Concordo plenamente com você. Plenamente!

Gus me falou de sua música, sobre os instrumentos que sabia tocar e o tipo de coisas sobre as quais gostava de escrever.

Tudo foi maravilhoso. Eu sabia que já conversáramos muito no sábado à noite, e depois havíamos passado todo o domingo juntos, mas aquilo era diferente. Afinal, aquele era o nosso primeiro encontro.

Ficamos no restaurante durante horas e horas, conversando muito e de mãos dadas diante de pãezinhos de alho.

Falamos sobre nossa infância, conversamos sobre como ficamos depois de adultos, e senti que, não importava o que dissesse a Gus, não importava o que contasse a respeito de mim mesma, ele me compreenderia. Como ninguém jamais compreendera no passado, nem poderia compreender.

Permiti a mim mesma sonhar acordada por alguns momentos sobre como seria estar casada com Gus. Não ia ser um casamento dos mais convencionais, mas e daí? O tempo da mulher frágil que ficava em casa e fazia as tarefas domésticas em uma cabana com rosas na entrada enquanto o marido saía e trabalhava arduamente de manhã até à noite já se acabara há muito tempo.

Gus e eu seríamos os melhores amigos um do outro. Eu ia incentivá-lo em sua carreira musical e trabalharia para sustentar a nós dois, e então, quando ele fosse rico e famoso, contaria em uma entrevista para a Oprah, ou para o programa de Richard e Judy, que ele não teria conseguido nada sem a minha ajuda, e que devia todo o seu sucesso a mim.

Nossa casa seria cheia de música e risos, grandes papos, todos morreriam de inveja de nós e comentariam o quanto o nosso casamento era maravilhoso. Mesmo que fôssemos muito ricos, continuaríamos a sentir prazer nas coisas simples da vida, continuando a ser a pessoa favorita um do outro. Montes de pessoas interessantes e talentosas apareceriam em nossa casa sem serem convidadas, e eu conseguiria preparar magníficos jantares para elas, com os restos da véspera, enquanto discutíamos os primeiros filmes de Jim Jarmusch de forma provocante e perspicaz.

Gus me apoiaria sempre, totalmente, e já não se sentiria tão... tão carente quando eu me casasse com ele. Eu ia me sentir completa, normal e, finalmente, encontraria o meu lugar,como todo mundo

Gus jamais cederia à tentação das tietes glamourosas que conheceria nas turnês, porque nenhuma delas lhe daria a mesma sensação de amor completo, segurança e entrosamento que ele tinha comigo. Depois que acabamos de jantar, Gus perguntou:

— Está com pressa de voltar para casa, Lucy, ou gostaria de ir a algum outro lugar?

— Não, não estou com pressa — disse eu, E não estava mesmo. Àquela altura eu já estava certa de que a nossa relação ia se consumar naquela mesma noite, mais tarde, e, apesar de estar adorando, também estava petrificada de medo. Queria aquilo, mas ao mesmo tempo estava com medo.

Qualquer atraso no momento da verdade era algo que eu rejeitava, embora também desejasse.

— Certo! — disse Gus. — Então vou levá-la a outro lugar.

— Onde?

— É surpresa.

— Ótimo!

— Vamos ter que pegar um ônibus, Lucy, você se importa?

— Não, claro que não.

Pegamos a linha 24 e Gus pagou a minha passagem. Adorei aquele gesto de posse. Era uma coisa doce, meio adolescente.

Quando o ônibus chegou às imediações de Camden, Gus e eu saltamos.

Gus segurou a minha mão e me levou através de um imenso tapete de latas de cerveja vazias, ao longo de pessoas deitadas em pedaços de papelão, adormecidas em portais, homens e mulheres jovens sentados na calçada imunda, pedindo qualquer trocado. Fiquei estarrecida. Como eu trabalhava no centro de Londres, sabia que havia problemas de mendigos e pessoas sem-teto, mas havia tantas pessoas sem-teto ali que parecia até que eu despencara em outro mundo, um mundo medieval, onde as pessoas eram obrigadas a viver na sujeira e morrer de fome.

Algumas daquelas pessoas estavam bêbadas, mas muitas delas pareciam sóbrias. Não que isso servisse de parâmetro.

— Pare, Gus — disse, pegando a minha bolsa dentro da sacola.

Estava diante do terrível dilema: devia dar todos os meus trocados a uma só pessoa, para que ela pudesse fazer alguma coisa decente com aquilo, como arrumar alguma coisa para comer ou beber, ou devia tentar dividir o dinheiro entre tantas pessoas que eu conseguisse, de modo que um monte de gente conseguisse vinte pence cada uma? Mas o que uma pessoa pode fazer com vinte pence? Fiquei angustiada, porque aquela quantia não dava nem para comprar uma barra de chocolate.

Fiquei em pé, parada na rua, tentando resolver o problema enquanto as pessoas passavam e esbarravam em mim.

— O que acha que devo fazer, Gus? — supliquei.

— Na verdade, acho que você devia endurecer o coração, Lucy — afirmou ele. — Aprenda a fechar os olhos para essas coisas. Mesmo que você distribuísse todos os pence que possui, não faria qualquer diferença.

Ele tinha razão. Todos os pence que eu tinha não resultavam em uma quantia assim tão grande, mas isso não importava.

— Não posso fechar os olhos diante disso — expliquei. — Pelo menos deixe-me distribuir as moedas soltas.

— Bem, nesse caso entregue tudo para uma só pessoa — aconselhou Gus.

— Você acha que essa é a coisa certa a fazer?

— Se você resolver visitar todos os mendigos e sem-teto que estão espalhados por Camden, dividindo o seu dinheiro com eles, o pub para o qual estamos indo já vai ter fechado na hora em que você acabar. Portanto, sim, acho que dar tudo a uma pessoa só é a coisa certa a fazer — disse ele, de bom humor.

— Gus! Como pode ser tão desalmado? — perguntei.

— Porque tenho que ser, Lucy, todos nós temos que ser — explicou.

— Certo, mas, então, a quem devo dar o dinheiro?

— A quem você quiser.

— Qualquer um?

— Bem, não exatamente a qualquer um. Talvez seja melhor dar a alguém que esteja realmente duro e more na rua. Não vá perturbar as pessoas nos bares e restaurantes, tentando fazê-las aceitar o seu dinheiro.

— Mas eu queria dar o dinheiro à pessoa que mereça mais — expliquei. — Como posso saber quem é ela?

— Não dá para saber, Lucy.

— Oh.

— Você está cometendo um ato de desprendimento e caridade, Lucy. Não se trata de um julgamento moral.

— Mas eu não...

— Sim, está sim! Está com vontade de sentir que está conseguindo o máximo valor pelo seu dinheiro ao entregá-lo a uma pessoa que acha que merece mais — disse ele. — Você se sentiria mal se soubesse que o dinheiro foi para um bêbado, ladrão ou um cara que bata na mulher?

— Bem, sim...

— Então você entendeu tudo errado, Lucy — disse Gus. — A doação é o mais importante, e não a recepção ou, no caso, a pessoa que recebe.

— Oh... — disse, baixinho. Talvez ele tivesse razão. Fiquei envergonhada.

— Certo, então — disse, me decidindo. — Vou entregar tudo para aquele cara sentado bem ali.

— Não, não faça isso! — disse Gus, me puxando pelo braço. — Ele não. É um tremendo patife.

Fiquei olhando para Gus, aborrecida por um momento, e então nós dois caímos na gargalhada.

— Você está brincando? — perguntei, por fim.

— Não, Lucy — e riu, como se pedisse desculpas —, não estou, não. Entregue o seu dinheiro a qualquer pessoa em Camden, menos a ele. A família toda, ele e os irmãos, são um bando de impostores. E ainda por cima nem sequer são sem-teto. Ele mora em um conjunto residencial em Kentish Town.

— Como é que você sabe de tudo isso? — perguntei, intrigada com aquilo e ainda sem saber se devia acreditar nele ou não.

— Eu simplesmente sei — disse Gus, com ar sombrio.

— Bem, então que tal aquele outro homem logo ali? — E indiquei outro pobre infeliz que estava sentado junto de uma porta.

— Vá em frente.

— Ele não é um patife? — perguntei.

— Não que eu saiba.

— E os irmãos dele?

— Só ouvi coisas boas a respeito deles.

Depois de despejar meu patético punhado de moedas, me virei e acabei esbarrando em um homem mais velho que perambulava pela rua.

— Oh, olá!... Uma boa-noite para você — disse ele, de um jeito muito amigável, como se já nos conhecêssemos. Tinha sotaque de irlandês.

— Olá — sorri de volta.

— Você o conhece? — perguntou Gus.

— Não — disse, meio em dúvida. — Pelo menos acho que não, mas ele me disse "olá". Então achei que devia responder, por educação.

Gus me ajudou a atravessar a rua, entramos em uma rua transversal e depois em um pub aquecido, barulhento e muito iluminado.

Estava completamente lotado de gente rindo, conversando e bebendo. Gus parecia conhecer praticamente todo mundo ali. Em um canto havia três instrumentistas, um homem tocando bodhrán, uma mulher com um instrumento de sopro e alguém de sexo indeterminado tocando violino.

Reconheci a música, era uma das favoritas do meu pai. Em toda a minha volta se ouvia o sotaque irlandês.

Senti como se estivesse voltando para casa.

— Sente-se aqui — disse Gus, levando-me por entre multidões de pessoas felizes e com o rosto vermelho, indicando o tampo de um barril, cuja borda na mesma hora marcou um sulco na minha bunda.

Que horas deviam ser?, eu me perguntei. Tinha certeza de que já passava das onze. No entanto, as bebidas continuavam a ser servidas no balcão.

Um pensamento passou pela minha cabeça. Será que aquele ali era um bar ilegal, desses que vendem bebidas depois do horário permitido por lei? Um bar daqueles que o meu pai mencionara tantas vezes?

Talvez fosse, pensei, toda empolgada.

Estava sem relógio, e a mulher perto de mim também, bem como suas companheiras de mesa. Uma delas, porém, sabia de alguém do outro lado do pub que tinha relógio e insistiu em ir até lá, espremendo-se no meio do povo, para tentar achar a tal pessoa e perguntar as horas.

Voltou logo depois.

— São vinte para a meia-noite — informou ela, voltando à cerveja.

— Obrigada — agradeci, com um calafrio de empolgação me percorrendo por dentro. Então eu estava certa: aquele ali era mesmo um lugar ilegal.

Que maravilha!

Como aquilo era ousado, decadente e perigoso!

Talvez não fosse correto Gus me levar até ali, colocando-me em perigo de ser presa, mas eu nem ligava.

Senti-me andando pelo lado selvagem da vida, como se ali eu estivesse vivendo de verdade.

Gus finalmente voltou com as bebidas.

— Desculpe a demora, Lucy — pediu ele. — Encontrei um monte de amigos que vieram de cidade de Cavan e...

— Tudo bem, tudo bem — interrompi, descendo do barril. Estava louca para conversar com ele sobre o nosso desafio à lei para me importar com suas histórias.

— Gus, você não está preocupado com os policiais? — sussurrei, olhando em torno com maravilhado horror.

— Não — disse ele. — Acho que os policiais é que devem se preocupar com eles mesmos.

— Não. — Dei uma risada. — Estou perguntando se você não está preocupado com o fato de eles poderem vir até aqui para nos prender?

Ele apalpou os bolsos da jaqueta e respirou aliviado, dizendo:

— Não, Lucy, neste momento não estou preocupado não. O fato de ele não levar aquilo a sério me deixou chateada.

— Não, Gus — protestei. — Você não está com medo de que eles façam uma blitz aqui, entrem batendo na gente e prendam todo mundo?

— Mas por que motivo eles fariam isso? — perguntou Gus, intrigado. — Será que do lado de fora já não tem um monte de gente disponível para eles prenderem e transformarem em sacos de pancada sempre que tiverem vontade? Não inventaram a lei da vadiagem especialmente para essas ocasiões?

— Mas, Gus — argumentei, desesperada. — E se eles ouvirem a música aqui dentro? E se descobrirem que continuamos bebendo muito depois do horário permitido?

— Mas não estamos fazendo nada de errado — explicou Gus. — ... Embora isso não os impeça de sair dando porrada em alguém — acrescentou.

— Mas estamos errados sim — insisti. — Este é um pub ilegal. A hora de fechar é onze da noite. Estamos violando a lei.

— Não estamos não! — Riu ele.

— Estamos sim.

— Lucy, Lucy, me escute um segundo. Este pub tem licença especial para funcionar até meia-noite. Ninguém está fazendo nada de errado, a não ser aquele barman bundão que leva um século para servir uma cerveja.

— Ah.

Fiquei terrivelmente desapontada.

— Quer dizer que tudo isto é legal, tudo é feito às claras? — perguntei, derrotada.

— É, Lucy, claro que é. — Riu Gus. — Você não achou que eu ia trazer você para um lugar que pudesse lhe trazer problemas, achou?

— Bem, hã, sabe... só estava pensando...

No fim da noite, Gus foi para casa comigo. Nenhum dos dois questionou nada, nem achou estranho. Parecia a coisa mais natural do mundo. Ninguém combinou, simplesmente aconteceu.

Na hora em que conseguimos sair do pub e de todas as pessoas que Gus conhecia, nós dois sabíamos que tínhamos de pegar um táxi até Ladbroke Grove. E foi o que fizemos.

Gus não sugeriu que fôssemos para a casa dele, e também não me ocorreu lançar essa idéia.

Não achei nada de estranho a respeito. Talvez devesse ter achado.

 

Na quinta-feira, havia duas nuvens escuras no meu maravilhoso céu azul de felicidade.

Chegou a notícia de que Hetty pedira demissão, oficialmente. Aquilo me deixou triste. Não por ela ser a única de nós que realmente fazia algum serviço no escritório, mas porque ia sentir saudades dela.

Detestava mudanças, e fiquei imaginando, preocupada, quem iríamos ter em seu lugar.

A outra nuvem é que eu concordara em visitar a minha mãe na quinta à noite, depois do trabalho.

Estava naquela fase do relacionamento com Gus em que todos os pensamentos que eu tinha na hora de acordar eram para ele. Sentia-me superfeliz quase o tempo todo (com exceção do período entre sete e meia e dez da noite, e mesmo esse horário melhorara, especialmente se Gus estava comigo, de preferência até mais tarde). Quando eu não estava em companhia de Gus, queria conversar sobre ele, com qualquer um, com todo mundo. Só para descrever como ele era lindo, contar como a sua pele era macia, como o cheiro dele era sexy, como seus olhos eram verdes, como seu cabelo era sedoso, como seu sotaque era maravilhoso, como o seu papo era uma delícia, como os seus dentes eram lindos para alguém que fora criado em uma fazenda distante, e como a sua bunda era redondinha e pequena.

Ou recontar, com todos os detalhes, histórias das coisas lindas que ele me dissera e as coisas que ele me trouxera de presente.

Estava lotada de tanta felicidade e adrenalina. Jamais me ocorreu que poderia estar parecendo a pessoa mais chata do mundo.

Delirava de alegria, amava o mundo inteiro e achava que todos estavam se sentindo tão felizes por me ver assim quanto eu mesma

É claro que eles não estavam, e consolavam uns aos outros dizendo coisas como "não vai durar muito" e "se eu ouvir mais uma vez a história de como ele abriu o sutiã dela e o arrancou fora com os dentes, vou começar a gritar!".

Não, é claro que Gus não arrancara meu sutiã com os dentes. Embora, na verdade, tenhamos consumado a nossa relação na terça à noite, não foi exatamente como no filme Nove e Meia Semanas de Amor, o que para mim estava ótimo. Ficar com uma venda nos olhos e mordiscar cebolas e picles não era exatamente a minha idéia de prazer sexual. Por ter complexo de inferioridade e não me sentir sexualmente confiante, eu gostava de ações bem diretas e tradicionais na cama. Homens que gostavam de experimentar um monte de posições diferentes me deixavam apavorada.

Mesmo sem as posições diferentes, eu já estava um feixe de nervos quando Gus e eu chegamos ao meu apartamento. Por sorte, eu estava um feixe de nervos muito bêbado, e isso acabou por tirar um pouco da estranheza que eu poderia sentir. Para falar a verdade, nós dois estávamos nos escangalhando de rir, e caímos na cama na mesma hora.

Gus tirou a roupa com toda a velocidade, e então pulou na cama e ficou ao meu lado.

Eu não tinha a intenção de ficar olhando para o pênis ereto dele, pois estava com muita vergonha. Porém, contra a minha vontade, meus olhos foram atraídos para ele. E atraídos para ele. E continuavam sendo atraídos. Eu não conseguia parar de olhar, estava hipnotizada por aquilo.

Era muito atraente, por sinal, para uma massa com quinze centímetros de comprimento que pulsava, toda enrugada e cheia de veias roxas. Sempre achei espantoso o fato de que um troço tão basica-mente assim, bem... esquisito, pudesse ser tão erótico.

Então foi a minha vez de tirar a roupa.

— O que está havendo? — Gus pegou na minha roupa com um olhar de preocupação fingida. — Você ainda está vestida? Vamos logo, tire isso tudo, rápido, rápido!

Aquilo foi muito engraçado, me fez lembrar de quando eu era bem pequena e minha mãe tirava a minha roupa.

— Agora estique as pernas! — ordenou ele, em pé na beira da cama, enquanto segurava as pontas da minha meia-calça e as puxava. Quando ouvi o som de algo que se rasgava, não consegui mais parar de rir.

— Levante os braços! — bradou ele, enquanto puxava o meu suéter por cima da cabeça. — Caramba. Para onde foi o seu rosto?

— Está aqui embaixo — disse, com a voz abafada, por trás do suéter. — Você tem que puxar a roupa pelo buraco do pescoço também, e não só dos braços.

— Ah, graças a Deus! Achei que havia degolado você com a força da minha paixão.

Eu me despi em tempo recorde, mas, pelo menos naquela vez, não estava constrangida nem com vergonha do meu corpo. Não havia como ser recatada ou moderada com relação a isso, porque Gus parecia muito natural com relação a tudo o que estava vendo.

— Você não é um estudante de medicina, é? — perguntei, desconfiada.

— Não.

É claro que não era. Eu esquecera que os estudantes de medicina eram aqueles que soltavam risadinhas abafadas sempre que ouviam a palavra "traseiro".

Gus não se preocupou muito com as preliminares. A não ser que ele me perguntar: "Você está tomando pílula?", conte. Estava era doido para meter as caras o mais rápido possível, uma frase bem sugestiva, por sinal. É claro que eu estava adorando o seu entusiasmo, pois provava que ele realmente gostava de mim.

— Você não vai gozar em três segundos, vai? — brinquei com ele. E quando ele gozou em três segundos, nós dois quase caímos da cama de tanto rir.

Então Gus praticamente caiu no sono em cima de mim. Mas eu não me senti desapontada nem chateada. Não berrei com ele nem exigi que ele armasse a tenda de novo na mesma hora e me fizesse atingir dez orgasmos, como era o meu direito de mulher moderna. Fiquei até aliviada pelo fato de ele não ser muito sofisticado sexualmente, porque eu não ia precisar de meta alguma para atingir. Para mim, sexo tinha mais a ver com aconchego e carinho do que com orgasmos. E ele era muito bom na área de aconchego e carinho.

Com Gus, eu ultrapassara aquele período de gentilezas, as tolices de quem ainda está se conhecendo e fora direto à jugular, à fase de "se apaixonar".

Por isso, eu não estava gostando nem um pouco de ter de ir visitar minha mãe e perder um tempo que eu poderia usar melhor em companhia de Gus, ou então falando a respeito dele com as pessoas.

A única coisa que tornava aquilo remotamente suportável era o fato de Daniel ir até lá comigo. Não podia conversar sobre Gus enquanto estivesse com minha mãe, mas, durante a viagem de metrô, na ida e na volta, eu podia alugar o ouvido de Daniel.

Ao sair do trabalho, na quinta-feira, eu me encontrei com Daniel, e pegamos o metrô até a última estação da linha que saía de Picadilly.

— Conseguiria imaginar coisas muito melhores para fazer esta noite, no lugar de percorrer quilômetros e quilômetros só para ver a minha mãe — resmunguei, enquanto viajávamos em pé, balançando para a frente e para trás no trem superlotado, sentindo o ar pesado com o cheiro dos casacos úmidos e o chão coalhado de pastas e sacolas de supermercado. — Trabalhar nas minas de sal da Sibéria, por exemplo. Ou limpar o prédio do Serviço Secreto Britânico com uma escova de dentes.

— Não se esqueça do seu pai — lembrou Daniel. — Você vai vê-lo também. Isso não a deixa mais feliz?

— Bem, claro que deixa, mas não consigo conversar direito com ele quando ela está por perto. E odeio ter que deixá-lo lá depois. Sinto-me tão culpada.

— Ah, Lucy, você complica demais as coisas — suspirou Daniel. — Não precisava ser assim tão ruim, sabia?

— Eu sei. — Sorri. — Mas talvez eu goste das coisas assim. Não queria que Daniel começasse a me dar conselhos, porque eu

sabia que não ia adiantar nada, só que ele era o tipo de pessoa que, quando se empolgava, não desistia com facilidade. Muitas amizades já haviam encalhado nos recifes das boas intenções.

— Acho que você realmente gosta disso — admitiu ele, parecendo um pouco surpreso diante da descoberta.

— Ótimo! — Sorri. — Ainda bem que concordamos nisso. Agora não vou precisar aturar você se preocupando comigo.

Quando saímos do metrô já estava escuro e o tempo esfriara, e ainda tínhamos de andar por quase quinze minutos até a minha casa. Daniel insistiu em carregar a minha sacola,

— Nossa, Lucy, isto aqui está pesando uma tonelada. O que colocou aqui dentro?

— Uma garrafa de uísque.

— Para quem?

— Para você é que não é. — E dei uma risada.

— Já devia saber. Você nunca me dá nada, a não ser esculachos.

— Isso não é verdade. Não lhe dei uma linda gravata como presente de aniversário?

— Sim, é verdade, obrigado. Pelo menos foi um pouco melhor do que o presente do ano passado.

— Que presente eu lhe dei no ano passado?

— Meias.

— Ah, foi.

— Você sempre me dá presentes de "pai".

— Como assim?

— Essas coisas... gravatas, meias, lenços. São o tipo de presente que todo mundo dá para os pais.

— Eu não.

— Não? E o que dá de presente para o seu pai?

— Dinheiro, geralmente. E às vezes uma garrafa de bebida bem legal.

— Ah.

— De qualquer modo, eu ia lhe dar um presente diferente desta vez, Este ano pensei em lhe comprar um livro...

— Só que eu já tenho um, sim, eu sei, eu sei, Lucy — interrompeu Daniel, de repente.

— Ah... — Sorri. — Eu já havia falado isso para você?

— Creio que sim, Lucy. Uma ou duas vezes, pelo menos.

— Puxa, isso é embaraçoso. Sinto muito.

— Sente muito pelo quê? Sente muito por repetir sua piadinha sem graça mais de cem vezes? Ou por insinuar que eu sou um filistino sem cultura?

— O nome é palestino — comentei, de modo vago.

— Filipino — reagiu ele.

— Enfim, desculpe por repetir minha piadinha sem graça, que não é assim tão sem graça, pela centésima vez. Quanto a insinuar que você não é muito inteligente, não peço desculpas. Olhe só para as mulheres com quem você sai.

— Lucy Sullivan, dou muita folga para você, sabia? Não sei como é que nunca tentei esganá-la,

— Para falar a verdade, nem eu — comentei, pensativa. — Sou muito desagradável com você. E o pior, sem intenção. Não acho você burro. Acho, sim, que seu gosto para mulheres é horroroso, e também acho que você as trata muito mal, mas, tirando tudo isso, até que você é um cara legal.

— Meu Deus, um elogio, afinal. — Sorriu Daniel. — Posso ter essa declaração por escrito?

— Não.

Continuamos a caminhar em silêncio, passando em frente a fileiras e mais fileiras de casinhas típicas de subúrbio. O tempo estava congelando.

Daniel voltou a falar, depois de algum tempo:

— Então, para quem é?

— Para quem é o quê?

— O uísque. Para quem é?

— Para o meu pai, é claro. Para quem mais poderia ser?

— Ele continua nessa?

— Daniel! Não fale desse jeito.

— Desse jeito como?

— Do jeito que fala, até parece que ele é um vagabundo bêbado ou algo horrível assim.

— É que o Chris me contou que ele tinha parado de beber.

— Quem? Papai? — perguntei, com deboche. — Parar de beber? Não seja ridículo! Por que ele faria isso?

— Sei lá — disse Daniel, com todo o cuidado. — Isso foi só o que o Chris me contou. Devo ter entendido errado.

Continuamos a caminhar, com dificuldade.

— E para a sua mãe, o que comprou?

— Para mamãe? — perguntei, surpresa. — Nada, ué...

— Isso não se faz!

— Ora, se faz sim. Eu nunca trago nada para ela.

— Por que não?

— Porque ela trabalha. Tem dinheiro. Papai não trabalha, papai não tem dinheiro algum.

— Então você nem mesmo chegou a pensar em trazer um presentinho para ela?

Parei de andar na mesma hora e fiquei ali, na frente de Daniel, forçando-o a parar também.

— Escute aqui, seu réptil — disse, com raiva. — Eu já compro presentes para ela no aniversário, no Natal e no Dia das Mães, e isso já é o bastante. Você pode comprar presentes para sua mãe toda vez que vai vê-la, mas eu não sou assim. Pare de tentar fazer com que eu me sinta uma filha má!

— Eu só quis dizer... ah, deixa pra lá. — Daniel pareceu tão mal-humorado que não consegui ficar com raiva por muito tempo.

— Tudo bem — disse, tocando em seu braço. — Se isso faz com que você se sinta melhor, posso comprar um bolo para ela quando passarmos na padaria lá perto.

— Não precisa!

— Ai, Daniel! Por que ficou tão irritado?

— Não fiquei não.

— Claro que ficou. Você disse "não precisa!"...

— Disse. — E riu, parecendo desesperado. — Disse "não precisa" porque já comprei um bolo para ela.

Fiz cara de nojo.

— Daniel Watson, você é realmente um réptil!

— Não, não sou. O que tenho se chama "boas maneiras". Sua mãe vai me oferecer o jantar, estou apenas sendo educado.

— Você pode chamar de "educado", mas eu chamo de "réptil".

— Tudo bem, Lucy — riu ele. — Chame do que quiser. Viramos a esquina, e quando eu vi a minha casa, o meu coração

se apertou. Eu odiava a minha casa. Detestava voltar lá. Foi quando me lembrei de uma coisa.

— Daniel — disse, um pouco assustada.

— Que foi?

— Se você mencionar o nome de Gus com a minha mãe, eu mato você!

— Como se eu fosse fazer isso! — Ele pareceu magoado.

— Ótimo, ainda bem que a gente se entende.

— Então você acha que ela não vai aprová-lo? — perguntou Daniel, arqueando as sobrancelhas.

— Ora, cale a boca!

 

Vi a cortina se mover na janela da sala. Mamãe já abrira a porta antes que tivéssemos a chance de tocar a campainha.

Por um momento, me senti um pouco triste.

Será que ela não tinha nada melhor a fazer do que ficar espiando pela janela?, perguntei a mim mesma.

— Bem-vindos, sejam bem-vindos! — disse ela, toda sorridente, hospitaleira e cordial. — Saiam dessa noite gelada. Como está, Daniel? É muita bondade sua vir de tão longe só para nos visitar. Está muito cansado? — perguntou ela, agarrando as mãos de Daniel. — Não, você está com uma cara boa... Tirem os casacos e entrem, acabei de preparar um bule.

— Preparou um bule? Não sabia que a senhora estava trabalhando com artesanato em cerâmica. — Daniel sorriu para mamãe, com os olhinhos brilhando e cara de travesso.

— Ora, mas você, hein? — Riu ela, com um jeitinho infantil, girando os olhos ao olhar para ele. — Continua terrível!

Enfiei os dedos na garganta e fiz ruídos de vômito.

— Pare com isso — cochichou Daniel.

— Por que está sendo mau comigo? — perguntei, surpresa. — Normalmente você não é.

— É que às vezes você age de forma infantil e horrível. Aquilo me deixou irritada e perturbada, e enquanto tirávamos os casacos no minúsculo vestíbulo e os pendurávamos no corrimão da escada, fiquei fazendo caretas e repetindo as palavras "infantil e horrível" umas cinqüenta vezes, com voz de débil mental.

Daniel ficou olhando para mim, sério, com as sobrancelhas levantadas, mas eu sabia que ele estava prendendo o riso.

— Se você me disser "esse é um comportamento muito maduro, Lucy!", dou um soco em você — avisei.

— Ah. Esse é um comportamento muito maduro!

Então demos início a uma briga física. Tentei atingi-lo, mas ele agarrou meus pulsos e ficou segurando-os com firmeza. Depois começou a rir quando tentei empurrá-lo e girar o corpo para me livrar dele. Só que não consegui me mover nem um centímetro enquanto ele ficou ali, parecendo indiferente, rindo para mim, olhando para baixo.

Fiquei meio perturbada pelo seu jeito dominador e machista. Na verdade, se fosse com outro cara, sem ser o Daniel, aquilo teria sido bem erótico.

— Seu grosso! — Eu sabia que isso o deixaria chateado. E tinha razão, pois ele me largou na mesma hora. Então, de modo estranho, fiquei desapontada.

Fomos para a cozinha, onde estava mais quente. Mamãe estava pegando biscoitos, açúcar e caixas de leite.

Papai estava em uma cadeira de braços, roncando baixinho, com os cabelos brancos já bem ralos despenteados e arrepiados. Dei-lhe um tapinha no ombro, com carinho. Seus óculos estavam tortos no rosto, e reparei, com uma fisgada de dor, que ele estava começando a parecer velho. Não com meia-idade, ou apenas um pouco idoso, e sim velho, velho mesmo.

— Você vai se sentir melhor quando colocar um pouco de chá quentinho dentro dessa barriga — disse mamãe. — Comprou uma saia nova, Lucy?

— Não.

— Comprou onde?

— Não é nova.

— Eu ouvi o que disse. Em que loja comprou?

— A senhora não conhece.

— Experimente me dizer. Não sou a velha antiquada e totalmente por fora das coisas, conforme ela imagina — disse ela, rindo como uma jovem para Daniel enquanto colocava pratinhos cheios de biscoitos em cima da mesa, empurrando-os na direção dele.

— Kookai — respondi, entre dentes.

— Que tipo de nome é esse para uma loja, afinal? — perguntou ela, fingindo que ria.

— Eu disse que a senhora não ia conhecer.

— Não conheço mesmo. Nem quero. De que é feita? — E passou os dedos pelo tecido.

— Como é que vou saber? — respondi, chateada, tentando puxar a saia de volta, libertando-a daquelas garras. — Compro as roupas porque gosto delas, não pelo tecido do qual elas são feitas.

— Acho que é material sintético — afirmou ela, esfregando o pano. — Olhe! Olhe só o jeito de enrugar que ele tem.

— Pare com isso!

— E o acabamento. Uma criança era capaz de conseguir fazer uma bainha melhor do que essa. Quanto mesmo você disse que pagou por ela?

— Eu não disse.

— Bem, e quanto você pagou por ela?

Fiquei com vontade de dizer que não ia falar o preço, mas sabia que essa resposta ia parecer bem infantil.

— Não lembro.

— Acho que lembra sim. Só que está com vergonha de me dizer o preço. Deve ter custado uma fortuna, aposto! Muito mais do que vale.

Não respondi nada.

— Você sempre foi um desastre com o dinheiro, Lucy. Continuei sem dizer nada.

— Você conhece o velho ditado: um tolo e seu dinheiro logo se separam.

Nós três continuamos sentados, em silêncio, eu fazendo pirraça e me recusando a beber o chá, só porque ela o preparara.

Ela sempre ressaltava o que havia de pior em mim.

Daniel quebrou a tensão indo até o vestíbulo e voltando com o bolo que levara para ela. Evidentemente, a minha mãe ficou maravilhada e toda cheia de coisa com Daniel, colada nele como uma doença de pele.

— Ah, você não é um rapaz maravilhoso? Não precisava fazer isso. O triste é ver a que ponto chegamos, quando gente do meu próprio sangue não me traz nada.

— Ah, mas o bolo é um presente de nós dois, não é só meu — explicou Daniel, depressa.

— Puxa-saco. — Com os lábios fiz mímica das palavras para ele, do outro lado da mesa.

— Ah! — disse mamãe. — Obrigada, Lucy, apesar de você saber muito bem que estou fazendo jejum de chocolate, em respeito à Quaresma.

— Mas bolo não é chocolate — disse, baixinho.

— Bolo de chocolate é chocolate, sim — replicou ela.

— Então a senhora pode congelá-lo, para comer depois que a Quaresma acabar — sugeri.

— Não vai agüentar até lá.

— Vai sim.

— De qualquer modo, isso seria contra o espírito do jejum da Quaresma.

— Então tá bom! Não coma o bolo, Daniel e eu comemos.

O bolo da discórdia ficou ali, no meio da mesa, como se de repente tivesse se transformado em algo assustador, como uma bomba. Sabia que não era possível, mas juro que ele me pareceu estar quase pulsando. Tinha certeza de que ele jamais seria comido.

— E você, está fazendo jejum de quê, em respeito à Quaresma, Lucy?

— De nada! Já tenho muita coisa ruim na minha vida — acrescentei, misteriosa, na esperança de que ela ia sacar que estava falando a respeito de ir visitá-la. — Não preciso fazer jejum nem desistir de nada,

Para a minha surpresa, ela não revidou. Olhou para mim de um jeito quase... carinhoso... por um momento. —- Preparei o seu favorito — anunciou ela.

— Meu favorito o quê?

— Seu prato favorito! —Ah, preparou?

Eu nem sabia que tinha um prato favorito. Seria interessante descobrir qual a gororoba que ela preparara. Mas fui bem cruel e disse;

— Que bom, mamãe! Eu nem sabia que a senhora sabia preparar comida típica do Butão.

Mamãe fez uma cara de "vamos animá-la" para Daniel e disse:

— Sobre o que ela está falando? Cozinhar botão? Você sempre foi meio estranha, Lucy, mas, só para agradá-la, podemos pegar uma daquelas camisas sociais cheias de botões do seu pai, lá em cima, e cozinhá-los. Aposto que ele não vai precisar delas — acrescentou, com um tom amargo na voz. — Ele não usa uma camisa social desde o dia do nosso casamento.

— Sai fora, mulher! — disse uma voz arrastada vinda do canto da cozinha. — Então não coloquei uma camisa social no enterro de Mattie Burke?

Papai abrira os olhos e estava olhando em volta, meio perdido.

— Papai! — disse, toda alegre. — O senhor acordou.

— Olhe, parece até um daqueles seus amigos mortos que se levantaram do caixão e assustaram todo mundo no velório — disse mamãe com sarcasmo enquanto papai se ajeitava todo para sentar reto na cadeira.

— Não foi nada disso — replicou papai. — Essa história não aconteceu com Mattie Burke, foi com Laurence Molloy. Eu nunca lhe contei esse caso, Lucy? Foi um dia memorável aquele, quando Laurence Molloy fingiu que tinha morrido só para a gente fazer uma grande gozação com toda a vizinhança. O problema é que Laurence não ficou nem um pouco satisfeito quando descobriu que ia ter que ficar ali deitado, esticado, sem respirar, dentro de um caixão duro, sem nada para beber a não ser o bafo dos que estavam em volta.

Então, resolveu pular fora do caixão e pegou a garrafa do primeiro que viu, dizendo "me dê um pouco disso aí...".

— Cale a boca, Jamsie! — berrou a minha mãe. — Temos visita, e garanto que ele não está interessado nas histórias da sua juventude desperdiçada.

— Eu não estava contando histórias de minha juventude desperdiçada — resmungou papai. — A ressurreição de Laurence Molloy aconteceu uns dois anos atrás, e... Ora, como vai, meu filho? — disse ele, fixando o olhar em Daniel. — Eu me lembro de você. Você costumava aparecer aqui para brincar com Christopher Patrick, não é? Era um varapau comprido naquela época, parecia um bambu. Levante-se um instantinho, para eu ver se você encolheu.

Daniel se levantou, meio sem graça, fazendo muito barulho com a cadeira.

— Está mais comprido ainda, como é que pode? — declarou papai. — E eu que achava impossível você crescer mais.

Daniel tornou a se sentar, parecendo agradecido por isso.

— Lucy — disse papai, dirigindo-se a mim. — Minha garotinha querida, meu amorzinho, eu não sabia que você vinha aqui hoje.

— Por que não contou a papai que eu vinha aqui? — questionei minha mãe.

— Eu lhe contei, Jamsie.

— Não, não contou.

— Contei sim.

— Tenho certeza de que não contou!

— Mas eu con... ah, de que adianta? Falar com você é o mesmo que falar com as paredes.

— Lucy — disse papai —, vou lá em cima me arrumar um pouco, e volto já, já, em um piscar de olhos.

Saiu em direção ao quarto, e abri um sorriso afetuoso.

— Ele parece ótimo — disse.

— Parece? — disse mamãe, com frieza. Seguiu-se um silêncio desconfortável.

— Mais chá? — perguntou ela a Daniel, seguindo a velha tradição irlandesa de aproveitar qualquer silêncio no meio da conversa para empurrar comida para as pessoas.

— Sim, obrigado.

— Mais um biscoitinho?

— Não, obrigado.

— Um pedacinho de bolo?

— Não, acho melhor não. Estou deixando espaço na barriga para o jantar.

— Ora, não seja bobo, você ainda está em idade de crescimento.

— Não, obrigado, estou sendo sincero.

— Tem certeza?

— Mãe, deixe-o em paz! — Ri, me lembrando das coisas que Gus dissera sobre as mães irlandesas. — Afinal, o que a senhora preparou para o jantar?

— Iscas de peixe empanadas, feijão e batata frita.

— Hã... legal, mamãe.

Era verdade, aquele era o meu prato favorito muito tempo atrás, em outra vida, até eu me mudar para Londres e conhecer comidas exóticas, como espaguete ao molho marinado Tandoori e pato de Pequim com batatas temperadas.

— Que delícia! — Sorriu Daniel. — Adoro iscas de peixe com feijão e batata frita.

Ele falou aquilo como se estivesse sendo sincero.

— O prato que mamãe preparou não faz muita diferença para você, não é verdade? — disse eu. — Mesmo que ela dissesse: "Olhe, Daniel, pensei em servir os seus testículos com molho de vinho branco", você ia dizer: "Hummm, que delícia, Sra. Sullivan, parece delicioso!". Não era exatamente isso que você ia falar?

Dei uma risada ao ver a cara de horror que ele fez.

— Lucy — ele franziu o rosto —, você precisa ser mais cuidadosa com esses assuntos.

— Desculpe. — Ri. — Esqueci que estava falando dos seus bens mais preciosos. O que seria de Daniel Watson sem a sua genitália? Sua vida perderia o sentido, não é?

— Não, Lucy, não se trata disso. Qualquer homem acha uma sugestão como essa perturbadora, não sou só eu.

Minha mãe finalmente conseguiu fôlego para falar:

— Lucy... Carmel... Sullivan! —gemeu ela, ofegante e quase apo-plética de tanto horror. — Em nome dos céus, sobre o que vocês estão falando?

— Nada, Sra. Sullivan — disse Daniel, bem depressa. — Nada mesmo, nada de importante.

— Nada, Daniel? Bem, não é bem isso o que a Karen diz! — Pisquei para ele enquanto Daniel emendava uma conversa frenética com mamãe... Como ela estava, se ela estava gostando do novo emprego, como era trabalhar na tinturaria.

O olhar de mamãe passava de mim para Daniel e voltava a se fixar em mim.

Ela estava dividida entre a deliciosa sensação de ser o centro das atenções de Daniel e a possibilidade de me deixar escapar impune de algo totalmente monstruoso e imperdoável.

A vaidade venceu. Logo em seguida ela já estava brindando Daniel com as histórias dos palhaços ricos e mimados que ela era obrigada a atender na tinturaria, e como eles queriam tudo para ontem, como jamais agradeciam, como estacionavam o carro todo atravessado, "aqueles carros BMX, BLT ou sei lá a marca", de modo que os veículos bloqueavam o tráfego, e como eles viviam criticando os serviços.

— Hoje mesmo — disse ela — um deles chegou à loja, parecendo um poodle estressado e jogou... sim!, jogou uma camisa no balcão. Depois a balançou bem na minha cara, perguntando: "Que bosta é esta que você fez com a minha camisa?" Bem, Daniel, para princípio de conversa, não precisava falar uma palavra como essa para mim, mas agüentei firme, olhei para a camisa e falei que não via uma mancha sequer nela, e afinal...

E mamãe continuou a história como se não fosse terminar nunca. Daniel tinha a paciência de um santo. Estava tão contente por ele ter ido comigo. Sozinha eu não ia agüentar aquilo não.

— ... E quando eu disse "sua camisa está branca como a neve!", ele me respondeu: "Esse é o problema! Quando eu a comprei, ela era azul!..."

E a história continuou, sem acabar. Daniel também continuou a sorrir e balançar a cabeça, solidário. Era maravilhoso, eu nem precisava ficar ali. Apenas um "hã-hã" de vez em quando e um balançar de cabeça era tudo que minha mãe queria de mim. Toda a sua atenção estava focada em Daniel.

Finalmente a saga da tinturaria chegou ao fim.

— ... E o poodle me disse "nos vemos diante do juiz!", e eu respondi "só se for um juiz de futebol!", e ele completou "vou lhe enviar o meu procurador!", e eu falei "pois ele pode me procurar à vontade, e é bom que ele fale bem alto, que eu sou surda de um ouvido!...".

— E você, Daniel, como anda a sua vida? — perguntou mamãe, finalmente.

— Vai indo muito bem, Sra. Sullivan, obrigado.

— Vai melhor do que bem, não é, Daniel? Conte para a mamãe quem é a sua nova namorada.

Eu estava adorando aquilo. Eu sabia que aquela notícia ia deixar a minha mãe chateada. Ela alimentava esperanças de que eu conseguisse, de algum modo, fazer Daniel se apaixonar por mim.

— Pare com isso, Lucy — cochichou Daniel, parecendo embaraçado.

— Ora, não seja tímido, Daniel. — Eu sabia que estava sendo chata, mas aquilo era bom demais!

— É alguém que conheço? — perguntou mamãe, toda esperançosa.

— É!... — respondi, toda feliz.

— Sério? — Ela tentava, muito mal, disfarçar a empolgação.

— Sim. É a minha colega de apartamento, Karen.

— Karen?

— É.

— A escocesa?

— Ela mesma. E eles estão loucos um pelo outro. Não é fantástico?

— E então, não é legal? — perguntei novamente, quando ela continuou calada.

— Sempre a achei um pouco... vulgar — disse mamãe, e então colocou a mão por sobre a boca, fingindo pavor. — Ah, Daniel, não posso acreditar que eu disse uma coisa dessas! Desculpe! Meu Sagrado Coração de Jesus, mas que falta de tato! Você me perdoa por eu ter dito isso, Daniel? Já faz muito tempo que não a vejo. Tenho certeza de que ela não está parecendo tão vulgar agora.

— Considere-se perdoada — disse Daniel, sorrindo suavemente. Ele era tão bondosol Podia ter dado um soco na velha megera que nenhum júri no mundo teria coragem de condená-lo.

— Apesar de todos os defeitos que Lucy tem — disse ela, fingindo estar falando à toa, como se conversasse consigo mesma —, pelo menos ela nunca teve uma aparência vulgar. Você jamais a veria saindo por aí exibindo o busto.

— Isso é porque eu não tenho um busto para exibir. Se tivesse, pode apostar que eu ia botar a peitaria toda pra fora!

— Olhe o palavreado, Lucy! — ralhou ela, batendo no meu braço.

— Palavreado? — reagi. — A senhora pensa que isso é palavrão? Eu bem que podia lhe mostrar alguns palavrões que sei...

Parei de falar e xinguei Daniel mentalmente, só pelo fato de que ele estava ali. Não podia brigar direito com a minha mãe, porque ele era visita. Não que Daniel contasse como visita, propriamente dita, mas mesmo assim...

— Agora, se vocês me dão licença... — disse eu, saindo da cozinha. Peguei a garrafa de uísque na minha bolsa no vestíbulo e subi. Queria me encontrar a sós com papai.

 

Ele estava no quarto, sentado na beira da cama, calçando os sapatos.

— Lucy — disse ele. — Eu já ia descer de volta.

— Vamos ficar aqui um instantinho — disse, abraçando-o.

— Ótimo — concordou ele. — Assim podemos bater um papo, só nós dois.

Entreguei a garrafa de uísque para ele, e ele tornou a me abraçar.

— Você é muito boa para mim, muito boa mesmo, Lucy.

— Como o senhor está, papai? — perguntei-lhe, com lágrimas nos olhos.

— Estou muito bem, Lucy, muito bem. Por que as lágrimas?

— É que odeio pensar no senhor enfiado aqui dentro, só com... com ela — disse, apontando com o queixo para o andar de baixo.

— Mas estou bem, minha filha, estou mesmo — protestou ele, rindo. — Ela até que não é das piores. Nós nos damos muito bem.

— Sei que o senhor só está falando isso para eu não ficar preocupada. — Funguei, limpando o nariz. — Mesmo assim, obrigada.

— Ó Lucy, Lucy, Lucy — disse ele, apertando a minha mão. — Você não pode levar tudo tão a sério. Tente se divertir, porque logo, logo vamos estar mortos.

— Não, não — choraminguei, e então comecei a chorar de verdade. — Não fale sobre morte. Não quero que o senhor morra. Prometa que não vai morrer!

— Hã... bem, se isso a faz feliz, eu não morro então, Lucy.

— E se o senhor tiver que morrer, prometa que nós vamos morrer na mesma hora.

— Prometo!

— Ah, papai, isso não é horrível?

— O quê, meu amor?

— Tudo. Estar viva, amar as pessoas, ficar com medo de que elas morram.

— É horrível?

— Sim, claro que é.

— Com quem você aprendeu a ter essas idéias terríveis, Lucy?

— Foi... foi... com o senhor, papai.

Papai me abraçou meio sem graça e disse que eu devia ter entendido mal, claro que ele jamais dissera nada daquele tipo, falou que eu era jovem, tinha a vida toda pela frente e devia tentar aproveitá-la.

— Mas para quê, papai? — perguntei. — O senhor jamais tentou aproveitar a sua vida, e isso não lhe fez mal algum.

— Lucy — suspirou ele. — Era diferente para mim. £ diferente para mim, sou um velho agora. Você é uma mulher jovem. Jovem, linda, preparada, nunca se esqueça das vantagens de ter um bom nível de instrução, Lucy — insistiu ele, com firmeza.

— Eu não esqueço.

— Prometa.

— Eu prometo.

— Você tem todas as coisas boas à sua frente, devia estar feliz.

— Mas como posso ficar feliz? — argumentei. — E como o senhor pode esperar que eu fique? Nós somos iguais, papai, o senhor e eu. Não conseguimos deixar de ver a futilidade de tudo, o desperdício e a escuridão das coisas enquanto todos os outros caminham parecendo iluminados.

— O que foi, Lucy? — Papai investigou o meu rosto, em busca de alguma pista. — É algum rapaz, não é? Algum rapazinho está querendo levar você para algum cantinho? É isso?

— Não, papai. — Comecei a rir, embora ainda estivesse chorando.

— Não é aquele bambu comprido que está lá na cozinha, é?

— O quê?... Ah, Daniel? Não.

— Ele não andou, hã, você sabe... querendo tomar liberdades com você, Lucy, andou? Porque, se ele fez isso, que Deus me ajude, mas enquanto houver um pouco de fôlego no meu peito, eu o enfrento. Chamo seus dois irmãos para me ajudar a chutá-lo tão longe que ele vai até perder o rumo de casa. Um chute no rabo e um mapa do mundo, é disso que ele precisa, e é isso que vai ganhar. Ele é mais tolo do que parece se pensa que pode se fazer de engraçadinho com a filha de Jamsie Sullivan e escapar com vida...

— Papai — reclamei. — Daniel não me fez nada.

— Já percebi o jeito como ele olha para você — disse papai, com ar sombrio.

— Ele não olha para mim de nenhum jeito em especial. O senhor está imaginando coisas.

— Estou? Bem, talvez esteja. Imagino que não deve ser a primeira vez que alguém olha assim para você.

— Papai, o meu problema não tem a ver com namorado não, nem de longe.

— Mas, então, por que está se sentindo tão solitária?

— Porque sim, papai. E o meu jeito, igual ao senhor.

— Mas eu estou bem, Lucy, juro por Deus, estou mesmo. Nunca estive melhor.

— Obrigada, papai — suspirei, apoiando-me nele. — Sei que o senhor está me dizendo isso só para que eu me sinta melhor, mas obrigada mesmo assim.

— Mas... — disse ele, parecendo ligeiramente confuso. Parecia estar à procura de algo para dizer, mas não encontrou nada.

— Vamos descer — disse ele, por fim. — Vamos lá comer nosso peixe com batatas fritas.

E descemos.

A noite foi um pouco pesada, com minha mãe e eu de tromba uma para a outra e papai olhando com suspeitas para Daniel, convencido de que ele estava com más intenções em relação a mim.

Nosso humor melhorou um pouco quando o jantar foi colocado diante de nós, no centro da mesa.

— Uma rapsódia em tons alaranjados — declarou papai, olhando para o seu prato. — É isso mesmo. Iscas de peixe em tons de laranja, feijões em tons de laranja, batatas em tons de laranja e, para ajudar tudo isso a descer bem, um copo do mais fino malte irlandês, que, por acaso, também é laranja.

— As batatas não têm cor de laranja — disse mamãe. — E você já ofereceu a Daniel alguma coisa para beber?

— Elas são bem laranja — protestou papai, com fúria. — E não, não ofereci nada para ele beber, não.

— Daniel, gostaria de beber alguma coisa? — perguntou mamãe, se levantando.

— Diga aí: se isso não é laranja, de que cor vocês acham que é?

— perguntou papai para a mesa toda. — Cor-de-rosa? Verde?

— Não, Sra. Sullivan — respondeu Daniel, parecendo nervoso.

— Não quero beber nada, obrigado.

— Pois não vai beber mesmo — disse papai, como provocação.

— A não ser que diga que as batatas são laranja.

Mamãe e papai fixaram o olhar em Daniel, ambos ansiosos para que ele tomasse o seu partido.

— Elas me parecem ter um tom meio dourado — sugeriu ele, afinal, diplomata como sempre.

— Elas são laranja!

— Douradas! — disse mamãe.

Daniel não disse mais nada. Parecia muito sem graça.

— Então está bem! — rugiu papai, batendo com a mão por sobre a mesa e fazendo os pratos e os talheres pularem, com barulho.

— Vou lhe fazer uma oferta irrecusável. Dourado-alaranjado, e essa é a minha última palavra. É pegar ou largar! Só não quero que vocês digam que não sou justo. Agora dê-lhe algo para beber.

Papai ficou mais animado na mesma hora. O jantar transcorreu às mil maravilhas para melhorar o seu estado de espírito sempre lúgubre.

— Só existe uma coisa melhor do que uma isca de peixe — disse ele, feliz, sorrindo para todos à mesa. — São seis iscas de peixe.

— Olhem só para isso — disse ele, com olhar de admiração, levantando uma isca inteira de peixe com o garfo e girando-a para conseguir observá-la de todos os ângulos. — Uma maravilha! Isto é uma obra de arte, sabia? É preciso um curso universitário completo para se aprender a preparar uma destas da maneira adequada.

— Jamsie, pare de brincar com a comida — disse mamãe, estragando a brincadeira.

— Gostaria de conhecer este tal de Capitão Birds, que aparece na caixa dessas iscas de peixe, só para cumprimentá-lo pelo trabalho bem-feito — declarou papai, ignorando-a. — Queria mesmo. Eles deviam convidá-lo para ir ao programa Esta É a Sua Vida. O que acha disso, Lucy?

— Acho que o Capitão Birds não existe de verdade, papai. — E dei uma risadinha.

— Não existe de verdade? — perguntou papai. — Mas já o vi na televisão. Tem bigodes compridos, brancos, e mora em um barco.

— Mas...

Eu não tinha certeza se papai estava brincando ou não. Achava que sim. Pelo menos esperava que sim.

— Ele devia ganhar o Prêmio Nobel, devia mesmo — declarou papai.

— Prêmio Nobel pelo quê? — quis saber mamãe, com tom sarcástico.

— Prêmio Nobel pela melhor isca de peixe, é claro — disse papai, parecendo surpreso. — De que tipo de Prêmio Nobel você achou que eu estava falando, Connie? Do prêmio de literatura? Um absurdo, isso não faria sentido algum.

Nesse momento, mamãe soltou uma risada curta e os dois olharam um para o outro de um jeito engraçado.

Depois que os pratos foram levados da mesa, papai foi para a sua poltrona no canto da sala enquanto Daniel, mamãe e eu continuamos sentados à mesa da cozinha, bebendo oceanos de chá.

— Acho melhor a gente ir embora — comentei em tom casual, quando deu dez e meia. Eu passara a última meia hora tentando reunir coragem para fazer a sugestão. Sabia que a idéia não ia agradar muito a minha mãe.

— Mas já? — reclamou ela, com a voz aguda. — Vocês mal chegaram!

—Já é tarde, mamãe, e vai ser ainda mais tarde quando eu chegar em casa. Preciso descansar bem para encarar o trabalho amanhã.

— Não sei o que há de errado com você, Lucy. Quando eu tinha a sua idade, conseguia dançar a noite toda, até o sol raiar.

— Tome comprimidos de ferro! — berrou meu pai, da sala. — E disso que você está precisando. Ou então aquele outro remédio que os jovens tomam para ganhar mais energia, como é o nome mesmo?

— Não sei, papai. Sanatogen?

— Não — murmurou ele. — Acho que tinha outro nome.

— Nós realmente temos que ir. Não temos, Daniel? — disse eu, com firmeza.

— Hã... temos.

— Cocaína! É esse o nome — gritou papai, todo feliz por ter conseguido lembrar. — Vá até o médico e peça a ele uma receita para comprar cocaína. Uma dose e você já vai estar pulando por toda parte, cheia de energia.

— Acho que não, papai. — E soltei uma risada.

— Por que não? — insistiu ele. — Cocaína é um daqueles troços ilegais?

— É, papai.

— Isso é um absurdo — declarou ele. — Esses caras que fazem as leis estragam tudo com sua mania de taxar as coisas e rotular tudo de ilegal-isso e ilegal-aquilo. Que mal faria uma gotinha de cocaína de vez em quando? Eles não têm a mínima idéia do que é se divertir, não têm mesmo.

— Sim, papai.

— Por que não passa a noite aqui? — sugeriu mamãe. — A sua cama está feita, lá no seu antigo quarto.

Fiquei horrorizada só de ouvir aquela idéia. Dormir debaixo do mesmo teto que ela? Sentir-me novamente aprisionada ali? Como se jamais tivesse conseguido escapar?

— Hã... não, mamãe. Daniel também precisa ir para casa, então é melhor eu voltar para a cidade com ele...

— Mas Daniel pode dormir aqui também — disse mamãe, toda empolgada. — Pode ficar no quarto que era dos meninos.

— Muito obrigado, Sra. Sullivan...

— Connie — disse ela, inclinando-se por sobre a mesa e colocando a mão sobre a manga da camisa dele. — Pode me chamar de Connie. É uma bobagem você continuar me chamando de "Sra. Sullivan", agora que já está adulto.

Minha nossa! Ela está agindo como... como se estivesse flertando com ele. Senti vontade de vomitar.

— Muito obrigado... Connie — repetiu Daniel —, mas eu realmente preciso ir embora. Tenho uma reunião no trabalho amanhã, bem cedo...

— Bem, já que insistem. Longe de mim querer impedir as engrenagens da indústria. Mas você promete voltar para nos visitar novamente?

— Claro que sim. Eu adoraria.

— E talvez, da próxima vez, vocês possam dormir aqui, que tal?

— Ué, eu também fui convidada? — perguntei.

— Lucy. — Mamãe balançou a cabeça. — Você não precisa de convite. Como é que você agüenta essa menina? — perguntou a Daniel. — Ela fica melindrada à toa.

— Ela não é das piores — resmungou Daniel. Sua cortesia natural pedia que ele concordasse com mamãe, mas seu instinto de sobrevivência o fez se lembrar de que seria imprudente me deixar aborrecida.

Devia ser difícil agir como Daniel, pensei, e achar que era necessário agradar a todos o tempo todo. Ser charmoso, receptivo e simpático vinte e quatro horas por dia era de deixar qualquer um arrasado.

— Sei... me engana que eu gosto — disse mamãe, com ironia.

— Podemos dar um telefonema para pedir um táxi? — perguntou Daniel, doido para mudar de assunto.

— Por que não vamos de metrô? — perguntei.

— Já está muito tarde.

— E daí?

— Está chovendo.

— E daí?

— Eu pago a corrida.

— Então tá!

— Há uma empresa de táxis aqui pertinho, nessa rua mesmo — disse mamãe. — Já que vocês querem ir embora de qualquer jeito, posso dar uma ligada, pedindo um carro.

Fiquei desanimada na mesma hora. A empresa de táxis que ficava ali pertinho era constituída de um monte de refugiados afegãos, indonésios em busca de asilo político e exilados argelinos. Nenhum deles sabia falar uma palavra sequer de inglês e, a julgar pelo seu senso de direção, haviam acabado de desembarcar na Europa. Eu tinha simpatia pelas suas causas e problemas de todo tipo, mas queria chegar em casa sem ser "via Oslo".

Mamãe ligou para eles.

— Quinze minutos — anunciou ela.

Sentamos novamente à mesa e ficamos esperando. A atmosfera parecia forçada, mas ficamos ali, fingindo que aquele finalzinho estava sendo tão bom quanto o resto da noite, que estávamos muito felizes por estar ali, e que nossos ouvidos não estavam loucos para ouvir o som do táxi parando bem na porta. Ninguém disse nada. Eu, certamente, não consegui falar nada leve, que pudesse disfarçar a tensão.

Mamãe suspirava de vez em quando, dizendo coisas tolas como "bem...". Ela era a única pessoa que eu conhecia capaz de dizer "bem" e "quer mais uma xícara de chá?" de forma desagradável.

Depois do que me pareceram horas, pensei ter ouvido um carro estacionando na frente de casa e corri para dar uma olhada.

Os carros da empresa eram sempre umas latas velhas, geralmente Ladas e Skodas caindo aos pedaços.

Como era de esperar, um Ford Escort jurássico e imundo parara na porta e, mesmo no escuro, dava para ver que estava todo enferrujado.

— O táxi chegou — avisei. Peguei meu casaco, agarrei Daniel e me lancei em direção ao carro.

— Oi, eu sou Lucy — apresentei-me ao motorista. Como íamos passar muito tempo juntos durante a longa viagem de volta, achei que era melhor ficarmos bem à vontade uns com os outros.

— Hassan — sorriu ele.

— Podemos ir primeiro a Ladbroke Grove? — perguntei.

— Falar pouco inglês — explicou Hassan, com cara de quem pede desculpas.

— Ah.

— Parlez-vous français? — perguntou ele,

— Un peu — repliquei. — E você, sabe parlez algum français? —perguntei a Daniel quando ele entrou no carro.

— Un peu — replicou ele.

— Daniel, este é Hassan. Hassan, Daniel.

Eles trocaram um aperto de mãos e Daniel tentou ensinar o percurso.

— Savez-vous a avenida Oeste?

— Hã...

— Bem, savez-vous o centro de Londres?

Um olhar sem expressão.

— Já ouviu falar de Londres? — perguntou Daniel, com delicadeza.

— Ah, sim! Londres. — Um raio de compreensão despontou no rosto de Hassan.

— Bien! — disse Daniel, satisfeito.

— É a capital da Grã-Bretanha.

— Exato! É essa mesmo!

— Possui uma população de... — continuou Hassan.

— Pode nos levar até lá, por favor? — pediu Daniel, já começando a parecer ansioso. — Vou lhe ensinar o caminho. E vou lhe pagar um monte de dinheiro também.

E lá fomos nós! Daniel ocasionalmente gritava "à droit" ou "à gaúche".

— Graças a Deus acabou! — suspirei enquanto saíamos dali, a figura de mamãe que acenava se encolhendo aos poucos atrás de nós.

— Para mim foi uma noite legal — disse Daniel.

— Não seja ridículo — reagi, com ar de deboche.

— Foi sim.

— Como é que você pode achar isso? Com aquela... aquela... velha megera lá?

— Imagino que você esteja se referindo à sua mãe. Não acho que ela seja uma megera.

— Daniel! Ela não perde uma chance de me desmerecer.

— E você não perde uma chance de provocá-la.

— O quê? Como ousa falar isso? Sou uma filha muito boa, dedicada e deixo que ela escape impune, apesar de todos os insultos.

— Lucy. — Riu Daniel. — Claro que não. Você põe a maior pilha e fala coisas só para deixá-la aborrecida, de propósito.

— Não sei do que você está falando. De qualquer modo, isso não é da sua conta.

— Tudo bem.

— E você não acha que ela é chata? — continuei, quase de imediato. — Ficou falando o tempo todo, sem parar, da porcaria da tinturaria. Quem está interessado nesse assunto?

— Mas...

— O quê?

— Não sei... acho que ela é muito sozinha. Não deve ter ninguém com quem conversar...

— Se ela é sozinha, a culpa é dela mesma.

— ... Enfiada o tempo todo naquela casa, tendo apenas o seu pai para conversar com ela. Ela sai? Quer dizer, sem ser para ir ao trabalho?

— Não sei. Acho que não. E o que é mais importante, não dou a mínima.

— Pois ela é uma pessoa muito divertida, sabia?

— Não sei disso não!

— Sério, Lucy, ela é sim. Sua mãe ainda é uma mulher muito jovial.

— Mas ela é uma bruxa velha.

— Não acredito que você esteja falando sério — disse Daniel. — Você não está sendo nem um pouco sensata. Ela não é uma bruxa velha. É até muito bonita. Você se parece muito com ela.

— Daniel — disse, soprando com raiva. — Isso foi a coisa mais terrível que você já me disse. É a pior coisa que qualquer pessoa me disse em toda a minha vida.

Ele simplesmente riu.

— Você parece demente, Lucy.

— Apesar de tudo, foi muito legal rever papai.

— É... ele foi muito legal comigo — disse Daniel.

— Ele sempre é legal.

— Da última vez em que nos encontramos, ele não foi nada legal.

— Não foi?

— Não. Ele me chamou de Sassenach * sem-vergonha, e me acusou de roubar as terras dele e oprimi-lo por setecentos anos.

— Mas ele não falou isso em nível pessoal — argumentei, colocando panos quentes. — Você era apenas um símbolo para ele.

— Mesmo assim, não foi legal — teimou Daniel. — Eu jamais roubei nada de ninguém em toda a minha vida.

— Nunca?

— Nunca.

— Nem quando era garoto?

— Não.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Tem certeza mesmo?

— Bem, tenho quase certeza.

— Nem mesmo balas de uma loja?

— Não.

— Como é?... Não ouvi bem. Repita.

— Não!

— Também não precisa gritar.

— Tá legal, então... sim! Acho que você está se referindo àquela vez no Woolworth's, quando Chris e eu roubamos aquelas facas e garfos na seção de cozinha.

— Hã?...

Aquilo era novidade para mim, mas Daniel foi em frente.

— Você não perdoa nada, não é, Lucy? — reclamou ele, com cara de zanga. — Fica fuçando tudo sobre a minha vida, não consigo esconder nem um segredo de você...

— Mas por que roubar talheres? — interrompi, intrigada.

— E por que não roubar?

— Mas... para que vocês queriam aquilo? Por que roubaram garfos e facas?

— Porque tivemos chance.

— Não saquei...

— Porque conseguimos. Roubamos pelo simples fato de fazer isso sem sermos pegos. Roubamos por ter tido a oportunidade, não porque queríamos os objetos — explicou ele. — O prêmio não era o objeto surrupiado, era a ação propriamente dita. O ato da aquisição ilícita e a emoção daquilo, esse era o lance.

— Ah.

— Você entendeu?

— Sim, acho que sim. E o que fizeram com os talheres?

— Dei tudo para a minha mãe como presente de aniversário.

— Seu pão-duro!

— Mas arrumei outro presente para ela também, além desses — explicou ele, correndo. — Um marcador de tempo para fazer ovos cozidos. Esse foi comprado, paguei pelo marcador de tempo para preparar ovos. Não fique olhando para mim desse jeito, Lucy.

— Não estou olhando assim por achar que você tenha roubado o marcador de tempo para ovos cozidos. O espanto é pelo presente. Um marcador de tempo para preparar ovos! Que tipo de presente idiota é esse para uma mulher?

— Eu era muito novo, Lucy, não sabia das coisas.

— Que idade tinha? Vinte e sete?

— Não. — E riu. — Tinha seis, mais ou menos.

— Você não mudou muito, sabia, Daniel?

— Como assim? Você acha que continuo a roubar talheres na Woolworth's para dar de presente à minha mãe no aniversário dela?

— Não.

— O que é, então?

— E sobre pegar coisas pelo simples fato de ser capaz disso.

— Não peguei o que você está querendo dizer — disse, com cara de ofendido.

— Ah, pegou. Pegou sim! — cantarolei, feliz.

— Não peguei.

— Claro que pegou. Estou deixando você chateado?

— Está.

— É isso mesmo. Estou falando de mulheres, Daniel. As mulheres e você, Daniel. Você e as mulheres, Daniel.

— Achei que devia ser isso — reagiu ele, tentando esconder um pequeno sorriso.

— O jeito como você as pega simplesmente porque consegue fazer isso.

— Não faço isso.

— Faz, faz sim!

— Lucy, é claro que não!

— Bem, e quanto a Karen?

— O que tem ela?

— O quanto você gosta dela? Ou está com ela só para se divertir?

— Eu realmente gosto dela — disse, com a cara séria. — Gosto mesmo, Lucy. Ela é muito inteligente, uma ótima companhia e ainda por cima é linda.

— Você está sendo honesto? — perguntei com severidade.

— Estou.

— A coisa é séria com ela? -É.

— Puxa!

Uma pequena pausa.

— Hã... você está, tipo assim... apaixonado por ela? — perguntei, com cautela.

— Bem, Lucy, não a conheço há tanto tempo assim para estar apaixonado por ela.

— Ótimo.

— Mas estou tentando.

— Entendo.

Outra pausa estranha.

Eu realmente não conseguia arranjar nada para dizer a Daniel. Aquilo era algo que jamais acontecera entre nós antes.

— Papai estava muito quieto esta noite — disse eu, por fim. — Estava muito bem comportado.

— É mesmo, ele nem chegou a cantar.

— Cantar?

— Ele normalmente me homenageia com várias canções, como "Carrickfergus" ou "Quatro campinas verdes", e também me obriga a cantá-las junto com ele.

Senti a desagradável impressão de que Daniel estava debochando de papai, mas não queria saber com certeza, então fiquei calada. Muito tempo depois, chegamos ao meu apartamento.

— Obrigada por ter ido comigo até lá — disse a Daniel.

— Não seja boba. Eu gostei disso.

— Bem, hã... boa-noite.

— Boa-noite, Lucy.

— A gente se vê. Provavelmente você vai aparecer por aqui para se encontrar com a Karen.

— Provavelmente. — E sorriu.

Senti uma inesperada fisgada de aborrecimento, aquele sentimento infantil de "ele é meu amigo, e não seu, Karen".

— Tchau — disse depressa, virando-me para sair do carro.

— Lucy — disse Daniel.

Havia alguma coisa estranha, alguma coisa nova em seu tom de voz, uma sensação de urgência talvez, que me fez virar depressa e olhar para ele.

— Que foi? — perguntei.

— Nada não, é só... boa-noite.

— Sim. Boa-noite — respondi, tentando parecer chateada. Mas não saí do carro. Sentia uma tensão esquisita, algo me dizia que eu estava à espera de algo, mas não sabia do quê.

Acho que estávamos tendo uma briga, decidi, uma daquelas silenciosas, mas terríveis.

— Lucy — disse Daniel, novamente com aquele tom de voz estranho e urgente.

Só que eu não disse nada, não bufei nem perguntei "o que foi?!", como em geral faria.

Simplesmente olhei para ele e, pela primeira vez em toda a minha vida, me senti sem graça na presença de Daniel. Não queria olhar para ele, mas não consegui evitar.

Ele levantou a mão, tocou o meu rosto e fiquei olhando para ele, parada, como um coelho pego de surpresa pelos faróis de um carro. Que diabos ele estava fazendo?

Com todo o cuidado, Daniel tirou o meu cabelo da frente do olho enquanto fiquei rígida ali, olhando para ele.

Então voltei à realidade.

— Boa-noite — cantarolei, meio alto, pegando a bolsa e me arrastando para a ponta do banco, para sair do carro. — Obrigada pela carona. A gente se vê.

— Ah, e bonsoir — disse, na direção de Hassan. — Bon chance com a empresa de táxis.

— Salut! — respondeu ele de volta.

Corri para casa e enfiei a chave na porta. Minha mão tremia. Não consegui entrar tão rápido quanto planejei. Só pensava em ir para o meu quarto, onde estaria em segurança. Estava apavorada. O que significava aquela tensão repentina entre mim e Daniel? Havia tão pouca gente com quem eu me sentia à vontade, tão pouca gente que eu considerava amiga de verdade. Não ia agüentar se as coisas dessem errado com Daniel.

Mas a verdade é que havia algo de errado, as coisas ficaram muito esquisitas por um instante. Talvez ele estivesse chateado comigo por eu falar aquelas coisas das namoradas dele. Talvez ele tivesse se apaixonado por Karen e agora viesse com todo aquele comportamento protetor a respeito do assunto.

Talvez ele não fosse mais precisar da minha companhia se estivesse apaixonado e encontrado a alma gêmea, porque é isso que acontece de vez em quando. Quantas amizades dão com os burros n'água quando um dos lados se apaixona? Centenas, provavelmente. Não seria surpresa se aquilo acontecesse entre mim e Daniel.

Por mim não havia problemas, eu tinha o Gus. Tinha outros amigos. Ia ficar bem.

 

Seis semanas se passaram, e era um domingo à noite, bem tarde.

Voltáramos do Curryfour havia algum tempo, e Gus já saíra havia cerca de uma hora. Karen, Charlotte e eu estávamos jogadas na sala, sem vida, sobre várias peças da mobília, comendo o resto das batatas fritas, assistindo à tevê e tentando nos recuperar do fim de semana. Karen de repente deu um pulo e se sentou reta na poltrona, parecendo ter acabado de tomar uma decisão muito importante.

— Vou dar um jantar na sexta-feira — declarou ela. — Vocês duas, Simon e Gus estão convidados,

— Puxa, obrigada, Karen — disse eu, meio nervosa.

Eu sabia que ela estava tramando alguma coisa. Notei que estivera olhando para a lareira durante toda a última meia hora, com um olhar engraçado, de determinação.

— O Daniel vem?—perguntou Charlotte, ingênua até dizer chega. É claro que Daniel vinha. Daniel era o motivo principal da reunião.

— É claro que Daniel vem — disse Karen. — Daniel é o motivo principal da reunião.

— Ah, entendi... — concordou Charlotte. Eu entendi também.

Karen devia estar tramando o preparo de um jantar muito elaborado e sofisticado, com mais de dez pratos. Ia servi-lo com todo o estilo, mostrando graça e elegância, sem derramar nada sobre a roupa nem ficar com a cara vermelha e brilhante, Ia parecer linda, ia se mostrar inteligente, boa anfitriã, uma ótima companhia, tudo parte de sua tentativa de provar a Daniel o quanto ela era indispensável em sua vida.

— Vamos ter um jantar maravilhoso — anunciou ela. — E vocês vão ter que estar muito bem produzidas.

— Parece divertido — disse Charlotte. — Posso usar minha fantasia de cowgirl.

— Não esse tipo de produção — disse Karen, ligeiramente alarmada. — Estou falando de roupa chique, glamourosa, vestido longo, jóias e salto alto.

— Não estou bem certa se Gus tem um vestido longo — disse.

— Rá-rá — disse Karen, sem achar graça. — Muito engraçada.

Pelo menos certifique-se de que ele vai aparecer com uma roupa decente, em vez daqueles trapos de refugiado que normalmente usa.

— E agora — continuou Karen — vou precisar de... deixe ver... trinta libras de cada uma de vocês duas, e depois a gente acerta o que ficar faltando.

— O qu... quê? —perguntei, coberta de preocupação.

Eu não esperava aquilo. Nem Charlotte, pelo jeito como ficou espantada e deixou o queixo cair.

Ah, não! Eu tinha me divertido o fim de semana inteiro com Gus, e estava sem disposição para arrumar discussão com Karen.

— Claro — disse ela, parecendo aborrecida. — Vocês não esperam que eu vá pagar pela comida toda sozinha, esperam? Estou planejando e vou ser a coordenadora de todo o evento, além de preparar os pratos.

— Então está bem, parece justo — disse Charlotte, tentando fazer cara de animada e me lançando um olhar do tipo "vamos tentar enxergar o lado divertido de tudo isso", além de um sorriso do tipo "não podemos esperar que ela prepare alimentos finos para nós e para os nossos namorados apenas por bondade".

Como ela estava certa...

— Ótimo, então está combinado — disse Karen, com firmeza. — E vou querer o dinheiro agora, se vocês não se importam.

Houve uma pausa de choque.

— Agora — repetiu Karen.

Houve uma apressada busca no fundo das bolsas, seguida de desculpas esfarrapadas.

— Acho que não estou com esse dinheiro todo comigo não.

— Posso lhe dar um cheque?

— Será que não dá para lhe dar o dinheiro amanhã à noite?

Francamente, Karen — argumentei. — Como é que você pode achar que alguma de nós está com dinheiro sobrando em um domingo à noite? Especialmente depois de um fim de semana cheio como esse que tivemos.

Karen disse alguma coisa realmente desagradável a respeito da história das virgens prudentes e das virgens tolas, mas eu a alertei de que ali não havia nenhuma virgem, nem prudente, nem tola, nem de qualquer tipo, e que não sabia do que ela estava falando.

Todas caíram na risada e a tensão se dissolveu por alguns instantes, até Karen atacar de novo:

— Eu realmente preciso do dinheiro agora — avisou.

— Por quê? — eu quis saber, com cara de boba. — Acho que o supermercado já deve estar fechado em um domingo às dez e meia da noite.

— Não se faça de engraçadinha, Lucy — disse ela, com ar de crítica. — Não combina com você.

— Mas eu não estava me fazendo de engraçada, não — gaguejei. — Realmente queria saber para que você precisa do dinheiro agora, hoje, num domingo à noite.

— Não é para hoje, sua burralda! É para amanhã. Vou fazer as compras quando voltar do trabalho amanhã, por isso é que preciso do dinheiro hoje.

— Ah.

— Vamos até o caixa eletrônico agora mesmo — disse Karen, com voz de quem não admitia argumentos.

Charlotte bem que tentou fazer um protesto corajoso, mas estava fadado ao fracasso.

— Está chovendo... — explicou ela. — É domingo à noite e já estou de camisola...

— Você não precisa trocar de roupa, então — disse Karen, com gentileza.

— Obrigada — suspirou Charlotte.

— É só colocar um casacão por cima da camisola — continuou Karen. — Enfie um par de meias, calce as botas e vai ficar legal. Está escuro, ninguém vai ver.

— Tá bem... — resmungou Charlotte, meio murcha.

— E não é necessário vocês duas irem até lá — continuou Karen. — Lucy, entregue o seu cartão à Charlotte e diga a ela qual é a sua

senha.

— Quer dizer que você não vai? — perguntei, com a voz fraca.

— Lucy, francamente... Às vezes você parece meio tapada. Para que eu preciso ir até lá?

— Mas eu pensei...

— Você não pensa, esse é o seu problema. Enfim, se Charlotte vai, você não precisa ir.

Eu não me incomodava de ficar chateada com ela. Um dos fatores para o sucesso, quando a gente divide o apartamento com alguém, é a capacidade de deixar que as pessoas sejam insuportáveis com você de vez em quando. Assim, quando você achar que está se comportando como Anticristo, o jogo fica empatado.

— Não posso deixar que Charlotte vá até lá sozinha — disse eu.

— A Charlotte não vai até lá sozinha não, de jeito nenhum! — berrou Charlotte, do quarto.

— Se você quer ser generosa com ela... — Karen encolheu os ombros.

Coloquei um casacão por cima do pijama e enfiei as pontas das calças dentro das botas.

— Meu guarda-chuva está no vestíbulo — cantarolou Karen.

— Enfia o guarda-chuva — reagi, mas bem baixinho, em segurança, bem longe dela e já perto da porta.

Claro que outro fator para o sucesso de se dar bem com as pessoas que dividem o apartamento com você é não perder uma oportunidade de soltar os cachorros pelas costas da agressora,

Charlotte e eu caminhávamos com dificuldade, açoitadas pela chuva, até chegarmos ao caixa eletrônico.

— Piranha — desabafou Charlotte.

— Não, ela não é piranha — reagi, com ar sombrio.

— Não? — perguntou Charlotte, parecendo surpresa.

— Não! Ela é uma vaca que também é piranha — corrigi. Charlotte começou a patinhar nas poças de chuva, gritando:

— Piranha, piranha, piranha, piranha, piranha, piranha, piranha, piranha, piranha!

Um homem que estava levando o cachorro para dar uma volta atravessou a rua, parou e ficou olhando para nós com toda a atenção. Parecíamos duas lunáticas desbocadas, marchando pela rua apressadas, as pontas da camisola cor-de-rosa de Charlotte soltas e tremulando agitadas por baixo do casaco a cada passo que ela dava, ao mesmo tempo em que as pernas do meu pijama de flanelinha azul-bebê balançavam ao vento, por fora da bota.

— Tomara que ela pegue gonorréia do Daniel — disse eu. — Ou herpes, verrugas genitais, qualquer coisa assim, bem horrível.

— Ou chato. Tomara que ela pegue chato — concordou Charlotte, com crueldade. — Espero que pegue uma gravidez. E da próxima vez que Daniel aparecer, vou desfilar pelo apartamento sem roupa, só para mostrar para ele que meus peitos são maiores do que os dela. Karen ia odiar isso, aquela megera piranhuda e mandona!

— Isso mesmo — concordei, com a maior animação. — Na verdade, você devia tentar dar em cima e se esfregar nele.

— Sim — concordou ela, com todo o entusiasmo. — Eu adoraria!

— Olhe, acho que o melhor de tudo seria tentar transar com ele. E na cama dela, se você conseguisse — sugeri, com um prazer malicioso.

— Grande idéia! — guinchou Charlotte.

— E depois jogar na cara de Karen que ele disse que ela era horrível de cama, e que você era muito melhor.

— Não sei, não... — disse Charlotte, meio em dúvida. — Talvez não seja assim tão fácil chegar nele, sabe, ele parece gostar dela de verdade. Por que não tenta você?

— Eu?

— Sim, você teria mais chance — explicou ela. — Acho que Daniel fica com o coração mole só de ver você.

— Talvez fique — concordei, meio triste. — Mas nós estamos falando de sexo, Charlotte. Não vai adiantar nada ele ficar com o coração mole por mim, o coração tem que ficar é duro.

Começamos a rir e nos sentimos melhor. Só que aquilo me fez pensar em Daniel. Ele quase não estava falando comigo. Ou talvez eu é que quase não estivesse falando com ele. Algo estranho estava acontecendo, de qualquer modo.

Pegamos o dinheiro e voltamos para casa, encharcadas e com raiva. Entregamos o dinheiro para Karen, com a cara amarrada.

— Quer dizer que posso enfiar o meu guarda-chuva, é? — perguntou ela, com a sobrancelha arqueada, sentada bem reta no sofá.

Fiquei vermelha de vergonha na mesma hora. Mas quando tornei a olhar para ela, ela estava sorrindo.

— Sim! — Ri também, dissolvendo a tensão. — Agora eu vou para a cama. Boa-noite.

— Boa-noite — repetiu Karen enquanto eu saía. — Ah, e tem mais uma coisa, Lucy... Vou precisar de você e de Charlotte aqui em casa na quinta à noite, para fazer uma faxina no apartamento e ajudar nos preparativos.

Parei na mesma hora e compreendi que outro fator para o sucesso no relacionamento com a pessoa que divide o apartamento com você é a capacidade de imaginá-la sendo surrada na cabeça por um bastão comprido e cheio de pregos.

— Tudo bem — resmunguei sem me virar.

Passei a noite fantasiando como seria se eu pusesse todas as roupas de Karen em um imenso saco preto e o colocasse na porta, para os lixeiros levarem.

Na quinta à noite, a Noite dos Longos Preparativos, me pareceu que eu havia morrido e ido para o Inferno.

Karen resolveu preparar a maior parte da comida na véspera, de modo que na noite do jantar ela teria pouca coisa a fazer, além de parecer linda, simpática, calma e com tudo sob controle.

O único problema é que Karen estava tão nervosa com tudo aquilo e tão determinada a impressionar Daniel que parecia estar ainda mais, como direi?..., difícil, do que de hábito. Ela sempre fora uma pessoa dinâmica e com força de vontade, mas havia uma tênue linha divisória entre ser dinâmica, ter força de vontade e virar uma megera mandona. Karen conseguira atravessar essa linha com sucesso.

Resolvera que Charlotte e eu faríamos a parte "mãos à obra" dos preparativos enquanto ela ficaria com o cargo de Diretora de Criação, supervisionando tudo, aconselhando, guiando e gerencian-do tudo.

Em outras palavras, se havia batatas para descascar, ela não tinha intenção alguma de fazê-lo.

Charlotte e eu mal colocamos o pé em casa, na volta do trabalho, e ela começou a nos dar ordens, organizando tudo:

— Você! — berrou para Charlotte, apontando com a caneta e lendo os itens de uma lista. — Está encarregada das cenouras, da pimenta, da berinjela, das abobrinhas, do coentro, da sopa de alecrim e do suflê de aspargos.

— E você! — berrou para mim. — Está encarregada dos bolinhos de batata, do purê de kiwi, da geléia de amora, do creme chan-tilly, dos cogumelos recheados e dos biscoitinhos vienenses.

Charlotte e eu ficamos aterrorizadas. Nem sabíamos da existência da maioria daquelas comidas, muito menos como prepará-las. A especialidade culinária de Charlotte era torrada, e a minha era miojo. Sempre que tentávamos cozinhar alguma coisa mais complicada do que isso, a coisa acabava em lágrimas e recriminações.

Era sempre comida carbonizada por fora e crua por dentro, vozes alteradas, sentimentos feridos, derramamentos diversos e escorregões variados. Não dá para fazer uma omelete sem quebrar alguma coisa além dos ovos. Pelo menos eu nunca conseguira essa façanha.

Naquela noite, a cozinha parecia uma cena do Inferno de Dante. O círculo onde os pecadores eram torturados com frutas e vegetais. As quatro bocas do fogão estavam em uso constante, com vapores subindo, tampas chacoalhando, para a seguir pularem, esparramando líquidos que transbordavam. Havia pilhas de uvas, aspargos, muita couve-flor, um monte de batatas, cenouras e kiwis em toda parte. O calor era tão intenso que Charlotte e eu estávamos da mesma cor que os tomates. Karen, não.

Não havia lugar para colocar coisa alguma, porque Karen nos obrigara a levar a mesa da cozinha para a sala de estar.

— Coloque as coisas ali no canto. Não, não, o creme para preparar o merengue não, pelo amor de Deus! — reagiu ela, tendo um chilique quando tentei esvaziar a geladeira, a fim de conseguir espaço para os vinte ou trinta tipos de sobremesa que ela estava esperando que preparássemos.

Em todo lugar havia comida. Em cima da geladeira, sobre a pia, dentro da pia... A maior parte do chão estava coberta de tigelas com carne de porco descansando no molho, gelatina que estava endurecendo e pão de alho embrulhado em papel laminado. Eu estava com medo de mexer o pé alguns centímetros e afundar até as canelas em azeite, vinho tinto, zimbro, baunilha, cominho ou no "molho com ingredientes secretos da Karen". Pelo que consegui ver, o tal ingrediente secreto era simplesmente açúcar mascavo. Estava doida para jogar isso na cara dela, para ela parar de fazer mistério, como se o molho fosse o Terceiro Segredo de Fátima.

Descasquei catorze milhões de batatas. Fatiei dezessete mil kiwis. Depois piquei tudo. Depois, tive de esmagar tudo aquilo para passar por uma peneira, sei lá para que exatamente. Ralei os dedos na parede enquanto empurrava a mesa pelo corredor até a sala.

Cortei o polegar quando estava descascando vagens e um pouco de pimenta entrou no corte. Karen acudiu, aconselhando-me a ter mais cuidado, porque ela não queria sangue na comida.

De vez em quando ela aparecia para "dar uma olhadinha" no que estávamos fazendo, e, mesmo sabendo que era ridículo, fiquei nervosa. Ela parecia um sargento passando os soldados em revista.

— Não, não, não — disse ela e, deixando-me pasma, bateu nos meus dedos com uma colher de pau! — Não é assim que se descasca batata! Você está arrancando metade das batatas junto com a casca! Isso é um desperdício, Lucy!

— Enfia essa colher de pau no rabo! — disse eu, muito zangada, desejando que a minha faca de cortar legumes fosse um canivete. A piranha mandona tinha ido longe demais, e a colher de pau tinha machucado.

— Ora, ora... estamos mesmo de muito mau humor hoje, não é? — E riu. — Você precisa aprender a aceitar críticas construtivas, Lucy. Jamais vai vencer na vida com esta sua atitude.

Dava para eu sentir a fúria na boca. Estava tentando... precisava compreender que ela estava louca daquele jeito por causa de um homem. Mesmo sendo Daniel. Eu não tinha o direito de julgar.

— E isto aqui, alguém sabe me explicar o que é? — quis saber ela. Estava junto de Charlotte, que descascava cenouras, e apanhou uma delas, já descascada.

— Isto é uma cenoura — explicou Charlotte. De cara feia. Na defensiva.

— Que tipo de cenoura? — perguntou Karen, com a voz lenta e expressiva.

— Uma cenoura descascada.

— Uma cenoura... descascada — disse Karen, com ar de triunfo.

— Uma cenoura descascada, ela está me dizendo. Posso lhe perguntar, Lucy Sullivan, se, na sua opinião, esta cenoura parece descascada?

— Parece — respondi, com firmeza e lealdade.

— Ah, não, não parece mesmo! Se está descascada, está muito mal descascada. Comece tudo de novo, Charlotte, e faça direito dessa vez.

— Sai daqui, Karen! — explodi, muito brava para me importar.

— Estamos fazendo um favor para você.

— Como disse?... — perguntou Karen, levantando as sobrancelhas. — Podia repetir? Vocês estão fazendo um favor para mim? Acho que não é bem assim, Lucy. De qualquer forma, pode parar agora mesmo, se quiser, mas não espere um lugar reservado na mesa para você e Gus amanhã à noite.

Isso me fez calar a boca.

Gus ficara todo empolgado quando eu lhe contara a respeito do jantar, especialmente quando falei que íamos nos produzir todas. Ele ficaria muito desapontado se não pudesse ir. Sendo assim, engoli a raiva. Mais um passo a caminho da úlcera.

— Vou tomar um pouco de vinho — disse, zangada, pegando uma das garrafas que estavam na geladeira. — Vai querer também, Charlotte?

— Não, nada de vinho — declarou Karen. — Ele é para amanhã à noi... ah, deixa pra lá. Vou tomar um pouco com vocês, para fazer companhia.

E assim passamos a noite, trabalhando, descascando, raspando, fatiando, ralando, recheando, batendo, assando e cozinhando.

Trabalhamos tanto que Karen se sentiu quase grata, mas só por dois segundos.

— Obrigada a vocês duas — disse ela enquanto se abaixava para tirar alguma coisa do forno.

— Como é?... não escutei direito — disse eu, tão cansada que me pareceu estar ouvindo coisas.

— Eu falei "obrigada!" — disse ela. — Vocês duas foram muito bo... Ai, meu Deus! Sai da frente, sai, sai! — urrou ela, me empurrando para o lado, deixando tombar uma bandeja do que deveriam ser os biscoitinhos vienenses, fazendo-os escorregar e cair dentro da tigela de ratatouille. — Queimei a mão — gemeu ela. — Essas porcarias de luvas térmicas não servem para nada.

Finalmente consegui ir para a cama, mais ou menos às duas da manhã, com as mãos raladas e cortadas, cheirando a alho misturado com Drambuie. Minha unha de estimação, que eu tratara com carinho desde o sabugo, ficou lascada e quebrou

 

Foi bom eu conseguir um lugar sentada no metrô, na manhã seguinte, porque estava tão cansada que era capaz de deitar no chão do vagão se tivesse de viajar em pé. Charlotte e eu passamos todo o percurso comentando, com ar cansado, o quanto Karen era uma megera grossa e estúpida.

— Puxa, quem ela pensa que é? — perguntou Charlotte, bocejando.

— Exato — bocejei de volta, despencada no meu lugar. Reparei que os meus sapatos estavam sujos e gastos, e isso fez com que eu me sentisse deprimida. Sentei reta, para não ter de ficar olhando para eles, mas então fiquei de cara com um homem horrível, de terno, que estava sentado de frente para mim e mantinha os olhos grudados nos seios de Charlotte, com um brilho de luxúria toda vez que ela bocejava e o peito se expandia. Senti vontade de bater nele, espancá-lo na cabeça e no pescoço com o próprio jornal.

Resolvi que era melhor fechar os olhos pelo resto da viagem. Era mais seguro.

— Esse namoro entre Karen e Daniel não vai durar muito — declarou Charlotte, sem demonstrar muita certeza. — Ele vai ficar de saco cheio dela.

— Hummmm — concordei, abrindo os olhos por um momento. Fechei-os de novo, bem apertados, não sem antes ver um anúncio na parede de uma das estações. Ele pedia donativos para animais maltratados, e mostrava uma foto de um cachorro esquelético com olhar triste, de partir o coração.

Foi quase um alívio chegar ao trabalho, onde tive de aturar as provocações de Meredia e Megan, que insistiam que eu havia mergulhado na cerveja na noite anterior.

— Eu não bebi ontem, não — protestei, sem forças.

— Claro que bebeu — bufou Megan. — Olhe só a sua cara.

 

No momento em que enfiei a chave na fechadura, sexta à noite, Karen já estava no vestíbulo. Tirara a tarde de folga para arrumar o cabelo e enfeitar o apartamento. Na mesma hora começou a me dar ordens:

— Vá tomar um banho e se apronte o mais rápido que puder, ande logo, Lucy! Preciso acabar os preparativos com você.

Verdade seja dita, o apartamento estava lindo.

Havia flores em toda parte. Ela cobrira o tampo medonho da mesa de fórmica da cozinha com uma toalha de mesa branca e encorpada, e colocara um requintado candelabro com oito velas vermelhas bem no centro.

— Não sabia que nós tínhamos um candelabro — comentei, imaginando como ele ia ficar bonito no meu quarto.

— Não temos — disse ela, sem esticar muito o assunto. — Peguei emprestado.

Quando eu estava no banheiro, ela esmurrou a porta e berrou:

— Coloquei toalhas limpinhas nos porta-toalhas, mas nem pense em usá-las!

Deu oito horas. Nós três estávamos prontas.

A mesa estava preparada, as velas acesas, a iluminação da sala bem fraca, o vinho branco estava na geladeira, o vinho tinto já estava aberto e pronto na cozinha, e as panelas, frigideiras e diversos vasilhames para a comida estavam enfileirados sobre o fogão, prontos para dar a partida.

Karen ligou o som e estranhos ruídos começaram a sair dele.

— Que barulho é esse? — perguntou Charlotte, em choque.

— Jazz. — Karen parecia ligeiramente envergonhada.

— Jazz? — urrou Charlotte, com ar de deboche. — Mas nós detestamos jazz. Não é verdade, Lucy?

— É, nós detestamos — fiquei feliz em confirmar.

Como é que chamamos as pessoas que gostam de jazz, Lucy? — perguntou Charlotte.

— Panacas esquisitos? — sugeri.

— Não, não é isso.

— Caras que usam cavanhaque, e estudantes de arte ripongas?

— Isso — concordou ela, alegre. — Caras que usam camisas pólo pretas com calças de esquiar.

— Pode ser que sim, mas agora nós gostamos de jazz — garantiu Karen, com firmeza.

— Você quer dizer que Daniel gosta — resmungou Charlotte.

Karen estava soberba... Ou ridícula, dependendo do ponto de

vista. Usava uma túnica verde-água em estilo grego, com um dos ombros de fora. Seu cabelo estava armado, mas diversas pontas desciam em caracóis e pequenas mechas aneladas. Ela brilhava, parecia muito mais glamourosa do que eu ou Charlotte.

Eu estava usando o meu velho vestido dourado, o mesmo que usara na noite em que conhecera Gus, porque era a única roupa produzida que eu tinha, mas estava parecendo brega e desgrenhada comparada ao esplendor de Karen.

Charlotte, para ser franca, estava um desastre, conseguiu ficar pior do que eu. Colocara o único vestido formal que possuía, o mesmo que usara no casamento da irmã, quando tinha sido dama de honra. Era em tafetá vermelho e tinha o formato de um suspiro gigante. Acho que ela engordara um pouco desde o casamento, porque os peitos estavam quase pulando do corpete tomara-que-caia.

Karen olhou sem muito entusiasmo quando Charlotte se apertou para sair do quarto, gritando "Ta-rãããã!!..B, e fez uma pequena pirueta. Acho que ela ficou imaginando se não teria sido melhor ter permitido que Charlotte usasse a fantasia de cowgirl.

Então, Karen começou a distribuir instruções frenéticas:

— Quando eles chegarem, enquanto eu fico puxando assunto no vestíbulo, você, Lucy, corre para a cozinha e acende o fogo bem baixo, para esquentar as batatas, e você, Charlotte, mistura o...

Parou de falar de repente, com um olhar de horror no rosto.

— O pão. O pão, o pão — guinchou ela. — Esqueci de comprar o pão! Estragou tudo, está tudo arruinado! Totalmente arruinado! Eles vão ter que voltar para casa.

— Karen, fica calma! O pão está em cima da mesa — disse Charlotte.

— Hã?... Oh. Oh. Graças a Deus! Está mesmo? — Ela parecia à beira das lágrimas. Charlotte e eu trocamos olhares longos e sofridos.

Karen ficou parada por um momento, e então olhou para o relógio, dizendo:

— Mas que bosta. Onde é que eles se enfiaram? — quis saber, acendendo um cigarro. Sua mão tremia.

— Dê um tempo a eles — disse eu para acalmá-la. — Acabou de dar oito horas.

— Eu disse que era às oito em ponto — argumentou Karen, agressiva.

— Mas ninguém leva isso a sério — murmurei. — Não é elegante chegar exatamente no horário marcado.

Fiquei com vontade de lembrar a Karen que aquilo era simplesmente um jantar entre amigos, e que o convidado de honra era apenas o Daniel. As palavras chegaram à ponta da língua, mas consegui ficar de bico calado no último instante. Ondas de agressão pareciam emanar dela.

Sentamos todas, sob um silêncio tenso.

— Não vai vir ninguém — disse Karen, quase chorando, entornando um cálice de vinho de uma vez só. — Era melhor nós jogarmos logo tudo fora. Isso mesmo, vamos até a cozinha agora mesmo para colocar tudo aquilo no lixo.

Pousou o cálice por sobre a mesa com força e se levantou.

— Como é? Vamos lá! — ordenou.

— Não — disse Charlotte. — Por que temos de jogar a comida fora? Depois de todo o trabalho que tivemos? Podemos comer de tudo e, depois, congelar o que sobrar.

— Ah, sei — disse Karen, de cara feia. — Podemos comer, não é? E o que faz você ter tanta certeza de que não vai chegar ninguém? O que vocês estão sabendo e não me contaram?

— Nada — declarou Charlote, exasperada. — Você é que falou que...

A campainha tocou. Era Daniel. Uma onda de alívio se espalhou por todo o rosto de Karen, muito bem maquiado. Meu Deus, me ocorreu com um sobressalto, ela realmente está doidinha por ele.

Daniel vestia um terno escuro e uma camisa ofuscante de tão branca, que servia para dar mais destaque ao restinho de bronzeado que ele ainda exibia, e que fora adquirido nas férias de fevereiro, na Jamaica. Parecia mais alto, moreno e bonito, sorria muito, com as pontas do cabelo meio caídas por sobre a testa, e trouxera duas garrafas de champanhe, pois era o típico convidado perfeito. Não pude deixar de sorrir. Perfeitamente arrumado, com um comportamento maravilhoso, e apenas exagerando um pouco no clichê.

Dizia todas as coisas que as pessoas educadas dizem quando chegam para jantar na casa de alguém. Coisas do tipo "hummm... tem alguma coisa no ar com um cheiro delicioso" e "você está linda, Karen, e você também, Charlotte".

Só quando ele virou para mim é que suas maneiras impecáveis deram uma derrapada.

— De que está rindo, Sullivan? — quis saber. — É o meu terno? Meu cabelo? O que foi?

— Nada — protestei. — Não estou rindo de nada. Por que você acha que eu devia estar rindo?

— Para que mudar o hábito de toda uma vida? — murmurou. Depois, passou direto por mim e continuou falando coisas educadas, como bom convidado que era: — Vocês estão precisando de ajuda em alguma coisa? — Sabendo que a resposta seria uma avalanche de reações do tipo "não" e "não se preocupe" e "está tudo sobre controle!".

— Aceita um drinque, Daniel? — perguntou Karen, de forma graciosa, enquanto o levava para a sala de estar. Charlotte e eu tentamos segui-los, mas Karen virou a cabeça para trás e cochichou: — Vão circular por aí, vocês duas. Bloqueou a nossa passagem e acabei dando um encontrão nas costas de Charlotte.

A campainha tornou a tocar. Era Simon dessa vez. Como sempre, sua roupa estava de arrasar. Ele usava um smoking com uma cinta vermelha na cintura, que me pareceu bem idiota. Trouxera uma garrafa de champanhe também.

Ai, meu Deus!, pensei. Gus ia ser o diferente. Isto é, mais do que normalmente já era. Ele não ia trazer champanhe. Provavelmente não ia trazer nada.

Não que isso fosse me deixar sem graça, mas eu estava preocupada de que talvez ele se sentisse sem graça.

Fiquei pensando depressa se seria bom dar uma fugidinha até a loja de bebidas para comprar um champanhe e enfiar discretamente nas mãos de Gus na hora em que ele chegasse, só que eu estava de serviço, esquentando as batatas, então tinha de ficar confinada ao quartel.

Simon exclamou, exatamente como Daniel, minutos antes:

— Hummmm. Tem alguma coisa no ar com um cheiro delicioso. Gus jamais falaria aquilo. Ele diria:

"Cadê o rango? Tô morrendo de fome!"

— Como vão as coisas? — perguntou Karen, colocando a cabeça na porta da cozinha. Ela, pelo jeito, deixara Daniel e Simon sozinhos na sala, travando aquele contato inicial meio constrangido, típico dos homens.

— Está tudo bem — disse eu.

— Cuidado com aquele molho, Lucy — disse, ansiosa. — Se ficar empelotado, eu mato você.

Não respondi nada. Fiquei com vontade de atirar a caçarola na cara dela, com molho e tudo.

— Onde está seu irlandês maluco?

— Está chegando.

— É melhor ele se apressar.

— Não se preocupe.

— Que hora você marcou para ele chegar?

— Oito.

— Já são oito e quinze.

— Karen... ele vem!

— É melhor que venha.

Karen voltou deslizando para a sala de estar, levando uma garrafa embaixo do braço.

Fiquei ali, mexendo o molho, com pequenas fisgadas de ansiedade na boca do estômago.

Ele ia chegar.

Só que eu não falara mais com ele desde terça-feira, e não o via desde domingo. De repente, aquilo me pareceu um período de tempo terrivelmente longo. Será que ele já havia me esquecido?

Um pouco depois, Karen voltou.

— Lucy! — berrou ela. —Já são oito e meia!

— Edaí?

— Onde é que o Gus se enfiou?

— Não sei, Karen!

— Bem... — esbravejou ela. — Não acha que é melhor você tentar descobrir?

— Por que não liga para ele? — sugeriu Charlotte. — Só para se certificar de que ele não esqueceu. Pode ser que ele tenha entendido que o jantar era em outro dia.

— Pode ser que ele tenha entendido que o jantar era em outro ano — completou Karen, com crueldade.

— Tenho certeza de que ele está chegando — disse eu —, mas vou dar uma ligada, só para confirmar.

Eu dava a impressão de estar muito mais segura do que na realidade estava. Qualquer coisa podia ter acontecido com Gus. Ele podia ter esquecido, podia ter se atrasado, podia estar debaixo de um ônibus. Mas eu não estava disposta a deixar ninguém perceber o quanto eu estava preocupada.

Sentia-me embaraçada. Estava com vergonha. Os namorados delas duas haviam chegado na hora marcada. Trazendo garrafas de champanhe. Meu namorado já estava meia hora atrasado e não ia trazer nem uma garrafa de sidra, nem mesmo uma garrafa com água da torneira, quando finalmente resolvesse aparecer.

Se aparecesse, disse uma vozinha dentro da minha cabeça.

Comecei a entrar em pânico. E se ele não desse as caras? E se ele não aparecesse, não me telefonasse e eu nunca mais ouvisse falar dele? O que eu faria?

Tentei me acalmar. Claro que ele ia aparecer. Provavelmente estava chegando, vindo pela rua naquele exato momento. Ele gostava de mim, obviamente tinha um carinho especial por mim e jamais me abandonaria.

Não queria ligar para ele, eu jamais fizera isso. Ele me dera o seu número de telefone, quando pedi, mas eu tinha a impressão de que ele não estava muito a fim de que eu ficasse ligando para ele. Dissera que detestava telefones, que considerava o telefone apenas um mal necessário. E também jamais fora preciso ligar para ele, porque era sempre ele que ligava para mim. Naquele momento, pensando no assunto, lembrei que os telefonemas pareciam sempre vir de uma cabine telefônica em algum lugar bem barulhento, Quase sempre ele aparecia direto no meu apartamento, ou me pegava no trabalho.

Certamente nós dois não passávamos horas a fio pendurados no telefone, sussurrando e dando risadinhas um com o outro, como Charlotte e Simon faziam.

Achei o número na bolsa e fiz a ligação. O telefone tocou e tocou sem parar, sem ninguém atender.

— Ninguém responde — anunciei, aliviada. — Ele já deve estar a caminho.

Nesse instante, alguém atendeu o telefone, do outro lado. Uma voz de homem disse "alô!".

— Hã... alô... Eu poderia falar com Gus?

— Quem?

— Gus. Gus Lavan.

— Ah, ele. Não, ele não está.

Coloquei a mão sobre o bocal do aparelho e sorri para Karen, dizendo:

— Ele já está vindo.

— Quando é que ele saiu de lá? — perguntou ela.

— Quando é que ele saiu daí? — repeti, feito um papagaio.

— Deixe ver... hummm... deve ter... umas duas semanas, mais ou menos.

— O qu... quê?

Minha cara de horror deve ter sido bem transparente, porque Karen explodiu:

— Não acredito nisso! Aposto que o patife acabou de sair de casa faz cinco minutos. Bem, azar o dele, porque vamos começar a comer antes de ele chegar...

Sua voz foi se afastando, enquanto ela seguia pelo corredor para agitar Charlotte, a fim de começarem a servir.

— Duas semanas? — perguntei, baixinho. Apesar de me sentir horrorizada com a informação, achei que era melhor guardá-la para mim mesma. Ia ser muito mais humilhante se eu anunciasse aquilo para minhas amigas e seus namorados.

— Deve fazer umas duas semanas — confirmou a voz, pensando. — Dez dias pelo menos, ou algo assim,

— Ah, bem... hã... obrigada.

— Quem é que está falando? É a Mandy?

— Não — disse eu, sentindo que ia explodir em lágrimas. — Aqui não é a Mandy, não.

Quem era essa tal de Mandy?

— Quer deixar algum recado para ele, se acontecer de eu tornar a vê-lo?

— Não. Obrigada. Adeus.

Desliguei. Alguma coisa estava errada. Eu sabia. Aquele compor tamento não era normal. Por que Gus não comentara que saíra do apartamento? Por que não me dera o número do novo telefone? E onde, afinal, estava ele?

Daniel apareceu no corredor.

— Nossa! O que há de errado com você?

— Nada — respondi, tentando sorrir. Karen também apareceu no corredor.

— Desculpe, Lucy. Podemos esperar um pouco mais por ele.

Ah, não. Não, não, não. Não queria que ninguém ficasse esperando por Gus. Tinha a terrível impressão de que ele não ia aparecer. Não queria que todo mundo ficasse sentado na sala, olhando para a porta o tempo todo, porque então ia ficar óbvio demais quando ele não aparecesse. Eu queria que a noite seguisse adiante, normalmente, sem Gus. Assim, se ele aparecesse, seria uma espécie de bônus.

— Hã... é melhor não esperarmos mais por ele não, Karen. Vamos servir logo o jantar.

— Não, estou falando sério, mais meia hora não vai fazer assim tanta diferença.

Aquilo era bem típico. Karen estava sendo gentil e simpática, o que não acontecia com muita freqüência, e exatamente naquela noite, para variar, eu não queria que ela agisse assim.

— Venha se sentar conosco e tome um pouco de vinho — sugeriu Daniel. — Você está pálida como um fantasma e parece exausta.

Rumamos todos para a sala da frente, peguei um cálice de vinho que alguém me ofereceu e tentei agir com naturalidade.

Todos estavam parecendo relaxados e felizes, batendo papo, recostados no sofá, nas poltronas, bebendo vinho, e só eu estava rígida, tensa, pálida e calada, louca para ouvir um toque da campainha e rezando para o telefone tocar.

— Por favor, Gus, não faça uma coisa dessas comigo — implorei, baixinho.

— Por favor, meu Deus, por favor, faça com que ele apareça. No que me pareceu trinta segundos mais tarde, deu nove horas. O tempo era um canalha do contra. Quando eu queria que ele

passasse correndo, como quando estava no trabalho, ele andava tão devagar que às vezes parecia ter parado. Às vezes levava vinte e quatro horas para o ponteiro dos minutos dar uma volta completa no mostrador. Agora que eu queria que o tempo parasse, ele disparara. Eu queria que ele ficasse em torno da marca das oito e meia da noite por pelo menos umas duas horas, porque assim Gus não pareceria estar tão atrasado. Enquanto o atraso fosse de apenas meia hora, ainda havia esperança, ainda havia chance de ele chegar. Eu desejava ardentemente que o tempo passasse tão devagarzinho que nos mantivesse em um padrão aceitável de tempo no qual ainda fosse possível ele aparecer. Cada segundo que passava, cada segundo que fazia o tempo correr um pouco mais era meu inimigo. Cada tique-taque do relógio levava Gus cada vez para mais longe de mim.

Sempre que havia um momento de silêncio na conversa, e isso estava acontecendo a toda hora, porque ainda não tínhamos bebido muito e nos sentíamos pouco à vontade com tanta formalidade em nossa própria casa, alguém perguntava "o que será que atrasou Gus?", ou "de onde é que ele está vindo? De Camden? Então deve ter acontecido alguma coisa no metrô", ou ainda "na certa ele não imaginou que você marcou o jantar para as oito horas tão ao pé da letra".

Ninguém parecia muito preocupado. Mas eu estava.

Eu estava apavorada.

Não era apenas o fato de ele estar atrasado, embora isso já representasse um mico enorme depois de toda a produção que Karen arrumara para aquele jantar, mas era o seu atraso somado ao fato de que ele havia trocado de endereço sem me contar. Isso, sim, era um mau sinal. Não havia ângulo sob o qual eu analisasse e que me fizesse achar que aquilo fosse uma coisa boa.

Senti pequenas fisgadas de desespero

E se ele não aparecer?

E se eu nunca mais puser os olhos nele?

E quem era Mandy?

Fiz algumas tentativas de me enturmar no clima de camaradagem e alegria que rolava na sala, procurei ouvir o que eles estavam dizendo e pregar um sorriso no meu rosto rígido e pálido.

Só que eu estava tão agitada que mal conseguia sentar quieta por um momento.

E então o ponteiro completou uma volta completa no mostrador e me acalmei. Afinal, o atraso era de apenas uma hora, quer dizer, uma hora e quinze minutos. Droga, olhei com atenção, já passara uma hora e quinze minutos? Ele provavelmente ia aparecer a qualquer momento, meio alto, com alguma desculpa diferente e hilária. Eu vivia reagindo com muita intensidade a coisas bobas, ralhei comigo mesma, com firmeza. Tinha a certeza de que ele ia aparecer e fiquei até espantada ao ver como é que eu fazia as coisas parecerem piores com tanta facilidade.

Gus era meu amigo, havíamos adquirido uma intimidade tão grande nos últimos dois meses, eu sabia que ele gostava de mim e que não ia me deixar na mão.

 

Quando deu dez horas, as tigelas de batatas fritas já estavam vazias e todo mundo parecia meio alto.

— Não vou ouvir nem mais um minuto desta merda...

 

* Personagem em conflito interno, protagonista do filme Bonequinha de Luxo e interpretada por Audrey Hepburn. (N.T.)

* A mais popular telenovela inglesa, no ar há vários anos. (N. T.)

* No original, The quick brown fox jumps over the lazy dog, frase usada, em inglês, para testar teclados de computador, pois todas as letras do alfabeto são usadas para escrevê-la. (N. T.)

** Conhecida loja de roupas da Inglaterra (N.T.)

* Famoso programa matinal de variedades na televisão inglesa. (N.T.)

* Novelas australianas que fizeram sucesso na TV inglesa (N.T.)

* Ator inglês, famoso por beber demais. Faleceu em 1999, por excesso de álcool. (N.T.)

* Ponto famoso no centro de Londres, cercado de importantes lojas e restaurantes. (N.T.)

* Personagem infantil da tevê inglesa que tem a forma de uma bolha cor-de-rosa. (N.T.)

* Referência à canção “Maria”, do filme A Noviça Rebelde. (N.T.)

* Bebida usada desde a antiguidade, uma simples mistura de água e mel que pode ser fermentada, tornando-se alcoólica.(N.T)

* Instrumento de origem celta, tipicamente irlandês, que tem a forma de um tambor baixo e se toca com as mãos ou com baquetas(N.T)

** Escritor irlandês famoso por usar elementos de nonsense, humor e sarcasmo em seus livros(N.T)

* Citação do poema épico Marmion, de Sir Walter Scott, poeta e escritor escocês.

* Famosa feira de produtos e acessórios novos, usados e artesanais, em Londres (N.T)

* Coreógrafo que divulga a dança e o sapateado típocos da Irlanda através dos grupos Lord of the Dance e Riverdance. (N.T.)

* Citação bíblica (Provérbios 16:18). (N.T.)

* Citação do primeiro ato de Hamlet. (N.T.)

* Droga vasodilatadora ingerida por inalação com efeitos semelhantes aos do lança-perfume. (N.T.)

* Nome pejorativo pelo qual os irlandeses se referem aos escoceses e aos ingleses em geral. (N.T.)

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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